"A literatura literatu ra (e talvez somente somen te a literatura litera tura)) pode po de criar c riar os anticorpos que qu e coíbam coíbam a expansão da peste da linguagem”, escreve Calvino em um dos textos que compõem este este seu último livro — e nessa frase talvez esteja a chave do volume todo. O milênio que se encerrou assistiu ao surgimento do objeto livro, e também à sua crise. Mas "há coisas que só a literatura com com seus meios meios específi específicos cos nos pode po de dar". da r". “Leveza", "Rapidez", "Exatidão", "Visibilidade" e "Multiplicidade" são cinco conferências que Calvino havia preparado para a Universidade de Harvard e que, devido d evido à morte súbita do autor, autor, nunca nun ca foram proferidas. São também cinco das qualidades da escritura (uma sexta, a Consistência, seria o tema da última conferência, jamais escrita) que Calvino teria desejado transmitir transm itir à hum humanidade anidade do milêni milênioo que q ue estava por vir. As Seis propostas vão de Virgílio a Queneau, de Dante a Joyce, em busca de uma concepção da literatura tur a como como transpar trans parência ência e lucidez, e como respeito respe ito aos aos próprios instrumentos e aos próprios objetos. A camada de folhas sobre a qual Perseu descansa a cabeça de Medusa, nas Metam Me tamorfo orfoses ses de Ovídio, a neve que desce levíssima num soneto de Cavalcanti, as partículas de poeira num raio de luz observadas por Leopardi, esses são apenas alguns objetos literários que Calvino procura proc ura salv salvar. ar. De modo oblíquo, essas "lições americanas" acabam se se tornand torna ndoo o retrato retr ato de seu autor, de seu anseio anseio em conjugar a clareza da linguagem com a densidade
SEIS PROPOSTAS PARA O PRÓXIMO MlLÈMo
ÍTALO CALVINO
S E IS P R O P O S T A S PA R A O PR Ó X IM O M ILÊN IO LIÇÕES AMERICANAS Tradução: IVO BARROSO
3- edição 8- reimpressão
Copyright © 2002 bv Espólio ele Ítalo Calvino Pn>ibhi(i a tv tuia em Portugal
Título original: Lezioni am ericano Sei proposte per ilprossimo millennio
Capa: Raul Loureiro
índice onomástico: Beatriz C alderari de Miranda
Revisão: Marina Tronca Ana Maria B arbosa
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cih) (Câmara Brasileira do Uvro, Brasil) s p
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Calvino, Ítalo, 19231985 Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas / Ítalo Calvino ; tradução Ivo Barroso — São Paulo : Companhia das Letras, 1990, Titulo original: Lezioni amerieane: Sei proposte per il prossimo millennio. ISBN9788571641259 1. Literatura — Discursos, ensaios, conferências 2. Literatura : História e crítica i. Título. 9D- 3120
c dd
- 800.809
índices para catálogo sistemático: 1. Literatura 800 2. Literatura : História e crítica 809
2010 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCX LTDA.
1 Leveza, 13 2 Rapidez, 43 3 Exatidão, 69 4 Visibilidade, 95 5 Multiplicidade, 115
E m 6 de ju n h o d e 1984, Calvino foi oficialmente convi dad o a fazer as Ch arles Eliot N orto n P oetry Lectures: um ciclo de seis conferências que se desenvolvem ao longo.de um ano ac ad êm ico (o de Ca lvino seria o ano letivo de 198586) na Uni ve rsidad e d e H arvard, em Cam bridge, no estado de Massachus sets. O termo “poetry” significa no presente caso qualquer espécie de comunicação poética — literária, musical, figurativa —, sendo a escolha do tema inteiramente livre. Essa liberdade foi o primeiro problema que Calvino teve de enfrentar, convicto que era da importância da pressão sobre o trabalho literário. A partir do momento em que conseguiu definir claram en te o tem a de que iria tratar — alguns valores literários que mereciam ser preservados no curso do próximo milênio —, passou a dedicar quase todo seu tempo à preparação dessas conferências. Logo se tor na ram um a obsessão, e um dia ele me disse que já tinha idéias e material para pelo m enos oito lições, e não apenas para as seis previstas e obrigatórias. Conheço o título daquela qu e p od er ia te r sido a oitava: “ Sobre o começo e o fim” (dos rom anc es), mas até ho je não consegui encontrar esse texto. Apenas anotações. No m o m e nt o em qu e dev ia partir para os Estados Unidos,
SKIS PKOl'OSTAS
sistency”, sobre a qual só sei que devia fazer referências ao Bartleby, de Hermán Melville. Sua intenção era escrevêla em Harvard. Estas são as conferências que Calvino leria. Haveria sem dúvida uma nova revisão antes de imprimirse o texto; não creio contudo que nele viesse a introduzir alterações significativas. A diferença entre as primeiras versões que li e as últimas diz respeito apenas à estrutura e não ao conteúdo. Este livro reproduz o original datilografado tal qual o encontrei. Um dia, não sei quando, poderem os disp or de uma edi ção critica dos cadernos manuscritos. Conservei em inglês as palavras que ele escreveu diretamente nessa língua, bem como mantive na língua original as citações.
Chego agora ao ponto mais difícil: o título. Calvino deixou este livro sem título italiano. Devia pensar primeiro no título em inglês, “Six memos for the next millen nium”, que era definitivo. Impossível saber o que daria em ita liano. Se me decidi finalmente por L ezioni am ericane [Lições americanas] foi porque, naquele últim o ve rã o da vida de Calvi no, Pietro Citati vinha vêlo quase todas as manhãs e a primeira pergunta que fazia era: “Como vão as lições americanas?”. E era sobre essas lições americanas que a conversa girava. Sei que isto não basta, e Calvino preferia d ar um a certa uni formidade aos títulos de seus livros e m tod as as línguas. Palo mar fora escolhido precisam ente p o r isso. Acho também que “for the next millennium” decerto faria parte do título italiano: em todas as suas tentativas de encontrar o título exato em inglês, mudavam as outras palavras, mas a expressão “for the next millennium” perm anecia sem pre. Eis po r qu e a conservei. Acrescento que o original datilografa do estava sobre a sua escrivaninha, perfeitamente em o rdem , cad a um a das conferências numa capa transparente e o conjunto metido numa pasta
SEIS PROPOSTAS...
As Norton Lectures tiveram início em 1926 e foram confiadas ao long o dos anos a personalidades como T. S. Eliot, Igor Stravinsky, Jorge Luis Borges, Northrop Frye, Octavio Paz. Pela primeira vez se convidava um escritor italiano.
Desejo ex prim ir minh a gratidão a Luca Marighetti, da Uni versidade de Constança, pelo profu ndo conhecimento da obra e do pensamento de Calvino, e a Angélica Koch, também daquela universidade, pela ajuda que me prestou. Esther Calvino
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Ladies and gentlemen, dear friends. Deixemme dizer, em primeiro lugar, quanto estou feliz e grato por ter sido chamado a Harvard este ano como Charles Eliot Lecturer. Com comoção e humildade penso nos Norton Lecturers que me precederam, uma longa lista que inclui muitos d os au tore s q u e m ais admiro. O acaso quis que eu fosse o pr im eiro es cr ito r italiano a participa r dessa lista. Isso acrescenta à m inh a tarefa a respo nsabilidade especial de representar aqui uma tradição literária que continua ininterrupta há oito séculos. T entarei e x p lo ra r so b re tu d o as características da minha formação italiana que mais me aproximam do espírito dessas palestras. Por exemplo, é típico da literatura italiana compreender num único contexto cultural todas as atividades artísticas, e é portanto perfeitamente natural para nós que, na definição das “Norton Poetry Lectures”, o termo “poetry” seja entendido num sentido amplo, que abrange também a música e as artes plásticas; da mesma forma, é perfeitamente natural que eu, escritor de fic tio n , inclua no mesmo discurso poesia em versos e romance, porque em nossa cultura literária a separação e especialização entre as duas formas de expressão e entre as respectivas reflexões críticas é menos evidente que em outras culturas. M inhas reflexõ es sem pre m e levaram a considerar a litera
E st a m o s e m 1985: qu inze anos apenas nos separam do iní cio d e um no vo m ilénio. Por ora não me parece que a aproxi mação dessa data suscite alguma emoção particular. Em todo caso, não estou aqui para falar de futurologia, mas de literatura. O m ilên io que está para findarse viu o surgimento e a expansão das língu as oc ide nta is m od erna s e as literaturas que explo raram suas p oss ibilidad es expressivas, cognoscitivas e imagina tivas. Foi também o milénio do livro, na medida em que viu o objetolivro tomar a forma que nos é familiar. O sinal talvez de que o milénio esteja para findarse é a freqüência com que no s in terro ga m os so br e o des tino da literatura e do livro na era tecnológica dita pósindustrial. Não me sinto tentado a aventurarme nesse tipo de previsões. Minha confiança no futuro da literatur a c on siste e m saber qu e há coisas que só a lite ratura com seus meios específicos nos pode dar. Quero pois dedic ar estas c on ferê nc ias a alguns valores ou qualidades ou especificidades da literatura que me são particularmente caros, buscando situálos na perspectiva do novo milênio.
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E sta p rimeira conferência será ded icada à oposição leveza peso, e argum entarei a favor da leveza. N ão que r dizer que co nsidero menos válidos os arg um en tos do peso, mas apenas que penso ter mais coisas a dizer sobre a leveza. Depois de haver escrito fic çã o po r quare nta anos, de haver explorado vários cam inho s e realizado ex perim entos diver sos, chegou o m om en to de buscar um a definição global de meu trabalho. Gostaria de p ro p o r a seguinte: n o mais das vezes, mi nha intervenção se traduziu por uma subtração do peso; esforceime por retirar peso, ora às figuras humanas, ora aos corpos celestes, ora às cidades; esforceime so bre tud o p or retirar peso à estrutura da narrativa e à linguagem. Nesta conferência, buscarei explicar — tanto para mim quanto para os ouvintes — a razão por que fui levado a considerar a leveza antes um valor que um defeito; direi quais são, entre as obras do passado, aquelas em que reconheço o meu ideal de leveza; indicarei o lugar que reservo a esse valor no presente e como o projeto no futuro.
Começarei por esse último ponto. Quando iniciei minha atividade literária, o dever de representar nossa época era um
vontade, buscava identificar-me com a impiedosa energia que move a história de nosso século, mergulhando em seus acon tecimentos coletivos e individuais. Buscava alcançar uma sin tonia entre o espetáculo movimentado do mundo, ora dramá tico ora grotesco, e o ritmo interior picaresco e aventuroso que me levava a escrever. Logo me dei conta de que entre os fatos da vida, que deviam ser minha matéria-prima, e um estilo que eu desejava ágil, impetuoso, cortante, havia uma diferença que eu tinha cada vez mais dificuldade em superar. Talvez que só então estivesse descobrindo o pesadume, a inércia, a opacida de do mundo — qualidades que se aderem logo à escrita, quan do não encontramos um meio de fugir a elas. Às vezes, o mundo inteiro me parecia transformado em pe dra: mais ou menos avançada segundo as pessoas e os lugares, essa lenta petrificação não poupava nenhum aspecto da vida. Como se ninguém pudesse escapar ao olhar inexorável da Medusa. 0 único herói capaz de decepar a cabeça da Medusa é Perseu, que voa com sandálias aladas; Perseu, que não volta jamais o olhar para a face da Górgona, mas apenas para a imagem que vê refletida em seu escudo de bronze. Eis que Perseu vem ao meu socorro até mesmo agora, quando já me sentia capturar pela mordaça de pedra — como acontece toda vez que tento uma evocação histórico-autobiográfica. Melhor deixar que meu discurso se elabore com as imagens da mitologia. Para decepar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar, Perseu se sustenta sobre o que há de mais leve, as nuvens e o vento; e dirige o olhar para aquilo que só pode se revelar por uma visão indire ta, por uma imagem capturada no espelho. Sou tentado de re pente a encontrar nesse mito uma alegoria da relação do poeta com o mundo, uma lição do processo de continuar escreven
LEVEZA m
sair de sua linguagem imagística. A lição que se pode tirar de um mito reside na literalidade da narrativa, não nos acréscimos que lhe impomos do exterior. A relação en tre Perseu e a Górgona é complexa: não temi na com a dec apitaçã o do m onstro. Do sangue da Medusa nasce um cavalo alad o, Pégaso; o peso da pedra pode reverter em seu contrário; de uma patada, Pégaso faz jorrar no monte Hélicon a fonte em que as Musas irão beber. Em algumas versões do mito, será Perseu quem irá cavalgar esse maravilhoso Pégaso, caro às Musas, nascido do sangue maldito da Medusa. (Mesmo as sandálias aladas, por sua vez, provinham de um mundo monstruoso: Perseu as havia rec ebido das irmãs de Medusa, as Graias de um só olho.) Quanto à cabeça cortada, longe de abandoná la, Perseu a leva consigo, escondida num saco; quando os inimigos ameaçam subjugálo, basta que o herói a mostre, erguendoa pelos cabelos de serpentes, e esse despojo sanguinoso se torna um a arm a invencív el em suas mãos, uma arma que utiliza apenas em casos extremos e só contra quem merece o castigo de ser transformado em estátua de si mesmo. Não há dúvida de que neste ponto o mito quer me dizer alguma coisa, algo que está implícito nas imagens e que não se pode explicar de outro modo. Perseu consegue dominar a pavorosa figura mantendoa oculta, da mesma forma como antes a vencera, contemplandoa no espelho. É sempre na recusa da visão dire ta que reside a força de Perseu. mas não na recusa da realidade do mundo de monstros entre os quais estava destinado a vi ver, um a realid ade qu e ele traz consigo e assume como um far do pessoal. Sobre a relação entre Perseu e a Medusa podemos aprender algo mais com Ovídio, lendo as Metamorfoses Perseu vence uma nova batalha, massacra a golpes de espada um monstro marinho. liberta A ndròm eda. E agora trata de fazer o que faria qualquer um de nós, após uma façanha desse porte: vai lavar as
S -'IS PROPOSTAS
parecem extraordinários para expressar a delicadeza de alma necessária para ser um P erseu d o m in a d o r d e m on stros: “para que a areia áspera não m elindre a an gü íco m a ca beç a (anguife m tnque caput dura ne laed at harena), amepiza a dureza do solo com um ninho de folhas, recobreo com algas que cresciam sob as águas, e nele d ep osita a ca b eç a da Medusa, de face voltada para baixo”. A leveza de que Perseu é o herói não poderia ser melhor representada, se g u n d o p en so , do que pores se gesto de refrescante cortesia p ara c o m u m ser monstruoso e tremendo , mas m esm o assim d e c e rta fo rm a perecív el, frágil. Mas inesperado, contudo, é o milagre que se segue: em contato com a Medusa, os râmu los a q u átic o s se trans for m am em co ral, e as ninfas, para se en feitarem c o m ele , a co rre m com râmu los e vergônteas, que aproximam da hórrida cabeça. Esse paralelo de imagens, em q u e a g raça sutil do coral aflo ra o fero horror da G órgon a, p ar ec e m e d e tal fo rm a carregado de sugestões que m e ab sten h o de estra gá lo co m um a tentativa de interpretação ou co m entá rios. O q u e p o ss o fazer é colocar, ao lado dos versos de Ovíd io, ta m b ém este s, d e u m poeta con temporâneo: no Piccolo testamento, de Eugenio Móntale, e n contramos a mesma oposição entre alguns elementos bastante delicados, que são verdadeiros emblemas desse poeta (“trac cia madreperlacea di lum aca/ o sm erig lio di v et ro calpestato”: [quais rastros nacarados de moluscos/ ou esmeril de vidro p i soteado]), e um terrível monstro infernal, um Lúcifer de asas de betume que baixa sob re as cap itais d o O cid en te. Em nenhum outro escrito como nesse po em a, de 1953, M ón tale evocou uma visão tão apocalíptica; mas o que seus versos melhor v a l o r i z a m são os minúsculos traços lu m ino sos , q u e ele co n trap õ e à escu ra catástrofe (“Co nservane la cipria n ello spe cc h ietto/ q u a n d o spenta ogni lampada/ la sardana si farà infernale...”[Conserva o pódearroz em sua trusse / ao ap ag ar da s lám pa da s,/ a sarda na há de ser infernal...]). Mas co m o p o d e m o s es perar salvarnos
LEVEZA
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cível, e nos valores morais investidos nos traços mais ténues — “il tenue bagliore strofinato/ laggiü non era quello d’un fiam mifero ” [não era d e um fósforo riscado/ o tênue clarão surgido ao longe]. Para conseguir falar de nossa época, precisei fazer um longo desvio e evocar a frágil Medusa de Ovídio e o betuminoso Lúcifer de Montale. Muito dificilmente um romancista poderá representar sua idéia da leveza ilustrandoa com exemplos tira dos da vida contem po rân ea, sem condenála a ser o objeto inal cançável de uma busca sem fim. Foi o que fez Milan Kundera, de m aneira lum inosa e direta. Seu romance A insustentável le veza do ser é, na realidade, uma constatação amarga do Inelutável Peso do Viver: não só da condição de opressão desesperada e all-pervading que tocou por destino ao seu desditoso país, mas de uma condição humana comum também a nós, embora infinitamente mais afortunados. O peso da vida, para Kundera, está em toda forma de opressão; a intrincada rede de constrições públicas e privadas acaba por aprisionar cada existência em suas malhas cada vez mais cerradas. O romance nos mostra como, na vida, tudo aquilo que escolhemos e apreciamos pela leveza acaba bem ce do se revelando de um peso insustentável. Apenas, talvez, a vivacidade e a mobilidade da inteligência escapam à condenação — as qualidades de que se compõe o romance e q ue pertencem a um universo que não é mais aquele do viver. Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar para o utro espaço. Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de p on to de observaçã o, q ue preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle. As imagens de leveza que busco não devem, em contato com a realidade presente e futura, dissolverse como
SEIS PROPOSTAS.
caminhos a explorar, novíssimos ou bem antigos, estilos e formas que podem mudar nossa imagem do mundo... Mas se a literatura não basta para me assegurar q u e não esto u apenas per seguindo sonhos, então busco na c iên cia alim en to para as mi nhas visões das quais todo pesadume tenha sido excluído... Cada ramo da ciência, em no ssa ép oca , pa re ce querer nos demonstrar que o m undo r epou sa so b re en tid ad es sutilíssimas — tais as mensagens do A.D.N., os impulsos neurônicos, os quarks, os neutrinos errando p elo es paç o d es d e o com eço dos tempos... Em seguida vem a informática. É v erd a d e q ue o software não poderia exercer seu poder de leveza se n ão m ediante o pe so do hardware ; mas é o software quê comanda, que age sobre o mundo exterior e sobre as máquinas, as quais existem apenas em função do software, desenvolvendose de modo a elaborar programas de com plex idad e ca da ve z m ais crescente. A segunda revolução industrial, difere nte m ente da primeira, não oferece imagens esmagadoras co m o p re n sa s de laminadores ou corridas de aço, mas se ap resenta c o m o bits de um fluxo de informação que corre pelos circuitos sob a forma de impulsos eletrônicos. As máquinas de m etal c o ntinu am a existir, mas obe dientes aos bits sem peso.
Será lícito extrapolar do discurso científico uma imagem do mundo que corresponda aos meus desejos? Se a operação que estou tentando me atrai, é porque sinto que ela poderia reatarse a um fio muito antigo na história da poesia. De rerum natura, de Lucrécio, é a primeira grande obra poética em que o conhecimento do mundo se transforma em dissolução da compacidade do mundo, na percepção do que
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tância permanente e imutável, mas a primeira coisa que nos diz é que o vácuo é tão con creto quanto os corpos sólidos. A principal preocupação de Lucrécio, podese dizer, é evitar que o peso da matéria nos esmague. No momento de estabelecer as rigorosas leis mecânicas que determinam todos os acontecimentos, ele sente a necessidade de permitir que os átomos se desviem imprevisivelmente da linha reta, de modo a garantir tanto a liberdade da matéria quanto a dos seres humanos. A poesia do invisível, a poesia das infinitas potencialidades imprevisíveis, assim como a poesia do nada, nascem de um poeta que não nutre qua lquer dú vida q uan to ao caráter físico do mundo. Essa pulverização da realidade estendese igualmente aos seus aspectos visíveis, e é aí que excele a qualidade poética de Lucrécio: os grãos de poeira que turbilhonam num raio dc sol, na pen um bra de um qua rto (n. 114124): as pequeninas conchas, todas iguais e todas diferentes, que a onda empurra docemente para a bibula harena , a areia embebida (li, 374376); as teias de aranha que nos envolvem sem que nos demos con ta, enquanto passeamos (m. 381390). Já citei as M eta morfo ses de Ovídio, outro poema enciclopédico (escrito un s cinqu enta anos depois do de Lucrecio), que parte, já não da realidade física mas das fábulas mitológicas. Também para Ovídio tudo pode assumir formas novas: também para ele, o co nh ec im en to do m undo e a dissolução dc sua com pacidade; para O vídio também existe entre todas as coisas uma paridade essencial, co ntra todas hierarquias de poder e dc valor. Enquanto o mundo dc Lucrécio se compõe de átomos inalteráveis, o de Ovídio se compõe dc qualidades, de atributos, de formas que definem a diversidade de cada coisa, cada planta, cada animal, cada pessoa: mas não passam de simples e ténues envoltórios de uma substância comum que — se uma profunda paixão a agita — pode transformar se em algo total
SEIS PROP OSTAS
— assim, quando relata como uma mulher percebe que está se transformando em jujubeira: os pés permanecem cravados na terra, uma tenra casca vai subindo aos poucos e a envolve até o púbis; quer arrancar os cabelos, e vê que as mãos estão cheias de folhas. Ou ainda quando descreve os dedos de Aracne, tão ágeis em cardar e desfiar a lã, fazer girar o fuso, enfiar a agulha de bordar, e que de repente vemos se estenderem como delga das patas de aranha que se põem a tecer a sua teia. Em Lucrécio como em Ovídio, a leveza é um modo de ver o mundo fundamentado na filosofia e na ciência: as doutrinas de Epicuro para Lucrécio e as doutrinas de Pitágoras para Oví dio (um Pitágoras, tal como Ovídio o apresenta, muito seme lhante a Buda). Mas em um e outro caso, a leveza é algo que se cria no processo de escrever, com os meios lingüísticos pró prios do poeta, independentemente da doutrina filosófica que eàte pretenda seguir.
À luz do que precede, parece-me que o conceito de leveza começa a precisar-se; espero antes de mais nada haver demons trado que há uma leveza do pensamento, assim como existe, como todos sabem, uma leveza da frivolidade; ou melhor, a le veza do pensamento pode fazer a frivolidade parecer pesada e opaca. Não poderia ilustrar melhor essá idéia do que citando uma das histórias do Decamerão (vi, 9) em que aparece o poeta flo rentino Guido Cavalcanti. Boccaccio nos apresenta Cavalcanti como um austero filósofo que passeia meditando diante de uma igreja, entre os sepulcros de mármore , kjeunesse dorée de Flo rença cavalgava em brigadas pela cidade, passando de uma fes
LEVEZA m
Ora avvenn e un g iorno che, essendo G uido pa rtito d'Orto San Micbele e ven u to se n e p e r lo Corso degli A d im a ri in fin o a San Giovanni, il qu ale spesse volte era suo c am m ino, essendo arche gran di di m arm o, che oggi sono in San ta Reparata, e molte altre dintor no a Sa n G iovann i, e egli essendo tralle colonne dei p o rfid o che vi so n o e qu elle arch e e la p o r ta d i San G io vanni, che serrata era, m esser Betto con su a briga tá a ca vai venendo su per la p iaz za d i Santa R eparata, vedendo Guido là tra quel le sepolture, dissero: ‘ ‘A n d ia m o a d ar g li brig a ’ e sp ro na ti i cavalli, a guisa d 'un assalto sollazzevole gli fúron o, quasi prim a che egli se ne avvedesse, sopra e cominciarongli a dire.- “ Gui do, tu rifiuti d ’esser d i nostra brigata; m a ecco, q uan do tu avr ai trovato che Idio no n sia, che avra i fa tto ? ". A 'q uali G uid o, d a lo r ve gg en dosi chiu so, p re sta m e n te disse: “Signori, voi mi potete dire a casa vostra ciò che vi piace ” • e p o sta la m a n o so p ra u n a d i q u elle arche, che g r a n d i erano, si come colui che leggerissim o era, prese un salto e fu si gittato dali 'altra pa rte, e svilup pa tosi d a loro se n andò.
Ora, aconteceu que um dia, tendo Guido partido do Orto San Michele, pelo Corso degli Adimari, seguindo um caminho que lhe era familiar, chegou a San Giovanni, onde havia grande quantidade de túm ulos, principalm ente u ns grandes, de mármore, que hoje estão em Santa Reparata; e estando entre as colunas de pórfiro que ali havia e os túmulos e a porta de San Giovanni, que estava fechada, eis qu e surgiu, v ind o pela praça de Santa Reparata, o senh or Betto e sua brigada d e cavaleiros, que, ven do Guido ali entre os túm ulos, assim disseram: “ Vamos pro vo cálo ” ; e, esporea ndo os cavalos, co m o se partissem para um assalto de brincadeira, caíramlhe em cima, q uase a ntes m esm o que ele se desse conta, e com eça ram a dizerlhe: “ Gu ido, recusas perte nce r à nossa brigada; mas qu an do finalmente de scob rires que Deus não existe, o que farás então ?” . Ao que Guido, vendose ce rcad o p or eles, prestamente respondeu: “Senhores, podeis dizerme em vossa casa o que bem vos
Si ts PROPOSTAS.
hem altos, levíssimo que era, deu um salto arrojandose para o outro ludo e. desembaraçandose deles, lá se foi.
Não é a réplica sagaz, atribu ída a C av alca nti, o q u e aqui nos interessa (que se pode interpretar admitindo que o pretenso “epicurismo'' do poeta era na ve rda de av erro ísm o , segundo o qual a alma individual faz parte do intelecto universal: os túmulos são a vossa casa e não a minh a, na m e d id a em qu e a morte corpórea é vencida po r aquele qu e se elev a à c o n tem p laç ão uni versal através da especulação do inte lecto ). O q u e ch am a a atenção é a imagem visual qu e B oc cacc io e v o ca : C av alcan ti libertandose com um salto, “ levíssimo q u e e ra ” . Se quisesse escolher um sím bo lo v o tiv o p ar a saud ar o novo milênio, escolheria este: o salto ágil e i m p re v is to d o poeta filósofo que sobreleva o peso d o m u n d o , d em o n stra n d o que sua gravidade detém o segredo da leve za, e n q u a n to aquela que muitos julgam ser a vitalidade do s t e m p o s, e st re p ita n te e agres siva, espezinhadora e estrond osa, p e rte n c e ao re in o da morte, como um cemitério de automóveis enferrujados.
Gostaria que conservassem na m em ó ria es ta im agem , ago ra que lhes falarei de Cavalcanti, p o e ta d a le v ez a. Em seus poemas, as dramatis perso na e são, mais que pe rson ag en s huma nas, suspiros, raios luminosos, imagens óticas, e, principalmente, aqueles impulsos ou m ensag ens im ateriais q u e ele cham a de “spiriti”. Em Cavalcanti, um tema tão pouco leve como o sofrimento amoroso se dissolve em entidades impalpáveis, que se deslocam entre alma sensitiva e alm a in tele ctiv a, en tre cora ção e mente, entre olhos e voz. Em suma, tratase sempre de uma entidade triplamente caracterizada: 1) é levíssima; 2) esta movimento; 3) é etor de in form açã Em certos po
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la donna mia” [Vai, leve e ligeira, direto à minha dama]. Em outro, são os utensílios da escrita — penas de ganso e instrumentos para apontálas — que assumem a palavra: “Noi siàn le triste penne isbigottite,/ le cesoiuzze e’l coltellin dolente...’’ [Somos as pe nas des alen tada s/ as tesourinhas e o cutelo dolente...]. Em um soneto, a palavra “spirito” ou “spiritello” aparece em cada verso — numa evidente paródia de si mesmo, Cavalcanti leva às últimas co nse quências sua predileção por essa palavrachave, co ncen tra nd o nos catorze versos um relato abs trato e com plica do, no qual intervêm catorze "spiriti", cada qual com u m a fun ção diversa. Em outro soneto, o corpo encontra se de sm em bra do pe lo so frim en to amoroso, mas continua a ca minhar como um autômato “fatto di rame o di pietra o di leg no” [feito de cobre ou pedra ou lenho]. Já num soneto anterior de Guinizelli a pena de amor transformava o poeta numa estátua de latão — imagem muito concreta, que tem sua força exatamente no sentido de peso que nos comunica. Em Cavalcanti, o peso da matéria se dissolve pelo fato de poderem ser numerosos e intercambiáveis os materiais do simulacro humano; a metáfora não impõe um objeto sólido, e nem mesmo a palavra “p edra " che ga a torn ar pesado o verso. Reencontramos aqui aquela p arid ad e e ntre tud o o que existe, de que talei a propó sito de Lucréc io e de Ovídio. l Tm m estre da crítica estilística italiana, Gianfranco Contini. definea como a “equalizaçào ca valcantiana do real". O ex em p lo mais feliz de “ equalizaçào do real é dado por Cavalcanti nu m so n eto qu e ab re com uma enumeração de ima gens de belez a, tod as d estin ad as a serem superadas pela beleza da mulher amada: Biltà di donna e di saccente core e cavai ieri a rm ati che sien genti.
SEIS PROPOSTAS.
aria serena quand ap ar l albore e bianca neve scender senza venti; rivera da cqu a e pra to d ’ogni fiore; oro, argento, azzurro’n ornamenti:
Beleza de mulher, coração sábio, e cavaleiros armados mas corteses; cantar das aves, arrazoar de amor; festivas naus em mar de fortes vagas; brisa serena quando surge a aurora, e alva neve que baixa sem ter vento; corrente d’água e prado de mil flores; ouro, prata e azul por ornamentos: O verso “e bianca neve scender senza venti” foi retomado por Dante com poucas variações no canto xiv, verso 30, do “Inferno”: “come di neve in alpe sanza vento” [como a neve nos alpes sem ter vento], E m bor a s ejam qu as e idênticos, exprimem no entanto duas concepções completamente diversas. Em ambos a neve sem ven to ev oc a um m o v im en to leve e silencioso. Mas termina aí a sem elh an ça e c o m e ç a a diversidade. Em Dante o verso é dom ina do pe la d es ign aç ão do lugar (“in alpe”), que evoca um ce nário m o n ta n h o so . Em Cavalcanti, ao contrário, o adjetivo “b ianc a” , qu e p o d e ri a p ar ec er pleo nástico, unido ao verbo “sce nd ere” , esse ta m bé m de tod o previsível, encerram a paisagem numa atmosfera de suspensa abstração. Mas é sobretudo a primeira palavra que determina o significado distinto dos dois versos. Em Cavalcanti, a conjunção “e” coloca a neve no mesmo plano das outras visões antecedentes ou subseqüentes: uma seqüência de imagens, que é uma espécie de amostragem das b elezas d o m u n d o . Em Dan te, o advérbio “co m e” encerra tod a a ce na na m old ur a de uma metáfora, mas esta adquire no interior dessa moldura uma rea-
LEVEZA
tica a paisagem do “Inferno” sob uma chuva de fogo, que a comparação com a neve ilustra. Em Cavalcanti, tudo se move tão rapidam ente qu e n ão pod em os nos dar conta de sua con sistência mas apenas de seus efeitos; em Dante, tudo adquire consistência e estabilidade: o peso das coisas é estabelecido com exatidão. Mesmo quando fala de coisas leves, Dante parece querer assinalar o peso exato dessa leveza: “come di neve in alpe sanza v en to ” . Neste, com o nou tro verso muito pa recido, o p es o de um co rp o que afunda na água e nela desapa rece é como que atenuado e contido: “come per acqua cupa cosa grave” [como em água profunda algo pesado] (“Paraíso ”, ui, 123). Neste p o n to de ve m os reco rdar q ue se a idéia de um mun do constituído de átomos sem peso nos impressiona é porque temos experiência do peso das coisas; assim como não podemos admirar a leveza da linguagem se não soubermos admirar igualmente a linguagem dotada de peso.
