ESPECIAL |
PSICOTERAPIA BREVE ANO XIII
COLECIONADORES Quando o acúmulo de objetos se torna doença
PSICANÁLISE psicologia
psicanálise
ne r ciência
O risco psíquico para desenvolvimento infantil, por Christian Dunker
CRIATIVIDADE Sonhar ajuda a resolver problemas
Com base na filosofia budista, psicólogos apostam no poder transformador de ser gentil consigo mesmo para combater estresse e ansiedade
A terapia da autoestima
carta da editora
Um bom jeito de começar
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esde o instante em que abrimos os olhos a cada manhã nos conectamos com nossas necessidades – e procuramos atendê-las. Porém, não raro, perdemos a paciência com nossos erros, medos, desânimo, ansiedade e outras emoções desconfortáveis. Não por acaso tantos adultos (que, muitas vezes, até cuidam de outras pessoas tanto profissionalmente quanto na vida pessoal) encontram enormes dificuldades para acolher a si mesmos. E chegam a se tratar como verdadeiros inimigos, seja se punindo pelo que consideram falhas, seja assumindo uma atitude vitimizada, como se nada pudessem fazer para mudar as próprias circunstâncias, ou sendo autoindulgentes e optando por comportamentos destrutivos. Atentos a esse comportamento frequentemente visto nos consultórios de psicanálise e psicologia, pesquisadores e profissionais da área da saúde foram buscar respaldo na sabedoria milenar budista. Resultado: descobriram no trabalho clínico e em estudos desenvolvidos em laboratório que praticar a autocompaixão pode ser uma alternativa surpreendentemente eficaz ao hábito comum e paralisante da autocrítica, intimamente associada ao sentimento de fracasso e à culpa. Desde que essa formulação foi apresentada de forma científica – com um artigo da psicóloga Kristin D. Neff, da Universidade do Texas –, o volume de publicações acadêmicas que investigam o assunto tem aumentado. Na prática, os efeitos da gentileza consigo mesmo têm sido transformador. “A autocompaixão reforça a motivação e a autoestima, já que ser amável consigo mesmo ajuda a tolerar as próprias falhas, o que aumenta a disposição para tentar novamente – e atingir objetivos”, escreve a jornalista e cientista social Marina Krakovsky, autora do texto de capa desta primeira publicação exclusivamente digital de Mente e Cérebro. Ainda nesta edição, uma entrevista com o Lama Michel Rinpoche ajuda a compreender o funcionamento mental sob a óptica da filosofia budista. Diz o mestre: “Muitos se sentem vítimas do desamor alheio porque acreditam que os outros não fizeram o que deveriam ter feito para fazê-los felizes e se estão mal é porque o mundo não é como deveria ser. Na verdade, a solução não é ser amado, mas sim amar”. E a forma mais eficiente de fazer isso parece ser começar por si mesmo. Boa leitura.
GLÁUCIA LEAL, editora-chefe
[email protected]
sumário | novembro 2017 capa
A terapia da
16 autoestima 12 Somos todos um pouco colecionadores por Olivier Saladini e Jean-Pierre Luauté
A maioria das pessoas guarda objetos, conteúdos digitais, músicas e fotos por prazer. Há, porém, aqueles que se sentem “forçados” a acumular coisas sem valor. Pesquisadores tentam entender os processos cerebrais que tornam o comportamento patológico
especial
por Marina Krakovsky
Com base num princípio budista, psicólogos começam a aplicar uma técnica orientada pela ideia de que ser gentil consigo mesmo pode aumentar a resiliência, que se traduz na capacidade de enfrentar dificuldades de forma saudável, sem sucumbir a elas. Na prática, o desenvolvimento da compaixão por si mesmo diminui as consequências nocivas do estresse e melhora a qualidade dos relacionamentos
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entrevista Lama Michel Rinpoche A arte de domar a mente por Gláucia Leal
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36 Psicoterapia breve Já usado por Freud no século retrasado, esse tipo de tratamento se consolidou na contramão das análises prolongadas e hoje reúne diversas modalidades de intervenção focal, usadas por correntes psicanalíticas, psicodrama, fenomenologia e cognitivas. Embora tenha tempo delimitado, a técnica não se restringe ao atendimento de curta duração; exige planejamento terapêutico específico, objetivo definido e grande empenho do terapeuta
seções 3 CARTA DA EDITORA
6 ASSOCIAÇÃO LIVRE Notas sobre atualidades, psicologia e psicanálise
9 NA REDE O que há para ver e ler na internet
34 NEUROCIRCUITO Mais caneta e papel, por favor! Novidades nas áreas de psicologia e neurociência
48 LIVROS Lançamentos
colunas 10 PSICANÁLISE Risco psíquico para desenvolvimento infantil por Christian Ingo Lenz Dunker
50 LIMIAR Adivinhe quem vem para jantar? por Sidarta Ribeiro
A localização das estruturas cerebrais nas imagens desta edição é apenas aproximada Os artigos publicados nesta edição são de responsabilidade dos autores e não expressam necessariamente a opinião dos editores
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AGENDA Programação de cursos, congressos e eventos. novembro 2017 • mentecérebro
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XARTE CONTEMPORÂNEA
Obras de Bispo do Rosário em exposição no Rio Metáfora do delírio, Flutuações traz 12 trabalhos do artista plástico, suspensos nos cômodos da Casa Museu Eva Klabin
“O
s loucos são como beija-flores: nunca pousam, ficam a dois metros do chão”, disse Arthur Bispo do Rosário (1909-1989), um dos maiores nomes das artes plásticas brasileiras, que viveu 50 anos internado em um manicômio, a Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, diagnosticado como esquizofrênico-paranoide. Em sua cela no centro psiquiátrico, criou o que chamou de seu “castelo”, um grande acervo de objetos, assemblages e trajes feitos com materiais que encontrava no lixo e no cotidiano: canecas, sapatos, tecidos, garrafas, vassouras, entre outros, que utilizou para construir, segundo ele, representações do mundo para serem mostradas a Deus no dia do juízo final. Doze desses trabalhos estão expostos em Flutuações, mostra dedicada ao artista na Casa Eva Klabin no Rio de Janeiro.
fotos de rodrigo lopes
ARTE E LOUCURA PAIRANDO SOBRE A REALIDADE: produções como Abajur, Cama de Romeu e Julieta e Arquivos II estão dispostas pelos quartos, banheiro e sala de jantar
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associação livre Masp aborda representações do corpo na exposição Erótica PUREZA, tela de 1938: reflexão sobre sexualização da mulher negra
Flutuações. Casa Museu Eva Klabin. Avenida
Epitácio Pessoa, 2480, Lagoa, Rio de Janeiro. De terça a domingo, das 14h às 18h. Informações: (21) 3202-8550. R$ 10. Até janeiro de 2018.
arte do projeto Histórias da sexualidade, eixo temático do Museu de Arte de São Paulo (Masp) em 2017, Erótica traz um conjunto de telas do artista Pedro Correa de Araújo produzidas na primeira metade do século 20. A obra do artista convida a refletir sobre a representatividade da mulher negra e indígena na arte brasileira, marcada por uma evidente sexualização – traço que se percebe não apenas nas artes plásticas, mas na literatura e produções audiovisuais. Os trabalhos dialogam com o debate sobre diversidade e questões de gênero, um dos temas centrais do projeto. Além das imagens de nu explícito que compõem a série que dá título à mostra, a seleção traz obras de Araújo que retratam diferentes nuances do erotismo, como danças folclóricas.
pedro correa de araújo/divulgação
Metáfora do delírio, a exposição traz as obras suspensas nos cômodos da casa-museu, onde viveu a colecionadora Eva Klabin e hoje é aberta ao público. Numa clara menção à analogia entre o louco e o beija-flor feita por Bispo, a disposição das obras pelos quartos, banheiro e sala de jantar dialoga com a característica principal do artista: a transformação da realidade cotidiana em arte. Entre as obras, estão Arquivos – uma relação de nomes, a maioria de mulheres, que Bispo considerava dignas da salvação –, Cama de Romeu e Julieta e Abajur – sendo essas duas grande exemplo da “reciclagem” de lixo. O título Flutuações remonta também a outra referência muito frequente na produção de Bispo – os barcos e a navegação por águas desconhecidas. Marinheiro antes de ser internado, o artista se utilizou das formas das embarcações para tratar da ideia da passagem entre os mundos terreno e divino, entre a realidade externa e a interna, a preparação para a morte, tema central da sua obra. Faz parte também da mostra a exibição permanente do documentário O prisioneiro da passagem (1982), de Hugo Denizart, que captou imagens e falas exclusivas de Bispo poucos anos antes de sua morte.
P
Erótica. Museu de Arte de São Paulo (Masp). Avenida Paulista, 1578, São Paulo. De terça a domingo, das 10h às 18h (bilheteria aberta até as 17h30); quinta-feira, das 10h às 20h (bilheteria até 19h30). Informações: (11) 3149-5959. R$ 30,00. Até 20 de novembro.
novembro 2017 • mentecérebro
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associação livre XTEATRO
Texto traz protagonista com transtorno borderline
“A
pessoa que se automutila não está querendo interromper sua própria vida, mas sim usando este comportamento como um modo de aliviar a dor emocional. A dor física é uma distração da dor emocional. Deus, dai-me paciência... E um estilete. Mas tem que ser agora!”, diz a protagonista de Pedaço de mim, texto sobre transtorno borderline escrito e dirigido pelo psiquiatra Bernardo Gregório, em cartaz em São Paulo. Conhecido também como transtorno de personalidade limítrofe (TPL), é caracterizado pela instabilidade emocional, o que desencadeia atitudes impulsivas e compulsões, como a automutilação mencionada pela personagem. A peça se inicia com a protagonista em uma cadeira de rodas, relembrando momentos de sua vida e contando ao público sobre seu sofrimento psíquico e os efeitos dos sintomas sobre sua autoimagem e relacionamentos.
