OS CINCO SENTIDOS
Do autor:
Noticias do mundo
«
MICHEL SERRES
OS CINCO SENTIDOS FlLOSOFIA DOS CORPOS MISTURADOS - 1
PREMIO MEDlCIS DE ENSAIO
Tradup'lo Eloa Jacobina
IB
BERTRAND BRASIL
L
Instituto de Psicologia - UFRGS - - - Biblioteca - - -
A Jacques Axe~ meu modelo de sapiencia e de sagacidade
SUMARIO
VEUS..........................................................................................
9
CAIXAS ....................................................................................... 81 MESAS ........................................................................................ 151 VISITA ........................................................................................ 239
ALEGRIA .................................................................................... 319
VEUS
L
NASCIMENTO VEU, PELE VARIA<;:AO COMUM
TATUAGEM TELA, HERMES E 0 PAVAO SUTILVEIRO - BRUMAS 0 SENTIDO MISTURA, DESVELAMENTO
NASCIMENTO Perigoso em urn navio, 0 fogo nos expulsa. Queima, arde, morde, crepita, estala, fede, ofusca, incandescente, e multiplica-se nipido para se tornar senhor a bordo. Vma entrada de agua e perigo menor, vimos navios destripados voltarem ao porto cheios de mar ate as obras-mortas. Feito para amar as aguas, fora e mesmo dentro delas, urn navio tern horror ao fogo: sobretudo quando os paiois estao repletos de torpedos e obuses. Born marinheiro e bombeiro adestrado. o treinamento para incendio exige mais dele, mais duro, mais implacavel, do que 0 que fazem para amarinheini-Io. Ainda guardo na memoria alguns supllcios que indicam, para viver ou sobreviver, uma certa rela~ao com os sentidos. Tinhamos de descer em po~os verticais e escuros por escadas interminaveis, rastejar ao longo de calhas umidas ate baixos compartimentos subterraneos onde ardia uma camada de oleo. Deviamos ficar la bastante tempo, deitados sob a fuma~a acre, 0 nariz no chao, imoveis para nao sacudir a nuvem espessa que pesava sobre nos. Era preciso sair lentamente it chaIl1ada do nome, pausadamente, para nao sufocar 0 vizinho com urn gesto brusco que faria baixar 0 nivel das espirais de fumo. 0 espa~o respiravel e uma exigua camada ao res-do-chao, estavel por urn born tempo. Saber prender 0 f6lego, calcular a distancia ate 0 braseiro ou a proximidade mortal, contar 0 tempo ainda disponivel, conseguir andar, dirigir-se, cego, tentar nao ceder ao deus universal do panico, ir-se contendo ate a abertura de saida loucamente desejada, eis duas ou tres coisas que sei do corpo. Nao interpretem isto como urn apologo, ninguem ve sombras dan~antes no fundo da caverna quando urn fogo abrasa. A fuma~a
L
II
• MICHEL SERRES
arde os olhos, ocupa 0 espal'o, sufoca, e preciso se deitar, cego. A gente s6 consegue sair as apalpadelas, s6 resta 0 tato como guia.
12
Saber imltil ate que chegue 0 verdadeiro dia de furia; veio, sem aviso, num dia de inverno, no mar. 0 fogo roncava como urn trovao, aterrador, num minuto fecharam-se as portas estanques. Eu admirava os que se atiravam, sem pensar, pelas escadas, nos all'ap6es. Ouvi muito ruldo e ja nao tenho lembranl'a. De repente, estou s6. 0 que aconteceu? No cornpartimento hermetico, o calor insuportavel faz desmaiar. E preciso sair. A porta, atras, bloqueada definitivamente, volantes e alavancas em posil'ao de estanque, trancadas pelo outro lado. Sufoco sob a fumal'a espessa, deitado no chao movedil'o, sacudido pelas pancadas de mar. Entao, a vigia, s6 resta a pequena vigia. Levantar-me sem respirar, tentar abrir os ferrolhos enferrujados que a interditam. Resistem, foram pouco usados, uma ou duas vezes, com certeza, desde 0 lanl'amento do casco. Nao cedem. Deitar de novo para recobrar fDlego, rente ao chao. 0 tempo torna-se mais ameal'ador como se a onda recuasse. Levantar outra vez, em estado de apneia, e tentar outra vez soltar os ferrolhos que parecem ceder lentamente. Tres, quatro vezes, nao lembro mais, volto outras tantas ao chao, maxilares crispados, musculos paralisados, insisto, insisto, a janela fechada. Bruscamente se abre. A luz entra e, sobretudo, 0 ar, 0 vento furioso que agita a fumal'a, que sufoca ainda mais; passo, rapido, a cabel'a pela abertura. Tempo exewivel, o frio investe com brutalidade, nao posso abrir os olhos na violencia da poeira gelada das ondas, as orelhas, feridas pela passagem, parecem arrancadas; subito, meu corpo se retrai, exige permanecer no reduto quente. Ponho a cabel'a para dentro, mas sufoco, dentro, e ja oUl'o pequenas explos6es, 0 fogo deve ter alcanl'ado 0 dep6sito de munil'6es; e preciso sair, sair 0 mais depressa. Passar a cabel'a, enfiar urn bral'o, 0 ombro ainda nao, mas a mao, 0 punho - 0 Angulo do cotovelo cria obstaculo - pelo pequeno intervalo entre 0 pescol'o e 0 aro de cobre que contorna a vigia. Nao posso sair, e preciso que saia. Tudo arde e minha cabel'a gela. Fiquei la dentro, im6vel, vibrando, pregado, gesticulando em torno da coleira fixa que me comprimia, por tempo bastante longo para meditar, nao, para que meu corpo aprendesse para sempre a dizer "eu" em toda verdade. De verdade, sem nunca poder se enganar. Sem erro, convictamente, porque esta medital'ao sombria e lenta, fuiminante, decidia, simplesmente, a vida.
OS CINCO SENTI DOS {WUS}
Estou dentro, queimado, carbonizado, s6 a cabe<;a de fora, gelada, tiritante, ofuscada. Estou dentro, expulso, excluido, a cabe<;a e 0 bra<;o, urn ombro s6, esquerdo primeiro, estao de fora, na tempestade desencadeada. Dentro, no meio do fogo louco que se expande, 0 todo preso em uma cole ira de angustia, a cabe<;a e 0 segundo ombro a custo desprendido saem, entregues a tormenta. Nao estou salvo, ainda nem sai, aprisionado ainda, todo em urn unico lade da janela, 0 aro de cobre aberto no flanco do navio incendiado nao tern a dimensao do circulo comprimido do t6rax. Ainda dentro, mesmo que a cabe<;a e os dois ombros apontem no inverno. A vigia comprime 0 peito a beira do esmagamento. E isto, YOU morrer. Nao consigo apoiar 0 pe em lugar algum, atnls, no inferno da queimadura onde ainda estou, os bra~os colados ao corpo nao servem para nada, fiapo de palha enfiado num buraco, sem poder avan~ar, sem esperan~a de voltar atds, YOU morrer de sufocamento. Ou nilo respirar na fuma~a, ou nao respirar ante 0 vento gelado, ou nao respirar no meio da coleira enferrujada, nao consigo sequer decidir. Entao, uma pancada violenta de mar, mais obJiqua e seca, faz 0 aro passar por minhas costelas flutuantes. Sim, Deus seja louvado, estou fora. Inspiro 0 ar frio ate desmaiar. Horror, 0 mar, mais feroz, expoe 0 fundo do barco a uma ressaca descontrolada. Ele se desequilibra pelo outro bordo, e ci estou eu, enfiado de novo ate 0 meio, no circulo de ferro, estou dentro, ainda. Dir-se-ia que 0 casco passava sobre montes de pedras. Vma pancada de urn bordo me libertava, uma pancada, de outro bordo, me reaprisionava. Eu estava dentro, eu estava fora. Quem,eu?
°
Todo mundo compreende isso, sem drama nem espanto. Basta passar por uma abertura estreita, urn corredor apertado, balan~ar-se em cima de uma prancha, em uma balaustrada vertiginosamente alta, para que 0 corpo fique alerta. 0 corpo sabe dizer eu, sozinho. Sabe ate que ponto eu estou aquem da barra, sabe quando estou fora da barra. Calcula os afastamentos do equilibrio, regula imediatamente seus intervalos, sabe ate onde nao ir longe demais. A cenestesia diz eu sozinha. Ela sabe que eu estou dentro, sabe que eu me desprendo. 0 sentido interno clama, chama, anuncia, brada, as vezes, 0 eu. 0 sentido comum e a melhor coisa do mundo para dividir 0 corpo.
I1.
"
13
MICHEL SERRES
r i
Passada a perna, ainda estou no interior, a perna, a coxa, 0 joelho entregues ao exterior. Tornam-se quase negros para mim. A bacia passa, ate 0 sexo, as nadegas, 0 umbigo estao certamente fora, eu continuo dentro. Sei 0 que e urn homem-tronco, acredito saber, por urn instante, como se sentem os membros fantasmas. Em urn momenta preciso, 0 momento, justamente, em que 0 corpo dividido grita ego num impulso geral, eu passo para 0 exterior, posso tirar 0 resto do corpo, tirar os pedas:os que ticaram dentro, sim, os peda<;os esparsos subitamente escurecidos pela virada brutal do iceberg. Os trancos desordenados do barco iI deriva atiram 0 eu iI esquerda e iI direita da janela da esperan<;a. Eu moro dentro, eu moro fora; 0 eu, interior do barco, vern ao exterior entre as rajadas glaciais do vento. As pancadas do mar alongam ou esticam 0 t6rax em alguns milimetros, afastamento muito pequeno. 0 corpo conhece esse intervalo, sabe calcular os movimentos ao redor. Eu estou livre ou enclausurado, respirando ou asflxiado, ardendo de fogo interno, raspado pelo vento veloz, morto ou vivo. Eu sucumbo ou eu existo. Existe urn lugar quase pontual que 0 corpo inteiro assinala na experiencia espacial da passagem. 0 eu salta globalmente deste ponto local, passa decididamente de uma metade a outra, no momenta em que este ponto desliza, it proximidade do estreito, de sua face interna para a face externa. Desde meu quase naufragio, costumo chamar de alma esse lugar. A alma mora no ponto onde 0 eu se decide. Somos todos dotados de uma alma, depois de termos arriscado, salvado, nossa existencia, na primeira passagem.
14
Compreendi, na tarde do dia da fUria, 0 sentido do grito: salvai nossas almas. Basta salvar, este ponto. Estive fora, no frio horripilante, quando 0 ponto ultrapassou 0 limite do colete de fors:a, antes, estive sempre dentro. Descartes nao estava errado ao dizer que a alma toca 0 corpo num lugar quase pontual, mas posicionou mal a glandula pineal. Ela vagueia em torno do plexo solar. De !a ela ilumina ou obscurece 0 corpo, por clar5es ou eclipses, torna-o transhicido ou epifanico, transmuda-o em corpo escuro. Todo mundo a posiciona, em torno dali, onde Ihe dita 0 corpo. Todo mundo a cortserva marcada, definitiva, onde 0 dia de seu nascimento a fixou. Muito freqiientemente a esquecemos, a deixamos it sombra do
L
OS CINCO SENTI DOS
{¥eUS}
sentido interno, ate 0 dia em que a brusca ruria do tempo nos faz nasceracaso, dor, angustia, sorte - uma segunda vez. Nada mau que nesse dia de juventude f6ssemos piloto de urn navio para verificar, ainda contra Descartes, que urn piloto diz eu por sua nau inteira, do fundo da quilha a ponta do mastro e da popa a proa, e a alma de seu corpo entra na alma do barco, no centro das turbinas, no cora~ao das obras-vivas. Para se libertar desse barco epreciso ir procurar sua alma no paiol, no lugar onde 0 fogo e verdadeiramente perigoso, num dia de desespero.
TATUAGEM A alma habita urn quase-ponto onde 0 eu se decide. as ginastas educam sua alma para se moverem ou se enrolarem em torno dela. as atletas nao tern alma. Eles correm ou lan~am; mas os saltadores tern uma que atiram por cima da barra ou para alem dela; enroscam mansamente seus corpos em torno do lugar em que a atiram. A diferen~a entre 0 atletismo e a ginastica, fora os saltos, tern a ver com a pratica da alma. A barra fuea, 0 saito mortal, as argolas, 0 exercicio no solo, 0 trampolim, os mergulhos valem por exercicios de metafisica experimental, como a passagem pela pequena vigia onde 0 corpo sai a procura de sua alma, onde ambos brincam, como os amantes, de se perderem e se acharem, as vezes de se separarem, para depois se juntarem, no risco e no prazero Em certos jogos coletivos, os jogadores perderam sua alma porque a confiaram todos a urn objeto comum, a bola: organizam-se, equilibramse, enrolam-se em torno dela que vira coletiva. Perde tua alma para salva-la, da tua alma para reencontni-Ia.
A alma, quase-ponto, e encontrada no volume, exatamente em urn navio, pelo espa~o de deslocamentos extraordinarios; podemos procura-Ia de maneira superficial, agora: estudo mais diflcil. Eu corto minhas unhas. Onde 0 sujeito se decide? Canhoto, seguro 0 instrumento com a mao esquerda e ofere~o as laminas abertas a ponta do indicador direito. Coloco-me no cabo da tesoura, 0 eu agora se situa ai e nao na ponta do
L
15
MICHEL SERRES
dedo direito. A unha: desajeitada ao longo do fio de a~o; a mao: sutil e sagaz no manejo do corte. 0 sujeito mao esquerda trabalha 0 objeto dedo direito. A mao esquerda participa de mim, inundada de subjetividade, 0 dedo direito, do mundo. Se a tesoura mudar de mao, tudo muda ou nada muda. 0 eu habita meu indicador esquerdo cuja unha acaricia com esperteza e sem timidez 0 fio fmo, na proximidade maxima; 0 cabo do instrumento que a mao direita segurou e deserdado por mirn. Urn motor estranho aciona a maquina e meu indicador demarca, ao se oferecer, 0 limite exato da mordida. De urn lado, eu corto uma unha, do outro, minha unha e cortada. A apresenta~ao do dedo a amina, a flexibilidade ou a rigidez de seu movimento, no instante do corte, a precisao do tratamento bastam ao observador externo para determinar exatamente 0 estado de alma, olugar em que ela se encontra, agora, como em equilibrio. 0 canhoto tern a alma a esquerda. A direita esta urn corpo escuro, hibrido quando foi contrariado. Mas isso muda e varia. Com as unhas dos pes, a reversao nao ocorre. Tao longe, ainda e 0 corpo, ou sempre 0 mundo. Tao longe, a alma se ausenta. Nenhum artelho toea a Hlmina como 0 faz a alma de meu dedo medio esquerdo. Deixemos os instrumentos.
Com 0 medio eu toco urn de meus labios. Neste contato reside a consciencia. Come~o a examina-Ia. Ela se esconde geralmente em uma dobra, labio pousado sobre labio, palato colado alingua, dentes sobre dentes, palpebras abaixadas, esfincteres contraidos, mao fechada em punho, dedos pressionados uns contra os outros, face posterior de coxa cruzada sobre a face anterior da outra, ou pe pousado sobre a autra pe. Aposto que 0 homunculo, pequeno e monstruoso, do qual cada parte e praporcional 11 grandeza das sensa~6es, cresce, infla nos locais dos automorfismos, quando a tecida da pele se dobra sobre si mesmo. A pele sobre si mesma adquire consciencia, tam bern sobre a mucosa e a mucosa sobre si mesma. Sem dobra, sem contato de si sobre si mesmo, nao haveria verdadeiramente sentido intimo, nem carpo pr6prio, muito menos cenestesia, tampouco verdadeiramente esquema corporal; viveriamos sem consciencia; apagados, prestes a desaparecer. A garrafa de Klein ou os bonnets eroises l ajudam 16
I Conforme explica~ao que me foi dada pela professor Celso Costa, doutor em Matematica e titu· lar do departamento de Geometria da UFF, bonnets croises seria urn plano projetivo: "0 plano
as CINCO SENTI DOS
{WUS}
a nossa identidade. Temos superficies esquerdas quase planas, sem dobras, desertas, por onde a consciencia passa, fugidiamente, sem deixar mem6ria. Ela mora nas singularidades contingentes, onde 0 corpo a langencia. Toco meus labios com meu dedo, meus hibios, agora, conscientes deles mesmos. Posso, entao, beijar meu dedo e, quase indiferentemente, tocar meus labios com meu dedo. 0 eu vibra de urn lade e de outro do contato, alternativo, e devolve de repente a outra face ao mundo, ou, ao passar de subito pela vizinhan~a imediata, deixa atnis de si urn objeto apenas. No gesto de fazer calar, 0 corpo, localmente, joga bola com a alma. Os que nao sabem onde se encontra sua alma tocam a boca e nao a encontram. A boca que toea a si mesma faz sua alma e sabe da-Ia a mao, a mao que aperta a si mesma sabe formar sua alma paJida, pode da-Ia, ao belprazer, a boca que ja a possui. Meras contingencias. o corpo nem sempre, nem em toda parte, sabe jogar bola. Existem dois lugares onde esta contingencia nao entra. Toco meu ombro com minha mao, e nao posso fazer com que meu ombro toque minha mao. Em rela~ao il. mao, aboca, 0 ombro ainda e urn objeto do mundo. Falla-The urn objeto bruto, rocha, tronco de arvore, cascata, para que volte a ser sujeito. o ombro nao tern alma, salvo em rela~ao ao que tern lugar fora do corpo. Decidam agora onde se encontra a alma enfiando os cotovelos nos joelhos, colocando uma parte do corpo sobre a outra. Isto nao tern tim ou nao tern limites a nilo ser a flexibilidade de cada urn. A ginastica inaugura e condiciona a metafisica.
Falta agora desenhar ou pintar. Isolem, se possivel, as pequenas zonas secretas onde a alma, com certeza, ainda mora, cantos ou pregas de contingencias; isolem tambem, ainda se possivel, as zonas instaveis que sabem brincar de alma uma com a outra, como de bola, contornem as esferas ou paralelepipedos, que s6 se tornam sujeitos diante de objetos, as regioes densas ou compactas que permanecem objetos, sempre, sozinhas ou diante daquelas que as subjetivam, desertos desprovidos de alma, escuros;.o desenho s6 raramente contorna zonas compactas, que explodem, fuzilam projetivo e a garrafa de Klein sao superficies fechadas nao-orientaveis. isto e, possuem apenas urn lado. Estas superficies 56 se realizam, sem auto-intersec~oes. no espa~o de quatro au mais dimensoes. Em termos de complexidade topol6gica, 0 plano projetivo seria mais simples, seguido da garrafa de Klein," (N. da T.)
17
MICHEL SERRES
ou fogem por corredores estreitos, formam gargantas, chamines, percursos, passagens, chamas, ziguezagues e labirintos; eis, na pele, a superficie, a alma instavel, ondulante e fugidia, a alma estriada, anuviada, tigrada, zebrada, sarapintada, chamalotada, conturbada, constelada, multicolorida, matizada, impetuosa, turbulenta, incendida. Vma ideia selvagem, a primeira depois da consciencia, consistiria em riscar finamente essas zonas e passagens, e colorir, como urn mapa. Eis a tatuagem: minha alma constantemente presente, branca, cintila e difunde-se nos vermelhos que se permutam, instaveis, com os outros vermelhos, os desertos sao escuros por falta de alma; verdes os prados onde a alma, raramente, contudo, as vezes, se instala, ocre, malva, azul frio, alaranjada, turquesa ... Assim, complexa e urn tanto assustadora, surge nossa carta de identidade. Cada urn tern a sua, original, como a impressao de seu polegar ou a marca de seus maxilares. Nenhuma carta e igual a nenhuma outra, todas mudam com 0 tempo; fiz tanto progresso desde minha juventude triste e trago na pele 0 tra~o e os caminhos abertos por aquelas que me ajudaram a procurar minha alma difusa. Os que tern necessidade de ver para saber ou crer desenham ou pintam e fIXam 0 lago de pele inconstante e ocelado, tornam visivel, com cores e formas, 0 puro Mtil. Mas, para cada epiderme, seria preciso uma tatuagem diferente, seria preciso que ela evoluisse com 0 tempo: cada rosto pede uma mascara tali! original. A pele historiada traz e mostra a propria historia; ou visivel: desgastes, cicatrizes de feridas, placas endurecidas pelo trabalho, rugas e sulcos de velhas esperan~as, manchas, espinhas, eczemas, psoriases, desejos, ai se imprime a memoria; por que procuni-Ia em outro lugar; ou invisivel: tra~os imprecisos de caricias, lembran~as de seda, de la, veludos, pehicias, graos de rocha, cascas rugosas, superficies asperas, cristais de gelo, charnas, tirnidez do tato suti!, audacias do contato pugnaz. A urn desenho ou colorido abstrato, corresponderia uma tatuagem fiel e sincera, onde se exprimiria 0 sensivel. A pele vira porta-bandeira, quando porta impressoes. Nascimento do desenho cambiante nas caricias: nua, estirada, enroscada a rneu redor, tigre, puma, tatu, procuras adivinhar minha pele historiada, Jiquida e cambiante. Nossa alma se difunde de tal forma que nao estamos unidos. 18
Alma global: pequeno lugar profundo, perto do espa~o da emo~ao. Alma local e de superficie: lago viscoso pronto a agarrar, onde a luz brin-
r
OS CINCO SENTIDOS
{WUS}
ea, multipla, irisada, lentamente eambiante, sujeita a tempestades. Ponta dura e plumas de pavao, ela nos espeta e se pavoneia. Ai, come~a, verdadeiramente, a hist6ria. Como dois labirintos tao complieados podem se encontrar, se sobrepor, se complementar? Ariadne se perde no de Teseu. Teseu nao se encontra nas avenidas e entroncamentos tra~ados no monte de Ariadne. Seria preciso conceber a rela~ao de duas especies, dois generos, dois rein os, tigre e pavao, zebra e jaguar, joaninha e papoula, centopoHa e calcedonia, urn camaleao no marmore. Acontecem milagres, alguns ligres ou tigloes sobrevivem a duras penas. au melhor, e preciso que Ariadne se tome branca, que Teseu reenrole em sua roca todos os fios que embara~am e dividem 0 corpo multicor de Ariadne. Nossa alma de superficie, salvo milagre, cria obstaculo a nossos amores, como se tivessemos uma coura~a de tatuagens. E preciso depor a coura~a, fundir 0 mapa dos caminhos e das encruzilhadas, descobrir a alma ou faze-la arder de outra maneira, para que as chamas se misturem. Quando a alma entra em urn 6rgao, ele adquire consciencia e a perde. Se 0 dedo toea 0 labio e se diz eu, a boca torna-se objeto, mas na verdade o dedo se perde. Quando a alma se coloea nele, ela 0 rouba. Quando levanto estes tijolos, estas pedras, estes concretos, estou todo inteiro em minhas maos e meus bra~os, minha alma esta ali, densa, mas, de repente, minha mao se perde no corpo granuloso dos cascalhos. a objeto reduz-se a urn corpo escuro e a alma a urn vazio branco. A alma transparente como urn anjo, raramente ali, embranquece os lugares onde desce; a pele, historiada de cores variadas em outra parte, torna-se, aqui, tanto mais clara quanta se anima luminosa ate 11 brancura. Ve: a pele do rosto dele brilhava. Ve: ele se transfigurou diante deles, branco como a neve. A alma, como po~as, forma a tatuagem, 0 conjunto dessas linhas cruzadas desenha urn campo de for~as: 0 espa~o da pressao extraordinaria da alma para apagar docemente as sombras do corpo, e os recuos maximos do corpo para resistir a esse esfor~o. Na pele, a alma e 0 objeto se avizinham, avan~am, ganham ou perdem terreno, mistura demorada e vaporosa do eu e do corpo negro, de onde sai, em urn dado momento, a cauda de pavao de cores misturadas. A luta termina com 0 corpo mistico branco de alabastro. Nao sou mais nada. au com 0 corpo cibernetico, caixa-preta, outro nada. A transfigura~ao extatica, perda do corpo na alma, retira a tatuagem. a descascamento obtido, 0 automato perfeito tambem a retiram da caixa-
L
19
MICHEL SERRES
preta total. Assim, 0 corpo, misturado, encontra -se no meio, entre ceu e inferno: no espa~o cotidiano.
o dualismo s6 permite conhecer urn espectro diante de urn esqueleto. Todos os corpos reais sao chamalotados, misturas imprecisas e em superficie de corpo e de alma. Parece tao simples, embora perverso ou irris6rio, dizer os amores de uma larva e urn automato, de urn fantasma e uma caixa-preta, como os amores do comp6sito e do contrastante sao consumados sem serem ditos. Descrevi a tatuagem s6 para mostrar os tra~os da alma e os do mundo. Sempre pensamos conhecer melhor quando ja vimos ou tornar mais compreensivel desenvolvendo formas e exibindo cores. Decerto, as tatuagens vistas e visiveis, impressas it ponta de ferro em brasa, tern sua origem nesta sarapintura de alma, labirinto complexo do sentido que nao sabe resolver sua tensao para 0 interior ou para 0 exterior e pulsa nestes limites. Mas s6 as desenhei, colori ou pintei para mostrar 0 tangivel: quadro abstrato do tatoo Abstrato por abandonar 0 visivel e reencontrar 0 t
Muitas ftlosofias referem-se it vista; poucas ao ouvido; menos credito ainda dao ao tato e ao odor. A abstra~ao recorta 0 corpo que sente, supri-
OS CINCO SENTIDOS
{veUS}
me 0 gosto, 0 olfato e 0 tato, conserva apenas a vista e 0 ouvido, intui~ao e entendimento. Abstrair significa menos sair do corpo do que 0 partir em peda~os: analise. Recuo ante a dificuldade erguendo urn palacio de abstra~6es. Hesito ante 0 obstaculo como tantos tern medo do outro e de sua pele. Como tantos tern medo de seus sentidos e reduzem a nada, a tabua rasa do inimaginavel, a suntuosa cauda de pavao virtual e dobrada da degusta~ao. 0 empirismo mergulha na sarapintura que exige muita paciencia e urn intenso poder de abstra~ao. 0 que esperar, desde que se deram 0 fato do nascimento e 0 do reconhecimento de si? A alma e 0 corpo nao se separam, mas se misturam, inextricavelmente, mesmo na pele. Assim, dois corpos misturados nao formam urn sujeito separado de urn objeto. Eu acaricio tua pele, beijo tua boca. Quem, eu? Quem, tu? Quando toco meus labios com minha mao, sinto a alma que passa como uma bala de lade a lade do contato, a alma se sacode arfante em todo 0 redor da contingencia. Talvez eu saiba quem sou brincando assim com minha alma, multiplicando os finos tra~os do autocontato sobre os quais a alma voa em todas as dire~6es. Eu te abra~o. Nunca haviamos aprendido senao 0 duelo, o dualismo, senao a perversidade, amantes irris6rios, crueis e apressados. Eu te abra~o. Nilo, minha alma nilo voa 11 volta desse tenue mete que mantern os, os dois, a toda volta do contato. Nilo, isso nao e minha alma nem a tua. Nilo e tilo simples, nem tao cruel. Nilo, eu nilo te objetivo, nem te congelo, nem te prendo, nem te violo, nem te trato como 0 desagradavel marques. Nem espero que empunhes essa bandeira. Seria preciso, para isso, que eu virasse espectro e que te tornasses automato. Seria preciso, para isso, que virasses larva ou lemure, que eu virasse caixa-preta. De fato, por doen~a ou fadiga, essa situa~ao-limite acontece. Em todos os outros casos, quase todos, aplico uma cor sepia sobre tua zona opalina, ou uma regiao clara sobre urn territ6rio violeta. Tudo depende do lugar, tudo depende do tempo, da circunstancia. A paciencia come~a. E a explora~ao in fin ita. Tateamos, no mato da circunstilncia como urn cego de nascen~a que decifra 0 braile, como se puxassemos os cobertores, 11 noite. A inquietude, a aten~ilo estremecem, novas e refinadas. Escuro sobre escuro, claro sobre confuso, obscuro sobre meios-tons, arco-iris sobre espectro com todo 0 cromatismo estendido, imagens necessarias aos que carecem de tato, des-
Instituto de Psicologia - UFRGS - - - Biblioteca - - -
21
MICHEL SERRES
madeiro sobre planicie, monte sobre vale, promontorio sobre golfo ou estreito, figuras, a alma Iivida foge, esconde-se, retira-se, adquire mascaras e aparencias, mostra-se de longe e se refugia, deixa em seu rastro uma nuvem de tinta, uma onda de perfume, constroi parques, fontes e cal<;adas de marmore, encoraja-se, avan<;a, ataca docemente, sorri e se deixa rever, espera, reconhece os vestigios, impoe-se, anula-se, grita ou cala-se, murmura demoradamente e, subito, no canto do bosque, ao longo do corredor, da chamine, numa curva esferica ou na quina de urn ziguezague, M muito tempo inesperada no percurso do labirinto indecifravel, Ariadne branca, Ariadne aparece, eis tua alma branca radiante que vern, transfigurada em cima da montanha, envolta em uma aurora imaculada. A morte sobre 0 cadaver tambem faz esse engrama Iiso.
22
A variedade de cores, de formas, de tons, a variedade das pregas, dos franzidos, dos sulcos, dos contatos, morros e desmadeiros, das peneplanicies, a variedade topologica singular que e a pele e descrita 0 mais pobremente posslvel por uma mistura composita, gradual e maleavel, de corpo e de alma. Cada lugar singular, mesmo banal, forma entao uma mistura original. Digamos que essas misturas, quando chegam ao contato, analisam-se ou fazem surgir, de sua composi<;ao, os elementos simples. Como se, de repente, urn polo atralsse a alma, como se 0 outro polo assumisse 0 objeto. Em estado livre, sao mistos, mao e fronte, cotovelo e coxa; em estado de contato ou de contingencia, reagem urn sobre 0 outro e suscitam simplicidades que temos 0 costume de pensar como zero e urn, alma e corpo, sujeito diante do objeto. Esses simples sao pouco vistos na natureza, nunca encontramos senao 0 espectro indefinido de seus compostos, s6 conhecemos os simples pelos matizes e por suas rea<;oes reciprocas. Ninguem viu a grande batalha dos simples, nunca experimentamos senao as misturas, s6 encontramos reunioes. 0 corpo puro e mais que improvavel, corpo negro ou alma candida. Milagre: alabastro ou azeviche. Eu te abra<;o, nossa contingencia faz, aqui, agora, matiz sobre matiz, mistura sobre mistura. Sepia sobre cinza ou purpura sobre ouro. Carta sobre carta ou cartas na mesa. Duas Iigas mudam de titulo, as cartas sao arranjadas, embaralhadas, redistribuldas. Uma tempestade eclode nos dois campos. Redesenham-se as Iinhas de for<;a, curvas de nlvel, declives, vales. As redes mudam de trama. Quando urn amarelo cai sobre urn azul, vira urn verde. Mudam os titulos das alian<;as, os tHulos das ligas. Eu te abra<;o Arlequim, eu te deixo Pierrot; tu me tocas duquesa e te afastas marquesa.
OS CINCO SENTIDOS
{WUS}
Arlequim do setor e a marquesa do lugar. Ou: eu te abra~o cobre e te solto bronze, tu me abra~as argentllo, tu me soltas vermeil. Talvez brinquemos de pedra fllosofal que transforma as ligas e transmuda os titulos. Nada e mais abstrato, nem mais sabio, nem mais profundo, que essa imediata medita~ao sobre os mistos, nem mais fino nem mais dificil de apreender que essa refundi~ao local e complexa, que essa conversao transtornada ou essas reviravoltas instaveis; sem duvida nunca se disse nada da mudan~a, da transforma~ao em geral, que teria acontecido ali, na vizinhan~a fina de nossa contingencia. Ninguem pode pensar a mudan~a, a nao ser sobre misturas: quando se tenta pensar sobre os simples, s6 se chega a milagres, saltos, muta~6es, ressurrei~6es, ate a transubstancia¢o. Eis a mudan~a em titulos, em ligas, em tecidos e mapas, eis a mudan~a por desenhos e rea~6es, chamalote sobre chamalote, mesti~agem. Urn dia algum barbaro sabera dizer de que quimica prodigiosa se trata nessa conjuntura, urn sub-barbaro vendera as pomadas. Horror, iremos rever essas tatuagens em artificio. Sim, 0 simples ai se desloca, seu movimento browniano produz as varia~6es da sarapintura, nossa emo~ao marca nele 0 sinal exato. Ficamos tao emocionados que mudamos de cor, cauda de pavao sobre arco-iris, espectros subitamente tornados instaveis. Tu me abra~as matizada, eu te solto chamalotada; eu te abra,o rede, tu me soltas feixe. N6s nos acariciamos segundo as curvas de nivel, soltamo-nos em la,os variados, nos enla,amentos que mudaram de lugar. Se te queres salvar, arrisca tua pele, se queres salvar tua alma, nao hesites, aqui, agora, a entrega-la a tempestade variavel. Uma aurora boreal brilha na noite, inconstante. Propaga-se como esses letreiros luminosos que nao param de piscar, acesos ou apagados, em clar6es ou eclipses, passa ou nao passa, mas em outro lugar, /lui, irisado. Nao mudaras se nao te entregares a essas circunstilncias nem a esses desvios. Sobretudo, nao conheceras. Nesse faustoso renovamento, ondula,6es, /lutua,6es, caprichos versateis por mil mudan,as e reviravoltas, acontecem, as vezes, bruscas simplifica,6es, uma satura,ao, uma plenitude, acontece todas as cores, em todos os tons, concordarem em branco, todas as linhas possiveis, passando por toda parte, formarem 0 plano, 0 n6 fazer urn ponto. Acontece, as vezes, a soma, a totaliza,ao. Mapa branco, tecido liso, luz de aurora. A medita,ao imediata culmina em urn apex, em urn lugar, em uma apari,ao ofuscante do simples por satura,ao de presen~a, uma plenitude, transfigura,ao de tatuagem pinturilada em alma pura. 0 eu manifesta-se pouco fora das circunstancias. Eu sou, eu existo nesta contingencia misturada que muda,
.~.
23
MICHEL SERRES
muda pela tempestade do outro, por sua possibilidade de existir. N6s nos colocamos urn e outro em afastamento do estavel, no arriscado. No auge saturado da mistura, 0 extase de existencia e uma soma tOfnada possivel pela contingencia do outro. Minha contingencia torna possivel a mesma descoberta para ele. Soma branca de todas as cores, centro estrelado dos fios. No raso, vazio e nuio, dessa mesma mistura, a morte, tambem branca por subtra~ao ou abstra~ao, elisa. Sem a experiencia dos corpos misturados, sem essas sarapinturas tangiveis e essas multiplicidades atenuadas, iriamos confundi-Ios por muito tempo. Essa confusao em que a morte se assemelha a gl6ria, em que a vida bem-aventurada tern lugar no tumulo, fizera da metafisica uma prepara~ao para 0 assassinato. No entanto ela e uma arte de amar.
TELA, YEU, PELE
24
No ano de mil, oitocentos e noventa, Pierre Bonnard pintou urn penh oar; pintou uma tela que mostrava urn penhoar e uma mulher no meio de folhas. Essa mulher, morena, vista de costas, esbo~a urn movimento de tor~ao para a direita, como se ela se escondesse, enrolada em urn pano amarelolaranja, muito longo, muito amplo, que a reveste toda, ereta, da nuca aos pes, mal vislumbramos 0 nariz, uma ponta de orelha, urn olho fechado, a testa, os cabelos, uma especie de coque. 0 penhoar vela a muiher, 0 tecido vela a tela. Constelado de luas ou meias-Iuas, salpicado de crescentes mais escuros que ele, 0 pano vibra de luzes e sombras, jogadas umas sobre as outras. As meias-Iuas, postas em todos os sentidos, mas dispostas em distancias regulares, criam urn efeito mon6tono. A dispersao foi mais trabaIhada que a vibra~ao, a impressao do tecido estampado predomina sobre o efeito 6ptico: 0 olho e roubado. Traje de quarto, palpebra baixa como que sonolenta, luz de luas. A vestimenta, urn tanto esvoa~ante, ocupa 0 espa~o, 0 pano sobe ao longo do corpo, vertical como urn rolinho chines. A folhagem domina 0 fundo, invade urn pouco 0 pano, tao pouco que, a rigor, 0 quadro se reduz
OS CINCO SENTIDOS
{Ye"S}
ao tecido. Por que Bonnard nao pintou diretamente sobre 0 penh oar, por que nao expos 0 veu do penh oar, seu pano em lugar da tela? Por que entao nao pinta no tecido, mas em outra contextura? Tirem as folhas, tirem 0 penhoar: tocarao a pele da mulher morena ou a tela do quadro? Pierre Bonnard menos deixa ver do que sentir sob os dedos peliculas e camadas finas, folhagem, pano, tela, em !iso, desfolhamento, desnudamento, desvelamentos refinados, cortinas leves, acariciantes: sua arte cheia de tato nao faz da pele urn objeto banal de se ver, mas 0 sujeito que sente, sujeito ativo sempre por tnis. A tela se recobre de telas, os veus se acumulam e s6 velam veus, as folhas se amontoam nas ramagens. Folhas que ficam sob as paginas. E provavel que voces leiam percorrendo com 0 olhar estas paginas em que escrevo a prop6sito de Bonnard, levantem as folhas, virem as paginas, uma atras da outra, mais outra, sempre coberta de manchas de efeito mon6tono, 0 olho, enfim, nao encontrara mais nada. Continua a tocar a folha impressa, pelicula fina, suporte de sentido, a folha, a pagina, tecido-pano, pele, a pr6pria tela da mulher de Bonnard. Folheio 0 penhoar. Ele recobre a pele para recolher as pelicuias.
A Crianfa com balde, pintada cinco anos mais tarde, e parte de urn biombo, a terceira das quatro folhas. A crian~a brinca no tecido esvoa~ante de urn desses panos dispostos em linha obliqua para esconder, ela esta em uma das folhas. Anteparo colocado para se despir, estrutura montada para jogar 0 penhoar, tela estendida como uma roupa longe da pele, novoveu. Vestida com urn avental estampado de xadrez, a crian~a flutua no pano do biombo, na tela de Bonnard, no tecido de sua roupa ou inv6lucro e vela-se de peles it propor~ao. Acocorado na areia, todo roli~o, parece encher 0 balde de baixo de uma laranjeira redonda repleta de folhas: arvorezinha em urn vaso, homenzinho junto do balde, ambos produtos de areia ou terra, rodeados, ambos, dessas variedades moles que os recobrem, folhas entrecruzadas, tecido de xadrez, a tela de Bonnard imprime-se de telas, exprime veus. Que vento fara voar esse avental, fremir essa folhagem, estremecer esse biombo, que vento em nossa pele? Trinta e cinco anos depois, 0 mesmo Bonnard faz urn Nu no espelho, tambem chamado A toilete. Uma mulher nua, de sapatos de saito alto,
25
MICHEL SERRES
26
vista de tres quartos por tnls, olha-se no espelho. Sua imagem nao e vista de frente. Os dois espelhos e a nudez, a frente escondida ou a imagem roubada, o segundo espelho tao vazio quanta 0 primeiro, tudo nos leva a sentir as ilus6es da 6ptica, a discorrer sobre erotismo e representa~ao, ainda. Nao. Ela esta nua, vejam sua pele: coberta de tatuagens, matizada, tigrada, granulada, ocelada, pontilhada, crestada, malhada, mais constelada ainda que 0 velho penh oar, salpicada de manchas menos mon6tonas, chamalotada. Sua epiderme esta pintada de maneira bern singular. Ela despe 0 roupao, dir-se-ia que as estampas do tecido ficaram em sua pele. Mas, no penhoar, as meias-Iuas se distribuem de forma regular, mecilnica, reprodutivel; na roupa cutanea, vlvidas, as impressOes distribuem-se ao acaso, de maneira inimitavel. Poderlamos reconhecer 0 modelo. A Ultima pele, a que e penteada, nao e impressa lisa, homogenea nem mon6tona, mostrase e brilha como urn caos de cores, de formas, de tons. Nenhuma outra mulher tern a pele desta mulher, especifica. Voces a reconheceram. Na mistura dos matizes, no caos das marcas e toques, reconheceram a Belle noiseuse (A Bela provocadora), que Balzac dizia inimaginavel: de fato, sua imagem nao esta nos espelhos, ela nao e representada. Ali 0 corpo se ergue acima da desordem, ali Afrodite se ergue acima das aguas, ainda mais complexa em sua pele do que 0 ruldo nautico e sua deflagra~ao. Nao, 0 velho pintor da Obra-prima desconhecida nao sucumbira it loucura, mas antecipava mais de urn seculo de pintura. Balzac sonhava com Bonnard, a vida projetava a arte, a razao e a ordem meditavam 0 caos da singularidade. Entao 0 efeito no espelho, em frente, espelho que s6 e visto pela metade, entao a imagem da mulher no espelho sao reduzidos a uma especie de cortina, urn revestimento de banheiro, ele pr6prio ocelado, ondulado, chamalotado, constelado, salpicado de cores e de tons, tatuado. Mistura sobre mistura e caos sobre caos, a pele tern por imagem a cortina, tern por reflexo uma tela, por fantasia uma toalha. Mas a tela, no todo, janeIa, parede, prato, mesa, frutas, panejamentos, guardanapos esparsos, a tela poderia servir de biombo ou de cartaz ou de folha ou de veu: cortina salpicada, tatuagem, semelhante 11 pele. A mulher de corpo pintalgado diante do reflexo pintalgado da cortina tern na mao uma echarpe: urn peda~o da cortina, uma ponta de tela, urn canto de sua pele? Retalho em continuidade com 0 trapo colado. o Nu no Espelho de Pierre Bonnard man tern em equivalencia ou em
OS CINCO SENTIDOS
(¥ius}
equa~ao a tela, os veus e a pele. A nudez e coberta de tatuagens, a pele e impressa, impressionada. 0 nu enfia 0 penhoar ou a crian~a 0 avental, tecidos impressos, s6brios ou cintilantes, que expressam mal, com rigidez ou conven~ao, nossas impressoes singulares. 0 pintor mancha a tela para expressar, digamos, suas impressoes: ele a tatua, expoe sua pele fn\gil, privada, ca6tica. Vma exibe sua pele, outra expoe suas telas, e outra estende seus veus luxuosos.
A mulher nua no espelho ocupa-se de sua toalete como 0 pintor de sua palheta e muitas vezes dispoe da mesma quantidade de recipientes: tubos, frascos, pinceis, vaporizadores, saboes e bases, velaturas ou cremes, emulsoes, rimel, todos os petrechos cosmeticos. Ela se lava, se arruma e se penteia. Ela maquia sua pele, base e ruge de superficie, como 0 pintor prepara uma tela. A pele se identifica a tela como a tela ha pouco se identificava 11 pele. 0 modelo faz na pele 0 que 0 artista faz dela; claro, eles tern em comum a virtuosidade dos efeitos 6pticos, mas tambem trabalham com uma variedade comum sobre a qual passam seu tatoo Suas maos enluvadas de pele passeiam por uma pele. Dizemos de maneira equivalente cosmetica ou a arte da maquiagem. Os gregos tiveram a requintada sabedoria de fundir numa mesma palavra a ordem e 0 ornamento, a arte de ornar com a de ordenar. 0 cosmo designa a arruma~ao, a harmonia e a lei, a conveniencia: eis 0 mundo, terra e ceu, mas tambem a decora~ao, 0 embelezamento ou 0 arranjo. Nada e tao profundo como 0 enfeite, nada e tao abrangente como a pele, 0 ornato e as dimensoes do mundo. C6smico e cosmetica, a aparencia e a essencia saem de uma mesma fonte. A maquiagem iguala a ordem, e 0 embelezamento equivale 11 lei, 0 mundo surge ordenado, em qualquer nlvel em que se considerem os fen6menos. Todo veu sempre se apresenta magnificamente historiado. A mulher nua no espelho imita 0 demiurgo, superior ao fisico. Ela constr6i a ordem de urn veu, prepara sua pele, adorna uma cama, uma variedade de mundo, submete-a a uma lei. 0 pintor faz aparecer a ordem do mundo na ordem do parecer, ela tam bern. Tudo isso e 0 que sempre se diz nos discursos sobre os efeitos enganadores ou fascinantes da vista e do deslumbramento, no esquecimento da variedade trabalhada: tela, veu, pele que as maos tecem ou preparam, amaciam, fortalecem. Objetivamente. A mulher nua na toalete, diante dos dois espelhos, trabalha em seu auto-retrato: artista em seu atelie. Pinta 0 rosto, 0 pesco~o,
27
MICHEL SERRES
outrora untava os seios, trata de dedos e unhas, arranca os flos demasiado longos de seus pel os, modela uma mascara, a maneira dos indios ou dos negros, da a si mesma uma identidade. Pinta a pele do rosto, pinta uma mascara ou sobre uma mascara, a pele torna-se veu, depois tela, como se 0 tecido cosmetico houvesse recebido a impressao da face, como se 0 arranjo tao feito, tao perfeito pudesse ser arrancado, como se 0 afresco, ainda fresco, pudesse ser retirado, tela movel, tao distante do corpo como 0 penhoar, como 0 avental, como a folha do biombo, objeto inconstante, objeto volante. Impressao ou marca sobre a maIha formada de perfumes, de emulsoes ou de pomadas. A pele do sujeito se objetiva, poderia ser exposta no museu. Assim como 0 polegar marca seu trayo na pagina, impressao digital caotica ou ordenada, em todo caso singular, tambem 0 rosto imprime sobre essa mascara, tao flna que poderia flutuar na leve aragem, seu relevo indelevel, sua personalidade. A mulher nua com 0 cosmetico prepara, misturando os tons e as paletas, 0 molde de suas impressoes. Entremos nas festas galantes onde rodopiam e dan yam tantas mascaras e disfarces fantasticos: mostram-se, exibem-se, escondem-se, caem, mudam, em dado momenta a pele se perde, a pessoa se afasta, as metamorfoses voarn pelo ar. Nas quermesses amorosas, os danyarinos mudam de pele. Os despojos que passarn, vivos, lestos, delicados, no ar tenue, como espiritos, so sao visiveis no instantaneo; Watteau, Veriaine os perceberam. Pequena explosao de alegria perigosa, onde a cosmetica, enfeite preparado para a noite, apenas, destaca-se sobre a beleza, para a eternidade.
28
A cosmetica tende para a estetica no sentido da teoria das Belas-Artes, pudemos ver, tanto quanta Bonnard, nas ruas de Paris, tanto quanta Boucher ou Fragonard, a rnaquiagem das mulheres as vezes tao bern harmonizadas com a natureza delas que perdemos 0 fDlego, como diante do mundo; mas a cosmetica passa a estetica no sentido da sensayao, por essa mesma harmonia: a mulher nua no espelho tatua sua pele, na boa ordem e segundo as leis, segue caminhos muito precisos: reforya 0 olho e 0 oIhar, realya com a cor 0 lugar do beijo, coroa a zona da palavra e do gosto, sublinha a orelha com urn pingente, urn brinco, traya pontos ou ligayoes entre as cavidades ou as proeminencias dos sentidos, desenha 0 mapa de sua pr6pria receptividade. Pela cosmetica a verdadeira pele torna-se visivel, como que vivida por si; pelo enfeite a lei singular do corpo aparece, como pelos trayados convencionais, cores ou curvas no mapa-mundi, 0 mundo em sua ordem mostra suas paisagens. 0 nu tatuado ca6tico e provocante traz sobre
'~ i
as CINCO SENTIDOS
{veUS}
si 0 Iugar comum e instantaneo de seu sensorium pr6prio, pIanicies e re\evos onde se misturam os fluxos vindos dos 6rgaos da audi~ao, da vista, do paIadar, do oIfato ou atraidos por eles, peIe chamaIotada onde 0 tate totaIiza 0 sensivel. A cosmetica reproduz esta soma ou esta mistura, procura pinta-las, variando quanta as conven~oes sociais, segue instintivamente essa tatuagem temporaria. Entendam assim as mascaras entregues aos museu: a cada uma, sua cartografia sensitiva, a cada uma sua cosmetografia, se ouso escrever assim, a cada uma sua impressao facial ou mais precisamente suas impressoes pessoais, outra maneira, em nossas linguas Iatinas, de dizer sua mascara impressa. Nao usamos argolas penduradas no nariz como outras pessoas, decerto porque esquecemos 0 olfato. Nao, a mulher nao poe uma mascara mentirosa como dizem os moralistas, nem remedeiam 0 irremediavel como pretendem os jovens; ela tra~a o Mapa de Ternura2 do tato, e seus riachos de ouvido, rios de paladar e lagos de escuta, aguas misturadas frementes de onde se ergue sua beleza, fiel. Torna visivel sua invisivel carteira de identidade ou corpo impressionavel. Seu mundo sensivel se recobre de urn plano, na escala exata de sua superficie: tra~o a tra~o, olho a olho. Quem nunca sonhou com urn mapa semelhante para 0 pr6prio mundo, identicamente riscado, medida por medida, sonho impossivel de uma nevoa ultrafina que abra~a todo detalhe fractal da paisagem, sonho c6smico de uma cosmetica refinada na pele de cada coisa, que carregariamos, exibiriamos, exporiamos depois de te-Io desenrolado ou desdobrado para tornar visivel 0 mar vinoso e seus encrespamentos mais finos do que rugas no canto de urn olho que ri, 0 malva pastel desse lilas, esse canto de ceu, essa corola, inc1inada, umida, 0 cosmo em sua ordem e seu adorno? o Jardim estende, esconde, aplaina esse inv6lucro transparente, infinitamente invaginado em cada objeto. Ele objetiva a face da paisagem, a membrana de sua mascara. Antes de qualquer forma, antes da cor, do tom, e preciso tocar bern 0 suporte. A pele, nevoa, 0 veu ou a tela. A imagem se forma sobre uma variedade desdobrada, 0 mapa e desenhado em uma pagina, imprime-se nela. Bonnard amava toda especie de suportes: os cenarios, os cartazes, papeis, tecidos, ventarolas, velinos de livros, cartolinas de embalagens, folhas de biombos, trabalhou nas mascaras do Ubu rei. Antes de qualquer Carte de Tendre, mapa imaginario do pais da Ternura, concebido par Mlle. de Scudery. (N. da T.)
2
29
MICHEL SERRES
olhar, 0 grao da tela. 0 olho DaO pesa sobre 0 lugar, nao imprime nada nele. Nos postos avanyados do sujeito, a pele. Todas as coisas estao envoltas em uma nevoa. No comeyo, 0 tato: na origem, 0 suporte. o pintor, com a ponta dos dedos, acaricia ou agride a tela, 0 escritor arranha ou marca 0 papel, aplica sobre eie, pressiona-o, imprime-o, momenta em que 0 olhar se perde, diante do nariz, visao anulada pelo contato: dois cegos que s6 veem com a bengala ou 0 bastao. 0 artista ou 0 artesao, com a brocha ou 0 pincei, com 0 martelo ou a caneta, no instante decisivo, entrega-se a urn pele contra pele. Ninguem jamais modelou, jamais lutou se se recusou a ter contato, ninguem jamais amou nem conheceu. o olho, a distancia, flana, passivo. Nao ha impressionismo sem uma forya impressora, sem pressoes do tatoo Com seus dedos, Bonnard nos faz tocar a pele das coisas.
30
o Jardim de 1936 traya, quase em diagonal, 0 caminho para 0 paraiso. Nenhuma perspectiva, nenhuma profundidade, nenhum relevo fielmente reproduzido permitem pensar que a direyao do olhar foi organizada. Bonnard nos atira urn buque na cara. A mulher morena cobria-se com 0 penhoar, 0 biombo escondia nao sei 0 que, os espelhos s6 refletiam cortinas diante da nudez, 0 olho era enganado. Aqui, 0 paraiso foge, para fora da vista, dissimulado por uma cortina de folhagens ou de arvores que fazem parte do paraiso. Ese oferece pleno de mansidao. Quem decorou esta roupa jardineira, este veu estampado, esta folha, teve de mergulhar, nu, na flora, banhar-se demoradamente nas cores e nos tons. Na mesma ana, aparece 0 Nu na banheira. Imersao. Nao posso dizer que vi este nu. Nao posso pretender que 0 conheyo, tento escrever que sei, que vi 0 que Bonnard quis fazer. 0 banho revela, na vizinhanya da pele, sensitiva, na vizinhanya das apariyoes ou impressoes que a envolvem ou banham, uma especie de membrana, uma pelicula fina que se introduz ou nasce entre 0 meio ou a mistura e 0 banhista ou a banhista, uma variedade comum ao que sente e ao que e sentido, um tecido aracnideo que Ihes serve de borda comum, de fronteira, de interface, urn fllme de transi~ao que separa e que une 0 impressionante e 0 impressionado, 0 impressor e 0 impresso, fino estofo de impressoes, 0 banho revela este veu. A tela da imersao expoe 0 segredo de Bonnard e, no fim das contas, 0 do impressionis mo. 0 banho realiza 0 ensaio da sensa~ao, ensaio no sentido de laborat6rio. Eis a experiencia da sensa<;ao, ou melhor: eis a experiencia ou a sensa~ao. Bonnard se joga, nu, na piscina do jardim, no meio do banho de mundo. Os nus expostos em seculos de pintura nao se desti-
, OS CINCO SENTIDOS
a
r
{YeUS}
nam aos voyeurs, mas mostram 0 sensivel, todas banhistas. Nao modelos a serem pintados, mas modelos do que e preciso fazer para poder pintar ou pensar algum dia: lan~ar-se no oceano do mundo. Sentir que se forma ao redor de si esta membrana, este tecido, este veu invisivel. E retini-lo docemente, com tato e delicadeza, desse corredor laminado entre pele e coisas, estender, desdobrar, exibir, expor, alisar, deslizar lentamente esse veu t~nue, c6smico no jardim cosmetico sobre a pele da Bela provocadora saida do banho, sobretudo, nao rasgar este veu, eis a tela. o jardim pinta uma especie de banho. Nao posso decidir se ele mostra 0 tecido das pr6prias coisas ou a epiderme esfolada de Pierre Bonnard, o sujeito da impressao ou 0 objeto impresso. 0 banho os reline, nele mergulha 0 sujeito impresso de folhagens e de flores. Chamamos sudario urn pano branco concebido para enxugar 0 suor; mortalha, quando colheu 0 suor da agonia. A pele se reveste de transpira~ao, exsuda e se marmoriza, perolada, enevoada como a do nu feminino. o len~o materializa 0 veu liquido, a mascara rorejante de suor e sangue: 0 tecido se assemelha ao fluido, urn pouco mole, tal qual ele, s6lido, porem, pelos dep6sitos deixados, quase gasoso pela evapora~ao. 0 fIime entre pele e banho recebe as transi~6es de fase, as trocas. 0 penh oar, no banheiro, entre vapores, poderia ser chamado sudario. Pode-se visitar, em Turim, 0 sudario que envolveu 0 corpo de Cristo no tUmulo, 0 veu de seu rosto, mergulhado vivo nas torturas mais crueis, coberto de suor, de sangue, de cuspe, de poeira, escarificado pelo flagelo, crivado de pregos, perfurado a ponta de lan~, seu cadaver foi enrolado nesse tecido de linho inserido entre 0 mundo atroz e a pele inipressa, foi enterrado sob esse veu. Suavemente retirado, estendido, desdobrado, alisado, exposto, 0 veu torna-se tela, mostra os tra~os do corpo, do rosto, eis 0 homem. A tradi~ao chama Ver6nica a santa mulher que enxugou a santa face do crucificado, coberta por uma mascara liquida, rorejante de suor e de sangue, e este nome significa, nas linguas antigas, 0 verdadeiro leone, a imagem fiel. Verdadeira, fiel, porque impressa, impressionismo. Ver6nica torna-se a padroeira dos pintores: os olhos cheios de lagrimas, cega de tristeza e piedade, tomou nas naos a impressao da pele, a mascara da dor, santa mulher de contato e de caricia, maos abertas sem olhar.
o Jardim de Bonnard se parece com 0 penhoar, 0 mundo tern mais luxo e uma felicidade maior que 0 pano tecido imp res so regular; 0 jardim
31
MICHEL SERRES
amplia a escala da paisagem a pele salpicada do nu no toalete, com mais riquezas nos tons e nas manchas, com mais exuberiincia: eis 0 sudario do artista que sai gotejante de seu banho no mundo, verdadeira imagem do jardim. Uns olham, contemplam, veem; outros acariciam 0 mundo ou se deixam acariciar por ele, atiram-se, enrolam-se, banham-se, mergulham nele e, as vezes, se esfolam. Os primeiros nao sabem 0 peso das coisas, pele lisa e chapada onde se encastoam gran des olhos; os segundos se abandonam ao peso das coisas, a epiderme deles recebe a pressao delas, localmente, no detalhe, como urn bombardeio, sua pele, portanto, e tatuada, zebrada, tigrada, enevoada, perolada, constelada, salpicada caoticamente de tons e matizes, de pregas ou bossas. A pele deles ve, como uma cauda de pavao. Ela ve, ela evista, ela varia, desdobra-se e se expoe. Pierre Bonnard nos deu, durante meio seculo, suas sucessivas metamorfoses, ttinicas arrancadas. Acreditamos nas imagens, nao, os espeJhos se esvaziam, eis as peles, finas e sensitivas. Exposi~ao de trofeus ou de escalpos, pendurados na parede. o jardim-paraiso desdobra urn despojo feliz. o penh oar de Bonnard, os nus de Bonnard, os jardins de Bonnard mostram flores de pele.
o olho perde 0 predominio no pr6prio terreno de sua predominancia,
32
a pintura. No ponto maximo de sua for~a, 0 impressionismo volta a seu verdadeiro sentido inicial, ao contato. 0 nu, ocelado como urn pavao, nos faz voltar ao peso, a pressao das coisas, a gravidade da col una de ar em cima de n6s e a suas varia~oes. As membranas, cortinas, len~os, folhas, penhoares sao impressos como Iivros, pela energia de uma pressao. A pele, cera dura e branda, recebe essas pressoes varhiveis segundo a for~a das coisas e a suavidade da regiao, dai essas tatuagens, tra~os e marcas, nossa mem6ria e nossa hist6ria, pergaminho de nossas experiencias. Nossa veste cutanea traz e expoe nossas lembran~as, nao as da especie, como acontece com os tigres ou jaguares, mas as da pessoa, a cada urn sua mascara, sua mem6ria exteriorizada. N6s nos cobrimos de capas ou mantas por pudor ou vergonha de mostrar nosso passado, nossa passividade, para esconder nossa pele historiada, mensagem privativa, mensagem ca6tica, Iinguagem indizivel, demasiado desordenada para ser compreendida, e substitui-la pela impressao convencional ou cambhlvel das roupas, pela ordem simpli-
OS CINCO SENTIDOS
{veUS}
ficada do cosmetico. Nunca vivemos, rigorosamente, nus e nunca verdadeiramente vestidos, nunca velados e nunca desvelados, exatamente como o mundo. A lei sempre se apresenta ao mesmo tempo que urn veu ornamental. Exatamente como acontece com os fen6menos. Veus sobre veus, ou mudas sobre mudas, variedades impressionadas. Os velhos epicuristas chamavam de simulacros umas membranas fnigeis que voam pelo ar, emitidas em toda parte, recebidas por toda parte, encarregadas de fazerem sinal e sentido. As telas de Bonnard, e de outros, talvez ocupem a fun~ao de simulacros. Claro, elas fazem de conta. Mas, sobretudo: partindo da pele do pintor e do fino inv6lucro das coisas, 0 veu de urn encontra 0 veu dos outros, a tela assume a jun~ao instantanea das mudan~as. Simulacro simultaneo. Os pinto res vendem a pele deles, os modelos alugam a sua, 0 mundo da as dele, eu nao salvei a minha, aqui esta ela. Esfolada, impressa, gotejante de sentido, geralmente sudario, as vezes feliz.
HERMES E 0 PAVAO
IJ4.
Falemos do pavao, ave duas vezes monstruosa, que carrega tantas plumas, e tao longas, que nao pode voar, como se a evolu~ao tivesse errado, por excesso, que apresenta cern olhos que imaginamos que voam, que sabemos que nao voam. Quando se pavoneia, exibe uma cauda ocelada onde expoe os olhos de plumas de pavao. Urn dia, galinaceo de sua gesta, ele cruzou 0 caminho de Hermes. Argos, homem que tudo v~, trazia, dizem, dois pares de olhos: urn na frente da cara, como todo mundo, 0 outro atras da cabe-;:a. Sem angulo morto. Ha os que dizem que tinha cern, cinqo.enta na frente e outro tanto na nuca, outros, que era uma infinidade espalhada pela pele. Clarividente no inicio da tradi~ao, virou puro olhar, globo ocular de olhos, pele tatuada de ocelos no fim do fantastico acrescimo. 0 acrescimo e a fantasia sempre se acompanham. Argos v~ tudo e olha 0 tempo todo: dorme somente com urn par de olhos, ou s6 com a metade das palpebras fechadas. Metade adormecido, metade em vigilia; 0 melhor vigilante da terra e do ar faz jus ao apeJido de Panoptes, 0 pan-6ptico.
33
MICHEL SERRES
Exemplo excelente da visao perfeita e da pele lucida, como 0 pintor, M pouco, dava 0 da visao e da tatuagem perspicaz. Panoptes, nos dias de hoje, teria obtido 0 premio no exame do mundo e da experimenta~ao, teria ocupado todos os altos postos nos laborat6rios e observat6rios ou no trabalho de campo; teria mantido a guarda as mara· vilhas. Precisamos sempre de uma constante aten~ao as coisas, em ciencia, ou em nossas viagens. Ora, naquele tempo, naqueles tempos miticos, Argos foi encarregado da supervisao. Panoptes vai se tornar 0 espiao dos amores marginais de Zeus, instigado por Hera, a esposa ciumenta, que 0 colocani ao mesmo tempo no meio da rela~ao conjugal dos deuses e da aventura galante de JUpiter com uma ninfa. Observar as coisas ou supervisionar as rela~(jes, enorme diferen~a: dois mundos talvez se oponham ai, dois tempos, 0 do mito e 0 de nossa hist6ria. o exame atento dos objetos nao interessa ao mito, Argus vai virar detetive particular. Dotado de cern olhos abertos quando os outros cern dormem, ei-Io policial, carcereiro, espiao: tudo as espreitas. A cultura se retina quando os olhares se deslocam das rela~Oes entre os homens para os objetos inocentes. A moral se aprimora,leveza delicada na vida coletiva mais amena, quando volta a aten<;ao dos amores inquietos mal vividos por nossos vizinhos, ou de suas opinioes, para a trajet6ria de urn cometa. A sociedade onde a vigiliincia domina envelhece nipido, soberania abusivamente arcaica, 0 passado ai permanece, monstruoso, ela acusa a idade do mito. Vigiar, observar. As ciencias humanas vigiam, as ciencias exatas obseryam. As primeiras tern a idade dos mitos, as outras, novas, nasceram conosco, tern a idade da hist6ria. 0 mito, 0 teatro, a representa~ao, a politica nao ensinam a observar, incitam a vigiar. Panoptes ve tudo e sempre e em toda parte: em que tarefa os deuses 0 empregam: na vigilancia ou na observa~ao? No sentido grego do verbo ver, ele encarna 0 homem te6rico, esfera onidirecional de olhos abertos. Para que serve a teo ria? Para vigiar as rela~(jes ou para examinar os objetos? 34
Eu diria pobre quem carece de objeto. 0 mito carece de objeto, como o teatro ou a politica.
OS CINCO SENTIDOS {WUS}
Dispunhamos de poucos objetos, outrora, antanho, ha pouco tempo. A humanidade das coisas raras nao abandonou nossa mem6ria. Pobres de coisas, nossa riqueza s6 consistia de homens. 56 falavamos deles e de suas rela~6es. Viviamos em e de nossas rela~6es. Diria, portanto, pobre 0 mito, sem objeto algum; diria, pobre 0 teatro, privado de coisas, pobres as teorias e as politicas, pobres ou miseraveis nossas fIlosofias, miseraveis nossas ciencias humanas. N6s nos lembramos tao precisamente de uma tal miseria que nao conseguimos reconhece-Ia quando a encontramos, aqui ou ali, nas na~6es do mundo, nas narrativas ou nos discursos abstratos. Mal saimos de lugares, de familias, de coletivos privados de coisas, onde fomos, por muito tempo, compelidos as rela~6es, condenados a urn dado reduzido ao dizer. A penuria leva a vigilancia e a alcagiietagem; as cidadezinhas de minha infancia rumorejavam de Argos lucidos e tagarelas. Todo mundo sabia tudo sobre todo mundo como se, no centro de todos, uma torre pan-6ptica vigiasse, contrato social indiscreto ou inevitavel flagrante policial. Ninguem se ocupava das coisas, ou bern pouco, cada urn controlava a rela~ao de cada urn com cada urn. Conheci sociedades compostas unicamente de soci610gos. Eles tinham urn talento louco para a vigilia e a narrativa. Mal saimos dessa Antigiiidade, nem todos saimos dessa pobreza que durou das idades miticas ate recentemente. Lembro-me das sociedades miticas todas inteiramente presas na representa~ao, adormecidas na linguagem. A pobreza nao e medida s6 pelo pao, mas pela palavra; nao s6 pela falta de pao, mas pelo excesso, pela exclusividade, pela prisao das palavras. A lingua cresce quando falta 0 pao. Quando 0 pao chega, a boca, por muito tempo faminta, tern trabalho demais para ainda se ocupar de falar. Aprendemos a amar os objetos. Coisa alguma circula nos tablados de urn teatro, dao espetaculos e palavras aos que nao tern senao palavras. Nossas teorias sao vazias de objetos, vigiam as rela~6es. Pois pe~am pao a filosofia, ela devolve boas palavras e representa~6es. Pe~am pao, ela s6 tern circo. Ela vive de rela~6es, de ciencias humanas, no mito e na Antigiiidade, sem sair da cidadezinha de nossa infancia; nao tern mundo, nao produz coisas, nao fornece pao. Ha quanto tempo podemos dizer que ela e pobre, pobre e !aminta, como era em nossa juventude? Uma fIlosofia pr6spera e produtiva daria pao it saciedade a qualquer urn que passasse.
35
MICHEL SERRES
o aumento dos objetos, a avalanche das coisas nos fizeram esquecer 0 tempo de sua ausencia. E esse tempo, agora, nos parece tao velho! Arcaieo, antediluviano, sim, mitico. as mitos e a filosofia nos falam desse tempo. Lembran~as dos lugares onde as namorados eram vigiados, onde eram perseguidos ate 0 B6sforo, em um espa~o son oro e vazio, sem que ninguem pensasse em comer. Assim as filosofias sem objeto - quase todas-, assim as filosofias que tiram seus valores somente das ciencias humanasquase todas - , envelhecidas e pobres, parecem-nos tao antigas que as vemos como mitos. Diriamos que sao politica, teatro, magia. Quando encontram, por acaso, um objeto, elas 0 transformam, num passe de magiea, em rela~ao, em linguagem, em representa~ao.
36
Elas nos puxam para tras. Considerando tudo, mais vale 0 observador que 0 vigilante, detetive ou policial, 0 astronomo que cai no fundo do po~o do que a mulher que, pelas costas, zomba dele com as companheiras. Quem se apresenta no real, 0 que olha os astros boquiaberto, ou a que se esconde por detnls para coman dar a cena ridicula? Sera que as lavadeiras sabem que um po~o da uma excelente luneta e que, do fundo desse cilindro vertical, tinieo telesc6pio conhecido na Antiguidade, podemos ver as estrelas, em pleno dia? Riem de que? Nao sabem que 0 sabio desce conscientemente ao buraco. as fabulistas que ainda nos fazem rir sabiam disso? E os fil6sofos? E melhor passar das rela~oes as coisas, inven~ao exigente, do que voltar dos objetos as rela~oes, pr
r ,
I
)
OS CINCO SENTI DOS
{YeUS}
As ciencias que nao conhecem objetos s6 tern metodos de detetives ou policias, participam do mito. 0 saber objetivo faz a hist6ria presente, as ciencias humanas, antigas, remetem II mitologia. 0 observador tece II luz do dia 0 que 0 vigilante desfaz durante a noite. Teremos medo de que? Hermes vai matar Panoptes, 0 portador de mensagens vai sobrepujar o vigia, vigilante ou observador. A comunica<;ao, a informa<;ao matam a teo ria. Como? Zeus, principe dos deuses, ama 10, bela ninfa; Hera, princesa, sofre de ciumes. 0 ciumento habita urn lugar de espinhos onde a vigilancia come<;a: lugar ou olhar por onde se ve. Zeus engana Hera e trapaceia: transforrna a ninfa em novilha. 0 que, eu amar urn animal? Ela brilha, porem, de uma brancura maravilhosa, pelagem lisa. Hera suspeita, Hera desconfia do touro que ronda em torno da vaca. Como sabe metamorfosear os seres tao genialmente quanto Zeus, ela envia urn moscardo, 0 pr6prio desejo espinhoso, que pica a femea e a assusta, e a obriga a partir. [0, errante, galopa pela Europa, da seu nome ao mar J6nico, correndo pela praia, passa, fugidia, pel a Asia, pelo lugar depois chamado B6sforo ou passo da Vaca, vagante, ela sofre e se lamenta, infeliz de ser amada por urn deus, tao dorida no vaguear e no amor quanto Prometeu, crucificado, na vingan<;a e na imobilidade. Hera adivinhou certo, Zeus escondia-se, de fato, sob a aparencia do touro. A rainha, em cheque, chama Argos, a quem nada escapa. Panoptes guarda a vaca, nem mesmo Zeus pode fazer nada. 0 rei, por sua vez, esta em cheque. A teo ria, pan-optica, ve tudo, do alto de sua torre, ciumenta.
o metodo, nas ciencias humanas que so tratam de rela<;iies, segue a
L
suspeita, policial ou inquisitorial. Espiona, segue, sonda as entranhas e os cora<;iies. Faz as perguntas, e suspeita das respostas, nunca ele se questiona sobre seu direito de agir assim. Deus nao e enganador, digamos, nas ciencias exatas onde 0 objeto, inocente, continua fiel e confiavel. 0 homem engana, nas ciencias humanas, pior ainda, ele trapaceia. Em ciencias exatas, se Deus nao engana, com mais forte razao, nao trapaceia. 0 homem, em ciencias humanas, engana e trapaceia. Nao s6 sutil como 0 Deus das ciencias exatas, nao s6 complexo e refinado, mas esconde seu jogo, engana<;ao, finge uma outra estrate-
37
MICHEL SERRES
gia e muda bruscamente de regra. trapa~a. jogada em impedimento. 0 homem trapaceia nas ciencias sociais on de 0 abuso vira lei. Onde a mudan~a de regras vira lei. As ciencias exatas constroem teorias sutis. mas leais. tinas e estaveis. Urn gato ai continua urn gato. principio de identidade. As ciencias humanas e sociais descrevem teorias mais desleais ainda do que a fraude. Mais trapaceiras que a trapa~a. para desmontar 0 objeto delas. Entao. tudo se torna possivel. uma vaca euma mulher ou urn deus e urn touro. ate 0 principio de identidade varia. Razao que vigia quando a razao dorme. razao que dorme enquanto vela. inferno das rela~oes onde a pr6pria estabilidade flutua.
38
As ciencias humanas tern de multiplicar as piores praticas por debaixo ou por detras. 0 termo hipocrisia diz muito bern esse movimento: por detras do objeto ou da rela~ao. ou por debaixo. 0 metodo e critico. hip6crita. Ele frauda os fraudadores. engana os enganadores. esconde-se nas costas de quem escamoteia - ou de quem escamoteia 0 feito nas costas dos jogadores - . rouba os ladroes. tinge de policia entre os policiais. da li~ao aos mais famosos detetives. investiga a casa do grande inquisidor. vigia os olheiros. trai os mentirosos. estuda os fracos e os miseraveis. explora-os. tomando-lhes a informa~ao. seus pequenos segredos. seus Ultimos bens. o metodo hip6crita consiste em se posicionar sempre atras e produzir imediatamente uma frla. E preciso. pois. pular logo para tras do ultimo da frla. situar-se nas costas do ultimo que ainda tern as costas visiveis. depois ocultar as suas pr6prias costas de medo de ser apanhado. por sua vez. por quem tenha compreendido a manobra. Donde as regras do metoda: para mentiroso. mentiroso e meio; para perverso. mais que perverso. como se dissessem mais-que-perfeito; para olheiro. te6rico. o movimento nao tern tim e constr6i longas cadeias de razao. mon6tonas e dificeis. que procuram chegar a uma conclusao. Em outras palavras. as tilosotias que se ap6iam nas ciencias humanas tentam se apoderar de situa~oes que atinal escapariam a qualquer critica. encontrar 0 limite da cadeia ou 0 tim da frla. Entregam-se. pois. a raciocinios por extrema. tal como na idade ciassica. os frl6sofos que se apoiavam nas ciencias exatas iniciantes se apoderaram da situa~ao limite divina. do Deus nao enganador dos frl6sofos e dos sabios. Deus nao pode se enganar nem nos enganar. eis 0 ponto extremo. Aqui. 0 lugar limite estaria. no extremo inverso. onde
as CINCO SENTIDOS {veUS}
toda trapaya imagimivel, de tanto trapacear ou enganar, seria sempre prevista. 0 pan-6ptico ja viu tudo sempre, extrahicido e incontornavel. A teologia tradicional do conhecimento e do mal teria previsto esses fechamentos nos !imites? Eis 0 Diabo e 0 Born Deus. Ao Deus dos fil6sofos e dos sabios que dominam a idade c1assica e a emergencia das ciencias modernas, nossa idade das ciencias sociais opoe 0 Diabo, nova situayao maxima? Deus nao engana nem trapaceia. Os objetos, nas ciencias exatas, ficam estaveis. 0 homem engana e trapaceia, mais e mais que desaparece, as vezes, como Zeus sob a pele do touro, como Hera sob 0 ferrao do moscardo. Ora, aquele que trapaceia e engana faz isto porque quer ganhar. Portanto, 0 primeiro atributo de Deus consiste em nao fazer caso de ganhar. Afastem-se das apostas, desdenhem a vit6ria ou a perda, entrarao em ciencia, em observayao, em descoberta, em pensamento. Aqui se definem exatamente duas situayoes maximas: urn apex, estavel, de confianya; urn extremo na desconfianya. A estabilidade do objeto corresponde a uma falibilidade das relayoes. Deus guarda as ciencias exatas desde a idade c1assica. Alguns dizem que as detem, outros dizem que as favorecem. 0 Diabo domina as ciencias humanas, maldosissimamente enganador e trapaceiro. Usa de astlicias extremas, refmadas, para p6r em cheque 0 poder e a bondade de Deus, para conquistar ou reconquistar, dizem, 0 lugar de Deus. Deus nao usa de nenhuma astlicia, abandona qualquer luta. A guerra entre 0 Diabo e 0 Born Deus nunca teve lugar: urn quer vencer; 0 outro, nao. Indiferente ao ganho e a derrota, fora da escala das vit6rias e das perdas, fora do p6dio escalar, fora da metrica, Deus e infinito. Eis defmido 0 infinito pela indiferenya a luta de todos os diabos. Livre do inferno das relayoes, ele se consagra ao objeto, pois criou 0 mundo, integral dos objetos. Tudo deriva, pois, de sua saida do jogo. Hera e Zeus jogam xadrez, para serem enganados ou para ganharem, diabo contra diabo, maldosissimamente trapaceiros. 0 Diabo e 0 deus dos mitos, ou das ciencias humanas, 0 nosso. Pensamos sob seu imperio regressivo. Podemos conceber urn homem novo que nao cuide de trapacear nem de enganar, Iiberto do p6dio animal onde a vit6ria traya 0 percurso?
l
39
MICHEL SERRES
40
Panoptes, em uma situa~ao extrema, ve tudo, sabe tudo, nada!he escapa. 0 mito, por imagens falsamente ingenuas, diz excelentemente os conceitos que temos dificuldade em formar. Trata-se, no jogo, de achar os golpes inevitaveis. Donde a constru~ao de situa~6es extremas: Deus, 0 Diabo, o Panoptes, 0 pr6prio, Hera, a rainha, e Zeus, 0 rei. Os mais fortes desafiam os mais fortes, como no cio dos uapitis. Zeus quer enganar sua mulher que quer pega-lo; portanto, trapaceia: ai onde voce ve uma vaca, passa uma mulher. Hera trapaceia: 0 moscardo voa e pica pela vontade dela. A deusa coloca-se atnis do deus, que se coloca atras dela; ele joga as escondidas da que joga as escondidas dele. Jogo infinito, cada qual tern urn dorso a oferecer ao outr~ uma superficie fragil e cega. Procuremos, pois, urn terceiro homem, incontornavel. Imaginemos alguem que nao tivesse costas: insone, sem angulo morto nem mancha ocular, sem desaten~ao nem inconsciencia, intensamente presente, uma integral de faces, uma esfera onidirecional de olhos, urn geometral de facetas resistentes, vigiando e dormindo por clar6es e eclipses, como urn farol na costa, melhor, como urn conjunto de fogos e sinais a dominar uma zona e a povoar a noite, olhares ou apelos a piscarem aleatoriamente: Argos. Eis enfnn a teoria total, 0 metodo inapreensivel que pode apreender tudo, nao contornamos 0 corpo de Argos. Eis enfim a boa posi~ao, para aqueles que desejam 0 primeiro ou 0 Ultimo lugar, critica e jamais criticavel; presen~a observadora sem opacidade observavel, sempre sujeito, jamais objeto. Ninguem pega Panoptes por tnis, ele nao tern em baixo nem atras, esfera de scanner. Os que se ocupam dos homens e, portanto, reinam sobre eles mantem-se sempre em angulo morto, na mancha escura cega, impotente, do sujeito ativo ou presente, em suas costas. A doen~a atinge uma parte fraca, ou 0 sono, a miseria, a pobreza lingiiistica, 0 desconhecido residual das rela~6es coletivas ou a esperan~a infantil. 0 medico dos corpos ou das almas, 0 economista, 0 politico, os ret6ricos ficam nesse angulo, man temse atnis da zona da mancha fraca, ao abrigo dos ofuscamentos, no escuro da inconsciencia ou acima do tremular das lagrimas. Veem sem serem vistos, encontrando cada qual seu espelho sem estanho ou seu ciume. 0 fIJ6sofo que os totaliza ou resume, integra-os e reflete, torna-se pan-6ptico: incontornavel, inapreensivel como Argos. Voces que olham tudo com os olhos sempre abertos, sua lucidez nunca se banha em lagrimas?
--------------------------------------------~
j..
r
OS CINCO SENTI DOS
{veUS}
Bis 0 estado do jogo: Zeus, 0 proprio, em cheque. A rainha vence 0 rei com a torre pan-optica. Zeus entao recorre a seu cavaleiro, Hermes passa. o rei manda 0 anjo atacar, ordena-lhe que mate Panoptes. Impossivel aborda-lo ou surpreende-lo. Nao M surpresa para um supervisor, considerem os prefIxos que indicam a estrategia do sempre mais. 0 cavaleiro precisa contornar a torre incontornavel. Como? Hermes adormece Panoptes e 0 mergulha em um sono magico tocando a siringe, como outros engabelam as serpentes de oculos fascinantes. Hermes inventa a siringe ou a flauta de Pa para essa batalha. Novo combate entre posi~6es extremas: Panoptes possui a integral dos olhares, nao da nenhuma chance a adversario algum na ordem da visao. Hermes, entao, sai do terreno onde Argos permanece inapreensivel e passa a ordem dos sons tomando sua integral: dai 0 nome da flauta de Pa. Pa contra Panoptes, considerem os prefIxos que indicam a estrategia de uma guerra total. Audi~ao diante do olhar, estranho conflito de faculdades sensiveis; ouvido contra visao ou orelha contra olho, integral oposta a uma integral, panoplia por panoplia, soma das ondas contrabalan~ando a soma das evidencias. Geometral das mensagens contra iconografIa das intui~6es, luta fabulosa em um espa~o inconcebivel, 0 sistema da harmonia envolve a teoria das representa~6es. Subito, essas gigantomaquias fantasticas, todo-poderosos contra todo-poderosos, Diabo e Deus, JUpiter e Juno, Pa e Panoptes, se reduzem a um confronto aparentemente simples. A siringe adormece Argos, a naja se contorce, inofensiva, ao ouvir a flauta indiana. De onde vem essas magicas de fascina~ao? 0 encantamento vem do canto. 0 que pode a orelha contra os olhos, 0 que pode 0 som contra a visao, a audi~ao contra 0 olhar? Um acontecimento visivel e localizado, posicionavel em distancia e angulo, coordenado com os acontecimentos visiveis nos arredores; ocupamos um ponto de vista, percebemos perfIs, a vista defIne um lugar. 0 mito pan-optico busca for~ar este lugar, exceder suas defIni~6es. Assim como Leibniz somava as perspectivas de uma coisa para obter sua iconografIa ou o geometral, assim Panoptes integra os pontos de vista de um corpo, soma os locais de onde ele ve. Deus sozinho, no caso do primeiro, descobre de imediato todos os perfIs de uma coisa; Argos, sozinho, esfera redonda, apresenta-se como um olho de olhos - visao facetada como a das moscas. Vantagem real, mas fragil, ou limitada, pois 0 melhor dos supervisores, geometral-sujeito, ve 0 espa~o soma dos lugares e tambem cada coisa de
Instituto de Psicoiogi3 - urRGS Bibiioteca - -
41
MICHEL SERRES
42
perfil, longe de perceber urn geometral-objeto. Seu corpo, sempre ligado a urn lugar, faz-se de farol, redondo como sua lanterna, difundindo ao redor as pinceladas luminosas, recebendo a claridade das coisas em todos os pontos de sua esfera. Urn acontecimento sonoro nao tern lugar, mas ocupa 0 espa~o. Se a fonte muitas vezes permanece vaga, a recep~ao se difunde, ampla e geral. A visao fornece uma presen~a, nao 0 som. A visao dis tan cia, a musica toea, o ruido assedia. Ausente, ubiquo, onipresente, 0 rumor envolve os corpos. o inimigo pode interceptar 0 radio, mas nao pode entrar nos semaforos: a vista permanece discreta, as ondas nos escapam. 0 olhar nos deixa livres, a audi~ao nos cinge; quem se livra de uma cena abaixando as prupebras, cobrindo os olhos com as maos, ou voltando as costas e fugindo, nao consegue se livrar de urn clamor. Nenhuma divis6ria, nenhuma bola de cera bastam para dete-Io, qualquer materia, a rigor, vibra e conduz 0 som, sobretudo a carne. 0 veu negro cega, hermetico a luz, outros corpos obstruem outras passagens, Hermes conhece 0 velculo que nao conhece paredes hermeticas. Visao local, audi~ao global: mais que a iconografia, geometral para 0 sujeito ou 0 objeto, 0 ouvido conhece a ubiqiiidade, poder quase divino de ocupar 0 universal. Optica singular, acustica total. Hermes livre-transito vira musico, pois 0 som nao conhece obstaculo: come~o da ascendlmcia total do verbo. Falamos ao mesmo tempo de magia, de filosofia, do sentido comum e do mundo como ele e. Pa fascina Panoptes abalando sua carne condutora, o som estridente faz arrepiar a pele coberta de olhos, estremecer os muscuI os, correr as lagrimas, vibrar a estrutura 6ssea. A esfera clarividente cobre-se de urn lago de higrimas, Argos sucumbe de emo~ao. 0 global vence a soma das situa~6es. A integral inutilmente procurada pela adi~ilo dos lugares e dos pontos de vista, pela justaposi~ao dos olhos, e atingida pela onda, sem dificuldade, imediatamente: ja viram sem chorar uma obra que conseguisse sem esfor~o, ao primeiro gesto, 0 que milhares de trabalhos empreendidos durante todos os anos de suas vidas tentaram conseguir? Argos se prostra. Por mais pan-6ptica e lucida que essa esfera clara pare~a, ela continua diferencial e pontilhista, analitica de pequenos estados ou de cenas nanicas. Por mais rudimentar que seja urn som lan~ado, ele consegue logo se impor ao redor. Magica, se quiserem, esta vit6ria e 6bvia. 0 som faz perder a vista ou fascina a vista: ela se fixa na ponta extrerna de urn feixe sutil; mas 0 que faz comumente 0 olbar senao fixar esse feixe? 0 som devolve a visao ao lugar dela.
OS CINCO SENTI DOS
{WUS}
Assim, Leibniz, correndo infinitamente atnls da soma inintegnlvel das iconografias, conseguiu fechar seu sistema com a Harmonia universal. A representa~ao, mesmo pan -6ptica, adormece quando a Harmonia ressoa. Melhor, se conseguimos formar a ideia de urn mundo, ou de Deus, ou mesmo de urn sistema, se atingimos as totalidades, nunca somos levados pelas representa~6es parciais ou interminaveis; s6 chegamos a isso pela harmonia, musica de Pa metafisica. Magia marginal, sentido corrente ou alta filosofia, conseguimos 0 mesmo resultado: que Pa ven~a. 0 mito resume em atos simples, perfeitamente somados ou integrados, 0 que dispersamos em discursos ou disciplinas. Mas 0 mundo, a nossa volta, berra esse resultado, ou~o 0 ambiente que preparamos ou construimos e que nos mergulha em urn barulho inextinguivel. Hii urn born tempo que dormimos, drogados de ruidos e de musicas, sem ver mais nada, sem mais pensar. Hermes tomou 0 poder mundial, nosso mundo tecnico s6 existe pela integral do caos, nao encontrarao mais nada sobre terra, nem pedra nem rastro, nem urn pequeno inseto nem urn buraco, que nao esteja recoberto pelas aguas diluvianas da balburdia. 0 grande Pa ganhou, aboliu todo 0 silencio do espa~o. Se tern piedade de mim, ensinem-me onde pensar. A flauta de Pa perfura e inquieta. Uma noite de junho, eu aguardava urn eclipse total do sol num terra~o em frente a urn jardim, diante da folhagem de urn sic6moro, nos anos distantes em que os dias findavam mergulhados no silencio. A obscuridade fez-se logo, 0 vento do eclipse, como uma onda, passava por Iii quando irrompeu entre os vizinhos uma especie de dan~a selvagem, ao som incisivo, adstringente, estranho da flauta de Pa. Jovens davam uma festa, confundiam 0 obscurecimento com o crepusculo e divertiam-se ao cair da noite. Que se saiba, 0 veu da luz solar obnubila a ponto de inquietar, transporta a urn outro mundo. Pa me levou la, eu sabia que ele tinha ofusc ado 0 sol e rninha vista, varrido 0 espa~o com a vaga de vento, encoberto as aparencias com tons laranja, purpura e verde de doer os dentes, ouvi chegarem, apavorado, umas especies de deuses astecas, crueis e complicados. Eis 0 segundo estado do jogo: Hera, ela pr6pria, em cheque. 0 rei toma a torre da rainha com 0 movimento do cavaleiro. Ninguem mais fala de 10, que, chorando, vai em dire~ao ao Caucaso, para junto de Prometeu
43
MICHEL SERRES
acorrentado, virgem erguida ao pe da cruz, ninguem [ala dela, salvo os que choram a desgra,a do mundo. Hermes adormeceu Panoptes e 0 matou: todo mundo [ala do assassinato. Argos s6 tern posi,ao local por mais longe que sua visao aicance. Ele integra a informa,ao de urn lugar, sem falha nem erro, analista refinado. Hermes intercepta todas as informa,aes em todos os lugares, transposi,aes e tradu,aes, interferencias e distribui,aes, ele ocupa as passagens. Argos man tern urn ponto tMico. Hermes invade os silios estrategicos. Urn venceni uma batalha, 0 outro ganhani a guerra. Argos, intensamente presente, detecta qualquer presen,a; mas quem esta em toda parte s6 precisa fazer da presen,a ausencia por ubiqiiidade. A policia bloqueia as estradas, ja nao cuida de ir ao encal,o. Nao tern mais necessidade de vigiar, aqui e agora. Tudo muda quando a presen,a nao esta mais no come,o. Da luz, Panoptes detem 0 lado claridade, Hermes se apossa da flecha de sua velocidade. A fJ.iosofia classica confiava ate recentemente na ilumina,ao, a fJ.iosofia contemporanea descobre a rapidez do raio. A velocidade da luz prepondera sobre sua pureza. Considerem a novidade dessa vit6ria: a principal qualidade de uma teoria ou de uma ideia, seu mais antigo valor, a clareza, acha-se ultrapassada pelo sistema de sua passagem. Pa ou Hermes mata Panoptes: a ceieridade de uma mensagem vale mais que a lucidez de urn pensamento. Falamos do novo estado do conhecimento. Falamos de sentido comum e de fJ.iosofia, dizemos ao mesmo tempo nos so mundo. A rede de comunica,ao torna inutil a presen,a, nao tern centro; torna obsoleta a vigililllcia. as circuitos audiovisuais ou informatizados fazem rir os admiradores da ultima guerra pres os aos campos de batalha romanos. as marinheiros pass am sem olhar os far6is, com todas as prote,aes garantidas na sala de escuta e nas telas de gnificos. Quem regula it sua vontade os c6digos e sua circula,ao no espa,o pode deixar em paz os vigilantes: estes dormem ouvindo musica, nos tombadilhos dos navios. A passagem sussurrante das mensagens paralisa 0 cao, 0 espiao, aicagiiete, anestesia 0 carcereiro. a espa,o mais bern guardado, a prisao mais fechada, com telefone, televisao e teiecomunica,6es dao ferias a esses avatares de Panoptes, a todas essas figuras que ainda tern presen,a no presente, sim, todas essas sucessivas figuras da fenomenologia. Hermes, espirito, presente em toda parte, desce, de subito, no espa,o.
° °
44
rI
OS CINCO SENTIDOS
{WUS}
Hermes, a rede, substitui todas as esta~6es locais, torres de vigia justapostas no espa~o ou figuras sucessivas no tempo: seu geometral desqualifica toda fenomenologia. Palamos ao mesmo tempo do senso comum, escuta e ouvido, e logo do verbo e do c6digo; da musica e do campo; da droga e da anestesia, por esquecimento da presen~a ou perda da intui~ao; falamos dos jornais, das revistas, policia ou politica, a luta de Pa contra Panoptes que se da todos os dias; do novo estado do conhecimento. Palamos das rela~6es e dos objetos, saber e vigilancia, concorrencia e sociedade. a mundo da informa~ao toma o lugar do mundo observado; as coisas conhecidas porque vistas dao lugar aos c6digos permutados. Tudo muda, tudo decorre da vit6ria conquistada pela tabua de harmonia sobre 0 quadro dos olhares. A gnosiologia muda, e a epistemologia, mas tambem a vida cotidiana, 0 nicho m6vel onde 0 corpo mergulha, e tambem a conduta, portanto, a moral e a educa~ao. Ainda nos prendiamos com amarras, cabos ou ancoragens, as pr6prias coisas pela observa~ao, pela ideia da clareza ou da fun~ao da intui~ao. A teoria, por vontade pr6pria, foi marcada pelo ate de ver e pela fenomenologia das aparencias entregues 11 6ptica. As am arras se soltam. A mensagem torna-se 0 pr6prio objeto. a c6digo significa 0 dado, 0 banco tomou 0 lugar do mundo. au antes: a mensagem volta a ser 0 dado, como durante 0 que denominei de a Antigtiidade, onde 0 coletivo se alimentava de suas rela~6es e de suas mensagens, no desprezo ou esquecimento dos objetos. Voltam as rela~6es, trazendo com elas a carga assustadora e regressiva das apostas e dos fetiches, toda a mitologia. A ciencia, a frente, corre com suas premissas. A riqueza reconduz a pobreza. A produtividade acumulada reproduz a miseria. Pa mata Panoptes: a idade da mensagem mata a era te6rica. Sera que as ciencias humanas vao reabsorver as ciencias exatas, como fizeram na Antiguidade? Como elas 0 dizem pelo mito? Entao a guerra acontecera sempre mais dura, veremos reflorescer nas ciencias os segredos e os ardis, 0 ciume subir ate 0 ceu onde os deuses, velhos amantes que se tornaram caprichosos com a idade, ainda se entregam a sua velha luta de morte. Multiplicado pelo rigor e pela eficiencia, 0 inferno das rela~6es voltara? Cansados desses jogos enganadores, dessas trapa~as, sonhando que nossa vida breve escape a esse tempo mon6tono de sangue e de morte,
45
MICHEL SERRES
esperamos voltar a uma instancia de confian\,a que nao engana nem trapaceia, para uma teoria do conhecimento que reuna as ciencias exatas e as ciencias humanas. Novo saber, nova epistemologia, homem novo, educa\,ao nova, s6 escaparemos it morte coletiva nesta condi\,ao.
Hera, em cheque, joga ainda e contudo. Despoja Argos morto, toma do vigilante a pele pan-6ptica, trapo fiutuante rasgado de palpebras fechadas, para deposita-Ia sobre a plumagem de sua ave favorita, 0 pavao. Da cabe\,a onidirecional de olhos intensos s6 resta a dupla cor dos ocelos e sell espargimento resplandecente, leque fascinante e sedoso. 0 galinaceo imovel pia rouco e desafinado quando Hermes toea a fiauta, cambaleia quando Hermes passa e voa, anuncia, quando se pavoneia, a teoria morta. A vista olha no vazio urn mundo de onde a inforrna\,ao ja se foi. Vma especie em via de desaparecimento, ornamental, faz admirar nos parques e jardins publicos, onde se juntam os curiosos, a representa\,ao. o tato ve urn pouco, ele tern ouvido. Nas cidades s6 nossos semelhantes nos veern, decerto nos consideram como nos os consideramos, a altura, 0 peso, pouco varia a espessura. Os olhos-de-boi, as rotulas, as vidra\,as tern olhares vazios. Pav6es de cauda ocelada, vacas, moscas, caes, lebres e pirilampos, passam na paisagem com grandes olhos glaucos ou pequenos aparelhos visuais de multiplas facetas que nos figuram gigantes, minusculos, detaIhados, incolores, abrilhantados de mil maneiras diversas, estriados, zebrados, ondeados. N6s consideramos a paisagem, no conjunto enos detalhes, ela nos considera como uma paisa gem. Estamos dissolvidos nela e em sua variedade.
46
Nossa pele varia como uma cauda de pavao, embora nao tenha plumas, que ate parece que ve. Ela percebe confusamente em toda 0 espraiado de sua superficie, ve, clara e distintamente, pela singularidade superagU\,ada dos olhos. Por todo canto ela tern especies de ocelos vagos. A pele forma bolsas e pregas, neste embriao ela se afina, eis 0 olho, em todo canto ela dilui as evidencias ali concentradas, apenas ocelada. Faz urn buraco, urn leque debruado, plissado, perfurado, semi-ovalado, eis a orelha onde 0
OS CINCO SENTI DOS
{YeUS}
ouvido se condensa, de todo canto, timpano, tambor, ela ouve amplamente e men os, mas ouve sempre, vibrante, como auricular. Nossa pele se assemelha as dos jaguares e das panteras, das zebras, mesmo que nao tenhamos peloso 0 desenho dos sentidos desdobra-se nela, salpicado de centros surdos, constelado de marcas; a pele forma uma variedade de nossos sentidos misturados. A pele, tecido comum com suas concentra~6es singulares, desenvolve a sensibilidade. Ela estremece, exprime, respira, escuta, ve, ama e se deixa amar, recebe, recusa, recua, eri~a-se de horror, cobre-se de fissuras, rubores, feridas da alma. As doen~as mais instrutivas, os males de identidade afetam a pele, formam tatuagens que escondem tragicamente a sarapintura de nascen~a e de experiencia. Pedem socorro, anunciam a miseria e a fraqueza; seria preciso aprender a ler como em livro aberto a escritura dos deuses em colera na pele de suas vitimas. 0 abecedario da patologia esta gravado no pergaminho. Os orgaos dos sentidos formam nos,lugares de singularidade em alto relevo neste multiplo desenho plano, especializa~6es densas, montanha ou vale ou po~os na planicie. Irrigam toda a pele de desejo, de escuta, de vista ou de odor, ela escoa como agua, confluencia variavel das qualidades sensiveis. Interior ou exterior, opaca ou transparente, macia ou rija, decidida, presente ou paralisada, objeto, sujeito, alma e mundo, vigilante ou guia, lugar aonde chega 0 diaJogo fundamental com as coisas e com os outros e de onde ele brilha, a pele transmite a mensagem de Hermes e 0 que nos resta de Argos.
SUTIL
Ja nao sabemos por que chamamos sutis uma coisa ou urn sentido agu~ado,
fino e suave. Perdemos sua memoria ou 0 segredo.
No museu de Cluny, seis gran des tape~arias que vieram do Chateau de Boussac receberam 0 nome coletivo de A Dama e 0 Licorne. Elas apresentam ou ilustram os cinco sentidos. Cada cena tern lugar numa ilha azul e oval. Bern definida e fechada, a ilha e salpicada de moitas em flor. Encerra 0 grupo: uma ou duas mulhe-
47
MICHEL SERRES
res, a principal e a acompanhante, dois animais maiores, 0 licorne e oleao, tres ou quatro arvores solidas, pinheiro, azevinho, carvalho, laranjeira de ramagem carregada de frutos, uma multidao de pequenos animais, macacos, le6ezinhos, gar,as, pegas, mangustos, guepardos ... mais urn objeto especifico, espelho para a vista, positivo para 0 ouvido, bomboneiras para o paladar, travessa ou cesta de flores para 0 olfato, 0 tato nao tern coisa propria. A ilha de cada sentido destaca-se sobre 0 fundo vermeiho, laranja ou rosa. 0 fundo, tambem, e juncado de tal os, folhas e flores e entremeado, tam bern, de animais. o equilibrio da abertura ou do fechamento ou 0 destaque de urn sobre o outro e obtido pela cor e pela densidade. Fauna e flora - a vida - , concentram-se na ilha e se diluem no fundo, como se a tela dilatasse a cena ou recebesse dessa fonte densa uma nuvem animal e floral mais leve. Impress6es mais fortes e mais quentes no alto onde crescem as arvores com suas excrescencias azuis caindo sobre 0 vermelho, difusao esparsa, menos compacta e mais fria no meio. Exatidao e fidelidade do tra,o: cada orgao e desenhado como uma ilha, olho, orelha, boca, nariz; abundante, espessa, condensada de sensa,oes, a pele exibe seu pano de fundo e recebe desses centros ardentes aqui10 que marca mais frescor em sua tatuagem. A ilha se tece de tela, da mesrna textura de seu fundo, 0 orgao se franze de pele. Nota-se, na cena, que somente 0 tato nao precisa de instrumento especial, a pele torna-se, ao bel-prazer, sujeito ou objeto.
48
Uma bela e simples pergunta esta colocada na sexta tape,aria, a unica que tern uma cartula com dizeres. Nos temos cinco ou seis sentidos? 0 pensamento escoiastico sabia dividir, na Idade Media, nosso sensorium em externo e interno. 0 ouvido, a visao, 0 tato, 0 olfato e 0 paladar eram considerados extern os. De fato, 0 espelho mostra 0 pesco,o e a ganaeha do licorne e nao 0 rosto e 0 colo da mocinha que vai dizer seu desejo, a imagem do animal e nao a do sujeito; a bomboneira oferece 11 boca 0 gosto das guloseimas: como este sentido permanece fraeo e rudimentar, a ilha aerescenta ai urn caramanchao, uma treli,a por onde sobem as roseiras, para mostrar quanta os odores contribuem para este exercicio ou este ensaio; a coroa ou 0 colar mistura os cravos ao odor das rosas pelo duplo sentido da palavra buque; a mao acaricia com delicadeza a haste rigida ou 0 chifre ereto; 0 ouvido escuta os tubos que vibram sob a a,ao dos sopros; trata-se
r \
OS CINCO SENTI DOS
{veUS}
do mundo exterior, flores ou doces, bicho ou musica, madeira ou marfim, a mulher nao ve nem ouve a si mesma, nao sente seu cheiro nem se toca. Falta justamente urn sexto sentido para fazer 0 sujeito se voltar sobre si mesmo, e 0 corpo sobre 0 corpo, sentido comum ou sentido interno, faltava justamente uma sexta ilha: ilha duplamente fechada pelo corpo pr6prio. Vma tenda representa esse interior, a intimidade do corpo, e comec;a a construir 0 corpo comum dessas mulheres diferentes, uma, toda odor de rosa ou de cravo, a outra, tremula de harmonia, a terceira repleta de imagens graciosas, uma outra, toda a<;ucar e mel... 0 pavilhao encerra a soma delas. Mas a tenda e feita de urn veu azul, azul como todo 6rgao insular, e alem disso, entrela<;ado, drapeado, cheio de pregas, colorido. Cada ilha e plana, fechada, mas aberta para 0 espa<;o, sentido externo bern definido, entregue aos acontecimentos do mundo. 0 novo pavilhao azul fecha-se duplamente: no oval e no espa<;o; fecha-se sobre si. E vela-se de panejamentos. Toda a descri<;ao e valida para a tape<;aria e para 0 corpo, indiferentemente. Cada 6rgao dos sentidos, insular, forma uma singularidade densa na planicie cutanea, diluida. A ilha e tecida com a mesma tela que tece 0 fundo, cada 6rgao dos sentidos invagina-se na mesma pele, espraiada por todo 0 redor. 0 sentido interno drapeia-se em sua tenda, novo veu, nova tela, mesmo tapete e mesma pele, 0 sentido interno vela-se de pele. o tato parece predominar, reunir 0 sentido comum, soma dos cinco sentidos, com que tece a tenda. Onico entao, ja nao exigia instrumento nem objeto espedfico, espelho ou positivo, nem flor nem confeito. Alias, antes de cheira-las e reuni-las em guirlandas, a mulher toca as flores e as distingue entre 0 indicador e 0 polegar, a mulher da visao segura 0 cabo do espelho com a mao direita e, com a esquerda, acaricia 0 pesco<;o do licorne, a do paladar oferece 0 poleiro de seus dedos a uma ave, como na arte da falcoaria, a do ouvido toca 0 teclado do 6rgao. A mao serve cinco vezes de fator comum, 0 sentido comum prepara-se nela. o tato vai predominar. Com sua grande pata, 0 leaD vira e levanta 0 pano da tenda, com seu casco ferido, 0 licorne levanta e vira a bambinela de pano do pavilhao, com as duas maos, a mulher tira e enrola 0 tecido que parece cobrir, guardar, conter, ou envolver as j6ias arrumadas no estojo, j6ias preciosas quase discretas no cofre fechado, tateia a menina, tateia o animal, tateia 0 monstro.
49
MICHEL SERRES
o tato predomina. 0 pavilhao, sentido interno, ou corpo pr6prio, fecha seus veus como 0 carpo fecha sua pele. Veu ou inv6lucro abertos de portas erguidas, os 6rgaos dos sentidos externos. Por estas portas, vemos, ouvimos, sentimos os gostos e as fragrancias, por estas paredes, mesmo fechadas, n6s tocamos. 0 pano do pavilhao ou a pele do corpo podem se abrir ou fechar, 0 sentido externo continua salvo. 0 sentido interno vestese de pele, esta, hermetica ou vazada de janelas, forma sua tenda ou seu pavilhao, habitat ou tabernokulo. o tato garante a abertura no fechamento: 0 corpo da mulher ocupa 0 espa~o da bambinela aberta e fecha-o. Os panos, os veus da tenda, em parte descoberta, vao recair ou fechar-se sobre a mulher-soma, sobre 0 sentido comum, clausura de seu exterior. o tato predomina pela equivalencia do veu, da tela, e da pele. Sua paleta mistura as flores, as frutas, as folhas, as aves e os bichos. 0 mundo e impresso sobre esta roupa de cera que nos contorna enos reveste, que agora nos oferece urn habitat intimo. Fator comum a quatro sentidos externos, sentido aberto e fechado por si s6, protege 0 sentido interno e come~a a construi-Io. Toda a descri~ao vale para a tape~aria final e para 0 corpo da mulher e o sens6rio em gera!. 0 pano da ilha e tecido com a mesma tela do pano da tenda e da tela de fundo. Entretanto, a queda do veu ou da roupa cutanea envolve uma novidade, suas tatuagens diferem. A dissemina~ao, densa ou amp la, mas ca6tica, das flores de pele, 0 pavilhao opoe uma geometria ordenada, constelada de linguas de fogo regulares.
50
A tenda abre-se e fecha-se, tal como 0 estojo, duas caixinhas pretas. Preta ou branca? A luz clareia 0 interior do pavilhao, e sombreada na face interna da tampa do cofre. Branca e preta. Sabemos, nao sabemos. 0 leao, o licorne abrem ou fecham a tenda, a acompanhante esta prestes a fechar o cofre? Nao sabemos, sabemos. Nosso carpo se cobre de pele, fecha-se sob ela. Ela se abre para os sentidos. Ela se fecha para 0 sentido interno, mas continua urn pouco aberta. o tato ainda predomina, ele canhece bern essas vizinhan~as de branco e preto, de abertura e de fechamento. A sexta tape~aria constr6i 0 corpo: 0 corpo feminino? Nenhum macho no museu de Cluny, nenhum macho no ceu.