P od em os dizer qu e duas vo cações opostas se confrontam no campo da literatura através dos séculos: uma tende a fazer da linguagem um elemento sem peso, flutuando sobre as coisas como uma nuvem, ou melhor, como uma tênue pulveru lência, ou, melhor ainda, como um campo de impulsos magnéticos; a outra tende a comunicar peso à linguagem, darlhe a espessu ra, a concre ção das coisas, dos corpos, das sensações Nas orig ens da litera tura italiana — e européia estes dois caminhos foram abertos por Cavalcanti e Dante. A oposição funciona naturalmente em linhas gerais; a riqueza dos recursos de Dante e a sua extraordinária versatilidade, porém, exigiriam inu meráveis exemplificações. Não é por acaso que o soneto de Dan
SEIS PROPOSTAS..
conceitos comuns a ambos os poetas; quando Dante quer exprimir leveza, até mesmo na Ditnna comédia, ninguém sabe fazê lo melhor que ele; mas sua ge nialidade se m an ifesta no sentido oposto, em extrair da língua todas as possibilidades sonoras e emocionais, tudo o que ela po de e vocar de sen saç õe s; em cap turar no verso o m undo em tod a a va riedad e d e seus níveis, for mas e atributos; em transmitir a idéia de u m m un do organizado num sistema, numa ordem, numa hierarquia em que tudo encontra o seu lugar. Forçando um pouco a op osiçã o, poderia di zer que Dante empresta solidez co rp óre a até m es m o à mais abs trata especulação intelectual, ao passo que Cavalcanti dissolve a concreção da experiência tangível em verso s d e ritmo escan dido, de sílabas bem marcadas, com o se o pensa m ento se desta casse da obscuridade por m eio de rápidas desca rga s elétricas. O fato de me haver detido so bre Cavalcanti servium e pa ra esclarecer melhor (pelo m en os p ara m im ) aqu ilo q ue enten do por “leveza” A leveza para mim está associada à precisão e à determinação, nun ca ao q u e é va go o u ale ató rio. Paul Va léry foi quem disse: “II faut être lé ger c o m m e Poiseau, et non comme la plume” [É preciso ser leve como o pássaro, e não como a pluma). Servime de Cavalcanti pa ra exem plific ar a leveza em pelo menos três acepções distintas: 1) um despojamento da linguagem p o r m eio do qual os sig nificados são canalizados p o r um te cid o v erba l q u as e impon derável até assumirem essa m esm a rarefeita consistência. Deixo aos ouvintes o trab alh o d e e n c o n tra r outros exem plos nesse sentido. Emily Dickinson, por exemplo, pode nos fornecer quantos quiserm os: A sepal, petal, and a thorn Upon a common sum mer’s morn —
l e v e z a
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Uma sépala, uma pétala, um espinho Numa simples m anhã de verão... Um frasco de Orvalho... uma Abelha ou duas... Uma Brisa... um bulício nas árvores... E eisme Rosa!
2) a narração de um raciocínio ou de um processo psicológico no qual interferem elementos sutis e imperceptíveis, ou qualqu er d esc riçã o qu e com porte um alto grau de abstração. Neste ponto, um exemplo mais moderno nos pode ser for necido por H en ry James, bastando abrir um de seus livros ao acaso: It was as if these depths, constantly bridged over by a structure that was firm enough in spite of its lightness and ot its occasio nal oscillation in the somewhat vertiginous air, invited on oc casion, in the interest of their nerves , a dropping of the plum met a nd a measurement o f the abyss. A difference had been made moreover, once fo r all, by the fa ct that she had. all the while, not appeared tofeel the need o f rebutting his charge of an idea within her that she didn't dare to express, uttered just before one o f the fullest o f their later discussions ended. (The beast in the jungle) Era como se essas profundezas, regularmente transpostas por uma estrutura bastante firme a despeito de sua leveza e de suas ocasionais oscilações naquele espaço um tanto vertiginoso, os convidassem, de quando em quando, no interesse de seus nervos, a um mergulho do prumo e a uma sondagem do abismo. Uma diferença, além disso, havia surgido, de uma vez por todas, pelo fato de a jovem, nesse ínterim, não demonstrar qualquer necessidade de refutar a acusação que ele lhe havia movido exatamen te antes que uma de suas últimas e mais longas discussões chegasse ao fim — a de guardar para si mesma uma idéia que ela não
si is i'k'i >n >si:\s
emblemático, como, n;i historia dc Boccaccio, Cavalcanti volteando com suas pernas esguias por sobre a pedra tumular, Ha invenções literarias que se im põe m à m em oria mais pela sugestão verbal que pelas palavras. A cena em que Dom Qu¡. xote trespassa com a lança a pá de um m o in h o de vento e é projetado no ar, ocupa apenas uma s p ouca s linh as no romance de Cervantes; podese dizer que o autor nela não investiu se não uma quantidade mínima de seus re cursos estilísticos; nada obstante, a cena permanece como uma das passagens mais célebres da literatura de todos os tempos.
Penso que com estas indicaç ões p o sso p ô rm e a folhear os livros de minha biblioteca em bu sca de e x e m p lo s de leveza. Vou logo buscar em Shakespeare o p o n to em q u e Mercúcio en tra em cena: “You are a lover; b o rr o w C u p id ’s w ings/ and soar with them above a common b o u n d ” [Estás am ando; pede a Cu pido as asas emprestadas/ e paira acima dos vulgare s laços], Mer cúcio contradiz imediatamente Romeu, que havia acabado de dizer: “Under love’s heavy burden do I sink” [Sob o peso ingente deste amor pereço]. M ercúcio tem um m o d o de se mo ver no mundo que é definido pelos primeiros verbos que usa: to dance, to soar, to prickle [dançar, pairar, picar], O semblante humano é uma máscara, a visor. Mal entra em cena, sente necessidade de explicar sua filosofia, não c o m um discurso teó rico, mas relatando um sonho: a Ra inha Mab. “ Q ueen Mab, the fairies’ midwife” [A Rainha Mab, p arteira das fadas] aparece nu ma carruagem feita com “an empty hazelnut” [uma casca de avelã vazia]: Her waggon-spokes made o f long spinners' legs; The cover, of the wings of grasshoppers; The traces, of the smallest spider's web;
l e v e z a
Feitos de pernas longas de tarântulas São os raios das rodas do seu carro; De asas de gafanhotos, a coberta; As rédeas são da teia de uma aranha; De úmidos raios de luar, o arreio; De osso de grilo, o cabo do chicote E o rebenque de um fio de cabelo [Tracl. de Onestaldo de Pennafort]
e não nos esqu es qu eçam eç am os qu e essa carruage carruagem m é “drawn “ drawn wi with th a tea team of little atomies” [puxada por parelhas de pequenos átomos]: um detalhe decisivo, pareceme, que permite ao sonho da Rainha Mab fundir o atomismo de Lucrécio com o neoplatonismo do Renascimento e o folclore céltico. Gostaria Go staria ainda ain da qu e o passo pa sso de dança de Merc Mercúc úcio io no noss acom acom panhasse para além dos umbrais do novo milênio. Sob vários Ro m eu ejul ej ulie ie-aspectos, aspectos, a ép oc a q ue se rve de pano de fund fundoo a Rom nã o difere dife re m u ito da nossa: as cidades ensangüent ensangüentadas adas de dis ta não putas tão violentas e insensatas quanto as dos Capuleto e Mon tecchio; a liberação sexual proclamada pela Aia. que não consegue se tornar modelo do amor universal; as experiências de frei Lourenço, levadas a efeito com o generoso otimismo de sua “filosofia natural”, mas das quais nunca teremos a certeza de que serão usadas para a vida ou para a morte.
A Re nasc ença enç a sh akesp ak espearia eariana na con hece hec e os inf influ luxo xoss eté etére reos os que cone ctam m acro co sm o e m icrocosmo desde desde o fi firmam mamen to neoplatônico aos espíritos dos metais que se transformam no crisol dos alquimistas. As mitologias clássicas podem forne-
SI'IS PROPOSTAS.
ratur atura) a) expli explica ca por que pod em os en c o n tra r em Shakespe Shakespear aree o que ha de mais rico em exemplificação para o meu tema. E não estou pensando apenas em Puck e em toda a fantasmagoria do Sonho Son ho de um a noite de verão, ou em Ariel e em todos aqueles que ‘ are such stuff/ stuff/ As dream drea m s are m ad e o n ” [são dessa dess a me mesma substancia de que são feitos os sonhos], mas sobretudo naquela espec específ ífic icaa modulação líri lírica ca e exis tencial ten cial q u e p er m ite cont contememplar o próprio drama como se visto do exterior, e dissolvêlo em melancólica ironia. A gravidade sem peso de que falei a propósito de Cavalcanti reaflora na época de Cervantes e Shakespeare: é aquela rela relaçã çãoo part particu icular lar entre m elancolia e h u m o r, q u e Klibansky, Klibansky, Pa Pa nofskv e Sax Saxll estudaram estud aram em Saturn Satur n a n d M elanchol el ancholy. y. Assim como a melancolia é a tristeza que se tornou leve, o humor é o cômi cômico co que perdeu peso co rp ór eo (aqu ela d im en sã o da carna lidade humana que no entanto faz a grandeza de Boccaccio e Rabelais) e põe em dúvida o eu e o m u n d o , c o m tod a a rede de relações que os constituem. Mel Melanco ancollia e hum or m esc lado s e in se p aráv ar áv eis são a tô tônica do Príncipe da Dinamarca, que aprendemos a reconhecer em todos ou quase todos dramas shakesperianos, nos lábios dos numerosos avata avatare ress do pers on ag em H am let. Um deles, Jaques, em As A s y o u lik li k e it (iv,l), assim define a melancolia: but it is is a melancho melancholy ly o f m y ow n, co m po un d ed o f many si sim ples, extr ex trac acte tedd fr o m m a n y ob objec jects, ts, a n d i n d e e d the th e su n d r y co con n templatio templationn of o f my trave travels ls,, which, which, by o ften fte n ru m in a tio n , wrap wrapss me in a most humorous sadness. .. .
... mas é uma melancolia muito particular, composta de vários elementos simples, extraída de vários objetos, e de fato as mu meras lembranças de minhas viagens, com freqüência ruminadas, envolvemme numa tristeza ressumada de graça,
LEVEZA •
mas de um véu de ínfimas partículas de humores e sensações, uma poeira po eira de áto m os co m o tud o aquilo que const constit itui ui a última substância da multiplicidade das coisas. Confessome fortemente tentado a construir para mim mesmo um Shake Sh ake speare spe are pa rtidá rio d o atomismo de Luc Lucreci recioo, ma mas sei qu quee isso isso seria arb itrário . O prime p rime iro escritor escritor do mundo mundo modern o a professar profe ssar explici ex plicitam tam ente uma concepção ato atomí míssti tica ca do universo em sua transfiguração fantástica só vai aparecer alguns anos mais tarde, na França: Cyrano de Bergerac. Extraordinário escritor esse Cyrano, que merecia ser mais lemb rado, não só co m o o p rime iro e verdadei verdadeiro ro prec precur urso sorr da ficção científica, mas por suas qualidades intelectuais c poéticas. Partidário do sensualismo de Gassendi e da astronomia de C opé rnico, rnico , m as prin p rincip cip alm en te nutrindose da “ filosofia natu natu ral” do Renascimento italiano — Giordano Bruno, Cardano. Campanella —, Cyrano é o primeiro poeta do atomismo nas literaturas literatu ras m o d e rna rn a s. Em págin p áginas as cuja ironia não dis dissi simu mula la uma verdadeira comoção cósmica, Cyrano celebra a unidade dc to das as coisas, anim an im adas ad as ou inanimadas, inanima das, a combinatória combinatória de de fig figuu ras elementares que determina a variedade das formas vivas; e sabe principalmente traduzir o sentido da precariedade dos processos que as fizeram nascer, ou seja. mostra como faltou muito pouco para que o homem não fosse o homem, nem a vida a vida e o mundo um mundo Vous Vous ros ro s éto é tonn nnez ez com c omm m e cette matière. matière. bmuillée e pé pélem lemele ele.. au gré du basa rd. rd. p eu t aro a roir ir constitui' constitui' un homt homtnne. cu / /< i! v aiait tan ta n t de choses chos es nécessair néces saires es à la constructiori constructiori de sou sou etre etre mais rous ro us ne sar sa r e z pas pa s que q ue cent c ent millions de fois fo is cett cettee mat matier ieree s achem inan in antt au a u dessein des sein d ' un h
SI IS I'ROro sr.AS.
/('pe n d'anim aux, de rt{i>elau.x. de m in é ra u x q u e n o u s noyons; non pins que ce nest pas merveille c/n 'on cent coups de des il tiirire une rajle. Aussi bien esl-il impossible que ele ce remuetnent il no seJasse quelqite chose, et c ed e chose se ra tou jou rs adm irée d'u n éloitrdi qiti >ie scmra p a s c om bi en p e n s 'en estja llu ¡¡it'elle n'ait pas été Jaite. (Voyage dans la lune)
Admiraivos de que essa materia, misturada confusamente, ao sabor do acaso, tenha podido constituir um homem, visto que havia tantas coisas necessárias à constituição tie seu ser, mas não sabeis que cem milhões de vezes essa matéria, avan ça ndo no sentido de formar um homem, ora detevese a formar uma pedra, ora o chumbo, ora o coral, ora uma flor, ora um cometa, pelo excessivo ou demasiado pouco de certas figuras que ocorriam ou não ocorriam nesse processo de formar um homem? Não é nada de espantar que, em meio a essa infinita quantidade de matéria em constante movimento e alteração, tenha havido a criação dos poucos animais, vegetais e minerais que conhecemos; como não é de espantar que em cem lances de da d o oco rra uma parelha. É portanto impossível que daquele revolutear não se fizesse alguma coisa, e essa coisa será sempre admirada com espanto por um doidivanas qualquer que ignore quão pouco faltou para que ela não se fizesse. {Viagem à lua)
Nessa toada Cyrano chega mesmo a proclamar a fraterni dade entre os homens e as couves, imaginando nestes termos o protesto de uma delas ao ser arrancada da terra: Homme, mon cher¡rere, que l 'a i-je ja it q u i m ó rite la m orí? |...J Je me leve de Ierre, je ni epanouis, je te ten d s les bra s, je t 'o/fre mes enjan ts en ¡>raine, et p o u r re co m pe ns e d e m a courtoisie, tu me Jais trancher la tele!
Homem, caro irmão', que te fiz para merecer a mortc? (...) Levantóme da terra, abro me, estendote os braços, ofereçote meus ti
LE VE ZA
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Se p en sarm o s q u e essa perora ção em favor de uma verda deira f rater nid ad e un iversal foi escrita quase cento e cinqüenta anos antes da Revolução Francesa, veremos como a lentidão d a c o n s c i ê n c i a h u m a n a e m s a i r d e s e u p a ro ch ia lism antropo c ê n t r ic o p o d e s e r a n u l a d a e m u m m o m e n t o de in ve nç ão p o é tica. T u d o isto n o c o n te x to de um a viagem à lua, em que Cvra no s up era pe la im ag inaç ão seus pred ecesso res mais ilustres, Lu ciano d e Sa m ósata e L ud ov ico A riosto. Nesta minha exposição sobre a leveza, C yra no figura sob retu do pelo m odo como. an tes de Newton, abordou o problema da gravitação universal; ou m elhor, é o p ro b lem a d e c om o subtrairse à força de gravi dad e q u e e stim u la de tal form a a sua fantasia a po nto de fazèiu inv en tar to d a u m a sé rie d e sistem as para subir a lua, cada qual mais en g en h o so q u e o o utro : utilizando fiascos cheios de or valho q ue se ev ap o ram ao calor d o sol; untandose com tutano de boi, qu e n o rm alm en te é suga do pela lua; lançando e relançan do v ertica lm en te, a partir de um a barquinha de balão, uma bola imantada. Esse sistema do imã será desenvolvido e aperfeiçoado por Jonathan Swift para suster no ar a ilha volante de Laputa. A aparição de Laputa em pleno vòo marca o momento em que as duas obsessões de Swift parecem anularse num magico equilíbrio — refirome à abstração incorpórea do racionalis mo contra o qual dirige sua sátira, e ao peso material da cor poreidade. ... a n d / cou líl see tb e s id v s o f it. e n c o m p a s s v d w i tb s e r e m ! g ra d a tio n s o f (U ilte r ie s a n d Ste iirs , a t co rta in m terrais . to desceiul J ro tn o n e to tb e o tb c r . In tb c lo u v s t (íaU cry l hcbeld so m e Pco f>lc f i s b i n g i r i tb lo n g A n g lin g A'ods, and otbcrs tookin, i< o u
... e pu d e ve rlh e o s lado s, rod ea do s p or vários níveis de escadas
■ S7/S PROPOSTAS.
Swift e contemporâneo e adversário de Newton. Já Voltai re, admirador de Newton, imagina um gigante, Micrômegas, que, ao contrário do de Swift, não se define p o r sua cor po reidad e mas por dimensões expressas em nú m eros, p o r p ro p rie d ad es espa ciais e temporais enumeradas nos termos rigorosos e impassíveis dos tratados científicos. Graças a essa ló gica e a esse estilo, Micrômegas consegue viajar pelo espaço entre Sírius, Saturno e a Terra. O que parece excitar a ima gin ação literária nas teorias de Newton não será bem o co n d icio n am en to d e cad a coisa ou pessoa à fatalidade do pró prio peso, m as an tes o equ ilíbrio das forças que permite aos corpo s celestes p aira r n o espaço. A imaginação do século xviii é rica em figuras suspensas no ar. Não foi em vão que no início d o sé cu lo a tradu çã o fran cesa de Antoine Galland de As m il e u m a n o i te s havia aberto à fantasia ocidental os horizontes do maravilhoso oriental: tapetes volantes, cavalos voadores, g ênios q ue saíam de lâmpadas. Esse impulso da imaginação para além de todos os limites vai atingir seu ponto máximo no século xviii com o vôo do Barão de Münchausen numa bala de canhão, imagem definitivamente identificada em nossa memória com a obraprima que é a ilustração de Gustave Doré. As av en tu ra s d o Barão de Mün chausen, — que, como As m il e u m a noites, não se sabe se teve um autor, ou vários, pu nenhum — constituem um desafio permanente às leis da gravidade: o Ba rão v o a na s alturas trans portado por gansos, erguese a si m es m o e a o cav alo puxando se pela trança de sua peruca, desce da lua agarrado a uma corda que vai cortando e emendando ao longo da descida. Estas imagens da literatura po pular, ju n ta m e n te com as que vimos na literatura culta, acompanham a fortuna literária das teorias newtonianas. Aos quinze anos, Giacomo Leopardi escreve uma história da astronomia de extraordinária erudição, em que, entre outras, resume as teorias de Newton. A contemplação do céu noturno, que inspirará a Leopardi seus versos
LEVEZA
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Ao longo de seu discurso ininterrupto sobre o insustentável peso do viver, Leopardi traduz a felicidade inatingível com imagens de extrema leveza: os pássaros, a voz de uma mulher que canta na janela, a transparência do ar, e sobretudo a lua. Desde q ue surgiu nos versos dos poetas, a lua teve sempre o poder de comunicar uma sensação de leveza, de suspensão, de silencioso e calm o en cantam en to. Meu primeiro impulso foi o de dedicar à lua toda esta prim eira conferência, acompanhar as aparições da lua na literatura de todos os tempos e países. Depois cheguei à conclusão de que ela pertencia inteiramente a Leopardi. Porque o milagre leopardiano consistiu em aliviar a linguagem de to d o o seu pe so até fazêla semelhante à luz da lua. As numerosas aparições da lua em sua obra ocupam poucos versos mas bastam para iluminar toda a composição com sua luz ou para nela projetar a sombra de sua ausência. Dolce e chia ra è la notte e senza vento, e queta sovra i tetti e in mezzo agli orti posa la luna, e d i lonta n ri vela serena ogni montagna. O graziosa tuna. io mi rammento cbe, or volge ianno. sovra questo colle io venia pien dangoscia a rimirarti. e tu p en de vi allor su quella selva siccom e o r fa i. cbe tutta riscbiari. O cara luiia. al cui tranquillo raggio d a n za n le lepri nelle set ve...
SKIS PROPOSTAS.
Cià tutta l oria imbruna, tom a azzurro il sereno, e torna n l ’om bre giii da' col!i e da ’ tetti, al biancbeggiar della recente luna. Che ja i tu, luna, in ciel? dim m i, che fa i, silenziosa luna? Sorgi la sera, e vai, contemplando i deserti; indi ti posi.
É doce e clara a noite e não há vento, e calma sobre os tetos e entre os hortos repousa a lua, ao longe revelando serenas as montanhas. [...] Ó graciosa lua, eu me recordo que, faz um ano, sobre esta colina, cheio de angústia, eu vinha contemplarte: e pairavas então sobre a floresta tal como agora a iluminála toda. [...] Amada lua, em cujos raios suaves dançam as lebres na floresta... [...] Já todo o ar se ofusca, torna azul o sereno, e as sombras tombam dos tetos e colinas ante a brancura de uma lua nova. [...] Que fazes tu no céu?, dize, que fazes, ó lua silenciosa? Chegada a noite, vais, contemplando os desertos; e te deitas.
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tação... Há o fio de Lucrécio, o atomismo, a filosofia do amor de Cavalcanti, a magia dó Renascimento, Cyrano... E há o fio da escrita como metáfora da substância pulverulenta do mundo: já para Lucrécio as letras eram átomos em contínuo movimento, qu e co m suas pe rm uta çõ es criavam as palavras e os sons mais diverso s; idéia ret om ad a p or uma longa tradição de pensadores para qu çm os s egre dos do m undo estavam contidos na com binatória do s sinais da escrita: a Ars magna de Raimundo Lúlio, a Cabala dos rabinos espanhóis e a de Pico delia Mirándola... Mesmo Galileu verá no alfabeto o modelo de todas as combinatórias de unidades mínimas... Em seguida Leibniz... Devo embrenharme por esse caminho? Mas a conclusão que me espera não será demasiado óbvia? A escrita como modelo de todo processo do real... e mesmo como a única realidade cognoscível... ou, ainda, a única realidade tout court ... Não, não me meterei por esse trilho forçado que me leva longe demais do uso da palavra como a entendo, ou seja, como perseguição incessante das coisas, adequação à sua infinita variedade. Resta ainda aquele fio que comecei a desenrolar logo ao princípio: a literatura como função existencial, a busca da leveza como reação ao peso do viver. Talvez Lucrécio, talvez Ovídio tivessem sentido essa necessidade: Lucrécio que buscava — ou acreditava buscar — a impassibilidade epicuréia: Ovídio que buscava — ou acreditava buscar — a ressurreição em outras vidas segundo Pitágoras. Habituado como estou a ver na literatura uma busca do conhecimento, para moverme no terreno existencial necessito considerálo e xten sív el à antro pologia, à etnologia, à mitologia. Para enfrentar a precariedade da existência da tribo — a seca, as doenças, os influxos malignos —, o xamã respondia anulando o p es o de seu c orp o, transpo rtantose em vôo a um outro mundo, a um outro nível de percepção, onde podia encontrar forças capazes de modificar a realidade. Em séculos e civilizaçõe ais pr óx im de nós, nas cidades em que lh
SEIS PROPOSTAS
suportava o tardo mais pesado de uma vida de limitações, as bruxas voavam à noite montadas em cab os de vasso uras ou em veículos ainda mais leves, como espigas ou palhas de milho. Antes de serem codificadas pelos inquisidores, essas visões fi. zeram parte do imaginário popular, ou até mesmo, digase, da vida real. Vejo uma constante antropológica nesse nexo entre a levitação desejada e a priva ção sofrida. Tal é o disp ositivo an tropológico que a literatura perpetua. Em primeiro lugar, a literatura oral: nas fábulas, o vôo a outro mundo é uma situação que se re p e te co m freqüênc ia. En tre as '‘funções” catalogadas por Propp em sua M orfo lo gia do conto, esse vôo é uma “ transferên cia d o h e ró i” , assim defini da: "O objeto da busca encontrase habitualmente em outro reino, num reino diverso, que p od e estar situa do m uito distan te em linha horizontal ou a grand e a ltura o u pr ofu nd ida de em linha vertical”. Propp passa em seguida a catalogar vários exemplos do caso “O herói voa através do espaço”: “no dorso de um cavalo ou de um pássaro, sob a forma de pássaro, numa nave volante, num tapete voador, nas costas de um gigante ou de um gênio, no coche do diabo etc. Não me parece abusivo relacionar esta função xamânica e feiticeiresca, documentada pela etnologia e o folclore, com o imaginário literário; ao contrário, penso que a racionalidade mais profunda implícita em tod a o p er a çã o literária dev a ser procurada nas necessidades antro po lóg icas a qu e e ssa corresponde. Gostaria de encerrar esta conferência recordando um conto de Kafka, “Der Kübelreiter” [O cavaleiro da cuba], É uma história curta, escrita em 1917, na primeira pessoa, e seu ponto de partida é evidentemente uma situação bastante real naquele inverno de guerra, o mais terrível do império austríaco: a falta de carvão. O narrador parte com sua cuba vazia à procura de carvão para a lareira. No c am inho , a cu ba lhe serve de c a v a l o ,
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A carv oaria fica nu m su bs olo e o cavaleiro da cuba voa al to demais; tem dific uld ad es em fazerse com preen der pelo carvoeiro, qu e es taria d isp osto a atend êlo. ao passo que a mulher deste, n o an da r su p erio r, se rec usa a ouvilo. O cavaleiro suplica que lhe dêem uma pá do carvão mais ordinário, ainda que não possa pagálo de imediato. A mulher do carvoeiro tira o avental e espanta o intruso como se estivesse a enxotar uma mosca. A cuba é tão leve que voa para longe com seu cavaleiro, até perderse além das Montanhas de Gelo.
Muitas das histórias curtas de Kafka são misteriosas e esta o é em particular. Talvez Kafka quisesse apenas nos dizer que sair à p ro cu ra de um p o u co de carvão , num a fria noite em tempo de guerra, se transforma em quète (busca) de cavaleiro errante, travessia de caravana no deserto, vôo magico, ao simples balouço de uma cuba vazia. Mas a idéia dessa cuba vazia que nos eleva acima do nível onde se encontra a ajuda alheia, bem co m o seu eg oís m o, a cub a vazia com o signo de privação, de desejo e de busca, que nos eleva a ponto de a nossa humil de oração já n ão p o d e r ser ate nd ida — essa cuba abre caminho a reflexões infindas. Evoquei aqui o xamã e o herói das fábulas, a privação sofrida que se transforma em leveza e permite voar ao reino cm que todas as nec ess ida de s se rão magicamente recompensadas Falei de bruxas que voavam usando utensílios domésticos, tão m odestos q u an to p o d e ser um a cuba. Mas o herói deste conto de Kafka não parece dotado de poderes xamânicos ou feiticei rescos; nem o reino para além das Montanhas de Gelo parece aquele em que a cuba vazia encontrará algo que possa enchè la. Tan to m ais q ue se estiv ess e cheia não teria conseguido voar. Assim, a cavalo em nossa cuba, iremos ao encontro do próximo milênio sem es pe ra r e n co n trar nele nada além daquilo que
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C o m e ç a re i p elo relato de uma antiga lenda, O imperador Carlos Magno, já em avançada idade, apaixo nouse por uma donzela alemã. Os barões da corte andavam muito preo cu pad os ven do que o soberano, entregue a uma pai xão am orosa que o fazia esqu ec er sua dignidade real, negligen ciava os deveres do Império. Quando a jovem morreu subitamente, os d ignitários respiraram aliviados, mas por pouco tempo, pois o amor de Carlos Magno não morreu com ela. O imperador m an do u em balsam ar o cadáver e transportálo para a sua câmara, recusando separarse dele. O arcebispo Turpino, apavorado com essa paixão macabra, suspeitou que havia ali um sortilégio e quis examinar o cadáver. Oculto sob a língua da morta, encontrou um anel com uma pedra preciosa. A partir do momento em que o anel passou às mãos de Turpino, Carlos Magno a pressous e em m an da r sepultar o cadáver e transfe riu seu amor para a pessoa do arcebispo. Turpino, para fugir àquela embaraçosa situação, atirou o anel no lago Constança. Carlos Magno apaixonouse então pelo lago e nunca mais quis se afastar de suas margens. Esta lenda, “tirada de um livro de magia”, foi retomada,
SEIS PROPOSTAS.
Plêiade das obras de Barbey d ’Aurevilly (i, p. 1315). Desde o momento em que a li, ela passou a voltarme seguidamente ao espírito, como se o sortilégio do anel co ntin uasse a agir através do relato. Tentemos explicar as razões pelas quais uma história como essa tem o poder de fascinarnos. Há um a sucessão de acon tecimentos que escapam todos à norma, encadeados um ao outro: a paixão de um velho por uma jovem, uma obsessão ne crófila, uma propensão homossexual, e no fim tudo se aplaca numa contemplação melancólica, com o v elh o rei absorto à vis ta do lago. “Charlemagne, la vue attachée sur son lac de Constance, amoureux de l’abime cach é” , escreve B arbey d ’Aurevilly no trecho do romance ao qual se reporta a no ta em que a lenda é relatada. (Une vieille maitresse) O que assegura a justaposição dessa cadeia de acontecimentos é um liame verbal, a palavra “ am or” ou “ p aix ão ” , que esta belece uma continuidade entre as várias formas de atração, e um liame narrativo, o anel mágico, que es tabelece um a relação lógica, de causa e efeito, entre os vários episódios. A corrida do desejo em direção a um objeto que não existe, uma ausência, uma falta, simbolizada pelo círculo vazio do anel, é dada mais pelo ritmo do conto do que pelo s fatos n arrado s. Do mes mo modo, toda a narrativa é percorrida pela sensação da morte em que parece debaterse ansiosamente Carlos Magno à medida que se agarra aos liames da vida, e que vai aplacarse mais tarde na contemplação do lago. O verdadeiro protagonista do co n to é, n o en tan to, o anel mágico: porque são seus m ov im en tos qu e de term ina m os dos personagens e porque o anel é que estabelece a relação entre eles. Em torno do objeto mágico formase como que um campo de forças, que é o campo do conto. Podemos dizer que o
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recer nos poemas italianos do Renascimento. No Orlando fu rioso assistimos a uma série interminável de trocas de objetos — espadas, escudos, elmos, cavalos —, cada qual dotado de uma p rop ried ad e car acte ríst ica, d e tal form a que se poderia des crever o enredo pelas mudanças de proprietário de um certo núm ero de ob jeto s d otad os d e certos p oderes, que determinam as relações entre certo número de personagens. No romance realista, o elmo de Mambrino se transforma numa bacia d e ba rb eiro , m as sem per d er importância nem significado; assim co m o são im p orta nt íssim os todos os objetos que Robinson Cr u soe salva d o n au frágio ou aqu eles que fabrica com suas próprias mãos. A partir do momento em que um objeto comparece numa descrição, podemos dizer que ele se carrega de uma força esp ecial, tor na se com o o p ólo de um campo mag nético, o nó de uma rede de correlações invisíveis. O simbolismo de um objeto pode ser mais ou menos explícito, mas existe sem pre. Po d em os d izer qu e n u m a narrativa um objeto é sem pre um objeto mágico. A lend a d e C ar los M agn o — vo ltem os a ela — tem p or trás de si uma tradição na literatura italiana. Em suas “Cartas familiares” (i, 4), Pet ra rca relata h av er con h ecid o essa graciosa his torieta” (f a b el la n o n i n a m e n a ), na qual declara não acreditar, por ocasião de sua visita ao sepulcro de Carlos Magno em Aachen. No latim de Petrarca, o relato é muito mais rico de detalhes e sen sa ções (ob ed ece n d o a uma m iraculosa inspiração divina, o bispo de Colônia rebusca com o dedo por baixo da língua gélida e r ígid a d o cad áv er, su b gélid a rigent ique lingua) bem com o d e com en tá rio s m ora is, mas prefiro a força sugesti va do d esp ojad o resu m o, em qu e tu d o é deixado à imaginação e a rápida su cessão d os fatos em p resta um sentido de inelutável. A lenda ressurge no florido italiano do século xvi, em diversas versões, nas quais o aspecto necrófilo é aquele que se
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PROPOSTAS
bispo só c mencionado de m od o alusivo, e é até m esm o censurado, como ein um dos mais famosos tratados sobre o amor do sécu lo XV!. o de Giusepp e Betussi, n o qu al a h istória termi na com a d escoberta do anel. Q u an to ao fin al, ta n to em Petrar ca quanto em seus continuadores italianos não se fala do lago de Constanza porque toda a ação se d es e n v o lv e em Aachen, já que a lenda exp licaria as orig en s d o p a lá cio e d o tem p lo que o imperador fez aí constru ir; o an el é jo g a d o n u m ch a rco , cuja lama fétida o imp erador aspira co m o se fo ss e u m p erfu m e, an tes de se banhar “volu p tu osam ente em su as ág u as ” (estabelecendose aqui um laço com ou tras len d as lo ca is so b r e a origem das fontes térmicas), detalhe que acentua ainda mais o efeito mortuário de todo o conjunto. Muito mais recuadas n o te m p o , as tr a d içõ e s m ed ieva is ale mãs estudadas por Gastón Paris tra ta m o a m o r d e Ca rlos Mag no pela jovem morta com va riantes q u e a tr a n sfor m a m numa história bem diversa: ora a am ad a é a le g ítim a e sp o sa d o impe rador, a qual assegura a fidelid ad e d o m a rid o p o r m eio d o anel mágico; ora é uma fada ou n infa q u e m o r r e m al lh e subtraem o anel; ora é uma mu lher qu e p a re ce v iva m a s a o ser privada do anel se transforma em cad áv er. Na o r ig em d e tu d o está pro vavelmente uma saga escan d inav a: o re i n o r u e g u ê s H arold dorme com a rainha defunta env olta n u m m a n to m ág ico qu e a conserva como viva. Em suma: nas versões r eco lh id a s p o r G a st ó n Paris falta a sucessão encadeada dos a co n te cim e n to s, e n a s v er sõ es literá rias de Petrarca e d os escr itor es d o R e n a sc im e n to falta a rapi dez. Por isso continuo a preferir a versão referida por Barbey d’Aurevilly, não obstante sua rudeza um tanto p a t ch ed up\ o segredo está na econ om ia da nar rativa e m q u e o s acon tecimen tos, ind epend entemente d e sua d u ra ção , se to rn a m punctifoi mes interligados por segm en tos re tilín eo s, n u m d esenh o cm
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d ador ou cíclico , ou im óv el. Em tod o caso, o conto opera so bre a d u ra ção, é u m so rtilég io q u e age sobre o passar do tempo, contraindoo ou dilatandoo. Na Sicília, os contadores de histórias u sam u m a fórm u la: “ lu cu ntu num metti tempu” [o con to n ão p er d e te m p o ], qu an d o qu er saltar passagens inteiras ou in d icar u m in ter v a lo d e m eses ou de anos. A técnica da nar ração ora l na tra d ição p op u lar o b ed ece a critérios de funciona lid ade: n eg lige n cia o s d eta lh es inú teis mas insiste nas repetições, p o r e x e m p l o q u a n d o a h i st ó r i a a p r e se n t a u m a série de obstá culos a su p er ar . O p ra z er in fan til d e ou vir histórias reside igual m en te n a esp er a d essa s re p et içõe s: situa ções, frases, fórmulas. Assim co m o n as p o esia s e n as ca n çõe s as rimas escandem o rit m o , n a s n a r r a t iv a s e m p r o s a h á a c o n t e c im e n t o s q u e rimam en tre si. A e ficá cia n a rr a tiv a d a len d a d e Carlos Magno está preci samente naquela sucessão de acontecimentos que se respond e m u n s a o s o u t r o s c o m o a s r im a s n u m a po esia . Se nu m d ete rm in a d o p er íod o de m inha atividade literária senti certa atração pelos contos populares e as histórias de fadas, isso n ã o se d ev eu à fid elid ad e a um a tradição étnica (dado que m inh as raízes se e n con tr a m nu m a Itália inteiramente mo d erna e co sm o p o lita), n em p o r n ostalgia de minhas leituras in fantis (em m in h a fam ília as cr ian ças d eviam ler apenas livros ins trutivos e co m algu m fu n d am en to científico), mas por interes se estilístico e est ru tu ra l, p ela e con om ia, o ritmo, a lógica es sencial com q u e tais co n to s sã o n arrados. Em meu trabalho de tran scrição d e fáb u las italian as, q u e fiz com base em documentos d os estu d ioso s d e n os so folclore d o século passado, encontrava especial prazer quando o texto original era muito lacônico e m e p ro p u n h a re co n tá lo respeitand olhe a concisão e pro curan d o d ela ex tr a ir o m áx im o d e eficácia narrativa e sugestão p o é tica . P o r e x e m p l o : Um Rei a d o e ce u . V iera m os m éd icos e disseram: “Majestade, se q u e r e i s c u r a r - v o s é n e c e s s á r i o a r r a n c a r u m a p e n a d o O gr o. É um
SL'IS p r o p o s t a s .