Espetáculo infantil fala sobre adolescência e separação dos pais
A
pós seus pais se divorciarem, o protagonista Menino começa a apresentar complexos sintomas de um distúrbio sensorial: não consegue mais reconhecer palavras nem distinguir cores e notas musicais. A confusão dos sentidos é metáfora para a transição para a vida adulta no espetáculo infantil Mequetrefe sorrateiro, no Teatro Porto Seguro, em São Paulo. As dificuldades afetam seu estudo de flauta e a relação com o pai, um músico reconhecido. Com canções e rimas, o texto fala sobre as tentativas dos dois de encontrar novas maneiras de se comunicar; eles se identificavam principalmente por meio do amor pela música. Um espetáculo sobre as transformações físicas e psíquicas da pré-adolescência e o estranhamento diante das escolhas e dores do mundo adulto. Mequetrefe sorrateiro. Teatro Porto Seguro. Alameda Barão de
Piracicaba, 740, Campos Elísios, São Paulo. Sábado e domingo, às 15h. Informações: (11) 3226-7300. R$ 50 (plateia) e R$ 30 (balcão). Até 3 de dezembro.
ESCRITO E DIRIGIDO pelo psiquiatra Bernardo Gregório, Pedaço de mim se aprofunda em sofrimento psíquico de mulher com os sintomas
priscila prade
Teatro Augusta. Rua Augusta, 943, Cerqueira César, São Paulo. Sábado, às 20h; domingo, às 19h. Informações: (11) 3151-4141. R$ 40. Até 3 de dezembro.
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DISTÚRBIO SENSORIAL que afeta a visão e audição de menino é metáfora sobre transição para a vida adulta
divulgação
Pedaço de mim.
o que há para ver e ler
| na rede
OUVINDO PELA PRIMEIRA VEZ: testes com o aparelho criado pela Advanced Bionics – a prótese transmite sinais elétricos para o nervo auditivo
Implante coclear devolve audição para pessoas com surdez neurossensorial
reprodução/canal da advanced bionics no youtube
XTECNOLOGIA
Estilista lança sapatos para mulheres que calçam mais de 40
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ara e de origem genética, a síndrome de Marfan é caracterizada por alterações cardiorrespiratórias, visuais e, principalmente, pela altura acima da média e pelo crescimento exagerado de membros, como mãos e pés. Entre as muitas dificuldades enfrentadas pelas pessoas que desenvolvem os sintomas – estima-se que seja uma em cada 5 mil nascidos –, está a procura por roupas e sapatos, o que afeta a autoestima. Essa experiência motivou a estilista britânica Caroline Stillman, que tem a síndrome, a criar uma marca de sapatos elegantes, confortáveis e com preço acessível para mulheres que calçam mais de 40. Batizada Carobella, a marca conta com loja virtual e a autora divulga seus modelos na rede Instagram. As sandálias, sapatilhas e botas custam entre 40 e 100 libras e podem ser entregues no Brasil: www.carobellaboutique.co.uk.
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aramente pensamos sobre isso, mas ouvir é um processo fisiologicamente complexo. Basicamente, as ondas sonoras que chegam ao ouvido interno são amplificadas e chegam à região da cóclea, onde se encontram células sensoriais ciliadas que transmitem sinais ao nervo auditivo e, então, ao cérebro. Na maioria dos casos de surdez, esse nervo está íntegro, porém as células ciliadas foram lesionadas ou perdidas. O implante coclear consiste em tentar substituir a função dessas estruturas e transmitir eletricamente sinais para o nervo auditivo. Assim, a empresa Advanced Bionics criou o aparelho composto por microfone externo, processador de som e eletrodo introduzido cirurgicamente. De forma que o nervo auditivo é estimulado e as ondas sonoras chegam ao cérebro, possibilitando que pessoas com surdez neurossensorial ouçam sons. No canal que leva o nome da empresa no YouTube, é possível assistir a vídeos que explicam detalhadamente o mecanismo de funcionamento da prótese e experiências de pessoas que estão experimentando e ouvindo pela primeira vez. Em tempo: no Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) cobre implante coclear. O tratamento é oferecido em hospitais públicos de várias capitais, como o Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo e o Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, no Rio de Janeiro.
ção/inst agram
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A dificuldade em encontrar calçados motivou a grife britânica Carobella a criar opções elegantes, confortáveis e com preço acessível novembro 2017 • mentecérebro
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psicanálise
inconsciente a céu aberto
Risco psíquico para desenvolvimento infantil A linha que separa conflitos éticos na política e na clínica é tênue; a recente determinação legal de que bebês sejam psiquicamente avaliados abre espaço para debate sobre diagnóstico e estigma m abril de 2017, foi sancionada a Lei 13.438, que altera o artigo 14.º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e estabelece, em seu artigo único, que todas as crianças de 0 a 18 meses sejam submetidas, nas consultas pediátricas, a um protocolo ou outro instrumento para detecção de risco psíquico. Tal lei tem movimentado o debate entre clínicos, pesquisadores e agentes de saúde, tanto pela forma como foi aprovada, quanto pelo conteúdo e ainda pelo contexto vindouro de aplicação. A noção de risco aparece como uma espécie de nó que aglutina a dimensão política, clínica e ética. No contexto jurídico a aprovação, sob forma de lei, de um projeto que se encontrava parado há anos, pelas mãos de um deputado do DEM, sem participação direta de agentes de saúde pública e com inusual sanção do ministro da Justiça, levanta a hipótese de risco político. Quem diz risco diz incerteza e indeterminação, mas também fala de aposta e tomada de posição. Devemos aproveitar o contexto de alta insegurança institucional para passar leis que reputamos boas e justas? O fato de que a lei tenha sido aprovada com assessoria de psicanalistas, que por sua vez desenvolveram um instrumento qualificado e validado nacionalmente, para detecção de risco psíquico para desenvolvimento, o IRDI, torna a lei a expressão de seus interesses particulares ou generaliza e torna obrigatória uma prática que 10
alcança o interesse coletivo, trazendo benefícios potenciais em termos de prevenção e intervenção precoce? O risco político depende, assim, do risco clínico. A questão é que o volume de pediatras alertando pais de que seu filho tem “um problema” altera, para pior ou para melhor, o lugar simbólico que esta criança ocupa, nos discursos que dela se ocupam, concorrendo indiretamente para expandir a inflação diagnóstica atualmente em curso. Outros argumentam que antes de um exame de detecção deveríamos investir no incremento genérico da atenção e promoção de saúde, ativando recursos compensatórios da família e do contexto de criação, em acordo com a política de metas e marcos já estipulados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Há ainda os que se insurgem contra o uso da psicanálise como teoria e método para realizar tal procedimento. No cenário pessimista teremos uma massa de crianças sofrendo efeitos de estigmatização diagnóstica, afetando seu investimento afetivo-social e legitimando o fracasso escolar por meio de profecias autorrealizadoras, agora em escala messiânica. O mesmo cenário pessimista contra-argumenta que não podemos ignorar um conjunto de crianças não detectadas precocemente, não tratadas a tempo e que desenvolvem transtornos mais severos ou mais gravemente. Tão difícil quanto escolher entre
os maléficos efeitos iatrogênicos e os benéficos efeitos preventivos é ponderar o que é pior entre casos falso-positivos e falso-negativos. Os mais pessimistas ainda lembram que hoje não há recursos disponíveis, nem pessoal qualificado para tratar tal montante de crianças detectadas, que a epidemia diagnóstica e a patologização da infância já estão em curso e que neste contexto seria melhor agir para alterar o processo em vez de queixar-se de seus efeitos. Voltamos para o primeiro argumento. Vê-se assim que os riscos éticos situam-se entre os políticos e os clínicos. Isso ocorre porque a ética não ignora a situação real, na qual são escassos os recursos para implantar a lei e são reais os prejuízos que decorrem dos seus excessos, manipulações e exceções. Isso é inerente a qualquer lei, pois ela é sempre exercício de um poder. Contudo, objetar que a abstinência no tratamento deveria ser aplicada também em matéria de política manteria os psicanalistas em posição de bela alma, queixando-se da civilização e suas normas imperfeitas, como se deste mundo não participassem, passivos e coniventes com o risco do qual estão, ainda assim, cientes. Debate aberto. CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER,
psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
arquivo pessoal (foto)
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CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER
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comportamento
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Somos todos um pouco
colecionadores
A maioria das pessoas guarda objetos ou mesmo conteúdos digitais, como músicas e fotos, por prazer. Outras se sentem “forçadas” a acumular coisas sem valor, das quais não conseguem se separar. Pesquisadores buscam entender os processos cerebrais que tornam esse comportamento patológico por Olivier Saladini e Jean-Pierre Luauté