, r \
OS CINCO SENTIDOS
{veUS}
o tato, portanto, tern a virtude de encerrar, de desenhar urn interior. Na tape~aria que 0 representa, 0 leaD traz, como sotoar, 0 escudo seguro por uma faixa, 0 licorne igualmente, urn macaco esta preso por uma coleira acorrentada a urn rolo, como 0 cachorro, a hiena e 0 mangusto sao contidos a correia curta, 0 outro macaco esta preso por uma cincha, sim, 0 tato rodeia e cinge, como devia ser demonstrado. Nao vamos desprezar 0 rolo: a impressao. 0 rolo imprime sobre 0 mundo exterior, tal como 0 colar impressiona a pele do pesco~o. Perfeitamente dito, perfeitamente demonstrado, perfeitamente escrito. Todas as tape~arias estao caladas, salvo a ultima. A mulher da visao abaixa as palpebras, 0 licorne contempla sua pr6pria imagem no espelho, e 0 leaD volta para n6s seus grandes olhos abertos: visao propriamente animal. A mulher com 0 colar de flores contentase, a distancia, com 0 tato, 0 macaco cheira uma rosa: olfato propriamente bestial. 0 macaco, ele de novo, traz a guloseima na boca enquanto a mulher, distraidamente, com 0 rosto desviado, s6 faz tocar, como que distante, os confeitos da bomboneira: paladar ainda animal, 0 leaD estira a lingua. A jovem da audi~ao toea e nao canta, ouve, forma uma mensagem sob a voz, uma harmonia branca ou livre de qualquer sentido, anterior ao sentido da linguagem. As mulheres componentes, entregues cada qual a urn unico sentido, mantem-se a distancia da lingua, dir-se-ia que deixam suas experiencias a pura animalidade, incapaz de falar. Os sentidos externos partilham 0 mutismo com a flora e a fauna, com alguns objetos. A mulher resultante, tendo construido seu corpo ou erguido a tenda, tern acesso a linguagem que coroa 0 pavilhao fechado-aberto do sentido interno impresso em lingua de fogo. Os sentidos externos, primitivos, estao entregues as folhas e aos ramos, aos coelhos, as gar~as, as raposas, ao jovem licorne sem corno, ainda sem defesa contra os venenos, eles tern 0 status selva gem do tomilho, da cabra ou do azevinho. Balindo, acariciando com a asa 0 ar tenue, cheirando, sentindo gosto, elegantes de formas ou de cores, sem duvida, mas mudos, mudos como os bichos selva gens ou os galhos de arvore. Abertos, entregues ao mundo como uma ilha rasa, ao mar. Cambiantes tambem, porque misturados, cores de matizes indefiniveis, buques comp6sitos, gostos carregados de fragrancias variaveis, tato fremente de sentido. Mergulhados no variavel e na mistura, tatuados. Multiplos tambem, espalhados, dissemina-
51
MICHEL SERRES
dos ou salpicados, nunca unicos. Os sentidos ca6ticos e turbulentos jamais atingem a unicidade, a conserva~ao, nem a identidade. Donde essas tape~arias ornamentadas com todas as coisas do mundo.
o sentido interno fala enfim e pela primeira vez, a tenda imprime-se de linguagens ardentes e coroa-se de escritura. A linguagem advem. o pavilhiio e aberto e fechado, preso ao interior, voltado para 0 exterior, a mulher fica na porta e vira-se para fora, atenta, 0 corpo se da ao dado, e preciso escrever 0 dativo: A. Definida pelo fechamento do espa~o, fechada sobre si, a tenda, urn pouco aberta, descobre-se a si mesma, 0 corpo pode escrever ou dizer: MEU. Meu corpo, minha pertinencia, que faz como que urn drculo e volta sobre si. o pavilhiio, monadario, ergue-se isolado na ilha, fechado, aberto, descobre-se unico, 0 corpo pode dizer ou escrever: sO. A pertinencia solitaria se da a si e ao dado. o corpo, denso e azul, arde de linguas esparsas, vazio como a tenda, abandona suas j6ias e lamenta sua ausencia: DESEJO. Este termo, no final do seculo XV, guardava mais de latim, mais de saudade, do que adquiriu de sentido contemporaneo, de cupidez. Abandono minhas j6ias, as que meu corpo carregava, as que meus corpos parciais exibiam quando viravam odor de rosa, fremito de sons, simulacro de espelho ... Eu as carrego e as fecho no estojo, lamento-as. Tenho a nostalgia de urn mundo perdido, esse paraiso perdido, ilha entre dois mares, onde os sentidos cintilam como urn lago de gemas. Agora eu falo e me abrigo sob a tenda da linguagem ou da escrita, este tabermkulo se fecha, suas bambinelas descem, habito agora a prisao de minha lingua, e 0 cofre se fecha. Isolado sob os veus das linguas de fogo e sob 0 coroamento da cartula escrita, 0 corpo chora 0 mundo que deixou, a mulher lamenta as j6ias que abandonou, a beleza dos cinco sentidos jaz na caixapreta enquanto dormimos sob a pintura azul gravada a fogo. A pertinencia solitaria, dada a si mesma, ja nao se da ao dado a nao ser com a lingua, ao dito ou ao ditado. 52
r\
OS CINCO SENTIDOS
{YeUS}
r UNICAMENTE MEU DESEJO
Eis a primeira frase, a proposi~ao original, primeira, tao original quanta a falta que uma mo~a cometeu outrora na ilha-paraiso, tao original e permanente quanta ela, eis as primeiras palavras advindas do corpo quando se torna ao mesmo tempo interior e falante, envolve-se em chamas e imprime-se ja de signos, quando a pele-tape~aria ou a pele-pavilhao ja nao traz sobre si lilases ou guepardos, mas uma geometria e letras, eis a frase que faz deixar 0 mundo e abandonar os colares, que exclui os coelhos e as cabras e que nos expulsou do paraiso, eis as palavras que fazem os sentidos se isolarem dentro de uma caixa-preta. Jamais desejaremos nada senao sua reabertura. A mulher soma despede-se do mundo, toma 0 veu sob a tenda da linguagem. Eis 0 primeiro cogito, 0 mais entranhado embora mais evidenciado do que 0 cogito de quem pensa. Eu sinto, senti; eu vi, ouvi, saboreei, cheirei; eu toquei; eu toco, fecho-me em meu pavilhao de pele; ele arde de linguas, eu falo; falo de mim, de minha solidao e da saudade dos sentidos perdidos, choro 0 paraiso perdido, lamento a perda daquilo a que me dava ou do que me era dado. Desde que assim esta escrito, eu desejo. E 0 mundo se ausenta. Eis a primeira proposi~ao escrita de maneira redonda, num cfrculo bern fechado, filosofia primeira, identificadora, estavel e unitaria. Meu desejo se identifica ao escrito, s6 existo enquanto lingua. 0 principio de identidade se fecha e fica cego aos sentidos instaveis, multiplos, misturados, escondidos no cofre, invisiveis da tenda. A mo~a, tendo depositado seus arrependimentos, vai-se voltar, vai entrar para sempre no tabernaculo da linguagem. N6s 0 habitamos com ela, des de sempre, nao saimos dele, nao vimos, nao conhecemos nem compreendemos a tape~aria de Cluny. Nao posso dizer nem escrever sabre 0 tato, nem sobre sentido algum. Habito a tenda coroada pela cartula e vestida de lingua gens. Os que se acham dentro da tenda, comigo, demonstram rigorosamente que ninguem jamais pade sair dela. Nao encontrarao, dizem eles, nenhuma linguagem para dizer ou escrever as coisas, tlores, frutos, aves e coelhos, sons ou formas, gostos e adores, para escrever ou dizer 0 mundo antes da emergencia da linguagem. Nao encontrarao mais que uma tape~aria no museu
53
MICHEL SERRES
de Cluny. Estao enclausurados. Eles tern razao. Nao posso escrever nem dizer as cinco tape~arias, pois, se digo ou escrevo, falo apenas da sexta. A lingua original aconteceu, nada podemos fazer. Dizem que 0 chifre do unicornio protege dos venenos. Basta reduzi-lo a po, misturar ou dissolver este po em uma beberagem e ingeri-la, para estar imunizado contra as farmacias nocivas. 0 licorne livra das drogas. Urn dia eu falava para urn auditorio, atentos ele e eu, em urn palanque de conferencia. Stibito, uma vespa me picou no lado interno da coxa, a surpresa somou-se a dor aguda. Nada na voz ou na entona~ao denunciou o acidente, e 0 discurso foi concluido. Esta recorda~ao exata nao pretende alardear uma coragem espartana, mas indicar apenas que 0 corpo falante, a carne plena de linguagem nao tern muita dificuldade em continuar na palavra, aconte~a 0 que acontecer. 0 verbo ocupa e anestesia a carne, ate disseram, escreveram que ele se fazia carne. Nada insensibiliza mais a carne do que a palavra. Se eu estivesse olhando alguma imagem, ouvindo o som saido do positivo, cheirando uma grinalda de flores, provando urn confeito, segurando urn bas tao com a mao fechada, 0 aguilhao da vespa ter-me-ia arrancado gritos. Mas eu falava, em equilibrio dentro de urn suleo ou de urn claustro, no interior da couraya discursiva. Querem drogar profundamente urn paciente? Levem-no a falar com paixao e enfase, pe~am-lhe que fale dele, s6 dele, so do desejo dele. Ei-lo intoxicado de palavras sonoras, a vespa ja nao pode com nele. Palamos para nos drogar, militantes como egotistas.
54
Procuramos a farmacia, 0 animal fabuloso que pode nos libertar da droga mais forte, a linguagem. A tape~aria de Clunyencontrou. o leaD e 0 licorne erguem os veus ou panos da bambinela, a dama sai da prisao das linguas de fogo, retira da caixa-preta de tampa aberta rios de gemas: elas escorrem da caixa como a mulher se liberta, nascente, dos veus. Depois, acompanhada do animal fabuloso, ela visita a ilha-paraiso entre as laranjas e os guepardos, 0 mesmo mundo dos cinco continentes ou aspectos, e participa do banquete das coisas, para a nossa alegria e a dela. Sempre acompanhada do licorne, incluso no nome ... 0 fabuloso jamais a abandon a: historias, poemas, mitologias; para terem acesso as proprias coisas, deixem a lingua flutuar. ,
J
l'
as CINCO SENTIDOS {YeU5}
i
No oficio do tapeceiro os fios da trama passam sob os fios da malha quando a la~adeira corre. Assim, 0 sentido vai se enla~ar ao tecido, como a me!odia, as vezes, a carne sonora, e a profundeza dos pensamentos as vogais. A resplandecencia que as figuras e as cores dao enfim a tela trabaIhada corresponde a mil e!os enos atnls deJa, acontecimentos sob a tela que obscurece ao esconder as raizes do adjetivo sutil. Os segredos da tape~aria se entrela~am por debaixo. Eis 0 segredo do licorne, 0 dos cinco sentidos, sutis. A pele esta pendurada na parede como urn despojo, virem do avesso esse despojo, tocarao as redes nervosas e os nos, toda uma selva dependurada e arrancada, sob urn paine! eletr6nico. Os cinco sentidos se entre!a~am, se amarram, sobre e sob a tela que formam com tecelagem ou nos, tran~as, bolotas, passagens, desniveis, voltas e contornos, corrente ou dormente. A pele compreende, explica, expoe, implica os sentidos, ilha a ilha, sobre 0 fundo; os sentidos estao no tapete, entram na tecelagem, formam a teia assim como sao formados por ela. Eles povoam a pele, passam por baixo dela e, em cima, veem-se flores, bichos animais e ramos de sua tatuagem, olhos que constelam a cauda do pavao; atravessam a epiderme ate os segredos sutis. Revelado a nossos olhos desde a Idade Media, 0 enigma do licorne pode ser lido, sem representa~ao, como 0 segredo da sutileza: 0 dominic tacito do tatil.
VARIA<;Ji.O
o nu de Bonnard, dos cosmeticos, 0 jardim das cern cores mostram telas, peles, aparencias variadas. Consideremos 0 sentido da varia~ao. Variado quer dizer mUitiplo: mil matizes e tons, mil formas ornamentam a tatuagem da mulher e a exuberancia floral do parque. Assim como 0 despojo, 0 farrapo cutaneo de Argos pan-optico depositado, quando e!e morre, na cauda do pavao, salpica-se de oce!os variados: a pavana nao soa monotona, 0 leque de plumas cintila, multicor. Enfim, a ilha sensorial azul como a tela vermelha de fundo rodeia a dama e 0 licorne com flora diversa e fauna variada: sem uniformidade, ao contrario, reinam diversidade, abundancia, prolifera~ao, 0 mimero e a diferen~a. A campina se enfeita de flores e ervas: as touceiras no solo e os fios na tela se justapoem. Diremos primeiro da variedade discreta ou distinta. Os
55
MICHEL SERRES
frutos das laranjeiras estao bern destacados das bolotas do carvalbo e dos bowes de rosas, como as cabras dos leoes. A pele do nu e tatuada de maneira desigual: a mulber corou, quem sabe com 0 odor das rosas, mas, ao mesmo tempo, se emocionou com muitos outros pudores e carlcias. Os tra~os e marcas de todos os sentidos se misturam, diremos a variedade continua, diremos sua pele variavel. A mulher varia a toda hora como 0 ceu e 0 tempo. Ao lade da dama do museu de Cluny, 0 licorne tambem mistura uma barba de cabra, urn corpo de cavalo, estranhos cascos fendidos e urn chifre de narval. A variedade na tape~aria, discreta e continua, nao desagrada a mistura. Nao sabemos se 0 animal da lenda simboliza a mescla dos sentidos ou a mistura que os sentidos nos levam a perceber, mas 0 certo e que 0 monstro, por si mesmo, varia. Assim, a cauda do pavao, sedosa ao tato, parece ver, foi morta pelo ouvido, tres sentidos esparsos sobre 0 leque, misturados. Todo 0 precedente e 0 que vai se seguir e 0 mesmo que varia~ao sobre a ideia de variedade.
56
Nossa pele poderia ser chamada de variedade, no sentido preciso da topologia: frna folba de pregas e pianos, salpicada de acontecimentos e de singularidades, senslvel as vizinhan~as; discreta quando a perfuram, constantemente olbos, pan-6ptica, mas tambem continua quando tatuada, tal como a mulber nua em seu espelbo, na realidade comp6sita como 0 licorne. A fabula, uma vez mais, diz verdade. A mulher total ou 0 corpo concluldo, 0 sentido interne ou comum, a tape~aria soma ou sexta, a pele da tenda final, na especie voces e eu, apresenta-se no fato, na vida corrente, na de voces e na minha, sob a forma de urn conjunto costurado, de urn remendo. As circunstancias da vida, tragicas ou oportunas, encarregam-se do trabalho assim como nossa boa vontade. A variedade da vista alinhavada na variedade do ouvido, cosidas com pontos largos e provisoriamente uma na outra e em cada uma e juntas na do paladar, na do olfato e na do tato, pe~a por pe~a, sem muita ordem, antes da constru~ao definitiva que nunca chega, forma componentes que se veem e brigam as vezes com a variedade resultante ou com a vizinha: nota-se a barba da cabra sob as narinas de urn cavalo, surpreende-nos 0 pesco~o eqUino sob 0 chifre do narval. Eis nossa genese, nossa forma~ao: trabalho apressado, sujeito aos acasos do tempo e aos descuidos de breves ocasioes, as vezes felizes por urn encontro afortunado, construl'ao a~odada, mal amarrada, nossa pele se assemelha a quimera, com fragmentos mais ou menos mal colados, quei-
r
OS CINCO SENTIDOS
{ve"s}
xo adornado de pelos estranhos ou quartelas mal adaptadas aos cascos. Nosso cultivo ou ambiente, a serie de nossos genes reunida ao acaso fazem de n6s mesti,os bizarros, variaveis em urn padrao globalmente estavel. Nosso tempo nao resulta em urn sistema, ele corta e une urn farrapo. Todas as mulheres diferem, diferem a cabra, a egua e 0 narval, todas as mulheres se juntam na mulher da sexta tape,aria, juntam-se a egua, 0 narval e a cabra, 0 licorne faz a devida soma, a mulher veste a pele de bicho. N6s nos vestimos todos de peles fabulosas que parecem esfinges enigmaticas. A pele varia, discreta, continua, mal costurada, eri,ada. Varia, atapetada, historiada, tatuada, lendaria. A constru,ao do corpo pr6prio equivale a fic,ao do licorne.
o que aqui se descobre sobre a pele pode ser dito de modo mais gera!. Ela e apresentada e vivida como uma variedade discreta, em ilhas separadas, mas tambem como uma variedade continua em regi5es ou estados mistos. Ela soma, adiciona essas duas especies de variedades: mistura ou justap5e 0 justaposto ao misturado. Chamamos variavel 0 que dai resulta. Os sentidos variam, 0 que sente e 0 que e sentido variam. Confrontar seus desempenhos com criterios de falso ou verdadeiro parece, portanto, injusto: primeiro e preciso pensar 0 variavel. A variedade cavalo aproximada da variedade cabra e a ela misturada produz urn monstro muito banal que jus!ap5e e mistura os lugares, virnos produtos de tigres e le5es, ligres e tigl5es, assim denominados conforme a especie do macho ou da femea. Reclamamos da manipula,ao genetica. Mas toda genese presta-se a uma tal manipula,ao, todo individuo, todo organismo pode se considerar esfinge OU licorne, quem teria a ousadia de se dizer, nao-mesti,o, rigorosamente? Ali, na ilha azul ou na planicie vermelha, vemos urn coelho, urn guepardo, uma gar,a voando, a identidade que voces lhes dao marca sua ignorancia: cada urn nasce de urn cruzamento, confesso saber muito pouco sobre a variedade dos roedores, das pernal!as ou das panteras, quanta i\ questao da hibrida,ao. A tape,aria, 6 maravilha, s6 exibe cruzamentos, como poderia ser tecida de outra forma? Temos de pensar uma ideia dificil que a identidade faz estremecer. 0 licorne e, nao e, ao mesmo tempo, no mesmo lugar, na mesma rela,ao, cavalo, cabra, narva!' Uma vez mais, 0 mesmo pode ser dito da cabra, do narval e do cavalo. Eu 0 disse da pele, da sensa,ao, variavel e mista, do organismo engendrado ou do pr6prio corpo acabado. Constru,ao heter6-
57
MICHEL SERRES
c1ita, apressadamente colada corn esparadrapo, digo-o tambem de mim. Sou e nao sou isto ou aquilo, aqui e agora, na mesma rela~ao. Quem nao sabe isto, mesti~o de seu pr6prio pensamento? Quem nao pensa isto, hibrido de existencia? Ondulante, diverso, variado? Nao sinto nem sei isto ou aquilo, aqui e agora, na mesma rela~ao. Mas, se devo dize-Io, entao devo senti-Io ou sabe-Io, positivamente. E mais, se 0 afirmo ou escrevo, eu o sinto ou 0 sei ou 0 sou corn certeza. Eu, aquele que sente, licorne: corn 0 corno espetado no meio e tatuado ern todos os lugares, corn a identidade fiuente.
58
De repente, sei por que 0 licorne s6 tern urn chifre. A quimera de corpo diverso, de partes heter6c1itas apressadamente coladas com esparadrapo, remendadas, perde sua identidade pelos rasgoes dos farrapos. Seu afastamento do principio de identidade a obriga ao fabuloso, a imagina~ao e it lenda, ela nao pode caber ern ciencia nem sequer ern lingua. No entanto, sua identidade se realiza nesse lugar impossivel, nessa excrescencia cutAnea que aponta no meio da testa. S6 e licorne ai, e dai leva seu nome. Ern qualquer outro lugar podemos dize-Ia cabra e cavalo. Urn pouco como podemos dizer esquerda ou direita para urn animal ou urn homem comum. Sem uma soldadura, sem uma costura no meio. Sem urn perineo, como dizia Platao, que via ai urn indicio de alinhavo. Ora, uma quimera acusa as costuras, deixa-as demasiadamente a vista. Nesse meio onde a pele se solda, cresce, enorme, a pr6pria pele, urn chifre. Nem esquerda nem direita, nem mesmo direrda ou esqueita, exatamente no centro como o olho de Polifeno. 0 pr6prio conceito de quimera cresce ali, 0 pr6prio sentido de licorne, seu 6rgao impossivel e caracteristico, seu nome. Ai se realiza a mistura que Ihe falta. Ai se realiza 0 sensivel. E, de repente, compreendo por que, segundo a lenda, ao dissolver esse chifre de licorne ern urn liquido e beber essa beberagem, irnunizamo-nos contra os venenos. Para compreender 0 chifre tinico, epreciso compreender a mistura, faze-Ia e bebe-Ia. Os sabios da Real Sociedade de Londres, que, ern sua epoca, beberam, como experiencia, uma solu~ao do cbifre de urn rinoceronte e, por falta de conseqiiencias, concluiram pelo mito ou pela lenda, nao compreenderam que haviam compreendido. A lenda significa simplesmente a mistura, e 0 chifre, a costura. Ern compensa~ao, a mistura sempre e dita s6 pelo mito ou pela lenda, como 0 sensivel.
J
as CINCO SENTIDOS {veUS}
1.
o io
o 1
VEIRO
o principe procura uma rainha. 0 que fazer em urn principado a nito ser descobrir sapato na medida do pe dela? Mandou que tocassem tambor. quer ver todas as mulheres. Veri Ora vamos. urn filho de rei que nao tern discernimento. nao sabe que ver esclarece muito mal? Urn olheiro e de pouca valia. Nao. ele pede que as candidatas experimentem uma sapatinha de veiro. ai comel'a 0 misterio. Urn conto propoe com frequencia dois enigmas. 0 das coisas ditas e 0 da narrativa; 0 que a esfinge. por exemplo. propoe a Edipo e ele resolve. e depois. 0 que 0 mito propoe a quem 0 ouve e que fica muito tempo sem solul'ao. E preciso compreender que 0 nome Edipo significa que ele conhece pe. que ele sabe ou pode resolver tudo 0 que diz respeito ao pe. Assim. a narrativa explica 0 enigma e preve a solul'ao. Da mesma maneira. o principe resolve a questao: a sapatinha de veiro pertence a Cinderela; como reina e tern os meios. seu metodo custa 0 mais caro possivel. ele faz urn levantamento tao completo das mulheres ate estar certo de nao omitir nenhuma. Resta 0 enigma da narrativa: por que a sapatinha e revestida de veiro. por que dizer esta palavra veiro. assim como. ha pouco. dar 0 nome de Edipo ao decifrador do enigma? o que dizer. a principio. de uma sapatinha? De passagem. considerem. por favor. urn livro de filosofia que finalmente coloca questoes serias - 0 que dizer. digo. de uma sapatinha? Ela veste 0 pe docemente. como uma bolsa invaginada. prega reversa. especie de gorro ou dedo de luva. a gente sente a forma. tenda aberta ou fechada. feita pelo tato e para ele. pele sobre pele em lugares onde ela sofre. doentiamente sensitiva. Que chefe. que lider de entendimento afirmaria que a suprema delicadeza dos sentidos reside nos pes? Diria que nada esta em sua cabel'a sem que tenha estado primeiro em seus pes? 0 principe. contudo. comel'a por ai. Tao humilde. Cinderela comel'ou como Cucendron.' Toquem a sapatinha de veiro. acariciem 0 pelo doce. macio. quente. Uma camada alta. rala. de longos pelos grossos. protege uma outra cama3
Cucendron tinha COnot4fQO mais pejorativa do que CendriIlon (Cinderela), ambas palavras
inventadas a partir de cendre (cinza, fuligem), (N. da T.)
59
MICHEL SERRES
da densa de piHos finos e baixos, toda a pele mostra e vela uma igual propriedade dupla. A pele do pe se abriga sob uma pele que se abriga sob uma outra: qu;idrupla, quintupla variedade. Nao acreditem na sapatinha de vidro 4 : rna palavra, privada de sentido, cal~ado pouco adequado a dan~a, s61ido, quebradi<;o, duro, frio, transparente. 0 vidro e visto e se deixa ver, claro e distinto, 0 veiro e tocado e se esconde, macio, nao duro, mole, nao denso, adminivel ao contato e suave, aveludado, acariciante, ao olhar, deixa livre 0 pe que dan<;a. Vejam ainda 0 veiro: de cor pouco homogenea, branco e preto, nao preto e branco distintos ou separados, mas em tons urn tanto misturados, nao cinzento, porem, exatamente petigris, de matizes atenuados, acinzentado. Na lingua da peleteria ou na das peles de brasao, 0 veiro e assim denominado por ter uma cor variada. Mas 0 principe nao descobre, no sentido usual, a pobreza, ele nao desvela Cinderela sob os andrajos ou 0 vestido de baile que deixam ver a espa<;os seu corpo adoravel: os andrajos ja exprimem as maravilhas a nudez ocelada. Nao, 0 principe descobre sua rainha, sentada quase nua no meio das cinzas, quando recobre seu pe com a sapatinha de veiro. 0 reconhecimento e operado no tato, nao na visao, pela estereoespecificidade do que se adapta. A sapatinha vern exatamente ao contato, sem excesso nem falta, na mais justa medida. A pele precede 0 olhar no ato de reconhecimento, 0 veiro supera 0 vidro, trata-se de urn conto de fadas ou de uma epistola sobre os cegos? Ou de uma palavra de amor verdadeiro na caricia reconhecedora?
o veiro designa uma cor variada, uma pele macia e dupla, uma sapatinha que deixa graus de liberdade ao pe para dan<;ar, urn cal<;ado variavel. Uma sapatinha de vidro, constante e rigida, exigiria urn conceito f!lco e rigoroso, valido para urn mundo estavel: justa medida de urn pe que nao cresce, nao anda, nao corre nem valsa. Mais vale uma sapatinha f1exivel para urn rnundo onde os ratos se transforrnarn em lacaios, onde as coisas redemoinham sob a varinha magica da madrinha, onde os cavalos, irreconheciveis, transubstanciam-se em lagartos, para urn ambiente variavel.
60
4 A semelhan~a de pronuncia entre vair (veiro) e verre (vidro), faeil de oeocrer na tradi~ao oral dos contos de fada, pode explicar tal transforma~ao. (N. da T.)
r OS CINCO SENTIDOS
0-
la J, l-
e
. "
)
{WUS}
o mundo, na vizinhan~a da cinza, varia: encantamento onde as ab6boras viram carruagens e, depois da meia-noite, voltam a ser cucurbitas, alquimia que transforma os trapos em crinolinas; a criada vira princesa, milagre. Do lado do senhor principe, as coisas, invariantes, continuam tais como sao; 0 mesmo quanta as outras mulheres, madrastas ou hip6critas, assim seguem 0 baile e a sociedade, ali, justamente, nada muda. Do lado de Cinderela, elas fiutuam, voluveis. A alian~a entre a fada, que as transforma, num instante, e a vltima oprimida nao encontra motiva~ao apenas no ressentimento ou no sonho impotente do perseguido. Aquele ou aquela que e excluido ou maltratado concentra em si 0 poder de metamorfose ou de apoteose, a sociedade 0 considera como pestilento e, de subito, 0 adora como a urn deus. E 0 que se ve comumente desde a aurora da hist6ria. 0 lar ou a madrasta escorra~am a men ina pobre e coberta de cinzas como, outrora, responsabilizayam 0 bode expiat6rio pelas sujeiras e pelos pecados do mundo, esse lar representa a antecamara dos pahicios. Estes dois valores, miseria e gl6ria, opressao e realeza, homiddio e poderio, rocha Tarpeia e Capit6lio, estes dois valores ou posi~oes, vizinhos embora opostos, distinguem comumente todas as hist6rias em que 0 sagrado passeia. Duplo mundo, nao maravilhoso, mas comum, da antropologia, da politica e da religiao, ele e a fonte delas. A vitima e 0 principe s6 se separam com as doze badaladas da meia-noite ou 0 toque da varinha. Mas 0 conto de Perrault quer dizer mais ainda. Tra~a 0 caminho de urn valor a seu dual, do valor cinza ao valor ~Uro, do lar ao palacio, de uma fonte a outra, do lugar onde 0 poder nos oprime ao lugar onde ele nos pertence, escreve 0 caminho da varia~ao. Todo seculo busca entao a mesma rota: a distin~ao entre 0 bern e 0 mal, 0 falso e 0 verdadeiro, 0 claro e 0 escuro, 0 poderoso e 0 misenivel, nunca traz problemas muito temiveis, n6s a fazemos quase naturalmente. Todas as nossas raivas nos levam a ela, todas as nossas violencias nos obrigam a essa divisao, racional, digamos, ou sagrada. Mas 0 caminho de uma dessas posi~6es a outra, mas 0 continuum que as une ou 0 fossa que as separa levantam uma questao bern mais temivel para a qual nao estamos preparados, nem por nossa cultura nem por nossos ressentimentos. Entao todo seculo busca 0 caminho da varia~ao. As coisas variam, voluveis. Surge sempre uma encruzilhada onde a carruagem em que a gente roda fraqueja, de repente, e vira ab6bora, para nosso desconforto, onde 0 ouro, entre os dedos, reduz-se a cinza. No entanto, urn unico objeto, entre essas a'parencias cambiantes, resiste a on-
.
mstituto de Psicologia - UFRGS Biblioteca
61
MICHEL SERRES
62
da de instabilidade, a sapatinha. Soa a meia-noite, 0 luxo nobre desmorona-se na ign6bil banalidade, e 0 cal~ado continua a salvo da transforma~ao. Nao vira tamanco vulgar, como deveria. Vma sapatinha de veiro fica no palacio, refem do principe e testemunha, a outra volta para 0 Ibm: existe uma invariante na varia~ao, uma em cada mundo. Urn chifre de licorne. Lugar da costura, lugar da mistura e do casamento. Nao atentavamos nisso, nem em ver as coisas, nem em ouvir a palavra. As coisas variam, a palavra 0 diz. 0 veiro designa 0 variado ou variavel e, justamente, permanece invariante. Todo 0 segredo do conto esta envolvido ai: 0 pe da bela eleita no cal,ado, assunto de rei, sentido sutil na designa,ao, assunto de ciencia. Toda a velha discussao sobre 0 vidro e 0 veiro, urn transparente e 0 outro, veu, ha muito tempo advertia que ai tinha dente de coelho. 0 vidro quebra, a pele varia. A raiz da palavra veiro reencontra 0 variado que e assunto nosso, a raiz da palavra variado, por seu turno, varus, genuvaro, claudicante, com urn par de sapatinhas desparelhado, e assunto do principe. Ele procurava uma cambota, por ter sabido sempre que elas fazem amor as maravilhas. A caminhada cIaudicante vence 0 impar, 0 passo irregular soa entao variado. Decididamente, nao posso mais abandonar 0 unico pe da Bela Provocadora, elemento estavel ou invariante no quadro tigrado, zebrado, ca6tico e variado do pintor alemao, em Balzac, aqui eu 0 descubro como eIemento invariante e variavel, na coisa e no nome, como no enigma de Edipo. A sapatinha envolve 0 pe na medida do pe. 0 pe designa a unidade da medida. A unidade, bern entendido, na~ deve variar, a sapatinha que envolve na medida exata marca a varia,ao. A sapatinha de veiro, parametro, torna-se a variavel. Ao mesmo tempo em que Perrault escrevia seus contos, Leibniz introduzia nas matematicas e na mesma lingua, francesa e latina, a no,ao de variavel e dava a variedade como criterio da realidade de urn fen6meno. A varia~ao exige que se pense ao mesmo tempo 0 estavel e o instavel, nao 0 instavel puro que nao poderia ser verdadeiramente compreendido, mas 0 invariante na varia,ao. Todo 0 mundo voluvel e referente a medida estavel do pe, todo 0 caminho da mudan,a e percorrido por meio da sapatinha variavel, outra bota de sete leguas. Reencontramos 0 chifre do licorne, grossa excrescencia de pele, sintese do chifre direito e do chifre esquerdo pulverizados e dissolvidos em urn liquido, misturados, misturados em uma beberagem para que num mesmo lugar se situem ao mesmo tempo, sob a mesma reia,ao, a esquerda e a direita, indissoluvelmente, reencontramos a impensavel mistura. No chi-
OS CINCO SENTIDOS {Wus}
lO-
,
la-
r
:ca isleo
,!
I
a. e, i-
"
I
fre impossivel a quimera consegue, enfim, a uniao preparada em toda a sua pele, por alinhavos imprecisos, por justaposi~oes bizarras. Assim a sapatinha de veiro. Flexivel, mas especifica, admissivel para todas as formas, mas ajustavel a uma s6, unica e voluvel, aberta e fechada, ela man tern 0 pe firme, mas permite-Ihe dan~ar, obriga a pensar no mesmo lugar e ao mesmo tempo, sob a mesma rela~ao, 0 estavel e a mudan~a, 0 urn e 0 mUltiplo, a referencia e a varia~ao. Com toda precisao, o veiro designa a variavel. Nas maos do principe, 0 sapato de baile da entrada a princesa insubstituivel, amanha iremos as bodas da rainha: a chave unica s6 abre uma unica porta. Para n6s, mergulhados na narrativa, a palavra veiro da 0 sentido, a chave da lingua: a que relacionar urn sentido variante? A visao sofre com a mistura e sua evidencia. Mais facilmente ela distingue, separa, calcula as distancias; 0 olho sentiria dor com 0 tatoo Ele se protege e se afasta. A pele, flexivel, adapta-se, permanecendo estavel. :Ii preciso concebe-Ia como variedade, como a sapatinha de veiro. Ela prende e compreende, implica e explica, tende para 0 liquido e para 0 fluido, aproxima a mistura.
BRUMAS
I
l
Gosto de viver na obscuridade, no sentido material como no moralo homem de visao nao goza de liberdade - , eu me exercito em ver no escuro. Geralmente a luz parece grosseira, agressiva, algumas vezes cruel; espera a noite, regozija-te com os crepusculos, acende a liImpada raramente, deixa vir 0 escuro . A noite brilha como urn diamante negro, reluz por dentro. 0 conjunto do corpo ve a vizinhan~a pr6xima das coisas, a presen~a delas carregada de noite, sua tranquilidade. Toda luminosidade viva as expulsa dessa paz, tira a minha. Meu corpo de sombra sabe avaliar as sombras, desliza entre elas, entre 0 silencio de1as, dir-se-ia que as conhece. Elas exaltam a mais fina aten~ao, reve1am mesmo a finura, a pele toda vive. A luz negra e tao rara que quase tudo e feito sem 0 menor acrescimo de luminosidade, ate caminhar por uma estrada em curvas, sem a lua. A planta do pe come~a a saber mais, os ombros ro~am os galhos, a pedra do c6rrego brilha serenamente. Podemos fazer quase tudo sem luz, salvo
63
MICHEL SERRES
escrever. Escrever requer luzes. Viver se satisfaz com penumbras, ler exige a claridade.
I I,
I
64
A noite nao anestesia a pele, ela exalta sua fmura. 0 corpo se eleva ao bus car 0 rumo em meio as trevas, ama as pequenas percepyoes, em graus baixos: apelos tenues, imperceptiveis matizes, efluvios raros, prefere-os a tudo 0 que estardalha. Aquele que vagueia no silencio e na sombra ajuda 0 corpo a encontrar exercicios caidos ha milenios no esquecimento e no desuso. As proteses tecnicas datam de urn momento tao recente da historia que nossos ossos humilhados se entusiasmam quando voltam a desempenhar seu papel imemorial. Nossos tendoes e musculos, nossa roupa cutanea cantam de alegria quando jogamos fora nossas pernas de pau, liimpadas ou automoveis, muletas sensoriais Oll motoras. Nossas tecnicas geralmente custam uma ortopedia para urn membro sao, que, tao logo substituido ou alongado, como diz a teoria, cai doente ou impotente. Conservemos 0 que nos engrandece e desprezemos 0 que nos diminui. Mas 0 mundo so oferece a noite ou a escuridao para enganar a habilidade do atento. Se a obscuridade nos envolve, ela nao ataca a pele como faz a bruma. A angustia em que 0 nevoeiro nos mergulha nao vern da cegueira apenas, mas do que ele provoca, por estratos, nos brayos, nos ombros, coxas, ventre e dorso. Ele sobe. 0 que significa velar, como e que urn veu recobre as coisas? A escuridao acorda os membros, eles correm, por si, em socorro dos olhos, intensamente presentes quando a visao se vela. Vela-se? A bruma adormece 0 corpo, impregna-o, anestesia-o, a pele perde a liberdade de socorrer 0 olhar hesitante. 0 nevoeiro tira nossos olhos de socorro, ele nos enfaixa ou nos encouraya. A bruma multiplica os veus, nunca vimos 0 veu da noite. As trevas deixam invariante 0 grande triedro bastante estavel que nos percorre e nos orienta, esquerda-direita e em cima-embaixo, man tern a distribuiyao das grandes massas em torno. Deixam transparecer 0 pouco de luz que resta, e sempre resta alguma. A bruma tira os marcos e as relayoes que nossa pele man tern com os volumes vizinhos. E preciso ter atravessado urn banco tao denso que perdemos 0 proximo que 0 cotovelo, no entanto, rOya, para perceber que al perdemos a confianya ate nos instrumentos mais seguros. fa vimos aeronaves sairem das nuvens de cabeya para baixo ou navios que se perdem sob as ordens desarrazoadas partidas do oficial de serviyo afogado em nevoeiro. Ele tira a potencia da pele, sua extensao e seu dominio, invade os lugares canto a canto ou 0 espayo ponto
\
j
,
OS CINCO SENT/DOS {Wus}
I i
o s
a )
a ponto, adere, cola nas superficies planas ou revers as, preenche as pregas. Escuridao global, bruma local. A noite subitamente se arroja a grande distancia e deixa 0 volume vazio, a bruma sobe e insinua-se e propaga-se lentamente de lugar a lugar, preenchendo ou contornando as vizinhanyas. Noite vazia ou oca, nevoeiro cheio; trevas aereas, bruma gasosa, fluida, liquida, viscosa, pegajosa, quase s6lida. A obscuridade concerne ao espayo optico e mantem urn volume euclidiana; a escuridao, como a claridade, permanece na ordem da geometria usual; 0 nevoeiro ocupa variedades topol6gicas, concerne ao espayo continuo ou tirado do tato, invade 0 vicinal por pedayos. Acumula-se, denso, compacto, rarefaz-se, leve, evapora como urn vapor. Assim a escurida:o conserva os trayos do mundo, a bruma os transforma continuamente por homeomorfismos, de perder distancias, medidas e identidades. A gente conserva a certeza tactil de estar situado entre 0 comandante e 0 vigia, no passadiyo aberto saturado de nevoeiro espesso, vizinhos fantasmas, como dizemos membros fantasmas, mas perde 0 sentido da grandeza, a forma dos perfis deles, os nossos pes como os corpos deles evaporam-se a distancias incalculaveis. 0 escuridao deixa tudo invariante, a bruma torna tudo variavel- continuamente e com ou sem rupturas A Grecia seca ainda e 0 reino dos ge6metras, nascidos la, sob uma luz sufocante ou numa noite bastante vazia para que possam acreditar que e s6 erguer urn veu para que a verda de, resplandecente, apareya. A optica, tambem, comeya nesses lugares. 0 Atlantico, umido, tern ban cos de bruma altos como falesias, de bojo amarelado, assim como 0 mar Baltico e outros do Norte. A topologia nunca teria surgido na Sicilia nem na J6nia, onde tudo e conhecido em distancia e medida; e preciso ultrapassar as colunas que fecham 0 Mediterraneo para se conceber alguma ideia dela, entre os mares onde as distancias banhadas em vaga neblina nunca dao certeza de estarem submetidas as mesmas leis da proximidade, ela pr6pria deformavel. Os veus sao incontaveis ali. A pele cola-se a uma mancha perfida, a urn retalho irregular, tela ou veu seguidos de mil outros diferentes, todo 0 ambiente perde sua invariancia, sua confiabilidade, sua fidelidade. Falo de sensayao, de cultura e de ciimcia, de mosofia. Ao preencher aleatoriamente 0 espayo, a bruma se assemelha ao mesmo tempo a uma midia e a objetos, aquilo que cobre e aquilo que e coberto. A noite nao trai, nem 0 escuro: uma coisa permanece uma coisa, velada ou nao, visivel ou nao, em todo caso acessivel ao tatoo 0 nevoeiro trai, mobilia todo 0 ambiente de coisas possiveis, objetos ou vapo-
65
MICHEL SERRES
res, nao nos decidimos. A noite inquieta a fenomenologia, a bruma perturba a ontologia. A escuridao confirma a distin~ao entre 0 ser e as aparencias, a bruma a confunde. Coisa ou veu, ser ou nao-ser, eis a questao.
o SENTlDO COMUM
66
A sensibilidade, alerta aberta a todas as mensagens, ocupa mais a pele que 0 olho, a boca ou a orelha ... Os 6rgaos dos sentidos acontecem al quando ela se faz doce e fina, ultra-receptiva. Em alguns lugares, em locais determinados, ela se rarefaz ate a transparencia, abre-se, estende-se ate a vibra~ao, torna-se oihar, ouvido, olfato, paladar... Os 6rgaos dos sentidos variam estranhamente a pele, ela pr6pria variavel fundamental, sensorium commune: sentido comum a todos os sentidos, que serve de elo, ponte, passagem entre eles, plano banal, parede-meia, coletiva, partilhada. Trazemos na pele singularidades feitas de pele, dobradas, desenhadas, oceladas, graos, espinhas, umbigos, inflorescencias como espigas, complexas. 0 tecido plano ou reverso forma ilhas, bainhas, nervuras, plissados, franzidos, bufantes, enfeiles costurados. A pele forma a tela de fun do, 0 continuo, 0 suporte dos sentidos, seu denominador comum, cada sentido, proveniente dela, exprime-a intensamente it maneira e na qualidade de cada urn. Inversamente, ela recebe todos os sentidos juntos, planicie de suas montanhas. Urn pouco mais transparentes, urn pouco mais vibrantes, mais concentrados, mais agu~ados, mais altos em altitude ou em performance, os sentidos sao mais especializados do que ela, e, em conseqUencia, mais grosseiros. A pele irradia seu feixe, revela sua densidade, desabrocha, expoe as coisas que os sentidos poem em urn lugar centralizado, dilui e dissolve. A planicie e feita das areias que rolam de cada montanha, 0 leilo dos rios, como 0 rosto, e feito da erosao das Iagrimas e das rugas do riso. Nosso amplo e longo inv61ucro variavel ouve muito, vI' pouco, asp ira secretamente os perfumes, estremece sempre, ao ruldo, it luminosidade forte, ao fedor, recua de pavor, retrai-se ou exulta. Freme diante do branco e das notas altas, desliza suave, a qualquer caricia. As coisas nos banham dos pes it cabe~a, a luz, a escuridao, os c1amores, 0 silencio, as fragrancias, toda sorte de ondas impregnam, inundam a pele. Nao estamos embarcados a dez pes de profundidade, mas mergulhados.
r r
IrIS,
OS CINCO SENTIDOS
{Viius}
A sensibilidade refinada - normal- ama as rnensagens densas, mas prefere as raras, alimenta-se vigorosamente em quantidade, mas deleita-se nos lugares de onde ela se retira e deixa apenas tra~os: qualidade, 0 doce come~o, quase 0 sinal. Assim perduram na pele graus tenues de visivel ou de audivel, os claros-escuros e os sussurros; nela permanecem 0 invisivel do visivel, os inaudiveis da musica, a surda caricia da brisa leve, os imperceptiveis, como restos ou marcas das altas energias duras. A suavidade do sensual povoa a pele.
e i
Decido aqui, por outro lado, que os 6rgaos sexuais, reconheciveis na pele, terciarios como 0 Angulo do cotovelo, secundarios como 0 ornamento piloso ou a tessitura das vozes, primarias, inominaveis pela ignominia das palavras corriqueiras ou eruditas, sao os 6rgaos dos sentidos, singularidades na planicie comum, sitios notaveis, pregas, costuras, bowes, bainhas ou bowes, montes e fossas, fontes que irrigam toda a paisagem, como qualquer outra. Emitem e recebem, reconhecem e variam. Certamente nao tenho qualifica~ao, competencia nem saber de especia!ista para decidir assim. Mas lamento, como urn homem decente, que hoje se fale dolorosamente da vida amorosa, no discurso que se presume erudito e tambem no linguajar usual, apenas pelo cana! da patologia. Seria de pensar que e urn drama, uma fatalidade ou urn sofrimento. Assim nomeado, 0 sexo indica a doen~a da separa~ao, da sec~ao. 0 esgar patHico ou patogenico desaparece quando os sentidos, reunidos nos sentidos, formam, de fato, juntos, singularidades da pele-variedade. Ela generaliza a caricia amorosa em emo~ao, divulga sutilmente 0 desejo, dilui a escuta ou o olhar ate os tra~os raros. Traz marcas de uns e os sinais dos outros. A energia e a informa~ao de uns como de outros. Os odores encantam 0 amor que 0 champanhe exalta, 0 amor brilha no meio dos cinco sentidos e torna feliz a soma de todos eles. Ele nao conhece nenhuma zona separada, nenhuma especialidade.
o alcool incha, queima e usa a epiderme, deixa-a espessa e endurecida, da aos que se drogam dele uma aparencia de paquidermes pesados: homem-elefante ou mulher-mamute que rolam sob anestesia. Vinda do Norte, a palavra francesa blaser descreve primeiro essa coura~a insensivel: mestre Blazius, douto estupido pra burro, discursa muito e bebe fresco, tornou-se indiferente i\ custa de palavras e vinhos rnediocres. 0 ret6rico blase [caleja 1sua pele.
67
MICHEL SERRES
No ano de 1692, no decorrer do mes de julho, Leibniz publica no Journal des Savants uma breve conjectura, boa e rna, falsa e verdadeira, enfim, bastante profunda, sobre a origem da palavra blazon [brasao1e blaser, que significa, tanto em celta antigo como em saxao, uma marca. Ou, entao, 0 que marca urn sinal. 0 autor cita 0 escandinavo e 0 islandes, as linguas populares e 0 jargao, grego ou ingles. Supomos hoje que blason e blaserviriam juntas do neerlandes estufar. 0 nobre usa 0 escudo e 0 ign6bi! exibe a pan~a de pele gasta, estufada de alcool ou de importancia, quando nao de ambos. Mas por que separar os dois val ores: brasao e pele endurecida se confundem: especie de calo. Leibniz aproxima ainda 0 frances blesser do ingles bless, em ambos os casos, marcar com urn sinal, infamante, doloroso ou aben~oado e benefico, dois valores para quem 0 recebe, marcado por urn sinete benfazejo ou mortal, as vezes pelos dois, ao mesmo tempo. 0 grego blaise significa genuvalgo, 0 inverso de genuvaro: 0 que tern oS pes voltados para fora. Pobre Blaise, marcado tambem pelos pes. Leibniz vai mais longe e afirma que pertencem ao mesmo grupo 0 bleus e 0 blanc franceses, 0 blot ingles e o blitz alemao. Mancha, cores, raio cicatrizando 0 ceu. o barao e 0 alco6latra, aben~oado, ferido, 0 mestre e 0 escravo, rei ou vitima, designados pela gl6ria ou pelo sacrificio, tabu, tatu, trazem 0 sinal, marcados pelo sinete. Mas por que extremar os valoresl Todos trazem de fato uma marca e urn nome, tatuados. Claro, e preciso compreender que a lingua do brasao codifica uma tatuagem previa. A principio, 0 escudo ou a coura~ eram de peles. Mas tambem, parece-me, codifica~ao previa, ate mesmo previo ferimento, voluntario ou ben~ao, imposi~ao do nome escrito ou dito, a tatuagem singular de cada urn como primeiro sinal, a marca e 0 nome. Verruga, sardas, ruivo, cicatriz, pinta. Nascemos com 0 que a lingua grosseira chama muito justamente de nosso blase". Impresso na pele. 0 apelido pode vir das sobreimpress6es que nossa hist6ria inflige. Mas e preciso compreender mais ainda: existe uma obscura rela~ao entre a denomina~ao - marca, sinal, escarifica~ao, escritura do nome proprio sobre 0 pergaminho pele - e a anestesia. A sarapintura voltivel exprime, pela mistura, 0 tempo e a historia variaveis, esquece a identida-
68
5 A lingua portuguesa conservou blau. forma antiga de bleu, para designar a cor azul dos bras6es. ou na linguagem poetica. (N. da T). 6 Tromba. oariz. [acinho, cara. (N. da To)
r as CINCO SENTIDOS
10
a, /-
I,
.s e
{WUS}
de. Se a fixarmos com urn sinal estavel, invariante, identificador, constante, fechado, entao seremos biases a tudo 0 que nos cerca. E preciso sentir ou nomear-se, escolham. A linguagem ou a pele, estesia ou anestesia. A lingua endurece os sentidos. o pernostico latinizador e argumentador, barrigudo em sua burrice, droga-se de vinho e de be!as palavras. Quartas impressoes e tempo eu perdi marcando sobre a pe!e de pape! tanta escritura codificada em uma especie de henildica? 0 chamalote instavel de estrias misturadas sobre a pe!e daria melhor pagina. Nao tenho codigo para ele, nem estilo, tento urn decalque. Sera que meu avo queria fazer de mim urn escritor quando ralhava: "Nao roa as unhas, meu filho, como vai arranhar, delicadamente, suas namoradinhas?" Pe!es de hipop6tamos ou de rinocerontes, leucoma, prote~ao de guerreiros encoura~ados impacientes por se lan~arem nus nas batalhas, peles de quitina do doryphore, 0 besouro rajado com as armas sagitais, peles de soldados ou de drogados, 0 que sabem das coisas e dos outros? Peles sem portas nem janelas, cotas de malha, blindagem, 0 que sentem? o que sentem, em carapa~as de tecnicas e de f6rmulas, protegidos por uma linguagem exata, rigorosa? Nao, a guerra nao e a mae de todas as coisas. A batalha nao produz nada, a nao ser novas batalhas, donde sua fecundidade nula. Sim, a dialetica se engana. Nao errada no todo, com alguns sucessos de quando em quando, como exce~ao ou antiexemplo, mas sempre errada, invariavelmente, matematicamente errada. Pe~o que me mostrem uma unica coisa produzida em e por urn conflito, uma unica, e me converto; que apontem uma inven~ao induzida pela disputa. Dou meus bens e meu tempo a quem quer que me fa~a ver al urn unico sucesso. Como a batalha 56 produz a batalha, a dialetica se reduz ao princlpio de identidade, it repeti~ao, a informa~ao nula. A dialetica fez imenso sucesso. Como e posslvel que urn erro tao grosseiro tenha invadido nao somente a reflexao filosofica, mas tambem a educa~ao? Quem entre 0 publico poe hoje em duvida essa ideia recebida da virtude da batalha, quem entre os anunciantes publicitarios ignora que a palavra luta fascina? A gera~ao jovem mamou a ideia da disputa junto com o leite e chega a idade adulta pronta a destruir tudo pela cren~a na beleza
69
MICHEL SERRES
das guerra que nao viveu. E quando ultrapassar essa idade e esses infortlinios vai se achar velha, como a gera,ao que me precede, chorando 0 estrago de vidas perdidas. Teni esperado demais para ver 0 erro da dialetica. Nada se constroi, nem se faz, nem se inventa, senao na paz relativa, em urn pequeno reduto de paz local rara, mantido no meio da devasta,ao universal produzida pela guerra perpetua. A dialetica deve seu sucesso apenas ao amor apaixonado dos hominian os pela briga. Eles se regozijam com 0 morticinio e a destrui,ao, falam nisso apaixonadamente, arrojam-se unicamente a esses espetaculos. A maioria nao sabe construir nem inventar nem produzir uma coisa ou uma ideia. Quer ganhar, quer lutar. Na escolha entre a obra e a batalha, contam-se os que hesitam, todos correm ao abatedouro, confundindo tolamente energia e agressividade. Adoram, pois, qualquer teo ria que lhes assegure que a obra vern da batalha. Ainda que nunca a vejam comprovada. Ainda que toda obra so nas,a de uma ilha improvavel de silencio e de paz. Eu os chamo hominianos tanto essa conduta parece ados primatas desengon,ados em suas rela,oes, drogados, corpos e bens, de domina,ao, que passam ou perdem 0 tempo garantindo que urn ocupe 0 primeiro lugar, outro, 0 subcomando, e assim por diante, ate 0 nivel mais baixo na escala social. Os hominianos brigam para continuar primatas. Equilibrio imovel na cissura animal. A guerra e a mae dos bichos. A batalha produz a sociedade dos macacos, que produz a batalha. 0 conflito estabiliza em nos a arcaica bestialidade. A dialetica descreve a logica dos antrop6ides. 0 homem nasce quando percebe 0 erro dela. Eo que acontece ao muito idoso, se sobreviveu a lutas, ou,am-no, 0 velho combatente que derrama suas lagrimas, que dificilmente se conforma com a vida perdida, que lamenta seu antigo furor de gorila de pele grossa. o combate, politico ou erudito, de lingua gem e de corpo, a maos nuas ou armadas, individual, coletivo e, portanto, a hierarquia, 0 poder e a g16ria contam-se entre as drogas mais fortes cuja dialetica denota a quimica ou a farmacia. Essas drogas dao aos homens uma pele descomunal, como faz 0 alcool. Escamosa, esclerosada, rigida, insensivel. Blasee. Evitem as lutas que se passam por trabalho, evitem as obras-batalhas, evitem as drogas, salvem a pele. Fa,am-na fina, atenta as coisas e aos outros, para 0 nascimento da obra e do homem.
70
Dotados, munidos de uma pele fremente que os aflige, para a briga dos caranguejos. Parece que a vida evoluiu de formas animais em que 0 mole fica no interior, coberto por urn exterior duro, para outras, como a nossa,
as CINCO SENTIDOS
1-
.1
I ¥eus }
onde 0 duro se interioriza. osso. cartilagem. esqueleto. enquanto 0 mole se expressa. carnes. mucosas e pele. Os que gostam de lutar datam de uma era muito antiga. do tempo das carapayas. restos mal evoluidos. Os novos. entre n6s. suavizam-se porta-rugas: porta-impress6es. Somos revestidos de uma cera mole. quente. espelho opaco. superficie reversa. riscada. pontilhada. diversa. onde se reflete urn pouco 0 universo. onde ele escreve. onde 0 tempo traya sua passagem; revestidos de tabulas de cera. velha imagem da alma. vestidos de nossa inteligencia. de nossa mem6ria. marcados. diferentemente do mundo. por uma rede de longitudes e de latitudes. curvas de nivel que dizem nossa longevidade. nossa magnanimidade. nossa amplitude de visao. nossas larguezas. A pele recebe 0 dep6sito das lembranyas. estoque de nossas experiencias ali impressas. banco de nossas impress6es. geodesicas de nossas fragilidades. Nao procurem fora. nem dentro da mem6ria: a pele e toda gravada. tanto quanto a superflcie do cerebro. toda escrita tambem. talvez da mesma maneira. Belezas da Asia. finuras do mundo. onde colocaram suas relembranyas. voces cuja pele incansavel. virgem de tais marcas. conserva 0 frescor por tanto tempo? Todo mundo parece acreditar que 0 ponto de vista. que 0 ponto da vista. sobe no balao. olho aberto no alto do tronco na cabeya girat6ria e m6vel como uma lanterna de farol. A pele seria equivalente a alvenaria do farol. sua construyao. neutra quanto aos fogos e aos sinais. sinlples elevayao que garante 0 alcance do olhar. 0 guardiao do farol equivaleria a pupilao ou ao que garantiria seu movimento. suponho que 0 encarregado do conceito. no cerebro ou no entendimento central. comandaria. como 0 engenheiro chefe dos Far6is e Balizas. de seu escrit6rio. em Paris. Saido da Politecnica. sabio. quando tern tempo. faz algumas visitas nipidas ao mar que seu serviyo ilumina. A importancia ocupa 0 centro. Para 0 resto. basta telefonar: emitir ou receber mensagens. fazer a linguagem circular. A alma desliza ao longo da construyao. na superficie da torre. e talvez o conhecimento tambem. Uma maciez se oferece ao exterior. como a pele nua it agua do mar. maciez bastante forte para resistir as circunstancias ou ir procuni-las audaciosamente nos acasos do mundo. mas forya bastante fina para perceber os apelos discretos. maciez dura e sensitiva. equilibrio delicado. fora de prumo algumas vezes. entre 0 deleitavel e 0 doloroso; nao aprendemos nada verdadeiramente a nao ser 0 que marca esta cera mole.
71
MICHEL SERRES
quente, suficientemente fria para que 0 tra~o perdure, adaptativa ate a morte nao incluida; para escrever, prefiro ler em minha pele de esfolado do que copiar os pergaminhos da biblioteca, daqui em diante tenho mais confian~a nesta memoria que nos bancos de dados, urn autor responde por si. Escrevo em minha pele e nao na de outros que respondessem por mim, como Bonnard pintou na dele e a expos sem pejo. Decifro minhas rugas, gravuras do tempo, escritas a estilo; a alma freqiienta este couro coberto de inscri~oes. Parece-me que 0 cerebro concentra localmente esse lugar de conhecimento. 0 eu pensante freme ao longo da espinha, penso em toda parte. Se cada urn expusesse, como os pintores, seus despojos, suas mudas, se imitasse 0 escritor e a exibi~ao de seus pergaminhos, escarificados, cada qual com seu labaro, sua mortalha, seu sudario, veriamos urn bela espetaculo. Rugas, cicatrizes, panos curtidos, olhos-de-perdiz ou psoriases, trabalho, dor, memoria, perversoes secretas tatuam a pele e a modelam ainda mais que a cor nativa, a mesti~agem refinada ou a exposi~ao ao sol das praias, onde ninguem esta nu vestido com seu bronzeado, tenue veu i\ espera dos canceres. Molambos marcados, esburacados, carregados de relevos, afixados na cimalha, confissoes lamentaveis, ou estigmas do trabalho. 0 que somos nos alem desses fantasmas? Eis como erram as almas nos limbos e nas livrarias.
72
Urn dos ultimos pensadores de lingua francesa, Henri Bergson, deixou a seus seguidores muitas quest6es a serem resolvidas, entre elas a das variedades. Com os matematicos de seu tempo, ele distingue as variedades discretas: flores justapostas dos campos, animais dispersos nas ilhas, e as variedades continuas: paleta do pintor, jardim-paraiso, sapatinha de veiro, matizes de pudor ou de emo~ao na pele. Situa os primeiros no espa~o e os segundos, no tempo; ordena 0 espa~o quanta i\ inteligencia, 0 tempo quanta 11 intui~ao; classifica a inteligencia na ciencia e a intui~ao na fIlosofia. Essa coloca~ao discreta leva sua inteligencia a se dividir. Podemos imaginar que tenha deixado a questao do tempo para seus seguidores. Antes de tratar 0 assunto demoradamente, devemos voltar a seus pressupostos: a distin~ao entre as duas familias de variedades. A topologia, entretanto, nao parou de explorar os espa~os e neles deixou a continuidade. A unica falta fIlos6fica, cometida de inicio, incide justamente sobre eles: acreditouse por muito tempo que 0 espa~o euclidiano ou metrico, este que conside-
OS CINCO SENTIDOS
jo
tis Ie )r
{Vius}
ramos como usual e cotidiano, constitula 0 unico imaginavel. De fato, depois da tese de Bergson, as geometrias e com elas os espac;os proliferaram, nao vemos por que 0 continuo lhes seria incompativel, porque seria preciso classifica-lo no tempo. Ja nao podemos fazer confusao entre 0 espac;o geometrico e a geometria, entre 0 espac;o e a descontinuidade.
IS
o
A sutileza passa sob a tela. Uma figura aparece na frente, por tras, uma tloresta de n6s a condiciona. Dir-se-ia, entao, algurn elemento de computador. A tapec;aria da !dade Media mostra os cinco sentidos, pensarnos ter fabricado a inteligencia artificial. No mesmo sentido, a Dama e 0 licorne tece urn sensorium artificial sutil. A sutileza embaralha a trama e a rede, uma em cima da outra ou embaixo, igual em cima ou em embaixo. Os arabescos apontam uma situac;ao anaioga, mais sutil ainda. Podemos colocar uma terceira lac;ada entre os dois fios, por onde passa-la? Por cima, por baixo, pelo lado, 0 que significa esse lado? A justaposic;ao, na variedade discreta, supoe a distancia entre elementos ou graos. Esse distanciamento que separa e distingue duas tlores vizinhas, ou dois animais, ou mesmo dois fios, esse afastamento, por menor que seja, permite intercalar urn terceiro elemento ou grao entre os dois primeiros. Tal possibilidade lanc;a ou inicia uma sequencia que reproduz a velha questao do terceiro homem, e que ninguem sabe se e quando termina. Ei-la: entre 0 grao primeiro ou segundo e 0 terceiro, podemos intercalar urn quarto ou urn quinto? Imaginamos 0 encadeamento da serie e sua lei simples. Antes de ir as coisas infinitas ou pedir socorro ao tempo para poder pensar a acumulaC;ao densa, convem voltar a situaC;ao de inserc;ao ou de meio. Com efeito, 0 terceiro, em qualquer escalao da serie, est.! situado no meio dos dois precedentes. Esta situaC;ao intercalar depende de muitos requisitos. Onde colocar 0 terceiro grao, entre os dois ou no meio deles? Vamos colocar urn fio ou urn plano entre os dois elementos? Que inclinaC;ao daremos a esse plano? Vamos pensar simplesrnente um espac;o entre eles? Podemos, a partir dal, alinhar sobre esse fio uma serie fin ita ou infinita de novos graos, ou com eles preencher pouco a pouco 0 referido plano, ou saturar 0 referido espac;o etc. Em outras palavras: a situac;ao "entre" descreve uma sequencia alinhada sobre um segmento reto que separa os graos, ou povoa os espac;os onde ambos estao inseridos. Mais
73
MICHEL SERRES
precisamente: esta situa~ao desenvolve tambem, e sobretudo, uma grande multiplicidade ou variedade de caminhos ou de vias que atravessam esse flo ou esse espa~o. De fato, em cada nivel que se recoloque a questao, a escolha da situa~ao intercalar do novo grao pode ocorrer em uma dimensao diferente. Todas as mulheres sabem disso, as costureiras, as flandeiras, as tricoteiras ou tecelas: ora em cima, ora embaixo etc. Nenhum dos caminhos assim obtidos segue reto, nenhum permanece na mesma dimensao, todos se retorcem, tortos. Como muitos cord6es e al~as sao enrolados ai, surge urn arabesco inextricavel. De modo que a metrica se desfaz e sua rigidez, tao freqiientemente confundida com 0 rigor, e a separa~ao se diferencia da distancia, e logo 0 mimero de caminhos cresce inexoravelmente, e as vias se entrela~am. 0 corpo munido de suas centenas de graus de liberdade vivia folgadamente, vive sempre esta situa~ao antes que a topologia volte a nos ensina-Ia ou nos ensine uma rigidez diferente da de urn boneco de pau. Quem nao ve de imediato que ai se forma urn n6 no sentido corrente: desde que se apresente urn espa~o-entre. Pois ele se apresenta tanto no discreto como na continuidade e mais no primeiro que no segundo. Entao, 0 separado fara urn n6 melhor que 0 insepanlvel? A distin~ao entre as variedades continuas e as variedades discretas ja nao parece tao nitida. Seriam reduzidas, todas, ao gesto juvenil de Alexandre, 0 Grande, ao cortar 0 n6 g6rdio com 0 sabre para garantir 0 imperio da Asia? Toda separa~ao esquece 0 n6 ou os arabescos que estao entre as coisas separadas. Depois de Alexandre, esquecemos a Eurasia. A falta de sutileza impede-nos ver a fioresta de n6s sob a tela ou por baixo da tape~aria, deslumbrados pela representa~ao de inteligencia. Com certeza 0 tapete mostra uma especie de mosaico discreto, mas, para analisa-Io verdadeiramente, seria preciso desfazer, por detnis, com a mao, os flos entrela~ados. Que trabalho, certamente necessario, para desembara~ar essa mistura! Antes que 0 inflnito ou 0 tempo separem 0 descontinuo do continuo, 0 n6 os amarra. A pratica e 0 conceito de conexao impoem-se na frente de muitos outros.
74
A situa~ao aqui descrita ainda eingenua. Trata-se apenas de graos e de flos. Faz-se urgente generaliza-Ia. Onde e como introduzir urn flo entre dois flos, por onde passar, por qual espa~o? E preciso ir de dimensao a dimensao para compreender melhor. Onde e como introduzir uma folha
OS CINCO SENTIDOS {Wus}
lde 'sse "a ~n-
as, li:0,
Ii, la > -, e
1
entre duas paginas, por onde passar, por qual espayo? Urn n6 traya urn caminho para uma dimensao dentro de uma variedade em tres dimensoes para conectar elementos em uma, em duas, em zero ou em tres dimensoes. b preciso imaginar dobraduras, invaginayoes, situayoes extraordinariamente complexas que generalizam a pnltica e a notyao de n6 em todas as dimensoes imaginaveis. o conjunto dos elementos situados entre dois outros pode seguir 0 segmento rete que os separa, suas distancias no sentido metrico, pode preencher todo 0 espayo onde os dois elementos estao imersos, mas descreve, mais freqiientemente, urn caminho sutil e flexivel, cordao, anel, festao tortuosos, que parte de urn, erra em todas as dimensoes antes de encontrar 0 outro. 0 numero de tais caminhos cresce quanta quisermos. Nos dois primeiros casos, descrevemos a situayao do meio - ponto situado a igual distancia de dois outros ou conjunto global que circunda ou rodeia estes Ultimos - , nos terceiros, 0 estado de uma mistura. Eis a situayao espacial ou conceptual do n6. 0 n6, e claro, compreendido em todas as dimensoes imaginaveis: urn tecido lisa ou franzido tambern pode atravessar, grayas a urn labio aberto, uma outra tela, e assim por diante. Essa situayao marca os limites da analise. Em uma variedade discreta, a triagem sempre parece possivel, a paciencia basta, Nao levamos em conta a situayao pr6pria dos graos ou elementos discretos, dos caminhos complexos que a descrevem. Demasiado sutis, demasiado leves, imperceptiveis. Na variedade continua esses caminhos ganharam forya. Bergson pedia que esperassem 0 ayucar derreter na agua. Ele nunca pediu que esperassem a separayao da mistura assim formada. Os leitores teriam de esperar ate 0 final dos tempos. A mistura nao e analisada facilmente. b preciso trabalho, calor, luz, mil informayoes. Se eu quiser beber essa agua, sou obrigado a beber 0 ayucar tambem, se quiser 0 ayucar, preciso engolir a agua, se quiser urn componente, tenho de passar pelo resultante assim como pelos outros componentes. 0 continuo e inanalisavel em algum momento, a mistura tambem. Diriamos que 0 ayucar e a agua estao atados por urn n6 que nem sempre podemos desatar. Todo mundo sabe que 0 termo analise reproduz urn verbo grego que significa justamente desatar. Analisar exige que se desfaya urn n6. Mas acreditamos que analisar s6 exige urn corte: a faca do cozinheiro trincha os tendoes, os nervos os musculos, 0 analista se contenta em separar os ossos. Como se os ossos bastassem para 0 animal viver. Na variedade discreta, a vista que divisa, a visao
75
MICHEL SERRES
da divisao, e cega para os nos frouxos, tenues, que unem as situa~6es especificas, como se determinada situa~ao em determinada distAncia angular em rela~ao aos outros elementos nao importasse de modo algum. Os elementos de urn puzzle em uma caixa nao dizem nada do desenho visivel apos a especifica reuniao das pe~as. De certa maneira, 0 analista tern sempre uma faca, imita sempre 0 jovem Alexandre e nao conhece os elos. So existem variedades atadas ou ligadas por elos aracnoideos ou espessos, moles ou duros, nos que 0 analista desfaz com facilmente ou com dificuldade. A mistura designa melhor que 0 meio essa situa~ao. E 0 veu melhor que 0 solido. E a pele melhor que a visao. E 0 corpo melhor que sua lingua. o tecido pregueia-se, franze-se, dobra-se sobre si, ata-se it vontade. A pele se enruga, se adapta, reina entre os orgaos, contem os caminhos complexos que os ligam; mais que 0 meio dos orgaos dos sentidos, a pele os mistura como uma paleta. A tatuagem da mulher nua no espelho e semelhante it paleta de Bonnard. o organismo forma urn gigantesco no em quantas dimens6es quisermos. Come~a, em estado de embriao, por urn ou varios foihetos, pregueados, plissados, enrolados, invaginados, a embriologia parece uma topologia aplicada, dir-se-ia uma pele infinitamente enrugada. 0 organismo enche-se de trevos locais que acabam fazendo urn trevo global, no gigante de pequenos nos diferenciais. o corpo dobra-se, curva-se, adapta-se, gozando de pelo menos trezentos graus de liberdade, desenha dos pes 11 cabe~a ou it ponta dos dedos urn caminho variavel e complexo entre as coisas do mundo, cambiante como uma alga no fundo da agua, mil e urn caminhos de circula~ao ou de semaforo. Conhecer as coisas exige que nos coloquemos primeiro entre elas. Nao apenas em frente para ve-Ias, mas no meio de sua mistura, nos caminhos que as unem, a dama do licorne segura firmemente na mao direita 0 bastao azul salpicado de crescentes e, na mao esquerda, 0 tinico como do animal, 0 tato esta situado entre, a pele realiza nossas circula~6es, o corpo desenha 0 caminho atado, ligado, pregueado, complexo, entre as coisas a serem conhecidas.
I
Ii
76
OS CINCO SENTIDOS {Wus}
lelar
MISTURA, DESVELAMENTO
le-
A pele e uma variedade de contingencia: nela, por ela, com ela tocamse 0 mundo e 0 meu corpo, 0 que sente e 0 que e sentido, ela define sua borda comum. Contingencia quer dizer tangencia comum: mundo e corpo cortam-se nela, acariciam-se nela. Nao gosto de dizer meio como 0 lugar onde meu corpo habita, prefiro dizer que as coisas se misturam ao mundo que se mistura a mim. A pele intervem em varias coisas do mundo e faz que se misturem. Mistura diz melhor que meio. 0 meio, geometrico demais, e apenas uti!: centro em urn volume, quando se reduz a uma interse~ao, ou 0 pr6prio volume, quando tende para 0 ambiente. Ponto ou totalidade, singular ou quase universal. Conceito contradit6rio e sem fiexibilidade. Tudo tern seu lugar no meio quando 0 meio se con centra, tudo se en contra e se ata nesse lugar complexo, nesse n6 por onde tudo passa, como num trevo rodoviario. Imagino 0 plexo solar de urn canhoto contrariado, do ambidestro a for~a. Tudo tambem tern seu lugar no meio quando ele se amplia em volume, tudo se encontra aL Como? Em contingencia. Onde? Nas vizinhan~as. No momenta certo, eis a mistura. Confiuencia, desdobramento, ocupa~ao dos lugares. Meio, abstrato, denso, homogeneo, quase estavel, concentra-se; mistura em fiutua~ao. Meio faz parte da geometria s6lida, como se dizia antigamente; mistura favorece a fusao e vira fluido. Meio separa, mistura, abranda: 0 meio faz as classes, e a mistura, os mesti~os.
'el ~-
u u
o l
Tudo se encontra na contingencia, como se tudo tivesse pele. A contingencia e tangencia de duas ou muitas variedades, mostra a vizinhan~a. A agua e 0 ar se avizinham de uma camada espessa ou delgada de evapora~ao, 0 ar e a agua se tocam em urn leito de bruma. A terra e a agua se casam na argi!a e na lama, juntam-se num leito de barro. A frente fria e a frente quente deslizam uma por cima da outra sobre urn colchao de turbulencias. Veus de vizinhan~a, camadas, peliculas, membranas, pia cas. Vivemos sobre esteiras rolantes, a milhares de metros abaixo de nossos pes, lentos e teimosos. A teo ria do conhecimento esta subordinada a essas coisas, quero dizer, a esses exemplos. Teoria ou intui~ao ficam na ordem da visao, chegou-se a dizer, e com rigor, que elas ficavam no s6lido. Ha muito tempo caminho
77
MICHEL SERRES
na dire~ao do fluido, encontrei as turbulencias, antes, e as misturas, recentemente. Para pensar a fusao sem confusao. Logo chegarei it liquidez, dificil de pensar, 0 futuro esta ai, entao chegarei aos corpos misturados. Procuro, enquanto isso, 0 modelo que se impoe, na teoria do conhecimento, menos s61ido que 0 s6lido, quase tao fluido quanto 0 liquido, duro e macio, eis 0 tecido. A pele, mais topologia que geometria, dispensa medida. A top alogia e t
78
Vma tradi~ao pretende que a verdade seja urn desvelamento. Vma coisa, urn conjunto de coisas cobertas por urn veu, a ser descoberta. A fIlosofia equivaleria a uma variedade urn pouco entediante de ilusionismo ou de prestidigita~ao se fosse reduzida a esse exerdcio. A ciencia perderia em complexidade se se tratasse apenas de descoberta. 0 que parece pueril. Nao, a coisa nao fica sob veu, nem a mulher dan~a sob seus sete veus, a pr6pria dan~arina e que urn complexo de tecidos. A nudez revela ainda pregas e repregas. Arlequim nunca chegara a seu ultimo traje, despe-se infinitamente. Continua sempre ocelos e tatuagens. o estado das coisas embaralhacse, misturado como urn fio, urn longo cabo, uma meada. As conexoes nem sempre tern desenlaces. Quem destrinchara essa embaralhada? imaginemos 0 fio da rede ou a linha da meada ou do entrela~amento em mUltiplas dimensoes, imaginemos esse arabesco como 0 tra~o em urn plano do estado que descrevi. 0 estado das coisas me parece uma multiplicidade cruzada por veus, cujo entreia~a mento figura uma proje~ao. 0 estado das coisas se encrespa, se frisa, encolhido, perpassado de folhos e babados, de franjas, de malhas, de la~adas. Desvelar nao consiste em remover urn obstaculo, retirar uma decora~ao, afastar uma cobertura, sob os quais habita a coisa nua, mas seguir pacientemente, com uma respeitosa habilidade, a delicada disposi~ao dos veus, as zonas, os espa~os vizinhos, a pro fundi dade de sua acumuia~ao, 0
I
OS CINCO SENTIDOS
n-
{Viius}
ff-
talvegue de suas costuras, para abri-los quando for possivel, como uma cauda de pavao ou uma saia de rendas.
i-
o estado das coisas teria por modelo esse meio ou essa mistura, ima-
'0
gimivel, ou intuivel, ou sensivel como urn amontoado de tecidos, mil possiveis disposi~oes de veus. Sensivel 11 vista como uma aurora boreal, para quem se acha em roupas de baixo vaporosas, infladas, incandescentes, drapeadas, leves, frageis dessa luz d'alva; tangivel como a topologia das superficies, com seus acontecimentos e circunstancias; audivel como vagas, ondas, len~os de cambraia que flutuam no ar; sapido, com certeza, sinto minha lingua revestirse de urn farrapo meticuloso quando degusto; 0 estado das coisas e0 meio dos senti dos, melhor, sua mistura. A pele, tambem veu, os mistura.
I
o tecelao, a fiandeira, Penelope ou nao, pareciam-me antigamente como prirneiros geometras, porque sua arte ou artesanato sonda ou explora 0 espa~o com n6s, vizinhan~as e continuidades, sem qualquer interven~ao da medida, porque suas manipula~oes tateis antecipam a topologia. 0 pedreiro ou 0 agrimensor ultrapassam os geometras no estrito sentido da metrica, mas aquela ou aquele que tece ou fia precede-os na arte, na ideia, quem sabe na hist6ria. Poi preciso que nos vestissemos antes de lutar, que nos vestissemos mole antes de construir duro. Generalizando essa hip6tese, diriamos que 0 tecido, 0 textil, 0 estofo dao excelentes modelos de conhecimento, excelentes objetos quase abstratos, primeiras variedades: 0 mundo e urn amontoados de panos. A mulher, pelo conhecimento, estava ha muito tempo 11 frente do macho. Mulher nua de Bonnard, deusa com a ave, mo~a com 0 licorne ou pobretona de sapatinhas. A mao corre no fuso, no oficio, em torno das agulhas, cria 0 fio, torce0, passa-o, dobra-o, enla~a-o, a mao e rapida nas jun~6es e nas amarra~oes, e encontra de pronto a passagem no avesso que olho nao ve, passeia atraves da translucidez do vidro, nivela os graos esparsos ao acaso, pontiagudos que s6 ela sabe escolher, tra~a na planura aneis ou debruns, feliz entre esses arabescos e guirlandas, a mao dan~a, usufruindo desses graus de lib erda de.
79
1 MICHEL SERRES
o tato, topol6gico, prepara os pIanos e as variedades lisas para urn olhar metrico, euc!idiano e pregui~oso, a pele cobre com urn veu 0 que 0 olho nao pode ver. 0 velho problema de Molyneux - pergunta-se se urn cego de nascen~a que acaba de ser operado saberia reconhecer, com sua visao nova, urn cubo e uma esfera que sabia distinguir com os dedos levanta uma questao mais da geometria das perspicacias que da teo ria do conhecimento. Por que nao experimentaram com urn rouxinol ou urn ramo de liIas, com uma esmeralda ou uma saia de veludo, que existem, em vez de volumes abstratos, que nao existem? Quem ja viu a1guma vez urn cubo ou uma esfera? Nunca os concebemos a nao ser na lingua. Que deem ao cego uma bola e urn tijolo e ele sabera apreciar pelo tate as deforma~oes contlnuas, as rupturas e as singularidades, perguntara logo se voces conhecem pela visao a diferen~a entre uma bola e uma esfera, entre urn cubo e urn paralelepipedo. Ele rira delicadamente do fracasso de voces. Quem sabe que escrever exige a mais fina habilidade nervosa e muscular? Nenhuma outra manipu!a~ao requer termina~oes tao numerosas e pequenas. Quem sabe fazer isto poderia fazer tudo com seus dez dedos, urn povo que aprende este refinamento aprende logo os oficios manuais possiveis, os mais grosseiros ou mais faceis, quem 0 inventou abriu para a humanidade a via desse possivel, inteiramente pratica. Mas, inversamente, a bordadeira, a costureira, a fiandeira, mesmo 0 cirurgiao que opera sob microsc6pio ainda enla~am as costuras com conexoes largas, comparadas aos n6s tao finos ou aos caminhos tao contornados da escritura, eles poem as maos nas coisas duras, enquanto quem escreve ja as mergulha no signo suave. Liame tao desligado que nao esta preso a nada, n6 tao tenue que ja passa a urn segundo dominio. o puro tato abre para a informa~ao, correlato doce do que antigamente era chamado de 0 intelecto.
I :1
I !
80
m o 11 la
o 1
CAlXAS
Instituto d~ Psicologia - UFRGS __ Bib\iot(:C
CURA EM EPIDAURO Sozinho, esta manha, apoiado numa arquibancada, saboreio 0 sol, ha duas horas, no teatro de Epidauro. No solstfcio de inverno, 0 enxame de turistas, nova guerra, da tnigua. Paz no ar transparente, amare!o e azul. Silencio. A paisagem espera os deuses, espera-os M dois mil anos. SiJencio. Os deuses vao descer, a cura advira. As condiyoes Mcitas da exata acustica banham a imensa orelha, ponto de interrogayao, vislvel de aviao, no eixo do ceu. Escuto, aguardo, no silencio denso. Ate os insetos, presentes em toda parte no mutismo do verao, dormem. 0 mundo diafano ameniza 0 ruldo turbulento do corpo. Vern a saude, 0 silencio dos 6rgaos. Caio doente quando os 6rgaos sao ouvidos. Silencio no grande teatro, na capital da cura. Ja nao se ouve 0 corpo, atirado aos deuses no pavilhao da imensa orelha. Quando 0 organismo nao esta calado, que voz ele faz ouvir? Nem voz, nem linguagem: a cenestesia emite ou recebe milhares de mensagens, comodidade, prazer, dor, malestar, satisfayao, tensao, descontrayao, ruldos sob a voz ou no berreiro. 0 dado do corpo interno geme ou canta sem a lingua. Asclepio leva 0 sono dessas mensagens e sua lenta elisao. A salda do ruido cura, mais que 0 mergulho na linguagem. o silencio no teatro e nas moitas ao redor entra na pele, banha e penetra, vibra, vazio, na cavidade da orelha nula. Dou ao mundo urn lamento baixo, ele me concede sua imensa paz. Horror. Eis urn grupo. Esta chegando, OUyO-O de longe. Projeta a distancia 0 lixo do ruldo. Antes de ve-Io, do alto, sair do tune! de galhos verdes, ele fere meus ouvidos, perturbou a transparencia do ar. Duas, dez ou quarenta pessoas envoltas em uma casca de lingua e num segundo inv6lu-
83
MICHEL SERRES
cro de rumor que as precedem, ladeiam e seguem como a proa, os bordos e a popa de urn barco volumoso. 0 mar vibra em torno da nave, atulhada. o navio chega. Orquestra. Falam, berram, discutem, exciamam, admiram alto, chamam, confabulam, mostram-se, demonstram, descrevem leem 0 guia, ouvem, distraidos, as explica~oes, experimentam cern vezes a acustica precisa do lugar. Estrondo na grande orelha social. Foram-se os deuses, a cura, 0 acordo entre os orgaos e as coisas, amedrontados ante essa explosao. 0 grupo, tendo esgotado seus recursos de gritos, passa, deixa atnis de si a longa popa de Iinguagem a se arrastar ainda, e 0 sulco de ruido, ainda a vibrar no ar conturbado, 0 tra~o, por seu tumo, enfraquece, extingue-se, a sujeira desaparece, 0 silencio Iiso volta como urn pud~r ferido. o que viram e1es, realmente? Ouviram: gritos, palavras, ecos. Certamente pouco viram, uma vez que as cameras viram por e1es; mas 0 que escutaram que ja nao soubessem por sua lingua-memoria? Vieram a Epidauro? Chegaram doentes, incomodados pelo murmurio dos 6rgaos, rodeados de seu ruido coletivo, foram embora berrando no barco, sem terem feito escala. Se tivessem falado, gritado, dialogado assim, em Boston ou em Aix-la-ChapeUe, teriam feito a mesma viagem, quase, na chuva e na neve. Sozinho na arquibancada, depois de duas horas de silencio, recebo do mundo seus deuses pouco a pouco; imerso na nave social, teria recebido de meu grupo somente fragmentos de lingua. 0 grupo carrega suas despedidas nas bolsas, nas fitas do walk man. Em suas seitas e bibliotecas.
84
o silencio volta como urn pud~r. Lentamente. Os imortais hesitam em descer sobre urn lugar tao facilmente enxovalhado. Os deuses passam, leves, tenues, vizinhos da inexistencia, espiritos volateis, a menor ruga no ar os expulsa. Fugiram ha muito tempo de nosso mundo tonitruante. o coletivo so acredita em seu ruido. De habitar esse barco e viajar sem dele sair, acredita que 0 dado do mundo comec;a no casco da Iinguagem, rigorosamente no tremular da agua, ao redor. Que 0 dado do mundo e produzido no esgoelamento. Im6vel, ao sol, na arquibancada, mergulhado na transparencia amarela e azul, aprendo lentamente que 0 dado sobrevern como a gra~a. Espirito voiatil, leveza deslizante no ar Iimpido. Os deuses se encontram de repente no fundo do bosque, epreciso espera-Ios ali, como urn pequeno cervo timido e amedrontado, com uma longa paciencia: muitas vezes pensei virar estatua, flXa, na imobilidade e na espera. Escuto. 0 dado chega docemente Ii minha volta. Escuto. A orelha cresce nas dimensoes do anfiteatro, pavilhao de marmore. Ouvido encostado
OS CINCO SENTI DOS {
os ~a.
m
o i-
s, e 1
Caixas }
na terra, num eixo vertical, que tenta ouvir a harmonia do mundo. Aguarda os passaros que vern do vento.
o anfiteatro nao significa urn espa~o onde se fala, mas urn lugar onde muitos veem. Uma palavra sagrada faz calar a assembleia; nem sempre uma palavra, urn gesto silencioso pode bastar para torna-Ia tacita, uma mimica, uma especie de rito, e 0 silencio desce no ouvido coletivo enquanto 0 feixe de olhares se fixa. Paz dos 6rgaos fascinados: cura. A musica pode bastar, a orquestra, no oco da orelha, toma a forma de escuta e de expectativa, a assistencia sara ao ouvir seu pr6prio acorde, observa-o em silencio na imensa orelha de marmore, ouve seu contrato social. o ator, tribuno, professor, esc uta com paixao 0 intenso silencio, explora-Ihe 0 volume, aprecia-Ihe a qualidade, avalia sua amplitude. A amplitude de sua palavra e sua musicalidade produzem-se nesta e por esta calma de ca tedral. Epreciso come~ar. Urn pequeno elemento, signo, gesto, atitude, basta, detonador da paz. Quem fala no centro canta essa tranqtiilidade. Descreve-a, mas a produz. Claro, ele a faz, mas a recebe. Cria drculo, como 0 fazem boca e orelha para 0 corpo individual, e esse retorno dclico constr6i 0 pr6prio teatro, sua forma e seu arcabou~o. A eloqiiencia s6 e produzida pelo silencio e 0 aperfei~oa, a palavra tern a qualidade da calma, a amplitude de seu volume, a calma tern a qualidade da eloqtiencia, e 0 contrato social reconhece 0 silencio pelo silencio que atravessa esse dito. A assistencia ouve a si mesma e se reconhece por entre uma palavra emanada de seu pr6prio silencio. 0 dito pode se anular entre os dois grandes blocos carregados de calma e de paz, sua causa e sua conseqiiencia; que 0 dito se cale, entao os deuses descem. A palavra catalisa, semeia 0 acordo silencioso, de onde podemos retira-Ia. Mas 0 coletivo, rapidamente, esconde sua harmonia na pulveriza~ao ca6tica do ruido, em seus aplausos. Entre as palmas das maos, os deuses sao esmigalhados em peda~os diminutos. o drculo teatral do gesto, do dito, do silencio, raro, fecha-se por ocasiao das solenidades. Nesse ritual, 0 grupo nao e tao encerrado quanto costuma ser aprisionado em seu barulho e sua gritaria. Vocifera~6es que fazem fugir as andorinhas. 0 rouxinol canta para demarcar seu ninho e guardar 0 terreno, assim tambem, com nossas tecnicas tonais, ocupamos e
85
MICHEL SERRES
esvaziamos 0 universo. A terra outrora, pelo mar.
e tragada pelo barulho como a catedral,
Para que venha a cada urn a timidez do dado, fugidio, nao bastam a paciencia e a espera, seria preciso uma distancia. Podemos medir 0 afastamento do coletivo a partir do qual existem observaveis? Podemos quebrar o circulo do teatro, abrir uma porta no casco do navio, fugir a influencia do rastro, quando 0 universo inteiro ressoa nosso furor? 0 fechamento no grupo con dena a linguagem solitaria, pois mesmo 0 silencio social a produz. 0 fechamento na linguagem impede ver que seu ruido ofusc a e perturba as coisas do mundo e faz que saiam voando. o mundo, pesado, mas leve, da medo, mas se assusta; impoe-se, mas intimida-se, desconfiado; necessario, mas fragil. Os eremitas conheceram essa distancia alem da qual e possivel escutar o dado fugidio. Os anacoretas, os sabios retirados a procuraram. Nao s6 os que amam Deus ou a verdade, mas os simples atentos: os ca~adores tambern observam 0 silencio para deixar que Ihes venham os observaveis. Banhar-se de silencio equivale a curar-se; a solidao liberta 0 silencio do imperio da linguagem. Se 0 mundo se encher de barulho, em breve, quem pesquisara? A lingua produziu a ciencia, a ciencia tornou possivel mil tecnicas que fazem barulho bastante para que afinal possamos dizer que 0 mundo clama com lingua. A linguagem fez muito para ter razao afinal. Procuro urn abrigo fora dessa razao: durante 0 solsticio de inverno, em Epidauro, fora da esta~ao.
o dado s6 e dado alem desse primeiro limite: e preciso viver s6. Se
86
voces se reunirem em nome da pesquisa, toda a pesquisa escapani. Nessa assembleia pousara 0 verbo, a aten~ao ira embora. A verdadeira torre de marfim nao circunda 0 solitario, encerra a reuniao. 0 grupo se fecha em urn muro compacto de lingua. Ninguem pode prestar aten~ao a outra coisa senao as palavras. Nunca toquei esse marfim com as maos quando pesquisava, sozinho; vejo-o, toco-o, ou~o-o, ele me sufoca quando 0 coletivo me rodeia; esse muro duro, liso, intransponivel e construido com a lingua do coletivo. Os grupos se fecham como prisoes por tras de sua linguagem de pau, de vento, de marfim. Sozinho, fora, banhado de ar amarelo e azul, silencioso, dou oportu-
OS CINCO SENTI DOS {
~al,
1a
:aar ia lO )'-
s
Caixas}
nidade ao dado expulso pelo ruido coletivo, aos sentidos que a linguagem anestesia. 0 grupo se entrega aos clamores, compraz-se com suas exclama~6es, pouco percebe do exterior, dir-se-ia urn corpo doente que faz soar 0 rumor de seus 6rgaos. Se urn dia ele flZesse siiencio, que saude nao recobraria? 0 silencio sadio dos 6rgaos serve apenas para urn corpo individual? Se eu viesse a Epidauro para uma cura, em grupo, nao me curaria. Em seu barco barulhento de comunica~ao, 0 coletivo mais se embriaga que adoece, enfarado de lfngua, drogado de barulho, por falta de estetica, anestesiado. Cada qual faz e refaz, noite e dia, os mesmos drculos das mesmas rela~6es com as mesmas pessoas pelos mesmos canais com as mesmas palavras, nao consegue nao fazer, como se tivesse de reconstruir urn pano de parede incessantemente demolido, de tecer de novo uma tape~aria que sera desfeita durante a noite. Alucinado, anestesiado para as coisas. Nao vivo diferente desse homem drogado. Devotado 11 linguagem: ela anestesia os cinco sentidos, todos os grupos em que vivo precisam ou vivem dela. Eis a cura que pe~o ao deus Esculapio, nesta manha de inverno: silencio nos 6rgaos, harmonizados, claro, com 0 silencio exterior, mas sobretudo 0 silencio da lfngua em mim. Minha primeira cura, sem duvida diffcil, de desintoxica~ao. Quem constr6i uma estetica roga para que suas anestesias vaoembora. Sozinho no imenso anfiteatro, sob 0 intenso sol azul, quero me purificar ao contrario de meus ancestrais: libertar-me de meus ruidos espurios nas ruinas da tragedia. Condi~ao
necessaria, mas nao suficiente, sen tar ao sol de inverno, atento durante algumas horas, distante da assembIeia, numa arquibancada de marmore, em silencio, em Epidauro. A condi~ao suficiente para que o mundo se de ao corpo curado, para que 0 dado, gracioso, venha se sentar ab lado dele, para que observaveis aflorem, deve exigir mais, com certeza. 0 dado pode se dar alem do primeiro limiar, solidao e silencio, s6 se da seguramente alem de urn segundo limiar: posso medir sua distancia e marcar seu lugar? Podemos sair de nossa lfngua? o deus que espero e inesperado; se ele vier, YOU reconhece-lo? De Esculapio curandeiro nilo espero mais que urn nome ou uma imagem, designa~6es e descri~6es, ja 0 conhe~o demais, ele nao vai me curar. S6crates, na hora da morte, desejou sacrificar-lhe urn galo para quitar a divida de sua cura. "Criton, devemos urn galo a Esculapio, nao se esque-
87
MICHEL SERRES
~a
de pagar a divida:' Seu corpo ja estava meio gelado, quando ele descobriu 0 rosto para dizer essas palavras, as Ultimas. Ele se acreditava perto da cura. A morte faz 0 objetivo e 0 fim da cura, sera preciso morrer em Epidauro? S6crates desejou morrer, ele jaz, ali, em seu leito, frio, libertado. Quanto Ihe deviam pesar a vida e 0 carpo para pedir ao deus que 0 curasse dos dois! Silencio definitivo de sua boca e de seus 6rgaos. Ele pensava sem deixar de ser feio. Pode-se realmente pensar sem chegar it beleza, sem tocar 0 segredo onde freme a vida, sem que 0 corpo se transfigure? A partir de uma certa idade, urn pensador fala por seu rosto, seu saber e seu pensamento falam por seu corpo. S6crates horrendo: que confissao! Seu corpo ficou nodoso, que emblema de 6dio! A deformidade desse homem revela sua frlosofia doente. Ele amou a morte, tanto a desejou. Vejam como ele a exibe, entendam a tragedia: quantos se regozijam diante desse cadaver de gnomo em representa~ao, no centro, na orquestra, entre os lamentos e os prantos; dialogo sublime, tocadoras de fiauta, entrada dos familiares desolados, ta~a bebida ate a borra, solu~os, aplausos. Ele nao soube morrer s6, fez todo urn caso do momento mais banal. obrigat6rio. 0 mais solene. privado. da vida breve. Vinte e cinco seculos de frlosofia chorona e queixosa diante desse feioso em exibi~ao; a que deus monstruoso e imundo ele se da em sacrificio? A que deus horrendo. exigente de 6dio. morte e feiura. deve ele sua apoteose. devemos escuta-Io no centro do teatro de frlosofia? o que fazem seus amigos. ali. a ouvi-Io dizer enquanto agoniza; distraem-no fazendo que fale da alma. anestesiam-no da dor e do medo? Esse dialogo equivale a uma droga. cicuta narc6tica? Narc6tico para narciso? 0 que devo fazer com essa morte e essas palavras se me quero curar? Virar fIl6sofo. depois dessa agonia no pequeno teatro celular de Atenas. consiste em vir ocupar lugar no circulo necromantico. de pe. sentado. apoiado em uma arquibancada. fascinado por esse corpo sacrificado. agora decomposto. a comer S6crates morto e sempre a evoca-Io bebendo continuadamente seu narc6tico.
88
Ate 0 instante da morte. ele nao parou de falar. Mesmo num momento tao solene e privado. nao conseguiu parar de falar. S6crates decidiu nao abandonar a prisao de ferro e de pedra. nao pode escapar. nem urn pouco. da fortaleza falastrona. nao deixou a gaiola de marfim constituida das Leis e de seu grupo de pressao. nao pode deixar 0 verbo. nem conseguiu esquecer seu diaJogo e sua lingua. mosca que bate no vidro da resposta e rebate
OS CINCO SENTIDOS { Caixas }
.-.a n
••
no muro da pergunta; a prisao vibra de ruido ate a agonia, tudo acaba com o sacrificio do galo, palavras, gritos outra vez, quando 0 corpo esta meio gelado. De que doen~a a morte de Socrates, aparentemente sacrificado as Leis, curou seus amigos, de que doen~a pol~mica? Da arquibancada em que me apoio desde esta manha, eu os vejo e ou~o, mais eficazmente trancados em seu dialogo que pela prisao, presos em sua lingua. Distraido, ainda M pouco, pela espera dos deuses ou pela escuta do sil~ncio, nao reconheci 0 grupo que veio experimentar, gritando e vociferando, a acustica precisa do lugar, vejo agora 0 grupo de Socrates, em ensaio M mais de dois mil anos. Urn imitou 0 grito do galo para que repercutisse demoradamente no imenso anfiteatro, os outros riram. 0 mais velho deitou-se, fatigado, no centro do timpano, os amigos todos debru~ados sobre ele. Sil~ncio. Urn momento de emo~ao passa, onde a tragedia, no intenso lugar solitario, furtivamente, volta. Riram outra vez. Partiram curados? Veja, diz Criton, se nao tern mais nada a dizer. Criton debru~a-se sobre Socrates e the diz: veja. Veja 0 que the falta dizer. Mas 0 olhar de Socrates continuou fixo. Vendo isto, Criton fecha-Ihe a boca e os olhos. o olhar ja nao v~ 0 que falta dizer, fixo: prova que de Mbito ele v~ 0 que deve ser dito. Nunca v~ galo nem gralha, v~ que falta dizer galo, e enunciar gralha, palavras ou categorias, ausentes dos quintais. 0 olhar morto esvazia-se nao de luz, de imagens, de coisas, nao de cores, de formas, de matizes, mas de linguagem. Criton v~ que Socrates nao v~ mais, v~ com os olhos nos olhos do mestre que nao the resta nada a dizer. Vendo isto, fecha-Ihe a boca e os olhos. Os olhos, quer dizer, a boca. Ver quer dizer saber, e saber reduz-se a dizer; ver ou viver e viver ou dizer. Nao resta nada a dizer, e 0 olhar se fixa: nada a ver fora do dizivel, nao M nada fora do dizivel. Quando fazes sil~ncio, nao v~s mais nada, resta morrer. o que v~s, embriagado de verbo? Vejo teu olhar fixe e vazio. Que 0 olhar esteja fixo nao prova absolutamente a morte. Esse ai deve ter tornado algum narcotico: esgazeado, anestesiado, embriagado, sob efeito de droga, tern 0 olhar estupidificado dos alucinados. Ouvi, lembro-me, filosofos dialogarem, berrarem, disputarem ao pe de belas montanhas, em praias oceanicas, diante das cataratas do Niagara, tinham os olhos fixos dos que descobriram como dizer, sou testemunha de que nao viram nem a neve da geleira, nem 0 mar, que nao ouviram 0 estron-
89
MICHEL SERRES
do da cascata: eles argumentavam. Nao salram da prisao das leis, amea~a vam-se uns aos outros de penas carcenirias, se urn ganhar pela for~a, mata o outro. Mais afortunados ainda se ele s6 matar 0 outro. Gente perigosa. Temo menos os que vivem drogados do que os que se submetem it lingua. Entregamo-nos ao dito. 0 ingles diz bern: addicted. Estirado no diva, S6crates fala de alma, associa a alma e a lingua, a palavra e a cura. No meio desses amigos, no centro do teatro, ele fala it morte da alma imortal e associa a morte e a cura. Sem 0 menor intersticio, de porta, de janela, por onde escapar, nem urn minimo instante entre a morte e a palavra, nem a menor brecha entre discursar e morrer, sem a menor abertura por onde deixar 0 grupo, sufocamento atras dos muros, estrangulamento no pelourinho triangular da lingua coletiva, da morte e da cura. A boca falou, bebeu, provou a cicuta amarga. 0 que, a1em da palavra, passa pela boca mata ou embriaga. Sinistra sapiencia que s6 degusta a ta~a de morte, amarga sabedoria que nos assombra ha dois mil e quinhentos anos. Criton, Fedon, Cebes, Simias, Echecrate, S6crates: falam, berram, discutem, exclamam, admiram em altas vozes, chamam-se, aconselham-se, exibem-se, demons tram, descrevem urn mundo que nao veem, invisivel, intangivel, incolor, inodoro, destituido de sabor, prometem-se dias meIhores em Hades, a prisao da palavra s6 se abre para 0 inferno ou 0 ceu ideal. 0 her6i se deita no meio da orquestra, a lingua fremente, semigelado pelo efeito da ta~a farmaceutica, acorrem para perguntar se ele ve, se ainda ve alguma coisa a dizer. S6crates no teatro morre no ruido, insensivel. Ele bebeu a f6rmula. Em pleno gozo de minhas faculdades, esta manha, minha vontade nitida e clara determina que se fa~a silencio na hora da minha morte, nao quero droga alguma, nem de farmacia nem de lingua. Quero ouvir quem chega.
90
Vivo, quem sou eu agora, afastado do grupo em fiiria e de seu mal de concorrencia, quem sou eu sentado, im6vel, ao sol, ha mais de duas horas, na arquibancada de marmore do teatro de Epidauro, dando-me ao aT transparente onde passam as gralhas, quem sou eu, solidamente constitui· do de linguas, vivas, mortas, francesa e grega, formado de cultura, que vim pelo prestigio das palavras Epidauro e Esculapio, prometedores de cura, estatua fascinada pelo grupo reduzido a seu modelo oval ou redondo, a seu esbo~o de representa~ao, 0 grande anfiteatro? Por mais longe que eu viaje, este mau sujeito fica a distancia nula do rumor da lingua que 0
OS CINCO SENTIDOS { Caixas }
raIta sa.
ala a, a "-
I,
I
modelou. 0 que ressoava no seio materno clama na concha de pedra e encontra eco em minha orelha mais intima. 0 limiar que imaginei continua intransponivel, sou constituido dos outros que pretendo ter abandonado, em mim, solitario, em meu peito eles fazem 0 mesmo ruido, remanescem. Posso deixar este sujeito drogado para esperar os observaveis? Devo manter-me a distancia de mim. E isto se chama ~xtase. Esfor~o-me para me desdobrar. Como se ficasse ali, nesse banco de marmore, urn cadaver formado de lingua de ponta a ponta, S6crates morto, mem6ria que ganha 0 espa~o da cabe~a e do corpo, das paixoes e dos pensamentos, urn sujeito de olhar fixo e vazio, de olho sempre imobilizado nas categorias, ceu ou inferno, como se lan~asse fora dessa mem6ria integral uma escuta atenta, branca e oca, puro desejo e doa~ao, em desvio de equilibrio em rela~ao ao sujeito de lingua. Quem fala sempre sofre: drogado, anestesiado do dito, addicted, entregue ao dito. Ebrio de verbo, como se dissesse ebrio de Deus. Mudo, YOU em dire~ao ao sil~ncio, a saude, exponho-me ao mundo. 0 quebra-mar sensivel, receptivo, delicado, refinado, discerne 0 redito e retira-se depressa, espera, presta aten~ao, em falso equilibrio, ou desequilibrio, em rela~ao a massa de lingua, qual uma antena estendida como raridade, espera 0 inesperado, reconhece 0 irreconhecivel, sensivei no silencioso. Vigilante paciente, em pe, buscando urn olhar, uma ameia, fissura, lacuna, janeia, no muro compacto da linguagem, vigilante curvado sob 0 peso desordenado da noite, 11 espera da aurora, deslumbrado as vezes com esse alvor sem texto que explode de repente na lonjura do horizonte, a tres mil pes de altitude. Eu nao existo nesta vigilia escura: corpo de hist6ria e de mem6ria, estavel em minha lingua, deitado, enrodilhado, dormindo no leito ocluso das palavras e das proposi~oes, em sua cabine l6gica e combinat6ria, ou no imenso anfiteatro. Este sujeito de lingua sonha. 0 sonho recorta uma falsa janela no muro lingiiistico. Este sujeito de hist6ria e de mem6ria nao existe, dorme, tern os mesmos sonhos que os outros, as mesmas ambi~oes e mesmos concursos, na torre de marfim da lingua, sonha dentro das representa~oes, como no teatro de Epidauro, ou olha a televisao e as paginas artificiais, drogado de palavras e de politica, entregue ao dito. Sujeito submisso, sujeitado, prostrado, pisoteado, esmagado sob a enorme tonelagem da linguagem. Morto esmigalhado" Fora de prumo, eu existo, fora da estabilidade onde 0 outro sujeito continua adormecido ou morto. No cume vertiginoso da linguagem, corre 0 caminho de guarda por onde passam os vigilantes. Friorentos, medrosos,
91
MICHEL SERRES
horror ao vento ou as flechas voadoras no meio do dia, alguns vigilantes sentam-se, encostados nos meri6es, partes planas dos muros, que enquadram as partes vazias rlJms que protegem 0 edificio; prossigamos, reconhe~o de passagem meu corpo estavel e adormecido, embalado em sonhos, drogado de lingua ate em seus desejos insaciados, eu 0 reconhe~o nesse vigilante que olha 0 interior, de frente ou de costas para 0 meriao, ai esta minha existencia ao contrario, vigia arguto, agil, vigilante, enlouquecido, inclinado a ameia, para fora da parte vazia, em desequilibrio tendendo a vertigem, extatico. A existencia ou 0 extase atira-se ao afastamento, impulsao, falso equilibrio, espera, doa~ao ao espa~o, risco vertiginoso, liberta~ao de si. Estavel, de inicio, em seguida existente. Apoiado na lingua, depois aliviado da lingua. Ali, referido, localizado, em seguida longe, sem referencia nem localiza~ao. A principio, em seguran~a, depois dado. 0 eu s6 existe fora do eu. 0 eu s6 pensa fora do eu. Sente verdadeiramente fora de si mesmo. 0 eu na linguagem se reduz a vasta mem6ria de sua lingua, limita-se ao coletivo, a integral indefinida dos outros, ao fechamento de seu grupo aberto, cristaliza-se em seus habitos: presos nesse eu lingiiistico quase sempre e em quase toda parte, nao vivemos durante quase toda nossa vida. 0 eu s6 vive realmente fora de mimi fora de mim eu penso, medito, sei, fora de mim eu recebo 0 dado, vivaz, eu invento fora de mim. Eu existo fora de mim como o mundo. Eu sou no lado do mundo fora de minha verbosa carne. Pois a orelha conhece esse afastamento. Posso coloca-Ia no exterior da janela, lan~a-Ia a grande distilncia, mante-Ia muito longe do corpo. Perdido, dissolvido no ar transparente, flutuando com seus matizes, sensivel as menores comas, estremecendo a minima rajada, entregue, misturado as explos6es do mundo, eu existo. Meu corpo faz silencio a tal ponto que uma supercura 0 transforma em urn anjo. Ah! a boa nova, a carne se faz sensivel, exultam os ossos humilhados.
92
Reapresenta~ao da tragedia nas midias corriqueiras. S6crates condenado pelos juizes de Atenas condena a si mesmo a morrer, por vontade de curar-se. No tribunal, encontram-se homens que tern poder de matar com uma palavra, sua senten~a e execut6ria: frase que vale por urn ato. Como na prisao do diaJogo, aqui nao ha intersticio entre dizer e morrer, que performance colossal. 0 mundo, proibido de acesso ao teatro, na prisao, no tribunal de juri, nao pode por intervalo entre a linguagem e a a~ao. A ftlosofia respira 11 vontade nesses lugares onde nenhuma experiencia obstrui a for~a das palavras, a vontade, na representa~ao, na
OS CINCO SENTI DOS { Caixas }
ltes ua1e-
os, giha
io n, ;0
,i. o n )
1
cela, no grupo e no julgamento. A lingua mata 0 ator no teatro de Epidauro, mata-o ativamente no tribunal. Entra 0 juiz. Pronuncia a senten,a. Socrates, presente, e condenado. Espicho a orelha, escuto, ou,o a senten,a, ou,o-a, curiosamente, em uma outra lingua morta: Socrates addictus, Socrates convencido pelo direito, oral ou escrito, convencido pela delibera,ao, e condenado por essas palavras. Eis urn termo de procedimento performativo, pois equivale a cicuta. Beber 0 veneno ou ter esta palavra na boca e a mesma coisa. A fllosofia se compromete na via do direito ou do tribunal, onde 0 verbo faz, nao por volta do final do seculo XVII, mas desde sua funda,ao plat6nica. Depois, gosta de dizer que dizer equivale a fazer, gosta de falar de lingua. Socrates, convencido pela palavra do juiz, mas condenado tambem pela sua propria, demonstrou ainda, no dia de sua morte, que e melhor morrer para se livrar deste mundo corrompido e deste corpo imundo. Dois falsos addietus. Ou,o pela segunda vez a mesma palavra voar ao redor da arquibancada. 0 grupo apareceu na orquestra, representou sem 0 saber como se 0 teatro nao tivesse perdido ha muito tempo fun,ao e atribui,ao, morto, aberto para 0 mundo exterior, mergulhado na limpidez azul e amarela, rodeado de ramos verdes mesmo no inverno, estendido ao sollucido onde as gralhas esvoa,am. As plantas, os bichos e 0 vento do ceu invadiram esses lugares oclusos como uma cunha racha urn lenho, abrindo 0 angulo entre o dizer e 0 dado. Como no teatro, 0 grupo fica em seus dizeres. Socrates, entre seus amigos, continua a morte no diaJogo. Os turistas da vida nao verao nada da terra dos deuses, ocupados em se dizerem; ninguem quer 0 dado, nao quer recebe-Io ou aceita-Io, todos condenados a seus dizeres: entregues ao dito, addicted, anestesiados, drogados, addicti, condenados ao carcere da palavra. A lingua inglesa diz addicted uma pessoa que a lingua francesa considera adonnee. Uma pessoa que se da it medita,ao, ao estudo, ao prazer, ao jogo, a droga. 0 desvio entre as duas linguas, a tradu,ao, atravessa uma passagem, urn intersticio de linguagem. La esta 0 dado, aqui esta 0 dito. 0 dado ressentido equivale ao dito? Addit, transladado, nao existe em lingua francesa, como se ela desse lugar ao dado ou praticasse uma abertura em uma estranheza fora dela, como se a pessoa pudesse se dar a outra coisa que nao it sua lingua; como se 0 vocabulo addicted vedasse essa janela em lingua inglesa, fechasse a porta da linguagem em urn portico, urn limiar,
93
MICHEL SERRES
urn horizonte surdos e mudos, tacitos. 0 dado vivamente sentido reduz-se ao dito? A droga ronda essa questao, na vizinhan~a do corpo, da lingua, do grupo e do mundo, nas jun~oes de seus n6s. Sim, venho para me curar. Somos dados ao dado como somos dedicados ao dizer. Sera que vivemos em estado de sujei~ao ao mundo, fonte gratuita dos dados, que viveremos em estado de sujei~ao aos c6digos, ao banco universal dos dados, estamos condenados a escolher somente nossa sujei~ilo? A lingua latina da a raiz desse dizer no lugar do tribunal, espa~o tao fechado ao mundo quanta 0 anfiteatro. 0 olhar fixo e vazio, S6crates esta drogado, condenado, pela senten~a, pelo raciocinio, pelo logos em geral, pelo dito tornado coisa, dcuta: addicted, addictus. A cicuta: droga, farrnacia e condena~ao. Entra 0 juiz, sai S6crates. 0 juiz entra como palavra, S6crates sai da vida. S6crates sai de sua vida de palavra, de sua vida 16gica.
94
Entra 0 juiz, sai S6crates. 0 juiz ocupa 0 lugar, dai em diante. No teatro, a representa~ao faz de conta. Mata para rir, mata para curar, e 0 povo vai embora, aliviado. No tribunal, a palavra vale por urn ato, ela faz a a~ao, ela rnata de verdade. Desde que a fIiosofia entrou no tribunal, pas-se em estado de agir, de matar. De fato, matou rnilhoes de pessoas. Com que direito? Com que direito ela se adjudica esse direito? Esta pergunta, notaveI em sua formula~ao, repete 0 juiz e repete 0 direito. Quando se pergunta a alguem: com que direito? Pede-se-Ihe de fato para designar alguern outro que lhe sirva de garantia. Mas, logo em seguida, a pergunta pode ser feita a este outro, e assim indefinidamente. Como se renascesse, nas costas do segundo, urn terceiro hornem que, por seu turno, teria costas: fIieira sern firn. Existe, em fIiosofia e fora dela, urna classe de perguntas em que aparecern a existencia e a inexistencia, a evolu~ao descontrolada desse terceiro hom em. Urn grupo entra, dai a pouca, na orquestra, em torno de seu patriarca ou guia. S6crates surge atras dele. 0 juiz surge atras de S6crates. Perguntase-Ihe entao: com que direito? E atnis dele aparece urna longa serie de sornbras. o que garante e chamado a cornparecer. Ora, nesta questao da cIasse das perguntas que suscitarn urn terceiro hornem, a filosofia sernpre procurou descobrir se existe urn ultimo da serie que de razao it serie toda. Se ele existe, que compare~a. Sai 0 juiz.
OS CINCO SENTIDOS {
se
10 lr.