O Rei falou a todos mas ninguém se prestou a ir. Pediu a um de seus súditos, muito fiel e corajoso, e este disse: “Eu vou" Mostraram-lhe o cam in h o: “ Em cim a d e u m m o n te h á sete ca vernas; numa delas está o O g ro ” . O homem lá se foi e a n oite o su rp re en d eu n o caminho. pa. rou numa hospedagem... (Fábulas italianas, 57)
Nada se informa sobr e a d oe n ça d e q u e sofre o rei, de como será possível que um ogro ten h a p en as, o u co m o p od em ser as tais cavernas. Mas tudo o que é n om ea d o tem u m a fu n ção necessária no enredo. A principal car acterística d o co n t o p op u lar é a econo mia de expressão: as perip écias m ais e xt r aord in árias são relatadas levando em conta apenas o ess en cial; é se m p r e u m a luta contra o tempo, contra os obstáculos qu e im p ed em o u ret ar d am a realiza ção de um desejo ou a restau ração d e u m b e m p er d id o. Otempo pode até parar de todo, com o n o ca st elo d a Bela Ad orm ecida, bas tando para isso que Charles Perrault escreva: les broches même qui éta ient a u f e u t ou t es p le in es de perdrix et de faisans s ’endorm irent , et le f e u au ss i. To ut cela se fit en un moment: les fées n ’ét ai ent p a s lo n gu es à leu r besogne. até mesmo os espetos no f og o, ch e io s d e p er d iz es e faisões, ha viam adormecido, e bem assim o fo go . T u d o isso a con teceu num breve instante: as fadas n ão p er d iam te m p o n o exe cu ta r os seus prodígios.
A relatividade do tem p o a p ar ece co m o tem a nu m conto popular que se encontra d ifu n d id o p o r q u a se to d a p arte: a via gem de ida ao além, que p ar ece d u ra r a p en as a lgu m as h oras para quem a realiza, ao passo qu e, n a v o lta , o p o n t o d e partida se
RAPIDEZ m
Este motivo pode ser entendido inclusive como uma alegoria do tem p o n ar ra tivo, d e sua incomensurabilidad e com relação ao te m p o real. E p od ese r econ h ecer o mesmo significado na op er ação inv ersa , ou seja, n a dilatação do tempo pela proliferação d e u m a h istó ria em ou tra, que é uma característica da n ov elística o rien ta l. Sh eh era za d e con ta uma história na qual se conta uma história na qual se conta uma história, e assim por diante. A arte qu e p er m ite a Sh eh erazad e salvar sua vida a cada noi te está no sab er en cad ea r u m a h istória a outra, interrompendo a no momento exato: duas operações sobre a continuidade e a d escon tinu id ad e d o tem p o. É um segredo de ritmo, uma forma de captu rar o tem p o qu e p od em os reconh ecer desde as suas origens: na p oe sia é p ica p or causa da m étrica do verso, na narração em p ro sa p elas d iversas m aneiras de manter aceso o desejo de se ouvir o resto. Tod os co n h ece m o s a desagradável sensação que se prova quand o algu ém p re ten d e co n ta r um a aned ota sem ter jeito pa ra isso, con fu n d in d o o s efeitos, principalm ente a om aienação e o ritmo. Tal sensação é evocada numa historieta de Boccac cio (vi, 1) d ed icad a p re cisam en te à arte do relato oral. Uma alegre com p a n h ia d e d amas e cavalheiros, hospedados na casa d e ca m p o d e u m a sen h ora florentina. decidem fa zer um p ass eio a p é d ep ois d o a lm oço para irem ate uma outra amena localidade das vizinhanças. Para tornar o passeio mais agradável, um dos senhores se oferece a contar uma história: "M ado nna O retta . qu a n d o ro i rogliate, io ri porterò. grau parte delia ria che a andare abbiatno. a carallo con una delle belle norelle del mondo". Al q u a le la d o n n a rispuose: ‘ Messere. an z i ve ne priego io molto. e saram m i caríssim o" M es ser lo ca ra liere, al qu a le fo rs e non st ava meglio la spa da allat o che l no v ell ar nella lingua . udito questo, cominciò una
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tre e quatro e sei volte repl ica n d o u n a m edes im a parola e ora iihlietro t ornando e talvolta d icen d o : ‘ ‘I o n o n dis se bene ’ ’ e spes so ne' nomi errando, nn per nn altro ponendone, fieramente la guastara: senz a che egli p ess im a m en t e, seco n d o le qualità dei le personne e gli atti che accadevano, profereva. Di che a m adonna O retta. u d en d o lo , sp es se volte veniva un sudore e uno sfinimento d i cuo re, com o se in ferm a fosse stata p er terminare: la qual cosa p o i ch e p i ú s o f f eri r n o n pot é, conos- cendo che il cavaliere era ent rat o n el p eco recc i o n é era per rius cirne, piacevolmente disse: “ M esser , qu est o v ost ro cavallo ha trop po duro trotto, p er ch e io v ip riego ch e v i p i a cci a d ip o rm i apiè", "Senhora Oretta, se assim q u ise rd es , p o d e re i, p or grand e parte do caminho que terem os d e an d ar, le va r-vo s a cava lo numa das mais belas histórias deste m u n d o ” . Ao q u e a d a m a r e s p o n d e u : “ C a r o s e n h o r , a t é m e s m o vos pe ço com insistência, pois nada me seria mais agradável”. A estas palavras, o cavalheiro, que talvez não tivesse na cin tura melhor graça com a esp ad a d o q u e n a língu a com a arte de contar, com eçou sua na rrativa, a q u al n a v e rd a d e era em si belís sima, mas que ele, ora re p et in d o a m e s m a p ala vra três, quatro ou seis vezes, ora voltan d o a trás, o ra d ize n d o: “ N ão é bem as si m ” e e rr an d o co m f r e q ü ê n c ia n o s n o m e s , t r o c a n d o u n s pelos outros, acabava p or h orr ive lm en te e st ro p iar , om itin d o-se pessi mamente de adeq uar o tom d a n arra tiva às q u alid ad es dos perso n agen s e à n a tu r e za d o s a c o n t e c i m e n t o s . No que a senh ora O retta, ao ou vi -lo, s en tia vezes sem conta vir-lhe um suor frio e um d es fa le cim en to d o cor açã o, como se estivesse enferma para m orre r; e n ão p o d e n d o agü en tar por mais muito temp o, saben do q u e o cav alh eir o h av ia en trad o num aranzel do qual não consegu iria sair-se, go st o sa m e n te lh e d isse: “Meu caro s en h o r , v o ss o ca v a lo é u m t a n t o d u r o d e t r o t e , p e l o q u e vos pe ço me deixeis a pé”.
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cidade m en tal. O s d efeitos d o narrad or inep to enumerados por Bocca ccio sã o p rin cip alm en te ofensas ao ritmo; mas são também os d efeitos d e est ilo , p or n ão se exp rim ir apropriadamente segu nd o o s p er so n ag en s e a ação, ou seja, considerando bem, até m esm o a p ro p ried ad e estilística exige rapidez de adaptação, uma agilidade da expressão e do pensamento.
O cavalo co m o em blem a da velocidad e também mental marca toda a história da literatura, prenunciando toda a problemática p ró p ria d e n o sso h orizo n te tecnológico. A era da ve locid ad e, n os tra n sp or tes co m o nas informações, começa com um dos mais belos ensaios da literatura inglesa, The English m a i l c o a c h [A m ala p os ta l inglesa] d e Thom as De Quincey, que em 1849 já h av ia com p re en d id o tu d o o que hoje sabemos sobre o m u n d o m o to riz a d o e as rod ovias, inclusive colisões mortais a alta velocidade. De Q u incey d escrev e u m a viagem noturna na boléia de uma dessas diligências velocíssimas, ao lado de um cocheiro gigantesco qu e d or m ia p ro fu n d am en te. A perfeição técnica do veículo e a transformação de seu condutor em cego objeto inanimado colo cam o v iaja n te à m er cê d a inexorável precisão da má quina. Com a acu id ad e d e suas sen sações accntu adt por uma do se de láudano que havia ingerido, De Quincey se dá conta de que os cava los es tã o co r r en d o a um a velocidad e de treze milhas por hora, p elo lad o d i r e i t o d a estr ad a O qu e significava um de sastre inevitável, não para a mala postal velocíssima e robusta, mas para a primeira carruagem que tivesse a infelicidade de vir por aquela estra d a, e m sen tid o op os to! De fato. lá no fim do caminho arb oriza d o q u e lem br a a n ave d e uma catedral, vindo pela direita, o n ar ra d or av ista u m a frágil calech e d e vime. conduzida por um jov em casal q u e a va n ça a um a milha por hora. "Between
SUS PROPOSTAS.
De Quincey dá um grito. “Mine had been the first step; th e s e co n d w a s fo r th e y o u n g m a n ; t h e t h ir d w a s fo r G o d ” [o p r i m e ir o p a sso t in h a s id o m e u ; o s e g u n d o c o m p e t ia a o m oço; o terceiro, a Deus]. O r ela to d e ss es p o u c o s s eg u n d o s p e r m a n e c e in su p er áv el, m e sm o em n o s sa é p o c a , e m q u e a e x p e r i ê n c ia d a s gr an d e s ve locidades se tornou fundamental para a vida humana. Glance o f eye, thought o f m an , w ing o f an gel, w hich o f these had speed enough to sw eep bet w een the quest io n a n d t he answ er, and div ide the on e fro m the ot her? Light d oes no t t read upo n the steps o f l igh t m o r e in d i v i s i b l y t h a n d i d o u r a l l c o n q u e ri n g arriv al upon the escap ing efforts o f the gig.
Piscar de olhos, p en sam en to h u m an o, asa d e an jo: que seria bas tante veloz para interporse entre a pergunta e a resposta, separand o uma da outra? A luz n ão é m ais ins ta n tâ n ea em seguir seus próprios rastros do que era o nosso avanço inexorável sobre a caleche que se esforçava em se esquivar. D e Q u in c e y co n s e g u e d a r a s e n s a ç ã o d e u m la p s o d e tem p o ex tr e m a m e n t e b r e v e , q u e n ã o a p e n a s i n c lu i o cá lcu lo da ine v it ab ilid a d e t é cn ica d o e n c o n t r o , m a s i g u a l m e n t e o im p on d e rável, essa p arte d e D eu s, gra ças à q u al o s d ois v eícu los não se chocam. O tema que aqui nos interessa não é a velocidade física, m a s a r e l a çã o e n t r e v e l o c i d a d e f í s ic a e v e l o c i d a d e m e n ta l. Essa r e la çã o i n t e re ss o u ig u a lm e n t e u m g r a n d e p o e t a it a lia n o con tem p o r â n e o d e D e Q u in ce y : G i a c o m o L e o p a r d i. E m s u a ju ventu de, que não podia ter sido mais sedentária, um de seus raros m o m e n t o s d e a le gr ia p o d e s e r e n c o n t r a d o n e s ta s n o ta s d e seu
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saz ion e. Essa dest a real m ent e un a quasi idea deU’infinito, sublima V anim a, la fo rtif ica... (27 Ottobre 1821).
A velocidade, dos cavalos, por exemplo, seja quando a vemos ou q u an d o a exp erim en tam os, transportados por eles, é agrada bilíssima em si mesma, ou seja, pela vivacidade, a energia, a força, a vida que tal sensação nos proporciona. Ela suscita realmente uma quase idéia de infinito, sublima a alma, fortalecea... Nas n otas d o Z i b a l d o n e tomadas nos meses subseqüentes, Leopardi desenvolve suas reflexões sobre a velocidade e, em certo ponto, chega até a falar do estilo: La ra pidit à e la co nci sio ne dell o st ile piace perché presenta alV an im a u n a fo ll a d ’idee sim ult anee, cosi rapidamente succe dentisi, che p a io n o sim ult anee, e fa nn o ondeggiar Vanima in una tale ab bo nd an z a d ip ensieri, o d ’imm agini esensazionispi rituali, ch 'ella o no n è ca pace d i abbracciarle tutte. e pienamente ciascuna, o no n ha t em po d i rest are in ozio, e priva di sensa z io ni. La f o rz a del lo st ile p oét ico, che in gra n part e è tutt'uno colla rapi dit à, no n è pi acev ol e p er alt ro che p er questi effetti, e no n cons ist e in alt ro. L ’eccit am ent o d idee simultanee , può de riv are e da cia scu n a pa ro la isolata, o própria o metafórica, e delia lo ro co ll oca z io ne, e d a l giro delia frase, e dalla soppres sione stessa di alt re p a rol e o fra si ec. (3 Novembre 1821).
A rapidez e a co n cisã o d o estilo agrad am porque apresentam à al ma uma turba de idéias simultâneas, ou cüja sucessão é tão rápida que parecem simultâneas, e fazem a alma ondular numa tal abundância de p en sam en to, imagens ou sensações espirituais, que cia ou não consegue abraçálas todas de uma vez nem inteiramente a cada uma, ou nã o tem tem p o de per m anecer ociosa e desprovida de sensações. A for ça d o estilo p oé tico, que em grande parte se identifica com a ra pid ez, não nos d eleita senão p or esses efeitos, e não consiste sen ão disso. A excita ção d as idéias simultâneas pode ser provocada tan to p or uma palavra isolada, no sentido próprio ou meta fórico, qu an to p or sua coloca ção na frase, ou pela sua elaboração, bem com ela sim les su são de outras pal ou f et
SFIS PROPOSTAS.
A metáfora do cavalo p ara d esign ar a v elocid a d e da mente creio que foi usada pela p rim eira v ez p o r G alileu Galilei. Em seu livro Saggititore [Exp erim entad or], p olem izan d o com um adversário que su stentava suas p ró p ria s te ses com grande nú mero de citações clássicas, Galileu escreve: Se il discorrere circa un p ro bl em a d if fi cil e fo s s e com e il portar pesi. doce molt i cav ai! i p o rt era n n o p i ú s a cca d i gra n o ehe un caral solo, io accons ent irei ehe i m ol t i di sco rsi facessero piu ehe un solo: m a il di s co rrere è co m e il co rrere, e non come il port are, ed un cav ai b a rb ero solo co rrerá p i ú eh e cent o friso ni (45). Se o discorrer sob re um p rob lem a d ifícil foss e co m o o transpor tar pesos, caso em q u e m u itos cav al os p o d e m transp ortar mais sacos de trigo do que u m só cav al o, ad m itiria en tã o q ue uma plu ralidade de discursos valesse mais que apenas um; mas o discor rer é com o o correr, e n ão co m o o tr an sp o rta r, e u m só cavalo árabe há de correr m u ito mais q u e cem cav alo s frísios.
"Discorrer”, “discurso” para Galileu quer dizer raciocínio, e quase sempre raciocínio d ed u tivo . “ O d isco r r er é com o o cor rer” : esta afirmação é com o o p r o g r a m a e st ilíst ico de Galileu, o estilo como m étodo d o p en sa m en to e c o m o go sto literário — a rapidez, a agilidad e do r a cio cín io , a e co n o m ia d e argumen tos, mas igualmente a fant asia d o s e xe m p lo s sã o p ara Galileu qualidades decisivas d o bem p en sa r. Acrescentemos a isso um a p r e d ileçã o p e lo cav alo, que Ga lileu demonstra em suas m etá fora s e n o s GedankenExperimenten ; num estud o qu e fiz so b r e a m et á for a n os escritos de Galileu, contei pelo m en os o n ze e xe m p lo s sign ificativ os em que ele fala de cavalos: com o im agen s d e m o v im en to , p ortanto co
RA PIDEZ •
ampliados a dimensões gigantescas; sem esquecer a identificação do raciocínio co m a corr id a eqü estre: “o d iscorrer é como o correr”. A 'velocid ade d o p ensam ento no Diálo go sobre os grandes sistemas é personificada por Sagredo, um personagem que intervém na discussão entre o ptolemaico Simplício e o coperni cano Salviati. Salviati e Sagredo representam duas facetas distintas do tem p er am en to d e G alileu : Salviati é o hom em de raciocí nio m etod ologicam en te rigor oso , qu e pro ced e lentamente e com prudência; Sagredo é caracterizado por seu “velocíssimo discurso”, p or um es p írito m ais im ag ina tivo , mais inclinad o a concluir que a d em on stra r e a leva r cad a idéia às últimas conseqüências, como ao elabo ra r h ip óte ses d e co m o seria a vida na lua ou o que haveria de acontecer se a terra parasse de girar. Será no entanto Salviatti quem definirá a escala de valores em que Galileu situa a velocidade mental: o raciocínio instantâneo, sem p a s s a gen s , é o d a m en te d e Deus, infinitamente superior ao da mente humana, a qual no entanto não deve ser menosprezada nem considerada nula, porquanto criada por Deus, e que ava n çand o p asso a p asso ch ego u a comp reend er, investi gar e realizar coisas maravilhosas. Neste ponto intervém Sagredo, com o elogio da mais bela invenção humana, a do alfabeto (Diálogo sobre os grandes sistemas , fim da primeira Jornada): Ma s opra t ut t e le in v en z io n i st upen de. qual em in enz a di ment e f u quella d i co lu i ch e s it n m a gi n ò d i t rov ar m od o di com unica re i s u o ip iü reco n d it ip en s ieri a qualsivoglia altra persona. ben ché dist ant e p e r lu ngh is sim o int ervall o d i luogo e di tempo?par lare con quelli che son nell I nd ie , p a rl a re a quelli che non sono ancora nat i n é sa ra n n o s e no n di q ua a m ille e dieci mila anni? e con qu al fa cilit à ? con i v ari accoz z am enti di venti caratteruz z i sopra u n a ca rt a . Mas pairando acima de todas essas invenções estupendas, a que
SEIS PROPOSTAS.
de tempo e espaço existente entre ambos? falar com alguém qUe estivesse nas índias, ou com aqueles que ainda não nasceram ou que irão nascer só daqui a mil ou dez mil anos? e com que facilidade! com as combinações variáveis de vinte pequenos caracteres numa folha de papel. Em minha conferência an ter ior, a p r o p ó sit o d a leveza, ha via citado Lucrecio, qu e via na co m b in a to r ia d o alfab eto o mo delo da impalpável estrutu ra a tô m ica d a m até ria ; h o je cito Ga lileu, que via na com bina tória a lfab ét ica (“ as co m bin açõe s va riáveis de vinte pequ enos car a cte r es ” ) o in str u m en to insupe rável da comunicação. Co m u n icação en tr e p es so a s distantes no espaço e no tempo, dizia Galileu ; m as o co r r e a cre scen ta r igual mente a comunicação imediata que a escrita estabelece entre todos os seres existentes ou possíveis. Dado que me propu s em cad a u m a d esta s con ferên cias re comendar ao próximo m ilênio u m v alo r q u e m e seja especial mente caro, o valor que hoje q u er o r eco m en d a r é pr ecisam ente este: numa época em que outros m e d i a triunfam, dotados de uma velocidade espantosa e de um raio de ação extremamente extenso, arriscando r ed u zir t od a co m u n ica çã o a uma crosta uniforme e hom ogênea, a fu n ção d a liter atu ra é a comunicação entre o que é diverso p elo fato d e ser d iver so , não embotando mas antes exaltando a diferença, segundo a vocação própria da linguagem escrita. O século da motorização im p ôs a v elo cid a d e co m o um va lor mensurável, cujos recordes balizam a história do progresso da máquina e do homem. Mas a v elocid ad e m en ta l n ão pod e ser medida e não permite com p ara ções ou d isp u tas, n em pod e dis por os resultados obtidos numa perspectiva histórica. A velocidade mental vale por si mesma, pelo prazer que proporciona
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Qualquer valor que escolha como tema de minhas conferências — já o disse a princípio — não pretende excluir o seu valor con tr ár io: assim co m o em m eu elogio à leveza estava implícito meu respeito pelo peso, assim esta apologia da rapidez não pretende negar os prazeres do retardamento. A literatura desenvolveu várias técnicas para retardar o curso do tempo; já record ei a iter a çã o; resta m en cion ar a digressão. Na vida p rá tica, o tem p o é u m a riqueza de que somos ava ros; na litera tu ra , o te m p o é u m a riqueza de que se pode dis por com p ro d igalidad e e ind ifer en ça: nã o se trata de chegar pri meiro a um limite preestabelecido; ao contrário, a economia de temp o é um a coisa b oa , p or qu e qu anto mais tempo econo mizamos, m ais te m p o p o d er em os perd er. A rapidez de estilo e de pensamento quer dizer antes de mais nada agilidade, mobilidade, d esen voltu ra ; q u alid ad es essas que se combinam com uma escrita p r o p en sa às d iva ga ções, a saltar de um assunto pa ra outro, a perder o fio do relato para reencontrálo ao fim de inumeráveis circunlóquios. A grand e in v en ção d e Lau ren ce Sterne consistiu no romance inteiramente feito de digressões — exemplo que será logo seguido por Diderot. A divagação ou digressão é uma estratégia para p ro tela r a co n clu sã o , u m a m u ltiplicação do tempo no interior da obra, uma fuga permanente; fuga de quê? Da morte, naturalmente, diz em sua introdução ao Tristram Shandv o escritor italian o Car io Levi, qu e p ou cos imaginariam admira dor de Sterne, ao passo que seu segredo consistia exatamente em adotar um espírito divagador e o sentido de um tempo ilimitado até m esm o n a o b se r v a çã o d os pr oblemas sociais. Escre veu Levi: L 'orologio è il p rim o sim bolo di Sfoandy , sot to il suo influsso egli viene generato, ed iniziano le sue disgrazie, cbe sono tutt uno con questo segno dei tempo. La morte sta nascosta negli orolo
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PROPOSTAS.
di totalità: la morte, cbe è il tem po , il t em po d eli a individua zione. delia separaz ione, l 'astrat to t em po cbe rotola verso la sua fin e. Tristram Sh andy noti v uol na scere, p erch é non vuol mori re. Tutti i mezzi. tutte le a rm i son o b u o n ep e r sal v arsi dalla mor te e dal tempo. Se la linea rett a è la p i ü brev e f ra du e punt ifatal i e inevitabili, le di gress io ni la a llu n gh era n n o : e se queste di gressioni div ent erann o cosi com pl ess e, aggro v iglia t e, tortuose, cosi rapide da f a rp erd ere le p ro p ri e t racce, cbiss à cbe la morte non ci trovi piü, cbe il tem po s i s m a rris ca , e cb e poss iam o res tar e celati nei mutevoli nascondigli. 0 relógio é o primeiro sím b olo d e S h an d y, é s ob seu influxo que ele foi gerado e que com eça ra m to d o s o s seu s d issa b ores , os quais são indissociáveis d esse sign o d o te m p o . A m o r te est á ocuita nos relógios, como dizia Belli; e a infelicidade da vida individual, desse fragmento, dessa coisa cindida e desagregada, e desprovida de totalidade: a morte, q ue é o te m p o , o te m p o d a individualidade, da separação, o temp o ab str ato q u e r o la em d ir e ção ao fim. Tris tram Shandy não quer nascer porque não quer morrer. Todos os meios são bons, todas as arm as , p ar a e s ca p a r à m o rt e e ao tem po. Se a linha reta é a mais cu rt a e n tr e d oi s p o n to s fatais e inevi táveis, as digressões servem para alongá-la; e se essas digressões se tornam tão com p lexas, em ar an h ad as , t or tu o sa s, tão rápidas que nos fazem perder seu ras tro, q u em sa b e a m o rt e n ão nos encon trará, o tempo se extraviará, e p o d e re m o s p er m an ece r ocultos em mutáveis esconderijos.
Palavras que me fazem refletir. Porque não sou um cultor da divagação; pod eria d izer q u e p r efir o ate rm e à linh a reta, na esperança de que ela prossiga até o in fin ito e m e to rn e inalcan çável. Prefiro calcular d em or ad am en te m in h a tr ajetória de fuga, ndo poder l flech desaparec
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sido, mais q u e as p alav ra s e o co n ceito , a própria sugestão dos emblemas o que de fato me atraiu. Devem lembrarse daquele que Aldo M an u zio, o g ra n d e e d itor e hum anista veneziano, fa zia gravar na capa de todas as suas edições, simbolizando a divisa F e s t i n a l e n t e so b a fo rm a d e um golfinho que desliza si nu oso em to r n o d e u m a â n cor a. Essa elegante vinheta gráfica, que Erasm o d e R ot ter d am com en tou em páginas memoráveis, repr esenta a in ten sid a d e e a co n stân cia do trabalho intelectual. Mas o g o l f in h o e a â n c o r a p e r t e n c e m a u m m u n d o hom ogên eo de im agens m ar inh as , e sem p re p referi os emblemas que reúnem figuras in cô n g ru a s e en igm áticas, com o os rébus. Tais a b o r b o le ta e o c a r a n g u e jo q u e ilu s tr a m a Fest ina lente na coleção de em b lem as d o sé cu lo xv d e Paolo Giovio: duas formas animais, am b as b iza rr a s e s im étr icas, qu e estabelecem entre si uma harmonia inesperada. D esd e o in ício, em m eu tra ba lho d e escritor esforceime por seguir o p er cu r so v elo císsim o d os circuitos mentais que cap tam e r e ú n e m p o n t o s l o n g í n q u o s d o e sp a ç o e d o tem po, Eni minha predileção pela aventura e a fábula buscava s empre o equ ivalente d e u m a en er g ia in ter ior, d e uma dinâmica mental. Assestava p ar a a im a g em e p ara o m ovim ento que brota naturalmente d ela, e m b o ra sa b en d o sem p re que não se pode falar de um res u ltad o liter á rio sen ão qu an d o essa corrente da imagi nação se tra n sfor m a em p alav ra s. O êxito d o escritor, tanto em prosa qu an to e m v er so , est á na felicida d e da expressão verbal, que em algu n s ca so s p o d e realizarse p or m eio de uma fulgura ção rep en tina, m as q u e em reg ra geral imp lica uma paciente pro cura do m o t j u s t e , d a fr as e em q u e tod os os elementos são insubstituíveis, d o e n co n tr o d e so n s e con ceitos qu e .sejam os mais eficazes e d en so s d e sig n ificad o. Estou conven cid o de que es crever p rosa em n ad a d ifer e d o e screv er poesia, em ambos os casos, tratase da busca de uma expressão necessária, única, densa, concisa, m em or áv el. I: d ifícil m a n ter ess e tip o d e ten são em obras muito lon gas; adem ais, m eu te m p er a m en to m e leva a realizarme melhor 61
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em textos curtos — minha obr a se co m p õ e em su a m aior parte de short stories. Por exem p lo: o tip o d e ex p er iên cias qu e reali zei em Le cosm icom iche e T i co n z e r o , d an d o e v id ên cia narrati va a idéias abstratas de esp aço e d e t e m p o , n ã o p o d e r ia verificarse senão no âmbito'd o con to. Mas ex p e r im e n te i com p osições ainda mais breves, com um d es en v o lv im en to n a rr at ivo mais re duzido, entre o apólogo e o p eq u en o p o em a em p ro sa, em Cit tà invisibili [Cidades invisíveis] e r e ce n te m e n te n as d escrições de Palomar. É verdade que a exten são ou b re v id ad e d e um tex to são critérios exteriores, m as fa lo d e u m a d en sid a d e especial que, embora possa ser alcan çad a ta m b ém n as com p o sições de maior fôlego, tem sua m ed id a cir cu n sc r ita a u m a p ág ina apenas. Ao privilegiar as form as b r ev es , n ã o fa ço m a is qu e seguir a verdadeira vocação da litera tu ra ita lian a , p o b r e d e rom ancistas mas rica de poetas, os qu ais m e sm o q u a n d o escre v em em prosa dão o melhor de si em tex to s em q u e u m m áx im o de in venção e de pensamento se con ce n tr a em p o u ca s páginas, como este livro sem par em ou tra s lite r a tu r a s q u e é o Operette mor ali de Leopardi. A literatura americana d etém u m a g lo r io sa tr ad ição d e short stories que permanece até h o je, eu d iria a té q u e n esse gênero estão suas jóias insuperáveis. Mas a classificação editorial, com sua rígida bipartição — s h o rt s t o r i e s o u n o v e l s — descarta outras possibilidades de form as b r e v es , c o m o as q u e estã o pre sentes na obra em prosa d os g ra n d es p o et a s a m er ican o s, desde os Specimen days de Walt W h itm an a m u itas p ág in as de Wil liam Carlos Williams. A d em an d a d o m e r ca d o liv r e sc o é um di tame que não deve im obilizar a e x p e r im e n ta çã o d e formas no vas. Quero aqui prop ugn ar pela riq u ez a d as fo r m a s b rev es, com tudo aquilo que elas p ressu p õem co m o e st ilo e co m o densidade de conteúdo. Penso n o Pau l Va lér y d e M o n s i e u r Teste e dc
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A ú ltim a g ra n d e in v en ção d e u m gênero literário a que as sistimos foi levad a a e feit o p or um m estre da escrita breve, Jorge Luis Borges, que se inventou a si mesmo como narrador, um ovo d e C o lom b o qu e lhe p erm itiu superar o bloqueio que lhe impedia, por volta dos quarenta anos, passar da prosa en saística à prosa narrativa. A idéia de Borges foi fingir que o livro que desejava escrever já havia sido escrito por um outro, um hip otético a u to r d es con h ecid o, que escrevia em outra lín gua e pertencia a outra cultura — e assim comentar, resumir, resenhar esse livro hipotético. Faz parte do folclore borgiano a história de q u e seu p rim eir o e extraor d in ário conto escrito com essa fórm u la, “ El acer cam ien to a Alm otásim ', quando apa receu em 1940 n a re vista S u r foi realm ente tomad o como a re censão de um livro d e a u to r ind ian o. Assim como faz parte dos lugares obrigatórios da fortuna crítica de Borges a observação de que todo texto seu redobra ou multiplica o próprio espaço por m eio d e o u tr os livr os d e u m a biblioteca imaginária ou real, ou de leituras clássicas ou eruditas ou simplesmente inventadas. O que mais me interessa ressaltar é a maneira como Borges consegue suas aberturas para o infinito sem o menor congestionamento, graças ao mais cristalino, sóbrio e arejado dos estilos; sua maneira de narrar sintética e esquemática que conduz a uma linguagem tão precisa quanto concreta, cuja inventiva se m an ifesta na varied ad e d os riim os, d os movimentos sin táticos, em seu s a d jet iv o s se m p re inesp erad os e surpreendentes. Nasce com Bor g es u m a literatu ra elevada a o quadrado e ao mesmo tem p o u m a litera tu ra qu e é com o a extração da raiz qua drada de si m esm a: u m a “ litera tu ra p oten cial” , para usar a terminologia que será mais tarde aplicada na França, mas cujos prenúncios p od em ser en con tra d os em Ficciones, nas alusões e fórmulas dessa qu e p o d er ia te r sid o a ob ra de um hipotético autor chamado Herbert Quain.