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alvez você não guarde bonequinhos, rolhas, selos, vidros de perfume, ursos de pelúcia ou relógios, nem carros ou obras de arte. Mas é possível que tenha um celular abarrotado de fotos ou músicas das quais não consegue se livrar, mesmo que raramente acesse esse material. Quem sabe mantenha mais sapatos do que pode usar nos próximos anos ou até livros em excesso. E na maioria dos casos esse comportamento não é especialmente prejudicial, desde que seja possível manter tais paixões sem grandes sacrifícios. Mas o que pensar de pessoas que enchem a casa de televisores usados, frigideiras velhas ou até sacos de lixo e simplesmente não conseguem resistir à vontade de juntar objetos sem nenhuma utilidade ou valor? A diferença entre colecionar e acumular pode ser sutil, mas em geral, no primeiro caso existe uma organização, uma lógica dentro do conjunto de objetos. Já o acumulador simplesmente estoca coisas de forma compulsiva e desordenada, sem dar sentido a elas. No século 19, uma barra de ferro perfurou a parte anterior do cérebro de Phineas Gage. O incidente alterou seu caráter e o jovem operário americano, antes delicado e introspectivo, tornou-se violento e agressivo, incapaz
de reagir racionalmente ou tomar decisões apropriadas às situações vividas. Desde então, muitos estudos confirmam que os lobos frontais determinam em grande parte nossa capacidade de tomar decisões adaptadas ao contexto. Lesões nessa região do cérebro acarretam comportamentos estereotipados (com a repetição incessante do mesmo ato). Um deles nos interessa especialmente: o comportamento de preensão, no qual a pessoa pega maquinalmente todos os objetos que estiverem ao alcance da mão. Há mais de três décadas o neurologista Pierre Lhermitte demonstrou que esse comportamento resulta de perda de atividade dos lobos frontais. Isso porque o córtex frontal introduz uma escolha em nossas ações e nos impede de agir como autômatos. Sem ele, agiríamos como autômatos: diante de comida, comeríamos; sentindo desejo sexual, copularíamos; caso apreciássemos um anel de brilhante exposto, simplesmente pegaríamos a joia. No âmbito psíquico, é a instância denominada superego, por OS AUTORES OLIVIER SALADINI e JEAN-PIERRE LUAUTÉ são psiquiatras. novembro 2017 • mentecérebro 13
comportamento Sigmund Freud, que é responsável por esse controle. Em linhas gerais, a voz introjetada de figuras de autoridade da infância, em especial nossos pais, nos diz que nem sempre é possível fazer o que desejamos e nossas atitudes têm consequências. Do ponto de vista neurológico, o córtex frontal permite a deliberação, ao nos “lembrar” que o roubo é proibido, e nos dá meios para medirmos as consequências de nossos atos. Em pessoas que pegam objetos de modo incontrolável, essa região do cérebro deixa de inibir o reflexo de pegar, que existe desde quando somos bebês. O lobo frontal desses pacientes não reprime os lobos parietais, que podem comandar de maneira autônoma a preensão de objetos. Disso resulta uma maior dependência do sujeito a estímulos visuais e táteis. A simples visão de um objeto ou seu contato físico desencadeia um esquema comportamental automático de pegá-lo: a capacidade de selecionar um ou outro comportamento dependendo do contexto e de suas próprias capacidades se perde. Para decidir por uma ação, o córtex pré-frontal recebe informações provenientes de regiões ditas associativas (áreas sensoriais
AUTOMATISMO DE LHERMITTE O córtex frontal “decide” agir em função das informações que recebe das áreas visual e auditiva, por meio da área associativa (circuito verde). Nos pacientes acompanhados por Pierre Lhermitte, essa área foi danificada: as regiões responsáveis pela visão e audicão ativam diretamente o circuíto motor (em vermelho), ainda que os movimentos do paciente sejam condicionados apenas pelos estímulos exteriores. Área motora Córtex frontal
Córtex orbito-frontal Área associativa
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Área auditiva
marco vergotti
Área visual
táteis e visuais que fornecem dados sobre o exterior) e outras próprias do estado interno, as quais são tratadas pelo córtex paralímbico orbitofrontal (parte do córtex orbitofrontal, veja ilustração abaixo). Em conjunto, esses dados explicam por que os pacientes que sofreram lesões frontais se distraem tão facilmente, já que o córtex frontal é responsável pela capacidade de concentração. O colecionismo pode ser entendido, portanto, como uma forma de automatismo decorrente de uma disfunção do lobo frontal? Com frequência, a obsessão por colecionar foi diagnosticada em pacientes com demência frontotemporal, síndrome consecutiva à degeneração dos neurônios do córtex frontal, caracterizada por distúrbios de comportamento e perda de memória. Um estudo feito com 133 pessoas com demência verificou que 22,6% delas sofriam de colecionismo. Esses pacientes muitas vezes tinham outros comportamentos repetitivos, como a bulimia ou a cleptomania. Em quase todos os casos, o funcionamento do córtex frontal estava alterado. Clinicamente, o colecionismo não diminui a ansiedade, mas impedir que a pessoa mantenha seus objetos desencadeia sentimentos de frustração e, eventualmente, manifestações de agressividade. P., de 25 anos, apresenta um quadro autista desde a infância, e revela tendência colecionista. Ele acumula desordenadamente jornais velhos e guarda nos armários de seu quarto objetos que pega no lixo. Em seu caso, o colecionismo entra no plano dos atos repetitivos, automáticos e estereotipados, como o balançar incessante do corpo ou o consumo excessivo de líquidos, em geral água, a potomania. Em 73% dos psicóticos crônicos (por exemplo, pacientes com esquizofrenia), encontram-se condutas repetitivas, tais como as de acumulação. Segundo o psiquiatra Daniel Luchins e seus colegas da Universidade de Chicago, esses sintomas resultariam de anomalias no hipocampo; certas pesquisas, feitas com animais, demonstram que lesões hipocampais provocam a aparição de condutas repetitivas. Entretanto, na maior parte das vezes, é o lobo frontal que apresenta falhas. Segundo o que se sabe hoje sobre os mecanismos fisiopatológicos dos compor-
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tamentos de preensão automática e de demências frontotemporais, os lobos frontais têm papel central no colecionismo. Contudo, é preciso ir além dessa simples descrição, pois a obsessão em acumular coisas é bem mais complexa que o fato de levar algo para casa. O neurologista Bruno Dubois, do Hospital de la Pitié-Salpêtrière, em Paris, examinou um paciente que sofria de colecionismo e apresentava lesões cerebrais particulares. Casado, pai de quatro crianças, o técnico em eletrônica de 40 anos foi operado duas vezes, num intervalo de cinco anos, de um meningioma olfativo, tumor benigno situado na base do crânio. Os primeiros distúrbios de comportamento apareceram dois anos após a segunda operação, quando ele passou a percorrer a cidade à procura de eletrodomésticos diversos. COISA DE BICHO Essas expedições seguiam um circuito específico e na véspera das coletas da prefeitura, dia em que tinha mais chances de encontrar os tais aparelhos. Depois de tê-los armazenado na sala, corredor e banheiro, passou a guardá-los no quarto da filha. Antes de ser hospitalizado, começou a empilhar televisores nos tubos de circulação de ar de sua casa. Ele tinha então 50 televisores usados, dez aparelhos de som quebrados, três geladeiras, sete máquinas de lavar roupa, seis aspiradores de pó, três batedeiras, nove interfones e uma dezena de telefones. O paciente acumulava também garrafas vazias, jornais velhos e sacos plásticos. Fora dos momentos de “coleta”, ele não fazia absolutamente nada. Houve vezes em que foi capaz de passar horas tomando banho e de ficar sentado quase metade do dia dentro do carro estacionado. Imagens de seu cérebro revelaram que o paciente apresentava volumosas lesões bilaterais nas regiões orbitofrontais, assim como lesões na cabeça dos dois núcleos caudados. Uma tomografia por emissão de pósitrons (PET) confirmou a hipoatividade dessas regiões. Apesar das lesões, o relatório neuropsicológico destinado a avaliar a capacidade cog-
nitiva desse paciente estava quase normal. Ele não era como os pacientes “autômatos” mencionados, podia definir seus atos em função do contexto e fazer raciocínios normais. Aparentemente, sua capacidade intelectual estava intacta: apesar das lesões frontais, ele não tinha síndrome de automatismo. Entretanto, era colecionista. Os neurocientistas Paul Eslinger e António Damásio, então na Universidade de Iowa, já haviam constatado esse paradoxo em outro paciente. Também colecionista, o homem apresentava lesões no córtex orbitofrontal (situado acima dos olhos), consequência da extração de um meningioma. Mais recentemente, ao descrever um caso de colecionismo consecutivo à ruptura de um aneurisma que havia causado lesão orbitofrontal e do estriado, uma equipe coreana relatou o mesmo fenômeno: apesar das lesões, as faculdades cognitivas foram conservadas. Especialistas acreditam que, em certos casos, outras lesões além das do córtex frontal podem causar o mesmo comportamento. A questão é saber se existe um “circuito” do colecionismo. Chama atenção, por exemplo, a seletividade do objeto procurado e do uso de estratégias de busca. A estocagem teve função importante para a sobrevivência de nossa espécie. Ao longo dos séculos, muitos povos só conseguiram enfrentar períodos de escassez porque acumularam alimentos. Casos de colecionismo também estão presentes em animais. Não raro, são localizados objetos variados, como bolas de golfe, brinquedos e até mesmo de armas de fogo, em tocas de furões.
O FURÃO, assim como outros roedores, apresenta comportamento colecionista
PARA SABER MAIS Parental bonding and hoarding in obsessive– compulsive disorder. David Chen, O. Joseph Bienvenu, Janice Krasnow e outros, em Comprehensive Psychiatry, vol. 73, págs. 43-52, 2017. Hoarding in the elderly: a critical review of the recent literature. David M. Roane, Alyssa Landers, Jackson Sherratt e Gillian S. Wilson, em International Psychogeriatrics, vol. 29, nº 7, págs. 1077-1084, 2017. Transtorno obsessivo compulsivo: acumulação, a outra face do consumismo. Eliza Regina Teixeira Struckel, Ana Lúcia de Arruda Silva e Antônio Carlos Zandonadi em Revista Farol, vol. 3, nº 3, 2017.