>s )s )s
Caixas}
Sai 0 juiz. Entra 0 pretor. o pre tor abre a sessao judici;lria; primeiro magistrado no tempo e na gradua~ao, ele abre a sessao pronunciando as primeiras palavras, os termos fundamentais, que fecham a serie de perguntas da classe do terceiro hom em. Nao the podemos perguntar com que direito, uma vez que, antes dele. 0 direito nao pode ser dito. Primeiro. originario, ele inaugura 0 tempo do direito. o pretor fala. diz: Do, dieco, addico. Dou, digo. confirmo ou adjudico. Claro, ninguem compreende realmente addieere. fonte. raiz ou origem da condena~ao e da droga juntas. verbo que fica atnls do que S6crates diz ou faz, como 0 juiz fica atras do fIl6sofo e 0 pretor atnls do juiz. Addieere ainda quer dizer dizer. mas tambem dedicar, ceder. como vender, dar em adjudica~ao, confirmar uma cessao, mas tambem condenar. As tres primeiras palavras do pretor. os tria verba, sobressaem na linguagem, no direito, na religiao. Constituem 0 come~o da a~ao judici
95
MICHEL SERRES
mada da questao: com que direito? e seu indefinido reencaminhamento a urn terceiro homem. Atnis de nos, Socrates; atn\s do ftlosofo, 0 juiz, 0 pretor, ou entao: atnis da representa~ao, 0 tribunal; atnis do juiz, 0 pretor, ou entao: atnis do direito, sua funda~ao na palavra. Ai se fecha a serie. 0 pretor da ao pretor e somente a ele 0 direito primeiro de dizer e de dar aos outros este direito. Ele se da por primeiro homem e primeiro dizente: addico. A adic~ao, primeira dic¢o, primeira palavra, confrrma as outras. Nada sobrepuja a adi~ao do dizer e do dom, tudo converge e soma-se nela, 0 que passa pelo dizer e 0 que passa pelo dom, procurem, pois, uma exce~ao. Addicted: drogado, entregue ao dito como a uma farmacia. 0 ftl6sofo bebe indefinidamente a ta~a de cicuta, a cratera de palavras. Addictus: condenado. S6crates ftl6sofo condena-se a si mesmo it morte. Para compreender e fundar essa senten~a e essa sujei~ao, e preciso ir it adi~ao ou sintese primeira da Iinguagem e do dom. Como se a decisao original do pretor, a adi~ao quase a1gebrica do dizer e do dom nos tria verba, como se a tese primeira, ao identificar 0 dado ao dizer, produzissem por p6s-morte e droga, o sacrificio ftlos6fico. Atras do teatro, atnis do tribunal, desenrola-se a tragedia fundadora: morte verdadeira de homem pelo veneno Iingiiistico, vida usual no mesmo narcotico. Sono em Epidauro, onde a pr6pria Iinguagem ocupa os sonhos. A cura foge como final de agonia. A adi~ao do dizer ao dom e paga com morte e com a droga. As sombras parecem dan~ar atras do corpo ou do dito do pretor. Teria ele negado considerar-se 0 primeiro dizente? Antes da funda~ao do saber, antes da do direito e da aprova~ao, antes mesmo da funda~ao do primeiro dizer, na funda~ao selvagem, nao hist6rica, da cidade, Tito Livio, no primeiro Iivro, relata a decisao de que nada pode mudar, nada pode ser instituido nisi aves addixent, sem a adic~ao das aves. Urn voo de falcoes passa por tds das costas do pretor, urn voo de graIhas. Sai 0 pretor, entra 0 aruspice.
o maior imperio do mundo, 0
96
mais longo que nossa hist6ria jii conheceu, era dirigido em ultima ins tan cia pelo voo da aves; eis a decisao mais profunda jamais dita ou decidida em materia politica. Voces que a leem agora, voces que a conhecem, corram a repeti-Ia, prioritariamente, ao general que comanda as for~as armadas, ao grande economista que
OS CINCO SENTI DOS {
a u
Caixas}
administra a crise, aos assessores do presidente, aos ministros, ao principe em pessoa, e a todos os eleitores que conhecem. Nunca as legioes romanas empreenderam qualquer batalha, nunca uma frota carregada de trigo foi equipada, nunca uma disposi~ao legal foi emendada, nunca naquele tempo uma decisao de magnitude hist6rica foi tomada sem que os augures esperassem primeiro a aprova~ao dita ou dada pelas aves, sua passagem pelo ceu, sua maneira de bicar 0 grao, sem a adic~ao dos volateis. Roma, claro, obtem a maior propor~ao de vit6rias da hist6ria, redige 0 direito mais estavel, administra a politica 6tima, toma decisoes, em media, as mais felizes, ainda e, bern sabemos, a primeira de todos os tempos, e ela se confia as aves. Ja ouviram melhor noticia, conhecem uma ideia fIlos6fica rna is sutil e mais sabia? Existe algum fato natural que mais devolva a humildade os graudos deste mundo? E a frivolidade nossas pretensas profundezas, nossas razoes e nossos saberes, discursos de economia, estrategia, politica, nossas ilus6rias ciencias, humanas ou sociais? Os que alcan~aram maior sucesso nao ouviam nenhuma lingua, olhavam 0 v60 das aves, nao ouviam nenhuma expertise, mas observavam as bicadas das galinhas. Gostaria de ver no galinheiro, preocupados e meditativos, esses que dizem ter nas maos os destinos do mundo, de quem vemos a imagem e ouvimos a voz dez vezes por dia, hoje, quando a politica se reduz a publicidade do Estado. Ah! ve-Ios boquiabertos diante das gralhas! A tragedia do dizer desaba no rir. Sai 0 magistrado, entra 0 augure. Ninguem jamais ouviu urn augure falar, ninguem jamais compreendeu realmente 0 que ele dizia, quando ele parecia dizer. Ele nao fica na orquestra, ali, nao se acha em seu lugar, sobe, depressa, as arquibancadas, sai do teatro, deixa 0 tribunal, escapa a prisao, nao tern 0 que fazer com essas tragedias, nao tern necessidade de condenar a morte, ele observa 0 ceu. As aves nao falam, as entranhas nao dizem nada, 0 v60 dos falcoes nao se imprime no ar como uma escritura. Escuiapio, mestre nesses dominios, tern por pai Apolo e, por mae, uma princesa ou a ninfa Coronis. Dizem que, gravida, ela concedeu certos favores a urn terceiro homem. Apolo soube e a matou, mas nao sem retirar EscuJapio do ventre materna antes do tempo. Como e que 0 imbecil soube de seu infortunio antes de cometer essa ignominia? Pelo v60 singular das gralhas. Tinha visto a adic~ao delas.
97
MICHEL SERRES
Assim. 0 deus da adivinha~ao engendrou 0 das curas e 0 da medicina. Mas intromete no meio deles um sacrificio humano. 0 cadaver da mae ainda atravanca 0 teatro. Devemos nos curar. decididamente. da tragedia.
98
Admiro 0 ritual augural de que riem os ftI6sofos. pela aten~ao arguta dos anispices ao sentido que passa ou mora no mundo sem nossa interven~ao. a da mao ou a da linguagem. ou desde antes dela: toda primeira observa~ao em que 0 percebido precede qualquer linguagem expressa ou avaliada. 0 pre tor nao pode dizer addico antes que 0 augure tenha visto a adic¢o das aves. Os falcoes voam. as gralhas passam. as galinhas ciscam sem nos consultar: n6s os consultamos. 0 primeiro dizente aprova ou condena. da em adjudica~ao ou retira a prisao se e somente se as aves 0 consentirem. Pela janela que 0 bastao inaugural desenha no ceu. abrem-se enfim a prisao da linguagem. a cela de S6crates. 0 teatro e 0 tribunal. Este templo. este espa~o sagrado recortado no volume do ar. representa a brecha por onde a linguagem perde. 0 intersticio por onde ela respira. 0 sentido por onde ela come~a. sua condi~ao: as condi~oes da experii'ncia. sua delimita~ao. Por essa ameia instalada. 0 olho se volta para 0 mundo. 0 ouvido escuta urn outro som que nao 0 das palavras. urn outro ruido que nilo 0 vocalise. Arranhilo seco ou picada do bico. caricia macia das asas de pluma no ar turbulento. Mesmo a funda~ao de Roma nilo ocorreu antes que ouvissem esse voo. o ditador diz. 0 general comanda. 0 pretor indica e aprova 0 direito. 0 fIl6sofo fala. mas 0 augure escuta e vi' antes que 0 rei. 0 ditador. 0 pretor ou 0 fil6sofo digam. Ele precede 0 dizer em sili'ncio. Observa 0 sili'ncio para deixar que venham os falcoes e observa-Ios. o tribunal. idealista. diz 0 mundo como se 0 representasse. faz uso da linguagem performativa. diz que 0 dito vale 0 fazer. faz. obriga a fazer como se fosse verdade. 0 rei. 0 ditador. 0 general e 0 pretor. mesmo 0 padre. 0 ftI6sofo exato. 0 sabio rigoroso. 0 historiador fiel continuam idealistas. parece no mundo tudo se passa como diz a representa~ao que eles dizem ou fazem. seu dizer. performativo. comanda: dizem todos que seu dizer vale urn fazer e todo mundo. sob suas ordens. parece bastante ingenuo ou obediente para acreditar neles e para fazer como se fosse verdade. A tragedia. a execu~ao pagam 0 pre~o dessa cren~a ou dessa obriga~ao. 56 a morte prova a seriedade do dizer. a presen~a do cadaver. Ela da fe. direito e espet,kulo. {)nica garantia de que aquele que diz nilo fala it toa. 56 a morte fecha a janela lingilistica por onde a verdade poderia evaporar-se.
OS CINCO SENTIDOS { Caixas }
ou sair voando como uma gralha. Ela faz da Iinguagem urn sistema fechado onde a verdade ganha sua referencia. S6 a morte da prova. Homens de lingua, homens de morte. A morte de S6crates fecha e confirma sua Iinguagem, aprova-a, eu ia dizer adita-a. A morte do verbo confirma 0 verbo que, de repente, recupera as coisas do mundo. S6 a morte avaliza a linguagem, a veracidade da ciencia, sua fidelidade as proprias coisas, sua fulgurante eficacia. Hiroshima funda a ciencia contemporanea, como a morte de S6crates fundou a filosofia moderna, como a morte do verbo fundou a linguagem que faz com que sejamos homens. S6 a morte fica na orquestra, no meio do teatro. Vindo para sarar, para beber a ambrosia na cratera da imortalidade, bus co nao a minha imortalidade, pessoal, mas a da especie, agora, em perigo. 0 grupo inteiro deve se curar de sua morte. E preciso fazer 0 genero humano beber nao a cicuta, mas a ambrosia, a bebida da imortalidade. Nas ruinas da velha cultura perdida, tento compreender como e de que a totalidade de nossas culturas, hoje, doente, droga-se, a que se condena, busco uma maneira de contribuir para cura-Ia, para restituir sua ingenuidade e pronta vitali dade. Os augures sugerem urn mundo antes do dizer dos reis ou dos juizes, urn mundo exterior ao c1austro coletivo e lingiiistico, independente das armas e ate das preces, onde urn sentido, nu, aparece. Sugerem que este sentido Ocorre sem n6s; ao observarem 0 v60 dos fa\c6es nos departamentos do ceu, ou 0 comportamento dos galos sagrados, ou as entranhas das vitimas, eles se colocam, ja entao, na posi~ao do sabio. Observam, olham. Observam 0 mundo como se 0 coletivo nao 0 constituisse. Os sabios das ciencias chamadas experimentais tambem sugerem urn mundo ou estados de coisas recortados, bern definidos, independentes dos homens, onde urn sentido tern lugar, nao exatamente dizivel no verbo usual, nem precisamente na linguagem de nossos intercambios. Este sentido atravessa 0 espa~o fora de nossas Iinguas, vilo de corvos ou de fa\c6es. 0 augure, como o sabio, observa urn sentido nu, sem jogada nem fetiche nem mercadoria, sem a linguagem da jogada, do fetiche, da mercadoria. Os livros augurais, sibilinos, indecifraveis e secretos, digamos, nao sao compreendidos, redigidos em uma lingua estranha a todas as nossas Iinguas. Parece-me descobrir que continham 0 algoritmo arcaico de nossa fisica: tal como 0 grego
99
MICHEL SERRES
antigo antecipa nossa lingua, tam bern essas f6rmulas deviam ser redigidas no algoritmo ancestral de nossas equa~oes. Os fil6sofos perguntavam antigamente se os augures podiam se olhar sem rir. Os filosofos, de fato, nao riem nunca, sobretudo quando se olham: eles arreganham os dentes. Jamais conseguem se olhar sem dizer. Acredito, como os auspices e os anispices, como os sabios, e sem poder demonstrar, que existe urn mundo independente dos homens. Dessa afirma~ao que, se quisermos, podemos chamar de realista, ninguem sabe demonstrar a verdade, visto que ela excede a linguagem e excede portanto qualquer linguagem de demonstra~ao. 0 realismo vale uma aposta, o idealismo implica sua demonstra~ao: a afirma~ao de que nao existe mundo fora do que dizemos dele, mergulha inteiramente na linguagem, podemos coloca-Ia, de mil maneiras, em uma lingua rigorosa; pelo contrario, continua ilogico para a logica, indizivel para 0 dizivel, que existam coisas, fatos ou urn mundo fora do dizivel e da 16gica. Todas essas teses, autol6gicas, dizem 0 autismo do verbo. Ai Ii que esta a doen~a. Entao os fil6sofos riem quando alguem abre urn buraco na muralha transparen te da linguagem, passa a mao ou urn bastao pelo buraco, lan~a seu cavalo e escapa da clareira para a floresta. Os fil6sofos riem porque a filosofia e contemporanea do verbo, nos 0 recebemos ou inventamos juntos. Compreendo de repente por que a matemittica data de tao alta antigiiidade, ela nao ultrapassa a clareira da lingua, e por que a fisica foi tao postergada, na cultura do verbo tudo zombava deJa. Os fil6sofos gregos zombavam dos augures em nome do logos, como os cardeais latinos condenavam Galileu em nome da escritura, como ainda condenamos essa cren~a inerradicavel na subsistencia do mundo. Sempre esquecemos que 0 mundo carrega nossa imortalidade. Acredito, sei, nao posso demonstrar que existe urn mundo, porque os livros escritos por intermedio de outros livros nao ensinam nada que valha, mas reconhecemos os que vern do mundo. Acredito, sei, nao posso demonstrar que existe urn mundo sem nos; quem nao prefere escrever sob 0 ditame de seu formidavel silencio, na ale· gria e na saude, em vez de sob 0 julgamento de urn tribunal qualquer?
100
No alto do anfiteatro, 0 muro de coroamento desmorona, em pia cas, formam-se ameias e merioes irregulares; gralhas passam por essas janelas de circunstancia.
OS CINCO SENTIDOS
las lar n:
m s.
n
--
I Caixas }
Eu pensava ter meditado uma aula inaugural. Mas a observa~ao augural, uma vez mais, nao se apresentava nua. 0 sacerdote sabia uma ciencia consignada em urn escrito previo. Observar nao pode, nao sabe se separar de interpretar. A linguagem. A linguagem e 0 c6digo aderem constantemente ao dado, a boca imperiosa e 0 tra~o obstinado acompanham 0 sentido e nao Ihe soltam a redea. A adic~ao da gralha matou a ninfa antes do nascimento do deus da cura. Urn saber de linguagem precede sempre. E a morte 0 acompanha, a tragedia indignamente inerradicavel. Eo teatro nao nos larga.
I,
e I,
Drogado de saber? Gosto que 0 saber fa,a viver, cultive, gosto de faze10 carne e casa, que ele ajude a beber e a comer, a andar lentamente, a amar, morrer, renascer, as vezes, gosto de dormir em seus len~6is, que ele nao seja exterior a mim. Mas ele perdeu esse valor vital, ate seria preciso que nos curassemos do saber. Cortado em pedacinhos, novo a cada conquista absorvida, logo monotono, logo obsoleto, de passagem, rapido, e mais como taxa de infla~ao que como crescimento verdadeiro, 0 saber fornecido pelas teses, pelos artigos, pelas revistas cientificas tomou a mesma forma que a informa~ao imposta pelos jornais, escritos, falados ou visiveis, pelo conjunto das midias, ou urn bloco de cheques, ou urn ma~o de cigarros, repartidos em unidades, em seguida classificados no banco de dados, postos em codigos. ja nao vivemos entregues ao dito, vamos perder a linguagem, depois de termos perdido os sentidos, mas entregues, naturalmente, aos dados. Nao mais os do mundo, nem os das linguas, mas os dos codigos. Saber igual a estar informado. A informa~ao torna-se a forma superior e universal da droga, da sujei~ao, da adic~ao. A chamada atividade intelectual equivale it dose de urn narc6tico: nao faltar it dose periodica de informa~ao sob pena de perder contato. 0 ultimo anuncio faz os precedentes virarem obsoletos, eis a lei da droga, onde so vale a pr6xima dose. Nem a informa~ao, nem a dose, quando as tomamos, nos dao a felicidade, mas nos tornam desgra~ados se nao as tomarmos. A ciencia ja nao e formada pelo abandono da concorrencia, da imita~ao, da inveja, do 6dio e da guerra, os piores de nossos males, ela se apresenta sob uma forma que os piora e exacerba. 0 saber de ponta desvaloriza rapidamente todo 0 resto do saber: ponta que espeta, perfura, maltrata, sujeita. o saber da. Rapidamente, muito. Em forma de dados, torna-se 0 dado. o saber diz. Rapidamente, muito. Em forma de codigo, substitui a linguagem.
Instituto dr Psicologia - UFRGS Biblioteca - - -
101
MICHEL SERRES
Substitui 0 dado, vira linguagem. Da, diz. Aprova, condena e sujeita. Sai 0 pretor. Entra 0 augure. 0 pretor ou 0 primeiro homem, em seguida 0 augure no verdadeiro come~o. Antes mesmo do pretor. Sai 0 augure. Entra 0 sabio. o sabio diz, por sua vez: Do, dicco, addico. Sou drogado pelo saber. Silencio na capital da cura, silencio longe da informa~ao. Nao beber mais nao parece dificil, parar de fumar recentemente me pareceu her6ico, jogar fora os jornais, desligar 0 radio, deixar 0 aparelho de televisao apagado, eis a elementar e verdadeira desintoxica~ao. Vim a Epidauro para mais ainda. Para nao estar mais em dia, como se diz, com a ciencia, nao mais correr nessa corrente da a liberta~ao. Fim da droga mais pesada, come~o de uma sabedoria.
102
Essa ideia tao difundida de que tudo deve ser dito e resolvido pela linguagem, de que todo verdadeiro problema da assunto para debate, de que a filosofia se reduz a perguntas e respostas, de que s6 podemos nos tratar pel a fala, e que 0 ensinamento passa exclusivamente pelo discurso, esta ideia falastrona, teatral, publicitaria, sem vergonha nem pudor, ignora a presen~a real do vinho e do pao, seu gosto tacito, seu odor, esquece 0 ensino pelos gestos apenas esbo~ados, a conivencia, as cumplicidades, 0 que nao se precisa dizer, a suplica de amor insigne, as intui~6es incriveis que faiscam como 0 raio, 0 encanto que perdura apos uma atitude, essa ideia judiciaria condena os timidos, os que nem sempre tern opiniao pr6pria e nem sabem 0 que pensam, os pesquisadores, essa ideia de professor exclui os que nao assistem 11 aula, os inventores e os humildes, os que hesitam e sao tocados, as pessoas de espirito, conheci tantas coisas sem texto e pessoas sem gramatica, crian~as sem lexico, velhos sem vocabuhirio, vivi tanto no estrangeiro, mudo, aterrorizado atras da cortina das linguas, teria realmente saboreado a vida se nao tivesse feito mais do que ouvir ou falar, o que sei de rna is precioso esta encastoado em silencio. Nao, nem 0 mundo, nem a experiencia, nem a filosofia, nem a morte se deixam encerrar no teatro, no tribunal, ou numa aula. Esta ideia verdadeira esquece a fisica e a vida, a ciencia e a literatura, a modestia e a beleza.
OS CINCO SENTIDOS { Caixas }
m
r "
o saber sabio cura e forma 0 corpo, embeleza-o. Quanto mais presto atens:ao e busco, mais eu penso. Penso, logo, sou belo. 0 mundo e belo, logo, penso. 0 saber nao pode prescindir da beleza. Busco uma ciencia bela. A partir de uma certa altura de sua hist6ria, a ciencia deve responder por sua face, pela beleza que apresenta e produz. Desinteresso-me do saber que adquiriu a forma atual porque ele enfeia homens e coisas, porque ele envelhece mal e fracassou na forma~ao de nossos fllhos. Mostra feiura e morte, a mascara contorcida da tragedia. A partir de uma certa altura, a ciencia deve responder pelas crian~as. Sai 0 sabio, eis a crian~a. Andamos urn em dire~ao ao outro, ao sol, ela nao falava, eu tambem nao falava, de maos dadas, deixamos furtivamente 0 anfiteatro. Nao faz calor, nao faz frio, 0 vento acaricia 0 rosto e os bra~os como se desenhasse urn mapa na pele, a brisa doce inicia uma conversa quase musical com a folhagem das arvores, sob a voz, os primeiros odores acres emanam dos talos, uma erva chega a nossos labios, mastigamos sua adstringencia, a paisagem dos deuses se abre no vale por entre pequenos reta!hos trabalhados, amarelos e azuis, como uma cauda de pavao ocelada, ate a austeridade rochosa da colina, vern vern, eu queria legar-te as coisas sensiveis perdidas, 0 conciliabulo do mundo mUltiplo e do corpo nu, legar-te-ei a finura, gostos e perfumes, a sapiencia e a sagacidade, vern, e quando tivermos construido a pele com panos, como urn babito, dir-te-ei, depois, as velhas ruinas de minha lingua, minha bela linguagem que vai morrer, saida diretamente da agua que se enruga como uma seda, dos alamos de folha que freme quase sessil, doce voz das coisas, vern nos restos abandonados de dois jardins devastados, esquecidos, 0 jardim dos sentidos destruido pela Iinguagem, 0 jardim de minha lingua destruido pelos c6digos, vern enquanto e tempo ainda, eu me sai mal, vamos recome~ar. vern, 0 Ultimo mho dos homens que pode ouvir ever, vern sentir e tocar, aprenderas muito cedo a ciencia, asseguro que aprendenis.
TRES AUDfvEIS A cura em Epidauro consistia em sonhos e sono: 0 paciente devia ouvir 0 que seu corpo, doente, emitia. Partia curado se conseguisse 0 silen-
103
MICHEL SERRES
cio dos orgaos. A primeira fonte de ruldo esta no organismo, cuja orelha proprioceptiva ouve, as vezes em vao, 0 murmurio subliminar: milhares de celulas entregam-se a uma tal a~ao bioqulmica que deverfamos desmaiar sob a pressao de seu rumor. De fato, nos 0 ouvimos algumas vezes e chamamos de doen~a essa escuta. 0 bruaa propaga-se na caixa-preta das caixas-pretas que indicam os niveis de integra~ao: moleculas, celulas, orgaos, sistemas ... e se retifica, pouco a pouco, em informa~ao, por meio de limites e barreiras. Por esses sucessivos retificadores que a complexidade das caixas dissemina, ele atinge 0 silencio sadio e com certeza a linguagem. Entre a clarividencia e a cegueira, a visao se perde, dissipa-se em uma nuvem leitosa: a desordem vence os obstaculos que 0 corpo ergue diante dela. Quando con segue derruba-los inteiramente, a escuridao impera, advem a cegueira completa. Assim os surdos ouvem sempre, nao sinais nem vozes, mas acufenos, gritos infernais, agudos, tensos, mon6tonos, enlouquecedores. Esse suplicio terrivel condena-os it musica. A vida torna-se um equillbrio dificil de manter entre 0 len~ol musical e 0 barulho. Quando a harmonia se retirar, como um dique que se rompe, morrerei com as orelhas perfuradas sob a inunda~ao urrante. A vitoria definitiva do multiplo assinala 0 fim da agonia. A segunda fonte de ruldo esta dispersa pelo mundo: trovoes, vento, ressaca oceanica, aves do campo, avalanches, estrondos aterrorizantes que precedem os tremores de terra, sinais galacticos. Os auspices escutavam 0 deslizar das asas no ar, fora do teatro e antes que ele existisse, fora do social ou do politico e antes deles. Este ruido tambem e retificado em informa~ao atraves da caixa bastante complicada da orelha externa e interna, mas frequentemente construimos caixas tao exatamente refinadas ao redor de nossos corp os: paredes, cidades, casas, celas monasticas. Atraves de portas e janelas, a monada percebe levemente.
104
A ultima fonte de ruldo habita 0 coletivo, ultrapassa, de longe, as outras duas, a ponto de anuM-las frequentemente: silencio no corpo, silencio no mundo. Somente em raras circunstancias um grupo consente em se calar: cartuxos, trapistas, quakers, atentos a uma outra palavra, uns vinte e cinco gascoes barulhentos e tagarelas amontoados em um pombal a espera inaugural das aves, mudos como um tumulo. Essas exce~oes confirmam a regra: a sociedade produz um ruldo colossal que esta de acordo com ela, o rato das cidades se distingue do rato do campo por estar imunizado con-
OS CINCO SENTIDOS { Caixas }
ha de .ar allIS,
es 1-
.a
e I,
s "
tra esse ruido. Nossas megal6poles ensurdecem: quem suportaria este inferno sem desfalecer se nao contasse corn a equivalencia entre 0 grupo e o barulho? Fazer parte de urn consiste ern nao ouvir 0 outro. Quanto mais a gente se integra, menos 0 escuta; quanta mais se incomoda corn 0 barulho, menos pertence ao grupo. Gritos, buzinas, assobios, motores, chamados, rixas, estere6tipos, discussoes, col6quios, assembleias, elei~oes, polemicas, dialetica, aclama~oes, guerras, bombardeios, qualquer novidade tern seis mil anos, e s6 informa sobre essas gritarias. 0 ruido define 0 socia!. Tao poderoso urn quanta 0 outro, propagam-se corn igual rapidez, diffceis de integrar ern ambos os casos. A passagem do rumor desordenado ou ca6tico para a informa~ao, mesmo privada de sentido, desde que mostre uma certa ordem, ou do barulho para a musica, mesmo estupida, redige diretamente 0 contrato social cujo texto continua impensave!. Nunca descobrirao seu sentido. Ele 0 tern tao pouco quanto a melodia, 0 ritmo, a informa~ao ou 0 rumor. Hermes demonstrou contra Argos que 0 som, por sua ubiqiiidade, integra num unico fen6meno sensivel a cada urn o conjunto de urn espa~o onde a visao fica mUitipla. 0 audivel mantem territ6rio por sua ampla capacidade, 0 poder pertence a quem possui sino ou sirene, na rede dos emissores de som. Mesmo os exercitos faziam a musica desftlar na frente: a coletividade mais unida pela violencia adverte qualquer possivel adversario corn a for~a de seus pr6prios vinculos, como se se fizesse preceder de sua defini~ao ou de sua assinatura. Seja como for, esse ruido, palavras, motores ou musica, encobre 0 chamado das coisas e os gemidos de nossos 6rgaos, muito freqiientemente. 0 dado s6 se da pela linguagem? E claro, e mais, ele se da no e pela algazarra societaria cuja progressao formidavel nossa lingua as vezesassinala. Nao sabemos, inteiramente, ate que ponto amedrontamos 0 mundo, nem a que tocas escuras n6s 0 levamos a fugir. Os tigres vagueiam pela selva, as aguias refugiam-se nas escarpas, as raposas nas furnas e os sabios ern certas ilhas, de medo desse ruido. Especies amea~adas que hoje morrem porque aprendemos a difundi-lo melhor. Os augures passam antes da batalha: que ave iria arriscar-se, depois, a se aproximar desse furor? Pergun tern aos habitantes de Hiroshima que dado do mundo eles escutaram ern certo dia do venio de 1945. Dispomos de alguma orelha para a algazarra coletiva? Nunca agradecerei 0 bastante 11 amiga que me mostrou Pinara. Urn imenso circo de montanhas quase fechado aonde s6 se chega ape, na falta
105
MICHEL SERRES
106
de estrada, por uma especie de desfiladeiro sem vegeta~ao barrado ao fundo por uma portentosa falesia. Podia-se jurar que era a fachada de uma encosta interditando 0 acesso a terra, como em Fecamp. Cern metros de altura, a pique. E rasgado na altura e na largura por lin has vagas e colunas, de tumulos. Sepultamento vertical. Ianelas abertas, escuras, para alem da muralha. Que poder soberano vai aparecer, aqui, ante mil balc6es, sob as aclama~6es do circo? Mas basta que esses cadaveres se ergam todos, ao mesmo tempo, e eis a fachada de uma catedral, povoada de estatuas, rfgidas, eri~a das de assombra~6es ate 0 alto do coroamento. Dez mil olhos mortos olham essa velha cidade em rulnas construfda em uma eleva~ao mais abaixo, vigiam-na, humilde, arrasada. Estupefacta e constante vigilia, a morte monta guarda acima da vida, 0 tempo da hist6ria segue, segue ainda ap6s a extin~ao da hist6ria, sob 0 olhar cego e multiplicado da eternidade. Pois Pindara esta situada no centro do mundo, quase grego e ja europeu, asiatico, visto que turco, onde os tumulos apontam a India, mas africano porque reproduz a falesia dog6. 0 tempo para onde 0 espa~o involui. Em frente a muralha solene, necessaria, do outro lado em rela~ao a cidade, diametralmente oposto aos tumulos, abre-se 0 teatro grego. Quem se senta ali espera ouvir, ampliado pelos ecos, todo 0 silencio augusta dos emparedados, 0 clamor da cidade que os empurra para 0 fundo de suas furnas, 0 texto e a musica da tragedia na orquestra dilapidada, os aplausos nas arquibancadas deterioradas. Mas 0 teatro, em Pindara, nao esta de frente para 0 campo ou para 0 mar como a desafiar 0 vento e a ressaca com sua musica ou sua dic~ao, ao contrario, ele se fecha no circo social, homotetico. Urn tern a mesma forma do outro, modelo reduzido. Toda essa grande paisagem forma anfiteatro: a falesia funebre eleva-se diante da orquestra, a cidade entra em cena, todo o circo das montanhas poderia ser escalonado em mas de arquibancadas, o teatro construfdo forma apenas uma parte dele. Eis a pr6pria pra~a de Siena, ou a de Bazas, ou 0 adro de Notre-Dame, fechando com sua falesia dos mortos, como em Sao Pedro de Roma, 0 circo social. Todo mundo ali ve a prefeitura ou a igreja, e 0 ediffcio publico ve cada transeunte: como se o contrato social, indizfvel, permanecesse construtivel, como se 0 publico ficasse do lado dos mortos. Institui~ao de pedra ou estatu
r \
as CINCO SENTIDOS
o a e
{ Caixas }
o espetaculo de morte ou a tragedia fundadora. Quanto mais mergulhamos nesse espal'o, mais vemos e menos ouvimos. Ou antes: melhor se ve que se trata do ouvido. De uma tomada de som ou de urn captador de rumores. Da imensa caixa social, emissora e receptora. o que canta ou fala no centro ouve 0 silencio da assistencia que ouve seu pr6prio silencio e a voz que dele emana, circuito perfeito e temporario que logo vai se desmoronar sob 0 barulho dos aplausos ou sob as vaias ou ass obi os do fracasso. Numa mesma frase e dentro do mesmo espal'o durante a mesma al'ao, reunem-se a crepital'ao ca6tica do ruido, 0 ritmo e a musica, 0 silencio e a voz cantante, tudo 0 que precede a lingua gem, e as transformal'oes de urn no outro, como se se tratasse de uma caixa sonora e surda, tempestuosa, atenta e tacita, apropriada para transformar urn sistema acustico em outro, exatamente como descrevemos em relal'ao ao corpo, emissor de seu ruido e receptor de suas dores e crises, bem-estares e alegrias, caixa esvaziada na saude, produtor de linguagem a partir de suas vibral'oes febris. 0 eco das montanhas, em Pinara, s6 pode devolver as aclamal'oes sociais, daqui, ja nao ouviremos os uivos dos lobos. Salvo como ancestrais da cidade. o grupo se escuta como n6s escutamos. Emite 0 ruido, descomunalmente, ouve-o, refina-o e 0 modifica durante a retroalimental'ao ou 0 feedback em estere6tipos e opiniaticidades, estancias salmodiadas, versos tnigicos, analises politicas, ciencias sociais ... mais outro ruido de fundo,lixo ou residuo da transformal'ao, aclamal'oes crescentes com a perfeil'ao da musica induzida, emite entao mais uma vez para si mesmo linguas e clamores pelo mencionado trabalho de transformal'ao e mais uma vez lanl'a de volta urn outro feedback para uma transformal'ao nova mais repetitiva e assim por diante, assim narramos seus mitos, musica, cantos e religiao, seu gesto enterrado e sua hist6ria recente. Emite portanto sem cessar e recebe continuamente a informal'ao sabre si eo ruido de si, guerras e narrativas, crises e tragedias, suas linguas e suas condil'oes, em ciclos multiplos. Sobre 0 escaldante sol da Asia Menor, Pinara deslumbra por sua geometria pura e abstrata: a orelha teatral volta seu pavilhao para os rumores detalhados da cidade viva, mas permanece acima de tudo a escuta da emissao de fundo que vern de mil bocas de sombra, dos tumulos enegrecidos da alta falesia sombria, pranto longinquo dos mortos ainda audivel no circo dois mil anos depois da morte da cidade. 0 teatro forma epiciclo no imenso hemiciclo referente aos tumulos. Diriamos que 0 primeiro continua a rolar ou enrolar-se no segundo, multiplicando os retornos, inven-
107
MICHEL SERRES
tando representa~oes sob 0 continuo rumor da eternidade, sua polftica e sua hist6ria. as homens, em conjunto, escutam seus mortos: falesia, imensa esta~ao de radio ou de televisao. Nao podemos falar nem can tar sem 0 retorno que assegura a escuta de nossa pr6pria voz. A orelha tranqOiliza e regula a boca que emite parte para si e parte para outrem, outrem que assegura outras bocas de alimenta~ao ao redor. A intui~ao busca sob terra 0 grande corpo deitado, enterrado, cujo pavilhao ultrapassaria, construido em marmore, cujas bocas negras falam e Urram ha milenios atraves da abrupta falesia. Nossas celulas as miriades damam: uma orelha proprioceptiva, em geral surda, escuta. MUltiplos retornos regulam essa algazarra que se transforma, sem duvida, em nossos bem-estares e mal-estares, crises e silencio, inicio da linguagem. Nossa boca dama, a crian~a que nao fala chora e grita: o ouvido tranqOiliza essas mensagens, os dialogos iraQ regni-Ias. Podemos desenhar os ciclos que unem, quanto ao corpo, as emissoes e recep~oes. Por que ja nao os nomear consciencia de si? Mais freqOentemente fechado por esses retornos, contudo, aberto. Nossos mortos as mirfades clamam; a assistencia, no teatro, murmura; o coletivo atordoa. Quem ouve com todo seu corpo abafa, provoca, regula, domina esse rumor, as vezes, mas nem sempre, pois 0 rumor pode esmaga-Io ou decepa-Io. Podemos desenhar mil ciclos que reunem para 0 grupo emissoes e recep~oes, mais 0 entretenimento constante do movimento. Discurso, musica, constru~oes, midias, representa~oes. Por que nao chamar de contrato social esta circula~ao de fluxo tonitruante, dotado ou privado de sentido? au, em rela~ao a cada urn de n6s: zelo, paixao, entusiasmo, por pertinencia. Quase sempre fechado por seus retornos, raramente aberto. As coisas as miriades clamam. Geralmente surdo as emissoes estranhas, 0 ouvido se espanta com 0 que grita sem ter nome em nenhuma lingua. a terceiro ciclo, que come~a por uma escuta rara e exige surdez a si mesmo e ao grupo ou interrup~ao dos ciclos fechados da consciencia e do contrato, ja poderia ser chamado de conhecimento.
J08
Todo 0 audivel possive! encontra locais de escuta e de regula~ao. Diriamos que 0 corpo e construido como uma caixa ou caixas onde esses ciclos transitam. Que 0 grupo se forma como uma caixa ou caixas
OS CINCO SENTIDOS
e
{Caixas}
onde esses fluxos circulam. E 0 conhecimento, mundo ululante e mais ouvido atento, constr6i a caixa branca maior. Falta descrever este audivel, que you dizer duro ou doce. Abrir algumas caixas pretas: casa, prisoes, infernos, navios. Tra<;ar enfim algumas passagens delicadas para os fluxos ou os cielos: corredores guardados por Musas, Sereias, Bacantes, todas mulheres.
DOCE E DURO Quando uma estrada principal se acha em mau estado, pode-se conserta-la, encher os buracos de cascalho, passar 0 rolo compressor sobre o asfalto novo, refor<;a-la a custa de muito trabalho, suor e ~Uro. Mas ha ainda uma outra solu<;ao: afrxar nas arvores uma serie de pia cas onde 0 passante podenller: ESTRADA EM MAU ESTADO. A administra<;ao prefere esta solu<;ao, menos dispendiosa, que satisfaz sua tendencia para 0 comunicado. Recentemente, uns engenheiros demonstravam, com apoio de cifras, que a leitura do aviso, mais que alguns trancos no carro, obriga 0 uSU
109
MICHEL SERRES
Contando com uma volta as pr6prias coisas, desejaramos ingenuamente ouvir, ver e visitar, provar, acariciar, sentir, estar aberto ao dado. Como faze-Io sem 0 dizer? Como nos desfazermos de uma catedra que fala hoi dois mil anos? Existira urn unico dado independente da lingua gem? Se existe, como percebe-Io? A discussao se encerra quando come~a: ninguem conhece linguagem que diga 0 dado independentemente da linguagem. Toda descri~ao da propria coisa nao passa de urn dado relativo a linguagem utilizada. A coisa foge pela assintota infinita do dito. Eis 0 mundo: ate em seus pequenos recantos, calha us, raizes, grilos, em suas dobras secretas, minas, bols6es, covas, sob a terra e no fundo das aguas. No meio das florestas primitivas ou nos confins das galaxias recentemente descobertas, ele e repleto de proposi~6es e de categorias, sem lacuna. Mesmo 0 desconhecido ou 0 inconsciente ou 0 indizivel reintegram a linguagem. A lingua gem e somente a linguagem e que da 0 dado? o ex-triturador de calhaus nao acredita em seus ouvidos.
',!
I
110
o dado que se dizia bruto pertence as vezes, nem sempre, a escala entr6pica: distende os musculos, rasga a pele, arde os olhos, trespassa 0 timpano, arranha a garganta, ao passo que 0 dado na linguagem se apresenta sempre doce. Doce e classificado entre as energias pequenas, as dos signos; 0 dado duro as vezes e ordenado entre os grandes que maltratam, derrubam, espetam 0 corpo; vive mergulhado em urn ambiente material, enquanto 0 dado pela e na linguagem se tece de aplicativo. Do~ura aplicativa e dureza material fazem uma sensivel distin~ao, sensivelmente colocada fora da linguagem. Claro, ela vern da ciencia e, portanto, ainda da linguagem e do aplicativo, mas embora a enunciemos na lingua da energia, termodinamica ou teoria da informayao, 0 corpo a recebe ou a sofre pelas coisas. Ele sabe tacitamente a do~ura do sentido, que 0 discurso nao esfola a retina, nem as costas nem a pele. Ver uma arvore, la longe, pela janela, ja parece tao doce quanto dize-Ia, mas olhar 0 sol que a banha de claridade parece urn pouco mais duro ao olho; mais ainda, mirar 0 mesmo sol bern no meio do Saara ou ser surpreendido pela explosao da bomba termonuclear mata a visao. 0 vento as vezes empurra e faz trope~ar, pelo menos 0 Aquilao, embora 0 zefiro na folhagem pare~a falar divinamente, a palavra vento nao derruba. 0 corpo conhece essa diminui~ao, melhor, vive como se a conhecesse, ou, melhor ainda, sobrevive ao conhecimento. Se quiser ignora-Io, fere-se e morre. Assim tambem a vida explora essa distinyao. Vai da dureza a do~ura.
OS CINCO SENTIDOS
\).
a e [l
l.
{Caixas}
Seu impulso e dirigido do material para 0 aplicativo, da energia para a informa~ao. 0 sensivel segue este sentido. 0 corpo conhece este desvio e sua dire~ao, no e pelo sensivel.
o meio ambiente nem sempre conserva as do~uras sentidas por quem esta de ferias e anda inocentemente em urn cenario buc61ico disposto entre lago e floresta. Se 0 retorno as coisas pode ser confundido com 0 retorno a terra ou com a ida programada a residencia a beira-mar, inversamente, quem nunca sai de sua biblioteca onde 0 vento s6 sopra na manha de Pentecostes, nem deixa seu bairro repleto de cartazes de publicidade, tern tendencia a mergulhar todo 0 dado na linguagem. A hist6ria construiu em torno do homem ocidental contemporaneo, suficientemente rico, tantos fIltros, cidades, cartazes, medicinas, tecnicas e garantias, revestimentos e uso de seguros, que para ele e em torno dele 0 duro hoje em dia se faz raro, todo tornado pelo aplicativo, cobre telas, muros e trabalho, mergulhado nas energias pequenas. Para n6s que fomos despertados deste novo sonho, o empirismo ja nao e suficiente, precisariamos de uma erup~ao, urn sismo em grande escala, urn ciclone de laminas gigantescas, uma nova Hiroshima. Nem isso: em nossas telas, 0 grande mar se revolta, doce. E bern verdade que 0 dado muito freqiientemente se da na e pela linguagem, mas acontece que, por uma brecha no muro aplicativo, passa uma for~a que derruba. 0 dado as vezes faz cair do cavalo, nem sempre por uma palavra que soa. As maos sangram nos blocos de concreto aspero ou no tijolo de arestas vivas, a retina cede aos clar6es duros e 0 timpano aos tiros de canhao, 0 marinheiro acosta a proximidade da tromba-d'agua, as costas doem tanto a terra, baixa, distancia-se das maos. A nausea nem sempre vern da escrita, ela corre da onda para a agua sem que a lingua se mexa, barulho nautico, ruido da carne. Sim, 0 dado as vezes se endurece, ao passo que na linguagem ele se da sempre doce. Parece que ha dois dados: 0 doce, que transita pela linguagem, reino macio, acetin ado, licoroso, mole, refinado, 16gico e rigoroso; e 0 dado imprevisivelmente duro, mistura de doce e duro, que desperta com tapas sem sinais. E preciso identificar 0 dado a essa mistura que resiste a designa~ao das linguas e ainda nao tern conceito. 0 dado misto, todo eri~ado de espinhos duros, desperta do sono lingiiistico quando 0 furacao lacera com seus chicotes a membrana mole de nossa caixa ou gaiola sonora. As for~as materiais duras nos rodeiam, nos amea~am enos fazem viver, as vezes nos abrigam, sabemos jogar 0 duro contra 0 duro. As cien-
111
MICHEL SERRES
cias naturais tratam de nossas elementares condi,i5es de existencia, das altas energias. Vma especie de fluxo ou de sentido ou de ela vai desse duro para 0 doce: a hist6ria, decerto, mas a evolu,ao tambem, e 0 tempo, com certeza. A energia se dirige para a informa,ao: a primeira sustenta a segunda que capta a primeira; 0 material se dirige para 0 aplicativo e a for,a para 0 sentido. Nosso corpo quente, vigoroso, resistente, duro portanto, objeto contavel em escala entr6pica, associa e mistura essa dureza a do,ura das pequenas energias, informa,ao primeiro, sentido e linguagem por fun. Como se a vida marcasse, neste ela, urn estado. Nosso corpo mistura duro e doce, portanto produz e recebe uma mistura da mesma ordem. Estado ambiente neste eJa ou neste progresso. Ate nossas obras tornam-se mais e mais doces. Mas esse rio direcional encontra ziguezagues e obstaculos, paredes ou flitros, e os manobra, atravessa, abra,a, contorna. Percola porentre urn intervalo atravancado. A eioqiiencia come,a pela tritura,ao dos calhaus entre os dentes, diante do oceano ca6tico e na areia aspera, e termina no sublime. Entendam por sublime a passagem do s6lido ao gasoso, uma suaviza,ao. Nao sei se esses flitros permitirao compreender como 0 trovao ou 0 barulho, a agita,ao selva gem das ondas audiveis ou subentendidas pela pele que se arrepia, tornam-se em certo momento, finamente, sentido. Nada se opi5e a esta hip6tese. A questao do conhecimento, do sensivei e da linguagem ocorre nesse leque graduado, por entre esse espectro, a urn palmo da dureza a do,ura, intervalo separado, compartimentado, mesclado de obstaculos, caminhos e ziguezagues. Caixa em caixas onde 0 som do canhao torna-se pouco a pouco confidencia sussurrada. Onde, nesse caminho, deixamos para tras 0 duro pelo definitivamente doce? Quando? Nao estamos longe dessa data.
112
A alta energia u1trapassa a baixa, 0 vento encobre as vozes ou leva os apeios; as vezes a baixa governa a alta e a encanta. A distin,ao antes segue que precede a mistura de ambas, 0 dado vern como pode, batidas e sinais misturados; uma educa,ao ou uma vida sem as primeiras marcam 0 inicio do reino dos segundos. Mas a sensa,ao faz dessa mistura assunto seu. A fliosofia, quanta mais rejeita os sinais, mais dificuldade tern em pensar as batidas. Nunca pura, a sensa,ao ftitra as energias, ela se protege enos
OS CINCO SENTIDOS
as
o a. 1-
I Caixas }
defende das muito altas, codifica e passa a informa~ao: transforma 0 duro em doce. Essa transforma~ao, sobre 0 fundo de distin~ao e mistura, decerto nao pode ser pensada sem a ciencia, e portanto primitivamente sem a linguagem, porem, uma vez mais, 0 carpo a assume, 0 organismo a vivencia, 0 corpo vivo sobrevive por ela e dela morreni. A crian~a ou 0 animal sem linguagem conhecem-na. Falta pensar a pr6pria mistura; falta pensar 0 amolecimento, 0 nivelamento, 0 golpe de plaina, a elimina~ao, da dureza e da suavidade. Teremos de escrever sobre as misturas e as filtragens. A voz passa, rouca, baixa, cheia, suplicante, vulgar, aguda, aspera, jovial, harmoniosa, autoritaria, patetica, sedutora, explosiva ou irritada, voz de virago, voz de virgem, de feirante ou de puta, de vitima dominadora, de apaixonada imperiosa extremada a gritar a triste obstina~ao da paixao verdadeira, maternal, fraternal, conselheira, piedosa, infantil, fraca, igualitaria ou de equipe, insolente, encorajadora, destrutiva ou acariciante, ironica, agressiva, cinica, de gato de velha bebada no fundo do po~o que parece recusar 0 frescor, voz canalha, velada, aveludada, digna, alta, servil, majestosa, ampla, doente, afrontosa, banhada em silencio, cheia de ecos marinhos ou florestais, perpassada de gorjeios de passaros, ululante como besta fera, chamados de rua refletidos nas paredes enos adros de igreja, voz pungente que se lamenta, que pede e que diz vern, voz que da medo, entrecortada, solu~ante, quebrada, por que caminhos tua voz nao tera escoado, em que tecidos ou em que rochas nao tera repercutido para ampliar 0 carrilhao dos sentidos, das intui~6es e dos subentendidos, sob a Hngua? A voz percorre toda a gama do bocejo aprece e da profecia ao berreiro, varre a grada~ao, 0 espectro cromatico dos 6dios obscuros ao amor puro, do rugido feroz ao enlevo mlstico, queda d'agua, vento de areia, torrente, desde 0 ruldo material inerte ate a demonstra~ao distinta: mistura, vida. A gramatica esquece a flsica e a biologia, mais as paix6es e toda a literatura. Eis a voz da filosofia, que passa das litanias aos teoremas, da experiencia a invoca~ao, do rigor diamantino ao grito de dor. Abandona a rigidez sublime e logo tola para que a Hngua nao morra - por sufocamento do sentido. Sua voz atravessa como toda voz comum todas as posslveis somas de Fourier para ampliar 0 vitral, ouro, chumbo, sangue, paixao, onde brilha 0 sentido.
113
MICHEL SERRES
A linguagem fala, diz do sentido doce, demonstra, mas soa, zune, troa e dilacera tam bern com seus berreiros. Se deixa tra~os e marcas, exige luz para aprofunda-Ios ou Ie-los: a escrita se anula na noite, ela supee urn dia perpetuo, 0 verao da noite de Sao Joao para os lados da Novaia Zemlia. 0 sentido ou a demonstra~ao afirmam-se em ondas, acusticas ou luminosas, exigem energia e expansao, ainda que doce, na escala entr6pica dura, musica, ritmos, gritos e barulho, sol ou lampada. Leon Brillouin exorcizou outrora 0 demonio de Maxwel com uma observa~ao semelhante. Epreciso pagar pela lingua gem, ao menos em energia; nao gratuita, nao dada. Teremos de pesquisar, depois, se ela da 0 dado. Por ora, ele nao se da. Acreditar nisso custa a absurdidade de urn movimento perpetuo. o corpo, novamente, conhece esse suporte. Ele estremeceu, uterino, a lingua materna que cantava suas magnificencias, desejou 0 folego desesperadamente e a postura ereta sob as rajadas dos apelos, atado ao mastro, ha uns tres mil anos, no estreito das sereias, temeu, fugiu ou dan~ou, fascinado, teria dado tudo pela bela lingua. Ele sempre soube, sem que a linguagem precisasse Ihe dizer, que a linguagem e dura e doce, sempre soube desde seu nascimento que 0 dado e mistura de duro e de suave, seu trabaIho de sensa~ao transforma a dureza em suavidade; como nao haveria de conhecer diferen~a e transi~ao? o fll6sofo da linguagem gostaria que tudo permanecesse doce. Pois entao construa, navegue, quebre pedras, deixe urn pouco a moleza rigorosa, 0 feltro, a 16gica e 0 moletom.
PASSAGENS
114
Primeiras nupcias. Se subirem num dia de verao a Pratz-Balaguer, vilarejo que morre no esporiio de uma planicie elevada, nos Pirineus Orientais, por sorte encontrarao algum silencio ao deixarem a multidiio e seu ruido, a guerra vulgar que 0 turismo nos moldes da industria desencadeia no espa~o, na paisagem e na beleza. 0 lugar tranqiiilo vai desaparecer, alguns velhinhos, fantasmas obscuros, habitam as ruinas, fracos demais para recolocarem no alto do muro as pedras que a neve e 0 tempo levaram, vagueiam pelas ruelas it procura dos moleques gritalhoes que ha uns setenta anos corriam pela pra~a barulhenta de falat6rios. Ali 0 vale interrompe 0 espa~o, aqui a hist6ria chegou ao fim. Vertiginosos no alto dos
OS CINCO SENTIDOS {
Caixas }
desfiladeiros, restam peda~os dos muros do antigo castelo, 0 cemiterio desmorona atras da igreja fechada. Sem mais nobres nem guerreiros, sem culto nem cura, nem pastores, a tramontana passa sozinha. Silencio nessa mais que lenta agonia. Ali termina 0 passeio matinal na montanha, aqui come~am a sesta e 0 torpor, por entre 0 caminho invadido pela relva. 0 vento brinca na folhagem movel dos alamos ao lange da alameda. Musica? Mal se eleva acima do limite audivel. Ritmo? Antes urn quase-periodo, que as rajadas doces conjugam ao fremito cadenciado das folhas m6veis. Rumor? Fric~ao, caricias ao acaso, agita~ao multipla infima de fluxos mal perceptiveis, ruido de fundo. Musica, nao, nem ritmo, nem ruido; e se a voz divina se erguesse? Longe dos grupos 0 corpo percebe 0 divino, apto a ouvi-Io e toca-Io. 0 corpo conhece a antiga alian~a abolida pelo ruido obsceno do sagrado social. 0 religioso coletivo odeia a religiao do mundo, 0 lugar que clama comunica~6es exclui 0 vinculo com as coisas. Onde encontrar agora a minima ilha de silencio? Sozinho entre os fantasmas no vilarejo morto, mais imerso que deitado nas relvas do caminho, salvo por algum tempo do rumor imbecil, ou~o a alian~ dos ramos com urn inicio de tramontana, 0 acordo entre eles, a conversa doce entre as folhas inshlveis e 0 vento, mais baixo que doce, secreto, pudico, sedoso, quase unido ou liso, caricias de veus. A folhagem deixa ler os pequenos graos descontinuos trazidos pela rajada transparente. E preciso mergulhar mais fundo num quase sono para agu~ar mais finamente 0 ouvido externo, a aten~ao, para que 0 tecido do corpo deixe suas folhas flutuarem nas rajadas fracas e lentas dos fluxos do vento. o que diz a voz, a clemencia da alian~a? Algumas musicas fazem a melodia fermentar diretamente na materia sonora como se fermenta a massa do pao, como 0 desenho da tape~aria entra na carne textil. Nenhum fio a mais Ii costurado, 0 canto nao se afirma, distinto, na almofada da harmonia, 0 pensamento da mosofia nao se mostra, sozinho, exibido, acima ou fora da tonalidade verbal, como uma metalingua ou urn letreiro de publicidade, mas 0 fio se confunde com 0 tecido ou o sentido se funde na narrativa, a melopeia sustenta a trama sonora. Afrodite ergue sua carne de mar e 0 oceano sorri com uma infinidade de emergencias. A lingua audivel freme com a mUitipla capacidade dos sentidos. o que dizia a voz? Que era preciso escrever assim. Como a rajada fractal sobre as folhas quase brancas. A fermenta~ao de sentido augural nas sociedades duras do mundo, muito distante da voz, antes que se pronuncie qualquer palavra, comporta urn geometral de significa~6es. 0 aruspice devia escolher entre
115
MICHEL SERRES
esses possiveis folhedos. Epreciso escrever na maxima proximidade da touceira agitada, da capacidade aberta dos sentido, ofertada pelo sensivel. Entendo 0 sensivei bern denominado como a infinita capacidade do sentido. As folhas versateis dos alamos em torno de seus eixos instaveis escrevern e dizem 0 sensivel, para ler, entao, e para ouvir. Ele envolve a multiplicidade mista, 0 possive! sentido: po,os, estoques, capitais fiutuantes, capacidade, recurso. Envolve-os sem os prender, como uma cornuc6pia de abundancia de onde 0 excesso escapa. o que dizia a voz? Vociferava vozes, sussurrava vocabulos, coisa que as vozes continuam capazes de fazer, saidos de rostos imaginaveis - eu nao teria medo da morte se riscasse na areia, muita vez ou vez por outra, as marcas desse rosto. 0 sentido claro e distinto, emitido ou entendido, permutado, sobre 0 qual pode advir urn acordo, desenha urn perfil desse rosto, uma harmonia instantanea entre essas vozes multiplas, uma obra parcial e perfeita dessa obra-prima inaudivel, mas audivel sob os alamos num dia de verao quando mil fiapos de brisa agitam mil talos m6veis, finos e minusculos, em todos os sentidos estimaveis do espac;:o. Urn possivei torna-se 0 atual, 0 sensivel vira sentido, uma nota pura emerge dos clamores. Procuro 0 poc;:o do ruido. o que dizia a voz divina? Dava a paleta onde os matizes e as cores se misturam, as combinac;:6es de onde os tons sao retirados, a integral inacessivei dos sentidos, dava rigorosamente 0 sentido comum. Recebido pelo timpano generalizado pela pele. o vento, sensivel, passa por espirito, desde que seja subentendido.
116
l
A voz faz ruido, as coisas tambem 0 fazem. Os dois clamores antigamente se opunham. Era preciso peio menos urn deserto para que a voz do profeta passasse. Os montanheses chamavam-se a longa distancia, os marinheiros se interpeiavam de bordo a bordo sobrepujando a intensidade da brisa ou os clap otis das ondas, os gauleses propagavam as noticias de colina a colina em direc;:ao aos "doze leitos da rosa'; as vezes eram interceptadas pelo vento. Timidos como todos os homens da familia, mas vivendo sob 0 bojo das trituradoras que mastigavam calhaus, meus pais e meus irmaos nao sabiam falar sem estrondear. A eloquencia comec;:ava com a boca cheia de pedrinhas diante da ressaca do mar para aprender a negociar com a avalanche da multidao; 0 exercicio tinha lugar diante das aguas tonitruantes, depois, apenas diante da assembleia, a lingua, os dentes, 0 ceu da boca entulhados de calhaus, nao de tropos. Fisica, a lingua, antes de
,1,
OS CINCO SENTIDOS {
11-
i,
Caixas }
chegar diante do reitor, sua gramatica e sua l6gica: 0 6rgao de Estentor era companivel ao bronze. [dade de urn bronze desaparecido. 0 dado, doravante, pode vir da linguagem, porque impusemos silencio ao mundo. Os amplificadores clamam em urn deserto onde os dies obedecem a voz de seus novos donos. Reinado infalivel dos motores e dos tonantes, ruido de fundo das cidades e dos campos. E preciso navegar ate Patara, outra cidade morta para ver 0 teatro grego invadido pela areia do mar, circunstancia inversa: a praia enche a boca e a orelha do velho Dem6stenes, voz humana sufocada sob 0 fIuxo da ampulheta. A assembleia do povo, agora, dominou os cinco oceanos. A linguagem, mais doce outrora no duro do mundo, duramente educada para combater esse obstaculo, passa daqui em diante por unico duro nas coisas suavizadas ate se tornarem tacitas. Fez calar 0 duro. A fllosofia da linguagem ganha porque a linguagem ganha, e a linguagem vence primeiro fisicamente. Quem suporta trovao e furac6es ha cinqiienta anos e nao tern os ouvidos perfurados com as fala~6es nos alto-falantes? Nao existe mais urn unico recanto no mundo, calhau, raiz, grilo, urn unico retiro secreto, mina, bolsa, fosso, debaixo da terra ou dentro das aguas, entre as fIorestas primitivas ou no centro do deserto, que nao sufoque, tragado, pelo lixo do ruido. Antes de ter sentido, a linguagem faz ruido: 0 ruido pode dispensar 0 sentido, mas nao 0 inverso. Acontece que, depois do ruido, na dire~ao do tempo, desenvolve-se uma serie de ritmos, de movimentos quase peri6dicos, de retornos dispersos ao acaso. Do mar nasce urn fIuxo e do fIuxo, Venus: do marulho desordenado sai uma corrente ritmada, uma musica emerge entao. Por seu turno, 0 len~ol musical traz todos os sentidos, universal antes do sentido, a linguagem refinada, diferenciada, escolhe no interior desse geometral aquele ou aqueles que eIa emite ou destaca. Quem fala canta sob a lingua, ritmo do tempo sob 0 canto, mergulha neste ruido de fundo sob seu ritmo. 0 sentido arrasta atras dele essa longa cauda de cometa. Vma certa estetica, uma certa fisica tern como objeto essa faixa brilhante atras da luz ou gramatica do sentido. A escrita da lugar a uma descri~ao semelhante onde a clareza substitui 0 rumor: para exorcizar 0 dem6nio de Maxwel, ja Brillouin observava que ninguem podia ler nem escrever no escuro.
117
MICHEL SERRES
o apeIo it benevoIencia, a suplica it escuta, a primeira sedu~ao entre interlocutores passa pela voz, sottov6ce, tensao de ordem rltmica e musical. Essa virago com suas gritarias estridentes nos afasta, esse pomposo fazedor de frases monologando nos aborrece: rufdo demais, ritmo de men os, melodia nenhuma. Joguem fora todo livro que nao os seduza, de infcio. 0 primeiro acorde toca, cativa, fascina, encanta peIo canto. Trabalhem 0 exordio mais que tudo, abrupto se pretendem provocar, Iongo perfodo esvoa~ante e doce, se quiserem desarmar. A musica, no desflle, marcha na frente, de longe se ouve primeiro 0 tambor, antes da passagem das longas divisoes retoricas. 0 dialogo come~a se e somente se cessar 0 bate-boca em que ninguem ouve ninguem, em que todo mundo procura discutir com todos. No museu de Rodes, poderao ver urn vaso dos bons tempos em que dois homens, abaixo do Equador, pare cern manter conversa~ao amena, parecem dialogar com do~ura, cada qual sentado em urn banquinho posto no meio abaulado, mas 0 assento dissimula, do Iado austral, urn animal monstruoso acocorado sob 0 bojo do vaso. No fundamento do dialogo, a rela~ao bestial da disputa e da domina~ao, urros, gritos, guinchos, procuram vir it tona. As duas feras se observam sob os ban cos, prontas a morder. Ouvem-se no coloquio palavras que ladram, rugem, berram, bramam, uluIam, urram, estridulam, mugem, silvam, ganem, uivam, assim tern infcio a sessao com gritos da selva que vern de debaixo das poltronas. Assim a dialetica fere, com golpes reiterados de chifres de bode, assim luta 0 animal politico. Assim come~am a lingua e a ciencia. Dizemos tranqiiilamente que sua origem se perde, escondida ou afastada de nos, inacessivel, ei-la tonitruante, ela nos acompanha e nao nos deixa. Ao contra rio, so por milagre nos a deixamos. Quao poucas conversas abandonam os ganidos, cada qual, como cao de guarda, mastigando sua verdade ou sol tan do 0 rugido que the garante ha muito tempo a dominancia, quao poucas palavras nesses sinais duros, quao rara a reconcilia~ao dos animais ruidosos que precedem a lingua, quao pouco provavel urn sentido novo entre as linguas estereotipadas de bode. Domestiquemos primeiro as feras escondidas sob 0 assento de quem conversa.
,
"
o ritmo chega, qual urn martelo quebrando os dentes, a musica chega, lIS
dizem que suavizando os costumes, e mergulha Argos no sono e nas lagrimas, no martelar da cadencia que sai do chao de repente. Educador de bestas feras, Orfeu entra pela embocadura das Sereias, os Argonautas a remarem atras da lira. Ulisses 0 segue. Quem ousa a obra deve-se arriscar a isto.
as CINCO SENTIDOS
e
{ Caixas }
Os animais fantasticos, debru~ados em cima dos rochedos onde a ressaca arrebenta, pregados nas rochas com suas garras, clamam. E preciso atravessar 0 rumor do mar, depois desafiar as feras, garras e bicos, 0 que nos reservam as plumas macias das mulheres? Mais que a oportunidade de urn dialogo, a assembli'ia produz 0 ruldo da onda e a querela do zool6gico, ninguem a enfrenta sem medo e sem ter ouvido seu clamor que sacode a pele toda ate abalar 0 plexo solar e fazer as coxas estremecerem, e no en tanto, ela seduz, atrai para 0 fundo de seu teatro as pernas afastadas, eretas, esticadas. Sabemos construir 0 corpo do grande animal, sabemos entrar em sua caixa-preta de ressonancia. Silencio religioso desde a primeira nota de musica. Antes do ensejo de uma pagina, e preciso ultrapassar as queixas do corpo, acufenos, solu~os, desejos furiosos, em seguida, os caes dilacerantes que interditam a obra nos corredores das institui~oes e nos canais da falsa gl6ria, 0 canto do mundo, duro, parece tao doce, em compara~ao.
La esta, bern em frente, 0 estreito das Sereias. Ulisses 0 emboca, mas, astucioso, tambem 0 evita. Vma vez mais, ele se faz ninguem: desliza, im6vel, amarrado ao mastro, seguindo seus marujos que remam nas aguas tumultuadas, orelhas tapadas com bolas de cera morna. 0 barco-monada sem porta nem abertura, ja entao, inventa no mito a solu~ao de Leibniz. Ele ultrapassa 0 obstaculo do ruldo, sem emissao nem recep~ao, e anula as Sereias. Orfeu, lira ou citara 11 frente, enfrenta 0 estrondo, ouvidos abertos. Ulisses pass a em silencio, ganha, mas trapaceia ao suprimir qualquer rumor, perigo ou tenta~ao. Orfeu antes dele, corajoso, enfrenta 0 problema e 0 resolve em musica. Orfeu transforma 0 ruldo em musica. E com certeza a inventa nesses momentos tao perigosos. A musica, vinda de todas as Musas, nao pode passar por uma arte; ela soma todas as artes. Nenhuma delas se realiza, por sua vez, se nao liver musica; ela guarda cada uma e faz cada uma existir. Ela mesma, sem ela, cai nas notas, no calculo banal. A poesia anda ape, pior, de joelhos, sem ela; e a arquitetura cai nas pedras, a estatua em sua materia e a prosa em seu ruldo; a eloquencia, privada de ritmo e da camada que a evoca~ao cantante inclina, desaba na insensatez e no tedio. Orfeu compreendeu isso. Quando Apolo the oferece a antiga lira de sete cordas, a musica ainda e uma arte entre as outras, uma Musa entre as
119
MICHEL SERRES
nove irmas. Orfeu da nove cordas alira nova, cada uma delas soa por cada irma, a musica, desde entao, compreende 0 instrumento, torna-se a primeira de todas as artes porque reune a totalidade delas. Feixe, fuso, tecido das cordas, das Musas, das artes, mesa fundamental onde elas se enla<;am e se prendem. Nao hi uma unica Musa dedicada a musica, as nove irmas possuemna em comum. Que ciume eclodiria entre aquelas que se sentissem desarmadas, solitarias, e a que pretendesse governar as surdas e isoladas! A musica esta no meio delas ou constitui seu meio, intercessao e reuniao. Conjunto e condi<;ao das Belas Artes, identifica-se com os interdimbios entre as Musas, com a conversa<;ao ou 0 diaJogo continuo, com 0 acorde entre eias; construiu a casa das Musas, alimenta-lhes a existencia coletiva, exprime-lhes 0 contrato social em sua linguagem secreta. A hist6ria fornece 0 tempo a essa lingua gem; e 0 arquiteto-geometra leva a pedra, 0 ferro eo vidro a essa linguagem, cada urn sua, quota-parte e sua versao; 0 paisagista-top610go leva estufas e fontes, alamedas de jardim ou ramifica<;oes a essa linguagem, e a poesia, a tragedia, a eloqiiencia acrescentam as linguas a essa linguagem, e a astronomia adiciona ate a ciencia a essa linguagem privada de lingua e sob as linguas, privada de ideias ou de qualquer conhecimento e todavia sob todos os conhecimentos: a musica exprime 0 transcendental das artes, das ciencias e da linguagem. Nossas linguas tern sentido. A musica, sob a linguagem, universalmente sob as linguas, suporte fisico e condi<;ao, reside sob 0 sentido e antes dele. 0 sentido a supoe e nao emergiria sem ela. A musica toea os transcendentais da linguagem, os universais precedem 0 sentido. Habita 0 sensivei, tern todos os sentidos possiveis. Ela vibra no segredo de nossas conversas, sustenta continuamente nossos dialogos, nossas permutas a exigem, ja conhece nossos acordos e desacordos, construiu nossa casa antes de nosso nascimento de homens falantes e nao s6 na caixa vibrante uterina, preparou nossa existencia coletiva, e 0 contrato social, improvavel em toda sorte de linguagem, e ouvido confusamente em sua orquestra<;ao. Placa central e baixa de nossas obras, do sentido e do coletivo, a musica funda a fIlosofia. Qualquer urn que se aprimore e se aprofunde deseja compor: quem me dera consegui-lo antes de morrer. 120
Antes de trocarmos reciprocamente sentido, mesmo falso sentido ou a falta de sentido trivial dos estere6tipos, antes de construirmos 0 novo, jun-
OS CINCO SENTIDOS { Caixas
a
}
tos, coisa tao rara que tern a ver com 0 milagre, devemos formar esses universais para nos aproximarmos ou familiarizarmos ou nos voltarmos em direyao a urn sentido comum. A musica tece 0 transcendental das comunicayoes. Sob a linguagem, a placa musical reveste de universalidade 0 caos que a precede. A linguagem precisa de musica, sua condi<;ao; a musica nao precisa absolutamente de linguagem. A musica precisa do ruido, sua condiyaO; 0 ruido nao precisa absolutamente de musica. Ela range os dentes com a balbUrdia ou os verga todos em buque d6cil; de subito ja nao aparenta suficiente diferenciayao para conter qualquer sentido, tern to dos, nao tern nenhum. Assim as Musas guardam a passagem global obrigat6ria entre 0 ruido e 0 sentido, 0 corredor dos universais. Duas passagens locais margeiam esse corredor global. Acima, as Sereias guardam a passagem local obrigat6ria entre 0 estrondo do caos e 0 inicio da musica: rumor de ressaca, gritos de passaros, cantos de mulheres. Quem imaginaria urn colegiado de mulheres, nem feras como as Sereias, nem deusas como as Musas, que controlassem a passagem local obrigat6ria entre a musica e 0 sentido? A arte francesa da conversayaO foi entregue Ii reputayaO das marquesas cuja graya dirigia, em certos saloes, com habilidade, gosto, finura e acuidade, este movimento delicado e harmonioso. Diriamos entao que essas mulheres Sereias, Musas, Marquesas, Gra<;as gozam do ouvido absoluto, dos tres ouvidos exigidos pelas tres passagens, do caos denteado it harmonia em placa e da universalidade ao refmamento do sen tido.
o que dizem, 0 que cantam, 0 que cadenciam, 0 que gritam as Sereias? A Odisseia nao 0 relata, nem os ritos chamados 6rficos, nem quem quer que seja. Ulisses, 0 astucioso, tampou 0 timpano de seus pares, carecemos do testemunho deles. E se os passaros-femeas, exatamente quando 0 barco atravessa as paragens das Sereias, gritassem urn ritmo semelhante ao canto da Odisseia e Ulisses, de orelhas destampadas, 0 aprendesse nesse justo momento para canta-lo, depois, no festim do rei? E se elas berrassem nos ouvidos de Orfeu, quando ele tenta a passagem, essa especie de rito 6rfico· que termina com 0 corpo decepado? Quando naveguei por la, elas calculaYam a comunica<;ao irrisoriamente Ii maneira de Leibniz e da matematica, imunizadas contra a soluyao de Ulisses ... As Sereias fazem 0 encantamento da obra, gritam duramente 0 preyo a pagar, vertigem da vida e da saude, quase-naufragio, a perda do pensamento no rumor de fundo, emitem 0
Instituto de
OCir"/lJgia • UFRGS
121
MICHEL SERRES
ruido a ser libertado para dizer a obra, decidem a primeira taxa aduaneira ou interdi~ao, a primeira concessao: rompem-na quando a interditam, interrompem-na quando a dizem. Elas realizaram progressos formidaveis, canais de alta fidelidade, televisoes em cores, calculadoras e programadoras, maquinas de edi~ao de texto, as aguas se enchem de ondas por entre 0 barulho dos motores. 1a nao precisamos procurar a passagem perigosa que outrora guardavam, elas vern ate nos e ocupam 0 volume do espa~o. 0 mundo se enche de passaros, mulheres, trovao, ritmo e musica, ate a satura~ao. 1a nao resta urn lugar, urn rochedo, urn canto de casa, urn canteiro de lupulo, uma capoeira na fioresta, recanto, deserto, buraco, fosso, mina, po~o, cume, ponto irrespinivel a quinhentos mil pes de altitude, que as midias nao controlem corn seu falatorio. A guerra de Troia nao e mais cantada, salvo pelas Sereias, a poesia orfica so e salmodiada pelas Bacantes, pelas mulheres tracias que deceparam Orfeu, os gritos das aves ocupam 0 ceu ate 0 fim do horizonte, ninguem mais precisa franquear 0 estreito terrfvel, ninguem sai fortalecido por nao ter perecido, as Sereias nos impuseram 0 imperio dos gritos. 0 mundo, caixa, orelha e boca, ressoa. Vito ria para as Sereias, desgra~a para 0 homem de obra.
122
Orfeu passa pelas Sereias, ruidos de mar e gritos de feras. Conseguiu domar as feras, citara ou canto seguido por hienas e leopardos. Os mais ferozes animais se reconciliam. Orfeu amansa os passaros-mulheres, falta a ressaca, ele apazigua as aguas da ressaca. Como? Ulisses passa pelas Sereias, ensurdece seus marujos tapando-lhes as orelhas com cera morna, e cala-se, im6vel, amarrado no mastro; atravessa a algazarra, inventa a solu~ao minima ou nula, sem custo algum. Os que se movem a bordo nada ouvem, 0 que ouve nao pode se mover. No remo ou na manobra, os marinheiros motores do barco nao tremem de desejo nem de angustia, continuam, 0 que quer que aconte~a, a executar 0 preestabelecido, pois nao poderiam ouvir contra-ordem. Ulisses-Deus, antes da travessia ign6bil, recomendou aos marujo-monadas tudo 0 que se seguiu. Como acontece muito nos navios, 0 timoneiro, ofuscado, segue 0 rumo ditado, nao a rota avistada, a linguagem e nao 0 dado, a ordem dita, nao 0 mundo percebido. Os companheiros de Ulisses conduzem pela mem6ria, ainda ouvem a ordem prescrita: seu dado, ou coordenada, nao vern do mundo ensurdecedor das Sereias, mas da linguagem de seu capitao.
OS CINCO SENTIDOS {
ra
n,
e
a I,
Caixas }
Mesmo as mulheres volantes, capazes de fazer estremecer de desejo, nao conseguem desvia-los do preestabelecimento lingiiistico. Melhor solu~ao, maximo de eficacia pelo menor custo. Homero preescreveu Leibniz, quebrou qualquer comunica~ao momentanea com as monadas programadas para remar em frente. 0 dado-sereia desaparece. o que cantam entao, 0 que gritam as Sereias? 0 mundo banal, misto de doce, atraente, e de duro, repulsivo. Ulisses trapaceia, economico, avaro; Orfeu aceita 0 custo. Os Argonautas, companheiros de Orfeu, com orelhas abertas, podem escolher a cada momenta 0 enquanto inquietante dessas mulheres ou a harmonia da citara, livres para mudarem de rumo. Ulisses sup rime 0 tempo, Orfeu brinca com ele, cria-o, raro. A composi~ao enfrenta 0 ruido das feras e inventa a harmonia na vizinhan~a do canto delas; a musica produzida conserva continuamente 0 tra~o do que a anuncia ou inaugura, do que a precede, nas gritarias; assim Dem6stenes enfrentava, com a voz, ondas no ouvido e pedras entre os dentes para que sua eloqiiencia lan~asse uma camada dura e possante sobre 0 rumor da assembleia. Ulisses atravessa 0 estreito uma vez; nao jogara outra partida; Orfeu, sim, recome~a: tentanl a passagem das Bacantes e nao conseguira: a musica se dispersa e desaba no ruido. Ulisses, prudente e calculista, ganha sempre; heroico, Orfeu nem sempre ganha, compositor. Para jamais perder, e preciso cortar qualquer comunica~ao. Ulisses coloca um flitro passa-baixas, Orfeu um flitro passa-altas. Ulisses-Leibniz elimina todo 0 ruido; por que 0 espanto que a mensagem passe? As monadas recitam a li~ao que Deus imprimiu em suas memorias desde que nasceram, remam firmemente man tendo 0 rumo na ressaca das Sereias em meio it solidao surda, enquanto suas orelhas ouvem a harmonia preestabelecida. A ciencia supoe um mundo sem ruido. Ela vence. Ha barulho, 0 mundo esta alastrado de passagens das Sereias. Orelhas abertas, cotovelos livres, alma de cera entregue ao vento, Orfeu luta com 0 caos, atira-se sem defesa entre as feras e as mulheres, nos recifes, tenta a solu~ao maxima, perigosa, dispendiosa, produtora de musica. Para sair dali e preciso compor, can tar a cada minuto, nunca deixar de erguer 0 escudo de harmonia diante da algazarra, inventar uma curva rara, dan~ante como a proa por entre 0 marulho das arrebenta~oes, lan~ar-se a frente de um tempo novo. Orfeu nem sempre ganha e queima suas for~as na obra, oferenda musical que desenha seu tempo. Mas expoe-se ao risco
123
MICHEL SERRES
de cair bruscamente no ruido. Pois sem os universais da musica, sem 0 seu transcendental, 0 caos vence, ninguem atravessa 0 canal. Leibinz supoe 0 mundo sem ruldo, sua solu,ao nao exige trabalho algum, 0 universal esta em Deus. Mas como ha ruido, a filosofia deve manter com Orfeu a mesma reia,ao que liga Leibinz a Ulisses. Ela deve supor, antes do sentido e da comunica,ao bem-sucedida, condi,ao para a 16gica e a linguagem, uma musica que subjugue 0 ruido, deve inventar, arriscar-se a compor, descobrindo assim urn tempo raro. Mesmo na solu,ao 6tima ou nula, de resultado perfeito pelo menor custo, Leibniz dissera tambem a anterioridade da musica, visto que poe em Deus, eternamente, uma instiincia ou fun,ao que ele chama de harmonia: s6 trocamos as palavras. 0 pne-requisito ou fundamento das melhores comunica,oes e das ci~ncias Ii identificado a musica ou harmonia, preestabelecimento, condi,ao ja transcendental. Misteriosa ou mistica partitura ouvida pelas m6nadas surdas e encarregadas de explicar por que remam em cad~ncia no sil~ncio. Infelizmente, ouvimos ruido, ja nao podemos fazer como se s6 existissemos n6s e Deus no mundo; lamentos, gritos, solu,os, brados, encantamentos nos agridem, muito antes de receberem sentido; temos, pois, de compor musica a cada instante para sobreviver, sentir, participar das conversas, e para faz~-Io devemos ficar expostos as feras e as Sereias, II dispersao das coisas, do grupo e de nossos membros, expostos as Bacantes. Sem essa obra de fundo que contem 0 ruldo de fundo, nada se mantem unido, nem as coisas no mundo, nem pessoas no coletivo, nem os sentidos, nem as artes, nem as partes do corpo. A musica vern antes da filosofia, ninguem pode se dedicar II segunda sem passar pela primeira. Orfeu amansa as feras, os leoes se deitam diante da citara, a harmonia aplaina 0 a,o. A ressaca amaina, as garras dos passaros-mulheres viram patas de veludo: os lobos nao sao mais lobos para os lobos, reconciliam-se. A guerra das coisas, dos homens, a angustia, da tregua. A musica apara os espinhos do ruido, lima 0 aspero e 0 rugoso do caos, garras, caninos, cristas, ela ado,a 0 duro. A tripla dureza suaviza-se tr~s vezes: nas mensagens das coisas, nas dos grupos e nas do corpo.
124
Filho de Cailope, Musa da bela voz, patrona da poesia epica e da eloOrfeu canta. 0 canto lan,a a linguagem sobre 0 suporte material de musica, atira a do,ura do sentido sobre as asas acusticas duras.
q(i~ncia,
OS CINCO SENTIDOS
{Caixas}
o lenc;ol musical suaviza 0 duro. Por outro lade, apresenta ao sentido o duro e 0 doce. Sob 0 canto, sua frase as vezes parece dizer, como urn sentido sufocado, aplainado, amordac;ado, velado, timido parece falar alguma lingua esquecida de antes do sentido, tao antiga que se dirige a carne. Faz ouvir 0 suporte musical da linguagem, sua energia, como sua parede, apoio ou habitat, constroi 0 ninho do sentido. Doce da dureza, depois da experiencia das Sereias, e duro da doc;ura, na passagem das Musas. A variedade-musica apresenta assim duas faces ou vertentes: a face doce nivela os espinhos, a vertente dura aplaina 0 sentido. Duas vezes universal com duas vertentes unidas. Mas a pele, quente e forte, defende-nos muito duramente, e tambem docemente se tatua, tina e calorosa, de coisas impressionantes e de suas proprias emoc;5es. Ouvimos a variedade musical com duas folhas de toda nossa pele igualmente duplicada. Enrodilhamo-nos em seu ninho, nus. Nao sei se 0 dado so se dol pela e na lingua gem, mas neste caso tudo se passaria como se ele se desse previamente na e pela musica, como se ela 0 perdoasse. Entendamos como musica, aqui, 0 conjunto das Belas-Artes. Que 0 escritor nao dissesse apenas que 0 sentido calcula de fato, mas escreva quando todos os sentidos fremem na carne verbal, semidoce, variedade dupla para a visao, 0 tato, 0 olfato, ou 0 gosto tambem. A citara de nove cordas e sempre colocada entre as feras e 0 recitativo, entre a morte e 0 saber. Nossa lingua, vogais, sintaxe, rigor, banha-se na musica sob pena de morrer.
A variedade ou lenc;ol musical escoa ou desliza entre 0 mundo enos, entre nos, em nos. Se algum acordo advem entre nosso corpo e as coisas, entre os individuos que formam 0 grupo, ou em meu corpo prestes a se romper, ela the condiciona a vinda. Duro do doce e doce do duro, transicional, a musica de minha lingua impede-me dize-la dora. Como funciona a sensac;ao? Que saber e preciso aprender para conhecer urn funcionamento que deve estar situado no inicio do conhecimento, em seu fundamento ou em sua condic;ao? A questao pertence, tambem ela, a classe dos problemas que remetem incessantemente a urn terceiro homem ou urn terceiro termo. Nao conhecemos ciencia que nao suponha, de alguma mane ira, uma sensac;ao previa, mesmo que fosse preciso, as
125
MICHEL SERRES
126
vezes, muitas vezes, quase sempre, de fato sempre, abolir 0 sentido de seu dominio. A sensa~ao nao so esta situada atras do saber que acredita falar dela, como 0 conhecimento corrente a expulsa. Aqui a fIlosofia da linguagem sempre tern razao, ela fecha a fIla das remiss6es a uma terceira ciencia. o que quer que tenhamos aprendido pela sensa~ao nada sabemos dela. Eis uma caixa-preta. A esquerda ou acima, 0 mundo. A direita ou abaixo dela, 0 que transita em certos circuitos e que nomeamos informa~ao. A energia das coisas entra ai: sacudidelas do ar, pancadas e vibra,oes, calor, alcoois ou esteres, fotons ... A informa~ao sai dai e, entao, 0 sentido. Nem sempre sabemos onde esta situada a caixa-preta, ignoramos como ela transforma os fluxos que passam por la, que Sereias, Musas ou Bacantes ali se agitam, para nos ela permanece fechada. Entretanto, podemos dizer com certeza que para alem desse limite, aO mesmo tempo de ignorancia e de percep~ao, 0 mundo, 0 grupo, a bioquimica celular permutam suas energias em escala usual e que aquem do mesmo limite de informa~ao ocorrem sinais, figuras, linguas, sentidos. Antes da caixa, 0 duro; depois da caixa, 0 doce. Nao conhecemos a sensa~ao: melhor dizer que ela ocupa essa caixapreta. A descri~ao mais honesta que dela se pode fazer, a que comporta mais ignorancia do que pretensao de saber, nao diz nada alem dos subentendidos de cern narrativas miticas. A caixa-preta tern duas faces: dureza de uma do~ura, do~ura de uma dureza. Lugar, espa~o, volume, variedade enfim onde as energias transitam de uma escala a outra. Caixa-preta doce para as energias altas, caixa dura para as muito baixas. A variedade-sensa~ao, 0 conjunto de suas caixas deslizam ou se situam entre 0 mundo e nos, entre nos e em nos. Se algum acordo advem entre nosso corpo e as coisas, entre as pessoas que formam urn grupo, ou em meu corpo prestes a se romper, a sensa~ao condiciona-lhe a vinda: 0 acordo exige uma mudan~a de escala. A sensa~ao nos guia enos defende, sem ela morreriamos, corpos explodidos, decepados pelas for~as fisicas, pelo poder do social e pelas dores intimas. Ela apresenta, como urn ninho, uma vizinhan,a ou uma parede moles de espinhos duros e, em sua cavidade dura, gera 0 sentido doce. Que sai dessa cavidade e voa. Doce do duro e duro do doce, limite transicional. Minha lingua tao
as CINCO SENTIDOS
e seu falar ~ua
lcia. nos ou naies, io. no nli1-
n
{ Caixas
J
doce ao ouvido, mas tao dura ou severa em suas regras impede-me dize10 doro. A sensac;:ao tern 0 estatuto da musica. Tradicional, 0 termo estetica tern dois sentidos. Designa urn discurso sobre as Belas-Artes e outro sobre 0 dado. Esses dois reservat6rios de palavras nem sempre alcanc;:am seu objeto, como se a beleza fugisse para tao longe de nossos dizeres quanta 0 sentido. As obras de filosofia nas principais linguas ocidentais geralmente separam esses dois senti dos, as mais celebres consumam 0 div6rcio. Eis as nupcias. A musica, considerada como 0 conjunto das artes, dura e doce, doce e dura, faz sentir a dupla face de sua variedade, as duas paredes de sua caixa. A sensac;:ao, caixa-preta, instala as duas paredes de sua verdade entre as a1tas e as baixas energias, doce e dura, dura e doce. Ela reune as Belas-Artes, a estetica s6 tern urn sentido.
1-
A musica canta antes da lingua, antes do sentido, condicionalmente ao que sempre permanece doce. A sensac;:ao, 0 sensivel permitem 0 sentido e o condicionam, preservando sua doc;:ura. A linguagem fica no exterior da esfera unitaria da estetica. As artes da lingua devem sua beleza it vizinhanc;:a do que esta fora da lingua gem. A unidade reencontrada de urn mesmo lugar excepcional e familiar da uma grande alegria: 0 mundo se da por belo, temos necessidade da beleza para viver. Euridice morre picada por uma serpente quando fugia da perseguic;:ao de Aristeu, 0 melhor ou 0 primeiro dos criadores de abelhas. Dentes e dardos. Os contornos materiais, adoraveis, da mulher se desvanecem, Euridice torna-se uma sombra, urn nome, imagem ou lembranc;:a para ser evocada, uma inscric;:ao gravada em urn tumulo ou 0 nome pr6prio escrito ou lido esta manha na pagina. Os Infernos subterraneos eram povoados outrora desses mesmos fantasmas que n6s, modernos, acreditamos ter na alma ou na cabec;:a, desses espiritos que temos no espirito, dessas palavras que n6s, contemporaneos, acreditamos ter sob a consciencia ou reuninlos nas bibliotecas ou gramaticas ou nos bancos de dados. Variamos na hist6ria quanta aos nomes que damos as caixas-pretas onde 0 duro se transforrna em doce, entendimento ou escrita, alma intima ou Campos Eliseos: mesma obscuridade, mesmas dores e labirintos, semelhante tenuidade
127
MICHEL SERRES
128
verbal, mas que traz 0 nome de mundos ancestrais. Euridice, tanglvel e sensivel as car/cias, desce a noite das sombras, for~a que se torna simulacro, voz gelada no epitaiio. A morte precipita 0 volume das coisas no espa~o da linguagem. Orfeu desce aos Infernos, deixa as for~as para se juntar aos fantasmas, abandona 0 duro para se abandonar ao doce, entra na cabe~a ou na biblioteca, ou na sua pr6pria caixa de musica, a lira. 0 fil6sofo sabe descer esta via: abre as caixas-pretas, conhece os segredos ou labirintos infernais, visita a consciencia ou 0 entendimento, a razao mesmo, a vontade como numa simples livraria, decide que se trata de uma livraria. Orfeu acalma Cerbero, dio de guarda monstruoso. Com sua musica, ele imobiliza Tantalo em seu gesto voraz e vao, e a pedra de Slsifo bern no meio da montanha. Tudo para e deixa as imagens fucas. Mesma li~ao: ado~amento do duro. Ja nao tememos goela nem caninos, 0 molosso torna-se tao comportado como uma imagem, 0 verbo morder nao morde, a palavra cinica nao ladra. As feras se transformam em cartazes pintados nas paredes do corredor, a publicidade nunca mostra nada a nao ser Tantalo. Mas 0 trabalho de Orfeu come~a no limite preciso onde a li~ao muda, na segunda proeza inversa da primeira, transformar 0 doce em duro. Ulisses desce aos Infernos, Orfeu entra nos mesmo lugares: urn visita, 0 outro conquista. Urn encontra conhecidos, dialoga facilmente com eles, atravessa sem temor 0 pasto de sombras llvidas, vai a estante de historia, consulta, compara, descobre, instala-se na caixa onde os fantasmas fazem frases, sem corpos. Nao arrisca nada, entra e sai, sai da caixa como entra, com informa~ao a mais. Orfeu arrisca, e nao quer sair como entra, quer energia, urn corpo, a mais: Eurldice viva. Ele tenta mudar a mulher-voz, a mulher-palavra, em corpo. A musica tenta arrastar Eurldice para os Infernos, para a desconstru~ao processadora onde se reduzem seu vestido, seu corpo e seu encanto; a morte carnal transformou-a em urn leone llvido flutuando nas planlcies de asf6delos, forma suave sem borda nem corpo que 0 amante nao pode mais acariciar; como ressuscitar essa infla~ao vocal, gravura ou estampa? A morte nos transforma em palavras, as palavras nos transformam em mortos. Frase-epitafio que enterra as coisas embaixo dela. Os que tern a ver com as palavras tern a ver com os mortos e dao-se ares de carre gar 0 luto do mundo. Nossos nomes bus cam desde nosso batizado uma vaga imortalidade, tra~o doce a partir de nosso desaparecimento. A morte nos reduz a nosso nome unico, fnigil, leve, esvoas:ante, sem defesa, que uma
OS CINCO SENTIDOS {
Ie aaIS, )-
ta io I, )
Caixas}
fina camada de areia de circunstancia recobre. Euridice, bela, grande, quente, vibrante, apequena-se no nome de Euridice, doce. A morte, assim, ado,a; a musica tambem 0 faz; a linguagem tambem. Orfeu sob a ab6boda dos Infernos grita: "Euridice!". Entao a voz, dura, carrega 0 nome no grito. Orfeu, sob a catedral infernal, canta: "Euridice! Euridice!". Entao a musica, no canto, carrega 0 grito. Orfeu da ao nome de sua amada 0 peso de chamamento, a dureza vibrante enche com seus ecos os vales sem sol e os corredores estreitos dos Infernos. A musica pretende mudar 0 doce em duro, ado,ar 0 nome de Euridice, tira-Io do epitafio, da gravura entalhada no marmore, tenta sua liberta,ao fora da prisao minima do nome, escrito, falado, cantado, fora da garganta coagulada da imagem lisa. Euridice, Euridice, Euridice, desce da pintura onde jazes, grudada, sai do kone que te imobiliza. Sai da palavra. Ergue-te do nome. Liberla-te da cartela. Retira-te da representa,ao. Readquire 0 movimento, uma espessura, a carne dissolvida, seu brilho desvanecido, 0 volume material do corpo, 0 grao acetinado, fragil, da pele, a luz variavel, limpida, colorida do olhar, a flexibilidade horizontal do andar quando se adapta ao solo, 0 peso do peito, das ancas, dos ombros e do pesco,o, 0 esqueleto duro. A amada sai da sombra docemente, imagem e palavra. 0 verbo se faz carne. Evoca,ao: alguma coisa, uma carne sai da voz. Orfeu invoca, sua voz e as cordas tremulam, ele chama, grita, cede ao encantamento. Comp6e a musica e Euridice. A mulher espectro ressuscita, segue sua voca,ao. A voz da carne ao nome, livra a palavra da morte, a luz a desprende da noite, a musica acrescenta sua carne, endurece 0 suave: ate onde vai a encarna,ao? Assim como as feras, duras, seguem, docemente, os acordes da lira, assim como as florestas, escuras, inclinam juntas seus espinhos ou agulhas, assim, em sentido inverso, Euridice, doce, evocada, segue, duramente, seu amante, ao longo do dedalo complexo da obra e do nascimento, em dire,ao aos propileus de saida que ninguem franqueia assim. Euridice se endurece. A medida que 0 leaD avan,a para a citara, ele se torna mais imagem, sombra, fantasma, mais verbal e nominal; 11 for,a de avan,ar, Euridice, ao contrario, faz-se mais carne e corpo, seu nome entra na voz, sua voz entra em acorde e 0 acorde em uma garganta, e a garganta na cabe,a, esta e sua cabeleira movedi,a emergem das espaduas, ela surge 11 invoca,ao, 0 alto do
129
MICHEL SERRES
corpo, axilas, talhe, seios, erguem-se da noite como Afrodite outrora se ergueu das aguas, como cada urn de nos da caixa-preta uterina ou da ignoran cia e virgin dade sensoria is, como cada urn de n6s se retira do frio. Luz e calor amaciam uma pele encarquilhada no escuro gelado. Orfeu compoe, constroi Eurfdice viva, pe~a por pe~a e sentido por sentido. Levantate e anda! Fala, pois! A extensao do labirinto mede a paciencia imensa que a encarna~ao requer. A obra sai dos Infernos, dos subterraneos onde flutuam as palavras, conceitos, imagens, nomes e sombras, retira essas sombras dos mundos ancestrais, incorpora-as por chamamento ou encantamento; 0 nominal drogado ou frfgido desperta. Constru~ao. Cada livro liberta-se da biblioteca, sua pior armadilha.
.'ii
. .,,.
"
130
Orfeu se entrega ao mais dWci!. Nada mas faci! que domar hienas ou jaguares, que amaciar 0 duro: basta descer a ladeira, seguir 0 trabalho entr6pico da morte, em dire~ao a desordem e ao fragmento; passar da coisa as representa~oes, nomear, descrever, reduzir 0 objeto a urn conjunto de palavras ou de frases. Nada mais dificil que subir a via inversa, a rota vertical da vida, da obra, encarna~ao ou cria~ao. A lei de ferro segue em dire~ao aos Infernos, ninguem volta de la, voces, que ultrapassam 0 limite do conceito, percam qualquer esperan~a. Orfeu tern exito quando se trata de ado~ar, tao bem-sucedido quanta Ulisses. Mas fracassa ao arrastar Eurfdice na ultima ladeira, falta a Ultima obra de carne, a amada recai em sua sombra: a cabe~a na garganta e a garganta em acorde e 0 acorde na voz e a voz no nome, involu~ao fulminante, retorno ao epitafio. Proeza suprema, grandiosa, rara, a de dar vida ao dizer, gesto usual e banal 0 de substituir a coisa pela palavra, faci!o A obra tenta a brecha em dire~ao ao pr6prio mundo, mesmo Orfeu nao pode voltar a ele. Obra maternal, sempre fracassada no ultimo instante. Significa com toda a clareza que nada se faz faci!mente sob 0 sol a nao .ser a filosofia. Nada tao faci! quanta nomear descrever, conceber. A queda dos corpos e a morte favorecem essa paixao, a lei da economia leva ao grande declive: descida nlpida aos Infernos, lis gramaticas, aos dicionarios, lis bibliotecas, aos bancos de dados, facilis descensus Averni. Nao procurem o objeto, nomeiem-no. Nao busquem nem a mulher nem a fera, citem os nomes proprios que as nomearam. Inversamente, a lei insuportaveJ do maior custo exige a longa paciencia do caminho vertical, 0 chamado inter-
OS CINCO SENTIDOS
,z
{Caixas}
minavel das sombras para que elas voltem a dan~ar. earnais. a luz. trabalbo tao duro e tempo tao longo. potencia tao seguramente inacessivel que o mais paciente sempre peca por impaciencia. que 0 errante dessa peregrina~ao sempre acredita cedo demais que sai. enfun. dos limbos. e que aquela que ele dali retira. tambem ela. enfim. est
131
MICHEL SERRES
navio ao passadi~o a ceu aberto, e abandonado de fato ao silencio, morrendo de vivido jubilo, entao a gente sabe como sofremos todos a aventura de nascer. Aprendemos nesses pequenos momentos em que reagimos diante do mundo e empregariamos toda nossa arte em nao ouvi-Io, em mante-Io distante, sem a ponta de regozijo amargo mas soberbo que nos atrai a ele. Por horror as sensa~6es, preferimos 0 sonho nas paIavras do beliche.
.i
132
Uma noite as mulheres tr;icias cortaram Orfeu em peda~os. Por que? Nao sabemos ou sabemos demais. Uns dizem que ap6s a perda de Euridice, Orfeu voltou as costas as mulheres, que ficaram ressentidas. Outros que ele inventara a homofilia. E outros, que ele instituira misterios dos quais as mulheres foram excIuidas. Outros ainda, que Afrodite 0 amaldi~oara. As justificativas para este drama sao inumeras e todas seguem 0 mesmo sentido: mil e uma raz6es sexuais. A verdade e que mulheres bUlgaras ou tnkias, correndo pela montanha em uma especie de saba, atiraram ao espa~o os membros dispersos de Orfeu, e a cabe~a num rio cuja correnteza a levou para longe no mar. Diasparagmos freqiiente nos mitos. A explica~ao corre desde a Antigiiidade: ela desloca a aten~ao do pr6prio diasparagmos. A justificativa pelo impulso sexual a for~a do impulso sexual, essa for~a adquire e torna suas raz6es evidentes, como se ve na publicidade. Para dar valor as coisas, rodeiam-nas de mulheres, bastante bulgaras urn tanto nuas. A aten~ao se desloca da dita coisa sem valor, para a abundante e soberba nudez. 0 deslocamento d
OS CINCO SENTIDOS {
'-
)
Caixas}
antigamente nos formavamos na lingua das ciencias, 0 grego, estudando 0 verbo desligar. 0 primeiro verbo grego, na gramatica, quer dizer cortar, romper, quebrar, eis a analise. Ela diz 0 contrario de construir ou de ligar. Ela devolve Euridice aos Infernos do dicionario. As mulheres tracias, como se falassem grego, precipitam-se sobre Orfeu para aprender ou saber, para pensar ou explicar a musica. Ora, a musica Ii composta. Se for analisada, esvai-se em notas ou pe,as esparsas. 0 diasparagmos equivale 11 analise, a analise equivale a urn diasparagmos. As bacantes explicam os textos cujos membros esvoa,am no ar. Analise: as articula,6es do corpo de Orfeu sao desligadas; a harmonia e dividida; a multidao de mulheres bulgaras desmonta a lira corda por corda, nao temos mais arte global, de nove Musas, de nove cordas, s6 conhecemos disciplinas. Nao teremos mais sensa,ao, conheceremos 6rgaos. As que esquartejam Orfeu nao se lan,arao sobre ele em silencio. Rigorosamente elas 0 observam para esperar 0 cantor no fundo do bosque. 0 acorde delas produz 0 sMncio que aprofunda 0 acorde e lhes permite escutar de longe a doce lira que chega. Surdo, mudo, 0 mundo monadico desenvolve a harmonia. Deus e ou cria uma musica previa que organiza a vacuidade sonora do mundo. A musica produz 0 silencio. Ele a conduz a urn estado zero, quase perfeito. Ela produz 0 silencio como uma bela singularidade musical, urn caso raro de harmonia. Percebo isto como uma verdade sensivel, tambem: quando 0 ruido para, tao duro, 0 silencio, doce, ja promete a mais completa das artes. Nao trazendo nenhum sentido para elevar todas, a musica contoma ou envolve ou compreende 0 silencio. Quando ela para, ele, por sua vez, reaparece, nu, e renasce sub lima do. Ele tern duas faces, uma voltada para a balburdia, a outra para a palavra e 0 sentido. A saude vern do silencio dos 6rgaos, 0 acorde social sobrevem do silencio das bacantes, os Pais do deserto ali se sabiam em bem-aventuran,a. A face doce-dura do siJencio nos protege do caos, sua face dura-doce nos eleva para 0 senti do, deliciosamente. Toda recep,ao ocorre nele. A emissao, sempre, ganha longe da recep,ao. Eis uma boa prova: nao podemos ter certeza se alguem recebeu sem lhe exigir urn colacionamento. E preciso uma nova emissao para dizer a recep,ao. A sensa,ao mergulha portanto no silencio, receptivo. Entendam isto como uma verdade sensivel, como a verdade dos sentidos, como uma verdade metafisica. A mudez inunda nossos sentidos. Que meu livro possa
133
MICHEL SERRES
habitar a felicidade desse sil~neio. Testemunha-lo consiste em colacionar. Assim a fllosofia da linguagem diz perfeitamente 0 estatuto do cotejamento. A lingua gem colaciona a sensa,ao. Emite enquanto a sensa,ao recebe, e fala, po is, de seu sil~ncio. Fica surda e muda, quase m6nada, taeita enquanto ele recebe. Em seguida, a recep,ao, ela mesma se colaeiona, emite, portanto, fala. o sil~ncio constr6i 0 ninho, 0 habitat da sensa,ao. Sem ele, ela nao existe.
"
'J
{
.,., I
134
As que esquartejam Orfeu nao se precipitarao sobre ele sem ruldo. Elas ouvem de longe ele chegar, pelos murmurios da fIoresta, pois os galhos, imoveis, inclinam-se para ele enquanto ele caminha, segurando a lira, no meio do costumeiro colegio das feras, reconciliadas. Orfeu nao se salva de suas garras nem de suas goelas, como Daniel 0 profeta, na cova, mas os le5es e os lobos, eles mesmos se salvam dos lobos e dos le5es pela musica e pelo canto que harmonizam os irreconciliaveis, que substituem 0 furor guerreiro ou sacrificial pela do,ura. Eis, de novo, 0 contrato social sem texto. As feras, duras umas para com as outras, tornam-se doces. 0 homem nao e mais leao ou lobo do homem, anarmonicamente, especies estranhas, mas torna-se homem, reconhecivel. 0 coletivo muda de nome a vontade, alcateia de lobos, cebanho, fIoresta, multidao de mulheres, a musica sempre a dar seu acorde raro e instavel, raro como 0 sil~ncio, instavel como a musica de g~nio, ela mesma sempre em perigo de desabar no rulda. 0 contrato social fica instavel como a do,ura das mulheres e a taciturnidade dos lobos. Orfeu segue na paz: 0 homem-lobo reconhece, a medida que progride, urn outro homem no leao, nos galhos da arvore, na mulher. Harmonia. 0 reconhecimento, amplo no espa,o, acima dos indivlduos, difunde-se como a melodia. Orfeu fica na clareira, a fIoresta torna-se doce aos animais, doces os le5es, doces as mulheres, doces os lobos, ou,am 0 acorde quase silencioso, cada qual retendo sua palavra, seu grito, seu proprio f6lego, para receber melhor. Mas os galhos se agitam urn pouco, a folhagem come,a a sussurrar, as feras arfam baixinho, as primeiras gritarias das mulheres tracias que se aproximam come,am a disputar a musica 0 espa,o acustico. Fr<\gil harmonia que se desmorona sob as primeiras fIechas do rumor, fragil face dura-doce que se quebra sob as pedras asperas dos clarno res. Depois de urn equilibrio instavel e perigoso, 0 tumulto logo ultrapassa 0 acorde, que se fen de, explode em nossas orelhas, e as feras investem contra as feras, 0
OS CINCO SENTI DOS (
Caixas }
vento-furacao dobra os troncos das arvores, eis a analise, a harmonia se desfaz, os rebanhos se afrontam, Orfeu se dispersa em peda~os. A musica sustenta muito alto seu equiHbrio instavel e raro. 0 primeiro grito ou a primeira patada, a simples batida de urn aplauso 0 destr6i; ela cai e quebra-se, destruida, analisada. Cada leaD ou lobo, cada mulher, acreditava ouvir de per si uma nota saida da lira, sem duvidar que esta nota fosse ele. Cada urn solta urn grito discordante, cada urn sabe que nao grita como os outros. Cada leaD ou lobo, cada mulher, acredita trazer consigo urn peda~o de Orfeu, sem ter duvida de que ele e este peda~o ou este membro. Cada urn de n6s ao aplaudir fragorosamente esmaga Orfeu entre as palmas, esmigalha-o ao reduzir a musica triunfal a urn barulho vil. Orfeu cantava na televisao, os leoes erguidos ap6iam as patas dianteiras na tela, 0 vidro desmorona em peda~os miudos, a imagem se apaga quando a parede se quebra. Mas se man tern alhures em toda parte, em outras esta~oes. Orfeu nunca existiu a nao ser no mito, fora da linguagem. Ele representa a integral ampla que 0 som musical propaga no espa~o, 0 sucesso outrora raro do acorde dos nao-integraveis, somat6rio fragil. Mas ele existe poderosamente, agora, indestrutivel. A harmonia ja nao e igual ao urn do multiplo, mas canseguiu seu acesso ao multiplo para manter 0 todo. A musica nao resistia as analises. As bacantes explicavam as partituras de Orfeu. Desde entiio, ouvimos as partituras delas. As analises detem a lingua gem, e as mulheres tracias controlam 0 que resta da musica, invadem os espa~os com seus gritos.
o tato costura lugar por lugar, pontilhista, se quiserem, impressionista por panos e localidades; estabelece os mapas, variedades ou veus. o ouvido global, integral, ja abstrato, em busca da unidade, preenche os volumes: caixas, cafres, asas, prisoes, teatros, cidades, circas, infernos e tlorestas, espa~os marinhos onde a cabe~a do musico, arrancada, desatada, destacada, tlutua ainda em dire~ao as ilhas e canta, ocupando 0 vento que corre entre ceu e ondas; meu corpo inteiro, caixa de musica ou de linguagem, caixa de ressonancia, bronze que repercute, assim como meu grupo, teo ria algumas vezes reunida no teatro. 135
MICHEL SERRES
CELULAS
, ..
""
136
Uma caixa-preta interrompe, por desconhecimento, uma serie de conhecimentos ou abre uma lacuna num volume claro. Compreendemos isto ate certo limiar, aquilo e os subseqiientes a partir de urn outro limite determinado, mas entre isto e aquilo, 0 limiar e 0 limite, nao sabemos nem compreendemos, a mudan~a nos escapa. A caixa recebe isto, emite aquilo, em quantas dimens6es quisermos, e esconde em suas paredes as transforma~6es ignoradas. Ela parece defmir bern 0 desconhecimento. Obje~ao. 0 observador pode saber e compreender aquilo que vaza da caixa, ao receber sua emissao, provave!mente da mesma maneira que isto que se passa antes da caixa. Como seria possivel compreender 0 que se passa na vizinhan~a do limiar-acima? A caixa recebe, e claro, mas 0 que significa essa recep~ao para 0 observador? Ele precisa recebe-la, mas ela nao emite. E preciso, pois, que e!e se situe no interior da caixa que se acredita fechada, cuja parede, por conseguinte, e preciso deslocar. Mas 0 raciodnio volta irresistivelmente, ja que se trata de recep~ao. Acrescentemos, pois, uma pequena caixa-preta no limiar da grande, a cavaleiro do flanco acima. Mas como a questao pertence a categoria do terceiro homem, e a nova caixa-preta esta munida de uma recep~ao na parede acima, e preciso uma terceira caixa-preta a cavaleiro da parede da segunda, e assim tantas quanta se queira. Os encaixamentos pululam abaixo. Nao compreendemos a recep~ao, salvo quanto a faze-la coincidir com a observa~ao. Compreendemos a observa~ao? E, uma vez mais, a solu~ao escapa. A emissao triunfa sobre a escuta, sabemos como lan~ar urn som e como se propaga, podemos retransmiti-lo, nao sabemos bern como recebe-lo. Ciencias e filosofia reproduzem em suas disciplinas 0 desequilibrio habitual e brutal desses dialogos em que todo mundo fala e ninguem ouve e desses grupos animados onde todos produzem 0 maximo de ruido possive! para grande sofrimento de todos, sendo cada sofrimento expresso por urn grito cuja intensidade tem por fim uma audi~ao tanto mais impossivel porquanto induz novos sofrimentos que se manifestam em c1amores. Amanha, amaremos 0 pud~r, que fala raramente e por litotes. A solidao monadica cresce no espa~o das mensagens, 0 solipsismo pesa mais no chamado mundo das comunica~6es, 0 imperio de Hermes acentua 0 subjetivismo. A emissao triunfa sobre a audi~ao, nao sabemos receber. Quer se trate da caixa-preta ou do esquema bern simples que Jiga urn emissor a urn
OS CINCO SENTIDOS {
Caixas}
receptor, 0 p6lo que percebe ou sente esta envolto num encaixamento de caixas-pretas. A audi~ao mergulha no siiencio e na surdez. A comunica~ao se perde. au bern existe 0 privado, e entao nao M mensagens objetivas, ou elas circulam, mas 0 privativo desaparece. Estudem pois as matem,\ticas e bebam agua fresca. Fim do meu prop6sito. au seu come~o. A obje~ao destr6i meu livro e qualquer esperan<;a de dizer a recep~ao ao mesmo tempo em que ela come~a a construir uma especie de objeto que poderlamos chamar de receptor abstrato. Tudo se passa de fato como se a sensa~ao fosse organizada ou como se a apanhassemos dentro, por intermedio e atraves dos modelos encaixados do mesmo g~nero. Formamos caixas para escutar, conectamos a orelha ao pavilhao de uma concha para ouvir 0 barulho do mar, construlmos espa~os propositais para escutar ou para nos entender uns aos outros: pra~as, ab6badas, paredes de fundo, igrejas, teatros, passagens estreitas, ruelas, vielas, orelhas de pedra. Prestigiamos os ecos e as rimas. Robinson visita 0 vale desolado, garganta apertada que the devolve a Ultima palavra do versiculo que leu em voz alta: "minh'alma", minh'alma, minh'alma repetida ate 0 sil~ncio, espelho mUltiplo de seu cogito. Entao experimentou andar por uma ruela cujos muros lhe devolviam 0 ruldo de seus passos. Na ignorancia do pr6prio bicho, na certeza ou evid~ncia de sua fuga e de seu desaparecimento, ajustamos lugares por onde 0 fazemos passar, tarrafas, redes, dedalos, onde 0 peixe se introduz sem que 0 vejamos ou 0 ou~amos, onde ele se contorce, apanhado, preso. Recep~ao cativa. Com 0 tato ou a pele pintamos a tatuagem, impressao variavel, variedade singular para cada urn, revestimento universal. a pintor tateia para fazer ver. Nao conseguimos levar a descri~ao ate 0 detalhe de cada ocelo, zebrura ou estria, conexo ou isola do, em retorno ou cortado por encruzilhadas, original, repetido ... entrela~amento cambiante, inextricavel it superficie da folha reversa que nos envolve. Esses tra~os de tang~ncia, globalmente contingentes, mistura, labirinto, arabesco, organizam a grande armadilha do tatoo A recep~ao, raramente pontual, ocorre em urn esquema onde a captura, m6vel, encontra oportunidades notaveis de retornar a si. Em ciclos rapidos, transforma-se em emissao e vice-versa: ricochetes, ecos, reflexos
137
MICHEL SERRES
I ..