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grama. Nos tempos cada vez mais congestionados que nos es peram. a necessidade d e litera tu ra d ev er á focalizar se na máxj. ma concentração da poesia e do pensamento. Borges e Biov Casares org an izaram u m a a ntologia de His tórias breves e extraordinárias. De minha parte, gostaria de organizar uma coleção d e h istória s d e u m a só frase, ou de uma linha apenas, se possível. Mas até agora não encontrei nenhuma que supere a do e scritor g u at em alte co Au gu sto Monterro so: ' Cuando despertó, el dinosaurio todavía estaba allí” [Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá]. Doume conta de qu e esta con fer ên cia , fu nd ad a sobre co nexões invisíveis, acabou se ramificando em diversas direções, com o risco de se torn ar d isper sa. Mas t o d o s os temas de que tratei nesta tarde. e talvez também aqueles da primeira conferência, podem ser unificados, já que sobre eles reina um deus do Olimpo ao qual rendo tributo especial: HermesMercúrio, o deus da com un icação e das m ed ia çõ es , q u e s ob o nome de Toth inventou a escrita, e que, segundo nos informa Jung em seus estudos sobre a sim bologia a lqu ím ica, rep rese n ta como “es pírito Mercúrio” também o p ri n ci p i u m in div iduat ionis. Mercúrio, de pés alados, leve e aéreo, hábil e ágil, flexível e desenvolto, estabelece as relações entre os deuses e entre os deuses e os homens, entre as leis universais e os casos particulares, entre as forças da natu rez a e as form as d e cultu ra, entre todos os objetos do mundo e todos os seres pensantes. Que patrono melhor pod eria esco lh er p ar a o m eu p ro jet o literário? Na sabedoria antiga, na qua l m icr o co sm o e macrocosmo se refletem nas correspondências entre psicologia e astrologia, entre hum ores, tem p era m en tos, p lan eta s, con stela ções, as leis que regem Mercúrio são as mais instáveis e oscilantes. Mas segundo a opinião mais d ifu nd ida, o te m p er a m en to influencia do por Mercú rio (de in clina ção p ara as t ro cas , o com ércio e a destreza) contrap õese ao tem p er am en to influ en ciad o por Sa
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próprio d os artistas, d os p oetas, dos pensadores, e essa carac terização me parece correta. É certo que a literatura jamais teria existido se uma boa parte dos seres humanos não fosse inclinada a um a for te in tr ov er são , a um descontentamento com o mundo tal co m o ele é, a um esqu ecerse das horas e dos dias fixando o olhar sobre a imobilidade das palavras mudas. Meu caráter ap resen ta sem d ú vid a os tr aços tradicionais da categoria a que p er te n ço: sem p re p erm an eci um saturnino, por mais diversas qu e fossem as m áscaras qu e procurasse usar. Minha ve neração por Mercúrio talvez não passe de uma aspiração, um querer ser: sou um saturnino que sonha ser mercurial, e tudo o que escrevo se ressente dessas duas influências. Mas se Satu rn oC ro n os exe rcita seu pod er sobre mim. por outro lado é verdade que nunca foi uma divindade de minha devoção: nunca senti por ele outro sentimento que um respeitoso tem or. Há o u tr o d eu s, con tu d o, que apresenta com Satur no vínculos d e a finid ad e e p are n tes co, ao qual me sinto muito afeiçoado — u m d eu s qu e n ão goza de tan to prestígio astroló gico e p or tan to p sico ló g ico , n ão figuran d o com o titular de um dos sete planetas d o céu d os antigos, mas goza todavia de grande fortuna literária d esd e os tem p os d e H om ero: falo de Vulcano Hefaísto, deus que não vagueia no espaço mas que se entoca no fun do d as cra teras, fech a d o em sua forja onde fabrica interminavelmente objetos de perfeito lavor em todos os detalhes — jóias e or n a m en to s p ar a os d eu ses e as deusas, armas, escudos, redes e armadilhas. Vulcano, que contrapõe ao vôo aéreo de Mercúrio a andadura descontínua de seu passo claudicante e o cadenciado bater de seu martelo. Tam bém aq u i d ev o fazer re ferên cia a uma de minhas lei turas ocasion ais, m as às vez es idéias clarificantes nascem da lei tura de livros estranhos e dificilmente classificáveis do ponto de vista d o rig or aca d êm ico. O livro em questão, que li quan do estava est u d an d o a sim bo log ia d os tarôs, intitulase Histoi re de not re im a ge, de André Virei (Genebra, 1965). Segundo
SEIS PROPOSTAS.
— ju n g u ia n a, M e r cú r io e V u l ca n o r e p r e s e n t a m a s d u a s fu n çõ es vitais i n se p ar áv ei s e co m p l e m e n t a r e s : M e r c ú r i o a sintonia, ou sej a, a p a r ti ci p a çã o n o m u n d o q u e n o s r o d e i a ; V u l ca n o a foca lização , o u s ej a, a c o n c e n t r a ç ã o c o n s t r u t i v a . M e r cú r i o e Vul ca n o s ã o a m b o s fi lh o s d e J ú p i t e r , c u j o r e i n o é o d a co n s ciê n ci a ind ividu alizada e socializada , m as p o r p ar te d e m ãe Mercúrio d e s ce n d e d e U r a n o , cu j o re i n o e r a o d o t e m p o “ ci cl of r ên i co ” d a co n t in u id a d e in d i f er e n c ia d a , a o p a s s o q u e V u l ca n o d escen d e d e S atu r n o, cu j o r e in o é o d o t e m p o “ e s q u i z o f r ê n i co ” do is ola m e n to e g o c ê n t r ico . S a t u r n o h a v i a d e s t r o n a d o U ra n o , Jú p i te r h a vi a d e s t ro n a d o S a t u r n o ; p o r f i m , n o r e i n o e qu ilib ra d o e l u m i n o so d e Jú p i te r , M e r c ú r i o e V u l c a n o t r a z e m ca d a qual a le m b r an ça d e u m d o s o b s c u r o s r e i n o s p r i m o r d i a i s , tran sfor m a n d o o q u e er a m o l é s ti a d e l e t é r i a e m q u a l i d a d e p o s it iv a : sin tonia e focalização. Q u a n d o li e st a a n á li se d a c o n t r a p o s i ç ã o e co m p l em e n ta ried a d e e n tr e M e rcú r i o e V u l ca n o , c o m e c e i a c o m p r e e n d e r al go qu e até e n t ão só h a v ia i n t u í d o c o n f u s a m e n t e : a l g o q u e age so b re m im , s ob r e q u e m s o u e s o b r e q u e m g o s t a r i a d e ser, so b re co m o e scr e vo e c o m o p o d e r i a e s c r e v e r . A co n ce n t ra çã o e craftsmanship d e V u l ca n o s ã o a s c o n d i ç õ e s n e ce s s ár ia s para se e scr ev e r as a v en t u r as e m e t a m o r f o s e s d e M e r c ú r i o . A m ob i lid ad e e a ag il id a d e d e M e r c ú r i o s ã o a s c o n d i ç õ e s n e ce ss ária s p a ra q u e as fain as i n t e r m i n á v e i s d e V u l c a n o s e t o r n e m p orta d o ra s d e s ig n i fi ca d o , e d a g a n g a m i n e r a l i n f o r m e a s su m a m for ma os atributos divinos, cetros ou tridentes, lanças ou diade m as . O t ra b a lh o d o e s c r i to r d e v e l e v a r e m c o n t a t e m p o s dife re n tes: o te m p o d e M e rcú r i o e o t e m p o d e V u l ca n o , u m a men sagem de imediatismo obtida à força de pacientes e minucio s os a ju s ta m e n t os ; u m a in t u i ç ã o i n s t a n t â n e a q u e a p e n a s form u lada adquire o caráter definitivo daquilo que não poderia ser
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Com ecei esta co n fer ên cia contan d olhes uma história; permitam qu e a ter m in e co m ou tra. É uma história chinesa. Entre as múltiplas virtudes de ChuangTsê estava a habilidade para desen har . O rei ped iulh e que desenhasse um caran guejo. ChuangTsê disse que para fazêlo precisaria de cinco anos e uma casa co m d oz e em p regad os. Passados cinco anos, não havia sequ er co m eça d o o d esen ho. “ Preciso de outros cinco anos”, disse ChuangTsê. O rei concordou. Ao completarse o décimo ano, ChuangTsê pegou o pincel e num instante, com um ú n ico gesto , d esen h ou um carangu ejo, o mais perfei to caranguejo que jamais se viu.
3 E X A T ID Ä O
A precisão para os antigos egípcios era simbolizada por uma pluma que servia de peso num dos pratos da balança em que se pesavam as almas. Essa pluma levíssima tinha o nome de Maat, d eu sa d a b ala n ça . O h ier óg lifo de Maat indicava igual mente a u nid ad e d e co m p rim en to — os 33 cm do tijolo unitá rio — e tam bém o to m fu nd am ental da flauta. Estas in for m a çõe s p ro v êm d e uma conferência de Giorgio de Santillana sobre a precisão dos antigos no observar dos fenômenos celes te s, co n fer ên cia qu e ou vi na Itália em 1963 e que exerceu sobre mim profunda influência. Desde que aqui cheguei, ten h o p en sa d o freq ü en te m en te em Santillana, por ter si do ele meu cice r o n e em Massachu setts quando de minha pri meira visita a es te p aís em 1960. Em lembra nça de sua amiza de, abro esta conferência sobre a exatidão na literatura invocando o n om e d e M aat, a d eu sa d a balança. Tanto mais que Balança é meu signo zodiacal. Antes de mais nada, procurarei definir o tema. Para mim, exatidão quer dizer principalmente três coisas: 1) um projeto de obra bem definido e calculado; 2) a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis; tem os em ita lian o u m ad jetiv o qu e não existe em inglês, ‘icastico” , d o g reg o ei/ cacm/ cos;
SEIS PROIVSIAS.
3) uma linguagem qu e seja a m ais p r e cisa p ossív el co léxico e em sua capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação. Por que me vem a n ecessid ad e d e d efe n d e r valores que a muitos parecerão simplesmente obvios? Creio que meu primeiro impulso d ecorra d e u m a h ip er se n sib ilid a d e ou alergia pes soal: a linguagem me p arece sem p re u sa d a d e m o d o aproximativo, casual, descuidado, e isso me causa intolerável repúdio. Que não vejam nessa reação m inh a u m sin al d e int oler ân cia para com o próximo: sinto um rep ú d io a ind a m a ior qu an d o me ou ço a mim mesmo. Por isso p r o cu r o falar o m ín im o possível, e se prefiro escrever é qu e, es cr e v e n d o , p o s s o em en d ar cada frase tantas vezes quanto ache necessário para chegar, não digo a me sentir satisfeito com m in h a s p a la v ra s, m as p elo menos a eliminar as razões de in satisfação d e q u e m e p o ss o da r conta. A literatura — quero dizer, aq u ela q u e r e sp o n d e a essas exigências — é a Terra Prometid a em q u e a lin g u a g em se to rn a aquilo que na verdade deveria ser. Às vezes me parece que u m a e p id em ia p es tilen ta tenha atin gido a humanidade inteira em sua faculdade mais característica, ou seja, no uso da palavra, co n sis tin d o es sa p es te da lingua gem numa perda de força co g n o scitiv a e d e im ed iaticida d e, co mo um automatismo que ten d esse a n ive lar a e xp re ssã o em fór mulas mais genéricas, anônimas, abstratas, a diluir os significados, a embotar os pontos expressivos, a extinguir toda centelha que crepite no en con tro d as p alav ra s c o m n ov as circuns tâncias. Não me interessa aqui indagar se as origens dessa epidemia devam ser pesquisadas n a p o lítica , n a id eo log ia, n a unifor midade burocrática, na ho m og en eiza ção d os m a s s - m e d i a ou na difusão acadêm ica d e um a cu ltu ra m éd ia. O q u e m e interes
EXATIDÃO m
Gostaria d e acrescen ta r não ser apenas a linguagem que me parece ating ida p o r essa p estilên cia. As imagens, por exemplo, também o fora m . Vivem os sob uma chu va ininterrupta de ima gens; os m e d i a todopoderosos não fazem outra coisa senão transformar o mundo em imagens, multiplicandoo numa fantasmagoria de jogos d e esp elh os — imagens que em grande parte são destituídas d a n ece ssid ad e intern a que deveria caracterizar toda imag em, co m o for m a e co m o significado, como força de imporse à ate n çã o, co m o riqu eza de significados possíveis. Grande parte dessa nuvem de imagens se dissolve imediatamente como os so n h o s q u e n ão d eixam traços na memória; o que não se dissolve é uma sensação de estranheza e malestar. Mas talvez a inconsistência não esteja somente na linguagem e nas im agen s: está n o p róp rio m und o. O vírus ataca a vi da das pessoas e a história das nações, torna todas as histórias informes, fortuitas, confusas, sem princípio nem fim. Meu mal estar ad vém da p er d a d e form a qu e constato na vida, à qual pro curo opor a única defesa que consigo imaginar: uma idéia da literatura. Posso, p ois, d efin ir tam bém negativamente o valor que me proponho defender. Resta ver se com argumentos igualmente convincentes não se possa também defender a tese contrária. Por exem p lo, G ia co m o Leop ar d i sustentava que a linguagem será tanto mais poética quanto mais vaga e imprecisa for. (Quero observar de passagem que o italiano, tanto quanto sei, é a ú n ica língu a e m q u e “ vago” significa também gracioso, atraente; p ar tin d o d o sign ificad o original (wandering), a palavra “vago” traz consigo uma idéia de movimento e mutabilidade, qu e se a sso cia em italian o tanto ao incerto e ao indefini do quanto à graça e ao agradável.) Para pôr à prova meu culto à exatidão, quero reler, mais para mim m esm o, as passa gen s d o Z ibaldone em que Leopardi
a
St IS PROPOSTAS.
perche destano idee vast e, e indef init e... (25 Settembre 1821). Le parole notte. notturno ec ., le descriz io ni della not t e sono poe ticissime, perché la nott e co n fo nd end o gli oggett i, Vanim o non ne concepisce che un im m agine va ga, in di st in t a, incompleta, si di essa che di quant o essa con t iene. Cosi o s c u r i t à , p r o f o n d o , ec. ec. (28 Settembre 1821). As palavras "lon ge” , “a n tigo” e sim ilares s ão m u ito poéticas e agradáveis p orqu e de sp ertam id éias v ast as e i n d efin id as... [...] As palavras “n oite", "n otu rn o” e tc, e as d es criçõ es d a n oite são mui to p o ét ica s p o r q u e a n o i te , co n f u n d i n d o o s o b j e t o s , s ó p erm ite ao espírito conceber uma imagem vaga, indistinta; incompleta, tanto dela quanto das coisas qu e ela co n té m . D a m esm a forma "obscuridade”, “profundo” etc.
As razões invocadas po r Leop ard i e n co n tr a m p erfeita ilus tração em seus versos, o qu e lhes co n fer e a au to rid a d e d os fatos comprovados. Continu and o a folh ea r o Z i b a l d o n e à p rocu ra de outros exemplos de sua p aixão, eis q u e e n co n tr o u m a no ta mais longa que de hábito ond e há um v erd ad eiro e le n co d e situações propícias a suscitar no espírito a sensação do “indefinido”: ...la luce dei sole o della lu na, v edu t a in lu ogo do v ’essi non si vedano e non si scopra la sorgent e della lu ce; un lu ogo solamente in parte illuminato da essa lu ce; il rif lesso d i d et t a luce, e i vari effetti materiali che ne deriv an o; il p en et ra re d i det t a luce in luoghi dov 'ella divenga incert a e im ped it a, e n o n ben e si distin gua, come attraverso un cann eto , in u n a selv a, p er li balconi socchiusi ec. ec.; la detta luce ved ut a in lu ogo, oggett o ec. dov ’ella v enga a batiere; in un ándit o v edut o a l d i d en t ro o al di fuori, e in una loggia parimente ec. quei luoghi dove la luce si con fon de ec. ec. colle ombre, com e sot t o u n p o rt ico , in una loggia le nsile fr le rupi e i bu i in alle sui c lli
EXATIDÃO
menome circost anz e giu ngo no alia nostra vista, udito ec. in modo incerto, mal distinto, imperfeito, incompleto, ofuordeU'ordimrioec.
... a luz do sol ou da lua, vista nu m lugar de onde não se possa vê los ou não se p ossa d esco br ir a fonte luminosa; um lugar somente em parte ilu minad o p or essa luz; o reflexo dessa luz, e os vários efei tos materiais qu e d ela re sultam ; o penetrar dessa luz em lugares onde ela se torne incerta e impedida, e mal se possa distinguila, como através d e u m canavial, u ma floresta, uma porta de varanda entreaberta etc. etc.; a dita luz vista num lugar ou sobre um objeto etc. em que ela não en tr e nem incida diretamente, mas que aí surja difusa ou rebatid a, v ind a d e ou tro lugar ou d e um objeto qualquer etc. em que ela se tenh a r efletid o; nu m vestíbulo, visto do exterior ou de d entr o, o u aind a n u m alpen dre et c.. todos esses lugares em que a luz se con fu n d e etc. etc. com as sombras, como sob um pórtico, uma varand a elevad a e p ênsil, em meio aos penhascos e des penhadeiros, ou nu m vale, sob re as colinas vistas da parte da sombra, de mod o a q u e estejam dourad os os cimos; o reflexo que produz, por e xem p lo, um vid ro colorid o sobre os objetos em que se reflitam os raios qu e p assam através d esse mesmo vidro; todos es ses objetos, e m su m a, qu e p or diversas circunstâncias materiais e ínfimas se ap resen tam à no ssa vista, ouvido etc. de maneira incerta, imperfeita, incompleta ou fora do ordinário etc. Eis o que Leopardi exige de nós para podermos apreciar a beleza d o va go e d o in d ete rm in ad o! Para se alcançar a imprecisão desejada, é necessário a atenção extremamente precisa e meticulosa qu e ele a p lica n a com p os ição de cada imagem, na definição m in u ciosa d os d eta lhes, na escolha dos objetos, da ilum inação, d a a tm o sfer a . A ssim Leopard i, qu e eu havia escolhido com o co n tr a d ito r ide al d e m inha apologia da exatidão, acaba se rev elan d o u m a teste m u n h a d ecisiva a meu favor... O poeta do vago só pode ser o poeta da precisão, que sabe colher a sen saçã o m ais su til co m olh os , ou vidos e mãos prontos
SEIS PROPOSTAS.
É piacevolissima e sent im ent ali ss im a la s t essa lu ce veduta nelle citta, dov 'ella éfras t aglia t a da lle o m bre, d o v e lo scuro contrasta in molti luoghi col chiaro, dove la luce in molte partí degrada appoco appoco. com e su i tetti, do v e al cu n i l uo ghi riposti nascon dono la vista dell 'astro lum in oso ec. ec. A qu est o p ia cere contri buisce la v arietá, l'in certez z a, il n o n v ed er tutt o, e ilpotersiper cid spaz iare coll ’im m agin az io ne, rig u a rd o a ció ch e non si vede. Símilmente dico dei sim ili effett i, ch ep ro d u co n o g li alberi, ifiia ri, i colli, i pergolati, i caso lari, i p a glia i, le in eguagli an z e del suolo ec. nelle campagne. P er lo cont rario u n a v ast a e tutta uguate pianura, dove la luce si spaz i e d iffo n d a s en z a div ersitá, né os tacolo; dov el'occhio si p erd a ec. é p u ré pi acev ol is sim a, p er l’idea indefinita in estensione, che deriva de tal veduta. Cosi un cielo senza nuvolo. Nei qua l p rop os it o os serv o ch e il p ia cere della va rietá e dell'incert ezz apreva le a qu ello d el l ’a p p a rent e infinita, e dell'immensa uniformitá. E quindi un cielo variamente sparso di nuvoletti, éf o rse p iú p iacev ol e d i u n cielo affat t o puro; e la vista del cielo éfo rse m eno p ia cev o le d i qu ell a dell a térra, e delle compagne ec. perché m eno v aria (ed a n ch e m en o simile a noi, meno propria di noi, m eno a p p a rt en en t e a li e cose nost re ec.). Irt fatti, ponet ev i supin o in m o do ch e v oi n o n v ed iat e se non il.cie lo, separato dalla térra, v oi p ro v eret e u n a sen sa z io n e molto me no piacevole che cons ideran do u n a ca m p a gn a , o considerando il cielo nella sua corrisp on den z a e rela z io n e colla térra, ed uni tamente ad essa in un m edesim o p u n t o d i vista. E piacev olissima an cora, p e r le so p ra d d et t e cagioni, la vista di una molt itudine in nu m erabi le, co m e del le stelle, o di perso ne ec. un mot o m olt iplice, i ncert o, co n fu s o , irrego la re, disordi nato, un ondeggiamento v ago ec., che Va n im o no np os sa deter minare, né concepire defin it am ent e e d ist int am ent e ec., come quello di una folla, o di u n gra n n u m ero d i fo rm ich e o del tria re agitato ec. Sím ilmente u na m ol t it u di ne d i su o n i irregolarmen te mescolati, e no n di st in gui bi li l ’u n o d ell 'a lt ro ec. ec. ec. (20
EXATIDÃO
escuridão contrasta em muitos lugares com o claro, onde a luz em muitas partes se degrada pouco a pouco, como sobre os telhados, onde alguns lugares recônditos ocultam a vista do astro luminoso etc. e tc. A ess e p ra zer con trib u em a variedade, a incer teza, o não se ver tudo, e poderse no entanto dar uma latitude à imaginação co m re sp eito àq u ilo qu e n ão se vê. Da mesma forma refirome aos efeitos similares que produzem as árvores, os alinhamentos, as colinas, os parreirais, as choupanas, as palhoças, as d esigu ald ad es d o s o lo et c. n o cam p o. Inversamente, uma vasta p lanu ra u n ifor m e, em qu e a luz se espraia e difunde sem variedades ou o b stá cu los , on d e a vista se perde etc. é igualmente agr ad abilíssim a, p ela id éia d e e xten sã o ind efinida que tal vista p rop orciona. D a m esm a form a, u m céu sem nuvens. A esse pro pósito ob ser v o q u e o p ra zer da variedad e e da incerteza prevale ce sobre o da aparente infinitude e o da imensa uniformidade. Daí que um céu variadamente esparso de pequenas nuvens será talvez mais ag ra d áv el d e se v er qu e u m céu comp letamente lim po; e a vista d o céu ter á talvez m en os en canto que a da terra, do campo etc. p or q u a n to m en os variada (e também menos seme lhante a nó s, m en o s íntim a, m en os ligada às nossas coisas etc.). Na verdade, se vos estirardes de costas de modo a que não possais ver senão o céu, separado da terra, provareis uma sensação muito menos agradável do que se estivésseis contemplando um campo, ou considerando o céu em sua correspondência e relação com a terra, e a ela unido num mesmo ponto de vista. Cheia d e en ca n to igu alm en te, pela razão supradita, é a vista que se tem de uma profusão inumerável, de estrelas, por exemplo, ou de pessoas e tc., agitad as n u m m ovimen to variado, incerto, confuso, irregular, d eso rd en a d o, um a on d u lação vaga etc. que o es pírito não p od e d ete rm ina r nem con ceb er de maneira distinta ou d efinida e tc ., co m o o d e u m a m u ltid ão, ou de um formigueiro, ou de um mar agitado etc. Da mesma forma, uma profusão de sons irre gu larm en te co m bin a d os e n ão distinguíveis uns dos ou-
SEIS PROPOSTAS.
Protegido por uma sebe que não d eixa v er sen ão o céu , o poeta sente ao mesmo tempo medo e prazer ao imaginarse nos espaços infinitos. O poema está d atad o d e 1819; as no ta s d o Zibaldo ne que acabei de ler foram escritas d ois anos mais tard e e provam que Leopardi continuava refletindo sobre os problemas que a composição de L 'infinito havia su scitad o n ele. Em suas reflexões, dois termos aparecem con tinu am ente p osto s em confron to: indefinido e infinito. Para um hed on ista infeliz, co m o era Leopar di, o desconhecido é sempre mais atraen te qu e o conh ecido; só a esperança e a imaginação podem servir de consolo às dores e desilusões da experiência. O h om em en tã o p rojet a seu d esejo no infinito, e encontra prazer apenas quando pode imaginálo sem fim. Mas como o espírito humano é incapaz de conceber o infinito, e até mesmo se retrai esp an tado d ian te da sim p les idéia, não lhe resta senão contentarse com o in d efin id o, co m as sensações que, mesclandose umas às ou tras, criam u m a im p ressão de ilimi tado, ilusória mas sem dúvida agrad ável. “ E il nau fragar m ’è dol ce in questo mare” [“E doce é naufragarme nesse mar”]: não é apenas no célebre verso final d e L ’infinit o q u e a d oçu ra prevale ce sobre o espanto, pois o qu e os v er sos tran sm item através da música das palavras é semp re u m sen tim en to d e d oçu ra , mesmo quando descrevem uma experiência angustiosa. Ocorreme estar explican d o Leop ard i ap en as em termos de sensações, como se aceitasse a imagem que ele pretende dar de si mesmo: a de um sensualista do século xvin. Na verdade o problema que Leopard i en fren ta é esp ecu lat iv o e metafísico, um problema que domina a história da filosofia desde Parmê nides a Descartes e Kant: a relação entre a idéia de infinito como espaço absoluto e tem p o a bs olu to , e a n oss a cognição empírica do espaço e d o temp o. Leop ard i p ar te, p ois, d o rigor abs
EXATIDÃO
quais oscilam as co n je ctu r a s filos óficoirôn icas d e Ulrich, no imenso e mesmo assim inacabado romance de Robert Musil, per M ann o h n e Eigen s ch a ft en [O homem sem qualidades]: ¡st nun da s beobacht et e Elem ent die Exakt heit selbst, hebt man es heraus und lässt es sich entwickeln, betrachtet man es als Denk gew ohnheit u n d Leb en shalt ung u n d lässt es seine beispielgebende Kraft a u f alles ausw irken , was mit ihm in Berührung kommt, so w ird m an z u einem Menschen geführt , in dem eine para doxe V erb in d u n g v on Genauigk eit und Unbestimmtheit statt findet. Er besit z t j en e unbestechliche gew ollte Kaltblütigkeit , die das T em p eram ent d er Exak t heit darstellt; über diese Eigens chaft hinaus ist aber alles andere unbestimmt, (cap. 61) ... Se o elem en to ob se rv ad o for a p rópr ia exatidão, se o isolarmos e o de ixarmos d ese n vo lve r, se o considerarm os com o um hábito do p en sam en to e u m a atitu d e de vida, e permitirmos que sua for ça exemp lar aja sob re tu d o o qu e entra em contato com ele, che garemos en tão a u m h om em n o qual se opera uma aliança parado xal de p recis ão e in d et er m in açã o. Ele possuirá esse sangue frio de liberado, incorruptível, que é o próprio sentimento da exatidão; mas, afora tal qualidade, todo o resto será indeterminado.
O ponto em que Musil mais se aproxima de uma proposta de solução é quando recorda a existência de “problemas matemáticos qu e n ão ad m item uma solu ção geral, mas antes soluções particulares qu e, com bin ad as, se ap roximam da solução geral" (cap. 83), e ad m ite qu e tal m ét od o poderia ser aplicado à vida humana. Muitos anos mais tarde, outro escritor em cuja mente coabitavam o d em ôn io da exa tid ão e o da sensibilidade, Roland Barthes, indagaria sobre a possibilidade de concebermos uma ciência do ú n ico e d o irrep etível (La cham bre claire). “Pourquoi n Yauraitil pas, en qu elq u e sorte, une Science nouvelle par ob jet? Une Mat hesis sin gu la ri s (et no n plus universalis)T ’ [Por que não haveria, de certa forma, uma ciência nova para cada objeto? Uma M t he i i l ri (e não mais universalis?)).
S/'/S PROPOSTAS.
Se Ulrich logo se mostra resignado diante das derrotas para as quais seu am or à exatid ão n ece ss a ria m en te o arrasta, já outro grande personagem intelectu al d e n ossa ép oca , Monsieur Teste, de Paul Valéry, não tem dúvidas quanto ao fato de que o espírito humano se possa realizar d a for m a m ais exata e rigo rosa possível. E se Leopard i, p oeta da d o r d o v ive r, dá provas da máxima exatidão quando designa as sensações indefinidas que causam prazer, Valéry, poeta do rigor impassível da mente, dá provas da máxima exatid ão co lo ca n d o seu personagem diante da dor e fazendoo com b a ter o so frim en to físico por meio de exercícios de abstração g eo m ét rica . J ai, dit il,... p as gra n d ’chose. J ’a i... u n d ix ièm e d e seconde qui se m ontre... At t endez ... I Iy a des in st an t s o u m o n corps s ’illumi ne... C ’est très curieux. J y’ vois t out à co u p en m o i ... j e distingue les profondeurs des couches d e m a ch a ir; et j e sen s des zones de douleur, des anneaux, despô les, des a igret t es de do ul eur. Voyez vous ces figures vives? cett e géo m ét rie d e m a s o u ff r an ce? II y a de ces éclairs qui ressemblent t ou t à f a i t à d es idées. Ils fo n t com prendre, — d ’ici, jusque là... E t p o u rt a n t ils m e lai ssent incertain. Incertain n ’es t pas le m ot ... Q u a n d cela v a v enir, j e trouve en moi quelque chose de conf us ou d e d iff u s. II se f a i t dans mon êt redesendroits ... brum eux, il y a d es ét end u es q u i fo n t leur ap parit ion. A lors,jepren ds d ans m a m ém o ire u n e quest ion, un pro blème quelconque... Je m ’y en fon ce. f e co m p t e des gra ins de sable. .. et, tantque j e les v ois .., — M a d o u l eu r gro ssissant e meforce à Vobserver. J'y p ense! — j e n ’a t t en d s q u e m on cri,... et dès que j e l ’ai ent endu — I ’objet, le t errible obj et , dev enan t plus pe tit, et encore plus petit , se dérob e à j n a v ue int érieure... Que sinto? — disse — nad a de g ra ve . S in to ... n u m d écim o de se
EXATIDÃO
Estão v en d o e ssa s figu ras viv as? essa geometria do meu sofrimen to? Há relâmpagos que parecem de fato idéias. Permitem com p reen d er, — d aq u i, até ali... E n o entan to me deixam incerto. In certo n ão é bem a palavra... Qu ando a coisa está para vir, sinto em mim algo de confuso e difuso. Criam-se no meu ser certos locais... so m b ri o s, h á cer ta s exte n sõ es qu e se delineiam. Então extraio da m em ór ia algu m a ind agação, um problema qualquer... e nele m e a p ro fu n d o. C on to g rãos de areia... tantos quanto con sigo... — Mas a d o r q u e au m en ta exige toda a minha atenção, Concentro-me! — Fico só à espera do gemido... e, logo que o ou ço — o objeto, o terrível objeto, torn an do-se menor cada vez mais, acaba por desaparecer de minha visão interior...
Paul Valér y é a p er so n alid ad e que em nosso século melhor definiu a p oesia co m o te n sã o para a exatidão. Refirome principalmente à sua obra de crítico e ensaísta, na qual a poética de exatid ão se g u e u m a linh a qu e d e Mallarmé remonta a Bau delaire, e de Baudelaire a Edgar Allan Poe. Em Edgar Allan Poe, no Poe visto por Baudelaire e Mallarmé, Valéry v ê “ le d ém o n d e la lucidité, le génie de lanalyse et 1’in ve n teu r d es co m b in a iso n s les plus neuves et les plus sé duisantes de la logique avec limagination. de la mvsticité avec le calcul, le p sy co lo g u e d e 1’exce p tion , 1’ingénieur littéraire qui app rofond it et u tilise to u te s les ressou rces de 1’art..." [o demô nio da lucidez, o gênio da análise e o inventor das mais novas e sedutoras co m b in a çõ e s da lóg ica com a imaginação, do mis ticismo com o cá lcu lo , o p sicólo g o da exceção, o engenheiro jliterário qu e a p r o fu n d a e utiliza to d os os recursos da arte.J. Assim se exp rim e Valéry n o ensaio Situation cie Baudelaire, que tem para mim o valor de um manifesto poético, juntamente com outro ensaio seu sobre Poe e a cosmogonia, a propósito de E u r e k a . Em seu ensaio sobre E u r e k a , de Poe, Valéry interroga se sobre a co sm og on ia, g ên er o literário mais que especulação científica, e realiza uma brilhante refutação da ideia do universo,
SEIS PROPOSTAS.
gem do universo traz em si. Tam b ém h á aq u i, co m o em Leo pardi, a atração e repu lsão p elo in fin ito... T a m b ém há aqui as conjecturas cosm ológicas p rom ov id as a um g ên er o literário, que Leopardi se divertia a praticar em certos ensaios “apócrifos” com o o Fra m m en t o a p o cri fo d i S t r a t o n e d a L a m p s a c o (“Fragmento apócrito de Estrátão d e Lã m p sa co” ), so b re a origem e principalmente sobre o fim d o g lob o ter re str e, q u e, d ep ois de se achatar e esvaziarse com o o a n el d e Satu rn o , p erd ese no espaço e vai incend iarse n o Sol; ou n o a p ó cr ifo talm ú d ico, o Cântico dei gallo silv estre, e m q u e o u n iv e r s o in t e ir o s e extin gue e desaparece: “Un silenz io n u d o, e u n a q u iet e a ltissim a, em pieranno lo spazio im m enso. Cosi q u es to a rc a n o m irab ile e spa ventoso dell esistenza universale, innanzi di essere dichiarato né inteso, si dileguerà e p erd era ssi” [Um silê n cio n u e a p az mais profunda encherão o espaço imenso. E assim, o admirável e terrificante arcano da existência universal, longe de ser manifesto e cump rido, se desv an ecerá e p erd er seá]. D on d e se vê que o terrificante e inco n ceb ível se ap licam n ã o ao v ácu o infi nito, mas à existência universal.