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A terapia da autoestima Com base num princípio budista, psicólogos começam a aplicar uma técnica orientada pela ideia de que ser gentil consigo mesmo pode aumentar a resiliência, que se traduz na capacidade de enfrentar dificuldades de forma saudável, sem sucumbir a elas. Na prática, o desenvolvimento da compaixão por si mesmo diminui as consequências nocivas do estresse e melhora a qualidade dos relacionamentos
por Marina Krakovsky
A AUTORA MARINA KRAKOVSKY é jornalista e cientista social. É autora de The middleman economy: how brokers, agents, dealers and everyday matchmakers create value and profit (Palgrave Macmillan, 2015, sem tradução para o português).
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A autocompaixão reforça a motivação; ser amável consigo mesmo ajuda a tolerar as próprias falhas, o que aumenta a disposição para tentar novamente – e atingir objetivos
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m 2015, Míriam, na época com 28 anos, formada e pós-graduada em administração de empresas, passou por uma série de situações difíceis. Ela perdeu o emprego quando a empresa em que trabalhava encerrou suas atividades e, ansiosa para voltar a trabalhar, aceitou uma vaga de gerente numa loja que exigia muito dela fisicamente. Semanas depois, Míriam machucou o quadril enquanto carregava algumas caixas com mercadorias. Com dificuldade de caminhar, pediu demissão com a intenção de encontrar outro trabalho. Mas sem conseguir participar de entrevistas de emprego, sentindo-se triste e estressada, passou a se dedicar a um jogo lógico de cartas online. No entanto, até mesmo a diversão lhe causava angústia. Ingressar num torneio foi um dos últimos atos de um padrão que costumava ter na vida: estabelecer grandes metas e, posteriormente, julgar-se duramente por não cumpri-las. Sentia-se deprimida, ansiosa, e a sensação de derrota reforçava a autocrítica. Apesar de ser boa jogadora, não conseguia perdoar as próprias falhas. Mais tarde ela se deu conta de que por esse motivo já havia abandonado as aulas de balé e os treinos de vôlei: errar era insuportável para ela. Hoje, frequentando sessões de psicoterapia duas vezes por semana, Míriam acredita 18
que esse comportamento estava relacionado com o modo como foi criada pelos pais, que a pressionavam para se destacar no que quer que fizesse. Durante uma das sessões de terapia, uma associação a ajudou significativamente: recordou-se de um livro que tinha lido sobre comunicação não violenta, que enfatizava a importância de ter sensibilidade na hora de escolher as palavras – inclusive para si mesma. Essa lembrança funcionou como um insight para Míriam, que passou a incluir em seu vocabulário uma palavra revolucionária para sua autoestima: compaixão por si mesma. No nível mais básico, significa tratar a si mesmo com bondade e compreensão que se dedicaria a um amigo. Quem tem dificuldade nesse aspecto não é necessariamente insensível – mas tende a manter padrões muito elevados para si mesmo, o que pode ser bastante prejudicial. Ser gentil consigo mesmo permite reconhecer e aceitar os próprios sentimentos, em vez de se desafiar constantemente a “fazer melhor”. Míriam faz parte de um crescente número de pessoas que começam a descobrir que praticar a autocompaixão pode ser uma alternativa surpreendentemente eficaz ao hábito comum e paralisante da autocrítica associada ao sentimento de fracasso e à culpa. Desde que esse conceito surgiu como uma construção científica – com um artigo da psicóloga
Kristin D. Neff, da Universidade do Texas em Austin, em 2003 –, o volume de publicações acadêmicas que investigam o assunto tem aumentado significativamente. Em especial nos últimos anos, o tema da autocompaixão ganhou notoriedade. Psicólogos e pesquisadores, como Neff, desenvolveram estudos para entender melhor o conceito. Muitos psicólogos e psicanalistas enxergam a prática de tratar a si mesmo com amabilidade como um componente natural de tratamentos bem embasados, que focam a aceitação, a elaboração e o amadurecimento psíquico, que resulta na mudança gradual de padrões repetitivos. No entanto, na cultura competitiva em que vivemos, atitudes cuidadosas consigo mesmo podem ser confundidas (até pela própria pessoa) com egoísmo, num extremo, ou autoindulgência, em outro. Por isso mesmo, alguns resistem à ideia da autocompaixão, associando-a erroneamente a egocentrismo,
fragilidade e autocomplacência. Mas será que o fato de sermos gentis conosco, após um contratempo, tende a nos deixar fracos e condescendentes? Essa é uma de muitas perguntas que as pesquisas sobre o assunto se propõem responder. Evidências revelam que a autocompaixão costuma ser uma fonte de força pessoal e interpessoal que favorece a estabilidade emocional e a motivação para o autoaperfeiçoamento. ANTIGAS RAÍZES Pioneira no estudo científico da autocompaixão, Neff se interessou pelo assunto na década de 90. Como se não bastasse a preocupação com o doutorado, na época ela enfrentava a separação no primeiro casamento. Apesar do sentimento de fracasso e das duras críticas que dirigia a si mesma, a psicóloga encontrou forças para iniciar sessões de meditação e passou a interessar-se pela filosofia budista. novembro 2017 • mentecérebro 19
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METÁFORA DA “ZONA DE RISCO”: quando bombeiros combatem um incêndio, as chamas parecem se espalhar antes de o fogo ser contido; da mesma forma, pessoas muito carentes podem se sentir ainda mais doloridas quando começam a olhar para o que as incomoda, mas esse efeito tende a diminuir com o avanço da psicoterapia
Ela sabia que a compaixão envolvia a preocupação com a dor do outro e o desejo de aliviar o sofrimento dessa pessoa, mas nunca pensou em dirigir essa energia para si mesma até ler o livro Lovingkindness: the revolutionary art of happiness (Bondade: a arte revolucionária da felicidade, em tradução livre, sem tradução em português, Shambhala Classics, 2002), da professora de meditação Sharon Salzberg. Neff se sentiu transformada pela mensagem de que ser gentil consigo mesma é essencial para ter amor genuíno pelos outros. E logo começou a estabelecer as bases para estudar o tema cientificamente. Durante suas pesquisas, distinguiu três elementos indispensáveis da autocompaixão: a tolerância consigo mesmo em tempos difíceis; o hábito de prestar atenção ao sofrimento de maneira consciente, sem preocupação excessiva; e o reconhecimento de que a dor é parte da experiência humana, não algo exclusivo de um único ser. Esses três componentes se tornaram a base das perguntas que Neff usou para desenvolver uma escala de autocompaixão (veja quadro na pág. 21), um teste que publicou em 2003 na revista Self and Identity e que agora é amplamente utilizado por pesquisadores para avaliar essa característica. Com a ajuda da escala, Neff observou que quem tem altos níveis de autocompaixão é me20
nos propenso a desenvolver ansiedade e depressão. E demonstrou que ser delicado consigo mesmo pode provocar grandes efeitos no mundo a nossa volta. A psicóloga Juliana Breines, pesquisadora da Universidade da Califórnia em Berkeley, teve o primeiro contato com o trabalho de Neff durante a graduação na Universidade de Michigan. Breines suspeitava que o hábito de olhar a si próprio com bons olhos pudesse ajudar a evitar a montanha-russa da “autoestima contingente” – isto é, relacionar o modo como nos enxergamos a fatores flutuantes, como realização acadêmica, condição financeira e aprovação alheia. Muitos estudos já haviam demonstrado que esse tipo de pensamento não favorece a autoestima nem a aprendizagem. Breines, porém, tinha receio de que a autocompaixão pudesse prejudicar a motivação. “Esse sentimento pode ser reconfortante, mas não nos tira de um problema muito rapidamente?”, perguntou-se. Breines decidiu investigar essa questão. Em uma série de experimentos, ela e seus colegas aplicaram um difícil teste de vocabulário a 86 universitários. Para avaliarem os efeitos da autocompaixão no estudo, eles dividiram os voluntários em três equipes. Aos integrantes do primeiro grupo, disseram ser comum ter dificuldades na hora da avaliação e aconselharam os participantes a se esforçar
sem serem excessivamente exigentes consigo mesmos. O segundo grupo ouviu uma argumentação lógica: “Se você entrou nesta universidade e foi selecionado para este grupo, então deve ser inteligente”. O terceiro não teve nenhuma informação. Em seguida, os pesquisadores avaliaram quanto tempo os universitários estudariam para um segundo teste semelhante. De acordo com o que relataram no periódico científico Personality and Social Psychology Bulletin, o grupo que recebeu orientações sobre a autocompaixão utilizou 33% de tempo a mais estudando para o questionário seguinte do que aquele que foi estimulado a perceber racionalmente o quanto era capaz, e 51% a mais do que o grupo neutro (de controle) – uma evidência de que a autocompaixão pode reforçar a motivação. Ou seja: ser amável consigo mesmo pode ajudar a tolerar as falhas, o que aumenta a disposição para tentar novamente – e acertar.