..':
138
sobre as telas, por caminhos estreitos, passagens, gargantas, desflladeiros, beeos sem saida, bifurca~oes numerosas e inesperadas, circuitos - dir-seia um chip embaralhado - que criam pontos singulares e devolvem uns aos outros os fluxos capturados. A recep~ao se organiza em auto-emissao, domestica 0 estranho, como alguem que diz a si mesmo um vociibulo desconhecido para assimiJa-Io. Uma consciencia !iminar desperta ai, nas dobras do autocontato, pela itera~ao da recep~ao; capta~ao iterativa e fechada que faz jus a seu preflxo. Assim funciona a tatuagem. Mas imagino, por outro lado, que 0 desenho multiplamente iterado ou encaixado do que denominei de receptor abstrato seja projetado nesse entrela~amento. A pele recebe ao construir, em sua dimensao maleiivel elisa, essas caixas-pretas indefmidas. Donde a impossibilidade de descrever ate 0 detalhe as proje~oes ou tra~os singulares. Ora, se 0 tato conhece as placas locais despertadas ou suscitadas pelo contato e associadas em eonjunto de modo variavel em retalhos ocelados, se ele sobe, portanto, pelas dimens6es lisas da placa e da arma~ao mal construidas, jii 0 som ocupa 0 volume e se difunde no global, exige, pois, uma dimensao a mais para a escuta das ondas. Tal como 0 receptor abstrato multiplamente encaixado e projetado, como um modelo, na folha reversa elisa da pele, como rede ou labirinto, tambem a mesma proje~ao na armadilha espacial auditiva exige dobras e esculturas no volume, tudo em relevo flnamente cinzelado. Do tato ao ouvido, 0 mapa passa 11 paisagem. 0 labirinto levanta suas paredes, cava suas fossas, alonga seus corredores. A caixa-preta parecia espichar indeflnidamente a orelha ou, melhor, presta-la, como se diz, mas intransitivamente, com um tecido que preste, o ouvido multiplica as caixas por seus aprestos. Mas primeiro 0 corpo ou 0 organismo todo ergue uma tal escultura ou estiitua de pele esticada vibrante no som volumoso, fechada-aberta como uma caixa, que engana 0 que a engana. Ouvimos pela pele e pelos pes. Ouvimos pela caixa craniana, pelo abdomen e pelo t6rax. Ouvimos pelos musculos, nervos e tendoes. Nosso eorpo-caixa retesado por cordas vela-se de timpano global. Vivemos nos barulhos e chamados, nas ondas, tanto quanta nos espa~os, 0 organismo se ergue, abre-se, espacial, ampla dobra ou longo debrum, caixa semicheia, semivazia que Ihe faz eeo. Mergulhados, afogados, engolidos, sacudidos, perdidos nas repercussoes e ressonancias inflnitas que compreendemos pelo corpo. As vezes dissonantes, quase sempre consonantes, confusas ou harmoniosas. Ressoam em n6s uma coluna de ar e de agua e s6lidos, espa~o em tres dimensoes, concha, tecidos e pele,
OS CINCO SENTIDOS {
Caixas}
paredes ou placas largas e longas, e fios que percorrem sua dimensao (mica, ligamentos sensiveis as ondas graves, como se reunissemos em n6s mesmos orelha e orquestra, caixa ou cimbalo, bronze vibrante de percussoes, instrumentos de sopro e de cordas, trompas, emissao e recep~ao. Eu sou a casa do som, todo ouvido e voz, caixa-preta e ressonancia, bigorna e martelo, gruta de ecos, caixinha de musica, pavilhao, ponto de interroga~ao errante no espa~o das mensagens dotadas ou privadas de senti do, emerso de minha pr6pria concha ou afogado sob as oscila~oes das ondas, nao passo de concavidade e notas, sou todo concavidade e notas misturados. A estatua em movimento equilibra-se no rumor como um peixe na agua. 0 corpo se lembra de sua antiga vida aquatica quando se guia automaticamente e 11 vontade entre as ondas. A humanidade, em cardumes, nada nessas aguas. o corpo se posiciona e anda no espa~o das mensagens, orienta-se no ruido e no sentido, entre os ritmos e os rumores. Tanto ouve pela sola dos pes como pelos lugares onde se atam e se ligam musculos, tendoes e ossos, enfim, na vizinhan~a de onde 0 ouvido interno atinge os canais que guiam o equilibrio, toda a postura esta ligada ao ouvido. Nossos gestos mais secretos seguem os sons, dan~amos. Ou antes, ai come~a a dan~a. Contorcemo-nos fascinados pelos chamados e refraos, como serpentes diante da flauta ou como Argos defronte a Hermes. Habitamos espa~os, geometricos e topol6gicos, por dimensoes e vizinhan~as, cortes ou continuidades; alojamo-nos no campo da gravidade, fortes, verticais e simetricos; mas as solicita~oes da postura, flexivel, obliqua, inclinada, contraida, inquieta, vern de nossa imersao nas ondas. Ali come~a 0 tempo, pelo ritmo. Continuamos peixes, evoluindo num meio em que nos equilibramos a todo instante pelo ouvido, fino ca1culador, computador: 0 proprioceptivo comanda 0 andamento, cansado ou esperto; 0 corriqueiro exige fuga, alerta, despertar, sono; 0 societario dita 0 comportamento. Aqueles de n6s que vivem em extase entre as notas, 0 estilo e 0 rigor, dispoem as vezes de um quarto ouvido secreto que os guia pelo rio musical ou lhes evita as faltas de gosto dando-lhes 0 acorde certo. Em muitas linguas, escutar quer dizer obedecer: seduzido pela voz, 0 corpo anda. Segue sua voca~ao. Aterrorizado pelo barulho, ensurdecedor ou dissonante, afoga-se. Assim vemos imensos cortejos aglutinados ou atraidos por urn sopro ou um rumor dos quais recebem a pertinencia e a dire~ao, cardumes subitamente reorientados em conjunto, a um breve apelo. Que eles chamam de espirito da epoca, se e que lhes ocorre.
139
MICHEL SERRES
, ..
.,
,:~
.,,
140
A grande caixa consonante e dissonante que apanha as mensagens por postura, gestos, dan~a, orienta~oes e movimentos, mas tambem e apanhada por elas que a equilibram e desequilibram, agora Ihes da audiencia em, por e entre uma segunda caixa encaixada em uma parede da caixa e agarrada a seu rochedo vibrante. E no desenho delicado de uma mesma estrutura de arabescos, corredores, anteparos, estrangulamentos, que se encontra 0 labirinto lisa da tatuagem, mas em tres dimensoes, entrela~amento em relevo, outro vestibulo do som. Nessa nova armadilha, 0 duro se faz doce: a caixa se defende das agressoes ins61itas, surda ao que a excederia; a membrana do timpano apresenta uma face de pele no exterior e de mucosa no interior, pele mais dura e mucosa mais branda, separadas no meio da membrana por uma arma~ao mais resistente; a onda acustica originada de urn choque transforma-se em urn simbolo quimico que contem eletricamente a informa~ao em dire~ao ao centro... Que centro? A caixa recebe ou emite? Escutar significa vibrar, mas vibrar consiste em emitir. Desenrolando-se a c6elea, por exemplo, surge urn piano invertido no qual se estendem agudos e graves da esquerda para a direita. Mas urn piano soa, nao ouve. A mesma razao continua: a orelha precisa de uma orelha mais central para a escuta daquilo que e transmitido pelas tres orelhas, externa, media e interna, que se ouvem sucessivamente. 0 centro escuta. Que centro? Desloquem a parede. Compartimento apos compartimento, caixapreta, ap6s caixa-preta, 0 rep ector abstrato esta projetado ai. Ai 0 som e transmitido de forma nao linear passando do mais duro ao mais doce; ai ele e submetido, a cada etapa, a voltas, drcuitos ou retornos sobre si. A caixa recebe 0 fluxo captado, organiza a repeti~ao prevista no prefixo, prende ruido, som e mensagem, faz com que drculem depressa, os reconduz, faz com que vibrem em si e por si mesmos, e transforma, por esses circulos, a emissao em recep~ao, resolve a contradi~ao em que a escuta regride. Mudemos 0 discurso do metodo, otimizemos os percursos de maneira diferente. Herdamos 0 labirinto de uma tradi~ao tnigica e pessimista, que significa morte, desespero, perda. 0 dedalo, entretanto, desenha 0 melhor caminho para que urn mobil passe voltando sobre seus passos 0 maximo possivel; da enormes oportunidades a itinerarios fechados em urn esquema aberto. 0 dedalo maximiza os feedback. Segue urn caminho muito longo em urn intervalo curto e constroi a melhor matriz para fechar delos. Melhor metodo possivel para qualquer recep~ao, voces 0 en contra-
05 CINCO SENTIDOS {
Caixas}
rao com freqiiencia, portanto, na sensa~ao. Ele resolve nitidamente os pr6prios problemas. Apoiado em uma metriea, 0 diseurso do metodo infere 0 faeil do curto, o tranqiiilo do rapido, pelo minimo. Fala e segue reto. Portanto, a metriea e seu metoda irao sempre ten tar sair do labirinto pelos melhores meios dentro dos prazos mais curtos no caminho minimo. Apoiados na teoria da informa~ao e da topologia chegamos aotimiza~ao para a figura que se opoe ao maximo a projetos semelhantes. A velocidade nao conta quando se trata de fen6menos de propaga~ao fulminante como a luz, 0 som e mesmo 0 tato que corre instantaneamente de uma ponta a outra do bastao. A sensa~ao zomba, pois, de qualquer metric a, otimizemos os esquemas de outra maneira. Pesquisemos 0 melhor metodo, 0 melhor caminho para produzir o maximo possivel de retornos em feedback num itinerario aberto e curto. Essa maximiza~ao ocorre no dedalo. Excelente recep~ao, eis 0 ressonador 6timo, inicio de consciencia. Podemos obter enfl1ll 0 desenho de urn labirinto como tra~o de caixas eneaixadas nao concentricamente, umas a cavaleiro da parede das outras. Eis 0 receptor abstrato corrigido. Os n6s e a tecelagem descreviam a pele topologicamente, supondo e entrela~ando fios como elementos em uma dimensao. Para desenhar a audi~ao, mais global que local, como corpo, cabe~a e t6rax, orelha externa, media e interna, fosseta, conduto, caracol, vestibulo, canais, todos caixas bern ou mal encaixadas previstas pelo modele abstrato, a topologia do relevo requer variedades em todas as dimensoes, cava, pregueia, debrua todas elas, cria montanhas e vales, gargantas, chamines, trompas e 16bulos, arquitetura ou paisagem. A tatuagem matiza a pele que se constr6i no volume, os veus formam eaixas. Dai minha resistencia - poHica - it certeza de que ouviriamos da mesma maneira sem pavilhao, ou que a audi~ao nilo seria perturbada por urn pavilhao liso. A adoravel cinzeladura da orelha externa, Ultimas caixinhas ou fossetas, que mistura helice e antelice para urn ultimo dedalo, deve receber mensagens ainda inauditas pela ciencia. Trazemos como letreiro dois pontos de interroga~ao de cada lado da cabe~a, duas claves de sol, sem resposta nem alcance. Filtro de amor. 0 prisioneiro da torre ama a filha do careereiro. A torre se ergue num castelo, 0 torreao se encaixa na torre e a cela no torreao, constru~oes embutidas uma na outra; para chegar it cela e preciso atravessar paredes, portas, sem fl1ll, subir pisos ou atravessar abismos por escadas
Instituto de P:::ic,,!ogia - UFRGS - - - qihliotAca
141
MICHEL SERRES
, ..
142
soltas e frageis, passar por cern postigos, ate por uma capela. A celula verdade ira, talhada em madeira, e uma caixa a mais, de vigas e tabuas, no interior dos muros e tetos de pedra, de assoalho mais alto. Nao, ainda nao chegaremos a ultima pe,a encaixada: 0 governador mandou colocar urn quebra-Iuz diante da janela do reduto onde s6 iam os ratos, obstruiu todas os frestas com papel encerado. 0 senhor prisioneiro fica atnls de uma multiplicidade de paredes isolantes, espessas, cegas, opacas, quinze camadas de tabiques. Em frente ao torreao, em nivel mais baixo, 0 arcabou,o do castelo ligase a urn aviario, caixas, gaiolas, celulas que encerram as aves, e onde a fllha do carcereiro sobe para tratar de!as. Nao se sabe por que vias complexas ela chega as aves. Ali se desenrola urn romance de amor: do fundo de seu semaforo, por tras de urn pequeno olho recortado, 0 amante fala por alfabeto ou sinais a sua bela, que responde mensagem por mensagem entre cacarejos e pipilos; logo, logo, e!a vai pro meter nunca olhar seu amante por tras das palpebras abaixadas. Mais tarde, vai ouvi-Io rogar, em hlgrimas. Quem, anjo ou demonio, passa por entre os veus dessas caixas, que mensagem atravessa mil muralhas e e trocada entre algumas instancias que emitem e recebem, confinadas la dentro? Que chamado, grito, fogo, animado, move!, intenso, agudo, tern poder de lan,ar urn fluxo que derruba os obstaculos e e depurado pelos filtros deles? o torreao-corpo man tern fixa sua distancia do castelo-carne desejado. o olho-janela espreita por tr;ls do quebra-Iuz-palpebra e a orelha ouve os cantos da alma-passaro, com seu timpano de papel encerado. Amantes timidos, retraidos sob suas multiplas pe!es ou paredes rigidas e horripiladas, empertigados atras de suas ameias, que perderao seu belo amor assim que 0 prisioneiro se evadir, que se a pressarao em recolocar distancias e obstaculos como se s6 houvesse amor na repercussao nas paredes vizinhas colocadas entre os amantes, nos ecos multiplicados pelos isolamentos das caixas, interferencias, vibra,oes, harmonias, batimentos, na cidade!a que desenha urn 6rgao ressonante. Dois fantasmas se agitam nas caixas de musica construidas em forma de gaiolas. Eis 0 corpo da tradi,ao e com certeza 0 da ciencia. A esses romances de amor que tanto surpreendem nossos corp os tlexiveis e despidos, indolores, em breve mudos, condiziam romances de conhecimento, em tempos idos. Assim como 0 apelo de amor circula por entre os corredores, postigos ou ab6badas do castelo-corpo, e mora ne!es, tambem os dados dos sentidos passam por obstaculos dispostos em uma
i
ij
as CINCO SENTIDOS
{ Caixas }
especie de estatua ou automata de vinte coura~as, verdadeiros castelos dos Carpatos, seu f1uxo se depura 11 medida que avan~a, por flltros sucessivos, em dire~ao a celula ou instancia central, alma, entendimento, consciencia ou eu transcendental, de que muito poucos carcereiros detem a chave. Gostamos da delicadeza rara do desenho em que se sucedem as estatuas de depura~ao, flltros para conhecer ou para amar. Poucos tiveram 0 direito de penetrar no in-pace ou santuario, atras da caixa encapsulada atras ou embaixo de outras celas: seria preciso urn sacerdote ou urn grande justiceiro. Assim se conhece ou se ama. Raramente. Sob vigi!ancia. Por ouvir dizer. Por entre barreiras.
A sensa~ao se conserva em uma caixa-preta e funciona tal qual. Ambas precedem 0 conhecimento, mas nunca 0 seguem, elas 0 contornam ou fendem, ambas desconhecidas. Atraves da sensa~ao 0 duro se transforma em doce. Ela nos protege e nos guia; sem ela nosso corpo explodiria ao avan~o barulhento das Bacantes, seria desfeito, como Euridice que sai pela metade de seu buraco negro ou caixa de sombra, seria retalhado pelo furacao, decomposto pela queimadura solar ou serrado pelo que ultrapassa 0 audlvel suportavel: leoes, mulheres e galhos di!aceram Orfeu. Vol tar a cabe~a, sentir pavor e fugir, suar, estremecer, cobrir-se de veus, esconder-se, modificar a caixa, aumenta-la ou refor~a-Ia, os telhados de nossos abrigos, as artes e artimanhas se multiplicam para escaparmos 11 sorte fatal de Orfeu. A caixa, uti! ao conhecimento, serve 11 vida. Eu a sigo. Moro nela. Moles, construlmos caixas suavizantes. Atras do patio, fechado com grades e portao, retirado, na frente do jardim cercado de muros altos, casa recolhida em suas paredes. Distante, protegida, mantem 0 mundo ao longe. A pedra dura ou 0 concreto granulado revestem-se por dentro de tunicas, inv6lucros, membranas, cada vez mais suaves, reboco de graos mais finos, estuque polido, papel refinado, ou pintura, tape~aria desenhada, historiada ou florida; a casa multiplica camada por camada, onde come~a 0 grosseiro, que terminam em imagens. Mesma
143
MICHEL SERRES
,. '.
,'.
,. :': .,!::
.:r::
144
progressao em multiplas folhas no sentido vertical: subsolo, vigas, lajes, soalhos, carpetes, tapetes. E termina em ornatos e arabescos. A casa fecha tambem as aberturas: persianas, janelas, vidros duplos ou vidra~as, cortinado, cortinas, band6s trabalhados, recentemente, com profundas ameias: feita para ser fechada, a caixa encerra-se em barreiras quando se abre. Foi preciso nao ter mais medo algum do mundo e te-Io acreditado apenas atravessado por sinais para abrirmos tao de repente nossos habitos, ha pouco tempo. A casa funciona como urn volume de transforma~ao onde as for~as se apaziguam, como urn ftltro de altas energias ou urn conversor. Fora, reinam a primavera acre ou a alva rigorosa, no interior sonham constantemente as serenas imagens que nao impedem a conversa~ao, dentro se organiza 0 espa~o da linguagem. Dir-se-ia uma caixa craniana, urn cerebro. A caixa transforma 0 mundo em desenhos coloridos, em quadros pregados na parede, transforma 0 pais em tape~aria, a cidade em composi~6es abstratas. Tern por fun~ao substituir 0 sol pelo aquecimento e 0 mundo por leones. 0 barulho do vento por algumas palavras doces. A adega transforma 0 alcool em odores. Na casa assim construida, 0 ftl6sofo escreve, pensa e percebe. Dentro. Vejo pela janela, diz ele, uma macieira em flor. Busca a origem do conhecimento e se posiciona no come~o; mas, nessa Genese, descobre urn jardim, forl'osamente, e, nesse jardim, s6 a macieira 0 interessa, ela 0 tenta: ele ve flores nela. Longa dissertal'ao sobre a arvore, 0 desenho que pode tral'ar, a imagem que faz a partir dela ou a palavra que escreve e encontra em sua lingua, na ausenda de qualquer pomar. Ele esquece a janela, esquece a ameia, as cortinas, a vidra~a opaca ou transludda e, segundo more no Norte ou no Sui, a guilhotina ou a cremona. Esquece a casa e a abertura em frente a madeira. A arvore, em pleno vento, sob a chuva torrendal, abriga as aves gritadeiras que a noite se aninham em seus galhos; uma coisa e podar a arvore la fora, outra e descreve-Ia dentro. A casa livre da agua, livre do vento, livre do frio, outrora livre de barulho, protege como o ventre do navio nos separa do frio do mar. Segunda pele que amplia nosso sensorium. Ainda caixa, ja olho. Escuta e pavilhao. A casa olha a madeira pela janela. A casa-cranio considera pladdamente a arvore pela vigia-olho. Poderiamos denomina-Ia janela mediosc6pia, mesosc6pia ou isosc6pia. Assim 0 capitao Nemo, por tras da escotilha de seu Nautilus, entrava lentamente na classifical'ao dos peixes, na taxinomia, no dicionario de hist6ria natural, mais do que no mar. 0 sabio olha a borboleta espetada na vitrine ou, por tras de suas lentes pretensiosas, a classifical'ao de
OS CINCO SENTIDOS {
Caixas }
Lineu, ou, peio microscopio, os microbios. Por tras da vidra~a, a imagem da macieira se organiza ainda que a janeIa Ihe conserve as dimensoes, 0 ftlosofo zomba de suas flores e frutos - acacia ou sicomoro? - , atnls da vidra~a surge urn fantasma como, atnis da pupila ou do cristalino, na retina, dizemos que se forma a replica doce do objeto. Pelo postigo-timpano, a tempestade faz-se pranto, peIo vestibulo e peIa rampa em caracol, vira informa~ao.
A casa olha pelas janeias, fIxamente, as vinhas e os tufos de tomilho, nas paredes formam-se guirlandas de laranjas, urn tecido de mentiras, laranjas-mentira. 0 ftlosofo esquece que a casa, construida em torno dele, transforma uma planta~ao de oliveiras em urn quadro de Max Ernest. 0 arquiteto tambem se esqueceu disto. Feliz se a proxima vindima, la fora, virar uma vinha virgem com cachos de uvas, la dentro. A casa trabalha, ado~a em leone 0 dado que pode agredir; caixa de produzir imagens, caverna ou olho ou camara escura, instala, onde 0 sol faz apenas poeira por entre urn intersticio estreito, oreiha. A arquitetura produz a pintura, como se 0 afresco ou a tela pendurada na parede revelassem 0 objetivo fInal de todo 0 arcabou~o. A arquitetura tern por fmalidade a pintura ou a tape~aria. 0 que acreditavamos ornamento torna-se fIm, pelo menos, 0 resultado. A parede e erguida para 0 quadro, a janeia para a imagem. E a porta almofadada para 0 segredo de alcova. o ftlosofo disserta sobre a sensa~ao, ora, ele ja esta instalado nela, habita uma especie de sensa~ao, incrustado em sua casa como a pupila no olho. 0 escritor esquece a janeIa, sua posi~ao e seu trabalho passivo e olha o quadro. Ou, quando olha urn quadro, acredita que se trata de uma vigia. Ele esquece a casa, a caixa macia que e interrompida na janeIa. V~ a imagem, contempla distraidamente alguns leones que logo se tornam abstratos, destruidos pel a onda iconoclastica, olha sua pagina de linguagem onde descobre 0 dado. A casa forma uma caixa de imagens como urn crAnio ou urn olho. 0 ftlosofo habita em seu problema. Antigamente se dizia 0 mundo sensorium de Deus, digamos a casa sensorium dos homens. Os ceus estao cheios da gloria de Deus, a casa esta cheia de nossas pequenas energias. o quarto fecha, na casa, uma caixa dentro da caixa. Quando se enfIaYam nos leitos cercados, la para os lados da Ilha d'Ouessant, ou leitos de baldaquim, em Rambouillet ou em Versailles, ainda se podia contar uma caixa a mais, urn pouco mais escura, dentro da grande ainda iluminada.
145
MICHEL SERRES
Mas os len~6is formam urn outro bolso na serie de cofres embutidos uns dentro dos outros, onde raramente nos enfiamos nus, 6 tempos gelados da in fan cia quando ninguem se deitava sem seu saco de la. 0 numero das camadas, dos estratos, das paredes, do reboco ate os len~6is, 0 numero de peles ate a verdadeira pele surpreende 0 empirista. Ja contamos a caixa de veus, de vestimentas. Nao, nao vivemos como seres no mundo como os livros escrevem, nao podemos de modo algum pretende-Io, nao poderiamos suporta-Io, mas antes como uma variedade de mamiferos ou de primatas moles que, depois de ter perdido 0 tosao, inventou a casa e encheua incontinenti de caixas umas dentro das outras. Somente a casa exterior se da ao mundo, 0 apartamento muito encaixotado s6 se da 11 cidade. A linguagem tece a ultima parede protetora antes da pele fnigil, justamente depois das imagens e dos quadros. Ouvindo 0 radio e a TV, acredita-se que 0 mundo esta ali, em pessoa. A casa constr6i em torno de n6s urn sensorio ortopedico, inversamente, 0 sens6rio constr6i nossa casinha portatil, nossa nave fragil, membrana macia pronta a se romper ao menor espinho agressivo. 0 fIl6sofo esquece a casa que habita, mas tam bern essa casa de sensa~ao, ultima caixa suavizante. Encontramos, ainda, nesta questao, uma terceira caixa. Nossas casas suavizantes, construidas pelas imagens, formam 0 sentido com urn. As janelas ou 6culos olham fixamente as arvores. Dizia-se antigamente que 0 olhar de Deus estava sempre presente ate na ultima caixa, mesmo que ela estivesse escura como urn tumulo: 0 quadro repre· senta Cairn visto por Ele. Nossas casas foram construidas no mundo aprazivel em que a musica s6 precisava veneer os rugidos dos le6es e a algazarra das Bacantes. A serie invaginada dos muros e bolsas que cercam minha alma vaga fende-se e cai em peda~os sob 0 estrondo terrivel das insalubridades sonoras. Ja nao habito minha casa nem minha pele, ofegante, sem defesa, dilacerado, despeda~ado pelo barulho. Que minha alma se apague, que minha boca vomite, que meu corpo desapare~a, pouco importa, mas, e se a musica, ela propria, morrer?
1;
146
A caixa social complexa, construida, material e aplicativa, geralmente fechada, as vezes aberta, constante e variavel, definida pelas barreiras e identifica~6es ideais ou carnais, realizada pelo urbanista, pelo arquiteto, pelo pedreiro e pelo que faz as pontes, encantada nas redes de comunica-
OS CINCO SENTIDOS
(Caixas}
~ao e nas midias, organiza uma escuta multipla e quase ublqua de seus pr6prios clamores, e as vezes deixa fIitrar 0 ruldo de fundo que vem do mundo quando ouvimos nossas aclama~oes no estadio ou no teatro, nas igrejas e em todas as reunioes, nas pra~as publicas, nas esquinas das ruas, outrora estreitas e tortuosas para melhor captar ou conduzir as propaga~oes sonoras e faze-las retornar sobre si mesmas, agora largas e retas em virtude do poder adquirido pelos emissores do som, recebido em toda parte e devolvido pelos jornais escritos, falados ou vislveis, ao longo dos rumores que correm, todas mensagens que constroem a caixa e a fecham tao fortemente quanta um muro, caixa social poderosa cujas paredes presentes em toda parte refletem as ondas e cercam, protegem e penetram a caixa-casa, doce e dura, embrulhada, feita de concreto, estuque e quadros, vibrante de palavras, ou a casca-barco cuja disposi~ao organiza uma escuta mais tina dos rumores vindos do exterior, trovoadas e noticias, vento e comercio, ruidos mundiais ou societfirios, mas tambem gritos infantis ou gemidos doentios, clamores dos corpos, ou pequenas aclama~oes durante os repastos festivos do grupo minimo, refugiado, discreto, isolado por esta caixa de musica porosa, contudo quase repleta de caixas de ruido menores, mas da qual 0 arcabou~o e 0 telhado, por sua vez, protegem e cercam a caixa de veus ou vestimentas, materiais ou aplicativas, tecidos e decora~oes, cuja defesa pode cessar no quarto onde a tatuagem se mostra e cujo suporte dermico protege e envolve a caixa-corpo, doce e dura, modelada em ossos e c6digos, retumbante e orientavel nos campos onde se propagam ruldos e sons, cujos circuitos quase inconscientes escutam, com toda uma organiza~ao retinada, suas pr6prias alegrias e lamenta~oes, as palavras sussurradas na proximidade, audlveis gra~as a constru~ao de caixas discretas, as disputas publicas que rompem as paredes erguidas diante delas, mas tambem 0 ruido de fundo emanado das coisas brutas, detona~oes surdas, graves, abissais, anteriores aos sismos, sob a funda~ao das casas, clam ores das vagas com a ventania, caixa-corpo que se governa, escolhe e nem sempre escolhe entre esses emissores e fIitros, empilhados, cruzados, montados uns nas paredes dos outros a se refor~arem ou se interditarem mutuamente, longas cadeias de sinais espurios, tao invasoras quanta as metastases, bifurcantes, a se alimentarem de seu pr6prio retorno, mas que, entre hesita~oes e impetos, protege, envolve e penetra a caixa orelha, mUitipla e complexa, acustica e informacion ai, cujo labirinto organiza a escuta fisica e racional de todas as mensagens que nao ultrapassam sua capacidade, apreendidas no teatro ou no quarto, na praia ou em con-
147
1 MICHEL SERRES
,
fidencia, e as transmite, ado<;adas, a caixa central e a princlpio periferica, cujo labirinto complicado de sinapses e ax6nios organiza a recep~ao dos sinais, prepara 0 sentido protegido pela lingua, ela pr6pria protegida pela musica ou pela luz, e mergulha obscuramente no ruido, sentido e lingua cuja domina~ao interseciona a amplitude da caixa social, encantadora e lingiiistica, sedutora e cruel, ubiqua como 0 sentido ou as prociama<;6es, multipla como os sufnigios, e penetra a orelha e a cabe~a, a orienta~ao e 0 assentimento, 0 corpo inteiro, movimentos, postura e conduta, a casa, a cidade e 0 mundo, onde se acalmam os rumores vindos das bocas de sombra, A soma da escuta, dura e doce, caixa de caixas emissoras e receptoras, segue, muito rapidamente, por passagens longas e dificeis, por urn labirinto assim descrito, maximamente produtor de cicios, alguns dos quais permanecem estaveis por urn momento longo, muito longo ou curto, e entao tendem a formar caixas. Que orelha ouve esta soma ou rumor dos subternlneos, harmoniosa ou cheia de interferencias? Mar imenso, doce e duro, sob as linguas, reconhecido nesse mergulho. Nessa descida aos Infernos .
"
,,'
. 'I·~'
:;:::
i:'
148
Nilo importa a fadiga ou a dor que 0 corpo tenha de sofrer, atacado de mil males, abatido pelo trabalho ou pelos sofrimentos, ele sempre consegue erguer uma parede para proteger urn espa<;o sadio onde se salva a instan cia que estremece de alegria e de esperan<;a continuamente, no perigo ou na proximidade mortal, por mais extensos e profundos que sejam os golpes. Ele recome<;a a secretar ou a construir uma nova parede em cada recinto tirado do, ou cedido pelo exterior. Foge, pois, de caixa em caixa, dos gritos para 0 silencio. No espa<;o sob era no, sempre assim protegido, esta chama invariante e vivida, brilhante de alegria e de pensamento, dan<;ante, desprende, nas mesmas circunstancias, uma especie membrana e se retira sob urn outro revestimento, como urn ladrao, apanhado, larga sua roupa com quem 0 agarra e foge. Como Arlequim que despe seus velhos trajes e suas antigas peles, tambem nos despimos, freqiientemente, ante os embates da sorte, da crueldade natural e do 6dio que ronda a espreita de suas presas. E foge para atras de caixas e veus. A chama ou instancia dan<;ante que bern poderiamos chamar de alma desprende-se, inventa formas e lugares, caixas de silencio e veste nupcial,
OS CINCO SENTI DOS {
Caixas }
tentando permanecer, estavel. Quando advem 0 Ultimo assai to, fie! a sua continuada estrategia, ela escapa, deslizante, vitoriosa ainda, mas nao ouviu nem sentiu, ingenua, que s6 restava um unico traje, que a ultima parede mia, donde ela se retira e sai, 0 corpo entrega a alma ao artigo da morte sem que ela tenha parado de pensar, viva. Alma boneca branca por uma sucessao de caixas-pretas, instancia limite de nossos trabalhos de conhecimento que tra~am na medida os limiares escuros, a rir de seus avan~os, surda a seus midos, canta de jubilo, protegida, imortal.
I.
149
MESAS
ESPIRITOS ANIMAlS
Urn bela dia, no nordeste de Paris, para os lados de La Villette, encontramos, na casa de urn douto comerciante, uma garrafa de velho Yquem, ano 1947, que ele comprara do antigo restaurante da Esta~ao de Leste e conservara numa adega em galerias subterrAneas abandonadas - urn frasco de catacumbas. Diziam que a carta dos vinhos ali reunidos parecia urn dicionario que os amado res iam consul tar demoradamente, nem sempre para jan tar, mas para programar, dias antes, uma refei~ao. 0 comerciante abriu fal~ncia, 0 mho importa agua tonica, 0 restaurante deu lugar a algaravias em lingua rapida (para degustar como para os atos de amor, se correrem, apressados, abstenham-se, por favor, a pressa nestes dois assuntos desaba na tristeza ou resulta em arrependimentos), os subterrilneos, calafetados, so v~em ratos, aguardam os pr6ximos bombardeios. Sentamo-nos os tr~s, meus dois amigos tinham 0 dom da fala, 0 que significa que sabiam calar-se. A tunica do liquido adquirira urn ouro profundo, amarelo alaranjado tirante a cobre, cheio de reflexos rosa: cor esperta e inteligente perfumada aos pincaros do desejo. Dir-se-ia urn fundo de caldeirao polido peJa paci~ncia e pelo tempo em uma cozinha f1amenga, urn tanto enegrecida, entre vigas de madeira escura. 0 vinho luzia como palha num estabulo, como a caixa da bussola i1umina a vigilia, a noite, no vento. A rolha, s61ida, ja pass ava, urn pouco, ao f1uido, a corti~a, castanha, tornava-se loura, tudo mudava de fase. Levamos tanto tempo para beber esse vinho que ainda falamos dele.
153
MICHEL SERRES
Lembro-me gratamente, diz ela, do momenta em que recebi de urn grande vinho a minha nova boca: 0 dia de minha segunda comunhao. Ela ja existia, continua, mal educada com certeza, a segunda nasceu ali. A palavra, ao passar por e1a, da a primeira, 0 dia da primeira comunhao. A boca de Duro come,a a tagarelar e nao cessara de faze-Io. A palavra, qual uma rainha, reina em seu palato, a lingua reina absoluta nos labios e na Ifngua. Imperiosas, exclusivas. Mas atravessam os lugares sem aroma nem sabor. Doces: nao duras. Doces: chas e insipidas. Anestesiam a boca que ja nao encontra 0 gosto das palavras mais bern temperadas. A eloqiiencia mais amp la, a mais sonora poesia, 0 canto mais encantat6rio, o diaJogo mais vivido dao palatos de bronze ou de cobre, caixas de violoncelo, mas essas cordas e metais permanecem insensiveis as flores perfumosas, aos aromas de corti,a e de terra, as fragrancias fortes de almiscar e de peles, pior, escorra,am-nas. A frase, nem acida nem adstringente, impede que a lingua desperte para outra coisa que nao e1a. A sapidez adormece sob a narcose das palavras. Geladas: frigidas. Dos nossos cinco sentidos, este ou estes e que nos parecem os menos esteticos, 0 olfato e 0 paladar. Come,o a compreender, diz ela, a boca de ~Uro, por que recusamos, esquecemos, diferenciamos sua arte particular, como e por que posso dizer com tanta convic,ao que 0 dado nunca se da a nao ser na e pela linguagem: e1a 0 mata, na boca. Eu, boca de ~Uro, mato a boca longa de Yquem. Nao tolero a duvida, lingua dupla na boca, lingua bifida, eu, que falo, ela, que saboreia. Doce com minha vitima, hoje, dia do banquete, YOU, diz ela, tentar urn revezamento. Come,ar a despertar 0 palato da anestesia tagarela com 0 trabalho de uma segunda arte. A que encontra uma estetica, sensivel, na obra de uma outra estetica, artista. Yquem revela a segunda boca, a segunda lingua, e a revela na segunda comunhao. 0 gosto, oprimido, demasiado pr6ximo, localmente, da Ifnguagem, demasiado gemeo ou concorrente, s6 se manifesta raramente, expressa-se em geral numa Ifngua que se presta ao riso, cuja boca ri, como se a linguagem por sua vez nao !he deixasse a palavra. Vma boca expulsa a outra, a do discurso exclui a do gosto, expulsa-a do discurso. A segunda Ifngua dorme; timida, cala-se; quanto mais esquece sua gemea melhor recebe 0 dado.
'!::
" ...
_I.'
0:
154
Antes de ter bebido urn born vinho, ninguem degustou 0 vinho, nem o sentiu, portanto nao 0 sabe, nao tern nenhuma chance de 0 saber urn dia. Pode ter bebido, ter-se embriagado, nova anestesia. Mas a quem nao
OS CINCO SENTIDOS {
Mesas}
degustou nem sentiu, 0 saber nao pode vir. Falar nao equivale 11 sapiencia, a primeira lingua precisa da segunda. Esquecemos depressa demais que 0 homo sapiens designa quem reage it sapidez, quem a aprecia e a procura, quem da importancia ao sentido do gosto, bicho de sabor, antes de significar homem falante. Ascensao da boca de ouro em detrimento da boca que saboreia. Alem de aceita,ao da primeira, escondida em uma lingua morta, aceita,ao da primeira na boca morta: a sabedoria vern depois do sabor, ela nao pode advir sem ele, mas 0 esquece. Falemos as linguas mortas, diz a boca morta. Voce se lembra, 6 gemea dourada, j6ia dos fil6sofos e sabios, da origem ling!iistica das palavras regras e rillettes7 , do latim regulae? Que 0 diga, Decartes! Das palavras indu,ao e andouilleS, do baixo latim inductile? Que 0 diga, Bacon! Assim a lingua sapiente fazia valer seus direitos e indicava, na lingua de sua vizinha, 0 tronco comum, 0 lugar em que se bifurcam. A boca primeira, falante e tagarela, perdeu 0 folego. Viu-se presa em sua propria lingua, blfida. A sensa,ao, dizia-se, inaugura a inteligencia. Aqui, mais localizadamente, 0 paladar institui a sapiencia. Pela ancestral defini,ao latina do humano, nossos antepassados instruidos, mas ainda sensiveis, indicavam seriamente que sem 0 paladar arriscamo-nos a perder 0 estado de homem, a recair no rol dos bichos. Antes de reconstruir 0 pensamento sobre a sensa,ao, estranha empreitada, decerto queriam que meditassemos sobre uma especie de redproca: ao desprezar a sensa,ao, ao substitui-Ia por artificios, por discursos ortopedicos, voltamos correndo para a animalidade. o bicho come depressa, 0 homem saboreia. Desfruta os odores, nao ca,a mais. A crueldade s6 fareja 0 sangue. Antes de ter recebido, maravilhado, 0 buque abundante e vivaz que se desdobra no olfato, explode e desce, ainda rico de arabescos ou estrelas novas, como num fogo de artiflcio, antes de ter conhecido 0 chamalote complexo e franjado que recorta meticulosamente urn mapa geografico preciso ao longo das bochechas e diferencia 0 em cima do embaixo e 0 detras do da frente, boca curta e longa boca, que desenha ornamentos na
7
Iguaria constituida de peda~os de carne de porco cozidos e conservados na pr6pria gordura.
(N. da T.) 8
Uma especie de embutido: paia, lingili~a, (N. da T.)
155
MICHEL SERRES
,. ,.
'
....
'
156
ab6bada palatina, passa sobre e sob a lingua, nas beiradas e na ponta, antes de ter sabido que havia linguas e nao uma unica, antes de ter transformado esse volume em urn espa~o sarapintado, tatuado, omado de guirlandas, mesclado, antes que a un~ao do vinho transformasse 0 mono em multiplo e a frigidez em temura, antes deste reconhecimento paciente, lento, deta!hado, a pessoa bebeu, sem duvida, saciou sua sede, claro, inumeras vezes, embriagou-se desastradamente ate, mas nunca sentiu; ela fala, a sensa~ao nao Ihe advem. Conheceu a necessidade, 0 desejo, usou, estragou, com remedio ou com paixao, drogou-se certamente, perdeu a sensa~ao. A anestesia retira-Ihe a estetica. A droga aprisiona 0 destino das coletividades
OS CINCO SENTIDOS {
Mesas}
samos? 0 vencedor da embriaguez geral identifica-se a quem discursa mais e melhor, ate a alva de rosto palido, uma anestesia exc!ui a outra, ambas exc!uem a estesia. 0 vinho faz falar ou adormece. A primeira lingua, a faladeira, serve-se da mistura tirada das anforas e agitada nas crateras, que circula a volta dos leitos sem que ninguem the preste aten~ao, as vezes derramada nas roupas ou nas migalhas de pao, para oprimir a segunda, que dorme sempre em filosofia. Nos simp6sios ainda se ouvem discursos de virtuoses em torno de uma vaga beberagem urn tanto escura. 0 banquete nao aconteceu. A segunda lingua procura desenhar 0 mapa geografico que tern na lingua, no momenta de seu despertar. De que posi~ao descreve-Ia? De perto, de longe, a distancia moderada, ela sempre parece urn chamalote. Provavelmente porque 0 olfato e 0 gosto diferenciam, ao passo que a linguagem, como a vista e 0 ouvido, integra. A primeira boca armazena, a segunda despende: as palavras amontoam-se nos lexicos, 0 alimento, congelado, acumula-se nas dimaras frias, diriamos contas em banco, os perfumes e os sabores passam, evaporam-se, efemeros. Diferenciais. 0 mapa se refina como uma seda leve, uma teia de aranha. Sem armazenagem, sem soma, farrapo de tempo. Chamalote instavel, corpo mesc!ado. Humildade da segunda lingua: 0 gosto simples, rudimentar, pobre qual uma razao, distingue apenas quatro ou cinco qualidades, 0 doce, 0 amargo, 0 adstringente, 0 acido ... Ele pede ao olfato a riqueza festiva. A boca, avida, nula, glutona e sonante, faladeira ou comilona, imperiosa como se revela a fnlgil, exige do nariz, do ouvido tambem, aquilo de que se vangloria. Ouvimos barbaros da boca que falam sobre falar, discursam sobre comer, deixando odores ou sabores passageiros, tagarelas sem orelhas, glut6es sem faro nem sagacidade, funis, que comem salgado ou doce para fazer 0 nariz descer a boca, aplicar 0 olfato sobre 0 paladar, reduzir 0 refinamento multiplo it grosseria. 0 homem de sapiencia, campones ou barao, tern 0 nariz apurado, 0 ouvido fino, para captar 0 instante; 0 opiniatico, como 0 javali, s6 tern boca, ele emite, ao passo que tudo nasce da recep~ao suti!. Deixemos 0 canto e a eloquencia onde a voz e regulada como circuito ativo, pelo ouvido: a musica em ambas as ocasi6es desperta quando 0 clamor vai rogar clemencia ao ouvido; este, em retorno, da ou
157
MICHEL SERRES
devolve 0 timbre e a cadencia. E a primeira lingua enrouquece quando 0 timpano se racha com a idade. Por uma boca equivalente, 0 olfato regula inteligentemente 0 gosto. Brinco na orelha, argola presa no nariz. Entao 0 sentir, campeao do sentimento, da sensa~ao, entao 0 gosto, excelencia de cultura e de refinamento, despendem juntos sua fortuna rara, no interior de urn circulo comum. Do nariz, do palato, sai uma cornuc6pia de abundancia, os odores e os sabores tocam a pavana, mostram a cauda do pavao. Eis 0 mapa. Eis a garrafa de onde surge esse leque.
,..
;,
158
Eis a regiao do baixo Garonne, margem esquerda, on de mone a floresta, onde acaba a mare, n6 de onze confluencias, eis a colina suave, em dire~ao a Iquem, de onde se pode avistar 0 leque ocelado a se desdobrar, mapa de lugares e len~ol do sab~r. A segunda lingua, no meio das duas outras, a inesgotavel e a velada, pudica, que ainda nao disse nem degustou, pede agora silencio e tern po. Nunca tern urn nem outro. Achem tempo, calem-se, degustem. o corpo estriado desdobra-se, enevoado, matizado, tigrado, adamascado, chamalotado, ocelado, fora da cornuc6pia de abundancia ou em torno do pequeno corpo de patas grandes da ave de Juno. E possivel citar ou contar? Eis que passam as flores primaveris, rosas silvestres ou lilases, clematis, os frutos de messidor, ate os pessegos, os de outono ou de inverno, peras, ma~as, uvas, nozes, rolam atras de algumas avelas, ao longo de urn sub-bosque escuro de fetos maturados, eis as trufas no humus cinzento, a crosta pegajosa de resina, em seguida, fragrancias raras, minerais, silex, pedra-de-fogo, animais tambem, almiscar ou ambar, pelo molhado ou suores amorosos, e eis, atnls dos buques segundo e primeiro, floral no inicio, bestial e rochoso depois, 0 cheiro, 0 terceiro cheiro tao dificil, posto como pizzicati na declama~ao, listras por entre urn tecido de ramagens, tentem reconhece-Ias, fragrancias etereas como a acetona, aromaticas: menta, geranio; ambrosiacas: jasmim, baunilha e tilia; balsamicas como 0 benjoim, a cravo, a canfora; empireumaticas como 0 cafe, 0 tabaco: 0 Yquem traz a marca da floresta persistente, guarda lembran~a do longinquo armagnac, evoca 0 graves, seu vizinho; eis 0 desequilibrio, a borda extrema do len~ol, da cauda ocelada, sua instabilidade ou catastrofe, ligas repulsivas como os mercaptans, fedores de petr6leo, de alcatrao e de esgo-
OS CINCO SENTIDOS
{Mesas}
tos, enxofre, que ele passe, fechem a porta ao vento leste, a razlio mon6drama da auto-estrada pisoteou, horda imunda e imbecil de hunos, arrancou a vinha de Sauternes, partiu seu brasao de nobreza, rasgou sua carta, cortou sua lingua. Ela atravessa a vinha santa que e indicada por uma tabuleta: para os que passam depressa, como urn raio, deixando, atnis, urn monte de imundices gasosas, 0 dado se reduz it linguagem escrita pintada no cartaz. 0 mapa rodovhirio desenha-se retilineo, reto como 0 metoda que passa pela floresta sem ve-Ia, que corta, ign6bil, a antiga vinha, sem uma unica sauda~ao. Nao passem pelo vinhedo como urn tagarela atravessaria 0 mar, veriam apenas, conforme fosse, folhas verdes ou vermelhas, como 0 outro s6 veria a agua. Debrucem-se sobre 0 sulco: terra ou corpo estriado, enevoado, colorido, tigrado ... silica, seixos, areias e pedregulhos, argila e calcario, dep6sitos vindos do alto ou jogados de longe, trazidos pelo Garonne. Da silica, a finura, do calcario, a for~a, da argila, a maciez, tudo vern das areias e dos terrenos pedregosos. Solo misturado. Atravessem as vinhas de onde a moscatel foi arrancada, da semil/on vern a suavidade, da sauvignon escorrem balsam os, fileiras tigradas ou zebradas, comp6sitos. Seria preciso superpor varios mapas: 0 da geologia, 0 da edafologia, 0 das cepas, mosaico amarelo, rosa, azul-rei, verde-garrafa, componente inesperado, como se o subsolo, 6 surpresa, se reproduzisse na superficie, como se os velhos vinhadeiros, ge610gos sem 0 saberem, exibissem os segredos escuros da terra pelas e nas disposi~6es dos pianos: mapas maritimos misturados para navegar no borde/ais. Tal como 0 escritor tenta, com a alian~a das silabas, vogais, ritmos e assonancias, evocar 0 mapa de jazidas muito enterradas e faz cintilar na superficie 0 chamalote dos veios subterraneos. o escudo do conde de Lur-Saluces, dono de Yquem, deveria, assim me parece, trazer ou evocar, em sua unica pagina, esse corpo estriado, ocelado, essa carta honoraria, em suas cores, pe~as e figuras: ou a cauda de pavao, ou os atlas empilhados dessas misturas. Urn escudo, em geral, nao repraduz a carta de uma mesti~agem de sangue e as formas de longa conserva~ao? 0 que chamamos de titulo senao a prapor~ao de urn corpo mesti~o? Assim os nobres escudos do vinhedo representariam como, ao fim de tantos quarteis, 0 vinho se faz sangue - ou 0 inverso. Como se opera, agora no silencio e na fresca tranqiiilidade da adega, uma outra mistura? Alcoois e acidos se equilibram com os esteres da glicerina, odoriferos, entre as aguas e os a~ucares. 0 equilibrio, a pequenos
159
MICHEL SERRES
intervalos, progride docemente. Podemos estimar, em determinado momento, os diversos titulos? as titulos da mistura indicariam 0 tempo. Desenho mil mapas, falo somente do tempo.
! .
.... ..';':, ,
c: :!;:' :
.".,,,. ~
.,.'
I: .
160
A mistura mora na cave por artes do vinhadeiro, pereorre 0 vinhedo, solo, sarmentos e subsolo, enche a garrafa singular, tampa 0 bocal com a espiral dos odores, em toda parte uma mesma carta e eneontrada, eu a desenho na pagina, meu escudo. Velha cave, velho vinhedo, velha garrafa, velhos portulanos, longa dura~ao das alian~as henildicas, boca antiga, lingua antiga, paciencias atentas ao desenho riscado em terra, na flora e no palato: 0 rel6gio das misturas marca urn tempo lento. as quarteis acumulados dividem-se, apressados, 0 espa~o do escudo mostra, inversamente, a antigiiidade do titulo e a titula~ao do sangue. Muitas vertentes rubras rolaram sobre ele que Ihes eonserva 0 tra~o, guarda-tempo das clepsidras vermelhas. A terra fluvial, marinha, florestal, antigamente exposta ao vento, devastada de Jagrimas e de esterilidade, por muito tempo impr6pria a qualquer agricultura pelo excesso de areias e pedregulhos, torna-se lentamente 0 especifico excepcional de tal paleta de plantas. Para chegar a esse quadro misturado, foi preciso pelo menos urn milenio de teimosia camponesa, semeada de famintos. Vertentes de aluvioes que recebem ou dao vertentes de vinho, assim minha lingua pode experimentar esse milagre de nupcias entre as en chentes e as inunda~oes do versatil Garonne, clepsidra cinzenta, Milagre da primeira lingua, se ela fala frances, 0 tempo diz tambem as intemperies: milagre das esta~oes grandiosas pontuadas, naturalmente, de esta~oes fracas ou nulas. Na terra, pela vinha e no vinho, estao marcadas a clemencia e a inclemencia do clima; a mistura do ana do cru exprime essa mistura de quente e frio, de umido e seeo, sereno e tempestuoso, que denominamos intemperie, mas que se poderia chamar temperamento ou temperan~a, se 0 mundo tivesse os mesmos humores que nossos eorpos, intemperie sempre muito doce neste clirna dos paises temperados. Tomem e degustem este grande vinho, ele escrevera em suas linguas 0 mapa do tempo, as marcas inirnitaveis e singulares daquela esta~ao. Naquele tempo, lembrem-se, 0 outono, imenso, im6vel e alto, ondulado em tons de laran-
OS CINCO SENTIDOS
{Mesas}
ja e amarelo, leve de parecer insensivel, nao conseguia terminar. Vertentes de ventos, sol e chuvas, misturados no sauternes, c1epsidra de ouro. Leiam agora: Ii esquerda, a coluna calendario comum, ano morto depois de ano passado, sem omitir nem repetir, a direita, a coluna em que incidem as nota~oes, gl6rias ou catastrofes, 1930, 0 ano em que nasci, s6 produziu urn Ifquido inominavel, sendo que 1929, quando meu irmao veio Ii luz, todo 0 borde/ais reunido s6 foi igualado tres vezes depois, 1945, 61 e 75, anos seculares do gosto sobrenatural e de muito longa conserva~ao: como se justamente a intemperie fizesse 0 tempo, como se compreendessemos entao de que maneira duas palavras se confundiam, de que maneira dois sentidos vertiam-se em urn mesmo termo. Se 0 tempo corresse como a s,'Tie dos inteiros naturais, na coluna da esquerda, ja saberiamos ha muito tempo que a hist6ria se confunde com a ramo. Mas a mistura estocastica das notas cifradas que, ha mais de cern anos, 0 paladar deu ao Chateau d'Yquem, traz uma outra ideia da mesma hist6ria ao desenhar, de uma nova maneira, 0 mesmo mapa da mistura. Durante 0 banquete, em torno da garrafa saida de 1947, ano quase divinizado, a primeira Hngua desfia os mimeros urn a urn, a segunda marca as nota~oes, como se atirasse as cifras ao acaso. A esquerda, 0 tempo da linguagem, a direita, 0 do dado. Donde se ve que urn se separa do outro, como 0 6rgao Ifngua, bffido agora. A esquerda, 0 tempo como forma pura a priori, eu ia dizer algoritmo, a direita, 0 da mistura, do qual 0 tempo esquerdo nao compreende nada. Vertentes de numeros, nao paralelos como se imagina quando se Ie, mas confluentes porque se vive, dupla c1epsidra abstrata imaterial, que alia urn corredor regular a percola~ao irregular do pisador. Ao f1uxo inesgotavel do Garonne misturam-se as lagrimas de alegria e os prantos de luto. No banquete estao sentadas, portanto, tres amigas ou inimigas, desenhando mapas, mexendo as misturas, descobrindo 0 tempo. Os mapas chamalotados, matizados, tra~am as vizinhan~as dos corpos misturados, vertidos juntos, sua fusao na mesma depsidra ou garrafa segue 0 curso da dura~o.
Duas das amigas, aliadas, tentam Iivrar-se da terceira, amante dos discursos. Elas amam as palavras, tambem, mas querem se Iibertar de sua tirania absoluta. A Ifngua de ouro, de marmore ou de pau, desligada delas, segue, em seus discursos, urn curso raro e separado, 0 tempo que corre em
Instituto de Psicologi3 - UFRGS BibliotpGI -_~
161
MICHEL SERRES
uma clepsidra (mica. As outras duas Iinguas, amantes dos convergencias, seguem os cursos confundidos, fluentes, Iiquidos, que correm por confluencias entrela,adas. A lingua dominante pratica a analise. Seus sucessos admiraveis, convincentes, provam que e preciso continuar. As outras duas linguas nao ousam dizer que praticam a confusao. Na lingua da primeira, isto significa 0 fracasso. Assim como 0 sucesso recusa o fracasso, a prime ira boca excluiu as outras duas. Estao sentadas, pois, no banquete, juntas, antigas inimigas, conciliadas por urn momento. Na cratera do Chateau d'Yquem sentam-se mistura e confusao. Nada mais delicioso, mais divino, mais memoravel que este ouro, este cobre, este bronze confundidos. As duas linguas abandonadas lan<;am a primeira 0 desafio de dizer: falar, discorrer sobre essa confusao sem injuria-l a uma (mica vez.
f.
..
,~': : I
,.,..'
Quando os cento e vinte vindimadores do senhor conde Alexandre de Lur-Saluces, durante mais urn outono desde 1785, dispersam-se pelas doces encostas do monte, pelas flleiras, para colherem, grao por grao, a uva de sauvignon e s
Palavras inventadas: coverseaux. a partir do latim, e syrrese, do grego, com 0 mesmo sentido de os quevertem juntos. (N. da T.)
Q
OS CINCO SENTIDOS {
s, 1-
t-
a 1
Mesas}
degustado para desprezar a tal ponto os fluxos reunidos, ondas compostas, corredores cheios de n6s, que desembocam em urn mesmo volume, os entroncamentos, as interferencias fluidas. Que a lingua imediata e selvagem tenha banido a confusao do pensamento, ainda passa, mas que a ftlosofia do conhecimento, conseqiiente em seu procedimento, ao menos clara em seus enunciados, tenha canonizado esta falta de compreensao e 0 que surpreende os que nao tern medo das confluencias liquidas. Confundir significa primeiro verter junto, conjungir diversos fluxos em urn s6. No sentido literal, a confusao aproxima-se bastante da solw;ao. A metalurgia das ligas, desde a idade do bronze, a jovem quimica que classifica os compostos e os corpos novos pela recombina~ao, a farmacia e suas prepara~oes que adicionam os espedficos para aumentar a efid.cia dos remedios, a cozinha, padeira ou licoreira, mil prliticas todas nobres misturam desde a aurora dos tempos fluxos diversos em cern crateras, a quente ou a frio, para 0 uso ou 0 prazer, muitas vezes para 0 conhecimento. Por que elas nao tern direito ao reconhecimento? Todas essas a~oes, ligas, mixagens, brassaduras, deveriam chamar-se confusoes, e a ftlosofia da confusao deveria ocupar urn lugar-comum da sapiencia. A primeira lingua, que fala e tern 0 ouvido da razao, denomina a segunda de confusa, que, confusa, aceita 0 nome. Recebe as confluencias liquidas, cern vertentes simultaneas. Uma unica, como a de Yquem, esconde outras, sobeja. E compoe na segunda lingua 0 mapa da mistura, confusamente desenhado, flutuante. Mapa mUltiplo, vivido, complexo, mais completo que a simpl6ria ideia clara e distinta da qual a primeira lingua tanto se orgulha. Lembro-me, diz ela, com reconhecimento, da que me deu minha terceira boca, no dia glorioso de minha Ultima comunhao, de minha primeira uniao. De sua boca, ela derramava flores perfumadas: silencio, terceira lingua, teu pudor iguala tua sagacidade. Ela nao discute os gostos nem os odores, de fato eles nao tern uma escala flXa. Fortes ou fracos, superficiais, profundos, ricos e pobres, deliciosos, repugnantes, amaveis instantaneamente ou demoradamente fieis. o que chamamos com justeza ou impropriedade de buque parece tao objetivo ou preciso aos peritos quanta a serie dos mimeros. A escala ou ordem desce, do ar aterra. No alto, as fragrancias mais frageis ou faceis englobam a familia das flores: rosa, lilas, tilia, jasmim, cravo,
163
MICHEL SERRES
violeta; menos delicada, mas ainda fresca, a ordem dos perfumes de frutas: pessego, pera, framboesa, amendoa, damasco, cereja. A pera e 0 pessego resistem melhor ao vinho que as carnes vermelhas, menos pueris que elas. As drupas sao melhores que as bagas. Como podemos saborear uma pera que passa pela lingua tagarela e nao pela boca sapiente? A passe-crassane, duchesse, beum!-Hardy, a doyenne-des-comices ou a messire-/ean nela se fundem reaImente mais, em ordem crescente de excelencia. Excetuemos a cuisse-madame, saborosa e doce, adoravelmente apelidada. Como podemos comer ameixa ou ma~a? Queremos a mirabela e a rainha-ci
,"
164
o passeio descendente tern lugar no campo, na vizinhan<;a dos confins, no final da primavera, no inicio do outono, ou na quitanda, nas latitudes norte. Ii preciso dar urn giro pela importa~ao, canela, baunilha, tabaco, cafe, todas especiarias confundidas, nos cais de Bordeaux ou do Havre, no porao do comerciante, ou no bazar de Istambul, ou alhures, nos Tr6picos. Nao poderiamos prosseguir sem nos misturar aos outros mundos. Llamos em nossos manuais: nao hA nada no intelecto que nao tenha passado primeiro pelos sentidos. Ouvimos em nossa lingua: nao ha nada na sapiencia que nao tenha passado pela boca e pelo gosto, na sapidez. Viajamos: nosso intelecto atravessa as ciencias como 0 corpo explora continentes e mares, urn perambula, 0 outro aprende. Nao ha nada no intelecto se 0 corpo nao rodou por ai afora, se 0 nariz nunca fremiu na rota das especiarias. Ii preciso muito que urn e outro mudem e se tornem mais maIeaveis, que percam suas opinioes, ampliem ate as estrelas todo 0 espectro de seus gostos. Quantas aventuras outrora empreendidas, as raias do heroismo, para surpreender 0 olfato, quantas ciencias adquiridas pelo caminho.
OS CINCO SENTIDOS
{Mesas}
Assim como a sapiencia coroa a ordem do gosto, tambem a sagacidade aperfeiyoa a escala aromatica. Todo banquete deveria ter por titulo: a sapiencia e a sagacidade. Avolta da mesa s6 imaginamos Hnguas sabias. Revezando com 0 bern denominado buque vegetal, decomposto nas putrefayoes do sub-bosque, os cheiros animais ganham em forya, mais comp6sitos e pesados, men os vaporosos, mais espessos e baixos que 0 outro. A ordem desce sempre, das violas aos violoncelos. Urn detrito floral mistura-se a sujeira, a palha escurecida como esterco, as forragens dos estabulos, sob 0 ventre dos bois, nao se desviem, citadinos, 0 odor das vacas, doce, encanta 0 sagaz. Reconhecemos assim os corpos individuais, neste ponto, nao os cedemos as feras; s6 nos falta 0 exerdcio, ou a vergonha nos acabrunha. Esta primeira apreciayao faz 0 born enfermeiro, 0 diagn6stico do medico comeya ai, que 0 veterinario abandone a profissao se nao gosta do almiscar nem da suarda. A sagacidade ultrapassa a intuiyao ou decide por ela: reconhece, claro, menta ou lilas, casca de laranja ou talo de salvia, mas comeya a conhecer os homens tambem, fraqueza, falha. doenya ou explosoes de forya, a singularidade deles; reconhece 0 bicho que metamorfoseia o pr6ximo. papagaio, tubarao, aguia ou porco, desconfia ou confia. foge ou se chega. Desta camara. deste estudo emana urn odor de 6dio ou de rna digestao, de suor acre e de ressentimento. Da boca primaveril sai a emanayaO floral. pensam que ela fala? Amar comeya por consentir. Os linicos amores felizes misturam dois buques que conspiram. odores de sexo misturados tao penetran tes que as vezes pensamos desfalecer. 0 sagaz conhece bern, no sentido da Escritura. 0 que existe no intelecto ou na consciencia que passa primeiro por este sentido? Hesito, diz a terceira lingua: e preciso que estejamos persuadidos de que 0 dado nos vern da linguagem para que 0 perfeito amante de Sofia. Denis Diderot. 0 pr6prio. faya falar incessantemente uma j6ia tao preciosa tida como a excelencia da boca e mesmo dos labios do beijo segundo refmado julgamento do sagaz. Os labios que falam tern menos felicidade, temura e doyura. Por que perdem tanto tempo a discorrer sobre 0 amor em vez de, e quando for 0 caso, gentilmente. faze-Io? 0 dado nos everdadeiramente dado pelos hibios tacitos e doces. insiste ela. ainda hesitando. Ninguem perde a palavra entre os aromas de folhas e flores. os odores singulares das carnes as vezes prendem 0 f6lego, que perdemos no duelo
165
MICHEL SERRES
dos corp os misturados. Suores, sudario. Eis a fronteira ou catastrofe, a borda que abre ou fecha as repugnancias que diriamos instintivas: sob a terra, no tumulo, cheiros escuros, espessos, acres, muito baixos. o humus, a terra, misturam corpos e plantas, fauna e flora, mortos ou vivos, compostos organicos. Ainda amamos bastante 0 detrito vegetal. 0 dejeto animal repugna, mas nem sempre, ele pode olorar: quanto a ca,a, 0 faisande nos atrai. Mas 0 odor de morte afugenta. Assim como 0 som mais sublime avizinha-se do ruldo, tambem 0 perfume mais profundo pertence aos mortos e a sua putrefa,ao, emerge de seu reino; a alma sai do corpo finado em odor de santidade, queimamos incenso nos funerais. Aproximamo-nos do sagrado, conduzidos pelos espiritos volateis, atingimos 0 sujo e a purifica,ao onde a sagacidade parece despertar 0 conhecimento e 0 religioso juntos. Nao se aprofundem aqui, voces profanariam estes lugares ou seriam corrompidos. 0 terreno aqui definido pode ser denominado templo ou propriedade, ou sujo ou limpo ou tabu, em todo caso delimitado, portando localizado, conhecido. 0 terreno aqui purificado vi! nascer a razao pura no meio do impuro, pela limpeza ou rito. A higiene pasteurizadora, nossos recentes gostos assepticos, a teoria do conhecimento reunem todas as antigas aspersoes. 0 sacerdote, outrora, 0 sabio, hoje, abolem a sagacidade, levam-nos a esquecer ou refor,ar a fronteira intransponivel. Fazem-nos desgostar de nosso cheiro. Vamos, sinto, num mesmo movimento, em dire,ao ao conhecer e ao sagrado, aproximamo-nos de vizinhan,as repugnantes: sujeiras, misturas, dejetos, a morte, dejeto e sujeira supremos. Por ela minha poeira vai-se misturar as substancias gordurosas na umidade do humus. Ai reside 0 limite: odores de vida, antes; cheiros funerarios, ultrapassado 0 limite. Aqui nasce a defini,ao. Terra, rocha, pedra de fogo, enxofre, hidrogenio, fragnlncias minerais aterradoras, primeiras, molais, simples, originais, ia dizer at6micas. Aqui jaz nosso horror it quimica: e por isso que nossos ancestrais queimavam a1quimistas e bruxas nas fogueiras, muito assustados com a terra comum do conhecer e da morte. Nao ha nada no intelecto que primeiro nao passe por ela.
,I ..
. i~:,
i·
".... t .•.
166
A emana,ao sobe, a procissao olorante estende-se em dire,ao aos espiritos leves, aereos, logo dispersados. Inversamente, 0 espirito desce aos pesados, converte-se em materia e, misturado as densas entranhas das coisas, entao conhece. Recolhe-se e derrama f10res sobre os mortos. Os gregos
J
OS CINCO SENTI DOS
{Mesas}
da decadencia as vezes denominavam cat6dio esta queda, baixa ou desdda, que inverte a distensao ou emana~ao. Ela escoa do ar a terra ou sobre as aguas. Na amplitude da preamar onde 0 fluxo e 0 refluxo revolvem a areia da praia, as algas, 0 sarga~o a rodo, as conchas que se entreabrem, as medusas e os peixes mortos e fladdos acompanham 0 sagaz a superficie do mar onde 0 olfato se perde, por afogamento. Espiritos salinos ou do iodo vohHil, 0 vento arrasta em dire~ao aos fantasmas afogados. Resto destro~ado pelo vendaval, a cabe~a de Orfeu flutua solitaria ainda, canta com a boca cheia de onda amara sem respirar os ultimos espiritos em remoinhos a tona d' agua. Itinerario 6rfico, descida aos Infernos, a ordem dos odores ou espiritos de finura, emanado primeiro, cai para 0 baixo repugnante, ate 0 inodoro: naufragio, funerais onde 0 nariz se enche de agua ou de terra. Folhagem, flores esparsas, bagas ou frutos, cascas, humus e raizes, mercados, bazares, praias e portos, esgotos, cemiterios, minas, fossas, Infernos: natureza morta. Espiritos evaporados dos seres enterrados, substancia. Chamas, fogos, forno: por mais longe que a viagem leve, e preciso voltar ao lar, onde se prepara 0 banquete. Fora, 0 cru; na cozinha, os grelhados exalam os odores de uma quimica sublime. S6crates, Agaton, Alcebiades, assim como falam de amor sem jamais 0 fazer, ou sentam-se amesa sem comer ou bebem sem degustar, passaram diretamente do p6rtico ou umbra! da sala do festim, aos leitos, sem visitar por urn instante a copa. Os escravos OU as mulheres, como os deuses, man temse junto ao forno onde se da a metamorfose, enquanto os barbaros falam. Esta transforma~ao, nas chamas, a passagem do cru ao cozido, tern a ver com 0 conhecimento. Fermenta~ao do pao, ou do vinho, por exemplo, ou pre-transubstancia~ao. A Santa Ceia nao consagrou a uva nem 0 trigo. Ela da aten~ao as coisas comidas, degustadas, feitas, compostas, que 0 calor modificou. 0 vinho pertence a ordem do cozido: a cauda do pavao, onde cada ocelo destaca uma ilha simples da natureza, crua em sua composi~ao elementar, reune-se, organiza-se globalmente pela coc~ao. Os sabores concorrem, mais numerosos, para uma sintese nova. Atravessem a regiao de Sauternes, vinhas e madeira, resina ou flores, rio e brisas, levariam vinte anos para colher, pela sapien cia e pela sagacidade, 0 que uma gota d'Yquem Ihes da em urn instante. No tempo em que 0 pao, na Fran~a, perfumava 0 campo, tambem proporcionava urn longo passeio num ins-
167
MICHEL SERRES
tante. Toda uma vida reside num copo de vinho Margaux, e ate numa honesta broa. 0 cozimento adensa, concentra, reduz, faz convergir 0 dado, o cozido faz abundar 0 cru, 0 dado passa do acaso, da circunstancia improvavel e leve, inconstante, ao costume e 11 compacidade. Vai da mistura ca6tica difusa 11 mistura ordenada, densa. 0 fogo cimenta os mistos, transforma em vitral a referida confusao, agita bern as pequenas partes secretas para ligar 0 que repugnaria a frio. Ajuda os concursos, favorece as conivencias, estreita as vizinhanyas, enriquece as amalgamas, descobre de subito novas ligas, aprende, por sintese, a saber. Quando 0 silencio ou 0 saber se reduz 11 analise, os convidados ao banquete deitam-se, desgostosos, em leitos pomposos afastados, distantes da ordem e da palavra, do fogo onde algum genio maligno comb ina, compoe, mistura, cria uma nova ordem, uma outra escala de sabor: escravo ou mulher de maos sujas que verte em uma mesma cratera, como em urn estomago, Hquidos incompativeis. 0 analista soluya de repugnilncia por esses personagens lambuzados, de repulsa pelo cal do, ele gosta de vomitar. Assim liberta seu estomago da mistura e da confusao a que se entrega. E, no entanto, sob a receita esconde-se 0 confuso: ele ferve no caldeirao, tosta no meio das brasas, refoga demoradamente. Peguem isto, dosem, depois, misturem.
,. . '. i.~
}
I"
•
,,::.. "." '"
.
168
Nada sobrepuja em excelencia a ordem do cozido quando se sabe cozinhar, como na Franya. A natureza, por uma unica vez, nao faz as coisas tao bern quanta n6s. 0 saber fazer magnifica 0 dado: este, crn, continua subordemo 0 aroma do cafe tostado faz os musculos e a pele, desde de manha cedo, estremecerem de contentamento, os perfumes do assado que antecede urn pouco 0 tostado, deslumbram os espiritos, men os, porem, que 0 caramelo: ayucar pobre sem 0 fogo. Nao compreendo bern a cultura da fervura, mais n6rdica ou puritana, encobrem-na os vapores do repolho. E vivi 0 bastante na onda de uma fast food para conhecer a ignominia da incultura. Vma vez mais, essa excelencia, literalmente sobrenatural, emana das misturas e das confusoes. 0 fogo funde mais coisas juntas. 0 crn da simplicidades tenras, fresco res elementares, 0 cozido inventa coalescencias. A analise, ao contrario, fatia ou recorta cruamente, a sintese pede chamas. Esta, por conseguinte, inclina-se para 0 lado do saber e da cultura, a primeira permanece da natureza bruta. Ese a fllosofia do saber nao houvesse come~ado?
OS CINCO SENTIDOS
{Mesas}
o conhecimento claro e distinto resulta da analise que divide ou separa, incoercivelmente desgostosa do confuso. Separar ou dividir supoe urn espayo e distinguir insere uma localidade singular nesse espayo, tudo simples opera,oes topol6gicas. A confusao ou vertente m1iltipla, enla,ada ou transformada em uma confiuencia, tam bern supoe urn espayo, mas urn pouco mais de aten,ao. Ela representa de fato a opera,ao direta da divisao ou separa,ao: uma especie de soma ou de muitiplica,ao. Aquele que sabe desdar urn n6 e desatar os fios presos nao condena, de ordinario, 0 que ata os fios soltos ou fiuentes, pois conhece os dois gestos. Ja a teoria do conhecimento, que desata e nao quer atar, s6 tolera as opera,oes inversas ou analiticas: destacar, desfazer, subtrair, dividir, diferenciar. Destruir. Analisar quer dizer destruir. Lembra esses costumes tradicionais de certas tribos em que 0 bra,o esquerdo era preso ao corpo para garantir que agissem sempre s6 com 0 bra,o direito, tanto uma metade do espa,o era superior it outra, sinistra. Analisar nao tolera a composi,ao. Mas a confusao compoe uma muitiplica,ao fiuida onde as multiplicidades em jogo, nao discretas, transformam-se em variedades continuas. Estas correm juntas, variam de concerto, fun,ao de diversas varhiveis. Tudo se passa como se a analise ainda nao houvesse aceitado essas fun,oes complexas, variadas, de que ela mesma trata ha dois seculos. Voitamos novamente it mistura e ao conceito de variedade, imediatos na experiencia rica, complexa, vivida dos senti dos, e, sem paradoxo, mais abstratos que as opera,6es inversas e simples da analise, ou melhor, posteriores ao que chamamos de abstra,ao. A sensa,ao remete aqui a urn abstrato mais dificil e complexo que 0 tradicional. Digarnos: ou que os sentidos exigem urn novo esfor,o de abstra,ao para serern compreendidos, para comporem 0 que a analise separa; ou que 0 progresso em dire,ao a urn abstrato mais composto da resultados sensacionais ou sensuais. A confusao supoe urn espa,o e series de vizinhan,as, chega ao tempo, que, sem d1ivida, nao esta tao separado dos espa,os como se imagina. Ela marca, guarda, conta 0 tempo. Faz muito tempo que concebo 0 tempo como urn n6 ou trevo ou confiuente de varios tempos em que cada urn e com preen dido por esquema espacial. Essa m1iltipla clepsidra continua incompreensivel para 0 pensamento que se refugia somente nas opera,oes inversas. Curiosamente, 0 dado imediato faz compreender com clareza.
169
MICHEL SERRES
Como e que a fIlosofia teve de esperar varios seculos para pedir que aguardassem urn pouco 0 a<;ucar fundir-se em urn copo com agua? Como e que, na ocasiao de tal evidencia, nao associaram imediatamente, ao pr6prio tempo, a mistura e a fusao de urn corpo em outro. Dois fluxos no entanto vertiam juntos seus componentes. Bergson, depois de Duhem, inventava entao, emprestada dos gregos, uma cIepsidra de varias entradas, vertente variavel, vasos comunicantes. Praticava exatamente ou finamente a confusao. A solu<;ao. A fusao intima disto naquilo, de urn fluxo em outro, generalizavel a quantos fluxos quisermos. Foi preciso, sim, toda a hist6ria da fIlosofia, que, no entanto, desde seu alvorecer, ja instituia a mistura e 0 caos, as vertentes, para reencontrar de forma simples, ingenua, quase infantil, num copo ou num vaso, 0 que se faz na cozinha, enquanto os convidados falam de amor bebendo, e 0 que fazem os vinhadeiros de forma extremamente complexa, desde 0 alvorecer de nossas tradi<;Des. Lembrem-se disto: ela come<;a no diluvio e na Arca da alian<;a. Como se os rel6gios ja se saciassem: volume de agua colossal, capital de bichos, de vida, de sementes, primeiras misturas. Ligas. 0 velho patriarca Noe, prot6tipo de en6fIlo, faz escoar confusamente a multipla cIepsidra. Lembrem-se.
I.
o conhecimento claro e distinto apresenta urn espa<;o ou 0 representao 0 conhecimento confuso COrre e volta ao longo de tempos fluentes. Presente, e claro, mas com passado recobrado, ele se lembra. Tomem e bebam. Fa<;am isto em mem6ria de mim.
MEM6RIA
170
Voltemos a imediatez dos sentidos. Podemos definir urn zero sensorial, uma especie de referencia? Podemos pelo men os imagina-Io. Aprendemos nas primeiras li<;Des de hist6ria natural que a agua esta situada ai: fluido excepcional sob diversos aspectos e, ademais, inodoro, incolor, sem sabor. Inapreensivel e praticamente intangivel, quase translucido, quieto, quando nada 0 agita, nao barulhento. Dir-se-ia a defini<;ao do espa<;o inteligivel na escola de Platao, na epoca em que a geometria nascia: que extraordinaria abstra<;ao! Li<;ao
OS CINCO SENTIDOS {
Mesas}
no entanto falsa, evidentemente, a agua tern gosto, colora~oes, adivinhamos pelo cheiro sua proximidade, distinguimos de olhos fechados vinte sabores, aguas simples, correntes, paradas, urbanas, serranas. 0 zero se desloca. Oar, vaga mistura, tern mais direito a esse posto. Intangivel, quase poderiamos dizer intacto, incolor e transparente, transmissor das luzes, das cores e vetor dos perfumes, sem gosto, inaudivel quando nenhum calor 0 impulsiona, ele penetra 0 corpo, as orelhas, a boca, 0 nariz, garganta e pulmoes, envolve a pele, suporte de todo sinal que alcan~a os sentidos. Este neutro ou este zero nao e determinado na sensa~ao, mas ainda e uma das coisas a sentir, no limite do insensivel. Oar, mistura vaga, leve, sutil, instavel, favorece as alian~as; vetor de tudo, a nada se opoe. Meio ambiente do sens6rio, excipiente geral das misturas: vaso principal da depsidra confusa. Imaginemos que a visao ou a audi~ao forne~am rapidamente inforgerais, ja urn tanto abstratas ou universais, formas: uma linha mel6dica, acordes, uma morfologia. Os fil6sofos do conhecimento encontram mais facilmente apoio ou referencia na 6ptica ou na audi~ao, sem duvida, em razao destas performances: intui~ao, harmonia. 0 gosto, tambern, tern alguns retornos ou estabilidades, uma cuItura retem seus Mbitos. 0 sabor de manteiga e 0 gosto de azeite dividem a Fran~a com mais precisao do que qualquer reparti~ao departamental, nos mesmos limites que a lingua. o olfato parece 0 sentido do singular. As formas se encontram, invariantes ou restauradas, as harmonias transformam-se, estaveis por varia~oes, 0 perfume atesta 0 especifico. Olhos fechados, orelhas tampadas, pes e maos amarrados, labios cerra dos, distinguimos, anos depois, entre mil, certo sub-bosque em tal esta~ao ao por-do-sol, antes da chuva, certa pe~a em que armazemivamos milho forrageiro ou ameixas de Agen cozidas, de setembro a primavera, uma certa mulher. Vivemos, nao faz muito tempo, entre odores dominantes: a gasolina e o querosene, fedores na balburdia, impoem-se as nossas sensibilidades feridas. Muito freqllentemente, passamos atraves de urn ar inconstante carregado de tra~os passageiros. Nada se parece mais a uma circunstiincia que esse vapor. Ele se mistura a atmosfera, depende do tempo, da hora, da data e dos meteoros errantes, dos lugares, altitude, interior ou exterior, dos acontecimentos, das posi~oes, condi~oes, causas e atos, produz-se ma~oes
171
MICHEL SERRES
improvavelmente. Fina ponta de apex raro, composi~ao muito complexa, mistura de mil vizinhan~as, n6 instavel de correntes caprichosas, urn perfume delineia-se como uma interse~ao, ou uma confusao, nao sentimos odores simples nem puros. A forma volta, a linha harmonica se reproduz, ja temos ai urn conhecimento, pelo menos urn conhecimento freqilente: estabilidades fortes retornam diante do olhar, soam na orelha como refrao, a memoria se converte em conhecimento e 0 ritmo em habito e, logo, em lei. Mas 0 tra~o raro no fluido aereo, mas a mistura instavel e complexa, 0 no em parte desfeito que puxa mil fios nao voltam nem levam i\ invariincia alguma: demasiado circunstanciais para se porem a bater, ritmados, derramados demais, diluidos, ca6ticos. 0 conhecimento, ao contrario, elimina essas circunstancias instaveis, desbasta a raridade. Nas mesmas circunstimcias, diz ela ... Odores improvaveis, misturados, especificos, singulares, incertos em tempo e lugar. Suponhamos agora que uma mistura rara se apresente uma segunda vez nas turbulencias aleat6rias do ar, que essa confusao tinica volte, improvavelmente: entao, 0 n6 puxa os fios, 0 apex atrai sua base, a interse~ao divide-se nos subconjuntos afluentes, todo urn mundo se precipita, posi~ao do corpo, encantamentos, cores, todas as circunstancias aos montes preenchem 0 local, a raridade reaparece, cheia de arabescos e ornamentos, a mem6ria, ai, nao se transforma em saber, por baixa freqilencia, mas a lembran~a, em superabundancia, desabrocha extaticamente i\ sua proximidade. Sentido da confusao portanto dos encontros, sentido raro das singularidades, 0 olfato desliza do saber i\ mem6ria e do espa~o ao tempo; certamente, das coisas aos seres.
-I"
".iI
".,'
172
Amar urn corpo, esta raridade bern singular; em toda a superficie da terra, nenhum livro tern maior pre~o. Amor nos torna confusos, do is vasos vertem juntos. Vagueia i\ superficie das peles, dos veus, tecidos complexos e sutis, certo perfume indefinivel que pertence apenas a ela e a ele e assinala urn ao outro, concordantes. Nao amamos sem 0 raro acordo dos olfatos, milagre de reconhecimento entre os tra~os invisiveis que voam sobre a nudez como 0 ar e as nuvens sobre 0 solo. Ate a morte permanece em nosso espirito, no sentido quimico e mistico da palavra escrita ou falada, no sentido do olfato, 0 espirito emanado de quem amamos urn dia. Ele
OS CINCO SENTIDOS {
Mesas}
volta, fantasma, em certas auroras, a pele. 0 amor perfuma a vida, os aromas restauram os encontros e suas cintila,6es. Antigamente embalsamavam os mortos: para que a mem6ria evocasse aqueles que nossos ancestrais amaram. A pr6pria vida anuncia-se de longe por essa emana,ao. Ela embalsama. Lingua exata e sabia que denomina buqu~ a exala,ao de urn odor. Urn buqu~ nao e apresentado apenas como urn apanhado, maI'o de arvores cortadas ou flores em acordo, simples conjunto ou multiplicidade, mas como urn feixe atado, preso a uma certa altura por urn barbante ou uma fita, ou pela boca de urn vaso. Cada flor dol sua cor e sua forma, exala, difunde seu perfume, mas cada uma reencontra a outra, 0 buqu~ exprirne a interse,ao delas. Se puxarmos 0 la,o ou a fita, 0 ponto de estrangulamento, 0 lugar exato em que se forma a confusao de varias vertentes, todos os talos e petalas v~m juntos, todo 0 estado das coisas e representado em sua lembran,a. Urn componente nao cede sem a resultante. 0 buqu~ forma a cintila,ao de mem6ria pela impossibilidade de analisar 0 corpo misturado: apresenta-se integro ou nao se apresenta. Em torno da interse,ao estrelada, reproduz-se uma singularidade. Ressurge, ressuscita. o buqu~ representa urn produto, uma interse,ao nao-analisavel. A liga,ao organica e rara, especificidade singular, que leva a minha lingua 0 nome de amor, como conhec~-Ia ou enla,a-Ia se nao por uma interse,ao desta forma, por uma circunstancia, estavel ou instavel ao redor do estado local das coisas, eis a estrela, se nao por urn buqu~, como reconhec~-Ia, formalmente falando, a nao ser por urn cheiro, sensorial, sensual, que cintila em todos os sentidos? Amo teu cheiro e teu espirito. A exala,ao de teu corpo, minha lingua, outrora, chamava de espirito. A lingua atual, asseptica, chama-Ia-ia odor, seu saber, de nariz urn tanto torcido, poria urn perfume no lugar. Da a entender que a rela,ao entre 0 odor e 0 perfume equivale aque existe entre 0 dom e 0 perdao. Vai alem do dado, sublima-o. Na mais pr6xima vizinhan,a do corpo amado, a lingua substitui 0 dado por uma f6rmula. A singularidade desaparece em proveito de uma marca comum. De uma assinatura. Equa,ao da quirnica ou nome pr6prio elegante. 0 segredo individual Ii divulgado na publicida-
173
MICHEL SERRES
de. Quando 0 dado s6 se da pela linguagem, marca ou algoritmo, a cama, obscena, cai na rua ou se exibe nas telas. 0 dado evendido. Amo teu espirito individualizado. Nao separamos dois amores, mistico e carnal, profano ou sagrado, puro, impuro, ign6bi!, nobre, espiritual ou odorante, pois 0 espirito sopra na vizinhan~a da pele, mas ambos se opoem, unidos, privados, a obscenidade da linguagem publica. A alma continuamente errante esconde-se nas situa~oes. No ambiente das privacidades.
i
Alma. A alma traduz 0 latim anima, que, por seu turno, traduz 0 grego anemos, que quer dizer vento. A alma errante vern de onde vern 0 vento. o vento. Movimento leve, suti!, vaporoso, turbulento, em ritmos e quase-periodos, ca6tico, misturador e portador das misturas, confuso, suporte de todo sinal referente aos senti dos, penetra 0 corpo, nariz, boca, orelhas, pulmoes e garganta, e envolve a pele. Zero dos sentidos, portador de todos eles . Partindo do ar, 0 circuito dos odores volta ao ar: sobe por emana~ao, desce ao amor, it morte, ao saber e torna a subir. Partindo do yen to, da alma, 0 circuito retorna para a alma, no sopro do vento. Alma: zero dos sentidos e portadora de todos eles. Amo tua alma leve, suti!, vaporosa, turbulenta, ca6tica, amo que ela penetre tua boca, tuas orelhas, que reine em tua pele. Digam a diferen~a entre a alma e 0 vento.
I
i
.1
! •
. -..
,
'j
o que circula no mundo ou no interior dos corpos, chamamos de informa~ao
ou de espiritos animais?
A confusao associa, multiplica, verte, enla~a e nao desenla~a, nao desfaz nem separa, faz confluir 0 nao-analisavel: eis 0 tempo. As opera~oes inversas de distin~ao realizam-se em diversos espa~os, as opera~oes diretas da mistura flutuam em tempos diferentes. Os gestos espaciais da separa~ao dao lugar ao conhecimento, os gestos espa~os temporais da confusao dao vez a mem6ria.
174
Nao sei realmente, diz ela, 0 que signitica esta palavra Yquem. Constato somente que a decima ordem dos anjos, segundo Ben Mainon, depois de seratim, eloim ou querubim, e denominada ychim. Ofamim, nipidos, seratim, centelhas, malaquim, enviados, querubim, imagens, ychim, animados.
OS CINCO SENT/DOS
{Mesas}
Esplritos animais sobrevoando a colina assim denominada, arcanjos em miriades emanados do gargalo.
Urn fil6sofo amigo meu, bastante lido e eloquente para jurar e garantir que os sentidos enganam, viu-se urn dia introduzido na tranquila confraria dos cavaleiros do Tastevin, onde os que sabem provar fazem-no as maravilhas. Vinte anos depois, contou que urn dos confrades mostrava-se, desde ha muito, tao infallvel no reconhecimento dos crus e dos anos, que a corpora~ao decidiu, em conspira~ao pacifica, engana-Io terminantemente. Os conspiradores subornaram em segredo certo vinhadeiro da encosta borgonhesa para que plantasse alguns alinhamentos a parte, no alto ou embaixo, mas fora do controle das vinhas. E assim foi feito. Passaram-se os anos. As jovens cepas envelheceram, extralram-Ihes 0 produto. E num dia tao bela como 0 de hoje, serviram a esse papa 0 vinho que bern merecia ser chamado novo; pediram que 0 augure dissesse. Silencio. Pelas paredes bojudas do copo, ele fez deslizar longamente as pernas rubi escuro do llquido em questao, considerou-o, aspirou-o e, de olhos fechados, degustou-o. Silencio. "Senhores, mil perd6es, declarou ele, este vinho nao existe:' Exclama~6es trocistas, embora secretamente abafadas. "0 que nao existe, caro mestre, nao poderia encher seu copo." 0 amigo fil6sofo dissertou sobre 0 nada, fizeram-no calar-se, esquecera que jantava em boa companhia. "Insisto e assino, prosseguiu 0 mestre, isto nao pode vir de Bordeaux, com certeza, nem do Rhone, nem da Hungria, posso dizer apenas que desce da encosta." Vamos, vamos, respondeu 0 coro agitado. "Se ele existisse, ironizou, tornado de sub ita intui~ao, s6 poderia provir de tal lugar'; e pos-se a descrever com precisao 0 alto e 0 baixo da encosta onde o vinhadeiro plantara seus alinhamentos. 0 especialista do nada e da palavra, como todos os outros, ficou estarrecido. Urn raio laser saido da Terra deixa uma mancha na Lua cheia como uma pequena unha, admiramos sua precisao de lunula. Urn born provador tern de saber reconhecer urn vinho da Africa do SuI, da China ou da Calif6rnia, sem esquecer a Alemanha, a Toscania e Kios: entao ele assinala no mapa-mundi urn vinhedo de vinte e cinco metros de extensao e, no calendario da hist6ria, uma semana de outono, e, contudo, dizemos que os sentidos sao enganadores. Nota ate urn buraco no retalho vinicola do
175
MICHEL SERRES
globo: "Senhores, mil perdoes, este vinho nao tern lugar:' Temos tudo 0 que e preciso para definir distin~ao, clareza, precisao, esses louvores que s6 sao concedidos as ideias, essas grandes performances que s6 a linguagem, como ela diz de si mesma, alcan~a. E se os tagarelas nao fizessem mais que sua pr6pria publicidade?
,. ;1
, -"
~J
176
Como e que tendo comemorado a Ceia durante dois mil anos, estudamos somente 0 Banquete do divino Platao? Este, entretanto, lemos numa narrativa em que ja esta estabelecida uma longa cadeia de mem6ria. Sabemos em casa de quem aconteceu, sabemos quem estava a mesa e o lugar dos convidados: as vezes urn troca com outro, modificando 0 tripleto no leito de pompa. Temos ate urn texto paralelo, mais a abundante tradi~o dos banquetes, mais as enxurradas de comentarios. Se teto e colunas dessa aventura tivessem desmoronado fragorosamente em cima de to dos, se, entre os escombros, s6 tivessem encontrado uma papa de corpos irreconhecivel, poderfamos reconstituir, de mem6ria, a cena, as posi~oes, os discursos trocados, diilmetro e diaIogo, ponto por ponto e item por item. Tudo estaria la, perfeitamente no lugar, por artes da mem6ria. De urn jeito ou de outro, dele nos lembramos. Nunca, entretanto, pusemos esta mesa, como os romanos para seus deuses, nunca nos vestimos, a noite, para beber como beberam os amigos de S6crates e falar de amor como falaram, ate a aurora, Ii espera da entrada de urn rapaz, coroado de violetas e omado de fitas, amparado, ebrio, pelos tocadores de flauta, Ii espera sobretudo, falemos francamente, da chegada de uma estranha. Nunca fizemos isso em mem6ria daquela noite, lemos 0 que nossos antepassados liam, nunca comemoramos. Fizemos e refIzemos, milhOes de vezes, 0 gesto eucaristico. A Ceia suscita sua reapresenta~ao milenar, como se urn astro projetasse a sua frente o rastro luminoso, como se alguma a~ao precisasse que a despertassemos para nao cair no esquecimento, como se alguma coisa infmitamente preciosa e infinitamente fragil nos pedisse para leva-Ia a atravessar a hist6ria, de mao dadas. De que nos lembramos? Em volta do banquete, alegorias bebem: a comedia, a tragedia, a medicina ... Falam alegoricamente. S6 compreendemos isto verdadeiramente quando assistimos a urn festim formal, onde
OS CINCO SENTIDOS {
Mesas}
cada institui~ao ocupa uma cadeira, onde cada convidado s6 0 foi porque representa a politica, a ciencia, 0 banco, as midias ou a administra~ao, potencias do momento. 0 jan tar imita 0 dos deuses, tanto os individuos acreditam que s6 se tornarao deuses se perderem a individualiza~ao. A dona da casa podia ter convidado roMs que falariam por programa~ao, ao comando de teclas: 0 que diz urn administrador ou urn jornalista nao pode ser tido como surpreendente, ele celebra seu poder. Por muito tempo acreditei que a perda da individualiza~ao estava relacionada ao vinho que circula e torna-se sujeito coletivo, tomando a cada passagem 0 principio individual de cada urn, e que 0 vinho se transformava em n6s por conter objetivamente a soma dos eu confiada a ele por cada sujeito, perdido, em transe extatico, mas a perda ai ocorre de maneira diferente, pois cada urn participa disso qual uma estatua. A alegoria, bloco de marmore cinzelado em forma representativa, fala. A boca de pedra nao bebe nem come. 0 comendador amea~a, esbraveja, mata, mas nao pode se impor a Don Juan bebedo. RoM de lingua de pedra ou de ferro ou de pau, ele fala, nao pode ter sede. Sabemos construir maquinas falantes, nao sabemos fabricar rob6s que bebam e tenham paladar. A lingua pode-se to mar artificial, a inteligencia quase sempre se torna, a sapiencia, nunca. Neste sentido, 0 aut6mato difere do homo sapiens: dispiie da prirneira lingua, nao da segunda. o individuo que representa a comedia, a tragedia, a medicina, as midias ou a administra~ao, estatua, rob6, alegoria ern apoteose, aut6mato ha muito tempo morto, fala no banquete, mas nao bebe. Fala de amor, nao o faz; ou fala de vinho e nao 0 degusta. Jantar de estatuas, festim de pedra. Por ele passam palavras mortas, que comentamos, no estudo. As alegorias bebem alegoricamente 0 vinho aleg6rico, n6s falamos disso alegoricamenteo Symposium para as linguas de marmore ou para os computadores. Comentar ou comemorar. De que devemos guardar mem6ria? Do vinho? De n6s mesmos? Nao das posi~iies em torno da mesa, dos lugares, dos homens, das rela~iies de dominiincia, mas do vinho e de n6s somente. Ele circula pelo grupo. Cada urn, Tiago, Andre ou Joao, simples pescadores da costa, da beira do lago, marinheiros de agua doce, publicano ou mero coletor, nao representava nada alem de si mesmo, individuo, pobre que sonha com pesca miraculosa, patinhando no peixe escorregadio que transborda do barco, cada urn bebe, por sua vez, no calice, e 0 passa, da 0 passe a seu vizinho, cala-se. Nunca se soube que Tiago tenha falado, nem Joao, nem Andre. Pedro falou. Para trair. Pedro 0 chefe, 0 primeiro, 0
177
MICHEL SERRES
" "
'::
::: '''1
.: .' ," I :
~:
178
papa. 0 unico que representa. Pedro para quem a Ceia nao e mais que urn festim de pedra. Os outros bebem pelo beber. Pelo degustar. Bebem e degustam calados. Os outros bebem pe!o amor. Tiago, Andre, Simao, depois Joao. Jantar de amor onde 0 grande calice passa, festim de Joao. Tu que falas e fundas institui~ao, tu te chamas Pedro. Tu que bebes por amor, tu te chamas Joao. Impossive! banquete entre a est,Hua de pedra e Don Juan, ebrio de amor, que bebe e bebe ainda e sempre. De que se lembrar, tao fragil e olvidavel que Ii preciso refazer em uniao, muitas vezes, os gestos de comemora<;:ao para Ihe reencontrar a memoria? Ei-lo. 0 vinho passa de mao em mao. Cada qual recebe a ta~a, bebe, passa a seu vizinho; a passagem do vinho faz dele uma estancia e urn motor da circula~ao. Esta descreve 0 grupo, segue 0 fio da rela~ao. 0 grande calice, quase-objeto, tra~a as rela~6es entre os apostolos, como 0 ane! que corre no cordao na brincadeira de passar de mao em mao, ela transmite, tece, objetiva aquilo que une 0 grupo ou os doze. Em Andre, em Tiago, em Joao, 0 calice descansa e torna a partir: a conexao coletiva para e continua. Em cada urn, 0 grupo morre e revive. Cada apostolo toma e dol. Toma 0 vinho, bebe ou degusta. E dol. Da seu principio de individualiza~ao que 0 vinho, contra sua vontade, tira-lhe. Deposita na ta~a e no vinho essa identidade que 0 vinho retira de quem 0 degusta. 0 coilice em circula~ao encarrega-se das individualiza~6es, apanha os sujeitos de passagem, e mais facilmente ainda porque os marinheiros de agua doce ou trituradores de calha us, mhos do povo e homens sem bens, camponeses, marujos, n6mades, franciscanos por antecipa~ao dao tao pouca importancia a suas pr6prias pessoas que as abandonam tranquilamente: e!es nao guardam por muito tempo 0 calice que seguram, como uma brasa, a ele, a mirn, a ti, quem lis tu e quem sou eu, como te chamas, isto ja nao tern tanta importan cia, ja nao compreendo isto, tu nao 0 sabes, ele 0 esqueceu, 0 quaseobjeto, cratera de vinho misturado, torna -se quase-sujeito, misturando os nomes proprios e os pronomes perdidos de passagem, e fun didos em urn nos, confundidos no calice que forma a mesa, comp6e 0 festim, preside de repente a Ceia, sujeito sagrado de sua religiao - os sujeitos viravam rela~ao, a re!a~ao torna-se sujeito por intermlidio do objeto, disto, do vinho - , sujeito fragil, tao precario que se prepara para morrer, condenado a desaparecer no esquecimento se, rapido, nao refizermos 0 mesmo gesto, pronto a ressuscitar a cada comemora~ao; Ii preciso, pois, todas as manhas, em qualquer canto do espa~o, recome~ar a celebrar esse coletivo instavel, nunca verdadeiramente substancial, sempre em agonia na sexta-
OS CINCO SENTIDOS {
Mesas
l
feira e em sua gl6ria no domingo. E preciso mante-lo, mantermo-nos, substancia-lo. Por um momento, eles tem na mao 0 sujeito transcendente em rela~ao a seus respectivos nomes, a suas posi~6es e presen~as, e 0 passam it mao vizinha, sem compreender 0 que fazem, evocam-no e s6 the percebem 0 misterio, todos 0 matam e the devolvem a vida, no instante. Isto, este vinho que lhes toma a individualiza~ao e ao qual cada um da a sua, esta cratera de bebidas misturadas que percorre a rela~ao deles e lhes da a unanimidade, este e 0 sangue que circula no corpo que eles formam, aqui e agora, em volta desta Ceia. 0 sangue que passa por este corpo unanime pulsa: tomada, parada, passagem, retomada. Corre, vertido. Eu sou tu ou ele, indiferentemente, tu es, indiferentemente, 0 outro ou eu, 0 sujeito destaca-se de mim, de ti, dele, de qualquer outro, Pedro, Tiago ou Joao, vivemos doravante uma s6 alma em urn s6 corpo, onde passa urn s6 sangue, vinho que circula e pao partido: Ele.
o pao e repartido e 0 vinho e vertido. Qui pro vobis et pro multis effundetur. vinho ou sangue que, para v6s e para urn grande numero, sera vertido, derramado, extravasado. De que nos lembrarmos? Desta efusao. Desta reparti~ao: 0 pao e repartido ou analisado por tantos individuos. Isto sabemos, aprendemos, inesquecivel. Ninguem jamais perdeu a mem6ria da divisao, da separa~ao, da ruptura. Nada perdura como a amilise. Ficamos repartidos, separados, como peda~os de pao, todos partidos para continuarmos individuos. Desta efusao 0 sangue corre, como 0 vinho, ou a agua, ou 0 vinagre. 0 tempo corre tal qual. Nas bodas de Cana, primeiro banquete, a agua se transforma em vinho no Iiltimo servi~o. Junto ao po~o de Jacob, a agua mortal da vez it promessa de uma bebida de imortalidade. No festim de Betania, pen ultima Ceia, urn perfume precioso derrama-se da mao de Maria Madalena sobre 0 corpo do Cristo, assim ungido, e 0 odor extraordinario enche a casa. Na Ceia da quinta-feira, 0 vinho se transubstancia em sangue, depois em agua, para fmalizar. Tambem deram vinagre para beber, em uma esponja, ilquele que expirava. Os fluxos acompanham e datam a hist6ria, modificam-se e misturam-se, sobem em excelencia ou caem em ignominia, vinho delicioso como urn ychim, ou 0 que desenvolve as fragrancias do nardo, vinagre intra gavel, voltam as vezes sobre si
179
MICHEL SERRES
mesmos em cicio: agua, vinho, vinagre e agua enfim, todos os escoamentos mostram a forma ou 0 processo, eis 0 tempo, lembrem-se daqueIe tempo. De que e preciso lembrar-se? Sim, do sujeito que morre e que esquecemos, que, a cada instante, devemos ressuscitar de entre os mortos. Mas tambem, mas sobretudo, daquele tempo, do tempo: dos fIuxos vertidos, da agua, do vinho, do sangue que correm e se confundem. A memoria e guardada por essa multipla passagem, gra~as a essa confusao. o proprio tempo carrega a lembran~a. Ele corre como os fIuxos, esses rios que passam, que param, retomam seu curso, ou 0 dividem, ou entram em confluencia. 0 tempo corre como esses inumeros cursos, tao diferentes e confundidos, mudados, transubstanciados. Velha, nova, eterna alian~a, com que corpo meu corpo se confunde? Com que sangue meu sangue, com que vinho meu vinho?
,
,
'I" ,
I : ~
,.1. o
"
i:":j' ,:.. ~ ~
, .'
180
Trazemos em nos, em nossa cultura, do is festins. No banquete das alegorias, das representa~oes, lectisternio dos deuses deitados, as estatuas discursam em sua lingua de pau ou de pedra. N6s comentamos esses discursos, como se as estatuas desse festim de Pedro, que bebem para se enrijecer de anestesia, voltassem para se vingar. Quem condenou a morte os que ali jazem, quem matou Socrates? Na Ceia crista ou no festim de Joao, os convidados chamados ap6stolos possuem urn nome comum que significa sua ausencia deste mundo: enviados, distantes, expulsos, ou banidos. Eles aceitam morrer, como seu Mestre, e a Ceia precede a morte, Dom Juan tambem expira. Aceita sua morte subjetiva, na esperan~a de uma ressurrei~ao. As estatuas, mortas, recusam a morte e tornam-se fantasmas. Exigem uma outra morte. Portanto, uma outra estatua. Que voltara sempre. Eterno retorno que passa pela morte ou peIa obra do negativo. Os marinheiros do lago e do rio aceitam sua morte, esperam que eIa satisfa~a 0 apetite das estatuas de pedra, esperam que a deIes marque a derradeira: Ceia dos condenados, dos derradeiros condenados a morte da historia. Em nossa cuitura, em que procuramos comemorar esta Ceia como se nao nos lembrassemos realmente deIa, 0 banquete se opoe a Ceia, 0 festim de Pedro ao festim de Joao; Pedro, 0 comandante, 0 chefe, sai sempre do tlimulo para matar Joao que, por amor, deixa-se matar.
OS CINCO SENTIDOS
{Mesas}
Pedro, a pedra estavel, mata Toao, 0 tempo. Lembrem-se do tempo. Penso em escrever urn terceiro banquete onde a estatua, vingadora, aceitaria beber vinho com quem seduziu sua amada. Sofremos do mal de amor por havermos esquecido de te-Io feito algum dia. De uma tal confusao ou contluencia antiga e obscura, os corpos, nosso olfato, a lingua, perderam a mem6ria. Sentimo-nos obrigados a comemorar com freqiiencia. Vern, 6 minha terna confusa, mergulhar no tempo comigo, derramemos nossas lembran~as no rio do esquecimento, na clepsidra de remembramento, bebamos nossas amnesias.
o que estocamos, tal como os esquilos? Potencia, antes do tempo em que seni usada: represas, pilhas, baterias. Dinheiro: contas bancarias, mem6rias de computadores, bancos de dados. Comida: dlmaras frigorificas para carnes e frutas, silos para cereais, celeiros escuros e frescos. Esperma, 6vulos, embriOes. o tempo nem sempre corre. Podemos encontrar ou cavar lugares onde ele congela. Urn obstaculo, as vezes, 0 detem: barragem, portinhola fechada, garganta estrangulada, falta de luz para ler ou de calor para 0 degelo, rolha. 0 tempo percola: passa e as vezes nao passa. 0 esquema da percola~ao permite compreendermos a mem6ria: lugar onde 0 corredor, bloqueado, e atravancado e obstruido. Basta pensar que 0 fechado e 0 aberto tlutuam e dispersam-se no espa~o aleatoriamente. Aqui, por felicidade, a correnteza desce, la, por felicidade, 0 tluxo se acumula. Dois casos felizes: amanha 0 tempo correra porque, hoje, alhures, ele nao corre; ou melhor, s6 existira amanha sob esta condi~ao. Nao, 0 tempo nao corre, percola; melhor ainda, ele corre porque percola. Construimos bancos, estoques, barragens ou adegas gra~as a essas obstru~oes. Elas permitem 0 acesso a potencia, nao esgotar nosso tempo todo dia nos atos. Elas poem 0 potencial em nosso poder. Nosso corpo percola: seu fen6tipo segue 0 fio do tempo correndo ate a morte, sua foz, mas contem urn genoma que nao corre, represado, e contem bolsas onde o tempo suspende seu curs~. 0 organismo rompe 0 obstaculo quase ao bel-prazer e lan~a urn novo existente percolando no acaso da correnteza mwtipla: faz urn mho. Fecha as portinholas onde jazem os estoques: uma mem6ria para si mesmo, codificada em seu cerebro, uma mem6ria para
Instituto de Pc.'co!':ii:, - Ui:RGS Biblioteca - - -
181
MICHEL SERRES
sua especie, codificada em seus gametas, duas cameras ou poroes onde dois tempos dormem diferentemente, represas cujas comportas se abrem ou se fecham segundo dois tempos desencontrados, a todo instante ou raramente e, as vezes, nun ca. Bebamos, diz este, e bebamos fresco. Convidado ao banquete, ele se irrita com tanto discurso. S6 podes beber de uma garrafa, retoma irreprimivelmente 0 discurso, 0 fio do vinho que desce por tua goela sedenta, conservado pelo frescor, surdo a uma mem6ria, urn banco, uma soma em dep6sito. A mesa, como 0 corpo, abrilhanta-se de pequenas represas, anforas e ta~as, garrafas, copos, pratos, ninguem bebe ou come completamente 0 tempo que corre. Sao necessarios estoques intermediarios. Pequenos lagos de mem6ria, os copos. Nao, 0 tempo nao corre completamente. 0 canal puro, 0 corredor perfeito, sem estacionamento nem engarrafamento, constitui urn caso muito raro. A carne que comes, defumada, seca, ou conservada em adega, protegida do calor e das moscas, tambi'm percolou. 0 calor do banquete nao poderia ter lugar sem frio, esse gelo que causa obstru~ao ao tempo. Bebe fresco, agora.
,.,.1.
i~..::
o corpo assemelha-se a mesa e 0 banquete ao amor. o organismo enche-se de pequenas bolsas de mem6ria onde 0 tempo
182
corre pouco ou se imobiliza, esvaido, estoques intermediarios como copos e garrafas, alem de bancos maiores onde pode ficar congelado para sempre. Bebamos demoradamente 0 vinho fresco e leve, esque~amo-Io, profundo como rubi, nas garrafas, ou 0 deixemos no frescor da adega para 0 prazer de algum sobrinho. Nossos banquetes, 0 de voces e os deles, formam a linhagem dos fllhos, visiveis, do celeiro, escondido; fllhos calorosos de cameras frigorificas. Nossas migalhas de pao, as de voces e as deles, constituem a Iinhagem das fllhas, visiveis, da levedura, escondida; fllhas deliciosas de massas incomiveis. Por tras dos fen6menos alinhados em serie, uma mem6ria escura, estavel, dorme no frio. Trazemos conosco urn genoma adormecido, em urn saco baixo, pendurado it fresca entre as coxas, fora do corpo tao quente que 0 despertaria, fora do tempo que 0 estragaria, mem6ria da especie; ou urn estoque de genomas verdes, que chegam regularmente, urn a urn, 11 maturidade.