Esta conferência não se d eixa con d u zir n a d ireção qu e me havia proposto. Eu me p rop u n ha falar d a ex a tid ã o , n ão d o infi nito e do cosmo. Queria lhes falar d e m in h a p re d ileçã o pelas formas geométricas, pelas simetrias, pelas séries, pela análise combinatória, pelas p rop orções n u m ér icas , e xp lica r m eus es critos em fu nção de minha fid elid ad e a u m a id éia d e lim ite, de medida... Mas quem sabe não será p re cisa m en te essa idéia de limite que suscita a idéia das coisas q u e n ã o têm fim , com o a sucessão dos nú m eros inteiros ou as ret as e u clid ian a s?... Em vez de lhes contar com o escrevi aqu ilo q u e e scr ev i, ta lvez fosse mais interessante falar d os p roblem as q u e ain d a n ã o reso lvi, qu e não
EXATIDÃO m
uma ou tra cois a d ifer en te , ou seja, não uma coisa determinada mas tud o o qu e fica ex clu íd o daqu ilo que deveria escrever: a relação entre esse argumento determinado e todas as suas variantes e alternativas possíveis, todos os acontecimentos que o tempo e o espaço possam conter. É uma obsessão devorante, destruidora, suficiente para me bloquear. Para combatela, procuro lim itar o ca m p o d o q u e pretend o dizer, depois dividi lo em cam p os ain d a m ais limita d os, d epois subdividir também estes, e assim p o r d ian te. Urna ou tra vertigem então se apodera de mim, a do detalhe do detalhe do detalhe, vejome tragado pelo infinitesim al, p e lo infinita m en te mínimo, como antes me dispersava no infinitamente vasto. A afirm ação d e Fla u ber t, “ Le bon Dieu est dans le détail . eu pod eria e xp lica r à lu z da filosofia d e Giordano Bruno, gran de cosmólogo visionário, que vê o universo como sendo infinito e co m p o st o d e inu m erá ve is mund os, embora não po^a afirmar qu e e le seja “ to ta lm en te infinito " porque cada uní de les é em si fin ito ; já “ to ta lm en te infin ito" é Deus. "porque ota totalmente presente no mundo inteiro, e infinita e totalmente em cada urna de suas partes". Entre os livros italianos destes últimos anos, o que mais li, reli e so b re o q u al m ais m ed itei foi a Bren su tria del! 'mjmito, de Paolo Zellini (Adelphi, Milão, 1980). que abre com a la mosa in v ectiv a d e Bo r g es con tr a o infinito, conceito que cor rompe e alte ra to d o s o s d em a is", e prossegue passando em re vista tod as as a r g u m en ta çõ es sob re o tema, para chegar final mente a uma inversão do infinito, cuja extensão se dissolve na densidade do infinitesimal. Esse liame entre as escolhas formais da composição litera ria e a necessidade de um modelo cosmológico (ou. antes, de um qu ad ro m ito ló g ico ger al), cre io que se encontra presente mesmo n os a u to re s q u e n ão o d eclaram explicitamente 0 gos to da siçã et riz te de que pode t
SEIS PROPOSTAS.
gem do universo traz em si. Tam b ém h á a qu i, com o em Leo pardi, a atração e repu lsão p elo in fin ito ... Ta m b ém há aqui as conjecturas cosm ológicas p ro m ov id as a u m g ên er o literário, que Leopardi se divertia a praticar em certos ensaios “apócrifos” como o Frammento apocrifo d i St rato ne da Lam psaco (‘‘Fragmento apócrito de Estrátão d e Lâ m p sa co” ), so b re a origem e principalmente sobre o fim d o g lob o ter re str e, qu e, depois de se achatar e esvaziarse com o o an el d e Satu rn o, perd ese no espaço e vai incendiarse no Sol; ou no apócrifo talmúdico, o Cântico dei gallo silv estre, em qu e o u n iverso inteiro se extingue e desaparece: "Un silenzio n u d o, e u n a q u iet e altissima, em pieranno lo spazio immenso. Cosi questo arcano mirabile e spa ventoso dell'esistenza universale, innanzi di essere dichiarato né inteso, si dileguerà e per d er assi” [Um silên cio nu e a paz mais profunda encherão o espaço imenso. E assim, o admirável e terrificante arcano da existência universal, longe de ser manifesto e cumprido, se desvanecerá e perderseá]. Donde se vê que o terrificante e in con ceb íve l se a p licam n ão ao vácuo infi nito, mas à existência universal.
Esta conferência não se deixa conduzir na direção que me havia proposto. Eu me p rop u n h a falar d a e xa tid ão , n ão do infi nito e do cosmo. Queria lhes falar de minha predileção pelas formas geométricas, pelas simetrias, pelas séries, pela análise combinatória, pelas proporções numéricas, explicar meus escritos em função de minha fidelidade a uma idéia de limite, de medida... Mas qu em sabe n ão ser á p re cisa m en te essa idéia de limite que suscita a idéia das coisas que não têm fim, como a sucessão dos números inteiros ou as retas euclidianas?... Em vez de lhes contar como escrevi aquilo q u e e scr ev i, talvez fosse mais interessante falar dos problemas que ainda não resolvi, que não sei como resolver e que tipo de coisa eles me levarão a escrever... Às vezes procuro con cen tr ar m e na h istór ia que gostaria
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uma outra coisa d ifer en te, o u seja, n ão u m a coisa determ inad a mas tudo o que fica excluído daquilo que deveria escrever: a relação entre esse argumento determinado e todas as suas variantes e alternativas possíveis, todos os acontecimentos que o tempo e o espaço possam conter. É uma obsessão devorante, destruidora, suficiente para me bloquear. Para combatêla, procuro lim itar o cam p o d o q u e p rete n d o d izer, depois dividi lo em cam p os aind a m ais lim itad os, d ep ois subd ividir também estes, e assim p o r d ian te. Um a ou tra v ertigem então se apodera de mim, a do detalhe do detalhe do detalhe, vejome tragado pelo infinitesimal, pelo infinitamente mínimo, como antes me dispersava no infinita m en te va sto. A afirm ação d e Flau be rt, “ Le bo n Dieu est dans le d étail” , eu poderia exp licar à lu z d a filoso fia d e Giord an o Bru no, grande cosm ólogo v ision ár io, q u e vê o u n iverso com o send o infi nito e composto de inumeráveis mundos, embora não possa afirmar qu e ele seja “ to ta lm en te in fin ito” p orqu e cada um deles é em si fin ito; já “ to ta lm en te in fin ito ” é Deus, “ p orqu e está totalmente pr esen te n o m u n d o inteiro, e infinita e totalmente em cada uma de suas partes”. Entre os livros italianos destes últimos anos, o que mais li, reli e so b re o qu al m ais m ed itei foi a B rev e st o ri a del i 'in fini to, de Paolo Zellini (Adelphi, Milão, 1980), que abre com a famosa invectiva d e Borg es co n tr a o in finito, “ conceito que cor rompe e altera to d os os d em ais” , e p rossegu e passand o em revista todas as argumentações sobre o tema, para chegar finalmente a um a inv er sã o d o in finito , cu ja exten são se dissolve na densidade do infinitesimal. Esse liame entre as escolhas formais da composição literária e a necessid ad e d e u m m od elo cos m ológico (ou, antes, de um quadro mitológico geral), creio que se encontra presente mesmo nos au tores qu e n ão o d eclaram explicitam ente. O gos-
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temporànea. O un iverso d esfaz se n u m a n u v em d e calor, pre cipitase irremediavelmente nu m ab ism o d e e n tr o p ia, mas no interior desse processo irrev ersível p o d em ap ar ecer zonas de ordem, porções do existente qu e te n d em p ara u m a forma, pontos privilegiados nos quais podemos perceber um desenho, uma perspectiva A obra literária é um a d ess as m ín im as p or ções nas quais o existente se cristaliza n u m a for m a, a d q u ire um sentido, que não é nem fixo, nem d efin id o, n em e n r ije cid o num a imo bilidade mineral, mas tão vivo q u a n to u m org a n ism o . A poesia é a grande inimiga do acaso, e m b o ra se n d o ela tam bém filha do acaso e sabendo que este em ú ltim a in st â n cia gan ha rá a partida: 'T n coup de dés jam ais n ’a b olir a le h a sa rd ” [Um lance de dados jamais abolirá o acaso]. É nesse quadro que se in scr ev e a re v a lor iz a çã o d os pro cessos lógicogeom étricom etafísicos q u e s e im p ôs nas artes fi gurativas dos primeiros d ecên ios d o s éc u lo , a n tes d e atingira literatura: o cristal pod eria servir d e e m b le m a a u m a constelação de poetas e escritores muito diversos entre si como Paul Valérv na França, Wallace Stevens nos Estados Unidos, Gott fried Benn na Alemanha, Fern an d o Pes so a e m Po rtu ga l, Ramón Gómez de la Serna na Espan ha, M assim o Bon te m p elli na Itália, Jorge Luis Borges na Argentina. 0 cristal, com seu facetad o p rec iso e su a cap acid ad e de re fratar a luz, é o mod elo de p er feição q u e sem p re tive por emblema, e essa pred ileção se to rn a a in d a m ais sign ificativ a quando se sabe que certas p ro p ried ad es da fo rm a çã o e d o crescimento dos cristais se assemelham às dos seres biológicos mais elementares, constituindo q u ase u m a p o n te en tr e o m und o mi neral e a matéria viva. Num desses livros cien tíficos em q u e co st u m o m eter o na riz à procura de estímu los para a im a g in a ção , acon teceu m e ler recentemente que os mo d elos pa ra o p ro ces so d e form ação dos
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da incessante ag itaçã o in te rn a )” . Extra io esta citação d o prefácio de Massimo Piat tclliPa lm ar ini ao livr o d o d ebate entre Jean Piaget e Noam Chomsky, no Centre Royaumont (Théories du language Théories cie Tapprenlissage, Hd. du Seuil, Paris, 1980). As imagens contrapostas, da chama e do cristal, foram usadas para visualizar as alternativas que se apresentam á biologia, passandose daí às teorias sobre a linguagem c sobre o processo de aprendizagem. Vamos deixar de lado, por enquanto, as implicações que possa hav er p ara a filoso fia d a ciên cia tan to das posições de Pia get, partidário do princípio da “ordem do rumor”, ou seja, da chama, e as de Ch om sk y , p ar tid ár io d o “selforganizingsystem”, ou seja, do cristal. O
q u e m e i n t e r e s s a a q u i é a j u s t a p o s i çã o d e s sa s d u as figu
ras, c o m o n u m d a q u e l e s e m b l e m a s d o s é cu l o xv i, d e q u e lh es falei n a c o n f e r ê n c i a a n t e r i o r . C r i s ta l e ch a m a , d u a s f or m a s d a b eleza p e r f ei t a d a q u a l o o l h a r n ã o c o n s e g u e d e s p r e n d e r-s e, d u as m an eiras d e c r e s c e r n o t e m p o , d e d e s p e n d e r a m a té ria ci rcu n s t an te, d o i s sí m b o l o s m o r a i s , d o i s a b s o l u t o s , d u a s ca te g or ia s p ara cl as si fi ca r f a t o s , i d é i a s , e s t i l o s e s e n t i m e n t o s , Fiz m e n çã o ai n d a há p o u co a u m p a r t i d o d o cr i s t a l n a li te r a tu r a d e n o s s o s écu l o; creio que se poderia organizar igualmente uma lista dos parti d ários d a c h a m a . Q u a n t o a m i m , s e m p r e m e co n s id e r ei m e m b ro d o p a r t i d o d o s c r is t a i s , m a s a p á g i n a q u e ci te i n ã o m e p e r mite e s q u e ce r o v a l o r d a ch a m a e n q u a n t o m o d o d e s er, form a de e xi s tê n c i a. A s s im t a m b é m g o s t a r i a q u e t o d o s o s q u e se co n sid eram s e q u a z e s d a c h a m a n ã o p e r d e s s e m d e v is ta a s er en a e difícil lição d o s cris ta is .
Outro símbolo, ainda mais complexo, que me permitiu maiores p ossibilid ad es d e exp rim ir a tensão entre racionalida-
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porque consegui con stru ir um a estru tu ra faceta d a e m qu e cada texto curto está próximo dos outros numa sucessão que não implica uma conseqüencialidade ou uma hierarquia, mas uma rede dentro da qual se p od em traçar m ú ltip los p ercu rso s e ex trair conclusões multíplices e ramificadas. Em Le città invisibili ca d a c o n c e i t o e c a d a v a l o r se ap re senta dúplice — até mesmo a exatidão. A certo momento Kublai Cã personifica a tend ên cia r acion aliz an te, geo m etr iza n te ou algebrizante do intelecto, e red u z o co n h e cim e n to de seu im pério a uma comb inatoria das p eças d e u m tab u leir o d e xadrez; as cidades que Marco Polo lhe d es crev e co m gr an d e abund ân cia de detalhes são rep resentad as p o r ele co m o tal ou qual dis posição das torres, bispos, cavalos, rei, rainha, peões sobre as casas brancas e pretas. A con clu sã o fin al a q u e o leva essa ope ração é que o objeto de suas conquistas não é outro senão o quadrado de madeira sob re o qu al cad a p e ça rep ou sa; um em blema do nada... Mas nesse m o m en to o co r r e u m lan ce teatral: Marco Polo convida o G rão Cã a ob se rv ar m el h o r aquilo que lhe parece o nada: ... II Gran Ka n cerca v a d 'i m m ed es i m a rs i n el gio co : m a adesso era ilperché del gioco a sfu ggirgli. II f i n e d ’o gn i p art it a è una vincita o una perdit a: ma d i cos a? Q u a l era la v era pos t a? Alio scacco matto, sotto il p ied e del re sba lz at o v ia da lla m ano dei vincitore, resta il nulla: un qu a d rat o n ero o bia nco . A forz a di scorporare le sue con quist e p e r rid u rle al l ’essen z a, Ku blai era arriv ato al l’operazi one est rem a . la con qu ist a definitiv a, dicui i multiformi tesori deli'impero non erano che involucri illuso ri, si riduceva a un tassello di legno piallato. Allora Marco Polo p a rl ò : — L a t u a s ca cch iera , sire, è un in tarsio di due legni: éban o e a cero. II t ass ello s u l qu a le sifissa il tuo sguardo illuminato f u t agliat o in u n o st rat o d ei tronco che crebbe in un ann o di siccità : v edi co m e si di sp on gon o le fi
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reso con t o ch e lo s t ra n iero sap esse esprimersi fluentemente nel la su a li n gu a , m a n o n era quest o a stupirlo. — Ecco un poro p i u g ro s s o : f o r s e è st a t o íl n i d o d ’u n a larv a; non d 'un tarlo, p er ché a p p en a n a t o a v rebb e cont inua t o a scavare, ma d ’un bruco che ros icchid le fo gl ie e f u la caus a p er cui l'albero fu sceltoper essere a bb a t t u t o ... Q uest o m argin e fu inciso dalVebanista con la sgo rb ia p er ch é a d eris se a l qu ad rat o vicino, piú sporgente... L a q u a n t i t á d i co s e ch e s i p o t ev a n o leggere in un pezzetto di legn o l is cio e v u o t o so m m ergev a Kublai; giá Polo era venuto a p a rl a re d e i b o s ch i d ’éb a n o , d el le z at t ere di tronchi che discen do no i f i u m i, d egli ap pro d i, delle donn e alie finestre... ... O G rã o Cã p ro cu ra v a concen tra rse no jogo, mas agora era o
porquê do jogo que lhe escapava. O fim de cada partida era a v itór ia o u a d er r o ta , m as d e qu ê? Qual era a verdadeira aposta? Ao xe q u e m a te , so b os p és d o rei arrebatado pelas mãos do venced o r, re sta v a o nada, u m qu ad rad o branco ou preto. À força de d es in co r p o r a r su as co n q u ista s para reduzilas à essência, Kublai ha via ch e g a d o à o p er a çã o extr em a: a conquista definitiva, da qual os te so u r o s m u ltifor m es d o imp ério não passavam de invólucros ilusórios, reduziase a uma peça de madeira torneada. En tã o M a r co P o lo d isse: — Vo sso tabuleiro, Majestade, é um co n ju n to d e in cr u st a çõ es d e d uas madeiras, bordo e ébano. A casa so b r e a q u a l o v o ss o olh a r ilum inad o se fixa foi retalhada de uma cam ad a d e tr o n co q u e se form ou num ano de estiagem, vedes co m o as fibr a s se d isp õem ? Percebese aqui um nó apenas esbo çad o: u m re b e n to q u e te n tou brotar num dia de precoce prima ver a, m as a g ea d a n ot u rn a o o brigou a desistir —. 0 Grão Cã não se d er a co n ta a té en tã o d e com o o estrangeiro se exprimia fluen tem en te em su a lín gu a, m as nã o era propriamente disso que se a d m ira v a. — Eis a q u i u m p o r o mais grosso, talvez tenha sido o n in h o d e u m a larv a; n ão d e um caru ncho, pois assim que nasces
SEIS PROPOSTAS.
deira liso e vazio ab ismava Ku bl ai; e já M ar co P o io est av a a falar das matas de ébano, das balsas de troncos que desciam os rios, dos desembarcadouros, das mulheres nas janelas...
A partir do mom ento em q u e e scr ev i e sta p ágina percebi claramente que minha busca da exatidão se bifurcava em duas direções. De um lado, a red u ção d os a co n te cim en to s contingentes a esquemas abstratos que permitissem o cálculo e a demonstração de teoremas; d o o u tro , o e sfo r ço d as p alavras para dar conta, com a maior precisão possível, do aspecto sensível das coisas. Na verdade, minha escrita sempre se defrontou com duas estradas divergentes que correspondem a dois tipos diversos de conhecimento: uma que se move no espaço mental de uma racionalidade desincorp orad a, em q u e se p o d em tra çar linhas que conjugam pontos, p ro jeçõe s, form as ab str at as, vetores de forças; outra que se move n um esp aço rep let o d e o b jet os e bus ca criar um equivalente verbal d aq u ele e sp a ço en ch en d o a pá gina com palavras, num esforço de adequação minuciosa do escrito com o nãoescrito, da totalidade do dizível com o não dizível. São duas pu lsões d istinta s n o se n tid o d a exatid ão que jamais alcançam a satisfação absolu ta: em p rim eir o lu gar, por que as línguas naturais dizem se m p re algo m a i s em relação às linguagens formalizadas, com p or ta m se m p re u m a quantidade de rumor que perturba a essencialid ad e d a in form ação ; em se gundo, porque ao se dar con ta d a d en sid ad e e d a continu idade do mundo que nos rodeia, a lingu agem se re v ela lacun osa, frag mentária, diz sempre algo m e n os com respeito à totalidade do experimentável. Oscilando continu am ente en tre esses d ois cam inh os, quando sinto haver explorado ao máximo as possibilidades de um deles, logo me atiro ao outro e viceversa. Assim é que nestes
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¿e redação “Descrever uma girafa” ou “Descrever um céu estrelado” , ap liqu eim e em en ch er um cadern o com esse tipo de exercícios, d eles ex tr a in d o d ep ois a m atéria de um livro. Esse livro se chama P a l o m a r , e saiu a gora trad uzido em inglês; é uma espécie de diário sobre os problemas do conhecimento mini malístico, sendas que permitem estabelecer relações com o mundo, gratificações e frustrações no uso da palavra e do silêncio. Ao exp lor ar essa via, sen tim e m u ito próxim o da experiência dos poetas; penso em William Carlos Williams descrevendo tão m in u ciosa m en te as folha s d o ciclâmen, o que faz com que a flor to m e for m a e d esa b ro ch e nas páginas em que a des creve, co n se g u in d o d ar à p oesia a mesma leveza da planta; penso em Marianne Moore, que ao definir seus pangolins, seus nautilos e todos os outros animais de seu bestiário pessoal, alia a terminologia científica dos livros de zoologia aos significados alegóricos e sim b ó lico s, o qu e faz de cada um de seus poemas uma fábu la m o ra l; e p en so em Eugenio Móntale qué, podese dizer, efetuou a síntese de ambos em seu poema L ’anguilla [A enguia], p oe m a co m p o st o d e u m a ú nica e longuíssima frase que tem a form a d e u m a en gu ia, com o qu e acompanhando a vida da enguia e fazendo dela um símbolo moral. Mas p en so so b re tu d o em Francis Ponge, que com seus pe quenos p oem as em p ro sa criou um gên ero ún ico na literatura contem p orân ea: exata m en te o “ cadern o de exercícios" de um escolar qu e co m eç a a exe rcita rse d ispon d o suas palavras sobre a exten sã o d os as p ecto s d o m u nd o e consegue exprimilos após uma série de tentativas, rascunhos, aproximações. Ponge é para m im u m m est re sem igual porq u e os textos curtos de Le part i p ri s d es ch oses e de outras coletâneas suas orientadas na mesma direção, falem eles da crevette, do galet ou do sa von, representam o melhor exemplo de uni poeta que se bate
SEIS PROPOSTAS.
rada de Francis Ponge foi a d e com p o r, p o r m e io d e seu s tex tos curtos e de suas variantes elabo ra d as, u m n o v o D e nat ura rertrn ; creio que podemos reco n h ecer n ele o Lu cré cio d e nosso tempo, que reconstrói a fisicid ad e d o m u n d o p o r m eio da impalpável poeira das palavras. Entendo que a exp eriência d e P on ge d ev a ser p os ta n o mesmo nível da de Mallarmé, em bo ra n u m a d ire çã o d iverg en te e complementar: em Mallarmé a p alavr a a tin g e o m á xim o d e exatidão tocando o extremo da abstração e apontando o nada como substância última do m u nd o; em P o n g e o m u n d o tem a forma das coisas mais humildes, contingentes e assimétricas, e a palavra é o meio de dar con ta da v ar ied ad e in fin ita d essas formas irregulares e m inu ciosam ente co m p lex a s. H á q u em ache que a palavra seja o m eio de se a tin gir a s u b st â n cia d o mu nd o, a substancia última, única, ab solu ta ; a p a la v ra , m a is d o q u e re presentar essa substância, ch ega m es m o a id e n tifica rs e com ela (logo, é incorreto dizer qu e a pa lavr a é u m m e io ): h á a palavra que só conhece a si mesma, e ne n h u m o u tr o co n h ecim en to do mundo é possível. Há, no entanto, pessoas para quem o uso da palavra é uma incessante perseguição das coisas, uma aproximação, não de sua substância, mas de sua infinita variedade, um roçar de sua superfície m u ltifor m e e in ex a u r ív el. Co m o dizia Hofmannsthal: “A p rofu n d id ad e es tá e sc o n d id a . On d e? Na superfície” . E Wittgenstein foi a in d a a lém d e H ofm an n sth al quando afirmava: “O que está oculto não nos interessa”. Não serei tão drástico, p en so q u e e st a m o s se m p re n o encalço de alguma coisa ocu lta ou p elo m e n o s p o te n cia l ou hipotética, de que seguimos os tr a ços q u e a flor a m à su p er fície do solo. Creio que nossos m ecan ism os m en ta is e lem en ta re s se re petem através de todas as culturas da história humana, desde
EXATIDÃO
que p e r m i te o a p r o x i m a r - s e d a s , co i s a s (p r e s e n t e s o u au s e n te s) c()in d i s cr i çã o , a t e n ç ã o e c a u t e l a , r e s p e i t a n d o o q u e as co i sa s (p resen tes o u a u s e n t e s ) c o m u n i c a m s e m o r e cu r s o d a s p a la vra s.
0 e x e m p l o m a i s s i g n i f ica t i v o d e u m co m b a t e co m a lín gua n es sa p e r s e g u i ç ã o d e a l g o q u e e s c a p a à e xp r e ss ã o é Le o nardo d a V i n ci : o s c ó d i c e s d e L e o n a r d o s ã o u m d o c u m e n t o e x tra ord i n ár io d e u m a b a t a l h a c o m a lí n g u a , u m a l ín g u a h ís p id a e n o d o sa , a p r o c u r a d a e x p r e s s ã o m a i s r ica , m a is su ti l e p r e ci sa. As v á ri as f a s e s d o t r a t a m e n t o d e u m a id é i a, q u e Fr a n ci s P o n g e acaba p u b l i ca n d o u m a e m s e g u i d a a o u t r a — p o is q u e a o b ra verd ad eira co n s i s t e n ã o e m s u a f o r m a d e f i n i ti v a m a s n a sé rie de a p r o x i m a ç õ e s p a r a a t i n g i - la — s ã o p a r a o L e o n a r d o e s cr it o r a p rova d o i n v e s t i m e n t o d e f o r ç a q u e e le p u n h a n a e scr it a c o mo i n s t r u m e n t o c o g n i t i v o , e d o f a to q u e — d e t o d o s os liv ros a que se p r o p u n h a e s c r e v e r — l h e i n t e r e s s a v a m a is o p r o ce ss o de p e sq u i sa q u e a r e a l i z a ç ã o d e u m t e x t o a p u b l ica r. A té m e s mo os t em a s s ã o à s v e z e s s e m e l h a n t e s a o s d e P o n g e , co m o n a série d e fá b u l as c u r t a s q u e L e o n a r d o co n s a g r a a o b j e to s ou animais. T o m e m o s p o r e x e m p l o a fá b u l a d o f og o . A pós u m b rev e resu mo (o f o g o , o f e n d i d o p o r q u e a ág u a , n a p a n e la , e st á co l o ca da acim a d e l e q u e é , n o e n t a n t o , o "e l e m e n t o s u p e r io r ", co m e ça a e rg u e r ca d a v e z m a i s a l t o a s s u a s c h a m a s , a té p r o v o c a r a eb ulição d a á g u a q u e , t r a n s b o r d a n d o d a p a n e l a , o e xt in g u e ), Le o nardo d e s e n v o l v e o a s s u n t o e m t r è s v e r s õ e s s u ce ss iv as , to d as in co m p leta s, e s c r i t a s e m t r ê s c o l u n a s p a r a l el as , acr e s ce n t a n d o um d etalh e d e c a d a v e z , d e s c r e v e n d o c o m o d e u m a p e q u en i n a brasa a ch a m a c o m e ç a a e r g u e r - s e e m e sp i r ai s p o r e n t re o s in terstícios d a l e n h a a t é v i r a c r e p i t a r e t o m a r c o r p o ; m a s log o L e o nardo se i n t e r r o m p e , c o m o s e d a n d o c o n t a d e q u e n ã o h a lim i
* SEIS PROPOSTAS ■
Leonardo — “orno sanza let te r e” [h o m e m s e m letras ], como se definia — tinha um r ela cion a m en to d ifícil co m a palavra escrita. Ninguém possuía sab ed or ia igu al n o m u n d o em que viveu, mas a ignorância d o latim e d a g r a m á tica o im p ed ia d e se comunicar por escrito com o s d ou to s d e s eu tem p o . Sentiase sem dúvida capaz de exp ressar p elo d es e n h o , m elh o r d o que pela palavra, uma larga pa rte d e se u co n h e cim e n to . ( “O scritto re, con quali lettere scriverai tu co n ta l p e r fe z io n e la in te ra figu razione qual fa qui il d isegn o?” ( Ó es cr ito r , c o m q u e letra s conseguirias relatar a p erfeição d este co n ju n to e xp r e s s o aqu i pelo desenho?], anotava em seus cad er n os d e a n a to m ia .) E n ão era apenas a ciência, mas igu alm ente a filos o fia q u e e le esta va seguro de poder melhor comunicar pela pintura e o desenho. Mas havia nele também uma ne cessid ad e im p e r io sa d e escrever, de usar a escrita para exp lorar o m u n d o em su a s m an ifesta ções multiformes, em seus segredos e ainda para dar forma às suas fantasias, às suas em oções, ao s se u s r a n co r e s. (C o m o qu and o investe contra os literatos, só ca p a z es , se g u n d o ele , d e rep etir aquilo que leram nos livros alh eios, d ifer e n te m e n te d e alguém que, como ele, fazia parte d os “in v en to r i e in te r p r e ti tr a la natu ra e li omini" [inventores e intérpretes entre a natureza e os homens].) Por isso escrevia cad a v ez m a is: co m o p a ssa r dos anos tinha parado de pintar, m as p en sa v a e scr ev en d o e d esenhando, e, como que persegu ind o u m ú n ico d iscu rs o com d esenhos e palavras, enchia seus ca d er n os co m su a es cr ita canhota e especular. No fólio 265 do Códice Atlân tico, L eo n a r d o co m eç a arro lando provas para d emonstrar a tes e d o cr e s cim en to da terra Depois de exemplificar com as cid ad es se p u lta s q u e foram tragadas pelo solo, passa aos fó sse is m a rin h o s en con tr a d o s no alto das montanhas, e em p articu lar a ce r to s o ss o s q u e se sup õe tenham pertencido a um m on stro m a rin h o an tid ilu vian o. Nesse
EXATIDÃO m
animal, tenta n d o p o r três v ez es u m a frase cap az d e reprod uzir toda a maravilha da evocação: 0 quante volt efust i tu v edut o in f ra Vonde dei gonfiato e gran de oceano, col setolut o e nero dosso, a guis a di m ont agna e con grave e superbo andamento! Ó quantas vezes foste visto entre as ondas enfunadas do furioso oceano, com o cerdoso e negro dorso à guisa de montanha, movendose com grave e soberbo andamento! Em seg u id a , p r o c u r a m o v im e n t a r o a n d a m e n t o do monstro, introduzindo o verbo voltejar. Espesse volte eri v edut o i n f ra Vonde dei gonfiato e grande oceano, e col su perbo e gra v e m ot o gi r v olteggiando in fr a le marine acque. E con seto lut o e n ero dosso, a guis a di m ontagna, quelle vincere e sopraffare!
E amiudadas vezes foste visto entre as ondas enfunadas do furioso oceano, a voltejar com soberbo e grave movimento entre as marinhas águas. E com o ce rd os o e n egro d orso à guisa de montanha, a vencêlas e subjugálas. Mas o voltejar p ar ecelh e aten u ar a im pressão de im ponência e majestade q u e d ese ja ev o car . Escolh e en tão o v erbo sulcar e corrige tod a a co n str u ção d o trech o d and olhe consistência e ritmo, com seg u ro sen so literá rio: 0 quante volte ju s t i tu v edut o in j ra l 'onde dei gonjiato e gran de oceano, a guisa di montagna quelle vincere e sopraffare. e col setoluto e nero dosso so leare le m arin e acqu e . e con superbo e grave and am ent o! Ó quantas vezes foste visto entre as ondas enfunadas do furioso
SEIS PROPOSTAS.
A seqüência dessa aparição que se apresenta quase como um símbolo da força solene da natureza abrenos uma fresta para o funcionamento da imaginação de Leonardo. Ofereço lhes esta imagem com o fecho d e m inh a con fer ên cia, para que possam conservála na mem ória o m aior tem p o p ossível em toda a sua limpidez e em seu mistério.
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VISIBILIDADE
H á u m v e r s o d e Da n te n o “ P u r ga tó rio ” ( x v i i , 25) que diz: “Poi piovve dentro a 1’alta fantasia” [Chove dentro da alta fantasia]. Minha conferência de hoje partirá desta constatação: a fantasia, o sonho, a imaginação é um lugar dentro do qual chove. Vejam os em qu e co n tex to se en contra este verso do “Pur gatório” . Estam os n o círcu lo d os coléricos e Dante contem pla imagens qu e se for m am d iretam en te em seu esp írito, e que rep resentam ex em p los clássicos e b íblicos de pu nição da ira; Dante com p reen d e q u e essas im agens ch ov em do céu, ou seja, que é Deus quem as envia. Nos vár ios círcu los d o “ Pu rga tório” , p ostos de lado os p ormenores da paisagem e da abóboda celeste, além dos encontros com as alm as d e p ecad ores arrepend id os e entes sobrenaturais, apresentamse a Dante cenas que são verdadeiras citações ou re p res en ta ções d e exem p los de pecad os e virtudes: pri meiro sob a forma de baixosrelevos que parecem moverse e falar, em segu id a co m o visões p rojetad as d iante de seus olhos, com o vozes q u e che ga m aos seu s ou vidos, e p or fim com o ima-
SE/S PROPOSTAS.
Mas antes antes de ass assim p ro ced er, im p õe se d efin ir o qu e se seja a imaginação, e Dante o faz nos seguintes tercetos (xvii, 13iqj. O imaginativa cbe ne rube tavo tavolta si di fu or, ch'om no n s a ccorge perché p erché dint di nt orno orn o s uo n i n m i l le t ub ube, e, chi move te. se 7 senso non ti porge? Movet Movet i lum lu m e cbe nel ciei ci ei s i n f o rm a per p er sé o per p er v oler ol er cbe giú gi ú lo s co corge. rge. ó im imag agina inati tiva va qu e p or vezes tão tão longe longe nos arrasta arra sta,, e nem ou vim os as mil trombetas que ao redor ressoam; que te move, se o senso não te excita? Move-te a luz que lá no céu se forma por si ou esse poder que a nós te envia.