Em duas pesquisas de 2012 lideradas pela psicóloga social Ashley Batts Allen, então na Universidade Duke, cientistas investigaram a autocompaixão em adultos mais velhos e encontraram benefícios psicológicos. No primeiro estudo, com 132 participantes entre 67 e 90 anos, foi observado que aqueles indivíduos que expressavam essa característica com frequência relatavam maior senso de bem-estar, mesmo quando a saúde não ia tão bem. No segundo experimento, com 71 idosos, a autocompaixão ajudou a prever a disposição para usar um andador em caso de necessidade. “Eles se sentiam menos incomodados pelo fato de precisar de ajuda”, afirma Allen, agora na Universidade da Carolina do Norte em Pembroke. “Quem não costuma praticar um olhar generoso consigo mesmo tende a usar muita energia emocional pensando em coisas desagradáveis, mas não de forma produtiva, focando problemas reais”, observa o psicó-
Não é para ter pena de si mesmo! Ser gentil não significa ser complacente ou cair na armadilha da vitimização, pelo contrário, o autocuidado está relacionado a autonomia Uma das preocupações dos profissionais da área da saúde mental em relação à terapia centrada no desenvolvimento da autocompaixão é que pacientes (e leigos em geral) façam uma leitura equivocada da proposta, confundindo o cuidado consigo mesmo com o incentivo à pena ou à autocondescendência. No entanto, o que os pesquisadores da área sugerem é justamente o oposto: um dos aspectos mais importantes na construção da autoestima é a possibilidade de assumir o fato de que somos responsáveis por nossas escolhas, boas ou más. Muitas vezes, o melhor que podemos fazer é optar pelo que de fato precisamos – e não simplesmente pelo que queremos. Há situações em que as duas coisas se complementam, mas nem sempre. Ser gentil conosco pode ser, por exemplo, recorrer à própria inteligência na hora de escolher alimentos saudáveis em vez de fast-food, que pode até parecer a pedida mais prática e saborosa, mas comprovadamente traz consequências nocivas para a saúde. O mesmo se aplica não apenas a hábitos relativos à saúde, mas também ao que dizemos
sabendo que, invariavelmente, vamos nos arrepender mais tarde. O doutor em psicologia Mark Muraven, professor da Universidade do Estado de Nova York, em Albany, salienta o risco de tomarmos decisões de forma compensatória: “Quando nos sentimos mal por qualquer motivo, tendemos a entrar num ciclo perigoso: tendemos a ser condescendentes conosco porque ‘já sofremos demais’ e fazemos o que sabemos que faz mal, isso nos deixa ainda mais insatisfeitos e nos leva ao autoataque, o que fere a autoestima.” Muraven ressalta que é especificamente nos momentos de fragilidade emocional que precisamos pensar em nós mesmos como alguém que precisa de apoio. E se não damos conta é hora de pedir ajuda a um amigo ou um psicólogo. “Obviamente há inúmeras situações que não dependem de nossas escolhas imediatas (dificuldades concretas e emocionais, perdas etc.); ainda assim, sempre há a possibilidade de nos tratarmos bem, como talvez outras pessoas não tenham feito”, ressalta. Mas isso não é desculpa para não nos acolhermos, em especial nos momentos de dificuldade. (Da redação) novembro 2017 • mentecérebro 21
capa logo Mark Leary, da Universidade Duke, que colaborou com a pesquisa. Por exemplo: negar uma dificuldade (como se recusar a usar um andador) pode trazer mais complicações, como uma fratura no quadril. A autocompaixão, por outro lado, tende a nos levar a perceber e aceitar a realidade – e nossos limites – sem julgamentos ou a sensação de que fracassamos porque temos fragilidades. Em 2014, Leary e seus colegas acompanharam 187 pessoas, principalmente afro-americanos, que vivem com o HIV. Os pacientes com maior nível de autocompaixão apresentavam reações mais saudáveis à convivência com o vírus potencialmente mortal: demonstravam menos estresse, diziam sentir menos vergonha e eram mais propensos a expressar sua condição, além de aderir ao tratamento médico. Uma meta-análise de 2015 que envolvia 15 estudos com 3.252 participantes publicada na Health Psychology encontrou ligação entre comportamentos autocompassivos e hábitos saudáveis relacionados com alimentação, exercícios físicos, sono e formas de lidar com o estresse. As pesquisas indicam que a autocompaixão pode favorecer a resiliência (resistência emocional) e permite recuperar o bem-estar emocional após as adversidades. Pessoas que usavam consigo mesmas uma linguagem mais generosa após o divórcio, por exemplo, costumavam se recuperar mais rapidamente do luto da separação do que aquelas que tinham uma visão mais autocrítica ou de autopiedade (“Por que eu?”, “A culpa é minha” ou “A culpa é do outro que me causou esse sofrimento”), segundo um estudo de 2012 com 109 adultos.
Você tem autocompaixão? As afirmações abaixo fazem parte de uma avaliação criada pela psicóloga Kristin D. Neff. Na versão completa (http://bit.ly/SlfCompassion), você pode se classificar em uma escala de 1 a 5, em que 1 é “quase nunca” e 5, “quase sempre”.
Declarações associadas à alta autocompaixão • Tento ver minhas falhas como parte da condição humana • Quando estou passando por um momento muito difícil, busco manter minhas emoções equilibradas • Procuro ser compreensivo e paciente em relação aos aspectos da minha personalidade de que não gosto
Declarações ligadas à baixa autocompaixão • Quando falho em algo importante para mim, eu me sinto consumido por sentimentos de inadequação • Quando me sinto mal, minha tendência é acreditar que a maioria das pessoas provavelmente está mais feliz do que eu
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• Desaprovo e julgo minhas próprias falhas e inadequações
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DE VOLTA AOS TRILHOS Cuidar de pessoas que requerem cuidados especiais costuma exigir grande dedicação e equilíbrio emocional. Criar uma criança autista, por exemplo, pode demandar mais, do ponto de vista emocional, do que outras formas de parentalidade e, em alguns casos, causar altos níveis de estresse e abatimento. No entanto, um estudo de 2015 com 51 famílias que tinham crianças autistas demonstra que a capacidade dos pais de olhar a si mesmos com generosidade era um preditor
Alguns dizem que é mais fácil ser bondoso com os outros do que consigo mesmo, mas a longo prazo essa atitude não se sustenta; não raro, surgem sintomas psicossomáticos, depressão e ansiedade mais importante do bem-estar deles do que a gravidade das deficiências ou mesmo o sofrimento da criança. Uma pesquisa com 115 veteranos americanos das guerras do Iraque e do Afeganistão oferece outro exemplo interessante. Um estudo de 2015 publicado no Journal of Traumatic Stress constatou que os soldados com maior autocompaixão demonstravam sintomas de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) muito menos graves do que aqueles que apresentavam o traço com menor intensidade, independentemente da exposição ao combate. “Essa é uma poderosa evidência da ideia de que não somos influenciados somente pelo que enfrentamos na vida, mas também pela maneira como nos relacionamos com nós mesmos quando passamos por momentos difíceis”, destaca Neff. Estudos recentes com pessoas diagnosticadas com outros distúrbios psiquiátricos, como compulsão alimentar e transtorno de personalidade borderline, sugerem que tratar a si mesmo com gentileza é importante para manter o equilíbrio. A psicóloga Allison Kelly, da Universidade de Waterloo, em Ontário, que estudou o efeito de intervenções relacionadas com a autocompaixão no transtorno de compulsão alimentar, ressalta a importância não apenas de um aprendizado de tolerância em relação aos próprios impulsos, mas também da descoberta de formas de recuperar depois de ceder a eles. “A crítica severa, acompanhada de autoameaças e desmerecimento de si mesmo, dificulta a reflexão e afasta a possibilidade de aprender com as dificuldades”, afirma. Segundo ela, a primeira coisa a fazer é acolher a si mesmo, reconhecer que foi feita uma escolha ruim e comprometer-se de forma consciente com a necessidade de agir de forma diferente.