OS CINCO SENTI DOS {
Mesas}
Bancos de seres em potencial, virtuais, irreais, ou adormecidos para sempre, ou passando por sorte, acaso, interse~ao, encontro, peIo pequeno guiche imprevisivel por onde se chega ao grande teatro dos atos. Feitos pelo amor, amores n6s mesmos, mhos de potencia e de passagem, mhos de virtual e de insinua~ao, de capacidade irreal e de astucia para nos esgueirarmos pela porta estreita. Os amores fazem a linhagem aparente saida dos genomas escondidos, linhagem quente vinda da mem6ria fria; 0 amor e mho de mem6ria esquecida, rica e pobre, rica virtualmente, de fato, miseravel e por escolha; 0 amor reconhece aquela que havia perdido. Voces hoje poem 0 genoma em laminas 11 temperatura mais que glacial do azoto liquido, e 0 conservam no frio, fora do tempo corrente, mas ha milhoes de anos que ele se man tern no fresco, como 0 born vinho no celeiro ou certos fiambres nas cameras frigorificas, 11 espera de se fazer presente. De mergulhar de novo no fio do tempo. Nao ha banquete sem adega nem guarda-comida: sem lembran~a nem gelo. Nao ha convidado sem amor; nao ha amor sem frescor nem mem6ria. Nao ha texto sem biblioteca, nao ha m6sofo sem enciclopedia, nao ha palavra singular sem 0 banco da lingua onde as palavras, no escuro, dormem it fresca. Livros fechados sem luz. 0 escritor ocupa lugar na longa linhagem dos mhos visiveis da lingua escondida, mhos do virtual e da passagem astuciosa pelo guich€!: miseria de nao ter a lingua e finura de encontra-Ia. Filho da sombra ou do numero e da escolha ou da raridade. Todos filhos da multidao e da unidade. 0 multiplo guarda s6 para si 0 segredo, sepultado na escuridao da mem6ria, faz 0 esquecimento ou a glacia~ao. Nunca saberas que promiss6ria depositaste em tua conta bancaria. A unidade passa pela porta, rara, unica, reconhecida, lembrada. Apanha uma garrafa rara da adega, escolhida entre os mais preciosos vinhos, na meira das inumeras garrafas de fundos empoeirados; escreve a unica palavra pr6pria entre mil expressoes possiveis, disponiveis em gramaticas e dicionarios; eu te reconheceria de olhos fechados, entre dez mil; festim, obra-prima, amor, filhos do multiplo e do urn. Filhos do homem e da mulher. Do macho, semeadura numerosa em tamanho pequeno, macho rebanho incalculavel; da mulher, gorda, redonda, monada, femea volumosa, unica e rara. Uma lembran~a vinda no esquecimento multiplicado. 183
MICHEL SERRES
As Ifnguas. a faladeira. a sensitiva e a amorosa. sentadas a mesa do banquete. aproximam-se do jarro onde jaz 0 Ifquido. onde a confusao dorme. onde 0 tempo se acumula e de onde vern a mem6ria. Urn genio inteligente. ali fechado durante lustres. escapa. Ninguem pode prende-Io outra vez nem devolve-Io ao vidro. ele sai. explode e transforma-se em mil apari~oes e disfarces. Vira isto e aquilo ou aquilo outro. como chama-Io mesmo? Ele nao voltara. A esperan~a reside no fundo desse vaso. Ela vai inundar 0 mundo. ou. ao contrario. perder-se. esmagada por todos os males? A caixa tern 0 bela nome de Pandora: todos os dons. 0 dado. a totalidade do dado jorra copiosamente da cornuc6pia da abundancia. Nao conhecemos outra caixa de Pandora a nao ser 0 mundo: s6 sua caixa sem bordos comportava todo 0 dado. A garrafa de sauternes imita 0 mundo. con centra 0 dado. de subito 0 entrega: colorido. luminoso. resplandecente. tatil. aveludado. Acariciante e profundo. suave. orquestral. composi~oes de rnetais. de c1arinetas e cornes. espirituaL Corpo e mundo: agreste. fioreal. prairial. vendemh'lrio. fiorestaL Tempo: minutos emeses. decadas. Espa~os: paisagem e cauda de pavao. Os dons ou 0 dado invadem 0 sens6rio e abandonam as Ifnguas. descem arterias e musculos. nervos e ossos para irem ate a ponta das unhas. A garrafa encerra todo 0 sensivel de uma s6 vez. con tern 0 sentido comum. sem fundo. Abandonada por uma semana. aberta. vazia. na mesa. a fonte da emana~ao nao se esgota. Bomba sensorial coroada. acima do gargalo. com urn penacho de nuvens.
,.
<.
." ." .. "
184
Invadido por essa nuvem. 0 corpo aprende ou realiza a transubstancia~ao em espirito. Todo 0 dado vivaz e mUltiplo. caleidosc6pico. reune-se em urn fuso. em urn feixe atado. pede passagem. embaixo de uma charnine. gargalo da garrafa ou longas fossas do nariz. pifaro. flltro.limiar. transformador. como denominar este corredor que tao alto ascendente. oscila ou se ordena na passagem. implora para subir. passa: entao. transubstancia-se em espirito. 0 sentido vira olor.leve vapor. a materia torna-se animada. Alma ou informa~ao. Mas 0 tempo. na garrafa. desde 1947. mas 0 tempo. aquele ano. acirna e abaixo do vinhedo. mas 0 tempo antes. nas cepas e na terra. ja havia adiantado bern 0 trabalho. Solo. c1irna. terrenos pedregosos. 0 negrurne
OS CINCO SENTJDOS {
Mesas}
dos pinheiros vizinhos, 0 suor dos vinhadeiros, 0 alcool pesado e os veroes quentes, as chuvas, 0 apodrecimento, todo 0 duro do mundo a se transformar em doce, pacientemente. Nao no sentido do vinho doce, mas no sentido em que 0 vinho diz mil coisas, no sentido em que ele passa dos sentidos it inform~ao, espiritual. Ele cintila nos espiritos: buque, carrilhao, pavana, arco-iris, inteligencia numerosa e sutil, mas no entanto, una, espirito. 0 feixe abundante do numero e da complexidade sensual ata-se, refina-se, conflui, mistura-se, passa e soma-se na chamine estreita que acredito sentir na cabe~a, temos la necessidade de imaginar urn entendimento para reunir as sentidos? A materia se toea pelas maos; pode soar nas orelhas ou fazer estremecer a pele; ofusca a vista, enche a boca: materia s6lida, liquida, fluida, acustica ou luminosa, aspera, porosa ou sedosa, presa na inercia, no em si, no objetivo, na substancia, tranqiiilidade escura e estavel, embaixo; sobe, aliviada, espirito, no olor, vento d'alma. Isto e vinho - como se pode chamar isto de vinho? - isto e espirito, isto e meu sangue. Invadiu todo meu sangue, dos pes it cabe~a. 0 vinho circula em n6s. E entre n6s, corpos em comunhao. Aqui estamos unidos, reunidos, nao formamos mais que urn s6 corpo, unanime. A mesma alma circula entre n6s, sangue novo do corpo coletivo. Cada urn bebe do mesmo cruice, cada urn bebe ate a ruptura do principio de individua~ao, cada urn desaparece, s6 resta a passagem. Circula,ao em urn s6 organismo. Isto e meu sangue. A velha ambrosia dos velhos deuses passa para a meio da comunidade, doravante imortal, ao contrario dos individuos, mortais. Sangue da eterna e nova alian,a. Bebam 0 vinho, vertam 0 sangue, percam sua singularidade para verte-la it comunidade, liga,oes, alian~as antigas e novas, confusao ainda e sempre, apari,ao de urn tempo novo e de promessas novas, lembran,as. Fa,am isto em mem6ria de mim. Uma vereda abandonada M dais milenios, urn cruzamento encoberto por seculos de esquecimento se reencontram. Ai esta. A aten,ao dada aos sentidos, respeitosamente, por eles mesmos, e nao como embrioes, diferenciais incoativos de conhecimento, exprime-se melhor na voz dos mitos: Hermes, Pandora, ou na dos contos: Cinderela,
185
MICHEL SERRES
I.~
o Iicorne, ou na das artes: Orfeu, as Musas, ou na das religioes. De repente estamos sentados, ern companhia de velhos amigos, ern torno da mais velha mesa do mundo, onde Ulisses cantou outrora, ern casa de Alcinos, onde Jupiter fez a moringa jorrar copiosamente, sob 0 teto de Filemon, onde S6crates dissertou corn Agaton ate de manhazinha, onde a morte recusou beber a convite de Don Juan, de repente, celebramos 0 repasto ern casa de Lazaro, onde Maria Madalena ungiu 0 Cristo de nardo precioso, dando-Ihe seu nome corn esse gesto, comemoramos a pr6pria Ceia, on de o vinho se transformou ern sangue, refazemos indefinidamente 0 ultimo repasto a caminho de Emaus, quando 0 principal anfitriao jii nos deixou ha muito tempo, presente, contudo, por nos ter dado, ap6s sua partida, 0 dom das Ilnguas, falo do verbo. A aten~ao dada aos sentidos exprime-se mal pelo logos: formula~ao exata ou confusa sempre insuficiente e risivel, formula~ao abstrata sempre te6rica, pela quimica ou pela filosofia ou pela antropologia, conhecem uma tal de estesiologia? Ela se desvia do logos, dirige-se para 0 mito. Nao ha nada nos sentidos que nao va, portanto, para a cultura. Nito para conhecimento, mas para a cultura. Nao para 0 discurso, mas para 0 que?
;:
.. :., . ,
186
Eis que estamos na aurora do tempo. A sensibilidade data da Antiguidade, define uma antiguidade. Quem tern 0 dom dos sentidos fala as Iinguas antigas, canta os mitos mortos nos ritmos ou nos dialetos esquecidos. Ern volta da velha mesa, diante do vinho velho, tirado de uma adega veneravel, saido de uma galeria subterranea ou porao escuro, comprado de urn velho negociante contador de velhas hist6rias, as tres Iinguas, embranquecidas peIo tempo, as mais veIhas inimigas no mundo, mergulham juntas na mais fabulosa Antiguidade, tentam, passando de uma a outra, descer do verbo ao corpo, dos odores espirituais it substancia cinzenta, estavel, tranqtiila das coisas, voltam, pela mem6ria, de festim ern festim, ao come~o: nao ern busca do sentido, ern dire~ao ao inicio do conhecimento, mas ern dire~ao ao nascimento de nossa cultura. Elas comemoram e nao comentam. Refazem os gestos, tornam a encher os copos e nao repetem as palavras. Reencontram logo os mais longinquos de nossos predecessores, que ja reconheciam que ali, no festim do vinho, ern sua prepara~ao e conserva~ao, sua consuma~ao atenta e fervorosa, tinha lugar urn ato imenso e inaugural. Como se cada banquete, ao integrar os banquetes do passado, chegassem naturalmente ao primeiro.
as CINCO SENTIDOS
{ Mesas}
A esta a~ao, a esta transubstancia~ao, de uma energia material em 010res significantes, em espirito; isto, que concentra ou resume os dons do mundo ou os dados, invade 0 corpo de cada urn e circula no corpo coletivo, como urn sangue que queima, corre e pulsa. Ai se decide de fato a vida do verbo, sua rela~ao com este dado concentrado, resumido, que explode no corpo de todos. Ai se consuma a aquisi~ao, a reaquisi~ao pelo verbo de todo 0 corpo ai condensado: material, inerte, sensivel, vivo, individual, social, coletivo. Aqui, 0 verbo, com uma frase, toma-o. Recomprou 0 mundo e a hist6ria pelo pre~o de seu corpo, pelo pre~o de uma frase. Quem tern 0 dom que ele tern poderia dizer este ato inaugural com rigor e plenitude, mas ele 0 disse com uma frase solene e sem equivalente: isto e meu corpo, isto e meu sangue. Quem tern 0 dom das linguas cala-se aqui: isto, tudo 0 que se pode designar, mostrar, ter sentido ou ser percebido e corpo ou sangue do pr6prio verbo. Desde entao, 0 dado s6 sera dado pela e na linguagem. Comemoramos. Tao logo dizemos isto, 0 verba nasce, tomou ou recomprou tudo. Abandonamos a costa antiga e abordamos It boa nova, Natal, mas logo esquecemos esse acontecimento inaudito, esquecemos que falamos, 0 verbo morre quando acaba de recomprar as coisas e os homens. Entao passamos das religi6es antigas It nossa, das religi6es dos sentidos a do verbo, do corpo apalavra, das fIlosofias da experiencia as da linguagem, esta narrativa data de ontem, ou de dez anos, ou de quase dois mil anos, ou do momenta perdido em que 0 mundo se refugiou na linguagem pela palavra daquele que se torna homem ao dize-Ia. Eis exatamente o primeiro discurso: isto. Isto e 0 corpo e 0 sangue do pr6prio verbo. Isto seria mais que uma palavra? A for~a substancial do liquido amarelo cobre de tra~os rosados transforma-se em espirito; a for~a material, dura, do fluido sonoro, transforma-se neste verbo doce, prestes a morrer: isto. Esta narrativa navega entre duas margens, fala entre duas religioes, tremula entre duas linguas, imobiliza-se entre dois tempos, deixa duas filosofias. Isto reduzir-se-ia a uma palavra? Estes perfumes ricos e este gosto multiplo, transformados em sinais doces, limitar-se-iam a uma serie de proposi~6es? E esta comemora~ao contenta-se com urn contrato escrito? Passemos ao mar, ja que nos vangloriamos de navegar, sentemo-nos em outros banquetes menos arcaicos. A mostarda, fraca, nao tern gosto; a cerve-
187
MICHEL SERRES
.,,';
,
188
ja, quase sem alcoo!, perdeu todo 0 sabor, suaves as especiarias, ralo 0 cafe, mal torrado, mon6tonas as frutas e os legumes, chegam ao indiferenciado. A comida, indiscernivel, s6 se distingue pelo r6tulo. Pelo nome e pelo pre~o. o vinho vira leite, branco. Nada arde nem pica. A America come doce. E bebe enjoativo, come insipido. Gelado em excesso para anestesiar as papilas. Desperdi~a, portanto, enormemente, pois, salvo a pobreza, s6 a qualidade pode fazer frente a quantidade. Sempre mais. A flacidez entao flutua em torno dos corpos glutoes, l'hommo insipiens e tra~ado em contornos imprecisos, incha e vira monstro, perde suas form as, nao gordo, mas envolto em gordura, novamente embriao. A America exibe 0 progressoaomundo. Ele caminha, como sabemos, para 0 indiferenciado. 0 corpo se diferencia como a comida: infantil, corre para sua fonte lactea, a~ucarada; retorna a seu come~o, mamifero. Mamutes pesados bochechudos cambaleiam de urn lado para 0 outro quando saem dos carros, bebes nao desenvolvidos, mas ampliados de tamanho. A America rejuvenesceu muito. Claro, e preciso pao macio para os que perderam os dentes ou s6 os tern artificiais, ainda mais belos no sorriso dos cartazes; claro, devemos dar bebidas in6cuas aos est6magos frageis e especiarias insipidas as gargantas frageis. Mas 0 progresso caminha em outro lugar: para 0 denominador comum a muitas culturas. Assim, todos, esquim6, mexicano, japones ou eslavo, podem se sen tar no banquete. 0 avan~o cultural tambem restaura 0 arcaico. Todos enfim podem se adaptar a lembran~a da mamadeira, do seio, do dedo, ou, melhor, pela anamnesia da flutua~ao fetal no Iiquido amni6tico. 0 denominador comum, unidade mon6tona, aplaina as arestas, nivela as especiarias, ado~a, amortece, anula odores e gostos. A America vive em paz. A guerra, amanha, nao eclodira entre culturas de diferen~as duras, mas vai opor os que ainda poderao ser descritos pela etnologia, nutricional ou cultural, sobreviventes em ruinas, cuja beleza esparsa propiciara algumas escalas as agencias de viagem, aos que dormirao no zero da sapiencia e da sagacidade, anestesiados, drogados, frigidos. o supergelado inodoro devido a cobertura fofa, dissimulado sob celofane para que ninguem 0 deguste nem toque, cui dado com os germes, e apenas lido e ouvido, anunciado nos r6tulos informativos, em cartazes gigantescos, nos reclames tonitruantes. As paredes de vidro, em principio transparentes, sao cobertas, cegas, de publicidade. Isto matou aquilo. A escritura matou a arquitetura. Voces viverao somente no lido. A lingua
OS CINCO SENTIDOS {
Mesas}
matou os sentidos. Diluvio, explosao, maremoto de palavras, de cifras, de mensagens berradas, cantadas, transmitidas no fluxo turbulento disso que nos estarrece ainda ser chamado de musica. A cidade e 0 campo submergem sob a linguagem. o dado, perdao, 0 vendavel, s6 se da, perdao, s6 se vende, pela e na linguagem. A teo ria tern razao. A sociedade fabricou esta razao. o verbo triunfante encobre com sua aquisi~ao 0 que poderia dar perfume ou sabor e 0 transubstancia em visto e lido e ouvido, seus canais pr6prios. Isto que comes e bebes e 0 corpo e 0 sangue do verbo. Aqui, onde 0 compras, jaz 0 tumulo do pao, do vinho, do corpo e do sangue, mortos e ressuscitados em forma de mensagens.
o verbo proibe 0 senti do, sobretudo aqueles em que ele nao tern 0 que fazer. Triunfante, imp6e a proibi~ao, essa organiza~ao social da anorexia e do dessabor. A lingua que fala mata na boca a lingua que saboreia. Mata-a no coletivo, na que se diz entre n6s. Isto, que se diz, reduz-se a urn pre~o. Comeras palavras, mas, com mais freqiiencia, de agora em diante, 0 c6digo e a cifra. Portanto, ficaras muito, e mais ainda, e sempre rnais, enfunado deles. Nada e tao aceito como urn c6digo, nada cresce tanto como urn numero. Engoliras contas. Teu corpo invadira 0 espa~o, como 0 pr6prio verbo levado pelo vento, como a sociedade fundada sobre 0 verbo. A teoria que reduz 0 dado it linguagem e produzida em urn coletivo que pratica e vive essa redu~ao, retorna a ele como sua ideologia e 0 infla; esta expansao hoje imp6e a lingua desse gropo e sua moeda ao universo inteiro. Vit6ria total do doce e do macio. Assim reinou por mais de urn milenio 0 Imperio Romano. Gordo, flacido, pesado, dis forme. Nada mais mentiroso que 0 modele austero, her6ico e duro da antiga virtude it Catao: falso como urn ideal. Todos os imperios mostram esta ideia de violencia e de rigor: virilidade do western ou guerrilha das cidades. Eles ganham de fato pelo doce. Devemos defini-Ios como coletivos associados it razao nula ou elevados a zero. Urn gropo militar ataca ou se defende, odeia 0 inimigo, eis a razao; a Igreja ou a seita reza ou se separa, condena 0 heretico, adora sua
189
MICHEL SERRES
razao; uma associas:ao de interesses economicos se enriqueee ou abre faleneia, a eompanhia trabalha a sua razao. Suponhamos que esta, transcendente, forte ou mediocre, tenda para zero e venha a se anular em seguida como 0 olfato e 0 gosto, como a realidade. Entao a sociedade fhicida, que se associa a razao nula, une-se na e pela linguagem, por contrato escrito ou dito que estipula que ela se una, redundaneia. A administras:ao ai inventada gera moleza ou nulidade que assinalam o mesmo progresso em dires:ao a indiferens:a ou induzem a mesma inchas:ao. Todos vivem juntos sem outra razao que a de dizerem que vivem juntos, e 0 eserevem incessantemente, na inflas:ao do pape!. A administras:ao define a instituis:ao que corresponde ao earater performativo dessas palavras. 0 vocolbulo que a nomeia designa bern esta vigorosa tendencia ao minimo, a anula,ao ativa e progressiva da razao rea!. o Imperio Romano deveu sua extraordinolria longevidade a redus:ao de qualquer razao, ao aehado genial da referida administras:ao, a gestao da razao nula. A supressao de qualquer objeto em favor da linguagem. Se quiser durar urn poueo, todo imperio tern interesse em se retirar, em se esconder sob a administra,ao, em substituir a realidade pela linguagem. Em suprimir qualquer objeto em favor do verbo. Em suprimir 0 pr6prio verbo e seu sentido pelo c6digo e pela eifra. Em eliminar a eultura pela moeda. Sob zero de razao ou de sentido, sob a nulidade de gosto e de odor, na ausencia de referencia, qualquer urn, tao nescio quanta urn donzel, adapta-se e brinca.
· ',."
190
j~
Velhas eulturas eonhecem duas eomunhoes - tres, ate. A primeira tern lugar sob a forma do verbo, primeira Ceia que dol a boca de ouro. A segunda, mais tardia, e recebida sob duas especies de presens:a bern real, pao fresco fermentado, grande vinho engarrafado em urn dado lugar, abre a nova boca. Esta, miraculosa, perdoa a boca de amor, sem ela soariamos como bronze oeo ou dmbalo percuciente, quando falolssemos todas as linguas humanas e eonhecessemos toda a ciencia. A lingua de bronze ocupa todos os lugares do banquete ou da Ceia, anula os outros, 0 mundo soa como dmbalo e abafa linguas e ciencia. Novo mundo de uma s6 comunhao, de urn s6 contrato sem razao. Por muito tempo guerreamos para decidir se todos os festins nao sao
OS CINCO SENTI DOS {
Mesas}
apenas urn, se as comunhoes nao sao apenas uma, se a substancia nao passa de nome. au se 0 pao e 0 vinho se distinguem do verbo. Temos realmente uma unica lingua, ou duas, ou tres? Quem garante que 0 dado s6 passa por uma lingua tern 0 perfil reconhecivel da antiga e venen\vel teologia reformada. Ela venceu em outra praia, volta, triunfante.
ESTATUA Uma estatua, ao entrar pesadamente na sala, interrompe, como de costume, 0 festim. Seu exterior, todo de marmore, nao the permite usar nenhum deseus sentidos, 0 fil6sofo que a construiu e a conduziu reserva-se a liberdade de abri-los, a seu arbitrio, as diferentes impressoes a que sao suscetiveis. Organizada internamente como n6s, animada de urn espirito sem ideias de qualquer sorte, ela entra, carregada de odor de rosa, coroada de cravo, de jasmim, de violeta e fitinhas, por entre os convidados a quem 0 espirito vern dos buques florais ou sai do humus, compondo a cauda de pavao em torno do copo d'Yquem. A estatua senta-se entre as bocas e as linguas. a corpo, sob a pele fria, lisa, virgem, venada como 0 marmore, jaz em uma caixa-preta. Condillac, seu mestre, atua nas entradas: abre ou fecha uma janela definida por onde penetra uma informa~ao especifica, uma unica e bern filtrada. Experimenta em seu robo, anaHtica e seqiiencialmente. Come~a pela rosa, no dominio dos odores, depois 0 cravo, 0 jasmim, a violeta. Trata-se de que rosa, de que violeta? Da violeta de Parma, da tricolor, a de espiga? A malva, a azul-rei, a perfumada, a russa, a violeta-do-campo? Como se, no mundo vivo, ninguem jamais houvesse colhido uma rosa e sentido seu cheiro balsamico. De que variedade de cor, nascida em que latitude, sob os cuidados de qual jardineiro, precisemos a esta~ao e a semana no decurso da flora~ao. Tendo ido a Bagatelle uma tarde amena de maio para conhecer melhor a emo~ao da estatua de Condillac, numa gloriosa manha de setembro, tive de rir ou de chorar, como urn principe, diante da explosao espacial dos matizes e da paleta salpicada de variedades: a estatua estaria mergulhada na fina fragrancia da rosa encarnada, a mais bela das pontuadas, da petite Lisette, Bengale, Dame de creur, princes-
191
MICHEL SERRES
se de Venosa, Carmosine, Jacqueminot? Faltavam as rosas-de-ciio e silvestres, as malva-rosas, ou as alteias menosprezadas. Mergulhada ate a embriaguez na nova cauda de pavao, que olfato experimentado poderia ou desejaria, a esta altura, voltar a analise? E que jardineiro, que exala~ao de perfume, para os lados de Grasse, na Fran~a, nao choraria de rir, repito, diante da exaustiva sofistica~ao da experiencia, quanta ao autOmato, e da grosseria inculta e profana, quanta as flores? A maquina mete medo aos convidados, ela impressiona. Urn dia fabricarao e respeitarao urn computador de alta performance que sabera distinguir urn sauternes, qualquer urn, da Coca-Cola. Terao esquecido que 0 refrigerante, estavel, tern uma formula, reduz-se a uma serie finita de palavras e c6digos, que 0 vinho, instavel e individualizado, varia, chamalotado. Terao esquecido 0 empirismo da jardinagem, a formidavel profusao das rosas e seus odores confusos. Nunca vi, acrescentava 0 velho jardineiro a quem a estatua, aterradora, queria impor silencio, violeta violeta, eu nunca soube me decidir entre elas, entre a malva, a de parma, e as quinze especies de azul que meus olhos, agora enfraquecidos, organizavam em espectro desdobrado. Aprendia lentamente as vizinhan~as dos matizes quando minha vista come~ou a declinar. A cauda do pavao para os odores exibe urn leque ou espectro parecido. Quanto tempo a estatua teni de levar para percorrer 0 odor das rosas num campo tao diferenciado? Toda uma vida de jardineiro; varias gera~oes desses geneticistas por acaso, que cruzam e criam sempre novas variedades. 0 conselho ancestral: "Cultive seu jardim'; velho lema de sabedoria significa de fato: "Vivera como urn deus." Esse deus que cruza ou cria especies continuamente em seu paraiso evolutivo. 0 aroma das rosas nao para de mudar, a estatua, pesada demais e, desajeitada, jamais alcan~ara seu perfume. A experiencia para, ja no primeiro renque, no primeiro canteiro, para todo 0 sempre. Sim, no banquete dos pr6prios deuses.
, .
',",
,,' :.1
192
Para que ela continue, e melhor suprimir esse banquete sem fim. Vamos, nao se demorem a mesa, ai se adquirem demasiado maus habitos. Desde a entrada, a estatua se enche de nega~oes, muito antes que recenda qualquer aroma de flor; nao tern ideias de figuras ou de extensao, nem de nada que resida fora dela: esculpe portanto urn entendimento vazio, em lugar de figura, extensao e movimento, aguarda pacientemente tornar-se entendimento; ha urn born tempo que ela ca~oa de qualquer coisa diferente. E preciso preencher esta forma. Nao ca~oemos, isto envolve coisas serias.
as CINCO SENTI DOS {Mesas}
Urn organismo como 0 nosso, im6vel, sobre 0 qual pesa uma laje de marmore, em minha lingua, isto se chama urn cadaver. Urn inv61ucro de pedra imaculada que recobre urn corpo com uma estatua em cima, isto se chama urn tumulo. Urn automato, maquina com urn fantasma dentro, que volta ao conhecimento, deve ser denominado cenotafio: caixa-preta com aberturas e portas por onde a informa~ao pode entrar e sair. Estatua de marmore branco ou preto em cores de luto. Com escudo ou brasao. 0 que ha de espantoso se 0 experimentador, ao rasgar uma janela nessa urna funeniria, pensa primeiro nos odores e ramos, coroas ou flores sobre a pedra da cova ou sepultura? A estatua que entra no banquete, assombra~ao, automato, maquina, forma oca de uma razao avida de sensa~ao, tern a morte por nome verdadeiro. Nos Infernos, outrora, as sombras tremulas tambem tinham necessidade de sangue para se sustentarem por urn momento, para preencherem suas formas vazias. Por que ter de morrer para come~ar a conhecer ou mesmo a sentir? Quando abre a janela, 0 fil6sofo, na verdade, disseca urn cadaver. Ele matou 0 vivo: para fazer dele urn instrumento; para tentar ressuscita-Io, como se 0 que nasce fosse semelhante ao que volta do alem-tumulo. As bocas, no banquete, mal iniciam a vida, a estatua vern tira-Ia.
o ftl6sofo diz que a estatua esta cheia de odor de rosa, dizia-se justamente, outrora, que alguem morrera em odor de santidade. 0 fil6sofo chega a nos pedir, subliminarmente, para fazermos 0 que faz a estatua, para come~armos a existir com ela. Voltem a ser crian~a, mas em ordem. Durante a vida de tais come~os acontecem momentos vivazes de renascimentos: como, por exemplo, a lingua de ouro que, esquecendo por urn certo tempo suas palavras aladas, descobre uma vizinha rara, e esta uma irma amorosa. Nada nunca mais passara, pela janela-boca, como antes. A lingua, 6rgao, renova, triadelfa e trilobulada, uma em tres pessoas, que aventura! Levados, pois, por forte impulso vital e pelo entusiasmo que domina no limiar de uma possivel nova vida, quem de n6s recuaria diante da palingenesia? Nao conseguimos, porem, fazer 0 que fazia a estatua, nao por culpa nossa, mas por nao termos encontrado rosa. 0 programador nao precisou o perfume, nem a variedade, nem a epoca da flora~ao, nao fez mais que estabelecer urn conceito. Nao pudemos nem soubemos respirar nem aspi-
193
MICHEL SERRES
rar a ideia de odor da no~ao de rosa. 0 aut6mato enche completamente 0 reservat6rio de palavras. 0 nome da rosa nao recende. E se a palingenesia, que consiste em rejeitar a morte de nossa vida, ou a apagar nossos automatism os, levasse-nos a convidar gentilmente a maquina a deixar a mesa do banquete? Sim, a rosa aqui se reduz a sua palavra, e a estatua a urn dicionario ou a urn computador. 0 que entra pela janela, unidade de sensa~ao, equivale a uma unidade de sentido, a uma informac;:ao digitavel. 0 aut6mato aprende a sentir palavra por palavra, crian~a de escola nas primeiras li~oes de cicncias naturais. Nao e de espantar se dai resulta 0 conhecimento. De palavra em palavra, a lingua acaba vindo, que diabo! Se 0 dado s6 se da pela linguagem, digam 0 cheiro de suas antologias .
., . .
,
~,;'
1('
Deu-se em Feuillantines, no ano de 1813, urn acontecimento sem precedente que permitiu a seu cronista dar a rosa a rima faci! de morosa 10 e a este adjetivo, associado a estupido e medonho, uma serie de nomes como: dormit6rio, estudo, patio, sala, pilar, mestre-escola, papelada. Num jardim cheio de barulhos e vozes confusas, onde a superficie ondulada de urn espelho d'agua misturava-se as imagens imprecisas de uma betula, num parque cheio de rosas, corria ou sonhava uma crian~a que come~ava a existir. Chega 0 diretor de urn colegio qualquer: Janotus, Marphurius, Blazius, Honorius, Mouillebec. Ele interrompe a festa. o jardim ou 0 internato? Bifurca~ao para a aprendizagem: arbustos folhosos, espinhosos, que repercutem ruidos, sabhls ou vespas, perpassados de odores mistos, ou 0 patio quadrado cimentado, geometrico, onde os fedelhos se defrontam na primeira e atroz luta para a dominancia? 0 banquete ou a estatua? Janotus ou a deusa garrafa? A mata ou 0 dicionario? A rosa ou 0 nome da rosa? Rosa, rosam, rosae... as crian~as-estatuas declinam 0 nome sem perfume nem encarnado. A lingua gem ou os rumores, sopros, perfumes, sombras e cantos, formas, extases? Acontecimento a1tamente improvavel: como e que a mae, tendo de escolher entre 0 liceu das bestas, estupido e desagradavel, e 0 bosquezinho de Feuillantines foi, de repente, tao genial quanto seu mho Vitor Hugo? Pois 0 jardim das confusoes misturadas, que forma a corola inquieta desses sentidos - observem aqui que a crian~a vira cinco vezes rosa -, for-
i
.
r.~ ..::
~ ;~, ;:.;
'f;!
194
10 Em frances, morose, que, alem de lento, significa tambem triste, soturno, desagradaveI... (N. da T.)
OS CINCO SENTI DOS {
Mesas}
neceu-lhe, a curto prazo, urn mar de palavras: a lingua quase inteira da Fran~a.
Se quiserem adaptar urn exercito de estatuas socialmente submissas it luta para a dominancia, deem-Ihe urn vocabuJario pobre e seco, duro como pau e frio como ferro, eri~ado de tecnicismos que voltam em estribilhos espichando a frase, formem-Ihe os sentidos por meio dessas palavras, deem-Ihe 0 dado por intermedio de uma lingua assim: urn patio quadrado, cimentado, urn dormitorio monotono, urn estudo ma~ante pretensioso, ordenado pela gramatica. Visto que as crian~as, no come~o da existencia, sentem dor nos olhos quando os levantam para 0 espa~o celeste acima do fosso formado pelo liceu-prisao, nao precisavamos da caverna de Platao para saber a que ponto pode-se sofrer ao sol durante nossa tola e pretensiosa juventude. Se formarem suas palavras por intermedio dos sentidos, por entre os espinheiros e as primulas, se a rosa e seu nome declinado tiverem aver com 0 esplendoroso buque das formas e matizes que perfumam, entao tudo pode acontecer. Ate urn poeta. Ate urn adulto, contente, ate urn sabio. Ate urn fIlosofo matematico, livre para rir dos rigores maquinais ou petrificados do entendimento que coloca os sentidos it distancia da lingua, para salvaguarda e vitalidade de ambos. Acharam 0 jardim procurado? 0 arquiteto asfaltou. Encontraram brenhas por hi? 0 agronomo as derruba. 0 espa~o rentavel e parecido com a escola. Janotus ganha longe. A teoria vence a escola buissoniere ll porque destruiu os matos. A linguagem suprime 0 dado para substitui-Io pela linguagem: 0 patio quadrado de Marphurius. A gramatica ou a logica constroi 0 mundo onde ela tera razao. 0 maioral desse espa~o qualquer reina sobre a lingua e sobre 0 espa~o. Ao entrar no velho banquete, a estatua quebra os copos e derruba os pratos, mata os corpos vivos que bebem bebida viva, reproduz-se entao em estatuas de marmore ou automatos, come~a urn festim de lingua com bebidas formuladas, admiravelmente adaptada ao mundo ja racionalizado pelas ditas formulas. Enfim, os simp6sios falam do concreto. Breve so restarao espinheiros na escola. Serao cultivados para as crian~as baderneiras. De buisson, arbusto. moita, beenha, mato. Refer~ncia aescola medieval dandestina em que as aulas eram dadas ao ar livre, no meio do mato. (N. da T.) II
195
. MICHEL SERRES
A medita~ao sobre 0 caos e a mistura, a aten~ao voltada para 0 sensfvel, bern parece uma fIlosofia da baderna. Coroamento de uma antiga carreira de moleque irrequieto, infcio de uma sabedoria.
Minha lingua diz cego quem nao ve, surdo 0 que nao ouve, mudo quem nao pode falar, insensfvel as vezes quem perdeu 0 tato ou dele se acha desprovido, falta-Ihe palavra para dizer a falta do paladar. Ela assinala a ausencia, no caso da cegueira, no da surdez, admite essas enfermidades, ou por que elas s6 atingem uma popula~ao muito pequena, ou por que poem em risco ou em alerta suas pr6prias atividades linguisticas, quem sabel A imensa maioria nao tern lingua gustativa e passa sem ela, e a lingua se esconde, encobre sua pr6pria falha. Assim ela diz, sem dizer, que nao se tern que dizer e, quanta ao mais, a anestesia basta. A estatua vira dicionario, dir-se-ia que 0 dicionario tern, que nem ela, uma lingua de marmore. Ele droga 0 paladar. S6 a lingua erudita diz an6smico e, mais raramente ainda, agensico.
,
"
'
Dentro do banquete, a estatua 0 interrompe, nao se senta nem bebe, nao fareja nem degusta, ela come 0 cardapio: dicionario m6vel capaz de memorizar a rubrica dos pratos, das receitas e dos vinhos, mas impotente para comemorar qualquer ceia. Amanha, ela falara dos crus e dos anos, dos guias e chefes, jurariamos que tern muita experiencia. Diz melhor que ninguem 0 que ela nunca sentiu, mas se trai no vocabulario. A palavra, local, da estatua diz somente rosa: sem odor, porque sem outra existencia que nao a 16gica; a lingua, global, do dicionario nao tern palavra para a falta de olfato ou de paladar. Nessas coincidencias, reconhecemos os robos.
196
Entao, atras do automato, entra urn fantasma, uma especie de alma do outro mundo. Quem pode voltar como uma acusa~ao, sob a lingua, senao o empirismo? Passamos tranquilamente sem ele, 0 que vern fazer aqui? Mesmo os que se dizem fIl6sofos da sensa~ao ou percep~ao dispensam-no em suas algebras, em suas 16gicas ou fenomenologias, literalmente inodoras, incolores, privadas de tato e sem sabor, desprovidas ate de palavras e frases que descrevam gostos, matizes, perfumes, basta-Ihes, como aos robos, a linguagem, ouvida, vista ou lida, ou reduzida a urn c6digo, mas, com certeza,
OS CINCO SENTI DOS {
Mesas}
de agora em diante, tambem programada em nossos genes ou nos usos de nossas sociedades, como na mem6ria da estatua, automata ou computador; basta a linguagem para garantir genese ou advento de nossos conhecimentos. Para que precisamos das coisas, bastam-nos as aulas sobre elas. o empirismo, contudo, volta, teimoso, duvida que 0 cardapio equivaIha 11 degusta,ao, que a analise, no r6tulo, mate a sede tanto quanta a bebida, nao devora listas e livros entre as refei,6es. Nao confunde 0 amor com as palavras de amor. Filho da guerra e das priva,6es, ele tern fome; filho da pobreza, ele tern sempre sede. Do que Ihe faltou na infancia, ninguem jamais se ressarce. Tambem nao pode prescindir das coisas: saido do campo, e ainda atonito com os sinais rapidos das cidades. 0 empirismo vern de longe: da soma das infllncias dos homens, de todas as carencias cujo vazio as frases nao preen chern. Filho da necessidade it maneira antiga, da qual ninguem mais ouve falar, mas que conheci, como muitos, na infllncia. 0 empirismo volta das ruinas da Antiguidade, nao vern para demonstrar, mas para pedir, fantasma mendicante. Podemos, a rigor, diz ele, passar sem a experiencia sensivel imediata, a gramatica ou a 16gica de pele de marmore avan,am e demonstram sem ela e a substituem nas salas de aula, ha muito tempo e, agora, tambem no mundo circunvizinho que a ciencia povoa de automatos. Come,amos a nos parecer com as estatuas que fabricamos. Antigamente 0 adulto ca,oava da escola porque aprendera com maos, ombros e pele que 0 real tinha mais peso que as li,6es; hoje a classe toda ca,oa do povo que nao compreende mais os c6digos que vern da escola e escondem todas as coisas. A parceria educativa inverte-se, a crian,a deve ensinar ao idoso as f6rmulas e as digita,6es. Podemos, portanto, passar sem 0 empirismo, nosso saber nao sofrera nada: vamos nos adaptar ate melhor ao novo mundo, mas poderemos viver sem sabedoria? 0 conhecimento vern da linguagem, claro; e se a filosofia nos viesse dos sentidos? Ja nao prescindiremos de altos conhecimentos: 0 fil6sofo que vive para eles nao pode pensar sem trabalhar com eles. Mas quanta mais ele avan,a nos conhecimentos, mais se torna evidente que nao podemos prescindir da beleza sem pagar caro por nosso saber. Vern dai a nova sabedoria. A juventude aprende, progride no saber; 0 adulto ama e pratica a inteligencia, inventiva, viva e livre, produz, intensamente; em seguida impera uma necessidade de beleza: sujeito que conhece nos verdes anos, fecunda em idade madura, em busca de uma cultura em idade sabia. Ap6s alguns
197
MICHEL SERRES
I
"
,
"
)
198
anos, cada um e responsavel por sua cara ou aparencia, talhou-as com seus atos e projetos, com suas palavras e mentiras, desconfiem sempre de um velho feio, sua feiura vem de suas obras, 0 tempo desnuda 0 interior e a inten~ao. Esta ai a ciencia mais que adulta, madura, poderosa, no apogeu da gl6ria, cam pea do mundo, sera que ela vai se preocupar com a cara quando chegar a idade? Para que rigidez e for~a, se devemos paga-Ias com feiura e morte? Para que pensar bem se nao sabemos nem podemos viver? Momento em que 0 saber formal ja nao basta, nao importa 0 poder que ele dol, quando a musica da lingua, por exemplo, universal sob as frases, parece dizer mais aos sentidos que 0 sentido dos pr6prios vocabulos, em que a cultura e a sabedoria, a fliosofia valem mais que a inteligencia, e esta, por sua liberdade ou tolenlncia, mais que 0 saber, e este mais que a demonstra~ao. Caso a ciencia se imponha amanha: se ela excluir 0 que tempera 0 poder, a barbarie voltara. Depois da idade positiva, a idade serena? Onde aprender a morrer, a sobreviver sozinho no sofrimento, a estremecer de alegria quando um de seus flihos recupera a saude, a amar a paz mais que a guerra, a construir sua casa no tempo? Onde adquirir essa educa~ao para a serenidade? Nos dicionarios, nos c6digos, nas mem6rias de automatos, nas f6rmulas de 16gica ou, simplesmente, no curso do banquete da vida? Nao acredito, diz 0 fantasma mendicante, que, por tras da maquina, 0 sentido da vida esteja nos sentidos da palavra vida; ele surge, parece-me, nos sentidos do corpo vivo. Aqui, na sapiencia que cultiva 0 bom vinho, sem muitas palavras; na sagacidade tra~ada pelo perfume que refina as rela~6es com 0 outro; la, pelos vocalizes, pelos solu~os e pelo que oouvido percebe, sob a lingua; odores saidos de terra e paisagens indescritiveis; beleza do mundo que faz perder 0 folego e ficar sem fala; a dan~a, quando o corpo mergulha sozinho nos sentidos surdos e mudos, livremente; beijos que impedem ate 0 sussurro ... banquete que sera preciso abandonar. Ele olhava a estatua tristemente: repararam, diz ele, como dan~am mal os bem-falantes? Notaram a feiura dos que sabem? Porventura vislumbraram um potente? Veem a paisagem, no reino dos automatos, adquirindo a feiura? Acreditam que um dia encontraremos uma sociedade bem codificada na incontestavel feiura de sua terra e de seus membros? Uma cultura sobressai na beleza das mulheres, na delicadeza dos corp os, na distin~ao dos gestos populares, na gra~a dos rostos, Ii reconhecida no esplendor das paisagens e no sucesso de certas cidades. 0 brilho dos olhares pede essas gra~as, a do~ura exige essas delicadezas, estabelece-se urn acordo secreto sobre a beleza. A feiura nao se vergonha no meio de urn pais devastado. A anestesia
OS CINCO SENTI DOS
{Mesas}
torna os corpos medonhos, as palavras drogam os corpos e as coisas. Eu te saudo, diz ele, cultura ainda cheia de gra~a, resto raro de nosso mundo. De tanto avan~ar em conhecimentos, tememos a falta de gra~a, pressentimos que ela constitui 0 centro e embriao deles. Como se a alma desse corpo ao corpo. Quando as mensagens de linguagem substituem, virginalmente, as mensagens sem linguagem dos sentidos, 0 conhecimento fica doce, progride, ate mais depressa, mas a cultura perde sua gra~a, vejam seu desaparecimento agora, nos rostos, nas representalj:oes sociais, na face da terra. Caminhamos para a feiura pela rigidez? No nascimento da ciencia, ao longo de seus primeiros desenvolvimentos, a ftlosofia buscava a genese do conhecimento, dizia que este vinha dos sentidos. Naquele tempo, os ftl6sofos, um pouco sabios, possuiam uma cultura imensa. 0 mais sabio sabia pouco, 0 menos culto era muito culto. Com certeza confundiam sua cultura com a ciencia. Seguiam a genese, a forma~ao de seus conhecimentos tradicionais acreditando descrever as do saber cientifico. Nao podemos cometer 0 mesmo erro. 0 mais culto de n6s continua barbaro, 0 menos sabio sabe imensamente, em rela~ao aquelas epocas passadas. Acreditamos descrever a genese do conhecer em geral, ao passo que seguimos a forma~ao do saber cientifico. Ha pouco tempo, distinguiamos com muito cuidado a gnosiologia da epistemologia, a teoria do conhecimento e a teo ria da ciencia, e esta constituia uma parte da primeira; na lingua de hoje, a segunda vale por todas. A cultura se evapora. Na altura da primeira genese, a lingua droga, pois, os sentidos e os substitui. Mergulhamos, crian~as, na linguagem, antes de qualquer contato com 0 mundo mais duro. Vivemos cada vez mais no doce. Alguns de n6s sequer desconfiam, durante toda a vida, que existe um mundo fora do signo: uma a~ao separada do papel administrativo, um ato fora do espetaculo midiatico, um dima exterior a biblioteca. Os primeiros tratados de educa~ao pela natureza, reagindo a esse imperio crescente da linguagem, correspondem exatamente ao nascimento, primeiro, depois ao crescimento das ciencias. Na hora de seu triunfo e da inquietude concernente a uma nova cultura, as mesmas questoes voltam com agudeza, voltam porque desapareceram. Tambem na filosofia, os formalismos, logicismos, nominalismos expulsam 0 empirismo, dal seu ar de alma do outro mundo. Ele sai da terra por entre os pes da estatua.
199
MICHEL SERRES
o conhecimento eficaz presta homenagem alinguagem, sua linhagem direta, apaga sua hist6ria obliqua e a mergulha na anestesia do esquecimento. Com isso perdemos os cinco sentidos. Eles voltam na amnesia de uma sabedoria ou de uma cultura perdidas.
o automato de marmore exorciza a sombra larvar que surge, infligindo urn acerbo menosprezo a figura palida e diafana, inconsistente, da assombrayao, timida, humilde, indecisa, atemorizada: ele julga efemera e morta a velha impressao tao depressa esquecida. 0 momento que eu degusto morre, entao, longe de mimi a impressao deixada pelo gosto se dissipa, nao e conservada em urn Jexico. A estatua esmaga sob 0 peso de sua mem6ria 0 que surge na lingua, antes das palavras, e se perde. Mas volta. Sem tabula de cera nao ha impressao, dizia ela na Antiguidade; sem impressora nao ha impressao, repete nos tempos chamados modernos, sem programa nao ha impressao, volta a dizer na epoca dos computadores e da inteligencia artificial. Nada de novo: nao ha impressao sem codificayao ou linguagem, a pr6pria palavra significa a escrita. 0 trayo deixado. A estatua persegue 0 empirismo, impressionavel como Dom Quixote cheio de armaduras trota contra os moinhos de vento que se movem a menor brisa. 0 livro descarrega mortalmente todas as zombarias possiveis sobre a asa-catavento orientavel, atenta, leve.
1_,.1
i~_
;
1:",1
~.::: : ~
•';- ,
200
Por que matar 0 que morre? 0 empirismo, perdido, s6 expoe suas minas. Para que destmir minas? 0 empirismo, destmido, s6 deixa despojos. o empirismo, desaparecido, s6 existe no estado fugidio de impressao ou de sombra. Exorcizar outra vez uma sombra? 1a nao nos lembramos da impressao deixada pela rajada, pela exalayao de perfume ou de gosto, claro; mas perdemos a mem6ria do pr6prio empirismo; e se tivessemos perdido, tambem, a lembranya dos cinco sentidos? 0 fantasma ou a alma do outro mundo desempenha 0 papel de tres pessoas: da sensayao evanescente, mas tambem da teo ria que a significava; infelizmente: dos 6rgaos que a recebiam. Quem parte, de manhazinha, para a caya, de barriga vazia e as narinas frementes a menor mudanya do vento, quem escuta, inquieto, a ressaca bater na popa do barco, alertado aos primeiros odores de folbas por entre o muro espesso dos perfumes das algas e do sal, quem aguya sua vista e seu ouvido a distancia? Quem, hoje, nao tern necessidade de cartaz ou de
OS CINCO SENTI DOS {
Mesas}
mensagem para se permitir ouvir, sentir, oihar, saborear? 6rgaos frfgidos, empirismo em ruina, impressoes perdidas, fantasmas. Entao, desde quando a estatua reina? Desde a origem, desde 0 come~o de nossa mem6ria, no pr6prio nascimento da linguagem. Nosso primeiro ancestral descreve, 0 mais antigo her6i cantado parte por agua para as i1has do vento ou terras desconhecidas e embalsamadas que dormem no horizonte violeta, a prisao da lingua fecha-se, poetica, sobre aquele que viaja e tenta perder-se para escapar a ela; apesar das tempestades desejadas, as piores sortes do mar, apesar das feiticeiras que mudam as apar~n cias, U1isses recai na armadilha da trama coordenada, onde sua viagem e assinalada nas la~adas de Penelope, desfeitas, refeitas, de noite, de dia, no programa textual, na lingua: tudo isso ele canta no banquete do rei, mata os pretendentes, que nao can tam, no Ultimo festim na casa de sua mulher. E, no entanto, as maos enfiadas no peJo lanoso do carneiro fedendo a sebo, ele procurou escapar da caverna onde c1ama a polifemia, atordoado por essa lingua multipla desprovida de olho e drogada de vinho. Libertado uma vez, ou duas, ou cern, ele volta ao fmal na urdidura da linguagem, na trama regular do poema, encadeado. 0 empirismo, ja enta~, era visitado como 0 mundo, anunciado pelas agencias de viagem, vendido barato, relatado em festins, devolvido bruscamente aos Infernos fantasticos, povoados de sombras e de larvas vas que desaparecem no silencio e choram, ja entao. Nosso primeiro ancestral, na margem defronte, muito contente com seu festim de frutas, no meio das arvores, nu em companhia de sua bela mulher, trata logo de nomear as especies. Urn, na rubrica e 0 outro, no poema, ambos a se banquetearem, em casa de A1cino ou no jardim do Eden, dizem a genese da lingua. o empirismo perde-se nas i1has de imagens longfnquas ou nos Infernos repletos de I~mures, desde nossa origem de homens que escrevem ou cantam, buscando catalogos ou agentes de estatuas que nos sirvam a mesa. Data de uma fabulosfssima Antiguidade, visto que a chamada Antiguidade nos chega atraves de fabulas escritas ou faladas em belas e boas linguas, sobreviventes embora mortas. Desde que falamos, perdemos os sentidos. Contudo, 0 empirismo, imemorial, volta sempre ha tanto tempo quanta dura 0 esquecimento, sai de seu pr6prio tumuIo, ressuscita em urn gesto, uma impressao fugidia surgida em cima do tumulo de nosso corpo, escuro, petrificado, rfgido e frio. N6s imitamos a maquina, transformamos nossos mhos em automatos, n6s os enterramos sob uma pele de marmore, e no entanto 0 espectro ressuscita num leve odor, num gosto .. ""Zf,.':, Instl'tuta {Ill,.. \r;c:"~I"n'lo ~,:\
(i
- I'FRr.S ,) ',,;
Biblioteca - - -
201
MICHEL SERRES
raro que evoca uma emo<;ao, uma atitude inesperada entre as pnHicas agnirias ou marinhas, atraves de urn ambiente que se esgar<;a ou se desfaz, mas que as vezes permite que nos chegue a estranha leveza das pr6prias coisas. Nos dialogos de Platao, hinos 16gicos, os posteriormente chamados pre-socr
MaRTE
202
Eis 0 tumulo do empirismo, revestido de marmore gravado. a corpo, a estatua, nossos saberes ou mem6rias, bibliotecas, cenotafios, aprisionam o fantasma negando sua existencia. Eis 0 tumulo do empirismo, este Iivro, no sentido da evoca<;ao a Couperin 0 Grande, que Ravel musicou. Celebra<;ao e hlgrimas. Comemora<;ao, respeito. Anterior a qualquer lingua, rufna sem ou quase sem vestigio dos tempos que precederam a escrita, ancestral da fIlosofa e dos homens, salve; salve inimigo da fIlosofia e por ela proscrito, revestido de Iinguas e de estelas desde a aurora das hist6rias, odiado nas reunioes e dialogos, desprezado pelos argumentadores, banido da cidade-pedra que cobre 0 campoterra, expulso das pra<;as publicas, a assombrar as vezes os banquetes, plu~ magem ou nuvem que sai dos frascos de repente, condenado pela voz que curte a pele como urn tambor, sentido sobre verbo, verbo sobre voz, VOZ sobre pele e pele sobre carne, vinte vezes recoberta, ancestral inapelavel aquem da voz, como saudar-te aquem do pr6prio sentido?
OS CINCO SENTIDOS {
Mesas}
Silencio em torno do cenotatio: musica, murmurios, matizes, perfumes. Nossos ancestrais embalsamavam as mumias: assim uma sombra olorante tlutuava em torno da estatua vazia. Sabedoria. Que teu corpo nao se tome estatua nem tumulo, cadaver antes da agonia, morte antes de morrer; evita qualquer anestesia, droga, narcotico; toma cuidado com 0 torpedo ou torpor de lingua e de ftlosofia; foge das culturas de proibi~ao. A sabedoria emana do corpo: 0 mundo d
Referencia adose, do grego d6sis que significa a a~ao de dar. (N. da T.)
MICHEL SERRES
ainda mais a tua lingua. Rinoceronte, hipop6tamo de coura~a de cascos, alc06lico ou drogado, estatua coberta de r6tulos, cartazes, maquinas todas programadas como uma agenda de encontros. Faz urn tratamento tranqiiilo dos cinco sentidos. 0 gratuito basta. A estatua dorme ou morre de droga, dinheiro e palavras, seu deus unico em tres formas. Tratamentos de gra~a, cura garantida, eis a saude. Velho sabio calmo, antigo e tranqiiilo, refinado como urn vapor, delicado, simplesmente sao, robusto, 0 empirismo pedagogo e medico atira longe cenotafios ou estatuas fiinebres, quando a lingua procura can tar seu tumulo. Ele se mantem fora das carca~as desde sempre gravadas. Salve, doador de saude. Entao, os convidados do banquete, despertados do torpor em que os discursos mergulham, entao, todos os participantes de todos os festins da hist6ria, esquecem 0 tragico dessas representa~oes, erguem-se e erguem os copos em dire~ao ao fantasma dissipado pelos daroes do dia que os liberta da angustia atroz da morte, fazem tinir uns contra os outros os cristais translucidos onde tremula e cintila 0 Iicor d'Yquem: salve! Nao a morte, mas a saude! Salve, alegria, fremito de jubilo! Salve, ave, alegria; grito, apelo, apenas uma palavra voando sobre vogais, explosao de jubilo, emanadas dos corpos em boa saude. Primeiro sopro de vida? Primeira palavra? Nascimento do verbo? Salve, 6 carne de onde nasce 0 verbo. Salve, carne cheia de gra~a. Ave, gratia plena. Fantasrna ou anjo? Uma gra~a abandona a carne quando 0 verbo se faz carne.
, I
:. ;: . "
:>
--
~ ~'!
,-'
..':!
204
o dado nao vern da linguagem: entao 0 verbo invade 0 corpo, enche a carne sem deixar exce~ao nem espa~o vazio. 0 verba nao quer outro requisito senao ele. Et incarnatus est: a linguagem desce na carne; traz 0 verbo, virgem. 0 verbo, mho da Virgem, apaga qualquer macula anterior a ele. o dado nao vern da linguagem: nao nos vern do mundo nem dos corpos. Nem desses lugares vazios: 0 mundo nao 0 conheceu; nem da carne virginal: corpo imaculado. Todo tra~o nao dizivel precedente It primeira presen~a do verbo equivaleria a uma macula. Apagam-na os tres dogmas: da Imaculada Concep~ao, do empirismo 16gico e da concep~ao virginal do verbo.
OS CINCO SENTIDOS {
Mesas}
Mal agitando 0 ar leve, com sua asa e sua voz, 0 anjo a sauda cheia de antes que venha 0 verbo. Antes de bendize-la, no momenta de dizela, 0 enviado a encontra tomada, saturada de gra~a. Somente depois, 0 Senhor aproxima-se dela, mora com ela. Antes de ter concebido, antes que o verbo surgisse nela, antes da lingua gem e do conceito, antes da virgindade sem macula exigida peio verbo e por ele produzida, eia, a carne, ela a mae, a mulber, ela, a sensibilidade corporal, vivia cheia de gra~a. Plena: ou de gra~a ou de verbo. Depois: gravida do verbo. Antes: prenhe de gra~a. De gra~a: de gratuidade, de coisas gratuitas, de dados. Acolhendo 0 dado, antes. Acolbendo, depois, a palavra. Que me seja feito segundo a vossa palavra. gra~a
o dado s6 vern da linguagem: nada se passa, existe ou se da fora das palavras. Sem frases, fora do conceito. Toda sensibilidade se apaga fora do concelto, em torno dele, sem eie. Como denominar uma tal concep~ao de outra maneira que nao virginal? A virgem concebe 0 verbo. Ela ve, sem 0 dizer, uma madeira em flor. Sempre eternamente coberta de flores. Nunca lemos sobre lugares onde a macieira produza frutos. A carne prometida a linguagem, nua sob a primeira arvore, nunca colheu dela, livre de qualquer tra~o original do primeiro pecado. Como nomear 0 quadro ou a cena de outra maneira a nao ser: a Imaculada Concep~ao? Ela, a carne, ela, a mae, eia, a sensibilidade corporal, concebe virginalmente 0 verbo: sem que 0 dado a afete a nao ser peio verbo. Antes de assim conceber, eia mesma foi concebida imaculada. o dado s6 vern da linguagem: 0 corpo nunca recebeu nada senao verbo. Antes de s6 receber verbo, antes, portanto, de receber, ele nunca recebera nada. Para compreender 0 dogma do empirismo 16gico, epreciso adicionar o da Imaculada Concep~ao, e basta. o primeiro diz a mesma coisa pelo mesmo oximoro que a soma dos dois outros que usam 0 oximoro, urn num sentido, 0 outro, noutro. Todos os tres descrevem uma mesma situa~ao do conceito sem carne.
205
MICHEL SERRES
Nao ha filosofia a nao ser da linguagem; nao ha religiao a nao ser do verbo. A mulher nada responde as palavras da anuncia,ao, salvo que ignora tudo e nao conhece homem. Salve, empirismo perdido no dia em que 0 verbo se fez carne, na manha em que 0 anjo apareceu; ja esquecido quando nasceu a mae, a carne branca e virgem. Salve, carne cheia de gra,a. Ave, salve as vogais puras. S6 0 anjo anuncia 0 que nos faz recordar que 0 corpo se enchia de gra,a antes que 0 verbo 0 anulasse e 0 tornasse, por efeito retroativo, carne imaculada. Carne plena de gra,a dizivel somente pelo anjo, pelas mensagens ou fenomenos sutis vindos incompreensivelmente do mundo para os sentidos. Quando 0 verbo a satura, a carne perde essas antigas gra,as, velhas mensagens incompreensiveis em lingua, esquece, desbota, a gra,a. Ela abandona a carne quando 0 verbo se faz carne.
Nao esperariamos ouvir hoje as palavras da anuncia,ao, mal traduzidas, tao claras e limpidas quanta a tese dita: 0 dado s6 vern da linguagem. Retorno da mulher e da virgem mae abandonada, no perfil ja tra,ado da veneravel teologia reformada. Retorno da estrangeira de Nazare. Essa estrangeira nao fala. Isto, que n6s bebemos ou comemos, reduz-se a urn signo, urn simbo10, uma palavra. 0 dado s6 vern da linguagem. Isto, que n6s concebemos, s6 vern do conceito. 0 verbo nao pode resultar do dado.
206
A carne, pobretona, s6 come linguagem, ninguem Ihe da mais que boas palavras, deixa-se emprenhar sem falar, quando mendigava alguma coisa para comer, fica gravida permanecendo virgem. Pobre carne.
OS CINCO SENTIDOS {Mesas}
A filosotia da lingua alema soa, globalmente, desde 0 tinal do seculo XVIII, como uma patristica da Reforma, uma teologia da Contra-Reforrna. Toma, pouco a pouco, 0 lugar da patrologia romana dominante ate 0 tim da Contra-Reforma, fundo de referencia das filosotias chamadas c1assicas. Urn colegio de padres substitui 0 outro, esta expulsao resume, de imediato, a hist6ria das ideias na universidade francesa, importadora. A questao da linguagem e dos sentidos, inocente e apresentada novamente em urn aparato de sotisticadas argucias tecnicas, esconde e ocupa 0 antigo terreno do bate-boca entre os pais reformados das linguas anglosax6nicas, vitoriosas, e os velhos pais da mediterninea, gregos, sobretudo latinos, vencidos e enterrados. Reaparecem, revigoradas, as querelas das especies reais ou de seu simbolo nominal, na mastiga~ao do pao, na primeira Ceia, ou do corpo virginal da mae, na encarna~ao do verbo, sob a roupagem urn tanto empoeirada das quest6es empiristas. A hist6ria das ideias parece tao lenta quanta a das placas gigantes que se deslocam, sob a terra, alguns milimetros em alguns milenios. Ainda se trata do banquete, do amor e da concep~ao de uma mulher pobre. Salve, plena de gra~a.
o anjo fala da gra~a de uma mulher: encanto, sedu~ao, delicadeza, afabilidade; inclino-me ante tua beleza. A gra~a que enche 0 corpo antes que ele se encha de verbo equivale a beleza, diz a gratuidade. 0 dom nao corresponde a nenhuma obriga~ao: 0 doador nao 0 deve, ao recebedor ele nao e devido. Poderia chamar-se 0 dado. Salve, corpo cheio de dados gratuitos, por ele recebidos como dons do mundo. 0 que entra pelos sentidos ou por eles no corpo nao se paga nem em dinheiro nem em energia ou informa~ao, nem em moeda de qualquer especie, assim concordamos em chama-Io dado. Salve, carne plena desses dons. Salve, plena de gra~a, bela; saude plena de gratuidade sensorial. 0 anjo fala duas vezes de estetica em uma palavra; no sentido dos dados, no sentido da beleza. o anjo anuncia a unidade da estetica; salve, 6 gra~a unica, encanto e dom, sentido e sedu~ao. 0 que dizer desta unidade senao sauda-Ia? Desde que 0 verbo surge, a gratuidade desaparece; e preciso descobrir quanta custa escrever ou falar, quanta 0 verbo compra ou recompra. Mas,
207
MICHEL SERRES
antes do reino da linguagem, a gra~a enchia a carne sem contrapartida, unitaria, bela e gratuita. Ela abandona a carne quando 0 verbo se faz carne. Eis perdida a unidade do campo da estetica.
Antes do advento do verbo, a carne, por si, transborda de gra~a. Dorme durante a longa noite tacita, no meio das messes louras, tao plena do dado que deixa alguns para os respigadores, dormita sob as antigas estrelas sem nome, sonha ouvindo vagamente os bois ruminarem na palha crepitante, sonha entre os perfumes passageiros do asf6delo que uma arvore enorme desprende de seu ventre, cujo Ultimo rebento chama-se 0 verbo. Repousando, 0 seio nu, junto ao patriarca, tambem ele pesado de sono, ela sonha em silencio com urn mho inconcebivel, no meio da serena noite de verao tao longa quanta a soma dos comprimentos enfIleirados da in fAn cia de todos os homens, quando 0 ceu mal cIareia as sombras. A carne sonha com 0 verbo, a linguagem ganha raizes nas entranhas, fruto. Saturada, transbordante de dado, ela da a sobra aos respigadores. Os pobres, curvados sobre a palha, poem no colo as espigas abandonadas, a margem, parte infima que cai do transbordamento do cumulo saturado, a falta ou 0 excesso do dado.
,
.. " ::1
208
Ja na aurora, a mulher recebe uma ben~ao. 0 anjo sauda: mulher bendita: bern dita. Ela recebe 0 nome e a certeza de que este nome e adequado exatamente a ela: bern dita, Maria bendita. 0 anjo que da a salva~ao e a palavra, apari~ao matinal, fantasma a fIutuar na porta ou na janela abertas que batem ao capricho do vento leve, logo se dissipa. Pesada, cheia, dura, a carne acolhe uma semeadura doce. Na genealogia, 0 born sangue se bifurca. A que vern dormir no leito do patriarca, tao cumulada de dons quanto ele regorgitava de dado, moinhos, celeiros, ouros e forjas, nunca dara it luz senao crian~as infladas, abarrotadas, cheias e redondas como esferas de concreto, gordas de riquezas, que pastam a erva cotidiana entre duas rumina~oes bem-sucedidas. A verdadeira mae curva-se atnis das carro~as, junta os restos dos feixes redondos amontoados sob as maes gordas, ela se contenta com os relevos. A verdadeira mae e semeada com 0 que transborda do aIqueire demasiado cheio, com 0 que fica e vai apodrecer no fundo do silo vazio. Maria, fIlha, neta, bisneta de respigadores, da longa linhagem dessas que nunca participaram
,,
j
as CINCO SENTIDOS
{
Mesas}
do banquete do dado, Maria virgem, mha de Ana, acolhe, em seu seio, de urn vestigio de homem, mal perceptivel, tecido translucido e flutuante, 0 anjo,o que fica de uma coisa quando ela desaparece, quando nao esta mais conosco, dado, urn som, apelo, sauda~ao, ben~ao, uma visao esvaecente, urn perfume logo esquecido, uma caricia tao leve que nenhum tecido estremeceu, Maria, mha, neta, bisneta da longa Iinhagem dos respigadores de dorso castigado, atras de Rute e seus carros abarrotados de trigo, acolhe em seu seio 0 que resta do resto do resto do resto ... do resto dos raros graos de trigo das espigas quase vazias nas palhas quebradi~as, a semente esvoa~ante, transparente, tenue, viva, infima do verbo. Ele nasce, encarna-se. Ninguem nunca soube nem conheceu 0 segredo dessa passagem, nem os evangelhos nem Einstein, espantado de que 0 mundo se abrisse a compreensao. Misterio para os primeiros, incompreensibilidade para 0 segundo. as ceus se enchem de cantos, 0 espa~o, cumulado de palavras, anuncia a boa nova: a palavra readquire a carne, 0 verbo adquire 0 concreto, ocupa-o, satura-o, de sorte que as messes louras preparam 0 pao a ser transformado em carne do verbo, e das vindimas carregadas vai escorrer 0 vinho a ser transmudado em seu sangue, de sorte que as estrelas indicam na noite 0 lugar em que ele nasce, e a noticia permanece nas constela~6es e na mem6ria, e 0 calendario se organiza em torno da epacta, em torno da sexta-feira da Paixao e do domingo quando o verba ressuscita, de sorte que os bois ruminantes dao 0 sopro ao verbo gemente, e os ventos, perfumes e ruidos que voam anunciam em todas as Iinguas 0 espirito, outra denomina~ao da Iinguagem e outro conjunto de dons, ou de dados reduzidos ao verbo, de sorte que 0 mundo pleno dele, das entranhas ate os sonhos, dos planetas ate 0 burro, das espigas e bagos ate 0 vento, nao mostre nenhum resto, nenhum graozinho de sorgo, nenhum talo leve, nenhuma brisa, nenhum suspir~ pelo qual urn anjo malvado, Hermes ou Miguel, possa tocar a carne. No mundo antigo da carne, 0 verbo, doce, passava sob a forma de sonho ou de anj 0, uma palha para uma respigadeira, resto deixado ao abandono, ultimo rebento no alto da arvore saido das entranhas ou janela que bate ao vento inconstante. No mundo moderno comprado, recomprado pela lingua gem, toda carne e toda erva, toda pedra tern 0 peso dos termos, sem tara. Espa~os lacunares ou universo pleno. Nao podendo meter-se pela tara do resto, aquele que compra ou recompra 0 verbo passa, pois, ele mesmo por sua paixao e sua morte: sexta-feira santa especulativa ou morte de Deus pronunciada.
209
MICHEL SERRES
No mundo contemporaneo onde a ciencia tomou 0 lugar da linguagem, ate a lingua gem e ate 0 sujeito entao tornados, ate os lugares ausentes: supersatura,ao do mundo pela tomada do abstrato, tambem. A ciencia ajusta exatamente a rela,ao do verbo com a coisa: toma a coisa mais do que o flzera 0 verba, toma, de quebra, a tomada do algoritmo a seu objeto. fa passamos 0 tempo da reaquisi,ao da carne pelo verbo, vivemos 0 da reaquisi,ao dessa mesma linguagem pelas novas for,as. 0 verbo morre. o tempo dos respigadores recome,a. Ainda encontraremos algum resto ap6s essa morte?
:'
.'
210
A linguagem morre. Deslumbrada com sua exatidao e rigor, a ciencia tomou-lhe 0 corpo glorioso. Ele esvoa,a como urn fantasm a a quem outros retiraram os encantamentos, a outra face da gl6ria, ou 0 ditame do feito sob 0 dominio da for,a. Passada a sexta-feira santa, 0 dia do sabbat marca urn tempo de parada. 0 verbo repousa na tumba. Diz-se que desceu aos Infernos, onde se entra sem corpo . E no dia seguinte ao sabbat, Maria Madalena e outra Maria, mae de Tiago, acompanhadas de Salome, levando nos bra,os jarros de aromatas, acorrem, logo ao amanhecer, ao tumulo onde fora depositado 0 corpo do verbo, para embalsamar seu cadaver. Nao conseguiremos, dizem elas entre si, deslocar a pedra que fecha a entrada do sepulcro, pesada demais, dura demais para nossas fracas for,as. Ao chegarem, logo a viram afastada para o lado. Urn anjo postava-se em cima, vestido com uma deslumbrante tunica branca. Ou en tao: ao entrarem no tumulo, viram urn rapaz sentado, no lado direito, vestido com uma tunica branca, ficaram estupefatas. Os panos, fora 0 sudario dobrado em separado em outro local, jaziam por terra. Na manha do domingo, enquanto ninguem ainda sabe da ressurrei,ao, 0 duro faz-se doce: a pedra pesada rola sem que nenhuma for,a a impulsione, 0 corpo se esvai e desaparece, restam os panos, urn anjo de veste branca, aparencias, vozes no jardim. Voces procuram a linguagem ai, ela reina alhures, em urn outro mundo, onde assumiu urn corpo glorioso. Sabemos agora que nosso saber, em gl6ria e poder, tomou 0 corpo do verbo, sabemos de que e por que a linguagem acaba de morrer. Nao voltara jamais sob sua forma primeira, devemos aprender a viver privados de sua presen,a real, dura e forte, de sua carne e de seu sangue. Ela desapareceu sob nossos olhos ofusc ados.
OS CINCO SENTIDOS
I Mesas}
o fil6sofo escreve ao ditame de urn arcanjo, outro nome de Hermes, denomina<;ao do mensageiro inventor de linguas, inaugurador de vias. 0 que ele escreve depende do lugar onde passa 0 anuncio. S6crates ou Descartes tiveram seu demonio, que aparecia na soleira, ou evocado em urn recinto fechado onde arde urn fogo, Heraclito espera seus deuses ao pe do forno onde brilha 0 raio negro. Mas quase todos meditam sob 0 dito da Anuncia<;ao. 0 anjo posta-se onde a janela bate, la on de a persian a se entreabre. Tu pariras na pobreza e na beleza, diz ele, e 0 fruto de tuas entranhas tera por nome 0 verbo. A linguagem vai vir, prometida por aquele que aparece, assegurada por aquele que ja fala. Li<;ao ou imagem do anuncio: a apari<;ao diz. Ou<;am: 0 fenomeno traz 0 verbo, a linguagem carrega 0 que parece. 0 anjo mensageiro ou anunciador mostra 0 rosto da palavra, prosopopeia, ou 0 corpo da linguagem, mas como ele aparece, veste branca deslumbrante, som retumbante ou discreto, caricia doce, espirito leve, deve passar por elemento do fenomeno, pequena percep<;ao, diferencial muito pouco sensivel, 0 que Lucrecio chama de simulacro, uma saia fina que esvoa<;a no ar. A palavra aparente significa 0 anuncio, 0 anjo, no limite do visivel e do tangivel, que se posta na beira do limiar, reduz 0 dado it linguagem e diz 0 dom, diremos os anjos doces. 0 corpo, 0 semblante do anjo ocupam exatamente 0 lugar onde a aparencia se faz palavra e vice-versa. A Anuncia<;ao fica no interior do dito. Ela parte da aparencia, carregaa no vente da mulher para dar ao verbo urn corpo de carne. Quem escreve recebe 0 arcanjo, borda extrema do fenomeno onde este se funde com a extrema borda do dizer, depois procura encher 0 volume com outra coisa que nao 0 vento. Concebe, precisa de urn ventre, procura uma mulher. Milagre quando consegue, natal e gl6ria na terra inteira. Tudo depende, entao, do ventre, tudo depende dessa mulher. Quem escreve debate-se no vento, se ela nao vier. Urn arcanjo extraordimirio guarda 0 tumulo, extraordinario porque inverte 0 anuncio. 0 verbo nao se fara mais carne, a carne do verba sofreu, morreu, desapareceu. Ele nao vai vir mais e ausenta-se: eis a cova vazia onde jazia seu cadaver. Morre, primeiro; desaparece, outra vez; antes de sua agonia, supliciado. Maos e pes quebrados, ossos partidos, ele perdeu a dureza, sua for<;a: flagelado, rosto e pele dilacerados, coberto de suor, de escarros, de fel, de fezes, de vinagre, seu encanto se foi; irrisoriamente coroado de espinhos, deixou a realeza. As tres for<;as do verbo 0 abandonam. 0 corpo da linguagem jaz no tumulo.
211
MICHEL SERRES
E eis que na manha do domingo as mulheres veem 0 lugar deserto. Ate o corpo morto desapareceu. 0 anjo nao anuncia mais, as mulheres nao concebem, elas passam, ele fica, reduz-se ao res to: fica da linguagem uma veste branca deslumbrante, urn som que repercute na caixa-tumulo, tres mulheres carregando jarros de perfumes, do is homens na estrada de Emaus saboreando 0 ultimo repasto, Tomas tocando com dez dedos a chaga aberta no flanco do corpo aparecido, resta 0 arcanjo evanescente dos cinco sentidos, testemunha de que urn dia 0 verbo carne, filho da mulher, veio entre nos, morreu, esvai-se, mas ressuscita. Ninguem fala do que as mulheres fizeram com os aromatas. A pr6pria Maria Madalena os derramara no corpo do verbo vivo; aproxima-se dele, urn frasco de alabastro cheio de nardo precioso na mao, ela 0 despeja sobre a cabe~a dele, dizem uns, sobre os pes, dizem outros, unge 0 corpo da linguagem e 0 enxuga com seus cabelos. 0 cheiro do perfume enche a casa. Lazaro estava hi, ressuscitado ha pouco de entre os mortos, ainda em perigo de morte; ou entao: Simao 0 leproso presidia a mesa, hospedeiro maldito, tambem ele; 0 verbo fazia ali sua refei~ao, condenado, em seguida libertado. Ohimo festim que precede de perto a ultima eeia, festim do perfume e ceia de sangue e de vinho compreendidos em conjunto, e urn apos 0 outro, na narrativa da Paixao, repasto na casa de Lazaro ou Simao, onde os convidados, entre os quais Iudas 0 Escariote, protestam: "Podiam ter vendido este nardo e distribuido 0 dinheiro entre os pobres. - Deixem que ela 0 fa~a, responde 0 verbo, ela embalsama meu corpo como que para minha sepultura, como que para me enterrar. 0 que ela faz seni dito mais tarde em sua memoria." o perfume derramado sobre 0 verbo vivo difunde seu odor no espa~o. As mulheres nao podem embalsamar 0 corpo morto, ausente do proprio tumulo.
"
.'
212
Nardo ou valeriana, artemisia ou angelica, tomilho, baunilha, segureIha, oregano, cinamomo e benjoim, hissopo ou coentro, melissa, mirra, gengibre, manjericao, belas palavras nao perfumadas, palavras de cheiro ou de sabor, elas mesmas sem sab~r nem cheiro, qual das mulheres que levam jarro derrama sobre seus pes harmoniosos uma sutil mistura para que eles espalhem sua fragrfmcia no espa~o? 0 milagre ocorre durante a vida rara, excepcional do verbo; durante 0 curso da hist6ria e do tempo, muito freqiientemente, ele se ausenta, e as mulheres, que carregam os jar-
as CINCO SENTI DOS
I Mesas}
ros, mesmo aquela que antes conseguira ungir a linguagem, nao sabem 0 que fazer com seus ar6matas. Entretanto, sentiu-se, antes, outrora, naqueIe tempo, uma lingua olorada pela mao de Maria Madalena. Mulher, vern espargir sobre minha frase nardo e valeriana, artemisia ou angelica, tomilho, baunilha, gengibre ou manjericao, sem ti teu companheiro nao sabe escrever perfumado.
o odor do nardo, fIxado por ela, distancia-se do termo nardo, fIxado por ele; a vida surge, para ele e para ela, espirito odorifico, de ele se derramar sobre ela, de se confundirem, e a morte, de se separarem. Verbo ausente e jarro fechado, linguagem viva e frasco derramado.
o dinheiro nao tern odor, fora preciso vender a mistura e distribuir 0 ganho. Judas avalia em trezentos dinheiros 0 valor do perfume de luxo, apre~amos em trinta pe~as de prata 0 valor do verbo libertado. Viram avalia~ao em cifras do resgate do mundo e dos homens por ele? Tenl pago em especie, em vida e corpo e sangue? Mas qual 0 pre~o do sangue?
o verbo nao tern odor, e preciso ungi-lo; 0 dinheiro nunca tern. A linguagem dos odores desaparece, expulsa pela competencia dos algoritmos, a quimica dos perfumes enflleira seus ci1culos e suas moleculas. o verbo retira sua carne do corpo da mulher. Nao !he conhecemos sobrenome. Eu te chama Cristo, disse-lhe Pedro. 0 homem diz, a mu!her faz: ele tira seu nome da un~ao, balsamo derramado pela mulher, perfume enxugado por seus cabelos. Chamo-te Pedro, diz ele, em referencia a rocha dura sobre a qual construir. Durante 0 antepenultimo festim anterior ao dia em que foi libertado, 0 ungido do Senhor foi realmente ungido por Maria Madalena. Ele se chamava Cristo, seu corpo assim se torna em deferencia a esta un~ao, no repasto de Betania. Cristo? SignifIca ungido. Mas sempre? Cristo signifIca: tocado levemente, afagado. Alguem se aproxima 0 maximo possivel e afaga. Entao uma mu!her aproximou-se dele, enxugoulhe os pes com os cabelos. Doce veu. SignifIca: tocado mais duramente, espetado mesmo ou arranhado, mais: escoriado, esfolado. Entao, mais tarde, 0 chicote fJagelanl 0 corpo do verbo, a lan~a 0 perfurara, escarifIcado por mil feridas. SignifIca entao: marcado. Calejado. Marcado: diferente, designado pelo suplicio, vitima. Nos rebanhos de gazelas saltitantes, a hiena ou 0 tigre escolhem a que traz uma marca.
213
MICHEL SERRES
f·
',I.
. ,, ,;: .' .,
214
Marcado: 0 corpo do verbo, da lingua gem, traz 0 tra~o ou arranMo da escrita. A vida e a morte do verbo poem juntos 0 escrito e 0 dito. Marcado no corpo, marcado no sudario, nos panos soltos, dobrados, enrolados, abandonados no tumulo. Telas, veus, peles, pergaminhos escritos para nossa mem6ria, restos tateis legiveis. Significa ainda: esfregado, indutado. Entao uma mulher aproximouse dele e derramou-Ihe urn perfume na cabe~a. Esfregado: ela 0 enxugou. Indutado: e1a 0 indutou. Indutou-o como tela e veu e outra pele. Significa: indutado de cores, de desenhos, de desenhos coloridos, tinturado, pintado, pincelado ou tatuado. 0 verba traz a tinta, tintura ou pintura da escritura, abstrata em seu corpo e, logo, concreta, nao representativa, iconoclastica em seu rosto e, portanto, icon6fi1a. A un~ao, encurta, divide a tatuagem, restringe-a, mas a inaugura, pode passar por elemento de tatuagem. Cristo: sarapintado do Senhor. Indutado de vinho, de sangue, de escarros, de fel, de vinagre. Significa: indutado de perfume, de ambrosia, de veneno. Entao a mulher chegou perto dele e indutou-o de nardo precioso. 0 cheiro do perfume enche a casa durante 0 festim de Llzaro, ressuscitado de entre os mortos, durante 0 festim do verbo, antes de sua paixao, sua morte, sua ressurrei~ao, durante 0 festim de morte e de imortalidade. o odor marca de longe, e os leoes rugidores que rondam em busca do que devorar acorrem atraidos pelo que e indutado. 0 perfume traz a morte e vira veneno funesto e fedor mortal. Significa entao: indutado, contaminado, sujo. Ungido por Maria Madalena, sujado pela pecadora. o dinheiro nao tern cheiro. Vendam 0 nardo. Distribuam trezentos dinheiros em moedas entre a plebe. Nao se aproximem do frasco de alabastro, afastem-se do perfume, evitem a un~ao. Judas, ja entao, pela primeira vez, quer salvar 0 Salvador. Evitem dar-Ihe 0 cheiro que 0 marca eo torna marcado. 0 dinheiro, an6nimo, nao aponta ninguem e pulveriza-se facilmente nas maos da multidao, moedas esparsas como substituto dos membros esquartejados. Nao apontem 0 corpo i\ vingan~a publica pela un~ao olorante, vendam, vendam antes mesmo que 0 perfume tenha tocado ou afagado ou estigmatizado 0 corpo. Judas tenta salvar 0 verbo da contamina~ao ou sujeira, da inevitavel virada do perfume em veneno. Como efeito direto, sobretudo indireto, depois da ressurrei~ao, quando 0 veneno voltar a ser perfume, ele assumira a contamina~ao. Pela segunda vez, gl6ria, louvor a Judas.
OS CINCO SENTIDOS
{Mesas}
Significa enfim: indutado, manchado, ungido como um rei; como um sacerdote, sagrado. Em torno da mesa dois ressuscitados comem, 0 verbo e Lazaro, duas vitimas, judas e 0 verbo, duas mulheres, Marta, a servi~al, e Maria Madalena que 0 unge antes do sepultamento e nao podeni embalsama-Io ap6s a ressurrei~ao, Maria Madalena que faz verdadeiramente de Cristo 0 Cristo. Que 0 marca para a morte quando judas procura salva-Io. Em torno da mesa circulam os pratos, a un~ao, 0 dinheiro, as palavras, a morte. Cena tnigica. Tocado, espetado, marcado, indutado, pintado, olorante, eis no computo 0 que significa Cristo. Morto maculado, trespassado. o verbo ocupou a carne de uma mulher virgem. uma mulher pecadora Ihe dol 0 tangivel e 0 visivel, 0 legivel e 0 odorifero, no curso do festim em que Marta serve 0 vinho e 0 pao que eles degustam. Em torno da mesa tnigica onde se sentam a lingua gem, 0 dinheiro e a morte, Maria, sem se sen tar ali, assume um lugar muito antigo e marginal, 0 do sensivel. Maria, primeira, dol a carne, Maria, segunda, da os sentidos. Ela institui a extrema-un<;ao. Cristao: corpo tatuado, desenhado, indutado, sarapintado, picado, tangive\, tocado, sensivel, pintado de tons diversos, como urn mapa, coberto de suor, de urn sudario, de odores e de perfumes. Ungido. Crisma: 61eo misturado a balsamo que serve para ungir, mas tambem: cimento ou argamassa que serve para construir. Tal qual Pedro e denominado, mas, para construir com pedras, e preciso, ademais e pelo menos, uma liga<;ao, urn cimento que una e misture, este elo ou crisma dao nome ao cristao. Denomina<;ao grega da liga~ao que 0 latim conserva na palavra religiao. A un<;ao e feita por uma mistura e a produz, nao hoi mistura sem liga<;ao.
o Cristo vai morrer em virtude da un~ao feita na realidade por aquilo que seu nome designa. Ungido: marcado, visivel, tangive\, odorante. Ele vai morrer por causa dos sentidos. Em torno da mesa circulam 0 dinheiro e as palavras, mortalmente. Lazaro e judas, condenados, circundam 0 verbo, tambem condenado,
215
MICHEL SERRES
brincando de quem morre e quem voltan\, presentes, ausentes, substituiveis e nao substituiveis. 0 dinheiro substitui a Iinguagem, que substitui 0 corpo, que substitui 0 pao, jogos de transubstancia<;ao na cena tragica, onde se busca urn outro mundo. As mulheres mantem-se longe da mesa e fora do tnigico, fora da cerra das substitui<;oes ou transubstancia<;oes. Portadoras de urnas, frasco de alabastro ou jarro de aromatas, portadoras de pratos ou anforas, pao e vinho, elas trabalham sem fazer historias. Cada repasto gira em torno da morte, como as arquibancadas do teatro. Na hora da morte, S6crates ainda falava, agora, 0 pr6prio verbo morre. Marta servindo 0 vinho e 0 pao, Maria vertendo 0 jarro de alabastro deixaram a cena h3 muito tempo, ocupadas a volta, trabalham com 0 que nunca e dito, 0 paladar e 0 odor, sem palavra. As mulheres, presentes, acorrem ao tumulo, passada a obra de morte, portadoras de jarros. Oltima cena, Ultimo repasto: quando a carne nao existe mais, resta 0 pao, quando 0 sangue nao corre mais, 0 vmho permanece. Antepenultimo ate ou repasto, em casa de Lazaro, bern longe da morte para que se fale de sepuitura e ali se veja ressurrei<;ao, como se a distancia no ponto fatal de slmetria permitisse ampliar a visao do outro lade: 0 verbo evoca tambem a mem6ria, dir-se-a mais tarde, em lembran<;a, diz eie, do que esta mulher fez. Pouco 0 repetimos, guardamos lembran<;a da Ceia, dificilmente nos lembramos do repasto precedente. Esquecemos sempre as mulheres, aquelas e aqueies que nao vivem no teatro tnigico, aquelas e aqueles que nao fazem hist6rias e jamais participam da a<;ao. Nao h3 hist6ria a nao ser a da linguagem. Perdemos os sentidos. o que resta, outra vez, quando 0 verbo se retira, 0 que resta da un<;ao, do perfume, do indumento, 0 que fica do Cristo? No fundo do tumulo, panos esparsos, telas, veus, tecidos, e 0 sudario, enrolado Ii parte, urn pouco mais longe. A caixa-preta do sepuicro vazia, inundada de luz, asslm que a pedra rolou. Urn Ultimo repasto no caminho de Emaus. 0 jardlm-paraiso. Quando a linguagem morre e surge, alhures, em sua gloria, resta este livro.
':1
'..I '"
;,
.;-: .' .,
216
OS CINCO SENTI DOS {
Mesas}
Salve, cheia de gra,a. A gra,a significa 0 dado, mesma palavra, mesma coisa, significa aceita,ao, ainda a mesma palavra: beleza recebida gratuitamente, receptores maravilhados. Ela diz verdadeiramente 0 dado? Nao. adorn intervem em uma troca, espera urn "contradom'; constroi uma logica, desenha urn circuito, conta uma historia, inicia uma representa,ao, praticados desde as eras antropol6gicas. Nao. A gra,a escapa ao dom, 11 chamada l6gica, constitui exce,ao do tempo das representa,oes. A gra,a equivale a urn perdao. Entramos outrora nos tempos do dom e em sua logica por aquisi,ao e reaquisi,ao - a troca percorria aqueles tempos -, calculando os diferenciais e as valencias. A gra,a indica urn mundo ou urn espa«o fora daquele tempo. Mundo ignorado por n6s, incompreensivei em linguas, esquecido desde 0 paraiso onde passam os anjos, utopia onde a economia suspende sua lei de ferro Salve, agradavel, que diz de teu agrado, de born grado, sua aceita,ao 11 sauda,ao; salve, gratuidade pura antes do tempo do dom. Salve, cheia de gra,a. a corpo recebe a gratuidade. a mundo ada, desinteressado, nao pede que the retribuam, nao espera 0 "contradom", nao tern balan,a, nern faz balan,o. Nossos sentidos nao the devolvem nada, nao podem restituir nada a fonte das belezas dadas. a que poderia 0 olho devolver ao sol ou 0 palato a vinha d'Yquem? a dado vern da linguagem: faz 0 contrapeso do dado, constitui urn "contradom" ao mundo. a verbo recompra 0 fruto que a carne colheu na arvore do mundo. Mas a gra,a. A estetica, sensivei e beleza no campo unitario, parece ser exce,ao as leis de ferro da troca-dom. Deus nao trapaceia nem ganha, nem joga nern troca, Deus, neste sentido, nao calcula. Nao faz conta nenhuma, nem economo, nem econornista, as leis que ele da ao mundo tra,am urn lugar de gratuidade. As leis do universo nao estao escritas em colunas de deve e haver. Fonte universal e infinita para nos, 0 sol nao se extingue. au antes: quando ele morrer, nossos sentidos terao perdido seu lugar ao sol desde a aurora.
217
MICHEL SERRES
o corpo recebe, sem ter de pagar, 0 dado. A fonte do dom, ou melhor, da gra~a, Deus, 0 mundo, 0 ambiente, ar, agua, sol, como denomina-Ios? Sao desinteressados. Eles dao universalmente, sempre, tudo a todos, em toda parte, sem exce~ao, interrup~ao nem falha. Dao a sensa~ao pura, sem conceito. Dao necessariamente, e 0 dado nem sempre tern por fim a subsistencia ou 0 conhecimento ou a satisfa~ao: superfiuo as vezes, temivel em todo caso, acontece que nossas culturas 0 abandonam. Eles dao sem finalidade, sem que ninguem possa ter representa~ao para urn tal fim. Os quatro canones repetidos nas aulas sobre 0 julgamento do gosto valem para a gra~a: era de se esperar quando ela desenha a beleza; mas valem para ela tam bern quando se trata do dado. A unicidade da estetica e facilmente demonstnivel. o mundo, belo, oferece gratuitamente 0 sensivel.
218
Filosofia maravilhada pelo inesgotavel, 0 empirismo supoe 0 mundo belo e infinito em seus tesouros. 0 melhor nao tern pre~o. Ao diabo, a avareza; Deus, generoso, nao faz conta, 0 mundo eabundante. Podemos sempre recorrer as fontes da bebida da imortalidade, irreversivelmente, em profusao, sem que jamais 0 nivel baixe. Os deuses se imiscuem no banquete dos mortais. Vestidos como andarilhos, vagabundos a mendigarem pelas estradas, Hermes e Jupiter, em bordejo, batem 11 porta de Baucis e Filemon que vivem numa cabana onde seu amor, mho da pobreza, envelhece. Os miseraveis mortais, com maos tremulas e enrugadas, dao de beber e de comer aos imortais insaciaveis. Mesmo na dificuldade resta-Ihes ainda 0 presunto que defuma na lareira, pendurado em urn prego na parede escura do casebre. Mesmo pobre 0 mundo da ate a quem nao precisa. A beber, agora. A saude dos amores velhos e dos deuses em andrajos, 11 saude da imortalidade, dos anjos que vern, hip6critas e irreconhedveis, dos h6spedes arcanjos, hermes ou ychim. Derramam, bebem, 0 nivel nao varia. De ordinario, quanto mais se cons orne, menos sobra. Aqui, em casa de Filemon, e nesse dia viram a soma permanecer constante e estavel. Milagre. Milagre? Entramos no festim dos deuses onde a ambrosia torna imortal por seu gosto e volume inesgotaveis. Deixamos os banquetes aos dons, as trocas, do dom de Dom Juan ao dom da carne do verbo, todas as ceias a pre~o de ouro, de sangue e de morte, onde 0 Chateau d'Yquem 1947 vale
OS CINCO SENTIDOS {
Mesas}
uma fortuna, todas as ceias em "contradom", onde 0 amor, barato, e recomprado, entramos no repasto da gra~a, salve, Baucis, cheia de gra~a, 0 anjo Hermes diz Jupiter ou Filemon contigo, eis que estamos it mesa imortal, no paraiso on de os frutos abastam, no jardim supralapsario onde a abundancia corre sem tempo, banquete fundamental, original, sem predecessor possivel, gratuito. Tal qual no mundo.
o vinho d'Yquem escorre de tonel para jarro ou de garrafa para boca, e quando urn nivei sobe 0 outro baixa como qualquer agua num vaso. Uma balan~a intervem quando urn prato desce enquanto 0 outro sobe. Se os niveis nao mudam, quando 0 tempo e a agua correm, a balan~a desaparece. E preciso uma estabilidade: 0 que esta la nao fica aqui, 0 que permanece aqui nao esta la. E preciso haver invariantes e constantes. Ninguem pode agir sem eias, nem pensar sem seu principio, nada pode existir sem a soma delas. Uma balan~a man tern a exata economia do mundo. Quem pils 0 vinho em garrafas nao espera barris cheios. Quem 0 acumula na adega deixa com sede 0 espa~o em volta. Organiza a raridade. 0 empirismo fica maravilhado com a profusao, mosofia das fontes, a economia a suprime, calcula as trocas equilibradas. 0 festim de Filemon com 0 milagre de Hermes, 0 banquete de Adao com a fartura das frutas desconhecem a balan~a, precedem a economia. Urn tonel de gra~a enche mil garrafas sem esgotar sua estiagem. E preciso que haja estavel e constantes. 0 que esta la eigual ao que nao fica aqui. Todos os desequilibrios escondem uma equa~ao, uma equivalencia, mesmo as transforma~6es 0 fazem. Donde a ciencia, que organiza as milhares e milhares de maneiras de escrever 0 sinal, iguala. E baseia-se, pois, nos inevitaveis principios de conserva,ao. A cena de Filemon com 0 vasa inesgotavel, a utopia do jardim de produtos superabundantes falam da absurdidade, no minimo dupJicidade, do movimento perpetuo. Por ignorilncia das equivalencias, das invariilncias, dos balan~os. Precedem a ciencia. Uma cabe,a inventiva enche de inven~6es mil cabe~as vizinhas atentas, sem esgotar sua pr6pria torrente de inven~ao. E preciso a invariancia. 0 vinho no copo nao e 0 da garrafa. Impossivel que este seja aqueie, que ele seja e nao seja este ao mesmo tempo e sob a mesma rela~ao. Nao se trata apenas de beber nem de calcular a vindima
219
MICHEL SERRES
do ano, trata-se de falar. De conjugar 0 perigo so verbo ser e jogar com a nega~ao. Se queres falar, e preciso dispensar os contratos estaveis com os outros e com as coisas: 0 principio de identidade vale aqui como equivalencia ou conserva~ao, equilibrio e estabilidade. Ele funda a 16gica e toda linguagem possive!. o banquete gracioso do empirismo tern lugar antes do dom, da troca e do "contradom"; antes da ciencia, pela perpetuidade da fonte que jorra; antes da 16gica e da lingua gem, como era preciso demonstrar. Ele supoe na garrafa, ainda, 0 vinho, ja, esvaziado do copo. Supoe urn mundo cheio de gra~a antes que venha 0 verbo que compra tudo por meio da balan~a. Supoe urn tempo tao antigo que 0 esquecemos, urn tempo tao inimaginavel que nao podemos pensa-Io nem dize-Io. No jardim primeiro, a arvore do pecado tinha a forma e a fun~ao de uma balan~a: a queda, bern denominada, devia ser compensada por uma eleva~ao. Na balan~a da cruz. No paraiso tern lugar toda sorte de movimento perpetuo. Salve, Eva, cheia de gra~a, Ave. Quem paga, no jardim dos sentidos, a luz nos olhos, 0 florilegio it volta dos labios, 0 lustroso encarnado da pele, a leveza espiritual dos 010res levados pelo vento, as vozes primarias na folhagem? Salve, Eva, Maria, do amor gratuito . Beleza sensivel, desejo, sem equivalentes, amor sem balan~a.
,
"
" "
",
;. "
..,' "
220
Os mortais ou imortais bebiam vinho ou ambrosia, nos banquetes, outrora, a leste do mar Mediterraneo. Esses ancestrais secam sob a terra, homens ou deuses. Durante 0 repasto, na Grecia moderna, os contemporaneos bebem urn mediocre resinado que chamam: mistura. Mistura do fruto da vinha com 0 sangue do pinheiro. 0 vinho de antigamente misturava, nas crateras, a agua limpida a calda espessa tirada das anforas. Nunca bebemos senao misturas, ainda que venham d'Yquem. Temos dificuldade de falar das misturas ou de raciocinar sobre elas. Elas resistem aos principios. 0 analista Ihes tern horror. Deem-Ihe urn copo de agua a~ucarada, perguntem-Ihe onde fica 0 a~ucar e onde se encontra a agua: ele se distribui nela que se distribui nele. Onde se encon· tra a resina no vinho? Ela se mistura a ele que se mistura a ela. Onde se en contra a agua na calda, onde 0 semillon no sauvignon? As identidades balan~am, sua localiza~ao se perde nas vizinhan~as imprecisas, a contradi~ao hesita mesmo ante 0 confuso.
OS CINCO SENTIDOS
{Mesas}
Convidemos a beber l6gicos, lingiiistas e gramaticos, misturemos as bebidas, brindemos a confusao. Hermes esta la, de pe, anjo que passa, os pes cheios de asas, diante do amor anciao que logo vai atar suas ramagens, ramagem de Baucis enla~a da aos ramos de Filemon, 0 vinho misturado corre nas ta~as, desliza curvando-se da an fora para 0 cantaro, da cratera para 0 copo, faz subir seu corpo longo de escamas de rubi que se funde com outras serpentinas. Hermes verte seu caduceu: esquema claro e distinto dos fluxos confluentes, desenho ou gnifico inverso ao da balan~a. Bebamos ao caduceu de Hermes, i\ conflu~ncia, i\ confusao. Pode-se pensa-la, pode-se raciocinar sobre os corpos misturados? Trata-se de um outro tempo?
o empirismo espera e acredita no recurso. Ignora 0 raro, a falta, a fadiga, 0 esgotamento. Zomba do segundo principio, ri da queda, nao paga nem fala. Ele assombra os banquetes. 0 festim organiza a experi~ncia crucial de sua ftiosofia, constitui a forma 6tima de sua expressao. Para uma razao fora da degusta~ao. 0 sol da gratuitamente luz, formas, cores, calor, for~a, ainda; 0 trovao e 0 vento ofere cern perfumes e ruidos, sem contrapartida, tambem; a casca e a rocha nao cobram, tambem, pelo tato de seus graos; alguma vez provamos bebida ou comida sem despender urn cobre ou urn tostao depois do paraiso? Eis 0 lugar da raridade, de onde vem a informa~ao, velho lugar dos deuses onde a economia, lei do mundo, triunfa, onde reinam a troca e suas representa~6es, camica ou tragica, por onde passam os discursos, organizados, distribuidos, regrados, hierarquizados, onde giram as conversa~6es, trocas refinadas de discursos e dhllogos, eis ai, precisamente, a mesa do dom. o empirismo entra ai como no centro de sua cruz, vern buscar a gratuidade onde ninguem a reencontrou desde 0 jardim do Eden. Entra, gracioso, no lectisternio das estatuas: deuses de ita dos, na estabilidade, empanturrando-se nas mercearias, na pra~a central das cidades, enquanto os habitantes morrem da peste ou de fome. Lugar onde reina a raridade, onde a economia imp6e sua lei de ferro, lugar dos discursos refinados, da informa~ao e da ci~ncia agora, pois, agora, 0 valor, 0 raro, a fortuna v~m do saber, pois hoje menos que amanha comeremos e beberemos saber, 0 banquete de hoje alimenta ate a nausea apenas urn decimo da hu~anidade, p'ante~o:~e_ qe~s.~sprotegidos por Instltuto de PSICO\t J'" UI 1\,,:) Biblioteca
221
MICHEL SERRES
uma barreira de fogo apocaliptico, lugar de raridade, de economia, de linguagem e de ciencia bern definido pelas armas atomicas, cercado de moribundos famintos, privados de tudo a multiplicarem seus mhos, como sempre acontece com a pobreza, lugar onde os saciados dissertam sabiamente sobre 0 dado pela linguagem ... Perguntem ao desnutrido exclufdo do banquete se 0 dado se distingue, sim ou nao, da palavra, deem-lhe pao, deem-lhe palavras, e 0 que separa simplesmente a vida da morte. Sua vida de sua morte. Nossa vida saciada de sua morte faminta. A questao termina na gratuidade. Na economia e na raridade. Na organizac;ao da raridade. Na organizac;ao do festim. Na divisao do espac;o em duas areas: a do banquete rodeado de sebes espinhosas e de barreiras por onde correm, nus, os famelicos. La, comem e bebem It saciedade porque sabem, porque sabem falar, calcular, pesar, pensar; aqui, na noite vaga e ca6tica, erram os que morrem de fome porque nao sabem nem podem participar da conversac;ao, do festim de palavras, nem das leis do dom. Quando e que a grac;a entrou nesse espac;o? Percorram os caminhos e as barreiras, fac;am todos entrarem no festim de bodas.
o lugar da filosofia, nestes tempos de hoje como nos tempos da hist6ria ou do mito, ainda e 0 banquete: agora equivale ao mundo. [menso asilo de desnutric;ao onde agonizam sombras, no qual se destaca a mesa de raridade ou de abundancia onde alguns obesos vomitam seus excessos. Sim, 0 festim dos deuses que baixaram 11 terra indica 0 sentido do termo mortal. Quando Ii que 0 mortal e 0 imortal, juntos na mesma mesa, esquecidos da balanc;a, comerao, como se diz na Franc;a, a I'rei/13 ? Pagando tao pouco quanto 0 olhar alimentado de luz.
o empirismo entra no festim das estatuas, deitadas no zero de equilfbrio, como 0 campeao da gratuidade. Ele se lembra da alianc;a entre 0 sensivel e 0 gratuito, veneravel reliquia de lingua, trazida pela saudac;ao dos anjos. Lembra-se do jardim do Eden, do paraiso bastante, terra onde correm em abundancia mel e leite, do deserto onde cai 0 mana, da cabana onde as anforas jorram como fontes. Espanta-se com urn mundo povoado de balanc;as, de discursos regidos por diversas pesagens, com urn tempo onde tudo e pago, pao e beleza, em 222 13
Pelos belos athas, de gral1a. (N. da T.)
OS CINCO SENTI DOS
{Mesas}
breve, 0 ar para respirar ou 0 siIencio que propicia 0 sono e a existencia privada, velhos dados gratuitos. Espanta-se que a economia dite a lei do mundo, sem gra,a. Ele entra no festim dos sentidos, linica mosofia sem economia, cheia de gra,a, vibrante de vida, gritante de vida. A economia tern horror ao dado gratuito, considerado fausto ou desperdicio. Ela ataca 0 sensivel. Da gra,a, ela destr6i a beleza, depois investe contra a gratuidade. Tudo tern urn pre<;o, diz ela. Diz ela. Falar, dizer, escrever, avaliar. Pensar ou pesar, mesma palavra, mesma coisa. E se a palavra vendesse, comprasse a pre<;o fuca ou fiutuante, negociavel, cambiando segundo as zonas do espa<;o ou os momentos da conversa, cada dado, antes gratuito, agora reduzido, pelo contradom da palavra, a urn dado? A lingua paga em moeda de palavras 0 estado das coisas? Compramos 0 mundo por meio da lingua gem? E se 0 verbo viesse no meio de n6s para recomprar 0 mundo? A economia vende a visao, os sinais sonoros, povoa 0 espa,o de ruidos e de imagens expulsando as vozes e os espetaculos gratuitos para fazer crer que 0 dado vern da lingua gem, faz comercio de estetica e de anestesia, substitui a gra,a. A balan,a de raridade substitui 0 caduceu da abundii.ncia. Poderiamos sauda-la, despida de gratuidade. No entanto, ao ver 0 sol, diriamos tranqiiilamente que ele da, sem pre,o.O corpo volta-se para ele, os animais, as plantas tambem, os talos se inclinam, sua fonte inesgotavel cria um fiuxo irreversivel sem retorno. Sem reembolso nem divida. E, no entanto, ele esquenta. E, no entanto, ele gira, dizia Galileu, ao fundar a ciencia moderna, diante dos tribunais da Igreja, em cultura fria. E, no entanto, ele esquenta, diz a mem6ria do gratuito perdido, empirica, diante do tribunal ou da balan,a de economia, de termodinii.mica e de lingua, em nossa cultura quente. A sensa,ao, gratuita, nao se paga em moeda alguma. Nunca a chamem de dado: ninguem e obrigado a um contradom. Nao a chamem de percep,ao: quem faz, aqui, a parte do contribuinte e a contraparte do impostor? Em seu banquete sentam-se os parasitas: eles sabem que recebem e nao devolvem, ja os conhecemos. Pagam com a lingua e fazem crer que 0
223
MICHEL SERRES
dado passa por a1. Dom Juan preside esse festim, ele que nao reembolsa nem as hipotecas nem as dividas nem sabe manter palavra. Todos ignoram a balanya, a equivalencia, vivem do e no afastamento do equiHbrio, inclinayao jamais recomprada. Assim nasce 0 mundo em Lucrecio, assim comeya 0 tempo no caos da Genese, assim se abre a hist6ria, por exemplo, de Roma fundada, que se afasta do sagrado. Ha muito tempo procuro a graya. Ou urn objeto que nao possa ser denominado lance, nem fetiche, nem mercadoria. Nao 0 dom: a graya. Nao a gravidade: a graya. Nao a natureza: a graya. Absolutamente nao a fisica, nao a ciencia e suas leis de valencia. Mas a metafisica, para alem delas. Em afastamento de equilibrio em relayao a elas. Mas a filosofia: sabedoria, amor, que dizem, tambem, a graya. Salve, filosofia, cheia de graya . •• 1
,, NASCIMENTO
,
.I
:' .'
.'
.' .,
224
Quem bebe uma dessas beberagens, que a industria impinge e divulga em enxurrada, engole termos e pode conhecer 0 que passa por sua boca, integral mente. Passa como uma linguagem escrita no r6tulo sucinto. Tudo o que esta na caixa de metal ou de plastico e anunciado no papel, tudo 0 que esta impresso fora das paredes encontra-se dentro das paredes. Essas duas proposi~oes nao deixam nenhum resto. A marca anuncia uma seqiiencia finita, bastante curta: beber analise como ler; 0 letreiro como 0 cartao contem a mesma serie de palavras ou de corpos: refresco de f6rmulas, beberagem de abstra~ao, farmacia. A lei obriga. Impoe a honestidade da publicidade. A lei, escrita, adstrita ao r6tulo, escrito, que faz beber 0 escrito. Beberagem ou droga, decreto mesmo. 0 sentido come~a e para na linguagem. Anestesia, boca paralisada. Po~ao. Quem bebe do born vinho nao saberia falar de marca, nao pode dizer integralmente 0 que esta ou fica em seu palato. Desenha-se ai urn mapa finamente detalhado, urn chamalote, sem palavras entronizadas para desenha-Io nem frases para descreve-lo, salvo lexico fraco, sem experiencia, do qual todo mundo cayoa. No r6tulo figuram 0 desenho do castelo ou 0 nome da herdade, a indica~ao do vinhedo ou de seu sitio. Se fosse preciso enunciar ai 0 que 0 vinho contem, a lista alongar-se-ia tanto quanto mais apreciado for 0 vinho, 0 pape! recobriria a garrafa, a cave, a cepa, a super-
OS CINCO SENTIDOS {
Mesas}
ficie da paisagem, como urn mapa fiel ponto por ponto. A excelencia abre uma seqiiencia descritiva que, podemos imaginar, segue ao infinito. Beber envolve essa lista e esse tempo interminavel: a singularidade do cru, da data e do proprio frasco enrola essa imensa serie num lugar reduzido, exatamente sumario. 0 concreto fica nessa densidade ou 0 real nesse somatorio qual uma essencia singular: nao uma pureza uniforme, reproduzivel pela repeti~ao, analise ou industria, mas uma mistura numerosa de implica~6es cerradas. Saborear espera 0 desdobramento dessa densa e dura evolu~ao, 0 desenrolar da bola enrolada sobre ela mesma, momenta deleitavel em que a ave abre a cauda em roda e se pavoneia, inimitavel. Virtualmente inanalisavel, urn fluxo mesclado deixa por onde passa ou permanece urn pouco uma meticulosa tatuagem, aurora boreal, corpo achamalotado, constela~ao de ocelos variados, sob uma tempestade faustosa, urn conjunto mUltiplo e disparatado, nao-padrao, que atesta a essencia singular. Depois de ter recebido esse detalhe, 0 sujeito julga frfgida ou anestesiada sua antiga boca, lisa e pura it passagem dos fluxos imitaveis, ou imediatamente analisados. Os livros entediantes da biblioteca citam os livros da biblioteca: copistas, comp6sitos, analiticos. Os bons livros vern de outro lugar e VaG para a livraria. Asua chegada, sao rodeados pelos maus que os destro,am, analisam, para mostrar que tambem os escreveram por meio dos livros da livraria. Os maus autores detestam os bons e tentam torna-los parecidos. Tentam dizer que urn born livro e somente a soma de suas amilises. Por muito tempo as crian~as terao sido levadas a acreditar que existem bibliotecas de volume infinito, que ninguem po de se libertar de seus labirintos, que se conhecem pedreiros que sabem construir torres de Babel sem fim. Em suma, que a linguagem aprisiona em paredes que interditam o mundo, ao imita-Io. Ora, construimos finito, durante nossa vida breve, e mais finito ainda porquanto construfmos com 0 ja construido. Nenhum corredor cruzado construfdo por mao de homem pode encerrar homem nenhum por mais que urn tempo relativamente curto. A quina da parede para ai, 0 oco do vao nunca e encontrado, fractal. Pode-se vagar pelo mar durante todo 0 tempo da hist6ria, quem procura bastante a abertura do labirinto encontra. 0 dado singular nao para nunca. Ninguem sai do mundo, qualquer urn se liberta facilmente da biblioteca; podemos entrar infinitamente num objeto, chegamos bern depressa ao fim de urn livro.