Trata ratase, be bem entend ido, d a “ alta alta fan ta sia” , co m o será especi ficado pouco adiante, ou seja, da parte mais elevada da imaginaç nação, ão, dive divers rsaa da imaginaçã imaginaçãoo co r p ó re a , co m o a qu e se manifesta no caos dos sonhos. Estabelecido este ponto, tentemos acompanhar o raciocinio de Dante, que reproduz fielmente o da filosofia de seu tempo. Ó imaginaç maginação ão,, qu e tens o p o d er d e te im p or es às nossa nossass faculd aculdades ades e à nossa vontade, extasiandonos num mundo interior e nos arrebatando ao mundo externo, tanto que mesmo se mil trombetas estivessem tocando não nos aperceberíamos; de onde provêm as mensagens visíveis que recebes, quando essas não são formadas por sensações que se depositaram em nossa memória? “Moveti lume che nel ciei s’informa” [Move vete a luz qu e lá lá no céu se for m a ]; seg u n d o Dante Dante — e segundo santo Tomás de Aquino —, há no céu uma espécie de fonte luminosa que transmite imagens ideais, formadas das segundo segundo a lógi lógica ca intr ínseca d o m u n d o im ag inár io, (“per (“per
VISIBILIDADE
Dante está falan falan d o d as visões qu e se ap a p resentam res entam a ele ele (ao (ao persona personage gem m D an te) qu ase co m o p ro jeções cinem cinem atográf atog ráfiicas ou recepçõ recepções es tel televisi evisivv as n u m visor separa d o d aquela aquela que para ele ele é a realidade objetiva de sua viagem ultraterrena. Mas para o poeeta Dan te, tod a a viagem da p ersonagem Dante po Dante é com o ese ssas visões; o poeta deve imaginar visualmente tanto o que seu pers per s onagem onagem vê, q u an to aq u ilo ilo qu e acred acred ita ver v er,, ou que es es tá sonhando, ou que recorda, ou que vê representado, ou que lhe é contad o, assim assim co m o d ev e imaginar o c on teúd o vi vis ual das das metáf metáfor oras as de q u e se se rv e p recisam en te p ara facil aciliitar essa ssa ev ocaçã ação visi visiva. va. O q u e D an te está p rocu ran d o d efi efinir s erá portanto o papel da imaginação na D iv in a com édia éd ia , e mais precisamente a parte visual de sua fantasia, que precede ou acompanha a imaginação verbal. Pod em os d i stin sti n gu ir d ois tipo s d e processos proces sos imag imagiinati nativo voss : o que p arte d a p alav ra p ara cheg ar à im agem visi visiva e o que par te da imag em visiva p ara ch eg ar à exp ressão verbal. verbal. O primei primei ro p rocesso roce sso é o qu e o co r r e n orm alm ente na le le itura: tura: lemos por exemplo uma cena de romance ou a reportagem de um acontec tecim ento nu m jo rn a l, e con for m e a m aior aior ou men or efi eficáci ácia do texto somos levados a ver a cena como se esta se desenrolasse diante de nossos olhos, se não toda a cena, pelo menos fragmentos e detalhes que emergem do indistinto. No cinema, a imagem que vemos na tela também passou porr um texto escr ito, foi p rim eiro “ vista” po vista” m entalm entalm ente pelo pelo diretor, em seguida reconstruída em sua corporeidade num set, para ser fin fin alm en te fixad fixad a em fotogra m as de um fil filme. Tod o fi fil me é, pois, o resultado de uma sucessão de etapas, imateriais e materiais, nas quais as imagens tomam forma; nesse processo, o “cinema m en tal” d a im agin ação d esemp enh a um papel papel tão tão importante quanto o das fases de realização efetiva das seqüências,
SEIS PROPOSTAS.
É signi signifficati ativa va a im p ortâ n cia cia d e q u e se re v es te a imag inação visiva nos Exercícios espirituais c i e s a n t o I n á c i o d e L o y o la. Log ogoo no iníc iníciio de seu seu m anu al, al, san to In á cio p re scr ev e “a com com posiç posição vis visiva do lugar" (“co m p o sició sici ó n vien cio cio el lu ga r") c m ise-enn -scè -scèn e d e u m e s termos termos que lembram lembram instru ções p ara a m ise-e p e tá tá cu cu lo lo : e m t od o d a c o n t e m p l a ç ã o o u m e d i t a ç ã o v i si siv a , c o m o p or or e xe xe m p l o c on o n t e m p l a r C r i st s t o n o s s o S e n h o r s o b a fo fo rm rm a vis vis ível vel, a c om p osição osição con con sisti sistirá rá em ve r co m os o lh o s d a im im agi nação o lugar físico onde se encontra aquilo que de sejo cont e m p la la r. r. Q u a n d o d ig ig o lu lu g ar a r fí f í s ic i c o , d i g o p o r e x e m p l o u m t em em p lo lo o u m o n te te on o n d e e st st ej e ja m Je Je s u s C r i st s t o o u N o s s a S e n h o r a . . .” .” , l.og ogoo em segui seguida, da, santo Inácio Inácio se ap ressa em p re cisar qu e a con con templação dos próprios pecados não deve ser visiva, ou — se b em em e n t en en d o — q u e el e la d e v e r e c o r r e r a u m a v i si s i b i li li d a d e d e t ipo m etaf etafóri óricco (a alma alma encarcera d a n o c o r p o corr u p tível). tível). Mais adiant adiante, e, no pr im eiro eiro d ia da seg u n d a sem an a, o exer cício es espiri piritt ual com eça eça com um a vasta v isão p an or âm ica ic a e com c om espetaculares cenas de multidão: 1 puncto. El prim er puncto es v er las perso na s, las una s y l as otras otras;; y primero Ia Ias de la haz d e la t ierra, ierra, en t an t a di v ersidad, ersidad, asi en traje trajess como como en ge gestos, uno s bla ncos y ot ros negros, unos en pa p a z v otros otros en gue guerr rra, a, unos llo rand o y ot ros riend o, unos sanas. otr otroos enfermos, nfermos, unos na sciend o y ot ros m urien do , etc. tc. 2 o: Ver Ver y considerar considerar las las t resp erso na s div in as , com o en el su soli solioo real o tbrono tbrono de la su div ina m ajest ad, cóm o m iran toda la haz y redonde redondezz de la la t ierra ierra y t odas las gent es en t ant a çeg çegue ue dad. y cómo mueren y descienden al infierno.
1? ponto. ponto. O primeiro primeiro pon to é ver as p essoas, um as com o as outras; e primeiro as da face da terra em toda a sua diversidade de traj trajes e de gestos gestos,, uns bran cos e ou tr os n eg ro s, un s em paz e outros em guerra, uns chorando e outros rindo, uns sãos, outros enfermos, uns nascendo e outros morrendo etc. 2?: Ver e considerar como as três pessoas divinas, sobre o sólio ou trono de sua divina majestade, vêem a face e a redondez da terra terra e todas todas as gentes que v ivem na ceg u eira e co m o morrem
VISIBILIDADE
A i d é ia i a d e q u e o D e u s d e M o is i s é s n ã o t o le l e r a v a s er er r e p r e s e n t a d o e m i m a g e m p a r e c e ja ja m a i s o c o r r e r a I n á c io i o d e Lo L o y o la la . A o c o n t ra r a r io io , d i r s s e i i a q u e e l e r e i v i n d i c a p a r a t o d o c r is i s tã tã o o g r a n d e d o m v i si s i o n a r io i o d e D a n t e e M i c h e l a n g e lo l o — se s e m m e sm sm o o fr e io q u e D a n t e s e s e n t e n o d e v e r d e a p l i c a r à s u a p r ó p r ia i a im im a g in in a çã çã o f i g u r a t iv i v a d i a n t e d a s s u p r e m a s v i s õ e s ce ce le l e s ti t i a is is d o Paraíso. N o e x e r c í c i o e s p i r i tu t u a l s e g u i n t e (s (s e g u n d a co co n t e m p l a ç ã o , 1 ? p on o n to t o ), o p r ó p r io i o c o n t e m p l a d o r d e v e e n t ra ra r e m ce n a e a ssu mir o papel de ator na ação imaginária: El p rim er p u n ct o e s v er las la s person per son as, es a sabe sab er, v er a Nuestr Nuestraa Señora Se ñora y a Jo s ep h y a la an cilla ci lla y al niño Je sú, de despué spuéss de ser ser nasc nas cido, ido , h az iénd o m e y o un pobre pobr e z ito y escla sclavito vito indi i ndiggno no,, mirándo los, con t em p lá n d o lo s y serv serv iéndolos iéndolos en en sus sus ne neccesidade sidades, s, com o si p resen t e m e hallase, c on todo acatam acatam iento iento y revere verenc ncia ia po p o s s i b l e; y d e s p u é s r e f l e c t i r en m y m i s m o p a r a s a ca r a lgú lg ú n pro p ro v ech ec h o .
O primeiro ponto é ver as pessoas, ou seja, ver Nossa Senhora e Jos é e a an cila cila e o m en in o Jesu s recém recém nascid nascid o, faze fazendo ndo de mi mim m esm esm o u m p ob rez inh o, um ínfim nfim o e ind ind igno es escravo, ra vo, olha olhando ndo os, os, con con tem p lan d oo s e servind olhes olhes em suas uas neces necessi sidades, dades, como se se p resen te m e en con tra sse, com com todo acata acatamento mento e rever reverenencia p ossíve is; e en tã o re fletir fletir com igo m esm o para para tirar tirar daí alg algum proveito. É v e r d a d e q u e o c a t o l i ci c i s m o d a C o n t r a R R ef e f o r m a t i n h a na na c o m u n i ccaa çã ç ã o v is i s iv i v a u m v e í c u l o fu f u n d a m e n t a l, l , p o r m e io io d a s s u -
SEIS SEIS PROPOS PROPOS TA S.
nhec nheciment men t o do doss signi signifficados p rofu n d os. Aqu i ta m b ém ta n teo ponto ponto de par par t ida quanto o d e ch ch ega d a e stã o p rev iam en te d et ermi rminado nadoss ; entre entre os dois dois abrese abre se u m ca m p o d e p ossibil ossibil ida d es infinitas de aplicações da fantasia individual, na figuração de pers person onag ageens, ns, lugare ugares, s, cenas em m o v im en to . O p r ó p r io fie fiel é concl onclamado ama do a pint pintar ar por si si m esm o ñ as p a re d es d e su a im aginaaginação os afre afresc scos os sobrecarregad os d e figu ra s, p a r tin d o d as solici solici taçõe açõess que a sua imaginaç maginação ão visi visiva va co n se g u e e xt r a ir d e u m enu n ciado teológico ou de um lacónico versículo bíblico.
Volte oltemos mos à pro blem blem áti áticca literaria, literaria, e p er g u n tem o n o s como se furma urma o imagi imaginari narioo de urna é p o ca em q u e a literat literatuu ra, já já não n ão mais ma is se r e fer fe r in d o a u m a a u t o r i d a d e o u t r a d i ç ã o q u e ser se r ia sua orig rigem ou ou se seu fi fim. visa visa an tes à n o v id a d e, à o rigin ali alidd ad e, a invenç nvenção ão Pa Pare recceme qu e nessa situ açã o o p ro b lem a da p riori orida ridade de da imag magem vis visual ual ou d a exp r es sã o v er b a l (qu e é u m p ou co assim como o problem problem a d o o v o e d a g alinh a) se inclina incl ina decididamente para a imagem visual. De onde prové provém m as as imagens magens q u e “ch o v e m ” n a fantasia? antasia? Dante Dante tinh nhaa, com toda toda justiç ustiça, um alto alto co n ce ito d e si m e s m o , n ã o hesitand ndoo em proc proclamar qu e suas visões er am d ire ta m en te inspiradas inspiradas porr De po Deus. us. Os esc escrito ritore ress mais mais p ró xim os d e n ó s (exc et u a n d o algun algunss casos raros de vocação profética) ligamse de preferência a emissores res terre terresstes tes. tai tais com o o in con scien te ind ivid u al o u cole tiv o, o tempo tempo ree reencont ncontrado rado graç graças às sen saçõ es q u e a flor flor am d o tem p o p erdido dido.. as epif pifania nias ou con con centr ações d o ser n u m d eter m ina d o ins tante nte ou ponto sing singul ular ar.. Trata Tratase, se, em su m a, d e p r o ce ss o s q u e, embora não não part partaam do céu. céu. exorb itam d as n ossa s in te n çõ es e d e nosso cont ontro rolle, assu assumi mindo ndo a respeito d o in d ivíd u o urría e sp écie d e trans cendênc ndênciia E não não são são apenas os p oe tas e ro m a n cista s q u e levanlevantam o prob problema: ma: de maneira maneira an áloga, ta m b ém o lev an ta u m estuestudi da i ligê i o D glas H ofsta d fam
VISIHIUbADIi m
Think, f o r inst ance, o f a w riter w ho is trying to convey certain ideas w hich t o him a re con t ai ned in m enta l images, He isn t quite sure how those im ages fi t t ogeth er in his m ind, a nd he experim ents a rou nd , exp ress in g things first one w ay and then another, a n d fina lly settles on s om e version. Hut does he know w he re it all ca m e f ro m ? <)nly in a v agu e sense. M uch o f the source, like an iceberg, is de ep un derw at er, unseen — a n d he know s that A d m i ta m o s , p o r e x e m p l o , u m e s c r it o r q u e es te ja t en t a n d o tr an s mitir certas idéias q u e p ara ele es tão en cerradas sob a forrna de ima gens mentais. Não estando totalmente seguro de como essas i m a g e n s s e h a r m o n i z a m e m s e u e s p í ri to , vai p r o ce d e n d o p o r ten t a ti va s , e x p r i m i n d o - a s o r a d c u m m o d o o r a d e o u t r o , p ara ch e ga r f i n a l m e n t e a u m a d e t e r m i n a d a v e r s ã o . Mas sa b e a ca s o d e o n d e tu do isso p rov ém ?1Ap en as d e m an eira vaga. A maior parte da fonte p e r m a n e ce , c o m o u m iceberg, imersa profun damente m água, fora de vista, — e ele sabe disso. M a s t a l v e z a n t e s f o s s e m e l h o r p a s sa r e m re vis ta as d iv ers as m a n e ira s c o m o e s t e p r o b l e m a fo i a r g ü i d o n o p a s sa d o . A h is tó ria m a is a b r a n g e n t e , c l a r a e s i n t é t i c a d a i d é ia d e im a g in a çã o q u e p u de e n c o n t r a r f oi u m e n s a i o d e Je a n S ta ro b in s k i, “ 0 im p é rio d o i m a g in á r i o ” (n o v o l u m e i a rel a t i o n cri t i q u e , Gallimard, 1970). D a m a g i a r e n a s c e n t i s t a d e o r i g e m n e o p l a tó n i ca é q u e p arte a id éia d a i m a g i n a ç ã o c o m o c o m u n i ca ç ã o c o m a alm a d o m u n d o, id é ia m a is t a r d e r e t o m a d a p e i o R o m a n t is m o e p e lo Su rre a lism o. T al i d é i a c o n t r a s t a c o m a d a i m a g in a ç ão c o m o i n str u m e n t o d e s ab e r , s e g u n d o a q u a l a i m a g i n a ç ã o , e m b o r a se gu i n d o o u t ro s ca m in h o s q u e n ã o o s d o c o n h e c i m e n t o ci en t ífico , p o d e co exis tir com e ss e ú l ti m o , e a t é c o a d j u v á - lo , ch e g a n d o m e s m o a r ep r e sen tar p a r a o c ie n t i s t a u m m o m e n t o n e c es s ár io n a fo rm u l açã o d e su a s h i p ó t e s e s . Já a s t e o r i a s d a i m a g in a ç ã o c o m o d e p o s itá rias d a v e r d a d e d o u n i v e r s o p o d e m -s e a ju s ta r a u m a S a t u r p b i
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H i O t ’O S T A S .
cia o m u n d o e xt e r n o e is o la n d o o c o n h e c i m e n t o im a g in a t iv o na interiorid ade individ ual. Starob inski r eco n h ece nesta última posição o método da psicanálise freudiana, ao passo que o de Ju ng, que dá aos arquétip os e ao in con scient e co letivo um a va lidade universal, se relaciona à id éia de im ag inação com o parti cipação na verdade do mundo. Chegando a este ponto, a pergunta à qual não posso me esquivar é a seguinte: em qual das duas correntes delineadas p or Starobinski d evo situar m inha id éia d e im agin ação? Para en contrar a resposta, terei de certa maneira que percorrer a minha exp eriência de escritor, pr incip alm en te a qu ela qu e se refere à narrativa fantástica. Qu an d o co m ece i a escr ev er histórias fantásticas, ainda não me colocav a p ro blem as te ór icos; a ún ica coisa de que estava seguro era qu e n a or igem d e cada u m de meus contos havia uma im agem visual. Por exem p lo, u ma d essas imagens era a de um hom em cor ta d o em d uas m etad es que co n tin u a v am a v iv er in d e p e n d e n t e m e n t e ; o u t r o e x e m p l o p o deria ser a do rapaz que trepa nu m a ár vo re e d ep ois vai passando de uma a outra sem nu nca mais tocar os p és n o ch ão ; outra ainda, uma armadu ra vazia que se m ov im en ta e fala com o se alguém estivesse dentro dela. A primeira coisa qu e m e vem à m en te na idealização de um conto é, pois, uma imagem que por uma razão qualquer apresentase a mim carregad a de sign ificad o, m esm o qu e eu não o saiba formu lar em term os d iscu rsivos ou con ceitua is. A partir do momento em que a imagem adquire uma certa nitidez e m m i n h a m e n t e, p o n h o m e a d e s e n v o l v ê la n u m a h i st ó r ia , ou m e lh o r , sã o as p r ó p r i as im a g en s q u e d e s e n v o l v e m su a s p o t e n cialidades implícitas, o conto que trazem dentro de si. Em torn o d e ca d a im a g em e s c o n d e m s e o u t r a s , fo r m a s e u m ca m p o de analogias, simetrias e contraposições. Na organização desse material, que não é apenas visivo m as igu alm ente conceitua i, chega o momento em que intervém minha intenção de orde-
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com patíveis ou n ão co m o d esígn io geral que gostaria de dar à história, sem p re d eix a n d o cer ta m argem d e alternativas possíveis. Ao m es m o te m p o , a escr ita , a trad ução em palavras, adquire cada v ez m ais im p or tâ n cia; d irei que a partir do momento em qu e co m e ço a p ô r o p re to n o bra nco, é a palavra escrita que conta : à b u sca d e u m eq u iva len te d a imagem visual se sucede o d es en v o lv im en to co er en te da im postação estilística ini cial, até qu e p o u co a p o u co a escrita se torna a dona do campo. Ela é que irá guiar a narrativa na direção em que a expressão verbal flu i co m m ais felicid a d e, n ão restand o à imaginação visual senão seguir atrás. Nas C osm icom icbe o p r o ce ss o é ligeiram ente diverso, porque o ponto de partida é um enunciado extraído do discurso científico: é d esse en u n cia d o con ceitu ai qu e deve nascer o jogo au tôn om o d as im ag en s visua is. Meu intento era demonstrar como o d iscu rso p o r im ag en s, característico do mito, pode bro tar de qu alqu er tip o d e te r r en o , até m esm o da linguagem mais afastada de q u a lq u er im a g em visu al, com o é o caso da lingua gem da ciên cia h o d ier n a . M esm o qu an d o lemos o livro cientí fico mais té cn ico ou o m ais a b st ra to d os livros de filosofia, podemos en con tr ar u m a frase q u e inesp erad am ente serve de estí mulo à fan tasia fig u ra tiv a. En co n tr a m o s aí um destes casos em que a imagem é d ete rm in ad a p o r um texto escrito preexistente (uma página ou u m a sim p les fras e co m a qual me defronto na leitura), dele se p o d e n d o ex tr a ir u m d esenrolar fantástico tanto no espírito d o te xt o d e p ar tid a q u an to nu ma direção completamente au tô n om a. A p r i m e ir a “ c o s m i c ô m i c a ” q u e e s cr e v i, A dist ância da
Lua, é a mais "su r r e a list a ” , p or assim dizer, no sentido em que o assun to, b a se a n d o se n a física gra vitacional, deixa o caminho livre pa ra u m a fan ta sia d o tip o o n írico. Em outras cos micomicas, o en r ed o é gu iad o p o r u m a idéia mais conseqüente com o p on to d e p a rt id a cien tífico , mas semp re revestida
SEIS PROPOSTAS.
Em su m a, m e u p r o c e s s o p r o c u r a u n i f i ca r a g e r a ç ã o e sp o n tân ea d as im a ge ns e a in t e n ci o n a l i d a d e d o p e n s a m e n t o d i scu r si vo . M e sm o q u a n d o o im p u l s o i n i c i a l v e m d a i m a g i n a ç ã o v isi va que põe em funcionamento sua lógica própria, mais cedo ou m ais t ard e ela va i ca i r n a s m a l h a s d e u m a o u t r a l ó g i ca i m p os ta p e lo ra ci o cí n i o e a e x p r e s s ã o v e r b a l . S e j a c o m o f o r, as s ol u çõ es visu ais co n t i n u a m a s e r d e t e r m i n a n t e s , e v e z p o r o u tra ch e ga m i n e s p e ra d a m e n te a d e c id i r s i t u a ç õ e s q u e n e m as co n je ctu ras d o p e n sa m en to n em o s r e cu r s o s d a l in g u a g e m co n s e guiriam resolver. l'm e scl ar ecim e n t o s o b r e o a n t r o p o m o r f i s m o n a s Cosmi
amücbe: a ci ên ci a m e i n t e r e ss a j u s t a m e n t e n a m e d i d a e m q u e me e sf or ço para sair d o co n h e c i m e n t o a n t r o p o m ó r f i c o ; m a s ao m es mo t em p o , e st ou c o n v e n c id o d e q u e n o s s a i m a g i n a çã o só p od e se r a n t r op o m o r fa ; d a í m e u d e s a f i o d e r e p r e s e n t a r a n tr op om o rf ica m en t e u m u n i v e rs o n o q u a l o h o m e m j am a i s ten h a existi do, ou e m q u e p a r e ça e x t r e m a m e n t e i m p r o v á v e l q u e p os sa vir a existir. Eis o m o m e n t o d e re s p o n d e r a p e r g u n t a q u e m e h a vi a fei t o a p r op ó si to da s d u a s co r r e n t e s p r o p o s t a s p o r S ta ro b in s k i : a im ag in açã o co m o i n s t r u m e n t o d e s a b e r o u c o m o i d e n t if ica çã o co m a alm a d o m u n d o . P o r q u a l o p t a r i a ? A j u l g a r p e l o q u e d isse, d ev er ia s er um a d e p t o f e r v o r o s o d a p r i m e i r a t e n d ê n ci a , p ois o co n t o é p a ra m i m a u n i f i ca ç ã o d e u m a l ó g i c a e s p o n t â n ea d as im agen s e d e u m d e s í g n i o l e v a d o a e f e i t o s e g u n d o u m a in ten ção ra cion al. M as a o m e s m o t e m p o s e m p r e b u s q u e i n a im a gin açã o u m m e io p a ra at in g i r u m c o n h e c i m e n t o e xt ra -i n d i v i dual, extraobjetivo; p ortan to seria ju sto q u e m e d eclarasse mais p r óxi m o d a s eg u nd a p o s i ç ã o , a q u e a i d e n t i f i ca c o m a al m a d o mundo. Mas h á u m a o u t ra d e f i n i ç ã o n a q u a l m e r e c o n h e ç o p l e n a m e n te, a d a i m a gi n açã o c o m o r e p e r t ó r i o d o p o t e n c i a l , d o h i potético, de tudo quanto não é, nem foi e talvez nã o seja, mas que poderia ter sido. No tratad o d e S tarob in sk i es te a sp ecto apa
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para quem o “spiritus phantasticus” é “mundus quidem et si nus inexp lebilis form aru m et sp ecieru m ” [um mu nd o ou recep t á c u l o , jam ais satu rad o, d e form as e d e imagens]. Pois bem , creio ser indispensável a toda forma de conhecimento atingir esse golfo da m u ltip licid ad e p oten cial. A m ente d o poeta, bem como o esp írito d o cient ista em certos m om entos d ecisivos, fu ncionam segundo um processo de associações de imagens que é o sistema m ais r áp ido d e coor d en ar e escolher entre as formas infinitas d o p o ssív el e d o im p ossível. A fantasia é uma espécie de máquina eletrônica que leva em conta todas as combinações p ossíveis e es colh e as qu e obed ecem a um fim, ou que sim plesmente s ão as m ais inter essan tes, agradáveis ou divertidas. Restame esclarecer a parte que nesse golfo fantástico cabe ao imaginário indireto, ou seja, o conjunto de imagens que a cultu ra n os fo r n e ce, seja ela cultu ra d e massa ou ou tra forma qualquer d e tr ad ição . Esta qu estã o suscita de im ediato uma outra: que futuro estará reservado à imaginação individual nessa que se con v en cion o u cha m ar a “ civilização da imagem ”? O p oder de evo car im agen s in absentia continuará a desenvolver se numa h u m an id ad e cad a vez mais inund ada p elo dilúvio das imagens p réfabricad as? An tigam ente a mem ória visiva de um indivíduo estava limitada ao patrimônio de suas experiências diretas e a um reduzido repertório de imagens refletidas pela cultura; a p oss ibilid ad e d e d ar form a a mitos pessoais nascia do modo pelo qual os fragmentos dessa memória se combinavam entre si em abordagens inesperadas e sugestivas. Hoje somos bombardeados p o r u m a tal qu antidad e de imagens a p onto de não p od erm os d istin gu ir m ais a exp eriên cia d ireta daquilo que vimos há p o u cos seg u n d os n a televisão. Em nossa memória se depositam, por estratos sucessivos, mil estilhaços de imagens, melhant d ós ito d e li d e é ada ve
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foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres a lfa b ético s n eg ro s so b re uma página branca, de pen sar p o r i m a g e n s . P e n s o n u m a p o s s í v e l pedagogia da imaginação que n os h ab itu e a co n tr o la r a própria visão interior sem sufocála e sem , p o r o u tr o lad o , d eixála cair num confuso e passageiro fantasiar, m as p er m itin d o q u e as imagens se cristalizem num a form a be m d efin id a, m em o r á v el, auto suficiente, "icástica'’. É claro que se trata de uma p ed ag og ia q u e s ó p o d em os apli car a nós mesmos, seguind o m étod os a se re m inv en tad os a cada instante e com resultados im p re v isíve is. A ex p er iên cia de minha formação inicial é já a d e u m filh o d a “ civ iliz a çã o d a imagem", ainda que ela estivesse em seu in ício , m u ito d istan te da inflação atual. Digamos qu e eu se ja filh o d e u m a é p o ca intermediária. em que se con ced ia ba sta n te im p o r tâ n cia às ilustra ções coloridas que acom p an ha va m a in fân cia, em seu s livros, seus suplementos ju venis e seu s b r in q u ed o s. C re io qu e o fato de ter nascido naquele p eríod o ten h a m ar cad o p rofun d am ente a minha formação. Meu m u n d o im a g in ár io fo i influen ciad o antes de mais nada pelas figu rin h as d o C orriere d ei Piccoli, que era à época o mais difun d id o d os se m an á rio s infan tis. Falo de um período de minha vida que vai dos três aos treze anos, antes que a paixão pelo cinem a se to rn a sse p ar a m im u m delírio absoluto que durou tod a a m inh a a d o les cên cia. E m ais, creio que o período decisivo tenha sido entre os três e os seis anos, antes de aprender a ler. Nos anos vinte, o Corriere dei Piccoli publicava na Itália os mais conhecidos comics am erican os da ép oca: H appy Hoo ligan, os Katzenjammer Kids, Felix the Cat, Maggie and Jiggs, todos rebatizados com n om es italian os. E ha v ia ta m bé m séries italianas, algumas de ótim a qu alid ad e q u a n to a o b o m go sto grá fico e o estilo da época. Por esse te m p o , ain d a n ão ha via entrado em uso na Itália o sistema d e se es cr ev er as frase s d os diálobal ( só com trin d i
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o s q u a d r in h o s a m e r i ca n o s s em o s b a lõ e s, q u e e ra m s u b s t i tu i d o s p o r d o i s o u q u a t r o v e r s o s r i m a d o s em b a ixo d e ca d a q u adrinho. Mas eu, que ainda não sabia ler, passava otimamente se m e s s a s p a l a v r a s , já q u e m e b a s t a v a m as fi gu r as . N ã o l ar ga va aq u e la s r e v i s ti n h a s q u e m i n h a m ã e h a vi a co m e ça d o a co m p r a r e a c o l e c i o n a r a i n d a a n t e s d e e u n a s ce r e q u e m a n d a va e n ca d e rn a r a ca d a a n o . P a s sa v a h o r a s p e r co r r e n d o o s q u a d r in h o s d e ca d a s ér ie d e u m n ú m e r o a o u t r o , co n t a n d o p a ra m im m e sm o m e n t a l m e n t e a s h i s t ó r i a s cu j a s ce n a s i n t e rp r e ta v a ca d a v e z d e m a n e ir a d i f e r e n t e , i n v e n t a n d o v a r i an t e s, fu n d i n d o e p i só d i o s i so lados em uma história mais ampla, descobrindo, isolando e c o o r d e n a n d o a s c o n s t a n t e s d e ca d a s ér ie , co n t a m i n a n d o u m a sé rie c o m o u t r a , i m a g i n a n d o n o v a s sé rie s e m q u e p e rs on a g en s s e cu n d á r io s se t o r n a v a m p r o ta g o n i s ta s . Q u a n d o a p r e n d i a le r, a v a n t a g e m q u e m e a d v eio foi m ín i m a : a q u e l e s v e r s o s s i m p l ó r i o s d e r im a s e m p a r el h a d a s n ã o fo r n e ci am i n f o r m a ç õ e s i n s p i r a d o r a s ; n o m a is d a s v ez es e ra m in t e r p r e t a ç õ e s d a h i s t ó r i a , d e o r e l h a d a , ta is q u a is a s m i n h a s; e s ta va cl a ro q u e o v e r s e j a d o r n ã o t in h a a m í n im a id éia d o q u e p o d e ria e s t a r e s c r i t o n o s b a l õ e z i n h o s d o o ri gi n al , se ja p o r q u e n ão soubesse inglês ou porque trabalhasse com os quadrinhos já r e d e s e n h a d o s e t o r n a d o s m u d o s . S eja co m o fo r, eu p r efe ria ig n o r a r a s l in h a s e s c r i t a s e c o n t i n u a r n a m i n h a o cu p a çã o f av orit a de fantasiar em cima das figuras, imaginando a continuação. Es se h á b i to ce r t a m e n t e r et a rd o u m i n h a ca p acid a d e d e co n c e n t r a r -m e s o b r e a p a l a v r a e s cr i t a (a a t e n çã o n e ce ss ár ia p a ra a l e i t u r a s ó a fu i a d q u i r i r m a i s t a r d e , e c o m e s f o r ç o ), m as a l eit u ra d a s f i g u r i n h a s s e m p a l a v r a s fo i p a r a m i m s e m d ú v i d a u m a e s co l a d e f a b u l a ç ã o , d e e s t i li z a çã o , d e co m p o s i ç ã o d a im a gem . P or e x e m p l o , a e l e g â n c i a g r á f i ca d e P a t O ’S u lli va n e m ca m p i r im le ad rin h s il h u do G Fé li ada
SEIS PROPOSTAS.
histórias utilizando a su cessão d as m ister iosa s figu ras d o tarô, interpretando a mesma figura cada vez de um niodo diferente, com certeza tem suas raízes naquele meu desvario infantil sobre as páginas repletas de figuras. O que tentei estabelecer no Castello dei destini incrociati foi uma espécie de iconologia fantástica, não apenas com as figuras do tarò mas igualmente com quadros da grande pintura italiana. De fato, procurei interpretar as pinturas de Ca rp accio na Esco la d e San Gio rg io de gli Schiavoní, em Veneza, seguindo as legendas de são Jorge e de são Jerònimo como sc fossem uma história única, a vida de uma só pessoa, id entifican d o m inh a v ida co m a d e Jorge Jerònimo. Essa iconologia fan tástica to rn ou se o m o d o h abitual de exprimir minha grande paixão pela pintura: adotei o método de contar minhas histórias a p artir d e q u ad ros fam osos da história da arte ou então d e figuras qu e e xe rc em so b re mim alguma sugestão.