“E não se trata de condescendência, mas sim de aproveitar a consciência do mal que somos capazes de fazer a nós mesmos para buscar outras opções.” Ou seja: tratar a nós mesmos com delicadeza nos fortalece e ameniza a falta de confiança na própria capacidade. Em um estudo longitudinal de 2015 liderado pela psicóloga Sarah Marshall, da Universidade Católica Australiana, os pesquisadores acompanharam um grupo de 2.448 adolescentes que passavam da nona para a décima série. Marshall observou que o hábito de se valorizar era um precursor de saúde mental, independentemente do nível de autocompaixão. E, quando crianças com baixa autoestima conseguiam ser generosas consigo mesmas, tendiam a se tornar menos tensas e mais equilibradas. Muitas vezes, desenvolver habilidades sociais ou mesmo conseguir um emprego melhor parece momentaneamente fortalecer a autoestima. Mas não basta, pois situações externas não sustentam o bem-estar emocional. Se a pessoa não compreender – por meio de associações com suas experiências e a história da própria família – o lugar que a autodepreciação ou a sensação de não ser boa o suficiente ocupa em sua dinâmica psíquica, a confiança em si mesma não dura. Se durante esse processo de autoconhecimento a pessoa for generosa consigo mesma, a evolução tende a ser muito mais rápida. RELACIONAMENTOS MAIS FORTES Pesquisas mostram que tratar a si mesmo com delicadeza favorece também as trocas interpessoais. Em 2013, Kristin Neff liderou um estudo com 104 casais, em que analisou como indivíduos autocompassivos tratavam seu par romântico – segundo a avaliação do novembro 2017 • mentecérebro 23
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Desenvolver habilidades sociais ou mesmo conseguir um emprego melhor tende a fortalecer a autoimagem, pelo menos momentaneamente; no entanto, isso não basta, pois situações externas não sustentam o bem-estar emocional
parceiro. Em geral, os homens e as mulheres que pontuavam alto numa escala que media o traço eram vistos como mais carinhosos e solidários, além de pouco controladores e menos verbalmente agressivos, em comparação àqueles com baixa autocompaixão. Seria mais fácil mostrar compaixão aos outros do que a nós mesmos? Neff acredita que, embora pareça que sim, a longo prazo essa postura não se sustentará se não tivermos cuidado também conosco. Não raro, os efeitos dessa atitude surgem como depressão, crises de ansiedade e sintomas psicossomáticos. “Quando oferecemos tudo o que temos ao parceiro e somos muito duros com nós mesmos, dificilmente vamos conseguir manter uma relação saudável”, argumenta. Essa interpretação não está de acordo com as descobertas que, publicadas em 2013 na Self and Identity, revelam como pessoas autocompassivas lidam melhor com conflitos interpessoais. Num estudo desenvolvido com 506 universitários, a estatística Lisa Yarnell, do Instituto Americano de Pesquisa (AIR, na sigla em inglês), observou que os voluntários com altos índices de autocompaixão equilibravam bem as próprias necessidades com a dos outros e se sentiam melhor em relação à resolução de conflitos, em comparação com aqueles com baixa pontuação nessa característica. Os indivíduos autocompassivos relatavam pouca turbulência emocional e bem-estar nas relações. Essas descobertas têm implicações para 24
os cuidadores em tempo integral, que, como sabemos há muito tempo, estão em risco de burnout e “fadiga de compaixão”, uma redução da capacidade de praticar a generosidade por causa do excesso de exigências emocionais a que estão submetidos. De fato, um levantamento transversal de 2016 com 280 enfermeiros de Portugal sugere que, embora os profissionais com níveis mais altos de empatia estivessem em maior risco de desenvolver fadiga de compaixão, a capacidade de se colocar no lugar do outro não era um fator de risco se estivesse acompanhada da autocompreensão. UM APRENDIZADO POSSÍVEL Se praticar a generosidade consigo mesmo pode trazer tantos resultados positivos, será que podemos aprender essa habilidade? A autocompaixão consciente (MSC, na sigla em inglês) é uma intervenção promissora, desenvolvida por Neff, numa parceria com o psicólogo clínico Christopher Germer, professor da Escola de Medicina Harvard. A dinâmica projetada para o público em geral foi estruturada para ocorrer em oito semanas, abordando as pesquisas sobre o tema e apresentando exercícios, como usufruir de experiências agradáveis, praticar automassagem, usando uma voz calorosa e gentil, e escrever uma carta a si mesmo, como se fosse um amoroso amigo imaginário. Em um pequeno estudo publicado em 2013, Neff e Germer mostram que 25 pessoas (a maioria mulheres de meia-idade) que com-
pletaram uma oficina de MSC relataram maiores ganhos na capacidade de ser generosas consigo mesmas e maior bem-estar do que um grupo similar alocado aleatoriamente para a lista de espera da oficina. O mais interessante: um ano depois os participantes mantinham os benefícios obtidos. Curiosamente, os do grupo de controle apresentaram também alguns ganhos em relação à autocompaixão – os escores deles subiram 6,5% entre as fases de pré e pós-teste, enquanto no grupo experimental esse número chegou a 42,6%. Inicialmente, o resultado confundiu os pesquisadores – até descobrirem que o grupo da lista de espera usou o tempo livre para aprender (de forma independente, com a ajuda de livros e da internet) como ser mais benevolente consigo mesmo. “Ainda não está claro o quanto o sucesso dos participantes do “treinamento de autocompaixão” está relacionado com a atividade em si, em oposição a participar de um grupo ou ter professores atenciosos”, observa a psiquiatra Julieta Galante, pesquisadora associada da Universidade de Cambridge. Germer e Neff contam com a possibilidade de os participantes da oficina se darem conta da própria fragilidade durante as dinâmicas e sofrerem e os preparam para isso. Os pesquisadores usam a metáfora da “zona de risco” de combates a incêndio para explicar o fenômeno: assim como as chamas correm pelo cômodo à medida que o oxigênio retorna, uma antiga dor pode surgir em meio a um
influxo de compaixão em pessoas famintas de afeto. É possível que, antes de entrarem nesse tipo de atividade, alguns indivíduos precisem praticar a autocompaixão aos poucos, em sessões individuais de psicoterapia. O professor de psicologia clínica Paul Gilbert, da Universidade de Derby, na Inglaterra, concorda. Com experiência no atendimento a crianças vítimas de abuso ou negligência, ele observou que a gentileza pode produzir efeitos imediatos aparentemente contrários ao esperado. Há casos em que a estimulação de sistemas afetivos frágeis desencadeia memórias traumáticas, particularmente em casos de abuso infantil. “Há tantos medos e resistências ao ato de tratar bem a si mesmo que, no início, praticar exercícios com o público em geral pode despertar explosões emocionais”, afirma Gilbert. A psicoterapia focada na compaixão (TFC), utilizada por ele para esses casos, foi testada com estudos de pequena escala. Gilbert trabalha com a ideia de que a autocrítica pode ser adotada pela pessoa como forma de se proteger de pais sentidos como ameaçadores. “À medida que o paciente se apropria do fato de que nem os genes nem o ambiente inicial são culpa deles, pode começar a lidar com a insegurança e assumir a responsabilidade pelo seu futuro”, afirma o psicólogo. Foi o que fez Míriam, quando passou a olhar para si mesma como se encarasse alguém querido com muitas qualidades – e, claro, algumas fragilidades.
PARA SABER MAIS Self-criticism and selfcompassion: risk and resilience. Ricks Warren, Elke Smeets e Kristin Neff, em Current Psychiatry, vol. 15, nº 12, págs. 1821, 24-28 e 32; dezembro de 2016. A essência da compaixão. Dilgo Khyentse. Makara, 2013. Compaixão universal. Geshe Kelsang Gyatso. Tharpa, 2001.
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A arte de domar a mente por Gláucia Leal
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ama Michel Rinpoche, hoje com 36 anos, tem uma história peculiar. Nascido em São Paulo em 1981, filho de pai judeu e mãe psicóloga de família presbiteriana, aos 5 anos ele conheceu seu mestre, o tibetano Lama Gangchen Rinpoche, em sua primeira visita ao Brasil. Sua infância – até então muito parecida com a de qualquer criança – se transformou a partir daí. Nos anos seguintes, Michel viajou pelo Tibete, pela Índia, pelo Nepal e pela Indonésia. Durante esse período, Lama Gangchen Rinpoche e outros renomados mestres budistas o reconheceram como um Tulku – a reencarnação de um mestre, que, no seu caso, teria vivido no Tibete. Aos 12 anos, ele decidiu, por conta própria, tornar-se monge. Viveu na Universidade Monástica de Sera Me, no sul da Índia. Lá, por 12 anos, recebeu formação filosófica e prática, segundo a tradição Guelugpa do budismo tibetano. Atualmente, Lama Michel vive na Itália, dedica-se ao aprofundamento de estudos, práticas e ministra ensinamentos em vários países. Junto com Lama Gangchen, orienta diversos centros budistas como o Kunpen Lama Gangchen, em Milão, o Albagnano Healing Meditation Centre, em Bee-Verbania, e o Centro de Dharma da Paz, em São Paulo, além de outros, espalhados pelo Brasil. Participa com regularidade de eventos sobre psicologia, psiquiatria e neurociência, como a Conference on Integrative Psychiatry, na Holanda, e os encontros científicos periódicos promovidos pela Fundação Dhammakaya, na Tailândia. Autor dos livros Uma jovem ideia de paz (Editora Sarasvati Multimídia, 1996) e Coragem para seguir em frente (Editora Gaia, 2006), é vice-presidente da Fondazione Lama Gangchen per una Cultura di Pace, na Itália, e presidente da Fundação Lama Gangchen para a Cultura de Paz, no Brasil. Nesta entrevista exclusiva à Mente e
Cérebro, Lama Michel fala sobre maneiras saudáveis de lidar com a emoção e, gradualmente, alcançar um estado de maior satisfação e autonomia. Ele argumenta que qualquer pessoa pode atingir esse estado, desde que se esforce e treine a mente para se familiarizar com emoções que nos fazem bem.