225
, MICHEL SERRES
A obra de arte, as vezes, incide sobre si, numerosa, como que interminavel, e produz urn tempo de hist6ria: como uma essimcia singular inintegravel. Os grandes numeros intercalam-se entre finito e infrnito. Diriamos, nas bibliotecas de fIlosofia, que diagonalizam e resolvem as antinomias. A referida beberagem industrial passa pela boca como as listas de livros entediantes, e a deixa frigida: pura, identica, analitica, reproduzivel. Ela reconhece facilmente sua droga fabricada de prop6sito para 0 reconhecimento. 0 born vinho, inimitavel, engana ate os conhecedores. Deserto ao sol ou floresta de folhas todas diversas. o cao, habituado ao reflexo, acorre i\ voz do dono e sofre brutalmente se nao a escuta, saliva como urn aut6mato i\ vista e ao som da caixa de metal, sabendo 0 que 0 espera e quem 0 espera, sua droga. o esperado cria anestesia. A estetica prova 0 improvavel. Se que res viver livre, bebe singular. Se queres viver singular, bebe livre. Autoridade na carne sem a carne, a linguagem passa pela boca deixando-a virgem. 0 verbo econcebido na carne deixando intacta sua virgindade. As comidas sem gosto anestesiam a lingua como a linguagem. A linguagem anestesia a boca com fazem as beberagens industriais ou as drogas farmaceuticas. Boca de ouro dos bem-falantes, metaIica e frigida. A linguagem exige tudo da boca e nao Ihe da nem Ihe deixa nada, como urn parasita. o gosto e urn beijo que a boca se da por intermedio do alimento gostoso. De repente, ela se reconhece, tern consciencia de si, existe por si. Saida da boca, como urn filho, a linguagem exige-Ihe nascimento, assistencia, nao Ihe oferece nada em troca. Degusta-Ia demoradamente Ihe da a existencia. 0 homem de gosto existe onde 0 porta-voz, desgostado, transido, fica frigido. Degusto, portanto, existo localmente.
o objeto do gosto existe, concreto, singular, de outra maneira que nao
226
numa seqiiencia finita, curta, de termos tecnicos. Traz e cede 0 detalhe virtualmente infinito que faz sup~r, adivinhar 0 real, 0 objeto do mundo. 0 sujeito do gosto, agora, existe local mente, na boca e em sua vizinhanl'a que, sem gosto, nao existiria, virgem, frigida e falante. 0 gosto faz 0 objeto local e 0 objeto singular existirem ou nao: certa bebida inimitavel e certa
OS CINCO SENTIDOS
{Mesas}
vizinhan~a
de carne, boca, bochechas, palato, centro e ponta da Hngua, mais todo 0 odor desprendido.
Eis que termina 0 banquete dos banquetes, sem que tenhamos reconhecido os convidados. Como ninguem tomou, sucessivamente, a palavra, nao sabemos quem estava hI. Quem fala nomeia-se, quem se nomeia tern direito 11 palavra: uma palavra diz 0 sujeito que diz as palavras; ou entao: aquele que diz as palavras acaba por dizer urn nome que diz 0 sujeito. No banquete copioso onde copiosos banquetes deram sua cota, os participantes degustavam para construir suas identidades. A volta do Yquem, sentavam-se, de inicio, ao todo, tres Hnguas ou tres bocas somente, tres, sem duvida, para uma pessoa, 0 6rgao que fala, 0 que recebe 0 licor, 0 que da e toma 0 beijo: festim de vinho onde se discursa do amor. 0 Yquem degustado faz existir 0 palato, 0 olfato, a costura que alinhava a boca ao nariz, muitas velaturas em torno da mascara. Quem se senta a volta da mesa? Mascaras: de veludo negro, de cetim branco, outras em seda rosa antigo, outras enfim achamalotadas, tigradas, zebradas, mesc\adas, de todas as formas e cores. 0 vinho acaba fazendo uma cabe~a para cada uma. Ao longo da mesa que se estende, mascaras e mascarilhas mexem-se, bebem, evanescentes. Rostos sem nucas, cabe~as sem cinturas escapulares, guardanapos esvoa~antes diante de urn peito vazio. Degusto, portanto existe urn fragmento de corpo: boca, mascara, cabe~a, mascarilha. Uma maquete para ORL [Otorrinolaringologiaj. Sinto, portanto formam-se placas. 0 empirismo apresenta urn cogito loca\. Os sentidos constroem 0 corpo por peda~os, a partir de serem exercitados. Trazemos os germes de nossa constru~ao. 0 empirismo preve 0 diasparagmos de Orfeu, a vida acaba tal como comec;:ou. Adicionamos cordas ao alaude, alira, depois elas quebram ou afrouxam, a musica acorda as artes que afinal fazem secessao, as Musas se man tern em paz, em seguida as mulheres tracias esgoelam-se, ululantes, na montanha. Muitas imagens, trata-se do corpo. Em torno dos germes sensoriais, ele se constr6i, pouco a pouco, de vizinhanc;:a em vizinhanc;:a, adquire uma visao que logo perde se nao a exerce na distancia, no detalhe, no instantilneo, no colorido ou na nuanc;:a. Cola a vista na orelha, lembra-se do nascimento do ouvido e de quem ele 0 recebeu, em que circunstancias deliciosas ou dilacerantes sentiu vibrar sua tripla lingua ... 0 retalho e montado lugar por
227
MICHEL SERRES
228
lugar, pe~a por pe~a, corpo-retalho bern ou mal cosido, trapos vagamente unidos, flutuantes, alinhavados as pressa ... individuo divisivel, membros ainda esparsos. o sujeito nao forma bloco, tern sucursais; nao esta sediado em urn lugar unico, mas forma urn buque de vicariancias. Eu nao existo de repente, globalmente, ao emergir para a existencia pelo ate de pensar ou de falar... ou antes: se penso ou se falo, eu existo, sim, em totalidade, sem fazer o detalhe, bloco construido, coerente, mas localmente frigido, estatua fria que entra no banquete para discursar, que se deita como urn deus no lectisternio, mas deixa a ta~a eternamente cheia, robo de boca anestesiada, com partes de metal ou de marmores, insensiveis, vazias, furadas, tapadas, falhadas. Falo, portanto existo globalmente, sim, mas virginalmente. A virgin dade sempre acompanha 0 verbo. Eu existo em bloco, mas com partes fantasmaticas. 0 anjo sempre anuncia 0 verbo. Nao, eu nao existo nas localidades. Tudo esta concentrado na capital, aldeias mortas. Dir-seia 0 mapa desses paises onde 0 Estado impera sozinho. Sintese sem lugares, portanto, facil, estatua lisa. Diasparagmos para a morte trivial, para a vida corriqueira tam bern. Esvoa~am a volta da mesa banal corpos de meia boca, sombras desprovidas de pele, uns com as cavidades das orelhas arrolhadas, outros sem olfato, machos manetas, mulheres sem tato, todos corpos de membros fantasmas, humanidade mutilada, com cadeira reservada para 0 banquete, que passa 0 tempo a dizer eu. Eu falo. Em pe diante da cadeira para discursar sobre 0 amor, ergo 0 copo sempre cheio ou vazio. Cada estatua quebrada tern sua unidade global, pensa e fala lindamente, mas desmorona apesar da unidade capital. Dir-se-ia que os convidados ao festim foram recolhidos dos sitios de escava~iies: diante da toalha branca, toda uma estatuaria estropiada. Sujeitos globais vindos das cidades e dos campos, sob 0 sol, parecem as sombras lividas esmaecidas dos Infernos em torno de Euridice. Falar, pensar fazem facilmente a economia de uma dificil constru~ao. Atras da musica, Euridice, caminhando lentamente, constr6i seu corpo por placas e peda~os, a come~ar pelos terminais esteticos ou germes sensoriais, segue a lira ou a totalidade das artes, dessas belas-artes que nenhuma cultura pode dispensar, necessarias como 0 mundo para a constru~ao e modelagem do conjunto vivo, uma orelha sai da sombra, 0 membro fantasma se faz carne, 0 pavilhao e 0 rochedo se encarnam, 0 timpano se retesa, toda uma forja se organiza, com suas bigornas e martel os, uma boca de sombra sai da sombra, urn jato de flores cai entao dos labios, 0
OS CINCO SENTI DOS
(Mesas)
palato vai ser costurado, no banquete, com a orelha ja encarnada, a pele ampla epespontada sobre as ilhotas ja emersas, a lingua arvora-se aIem do virtual frigido onde se enrolava antes de nascer ou aparecer, a forma~ao das pe~as, uma a uma, exige jun~oes aqui e ali, pontos, abas, bainhas, passagens de placa a placa, de germe a germe, transi~oes ou vicariil.ncias, perfumes doces como almas, gostos sedosos como caricias, matizes cantantes, acordes em vitral, dan~a, dan~a, da sinteses locais tempo a tempo, por explosoes de alegria, Euridice, saindo dos Infernos, convidada ao banquete de suas novas nupcias, desprende suas formas das sombras da anestesia, da farmacia social, da droga lingtiistica que mantem a carne virgem na impotencia ou na frigidez, liberta-se do labirinto passando pelos pontos inseguros, enche suas cavidades, sai da hotelaria dos jantares banais a fim de habitar a casa pr6pria de seu corpo, deixa a prisao, ressuscita da morte sensorial, da corriqueira vida. Nunca seguro de estar estruturado com bastante solidez, 0 eu assim construido, pe~a por pe~a, amea~a desfazer-se ao vento, desmoronar, dissolver-se na chuva; 0 corpo, tao logo despido da capa fantasma que 0 envolvia ao sair dos Infernos, nao pode suportar qualquer coisa, a visao de Orfeu, uma pedra dura no caminho, urn vinho capitoso demais, uma caricia ardente, 0 nu feminino emerso do caos subterraneo esvai-se de novo aos peda~os nos Infernos, primeiro diasparagmos, como 0 corpo masculino de seu tocador de lira desaparecera aos peda~os na montanha bulgara, sob os olhares e as garras das mulheres tracias, Bacantes dan~antes, como o meu, 0 teu, modelados ao longo de urn labirinto igual, seguindo atras de uma lira igual, vao-se decompor no usual diasparagmos, nova queda das pe~as esparsas, disparatadas, e com as costuras desfeitas, desmoronamento dos peda~os que precede a passagem ao p6. Resta as vezes uma cabe~a: a cabe~a de Orfeu desce 0 curso do rio continuando a cantar, a falar, seguindo as correntes do mar as ilhas, ela diz: eu falo, portanto sou. Principio capital estranho a debandada do corpo, que da a existencia ou a unidade, mas, como urn fantasma, integra membros fantasmas. Eu canto, fa10, penso, cabe~a de anjo numa nuvem, ou de profeta numa placa de prata. Estatuas e assombra~oes causam gran des ruidos nos banquetes.
o corpo se constr6i como se com poe 0 livro, e as paginas associam-se como as pe~as e as placas. Todo costurado de pele, no inicio, nu em seu saco amarrado, como que vestido folha a folha, meias, echarpes e cal~as, com pe~as de pele reunidas ou vestimentas diversas justapostas ou empi-
229
MICHEL SERRES
230
Ihadas, cosidas, que se recobrem, mas as vezes deixam hiatos, pois alguns lugares rejeitam-se uns aos outros. A pele nao faz sintese, mas alinhavo, colagem, ou remendo. 0 que outrora denominamos associa,ao de ideias vale menos para as ditas ideias do que para os fragmentos de corpo ou de derma. Mal amarrados, frouxamente atados, em retalhos, se quiserem: peda,os remendados com esparadrapo. Cada vez que Ihes disserem: sistema, para urn vivente qualquer, devem entender: manto de Arlequim. Urn livro e montado como urn tato ou uma veste. o empirismo, costureiro, constr6i localmente, pensa por prolongamentos, de vizinhan,a pr6xima a proximidade vicinal, de singularidade it singularidade, de germe it camada, de cavidade a ponto, desenha mapas finos por caminhos de rato, cartografa 0 corpo, 0 mundo, os padr6es: recorta, alfineta, costura. Suti! e refinado, ama 0 detalhe e fabrica fragi!. Top610go, tern 0 senso das bordas e dos fios, das superficies e das guinadas, nunca seguro de que as coisas ou 0 estado de coisas, a menos de urn passo a frente, continuem as mesmas, tecelao de variedades, no detalhe. o verbo, ao contrario, nao faz 0 detalhe, ocupa instantaneamente 0 espa,o homogeneo: a voz conduz e repercute ao longe. Cimbalo em seu t6rax de ressonancia, sobe como uma coluna acima da garganta, cone turbi!honante, na frente, ponta plantada atras da luneta, trombeta, c1arim que se anuncia e voa no volume em to do 0 redor e 0 torna unitario sob 0 juga de sua for,a vibrante, e da ao corpo uma slntese prematura e ampla, global e precipitada, dominante. A acustica desmancha com seus acordes as costuras precedentes e faz esquece-Ias. o sujeito falante freme no espa,o da geometria e nele desenha as cadeias da razao, longas, simples, faceis, munidas de lei propria, que tra,am, pelo som, urn caminho reto em urn mundo is6tropo. Dono e possessivo, sup6e que 0 global, longinquo, nao difere do local, pr6ximo. A razao, la, esta nas mesmas rela,6es que a palavra, aqui. o empirismo costureiro de pele tern com a topologia a mesma rela,ao que 0 verbo sonoro mantem com a geometria. Os dois ultimos dominam e escondem os primeiros. 0 racionalismo do verbo, pedreiro, arquiteto, logico e geometra, constr6i. 0 empirismo-alfaiate trabalha os consertos, as bainhas, prefere 0 frouxo ao duro e a dobra it articula,ao. Nao, 0 corpo nao e construido de imediato, dobra-se e desdobra-se, franzidos e bufantes, estende-se como uma paisa gem. Sutil, arguto, sagaz. 0 costureiro precede 0 tocador de lira, que precede 0 cozinheiro. 0 habito e alinhavado no corpo fantasma como urn veu
1
OS CINCO SENTIDOS {
Mesas}
ou uma capa. 0 morto-vivo, a uma batida de gongo, de cimbalo, a urn rufar de caixa surda, entra no banquete. Sem esse trovao acustico, ele cairia em farrapos, ridiculo, mascara e capa. 0 som da uma sintese breve e temponiria. Os fantasmas precisam do barulho para se manterem na vida, e por isso que nOssa incultura estrondeia sem parar. Ao dan~ar a musica da lira ou da voz, a roupagem prematura pode fazer-se carne, pelo suporte do verbo. Fa~am dan~ar muito as criancinhas. Os convidados, estatuas, sombras larvares, vestidas, mascaradas, barulhentas de linguas, entram no banquete da vida, onde a orquestra prepara 0 espa~o harmonico, com risco de cairem aos peda~os no ultimo compasso. Comem e bebem, sagazes ou nao. o empirismo, escan~ao e cozinheiro, conhece mais receitas do que leis, pois estas valem para os estados de coisas homogeneas, muito raros, e aquelas, para os mistos, freqiientes que chegam ao corriqueiro. Ele cozinhou 0 cardapio do banquete onde misturas comem misturas para subsistirem enquanto misturas: isto e 0 meu corpo. Onde corpos misturados bebem corpos misturados: isto e 0 meu sangue. o corpo compoe-se como urn livro: topologia da costura, as pe~as se associam por alinhavo, no inicio; geometria dos sons, em seguida, primeira sintese global pelo suporte do verbo; e, outra vez, topologia das misturas, 0 cozinheiro refina as vizinhan~as entre as pe~as. E sabe dissolver liquidos em fluidos, ou s6lidos, tao pouco coerentes quanta carnes, em molhos curtos ou copiosos, para obter liga~oes insensiveis. Onde termina a carne e onde come~a 0 ragu, 0 mesmo gosto, as vezes, mal se percebe. 0 corpo mal sabe onde come~am urn sentido, urn lugar, uma pe~a e onde terminam urn outro sentido, urn segundo lugar, uma placa pr6xima. 0 corpo tigrado, misturado Ii feito de matizes vizinhos. Vai de urn sentido a outro insensivelmente. Assim Van Eyck, dizem, colocou sobre a velatura suti! que mostra a coxa de Eva, no retabulo do Cordeiro mistico, que se ve em Gand, quinze camadas degradees sucessivas, em diferentes matizes COfde- rosa. Assim fez 0 Criador. Assim, cada urn percebe sua perna. E sua boca quando degusta. 0 Yquem pinta a ab6boda palatina de afrescos e polipticos com velaturas que levam cern degrades. 0 olho se perde como se olhasse a perder de vista; a boca degusta ate a dissoluC;ao do gosto; a lingua fica sem linguas, nao temos quinze palavras para 0 rosa antigo, nosso lexico titubeia ou gagueja, os experts inventam termos para si mesmos, privados, intransmissiveis. Na sexta camada, Van Eyck pensou ter visto a
231
MICHEL SERRES
mulher se mexer. Da mesma maneira, quando amassava os pigmentos para misturar novas cores, acreditava crhi-las na tela. EVan Eyck criou a mulher. 0 espectro continuo, difereneial, insensfvel, que tatua lugares invisivelmente e os une por faixas transicionais, enla,adas, fugidias, cola nosso corpo ou mistura as partes, mais do que 0 constr6i, ou 0 faz sfntese. Assim, 0 born toureiro nao e reconhecido na exceIeneia dos passes, mas na demorada liga,ao das figuras fundidas, nos volteios do touro na faina. Felizes os corpos fundidos. 0 banquete ajuda a desfazer a dita tatuagem pela fusao ou confusao das vizinhan,as, a apagar colorido berrante conservando a eficacia. Assim Van Eyck brinca de Deus e de toureiro com a vida, cada qual sonhando com liga,oes perfeitas. Assim 0 cozinheiro.
°
232
Arte fragil e temporaria como urn perfume, empirismo flufdico, mosofias passageiras, esquecidas ou desprezadas, deixadas na cozinha. Ninguem quer admitir que vive na cozinha, em familia. E, no entanto, e nesses lugares que 0 corpo se liga. 0 empirismo desvaIorizado, delicado caIa-se. Contudo, ele acompanha a vida, por tras do teatro. 0 banquete se divide em dois: a representa,ao e 0 oHeio. Deeidam agora on de se da 0 importante, na oficina ou na frente do cenario? Nos molhos ou nos discursos? A mascara ou a vida? o empirismo educa as pessoas freqiientaveis, vivas, de corpo flexivel e ligado, reconhecfveis desde os primeiros compassos da valsa. Nao instrui muito, com certeza, nao induz altos conhecimentos nem beIos discursos. Mas da as pequenas felieidades que constituem a tonalidade continua da vida, a descontra,ao do corpo, a flexibilidade da atitude, a adapta,ao, as armas simples pela luta cotidiana contra os batalhoes da morte que OCUpam 0 teatro. A morte ronda, sempre, 0 banquete. Quanto a representa,ao: trovoada, tambores, a estatua, ela mesma dominadora, anuncia a agonia dos dominadores. 0 empirismo refugia-se na cozinha, com os ajudantes respingados de molho e as copeiras, moreninhas picantes de avental branco. Urn tanto bern comportado, simpl6rio ate, ele ouve os discursos que a bebida acarreta, fica com medo dos atores joviais e sonoros, histri6nicos, prostitufdos, imperiosos, engalanados. Tern medo da mosofia, das ciencias e das leis, prefere retirar-se. Deixar a mesa antes do fun. Na cozinha, ele aprende a nao detestar 0 impur~, enfia 0 dedo na sopa. Aprende a mistura; na mesa impecavel reina 0 separado. No teatro, a lei comanda; na ofieina, contentam-se com receitas. Na representa,ao, soam verbo e a razao; atras, 0 razoavel basta. E se a grosse ria dominasse 0
°
OS CINCO SENTI DOS {
Mesas}
mundo, como urn rei desatento e caprichoso? E se uma fmura reservada, atenta aos detalhes locais, amante das nuan~as, s6 tivesse lugar atnis do cenario? Empirismo polido, racionalismo unido. 0 primeiro nao fala, nao faz hist6ria. Prefere a vida.
o mundo ao sol parece 0
banquete ou urn patio dos milagres. Pernetas, caolhos, castrados, caras lisas sem boca ou nariz, em farrapos, nao de roupa, mas de pele ou de sentidos, descascados, homens-tronco, nucas ou cranios sem orelhas, cegos, coxos e manetas, frigidos, impotentes, capengas, paraliticos, eis os que comem a mesa, eis por quem 0 festim chega ao auge, passantes, curiosos, os que entram e os que saem, ocupados em se embriagarem, anestesiados de urn sentido, ou munidos de urn membro fantasma, corpos nao acabados, malfeitos, pouco educados, inconscientes de nossas aberturas, defeituosos, desconjuntados, todos consertados, recuperados, completados por uma ortopedia atabalhoada, pernas de pau, pr6teses, pontes, maos de plastico ou narizes de couro, dentaduras, pontes, penis artificiais, que dissimulam, sob 0 artificio, 0 espa~o de nada, que escondem 0 torpor sob a obesidade, cada urn a gritar, verbomigico, brada sua existencia ou tenta impor sua linguagem, diz sua categoria na agora, acreditando realizar 0 milagre de urn corpo unido, bern acabado, harmonioso, pleno, completo, pela emissao da palavra publicada, mas mencionando as vezes, como uma confissao que escapole, que, desde a aurora dos tempos, nossos corpos sofrem, despeda~ados. Milagre da linguagem na mesa dos milagres: eu falo, eu falo, ou~am bern que eu existo. Algazarra, estrondo, barulho que cobre 0 fracionamento tnigico dos estropiados. Cada urn ve chapeus, casacos e confia no verbo. Mas as roupas nao escondem a pele, mostram, ao contnirio, seus remendos e costuras. Todos nus. Eu degusto, minha boca existe. Sinto, pois urn peda~o chega a existencia. Uma ausencia branca achava-se no lugar que 0 sensivel faz nascer. Em meu corpo, tunica de nada, 0 ser se coloca. 0 ser remenda 0 nada. 0 top6logo varia sobre 0 cogito de Arlequim. As bordas de minha lingua nao tinham existencia antes de emergirem sob a camada de urn Margaux; os amplos panos do corpo limpo ficam bran cos; a cenestesia nula sofre ou goza esse multiplo nascimento, cria~ao continuada. Uma lingua nova brota. Advem urn tato, uma verdadeira mao de cinco verdadeiros dedos, uma palma exatamente minha. Urn cocuruto brota em mim, urn pavilhao imenso e novo, urn rochedo finamente detalhado, urn olhar inesperado; esta pele rara envolve-me onde as zonas veem, ouvem, estremecem, invo-
233
MICHEL SERRES
luem no interior, profundamente. Esta vizinhan~a nao existia antes, ela nasce. Existiu uma vez, existe de uma outra maneira e cern vezes, adormece e ressuscita. Nasce, quer renascer, sabe faze-Io logo, conhece seu grau de exigencia. Aprende, dai em diante, que se rebaixar a sentir pouco ou mal ou relesmente devolve-Ia-ia a seu prirneiro nada. Existe, exige, erige-se. Cresce e se fortalece. Fica doce para sentir melhor, torna-se forte para resistir. Sabe, pode atravessar 0 tune! de nada onde jazia antes; a do~ura do sensive! a endurece. A aprendizagem consiste em ligar as fragilidades que garantem a finura receptiva it for~a que da 0 endurecimento. Muitas imagens, trata-se da ere~ao. Mas com a condi~ao de generaliza-Ia bern. Ela descreve 0 fenomeno corriqueiro, local e global, do sentir, em vez de se confinar em 6rgaos que nao tern nomes bonitos em lingua nenhuma. Tal parti~ao surge fora de seu nada branco, como Venus acima do mar ruidoso, cresce, existe, age, brota como urn botao, ou dorme esperando a pr6xirna festa. Eu sinto, logo a placa se erige. A constru~ao do corpo segue urn conjunto de ere~oes. Voces falavam de amor no banquete: davam-nos sem saber 0 modelo do que se passa em suas bocas e seus labios. o pequeno monstro que os fll6sofos desenham quando mapeiam as termina~oes nervosas pe!as localiza~oes que elas projetam no espa~o cerebral, labios grossos, lingua enorme, tronco pequeno, luvas de boxe em cada dedo, orelhas de lebre ... erige exatamente seus receptores. 0 homunculo poe as antenas de fora, estende-as, eri~ado de intumescencias. Modelo das mascaras ou modelagens que seguem a cenestesia, que exprimem com precisao 0 corpo que sente e que nos, os genios do verbo, raramente compreendemos. A constru~ao topol6gica do sentir, pe~a por pe~a, corresponde, manto de Arlequim por tunica semelhante, ao espa~o de cores berrante, manchado, tigrado, ocelado, quase quadriculado, das localiza~oes cerebrais. Nao temos necessidade de tnipano para reconhecer esse tapete variado, 0 mundo sensivel basta, e nossa pele matizada - ou a boca que se erige diante de urn vinho que forma a cauda de pavao. Ave oce!ada como urn cerebro.
234
A aparencia da festa na mesa dos milagres muda segundo nossa finura, nossos talentos e as circunstimcias. Os dois quadros anteriores recenseavam as mascarilhas e as mascaras dos convidados: na cor de pe~as de nada, domin6 cor de invisive!, como diria Fran~ois Couperin, 0 Grande. Eis 0 das pe~as de ser, domin6s ou arlequins de cern cores. Entram e sentam-se, levantam-se, saem, bebem, comem, gritam e
J
OS CINCO SENTIDOS
{Mesas}
cantam, este aqui de boca grande entre saints-jean-gueules-d'or, tipos de lebres de olhos pequenos e orelhas compridas, imiteis e dobradas, corujas espantadas de olhar imenso, imovel, estudioso e tolo, em orbitas sombreadas, tamanduas de longa lingua viscosa, alguns primatas de bra~os interminaveis que acodem prontamente a todos os pratos, louva-a-deuses de magras pernas articuladas, como que artificiais, e toda a familia tubarao e tigre cujos dentes terrificos garantem-Ihes 0 maior sucesso, ladeados por paquidermes frios e lerdos de pele encoura~ada, cern coelhos fn\geis e fugidios ou ratos infatigaveis ... Cada qual erige sua especialidade, aquela que 0 torna uma especie de aleijado, cada qual exibe seu domino de cor triunfante ... grandes olhos encimando uns membros enormes, 0 vovozinha, que dentes tao gran des voce tern ... Eis a primavera, eis a festa das metamorfoses, dos milagres cotidianos do sentir, cada qual, risonho, surpreso, comovido, ve surgir urn rebento novo, ressuscita em seu enxerto de verdura, coroado, cingido, cal~ado de folhagem, colares de flores saidos da pele, braceletes nascidos do tato aveludado, corolas em fieiras caindo da boca, espirais de videiras perfumadas em volta do nariz, galhos ou cepas exuberantes prolongando os dedos ou os pes, troncos frondosos, faunos, gnomos, tritoes, feiticeiras, diabas montando 0 primeiro cabo de vassoura que encontram, todos na balburdia brindando i\ gloria dos vinhos na gloria do outono. Ese os contos, botas de sete leguas, fera transformada em bela, pele de asno, sapatinhas de veiro, sereiazinha com os membros inferiores comprimidos, enfiados em uma luva de escamas esverdeadas, ogro que fareja a carne fresca, e se as festas galantes, bailes de mascaras, comedias ariequinais, as visoes e os sabas pintassem em cores vivas somente ruinas perdidas, esquecidas, deletadas do sensivel, cuja qualidade a cultura linglUstica ou a religiao do verba ja nao permitem perceber? Santo Antao, sacerdote do verbo, eremita no deserto lisa e homogeneo sob 0 imutavel sol, espa~o onde nada de novo pode surgir i\ luz metaiica do meio-dia, vivendo nas pedras a perder de vista, alimentado a pao e agua durante 0 dia inteiro, ebrio de jejum, a salmodiar 0 texto a toda hora, olhos gastos no Livro, lingua paralisada de verbo e de crostas duras, sente sua pele de anacoreta logico horripilar-se de subito sob as carfcias numerosas, tacitas, do mliltiplo que la risca seu chamalote. 0 paraiso perdido, jardim dos sentidos, disparate, de frutos e bichos e diabos e muiher, volta
235
MICHEL SERRES
ao deserto unitario do verbo que jamais 0 compreendeu nem recebeu, mas percebe-o como urn inferno que 0 tenta: banquete que assombra no meio da dieta, festim do sensivel fantasmag6rico no reino da linguagem.
o santo, hoje em dia, vive e Ie na cidade, no meio do asfalto a perder de vista, alimentado de regime para 0 est6mago fraco e de comidas destituidas de gosto pela agro-industria alimentar ou industria farmaceutica, move-se na Iuz unitaria da eletricidade que impede ate a noite de chegar de novo ao dia, respira s6 os cheiros da gasolina e do querosene e, sobretudo, nao conhece nada alem da escrita, palavras-imagens que cobrem de ponta a ponta a cidade desertica, paredes, telas, paineis, Iojas, veiculos, em breve, 0 ceu, 0 santo en tim existe somente no verbo que exige, para uma tal existencia, ascetas que nao tenham outra ciencia senao a do verbo: Iogicas, midias, gramaticas, anuncios, formulas, codigos ... informa~ao em todos os sentidos, cenobitas que demonstram que 0 cinza da cidade e 0 fedor de que se impregnam nunca os irritam mais que as frases e a sintaxe. Vito ria da razao: 0 damasco ja nao tern outro gosto senao 0 da palavra que entra na boca para dize-Io. A cidade e povoada de eremitas que s6 tern uma lingua.
236
Que nao pode dizer 0 sensivel senao monstruosamente ou anormalmente ou infernalmente. A abominavel teratologia, nas tenta~oes de santo Antao, vern de acoplamentos estranhos: nus em fundos de panelas, focinhos enxertados em elitros, baleias florais, bifurca~oes de reinos diversos, os corpos misturados implantam-se mal. E, no entanto, misturam-se! Essas quimeras reduzem-se a palavras, justapostas por tra~os-de uniao: imagina~oes Iogicas, gramatica dos sentidos, digital. Incapaz de seguir 0 tio, 0 movimento, a coesao, 0 continuo, a hist6ria, 0 espectro degrade, a carne, a mistura do sensivel, a lingua descreve em palavrasacr6nimos as deliciosas velaturas que a banham. Quinze monstros se contradizem na coxa rosa de Eva. Impotente para dize-la, 0 verbo a amaldi~oa. Breughel, Bosch, Flaubert: banquetes traduzidos em lingua, pelas palavras, pela gramatica, pela erudi~ao e pelo dicionario, pesadelos de maldi~ao, bichos construidos pelo computador. Assim tambem, nos simposios atuais, ouvimos que p supoe q substitui tranqiiilamente 0 Yquem que se pavoneia.
OS CINCO SENTIDOS
{Mesas}
Nenhuma cultura atingiu 0 grau de ascetismo como 0 que hoje impoe a chamada civiliza,ao de consumo, nosso banquete. A linguagem ai domina tres vezes: a administra<;:ao impera pelo componente performativo do verbo; as midias dominam por seu componente de sedu,ao, a ciencia se impoe por seu componente de verdade. 0 verbo trismegisto produz uma classe dominante abstrata, bebada de c6digos: legista, informatica, rigorosa, tres vezes eficaz, e, assim, produtora de um mundo. Nunca os que detiveram 0 poder ao longo da hist6ria praticaram um tao alto grau de austeridade. Nossos principes habitam 0 discurso. De direito, de ret6rica imagHica, de ciencia. Nao eomem nem bebem, nao passeiam docemente nem conhecem as Belas-Artes. Mas onde estao as festas de antanho, no Trianon ou em Versalhes? Santo Antao triunfa, dobra a humanidade, sujeita, ao verba, impoeIhe 0 pao seeo da abstra,ao, s6 Ihe deixa 0 dado atraves dos tres canais da linguagem, no deserto incorp6reo das cidades administrativas, informadas, tecnicistas. Ele eomanda, fascina, diz verdade. Vai refazer 0 mundo por programa. Dai, vivemos no meio de uma imensa e eoletiva tenta,ao de Santo Antao. Para criar uma cultura, e preciso um corpo e sentidos. A lingua ou a inteligencia artificial produzem uma subcultura, por falta de corpo. 0 sensivel reaparece, sombra teimosa, infernal, atraves da abstra,ao imposta, nas imagens e na lingua, desfigurado pelo estrago do desprezo. Sentadas no festim, as estatuas ou robos sonham eom listas e ieones. Anacoretas exaustos, 11 noite, de trabalho formal e solitario, buscamos um sono raro, saturados de crimes da tinta vermelha, fascinados freqiientadores da gente do poder, saciados de trepadas ginasticas, empanturrados de rega-bofes de cores desagradaveis, de todo um banquete instantaneo, quimerieo, evaporado 11 pressao de um toque. Esse subfestim perpetuo e desprezivel, imaginario, aberto pela pressao lingiiistica, quem melhor 0 disse que este que assina 0 nome esperado: santo Antao? Nos frascos, ao redor dos labios, jaz a cultura. E 0 saber no tim de todas as contas: a inteligencia e a sabedoria. Homo sapiens, homem que sabe saborear. Sagaz: 0 que sabe cheirar. Coisas todas que se perdem pela forp das 16gicas ou gramaticas, mon6tonas, loucas, quando se privam de corpo. 237
VISITA
L
:
PAISAGEM (LOCAL) DESPAISAMENTO (GLOBAL) METODO E RODEIO (GLOBAL E LOCAL) CIRCUNSTANCIAS 0 LUGAR MISTURADO
PAISAGEM (LOCAL) E se 0 paganismo, se 0 politeismo construissem igualmente urn mundo em retalhos por meio de pe<;:as semelhantes as que montam 0 edificio do corpo? Como se 0 mundo nao se diferenciasse, na superficie aparente, da pele: paisagem-molambo vestida de peda<;:os. Banal, aqui, magnifica, ali. 0 pagus, regiao, provincia, reparti<;:ao de solo ou de espa<;:o, faz a pe<;:a do pais, 0 elemento da paisagem: canteiro de luzendro, vinhedo, peda<;:o de terra, pequeno pasto, urn jardim bern tratado e 0 pomar adjacente, a pra<;:a da aldeia, a alameda. No pagus, dominio do paisano l4, costado de sua velha nobreza, fixam-se divindades campestres. Ali repousam os deuses: no vao da sebe, a sombra do olmo. o paisano coabita com seu deus pagao no elemento de paisagem. Paisano pagao, a lingua antiga guardou sua lembran<;:a: recordem-se das florestas mediterraneas de antes do maqui, das arenas de antes dos trabalhos conexos, do tabuleiro que nao se podia chamar de panorama: topologia de uma carta montada por placas dispares, diversamente coloridas, extravagantemente encaixadas, capa de retalhos de vinhas, prado, lavouras, bosques, pontos de referencia, ruinas de politeismo apagadas desde 0 nascimento do verbo. Quem viu a roupa de Arlequim de minha mae Terra conhece a Antiguidade. Ela desaparece pouco a pouco, manto branco que volta a ser virginal, campos abertos onde 0 milho, mon6tono e desolador, ocupa 0 espa<;:o ate 0 horizonte, feio, esverdeado. A linguagem e 0 monoteismo tornam homogeneo 0 trapo pagao, a tecnica passa sobre nichos Aqui. a tradu~ao de paysan por paisano obedeceu a criterios etimol6gicos que me pareceram mais afinaclos pela intenlfao do texto. (N. da T.) 14
Instituto de PSicOI'-"Jicl - Ui-RGS - - - Biblioteca
241
MICHEL SERRES
sagrados: destrui~ao dos velhos deuses vicinais, aboli~ao da gleba e dos limites. 0 empirismo respeita e da vida a cem divindades locais, adorara ate a do verbo. 0 monoteismo torna possive! a interven~ao tecnicista global: para formar um espa~o is6tropo, foi preciso primeiro matar os idol os. Nada de novo sob 0 sol, em todo 0 Middle West. Paisanos expulsos, paisagem destruida.
o corpo se junta por membros esparsos, uma roupa e montada por pe~as
242
e costuras, seria de pensar que a paisagem veste 0 corpo de minha mae Terra, os semideuses do panteao pagao a prenderem j6ias, aqui e ali, para adorna-Ia? 0 paisano vela ou viola esse corpo? Nao perguntem mais como se ve uma paisagem, pergunta de crian~a mimada que nunca trabaIhou, descubram como 0 jardineiro a desenhou; como, desde ha milhares de anos, 0 agricultor lentamente a compos para 0 pintor que a expoe ao fil6sofo, nos museus ou nos livros. Ele a compos pagus a pagus. Ora, esta mesma palavra latina, de velha lingua agnlria, assim como 0 verbo pango, ditam ou dao a pagina, a que lavro, esta manha, em sulcos regulares, com a re!ha do estilo, pequeno recorte onde se finca, ou se planta, ou onde se estabelece a existencia de quem escreve, onde ele a canta. Prado, lugarejo, campo forrageiro, jardim ou povoado, lugar de referencia de seus trabalhos, ares e habitat, on de ele nunca pode viver sem a companhia de um deus. E preciso um deus por pagina, pelo men os, para que ela exista, para que e!a ajude a existir aquele que a faz, lentamente: ele nunca deixa uma pagina sem ter arranjado nela o santuario secreto que ele roga humildemente a quem Ie ou passa que pare um instante para saudar. Um deus repousa aqui, escondido, invisivel. A pagina on de se con centra tanto tempo carrega tanta escrita densa somente para que ele advenha, para que estabele~a af sua morada e seu lar. Se procurarem um pouco, hao de encontnl-Io. Roguem-Ihe um instante, por voces e pelo paisano do lugar de referencia. Como 0 paisano, 0 escritor compoe. Permanece demoradamente na pagina ou no torrao, e homa 0 nicho sagrado, trabalha nos limites, no muro do campo protegido que 0 separa do santuario vizinho e, as vezes, medita sobre a paisagem, no meio do vale: ano que vem sera preciso plantar um alamo, um cedro, um teixo, no alto do barranco, entre 0 cemiterio eo lago, para que, daqui a trinta anos, um requinte a mais encante 0 viandante, distraido ou a meditar sobre a percep~ao e a natureza.
J
~ ~\,~ OS CINCO SENTIDOS {Visita}
Sem paisagem, sem obra nem hist6ria, sem acidentes ou acontecimentos singulares que propaguem ao redor alguma empresa regional, inesperada para quem vern da vizinhan,a. A singularidade que os atinge dificilmente e reportada aqui. E preciso trabalho e tempo para tra,ar os caminhos vicinais que separam ou encadeiam, costuram ou misturam essas circunstancias vizinhas. 0 tempo corre nas estradas. Chamemos circunstancia urn estado, ou melhor, urn equilibrio local rodeado por uma zona de influencia, irregular ou caprichosa, estrela festonada ou desvios assimetricos, bola espinhenta em todo 0 nao necessario. Na periferia da bola circunstancial, outras correm, tangentes, exatamente contingentes: esta tlltima palavra significa que elas se tocam entre si e conjuntamente sem lei que as obrigue. A paisagem, a obra, a hist6ria integram parcialmente essas circunstancias contingentes e formam entao urn quadro, parque ou jardim, peda,o escolhido, periodo ou intervalo. A integra,ao global, estrada reta que penetra a floresta, apela ao metodo ou a ciencia. A1deia, casas espremidas em tomo do campanario, e 0 cemiterio; vale de longa margem inclinada, sublinhada por sebes que descem 0 barranco; lago coroado de esplendores concentricos; plataforma ao vento a correr sabe-se hi para onde ... quadro. 0 viajante narra e diz 0 detalhe, suas estupefa,oes e descobertas, 0 rodeio ao longo do caminho vicinal, cita as contingencias e percola como 0 tempo. 0 marinheiro se perde na baia de Kekova dos mt1ltiplos golfos, ansas, ilhotas, desfiladeiros, praias estreitas e em concha, bifurca,oes estranhas, enseadas e barreiras, ve somente cenas, s6 compreende 0 plano na mesa do quarto de vigia, sonha com uma obra em que cada livro ponha em paginas ou quadros uma perspectiva de baia, total, bela, suficiente, que abra e esconda 0 acontecimento de sua vizinhan,a, que mostre e encubra 0 geometral global, esperado como uma divina surpresa ou rejeitado como uma tarefa grande demais. Mas 0 nivel constante das aguas condena 0 marinheiro a abstra,ao ou aos astros, para ver. Ele segue em horizontal. 0 tempo da obra, inesperado e esperado, percola durante toda a rota de circunavega,ao, ou melhor de rodeio, em cima e embaixo, aventuroso e amarrado no volume do espa,o, vezes e vezes, redescobertas e novidades, de stlbitas visoes grandiosas. Que mundo forma 0 andrajo pacientemente costurado das milhares de paginas lavradas, antes, e das milhares que esperamos, depois, que pais elas embelezam, de que terra tra,am urn mapa, de que corpo compoem a roupa? Pele tigrada, zebrada, estriada de quem escreve, raiada de Iinhas e
243
MICHEL SERRES
de letras. peda~os de corpo. placas de derme. campos de paisagem. paginas de uma outra terra desejada. paraiso. Como colar este mapa sobre a paisa gem ou sobre 0 terreno da carne movedi~a. sobre as pe~as que brotam na primavera. ereteis. para festejar 0 sensivel. po is cada pagina assim se erige? Obra morta sem essa cola~ao. esteril sem essa colagem. As paginas s6 dormem na linguagem. extraem sua vida das pag;: da paisagem. da carne e do mundo. Quando reencontrarem a roupa de Arlequim de minha mae Obra. conhecerao a Antiguidade: essa volta obstinada do paganismo. do trabalho paisano solitario. obrigado por suas pr6prias contingencias. da paisagem local pacientemente modelada. essa aten~ao its vizinhan~as sem leis. realidade que brilha enos ultrapassa a cada momento de sua germina~ao. gritos de vida. A obra data da paisagem. da Antiguidade perdida. dos sentidos. Recomprada subitamente. integrada pelo verbo. Nao procurem saber como se ve uma paisagem. componham urn jardim. Compreendam 0 erro estetico de sub meter tudo a uma lei: aplainar entedia e enfeia. mundo sem paisagens. livros sem paginas. desertos. Retirem as coisas todas. nada mais verao. Ver 0 espa~o exige tempo. nao matem 0 tempo. Evitem 0 erro simetrico de se contentar com 0 fragmento. A ausencia de narrativa entedia tanto quanto a lei primeira e enfeia ainda mais. Compor exige uma tensao entre local e global. vizinho e distante. narrativa e regra. a unicidade do verbo e 0 pluralismo nao analisavel dos sentidos. monoteismo e paganismo. a auto-estrada internacional e as cidadezinhas retiradas. a ciencia e as literaturas. Mantenham firme a n!dea do cavalo que galopa. contenham os caprichos dele. prevejam 0 caminho acima e ao longe. Zelem com precisao. antecipem. A mosofia. as vezes. exige sinteses. Visitem. Subitamente. voces veem ao mesmo tempo a miniatura e 0 panorama.
244
Podemos fixar as paginas-unidades? Seja a fotografia da beldade. outrora diziam 0 retrato. recentemente. a representa~ao: de pe. nua. recortada. em determinada escala de tamanho. Ampliada ate 0 detalhe. grao da pele. molecula do grao. atomo da moleculao a beldade entra em abstra~ao. Como Gulliver. no meio de todas as suas viagens na dita representa~ao. surpreende 0 seio de sua ama-de-Ieite
OS CINCO SENTIDOS {Visita}
gigante. Para levar facilmente a beldade em viagem, voces podem, inversamente, mandar miniaturizar seu retrato, diminui-Io de redUl;ao em redu~ao, ate conseguir alojar milhares de beldades em urn caro~o de cereja. Como Gulliver viu pulular liliputianos em pen cas de anjos ou de lilases a volta de seu ventre-montanha, como 0 pintor faz passar multidoes por uma ponte atnis de duas faces-falesias que oram. Como sabemos fabricar chips. A beldade em miniatura prolifera. Superponham as representa~oes, umas sobre as outras, amplia~oes sobre miniaturas, acima ou abaixo do primeiro retrato em uma escala de tamanho medio. A superposi~ao pode chegar a lua ou mesmo ao infinito, pois nunca vimos limites para 0 tamanho, acima ou abaixo, salvo pniticos. A cena mostra uma especie de prisma ou cilindro astronomicamente alongado ou entao urn cone ou piramide imensamente evase. 0 mapa ou a foto do belo ambiente exibe 0 retrato da mo~a em pe, a zona acima das vistas mais e mais a cavaleiro, longinquas, dao lugar a uma multidao crescente de beida des. imaginem caminhos que vao de urn retrato a outro no volume da pilha, urn conjunto de vias transversais ao cone ou prisma, interligando as diversas dimensoes de urn mesmo lugar. Cada conjunto de caminhos, 0 volume que ele define e recorta nesse prisma ou cone infinito, entra em outras dimensoes que nao a do espa~o comum. Dimensao deve ser compreendida primeiro no sentido da grandeza e, depois, no sentido da invariante topol6gica que define urn espa~o em duas ou tres dimens6es, ou em dimensao fracionaria. Em decorrencia, nossa visao se transforma, transtornada. A beldade inteira esta ao lado de suas pe~as, tecidos, celulas, gran des moleculas ou no meio de sUas irmazinhas gemeas ou clonadas. Entre sua composi~ao elementar e sUas reprodu~oes possiveis. Assim repousa a montanha entre as rochas e as rochas nos seixos, os seixos entre moleculas ou cacos, 0 todo formando uma grande mistura; 0 oceano golfa dentro e fora de seus mares, fora e dentro de seus estreitos e de suas golfadas; a fioresta dorme entre os bosques, a planicie avizinha a clareira; 0 pagus de dimensao variada associa-se a outros em espa~os de dimens6es diversas. Eis a paisagem, soma movente de seus fragmentos reais, pavimentada de paginas misturadas, desenhem entao, para ver, uma via ou varias atraves de suas possiveis representa~oes. Uma obra, como urn parque, e composta de choques de ;Homos e de ocean os, de gotas d'agua e de montanhas. 0 marinheiro observa as estre-
245
MICHEL SERRES
1
las e sonha com a margem, mas manobra diante da onda que bate no paredao antes do navio e 0 faz desaparecer sob a espuma. Paginas amplas e diferenciais tenues. Aqui. A paisa gem reline os lugares. Uma localidade e desenhada como urn ponto singular rodeado de uma vizinhan,a: fonte, po,o, ponta de cabo que avan,a alem da margem, ilha, pequeno lago, longo fio de riacho, estrangulamento no alto da garganta, guiche imposto pela margem do rio que lambe 0 pe da colina, clareira, passagem, porta, acontecimento topografico, obstaculo, limite ou catastrofe; qualquer urn prefere viver junto a singularidade, ja ali, e guarnece-Ia com a sua pr6pria. Quem nao sonhou em parar aqui, no meio do circo de montanhas secas, ao sol, em montar aqui sua tenda e esperar a mortel Habitat ou nicho, lugar do leito e da mesa, em torno do qual as marcas de passos fazem mil festoes e arabescos, guirlandas locais da vida corrente. Aqui, alguem, vive, come, dorme, pratica seus habitos, ama trabalha, sofre e morre. Quem passa sabe logo que transita por urn lugar, para no sitio ou diante da pedra que 0 assinala: aqui jaz 0 desconhecido que fez manchas na paisagem e cuja Iapide tumular perpetua a ocupa,ao. Ele encheu 0 ponto singular com seu odor, seus dejetos, com suas propriedades estercorais, trabalhos, gostos e cores, milho e vinha, descendencias, depois, com seu Ultimo lixo, as cinzas de seu cadaver, marmore gravado no tlimulo. 0 passante se inclina, visita 0 deus do lugar. Aonde vaisl A este lugar. Donde Yens. De meu sitio. Por onde passasl Por aqui mesmo. A cada pergunta, seria preciso uma narra,ao infinita detalhada para servir de resposta, que nao preencheria 0 lugar ocupado pelo genio daqui, suas tonalidades e balsamos, seu contato e seu silencio, seus despojos ou restos que nao tern nome em nenhuma lingua. o tra,ado de urn jardim miniaturiza a paisagem, reline lugares, sltios, recantos ou pra,as, compoe alguns aqui. Uma marca facilita a mancha de reconhecimento: a estatuaria indica a singularidade do sltio. Modelem-no como ilha ou cabo, garganta ou lago, cadar,o de rio ao longo de uma colina, a escultura assegura a continuidade, coloquem-na como deusa do lugar, em vez da lapide runebre sob a qual jaz 0 fundador, mitico ou nao, do referido nicho, da pagina paisagem. Quem sabe escrever urn pouco pode desenhar urn jardim. 246
o caminho pass a pela paisagem, salta os obstaculos, catastrofes ou limites. Sacode os deuses dos lugares, vai reto. Resiste as obstru,oes.
1
as CINCO SENTIDOS
{Visita}
Para onde corres? Para la, onde correm, dizem, 0 mel e 0 leite. De onde yens? Perdi 0 paraiso de partida onde 0 pai jaz sob a terra, onde a estrada agora cruza e vinha de mais longe. Por onde passas, onde nao paras? Como sabe-Io sem a referencia, e como 0 caminho segue reto sem sua medida? Eis 0 hermes posicionado, 0 termo, a baliza militar ou quilometrica. As trilhas de cabras ou de alpinistas, nas montanhas, sao marcadas por cairns, monticulos, piramides, ttimulos ... Que vestal ou outra vftima jaz sob essa lapidayao? Eis os lugares da paisagem que as pedras assinalam. Eis os sftios do jardim que as estatuas designam. Eis, na estrada sinuosa, os cairns ou ttimulos. Eis, no caminho reto, os termos ou balizas, hermes. Pontos de acumulayao munidos de vizinhanyas ou referencias de metragem, em todo caso, pedras de reconhecimento para urn aqui bern fundado. Aqui: singularidade do mundo onde urn individuo persiste em sua tumba. Lembrem-se, aqui, de que 0 primeiro teorema de medida surge a sombra de uma tumba piramidal egipcia, na epoca de Tales. Nao sabemos se ele comparou a sombra do ttimulo com a sua pr6pria: para isso devia ter ficado im6vel como estatua, ao sol de meio-dia. Podemos ver uma pagina-soma? Antiga, paga, a paisagem precede 0 verbo arquiteto, novo. 0 paisagista costura, ap6e, junta, experimenta. 0 arquiteto concebe a sfntese unitaria: a peya decorre da obra enquanto 0 parque e induzido da pagina. Urn muro adiciona pedras e 0 edificio soma os quartos no euclides do pedreiro, as tres dimens6es, enquanto a arvore passa do tronco as ramagens ou ramificay6es, bifurca-se do enorme ao minimo e abrolha, fractal: e se cada especie de flora desabrochasse em uma dimensao pr6pria? Ai esta 0 que resiste as uni6es simples. Urn paisagista conta com os individuos e 0 tempo, 0 arquiteto raramente esta atento as vizinhanyas, desconhece 0 pagus variavel, calhau, poeira ou colina, seu espayO global desliza na mesma dimensao das peyas localizadas. Le Notre e Mansart nao habitam o mesmo espayo e nao pensam a mesma soma. E 0 tempo da conversayao ou da usura nao bate como 0 da vida. Apesar do verbo, 0 escritor nao se desfaz facilmente do paganismo,
247
MICHEL SERRES
248
sujeito Ii pagina local como Ii miniatura infinitamente pequena da intui<;ao fragil trazida por uma sonoridade muda, urn enorme sopro que a habita. o jardineiro, tal qual, coloca deuses e estatuas, oratorios, em cada ocelo do parque e ergue pav6es e laranjeiras, joias do manto, luzes pupilares. Duas variedades de paisanos pagaos. Ora, nunca, 0 Deus unico foi invocado sob a denomina<;ao de paisagista, mas 0 evocamos com freqiiencia como 0 arquiteto do universo. 0 organizador cria, como urn mestre de obra, uma soma. Guarda so para si a visao global e a previsao, planifica e divide. o jardineiro entrega 0 mundo aos olhos multiplicados da paisagem. 0 visto, multiplo, tern seus pr6prios olhares. Avaliem 0 imenso trabalho dos profetas escritores de Israel para construirem uma Biblia, livro linico, costurando suas paginas no monoteismo, lutando contra urn povo id6latra que os manda para 0 espa<;o, que os dispersa para que fa<;am uma paisagem, jardim perdido ou paraiso, pais onde escorrem mel e leite, terra prometida, abandonada no mundo por anglistia do deserto. 0 profeta da voz clamante assim como 0 povo eleito transitam pela planicie vazia e branca durante toda a hist6ria entre duas paisagens, 0 parque imemorial e 0 da esperan,a, vida do verba auster~ que lamenta ou que promete. Avaliem 0 infinito trabalho da ciencia para fun dar urn sistema unitario por entre 0 caos de suas paginas, numerosas como a areia. 0 conhecimento bate, sistole, diastole, hesita, em equilibrio no tempo, passa de uma fase a outra, entre a esperan,a de urn universo e 0 pluralismo irredutivel de urn mundo, entre uma soma sistematica e 0 crescimento irreprimivel da diferen,a. Como se nao pudesse deixar a terra ou 0 jardim das mil especies pela esperan<;a de urn deserto. Avaliem 0 trabalho impossivel do ftI6sofo, preso nos sistemas arquitetos, 16gicos, deserticos, para ressuscitarem urn mundo sob a explosao dos fragmentos. A felicidade quer que a paisagem resista ao ocre palido do deserto como 0 corpo a maquina ou a menina ao velho barbudo, que a erva tenra cres<;a sob as escava,6es da rodovia, que os anjos as miriades de vez em quando reajam sob 0 reino do Deus arquiteto do universo e 0 afoguem no jardim de suas asas oceladas, que 0 prazer do banquete multicor resista Ii grisalha imposta pelo verbo abstrato. 0 empirismo traz a lembran<;a inolvidavel dos jardins. Onde Deus, em pessoa, entra livremente por entre as especies. o arquiteto habita a sintese; 0 ftI6sofo a procura, mesmo quando a
OS CINCO SENTI DOS
Ii,ao bita. o do )uas sob o0 rna .0 IS10,
sIe ;-
{Visita}
adia por urn born tempo, e passa por urn born tempo pelo empirismo e pela ciencia para retarda-Ia outra vez, e fica mais perlo do paisagista para aprender com ele, para inventar, praticar, projetar com ele urn conceito mais impreciso que a soma, menos completo que a sintese, mais fluidico que a adi,ao, mais frouxo que a integral, mais vivo que 0 sistema, mais inconstante que 0 pr6prio conceito... 0 edificio cria totalidade, como 0 conceito, 0 verbo, a lei de ciencia; a paisa gem reune: esbo,o, padrao, pois os deuses locais resistem muito ao esfor,o federativo, conjunto, agrupamento, cole,ao, reagrupamento, pacote, remembramento e a opera,ao fica mais exata como lembran,a do corpo de Euridice e do tempo interminavel necessario para sair da sombra infernal. Os campos desenham os membros que se cosem ou se atam, confluentes, que se lan,am uns nos outros como fazem os afluentes. N6s frouxos, escorregadios, como os de uma leve echarpe adaptada ao movimento e que da uma gra,a sutil, aerea, essa unidade movedi,a e instantanea que chamamos elegancia. Quando as ciencias da vida usam termos de sistema, eles sao emprestados de outros saberes, musica, mecanica ou astronomia, que nunca compreenderam 0 tempo, ao passo que elas tern sob os olhos uma paisagem a remembrar, pe,as coladas com esparadrapos em cruz, la,os de echarpe. Deveriam procurar, como aqui, subtotais, confluencias movedi,as. Elas pensam duramente urn objeto mole. 0 arquiteto concebe a dureza, 0 paisagista reune a moleza do vivo. A paisagem diz exatamente a pagina das paginas, por redobramento ou exponencia,ao das pagi. Urn livro pode ser fechado, concluido, labirinto, po,os ou prisao; a pagina das paginas, sempre aberta, expoe, livre, legivel, estendida, desdobrada, descoberta, manifesta e patente, nunca esconde uma pagina com outra, eis 0 livro a ser buscado, fnigil. 0 ornamento da terra nao mente.
Pango, escrevo na pagina, pango, eu canto, 0 hino come,a com uma declara,ao paga, pange, lingua, gloriosi corporis mysterium, canta, 6 lingua, o misterio do corpo glorioso, sanguinisque preciosi e do sangue precioso, corpo morto e sangue vertido peIo pre,o do mundo, in mundi pretium. 0 hino medieval anuncia pange bern no alto da pagina, estabelece 0 paganismo antes da lingua, antes do verbo, seu rei. 0 verbo dA seu corpo e seu
wi
249
MICHEL SERRES
sangue pelo pre,o do mundo; a Iinguagem compra 0 mundo a pre,o do corpo e do sangue. Nobis datus, nobis natus: 0 mundo ja nao nos da 0 dado, recebemos 0 verbo como dado, a Iinguagem 0 da a n6s, sparso verbi semine, ela semeia o mundo. A carne faz-se verbo, 0 verbo faz-se carne. Recomprou, de imediato, to do 0 lamentavel desmembramento do solo, do mundo e do corpo, tender offde todas as paginas. Ja nao encontrarao urn s6 cantinho, uma moita abandonada, uma pedra no caminho ou no meio do campo, urn inseto, urn brejo que nao estejam revestidos de suas categorias. 0 verbo fez 0 revestimento universal das paginas, nao importa 0 tamanho, soma ou ,itomo, integral ou evanescente. A paisagem recua ao lugar anterior it lingua e a sua gl6ria: pange, lingua, gloriosi... o paganismo reduz-se a urn papel velho, antiquum documentum, antigo documento; garatuja ileglvel nao escrita; Ii,ao arcaica, exemplo, instru,ao, educa,ao em rulna; nao transmitido ou mal transmitido visto que sem lingua, escrita ou falada: documento exatamente pre-hist6rico que da lugar ao rito novo. A Iinguagem engendra novidade, ensinamento que data da Antiguidade. Este Iivro, pagina por pagina, descobre justamente 0 antigo documento, busca sua antiga Ii,ao sob todos os arquivos, chamados novos, do verbo. Os sentidos, apanhados em falta, falham, sensuum defectui. A lingua canta os sentidos para enunciar seus erros. Eles se enganam nao s6 diante do verbo, mas sobretudo diante do pr6prio corpo. 0 antigo documento cai em farrapos. E a filosofia, quando for ensinar ou educar, come,ara sua primeira Ii,ao pegando os sentidos em flagrante delito de erro nos mesmos lugares. A fe no verbo acentua essas falhas, substitui esses defeitos. Ele os remembra, pois ele mesmo e corpo e sangue. A vit6ria da lingua gem sobre urn empirismo sempre destruldo repete os ritos novos mas urn tanto antigos ... Felizes tempos quando a orelha percebia que 0 adorador, em seu templo, 0 lavrador, em seu peda,o de terra aluviana, 0 escritor, em sua pagina, trabalhavam os mesmos lugares, e quando 0 olho via isso.
,.
250
Esse lugar data de urn tempo tao remoto que 0 diziam antigo desde a Antiguidade. Nunca anunciamos novidade senao do verbo: advento, vinda, batis-
OS CINCO SENTIDOS
{Visi!a}
mo, Epifania, panibola. Paixao e Ressurrei~ao. Modelamos nossa cultura para que ela ressoe 0 nascimento da lingua gem ou seus renascimentos, em qualquer lingua que se anunciem: em grego, latim, falares romanos, depois anglo-saxoes. Cada uma assume sua vez e ressoa de novo, convencida de se levan tar com a aurora. Cada lingua acredita que toma 0 lugar da linguagem, como toda etnia em algum momenta da hist6ria esta convencida de possuir a dimensao da humanidade. Cada lingua celebra 0 nascimento da lingua gem no tom de seu mundo interior. Anuncia 0 logos em matematica, em metafisica, segundo a voz, a lei e a rela~ao em urn espa~o tra~ado, regrado, calculado, mensurado, conhecido, embelezado por ela ... Diz a ruagh, espirito, vento, sopro, voz que passa sobre as aguas no dia zero da Genese, preliminar criador. Afirma que no come~o era 0 verbo ... Descreve a lingua gem positivamente ou logicamente ou cientificamente por algoritmos, equa~oes, c6digos, f6rmulas, em todo caso exclui da fliosofia 0 que nao se refere i\ linguagem ... A mesma boa nova vibra de novo, 0 logos ordena e compreende, 0 sopro paira sobre as aguas primordiais, 0 verbo vern pela recompra e pela retomada, a linguagem supre 0 dado, os chamados pn!-socraticos, sacerdotes, sabios, fliosofos recentes alinham-se estritamente peia varia~ao de modo pouco mais ou menos religioso, meta fisico, ontol6gico, positivo (hist6rico, l6gico, formal, medlnico mesmo), ninguem, que escreva ou fale, cansa-se de anunciar que 0 reino da linguagem finalmente advem no meio de n6s. Nossa cultura ocidental, por ela modelada, s6 diz dela, entra em ressonancia ou harmonicos com eia, mora nela. Hoje adquirimos uma visao nitida dessa lei constante, porque agora come~amos a perde-la. Percebemos 0 Ultimo fremito do choque multimilenar que nos fez nascer ao mesmo tempo que a linguagem, no momenta em que ela vive sua agonia. Nossa cultura, nascida da linguagem, modelada por ela, vibrante nela e com ela, s6 fez regozijar-se com essa conturbadora emergencia e grita ainda a boa nova em todas as linguas: mlticas ou piedosas, abstratas, eruditas. Nao voltavamos dela, salmos dela esta manha. Sob essa novidade, estavei, que resume e celebra nossa cultura, descobre-se a Antiguidade. Nao, claro, a que os livros de hist6ria reiatam, imersos na novidade do verbo, seja qual for a epoca ou 0 intervalo que relatem, mas a do corpo e da paisagem, paginas compostas de ocelos mortos e vistos por olhos cegados. A ancianidade jaz sob 0 revestimento transparente do verbo, naufragada em seu claro diluvio. Podemos descobrir
251
MICHEL SERRES
algum lugar sob esses revestimentos, alguma carne desocupada? Antes do rito circular da novidade, antes do grande ana liturgica da fIlosofia, rondas que passam sem deixar senao adventos, existia uma paisagem?
252
Urn pais cultivado mostra lugares, altos ou secretos, imediatamente visiveis como as esta~6es. Urn equilibrio reina aqui. Paremos, fixemos nossa tenda, fundemos muros, esperemos tranqiiilamente a hora mortal, evidentemente mais doce nesta situa~ao. Aqui esta a tese, nome grego da estatua latina. Neste lugar, uma janela parece abrir-se, de onde cai uma luz, onde a quietude se difunde. A paisagem entrela~a os percursos em tais paradas, semeia ber~os, escalas, longas pausas, tumulos ou portos, granitada de pequenos altares. Em torno desses umbigos ou germes, plicas ou singularidades, a vizinhan~a habitavellan~a seus bra~os, raios ou caminhos para a irriga~ao do local, assim festonado de sendas vicinais, dire~6es que daqui partem e para aqui voltam, constela~ao de sentidos, pequeno trevo. A defini~ao do lugar exigiria fronteiras, no entanto ele se organiza como urn no, aberto e fechado, como uma estrela, ou urn carpo vivo. Animais que habitamos casas, nao as assentamos nem fundamos em qualquer lugar, mas somente aqui, neste meio onde os deuses dormem e brilham, hospitaleiros, em cada lugar severos e incomparaveis embora proximos. Nosso corpo singular munido de uma vizinhan~a caprichosa que nos defende e alimenta, como uma coura~a porosa que tambem nos pode sufocar, adapta-se com facilidade ou prazerosamente a urn aqui local semelhante. 0 lugar, a casa e 0 corpo desenham os nodulos e pseud6podes analogos. Existencia e influencia da divindade vicinal, penates semelhantes ao nicho animal. E a paisagem remembra os sitios munidos de seu entorno, que a voz defende ou anuncia como 0 canto do rouxinol a noite. A lingua sobe da paisagem marmorizada como conjunto de gritos que delimita vagamente esses lugares guarnecidos de vizinhan~as irregulares, as vezes mais extensas que 0 alcance do orgao. Dos pontos singulares uma brilhancia emana ou uma nuvem de odores ou urn rumor ou uma coroa de espinhos. Os cinco sentidos colaboram para os contornos: do habitat, da localidade, como do proprio corpo. Este fede, grita, arranha, brilha para se definir tambom, ou acaricia, perfuma, encanta, ilumina para acolher. Assim como 0 carpo de minha mae terra, remembrado em paisagem, germes, umbigos, sitios e vizinhan~as, docemente composto ao sair dos Infernos subterraneos, ap6s as eras geologicas onde a pangeia nao tinha
as CINCO SENTI DOS {Visila}
nenhum olho para a voz, emerso das aguas, enrugado, abalado, quebrado, alteado, recoberto, erodido, entregue aos gelos e as transgressoes marinhas, dominado por uma flora cambiante e adaptavel, irreconhecivel sob suas novas roupagens, logo pisoteado por viventes hkidos, irisa, cintila, crepita, deslumbra. A alta antiguidade da paisagem, cern vezes modelada por for~as inertes, cultivada miJenarmente por seus paisanos, paga, olhanos ve-la num formidavel siJencio. A paisagem resolve as varia~6es sobre a no~ao de variedade: delgada ou espessa, leve ou pesada, inerte, viva, sensivel, social, atingindo os bordos comuns ou separados do ar e do subsolo, nas vizinhan~as longinquas ou conectadas do coletivo e do contentamento individual, variedade multiplamente contingente neste sentido, a paisagem equiJibra, originalmente para cada subtotal, inumeras exigencias astronomicas, fisicas, de hist6ria natural e humana, num quadro maravilhosamente singular que por sua vez irradia vias vicinais. Habitamos urn lugar interessante dessa variedade, camada reversa de forma~ao demorada, logo dilacerada, quase sempre em farrapos: paisagem tao rara quanta urn corpo totalmente construido. Dormimos muitas vezes em suas falhas ou lacunas. A paisagem come~a quando se cala toda a ciencia exata ou humana. Fragil revela-se a face fractal da terra, tao frequentemente assolada. A terra ergue para 0 ceu 0 rosto desses assolamentos, toda sorte de popula~oes transformou -a em vale de higrimas, exercitos, industria, turismo, invasoes. Saqueada pelos que passam sem ficar, dela s6 vemos as ruinas. Nunca tivemos sob os olhos a nilo ser os restos de uma terra devastada, vivemos em meio a lembran~as. Como 0 corpo, a pele, 0 sensivel ou 0 empirismo, a paisagem se veste de trapos remendados. Fragil, tantas vezes perdida e hit tanto tempo quanto 0 pr6prio paraiso, e reencontrada ou descoberta em farrapos. Peda~os daqui, vestigios de lugares. 0 paraiso verdeja como urn jardim paisagistico. Em certa lingua morta tao pr6xima que ainda vive na nossa, a devasta~ao ou a destrui~ao sao ditas pela palavra popula~ilo. Que terra veremos em breve sob 0 imenso crescimento das popula~oes? Empreendimento delicado 0 de povoar a paisagem. Que novos saqueamentos nos preparam os metodos que seguem reto sem ver lugares nem vizinhan~as nem caminhos elegantemente entrela~ados, doravante retificados?
253
V'
MICHEL SERRES
Piedade para a terra fragil dilacerada ou recoberta de restos violentos e lixos imundos.
".j ~
::
254
Chamamos descoberta, em rela~ao as minas ou jazidas, a manifesta~ao subita, depois, a extra~ao do humus vegetal ou anivel, areias finas, tufo calcario, manto mais ou menos espesso que jaz sob a areia, a pedra, 0 metal, a ser explorado, diamante, mineral. Nada parece mais humilde que a terra; quando 0 verbo quis dizer a humildade, escolheu 0 humus, 0 terri~o, essa face da paisagem que nunca vemos quando passamos ou permanecemos, absorvidos em paixoes e neg6cios. A erva, as sebes, 0 bosque, as flores 0 escondem ao mais perspicaz, e aquele que da aten~ao as coisas profundas retira-o para encontrar 0 cobre ou 0 ouro. Ele esta enterrado sob 0 fen6meno floral, funde-se no verbo, 0 real subjacente 0 elimina. Nossos maiores fil6sofos desconhecem a humildade. Ela e reencontrada pela aten~ao e tambem pela nostalgia que inspiram vidas, cegas, que passam ao lado do mundo, nosso unico bern: assim, sobrevoar a Siberia, a noite, em tempo claro, nao permite perceber luz alguma. A lucidez chega, entretanto, como se, de repente, uma porta se abrisse, como se urn nascimento passasse pelo estreito da humildade . ... No Brasil, nas altitudes de Congonhas; na Turquia, nas ruin as de Pinara; e no meio do Entre-deux-Mers ... o vinhedo banhava-se nas primeiras luzes de setembro, a gl6ria de agosto findava. Entramos nas colinas suaves como em urn outro mundo; reina urn intenso silencio; 0 ar, im6vel, traz os tons e a daridade. Duras belidas nos caem dos olhos: a espessura comum da terra se eleva, tudo sobe em dire~ao ao sol, ele inunda tudo de quietude. Nunca antes vimos azul nem verde, nunca vimos vinha, 0 visivel esta la tranqiiilo e sereno, tangivel e tacito, espiritual ou embalsamado. Os caminhos que correm ao longo das fIleiras nao VaG a parte alguma, participam do jardim como guirlandas. A terra, morena, as cepas, quentes, os cachos escuros e olorantes, os entalhes, baixos, as pedras do lugar, as arvores raras, todos esses pequenos detalhes singulares, famiIiares ou irreconhecfveis, sobem juntos, sem macula, conosco, docemente, em dire~ao ao ceu como no dia antes de nosso batismo. A paisagem, ao levitar, nossos corp os, ao nascerem, descobrem-se no lugar: obra comum de quem ve e do vinhadeiro que, h
OS CINCO SENTIDOS (Visita) I'
o sol explode em cern estrelas cintilantes atraves da brancura movedida madeira ao vento diante da janela, constela~6es louras, avermelhadas, acobreadas, douradas, palha, ocre, areia ou amarelo palido, multiplicando os raios retos, centrados, curtos, agudos e vivos como urn trilho; 0 verao dos indianos colou a paleta dos verdes: esquecidos a tilia, 0 pistache, a esmeralda, 0 celadon, ma~a, garrafa, oliva, matizes repousantes no cansa~o de agosto, a folhagem dos sic6moros entremeia-se de garan~a, carmim, cinabre, coral, escarlate e papoula do campo, tijolo e papoula encarnada, laranja, bord6, carmesin, sanguinea e rubi, as velaturas, ricas de vermelhos, grenas, purpuras ou rubros, dao ao mundo uma carne corada sob urn ceu de azul sobrenatural onde 0 vento lan~a sua transparencia laminar e seca de modo que as ramagens se contorcem diante da luz solar e a difundem em fragmentos tremulos, banho, embriaguez, furia; havera uma ideia ou palavras que valham este minuto de deslumbramento? Devolvido brutalmente as cores elementares, ana amarela do so], arvores flamejantes, perfeito azul-celeste, 0 espa~o cai numa beleza fundamentavel que esmaga, como na Grecia ou na Provence. Expulso de suas fmuras, 0 corpo, cegado, foge para 0 abstrato, pintor ou ge6metra. Inventara 0 grafismo branco e preto, 0 conceito sem cor nem forma, a consciencia ou a demonstra~ao, lan~ar-se-a aos mundos subterraneos. Filho do Midi, na velha juventude abstrata, aprendi a preferir Flandres ou 0 norte da Fran~a, os misterios dos mares brumosos, lugares onde a luz se perde sob vapores baixos e astros ausentes, plana cinzenta e vaga, textura escura dos troncos raros, mas onde, subito, 0 luar satura os artificios discretos, encanta 0 concreto local, clareira ou cozinha, nao como defini~ao seca, mas suspendendo os objetos num banho de luz de leve brilhiincia: perola rosa-cinza desmaiada ou esmeralda casta em almofada de veludo, cerejas e meloes encastoados como berilos ou jade em travessa de prata pura, longos panos de vestido em coloridos que se fundem na espessura, naturezas ditas mortas, mas em estado nascente, retratos onde 0 olhar se volta, 0 espectador submisso it lucidez de urn olho gema, tons quebrados em ocelos minim os, blau, lavanda, indigo, pastel, turquesa, pervinca, miosotis, marinho, ultramar. Poucas linguas conhecem a palavra vergonha, e preciso que matizes pudicos tragam gentilmente as coisas a existencia, ternuras aquitanianas. ~a
255
MICHEL SERRES
Ha uns vinte anos, os pescadores de alto-mar deviam apresentar it insurn conjunto completo de cartas maritimas e os instrumentos de navega~ao em born estado de funcionamento. Questao de previdencia, de seguran~a, sera que essa obrigatoriedade ainda ocorre? Ou agora, com 0 parasitismo crescendo como peste ao sol, e acompanhada de multiplas tram6ias? Urn dia, naquele tempo, esses instrumentos pareceram demasiadamente em born estado aos olhos do inspetor. As cartas virgens, bran cas, novas, magnificamente dispostas, sem uma dobra, em urn grande m6vel de gavetas, pintado, e a chave, que de inicio custaram a encontrar, precisava ser urn pouco for~ada por excesso de ferrugem. Toda a tecnica exigida desaparecia sob a pintura. Que tinha urn que de exibi~ao. A tripula~ao inteira preparara-se para os caprichos da lei, urn pouco como quem carrega 0 estandarte: pavilhao erguido. A bandeira s6 serve para isso. Voces nao usam nunca essas coisas! exclamou, rispido, 0 funcionario da fiscaliza~ao. 0 marujo perdeu sua falsa conten~ao, p6s-se a balan~ar de uma perna para outra, hesitante. 0 funcionario preferiu sorrir, queria saber e prometeu nao punir. Vamos, como fazem para encontrar Murmansk ou Terra Nova, nas duas esta~6es do bacalhau? A resposta demorou; foi preciso sen tar, abrir uma velha garrafa, dispor os cop os, distrair bastante as crian~as primeiro, urn barco de alto bordo nao se rende tao depressa. Vejamos, como fazem para ir ate la? E preciso imaginar urn campo sem postes indicadores. Que paisano haveria de se enganar para ir 11 fazenda do lado? Ele vira it esquerda no fim da moita sempre verde, segue reto ate 0 entroncamento, desce ao longo do muro de pedra e, ai, ve, no fim do barranco, 0 telhado vermelho do vizinho meio encoberto pelos cedros. Sao perguntas que nao se fazem. Aprendemos as respostas enquanto aprendemos a andar, falar ou ver. Assim iamos a Saint-Pierre: siga em dire~ao ao sol poente enquanto determinada algazinha flutua, vire urn pouco a esquerda, quando tudo fica muito azul, nao tern como errar, ha paragens preferidas pelas belugas, aquelas onde uma forte e constante corrente leva para 0 norte, aquelas onde 0 vento dominante sopra baixo, em pequenas lufadas, onde a onda passa, sempre curta, depois, 0 imenso quadrado azul, em seguida 0 local onde cruzamos a rota dos grandes cargueiros, quando os vimos, 0 primeirO banco de peixes esta la, ao vento. Sulcado, as vezes, pelas lontras. 0 capitao nao parava de falar, teria dito tudo ate noite fechada. E 0 que ele descrevia ali, 0 que via desde a adolescencia, a transforma~ao que pe~ao
.:.i ,::
256
OS CINCO SENTI DOS {Visita}
observava a medida que por ali passava. 0 que nao tinha realmente aprendido da boca de ninguem. ja que seus dois sucessivos patr6es nao balbuciavam uma palavra durante todo 0 santo dia. apenas mostravam com a mao. as vezes. na hora de virar ou de mudar de rumo. tudo isto que ele expunha de supetao. diante da mesa e da toalha de renda manchada de rum. essa superficie achamalotada do mar. essa superficie comp6sita diferenciada. assim como nossos velhos campos. por retangulos de lupulina. pequenos bosques. banhados. fileiras de vinhas sob pereiras. tudo 0 que ele descrevia com detalhes decisivos. cores. peixes. vento. ceu. batida de onda. sim. tudo isso reconstituia exatamente 0 antigo documento. uma encic\opedia submersa. como a grande catedral. Nesse dia. morria urn saber. 0 empirismo exalava 0 Ultimo suspiro. Ou~amos agora seu rumor que sobe das aguas. La onde 0 antigo sabio s6 percebia 0 mon6tono. 0 patrao via evidentemente urn corpo estriado. nublado. tigrado. mosqueado. zebrado. exatamente diferenciado. uma superficie onde ele reconhecia as regi6es locais. onde 0 ponto. a cada instante e mesmo na neblina. ja estava feito; la onde o antigo sabio nao via mais que 0 instavel. 0 patrao percebia urn espa~o que pouco mudava. Mas s6 porque urn saber nesse dia inspecionava 0 outro. controlava-o. teria 0 poder de puni-Io. de faze-Io obedecer? No mais velho diaJogo da fIlosofia modema. 0 da ramo e dos sentidos. seja qual for 0 nome que Ihe demos. a razao aborda 0 mais velho saber do mundo e 0 leva a pique. 0 dia dessas Ultimas dec\ara~6es anunciava 0 tempo da etnologia dos vencidos. Dele farao apenas urn romance da moda ou uma ciencia humana de sucesso nas cidades universitarias. onde vao pesquisar a lingua do povo entre os selvagens. Aprendemos desde a primeira infancia que a ciencia pode tomar visivel o invisivel. E. de fato. a carta maritima faz sobressair as profundezas. indica it distancia 0 rochedo escondido pelo nevoeiro. Os instrumentos vistoriados pelo fiscal fazem melhor ainda. indicam 0 lado. desenham 0 fundo do mar. calculam com rigor um ponto automaticamente. Todos nos inclinamos diante de tais performances. mas e preciso que nos inclinemos. ainda. diante do inspetor. Por que a ramo por si s6 nao basta. por que ela prefere a for~a para impor a razao? Sobretudo. como e que. em troca. ela toma invisivel 0 visivel? Esse corpo achamalotado. estavel e inconstante como urn prado na primavera. esse espa~o reconhecivel e misturado desaparecem. Sim. a superficie dos ocean os. sua paisagem se apagam e submergem.
257
'\ MICHEL SERRES
258
Aprendemos desde a prime ira infilncia que os sentidos enganam. Nao dizem os sentidos de quem. 0 inspetor nao ve nada nas altas paragens onde passam as fragatas, a razao, na superficie do mar, so percebe 0 monotono, ele, 0 patrao do barco, e que ve claro, preciso e detalhado. Os sentidos raramente enganam quando sao exercidos, a razao engana-se frequentemente quando nao seguiu 0 encadeamento. Esses prindpios, semelhantes em qualquer parte, devem julgar de maneira semelhante em toda parte. Os sentidos nao enganam. 0 palato de urn fino degustador julga mais precisamente que mil maquinas, a maquina mais fina e feita da carne de urn ser vivo, a inteligencia artificial fraqueja somente por falta de corpo, qualquer orgao de qualquer inseto ou serpente percebe misturas em escala molecular. 0 empirismo e julgado apenas cientificamente, e se nos pusessemos a julgar empiricamente 0 racionalismo? 0 questionamento que Descartes praticou nao se reduz a urn exerdcio de escola nem a uma ascese solitaria. A for~a sempre se misturou a esse enorme movimento de historia. 0 visivel se foi, evaporou-se no invisivel. Desprezamos as qualidades. Urn outro invisivel chega a nossos olhos. Ninguem mais viu 0 chamalote do mar, todo mundo procurou 0 distante, 0 profundo e os tomou sensiveis. Pode-se dizer que apagamos 0 imediato, 0 proximo. E 0 patrao do pesqueiro de bacalhau nao teve nada a dizer. 0 mar tomou-se virgem. Assim os fabricantes de cartas de navega~ao puderam dizer que descobriram a America, conseguiram que se acreditasse nisso e assumiram a gloria, enquanto cern pescadores, seguindo os caminhos tra~ados do chamalote, ja a haviam alcan~ado sem 0 proclamarem em altas vozes na historia. 0 triunfo do verbo escrito produziu uma catastrofe perceptiva. A idade da ciencia refez iconoclastas quanta aos sentidos e, por cumuio, destruiu urn saber prodigioso na vizinhan~a do percebido. Dele so conservamos ruinas, vestigios, fosseis. Hoje ja refinamos bastante 0 lado das razoes e das ciencias para afinal compreendermos a que ponto de frna sabedoria podem chegar os sentidos. Apos seculos de mapas simples, os do inspetor, ou mapas violentos que apagam a percep~ao diferencial do patrao para substitui-Ia por urn papel branco cheio de cifras esporadicas, desenhemos 0 mapa imediato daqueles que chamamos os praticos dos lugares, desenhemos a cenografia superficial dos mares: nebulosa, tigrada, mosqueada, zebrada, adamascada. Eu nunca tinha visto 0 mar antes da noite em La Rochelle, quando, depois de horas a ouvir 0 velho pescador de bacalhau, deixamos 0 espa~o
OS CINCO SENTI DOS
{Visita}
enfuma~ado
em desordem, e a toalha de renda toda salpicada de cinzas, de manchas, de respingos. Meu pais ate ha pouco tempo ainda era plantado de vinhas em ftleiras bastante espa~adas, embora proximas, para receberem entre etas, conforme 0 ano, 0 milho ou 0 trigo. Ao longo da vinha, uma ameixeira, mais frequentemente, pessegos, amarelos, brancos, uma cerejeira, alternadas, ritmavam a sequencia das cepas. 0 vinho as vezes guardava 0 sabor do pessegueiro de polpa branca e amarela, ou 0 odor das cerejas, os bois achavam sombra onde escapar do trabalho e das moscas, entao 0 boiadeiro dormia ali, deitado, 0 rosto sob 0 chapeu e as pernas cruzadas. Ha trinta ou quarenta anos, nao sei que chamada mao invisivel arrancou 0 imenso jardim, as crian~as ha muito tempo ja nao sabem como era quadrieulada a planicie do Garonne. Ela desenhava urn tapete composito e furta-cor; 0 milho as centenas de quil6metros, irrigado por jatos circulares de agua, agora lhe da ares de Middle West americano. Cern paisanos viviam ali onde ja nao passa mais que urn motorista, raro, montado em cern cavalos, que se tornou produtor, como se diz nos jornais, de materia-prima, uma uniea, de preferencia, e bruta, ainda por cima. A monocultura e a economia concorreram nas duas ultimas guerras para eliminar a classe paisana e apagar a paisagem. Receberam os mesmos golpes e agressoes que a cidade e a lingua. Os urbanistas 11 Haussmann fIzeram urn bulevar passar reto, destruindo, perto do Sena, vinte capelas goticas e dez hoteis renascentistas: a tropa avan0 e 0 canhao acerta mais. Lineu diz em uma palavra latina ou grega trezentas denomina~oes vernaculares para uma planta ou urn bieho. Vernaculo: adjetivo erudito que designa 0 popular, assim declarado nao-instruido; notamos aqui a palavra verna, escravo nascido na casa grande, ignorante, vulgar, que fala, mal, 0 patoa local da fazenda. Quando surge urn termo erudito na moda ou no us~, quem considera 0 numero de palavras, longas obras do povo e dos tempos, que ele destruiu, substituindo-as na pagina? Avenida de sentido retilineo que recobre a paisagem. Nunca dizemos que urn pais esta "despaisado": 0 que se poderia dizer praticamente da terra inteira. Como, qualifIcar, da mesma maneira, nossas linguas e nossas cidades? Entrela~amento complexo de ruelas sombrias e tortuosas; verbos ou nomes variaveis de aldeias e vilarejos, apropriados para colorirem urn atlas; ftleiras de vinhas com anota~oes mutaveis de arvores frutiferas, que formam espectro ou parti~ao: antigos empecilhos do empirismo, sabia-
259
MICHEL SERRES
mente opostos locais.
260
a paisagem do global abstrato, postos nas circunstancias
De urn canto a outro do deserto verde, 0 motorista s6 tern urn trabaIho e uma id(Ha, somente, na monocultura. Come~aram pelo mais dificil, fino, fnigil: pelos problemas de mil exigencias e cern inc6gnitas, evidentemente nao-lineares. Dez variedades de frutas, de legumes e de animais, a vinha de vinho e a latada de uva brancas, as tecnicas requeridas pelo inerte: solo e meteoros, 0 vivo: flora e fauna, 0 social: trabalhos, familias, festas e ritos, mais a ca~a, 0 amor e os cogumelos, cern ocupa~oes, mil ideias, vinte deuses, alem de ignonlncias nem sempre dominadas, as dores e as tolices: mundo misto, sarapintado, mosqueado, na cabe~a como na terra, cultura tao parecida que chega a ser confundida com os Ensaios - campos justapostos, curtos ou longos, aO sabor da sorte, como os capftulos que citam Hesiodo ou os marmeleiros, Virgilio ou as avelaneiras, vizinhan~as raras, artistas, que introduzem a variedade amarga, seca e adstringente na monotonia doce demais. A inteligencia regozija-se ao discernir a variedade, cultivemos 0 variado para que viva, ativa, a inteligencia. Tudo cintila e muda ao sol nublado no ceu voluvel de abril; Deus desaparece urn pouco atnis dos santos e dos anjos. Policultura, politeismo. Monocultura. Nada de novo sob 0 sol s6. As fIieiras interminaveis, homogeneas, expulsam ou apagam 0 chamaiote; 0 is6tropo exclui 0 inesperado; 0 agr6nomo afasta 0 agricola; umas poucas leis tomam 0 lugar dessas permutas pontilhistas feitas de pequenos toques. Em vez da cultura, reinam a quimica e a administra~ao, 0 lucro e as escritas. Urn panorama racional ou abstrato expulsa mil paisagens, em espectros combinat6rios. Diante de nossos olhos, exibidas, duas visoes da razao ou da inteligencia apresentam seu espetaculo. As dificuldades nao-lineares de mil exigencias logo desmoronam ante as longas series de trigo, de milho, todas simples e f{(ceis. 0 unico toma 0 lugar do multiplo. E a desordem pura, ante a ordem homogenea, expulsa as misturas refinadas. Entendam por esse caos a solu~ao industrial, pela agita~ao ou pelo calor. 0 motor exige da desordem molecular a ordena~ao unica do mundo visto de aviao. A facilidade, ei-Ia duas vezes: 0 rendilhado fr"-gil mantido a grande custa de discernimento e grande quantidade de homens passa, a esquerda, do variado ao unitario e, em frente, do variavel
I
~
OS CINCO SENTIDOS
{ViSi!a}
ao desordenado. Vai, duas vezes, aos limites simetricos. A paisagem, diffcil, misturada, fica entre essas margens. Serii que chegamos, hoje, a uma era terceira, em que jantaremos nas bodas do global com 0 local, sem expulsar do festim de nupcias os que foram desprezados hii pouco, conforme as normas, com os nomes de empiricos ou abstratos? Consideramos distintamente 0 segmento que vai do caos a ordem unitiiria ou monocr6mica quando atravessamos uma infinidade de multiplicidades intermediiirias. Por que opor as margens ao que elas encerram? Iii forjamos os meios, intelectuais e priiticos, de escolher tranquilamente a solu,ao oportuna, lugar, no segmento, adaptado as exigencias e necessidades. Utilizamos as vezes 0 universal, preferimos passar pela auto-estrada abstrata, pelo bulevar global e pelo conceito formal, ao longo das fIieiras homogeneas de milho que desfIiam depressa, mas tambern gostamos de flanar por caminhos vicinais tortuosos, de nos perdermos na paisagem, para compreender e saber. Por que racionais e inteligentes, eruditos e cultivados, variiiveis e sensatos nao se tornam conjunto? Em numerosos casos a paz so acontece por intermedio do Deus unico, em outros casos igualmente numerosos, os anjos sao de maior valia. Conservemos a razao monodroma na tolerilncia da paisagem, 0 pensamento naolinear tolera 0 pensamento linear, cumulo da ironia, como caso particular.
DESPAISAMENTO (GLOBAL) Quem sou eu quando 0 aviao desce lentamente em uma paisagem voluvel de nuvens turbulentas ou atraves da bruma opaca, sob 0 ciclone tropical, ante 0 blizzard onde a neve voa em horizontal, ou no meio de alguma fornalha seca, e uma voz indiferente anuncia na caixa em tres Iinguas, Atlanta, Christchurch, Xangai, Copenhague ou Dacar? Exilado, migrante, cidadao do mundo, imerso nos meteoros, quem, hoje, errante, poderia sem inquieta,ao, assim despaisado, fazer-se a pergunta cartesiana? Pequeno senhor rural, paisano portanto, militar em servi,o num lugar qualquer da A1emanha, sentado no quarto aquecido com seu fogareiro de faian,a azul, ali fechado, protegido do inverno, imovel, II procura de urn ponto fixo, perdendo pe somente quando em delirio banhado de suor, posicionado no espa,o e no tempo, no meio de sUas coordenadas,
instituto de PSicologia - UFRGS n:LI:_.I. __ _
261
MICHEL SERRES
, ,•• <
262
diante de Deus, Descartes prazerosamente faz nascer 0 verbo e 0 sujeito ejetado abaixo dessa situa~ao estavel. Morren! em viagem na Suecia. Nossas vidas instaveis sofrem tres despaisamentos pelo menos, apos a passagem por tres bifurca~oes duras. Tivemos de deixar 0 pais, 0 telhado vermelho pela ardosia preta e 0 zinco cinzento, uma Ifngua e seu sotaque pela que diz sim de outra maneira. Descartes nunca mudou de idioma, nascido no centro do frances oficial, e nunca trouxe dentro dele essa voz dupla que, sempre, faz tremular uma duvida. Depois tivemos de deixar urn pouco a Fran~a centralizada: aprendemos a amar 0 Po, 0 Spree, 0 Tamisa, da mesma forma que 0 Garonne e 0 Sena, apos tres guerras com milhoes de mortos; e, em seguida, 0 Sao Louren~o, 0 Amazonas, 0 Congo e 0 Huang. Outras linguas entram no corpo e fazem a cabe~a vibrar de modo bern diferente quando os olhos se perdem nos campos de gelo ou de arroz. Ja nao nos lembramos da perdida alegria de ser: ser aqui, estavel e constante, no meio familiar da paisagem, grupo e ocupa~ao seculares, beira de rio, cascalho, juncos, inunda~oes, banhados de agriao, salgueiros e choupos, areia movedi~a, cobras d'agua, patoas de sotaques cantantes, doces nomes proprios, usos, costumes, a delicia muda de ser eu. Duas vezes despaisados, pela mudan~a da paisagem, depois por errancia em varios paises, eternos emigrantes, ou fogo sem lar, e dolorosamente indiferente para nos, destacados des de en tao, morar na banquisa ou no Pacifico, numa ilha ou num deserto, con tanto que, de manha, sirvamos a pagina. o fogo volante, perdido, erradio, f
OS CINCO SENTIDOS
{Visita}
rela~ao fisica com 0 espa~o fora, sentado para caJcular. Logo s6 habitara os esquemas, mensagens e numeros, tudo digital. Nova humanidade sem terra, cega enfun ao que outrora chamavamos 0 real, drogada ou lucida, quem 0 din\? Nova terra, sem paisagem, ela pr6pria despaisada?
Por termos vivido e pensado intensamente tres desses despaisamentos, por termos visto cern paisagens despaisadas uma a uma, entramos, desde entao, no universal? Sera que 0 habitamos assim como nos movemos, errantes, no globo terraqueo, assim como sabemos gravar uma pagina valida para qualquer parte do mundo? Somente a matematica soube nos abastecer do universal. Ora, ela ensina, ha seculos pelo men os, que 0 global reduz-se com frequencia ao local inflado. Donde novas cautelas: quem se pretende universal esconde que ganhou a Ultima guerra, pela lingua ou pela for~a. Singular que se propaga, particular que enfuna com sua voz os canais de publicidade. A frase dita sabia do rei Salomao: nada de novo sob 0 sol canta a vit6ria de urn astro que proibia, em seu espa~o desertico, qualquer mudan~a que lhe fizesse sombra. Ora 0 sol, anazinha amarela, bern pr6xima de sua nova mortal, avizinha milhares de estrelas parecidas, diversas, estranhas ate. Auto do reisote local. A errancia faz passar de paisagem 11 paisagem, as paginas voam ao belprazer. A que alta generalidade as longas cadeias de razao, de linhas na pagina, de trigo ou de vinha na face da terra, criam, por sua vez, empeci!hos? A que raio rapido, a que mensagem fulminante, as auto-estradas, as lin has aereas, os satelites de comunica~ao, em poder de tao poucos homens, fazem oposi~ao? A que graciosa declara~ao de amor? A que leal partilha do poder? Ja haviamos conhecido urn tal abuso de domina~a:o pela ideia ou pelo nome de homem, ja fOramos devolvidos a uma singularidade proposta pelo modelo porque ela triunfara em abominaveis bata!has e porque criava, por sua vez, empecilho a qualquer outra lingua ou no~ao. Sobre tais abusos as ciencias exatas por uma unica vez dizem a mesma coisa que as humanas. Quem compreendeni 0 Huang, a angustia chinesa diante da inunda~ao e suas devasta~6es na planicie de loesse, se nao passou noites amargas, na enchente de abril, no Garonne transbordante de meter medo, quem pode falar aos bambaras, camponeses-bateleiros nos meandros do Niger, se nao conhece a comunhao do rio e da margem em sua propria paisagem de nascimento e trabalho, como os marinheiros do Sao Louren~o iriam
263
MICHEL SERRES
., (
.,""
264
reconhece-Io, mesmo que 0 degelo cause obstiiculo a sua adapta~ao ... a experiencia faz com que as localidades percorridas sejam adicionadas a urn local ja vivenciado, enquanto 0 universal passa, retendo de toda parte somente 0 universal, global tao local que esquece todos os outros lugares: gran des prindpios fechados em sua vontade de poder. 0 corpo soma lentamente os gestos necessarios para viver no Huang, no Niger ou no Sao Louren~o, mesti~a -se. 0 errante, 0 exilado, adaptado, que rodou rios e mares, dotado de tao pouca identidade que admitia chamar-se ninguem, soma em seu corpo passagens, paisagens, costumes, linguas, ele as mistura: mulato, quadrum, hibrido, oitavao ... aguas mesti~adas dos rios do mundo pulsam em suas arterias. Assim como a odienta, a mortal paixao da pertinencia, responsavel por quase todos os crimes hist6ricos, nunca foi objeto de qualquer estudo, pois mesmo os que estudam tern necessidade de pertencer a: uma seita, uma linguagem-chavao, urn partido, uma disciplina cientifica, enfim, urn grupo de pressao, para manter uma posi~ao inacessivel a qualquer critica possivel, tambem a mesti~agem corporal e 0 misto em geral continuam desconhecidos da filosofia, discurso pela separa~ao e pela pureza, fechado na odienta e mortal paixao da pertinencia. Quem sou eu? Ninguem. Quem sou eu de novo? Mesti~o, oitavao, mistura tao precisa e refinada quanto os c6digos que especificam as coisas desenhando urn espectro combinado de faixas e numeros. Os despaisamentos, ao queimarem todas as pertinencias, mas fixarem as somas em uma muito antiga experiencia local preservada, fizeram de meu corpo aparente e flutuante urn espectro longo, tigrado, rajado, nublado, chamalotado, sarapintado, matizado, adamascado, adi~ao fina de mil exercicios; meu sangue real deve poder exprimir-se por urn c6digo anitlogo. Este tecido estampado, 6 maravilha, serve de metafora ir6nica a Platao, para definir a democracia e dela zombar, no oitavo livro de sua Republica. Vma estamparia dessas nao poderia ser urn ser. Quem sou eu? Esta sarapintura nublada. Contudo alguma coisa ainda me aproxima de urn homem: gesto ou cor, rito e sorriso, maneira de nadar ou de se curvar sobre a terra, usan~as, trabalhos. Falta-nos uma grande filosofia das misturas e mesti~agens, da identidade soma ou combina~ao das alteridades: 0 discurso e a abstra~ao estao mais atrasados que 0 corpo que sabe fazer e pratica 0 que a boca nao consegue dizer. Quem sou en? 0 que quer dizer este curiosa verba para 0 despaisado, misturado, mesticizado, para 0 errante que se adapta? o que pode significar afora a mortal pertinencia?
OS CINCO SENTIDOS
{Visita}
A mosofia quando vern da mistura conecta 0 global e 0 local, irenicamente, e supoe uma outra antologia.
METODO E RODEIOl5 (GLOBAL E LOCAL) A paisagem junta lugares, pagina de paginas. 0 deserto, sem lar nem lugar, leva 0 global, nunca nada de novo aparece no espa~o homogeneo. 0 metodo atravessa 0 deserto, a paisagem incomoda 0 metodo, todo lugar constitui obstaculo. A estrada que passa pela paisagem chama-se rodeio. No lexico da ca~a, correr it randon significava exaurir 0 animal, por exemplo: perseguir a cavalo urn cervo na abalada que ele faz a partir do lugar de levantamento ate ser morto. Impetuosa, rapida, a corrida devia mudar de dire~ao freqllentemente, pois 0 animal, em saltos bruscos e irnprevisiveis, procurava despistar a matilha. No entanto, os caes, a todo momento, reconduziam ao caminho certo a musica, os cavaleiros, toda a barulheira da ca~ada a cavalo, com matilhas. Randon, em equilibrio no meio da Mancha ou do Sao Louren~o, era partilhado pelas linguas francesa e inglesa. Na primeira, randonmie acabou por significar excursao urn tanto longa e acidentada, na outra, random, em lembran~a da abalada irregular e imprevisivel da ca~a, quer dizer ao acaso. Gostaria de usar randon, num sentido pr6ximo ao de sua origem em que seria acrescido de algumas corridas it roda da sorte para a escolha da dire~ao tomada e para a extensao do trecho percorrido. Os meteoros, as mas paragens, as correntes desviantes fazem da Odisseia muitas vezes urn rodeio. Ulisses sai do melhor caminho por uma afluencia de circunstancias. Urn metodo tra~a urn percurso, urn caminho, uma via. Aonde vamos, de onde partimos e por onde passamos, questoes de teoria ou de pratica a serem colocadas para conhecer e para viver. Por que se apressar, aproveitar ou empregar 0 tempo, como prende-Io? Mas nao 0 dominamos 0 tempo todo. Vejamos de inicio algumas vias retas. A que mais depressa liberta 0 viajante medroso da floresta em que se embrenha, a que a luz sem massa e 265 IS TradUl;ao livre e intencional de randonnee (N. da T.).
MICHEL SERRES
266
fulminante segue, quer dizer, a via cartesiana. Encadeamento de e!os na cadeia, sequencia de serie de propor~oes, algebra estruturada pela rela~ao de ordem. Via reta significa toda maximizada, as regras do Metodo fazem reinar os superlativos. Em primeiro lugar, nao compreender nada alem ... do que seja apresentado a minha mente tao c1aramente e tao distintamente que eu nao tenha qualquer meio de po-Io em duvida. Em segundo, dividir cada uma das dificuldades em tantas parcelas quanto seja possivel e requerido para melhor resolve-las. Em terceiro, seguir a ordem dos mais simples aos mais compostos. Enfim, fazer em toda parte revisoes e desmembramentos tao gerais e tao inteiros que eu esteja certo de nao omitir nada. Diriamos antes uma fun~ao criterio maximizada sob imposi~oes. Leibniz nao estava errado em escarnecer de uma tal acumula~ao de aspira~oes litanicas, mas nao tinha razao, porem, em nao ver ai urn desenho cuja lei ele tentara formular. Pois amontoar assim superlativos sobre comparativos consiste em propor uma estrategia extrema. Em minimizar as imposi~oes da duvida, da dificuldade, da composi~ao, da omissao, para tra~ar a via 6tima, via leibniziana por excelencia, de maximis et minimis. Descartes, que nao gostava do infinitesimal, leva 0 minimo a nada: nenhuma ocasiao, nada omitir, se nao pode, e 6bvio, levar 0 maximo a alguma coisa. E e assim que a luz corre, para inundar metaforicamente a intui~ao de c1aridade, que ela percorre 0 melhor caminho, e e assim que 0 perdido sai do bosque, pe!a via reta, a mais curta, assim, dint Leibniz, a mundo chega It existencia, como caem os corpos. Ao melhor resultado pelos menores custos: para, seja como for, gerir seu patrimonio como born pai de familia, ganhar o maximo desembolsando 0 minimo. Economia das leis da natureza, au leis supostamente naturais da economia. A idade c1assica, ai, triunfou, nao conhecemos outra estrategia senao esta, a diretissima, tornada razao. Quer viajemos por terra, mar ou ar, quer aprendamos as matematicas, por axiomas e dedu~oes, quer aproveitemos nosso tempo ou 0 dos outros, quer entremos em conflito ou guerra, aplicamos sempre a tatica extrema, com a qual nos vangloriamos de otimizar nossas praticas. A razao, a eficacia, 0 investimento, a violencia jazem juntas sob essa lei da economia, entendo por economia essa re!a~ao estrategica extremum-optimum. Ela se torna nossa norma: quando a moral e transferida para 0 conhecimento, para a conjunto c1assico das vias de nosso radona! e de nossas direituras. De uma certa maneira, reduzimos 0 mais possive! a zero toda perturba~ao, toda f1utua~ao que nos afastem pouco au muito deste caminha que 0 conjunto de nossa cultura nos fez ver como necessario.
OS CINCO SENTI DOS
{Visita}
Eis 0 talvegue de nossa cultura racionalista. Mas somos tam bern herdeiros de vias nao econ6micas, que nao se preocupam com esse equilibrio extremado. Podemos supor que Ulisses fosse urn cartesiano antes do tempo. Que a partir do aprestamento do barco, uma vez Troia conquistada, destruida, saqueada, ele tivesse pensado no caminho mais curto para ltaca, seu rec6ndito desejo, que tivesse decidido, projetado a navega<;ao de retorno. Ela nao deveria, com certeza, seguir a linha reta, mil circunstancias impediam, atravessavam esse tra<;ado. Mas 0 marinheiro habil, que tam bern era, devia otimizar 0 percurso: aqui, seguir por uma certa costa, evitar entao certas paragens, aproveitar, hi urn certo vento regular, embocar urn estreito acohi, ancorar tranqiiilamente mais ao longe no momento certo, e assim por diante, usar de asttlcia com as adversidades. Donde uma rota sinuosa, claro, em que os obstaculos definem as voltas, mas uma rota escolhida por astucia entre os possiveis contornos. E, no entanto, nao. Eis que a Odisstiia desenha caminhos fora dessa ordem, vias de desperdicio. 0 barco aproxima-se de Penelope e afasta-se mais ainda, entra na boa rota e dela muito freqiientemente se afasta. A curva festonada de sua navega<;ao escapa it via normal. E assim que ela descobre terras desconhecidas, e assim que inventa quando a astucia fracassa. o metodo tra<;a bern urn percurso, caminho atraves de urn espa<;o. Sabe de onde parte e aonde vai. Entre essas duas situa<;6es, 0 tra<;ado metodico passa pelo meio e nao escapa as defini<;6es extremas, sob exig~n cias, bern entendido. Mas, 0 caminho da odisseia nunca ou, pelo menos raramente, apresenta-se metodico, no sentido que a filosofia plat6nica canonizou antes da idade chissica, onde a dicotomia passa justamente pelo meio, onde a articula<;ao procura a economia. Nao se pode dizer que 0 caminho da odisseia seja metodo, mas exodo. Exodo no sentido do caminho que se afasta do caminho, em que a via ganha 0 exterior da via. Onde o tra<;ado tornado e seguido, local mente, se nao escolhido, e exce<;ao a norma da escolha. 0 ~xodo mosaico marca urn exterior diferente: Moises sai do Egito com seu povo; sujeito as adversidades do deserto, ele nunca chega aTerra prometida. De sorte que 0 proprio caminho, qualquer caminho, fica fora de sua partida e fora da chegada: aberto avizinhan<;a de seus termos. Ulisses parte em exodo de outra maneira, deixa Troia e volta a ltaca onde entra, onde retoma seus direitos de realeza, onde ele fecha 0 drculo. 0 exodo, os afastamentos, nao contam nos locais de estabilidade, mas no pr6prio caminho. Quando tiverem urn metodo, entao dirao: 0
267
MICHEL SERRES
percurso do metodo. redundancia. Mas. quando se trata de urn exodo. podem dizer: discurso do exodo. equivalencia. 0 discurso cria afastamento ern rela~ao ao percurso. assim como 0 exodo se distancia do meio. do equilibrio. do extremo met6dico. Ulisses portanto se submete as flutua~6es: as do mar e do vento. flutua~6es de fluxos. Balan~o na bonan~a. nos tornados. nos redemoinhos de Caribde e de Cila. Fora do caminho normal. ele se imobiliza. na calmaria. ou preso por outras estabilidades. Como se existisse 0 estavel desviado ern rela~ao a via normal. ela mesma estavel e bern definida ern seu curso. Como se urn rio afastado de seu leito habitual encontrasse uma planicie onde formaria urn lago. onde permaneceria por urn certo tempo antes de retomar sua queda previsivel. Como se existisse uma ordem fora de ordem. ou equilibrios originais ou singulares fora da rota-centro equilibrada. Atratores estranhos 16 . Como se existissem tipos de ordem imprevisiveis ern rela~ao it lei normal. de equilibrio. i\ lei ordinaria da ordem. Como se a flutua~ao ao acaso. tempestades inesperadas ou arrebenta~6es de ondas estocasticamente lan~adas no espa~o do mar alto. levasse de repente a (it forma~ao de) uma localidade temporariamente estavel. uma i1ha onde nasce urn outro tempo. local. esquecido do antigo. do comum. esquecido do tempo do percurso. Afastadas ern rela~ao i\ via met6dica. essas i1has formam ordem por flutua~ao. uma outra ordem que bern podemos chamar ex6dica. Como voces nunca as encontrarao no percurso do metodo. elas ficam fora dos equilibrios globais do epistemico. ex6dicas. ex6ticas. erg6dicas. 0 metodo minimiza. anula as circunstancias; 0 exodo mergulha na desordem delas. Ia nao conto. para nosso divertimento. a hist6ria de urn velhinho. pior. de urn velhinho cego. Sustento urn discurso cientifico, urn discurso ern ruptura de epistemologia. urn discurso cientifico nao epistemol6gico; ele rompe corn dois milenios de metodo. Ou antes. esse velho diz-que-diz esta saturado de urn saber diferente e prodigioso. Novo. Nao urn diz-que-
< '. ':,.
. '
16 No original, attractellrs etranges; no Diccionnaire des sciences, dir. Michel Serres, ed. Flamarion, Paris, encontrei a explica~ao que traduzo aqui: "0 carater ca6tico de urn sistema dinamico nao torna impossiveis tadas as previsoes. Ainda podemos dassificar comportamentos
ao infinito (limites. 6rbitas peri6dicas), que chamamos de atratores estranhos, e, eventualmen-
268
te, atribuir-lhes probabilidades. [... ] Por exemplo: ainda que 0 movimento de urn dado seJa muito sensivei as condi~6es do lance, portanto, imprevisivel, sabemos que. ao infinito (e mesmo desde que ele se estabiliza), essas posi~6es sao os seis atratores estranhos do sistema. Podemos atribuir uma probabilidade 1/6 a cada urn deles." (N. da T.)