Digamos que diversos elem en tos con co rr em p ara formar a parte visual da imaginação literária: a observação direta do mundo real, a transfiguração fantasmática e onírica, o mundo figurativo transmitido pela cultura em seus vários níveis, e um processo de abstração, con d en sação e in terior izaçã o da experiência sensível, de importância decisiva tanto na visualização quanto na verbalização do pensamento. Todos esses elem entos estão d e certa form a p resen tes nos autores que considero como modelos, sobretudo nas épocas particularmente felizes para a im ag ina ção visu al, n as literaturas do Renascimento e do Barroco e nas do Romantismo. Ao organizar minha antologia do conto fantástico no século xix, segui a corrente visionária e esp etacu lar q u e e xtrav asa d os con tos de Hoffmann, Chamisso, Arnim, Eich en d or ff, P o to ck i, Go go l, Ner val, Gautier, Hawthorne, Poe, Dickens, Turgueniev, Leskov e vai dar em Stevenson , Kip lin g, W ells. P ar a lelam en te a essa, se
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autores — , q u e faz o fan tá stico br ota r d o cotidiano, um fantástico interiorizad o, m en ta l, inv isível, q u e culminaria em Henry James. A literatura fantástica será possível no ano 2000, submetido a uma crescente inflação de imagens préfabricadas? Os cam inhos qu e v em o s a b er to s até agora parecem ser dois: 1) Reci clar as imagens usadas, inserindoas num contexto novo que lhes m u d e o sign ificad o. O p ósm od ernism o pode ser considerado com o a ten d ên cia d e u tilizar de m od o irônico o imaginá rio d os m eios d e co m u n icaçã o , ou antes com o a tendência de introd u zir o g os to d o m ara vilhoso , herdado da tradição literá ria, em m ecan ism os n arr ativos qu e lhe acentuem o poder de estran ha m ento. 2) Ou en tã o ap agar tud o e recomeçar do zero. Samuel Beckett obteve os mais extraordinários resultados red uzindo ao m ín im o o s elem en to s visuais e a linguagem, como num mundo de depois do fim do mundo. Balzac terá sido talvez o primeiro escritor a apresentar, em seu liv ro Le ch ef-d ’oeu v re in conn u , todos esses problemas ao m esm o t em p o . E n ão é p o r acaso que tal percepção, que poderíamos classificar de fantástica, tenha partido de Balzac, situado num ponto nodal da história da literatura, numa exp eriência “ d e lim ite ” , or a v ision ár io ora realista, ora ambos a um só te m p o, e q u e p ar ece semp re arrastado pela força da natu reza, m as tam bé m sem p re m uito consciente daquilo que faz. Le ch ef-d’oeu v re in con n u , em que Balzac trabalhou de 1831 a 1837, tinh a n o in ício o su b títu lo “ con to fan tástico” , ao passo que na ver são d efinitiv a figu ra com o “estud o filosófico” . Nes se ínterim o co r r eu — co m o o p róp rio Balzac declara em outro conto — qu e “ la littér a tu re a tué le fan tastiqu e” [a literatura matou o fan tástico]. O q u ad ro p erfeito d o velho pintor Frenhofer, no qual apenas um pé feminino emerge de um caos de cores,
SI-IS PROPOSTAS
pedaço de tela!] E até mesmo a mulher que lhe serviu de modelo, embora sem nada compreender, se mostra de certo modo impressionada. Na segunda versão (datada ta m bé m d e 18 31 , m as agora em volume), algumas novas rép licas d em on str am a in com p reen são dos colegas. Frenliofer contin u a u m m ístico ilu m in ad o qu e vi ve para seu ideal, mas está con d en a d o à s o lid ã o . A v ers ão d efinitiva, de 1837, acrescenta várias páginas de reflexões técnicas sobre a pintura, e um final em qu e Fr en h ofe r a p a re ce claramen te como um louco, que acabará p or e n cerr ar se co m sua p retensa obraprima, para depois queimála e suicidarse. L echefd'o euv re inco nm i foi várias vez es interp retad o como uma parábola sobre o d esen vo lvim en to d a a rte.m od erna . Ao ler o último desses estudos, o de Hubert Damisch {in Fenê tre jau ne cadm ium , Éd. du Seu il, Paris, 198 4), p e r ce b i qu e o conto pode ser também interpretad o co m o u m a p arábola so bre a literatura, sobre a d iversid ad e in co n ciliá v el en tr e e xp ressão lingüística e experiência sensível, sobre a inapreensibilida de da imaginação visiva. A primeira versão define o fantástico pela impossibilidade de definilo: Pour toutes ces singularit és, V id io m e m o d ern e n ’a qu ’un mot: cétait indéfinissable ... A dm irable expression. El le resum e la lit térature fantastique, elle dit t out ce qu i éch ap p e a u x percept ions bornées de notre esprit; et q u a n d vo us l 'a v ez p la cée sous lesy eux d'un lecteur, il esl lan cé da ns Vesp ace i m a gi n a ire... Para todas essas singularidades, o id iom a d e h oje só en con tra uma palavra; é indefinível ... Admirável expressão, que resume toda a literatura fantástica; ela diz tud o o q u e e scap a às p er cep çõe s p re cárias de nosso espírito; e qu an d o a colo cais sob os o lh os d e um
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em p reend e a d escrição m inu ciosa do m und o tal com o é, sempre com a con v icção d e exp rim ir o segred o da vida. Como Bal zac tivesse d em or ad am en te h esitad o se faria de Frenhofer um vid ente ou um lou co, seu con to continu a portador de uma ambigüid ad e em q u e r esid e sua verd ad e mais profun da. A fantasia do artista é u m m u n d o de p otencialid ad es que nenhuma obra conseguirá transformar em ato; o mundo em que exercemos nossa exp er iên cia d e vida é um outro m und o, que corresponde a ou tras form as d e or d em e d e desordem ; os estratos de pa lavras qu e se acu m u lam so b re a página com o os estratos de cores so br e a tela são aind a um ou tro m un do, também ele infini to, porém mais governável, menos refratário a uma forma. A correlação en tr e esses três mu nd os é aquele indefinível de que falava Balza c: ou m elh or , p od eríam os classificálo de indecidível, com o o p ar ad ox o de u m conju nto infinito que contivesse outros con ju n tos infinitos. O escritor — falo do escritor de ambições infinitas, como Balzac — re aliza o p er a çõ es qu e envo lvem o infinito de sua ima ginação ou o infinito da contingência experimentável, ou de am bos, c o m o in fin ito d as possibilid ad es lingüísticas da escrita. Alguém poderia objetar que uma simples vida humana, limitada en tr e o n as cim en to e a m orte, só pode conter uma quantidad e finita d e in for m açõ es: com o poderiam então o imaginá rio individual e a experiência individual estenderse para além desses limites? Pois bem, acho vãos todos esses esforços para fugir à v er tige m d o inu m eráv el. Giordan o Brun o explicounos como o “spiritus phantasticus”, no qual a fantasia do escritor atinge forma e figura, é um poço sem fundo; e quanto à realidade externa, a Com édia hum ana de Balzac parte do pressuposto de que o mundo escrito pode estar em homología com o mundo vivente, tanto daquele de hoje como do de ontem e o de amanhã. O Balzac “fantástico” havia tentado capturar a alma do
SEIS PROPOSTAS.
vra escrita de tal intensid ad e qu e essa, co m o as co r es e as li nhas no quadro de Frenhofer, acabaria p or n ão m ais se rep ortar a um mu nd o exterior a si m esm a. Ch ega n d o a esse limiar, Balzac se d etém , e m od ifica seu p rog ra m a, Em lugar da escrita intensiva, a escrita extensiva. O Balzac r ealista p ro cu ra rá cobrir de escrita a extensão infinita d o esp aço e d o t em p o fervilha ntes de multidões, de existências, de histórias. Mas não poderia se prod uzir o m esm o qu e o cor re nos quadros de Escher que Douglas R. Hofstadter cita para ilustrar o paradoxo de Gõdel? Numa galeria d e qu ad ros, u m h om em con templa a paisagem de uma cid ad e e essa p aisagem se a bre a po n to de incluir a galeria que a con tém e o h om em qu e a está observando. Balzac na sua Com éd ia hu m an a in fin ita d eve rá inclu ir também o escritor fan tástico qu e ele é ou foi, com tod as as suas infinitas fantasias; e dev erá in cluir t a m b ém o es cr ito r realista que ele é ou quer ser, semp re em p en h ad o em captu rar o infinito mundo real na sua Com éd ia hu m an a. (Mas talvez s eja o m un do interior do Balzac “fan tástico” q u e inclui o m u n d o interior do Balzac realista, porq u e u ma das infinitas fan tasias d o p rimeiro coincide com o infinito realista da Comédia humana...) Seja com o for, todas as “ rea lid ad es” e as “ fanta sias” só podem tomar forma através da escrita, na qu al exter iorid ad e e interioridade, mu ndo e ego, expe riên cia e fanta sia ap arecem com postos pela mesma matéria verbal; as visões polimorfas obtidas através dos olhos e d a alma en con tra m se con tid as nas li nhas uniformes de caracteres minúsculos ou maiúsculos, de pontos, vírgulas, de parênteses; páginas inteiras de sinais alinhados, encostados uns aos ou tros co m o grão s d e areia, rep resentando o espetáculo variegado d o m u nd o nu m a su p erfície sempre igual e sem pre d iversa, com o as d u na s im p elid as p elo vento do deserto.
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M ULTIPLIdDA DF.
C o m e c em o s p o r u m a ci t ação : N ella su a s ag g ez z a e n ella su a p ov er t à m olisan a, il clott or Ingrav allo, che p ar ev a v iv ere d i silen z io e di son n o solto ta giun gia ñ era di qu ella p arr u cca, lu cida com e pece e riccioluta com e d ' agnello d ' A strakan , n ella su a saggez z a interrom peva talora codeslo sonno e silenzio per enunciare qualche leoretica idea (idea g en eral e s' in t en de) su i casi degli u om ini: e delle donne. A prim a v ista, cioè al p r im o u dirle, sem hrav an o ban alità. Non eran o ban alit à. Cosi qu ei rap id i en u n ciati, che facev an o sulla su a bocca il crepit io im prov v iso d' u n o z olfan ello illuminutore, riv ivev ano p oi n ei tim pan i delia gen te a distanz a di ore, o di mesi, d alla en u n ciaz ion e: com e dop o un m isterioso tempo incubatorio. ‘ ‘G ià !'' ricon oscev a l ’in leressato: ' 'il dott or higravallo m e l ' av ev a p u r d ei t o ' S osteneva, fr a l ' allro, che le inopinate catast rofi n on son o m ai la con segu enz a o l ' effetto che d ir si voglia d' u n u n ico m otivo, d' u n a cau sa al singolure; m a sono co m e un v órtice, u n p u n t o d i depression e ciclón ica nella coscien z a d el m on do, v erso cu i h an n o cospir at o tutta u n a m olteplicitíi di cau sali con v ergería. D icev a an che n odo o groviglio. o g arbaglio o g n om m ero, che alia rom an a ru ol dire gom ifo/o Ma il
SEIS PROPOSTAS
quale avevamo dai filoso/i. da A ristotele o d a Em m anu ele Kant. e sustituiré alia causa le cau se era in lu i u n a op in ion e cén tralo e persistente, un a Jissazion e. qu asi; che gli ev ap orav a d alle labhra cam óse. nía piutt osto bian cbe. d ore u n m oz z icon e di sigaretta spenta purera, pen coland o d a un ang ola, accom pag n are Ja sonnolenza del la sgu ardo e il qu asi-ghign o. tra a m aro e scettico. a cui per reccbia abitu din e soleva att eggiare la m eta in feriót e della faccia. sotto qu el son n o della fron t e e delle p alpebre t' quel ñero picea della parru cca. Cosi. p rop ri o cosi. avv enira clet "suoi" delitti Q uanno m e chiam m eno!... Giá! Si m e cbiamm eno a m e. pu ó sta ssicu re cb' é nu g u aio: qu accbe gliuotnmero de sberretá... " diceva, con t am in an do n apolit a no. moltsano. e italiano la caúsale apparente. la caúsale principe, era si, una. Ma il fattaccio era ieffet t o di tutta u n a rosa di cau sali ch e g li eran sojfiate addosso a molinello (come i sedici venti della rosa dei venti quando s' arriluppan o a trom ba in u n a depr ession e cicló nica) e at eran o fin it o per st riz zare riel v órtice d el d elitt o la dé bil itata ragione del mon do ”. Come si st orce il eolio a un p ol lo. Epoi solera dire. ma questo un p o ' st ancam ente, ‘‘ch 'i ' femmene se retroveno ad d o' n 'i vu ò t ru v á' Una t ard a riediz ion e italica del vieto “eberebez la fem m e ”. E p oi p ar ev a pen tirsi, co me d' aver calun niato e femm ene, e voler m u tare idea. M a allora si sarebbe andati riel difficile. Siccbé tacev a pensieroso, come temendo d aver dett o troppo. V oleva sign ificare che un certo m ovente affettieo, un tanto o. direste oggi, un quanto di affettivitá. un certo ' quanto di erotia ’ si m escolava an che ai ‘‘casi d ’in teresse". ai delitti apparentemente piú lontani dalle tempeste d amore. Qualcbe collega un tant ino in v idioso delle su e tróv a te, qualcbe prete piú edotto dei m olti dan n i d el secolo, alcu n i subaltemi, certi uscieri, i superiori, sost enevano che leggesse dei libri strani. d a cui cav ava t utte quelle p arole che n on v oglion o dir nulla, o quasi nulla, ma serv ono com e non altre ad accileccaregli sprovveduti, gli ignari. Eran o qu estion i un p o ' da m a nicomio: una termin ologia da m edi d d ei m att i. Per la pr atica
M ULT IPLICID A D E
t ut t ' un a l t r o a f f a r e : c i v u o l e d el i a g r a n p a z i e n z a , d el i a g ra n ca ri t à : u n o s t o m a c o p u r a n c h e a p o s t o : e, q u a n d o n o n t r ab al li t ut t a l a b a r a c c a d e i t a l i a n i , s e n s o d i r es p o n s a b i l i t à e d e ci s i o n e s icu ra , m o d e r a z i o n e c i v i l e ; g i à : g i à : e p o i s o f e r m o . D i q u es t e obie z i o n i co s i g i u s t e lu i, d o n Cicc io , n o n s e n e d a v a p e r int es o: se g u i t a v a a d o r m i r e i n p i e d i , a f i l o s o f a r e a s t o m a co v u ot o , e a f i n g e re d i f u m a r e la s u a m ez z a sigh er et t a , rego la rm en t e s pent a.
N a s u a s a b e d o r i a e p o b r e z a m o lis a n a s , o d o u t o r In g r av a llo , q u e p arecia viver d e silên cio e d e son o s ob a selva negra de sua peruca, luzidia co m o b reu e encara colad a com o astracã, interrom pia às vezes, n a su a sab ed or ia, esse m esm o son o e esse silêncio para en u n ciar algu m a id éia teó rica (d e ord em geral, entendese) a p rop ósito d os h o m en s: e d as m u lh eres. À primeira vista, ou antes, à p rim eira ou vid a, tais idéias p areciam banalidades. Mas não eram. E bem assim aqueles breves enunciados, que crepitav am de sua b oca com a im p rev ista lum ino sid ad e de um fósforo, reviviam pos terior m en te n o tím p an o d as p essoas à d istância de horas, ou de m eses, de su a en u n ciaçã o: com o se após um misterioso tempo incu ba tór io. “A h! sim !” , reco n h ecia o interessado: “o doutor In gra va llo já m e h av ia d ito ” . Su stentav a, entre outras coisas, que as catá str ofes in op in ad as n ão são jam ais a conseqü ência ou o efei to, com o se costu m a d izer, de um m otivo ún ico, de uma causa singu lar: ma s são co m o u m vó rtice, um p on to de depressão ciclò nica na co n sciên cia d o m u nd o, para as quais conspirava toda uma gama de causalidades convergentes. Dizia às vezes um rolo. u m a e m b r u lh a d a , u m a r an z e l, o u u m g n o m m e r o , qu e em d ialeto romano quer dizer novelo. Mas o termo jurídico "cau salidade, as cau salid ad es” lh e aflorav a d e pr eferência à boca: quase contra sua v on tad e. A op inião de qu e era necessário "reform ar em nós o sen tid o d e categ or ia d e cau sa’’, qual a havíamos aprend id o com
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f’R d t m s T j s
conseguia imprimir de ordinário à metade inferior da face, sob o sono cia fronte e das palpebras e o neg ro p iche d a p eru ca. Acon tecia o mesmo, exatamente o m esm o, com “seu s” d elitos. “Q uan do me cham am !... Já viu. Se m e ch am am ... é d ecer to p or alguma encrenca; um rolo... uma em br u lha d a...” , d izia, con ju m inan d o napolitano, molisano, e italiano. O móbil aparente, o m óbil p rincip al, era, n a verd ad e, um . Mas o ato delituoso era o resultado de toda uma gama de causalidad es q u e lh e so p r a v am p o r cim a c o m o u m t u f ã o (c o m o o s d e z e s seis ve n to s d a r o s a d o s v e n t o s q u a n d o s e e n r o d i lh a m e m t r o m ba numa depressão ciclónica) e haviam acabado por esmagar no vórtice do crime uma “razão do m u n d o” bastan te d ebilitad a. Como se torce o pescoço a um frango. Aí então costumava dizer, mas isso um tanto arrastad amente, “ as m u lheres estão sem p re on de não deviam estar” . Tardia reed ição itálica d o o b so leto “ cher chez la fem m e” . E logo parecia arrep en d ido , com o se tivesse caluniado as mulheres, e quisesse mudar de opinião. Mas aí é que se embaraçava de vez. De m od o qu e se calava p en sativo, com o temend o haver falado demais. Qu eria d izer com isto qu e um certo móbil afetivo, um tan to, ou, com o se d iria ho je, u m a lgo de afetividade, um certo “ quan tum d e er otism o” , tam bém entrava na comp osição dos “casos de interesse” , d os d elitos ap aren temente mais distanciados das tempestades amorosas. Alguns colegas, um tanto ou quanto invejosos de seus achados, algum padre mais instruído sobre os estragos do século, alguns subalternos, certos oficiais de justiça, os superiores, sustentavam que In gravallo era dado a leituras estranhas: das quais extraía aquelas palavras que não queriam dizer nada, ou quase nada, mas que serviam mais que quaisquer outras para em basb acar os ing ênu os, os ignorantes. Era um palavrório ch egad o a m an icôm io: term inologia de méd ico de d oidos, Mas na prá tica a coisa m u d ava de figura! Os fum os e as filoso fices cab iam b em ao s tr ata d istas: na prática dos com issariados e das patrulhas vo lant es o n eg ócio era d iferente: o que se requ eria era mu ita p aciência, m u ita caridad e: um estômago bastante forte: e, desde que a máquina do Estado não esteja desengonçada, um senso de responsabilidade, espíri-
M ULTIPLICID A DE •
objeções bastante justas, ele, don Ciccio, não se dava por achado: con tinu av a a d orm ir em pé, a filosofar de estôm ago vazio, e a fingir q u e fu m ava su a p on ta d e cigarro, habitualmente apagada.
A p a s s a g e m q u e a c a b e i d e l er fi gu r a n o i n íci o d o r om a n c e Quer past icciaccio brut t o de via Merulana [Aquela confu são louca da via Merulana], de Cario Emilio Gadda. Quis começar p o r e ss a c i t a ç ã o p o r m e p a r e c e r p r e st ar -s e m u i t o b em c o m o in t ró it o a o t e m a d e m i n h a c o n f e r ê n ci a , q u e é o r om a n c e co n t e m p o râ n e o co m o e n ci cl o p é d i a , co m o m é to d o d e co n h e cim e n to , e p r i n c i p a l m e n t e c o m o r e d e d e co n e x õ e s e n tr e os fatos, e n tr e as pessoas, entre as coisas do mundo. P o d e r i a t e r e s c o l h i d o o u t r o s a u t o re s p a ra e xe m p l i fi ca r e s sa v o c a ç ã o d o r o m a n c e d o n o s s o sé cu l o . Es co lh i G ad d a n ã o só porq u e se trata d e u m escritor de m inha língua, relativamente p o u c o c o n h e c i d o p o r a q u i (t al v ez e m r az ão d e su a p articu la r complexidade estilística, difícil mesmo para os italianos), mas sobretu d o p or q u e su a filosofia se casa m uito bem com meu dis cu r s o, n o s e n t i d o e m q u e e le v ê o m u n d o co m o u m “ sistem a d e s i s te m a s ” , e m q u e c a d a s i s te m a p a r ti cu l a r co n d i ci o n a os d e mais e é condicionado por eles. C a r i o E m i l i o G a d d a d u r a n t e t o d a a su a vid a b u s co u r ep r e se n ta r o m u n d o c o m o u m r o l o , u m a em b r u l h ad a , u m aran zel, sem jam ais ate n u ar-lh e a com p lexid ad e inextricável — ou, m e l h or d i z e n d o , a p r e s e n ç a s im u l t â n e a d o s e le m e n t o s m ais h e t e r og ê n e o s q u e c o n c o r r e m p a r a a d e t e rm i n a çã o d e ca d a e ve n t o. G a d d a e r a c o n d u z i d o a e s sa m a n e i r a d e v er p o r su a f or m a ção in telectu al, seu tem p eram en to d e escritor e suas neuroses. No qu e resp eita à fo rm ação intelectual, Gadda era engenheiro, a l im e n t a d o d e c u l t u r a c ie n t í fi ca , d e g r a n d e c om p e t ê n ci a t écn i ca e de u m a v er d ad ei ra p aixão filosófica. Esta última ele a m an teve — p od e-se d izer — se creta: foi só dep ois de sua morte que se descobriu nos papéis do escritor o esboço de um sistema
SEIS PROPOSTAS.
— e la b or ou u m e st il o q u e c o r r e s p o n d e à s u a co m p l e x a e p i s te mología, na medida em que superpõe diversos níveis de lin g u ag em , d o s m ai s e l e v a d o s a o s m a i s b a i x o s , e o s m a i s v a r i a d o s l éxico s. Fi n a lm e n t e , c o m o c u l t o r d e su a s n e u r o s e s , G a d d a se entrega todo a cada página que escreve, dando vazão às suas a n gú st ia s e o b s e s sõ e s, d e so r t e q u e n ã o r a r o o p r o j e t o s e p e r d e e os d etalh es a ca b am cr e s ce n d o d e m o d o a t o m a r t o d o o q u a d r o . O q u e d e v er ia se r u m r o m a n c e p o l i ci a l p e r m a n e c e s e m s o l u çã o; p o d e -s e d i ze r q u e t o d o s o s s eu s r o m a n c e s f i ca r a m n o e st ad o d e o b r as i n c o m p l e ta s ou f r a g m e n t á r i a s, r u í n a s d e a m b i ci os os p r o j e to s , q u e co n s e r v a m o s s in a i s d o f a u s t o e d o c u i d a do meticuloso com que foram concebidas. Para se av aliar c o m o o e n c icl o p e d i s m o d e G a d d a p o d e c h e gar a uma composição perfeitamente acabada, é necessário re co r re r aos se u s t e xt o s m a is c u r t o s , c o m o p o r e x e m p l o s u a r e ce ita de "r i s o t o à m i l a n e s a ", u m a o b r a - p r i m a d a p r o s a i ta li an a e d a sa b ed o ria p r át ica , p e l o m o d o c o m o d e s c r e v e o s g r ã o s d e arroz em parte ainda revestidos pelo invólucro (“pencarpo”), as p a n el as m ai s a p r o p r i a d a s , o a ç a f r ã o , a s v á r i a s f a s e s d a c o z e d u ra. O u t ro t e xt o se m e lh a n t e é d e d i ca d o à s t é c n i c a s d e c o n s t ru çã o q u e , a p ós a a d o çã o d o c im e n t o a r m a d o e d o s t ij o l o s v a z ad o s, já n ã o r e sg u a r d a m a s ca s a s d o c a l o r n e m d o s r u í d o s ; s eg u e-s e d aí u m a g r o te s ca d e s c r i çã o d e s u a v i d a n u m e d i f íci o m o d e r n o e su a o b s es sã o p o r t o d o s o s r u m o r e s d o s v i z i n h o s q u e lhe chegam aos ouvidos. N os t exto s b re ve s d e G a d d a , b e m c o m o e m ca d a e p i só d i o d e se u s r om a n ce s , ca d a o b j e t o m í n i m o é v i s to c o m o o c e n t r o d e u rn a r ed e d e re l a çõ e s d e q u e o e s c r i t o r n ã o c o n s e g u e s e e s quivar, multiplicando os detalhes a ponto de suas descrições e d i v ag açõ es se t o r n a r e m in f in i ta s. D e q u a l q u e r p o n t o q u e p a r ta , se u d i scu r s o se a la rg a d e m o d o a co m p r e e n d e r h o r i z o n t e s
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no capítulo 9 de Q u er pa st icciaccio brutt o de via Merulana. Relações d e cad a p ed ra p re ciosa com sua história geológica, sua com p osição q u ím ica, re ferê n cias históricas e artísticas, com to das as destinações possíveis e as associações de imagens que essas su scitam . A ep iste m o log ia imp lícita na escrita de Gadda deu lugar a um ensaio crítico fundamental (Gian Cario Roscio ni, La d i s a rm o n i a p res t a b i l it a , Einaudi, Turim, 1969), que se abre com uma análise daquelas cinco páginas sobre jóias. Partindo daí, Ro scio n i m ost ra com o, em Gadda, esse conhecimento das coisas e n q u a n to “ relaçõ es infinitas, passadas e futuras, reais ou possíveis, que para elas convergem”, exige que tudo seja exatam ente d en om in a d o, d escrito e localizado no espaço e no tempo. Isso o co r r e m ed ian te a exploração do potencial semântico das palav ra s, d e to d a a var ieda d e de formas verbais e sintá ticas, com su as c o n o ta çõ e s e color id os e efeitos o mais das ve zes côm icos qu e seu relacion am en to comporta. Uma co m icid a d e gr ote sca com laivos de angustiante de sespero caracteriza a visão de Gadda. Antes mesmo que a ciência tivesse r e co n h e cid o oficialm en te o princípio de que o observador in ter v ém p ar a m od ificar de alguma forma o fenôme no observado, Gadda sabia que “conhecer é inserir algo no real; é, p o rta n to , d efo rm a r o rea l” . Dond e sua maneira típica de rep res en tar d efor m a n d o, e aquela tensão que sempre esta belece entre si e as coisas representadas, mediante a qual quanto mais o m u n d o se d eform a sob seus olhos, mais o self do autor se envolve nesse processo, e se deforma e se desfigura ele próprio. A paixão cognitiva conduz, pois, Gadda da objetividade do mundo para a sua própria subjetividade exasperada e isto, Para alguém que não se ama a si próprio, e até mesmo se detes-
SEIS PROPOSTAS.
... I'io, io!... ilpiú lurido di tutti ip ro n o m i!... I p ro n o m i! Sono ipidoccbi deipensiero. Q uando il pen si ero h a i pi do cchi, si grat ta come tutti quelli ehe ha nn o i p id o cch i... e nelle u n gbie, allo ra. . ci ritrova i pronom i: i p ron o m e d i perso n a .
... o eu, eu!., o mais sórdido de todos os pronomes!... Os pronomes! São os piolhos do pensamento. Quando o pensamento tem piolhos, ele se coça como todos os que têm piolhos... e nas unhas, então, vai encontrar de novo os pronomes: os pron om es pessoais. Se a escrita de Gadd a é definid a p or essa te n são en tr e exatidão racional e d eformação frenética com o com p o n en tes fu nd amentais de todo p rocesso cog n oscitivo, n a m esm a ép oca um ou tro escritor de form ação tecn ocient ífica e filosó fica, e t am bé m en genheiro, Robert Musil, expr imia a ten são en tr e a exa tid ão m atemática e a abordagem dos acontecimentos humanos, mediante uma escrita comp letamente d iferente: flu en te, irô n ica e con tr olada. A matemática das solu ções par ticulares: tal er a o so n h o d e Musil: A ber er batt e noch etw as a u f d er Z u n ge geh a b t ; et w as v on m a thematischen A ufgaben, die k eine all gem ein e Lö su ng zul assen, wohl aber Einzellösungen, du rch d eren K om bin at io n m an sich der allgemeinen Lösung nähert. Er hätte hinzufügen können, dass er die A ufgabe des m enschlichen Leben s f ü r ein e solche an sab. Was man ein Zeitalter nennt — ohne zu wissen, ob inan Jahrhundert e, Jahrt ausen de o d er d ie S p a n n e z w isch en Schule und Enkelkind da runt er v erst ehen soll — dieser breite, ungeregelte Fluss von Z uständen w ürde da nn u n gefä h r ebensov iel bedeuten wie ein planloses N achein an der von u n genü gend en un d einzeln genom m en fals chen Lös un gsv ersuchen, a u s den en, erst wenn die Menschheit sie z usa m m enz ufa ssen v erst ün de, di e richtige und totale Lösung hervorgehen könnte.
In der St rassenbahn eri nnert e er sich a u f dem Heim w eg da ran. (Der Mann ohne Eigenschaften, vol. 1, 2 a part e, cap. 83)
Mas ele tinha ainda outra coisa a dizer: algo sobre os problemas
MULTIPLICIDA DE s o l u ç õ e s p a r t icu l a r e s cu j a co m b i n a ç ã o n o s p e r m i t ir ia a p r o xi m a r de uma solução geral. Poderia acrescentar ainda que considera v a d e s s e g ê n e r o o p r o b l e m a d a exi st ên c ia h u m a n a . O q u e se só i ch a m a r u m a é p o c a — s e m s ab e r se p o r isso se d e va e n t e n d e r s é c u l o s o u m i l ê n i o s o u o cu r t o l ap s o d e t em p o q u e se p a r a a i d a d e e s c o l a r d a v e l h i c e — , e s s e l a rg o e li vr e r io d e ci r cu n s t â n c ia s , s e ri a e n t ã o u m a e s p é c i e d e s o r d e n a d a d e '' so lu çõ es in s u f ici en t e s e i n d i v i d u a l m e n t e f a ls as d a s q u a is n ã o p o d e r ia b r o ta r u m a s o l u çã o e x a t a e t o t a l s e n ã o q u a n d o a h u m a n i d a d e fo ss e ca p a z d e en c ar álas todas. N o b o n d e , v o l t a n d o p a r a ca sa , ain d a p e n sa va n o as su n t o. (O
homem sem qualidades) O co n h ec im e n to p ara Musil é a consciên cia da inconcilia bilidade entre duas polaridades contrapostas: uma, que denomina ora exâtidão, ora matemática, ora espírito puro, ou mesmo m en talid ad e m ilitar, e ou tra qu e cham a ora de alma, ora de irracionalid ad e, or a d e hu m an id ad e, ora de caos. Tu do o que sab e o u p e n s a , d e p o s i t a o n u m liv r o e n ciclo p é d ico q u e p r o cu ra m an ter sob a fo rm a d e ro m an ce, mas com o a estrutura da obra se m o d ifica con tin u a m en te e se desfaz em suas mãos. ele não vai con seg u ir term inálo, e n em m esm o d ecid ir sobre as linhas gerais que poderiam conter dentro de contornos precisos essa en o rm e m assa d e m aterial. Um con fron to entre esses dois escr itore sen g en h eiro s — Gadd a, para quem a com p reensão con sistia em d eixar se en v olv er n a rede das relações, e Musil, q u e d á a im p r e s s ã o d e s e m p r e co m p r e en d e r tu d o na m u lti plicidad e d os có d ig o s e d os n íveis sem nu nca se d eixar env olver — d eve reg istrar ain d a u m d ad o com u m a ambos: a incapacidade de concluir.
SP IS PROPOSTAS.
dilatando em seu interior por força de seu próprio sistema vital. A rede que concatena todas as coisas é ta m b ém o tem a d e Proust; mas em Proust essa rede é feita de p on tos esp aço tem p or ais ocupados sucessivamente por tod os os seres, o qu e com p or ta uma multiplicação infinita das dimensões do espaço e do tempo. 0 mundo dilatase a tal ponto que se torna inapreensível, e para Proust o conhecim ento passa p elo sofr im en to d essa inap reensi hilidade. Nesse sentido, o ciúme que o narrador prova por Al bertine é uma típica experiência d e co n h ec im en to : F.t je com prenais 1’im poss ibili t é o it s e b eu rt e I 'am o u r. N ous nous imaginons qu 'il a po u r objet tin êt re qu i p eu t êt re couché clevant nous, enferm e da ns un corps. H éla s! II est I 'extension de cet ètre à tons les poin t s d e l espa ce et d u t em ps q u e cet être a occupés et occupera. Si nous n ep o ss édo n sp a s s on cont act avec tel lieu, avec telle bettre. nou s n e le p o ss éd o n s p a s. O r no us ne pouv ons t oucher tons ces p oint s. Si en co re ils n o u s ét aien t dé signés. peut ètrepourrionsn ous no us ét en d re j u s q u à eux . Mais nous tàtonnons sans les trouver. De là la d éfi a n ce, la jalo usie, les persécutions. N ous perdon s un tem ps p réc ie u x s u r u n e piste absttrde et nous passons sans le soupçonner à côté du vrai.
... E eu compreendia a impossibilidade contra a qual o amor se choca. Imaginamos que ele tenha por objeto um ser que pode estar deitado à nossa frente, oculto num corpo. Mas ai! Ele é a extensão desse ser em todos os pontos do espaço e do tempo que esse ser ocupou ou vai ocupar. Se n ão p ossu ím os seu conta to com tal lugar, com tal hora, nós não o possuímos. Mas não podemos tocar todos esses pontos. Se ainda nos fossem indicados, talvez pudéssemos tentar alcançálos. Mas tateamos às cegas sem encontrar. Daí a desconfiança, o ciúme, as perseguições. Perdemos um tempo precioso seguindo uma pista absurda e passamos ao lado da verdade sem suspeitála. P r i s o n n i è r e (éd.