LAMA MICHEL RINPOCHE Mente e Cérebro: O homem considerado “mais feliz do mundo”, segundo sofisticados exames neurocientíficos, é um Lama budista chamado Mathieu Ricard. Considerando a tradição budista de buscar conhecimento e controle dos próprios estados mentais, podemos pensar que isso não seja por acaso. Mas pessoas que não levam uma vida monástica também podem se beneficiar dessas práticas ancestrais? Lama Michel: Com certeza. A mente é flexível, maleável. O grande mestre do século 8, Shantideva, autor de Caminho para a iluminação (Bodhicharyavatara) diz: “Nada é difícil uma vez que se acostuma”. Várias técnicas nos ajudam no processo de familiarização com atitudes positivas. Podemos falar de duas principais: conscientização e meditação. A primeira refere-se à maior compreensão dos próprios sentimentos e do funcionamento da própria mente e de como influenciamos situações que nos afetam. E aqui entram conceitos como impermanência, interdependência e lei de causa e efeito. Mas não basta ter a compreensão intelectual, é importante trazer o entendimento para a vida de todo dia, torná-lo uma realização, ou seja, sentir aquilo que foi compreendido. Por exemplo, sei que o fogo queima e esse não é um saber apenas intelectual, está ligado à experiência, é mais espontâneo. A meditação é um exercício, permite a familiarização com estados desejáveis de satisfação e alegria. Há, por exemplo, processos que nos permitem aprender a não ter raiva. Uma vez que temos a compreensão é preciso meditar, familiarizar a mente. Mente e Cérebro: Qualquer pessoa pode meditar? Lama Michel: Sim, todos podem. Algumas técnicas são extremamente simples. No começo, pode parecer difícil. Lembro-me de uma discípula que quando começou a praticar dizia ter
a sensação da unha passando na lousa, sentia um enorme desconforto interno de não conseguir ficar parada em silêncio. Recentemente, ela participou de um retiro de um mês e meio, no qual passou horas meditando todos os dias sem nenhum problema. Isso mostra que com determinação e esforço qualquer pessoa pode aprender. Não é necessário ter formação especial ou ter vida monástica longe de tudo. Mente e Cérebro: O que é necessário para começar esse caminho? Lama Michel: Pequenas coisas fazem diferença. Uma delas é a forma como usamos nossa palavra. É preciso ter cuidado com o que dizemos, evitar falar em excesso. O que dizemos com frequência ganha espaço em nossa mente. Mudar as palavras que usamos nos ajuda a direcionar pensamentos. Por exemplo, eu tirei do meu vocabulário a palavra “se”. Dizemos: “Ai, se eu tivesse feito aquilo, ai se fosse de outro jeito...”. E isso não costuma trazer benefício. Mesmo sem usar o “se” o impulso de rever as coisas de forma idealizada continua a existir, mas se não temos a palavra, aos poucos nos afastamos de determinadas atitudes. Mente e Cérebro: Por meio da conscientização e da meditação podemos lidar melhor com o que sentimos? Lama Michel: Sim. Mas no início encontra-se dificuldade, da mesma forma que alguém que começa a aprender a tocar violino. Passam-se dias, meses, anos e, aos poucos, a prática fica mais fácil e espontânea. O mesmo acontece com as atitudes, com a mente e com as emoções. O budismo acredita na possibilidade de uma autoeducação emocional; podemos nos educar a ter menos raiva, a ser menos arrogantes, a ter mais amor, mais compaixão, mais humildade, paciência e satisfação. novembro 2017 • mentecérebro 27
capa • entrevista
Mente e Cérebro: E a familiarização se dá pela meditação? Lama Michel: Sim. Fazemos a meditação em duas partes, a analítica e a unidirecionada. Na analítica devo contar algo a alguém que não faz a menor ideia do assunto. Podemos usar temas como impermanência ou sobre por que não é bom ter raiva, por exemplo. Funciona até para conceitos de neurociência, desde que você já os conheça, já tenha lido, estudado. Primeiro, imagine que você esteja contando o que sabe para uma pessoa cética, que não acredita, não entende daquele assunto, por isso é preciso explorar cada detalhe. Na segunda etapa, quando você chega à conclusão, entra na meditação unidirecionada: permanece com a atenção voltada à conclusão, sem se desviar dela, pelo maior tempo possível. Isso fortalece muito o conhecimento. Mente e Cérebro: A técnica deve ser útil nos estudos... Lama Michel: Em geral, aquilo que estudamos apenas lendo e assistindo às aulas esquecemos facilmente. Quando relemos o que nos foi ensinado e fazemos uma espécie de debate, mostrando os vários lados de uma mesma questão, defendendo uma tese, desenvolvemos uma certeza que fixa o conhecimento. Se você se apropria desse conteúdo, ele deixa de ser mais uma informação recebida, se torna seu. Verbalizar ou escrever aquilo que já sabemos, revendo toda a tese, ajuda. Mas podemos fazer isso só mentalmente também, retomando o que sabemos até chegar à conclusão. Por exemplo, 2 + 2 = 4. Quando che28
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Mente e Cérebro: Como ocorre esse processo de autoeducação? Lama Michel: O processo é feito em três partes: escutar, que na verdade pode ser ler, se refere a receber a informação; depois compreender, que é refletir, analisar, e por fim, meditar. Vamos pensar em uma equação matemática: primeiro alguém terá de me explicar a forma de fazer os cálculos para que eu aprenda. Depois, vou analisar de novo a equação até que eu não tenha mais dúvidas sobre ela. 2 + 2 é igual a 4, mas 2 + 2 e 4 são duas coisas distintas. Porém, se eu me familiarizar de forma profunda com a equação, se a refizer várias vezes, em dado momento, quando eu vir o 4 me lembrarei de que é igual a 2 + 2 de forma espontânea, pela familiarização.
garmos ao 4 ficaremos nele, sem que a mente se perca em divagações. Assim, quando pensarmos no resultado já veremos a equação. Mente e Cérebro: Qual tema é indicado para quem começa a meditar? Lama Michel: Começamos a meditar sobre a preciosidade da vida. Quantas pessoas neste planeta vivem sem ter de se preocupar se terão o que comer amanhã? Partindo daí vou analisando por que minha vida é tão rara e preciosa. A conclusão é uma grande alegria de estar vivo e a sensação de que é preciso fazer algo bom da própria existência. Com isso, os problemas ganham menos valor porque acabamos valorizando o que temos de bom. No princípio parece só um jogo intelectual e de fato usamos aquilo que sabemos, mas a conclusão, com a qual ficamos,
nos toca emocionalmente. A próxima meditação analítica é a certeza da morte e a incerteza do momento da morte. Como se realiza isso? Perguntando e respondendo a si mesmo: Eu nasci? Sim. Até hoje nasceu alguém que não teria mais tarde de morrer? Não. A morte é uma certeza? Sim. E por aí vamos retomando tudo aquilo que já sabemos, como se tivéssemos de provar para alguém incrédulo que a morte existe. Mente e Cérebro: Em que momento a pessoa sabe que realizou a certeza da morte? Lama Michel: Quando tem a sensação profunda de urgência de fazer algo significativo com cada dia da própria vida. Nesse momento, deixa de valorizar o supérfluo, dá importância ao que é profundo e significativo. A realização vem desse processo: primeiro é preciso entender, mas isso não é o bastante. Uma vez que compreendemos que toda ação porta em si um resultado, é necessário repetir a análise várias vezes até chegarmos à conclusão. Aí então ficamos nela até o momento em que seja possível ver que cada uma de nossas ações traz um resultado, cada coisa que vivemos é consequência de algo que foi criado no passado. O processo é este: analisar, compreender, fazer a meditação analítica, chegar à conclusão e ficar nela com meditação unidirecionada o maior tempo que puder. Mente e Cérebro: Quanto tempo? Lama Michel: Para quem está começando é melhor que sejam períodos breves, um número maior de vezes. Podemos falar em minutos, dez minutos. O importante é sempre terminar a meditação enquanto ainda é prazeroso porque nossa mente tem a tendência de não querer repetir aquilo que não é agradável. Se forçar demais e a prática ficar chata, difícil e cansativa, numa próxima oportunidade a gente vai achar mil desculpas para não querer repetir aquela situação. No budismo, as preces funcionam como um “mapa” para a gente não se perder. Mas para começar é possível meditar sobre a respiração, o que nos traz para o momento presente; é simples e fácil para qualquer pessoa. Mente e Cérebro: Como se faz? Lama Michel: Basta sentar-se com a coluna reta, observando a própria respiração e não dar espaço a qualquer outro pensamento que vier à men-
te. Talvez no começo demore: a pessoa inspira e antes de terminar de inspirar a mente já foi para outro lugar. Não faz mal, volte e insista, assim vamos nos familiarizando até conseguirmos chegar ao que queremos. Mente e Cérebro: Todos queremos, em última instância, ser mais felizes. Lama Michel: E tudo isso, acredito, nos leva a ser pessoas mais felizes. Há o sofrimento físico e o mental. Na maioria das vezes somos atormentados pelo sofrimento mental, que requer solução mental. Por exemplo, a satisfação não depende de quanto você possui, e sim de um estado interior. Estar satisfeito não está associado ao quanto temos, ao contrário: quanto mais criarmos necessidades, mais insatisfeitos seremos. Com essa consciência nos tornamos responsáveis pela forma como vivemos o mundo. Mente e Cérebro: Na essência do budismo está a preocupação em desenvolver autonomia em relação às próprias emoções e, consequentemente, às próprias ações e reações. Parece um objetivo ambicioso, um objetivo de toda uma vida. Lama Michel: Na verdade, um objetivo de vidas e vidas, não apenas de uma vida. No Ocidente temos necessidade de que as coisas sejam imediatas. Se existisse a pílula da iluminação, uma seria o bastante, mas se compraria um pacote inteiro. Temos essa coisa de que tem de ser logo, tem de ser já, temos de entender tudo, tem de funcionar de cara. Em contrapartida, a familiarização da mente é um processo longo. É possível desenvolver equilíbrio das emoções. E não se trata de controlá-las no sentido de reprimi-las; ter raiva, por exemplo, e não poder expressá-la. Trata-se de reconhecer as emoções que me fazem mal, as que me fazem bem, dar espaço para as que fazem bem e não dar espaço ao que faz mal. Mente e Cérebro: Um processo difícil... Lama Michel: Mas a opção contrária é mais fácil? Por exemplo, a raiva. Eliminar a raiva é fácil? Absolutamente não. E ficar nela é fácil? Também não. Parece tão difícil porque nunca aprendemos a lidar com emoções. Em nossa cultura, na escola ou mesmo na família nunca nos ensinaram que podemos direcionar a mente. Nem sobre uma realidade interior que influi no mundo à nossa volta, não aprendemos que as coisas novembro 2017 • mentecérebro 29
capa • entrevista Mente e Cérebro: Por que tendemos a fazer essas perigosas misturas? Lama Michel: Por várias razões. Uma delas é que hoje em dia fazemos tudo com muita pressa. O tempo emocional, porém, é mais longo que o tempo racional. Por exemplo, a pessoa teve uma chateação no trabalho. Daqui a pouco já está em outra atividade. A situação já acabou, mas emocionalmente ainda está presente e vem à tona, por exemplo, quando ela está com o filho. Assim vão se criando cadeias enormes. Por isso é importante fazer distinções, mas alcançar essa clareza requer treino. Uma coisa importante em relação à raiva é que acreditamos ser correto ter raiva. Culturalmente, o comportamento raivoso costuma ser justificado pela atitude de alguém ou por uma situação. Então, um dos primeiros passos para eliminar a raiva é chegar à conclusão de que não existe razão no mundo para ter raiva. Pode acontecer o que for, não é razão para reagir com raiva. Isso não quer dizer que eu não deva buscar soluções. Há momentos em que precisamos de fato ter atitude assertiva, firme, colocar limites. Mas isso não é raiva. Em situações de raiva perdemos o controle, sentimos o peito apertado, o coração bater mais forte, há um sentimento negativo, algo que nos faz mal.