OS CINCO SENTI DOS
{Visita}
diz e nao uma hist6ria, mas 0 discurso de exodo que procuro e, muito exatamente, 0 divertimento, a via da diversao do muito astucioso Ulisses que guardava em seu saco 0 conjunto das voltas e viravoltas da nova ciencia, a teoria do conhecimento cego, ou da evidencia nao-visivel, dessas evidencias escondidas por varios seculos de metodo inutil. Inutil em vista do novo. Ulisses tem uma rela,ao interessante com os atratores estranhos distribuidos em seu pseudocaminho. Ele procura evitar as sedu,oes sonoras das Sereias, teme os vacuos turbilhonantes de Caribde e de Cila; passa ao largo e, por uma vez, procura a linha reta. Mas se atira, e atirado aos pes de Nausicaa, jovem com a bola. Sedutor, dizem, e astucioso, com certeza, Ulisses nunca passa de seduzido ou indefinidamente sedutivel, por Circe ou outras que tais, seduzido quer dizer conduzido para fora de sua via, fora do caminho reto, normal ou da ordem. E porque sabe disso, as vezes ele tapa as orelhas. Porque sabe que, na bifurca,ao, e atraido para a ma ramifica,ao da forquilha, fascinado por ela, extraviado. Conta-se que Hercules sempre escolheu a boa ramifica,ao, a virtude e nao 0 vicio. De on de decorre que 0 vicio tem a cara de Ulisses ou da astucia, e que a virtude tem a da for,a. Hercules, deus classico virtuoso, potente, forte, her6ico, otimiza suas vias, como fazem nossas ciencias, nossas praticas e morais. E quando se permite desviar um rio de seu curso normal, ele 0 faz por um bom motivo, lavar 0 esterco amontoado nas estrebarias sujas. Sempre a melhor estrategia, invariavelmente vencedor. Mas, que eu saiba, ele mata: mata 0 leao, mata a hidra, mata 0 javali, 0 touro, os passaros. Mata 0 vivo e morre na fogueira, no meio da dupla chama, da lenha, de sua tunica envenenada. Hercules tem sempre 0 metodo, e a boa, a melhor estrategia, a boa escolha diante da bifurca,ao, perfeito militar: portanto, 0 mais forte, 0 que tem sempre razao; ele ganha, vence, mata, metodo otimizado da violencia maxima, caminho do equilibrio em dire,ao a morte. Suponho, ao contrario, Ulisses a retardar sua volta a ttaca onde 0 espera a carnificina mortal ao lado do leito conjugal, e a retarda-Ia por escolher, nolens volens, na bifurca,ao, uma via diferente da via 6tima, descobrindo outras estabilidades que nao 0 equilibrio gera!. 0 saber tripudia com a morte, seu hodo forma um conjunto de anabases: deixar a costa, evitar 0 talvegue, retornar em rela,ao ao irreversivel, afastar-se 0 tanto quanto possivel da via mais curta. Portanto, nao reduzir a zero 0 efeito das flutua,oes. A vida tem confian,a no acaso que, por sua vez, repugna a razao. Discurso de exodo, a Odisseia, narrativa, torna-se entao uma enciclo-
269
MICHEL SERRES
270
pedia do saber. Ali as crian~as gregas aprendiam sua cultura e suas tecnicas, da cozinha ao conserto das naus, sua hist6ria, mitos e geografia. As crian~as gregas: Platao, Teodoro e Eud6xio meninos. Liam ali a dinamica inventiva da anabase. Nao, como acreditamos, uma ciencia arcaica e selvagem, mas urn saber muito refinado que come~amos a conceber. Nao urn metodo pela via mais curta, mas urn caminho longo, contornado, rendilhado, sarapintado. Por ai, eles se preparavam para demonstrar a racionalidade do irracional, por exemplo, ou para cartografar as terras desconhecidas. Lamento, tao logo digo, 0 termo enciciopedia, que os gregos, justamente, pouco formaram. Se 0 saber desenha urn cicio encerrado em urn circulo, se a pedagogia fecha urn cicio dos cicios, os gregos deveriam ternos dito, se 0 tivessem pensado por urn momento, eles para quem 0 circu10 representava justamente 0 6timo. Pois nao nos disseram. E nao 0 disseram pela virtude do exodo homerico. 0 esquema enciciopedico convem, quanto a este ponto, ao tra~ado dos metodos. Que corre pela via mais curta assim como 0 cicio, ou 0 circulo, extremo, que fecha a maior superfide pela menor curva. 0 estoque, 0 capital ou a acumula~ao do saber seguem as mesmas leis de seu funcionamento, as mesmas leis econ6micas. Neste sentido, toda endciopedia permanece met6dica, ai esUio as duas no~oes maxim as. 0 exodo primeiro do saber grego assume urn discurso nao-econ6mico, percorre vias longas, vias interessantes, tanto quanto 0 interesse supoe urn intervalo, uma distancia, urn afastamento que nao se reduz ao ponto zero, umas interse,oes, umas interferencias. Ai 0 saber se dispersa e se distribui, mas nao se integra em uma totalidade, nao concebido sob figura 6tima. Sempre em afastamento de si mesmo. Desde que 0 saber se reduz ao metodo e 11 enciciopedia, a reta e ao drculo, ei-Io imediatamente dominado pela redundancia: em grau e como norma, repetitivo. Atrai as leis locais dos rendimentos decrescentes. A OdiSSf!ia portanto nao desenha uma enciciopedia, mas uma escalenopedia. Escaleno, como se diz urn triangulo escaleno, nao is6sceles, nao retangulo, nao equilatero, nao equilibrado em canto algum, escaleno significa capenga como Hefaisto, inventor e marido de Afrodite, capenga como certos parentes de Edipo, ou quem sofre dos pes que nem ele; escaleno des creve urn caminho obliquo, tortuoso, compIicado, barroco, exatamente como na epoca em que foi concebida, mas nao realizada, a enciciopedia. Ulisses toma rotas escalenas e assim descobre e inventa rotas de "grecidade", as da cultura nao redundante. Das culturas de hist6ria. A hist6ria nao reciciada, nao recic1avel em urn modelo equilibrado ou preconcebido, em urn modelo nos dois senti-
r \ 1
s, 1-
I,
OS CINCO SENTI DOS {Visita}
dos da palavra, e te6rico e 6timo. 0 exodo diz antes de tudo palavras de uma hist6ria. Ha culturas em que ela forma urn cenario que repete uma legisla<;ao, uma estrutura, presentes em sua evidencia ou enfurnadas e para virem a tona, urn cenario padronizado, percurso met6dico. Come<;amos a aprender a construi-los, esquemas desse tipo nao nos faltam mais. Vieram uma ou duas culturas em que a hist6ria se livrou desse equiHbrio e pos-se a flutuar fora dos ciclos, a bifurcar fora dos esquemas repetitivos, a se deixar levar por caminhos escalenos. Ulisses, navegando ao sabor da sorte, deixa os saberes hermeticos e as hist6rias moldadas em estruturas, inventa 0 saber inventivo e a hist6ria aberta, novo tempo. Os pequenos mares exigem outros marinheiros que nao os dos grandes oceanos. Obrigam Ulisses a uma manuten<;ao e uma habilidade de manobra que 0 almirante Crist6vao Colombo, astronomo, ignora. A Odisseia, ensina urn saber que 0 da Renascen<;a, ao largar das Colunas de Hercules sob 0 emblema da caravela, despreza e esquece. o Concorde, atravessa a agua em duas horas; do Cabo Canaveral ou de Kouru, os foguetes desprendem-se da gravidade terrestre rumo ao espa<;o, a Lua ou a Venus. Vemos urn outro espa<;o, atraves do vidro de qualquer veiculo. Mudaremos de saber? A vaga atlantica alonga-se para manter qualquer nave em seu comprimento de onda; por mais altas e encapeladas que se apresentem as vagas, elas abrem espa<;o para que 0 barco ou 0 transatlantico, 0 porta-avioes ou a fragata, 0 cargueiro caiam e afundem numa especie de ber<;o. Feroz, 0 oceano permanece manipulavel. Os mares estreitos de onda curta, da Irlanda, Egeu, Iroise deixam qualquer nave de qualquer tamanho, caique ou de cabotagem, no perigo atroz de quebrar: a quilha raspa montes de calhaus de pontas serradas. 0 elemento de espa<;o muda, os vaos ja nao estao limitados pelos mesmos muros. o rodeio de Odisseu com terras a vista nao requer a mesma for<;a ou paciencia, nem os mesmos talentos que a rota das !ndias ou a da aventura americana. Para longas jornadas em amplidoes imensas entre ondas muito gran des, a marcha reta ainda e exigida e possivel. Ulisses tenta e cede, for<;a e desiste, singra de urn cabo ao abrigo do vento para uma angra, da conta de cern contra tempos, precisa astuciar. Se seguir reto, vai naufragar. Ainda no inicio do seculo XIX, Chateaubriand, partindo do Egito, levou meses para chegar a Tunisia, espumando de raiva contra seu patrao; desviou-se
271
MICHEL SERRES
.,
272
dez vezes e procurou vinte refUgios. Ha trinta anos, nas mesmas paragens, apesar dos milhares de cavalos, meu navio, desamparado, desviou-se tambern. Visto de aviao, 0 oceano parece simples, sulcado, riscado, de grandes tra~os; 0 !roise ou 0 Mar Egeu, com forte vento de travessia, parecem nebulosos, tigrados, localmente ocelados, revoltos, alguma mistura terrivel. Ulisses embarca nesse corpo misturado de mil variaveis, Colombo tra~a a rota segundo a simplicidade do mar alto: longa serie de razoes faceis, mil pequenos desvios de dificeis manobras. Quando urn contra tempo ou variavel supera todos os demais a tal ponto que estes podem ser considerados negligenciaveis, desenha-se uma linha reta ou curva simples e tudo se esclarece. Retirem todas as coisas para ver somente uma; 0 que e negligenciado vira detalhe. Podemos, ao contrario, dever ou querer levar em conta cern contratempos, pode acontecer que seu lio prenda ou ate: a malha de lios que correm em milltiplos sentidos representa urn lugar de mar atado por onda, uma turbulencia de ventos cruzados, uma celula circunstancial de dimensoes iguais; nessa singularidade, Ulisses perde a cabe~a linear. Te-Ia-ia tido algum dial Descartes ou Bacon nos deram uma, depois de Colombo, hoje a perdemos. au antes, sem perde-Ia ganhamos uma segunda que nos faz voltar a Ulisses, sem menosprezo. Consideramos a cabe~a linear urn tanto rigida e grosseira, elicaz e Mirna ate recentemente, agora, urn pouco passada. Ulisses, do remo ou da enxada, paisano ou marinheiro, pratica uma engenhosidade nao linear ante a exigencia dos cem contratempos; a inteligen cia dos multiplos desvios, habilidade de manobras, inven~ao rapida e viva de expedientes adaptados as circunstancias que a ela acorrem aos montes e borbotOes, nasce do Mar Egeu e de outros mares continentais, ou da paisagem agraria de parcelas singulares, conjuntos de celulas ou marchetaria de lugares modelados pela brisa que salta bruscamente de urn leito a outro qualquer, pelas correntes caprichosas, pelos recifes espalhados por toda parte, pelas sereias e pelos meteoros. Esses monstros governam as para gens como as hamadriades as arvores. As circunstancias fazem os lugares; exigem uma inteligencia que habite os lugares e os povoe de deuses que presidem as circunstancias. A necessidade do paisano e do marinheiro antigos - por Antiguidade, entenda-se a idade durante a qual a humanidade tirou substancia de urn tal conjunto de celulas nao standard, idade que, em certas regiOes da Europa, term ina depois da Segunda Guerra Mundial e pode subsistir
OS CINCO sENTIDOs
(Visita}
ainda hoje em outros lugares - a necessidade mUitipla, nao maci~a, local, nao global, varhlvel, imposta por uma mistura de leis correntes e golpes da sorte, e parecido a ponto de se confundir com 0 carater estranho das mulheres ou a conduta social de certas cidades: humor dos meteoros, teimosias dos tiranos, extravagancias politicas... As balas, os bosques, as grutas e praias sao submetidas a caprichos fiutuantes e sarapintados de herolnas adoraveis e temidas. A paisagem mostra a me sma complexidade da famosa passagem do Noroeste, e pelas mesmas raziies: a natureza e a cultura apresentam a mesma estrutura. E preciso usar de artimanha com a corrente como com uma mulher, evitar a rajada de vento tanto quanto a reprova~ao do rei, tornar-se multiplo diante da hidra da multidao ou do furacao, ou ser ninguem para melhor resistir ao destino. Vma vez que tern mil caras ou variaveis, ela pode surgir sob a mascara de uma deusa, de uma lei, natural ou poHtica, de uma tempera, 0 essencial fica sendo a multiplicidade, nao a aparencia. Multiplos desvios no caminho, inumeras apari~iies avista, lugares incontaveis na terra e no mar, mil artiflcios da astucia. A domina~ao ciassica do mundo e das coisas escolheu urn unico contratempo ou variavel e da os outros por nulos. A vontade mantem 0 cabo, atravessa 0 oceano pela loxodromia ou pelo arco de grande circulo, ou pela fioresta em linha reta, nada distingue 0 local do global. A idade das grandes viagens supiie uma dissolu~ao da paisagem, 0 surgimento de imensos mapas, 0 obstinado desprezo pela circunstancia, 0 monotelsmo e a supremacia da vontade sobre a inteligencia. Sabio, marinheiro, ftl6sofo ou viajante ganham a cabe~a linear e confundem-na com a razao. Bela conquista, grandes vit6rias: a necessidade nao-linear, inesperada, irreconhedvel, de cern caras e mil contornos, cai no esquecimento com a inteligencia correspondente e a paisagem antiga e politelsta. E preciso dizer que no AtHintico, na temporada dos alisios, qualquer urn, em doze metros de tabua, vento por tras, passa ao Oeste sem esfor~o nem risco de confundir o regime estavel de uma unica variante com sua domina~ao e possessao de uma natureza lisa. Mais louvaremos sua decisao e obstina~ao que sua adaptabilidade. Esta~ao de retorno. Quem, durante a Antiguidade, haveria de acreditar na existencia de uma lei universal, se nenhuma oliveira verga-se da mesma maneira que outra e nenhuma lufada de vento e igual a da vespera? Antes de imaginar uma tal possibilidade, Platao precisa conceber urn espa~o liso, sem cor, invislvel e insensivel. Antes de se converter a essa existencia, 0 povo hebreu percorre 0 deserto, espa~o nao variado, is6tropo e homogeneo. As mate-
273
MICHEL SERRES
" .',
,.I;
:: .~
, '
:
"
274
maticas nascem a sombra das piramides, unico sol que marca com 0 tra,o da morte ou de outro mundo a areia unida. A intui,ao obriga-se aver sem acidentes. Ainda urn Deus unico realiza 0 renascimento da ciencia. o olho ve a paisagem ou 0 espa,o: percebe urn e esquece 0 outro. A cartografia antiga exprime 0 perigo da viagem, a multiplicidade de obstaculos, a dificuldade de ver globalmente que se esta imerso em uma paisagem variada. A floresta cartesiana, ao contrario, vira urn conjunto cujo curso direto do passante abandona as especies e variedades: ja nao se inclinara ante 0 ramo de ouro. Nao hidrogafamos cada onda. Atravessar a fronteira do local, 0 limite ou a catastrofe da clareira onde todo 0 grupo se acredita fechado, as vezes requer seculos, alguns genios e as chamadas crises da hist6ria. As coisas que chamamos de entendimento e sensibilidade, razao mesmo, compartimentos secretos no sujeito do conhecer cuja existencia e cujo lugar ninguem nunca demonstrou nem localizou, onde os manuais e os tratados relatam que ocorrem opera,oes que mudam 0 detalhe em sintese ou nas obras da subsun,ao, nao se reduziriam simplesmente a camadas ou estratos de mem6ria, a monumentos de culturas passadas ou perdidas pela hist6ria? Podemos ver 0 Atlantico com 0 olhar que da 0 ponto no sextante ou com 0 olho meticuloso do velho homem do mar, em ambos os casos, nada determina que nos digam empiricos ou abstratos. Nossa longa cegueira para ler bern a rajada quando impressa na pagina marinha vern de uma falha em conceber a turbulencia fractal ou de uma insensibilidade para receber os pequenos tapas sequenciados nas grandes borrascas de granizo? Ha muito tempo dizemos que a visilo molda 0 conhecimento e todas as linguas ainda dizem 0 mesmo, e se ela guardasse suas lembran,as e seus esquecimentos? Entramos em urn terceiro estado que desestabiliza os outros dois: a paisagem pode passar por urn modele abstrato, formal pelo mesmo motivo que 0 do espa,o uniforme da geometria ou da mecanica classicas, cuja abstra,ao nos parece bastante apressada e grosseira e, sobretudo, cujas virtudes concretas e praticas nos escapam. Euclides vern do lade do pedreiro, e Langrange com 0 engenheiro. A visao local e singular nao surge como urn detalhe acidental a ser afastado, a visao global sozinha nao faz a lei. ja nao compreendemos por que a primeira pertence a ordem do sensivel, 0 abstrato tern sua finura, por oposi,ao a outra, situada do lade do entendimento, do concreto e sua geometria. Ambas passam a nossos olhos por visoes tao concretas ou abstratas quanta os dados podem vir a se-lo. A dis-
as CINCO SENTIDOS
{Visita}
tribui~ao
das multiplicidades, digitais, homogeneas ou diversas, predomina sobre a distin~ao entre 0 sentido e 0 concebido ou tende a apaga-la, fazendo crer a todos que tudo se passa no nivel da linguagem. Quando damos a volta ao mundo em algumas horas, e alcan~amos certos astros mais depressa do que, M cern anos, as ilhas, pensamos que uma viagem detalhada em torno de uma horta pode nos reservar outras tantas informa~iies surpreendentes. Quando 0 universo se amplia, volta a paisagem. Equilibramos melhor 0 mundo e 0 lugar, quando a antigtiidade ou 0 que assim chamamos, sufocada de local, nao podia chegar ao global e quando a idade moderna desprezava facilmente qualquer obstru~ao local as leis globais. De repente, reequilibramos 0 que nossos predecessores denominavam empirico e abstrato, 0 sensivel e 0 intelectual, os dados ou a sintese. Sem duvida sera preciso redefinir 0 abstrato enquanto tal, distinguindo-o cuidadosamente do homologo todo liso. De resto, toda grande mudan~a de saber ou de intui~ao, de rela~ao com 0 mundo, corresponde a uma crise do conceito ou da realidade da necessidade, velha comparsa temivel de nossas lutas milenares. Ela ja nao nos esmaga com suas leis universais nem com seu mUltiplos golpes, inesperados ou previsiveis. Abandonou a batalha desde os anos cinqilenta, em pleno meado do seculo 20, e 0 combate cessou sem que 0 soubessemos realmente. Muitos ainda dao socos no vazio e armam-se ate os dentes para a Ultima guerra. Esta nao acontecera mais. Sim, n6s ganhamos. Nao abusemos da vit6ria. 0 velho imperativo de dominar 0 mundo volta-se agora como em feedback para nossa domina~ao definitivamente conquistada. Transformamos as coisas, devemos compreende-las, ou antes: compreendemos as coisas para possui-las ou transforma-la a nossa vontade, devemos compreende-las para protege-las. Passar pela floresta sem considerar as arvores, sem ver 0 que fazemos as arvores com a opera~ao de passar, parece-nos, hoje, incultura e grosseria. Reencontramos 0 local pela necessidade que fazemos pesar sobre ele. Nossa antiga adversidade mudou de campo: reside em nossas politicas. Temos de regular as leis de nossas vontades coletivas tornadas tao globais e incompreensiveis como, outrora, as leis do mundo. Por tudo isso reconsideramos com outros olhos Ulisses e Colombo, 0 antigo e 0 moderno, os pais do terceiro estado tao novo.
275
MICHEL SERRES
Ulisses devia ter mil truques na mochila, para 0 imprevisto e a improquem nao tern previsao deve contentar-se com a previdencia. A previsao supoe a visao de urn espa~o global, homogeneo, onde a lei e tra~ada; a previdencia requer a paisagem, a intui~ao de urn espa~o historiado de celulas circunstanciais, conjunto de localidades; 0 previdente nao sabe o que a celula vizinha Ihe reserva amanha, donde essa bagagem de cern truques, nas costas ou dentro da cabe~a. Ora, a circunstancia faz com que Ihe falte urn truque, 0 acontecimento apanha Ulisses desprevenido, pois essa conjuntura mais rara deixa-o despreparado, desamparado. Ele sai da rota? Nao, seria preciso que tivesse essa rota tra~ada como a lei no espa~o global e liso, linha reta na floresta ou loxodromia atraves do oceano. Nao, Ulisses acrescenta came ou cordao e al~a it sua rota que contani como novo truque em sua mochila e desenhanl uma nova circunstancia na paisa gem. o itinenirio e festonado de tantas guinadas quanto as voltas que 0 marinheiro consegue dar no cabo da sua mochila, as artimanhas que guarda na mem6ria, os lugares inesperados que enriquecem 0 espa~o, os deuses que pululam no panteao, tantas quanta 0 relato se ramifica em epis6dios. 0 adjetivo polimecanicista serve de titulo it circunavega~ao ou a qualidade da inteligencia, ou a fluencia do poema: a visiio de urn espa~o e sua fabrica~ao. No balan~o da vida, Ulisses ganha e perde, oportunidades arriscadas, nem todas arriscaveis, no caso a caso, na bifurca~ao eventual, lance de dados na encruzilhada. Guirlandas e espinhos: paisagem. Desvios e bifurca~oes: limites e apices de celulas de circunstancias. Ulisses segue exatamente as geodesicas de seu espa~o, de seu lugar paisagistico, assim se desenha sua cabe~a, nao-linear. Assim se reencontram os deuses. Bacon, Descartes, Colombo deixam 0 saco de artimanhas, nada de astucia nem de artificio. A razao abandona a inteligencia pela vontade. 0 Mediterraneo, culturas e povos nao-lineares, da lugar ao Atlantico novo e it Iinearidade. 0 metodo passa pela floresta considerando nulas as arvores; atravessa 0 grande mar. Assim lavra 0 agricultor para matar todas as plantas ou raizes e estimular a cultura de uma unica rea~ao do campo que a faz reinar absoluta; despreza como sendo selvagem 0 homem das matas, conhecedor de arvores e de cip6s, cada lugar e cada tern po que possam estar situados na floresta sem estrada nem bussola, por referencias tiio eruditas que se tornam instintivas. Sair da mata pelo caminho reto sem ver nada e 0 mesmo que se Iivrar da selvage ria. Essas duas rela~6es com os lugares e 0 espa~o marcam ainda hoje a distancia entre urn homem de visa~ao;
276
1
OS CINCO SENTIDOS
{Visita}
den cia e aquele que chamamos, por desprezo, literato ou poeta, selvagem, distancia entre a paisagem e 0 panorama. Desenhemos urn rodeio de mil voltas e conexoes, politropo, polimecanicista, 0 saco de artimanhas de Ulisses. Ele se parece com urn labirinto, como se 0 her6i, cretense, tivesse tra~ado no mar 0 dedalo da terra. 0 metodo dire to, impaciente com as lonjuras, atravessa e sacode esse las:o emaranhado seguindo seu 6timo ou maximo. 0 rodeio cai em dessuetude, adaptativo ou empirico e 0 metoda se diz voluntario e abstrato: urn na direitura, 0 outro, torto e reverso. Com que direito preestabelecemos em urn unico lado do corpo aqueIe que vai mais rapido. Em nome de que valores selvagens e enterrados condenamos 0 variavel e conexo como esquerdo e 0 sentido constante como direito? Este, mal nomeado, nunca vira 11 mao direita. Mas 0 rodeio nos parece agora semelhante a urn chip de portas e passagens ou a urn dos circuitos integrados que hoje fabricamos para otimizar nossos calculos e estrategias formais. A nova industria, cartesiana e claro, mas tambem odisseica, reune pratica e abstras:ao no que 0 computador pode ser dito instrumento universal: instrumento construido e concreto ao alcance da mao, mas de aplica~ao aberta e indefinida como urn teorema. 0 termo circuito substituira em nosso paraiso met6dico a palavra reta? Mas 0 rodeio parece ainda com essas curvas que pass am por todos os pontos do plano - universais? - onde cada curv~ concebivel pode ser definida como urn recorte local. Introduzam ai alguns lances ao acaso, 0 termo rodeio sera mais justificado ainda. Desenhemos urn percurso interessante que sai de seu talvegue 6timo e poe-se a explorar urn lugar: nao resolve de maneira previsivel, mas procura; parece vagar; nao por determina~ao ou convic~ao pr6pria, mas predsamente inquieto, fora de seu equilibrio e sem repouso; em busca, 11 espreita, bate toda a extensao, sonda, prospecta, reconhece, vagueia, pula daqui para ali; pouca coisa no espa~o escapa a sua varredura; quem segue ou inventa esse percurso, corre risco de perder tudo ou inventar; se descobrir, diremos que sua rota deixou 0 talvegue por atratores estranhos. Se encontrarem urn metodo fecundo, sigam direto por urn momento. Ele produz. Perceberao logo a classe de questoes que ele resolve. Parem, pois estao caminhando para 0 tMio: rigidez, velhice e asneira, rapidamenteo Sem falar que a repeti~ao e os frutos, que recuperam a funs:ao can6nica, fazem- na parecer ao que ja conhecemos: dinheiro, poder, saber, coisas
277
MICHEL SERRES
}a feitas. Mortas, imitaveis, desejaveis. Contudo, a ideia, maravilhosa, no inicio, prometia vida. Caiam fora. Guardem 0 metodo ou os metodos reconhecidos como seguros, para caso de doen,a, miseria, cansa,o, partam novamente em rodeio. Explorem 0 espa,o, mosca que voa, cervo acuado, viandante sempre expulso do caminho natural pelos caes de guarda que rosnam ao redor dos lugares confortaveis. Vejam seus pr6prios eletroencefalogramas que pulam em todos os sentidos e varrem a pagina. Divaguem como urn pensamento. Fa,am 0 olho brilhar em todas as dire,5es, improvisem. Com a improvisa,ao, a vista se surpreende. Considerem a inquieta,ao uma ventura, a seguran,a, uma pobreza. Deixem 0 equilibrio, 0 vazio do trilhado, percorram as baias de onde voam as aves. Perfeita expressao popular: virem-se. SupGe urn emaranhado confuso, alguma desordem e essa confian,a vital no acontecimento descoberto de improviso que caracteriza os ingenuos, solitarios, amorosos ou estetas, em plena saude. Essa higiene de busca nos distingue das maquinas enos aproxima do que 0 corpo sabe fazer. Mais que a mente, 0 corpo nos afasta do artificio. o metodo descansa no domingo; 0 rodeio, todos os dias, salva a vida. Se voces tern necessidade de vit6ria, de lugar previsto, de batalhas, bancos ou institui,5es, sigam pelo metodo. 0 rodeio fica para 0 tempo e a inteligen cia, a saude do pensamento, liberdade, paz: cria,ao de lugares imprevistos. Mas percorram os dois, nao condenem nenhum; 0 amante de paisagens as vezes precisa da auto-estrada. Abandonem portanto 0 pensamento selvagem que privilegiava, indevidamente, 0 lado direito. Orientar-se no pensamento nao deixa escolha senao a de virar a leste.
I
I
'"" ~f,
278
I
Mesmo as naves espaciais nao seguem uma via simples, nem direta, mon6tona, cartesiana. Elas nao vao em dire,ao it Lua, a Marte, a Venus ou ao cometa de Halley pelas vias do metoda mais nipido, como 0 extraviado que se apressa a escapar da fioresta, direto em frente, em rumo con stante. Vma bateria de computadores vigia sem cessar, controla, retifica em tempo real sua dire,ao, de sorte que elas desenham urn percurso bastante quebrado no detalhe. Se conservassem sempre 0 mesmo rumo, divergiriam, perder-se-iam no meio do astros. 0 dialogo dos computadores, em terra e em voo, deixa nos arquivos extensas tabuas de numeros. Lembrem-se de Julio Verne. 0 velhinho sonhador engana-se muito pouco, afinal. Chega aos minimos detalhes do empreendimento, situa
_ --1
OS CINCO SENTIDOS {Visi!a}
bern 0 ponto de partida, preve a amerissagem de chegada; ingenuo talvez, ridiculo nunca; a analise social, comica, ainda e verdadeira, no entanto: 0 projeto astronautico e pesado demais para que 0 entreguemos apenas a militares; 0 Gun Club de Baltimore parece urn circulo de velhos matadores. Julio Verne errou em urn ponto, quanta it linha reta, sublinhemos seu erro, canonico e memonivel. A Columbiad, dedicada a Cristovao Colombo, monstruosa bombarda enfiada na terra como urn po~o, carregada de toneladas de algodao-p6Ivora, atira em linha direta, direta no sistema, direta na imagem, perde 0 real. As naves de hoje em dia atingem a meta em frequentes bifurca~oes. Deixemos a questio da deflagra~ao inicial e sua decomposi~ao em estagios para evitar que a nau afunde antes mesmo de partir, olhemos apenas 0 rumo. 0 obus quer ir reto ate 0 fim, a nau discute, hesita, resiste. A bomba, confiante, desliza em urn sistema liso, sem se preocupar com 0 estado local, e precipita-se, como 0 amedrontado viajante perdido s6 pode ver manchas contrastantes na paisagem por onde passa. As naves no espa~o, mais atentas, observam sua posi~ao: nos as observamos, nao as deixamos voar sozinhas. Nao sabemos !hes dar urn rumo suficientemente preciso desde a partida' tememos que elas divirjam muito se as abandonarmos na dire~ao inicial. Desconfiamos de sua memoria e de urn sistema muito complexo. Ou seja, 0 obus de Verne, por urn ligeiro erro de tiro, nao dara a volta a Lua, sao maiores as probabilidades de partir em urn passeio erratico e ornamental: essa aventura acontece com todo viajante perdido que se obstina em andar direto em frente no meio da mata seguindo 0 preceito do metodo: ele diverge e se desvia de modo crescente. Mas entio, 0 obus partiu direto na teo ria, lan~ado em sistema simples, certamente se afasta, ao passo que nossas naves, prudentes, meticulosas, orientam-se diretamente no e pelo fenomeno. As tabuas de numeros, aqui reunidos, parecem as velhas tabuas de observa~ao, alfonsinas e toledanas, que as leis da astronomia moderna nos levavam a julgar muito emplricas. Por uma unica vez, 0 calculo pende para 0 fenomeno e a pnitica, e os tres se afastam do sistema simples e estavel, dos principios e das leis gerais. Que 0 computador desenhe, como sabe faze-lo, a paisagem indicada pelas tabuas de numeros e atravessada pelas naves, ai contemplaremos urn corpo misturado, matizado, tigrado, zebrado, adamascado, tao diferente do vazio abstrato quanto despreza 0 obus canonico. A paisagem volta, inesperada, para 0 vazio ou 0 sistema, como urn arco-iris na relva. A nave corre de vizi-
279
MICHEL SERRES
nhan~a
em vizinhan~a como se reconhecesse mais barreiras que transparencia. Quem imaginaria a geografia tao pr6xima da mecanica?
A geografia tern por objeto a paisagem. Ja disseram que ela mostra e esconde a fisica: a geografia, pois, s6 teria por objeto urn cemirio. Envergonhada de urn estado tao fiutuante, ela tenta fundir-se penetrando as entranhas do solo para encontrar, na caixa-preta, as profundezas e simplicidades mensuraveis da geologia, em seguida, as da geofisica, ciencias cada vez mais exatas it medida que descemos e nada percebemos a nao ser por meio de aparelhos; prefere sempre 0 invisivel ao visivel e a grande falha entre as pIa cas do Atlantico ao solo atormentado da Islandia que e explicado pela falha; ao subir novamente ao visivel, costa rendilhada ou rocha cinzelada pelo vento ou pela onda, entrega-se II contingencia das vizinhan~as sempre sem ver que elas carregam tantos conceitos poderosos e abstratos quanta 0 simples, geral e escondido. Ate urn mapa-mundi que desenha a carta de identidade da terra como a impressao do polegar tra~a a nos sa, pode virar modelo de medita~6es altamente formais. E tern mais, a estetica constitui urn saber, topol6gico aqui, sem precisar reeorrer sempre a uma realidade que ela recobre. Recurso necessario, claro, mas nao suficiente. Se descobrimos a paisagem no sistema dos tres carpos e sob suas equa~6es integraveis, ja nao devemos acreditar que urn sistema esgote a Ii~ao sobre ela. Nada tao profundo como a paisagem, 0 rosto e a pele.
i
,I
280
Eis a posi~ao exata da paisagem ou da ocupa~ao de ge6grafo, em urn novo mapa onde se desenham as ciencias exatas, vasto oceano, e a fisica: sistemas, manipula~6es e leis, imenso mar na vasta planicie de agua, e a geofisica, mar mediano no cora~ao do imenso ... ali, 0 paleomagnetismo em meio II teoria dos campos ... aqui, a eeologia na teo ria dos vivos ...a medida que recortamos subconjuntos, os mais agudos dos mais largos, sem negligenciar acavalamentos nem interferencias que produzem uma distin~ao complicada, as ciencias exatas lentamente desaparecem nas humanas ... os vivos trabalham e mudam 0 inerte, os coletivos modelam e transformam os ambientes inertes e vivos que habitam e por onde passam ... ecologia, sociologia rural... estreitos e golfos desenhados pelos novos mares, e mares de novo pertencentes ao grande oceano das ciencias ditas nao-duras, acabamos de transpor a passagem para a geografia. Se a definimos como a interse~ao de dez ou vinte saberes, dizemos dela 0 que outras ciencias, ou todas, podem dizer de si mesmas, nao desenhamos sua
as
CINCO SENTI DOS
{Visita}
°
singularidade. Ela nos transporta, de fato, de urn saber maior para que esta em frente, pela passagem do Noroeste. Nela, carrilhao das ciencias duras acaba por se calar, quando 0 das ciencias mal come~a. No seu lugar quase silencioso jaz a paisagem. Estado intermediario de onde partem, de urn lado, os calculos e medidas e do outro as historias, ambas prometidas aos grandes mares da enciclopedia, estado misturado, a paisagem, imediata e fragil, funda nossos conhecimentos, teoria e pratica. Porque ela nos alimenta enos alegra, pomona e flora, nao a supomos transcendental, e porque podemos destruila, nao a imaginamos fundamental. Mistura de vizinhan~as contingentes para onde confluem as informa~oes eruditas e onde se calam por temperamento redproco, concreta, abstrata, 0 mais que quisermos, ela da 0 modelo dos model os: que esquema nao se reduz a urn corte simplificado da paisagem? Como se 0 concreto mais imediato se encontrasse no ctimulo do abstrato, como se 0 abstrato mais puro fosse lido imediatamente. Prova de que essa nova carta dos saberes reproduz a antiga, a do mundo, ou uma vista atual da passagem do noroeste: grandes oceanos invaginados em mares, depois estreitos e golfos ou baias, entremeio de arquipelagos e ilhas redesenhando 0 imenso em pequeno, acavalamentos e becos sem saida, passagens confiaveis e obstaculos, paisagem misturada em estado flutuante, estado intermediario e complexo entre duas bacias de agua onde as rotas se mantem, constantes, metodicas. Podemos vir de longe pela loxodromia ou pelo arco do grande drculo ate 0 mar de Beaufort ou 0 estreito de Davis, mas, entre esses dois lugares, impoe-se 0 rodeio. Podemos vir da fisica para a paisagem ou da sociologia ou da historia a seu detalhe local, mas, ao chegar hi, impoe-se 0 rodeio. Seja para meditar esse modelo de metodos simples e faceis conectados de repente a urn emaranhado.
°
Deram 0 nome de geografos aos que escrevem sobre a terra: a proposito dela, a seu respeito, somente, pois, nela, so os paisanos 0 fazem de verdade. Seria melhor chamar de geografia a escritura da terra sobre si mesrna. Pois as coisas, resistentes, duras, agudas, eiasticas, moveis, marcam-se, escavam-se, usam-se entre si. Nosso estilo, excepcional, utiliza esta propriedade gera!. 0 que a terra revela eresultante do que deverlamos chamar de marchetaria redproca das coisas. Arrastadas pelas torrentes e por seu peso, sustadas pelos obstaculos ou por sua forma, as pedras descem e quebram, gravam extensamente sua
Instituto de Psicologia • UFRGS Bjbljoteca
281
MICHEL SERRES
queda ou seu rolamento no talvegue. A areia a rodo no curso do vento lima a montanha. 0 gelo racha e quebra os calhaus e as arvores, as falesias e a terra da planicie, tal como a seca. Quem escreve? A agua, a neve, 0 retorno da suavidade, 0 ofito, 0 granito, 0 equilibrio, a densidade, a for~a, 0 sol, a flora, a fauna. Uma cobre, a outra mancha. Sobre 0 que escrevem eles? Sobre a neve, e a agua, sobre a fauna ou a flora, sobre 0 marmore e 0 gelo. 0 que terra revela e resultante das rugas que ela da a si mesma. pagina. o que damos a perceber aos outros resulta da erosao que os outros e as coisas deixam sobre 0 rosto e a pele, ou da retra~ao do esqueleto mais duro, arcabou~o usado que amea~a ruir. Quando escrevemos, quando servimos de suporte a gravura, nosso caso nao difere das coisas usuais da geografia. Os componentes da carne utilizam-se mutuamente: biografia. Talvegues, erosao, rugas, essas escarifica~oes reclprocas formam urn rel6gio. A paisagem desenhada, marcada pela usura que cada coisa inflige a sua vizinhan~a e que seu meio ambiente Ihe da, epovoada e entulhada de lembran~as, cole~ao de restos, monumentos, mem6ria. Podemos datar cada lugar por essas escava~oes mutuas, por essas ruinas, literalmente, por estes detalhes: 0 que fica dos talhes. A antiguidade da paisagem vern do que ela traz e mostra e marca desse tempo, 0 rel6gio da usura e do talhe das coisas duras entre si, da dura~ao. Assim a geografia, escritura da terra sobre si mesma, precede a hist6ria e qualquer pn!-hist6ria imaginavel, ela a condiciona aqui e agora, e chega ao tempo fundamental das coisas, marcado pelo tra~o de cada uma sobre outras e de outras sobre cada uma, e logo pelo tra~o dos homens, sulcos, dragagens e estilo. Mas a rela~ao do verbo com 0 mundo deixa menos marcas que urn leve toque. 0 doce nao atinge 0 duro, deixa-o intacto. A denomina¢o nao escava, nao poe sinete no denominado. A agua do batismo, 0 santo 61eo da un~ao imitam a doce caricia da denomina~ao, e a circuncisao que reproduz sobretudo a dura mordida da biografia, uma, quanta as coisas, a outra, quanto it palavra, uma definitiva como uma singularidade na paisagem antiga, as outras labeis ou temporarias como contratos. Asdurezas gravamse entre si e esta rela~ao institui sua dura~ao. 0 doce em rela~ao as coisas ignora a dureza, e por isso que ainda anunciamos a novidade do verbo. A geografia, ciencia dura das coisas duras, tern rela~ao com a dureza; a hist6ria, posterior, leve e nova, segue 0 verbo. Ela come~a com a escrita, gravura do doce sobre 0 duro, tempo inedito e novo. 282
OS CINCO SENTIDOS {Visila}
Ulisses e Colombo, Bougainville ou Cook partilham junto com todas as popula~6es do mar, da sorte rara de habitar e ao mesmo tempo passaro Ninguem sabe 0 lugar se nao 0 erigiu, duro; cavou ali seu tumulo, pois o muro encontra apoio na cova de funda~ao, de fecundidade, de tesouro e de funerais; circunda de alicerces as primeiras escava~6es, eis a catedral; vai deixar seu suor nesse lugar, a pele das maos, seu tempo, uma mem6ria em pedra e cal, e 0 p6rtico arqueado como 0 oco de sua inquietude. A casa, esqueleto, descarnado, depois vestido, enfeitado, im6vel, endurece 0 corpo apoiando-se em seu cadaver e sua fadiga, ve a paisagem de suas baias imensas; assim, em certos cemiterios as lap ides tumulares adornam-se de casinholas onde, por tras das janelas, apodrecem os buques. Corpo estavel agarrado a um lugar de terra como a uma carne. a outro nunca sabeni se construiu em honra do deus local ou se cedeu a ambi~ao irris6ria de uma modesta apoteose. Construir, depois, habitar ensina que 0 dominio do construido vai ate a quadra de castanheiros, brancos a esquerda olhando 0 riacho e rosas do outro lado, a partir de onde 0 terreno, em queda brusca, di lugar a espa~os alheios, quase intocaveis. Nao passamos ai, em respeito aos vizinhos. Topologia do imediato e do mediato, bestial, paga, vital, onde a vizinhan~a da vizinhan~a logo parece tao estrangeira quanto 0 imensamente longinquo. a caseiro ou paisano que a lingua crioula reveste com 0 nome de habitante acha-se tao 11 vontade ou pouco 11 vontade nos limites de sua comuna ou par6quia como nos confms do universo. Vive em uma mancha larga e sarapintada cujos contornos abra~am frouxamente os acidentes do relevo e as circunstancias da hist6ria, circundado, em intervalo mediocre, por uma coroa delgada e homogenea, geometrica, onde a distancia que separa a Australia do Mar Branco ten de nipido para zero. De repente, pode tornar-se um viajante intnipido, indiferente a se estabelecer perto de Seattle, Manilha ou Timbuktu, desde 0 momenta em que deixou seu lugar. Para 0 habitante da casa enraizada na morte divina que colore a vizinhan~a de seu dominio, como para seu gemeo errante de aeroporto em aeroporto, tudo esta equidistante do paraiso, onde as varia~6es eclodem. a espa~o euclidiano do pedreiro funde-se na superficie topol6gica do habitante. au entao: em torno do dominio epicurista do jardim e ap6s a travessia do p6rtico de saida, come~a a coroa ou 0 toro do universo est6ico das causas isotr6picas ou series harmonicas, lugar de comunica~ao. au entao: a bola compacta de concreto onde 0 habitat toca suas vizinhan~as e onde a constru~ao mede suas divis6es esvazia a vida de seu detalhe supe-
283
MICHEL SERRES
rabundante, ao passo que, em tres minutos, podemos compreender as leis que governam 0 espa~o restante. Ou ainda: 0 bloco do sitio, singular sarapintado, abre urn volume vazio, infinito simples e tedioso, atravessado pelas flechas vetoriais dos percursos. Melhor: a paisagem onde 0 rodeio passa por caminhos festonados, al~as, aneis ou voltas, reline os blocos ou bolas; as vias extremas do metodo atravessam 0 universo homogeneo da comunica~ao. Enfim: por que diabo urn mundo excluiria 0 outro? Questao: onde estamos? UM Nos, habitantes, estaveis, estatuas latinas, teses gregas, posi~6es, situa~6es afirma~6es logicas. Resposta: no jardim, celula circunstancial de paisagem. Nao, so vejo 0 deserto, elemento redundante de universo, por onde passo. Onde estamos? Aqui, em urn lugar. Singular, rodeado de vizinhan~as, localidade bordada de fest6es. Viemos de urn lugar assim, lembramo-nos dele, nosso corpo animalmente, sente esta memoria, vamos para ele, nosso corpo freme a esta esperan~a, mesmo que atravessemos urn espa~o lisa de nudez vetorial, mesmo quando seguimos a auto-estrada rasgando lugares juncados de lixos. A reivindica~ao do corpo, duplo, do animal imovel e movente, de nicho complexo, variado, agitado, inerte, vivo, verbal, toca a paisa gem do local ao global. Pede ao mesmo tempo curso e repouso. Busca navegar.
,, ,.,
('
284
Eu canto 0 contentamento que urn barco da ao atingir 0 porto depois de ter aplainado 0 oceano como a uma prancha aspera. 0 prazer delicioso do estrangeiro em cuja vizinhan~a adormecemos no familiar. China, iceberg, Tropicos. visitados em seu proprio habitat. Nao, os marinheiros nao viajam; por isso e que so eles se arriscaram as grandes descobertas. Retornam a cada noite ao mesmo canto e a mesma maca, que ignorante teria 0 topete de opor a vida maritima a estabilidade pais ana, como a errancia a imobilidade? Barco: pequena aldeia de alguns lares em uma casca fragi!. 0 homem do mar nao se move, colado a barra, incorporado ao edificio. nariz a vante, costas are, bigodes em vol ta da proa e cabelo flamejante batendo na ponta do mastro. Sua cidadezinha segue. Parece correr por urn espa~o estranho. mas a constru~ao agniria tambem se afunda em uma coroa vaga. Amarrado a quatro mastros, uma bela noite. 0 marujo parte em bordejo como 0 fazendeiro sai para a ca~a. absolutamente certo de que logo voltara para jantar na mesma gamela morna. que encontrara odores films e a medida dos estreitos corredores. Timoneiro caseiro. A viagem come~a quando queimamos nossos navios. a aventura tern inicio com 0 naufragio. So enta~ os deuses deixam 0 marinheiro que os
1
OS CINCO SENTIDOS
{ViSil11}
abandona, entio ele naufraga a vinte milleguas de casa como 0 paisano convocado sai da fazenda para a guerra. Seja 0 que Deus quiser. Mas antes ele viu de gra~a. Como no teatro ou no cinema ou num album de imagens. Bern sentado no balan~o, ondulando na arfada, embalado em aguas maternais, atnls da portinhola lavada pela onda, ele olha, salvo. Ele narrara. Leva com ele, no mar ou no ceu eucJidianos, seu nicho topol6gico e vohivel. Prendemo-nos ao lugar, olorante, saboroso, colorido, plantamos 0 habitat aqui mesmo, mas eles formam apenas nosso seminicho, como uma especie de terreno morto, semeado de tumulos, marcado de funda~oes. Saimos e alcan~amos 0 outro seminicho, do outro lado das margens; ele nao tern Ii mites. NucJeo, fitas. Dormimos perfeitamente bern nos caminhos, na paixao de deixar 0 equilibrio estatuario, de abandonar a tese, em favor das varia~oes. Esquecer a casa, inicio da metafisica, do que existe alem; mas como 0 medo prende ao ventre, 0 aventureiro constr6i seu barco. Nao abandona 0 ber~o. 0 primeiro objeto verdadeiramente metafisico promete 0 alhures sem deixar 0 aqui. Inventa urn equilibrio movente, uma estabilidade em torno de suas flutua~oes, mas tambem urn deslocamento dentro do seminicho aberto do seminicho fechado, uma maneira de agita~ao fixa. Enquanto a caravela oscila sob os pes, a seguran~a nao vai embora. 0 alem revela-se quando os sapatos ardem no fogo, com os habitos e as habitudes, os varais da velha carro~a e as traves da casa do oveIheiro. Encontranis se e somente se nao te voltares para a estatua da fllosofia velha. Assim a terra revel a os tra~os coletivos desse nicho-soma de nucJeos ou n6s que irradiam fios. Nao podemos passar sem jardins nem viagens, temperando a austeridade destas as vezes desesperadora com as deHcias daqueles, ou 0 tedio entre as plantas com 0 saito alem das moitas. A emincia faz parte do territ6rio humano; a hist6ria compoe 0 edificio estavel, a inclina~ao do barco e a aventura metafisica. Os paisanos que la permanecern esquecem facilmente a longa emigra~ao de seus ancestrais que sempre vieram de longe, os viajantes querem se lembrar de seus pais enraizados na gleba. 0 nicho integral dos coletivos humanos, terra, agua, globo terraqueo, adiciona os jardins aos exodos, mistura as circunavega~oes as ilhas, prolonga os vales felizes ou minados de rastros interminaveis; persegue os ladroes de ma~as para torna-Ios ca~adores. Do parque jorram vias infmitas em estrela escalena, acumulam com certeza as energias, lembran~as,
285
MICHEL SERRES
fauna, flora e pomona que delas vieram. 0 espavo visto lucidamente chega a ser confundido com urn suporte do pensamento, semeado de celulas estreitas e densas de desenhos franjados providos de axonios gigantescos e flIiformes que 0 prolongam e 0 conectam ao pr6ximo e ao distante. Nao ha nada no intelecto que nao possamos ver no mundo: lugares disciplinares que muitas vezes resultam de rastros atipicos e de onde sao exduidos os que tern vontade de retomar 0 caminho, met6dico ou ex6dico. Mesmos desenhos, destinos semelhantes, decidam onde se encontra 0 abstrato ou o concreto tirando cara ou coroa. o universo e 0 lugar conectam-se em urn n6 dificil de fazer como de pensar. De urn lado, 0 local ve em suas fronteiras obstruvoes que tornam as vizinhanvas inacessiveis; a via extrema, ao contnirio, nao conhece nenhum obstaculo e nao reconhece lugar algum. A paisagem parece as pagi, 0 universo deixa os veto res passarem, a verdadeira dificuldade esta em costurar singularidades locais na via global ou travar caminhos faceis na paisagem. Donde a tentavao de verter, numa cultura ou na outra, multiplicidade de relatos, de sentidos ou de aldeias, unicidade erudita formal, rapida, transversal, que reputa antiga uma, e moderna a outra.
286
o adjetivo grego cat61ico significa universal, mas os que 0 utilizam esquecem muito freqiientemente este sentido e, ao contrario, dizem uma religiao com ritos de santos, virgens e martires, urn monoteismo figurativo mergulhado em milhoes de anjos. Essa lembranva da origem Iingiiistica e do sentido hoje corrente, associados urn ao outro, mostram uma sintese rara e delicada, fonte de artes e de beleza, entre a unidade ausente com a qual manter urn dialogo intima ou uma submissa rela,ao de amor com essa paisagem paga retornada, semeada de lugares, estatuas, esta,oes, santwirios e vizinhan,as, contudo ligeiramente inclinada para 0 campo un itario; entre local e global, existencias e lei, 0 Deus unico e 0 proximo. Essa uniao ou dificil comunhao, onde a toleriincia conserva 0 politeismo, expoe o catolicismo a uma situa,ao de constante ruptura entre urn monoteismo exclusivo e desertico, 0 universo do espa,o vazio do qual tern 0 nome nada de novo sob urn sol assim - , e a profusao de disparidades pagas, pequenos ritos florescidos em uma primavera variavel e, portanto, a trabaIhar sem descanso, heroicamente, dentro da incompreensao geral, no nucleo paradoxal- e de repente, tao contemporaneo - do infinitamente distante e do proximo: amor a Deus e ao vizinho.
OS CINCO SENTIDOS {Visita}
Contemplo agora 0 duplo mandamento da religiao crista e a dupla pessoa a que ele manda amar. Amar 0 universal ausente, 0 pr6ximo singular. A vizinhan,a do pr6ximo ameniza a ferocidade do monoteismo, violencia radical que esvazia 0 espa,o ern proveito de uma lei unica. 0 conjunto inesperado das reaproxima,iies repovoa esse espa,o de singularidades pinturiladas. Contemplo a assimetria inteiramente racional da lei de razao e das circunstancias circundantes, para urn dado qualquer. Balan,a desigual, de travessao inclinado: a justi<;:a aqui nao separa 0 verdadeiro do falso, 0 justo do injusto, a razao da sem-razao; 0 duaiismo, o dueio acaba de desaparecer. A balan,a causa urn afastamento de paz. Amo a ausencia daquele, do unico a quem foram entregues 0 poder e a gl6ria, que se resumem ao crime e s6 ao crime, aqui, amo a presen,a imediata daquele que tern espa,o apenas ern minha pr6pria vizinhan,a. A paz desce, duas vezes. 0 universal e 0 singular corn 0 qual me comunico sao duais e nao duelos. Deus estani no prolongamento, de proximidade ern proximidade, do pr6ximo? Que reia,ao esse pr6ximo mantem corn Deus? Contemplo a estranha presciencia do que nossas ciencias come,am a aprender: figura antiga da razao toda nova, antigamente chamada boa nova. A razao universal e temper ada peio impeto das ciencias locais. Topologia, fiutua,iies, pequenos desvios e circunstancias misturadas, as singularidades voltam ern peso ao espa,o vazio e mon6tono da lei. Ora, nao podemos, nao devemos afastar a razao, 0 rigor, nem as exatidiies puras. E no entanto devemos acolher esse local superpovoado. Eis uma razao reconciliada: Deus e 0 pr6ximo, a razao pura e perfeita mais as singularidades vicinais. Sistemas e misturas fazem 0 mundo. Quem poderia imaginar que a razao e 0 patetico, juntos, hoje nos conduziriam a esta assimetria, li,ao do velho mandamento cristao?
Devemos rever ou revisitar a conexao entre 0 global e 0 local. 0 metodo passa pelo panorama, uniforme universo. 0 rodeio percorre os lugares, paisagens. Eis uma esfera de contornos frouxos, acontecimento singular, turbulencia ou turbilhao. Para este lugar ou a partir dele converge ou diverge uma estrela de caminhos met6dicos transformados ern ruelas complexas ap6s a travessia dos contornos.
287
MICHEL SERRES
Vamos denomina-Ios circunstancias, vamos chamar de trevos os pontos de conexao.
CIRCUNSTANCIAS A sombra de uma arvore; a sombra, para todas as coisas, conforme 0 sol, as nuvens, 0 vento; 0 porte da arvore e sua forma que por sua vez dependem de suas sombras. Os pes confundidos, sobre-impressos, que patinharam em torno da fonte, passos que vao e vern, encontro dos extraviados. A beirada de urn po~o e sua influencia sobre a planlcie aonde atrai os rebanhos e os pastores. Os arredores do grande edificio. As sebes nas en costas com alinhamentos ou nao de arbustos circundando 0 campo defendido. Fronteiras que protegem 0 reino. Sonoridades que anunciam uma importancia: 0 sequito que rodeia 0 poderoso intercepta as noticias. Baluartes. 0 patio dos gentios, aquele onde Nossa Senhora se apresenta. Faubourg, suburbio l7 ou antigo lugar de banimento, nas periferias das cidades. Limiares onde a intimidade respira protegida. Aureolas. Reflexos, opacidade; brilhancia; rumores; vapores abafados emanados de urn lugar de fogo ou de gelo, frescores; perfumes exalados. Seguir a ca~a pelo rastro, descobrir a ilha antes de ve-Ia, adivinhar nas marcas flutuantes ao redor. Intui~oes que percebem os ambientes imperceptiveis. 0 jardim dos mortos junto ao muro da igreja, com lugares vazios. A multidao que se comprime a volta dos portoes, a noite, no estadio. Clamores. A mare na costa plana onde a terra e a agua partilham 0 espa~o, segundo a lua, a brisa, 0 trimestre e as sizigias. 0 brilho do sol tao amplo que moramos na estrela e nao a imensa distancia de bordas inatingiveis. Halo de lua, Saturno com os aneis. Manto aquoso, cabeleira gasosa em torno de certos objetos celestes, cauda de poeiras cometarias. Gl6ria que precede 0 corpo, 0 nu, os santos, os astros, 0 rosto, olho, pele, pensamento, gl6ria as palavras novas que fazem cair do cavalo. Vasto poder do 6dio, no terreno e na hist6ria, ressentimentos de cheiro forte. Prece entre sexos, atra~ao pelo turbilhao, voz nas paragens das Sereias. Cinturoes. Aguas rapidas descontroladas a montante das cascatas, avenidas de turbulencias a jusante. Nossas fragilidades se defendem por uma dupla ou tripla pele invisivel, coura~a que repele urn 288 17
No original, banlieu. (N. da T.)
1
OS CINCO SENTI DOS {ViSila}
agressor mesmo doce. Embriaguez de longo alcance lan~ada por uma inteligencia produtiva, uma obra de arte, 0 encanto. Vertigem. Corolas que saem dos Jabios daquela que vai dizer sim. Emo~ao, silencio que seguem e precedem 0 acontecimento. Flocos de neve nas agita~oes do ar, voos de arcanjos diante de Deus, petalas planando na sombra da arvore. Cascas, membranas, muros porosos, peles, coroas, matizes, aureolas, no espa~o, no tempo, nos campos de for~a, nas fases, causas, pretextos, condi~oes ... relacionamentos, afastamentos, flutua~6es, vizinhan<;as da defini<;ao estrita: lugares onde passam as mensagens sensiveis, circunstancias. L6gica. - 0 principio de razao explica qualquer existente ao afirmar que ele existe mais que tudo. E, singularmente, que ele existe mais que nada. Ora, existir mais que tudo e redundancia e repete, pelo verbo e adverbio, uma discordancia ou urn excesso, 0 afastamento do equilibrio. A existencia diz esse desvio, pois 0 radical exprime a estatica, e mais que tudo quantifica vagamente a tara. Como se 0 travessao de uma balan"a nao se mantivesse inteiramente plano. A existencia indica urn estado fora do estado zero, ou, melhor, urn fora-de-estado. A ciencia grega, chamada episteme desde sua funda<;ao, significa, pelo pr6prio nome, ao contrario, 0 equilibrio, uma especie de acima do estado. A palavra sistema significa em suma a mesma coisa. A oposi<;ao tradicional, a estranheza sobretudo da existencia e da episteme tornam-se claramente legiveis. A coisa qualquer cria geralmente urn afastamento que a ciencia leva estritamente a zero. 0 saber rigoroso ou preciso desenha 0 fiel da existencia. Ou seu estado. Sua redu<;ao ao equilibrio. Sua supressao. A ciencia considera a existencia como uma tara. Balan"a de justeza e de justi"a, de equilibrio e de poHtica, moral e mortal. A partir dai, a existencia significa urn modo estranho ao da ciencia. Penso, logo existo, contradi<;ao nos termos. Eu penso, peso, incido sobre urn pe, uma base, urn prato, im6vel ou film, em repouso; eu existo, aqui estou eu retirado do equilibrio, em afastamento em rela<;ao ao repouso, ja quase m6vel, exatamente inquieto. Ou entao, tautologia: eu peso, logo a balan<;a reage. Arist6teles coloca 0 principio de identidade no fundamento da necessidade da ciencia. Desde sua primeira formula~ao, ele e definido em rela~ao it contradi<;ao. E impossivel que 0 mesmo atributo perten~a e nao perten~a ao mesmo tempo ao mesmo sujeito, na mesma rela~ao, sem prejuizo de todas as outras determina~6es que possam ser adicionadas para fazer face as outras dificuldades 16gicas. Deixemos por urn momenta 0 carater
289
,'1-
I
MICHEL SERRES
290
atributivo da defini~ao aristotelica e digamos, com Leibniz, por exemplo, que 0 qlle eA nao poderia ser nao-A, ao mesmo tempo, na mesma rela~ao etc. Sempre a dupla nega~ao, a identidade como a impossibilidade contemporanea de si mesma e de seu contnirio, ou seja, de seu contradit6rio. Observemos de passagem que 0 termo grego, para as determina~6es que podem ser casualmente acrescentadas, 8LOPLO"[LOL, marca evidentemente alguma coisa como urn limite. 0 encontro de A e de nao-A e descrito cuidadosamente por urn conjunto de identidades: no mesmo tempo, na mesma rela~ao, em geral, sob condi~ao de mesmas determina~6es. Curiosa necessidade que s6 pode ser imposta sob urn completo universo de condi~6es. 0 principio de identidade advem se e somente se outras identidades forem observadas: de tempo, de rela~ao, de determina~6es em geral. Curiosa defini~ao que requer como condi~ao 0 definido si mesmo. 0 primeiro principio reduzir-se-ia a uma peti~ao de principio? A urn retorno a pr6pria identidade? A partir dai, podemos retomar Arist6teles e Leibniz, dizendo: nas mesmas circunstancias, e impossivel que 0 que e A seja nao-A. Observamos de imediato que 0 famoso principio, cuja universalidade ou pretendida necessidade pulveriza-se sob a pressao das condi~6es, avizinha-se de urn outro, mais familiar, 0 do determinismo: nas mesmas circunstancias, as mesmas causas produzem os mesmos efeitos. Ora, como todo mundo ignora 0 estatuto das causas e dos efeitos, como a fIlosofia da causalidade pode muito bern ser posta entre parenteses tanto quanta a l6gica atributiva, mais acima, resulta que: nas mesmas circunstancias, os mesmos x produzem os mesmos y. Ou melhor: pela identidade das circunstancias, ha a identidade, ou estabilidade da experiencia, possibilidade de repeti-la 11 vontade. Ou: por urn recorte identico, as experimenta~6es continuam invariantes. Assim, nos dois casos, fisico, aqui, metafisico, la, a identidade formal de A qualquer, ou a identidade de fato ou de fenomeno, a da experiencia, s6 tern lugar sob a condi~ao expressa de reduzir it identidade 0 conjunto ou urn conjunto daquilo que os circunda. Nos dois casos, a identidade das circunstancias passa em primeiro lugar, como condicional, na teoria como na pnitica. Sem ela, nao ha 16gica, nao ha manipula~ao nem fIlosofia. A fiIosofia trabalhou para riscar essa condi~ao, para afasta-la ou derruba-la. A hist6ria da fIlosofia ou das ciencias fez com que a esquecessemos para manter independente e isolada a universalidade desses principios necessarios. Leibniz, portanto, retoma Arist6teles e redefine de inicio as verdades de fato e as de razao. No meio destas, as primitivas verdades de
OS CINCO SENTlDOS {Visita}
razao nao fazem mais que repetir a mesma coisa, sem nada nos ensinar. Ou afirmativas: A eA, ou negativas: 0 que eA nao poderia ser nao-A, para a mesma proposi~ao. Dito isto, resta fazer experii?ncias. No campo da logica e da algebra, discursos puros, como se diz, 0 funcionamento dos principios fica distinto e claro, sob condi~ao, bern entendido, de nunca variar quanto as proposi~oes, 0 que e justamente a identidade da circunstancia, para qualquer linguagem. Mas tudo muda muito de pressa, mesmo sem sair das matem
291
I~ MICHEL SERRES
~, (: j
:: : :," :~:
292
delas, 0 tempo, e a utiliza para ocultar as outras. Por uma inversao sutil, os principios produzem 0 tempo ou a historia. Portanto a historia se autoproduz nos e pel os principios e, dessa forma, suprime as outras condi,6es. Nao ha mais sequer rela,ao, nem outras determina,6es, nem 0 conjunto das circunstilncias: reduzidas ao tempo, sao produzidas, por seu tumo, pelo funcionamento do contraditorio e da identidade. Thdo desaparece na maquina da logica disjuntiva ou binaria. Pe!o vies do tempo e da historia, que viraram da condi,ao ao condicionado, como do possive! ao necessario, a razao produz 0 fato. A razao equivale Ii existencia, identicamente, e a produz dinamicamente. 0 imperialismo do racional absorve no logos os afastamentos do equilibrio da existencia. Mas 0 real u1trapassa 0 racional. Por acasos residuais, esse algo sobre 0 qual nao tenho ou nunca poderei ter informa,ao, 0 ignoto, 0 excesso, 0 ruido, 0 grande numero e a diferen,a. A partir dai, a verdade e que so ha e so podemos conceber identidade ou contradi,ao sob condi,ao da circunstilncia. De lugar, de tempo, de posi,ao, de situa,ao, de rela,ao, sem prejulgar outras inumeras determina,6es ou limites. Que a filosofia das circunstilncias condiciona os principios primeiros sem os quais ninguem pode pensar, nem transformar 0 mundo. Que so erros de logica, peti,6es de principio e uma hipocrisia induzida pelo instinto do poder puderam reverter essa condi,ao e faze-Ia produzir pelos principios racionais que ela condiciona. A existencia nao e deduzida da identidade, como as logicas modais nao sao produzidas por uma logica de duplo valor. Muito pelo contrario. A existencia, afastamento do equilibrio, referese as circunstilncias. A circunstancia forma conjunto, sem balan,o nem ca!culo possivel, das proprias existencias, dos desvios, taras ou inclina,6es do travessao, 0 conjuntos dos, "mais que tudo'; como diz 0 principio da razao, ou do que se man tern fora de estado. Esse conjunto inumeravel, real, e rumor do real, contoma, como curvas de nivel, distanciadas ou na mais proxima vizinhan,a, 0 cimo de urn colo singular. Nesse ponto muito excepcional, acontecem 0 equilibrio, a igualdade, a congruencia, 0 paralelismo, ou seja 0 que for do mesmo genero, quem sabe, a identidade.A =A ouA "" A. Estabilidade rara no topo do colo, rodeada de circunstilncias. A identidade, a contradi,ao, rarissimas, sao excepcionais singularidades u1tra-estruturais sobre as variedades infinitas dos afastamentos, desvios, taras, e assim por diante, existencias e circunstancias. A filosofia nunca percebeu, ou quis ver, senao essas cristas,
OS CINCO SENTIDOS {Visita}
fazendo subir acima do terror para afogar 0 relevo. Os que sobressaem nessas ilhas dizem que governam 0 furor das ondas, pobres naufragos. A linguagem institucional, a 16gica e a ciencia, arquipelagos ou milagres improvaveis na multiplicidade dos afastamentos do equillbrio ou da regra, na polimorfia das circunstancias, nao produzem nada, ao contnirio, sao condicionados. Nao por uma outra regra, mas por sua ausencia. Com efeito, quer digam infra-estrutura ou superestrutura, equivale sempre a uma ultra-estrutura. Os maximos ou mlnimos equivalem aos extremos. Colos, cumes, ilhas. A paisagem, paginas circundadas de rodeios, tornam-se urn modelo 16gico, e a 16gica, inversamente, redesenha a paisagem. Gramatica. - As gramaticas classicas distinguiam, em sua sintaxe, as ora~6es subordinadas completivas das adverbiais. As primeiras estabelecern uma liga~ao direta entre 0 sujeito e 0 objeto ou 0 inverso, centradas num ou noutro ou em ambos. A~ao, passividade, discurso ou pensamento: todo 0 programa da classe de fIlosofia. As adverbiais, ditas secundarias, deslocam essa centraliza~ao e descrevem 0 tempo, 0 lugar, a condi~ao, a conseqUencia, 0 concessivo ou comparativo ou causal, e assim por diante. Quando ele via uma rosa, pensava que a primavera tinha volta do; 0 rio enchera a ponto de nao se poder atravessa-lo ape; eu poderia se quisesse ou quando e porque quisesse, ou no local que eu escolhesse. 0 mundo mais algumas emo~6es voltam em peso em torno do eixo austero parcamente transitivo. Reduzido it identidade ou it repeti~ao, esse multiplo e suprimido: nas mesmas circunstancias, nos mesmos ... completem voces. Na morfologia usual das mesmas gramaticas, nem os adjetivos nern os adverbios gozam de grande reputa~ao. 0 que e demais nao faz falta, diziase. Sempre Deus, nunca os anjos - uma circunstancia de anjos, diz Tertuliano; vao ao essencial, nao divaguem. Estilo e fIlosofia em preto e branco, fraque e plastrom, pensamento, a~ao, ciencia e transforma~ao do mundo: nao temos urn minuto a perder. Ora, 0 adjetivo nos afasta, transviado, sedutor, desviado, divertido. Exatamente parasita: ruldo demais, a devorar ao lado do mestre a parte do mestre substantivo; bichinho importuno. 0 adverbio provoca urn afastamento na a~ao, faz com que ela perca 0 equilibrio. Ambos denotam as circunstancias, margeiam e concretizam 0 ato, a pessoa, ou a coisa. Urn pequeno desvio come~a pelos cantos, os momentos, as qualidades ou restri~6es, os meteoros; e se tomassemos nosso tempo? Tao escasso, tao precioso, controlado, com frequencia, liberado, miraculosa-
293
MICHEL SERRES
mente, magnifico, estatico, nunca mon6tono, junto de n6s, afastado, secreto, disponivel, rico, pleno, saboroso, gratuito, misturado. Como 0 adverbio ou 0 adjetivo, a ora~ao circunstancial acrescenta 0 sensual ou sensivel frondoso ao sentido ascetico ou puritano ou rigorista do sensato. Quando queremos dizer fielmente 0 sensivel, mais vale urn epiteto de Colette que dez demonstra~6es de aplicativo; ou a visita, melhor, a cria~ao circunstanciada de urn jardim. As ftlosofias universitarias nao conseguem dize-Io em seu alinhamento completivo ou atributivo, pela concordancia exclusiva com os verbos e os substantivos: com 0 abominavel verbo ser, desconhecido ou cancer, com a predica~ao, im6vel, com a dicotomia das figuras de bode ... aborrecimento dos resultados duais de rimas ricas: realismo-idealismo, empirismo-formalismo, dialetico-analitico ... rigidez dos substantivos: ontologia, fenomenologia, epistemologia, molo, nolo, tolo, rimas internas, pode-se pensar certo escrevendo tao feio? Declaro culpado. Visitem 0 meio ambiente. Percorram as circunstilncias em coroas f1utuantes ao redor da instancia ou substilncia, ao redor do eixo do ato. Usem o que corre para 0 lado. Descrevam 0 parasitiirio nos sinais, 0 coletivo ou o vivo: e1e come na mesa vizinha. Estudem as vizinhan~as, percorram os caminhos que contornam e formam a paisagem. Considerem as f1utua~6es, afastamentos ou inclina~6es, nas avalia~6es ou conceitos da ciencia. Os atomos, as vezes, correm para 0 lado. Nao desprezem as interferencias nem as passagens. Hermes, muitas vezes, diverge em seu caminho. E se destaca. Vejam os f1uxos misturados bern como os lugares de permuta, compreenderao melhor 0 tempo. Hermes encontra pouco a pouco sua lingua e suas mensagens, ruidos e musica, paisagens ou caminhos, saber e sabedoria. Ele corre para 0 lado, para os lugares onde os sentidos vibram e estremecem, turbulencia vizinha do corpo, sensa~ao. Ele ama e conhece 0 recanto onde 0 lugar se afasta do lugar para ir ao univers~, onde este se afasta da lei para se invaginar em singularidade: circunstancia.
294
Estiitica - Uma estatua e colocada sobre urn pedestal e nao se mexe mais. Imobilidade, repouso, fixidez: tese. Uma balan~a entra em repouso por uma rela~ao de igualdade ou de troca entre seus bra~os, pratos e pesos, anula todo movimento virtual de cada urn compensando-o pelo do ~Utro: equilibrio. Urn piao, planetario de bolso, fica de pe, estatua vibrante, balan~a tur-
I
1
as CINCO SENTI DOS
{Visita}
bilhonante, com sua rota,ao rapida, assim a Terra, os astros, em todo 0 sistema solar, permanecem constantes em suas varia,6es de periodos comp6sitos. Digamos sistema em geral quando um conjunto complexo e movente ordena-se em torno de um invariante. Estatua ou tese: (micas; equilibrio: dualidade; sistema: pluralidade. Movimento nuio, deslocamentos em torno da posi,ao: rota,ao, trajet6ria, 6rbita, vibra,6es, ritmos, composi,6es diversas. Tempo reversivel. Pensamos por teses, afirma,6es, equilibrios, sistemas, 0 termo pensar, literalmen te, significa pesar, sopesar. Penso, logo existe uma balan,a. Eu nao poderia pensar sem ela. Existe uma estatua ou um sistema. Vma tese, antitese, um ponto em torno do qual 0 travessao resolve sua permuta ou acordo ou nao resolve suas desigualdades. Se ele oscila ou resiste, penso ainda? Se nao tem constancia, flutua, se ele sempre se afasta do estavel... Montaigne diz excelentemente a vizinhan,a do nao-pensamento por essa balan,a dupla da duvida e peJa oscila,ao perene do mundo como ele se desloca. Nao posso pensar sem me referir as estabilidades em gera!. 0 principio do equilibrio reproduz na realidade das coisas a afirma,ao do eu penso e sua exigencia de constancia quanto ao sujeito. Sujeito, objeto, nao sei; sei em todo caso que a lingua diz sempre a mesma coisa, nao sabemos nada alem disso. Eu afirmo: isto esta assentado sobre sua base, tese ou estatua, pensamento, mesa ou cuba. Penso: peso sobre esta base. Quem, eu? Pouco irnporta.
o trabalho do pensamento ou da hist6ria introduz a face da estabilidade nos campos onde, a primeira vista, ela nao tem lugar nem tempo. 0 impensavel e igual ao instavel. 0 nao-conhecivel equivale Ii flutua,ao. A condi,ao dita ou nao dita da ciencia ainda e a identidade. E preciso poder dizer 0 dito, reencontrar a estatua no mesmo lugar, reconhecer a tese, firme, afirmada, sem mudan,a, repetir a experiencia, estavel como um termo, determinada, determinista. Dai em diante, 0 referido trabalho consiste em reconhecer 0 estave\ no instavel, 0 equilibrio no movimento, 0 piao reto embora turbilhonante, 0 sistema estave\ se bem que animado por ritmos de desigualdades diversas, o invariante na varia,ao. Penso se e somente se vou introduzir minha inquieta,ao nos lugares onde 0 peso comporta riscos.
295
MICHEL SERRES
296
No calor que agita os minimos elementos; por entre os fluidos nao consistentes e as turbulencias; sobre a inciinaC;ao dos ,\tomos; no meio dos meteoros; nas qualidades puramente sensiveis; por entre as misturas e as paisagens; nas ciencias humanas e na hist6ria. 0 programa de trabalho para 0 pensamento segue a famosa passagem do Noroeste. Rodeio mais que metodo. Errancias, via gens, perigos. o exemplo do rio nos alegra: partindo de uma fonte ou de varias, desce 0 talvegue para 0 mar ou 0 lago, it primeira vista, diriamos que corre, turbulento ou tranquilo, para seu equilibrio; verdadeira para cada gota d'agua, esta afirmaC;ao pode ser sustentada para 0 rio? Ele se mexe, e claro, mas repousa, estavel, em seu leito admiravelmente denominado. Parece correr, mas de certa maneira dorme. Se algum Hermes passar por ali, se obras de carater civil por qualquer razao desviarem seu curso, ele voltara. o rio cava uma estabilidade global, do prindpio a foz. Homeorn'ia. Seguimos 0 curso de urn ribeirao assim na formaC;ao embrionaria, da fecundaC;ao ao nascimento, e 0 leito de urn rio semelhante, ate a hora da morte? Exemplo ilustre entre centenas de outros, para 0 progresso pensante: introduzir a inquietaC;ao, esse afastamento do repouso, entre as coisas evidentemente inquietas, cujo equilibrio parece impensavel. La nos aguarda, com frequencia, 0 acaso que opee sua desordem 11 nossa identidade: com razao ou sem razao, quem pode saber? Quem pode adivinhar, antes de pensar, sem se acreditar Deus, que 0 real e racional eo inverso. Pensar consiste sem dlivida em errar, inquieto, por urn lugar onde este prindpio ainda nao se manifesta . o Sena ou 0 Garonne apresentam a homeorreia; 0 Yukon e 0 Machenzie nao a demonstram. Afastam-se incessantemente do equilibrio. Ora correm a cern brac;os, ora nao correm, gelados, bloqueados, barrados por obstaculos e calha us, tern urn leito aO alvorecer, dez ao meio-dia, vinte em outro momento e no mesmo local, ou em outro local e no mesmo momento. Marcam urn tempo diferente? Diriamos que escrevem na terra ou na paisagem todo 0 programa das circunstancias: constancias, instabilidades, consistencias, inconsistencias, circunstancias. Que ordem levam eles em suas flutuac;ees? E preciso manter 0 esforc;o do pensamento nessas latitudes: caminhos fixos num meio aleatorio ou caminhos aleatorios num meio determinado. 0 tempo ja nao corre como a agua, mas percola tal qual.
1
OS CINCO SENTIDOS {Visila}
Mecanica celeste - Laplace deduz os movimentos celestes da lei de Newton e faz do mundo um sistema. Nao tem necessidade de outra hip6tese. E no entanto uma outra ideia que nao a da atra~ao domina sua exposi~ao. Todo mundo se lembra do famoso texto da Republica onde Platao descreve um piao. Ele repousa em equilibrio sobre seu pe, mas move-se pela rela~ao entre todos os seus pontos fora desse eixo. Platiio acha contradit6rio esse movimento associado, inseparavelmente, ao repouso. Ele nao diz que 0 pe pode se mexer, avan~ar, recuar, que 0 eixo pode nutar etc. Essa contradi~ao define, no entender dos mecanicos modernos, urn novo equiIibrio, uma constancia pelo movimento, uma invariancia pelas varia~oes, uma imobilidade pela mobilidade. No prefacio da Mecanica celeste, Laplace se permite cem varia~oes lingiiisticas sobre os dois elementos em questao: os objetos celestes mostram oscila~oes, libra~oes, nuta~oes, vibra~oes, periodos, desigualdades anuais, seculares, multisseculares, que podem chegar a novecentos anos, etc., em torno do equilibrio. Assim, 0 sistema do mundo pode ser nomeado nao s6 pela dedu~ao de todas as aparencias - a palavra fenomenologia tem origem nas observa~oes astronomicas - baseada em uma lei, mas por sua estabilidade. Um grande numero de objetos ficam juntos em equilibrio. Mas eles se movem (e, no entanto, ela se move). Sim, mas todas as anomalias aparentes, nuta~oes ou libra~oes, reduzem-se ao repouso, todas as varia~oes pelo tempo se restabelecem. Constancia. A harmonia do mundo vem da composi~ao de movimentos complexos de uma corda, de uma placa ou de urn tubo de ar. Por outro lado, os objetos celestes nao se apresentam de maneira homogenea; a terra tem um nucleo s6lido, recoberto aqui e ali por uma mancha Iiquida, oceanos e mares, envolvida no todo por uma massa gasosa, a atmosfera, tres estados que a tornam um tanto viscosa. 0 piao de Platao move-se da mesma maneira, s6lido em todos os pontos. 0 manto dos mares pode deslizar, adquirir movimentos ritmicos pr6prios, que, em compensa~ao, podem influenciar os ritmos do s6lido movente. 0 inv6lucro atmosferico tambem e atravessado por vibra~oes cujo periodo, se e que existe, ainda nao descobrimos. A questao do movimento da lugar 11 lei de constancia. A da composi~ao da lugar ao conceito de consistencia. A consistencia caracteriza 0 s6lido, mas tambem 0 raciocinio dedutivo rigoroso, a nao-contradi~ao de um sistema. Na mectmica celeste 11
297
MICHEL SERRES
maneira de Laplace, a matematica corresponde ao mundo como dois sistemas consistentes. Mas quanta ao s6lido, hesita-se e vacila-se. A mecanica do s61ido proporciona muitas certezas; para 0 manto aquoso, pode-se adiantar uma teoria das mares; os meteoros, 0 fogo e 0 ar ficarao de fora. Complexos demais para entrarem no sistema. Mas que trazem 0 quadro de sua formayao. Em estado de regime, este que conhecemos, 0 mundo segue 0 tempo reversivel, 0 do balancim: nada mudaria nem nas equayoes nem nos fenamenos ritmados se 0 tempo fosse contado de modo regressivo. Questao nova: como se forma este sistema, como ele chega a este regime de equilibrio por seus movimentos? Laplace passa da cosmologia it cosmogonia na Nota VII anexada a Exposi,ao do sistema do mundo. Observem a Iinguagem com que Laplace observa os planetas: "expor" lanya fora do equilibrio 0 conjunto das coisas que se poem nele, "sistema" ou composiyao. 0 astranomo raciocina e abre uma rubrica; cinco circunstancias gerais caracterizam, diz Augusto Comte* depois de Laplace, a constituiyao do sistema solar: as circulayoes, rotayoes e satelites seguem todos a direyao Ocidente-Oriente, nunca outra, orientam-se muito exatamente; as 6rbitas mostram todas uma excentricidade, embora fraca, nos pIanos que se afastam uns dos outros, embora pouco. Trata-se justamente de circunstancias: fenamenos nao compreendidos na defmiyao estrita do sistema, nao dedutiveis do equilibrio geral, a parte. Nenhuma balanya compensa as direyoes gerais pelos movimentos que eu diria ocidentadas, nem os afastamentos do equilibrio, excentricidades ou inclinayoes, pelas obliqiiidades simetricas. 0 tempo reversivel nao integra suas exceyoes em uma soma ritmada. 0 c1inamen de Lucrecio volta, e em dimensoes gigantescas. Lanya-nos no tempo da genese, irreversivel, 0 tempo do fogo: na cosmogonia, 0 sol deixa seu papel de massa central para reassumir 0 de fonte de irradiayao. A distancia espacial ou temporal que dele nos separa, nebulosa original, nao e contada por suas foryas, mas por seu resfriamento. Donde a hist6ria linear em que vai girar 0 sistema circular: as circunstancias em questao, f6sseis da nebulosa quente em rotayaO, condiyoes iniciais para 0 duplo sentido das matematicas, para as equayoes, e 0 do sistema mecanico, para a evoluyao, circundam bern as constancias ou equilibrios de seu desequilibrio dado, de falta de consisten298
'" Augusto Comte, Cours de philosophie positiye. 27a li~ao. Hermannn, t. 1, p. 434. Ver tambem a palavra circunstdncia usada para a mare: Id, Ibid.: 25 a li~ao. pp. 405 e 406.
OS CINCO SENTIDOS {Visita}
cia. Ao se resfriar, 0 sistema torna-se mais duro, menos viscoso. A hist6ria e 0 tempo irreversiveis mergulham em substancias bizarras. Nascem as circunstancias. Termodinamica - Carnot distingue as maquinas movidas a fogo das que nao recebem movimento do calor. Erro: os homens, como os animais de carga, as quedas-d'
299
,! MICHEL SERRES
300
meiro estado: estabilidade, tese ou estancia. Urn dos corpos ou uma das substancias entra em combustao, poe-se, de repente, em afastamento do equilibrio. Instabilidade. Mal ousamos dizer que as duas fontes, frente a frente, quente e fria, e em afastamento por essa razao formam antitese entre si. Para que a estabilidade ou sintese volte, deve ocorrer urn transporte de urn corpo ou fonte a outro, aqui, transporte de calor, como de agua ou de ar, alhures, ou de tara. Ele se da. Produz movimento. Mas a combustao continua, no corpo quente, reproduz-se em afastamento do equilibrio, 0 transporte se perpetua, todo mundo reconhece urn cicio celebre que bern gostariamos de chamar exatamente a circunstancia. Equilibrio dado, rompido, reconduzido e circularmente retomado e desfeito. A circunstancia torna-se todo 0 motor. A substancia ja nao tern importancia: e queimada no fogao. Mas ela significa duas vezes urn cicio ou circulo: nao s6 0 da ruptura e retomada da estabilidade, mas 0 da defini,ao e fechamento do processo. Pois 0 segundo principio, tam bern descoberto por Carnot nessa ocasiao, interdita qualquer dialetica, que e reduzida a urn movimento perpetuo absurdo ou trivial, ou melhor, a urn erro de conexao entre local e global. Torna-se facilmente universal. Urn seculo depois, ao meditar sobre as duas fontes, 0 equilibrio e 0 movimento, 0 impulso, Bergson, como todos os sabios que 0 precedem e 0 seguem, esbarra na questao, condicional, do aberto e do fechado. A descri,ao de Carnot, seu cicio de equilibrios e de rupturas ou circunstancia, e valida num sistema fechado em urn entorno, no meio do qual se forma, no fim das contas, urn outro equilibrio. 0 recinto fechado tambem poderia ser denominado, por essa razao, circunstancia. A questao que Bergson legou, hoje retomada, como aqui, pelas ciencias, consiste em conectar 0 fechado e o aberto, 0 local e urn outro local ou urn inicio de global, em prolongar os equilibrios nos afastamentos ou fora de prumo, franqueando 0 limiar ou a divis6ria da circunstancia. 0 que se passa ali, quero dizer: ao lado? A circunstancia diz as maravilhas 0 trabalho produtivo do local e seu movimento temponirio, espa,o e tempo; e mais a periferia que 0 fecha e no meio da qual se estabelece e reina, enfim, urn equilibrio; e mais 0 conjunto das flutua,oes que contornam as janelas abertas na membrana ou pele ou fronteira, ou recinto ou clausura. 0 que e permutado ai: na vizinhan,a desse olhar?
1
as CINCO SENTI DOS
{Visila}
Va hi, 0 sol sempre irisa em algum canto... A circunstancia entra em ciencia enquanto a eliminam da ciencia; entra em mosofia como sua questao atual; ela esta no sensivel: tam bern 0 define? Ver: com 0 olho aberto ou fechado, do local ou do global olho-ilha e olhar-caminho, 6rgao local ou percep~ao amp la, tecidos ou veus por onde passam e se permutam f6tons, enzimas, outros elementos. Zoologia. - Os vertebrados tern olhos. Os da toupeira sao muito pequenos, mal aparecem. 0 aspalax, toupeira persa, nao os tern, assim como 0 proteu, pequeno reptil aquatico que vive nas aguas subterraneas profundas. Os vertebrados tern dentes: a baleia nao, nem 0 tamandua; as aves apresentam urn bico c6rneo. Os vertebrados todos tern orelhas, sem exce~ao. Explica-se: 0 som se propaga universalmente; a luz, nao: local, a visao, global, 0 ouvido. Lamarck escrevera urn tratado sobre 0 tema do som e suas vibra~6es. Teremos de voltar ao banquete dos passaros. A vida revela urn plano de conjunto, diz Lamarck, progressivamente composto, aperfei~oado ou complicado pelo e no tempo. Mas uma causa externa atravessou aqui e ali a execu~ao deste plano sem, contudo, destrui10: deu lugar as lacunas reais da serie ou as anomalias: dimas, solos, lugares e meios, fluidos ambientes ou circundantes, meteoros ... Ao se deslocarem, os bichos mudam. o plano da vida desenvolve-se na ordem e na generalidade, como uma lei global. Ora, se descrevermos ao detalhe local os 6rgaos dos animais, nem sempre encontraremos essa marcha de composic;:ao crescente. As circunstancias impuseram-Ihe obstaculo e introduziram acidentes, variac;:6es, desvios, irregularidades em seu desenvolvimento, que, a partir dai, apresenta desordem e contingencia. Lamarck dedica-se a pensar a conexao do local e do global como 0 maior problema levantado pelos vivos: a simplicidade da lei acha-se desviada ou perturbada aqui e ali; as circunstancias dao Iugar. As circunstancias dizem a multiplicidade irredutivel i\ unidade: nao em numero apenas, mas em localiza~ao, forma, tempo, cor ou matiz, materia, fase, vizinhan~as ... contingencia. Quando possivel, sao levadas a nada, anuladas ou exduidas: reina a 16gica das maos limpas. Retirem todas as coisas que vejo ai: vejo com a condi~ao de olhar sempre 0 mesmo. Nada
':lstituto de Psicologia - UFRGS Biblioteca
301
MICHEL SERRES
302
de novo sob 0 sol. "Nas mesmas circunstilncias" faz urn bela oximoro, diriamos verdadeiramente circunstilncias se elas se apresentassem mesmamente? E, neste caso, ja, apareceriam a lei ou a unidade. Elas podem resistir, com seu caos frondoso, sarapintura diante da regra. Todo 0 esfor~o do pensamento passado consistiu em ajustar a multiplicidade do ponto de vista da unidade ou da lei. Ajuste ao mesmo tempo racional e irracional, mesmo no ambito dos process os da razao. Ha desgosto, as vezes, nos metodos e protocolos. Aclimatar, amansar as circunstancias ou, decididamente, exclui-las, em todo caso, distingui-las bern do saber pensavel- e considera-las com horror ou benevolencia segundo a saude de sua pele; objeto ou obstaculo, conforme. Vejam que esse ajuste funciona como se 0 saber assinasse sucessivas conven~6es com urn adversario cada vez mais premente. Acabamos de ler o contrato de expulsao completa: nao sera caso para rir quando a l6gicaou a gramatica - falar do sensivel. Vejam a aproxima~ao inteligente e meticulosa desses casos complexos de equilibrio onde os afastamentos se anulam ou se compensam em urn tempo, tambem ele compensado, vejam a sustenta~ao circunstancial de certos afastamentos. Vejam como Laplace agrupa as circunstancias nao redutiveis as leis peri6dicas e reversiveis e coloca todos os desvios e todos os afastamentos em uma hip6tese exterior a ciencia entao convencionada, e, com isto, acelera a forma~ilo paradoxal de uma cosmogonia. Vejam como Camot encontra urn equilibrio num ciclo e urn novo desequilibrio nesse equilibrio fechado, admirem-no quando inventa 0 motor na pr6pria circunstancia. Ajustes refinados na ponta agu~ada do saber e do nilo-saber: as circunstancias, sempre presentes ai, formariam 0 objeto privilegiado do contato delas? Vejam como Lamarck ajusta outra vez. A vida, para eie, vira plano, lei, unidade, ordem. Todo sabio considera-se do lade da ordem e da lei, como todo politico, no fundo, como todo homem. Posi~ilo comum: 0 que significa geral, global, vulgar e estupida. 0 saber que pratico vira regra. Lamarck: a vida desenvolve seu plano unico, de composi~ao crescente. Por irregularidades? Agrupem-nas, rejeitem-nas em uma outra ordem: 0 mundo, 0 meio, climas e meteoros, em suma, as condi~6es da vida, 0 meio ambiente inerte e vivo tambem; as circunstancias encontradas riscam ou matizam com sua multiplicidade 0 espa~o e 0 tempo onde a vida, unitaria, mergulha. Por seu turno, ela ajusta as circunstancias, adapta-se a elas, pois nilo po de anula-las nem considera-las nada nem sup a-las iguais sempre e em toda parte nem agrupa-las em classes. Ela mergulha em uma mistura e
OS CINCO SENTIDOS {Visita}
muda. Visita urn mundo pinturilado. Lamarck enuncia leis: grandes mudan<;as nas necessidades produzem grandes mudan<;as nas a<;6es e, se essas ac;:6es perduram, dao lugar a habitos que produzem novos 6rgaos, transformados, ou seja: em outras circunstancias, as mesmas causas produzem outros efeitos. Certo? Errado? Voces encontrarao dentes escondidos nos maxilares do feto da baleia, e sua ranhura no bieo das aves: a lei guarda seu tra<;o. 0 aspalax conserva sob a pele vestigios de olho, tal como 0 proteu, esse orgao fossilizado que ja nao tern sequer acesso it luz. Mas as aves vivem em circunstancias que lhes retiram a mastigac;:ao e as toupeiras rondam nas covas profundas. Que Lamarck esteja ou nao errado, pouco importa, 0 essencial ainda e ve-lo distinguir urn mundo pinturilado, circunstancial e muitiplicitario de uma vida unitaria que desenvolve seu plano legal. A vida desce no mundo como alias 0 espirito na hist6ria, donde a variedade de avatares locais. A biologia, por seu turno, avan<;a negociando as multiplicidades. A nuvem circunstancial, fora da vida, em Lamarck, entra neia, de alguma maneira, em Darwin e seus sucessores: a mistura povoa a genetiea e seU material. A vida produz por si circunstancias que ela apenas refletia. A negociac;:ao continua, fina, habil. Separa menos 0 global, lado vida, do local, lado mundo. Muta<;ao e sele<;ao aproximam melhor a conexao do local e do global. o pensamento visita as circunstancias, em vez de a mente sofrer 0 inferno delas. Amor. - Julien acaba de segurar a mao da Sra. de Renal: "As horas passadas sob a grande tilia, que a tradi<;ao local diz ter sido plantada por Carlos, 0 Temerario, foram para ela uma epoca de felicidade. Ouvia deliciada os gemidos do vento na densa folhagem da tilia, e 0 ruido de algumas raras gotas que come<;avam a cair sobre as folhas mais baixas. Julien nao notou uma circunstancia que bern 0 teria tranquiJizado; a Sra. de Renal, que fora obrigada a retirar-lhe a mao porque se levantou para ajudar a prima a erguer urn vaso de flores que 0 vento acabava de derrubar ao lado deias, assim que se sentou de novo, devolveu-lhe a mao tranqiiilamente como se, entre eles, isso ja estivesse convencionadd: Eles se man tern como urn grupo estatuario: cada qual sentado, a mao dela na mao dele, 0 jarro colocado, sistema em equilibrio. Mas urn golpe de vento joga no chao 0 vaso de flores: 0 objeto mais baixo sai de sua base,
303
MICHEL SERRES
as duas mulheres deixam seus assentos e se levantam, as maos se desatam, os tres elementos do sistema perdem 0 equillbrio ao sabor da lufada. Podemos dizer imprevisivel 0 sopro de brisa. Mas dessa mesma circunstancia segue-se uma certeza verdadeira. 0 vaso reencontra sua base; em vez de irem dormir, as duas amigas voltam a se sentar; as maos retomam contato. Mesmo equillbrio de antes do vento, contudo, bern diferente: a conven~ao emergiu da circunstancia. Vma nova ordem nasce dos caprichos do ar. As duas maos que chegam ao contato por uma conven~ao fisica, ou literal, voltam juntas para firmar uma conven~ao contratual. A brisa traz 0 contato, ao empurrar, com urn tapinha improvavel, as mulheres, 0 vaso e as maos para a inquieta~ao, fora do repouso. A circunstancia desenha urn equilibrio mais urn afastamento vindo do arredor. Na periferia do sistema, sua sombra: a espessa folhagem da tilia; mais uma coroa de ruido: gemidos do vento nos galhos, crepita~ao das gotas de chuva nos ramos baixos. A circunstancia emite seu ruido de fundo a partir de urn halo. Louise escuta em deleite 0 murmurio. Desse ambiente vern o vento, desse burburinho vern 0 desequilibrio, a conven~ao contratual resulta do ruido de fundo. Sigamos a genese da conven~ao. Voltemos atras, ao mesmo lugar, a noite sob a tilia, a vigilia. "Julien falava com a~ao; ao gesticular, ele tocou a mao da Sra. Renal que se apoiava no encosto de uma dessas cadeiras de madeira pintada que se usam nos jardins. Mao que logo se retraiu:' 0 primeiro contato tern lugar por acaso, sem inten~ao nem projeto de qualquer das partes, 0 rapaz a fazer muitos gestos. A palavra abstrato nao diz disso mais que a palavra concreto: a contingencia descreve exatamente urn contrato, como se 0 reencontro tMil ou material trouxesse com ele a ocasiao, o fortuito, 0 acidental e incerto. Dizer que 0 contato tern lugar por acidente e, pois, redundincia. Quando Cournot define 0 acaso como a interse~ao de duas series causais independentes, descreve apenas 0 termo de contingencia, nao passa da pr6pria palavra ou do sentido dela. Duas seql1encias se encontram, duas maos se tocam, dois cursos se cruzam: eis urn concurso de circunstancias. A mao que logo e retirada significa que 0 gesto improvavel nao podia dar lugar a urn estado. 0 encontro nao pode se reproduzir nem resultar em urn equilibrio. 304
0 movimento vai da contingencia a conven~ao. Desta aquela, 0 afastamento mal e percebido, pois as duas palavras tern quase 0 mesmo senti-
OS CINCO SENTI DOS
{Visita}
do: duas maos, ap6s 0 encontro, vao vir ao concurso. Do acaso a inten~ao, o caminho passa ainda, ironicamente, pelo acaso: a conjun~ao ou coincidencia fortuita transforma-se em conven~ao pelo golpe de vento que confirma 0 equiHbrio. Cumulo da irrisao para quem, de ler e imitar Bonaparte, segue implacavelmente sua vontade, urn fim, 0 dever, a ambi~ao sem descanso nem fraqueza, a igualdade, todas essas coisas. A sorte recorta em pizicatos diferenciais a curva decidida que s6 acredita em seu arco, enquanto a casualidade integra minimos acasos. A circunstancia diz de maneira excelente tres coisas: 0 entorno impreciso dos sujeitos, objetos ou substancias, mais distanciado ainda que 0 acidental; os acasos muito solidamente imprevisiveis; uma hist6ria delicada de repouso e equiHbrios, de inquietudes e voltas ao estado, de afastamentos em dire~ao ao meio fiutuante. Portanto, a tilia e sua folhagem espessa, a obscuridade profunda ao cair da noite, as nuvens, 0 vento, os meteoros, a brusca lufada que derruba 0 vaso, a gesticula~ao das maos e dos bra~os em torno do corpo, 0 ruido da chuva, a explosao vocal vinda de quem se abala, 0 silencio convencional. Em torno da substancia estavel distribuem-se atributos, implicados num sujeito substancial. Em torno dos atributos, os acidentes podem variar. A circunstancia fiutua como terceiro halo. Esse anellonginquo cria de repente urn detalhe que perturba a substancia estavel ou 0 sistema e nao os transforma ou os transforma; e, se 0 faz, transforma-os muito, urn pouco ou totalmente. A nuvem circunstancial, como toro volatil, bombardeia 0 centro de elementos imperceptiveis, negligenchiveis, eliminados; as vezes, contudo, decisivos. A desconhecer essa aureola, a fIlosofia pareceria ainda uma conta de antes dos grandes numeros, uma medicina anterior aos micr6bios e virus, uma mecanica ignorante dos atomos ou particulas, uma mensagem sem informa~ao nem ruido. A nuvem ou toro de circunstancias aproxima-se as vezes do n6dulo substancial e 0 apaga, assim como seu sequito dependente de atributos e de acidentes; pode obscurecer tambern as series ditas causais. A multiplicidade impede-nos decidir do sujeito ou do objeto como a neblina da manha turva 0 vale, como as silveiras que nascem nas sebes alastram-se pela paisagem que vira brenha ou deserto quando ninguem revolve mais os campos recortados. Os gemidos do vento e da chuva iniciante, a gesticula~ao do rapaz perturbam a cadeia exata do projeto decidido ou a inclinam ou fazem-na bifurcar; assim a lama, 0 sono e a folhagem dos arbustos escondem a grande estrategia de Waterloo aos olhos dos que passam pelo caminho.
305
MICHEL SERRES
Entre 0 instante contingente ou a fortuita caricia e a mao concedida sob a chancela da conven~ao decorre uma jornada: mUitiplos desequilibrios marcam esta espera com afastamentos minimos. Ela perde a cabe~a, ele sente 0 cora~ao bater forte; a voz dela se altera, ele fala gaguejando; 0 excesso de emo~ao deixa-o fora de si. Como um rio que saiu de seu leito, a narrativa vai bus car outras estabilidades, tira da base tudo 0 que vai encontrar uma nova base. Um conjunto se reorganiza como porvibra~6es, os sons, palavras e cora~o, os movimentos, 0 vento: uma tempestade se anuncia, a brisa quente passeia as nuvens pelo ceu, as duas amigas, como as nuvens, passeiam: rodeio. Imaginem varias bolinhas em repouso no compartimento pr6prio, como vemos em certos jogos infantis; um choque ou algumas vibra~6es fazem-nas sair do sulco ou da concavidade onde dormem, e, com inclina~6es finas e sutis, voces devem reunir duas em uma cavidade predeterminada. 0 rodeio das bolinhas em um plano segue urn percurso interessante embora imprevisivel: tao pouco regido por leis simples que cada tentativa, com certeza, distingue-se de todas, original e impossive! de ser repetida. 0 bombardeio circunstancial torna singular cada situa~ao ao passo que 0 percurso met6dico atravessa um deserto homogeneo. Assim as horas que decorrem da contingencia a conven~ao, marcadas de afastamentos do equilibrio ou de estados extremos, instaveis, violentos, enchem-se de singularidades: olhares apaixonados, arritmia do cora~ao, qualquer a~ao, nesse dia, parece singular, imprevisivel, rara, (mica. o sistema atinge sua base final por rajadas de pequenos choques fortuitos que fazem cada elemento perder sua estabilidade local e precipitam todos num repouso intensificado. De momenta a momento, a vida avan~a, gloriosamente improvavel. Programada, sem duvida, obstinada, ambiciosa, tensa, num caso assim, mas mergulhando numa nuvem turbulenta de solicita~6es que deveriam ser chamadas meteorol6gicas. Lucidos para 0 halo voluvel das circunstancias, compreendemos ou conhecemos melhor, a felicidade cotidiana aumenta, a aventura esta aL
306
Nesse halo, toro ou borda, 0 global ramifica suas conex6es com 0 local e inversamente. Para que uma lei geral seja aplicada, aqui e agora, de forma repetitiva e previsivel, exigimos, antes de tudo, as mesmas circunstancias: prova de que desconfiamos delas e de que elas constituem 0 conjunto das
I
1
OS CINCO SENTI DOS {Visita}
condi~6es para a referida experiencia. Elas poderiam perturbar 0 fio do encadeamento causal; em outras circunstiincias, as mesmas causas nao produziriam os mesmos efeitos. Elementos vindos do referido halo tern 0 poder de perturbar 0 sistema determinista e faze-lo desviar para outras conseqiiencias. Em outras palavras, 0 pr6prio principio do determinismo implica, em suas condi~6es iniciais, sua pr6pria generaliza~ao, ou, melhor, mostra 0 mundo em que mergulha e como 0 desbasta para atravessa-lo. A serie legal transita pelo halo antes de chegar ao lugar e ai ajusta sua passagem. Assim os raios do sol franqueiam 0 cinturao de Van Allen e a atmosfera, correntes, nuvens, umidade, antes de nos atingirem, transformados por esses obstaculos ou fIltros. Mudem consideravelmente esse manto, a vida na terra perece. a determinismo como a identidade poderiam ser concebidos como estados estiiveis, no fundo de algum buraco: cada po~o tern sua borda, seus entornos, a planicie circundante onde as circula~6es poderiam tomar a dire~ao de outros lugares baixos. au como estados raros, no topo de alguma ilha: cada lado tern seus recifes, suas beiras, 0 mar flutuante onde os navegadores poderiam ir a outros arquipelagos.
As estradas irradiam ao redor das vilas, vindo de cidades distantes e vizinhas ou indo para elas; formam treli~a no solo, drenam os elementos do espa~o. Carregam circula~6es e fluxos para a periferia onde se fazem as misturas, triagens, trocas, os mercados. A capital, cabe~a ou centro, parece viver dessas crostas, como se urn equilibrio ocorresse numa plataforma ou num buraco, acr6pole rodeada por urn cinturao flutuante que bombardeia, destr6i, restabelece 0 estado, em suma faz ele variar. Podemos ou nao marcar os pontos ou lugares das triagens e misturas, os trevos; podemos ou nao isolar 0 local do centro, as trocas que podem ocupar todo 0 espa~o. Sem capital? Eis 0 castelo ao men os. Sem castelo central? Eis 0 rei ou 0 secretario-geral. as cavaleiros arautos cruzam os canais nas fronteiras do reino ou nas do trono, mas a cabe~a solitaria do pr6prio presidente carregara outra coisa senao milhares de neuronios e ax6nios que sussurram mensagens como qualquer cruzamento e perpetuam as trocas? A aureola das circunstancias e os trevos invadem 0 lugar; onde encontrar agora 0 sujeito, a substancia, substrato, centro ou capital? Iris usa uma echarpe flutuante, reconhecemos Hermes nas serpentes cruzadas: espa~o anelado de comunica~6es, totalmente descentrado, que invade 0 centro.
307
MICHEL SERRES
o global- materia, energia, informa,ao... lei -
308
advem a uma localidade - celula, corpo, vila ... elemento de paisagem - por seu entornomembrana, pele, muros perifericos, fronteiras ... circunstancias - onde ajusta seu transito ou passagem por urn trevo. Trevo. Uma via permite a movimenta,ao em uma pista e segundo uma linha. 0 metodo resulta de urn calculo de otimiza,ao. Sigam direto, mas sobretudo: nao multipliquem os sentidos e as direyoes sem necessidade, escolham. Entre diversas vias possiveis, e preciso eleger uma e manterse nela. Mas antes mesmo dessa escolha, considerem ainda que e preciso eleger tambem uma e unica dimensao e manter-se nela. Nao se dispersem no plano nem no volume: 0 viajante perdido na floresta erra na clareira e sobe nas arvores para ver apenas folhagem. A bifurca,ao, tanto quanto 0 balao ou 0 retorno, define urn plano pelas retas ou uma superficie por duas curvas: 0 m6vel se dispersa. 0 mesmo acontece no detalhe muito pequeno: a otimiza,ao exige uma linha lisa e nao pistas de buracos ou calombos onde 0 m6vel se desfaz por uma multiplicidade de deslocamentos minusculos no mesmo espa,o: solavancos. Pois bern, 0 trevo faz a linha passar a duas e, para evitar 0 cruzamento no mesmo plano, a tres dimensoes, em sua eflorescencia. Esquerda, direita, por entre, balao, retorno, por cima e por baixo, em cima, embaixo, 0 n6 explora 0 lugar. Rodeio ordenado. Aqui a otimiza,ao nao exige atravessar depressa mas enfiar-se entre: em vez de anular 0 espa,o, 0 deslocamento 0 cria ou 0 torna abundante. Nunca imaginariamos 0 ceu tao volumoso antes de termos visto a aurora boreal e desenhado seus fesWes: 0 desenho celebra e cria imensidade; nunca imaginariamos nosso torrao tao grande antes de construirmos nele: 0 projeto instala cern detalhes decorativos e uteis. A via passa entre duas vias promovendo outras entrevias. 0 n6 pratica lugares por onde podemos introduzir mil novos n6s. 0 transporte da mensagem da lugar a novas mensagens. 0 espa,o intla. A tumefac,ao torna-se uma condiyao da analise ou urn resultado de seu exerclcio. Desatar faz inflar. Todos sabem que 0 transporte ou a movimenta,ao de urn monte de areia com pas ou gruas nao para de inflar 0 volume. As sacudidelas criam intersticios entre os graos como fazem os n6s entre os elos. Que diferen,a separa urn trevo rodoviario da rede de estradas que cobre urn pais? Unicamente a inflayao, 0 vazio entre os intervalos. Se bern que a infla,ao nao goze de credito algum no meio dos pensadores, ninguem no entanto analisa sem desatar, ninguem pode desatar sem dar margem aos afastamentos, nem sol tar sem fazer inflar. Escrevemos, ora
05 CINCO SENTIDOS {Visila}
urn volume numa pagina, ora tres tomos a prop6sito de uma linha, ora uma soma com uma palavra. o n6 ou trevo inventa 0 local por uma prolifera~ao semelhante, analitica mesmo. Inventa intervalos por entre cujos limites a via pass a; de repente, ao passar por urn intersticio, a pr6pria passagem faz nascer outras novas: entre sua margem e 0 limite. Ao retornar sobre si mesma, a via abre portanto novas vias de retorno. A implica~ao sobeja e multiplica-se por si mesma. Cria seu espa~o, suas vizinhan~as e interval os, abertos e fechados, fronteiras e continuidade, preenche, pois, 0 volume que 0 fio estendido nega ao atravessa-lo, abstrato. A jun~ao vira bola ou boneca. Tran~a, porno, rosa, buque, n6 de frade ou de andorinha, cabe~a de porco e rabo de rato: emergencia de uma coisa em urn lugar. Ja nao tomo por imagens os nomes dos n6s: quem dira 0 que uma cabe~a ou uma rosa deve as invagina~oes de mil vias? Elas brotam. A opera~ao inversa a tumefac~ao amarra. Mas urn no bem-feito podese apertar a vontade, ele continua desatavel. A analise nao tern necessidade de desatador: a velha linguagem faz falta, podemos amarrar e continuar analiticos. A obra excelente amarra da mesma maneira: cria seu espa~o, preenche urn volume, infla sem vazio. Vemos justamente ai que a mo~ao global por sua for~a cria bolsoes, e as implica~oes locais procuram mais alem por suas riquezas: como uma paisagem do mundo. Como 0 6rgao de urn corpo. Ao visitar 0 atlas de anatomia 0 olho hesita em reconhecer trevos ou n6s cerrados, abundantes, em qualquer escala de tamanho, que preenchem com suas bifurca~oes ou pregas, metes e al~as, envolt6rios ou fendas, janelas, urn volume local. Qualquer coisa, inerte, viva, trabalhada pode ser definida como uma turbulencia que se ordenaria em trevo?