M U LT IPLICID A D E
telefon es. Algum as p ágin as ad ian te, assistim os às pr imeiras d em onstrações d os aer op lano s, da mesma forma com o havíamos visto no volume precedente os automóveis tomarem o lugar das carru ag ens, tr an sform an d o assim a relação do esp aço com o tem p o, d e tal for m a q u e “ 1’art en est aussi m od ifié” [a arte tam bém se m o d ificou ] (n, p . 996). Digo isto para d em onstrar que Prou st nad a t em a in ve jar d os dois escritoresengenh eiros an teriorm ente citad os n o q u e respeita ao conh ecimen to da tec nologia. O a d v en to d a m od ernid ad e tecnológica que veremos delinearse gradativamente na Recherche não faz parte apenas da “cor d o te m p o ” m as d a próp ria forma da obra, de sua razão interna, d e su a ân sia d e d ar con sistên cia à mu ltiplicidad e d o es crevível na brevidade de uma vida que se consome. Em minha primeira conferência parti dos poemas de Lucrecio e de Ovídio e do modelo de um sistema de infinitas relações de tu d o c o m tu d o q u e se encontra naqueles dois livros tão diferentes um do outro. Nesta conferência creio que as rem issões às liter atu ra s d o p assad o p od em ficar reduzidas ao mí nimo, ao q u an to basta' p ara d em onstrar com o em nossa época a literatura se vem impregnando dessa antiga ambição de representar a multiplicidade das relações, em ato e potencialidade. A excess iva am b ição d e p rop ósitos pod e ser reprovada em muitos cam p os d a ativid ad e h u m ana, mas não na literatura. A literatura só p o d e v ive r se se p ro p õe a objetivos desmesurados,, até mesmo para além de suás possibilidades de realização. Só se p oetas e e scr ito r es se lan çarem a emp resas que ninguém mais ousaria im ag ina r é q u e a literatu ra continu ará a ter uma função. No m om en to em q u e a ciên cia d esconfia das explicações ge rais e das s o lu çõ es q u e n ão sejam setoriais e especialísticas, o grande d esa fio p ar a a literatu ra é o d e saber tecer em conju nto
SE/S PROPOSTAS.
verso” . Pouco sabemos com o ele im aginava d ar cor p o a essa idéia, mas só o haver escolh id o o ro m an ce com o form a literária que pudesse conter o universo inteiro já é em si um fato prenhe de futuro. Mais ou menos pela mesma época, Lichten berg escrevia: Creio qu e um p oem a sobr e o esp aço vazio po dêtia ser sublime". O universo e o vácuo: voltarei a esses dois termos, entre us quais vemos oscilar o ponto de chegada da literatura, e que com frequ ência ten d em a se ide n tificar . Encontrei estas citações d e Go eth e e d e Lichten ber g n o fas cinante livro de Hans Blumenberg, D ie Lesbarkeit d er Welt [A legibilidade d o mu nd o, il Mu lino. Bolon h a, 1984], em cu jos ú l timos capítulos o au tor retraça a h istória d essa am b ição, d esde Novalis que se p rop õe escrev er um “ livro a b so lu to ” , visto ora com o uma ' enciclop ed ística" ora com o u m a “ Bíblia” , até Hum boldt, que com Kosnios lev a a t e r m o s eu p r o je t o d e u m a “ d e s crição do universo físico". O capítulo de Blumenberg que mais interessa ao meu tema é o que se intitula “ O livro vazio d o m u n d o” , d ed icad o a Mallarmé e a Flaubert. Sempre me fascinou o fato de que Mal larmé. que em seus versos tinh a con seg u id o dar u m a in com p arável forma cristalina ao nada, ten h a d ed icad o seu s ú ltim os anos de vida a conceber um livro absoluto que seria o fim último do universo, m isterioso traba lho d e qu e o au tor d estruiu tod os os traços. Assim como me fascina pensar que Flaubert, que em 16 de janeiro de 1852 havia escrito a Louise Colet “ce que je voudrais faire, c’est un livre sur rien” [o que gostaria de fazer era um livro sobre nada], tenha d ed icad o seu s ú ltim os an os de vida ao mais en ciclop éd ico ro m an ce qu e já foi escrito , Bou v ard
et Pécachet. Bou vard et Pécuchet é se m d ú v i d a o a r q u é t ip o d o s r om a n ces que hoje passo em revista, m esm o se a p até tica e hilariante travessia d o saber efetuad a po r esses d ois q u ixo tes d o cien tificismo do século xix se apresenta com o u m a su cessão de nau-
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0u que com suas con tr ad içõe s d estroem toda possibilidade de certeza. Por mais boa vontade que tenham, falta aos dois escriturários aq u ela e sp écie d e g raça sugestiva que permite adequar as noções ao uso que delas se quer fazer ou ao gratuito prazer que delas se es p er a t irar, d om esse qu e não se aprend e nos livros. Co m o in ter p re tar o final d esse romance inconcluso — como a ren ú n cia d e Bou v ar d e Pécu chet quanto a compreender o mundo, sua resignação de um destino de escriturários, sua decisão d e se d ed icar em a cop iar os livros da biblioteca uni versal? D ev em o s c o n clu ir q u e, na exp eriên cia de Bouvard e Pé cuchet, e n ciclo p é d ia e n ad a são a m esma coisa? Mas por trás dos dois p er so n a g en s está Flau bert, qu e para alimentar sua aventura cap ítu lo p o r cap ítu lo, tem qu e adquirir uma competência em cad a ra m o d o sa b er , ed ificar u m a ciência que seus dois heróis p ossa m d estr u ir. Pa ra tan to lê manu ais de agricultura e horticultura, d e q u ím ica , a n ato m ia, m ed icina, geologia... Numa carta de ag osto d e 187 3 d iz ha v er lid o com esse objetivo, anotando os, 194 livr o s; e m ju n h o d e 1874, a cifra já havia subido para 294; cin co a n o s m ais tar d e, p o d e n oticiar a Zola: “ Mes lectures sont finies et je n ’o u v r e p lu s au cun bou qu in ju squ’á la termi naison d e m o n r o m á n ” [Acabei minhas leituras e não abro mais livro algu m at é a co n clu sã o d e m eu rom ance]. Mas em corres pon d ência d e d ata p o u co p oster ior, já vamos reencontrálo às voltas co m leitu ra s e clesiás ticas , passan d o dep ois a ocuparse de pedagogia, disciplina que vai obrigálo a reabrir um leque das ciên cias m ais d ísp ar es. Em jan eiro d e 1880 escreve: “Savez vous à co m b ien se m o n te n t les volu m es qu il m a faliu absorber pou r m es d eu x b on h om m es? A plus de 1500!” [Sabe quantos livros tive de absorver para os meus dois simplórios? Mais de 1500!]. A ep op éia en ciclop éd ica d os dois autodidatas é, pois, dou-
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todo aquele que lhes será vedad o. Tan to tr ab alho p ara dem on strar a futilidade do saber tal com o o usam os d ois au todid atas? (“Du défaut de méthode dans les sciences” (Da falta de método nas ciências] é o su btítu lo que Flau bert qu eria d ar ao ro m an ce; de uma carta de 16 de d ezem bro d e 1879.) Ou para d em on strar a fatuidade do saber tout court? Outro romancista en ciclop éd ico d e um sécu lo d ep ois, Raymond Qu eneau, escreveu um ensaio para d efend er os dois heróis da acusação de bètise (seu mal é o d e estarem “ ép ris d ’ab solu’’[tomados de absoluto] e não admitirem contradições ou dúvidas) e para d efend er Flau bert d a d efinição sim p lista de “ adversário da ciência". Flaubert est pot ir la science”, afirma Queneau, “dans la mesure justement oú celleci est sceptique, méthodique, prudente, hum aine. 11 a hor reu r des d og m atiqu es, des m étaph ysi ciens, des philosophes” [Flaubert é a f a v o r d a ciên cia p recisamente na medida em qu e esta é cética, m etó d ica, p ru d ente, hu mana. Tem ho rror aos do gm áticos, aos m etafísicos, ao s filósofos], ( Bàtons, cbiffres et let t res ) O ceticism o de Flaub ert, ju stam en te co m sua curiosidad e infinita pelo saber humano acumulado ao longo dos séculos, são os valores qu e tom arão com o seu s os m aior es escritores do sécu lo xx; mas em r elação a eles falarei d e u m ceticism o ati vo, do senso d o jogo e da ap osta na o bstin ação d e estabelecer relações entre d iscursos, m étod os e n íveis. O con h ecim en to co mo mu ltiplicidade é um fio qu e ata as obr as m aiores, tan to d o que se vem chamand o de m od ernismo qu an to d o qu e se vem chamand o de p ósm od ernism o, um fio qu e — para além d e todos os rótulos — gostaria de ver desenrolandose ao longo do próximo milênio. Recordemos que o livro passível de ser considerado a introdução mais com pleta à cultura d e n osso s écu lo é um rom ance: D er Z auberberg [A montanha mágica] de Thomas Mann. Podese dizer que do mundo recluso de um sanatório alpino partem todos os fios qu e serão d esenv olvid os p elos m aitres à
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p en s er do século: todos os temas que ainda hoje continuam a nutrir as discussões são ali prenunciados e passados em revista. O qu e tom a for m a n os grand es romances do século xx é a idéia de uma enciclopédia aberta, adjetivo que certamente contradiz o substantivo enciclopédia, etmologicamente nascido da pretensão de exaurir o conhecimento do mundo encerrandoo num círculo. Hoje em dia não é mais pensável uma totalidade que não seja potencial, conjectural, multíplice. D ifere n tem en te d a literatu ra m edieval que tendia para obras capazes d e ex p r im ir a integr ação d o saber humano numa ordem e numa forma de densidade estável, como A div ina comédia, em q u e co n v er g em um a riqu eza lingüística multiforme e a aplicação de um pensamento sistemático e unitário, os livros m o d er n o s q u e m ais ad m iram os nascem da confluência e do en tr ech o q u e d e u m a mu ltip licid ad e de métod os interpretativos, m an eiras d e p en sa r, estilos d e expressão. Mesmo que o p rojeto geral ten h a sid o m inu ciosam ente estudado, o que con ta nã o é o seu en cer r a rs e nu m a figura harmoniosa, mas a força centrífuga que dele se liberta, a pluralidade das linguagens como garantia de uma verdade que não seja parcial. Como fica prov ad o ex a ta m en te p elos d ois grandes autores de nosso sé cu lo q u e m ais se r efe rem à Id ad e Média, T. S. Eliot e Jam es Joy ce, ambos cultores de Dante, ambos com profundo conhecimento teológico (mesmo quando divergentes em suas intenções). T. S. Eliot dissolve o projeto teológico na leveza da ironia e no vertiginoso encantamento verbal. Joyce, que tem toda a in ten ção d e con str u ir um a ob ra sistemática, enciclopéd ica
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É t em p o d e p o r m o s um p o u c o d e o r d e m n a s p r o p o s ta s q u e venho acumulando como exemplos de multiplicidade. Há o texto unitário que se desen volve co m o o d iscu rso de uma única voz, mas que se revela interpretável a vários níveis. Aqui o primado da invenção e do tour-de-force cabe a Alfred Jarry com seu romance L ' am our absolu [O amor absoluto] (1899), de apenas cinq ü enta pá ginas, qu e p od e ser lid o com o três histórias com p letam ente d istintas: 1) a esp era d e u m con d enado à morte em sua cela na noite que antecede a ex ecução; 2) o m onólogo de um h om em qu e sofre d e insônia e, m eio ad ormecid o, sonha qu e foi cond en ad o à m orte; 3) a história d e Cristo. Há o texto m u ltíp lice, qu e sub stitui a un icida d e d e um eu pensante pela m u ltiplicid ade d e su jeitos, vo zes, o lhare s sobr e o mu ndo, segundo aquele m od elo que Mikhail Bakh tin cham ou d e “ d ia ló g ico ” , “ p o l ifò n i co ” o u “ c a r n a v a l e s c o ” , r a s tr e a n d o seus antecedentes desde Platão a Rabelais e Dostoiévski. Há a obra que, no anseio de conter todo o possível, não consegue dar a si mesma uma forma nem desenhar seus contornos, permanecendo inconclusa por vocação constit ucional, como vimos em Musil e em Gadda. Há a obra que corresp on d e em literatura ao qu e em filosofia é o pensam ento não sistem ático, qu e p ro ced e p or aforism os, por relâmpagos p u nctiform es e de scon tín u os; e eis qu e chega o m o m e n t o p r e cis o d e cit a r u m a u t o r q u e n ã o m e c a n s o n u n c a de ler, Paul Valéry. Falo de sua obra em prosa feita de ensaios de poucas páginas e de notas de p ou cas linh as d e qu e se com põem os seus Cahiers. “ Une ‘p h iloso p h ic’ d oit être po rtative” [Uma “filosofia” deve ser portátil], afirma (xxiv, 713), mas igualmente: “J’ai cherché, je cherche et chercherai pour ce que je nomme le Phénomène Total, c’est à dire le Tout de la conscience, des relations, des conditions, des possibilites, des im po ssibilités...” [Semp re bu squ ei e bu sco e contin u ar ei bu scan do aquilo que denomino o Fenômeno Total, ou seja, o Todo da consciência, das relações, das con d ições , d as p ossibilidad es, das impossibilidades...] (xn, 722).
MULTIPLICIDADE m
Entre os valores que gostaria fossem transferidos para o p r ó x im o m i lê n i o e s t á p r i n c ip a l m e n t e e st e : o d e u m a lite ra tu r a que tome para si o gosto da ordem intelectual e da exatidão, a in teligên cia d a p o esia ju n tam en te com a da ciência e da filosofia, co m o a d o V alér y en saísta e p rosad or. (E se record o Va léry num contexto em que dominam os nomes de romancistas, é t a m b é m p o r q u e e le , q u e n ã o e r a ro m a n cis ta , e q u e até m esm o, p o r cau sa d e u m a d e suas fam osas tiradas, passava por ter liqu id ad o co m a na rra tiv a tra d icion al, era um crítico qu e sa bia c o m p r e e n d e r o s r o m a n c e s co m o n e n h u m o u t ro , d e fin in d o lh es p r e c i s a m e n t e a e s p e c ifi cid a d e e n q u a n t o r o m a n c es .) Se tivess e d e a p o n tar qu em na literatura realizou perfeitamente o ideal estético de Valéry da exatidão de imaginação e d e lin g u a g e m * c o n s t r u i n d o o b r a s q u e co r r e sp o n d e m à r ig o ro sa geometria do cristal e à abstração de um raciocínio dedutivo, d iria sem h esita r Jo r g e Luis Borg es. As razões de minha p redileção por Borges não param por aqui; procurarei enumerar as p rincip ais: p o rq u e cad a texto seu contém um mod elo do uni v er so o u d e u m a t r i b u t o d o u n iv e r s o — o in fin it o, o in u m e rá v el, o t e m p o , e t e r n o o u c o m p r e e n d id o sim u lt an e am e n t e ou c í clico ; p o r q u e s ã o s e m p r e t e x t o s c o n t id o s e m p o u ca s p ág in as, co m e x e m p la r e c o n o m i a d e e xp r e s sã o ; p o r q u e seu s co n t o s a d o tam fr e q ü e n t e m e n t e a f o r m a e x t e r i o r d e alg u m g ê n e r o d a lit e ratu ra p o p u la r , fo r m a s c o n s a g r a d a s p o r u m lo n g o u s o , q u e as t r an s fo r m a q u a s e e m e s tr u t u r a s m í tica s . P o r e x em p lo , seu e n saio mais vertiginoso sobre o tempo, “El jardín de los sende ros q u e s e b ifu r c a n ” (Ficciones, Emecé, Buenos Aires. 1950), a p r e se n ta s e c o m o u m c o n t ó d e e sp io n a g e m , m a s in clu i u m r e lato lóg icom eta físico, q u e p or sua vez inclu i a d escrição d e um
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precisamente ahora. Siglos de siglos y só lo en el p re sen te ocu r ren los h ech os; inn u m erables h om br es en el aire, en la tierra y el mar y tod o lo qu e realm ente p asa m e p asa a m i..." [... re flet i q u e tu d o a qu i lo q u e a c o n t e c e c o m a lg u é m , a c o n t e c e a g o ra, precisamente agora. Séculos de séculos e só neste instante é que os fatos ocorrem; homens sem conta nos ares, na terra e no mar e tud o o qu e realm ente se passa está se p assan d o co migo...]; depois, uma idéia de tempo determinado pela vontade, no qual o futu ro se ap resenta tão irrevog áv el q u an to o p assado; e por fim a idéia central d o con to : u m tem p o m u ltíp lice e ramificado no qual cada presente se bifurca em dois futuros, d e m o d o a fo rm a r u m a r ed e c r e s c e n t e e v e r t ig i n o s a d e t e m pos divergentes, convergentes e paralelos". Essa idéia de infin it os u n iv er so s co n t e m p o r â n e o s e m q u e t o d a s a s p o s s ib i lid a des se realizam em todas as com bin açõe s p ossíveis nã o é um a digressão do conto mas a própria condição para que o protagonista se sinta autorizad o a com eter um d elito ab su rd o e a b ominável que lhe é im p osto p or sua m issão d e esp ion ag em , seguro de que aquilo ocorre em apenas um dos universos mas n ã o n o s o u t r o s, d e m o d o q u e , c o m e t e n d o o a s s a s sín i o a q u i e agora, ele e sua vítim a po d erão re con h ecer se am igos e irm ãos em outros universos. O m o d e lo d as r ed e s d o s p o s sív e is p o d e p o r t a n t o s e r c o n centrado nas pou cas páginas de um co n to d e Borg es, com o p ode constituir a estrutura qu e leva a rom an ces exten so s ou ex tensíssimos, nos quais a densidade de concentração se reproduz em cada parte separada. Direi, no en tan to, q u e h oje a re gra da "escrita br ev e" é confirm ad a até p elos rom an ces lon gos, que apresentam um a estrutura acum u lativa, m od u lar, com binatória. Estas consid erações constitu em a base d e m inh a p rop osta a o q u e ch a m o d e "h ip e r r o m a n c e ” e d o q u a l p r o c u r e i d a r u m exem p lo com Se una notte d' inv erno un v iaggiatore [Se u m via-
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p elos m e io s m a is d iv e r s o s d e s e n v o l v e m u m n ú cle o co m u m , e qu e a g em s o b r e u m q u a d r o q u e o d e te rm in a e é d e ter m in a d o p or e le . O m e s m o p r i n c íp i o d e a m o s t ra g e m d a m u lt ip licid a d e potencial d o n arr áv el con stitu i a ba se de ou tro livro m eu, II castello dei destini incrociati, q u e p r o c u r a s e r u m a e sp é cie d e m á q uin a d e m u l t ip l ic a r a s n a r r a ç õ e s p a r t in d o d e e le m e n t o s fig u rativos co m m ú ltip los sign ificad os p ossíveis com o as cartas de um b a r a lh o d e t a r ô . S o u in c li n a d o p o r t e m p e r a m e n t o à “ e scr i ta b r e v e ” e e s s a s e s t r u t u r a s m e p e r m it e m a lia r a co n c e n t r a çã o d e in v e n ç ã o e e x p r e s s ã o a o s e n t i m e n t o d a s p o t e n cia lid a d e s in finitas. O u t ro e x e m p lo d a q u ilo q u e ch a m o d e “ h ip e rr om a n ce ” é La vie m od e d ' em p loi d e G e o r g e P e r e c , r o m a n c e e x t r e m a m e nte l o n g o m a s c o n s t r u í d o c o m m u i ta s h i st ór ia s q u e se cr u zam (n ã o é p o r n a d a q u e n o s u b t ít u lo t r az R om an s no plural), r e n o v a n d o o p r a z e r d o s g r a n d e s c i c l o s à la Balzac. C r e i o q u e e s s e l iv r o , p u b l ic a d o e m P ar is e m 1 978. qu a tr o anos a n t e s d a m o r t e p r e m a t u r a d o a u t o r ao s 4 6 an o s, se ja o ú l tim o v e r d a d e ir o a c o n t e c i m e n t o n a h i s tó r ia d o r o m a n c e. E ist o p or v á rio s m o t i v o s : o in c o m e n s u r á v e l d o p r o je t o n ad a o b st an te realizado; a no v id ad e d o estilo literário; o com p ênd io de uma tradição narrativa e a suma enciclopédica de sabere s que dão for ma a u m a i m a g e m d o m u n d o ; o s e n t id o d o h o je q u e é igu al m en te fe i t o c o m a c u m u l a ç õ e s d o p a s sa d o e co m a v er tig em d o vácuo; a con tín u a sim u ltan eid ad e d e ironia e angústia: em suma, a maneira pela qual a busca de um projeto estrutural e o imponderável da poesia se tornam uma só coisa. O p u z z le d á a o r o m a n c e o t em a d o e n r e d o e o m o d e lo fo r mal. O u t r o m o d e l o é o c o r t e d e u m p r é d i o tip i ca m e n t e p a ri siense, onde se desenrola toda a ação, um capítulo para cada quarto, cin co an d are s d e apa rtam en tos dos quais se enum eram os m óveis e o s a d or n os e são m encion ad as as transferencias de
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leiro de xadrez em que P erec p assa d e u m a casa a ou tra (ou se ja, de quarto em qu arto , ou d e ca p ít u lo em ca p ít u lo ) u tilizan d o o movimento do cavalo segu nd o u m a cer ta or d em qu e lhe permite ocupar sucessivam ente toda s as casas. (Te r em o s e n tã o cem capítulos? Não, mas no ven ta e n ov e, p o rq u e ess e liv ro ultra acabado deixa intencionalmente uma pequena saída para o inacabado.) Este é, por assim dizer, o continente. No que respeita ao conteúdo, depois de enu m erar listas de tem as , d ivid id os em categorias, Perec resolveu qu e em cad a ca p ítu lo d ev ia figur ar, m esmo se apenas esboçado, um tema de cada categoria, de modo a variar sempre as com binações segu n d o p ro ced im en tos m ate máticos que não estou em con d ições d e d efin ir m as so br e cu ja exatidão não tenho d úvidas. (Em bora ten h a freq ü en tad o P erec durante os nove anos que d ed icou à elab or açã o d o rom an ce, só conheço algumas de suas regras secretas.) Essas categorias temáticas são nada m enos qu e 42 e co m p re en d em citaçõ es li terárias, localizações geog ráficas, d atas h istó r ica s, m ó v eis, o b jetos, estilos, cores, alim en tos, an im ais, p la n ta s, m in era is e não sei mais quantas outras, assim co m o n ão s ei co m o o au tor co n seguiu respeitar essas regras mesmo nos capítulos mais curtos e sintéticos. Para escapar à arbitrariedade da existência, Perec, como o seu protagonista, tem n ecessid ad e d e se im p or r egra s rigoro sas (mesmo se essas regras forem por sua vez arbitrárias). Mas o milagre é que essa poética que se poderia dizer artificiosa e mecânica dá com o resultado u m a liberd ad e e u m a r iqu eza inventiva inesgotáveis. Isso p orq u e ela vem coin cid ir co m aqu ela que foi, desde os tem p os de seu p rim eiro ro m a n ce, L es ch o ses (1965), a paixão de Perec pe los ca tálog os: e n u m era ções de objetos definidos cada qual p or su a esp ecificid ad e e cor res p on
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páginas de Perec, e a coleção mais “sua” entre as inúmeras que esse livro ev oca , d irei q u e é a d e “ ú n icos ” , ou seja, de objetos dos quais só ex iste u m exe m p lar . Mas na vid a real Perec só era colecion ad or, qu an d o nã o d e palavras, pelo m enos de conhecim entos e lem br an ças; a exatid ão term inológica era a sua forma de possuir; Perec recolhia e designava tudo aquilo que faz a unicidade de cada fato, pessoa ou coisa. Ninguém mais imune do que Perec à pior praga da escrita de hoje: a generalidade. Gostaria d e insistir so b re o fato d e qu e para Perec a construção de um ro m an ce b asead o em regras fixas, em “contrain tes”, não su focav a a lib er d ad e n arr ativa, m as a estim ulava. Não é por nad a qu e P er ec foi o m ais inv en tivo d os participantes do Oulipo (Ou vr oir d e littéra tu re p oten tielle), fu nd ado p or seu m es tre Raym ond Q u en eau . Esse Qu enea u qu e, mu itos anos antes, nos tem p os d e sua p o lêm ica com os surrealistas sobre a “escrita au tom ática” , já escre v ia: Une au t re bi en fa u s s e idée qui a égalem ent cours actuellemem, c'est Véquivalence que l'on établit entre inspiration, exploration du subcon scient et libérat ion, ent re hasard, automat isme et li berté. Or, cette in spi rat ion qu i consiste à obéir aveuglément à toute impulsion est en réalité un esclavage. Le classique qui écrit sa t ragédi e en ob serv an t un cert ain no m bre de règles qu 'il con nait est p lu s li bre qu e le po èt e qu i écrit ce qui lui passe p a r la tête et q u i est Vesclav e d yau t res règles qu'i l ignore.
Outra idéia bastante falsa que atualmente vem sendo aceita é a da equivalência que se estabelece entre inspiração, exploração do subconsciente e liberação, entre acaso, automatismo e liberdade. Ora, essa insp iração qu e consiste em se obed ecer cegamente a todo impulso é na verdade uma escravidão. O clássico que es-
SE/S PROPOSTAS
C h e g o a ssim a o fim d e s sa m i n h a a p o l o g i a d o r o m a n c e c o m o g ra n d e r ed e . A lg u ém p o d e r ia o b j e ta r q u e q u a n t o m a is a o b r a t e n d e p a ra a m u l t ip l i ci d a d e d o s p o s s í v e is m a i s s e d i s t a n c i a d a q u e l e unicum q u e é o self d e q u e m e s c re v e , a s i n c e r id a d e i n t e rior. a descoberta de sua própria verdade. Ao contrário, res p o n d o , q u em s om o s n ó s , q u e m é ca d a u m d e n ó s s e n ã o u m a combinatória de experiências, de informações, de leituras, de i m a g in a çõ es ? C ad a v id a é u m a e n ci cl o p é d i a , u m a b i b l i o t e c a , u m inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis. Mas a resposta que mais me agradaria dar é outra: quem n o s d e ra f os se p o ss ív e l u m a o b r a c o n c e b i d a f o r a d o self, u m a obra que nos permitisse sair da perspectiva limitada do eu in d i vid u a l, n ão só p a r a e n t r a r e m o u t r o s e u s s e m e l h a n t e s a o n o s so, mas para fazer falar o que não tem palavra, o pássaro que p o u s a n o b e ir al, a á r v o r e n a p r i m a v e r a e a á r v o r e n o o u t o n o , a pedra, o cimento, o plástico... N ã o e ra aca s o e st e o p o n t o d e ch e g a d a a q u e t e n d i a O v í d i o a o n a r ra r a co n t i n u i d a d e d a s fo r m a s , o p o n t o d e ch e g a d a a q u e t en d i a Lu cr é ci o a o i d e n t i f i ca r -s e co m a n a t u r e z a c o m u m a todas as coisas?
Í N D I CE ON OM ÁSTICO
Ariosto, Ludovico, 35 Aristóteles, 1189 Arnim, Ludwig Achim von, 110
Cavalcanti, Guido, 22-30, 32, 39 Ce rva n tes Saavedra, Miguel de, 30,3 2 Chamisso, Adalbert von, 110 Chomsky, Noam, 85
Bakhtin, Mikhail, 132 Balzac, Honoré de, 1114, 135 Barbey D’Aurevilly, Jules, 456, 48 Barthes, Roland, 79 Baudelaire, Charles, 81 Beckett, Samuel, 111 Belli, Giuseppe Gioachino, 59 Benn, Gottfried, 84 Betussi, Giuseppe, 48 Blumenberg, Hans, 128 Boccaccio, Giovanni, 22, 24, 2930, 32, 513 Bontempelli, Massimo, 84 Borges, Jorge Luis, 9, 634, 83, 84, 1334 Bruno, Giordano, 33, 83, 113
Citati, Pietro, 8 Colet, Louise, 128 Contini, Gianfranco, 25 Copérnico, Nicolau, 33 Cyrano de Bergerac, 33-5, 39 Damisch, Hubert, 112 Dante Alighieri, 26-8, 97-9. 101. 102. 131 De Quincey, Thomas, 53--* De Santillana, Giorgio, ~T Descartes, René, "’S Dickens, Charles, 110 Dickinson, Emily. 28 Diderot, Denis, S9 Doré, Gustave, 36 Dostoievski, Fedor Mikhuilovitch. 132
ÍN DICE ON OM ÁSTICO Flaubert, Gustave, 83, 12830 Frye, Northrop, 9 Gadda, Carlo Emilio, 1215, 132 Galilei, Galileu, 39, 568 Galland. Antoine, 36 Gassendi, Resse, 33 Gautier, Théophile, 110 Giovio, Paolo, 61 Gödel, Kurt, 114 Goethe, Wolfgang, 1278 Gogol, Nikolai Vassilevitch, 110 Gómez de la Serra, Ramón, 84 Guinizelli, Guido, 25 Harold, rei norueguês, 48 Hawthorne, Nathaniel, 110 Hoffmann, Ernst Theodor Amadeus, 110
Hofmannsthal, Hugo von, 90 Hofstadter, Douglas R., 102, 114 Homero, 65 Humboldt, Wilhelm von, 128 Inácio de Loyola, 100, 1012 Irving, Washington, 50 Jammes, Henry, 29, 111 Jarry, Alfred, 132 Joyce, James, 131 Jung, Carl Gustav, 64, 104 Kafka, Franz, 401 Kant, Emmanuel, 78, 1189 Kipling, Joseph Rudyard, 110 Klibansky, Raymond, 32 Koch, Angelica, 9 Kublai Cã, 867 Kundera, Milan, 19
Leiris, Michel, 62 Leonardo da Vinci, 914 Leopard i, Giacom o, 368, 545, 62, 738, 80, 82 Leskov, Nicolai, 110 Levi, Carlo, 59 Lichtenberg, Georg, 128 Luciano de Samosata, 35 Lucrecio Caro, Tito, 201, 22 , 25, 33, 39, 58, 90, 127, 138 Lulio, Raimundo, 39 Mallarmé, Step h an e, 81, 834, 90, 128 Mann, Thomas, 130 Manuzio, Aldo, 61 Marighetti, Luca, 9 Melville, Herman, 8 Michaux, Henry, 62 Michelangelo Buonarroti, 101 Montale, Eugenio, 18, 19, 89 Monterroso, Augus.to, 64 Moore, Marianne, 89 Musil, Robert, 79, 1245, 132 Neval, Gerard de, 110 Newton, Isaac, 36, 389 Novalis, 128 O ’Su lliva n , Pat, 109 Ovidio, 179, 212, 25, 39, 127, 138 Panofsky, Erwin, 32 Paris, Gaston, 48 Parmenides, 78 Paz, Octavio, 9 Perec, George, 1357 Perrault, Charles, 50 Pessoa, Fernando, 84 Petrarca, Francesco, 47, 48 Piaget, Jean, 85
ÍN DICE ONOMÁSTICO m Pitägoras, 22
Platäo, 132
Stevenson, Robert Louis, 110 Stravinsky, Igor, 9
Poe, Edgar Allan, 81, 110
Swift, Jonathan, 35, 36
Polo, Marco, 867 Ponge, Francis, 62, 8990, 91 Potocki, Waclaw, 110
Tomás de Aquino, 98
p r o p p , V la d i m i r Ja k o v l e v i c , 4 0 Proust, Marcel, 1257 Queneau, Raymond, 130, 137
Turgueniev, Ivan Sergueievitch, 110 Turpino, Arcebispo, 45, 478 Valéry, Paul, 28, 62, 80, 81, 84, 132, 133 Virei, André, 656 Voltaire, 36
Rabelais, Frangois, 32, 132 Roscioni, Gian Carlo, 123 Saxl, Fritz, 32 Shakespeare, William, 31, 33 Spinoza, Baruch, 121 Starob insk i, Jea n , 103, 104, 1067 Stein, Ch arlot te vo n , 127 Sterne, Laurence, 59 Stevens, Wallace, 84
Wells, Herbert George, 110 Whitman, Walt, 62 Williams, William Carlos, 62, 89 Wittgenstein, Ludwig, 90 Yates, Francis, 31 Zellini, Paolo, 83 Zola, Émile, 129
extraordinariamente funcional dos contos de fadas. N e le s e n co n t r a u m d o s v a lo r e s s o b r e os q u a is o rg a n i zar seu projeto de resistência ao empobrecimento da l ín g u a , s u a d e fe sa d o o fí cio d e e s cr e v e r — m a s n e le s se r e co n h e c e , t am b é m , a q u e la u n i ão d e ri g o r e m a r a vilhoso, de exatidão e fábula que constituíram a m a r ca d e s u a o b r a l it e rá r i a .
í t a l o CALVIN O ( 1923 - 8 5 )
n asceu em San tiago de Las Ve-
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EDIÇÃO [1990]
4 reimpressões EDIÇÃO [1994] 9 reimpressões EDIÇÃO [2003] 8 reimpressões
ESTA OBRA FOI COMPOSTA PELA SPRESS EM GARAMOND E IMPRESSA EM OFSETE PELA RR DONNELLEY SOBRE PAPEL PÓLEN SOFT DA SUZANO PAPEL E CELULOSE PARA A EDITORA SCHWARCZ EM JULHO DE 2010