A principio, ele s6 serve de passagem, ainda global. Logo, em algum canto onde a circula~ao torna-se mais rara, forma-se uma especie de garagem; longas mas de caminhoes, anoite, repousam no turbilhao, os motoristas, apesar da balburdia, dormem ali. A policia constmiu, numa ilha, barracoes para achados e perdidos e para seus pr6prios servi~os. Arvores cresceram nos circulos de grama na cavidade dos retornos e balOes, onde os passarinhos se aninham; ali, gmpos de mendigos descobrem seu paraiso, protegidos do mundo pela circunstancia turbulenta, fronteiras que s6 sao ultrapassadas em perigo de morte. Ali eles vivem, bebem, copulam e fazem pequenos comercios com os grandes caminhoneiros, sob 0 olhar paternal
309
MICHEL SERRES
da lei. 0 trevo agora esta rodeado por uma alta pali,ada opaca que protege o entomo do ruido, de sorte que vemos os veiculos sairem ou entrarem pelas portas ou janelas pratieadas na placa da pali,ada, a soma das saidas ja nao iguala a das entradas numa caixa que se toma cada vez mais preta, estamos assistindo it emergencia de urn lugar companivel a uma colmeia, uma cidade, urn palacio, organismo, celula? .. 0 trevo inventou urn lugar por tecelagens, nos e passagens, que recria urn novo por paradas ou oclus6es e essas estabilidades criam outras compensa,6es que ... Com fio ou cabo, a mao cria urn olho ou buraco por onde passar, pratiea pois urn intervalo distinto. Claro, ou seja, na~ envolvido nem embara· Ihado, 0 fio passa quantas vezes quiser ou puder em todos 0 sentidos ou dimens6es que a pr6pria passagem invente. E 0 gesto reitera 0 olho aberto eo caminho-meio. Eis a analise, mas ela ata sem desatar, ou prepara-se para desatar atando firme, de modo claro e distinto. 0 no cria lugar multiplicando seus meios distinta e claramente. A analise ai, longe de destruir, constr6i e a dieotomia ou cisao e incessantemente observada. Ai 0 entre e tao superabundante que une em vez de desmembrar. Esse gesto de tecela ou de tricoteira, de marinhagem nos vern da noite dos tempos e do corpo: ate as aves do ceu, com 0 bieo ou com as patas, sabem dar nos ou tecer quando fazem ninhos. Eis as origens rec6nditas da topologia, portanto, da geometria, primordios onde a vista desaparece no tato, onde 0 tato, sensivel e delicado, vI' 0 relevo, 0 lisa 0 separado: origens que precedem de toda uma era a vinda da palavra. Mao e olhar aplicam-se pela la,ada, pela teceiagem ou pelos nos, em co nectar 0 distante e 0 proximo ou em realizar variedades lisas au asperas, apertadas ou frouxas, densas ou ralas, a partir de uma simples linha. 0 lugar come,a a inflar por esse mesmo elemento que 0 nega quando persegue 0 global economicamente. Prende-se a outros lugares pouco a pouco como 0 ponto de amura passa it bolina e por ela a todo 0 velame do barco que parte para os con fins do mundo. Por seu desenho topologico, seus atritos e sua for,a, em diferencia,ao e clareza, os nos soldam 0 local ao global e reciprocamente.
310
Falamos a varias vozes. 0 mundo e visto como localidades rodeadas de vizinhan,a, circunstancias, conectadas entre si pelos trevos que viram lugares, ligados entre si pelas vias que irradiam no global, cujo status mais ou menos local nao sabemos decidir. Essas proposi,6es valem para 0 inerte, 0 vivo, simples e complexo, para as cern especies de coletivos, para a
s
as
CINCO SENTI DOS
{Visi!a}
obra e 0 pensamento, formal ou belo, rodeados de condi~oes ou de guirlandas; deverlamos seguir para uma teoria global dos trevos e circunstfincias, vizinhan~as e misturas, coroas de trocas em torno do lugar ocelado, valida para a paisagem, mas em busca da universalidade. Onde se encontra, ai, a passagem do local ao global? Mas 0 sensivel de que este livro fala e paradoxalmente se proibe de reduzi-lo a palavra - a ciencia experimental tambem s6 deveu seu nascimento e sua existencia, seu sucesso em perceber as pr6prias coisas e conceber suas leis, a uma analoga defesa paradoxal contra 0 dominio imperialista de uma filosofia da linguagem que, na Idade Media, impunha sua rigidez - mas 0 sensivel em geral e igualmente a presen~a constante e a flutua~ao de circunstancias cambiantes na coroa ou aureola que avizinha o corpo, em torno de seus limites ou bordas, alem e aquem da pele ou da superficie, nuvem ativa, aura onde tern lugar as misturas, triagens, bifurca~oes, trocas, mudan~as de dimensao, passagens da energia it informa~ao, liga~oes e desligamentos, em suma, tudo 0 que conecta 0 individuo local e singular as leis globais do mundo e as flutua~oes do nicho m6vel. Pelo sensivel, este lugar raro e imprevisivel domestica OU aclimata os reinos do calor, da luz, do choque etc. A pr6pria gravidade ou a atra~ao universal ao passar por sua situa~ao distribui a simetria do sens6rio e esculpe urn corpo que certamente adquiriria uma forma radial na ausencia da gravidade. Nesse turbilhao periferico onde se multiplicam os trevos, eles mesmos de certa maneira turbulentos, ata-se nossa rela<;ao movente com 0 mundo: base estavel, audacias instaveis, pequenos golpes fortuitos que ele lan~a a periferia, metaestabilidade de nossa vida que dai em diante deveria ser chamada circunstavel. Sensivel tern urn sentido comparavel ao dos adjetivos seguidos de uma mesma termina~ao. Revela uma sempre possivel mudan~a de sentido. Assim a agulha imantada goza de sensibilidade: vibra e tenta equilibrios em torno de urn azimute fragil. Por solicita~oes minimas que vern de toda parte, em qualidade, dimensao ou intensidade, em todos os comprimentos de ondas, a sensibilidade estremece, fiutua e varre em seu rodeio dan~ante os espa~os por onde as coisas, 0 mundo e os outros a bombardeiam ou chamam. Assim 0 eletroencefalograma parece procurar por toda parte numa extensao branca os apelos eventuais, sua varredura passa e repassa como uma aten<;ao flutuante e completa, aberta, inteligente porque insta-
311
r MICHEL SERRES
vel: se aqui ou ali uma espiga ficou por respigar, seu movimento, circunspecto, inconstante, nao a perden\. Mil cilios vibrateis pululam aleatoriamente em torno de atratores estranhos. 0 ato e 0 pensamento, fascinados, elegem urn fim e uma 6rbita; 0 sensivel, aberto como uma estrela ou quase fechado como urn n6 a todos os sentidos, m6ve! em todas as dimens5es, a varrer os azimutes da vizinhan~a, dedica-se, infatigavelmente, ao seu rodeio dan~ante, trevo em funcionamento ate a hora cha da morte.
312
o termo visita e 0 verbo visitar significam primeiro vista ever; acrescente-se ai urn percurso, quem visita vai ver, e alguma insistencia ativa, e!e examina e perscruta, revela benevolencia ou autoridade. 0 portador do olhar, na fIlosofia tradicional, geralmente nao se mexe: vI', sentado, pela janela, uma arvore em flor. Estatua posta sobre afirma~5es e teses. Mas n6s muito raramente vigilamos parados, nosso nicho ecol6gico compreende mil movimentos, pode ate acontecer que fa~amos a volta ao mundo por admira~ao pelo visivel. A terra gira, nosso posto de vigia global ha muito tempo abandonou a estabilidade, 0 pr6prio sol, doador de luz, m6ve!, corre, aparentemente, em dire~ao a urn outro lugar do universo. Oobservad~r, na maioria dos casos, desloca-se, para longe ou para perto, com maior ou men or velocidade, e realiza no minimo a rota~ao do observado. o corpo se move, 0 barco, a nave espacial, nosso planeta, os f6tons marcam justamente 0 limite de rapidez; 0 mundo passa da paisagem ao panorama, do local a urn universal, 0 rodeio transforma-se em metoda e este em rodeio. Deus sem duvida via mundo e coisas, n6s os visitamos: nao s6 devido ao sHio ocupado pelo corpo; nao s6 por meio dos utensilios, instrumentos e maquinas; mas tambem intelectualmente: cada disciplina, experimenta~ao ou teorema libera uma vista que e preciso ir buscar, outro deslocamento. A enciciopedia, se ela existe, e visitada como 0 mundo, se ele existe. E a velocidade da luz limita inteiramente tanto 0 visivel quanta o conhecivel ou os nossos sucessos tecnicos. Assim, 0 ate de visitar vale ao mesmo tempo para 0 empirico, a maquina e a abstra~ao. A visita que termina nao quis separa-Ios. Ela tambem nao separou a pesquisa, 0 controle ou a inspe~ao, rondas legais ou juridicas as vezes consideradas esmiu~adoras e insistentes nos minimos detalhes. Assim os vasos de guerra tern direito de visita sobre os navios mercantes, conforme certas conven~5es e circunstancias. Ela nao separou 0 sentido erudito do que e imposto pela for~a ou pelo direito; nem os objetos da visita: paisa gens, corpos vivos, pessoas a quem devemos
as CINCO SENTIDOS
{Visita}
retribuir a que recebemos delas. Acabamos de atravessar outra vez a passagem do Noroeste, da observa~ao bruta ou medicinal ao intercilmbio social e mesmo ao Deus da teologia quando ele quer se manifestar: primeiro sentido testemunhado do verbo visitar. Os deslocamentos para ver tomam caminhos, entroncamentos, trevos, a tim de que 0 exame entre nos detalhes ou passe a uma sinopse global: mudan~as de dimensao, de sentido e dire~ao. Mas 0 senslvel, em geral, mantem juntos todos os sentidos, como urn la~o ou trevo generalizado, todas as dimensoes e todos os conteudos. Entendam por conteudo os diversos terrenos por onde a visita passa: lugares, mundo, estatuas e jardins, desertos, oceanos e mares, meteoros, palses e despaisamentos, a mudan~a do prado em pagina, 0 chamado concreto ou a suposta abstra~ao, a lei, 0 direito, 0 hino medieval e os mandamentos do amor, a apologia dos n6s e 0 espectro das cores... a visita explora e detalha todos os sentidos do sensivel envolvidos ou presos em seu n6. Como poderiamos ver a capacidade compacta dos sentidos se os separassemos? N6s os visitamos sem desassociar os sentidos da palavra visita. S6 a lingua analitica desata 0 n6: entao ela perde 0 sensivel. Nao pode ganhar duas vezes, no elemento separavel e na soma conexa. Como fazer, porem, para nao os desatar? Poderiamos te-Ios visitado em grupo: ele nunca visita a nao ser a si mesmo e seu ruido, embora as vezes perceba alguns fragmentos daquilo que vern ver. Teria sido preciso dar nomes pr6prios a todos os participantes da viagem e, como se diz, urn caniter ou uma identidade a todos. Cada personagem, com este titulo ou esta denomina~ao, teria discursado, como de costume, sobre urn conteudo. Voces ja ouviram alguem sair as vezes de seu textol Teriamos dado urn nome latino a quem perora sobre a pagina, urn prenome cristao aquele que desvenda 0 antigo documento, urn nome judaico ao que descreve 0 deserto ao sol, urn titulo universitario ao top610go ou ao astronomo, urn grego teria recitado a Odisseia, urn gascao cantado 0 Garonne e Stendhal, de volta, sob as folhagens teria dito os amores de Louise, numa noite de vento. Pia tao nao escreve de maneira diferente. Os chamados conteudos sao desatados por corpos, e cada corpo carrega a palavra como urn painel de madeira nos ombros onde seu discurso estaria escrito. Calicles brada Calicles, outro nome da violencia, 0 belo Alceblades contesta e perturba como urn mho de rico mal educado, S6crates exemplitica e corta, professor de jardim da infancia, Teeteto morre como geometra, ninguem sai de seu numero. Col6quio. Assunto: 0 sensivel. Urn psicanalista ai s6 fala de
313
MICHEL SERRES
314
sua institui<;ao, urn membro da escola analitica discursa sobre 0 sentido ou a falta de sentido do discurso, 0 marxista de servi<;o decide nao sair da luta de classes, cada qual dol sua disciplina, nenhum corpo denominado ultrapassa a tumba de tabua ou de marmore em que esta gravada sua pertinencia. Insiram nesta caixa uma fita cassete pre-gravada na caixa da pertinencia, a presidencia do col6quio pressiona os bolOes do painel para acionar as fitas, e tudo come<;a muito bern no melhor dos col6quios, as diversas disciplinas cientificas se manifestam. A analise dos conteudos ja se desliga pelos corpos separados, e a soma ou conjunto dos corpos equivale it soma ou conjunto das linguas. Os corp os, de repente, saem do jogo. 0 sensivel e dito pelo col6quio ou lingua. S6crates e companhia morrem bern antes do Fedon: desde que man tern col6quio sobre 0 sensivel. A mente ve, a linguagem ve, 0 corpo visita. Ele sempre excede seu sitio e sai de seu papel ou de sua palavra, ou seja: nenhum corpo jamais cheirou e somente cheirou 0 odor unico de uma rosa. 0 entendimento, talvez, a lingua, certamente, realizam essa performance de isolamento ou sele<;ao. o corpo cheira uma rosa e mil odores em torno e ao mesmo tempo toca a la, ve uma paisagem multipla e estremece com as ondas de som, ao mesmo tempo, recusa todo esse borrao sensivel para imaginar a seu bel-prazer, recolher-se abstratamente ou cair em extase, trabalhar ativamente ou interpretar seu estado de dez maneiras sem deixar de experimenta-Io. 0 corpo sai do corpo em todos os sentidos, 0 sensivel ata esse n6, 0 sensivel ou 0 corpo nunca ficam num mesmo terreno ou conteudo, mas merguIham e vivem em urn trevo perpetuo, turbulencia, turbilhao, circunstancias, mantidos assim ate 0 instante de sua morte, quando 0 n6 se desata, desliga-se e analisa-se, onde a turbulencia desfaz seu elo ou se esvai nos fluxos. 0 corpo excede 0 corpo ou desfalece, esse eu ultrapassa 0 eu, a identidade liberta-se a cada instante de tal pertinencia, eu sinto, logo, passo, camaleao, por uma multiplicidade sarapintada, viro mesti<;o, quarterao, mulato, oitavao, hibrido. Como dizer a palavra sensivel nomeando urn locutor fixo por disciplina ou pape! numa ciencia ou num col6quio? A palavra sensive! bifurca e muda de senti do, ondulante e diversa, e perde 0 eu, menos detestavel que improvavel. Se sou legiao, como dar parti<;6es e a quem? A palavra desliza, enfraquece, corre da descri<;ao ao relato ou do raciocinio it evoca<;ao, francamente fie! ao estado de coisas que 0 corpo vive e conhece, visita 0 trevo, 0 n6, 0 turbilhao as circunstancias... Desde 0 dado maci<;o e fiutuante do sensivel, a ftlosofia nao e repartida: nem por corpo - eis as estatuas - nem pelos papeis nos dialogos ou
1
OS CINCO SENTI DOS
{Visita}
col6quios - eis as mascaras mortuarias - teatro, politicas inuteis - nem por disciplinas - eis a ciencia. A fIlosofia guarda este tesouro infinitamente precioso, ainda por descobrir apesar de milenios de aten~ao fervorosa: a densidade do sentido atado nele mesmo e desdobrado no mundo, a procura, sem encontrar, de uma outra palavra pacientemente lavada. Visitamos a compacidade do dado.
o LUGAR MISTURADO o Livros das fundaroes desenhou recentemente uma paisagem ondula-
..L.I
da, enevoada, tigrada, zebrada, pintalgada, adamascada, exatamente historiada, denominada lugar transcendental da hist6ria, constituida de peda~os e pe~as, de localidades. Lutam ali 0 senhor e 0 escravo, ou os azuis contra os verdes, urn estadio e fechado onde a luta se circunscreve; nas portas do estadio abrem-se os guiches, epreciso pagar para entrar; 0 que ganha, no interior, 0 azul ou 0 verde, 0 escravo ou 0 senhor, difere do que ganha do lado de fora porque este guarda a caixa: sua lei nao e regulada pela luta nem pela partida. 0 jogo muda de regra conforme 0 lugar. Quando se desloca na paisagem chamalotada, ele nos parece heterogeneo quanta as regras e leis, tecido de localidades singulares. Acontecem, e claro, longos momentos de homogeneidade onde uma lei unica se propaga a grande dis tan cia, mas afinal, muito raramente. As leis, em geral, nao se generalizam. Enquanto os sabin os, fIl6sofos, estao fascinados pela luta local entre 0 senhor e 0 escravo, no estadio, os romanos, impetuosos, roubam suas sabinas. A lei da rna difere da regra do jogo na arena. 0 estadio recorta urn peda~o de espa~o, sua margem da passagem a urn elemento bern diferente, as rnas vizinhas formam urn terceiro; tres leis regem esse tabuleiro, a luta, 0 imposto, 0 roubo. Esse lugar enevoado, zebrado, misturado ressurge neste livro que s6 fala dele, descreve-o, procura ve-lo melhor e fazer ve-lo. Espa~o transcendental, por outro lado: chamalote diverso, diferenciado, onde jogam mil formas e cores, de todos os relevos imaginaveis, recamado de manchas, perpassado de curvas, longas, curtas, fechadas, abertas, interrompidas, vazado de buracos, de vales, sanfonado de colos e protuberancias, variavel; e preciso imaginar essa variedade em diversas dimensoes, sobrecarrega-la de propriedades. Uma viagem se transforma aqui em aventura, com os
315
MICHEL SERRES
numerosos encontros e as peripecias bern inesperadas. a vista aqui se transforma em visita. A paisagem aqui se descobre. magnifica. sob os espa~os lisos e homogeneos. sustentaculos da lei. onde vagueia a razao pura. como 0 condicional desses volumes unidos. Espa~o transcendental sarapintado. condicional. mas nao geral.
o termo transcendental significa geral na tradi~ao que precede Kant:
316
ele the da 0 sentido de condicional e geral ao mesmo tempo. Kant descreve 0 habitat da ciencia classica. suas condi~6es de possibilidade no sujeito; mas a funda~ao nesse sujeito do mundo newtoniano das leis universais tiradas da experiencia diz respeito a mesma generalidade dessas leis. Abandonamos ou perdemos urn habitat assim; uma mesma ciencia ja nao oferece 0 mesmo consenso aos sujeitos; 0 condicional figura no leque das circunstilncias variadas. Aprendemos a duvidar de certa generalidade. nao encontramos com freqiiencia. nem com a mesma facilidade. outras leis universais. Newton teve a oportunidade. deparou com urn caso feliz: ja nao confundimos a sorte grande com 0 conjunto dos numeros. o global parece-nos urn local inflado: assim 0 espa~o de Euclides ou 0 tempo da mecanica ou do que e ritmado pela serie numerica; 0 sol. sob 0 qual nada de novo acontecia. brilha. ana amarela. em urn pequeno rincao. de onde a revolu~ao copernica removeu qualquer vizinhan~a. 0 Deus unico teria tentado a mesma sorte entre os pequenos deuses singulares. tao numerosos quanto os arcanjos. tronos e dominios? 0 geral dissimula urn local em infla~ao. nas unidades. no mundo e no ceu; mas para 0 eu. em todo caso: eu sou legiao e ainda 0 serei por muito tempo. Podemos chamar esta constata~ao de revolu~ao astrofisica? Vemos urn bolo de localidades. urn retalho. urn tabuleiro adamascado; se existe urn transcendental. s6 podemos descreve-lo como urn remendo de lugares singulares. Claro. 0 geral. caso pouco freqiiente. as vezes acontece. mas. por felicidade. como urn numero sorteado: sob este acontecimento !iso. 0 condicional permanece urn lugar salpicado de paginas locais. uma paisagem circunstanciada. Este lugar enevoado. chamaiotado. pinturilado jaz sob 0 transcendental kantiano que 0 encobre com seu verbo: particularidade dilatada desse chamalote geral. razao que nao conhecia sua chance. Vemos 0 espa~o !iso. homogeneo. solar. teologal. verbal. como uma infla~ao subita. extensao ou ere~ao. via reta. A multip!icidade pinturilada. nao standard, hiperabstrata sob a usual abstra~ao simp!ificada. torna-se. se ouso dizer. 0 caso geral.
1
'\1
OS CINCO SENTI DOS
{Visitil}
Esse chamalote geral vibra aos nossos olhos, deslumbra por sua riqueza e por sua novidade inesgotavel: matizes infinitos, estranhos relevos, montes e fossas, vales e quebradas, acontecimentos inesperados nos planaltos monotonos... Ese 0 nomeassemos a variedade universal? Lugar transcendental da historia no Livro das fundafoes, de onde Roma, aldeola ou pagus local, estende seu imperio sobre 0 universo mediterraneo; lugar transcendental da geografia no curso da visita que termina aqui; este lugar chamalotado evisto, tocado, na pele tatuada, ocelada, planicie dtictil do senso comum, fundo dos sentidos onde suas singularidades se misturam; encontra-se ou envolve-se nos estados das coisas, telas, cortinados, variedades; desdobra-se na soma das artes que chamamos a mtisica, casa mtiltipla das Musas; ei-lo quando se abre a cauda de pavao do sabor ou 0 leque rutilante dos aromas; ei-lo, em tudo, corpo proprio montado com grandes refor~os de costura, andrajo com falhas e remendos; ei10 paisagem paga, tecido, farrapo, formado de pagi diversas coladas com esparadrapo, antigo documento visivel na terra e no mar, que podemos descobrir ao sondar 0 espa~o; ei-lo marcado nas paginas do livro, escrito de proposito para redesenha-lo, da pele, transforma~6es, da escuta, fn1mitos, do sabor, leques, da vista, paisa gens, eis 0 sensorial, em tudo, 0 sentido comum. Eis 0 fundo da empirie. Esse transcendental, esse condicional tao formal, tao abstrato, esse conjunto variado de singularidades que constitui 0 fundo das ciencias, nao esta, parece, no sujeito - nao conhecemos 0 caminho que leva a ele - , nao vibra em nossas linguas, mas constitui, muito simplesmente, 0 lugar comum que descobre 0 exerdcio dos sentidos, quando eles procuram esquecer as anestesias da linguagem e as obriga~6es sociais do saber. o transcendental apresenta-se como 0 nosso mundo: 0 mais abstrato e ao mesmo tempo 0 mais imediato. 0 real, tocado, degustado, visto, ouvido, chega a ser confundido, como urn gemeo, com 0 apex da abstra~ao. Diriamos justamente que a linguagem e 0 saber retardam 0 momento dessas bodas, como guiches obrigatorios onde devemos preencher infinitas formalidades. Depois das bodas do corpo e do entendimento, cantaremos as do espa~o e do tempo. 317
ALEGRIA
VITRAL
-
CURA NA FRAN<;:A -
ASSINATURA
VITRAL Pode-se morrer de calor ou de frio. Embora 0 mais belo dos objetos saidos das maos humanas e tambem um pouco sagrado, um barco nunca constitua mais que uma casca de lata que 0 sol incandesce no exterior e abrasa no interior. No meio do porto de Djibuti ou no eixo do mar Vermelho, perto do Cabo Guardafui, a oeste de Aden, no auge da esta~ao quente, quando a madrugada, ja, abafa, e a noite nilo da uma tregua e, ainda por cima, e preciso assar 0 pao a bordo, 0 trabalho no porao, nas caldeiras ou junto do forno sufoca. 0 lado de fora nao oferece mais conforto. Nos anos cinquenta, todos os dias, quando 0 navio atingia a terra, pelo menos um marujo baixava ao hospital para reidrata~ao; era preciso separar os que brigavam de faca, bebados de queimor. Em que agua tomar banho? A dos tanques ou a do mar queimavam a pele. Pegavamos terriveis faringites quando visitavamos os navios de guerra american os, providos de ar condicionado. Desdenhavamos esse luxe e os corpos ignorantes das terriveis condi~6es do mundo. Os que descansam no conforto nao imaginam, poderosos demais, 0 desprezo com que os consideram aqueles que vivem duramente, tao alto e 0 pre~o da realidade. Os oficiais, indolentes, no frescor de sua sala, bebiam gelado, folheavam uma revista geografica e lan~a yam urn olhar distraido it terra vermelho-telha alem da escotilha. Assim chegou 0 novo mundo, doce abrigo para as peles frageis.
o vento laminar, compacto, sem turbulencia, penteia a planicie canadense sob 0 im6vel sol de inverno, ceu azul sombra imaculada. A clemencia vern co'm a neve. Senao com as fa cas: fura-orelhas, corta-narizes,
Instituto de PSicologia - UFRGS Biblioteca
321
MICHEL SERRES
322
navalha-faces, dilacerantes. Entram ate 0 esqueleto, os ossos se desfazem, o corpo cai: 0 frio, a morte; a morte, 0 frio. Certas sensa~oes concernem a epiderme, nas regiOes bern temperadas que as correntes marinhas amenizam, outras atingem os musculos e os sacodem, algumas abalam ainda 0 sistema nervoso, entumecem as veias ou as inutilizam, geladas, as mais violentas atacam 0 tiltimo baluarte: a ossatura. E preciso ter sentido frio alem dos ossos, ate 0 eixo da espinha dorsal, para saber que nao usamos aqui uma figura de Iinguagem. 0 duro se Iiqtiefaz, as pessoas caem, a policia montada as recolhe. Em certos elias inclementes, em Quebec, 0 a1erta geral mantem todo 0 mundo dentro, de onde estiver, sob pena de morte, fora. Nas estradas ao redor das vilas, na Siberia, de madrugada, alguns cadaveres barram 0 caminho: passaram diretamente da droga dura do aIcool, tomada para esquecer a droga politica, ao enrijecimento pelo frio: os humilhados no vale onde ate as lagrimas congelam. Como nossos ancestrais puderam subsistir, do Labrador ao Wisconsin, diante de fogueiras de lenha? Todas as crian<;:as nascidas no come<;:0 do outono morriam. Na Baia de James, a escava<;:ao do a1icerce para a barragem da Grande Riviere, paredao tao pesado que faz tremer a terra, descobriu restos de habitats indigenas, quase tao antigos quanto 0 neolitico. Nossa pele, que se tornou tao fnlgil no frio, nao nos permite compreender esses corpos nus enfiados em peles de animais sob a metralha do blizzard. Diante dessas cinzas descobre-se 0 antigo mundo, do qual, frageis, estamos abrigados. o calor inspira 0 medo, 0 frio, a angustia pura. Morremos menos de agua, no mar, do que, por acidente, do vento que abala, podemos entao morrer de frio; mas antes de tombar sob 0 tiltimo estremecimento que sacode a roupa de vida e faz soltar as amarras, 0 medo vern e mata. Ele antecede 0 gelo, como prenuncio. Vim os, nas a1tas latitudes, no cinza delirante do Artico, longas baleeiras repletas de cadaveres ainda sentados nas bancadas, maos empunhando os remos, prontas a impelir, fixas, rigidas, olhos abertos, os bordos do esquife abarrotados de viveres e peles de animais, tudo ia bern a bordo; mortos de pavor, os fantasmas deslizam pelo mar calmo, naufragos do terror branco. Eu morria de frio, tinha medo do branco, amo 0 inverno. Senti frio it beira da agonia, sem ir a1em dos montes de Auvergne. Urn de meus Iivros ali morreu de primavera, escrito naquela altitude: maos contorcidas, tiritando sob sete cobertores asperos, os pes duros e dormentes, cabe~a ardendo num gorro mal tricotada, num quarto sem aqueci-
OS CINCO SENTIDOS
{Alegria}
mento, na amarga chuva de abril mistura de neve e brisa acre. Urn livro sobre PIa tao, matematicas e conhecimento juntos, ficou paralisado ao cabo de trezentas paginas, como urn conjunto de estatuas, pela imobilidade congelada, tiritante, de todos os meus sentidos. Nao ha nada no conhecimento que antes nao tenha sido liberado pelos sentidos. Quando eles se enrijecem, adeus matematicas. 0 rigor da cabe~a exige urn dorso que nao trema. 0 sol, nessa primavera, escondia-se atras das montanhas que me impediam de ver meus amores, alem do ser. Quem pode dizer Platao no frio? A condi,ao sensivel do trabalho de conhecimento esta num quarto quente, 0 transcendental enrubesce no fogareiro, aprendi isso nos meus ossos humilhados. Quente-frio. Sentado diante dos tijolos incandescentes, os bra,os enla~ados em torno das pernas juntas, nu, coberto de suor, im6vel, prestes a sufocar; mais calmo, adaptado it fornalha, imaginando nadar em meu proprio suor como que envolto em urn sudario, olhos fechados, merguIhado num torpor umido, escutando com 0 ouvido distante as vagas conversas dos vizinhos, afogado no calor mas longe do sono; subito, depois da ducha fria, ao mergulhar na piscina-banquisa, eis que a pele se objetiva: descola-se, destaca-se, flutua na agua como uma capa, separada, distanciada do corpo; 0 sujeito enrosca-se, dentro, inquieto mas tranqliilo, denso como urn pequeno diamante negro no centro do plexo, deixando que todo o resto se tome, independente de si, urn objeto posto no mundo, ali, estavel, imovel, 11 vontade, solto no liquido, feliz. Abandonamos 0 paraiso pela arvore do conhecimento; por causa dela e por imitar Deus, jamais voltaremos ao jardim 11 beira do rio. Durante noites inteiras, na planicie it volta do medio Garonne, a urn pouco menos de quarenta e cinco graus de latitude norte e urn pouco mais a partir da origem, em longitude. Meio ambiente dos paises temperados, a temperatura ameniza tanto, depois que as ameixeiras ou os pessegueiros perdem suas flores, que a pele, nua, nao sabe decidir se faz calor ou frio tampouco se esta agradavel ou fresco, morno. 0 corpo nao procura vestimenta, passa, angelico, no escuro. E preciso que uma brisa Ihe trace urn chamalote para que ele veja que corre do lado de fora. Por que motivo ter deixado esse jardim onde as aguas murmulham?
o despertar ocorre no banho da pele e do leito, imerso na espessura comum it carne e it lao 0 len~ol prolonga a epiderme, 0 corpo se expande
323
MICHEL SERRES
em suas pre gas e bolsas macias. Vma ponta emerge da sombra, do calor, da estranheza, fim do percurso em baixo d'agua, 0 nado esbarra em uma margem para onde uma corrente 0 arrasta. Os ossos e tend6es das batatas das pernas, no meio, os das coxas, por dentro, a dupla concavidade dos rins agui!hoa sob 0 empuxo de um benefico estiramento, no plexo solar pass a urn alimento sem peso, posta-se, tranqiii!a, a simetria. 0 interior, vencido, explorado, conhecido na cegueira do sono, encolhe-se, invaginase para dar lugar ao exterior, 0 mole do lado de fora tera de subir ao palco para representar a dureza. Adormecer imita 0 sim, 0 despertar vira 0 nao. Mergulhar, consentir, al~ar-se it costa rochosa. Nascer a cada manha ao nascimento do dia. Alegria. o corpo nao se comporta, nem por sombra, como receptor passivo. Por mais que a fIlosofia 0 ofere~a ao dado do mundo, estabelecido ou deformado, mole e feio, recentemente tornado repugnante. Ele se exercita, treina, quase por si mesmo, ama 0 movimento, espontaneamente, regozija-se de entrar em a~ao, salta, corre ou dan~a, s6 conhece a si mesmo, imediatamente e sem linguagem, na e pela sua impetuosidade, descobre sua existencia no ardor muscular, quase sem fOlego, nos limites da fadiga. Ele respira. 0 fDlego, involuntario e voluntario ao bel-prazer, plastico, pode mudar, transformar-se funcionando como urn fole de forja. Passado o grito dilacerante da inspira~ao natal, primeiro suspiro, 0 corpo come~a a gostar de respirar, primeiro prazer. Gosta tanto de fazer isso que tenta perder 0 fDlego para recobni-Io, como uma mulher desejada que foge e brinca de reaparecer, gosta de passar ao segundo fDlego e recome~ar, para atingir, em etapas sucessivas, arfantes, urn ritmo novo, urn outro mundo, espa~o onde tudo se torna faci!o Nada mais vasto que a complacencia do t6rax. 0 primeiro apelo da Genese, na aurora do mundo, acima do tohubohu l8 , diz Deus ruagh, alitera~ao rouca do sopro, no fundo do palato, no oco da garganta, antes da lingua, antes da raiz da lingua, la onde 0 arquejo arranha e reconhece 0 divino; ruahg, fDlego, sopro, vento, brisa de espirito, a ponto de falhar, dominando a batida do cora~ao. A morte tern como prentincios 0 sufocamento, a asfixia, que tern como prentincio a agonia que corta 0 fOlego.
324
18 Corruptela francesa da expressao hebraica tohou vabohou, usada por Rabelais (ilhas de Tahu e Bohu) que significa 0 estado primitiv~ da terra. (N. da T.)
<
OS CINCO SENTIDOS { Alegria}
o salto, elemento de corrida no inicio, constitui 0 segundo prazer depois do folego, vencidos os velhos ritos de eleva~ao dos recem-nascidos e as alegrias dos primeiros passos. 0 animal se agacha, encolhe suas molas em dobras. A tomada de impulso, imovel ou, ao contnirio, nipida, enla~a o virtual do voo, 0 branco de seu apex, sua decisao, sua certeza na esperan~a, sua inquietude, uma nova postura fora de prumo. 0 impulso, mais deleitavel que 0 voo, da a densidade muscular urn arrepio agudo mais alacre que a distensao, como se a potencia, em terra, ultrapassasse em for~a 0 ato, no ar, promessa de embriaguez mais inebriante que 0 extase. 0 extase, exatamente falando, encerra os pequenos saltos repetidos, ao res do chilo, da corrida de fundo, 0 vivo arremesso da bola-ao-alto ou 0 lan~a mento da bola na cesta, a defesa do goleiro, no alto, no canto do travessao, mas sobretudo as lentas bodas do ventre e do dorso com 0 fio estendido no meio do sotoar. Quem nao viu, com os proprios olhos, urn anjo? A tradi~ao define 0 anjo como urn corpo que pode fazer de imediato tudo 0 que a mente concebe, projeta ou deseja. Se ela pensa, por exemplo, que ele esta longe, la esta ele de pronto. 0 arcanjo que vi chamava-se Tracanelli, 0 nome nao importa, se ele me estiver lendo, eu 0 saudo, e, desta vez, quem sauda nao e 0 anjo. Ele voava, sem esfor~o aparente, por cima da barra, fino, solto, longo, flexivel, as asas cobrindo os bra~os que acabavam de soltar a vara, espirituai. Nada, no voo, no impulso, experimentava atra~ao terrestre cuja a~ao universal parecia, por urn momento, suspensa: milagre senifico. Sem esfor~o, sem suor, surpreendia que voltasse ao chao. Urn anjo passava, no grande siJencio do estadio. Nao escolhi Hermes como totem, emblema ou teorema apenas por razoes especulativas ou por esta previsao de hist6ria, necessaria em fllosofia, que me levou a dizer, M bern urn quarto de seculo, que se iniciava uma era onde Prometeu dominaria, uma vez que detinha 0 mundo e 0 pensamento M mais de cern anos. Tomei-o como insignia tambem porque ele voa, primeiro anjo, asas nos pes. Hermes precede 0 anjo do silencio que passa, como 0 anjo que passa em nosso silencio deixa urn resto de Hermes. Ele passa, corre, voa e salta. Desenhem sempre as asas nos pes: os membros inferiores lan~am 0 voo. Que erro prender as costas essas grandes envergaduras! Na densa escuridao dos musculos inferiores, 0 extase prepara-se, freme e estremece antes de acontecer. A morte chega como urn desmoronamento, a gente cai, distende-se a tensao principal das pernas onde se sente a vida.
325
MICHEL SERRES
as que exercem profissao de falar, professores, atores, advogados, toda sorte de reitores, voces cujo oficio cotidiano passa pelo canto, que precisam lan\
326
Nada tao divertido quanto sal tar numa cama elastica e dura. Toda crian~a desfrutou esse prazer ate danificar 0 estrado de molas, rna lembran~a. Duplo extase do esfor~o muscular nas coxas e panturrilhas, saito possante, quase metalico, e da parada no ar, que parece eterna, quando 0 corpo faz figuras, entra em representa~ao. Nada fez de meu irmao urn irmao como este prazer usufruido a dois. Nunca na vida -Iembra? - rimos tanto. No alto, faziamos caretas. Em baixo, a cama quase nunca nos acolhia harmonicamente, enquanto urn podia se esborrachar, por falta de impulso, 0 outro piruetava no ar como uma estrela. Deliciosa aprendizagem das circunstilncias. A civiliza~ao as vezes faz alguns progressos; existe na terra urn objeto mais maravilhoso, a tecnica humana algum dia realizou urn apareJho mais divino que 0 trampolim? Lamentem-me, jovens,lamentem 0 homem bastante infeliz por ter perdido, pelo peso dos anos, a educa~ao trampoliniana. Duas mulheres, belas, esculturais, talhe esbelto, seios eretos, niidegas firmes, pernas rijas, no maio de uma estrita pe~a azul-marinho marcada com 0 emblema nacional (fazem parte da equipe olimpica de salto ornamental) treinam, como todo dia, no trampolim, saltam frente a frente, como meu irmao e eu, outrora, fazem figuras no alto do voo,lentamente,
j
OS CINCO SENTIDOS
{Alegria}
decompondo com aten~ao gestos e posturas, simetricamente, como por imita~ao, como se urn espelho as separasse, treinam vendo-se uma a outra. Como para elas tudo esta encadeado pelo habito e pela virtuosidade, saltos em parafuso, de carpa, saito do anjo ou mortal, ficam urn pouco entediadas dessa mecanica, embora dificil, e falam. Nao sei 0 que, mas pare cern interessadas, entusiasmadas, discutem como se nada houvesse, indiferentes. Urn dialogo a mais de dois metros de altura, onde os corpos que treinam voam, im6veis, em posi~oes acrobaticas e naturais, permite saber como falam os anjos. Eles falam de amor, com certeza, alegremente, como os pequenos putti e brincam. Eis de onde vern a palavra. Ainda existem, gra~as a Deus, desses carrosseis singeios cheios de correntes que sustentam urn pequeno assento que s6 da lugar a uma pessoa. A volta toda, podemos con tar as vezes vinte e cinco dessas cadeiras suspensas. A maquina gira, como urn piao, as correntes se inclinam e buscam a horizontal, em coroa ao redor do aparelho, pela for~a centrifuga; quem esta sentado perde a gravidade. Acredita voar, sem gravita~ao. Trocou uma for~a por outra, pesa de outra maneira, falso vllo, segunda corrente, no nao-volante. o verdadeiro come~a quando minha amiga sentada diante de mim e em minha 6rbita atira-se em meus bra~os ou faz fleXiio com os meus pes: ela se lan~a em epiciclo e eu, em compensa~ao, recuo ou regrido, planetas aberrantes no sistema circular ensolarado. Perco a gravidade, mas tambem a simples e tola centrifuga~ao, os movimentos parecem-me vir da for~a amiga e da minha, de nossa exclusiva rela~ao: ela me atrai, me arremessa, me retoma, me intercepta, eu a sol to, a reencontro, delicada, descabelada, quase nada corp6rea, v60 se ela quiser, ela voa se eu quiser, voamos a toa, sem despender muito esfor~o, ao bel-prazer, num piscar de olhos, leves, nossas rela~oes criam nosso extase sozinhas, existimos somente por n6s, 0 resto desapareceu, aqui se revela 0 amor sera fico. Entao nossa turma contava seis ou sete garotos mais avidos de parque de diversoes que de estudo, 0 carrossel ficava no seixal entre nossas casas e o Garonne. La vamos n6s, voando. Em bolos de tres ou quatro, n6s nos aglutimivamos, nos desprendiamos, explodiamos como uma bomba, urn aparecia de quatro, outro escorregava deitado de costas, urn outro rolava como bola, outro ainda, polichinelo, bra~os em cruz, fazia 0 grande ecart, comprimidos em ftia ou separados ou contrariados, grande estreia, retrograda~oes, festOes, ou ginivamos freneticamente sobre n6s mesmos, pare-
327
r
MICHEL SERRES
damos anjos, putt; a brincarem nas nuvens em grupos ou comp6sitos risonhos. Prazer mais intenso que 0 de pular sozinho, de manha, na cama dos pais, coisa sem gra~a. Revi esse carrossel quarenta anos depois numa cidadezinha montanhesa, no vale de Livigno, onde a cultura latina dan~a e ri, aglutinada, beirando no entanto 0 congelamento moral da Alta Engadina german6fona sui~a, na mistura romanche, seis ou sete moleques brincavam de se segurar e se soltar, dois namorados voavam, serios querubins, soube en tao que eu havia nascido de urn grupo de anjos traquinas, que ocupam as nuvens e passam em bloco ou fuzilam de repente em 6rbita solitaria e ornamental, por divertimento. Ap6s cinquenta anos, ao rever esse espetaculo, todo o saber de astronomia entra no corpo outra vez e 0 adulto vira crian~a, quando era plan eta. 0 garoto, que se tornou serio, proporciona ao pensador urn corpo novo que levita, que vive 0 amor arcangelico. Contrariar 0 peso com uma outra for~a, para fazer enfim 0 que quiser, por meio de uma fraca terceira for~a, eis 0 espirito. Andar cria ritmo, da avoz bateria, caixa clara, timbales e pratos, andar tambem martela 0 silencio. Dupla medida do passo e do cora~ao, da marcha e do sangue. 0 corpo permanece desconhecido se nao 0 levamos a cern mil passos de sua liteira. Considerem as estatuas que datam de tres seculos ou mais: pe gran des, coxas maci~as; perdemos 0 andar do qual provinha a nobreza do porte e do transporte. 0 mundo esta a distancia de urn passeio, nossos ancestrais da Asia atravessaram Bering para se dis seminar na America, certo bisavo correu de Granada a Moscou, granadeiro da Guarda Imperial. 0 aviao, dizem, encolheu 0 mundo; ao contnirio, todos os meios de locomo~ao ampliaram-no desmesuradamente diante de nossos passos. Nossas pernas frageis ja nao procuram franquear 0 espa~o. Mas e born andar na montanha para que elas voltem a ser quase bra~os, 0 corpo arremedando 0 quadrumano; subindo ramp as (ngremes para sentir 0 pe se agarrar, os membros inferiores folgam em perder urn pouco o porte e descobrem uma outra fun~ao. Os pes tornam as maos melhores, e as pernas, os bra~os mais firmes. Os musculos mais abaixo tern sempre voca~ao para a altura, parte espiritual, pilares, plataformas de voo, apelo. Hermes tern sempre as asas nos pes. 328
Correr: terceiro prazer, soma do folego e do saito. Quando a roda do vagao passa sobre a junta de dilata~ao que pontua 0 trilho, 0 choque pro-
1
OS CINCO SENTIDOS
{Alegria}
duz urn som que, de inicio, da ritmo ao curso do trem, mas quando a velocidade cresce, aroda parece voar em cima do vazio, silenciosa, a viagem se suaviza. Assim, 0 pe no chao. Quem nunca correu acredita que quem corre poe regularmente pe na terra e, de fato, nao esta muito enganado: 0 passo cita 0 chilo precipitadamente. Quem cone nao 0 escuta assim, mas repentinamente suave, como 0 viajante no vagao. Em certo momenta da abalada, ele jura ria que suas sandalias ja nao tocam 0 chilo, ele voa, paralelo ao horizonte, seus membros inferiores fundiram-se no silencio ou na ausencia; a corrida, rasa ou de fundo, 0 anemesso em urn mundo novo de passaros que planam ao res da pista, alto e baixo ao mesmo tempo. Ela nao acelera a marcha, mas generaliza 0 saito. 0 que a funda~ao do corpo, os membros inferiores, molas ou colunas de vida sabem fazer diferencialmente no saito, executam na conida integralmente. Trabalham e desaparecem, transportam e se ausentam. Como 0 sujeito que pensa mas falha. Fazem sem ser. Eis 0 que dizem as asas dos pes, a mensagem de Hermes corredor. A juventude tern mais facilidade para correr que para andar. A idade pensa mais do que sabe, ou aprende a lan~ar muletas e pernas. Acredita-se comumente que a carga obriga it escravidao. Indianos esmagados sob 0 peso da juta ou chineses arqueados sob 0 palanquim, voces ja transportaram alguma vez? Perdemos 0 porte. Ninguem conhece seu corpo se sua cintura escapular ignora 0 peso, fica virgem de pressao. Urn piano emite sons, mas curva-se it pressao de varios tons, duro e doce. 0 fil6sofo presta homenagem ao mestre com a mao estendida, mas tambem ao construtor, e ainda ao carregador. Urn dia carreguem alguem nos ombros do cume de uma montanha ao vale, a principio pensarao morrer, 0 suplicio dos musculos que nao sabem trabalhar na queda parece abominavel; depois, como de Mbito, chega 0 recurso, 0 segundo f6lego, e 0 costume it nova dor, descobrem-se, pouco a pouco, fibras musculares desconhecidas, angulos inusitados, articula~oes adormecidas, estofos de siJencio no meio da carne fazem ouvir pela primeira vez musicas estranhas, mas familiares, inauditas, mas logo reconhecidas, a coluna do porte, nao homogenea, decompoe-se, m6vel, todo urn mundo nasce por dentro, acomoda-se, adapta-se, troca suas responsabilidades, sob 0 implacavel esmagamento, 0 corpo vira arquitetura, alvenaria movente, nave, 0 esqueleto torna-se estrutura, firme, vigas, contrafortes, os musculos fazem 0 muro e as paredes, toda uma rede fluida de dormen-
329
MICHEL SERRES
tes ehisticas, as liga~Oes tendinosas, variando de angulo no tempo, fornecern funda~6es quase Hquidas, maleaveis, pneumaticas, adaptaveis a qualquer momenta com risco de derramar, 0 corpo vira tripe, poltrona, liteira, balan~o, arco de triunfo, catedral, barca, ber~o e torre, funda~ao s6lida e dura para urn edificio, apoio fluido para a nave ou 0 balao, 0 corpo, entao, ejeta-se sob, sabe de subito 0 que deve ejetar sob, e como faze-lo, conhece-se como ejetado sob, sub-jecfus, sujeito. Eu porto, logo sou. Porta-carga, porta-estandarte, porta-voz. o felicidade imensa de transportar sua dan~arina ou sua namorada, voar nao vale se nao se sabe fazer voar, 0 extase completa-se pela estatica do extase, no apelo do voo. 0 par se une com gravidade. Aquele que deposita seu fardo cresce. Carre gar por tanto tempo as ciencias e os livros, gran des auto res no corpus imenso, carregar tantos e tantos pais, Hnguas mortas e vivas, saber duro e conhecimentos doces, agiientar a mem6ria e a hist6ria durante tanto tempo: no instante em que a carga enfim e depositada, aos pes, voltar a ser crian~a. Diretamente feliz no senslvel. Transportei, do topo da montanha coberta de gelD ate 0 fundo do vale onde cantam os arroios, uma menina, minha filha. Pas de deux no vale feliz, do par educativo incorporado. Macho, sexo tao fragil, sabes carregar? 56 a mulher conhece, vive as vezes, 0 carregamento incorporado em que duas idades se adicionam.
330
o folego arfante fez soar a ruagh no fundo da garganta antes que ela pensasse em falar; 0 t6rax liberta-se, fogo e vento, de seu lago de lagrimas; o pulo e arrancado do ventre da terra; 0 andar concorre para 0 passo do cora~ao; a corrida anula os musculos inferiores no pede impulso; 0 porte chega ao corpo no momenta em que ele deposita a carga do conhecimento e da consciencia de si; entao come~a a dan~a, integral dos primeiros prazeres, jubilo-soma. A alegria inspira, vibra, dan~a. A vida dan~a qual uma cortina de chamas, a morte enrijece; a inteligencia dan~a, a burrice se fixa, repetitiva; a intui~ao dan~a, a l6gica e a mem6ria programam os robos; a palavra dan~a quando nasce e desaba no estere6tipo; 0 desejo dan~a, a indiferen~a dorme. A dan~a reina antes da linguagem, como musica do corpo. Conta 0 inlcio do tempo: corre e salta num ritmo que se repete, entra em redundancia, reencontra gestos, refaz passos, enrola-se sobre si mesma, mas de tempos em tempos, surpreende com uma atitude subita, 0 corpo acaba de
OS CINCO SENTI DOS
{Alegria}
inventar uma cifra nova, a dan~a semeia 0 inesperado no retorno eterno do ritmo, eis 0 come~o do tempo. Urn corpo jamais nasceu antes de ter dan~ado.
o nado distribui pela superficie da pele a sustenta~ao que 0 andamento usual exige somente da planta dos pes. A responsabilidade do porte em urn meio que nao oferece qualquer resistencia ao peso quando concentrado no poHgono banal passa para 0 corpo que, de repente, inteiro, torna-se pe. Sandalia, em turco, quer dizer barca. A cabe~a, fora d\igua, no ar mais leve, firma-se em uma pele, couro de sapato imerso. A pele se exalta e negocia nos minimos departamentos a sustenta~ao fragil do fluido, mas integra essas pequenas impress6es, cada uma confiando nas outras para a flutua~ao-soma. 0 nado da toda a pele, em lugares infimos e de repente. Batismo que nos remete a antes de nosso nascimento. Devemos, inversamente, repensar os pes como modelos reduzidos do corpo inteiro ao qual fomecem flutuadores quando 0 fluido se endurece. Liberada de uma obriga~ao, a pele toda exercita 0 tato, diferencial, quando nao transporta, integral. Tatuada, pois. Entao a posi~ao em pe e 0 andar imp6em-nos, pela gravidade, a simetria axial que esculpe nossa forma e aparencia, enos religa todos ao centro da terra. 0 nado na agua e a dan~a no ar nos desligam desse lugar comum e substituem essa reta por urn ponto vago que denominei alma na passagem pela portinhola de nascimento. Todas as nossas simetrias mudam. 0 nado borboleta, a glissa de, 0 jete, 0 mergulho nos transforma em seres radiantes - quero dizer em radiolarios. Se vivessemos na agua durante alguns milh6es de anos, virariamos estrelas-do-mar? Ja vimos muitas dan~arinas cujo tronco desaparecia. Cilindros postos em terra, olhos e joelhos que se respondem como rins ou seios, eis que somos esferas em tome do ponto, tanto 0 fluido, voluvel, obriga aredondez enquanto 0 s6lido imp6e o quadrado arquitetural pesado. Tudo 0 que diminui ou anula a gravidade reduz-se a esse centro que sai da terra para se entregar a nossa autonomia, em tome do qual se enrodilham nossos movimentos na agua, e que governa 0 saito. A cabe~a e os tarsos no eixo aspiram ao centro, ei-los na periferia, nem base nem topo, tudo se reordena em rela~ao ao plexo, pouco distante do sexo: se flutuassemos ou mergulhassemos por alguns milh6es de anos, ficariamos urn pouco menos racionais: emotivos e temos? Pois bern, curvado, nadando lentamente no seio da mae, 0 feto enrola-
331
MICHEL SERRES
332
se em torno do mesmo ponto; gira em torno de sua alma antes de seu nascimento, no parto ele a fixa, vai reencontni-Ia quando nadar ou dan~ar, na magia das mil simetrias esfericas. Nao nadem 0 crawl, nao se arrastem com quatro patas ao se deitarem na agua, nao respeitem a simetria axial, postura competitiva e orgulhosa, obediente, enrodilhem-se no Jiquido de embrionaria memoria, em busca da alma escondida, ai esta 0 verdadeiro progresso. A aten~ao da ao corpo urn arco convexo que situa 0 mesmo ponto, na convergencia, no centro do circulo. Ele sai de mim e vai ten tar a sorte no mundo. o ponto de simetria esferica em torno do qual nata~ao, mergulho ou dan~a rodopiam seu voo e onde 0 nascimento ou passagem pela vigia aberta no navio em chamas revela a existencia ou a qualidade de alma chega a se desviar para fora do corpo conforme posi~oes, movimentos, exercicios. Sabemos nos mover em torno dele, des de a inicia~ao fetal, sabemos faze-Io nascer fora de nos. Nascemos, parimos. Polo sujeito, minha alma, polo objeto, logo em seguida. o desajeitado joga a bola e a faz circular em torno dele, planeta aberrante que recebe sua lei do sujeito sol; dissonante, rigido, voluntarioso, comandante, ele nunca aprendeni nada. Nao sabe fazer nascer. Refere as coisas a si mesmo. Estatua, robO. 0 balao, ao contrario, joga com as habilidades que transitam, planetas errantes, em torno do novo pequeno sol, objetos consonantes e flexiveis, ao redor da bola, sujeito. Estes poderao aprender tudo porque abandonaram sua lei propria e renunciaram a submeter todas as coisas, para se adaptarem, submissos e portanto sujeitos neste novo sentido, a lei do que, agora, foge para longe deles, em que reconhecem sua antiga alma. Suave ao toque, de perto; de longe, visivel, sonora, as vezes odorante. Eles pariram a rela~ao e 0 objeto. 0 ponto quase-sujeito torna-se quase-objeto, rela~ao e em seguida coisa. Estes sabem dar. Portanto, tambem sabem receber 0 dado. Habeis ou atentos, logo conhecedores. Saber nascer e fazer nascer, reconhecer urn lugar de cissiparidade, no corpo, em torno do qual 0 sujeito se ordena, e que sai do corpo e torna-se rela~ao e objeto, 0 intima se coloca it distancia e de repente se ausenta de mim, generoso, onde 0 distante inteiramente estranho tambem pode receber, a vontade, 0 refilgio, 0 abrigo, habitar a vizinhan~a e a interioridade. o espa~o dos cinco sentidos constroi 0 conjunto das distancias, pr6ximas
d
OS CINCO SENTIDOS
{Alegria}
do gosto e do tato, distanciadas do ouvido, dos cheiros, da vista, onde esse lugar se mexe e e descoberto. Quem na juventude jogou jogos coletivos pode reconhecer urn estado de forma, pessoal, onde 0 corpo de repente torna-se angelical e consegue tudo 0 que empreende: sem fadiga, sem esfor~o aparente nem dor, salta mais alto, passa por tudo, corre incansavelmente, penetra, atinge todos os alvos. Os anjos, voltemos Ii tradi~ao, fazem do corpo 0 que seu espirito decide, de imediato. Entao ele se lembra de ter recebido durante alguns periodos urn corpo de anjo, de ter passado sem saber como para urn outro mundo, urn espa~o sem erro nem fraqueza, onde 0 projeto mais louco encontra urn facil sucesso, gestos agu~ados, movimentos soltos, decisao sempre afinada e justa, sim, a vida a urn metro da terra, em levita~ao. A pr6pria bola estica 0 bra~o ao maximo. A musica comp6e para 0 autor sem ele. o extase individual deixa uma mem6ria imperecivel, de esporte e de corpo, de intelecto ou de emo~ao, a melhor coisa que acontece na vida, podemos ate organizar 0 tempo para colher semelhantes apex, boa e fecunda existencia; 0 extase a dois, mais raro, e deixado ao pudor, quem sabe que 0 estado serafico pode acontecer de subito a todo urn grupo? Lembrarei ate a hora de minha morte que esse acontecimento fulminante nos sucedeu duas vezes, a urn grupo de cinco mais uma bola redonda, a urn grupo de onze mais a bola oval. Lembro-me sobretudo do silencio denso que formava 0 volume estreito e compacto onde dan~avamos juntos, com uma certa surdez ou uma cegueira, entramos no mundo do milagre. De babito, quando a bola passa - e ela voa rapido para nao ser interceptada - , e comunicada entre maos adestradas e urn olhar arguto e vigilante, precedido muitas vezes de urn chamado, palavra, grito, breve interjei~ao, vogal, mesmo urn sinal com a mao, c6digo convencionado ou nao. A bola corre com esses sinais, atras deles, ao mesmo tempo que eles, sobre a rede de canais flutuantes que os sinais desenham. De repente, a bola ocupa seu lugar, todos os outros sinais se apagam. A equipe inteira entra em uma caixa, uma gruta urn tanto escura, os brados dos espectadores distanciam-se como a margem de urn mar ao longe, a equipe adversaria dan~a como urn coletivo de sombras, sem for~a, fantasmas, entao meu corpo se posiciona onde a bola vai passar, lan~o-a em urn vazio que outro querubim vai preencher, imediata e infalivelmente, nao nos olhamos mais, nao nos vemos mais, nao nos ouvimos mais, nao nos falamos nem nos
333
MICHEL SERRES
chamamos, olhos fechados, boca cerrada, ouvidos tampados, sem linguagem, monadas, sim, nos nos conhecemos, prevemos, amamos, n6s nos antecipamos de maneira fulgurante, nao podemos errar, a equipe inteira ja nao po de errar, ela joga enfim: nao eu, nem meus parceiros, mas ela, ela mesma. Atiro-me nipido it direita, sei que alguem sabe que ali estarei, que a bola vai me esperar ali. A bola segue tao rapido que tece, entre nos, eios de uma seguran~a irrepreensivel; como esta seguran~a nao tern nenhuma falha, a bola pode circular ainda mais nlpido, e porque vai mais rapido, ela tece ... Ninguem pode saber 0 que significa estar junto se nao viveu esse extase. Parece que compreendo no intimo, como que intuitivamente, como deve viver a pe~a ou 0 elemento de urn organismo. Mas para ele, aonde vai a bola, para eie, de onde vern a bola? E ainda, aonde vai, qual e a bola em urn coletivo que nao joga? E que fala, desenfreadamente, ao contrario dos anjos? Encontram -se na vida sublimes e raras dan~arinas. Quem dinl 0 extase mudo do que se assemelha sempre a urn pas de deux? Como sucede que a mao erguida encontre logo outra mao erguida, que a perna flexione exatamente no mesmo instante, que 0 pe antecipe a decisao do pe, que a docilidade do tronco venha colaborar com exatidao, que os dois carpos conspirem, mudos, silenciosos, sem programa, cada qual de olhos baixos a se deixar levar peio prazer harmonico, pelo ritmo, pela musica: ela tomou, invadiu os dois corpos, os dois dan~arinos tornam-se a musica feita carne, seraficos. Mas quando fazem amor com encontros tao exatos e t
334
Nada melhor que urn grande pensamento porque ele abre uma paisagem grandiosa e deixa-Ihe urn chamalote sarapintado, a miraculosa alegria de compreender melhor amplia a morada de quem quer que durma num quarto mediocre e subito arruma seu palacio mundial; nada melhor que uma demonstra~ao eiegante, que acrescente finura it raziio; uma intui~ao que fa~a 0 corpo voar it velocidade do pensamento que imaginamos mais nipido que a centeiha; a medita~ao profunda, a altitude, a lentidao, a plankie serena de uma sabedoria; nada melhor que a tentativa ou a espera, e se eu erro ao menos nao terei prejudicado ninguem, e se nao erro
OS CINCO SENTIDOS
{Alegria}
exultaremos de alegria; nada melhor que a no~ao instigante, viva, em afastamento do equilibrio, que coordena seu movimento it serie longa e divergente de graos ideais que aparafusam seu caminho paradoxal no espa~o aereo; acima de tudo, 0 melhor e a expressao adaptada, linguagem pr6pria, agua tranqiiila e transparente do estilo, diamante de reflexos duros e aveludados, a vida inteligente da oportunidade ao jubilo total que urn dia entra em seu templo ajoelha-se e nao quer mais sair. Mas 0 ceu azul-marinho de outono, grave como quem s6 tern poucos dias de vida e ja nao os desperdi~a, mas a luz acobreada das Ultimas belas tardes, tremulante de timidez nas arvores rubras, 0 atrito crocante dos passos arrastados nas folhas entrela~adas it relva ainda verde, a brisa indecisivelmente fria ou fresca, extremo fim de calores ou primicias de inverno, mas as nozes abertas e sempre amargas, com sua membrana, as uvas podres, as ameixas secas seis vezes cozidas, cristalizadas nas grelhas tiradas do forno, a acidez do vinho novo, quase tao azul quanto a pele, quase tao verde quanto a polpa das uvas, mas a alta floresta de Auvergne na gl6ria de outubro, a derradeira vinha vindimada, a quietude sobrenatural do campo no fim de setembro, plenitude onde as divindades descem, tangiveis, entre 0 ainda-nao e 0 nao-mais, minutos densos em que 0 corpo apreende mais do que 0 faria a inteligencia, existe uma frase que valha as delicias do dado?
o sujeito conhecedor dilata-se e estende-se de corpo inteiro, 0 antigo sujeito se condensa em uma abstra~ao simples, em qualquer canto, apagada, desconhecida, num lugar transparente que deixa todo 0 resto na sombra; 0 corpo, agora que conhece, torna-se espirito hipercomplexo, deixa 0 antigo saber, esquecido, it sua simplicidade primitiva e 0 tern por sabido, parte para esta conquista total e nova: conhe~o ou compreendo pela pele tao fina quanto a iris ou a pupila, elas mesmas tao finas quanta a intui~ao, no banho de sons e ruidos, anarmonia, compreendo ou conhe~o pela sapiencia, gosto bern denominado enfim, arte e sabedoria, e pela sagacidade, faro enfim devolvido it sua dignidade cognitiva, mas apreendo e concebo tambem pelos musculos e ligamentos, ossos tornados transparentes, estatura em afastamento do equilibrio na trepida~ao do mundo, postura atenta e d6cil, pelo ritmo do cora~ao e pela tunica das arterias que batem de encontro aos obstaculos rochosos, pela assimila~ao e inspira~ao, pela corrida e pelo saito, marcha, dan~a, amor, 0 sujeito conhecedor ocupa
335
MICHEL SERRES
enfim sua casa, sua verdadeira casa, sua casa toda, toda a sua velha caixapreta e escura, por que crueldade imbecil foi reduzido outrora a esse buraco ausente, por que ter sido exclufdo, sem lar nem lugar, exilado do corpo, expulso, fora de casa, por que ter sido for~ado a detestar finalmente seu torrao ancestral e a destruf-Io por razao e ciencia? 0 sujeito conhecedor retorna a casa, mho prodigo M muito tempo em viagem pelo vago mundo ou pelos espa~os abstratos, a casa adorna-se de toalhas brancas e ramalhetes nos vasos, guirlandas nas paredes, tochas acesas, len~6is recendentes de lavanda nas camas para as festas da conversao, 0 sujeito conhecedor ocupa o corpo todo, catedra faustosa de urn conhecimento ampliado e completo, assentado e fundado na do~ura e na competencia dos sentidos, conhecimento acordado aos membros e ao mundo, suavizado, pacificado, pronto a dizer sim, libertado do ressentimento, concordante, corpo sujeito, luminoso, transparente, vibrante, espiritual, leve, nipido, vivo: pensante.
CURA NA FRAN<;A
336
A Fran~a raramente produziu uma mosofia empirista: nao teve necessidade, toda sensual. Os que vivem falam pouco, os que falam nao fazem. A cultura francesa, tradicionalmente, trata de saborear, trabalha isto. Queijos, vinhos, ca~as, confeitaria, cozinha: carta de identidade como esta natureza-morta. Na toalha resplandecente, copos e garrafas transparentes, vinhos de pernas de rubi, centro de mesa e conversa~ao. Que emerge do frno gosto. Conhece-se outra cultura, fora a chinesa, que tenha tanto e por tanto tempo refinado seu gosto? As culturas vizinhas hesitam: maravilhadas ou desgostosas. Quando condenam os que vivem para comer, voces que dizem comer para viver decidiram por que vivem? Conhece-se outra cultura que tenha tanto e por tanto tempo trabalhado 0 refinamento dos perfumes? Odores fortes e pesados, outrora, sutis e vaporosos, recentemente, a rosa substituiu 0 almfscar. 0 perfume epara 0 defumado como 0 perdao epara 0 dom ou como 0 perfeito epara 0 feito, a quintessencia. Se 0 dado a nosso corpo reduz-se it linguagem, 0 que diz o perdoado? 0 buque, comp6sito, reline 0 olfato e 0 gosto, a cultura francesa excele em sua composi~ao. A conversa~ao, flutuante, extingue-se. 0 buque nao produz a linguagem, mas impulsiona a conversa~ao, arte consumada, perfumada, do espf-
OS CINCO SENTI DOS {Alegria}
rito efemero, fugidio, vivaz. Perde-se, flutua e desaparece no ar; em ruina, em ftligranas, volta, as vezes numa cintila~ao, como a excelente arte de piscar. 0 paraiso perdido e encontrado em cintila~oes. 0 di,l\ogo luta, obstinado, faz ouvir 0 palavr6rio dialetico, teimoso e tolo como urn par de bodes que entrechocam seus comos, a conversa~ao acorda e se espregui~a, enla~a-se, dissipa-se, vive em paz, diz a inteligencia vivida, suspensa no espa~o como urn pequeno efluvio. Nao ha nada na conversa~ao que nao tenha estado no buque. Fogo de artificio que ondula, mosqueia ou listra temporariamente a noite. A lingua e conservada nos dicionarios, 0 saber nas encic\opedias, 0 dinheiro nos cofres- fortes. Os sinais, escritos, ficam. As artes povoam os conservat6rios ou os museus, pe~as preciosas, telas, bustos, icones encerrados em caixas protegidas dos ladroes. A teoria se interessa pelo que permanece. Pelo invariante. Nao ha nada no intelecto que nao tenha estado primeiro nos sentidos: fica 0 sensive!. Embora transformado, comporta 0 invariante. S6 nos interessa 0 que fica de sensual no intelecto, 0 que subsiste, em gera!. 0 verbo voa, a escrita fica. 0 buque nao permanece, nem 0 gosto, nem 0 perfume, a conversa~ao que dele deriva, arte humana suprema, em nuvens de sinais acima dos amores, perde-se no ar. Tudo isso se esvai, nada ai se conserva nem se comunica por muito tempo, nada se compara nem se reduz ao dinheiro, tudo se dissipa em uma infla~ao fulminante. Nenhum lucro, diz a teoria que conta com 0 lucro de urn capital que se concentra nos lugares ou na cabe~a. o dado pode vir em centelhas, a arte que dai deriva foge, a lingua fica como dinheiro. Fluxo sem estoque no primeiro caso, circula~ao com capital, no segundo. Se 0 dado, pois, e reduzido a linguagem, bancos de dados sao facilmente constituidos. Nao se pode abrir urn banco para 0 vohitil. Conhecimentos, ciencias, linguas sao colocadas em bancos, nao 0 sensual fugaz. Nao ha nada no intelecto que nao tenha estado primeiro nos sentidos: 0 que significa que 0 intelecto recolheu 0 que fica dos sentidos, que se torna, portanto, uma mem6ria, urn estoque, urn banco de dados. Inversamente, todo banco de dados realiza tecnicamente 0 sonho dos fi\6sofos chissicos. Entao, como chamamos aquele que, em lugar de inteligencia, carrega urn banco assim, a cabe~a feito urn favo de abelhas com alveolos rotulados? Urn rematado imbeci!. Ha no sensual uma finura que nao fica, buque, conversa~ao, essa alegria que nao permanece. Ainda mais fina e viva quando passa, grosseira
337
MICHEL SERRES
quando se estabelece. Conhece-se uma cultura mais leve que a minha, que o universe mais tenha acusado de leviana? Sem peso, sem pre~o, duas vezes graciosa. A gra~a passa, pudica demais para se impor. 0 intelecto nao recebe, nao reconhece a sensualidade graciosa, da qual nada pode ser depositado no banco. Donde 0 desprezo em que minha cultura e mantida agora. Ela nao produz nenhum interesse, nem teorico, nem social, nem bancario, mas escapa, gratuita. 0 que nilo fica dos sentidos graciosos, gratuito, leve, passageiro, forma nossa cultura; 0 que fica dos sentidos acumula-se como 0 dinheiro, a teoria do conhecimento venal, acumula e calcula. Epistemologia sem prazer e sem gra~a; sensualidade dada. Porque 0 dado escapa, pois, illinguagem, nilo ha banco de dados, salvo por abuso de lingua. Nilo ha senao ban cos de dinheiro, mesmo na ordem te6rica. Nilo conhe~o, pois, cultura mais leve, mais graciosa, mais abstrata que a minha, menos arrendadora. Sobretudo, mesmo quando fala do que nilo the diz respeito, a lingua francesa instiga. Denomina dado 0 que vern do mundo para 0 corpo. Chama de percebido 0 que e recebido por n6s como vindo do mundo. Tomamos 0 que nos e dado, diz ela. Como se exigissemos, como se descontassemos, II maneira de urn imposto, por uma percep~ao, 0 gratuito, 0 que se oferece. Estranho paradoxo. Para que tirar, arrecadar 0 dado, para que cobrar as gra~as? Para que esse esfor~o a mais? Recuperamos 0 dado com 0 verbo, 0 mundo, recomprado, esconde-se sob seu pre~o. Agora devemos recuperar os dados, sem pre~o, graciosos, gratuitos. Posterior 11 sensa~ao, a percep~ao fica 11 distancia econ6mica. A primeira recebe a gra~a, a segunda paga com linguagem. E a pr6pria lingua que 0 diz e 0 ensina, tendo mantido com exatidilo sua rela~ao com 0 mundo.
338
Generoso quem se entrega ao que passa, esquece a conta, deixa 0 banco, acha tempo, sente prazer no efemero. 0 dado passa, gratuito porque instantaneo. 0 prazer dura urn momento, diferencial do tempo. Ha no sensorial fugidio a dissipa~ilo infinitesimal do tempo. A estetica faz brilhar 0 instante ou 0 acende, reline 0 conjunto dos incoativos. Nao sabe soma-los, nilo os pode integrar, nem reter. 0 banco os retem, a linguagem os retem, parece que conseguem, mas, de fato os perdem. 0 tempo eacumulado nos bancos, mas nunca reencontramos hi 0 que Ja colocamos. Acreditamos segurar pelo menos urn subtotal do tempo, uma especie de
OS CINCO SENTIDOS
{Alegria}
soma, de fato mergulhamos na flutua~ao caotica de seus incoativos, de sua dispersao. A estetica responde a essa nuvem, esse mar marulhante. 0 intelecto, a linguagem, 0 banco tentam pseudo- integra~oes das pequenas percep~6es sensoriais de tempo, nao integniveis. Conhecemos outra cultura que mais se tenha aproximado desse mar ou dessa nuvem, desse prazer, do instantaneo? Que alguma vez tenha soltado 0 tempo? Corajoso quem se entrega, abandonado, a esse caos, quem mergulha nessa mistura. 0 medo, 0 horror ou a economia levam a sair dal, a entrar no banco. A conta quer ganhar, avareza vldo intelectual. 0 intelecto tern horror aos sentidos, esbanjadores. Mas erra na conta, como todos os sovinas. Se queres perder teu tempo, procura salva-lo; se queres salva-lo, consente em perde-lo. Nunca reencontranis no banco todo 0 tempo que ali colocaste. Ele congelou nos sinais. Ao passo que 0 buque, 0 perfume, 0 matiz, a conversa~ao que se perdem no ar esposam finamente as diferendais do tempo, evanescentes, escoam, passam, desaparecem, voltam, piscam, percolam. Os sentidos brincam de esconde-esconde com 0 tempo, 0 que se perde se acha, recupera-se em urn momenta inesperado. Ausente onde 0 imaginamos, perdido onde 0 colocamos. Nao conheyo cultura menos avara que a minha, menos pregui~osa e menos apavorada. Nao ha nada em sua inteligencia que nao passe ou se ada pte como se ela fosse urn sentido. Nao ha nada no intelecto se ele nao for nipido, doce, vigilante, caprichoso como urn sentido. 0 sentido e 0 modelo da inteligencia, que, sem ele, arrisca-se a nao entender nada do tempo. Todas as sabedorias celebraram 0 instante, 0 sabio deixa a mem6ria, tern poucos projetos, envolve-se no presente, habita a diferencial. Conhecemos outra cultura mais sapiencial que a minha, leve, mergulhada no esvaecimento? A estetica, prazer dos sentidos, refinamento, beleza das formas fugazes, fuga do tempo, ri das mora is da hist6rias. 0 sabio, no instante, nao conhece banco. Conhecemos outra cultura que tenha tanto e por tanto tempo amado os amores refinados? Amabilidade em rulnas sob 0 bombardeamento teorico, sob a descarga da lingua chavao, eis tres gera~6es sem piedade pelos amores breves, que abandonaram 0 buque por uma lingua doente, as flores de antanho desapareceram na caixa-preta da palavra. Nao ha nada no banco inconsciente que urn dia tenha aflorado os sentidos. 0 sabio, no instante, esquece a longa memoria de sua triste infllllcia. jamais conheci cultura tao amavel, tao livre de tais fardos.
339
MICHEL SERRES
Esse povo nao pode evitar ser leve. fa 0 sobrecarregamos bastante de saber e de dinheiro, ja 0 abarrotamos de historia, ja 0 massacramos com linguas chavoes, incapaz para 0 tedio, este povo riu e rira. Sorri e sorrira, eIe zomba. Nao cuida do poder, ama 0 instante, a media. Irremediavelmente leviano, de cultura movel, frivola, delicada, fUti!, voluvel, superficial ate, dan~ante, desenvolta, flexivel. Nao somos profundos, nem serios, logicos, nem abstratos, preferimos 0 buqu~, 0 pequeno efluvio, e a nuan~a iI cor, a elegancia ao conforto, 0 espirito averdade, a harmonia esconde-se por tras da gra,a das apojaturas, a constru~ao foge sob as guiriandas, 0 consentimento passa diante do prazer, 0 gosto antes do julgamento, a vida acima do resto, a pequena marquesa em rosa antigo, impertinente, diante do douto sombrio e feio, temos 0 superfluo, para que precisamos do necessario? Se nos acontecia 0 inc6modo da riqueza, do poder, ci~ncia ou razlio, nos 0 dissimuIavamos com pudor, reyes mais que tudo. As muIheres, reyes aqui como a intelig~ncia, a inteligencia leve aqui como urn sentido, t~m 0 toque aveludado, 0 oJfato suti!, 0 paladar deJicado, 0 ouvido fino, 0 oJho que comb ina exatamente a echarpe com a saia, Jeves como a pomba que pJana agoural, gra~as a turbulencia, na Jimpidez da manha, nossa lingua enfim deve ser usada de maneira Jeve, replica viva, rapido impudor, escondam, pois, sua ci~ncia prenhe de pubJicidade, nossa lingua feminina, ensurdecida, velada, e rendi!hada de vogais mudas. Este povo nao podera evitar ser muIher, sua cuJtura mostra a feminiJidade pudica do mundo. Os Jugares organizados para que se tome a palavra, construidos em fundo discurso, com os lugares de escuta ao redor, geralmente favorecem 0 monologo: alta tribuna da e10qiiencia sagrada no meio da nave, cMedra de sabio especiaJizado no fundo do anfiteatro, agora mesas de microfones e cameras. Silencio, eJe faJa. Ele faJa e, para ser ouvido, obedece a certas regras de Jogica e de retorica. Agradar e nao se contradizer, no minimo. la conhecemos lugares em que 0 dialogo florescia: duas personagens em busca de verdade lutam para excIuir do meio deJas 0 ruido que as impede se ouvirem e tentam incIuir entre si 0 sentido que nasce da interse~ao do vocabulario e peJo Ja~o da boa vontade deJas. 0 diaJogo e praticado por quatro pessoas, as duas que parecem faJar, mais a terceira excluida, 0 dem6nio deJas, mais a terceira incluida, sua esperan,a, deus que desce no meio deJas. Em Paris, houve saloes em torno de certas muJheres. Ninguem ali ~ao
340
OS CINCO SENTIDOS
{Alegria}
perorava sozinho, nenhum par dialogava ali, lugares de conversa~ao. Sem amincio, sem profecia retumbante, sem ensinamento, melhor ainda, nenhuma discipJina, nada disso tern lugar sob pena de pesado tedio. As mulheres daquele tempo nao toleravam que se aborrecessem em casa delas. Que eu saiba, a filosofia, embora brilhante no seculo XVIII frances, embora estabelecida em regime de conversa~ao, nunc a consagrou urn termo met6dico a essa rede multipolar, como consagrara l6gica e ret6rica para 0 discurso ou dialetica para 0 diaJogo. A conversa~ao deve ser entendida como e dita ou escrita, ou, melhor ainda, praticada, sob a egide cortes das mulheres, como 0 conjunto das convers6es, a repeti~ao freqiiente de todos os giros corporais, lingiiisticos, te6ricos dos participantes. Dir-se-ia a configura~ao do celebre problema inintegn\vel dos n corpos: varios astros enfileiram-se juntos para obedecer minuto ap6s minuto 11 lei da atra~ao. Nada e mais complicado, ja que cada urn sofre a de todos e todos recebem a de cada urn. A conversao, rara e simples no caso da eloqiiencia ou no da li~ao cientifica, repete-se aqui, freqiiente e complexa: multipla, rapida, instantanea. Nunca conceituamos 0 estado hiperplatoniano da conversa~ao: conjunto de aplica~6es, de tradu~6es, de interferencias, de comunica~6es, de passagens, de distribui~6es que desenhariam seu mapa f]utuante, seu labirinto as vezes, sua rede metastavel, sua transforma~ao, quando Hermes passa. No salao entretinham-se 0 mecanico, 0 medico, 0 compositor e a marquesa, 0 economista e 0 diplomata. Chamemos de conversa~iio 0 que 0 medico, ao falar com 0 mecanico, obriga-se a dizer 0 homem-maquina, a mergulhar, sem saber, no que e do outro, mas, inversamente ou vice-versa, o mecanico vai querer mergulhar 0 que e dele na psicologia, enquanto 0 economista diz a circula~iio em termos de hidraulica, e assim por diante. A conversa~iio e 0 conjunto de aplica~6es de urn saber em ou sobre outro, 0 conjunto de suas conversa~6es. Essas aplica~oes multiplicam-se rapidamente, sem exclusao possive!, os modelos passam como 0 anel na brincadeira de salao, essa passagem ou multiplica~ao torna-se 0 objeto do pensamento, nao a discipJina. A eloqiiencia sagrada institui, 0 sabio especiaJista instrui, emitem sem receber, 0 salao nao forma urn local de ensinamento e permanece sem disciplina. Ele produz urn objeto de pensamento: esse conjunto de passagens. E sua condi~iio: a tolenlncia. Condi~ao e objeto impensaveis na escola. A epistemologia da conversa~iio morreu, acredito, quando as grandes universidades tomaram 0 lugar das massas da igreja. A escola supoe uma
',stituto de PSicologia - UFRGS Dih.l:A... ,.. ......
341
MICHEL SERRES
divisao disciplinar, conflitos de seitas, onde recome~a a exclusao dos heretieos, pela opiniao ou pela ideia. Podemos integrar esse problema a diversos planetas? Sim, com 0 nome de filosofia. Essa filosofia que desprezamos com 0 nome de literatura de lingua francesa. Observo encantado quanto 0 escritor de lingua francesa rompe com 0 douto. Tern pavor ao pedante, teme sua ira e seu ressentimento: portanto, ele faz logo rir de quem corrige os modos, os corpos, as palavras e os raciocinios. Urn escritor nao revisor convida i\ liberdade. Ja falei bastante da literatura lida do ponto de vista erudito para querer mudar de posi~ao e ouvila falar quando descreve os mestres. Ela os criva de flechas. Rabelais zomba deles, Montaigne duvida, Moliere os ridiculariza, Marivaux os persegue, sim, nossa literatura, melbor, nossa cultura teme os professores. Vejam a longa serie dos repetidores, detestaveis e tolos, dominadores raciocinantes: Janotus, Marphurius, Honorius, B1azius, ele se chama Mouillebec no imortal Labiche. Percebam pelos nomes latinos que a lingua deles esta morta. Ou~am os nomes das cita~6es eruditas com notas explicativas. A nota consagra uma Iingua-chavao. 0 escritor de lingua francesa ri desses nomes pr6prios porque nao tern medo deles: eles dominam, desp6ticos, devoram, vampirizam, destroem, enfeiam os textos e deles se apropriam. Para exibir seu saber censuram sua lingua. A beleza, a felicidade da obra vern primeiro da limpeza, da leveza, dessa bela Iibera,ao. Escrevam urn texto nu, estao come,ando a viver livremente. Como gostaria de dizer, invertendo a perspectiva como urn dedo de luva, que a literatura, a filosofia e 0 pensamento come~am quando 0 pedante sai. Quando 0 saber pesado se retira. Quando a Iingua-chavao queima. Quando a prisao da linguagem se abre. Enfim livres, Iivres para falar a nosso bel-prazer, sem regras azedas nem referencias canonieas, para pensar 11 nossa vontade, leve, sem dogma previo, nem critica interminavel, para escrever galantemente longe dessa presen~a pesada. Para escrever a uma mulher, mas nunca contra urn revisor.
342
Aprendi mais trabalhando a terra ao lado de meu pai nas margens do Garonne ou em sua gabarra, aprendi mais em Pinara, sob a falesia dos quinhentos sepulcros e no teatro de Epidauro, sozinho, sobrevoando 0 Yukon
as CINCO SENTIDOS {Alegria}
e 0 Mackenzie ou numa grande tempestade ao suI de Creta, entre dois chamados de socorro, na falesia do homem-p.lssaro na Ilha de P.lscoa de frente para 0 Pacifico e de costas para 0 vulcao, aprendi mais caminhando ao sollentamente nos prados de Auvergne ou nas fiorestas brasileiras, durante viagens sedentas de mundo, do que em qualquer livro j.l lido. Nao, nao desprezo os livros, eu os amo tanto que lhes dediquei minha vida, amo minha lingua a ponto de the ter dado to do 0 meu tempo, mas s6 podemos fazer viver uma cultura, urn pensamento, se os alimentarmos do que nao e ela. A lingua se fecha do lado lingua, encerrada em sua exatidao, precisao, seu rigor, suas qualidades, abre-se do lado mundo, incoativa e inexata, hesitante e fecunda. 0 professor, critico, te6rico ou politico habitam 0 lado fechado, 0 escritor estabelece domicilio nos flancos abertos, voltados para as coisas geralmente duras. A estetica fica do lado aberto da lingua gem, habita 0 lado jardim. Aprendi mais trabalhando a terra como crian~a paisana, nos canteiros de estradas ou de obras, oper.lrio, pedreiro, calceteiro, aprendi mais nos barcos, marinheiro de .lgua doce ou salgada, enos saloes em companhia das ultimas verdadeiras marquesas, em cabanas dentro da mata falando com velhos bambaras cuja lingua eu ignorava e que nao conheciam a minha, sob os lambris dourados dos palacios ao lado dos poderosos temporarios, espantando-me com seus costumes, nos hospitais com os que sofrem, diante dos altares com os que rezam, nas torres de canhoes ou diante dos lan~a-torpedos com os que querem matar ou morrer, no meio de equipes de jogadores, quando a bola passa depressa e ninguem fala, nos espetaculos onde todos aclamam, diante dos leitos de morte onde os olhos suplicam, com as crian,as ainda sem palavra, aprendi mais durante minha t.lcita viagem pelo corpo social ou genero humano, aprendi mais entre os pobres, os simples de espirito e os humildes que em qualquer livro lido, que por qualquer palavra douta. A lingua nasce na emo,ao da descoberta, as palavras nascem como nao as esperamos. Aprendo mais contigo do que em todos os livros de fIlosofia, tu que me deste meu corpo, a quem ofere,o as ultimas palavras deste livro, em humilde retribui,ao. 343
MICHEL SERRES
ASSINATURA
A linguagem tomou 0 lugar do dado, a ciencia toma 0 da linguagem.
o que significa nessa troca a palavra lugar? A hist6ria das ciencias conhece com atraso os avatares da critica literaria, outra disciplina de interpreta~ao, basta mudar 0 texto. Tern, pois, seus historiadores mais ou menos puros, externos ou intern os, suas escolas de interpretes, suas grandes vedetes mundiais, seu teatro. 0 mesmo quanta it epistemologia, ao menos no velho sentido frances do termo. Forma-se uma disciplina linica, a critica em geral, da qual variam os objetos. Ao menos dedicam-se seguramente it hist6ria e it fllosofia das ciencias quando continuam nas ciencias, quando as tomam como objeto. Confesso nunca ter desfrutado dessa seguran~a. Eu tinha uma especie de certeza intuitiva de trabalhar nesse campo, convencido no entanto de que nao me achava nele. 0 julgamento pro fissional unilnime, tambem, levava-me a pensar que eu exercia em outr~ lugar. Onde? Nao sabia. Eis 0 espa~o que os gregos come~aram a delimitar, por defini~ao e por exciusao - que ninguem entre ai se nao for geometra - , que 0 seculo XVII europeu reconheceu e ainda esta empenhado em definir, 0 espa~o da ciencia. Ficamos fascinados, depois, com 0 seguinte julgamento: isto pertence, aquilo nao pertence a ciencia, isto dentro, aquilo fora. Inciusao, exciusao, estrategia de escolas, mas gesto originariamente religioso: 0 auspice outrora destacava com cuidado 0 terreno sagrado, desenhava plintos nele. Eis 0 profano, eis 0 sagrado. A ciencia e a nao-ciencia misturam tao pouco os seus respectivos terrenos quanta 0 civil e 0 religioso, com risco de serem profanados. Ora, as fronteiras do saber, flutuantes, mexem-se, as filosofias do conhecimento sao afetadas e transformadas por essas mudan~as. Acontece simplesmente que coisas estranhas it ciencia ja nao 0 serao amanha e expulsaremos 0 que dela hoje faz parte. 0 tempo zomba dos dogmas e do terceiro exciuido. Reconhecemos 0 estudante, 0 universitario, 0 eciesiastico, pelo sintorna de colocarem a questao onde, a do lugar apropriado. Em que lugar tal discurso reline urn certo consenso? Ortodoxo, heretico, anatema, escolhas. Onde voce mora? 344
OS CINCO SENTIDOS
{Alegria}
o espal'o da ciencia fascina: e por isso que se compara ao templo, 11 zona meticulosamente recortada pelo sacerdote por meio de urn bastao ritual que ninguem pode tocar. Eis 0 objeto, eis aquilo a que devemos dar uma atenl'ao maxima. Urn grupo inteiro concorda, nessa fascinal'ao, sobre essa objetividade. Nosso tempo ainda nao tomou urn distanciamento frio em relal'ao 11 ciencia, ainda nao esta laicizado no que diz respeito a ela. 0 espal'o da ciencia guarda nossos ultimos valores, ele exercia sobre nossos pais, exerce ainda sobre alguns de nossos contemporaneos, uma atral'ao da ordem do sagrado. Qualquer trabalho de epistemologia ou de hist6ria das ciencias pode ser lido sob esta luz. Ainda vibramos com a espantosa aparil'ao do saber exato no meio de n6s. 0 que suscita a interpretal'ao, como fazia a palavra divina. Hi mais de urn quarto de seculo assumi uma posil'ao laica a esse respeito. Jamais considero a ciencia como urn objeto nem como urn espal'o externo a ser descrito, analisado, julgado, fundido, cidade a ser defendida ou pral'a a ser sitiada, templo a ser protegido de qualquer impureza, eu a suponho. Nao somente a suponho adquirida ou admitida, sabida, mas suponho-a, absolutamente falando. Urn objeto esta posicionado na frente. Urn espal'o nos circunda, podemos mergulhar nele. Mas supor a ciencia e coloca-Ia em posil'ao de sujeito. Sabemos a ciencia de maneira muito nova. Primeiro a descobrimos, em seguida estivamos mergulhados nela. Ei-Ia, agora, mergulhada em n6s. Ela pensou fora de n6s, ela pensa em n6s. Fizemos nela a nossa morada, de agora em diante ela mora em n6s. Que meu leitor suponha seu autor 0 mais'sabio possivel; 0 autor sabe seu leitor 0 mais sabio possivel. Exposto ou mostrado, meu saber aponta a falha na laicidade, ou a falta de digestao. Nao trabalho, pois, sobre a ciencia, a ciencia trabalha em meus textos. Ela poderia trabalhar sobre a ciencia: e 0 faz nos textos de ciencia que a fllosofia pode recopiar, e tambem pode achar inutil recopiar por razoes de redundancia e de honestidade. Em meus textos ela trabalha, ativa, sobre coisa diferente dela. Revolul'ao muito secreta que nao tern nome algum: 0 saber objetivo, suposto, tomou 0 lugar do sujeito. Esta transformal'ao da lugar a urn mundo novo, a textos novos, a urn outro pensamento. Sabemos a ciencia de uma maneira nova: n6s a digerimos. Outrora, uma instancia que Ihe era estranha pensava a ciencia como objeto. Ela
J
345
'I
1
I MICHEL SERRES
ocupou seus quarteis nessa instiincia. E entao a utilizamos como sede e sujeito de pensamento. Nos a usamos como fazemos com a linguagem. A linguagem nao constitui urn objeto ordimirio, ela mora no lade do sujeito, pessoal ou coletivo, brinca de desaparecer no lado do objeto. A linguagem tomou 0 lugar do sujeito desde nossa propria aurora, desde 0 alvorecer da filosofia e 0 inicio das religioes, desde a filosofia atual. Levamos milenios para compreender a apari~ao da linguagem no meio de nos e em nos, nosso pensamento ainda vibra com sua espantosa vinda. A linguagem tomou 0 lugar do sujeito desde a aurora do sujeito, Nossas religioes e nossas filosofias falam desse susto. Puseramos a ciencia diante de n6s, como urn objeto entre outros, excepcional somente por suas atitudes e performances. Da mesma forma, puseramos a linguagem diante de n6s como urn objeto entre outros, excepcional apenas pela do~ura e transparencia. Ainda levamos muito tempo para compreender 0 que quer dizer compreender. Levamos muito tempo para digerir a linguagem. Surgido no meio de n6s e em n6s, 0 verba habitava urn mundo onde ninguem 0 havia recebido. Sua luz clareava as trevas e as trevas nao 0 haviam recebido, Antes de 0 verbo penetrar em nossa carne, tornar-se nossa carne, 0 espa~o conservava a divisao entre a obscuridade e a claridade. Antes de 0 verbo virar sujeito, 0 sagrado luminoso separava-se do profano escuro em que a luz nao penetrava. Mas n6s recebemos 0 verbo, nos 0 comemos, digerimos; descido no meio de n6s, em n6s, tornado n6s mesmos, sujeito. Filosofias e religiOes ha mais de tres mil anos ainda ecoam este acontecimento por tanto tempo incompreensivel, esta virada que atravessa e faz nossa hist6ria, melhor, nossa hominidade.
346
Algo de tao grande assim mudou lentamente desde os gregos ate nossos pais, revirou bruscamente os tempos de agora. Enfim recebemos a cicncia e a digerimos. Ela nao desenha mais um espa~o exterior, urn cenario teatral de luz e sombras, campo de batalha ou terreno sagrado, horror ou atra~ao, expulsao ou acolhimento, como se a idade das Luzes houvesse repetido para ela a tragedia do nascimento e da morte do verbo, ela entra em n6s, no meio de n6s, faz-se carne coletiva, individual, sujeito de pensam en to, condicional ou reflexivo. Em mim, aguda, ativa, laboriosa, vigilante; em n6s e no meio de n6s, saturando 0 mundo objetivo e 0 de nossas rela~oes. Os velhos sujeitos 11
d
:I MICHEL SERRES
1
da linguagem: ela nao transforma a historia mas a evolu~ao, e diz respeito ao processo de hominiza~ao. Universal no espa~o e para as culturas, ela marca, por essa passagem trans-historica, sua universalidade no tempo. Esses processos que modelam 0 sujeito que fala ou que sabe jazem em urn esquecimento bern mais profundo do que aquele que a historia transforma em sua fome cotidiana. Socrates pedia para demonstrar a urn menino escravo urn raciocinio simples sobre uma figura de geometria e coneluia que 0 ignorante lembrava-se assim que acabava de saber. Essa memoria marca somente 0 primeiro estado: quando me lembro do que Socrates disse e demonstrou, refiro-me a esses conhecimentos que chamamos escolasticos. Depois, felizmente, esquecemos, a verdadeira ci~ncia come~a. Senao, estariamos tao estorvados por nossas recorda~oes quanta 0 pescador da doris l9 que acaba de ca~ar duas baleias, de amarra-las a bombordo e a estibordo, e ainda pretende remar para ir mais depressa. Falar consiste em esquecer que se sabe falar, exige que nos atiremos nus no sentido ou no objeto ou no raciocinio, no esquecimento total de que passamos pela lingua. A eloqii~ncia verdadeira zomba da eloqii~ncia, nao por urn vao desdem das regras ou da disciplina da oratoria, mas porque, ao ouvir intensamente 0 sil~ncio, mergulha na piscina viva do que procura dizer. Nadar supoe esquecer que se sabe nadar, tal como andar, correr, pular, fazer amor, pensar. A cultura se reduz a este esquecimento: aprendam as maneiras para nunca mais aprende-las, aconselhavam as antigas marquesas, aprenda todo 0 possivel para jamais 0 exibir, sua cultura nao tera lacunas a nao ser as grosserias de que se lembrarem, que estorvarao sua lingua. A cita~ao marca a incuitura, 0 retardamento da digestao, a eructa~ao flatulenta do dispeptico afetado. Penso se e somente se fico por minha conta. Saber exige 0 esquecimento do proprio saber. 0 pensamento zomba de suas lembran~as. A ci~ncia perde consci~ncia na consci~ncia do sujeito sabio que, por esta perda, pensa e inventa. Busquei apaixonadamente isto: que 0 saber e a ciencia sejam esquecidos em meus livros escritos para que esta perda mesma trabalhe novos objetos, para que esta perda traga urn sujeito novo. 348 19
Pequena embC1rca~ao usada para a pesca de linha na ilha canadense de Terra-Nova. (N. da T.)
J
as CINCO SENTI DOS {Alegria}
A questao da filosofia hoje poderia, pois, ser formulada assim: 0 que pensamos quando sabemos? a que podemos pensar quando sabemos como falamos, quando sabemos a ciencia no sentido que, ativa, vivida, funda-se no pensamento, no sentido que, depois de aprende-Ia, a carne a incorporou? Nao: 0 que h
J
349
MICHEL SERRES
ainda mais que nossa hist6ria e nossas esperan~as, ainda nao dissemos que elas desqualificam as Hnguas e, pior, a Iinguagem, ao substitui-Ias por algoritmos reais. Ja nao podemos falar a lingua corrente, precisao e rigor abandonaram-na para sempre e emigraram para 0 saber das mil disciplinas, as maquinas gigantes de comunica~ao e de espetaculo roubaram seu charme e seus encantamentos. Pulverizada, laminada entre a Babel erudita e as redes ruidosas de informa~ao, a lingua agoniza, meu Iivro celebra a morte do verbo. Mas desde que somos homens, s6 conseguimos crescer transformando 0 verbo em nosso alimento, os mais importantes dentre n6s assim se tornaram por te-Io magnificado. Perdemos irremediavelmente a mem6ria de urn mundo ouvido, visto, percebido, sentido por urn corpo desprovido de linguagem. Esse animal esquecido, desconhecido, tornou-se homem ao falar, e 0 verbo modelou sua carne, nao somente a sua carne coletiva de mudan~as ou de percep~ao, usa ou domina~ao, mas tambem e sobretudo a sua carne corporal. Esse periodo estavel da hominiza~ao, nao digo da hist6ria, termina. Amanha, n6s, bichos de Iinguagem, ja nao veremos 0 mundo ou os poderes da mesma mane ira. A ciencia desenralza a Iinguagem depois de te-Ia abalado, este acontecimento transtorna nossos corpos, 0 coletivo e 0 mundo. Come~amos a ver, a ouvir urn mundo por uma carne prenhe de ciencia e nao mais de Iinguagem, nosso corpo sabe mais do que fala; falava mais do que sabia. Ele sabe, esquece que sabe, assim como falava esquecendo que 0 fazia. Carne, nos dois casos, transparente e obscura. Tao sabia, no caso daqueles que sabem pouco ou mal, que falava pelos timidos, inexperientes, mudos ou gagos. No mais profundo do subjetivo, do coletivo e do carnal, a substitui~ao ocorre, a ciencia erradica a linguagem, 0 que explica nosso tempo. Essa queda brutal do verbo, essa perda ou essa morte permitiram que vislumbrassemos fugidiamente 0 mundo e os outros, tal como provavelmente puderam ser vistos antes que a Iinguagem se encarnasse em n6s. Breve cIarao entre dois reinos a i1uminar os cinco sentidos.
350
Vivemos hoje uma crise aguda das Hnguas. Outrora tidas como tesouros, caem em menosprezo, cada qual vandaliza a sua como fizemos com a terra. Nossos ancestrais paisanos, cujas cartas as vezes encontramos, exprirniam-se com mais elegancia e cIareza do que a atuaI cIasse dominanteo Pela verve do relato e pelo gosto da palavra adequada, perdi mais ao passar da agricultura para a universidade on de os chavoes chegam ao
1
OS CINCO SENTI DOS {
Alegria}
auge. Nossos sabios mais conhecidos ja nao sabem escrever, e as editoras reescrevem os livros desses escritores. As midias propagam algumas centenas de palavras e cultivam 0 erro e a vulgaridade para se fazerem de povo e vender mais. as poetas perdem os ouvidos, a intelligentsia M muito tempo os aboliu. as professores encontram vinte "casos perdidos" em grupos onde, ate recentemente, nao se encontravam mais que dois ou tres, chamemos casos perdidos os que nao demons tram ler nem escrever, por mais que 0 professor se esforce. a artesao da lingua torna-se raro, ninguem experimenta as formas. as que dizem ou acreditam ter nas maos nosso destino nunca se mostraram tao barbaros, chamemos barbaros os que gritam, por meio de borborigmos, comunicados quase sempre provenientes de uma lingua dominante. Nao vejam aqui uma velha queixa, exatifico urn diagnostico. A linguagem desmorona, ainda mais que a lingua; nossa rela<;:ao com 0 mundo e com os outros e com n6s mesmos ja nao passa, preferencialmente, por ela, desde a era da ciencia. Exemplo. Quando usamos a palavra estrela, designamos urn ponto luminoso desses que pulsam acima de nossas cabe<;:as nas noites claras. Conhecedores, chamamos Sirio a maior, na canicula, Vega, a azul, vizinha do zenite nas longas noites de verao, denominamos cabe<;:a de Medusa aquela que, instavel, muda ate de cor no meio do Escorpiao, Antares. Imaginavamos que 0 confronto com Marte, deus da guerra, valera esses dois nomes a urn rosto atravessado por tantas tempestades. Abandonamos essa rubrica tao vaga ou arbitraria quanta urn nome de batismo; a noite perdeu seus gigantes e seus bichos. Mas, praticos, conheciamos a posi<;:iio delas para inferir a nossa, no crepusculo, por meio do sextante; precisavamos preyer 0 lugar em que se acenderiam, cedo, enquanto todas as outras continuavam eclipsadas pelo pOr-do-sol, para observar ao mesmo tempo o horizonte ainda visivel e 0 novo fulgor. as satelites extinguiram esses sinais antigos. Exatos, doravante, precisos, fieis as coisas, chamamos de supergigante azul a antiga Rigel que fica diante do velho Orion, e de ana amarela perto de sua nova 0 astro que nos assola ao meio-dia. Mais rigorosos ainda, escrevemos equa<;:6es. A coisa ha pouco tempo chamada estrela e classificada, distinguida e dividida em familias novas, ou agrupada em gigantescas galaxias, em todo caso, e designada por urn corpus de c6digos ou de catalogos, por urn conjunto de calculos e de teorias. A estrela enquanto tal ou assim nomeada nao existe mais, dela a astrofisica pouco
351
MICHEL SERRES
se ocupa, tampouco a biologia da vida ou a ffsica da materia. Desqualificaram essas palavras, fazendo as coisas desaparecerem. Vida, materia ou astro pertencem menos it filosofia ou iI hist6ria do que iI velha linguagem abandonada pela exigencia de precisao e pelo dinamismo do conhecimento objetivo. Os RR Lyrae ou a luminosidade NGC 1036 ja nao fazem parte de nenhuma lingua e se afastam da Iinguagem como as f6rmulas que sao discutidas a seu respeito. Quem usa a palavra estrela abandona a exatidao ou 0 objetivo da coisa como tal. Calculos ou c6digos substituem 0 termo. Resta uma carca~a vaga e vazia que entra lentamente em dessuetude. Nossos ancestrais e n6s falavamos de vida, ou de est reI as, nao ouviremos mais aquelas falas, boas de gravar nos troncos de arvores pelos namorados ingenuos.
352
Da mesma maneira, quando usamos erva, inseto, gladiolo ou fiicsia, esmeralda ... 0 raciocinio e remetido ao identico. Os c6digos eruditos devoram com todos os dentes nossas velhas Iinguas, captam-Ihes aquilo que origina a coerencia com 0 real ou a fidelidade a ele; delas s6 resta urn farrapo solto. Ja nao encontraremos, no bosque, 0 que nossos pais denominavam erva ou inseto, ja nao iremos ao bosque de onde essas especies desaparecem. A ciencia, com os fertilizantes, os motores, a aspirina ou a bomba atomica, nao mudou so mente a profundidade do mundo ou as rela~6es entre homens, mas tambem as transformou ao tirar a realidade das coisas designadas pela Iinguagem; ja nao podemos falar. Teriamos dificuldade em achar a materia onde dizemos particulas e m1c1eos, em achar a vida onde dizemos acidos ou enzimas, em achar a erva ou 0 trigo onde brotam clones ou mutantes de uma cepa resistente em outra violentada, obtidos por engenharia genetica. Os novos agricultores deste novo neolitico fazem proliferar novos bosques, nos laborat6rios, por bifurca~6es de possiveis, s6 iremos a esses bosques onde as estacas estao codificadas. Desde 0 inicio de nossa hist6ria, 0 mundo global e local, da g16ria dos ceus aos minimos detalhes e reconditos, sulcos, brejos, seixos, dormia sob as aguas da lingua gem, inacessivel e submerso como a grande catedral. Ninguem podia chegar ao objeto sem passar por ela, como ninguem pesca alga sem retirar - mas de que espa~o inimaginavel? - 0 bra~o encharcado. Tudo hoje submerge, da mesma maneira, no diluvio erudito, nada escapa ao imperio da ciencia. Nada. Nem a erva, nem a palavra erva, nem as estrelas nem a palavra estrelas, nem nossas rela~6es: nossas Iiga~6es emocionais, nossas obriga~6es coletivas, reten~6es ou declara~6es, os humildes
d
OS CINCO SENTIDOS
{Alegria}
termos que trocamos sem muita preocupa~ao com seus sentidos. Amor, abuso, dom, dizer, guerra, imposto, devo~ao, eis, de forma nova, objetos de ciencia submetidos a transferencias de linguagem em que passamos da ret6rica a uma especie de algebra. Ao trabalharem nossas rela~oes, as ciencias human as desenraizam a linguagem passando por tnis dela, como fazem as ciencias exatas com seus objetos, comutando-a por urn algoritmo correto. A pr6pria linguagem e submetida a equa~oes ou f6rmulas. Para terminar, 0 eu que outrora pensava, que ainda ha pouco falava, esquece, de agora em diante, que sabe. Em suma, a lingua gem guardava os objetos do mundo, as rela~oes do sujeito com 0 objeto, mais, com 0 pr6prio sujeito solitario e sem duvida com 0 n6s coletivo: ela anuncia a integral do mundo, que ainda podemos chamar hist6rico, onde ninguem podia crescer sem viver na intimidade de sua lingua; eis que a ciencia agora guarda todos os sujeitos ou objetos, mais suas trocas, mais a linguagem que os guardava. a velho falante exato e pertinen te acha-se esmagado entre 0 gigantesco crescimento dos algoritmos corretos, que the roubaram a precisao, e 0 crescimento gigantesco dos farrapos restantes, midiatizados, que the roubaram a sedu~ao. Por que ter escrito sobre os cinco sentidos em uma lingua que tantos algoritmos corretos hi muito tempo desqualificaram, sem biofisica, acustica, nem 6ptica, nem l6gica ... abstendo-se da longa serie de experiencias, f6rmulas, model os, esquemas, calculos analiticos? Por que escrever de urn objeto que se perde numa lingua que morre? au: por que nao escrever em berros do circo? as tres poderes de hoje em dia, sem contrapoderes, tiraram os componentes da linguagem. As ciencias tomaram-lhe 0 vinculo verdadeiro com a realidade; as midias se apossaram de sua sedutora rela~ao com outrem; a administra~ao assume seu poder performativo: 0 que ela diz ou escreve existe e impiie-se porque ela 0 escreve ou diz. Estes tres novos poderes ocupam os espa~o e s6 conhecem como contrapoderes um ou outro dos dois outros. Resta escrever tres tipos de livros nesses componentes de linguagem, desde que se ame 0 poder acima das coisas e dos homens. Minha boa velha lingua s6lida e pertinente perdeu sua for~a em proveito das ciencias, deixou sua sedu~ao e seus encantamentos as empresas
353
MICHEL SERRES
gigantes de informa~ao e de espetaculo, deixa seu dito aos que ditam 0 fato. Dela nao restam mais que farrapos. Este fantasma em andrajos guarda uma vaga fun~ao estetica. Estetica? Pois que fale dos cinco sentidos, que celebre a beleza do mundo. A aventura da fllosofia
recome~a
exatamente no lugar onde sempre
come~ou.
Presentes, ausentes, as ciencias sao esquecidas no sujeito que, doravante, sabe. Ele sabe, portanto nao tern necessidade de exibir seu saber. Conhece 0 endere~o dos bancos onde procurar, se quiser recordar. Nao vivemos mais na idade das bib!iotecas raras. A informa~ao, disponivel em qualquer lugar, torna possivel 0 esquecimento. Ela corre no ar que respiramos. Para que citar ou recopiar uma !ista de disciplinas ou de artigos que todo mundo pode conseguir em urn tempo infmitamente curto? Por que encher uma !ista ja bastante longa com urn novo item que contem de novo a pr6pria lista? Quando a mem6ria se torna objetiva, 0 sujeito pens ante torna-se esquecidi~o. Quando 0 acesso ao saber nao encontra qualquer obstaculo, muda 0 status do pr6prio saber. Quando a linguagem se transforma, tudo se transforma. A mem6ria e a linguagem se libertam. A primeira, por maquinas e redes, ja nao escreveremos teses. Vamos pensar diretamente, alegres, aliviados das referencias depositadas no banco, fora do texto, fora do corpo, exatamente fora do sujeito. E a !inguagem abandona tres vezes seus principais componentes. Podiamos considera-la morta, podemos considera-la livre. Enfim liberada de suas obriga~oes.
354
Mas toda vez que urn 6rgao - ou uma fun~ao -livra-se de uma velha obriga~ao, ele inventa. Liberada pela postura em pe da esmagadora obriga~ao de apoiar ou de andar, a pata ou a mao muda, apreende e acaba modelando 0 instrumento; liberada pela verticalidade da necessidade vital de segurar, a boca ou 0 maxilar ou a garganta poe-se a dizer uma palavra. Pois a mem6ria e liberada tres vezes: pela vinda da escritura, pela descoberta da imprensa, agora nos computadores. Quem sabera dizer 0 que a inven~ao da geometria deve II escritura, 0 que 0 advento das ciencias experimentais deve II imprensa, por que emergencia ganhamos urn terceiro esquecimento?
OS CINCO SENTIDOS
{Alegria}
E por que nova disponibilidade nossa lingua ressuscita? Procuro retirar 0 livro que escrevo e este que 0 escreve das listas objetivas, da mem6ria maquinal, dos algoritmos assinalados, para restitui-los a urn novo sujeito ou para reiniciar a aventura da filosofia. Ao novo sujeito pensante, esquecidi~o e sabio, aparelhado de inteligencias artificiais e estoques de informa~oes, de monitores e aplicativos, que deles dispoe e deposita-os longe de si, afastado, pois, por urn novo distanciamento, de suas antigas fun~oes legadas aos artefatos e aos algoritmos, dou 0 primeiro objeto vindo: 0 dado. Objeto tradicionalmente primeiro da filosofia tradicional que a partir dele pretendia construir 0 conhecimento, objeto primeiro para n6s porque resta a competencia daquilo que resta da linguagem quando ela perdeu tudo, exterior abandonado de nossas mem6rias quando elas apreenderam todos os dados. Primeiro portanto hoje porque permanece ultimo, ja nao temos as mesmas pretensoes. Migalhas do festim de lingua que se passa alhures. o sujeito esquecidi~o, destacado, mergulha no inesquecivel mundo. Os cinco sentidos, ainda no inicio de uma outra aventura, fantasma de real timidamente descrito em urn fantasma de lingua, eis meu ensaio. Gostaria de chama-lo: ressurrei~ao - ou renascimento.
355
Instituto de PSicologia - UFRGS ' - - - Biblioteca - - -