Mente e Cérebro: Uma das grandes reclamações das pessoas se refere às pequenas e desgastantes irritações do dia a dia, seja em casa, com filhos, no trânsito, no trabalho... Lama Michel: Primeira coisa: é preciso separar a raiva da irritação ou do nervosismo. Raiva é o sentimento de aversão, destruição, violência em direção ao que vemos como a causa do nosso sofrimento. No fundo da raiva está a frustração causada por uma enorme arrogância de acharmos que as coisas não são como achamos que elas têm de ser. Irritação é o corpo cansado, estou sem espaço por variadas razões e acabo tendo uma reação negativa independentemente de ver aquilo como causa do meu sofrimento ou não. É uma reação a mais, uma hipersensibilidade que faz as pessoas serem grosseiras, responderem de forma ríspida. Mas é diferente da intenção de fazer mal. Outra coisa: muitas vezes estressadas, as pessoas não fazem essas distinções, misturam problemas e eles tomam proporções enormes. 30
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não existem apenas na forma sólida e concreta ou que somos protagonistas da nossa realidade. Isso simplesmente não é ensinado, então parece que temos de fazer uma força enorme contra a correnteza. E é verdade. Mas o que é melhor? Se deixar levar por essa correnteza e continuar a se bater em tudo quanto é canto ou fazer esforço para conquistar um estado de maior equilíbrio? O processo não é fácil nem prazeroso – mas funciona. Podemos pensar num atleta olímpico. É fácil o treinamento a que essas pessoas se submetem? Não. Enfrentam milhares de horas de treino, dor e dificuldades para atingir o preparo físico. A mente também requer treino. Se quero ter uma mente resistente, que consegue lidar com situações de certa forma é preciso me preparar, treinar. Existem formas de treinar a mente, nenhuma delas é fácil. O problema é que muitas pessoas quando chegam ao budismo têm expectativa de que seja tudo maravilhoso, gostoso. O que as pessoas querem, em geral, é se sentir bem e para isso há inúmeras coisas que se pode fazer. Mas o fazer algo que traga o bem-estar imediato e o empenho no verdadeiro crescimento interior andam necessariamente juntos. De fato não é fácil olhar para si mesmo e se esforçar para mudar, mas é totalmente possível. Só requer constância.
Mente e Cérebro: Como conseguimos reverter esse ciclo? Lama Michel: Acredito que a felicidade está muito conectada à satisfação, mais que a euforia à alegria. Por isso é tão importante estar bem consigo mesmo. Há pouco você falou do monge budista praticante que tem um estado de felicidade maior que o da maioria das pessoas. Isso é possível porque ele sabe estar bem com ele mesmo independentemente das situações que estão à sua volta. É possível melhorar, mesmo sem chegar a um resultado final. Mas é preciso esforço; aquele monge certamente não chegou ao estado de felicidade do nada e sim por meio de muito treino. Mente e Cérebro: Mesmo a obsessão de autogratificação pode ser mudada por meio de treino? Lama Michel: Sim, é possível treinar a mente para ter atitude oposta ao egoísmo. Porque uma das coisas importantes da meditação é que se baseia num princípio da mente: nossa incapacidade de ter dois pensamentos opostos ao mesmo tempo. A gente pode ter vários pensamentos contraditórios, isso é normal. Posso dizer, por exemplo, eu não gosto de água, mas esta água está gostosa. Há vários níveis de pensamento que são contraditórios, mas não temos a capacidade de ter dois pensamentos diretamente con-
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Mente e Cérebro: O individualismo excessivo nos torna mais vulneráveis? Lama Michel: Vivemos a ilusão de que para ser feliz é preciso ter e fazer o que queremos, como e quando queremos – o que é uma grande ilusão. Precisamos interagir, dar e receber, é respeitando os outros que conseguimos encontrar um estado de maior equilíbrio; desejamos reconhecimento e amor. Mas, em vez disso, podemos nos deixar levar pelo egoísmo, pela obsessão de autogratificação. É o constante pensar no “eu” e no “meu”. O meu nada mais é que a extensão do eu. Essa atitude gera atração ao que nos faz feliz, aversão ao que nos causa sofrimento. Surge então competitividade em relação àqueles que são iguais a mim porque nos ameaçam, a inveja daqueles que têm a mais, arrogância em relação aos que têm a menos. Nascem então o ciúme, o apego, a inveja, a raiva, tudo aquilo que nos leva para um estado de infelicidade.
LAMA GANGCHEN RINPOCHE, nascido em 1941, estudou medicina, astrologia, meditação e filosofia em duas das maiores universidades monásticas: Sera, na Índia, e Tashi Lhumpo, no Tibet
trários simultaneamente. Conscientemente, não posso gostar e não gostar de água exatamente ao mesmo tempo. Por isso, se reconhecemos que há um estado mental que queremos eliminar, é necessário eliminar aquele que é diretamente oposto. Assim, automaticamente, eliminamos o que é indesejável. Se quero eliminar a escuridão, é preciso colocar luz, as duas não convivem juntas no mesmo lugar. Se temos uma atitude que gera sofrimento e queremos eliminá-la, é preciso gerar atitude diretamente oposta; isso é o que se faz em vários tipos de meditação. Se temos a ignorância de nos apegar a uma existência dos fenômenos, é preciso realizar a familiaridade com a impermanência. Para eliminar o egoísmo, considere que quando esse sentimento predomina, aquilo que faz bem eu quero para mim; daquilo que faz mal, quero distância, que não esteja para o eu e para o meu. A atitude diretamente oposta é: aquilo que faz mal quero para mim, aquilo que faz bem dou aos outros. Pego para mim o sofrimento alheio e dou aos outros minha alegria. É algo possível? Não, não posso dar minha alegria para você, nem tomar seu sofrimento sobre mim. Mas nessa atitude gero pensamentos novembro 2017 • mentecérebro 31
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capa • entrevista
diretamente opostos ao egoísmo para eliminá-lo. Claro que esse processo é muito complexo e há formas corretas de cumpri-lo para evitar sentimentos de culpa ou cair no erro de acharmos que não merecemos nada. E não se trata disso. É possível trabalhar assim para eliminar raiva, ciúme, inveja... Mente e Cérebro: Alguns acreditam que o conceito de eu não existe para o budismo. Por que surge esse equívoco? Lama Michel: Algumas escolas filosóficas budistas criam uma distinção entre o eu que vai de uma vida a outra e o eu como nossa identidade. Mas vamos pensar o seguinte: a pessoa que existia um ano atrás ainda existe hoje, há uma continuidade, embora tenha mudado. Não somos o bebezinho que éramos quando nascemos, mas há algo daquele bebê que permanece, o nosso continuum mental, que num aspecto mais profundo acreditamos que vai de vida em vida. Esse é um aspecto. Existem equívocos porque, de fato, vários textos budistas falam que o eu não existe. Mas o que não existe é o eu da forma como nós o 32
TEMPLO DE BOROBUDUR, na Indonésia: Lama Michel e seu mestre Lama Gangchen em frente ao maior monumento budista do planeta
vemos. Em nenhum momento Buda disse que o eu não existe, que não existe quem fala, que não existe quem escuta, que não existe o observado. O que ele fala, aliás com muita clareza, é sobre a não existência de um “eu inerente”, intrínseco, absoluto, independente e não interdependente. O fato é que nos relacionamos conosco por meio de uma imagem de um eu inerente, que existe por si só. Esse eu de fato não existe. Essa é a chave principal para eliminar o sofrimento, pois é pelo agarrar-se a um eu intrínseco, inerente, não interdependente que é gerado o egoísmo, é criada a dependência em relação ao mundo à nossa volta, e daí vêm o apego, o ciúme, a inveja, a raiva. Tudo isso nasce da visão errônea do eu. Mente e Cérebro: A forma como vemos as coisas tem a ver com a nossa identidade? Lama Michel: Tanto na raiz da felicidade quanto do sofrimento está nossa própria identidade, como eu me relaciono comigo mesmo, quem sou eu, como eu me vejo. Perceber isso é fundamental, mas às vezes esse processo demora um pouco. A mesma coisa acontece quando se
fala de vacuidade e as pessoas logo imaginam que nada existe – e não é isso. Os fenômenos existem, o que não existe é uma materialidade própria, intrínseca, não interdependente. Mente e Cérebro: Muitas vezes confundimos autoestima e possibilidade de nos darmos coisas boas com permissividade em relação aos próprios erros e com aquisição de bens materiais. A mídia incentiva isso e, nos consultórios, vemos cada vez mais pessoas que sofrem porque não aprenderam a cuidar de si mesmas. Como o budismo vê isso? Lama Michel: O primeiro passo do caminho espiritual dentro do budismo é o cultivo do amor próprio, chamado tradicionalmente de “renúncia” (a aquilo que traz o sofrimento). É um passo grandioso. Resumindo: é reconhecer aquilo que me faz bem e cultivá-lo, reconhecer o que me faz mal e abandoná-lo, é não se permitir qualquer coisa. Aqui entram alguns pontos importantes. O primeiro é a responsabilidade por si mesmo, de não criar dependência dos outros e com o mundo à nossa volta: sou responsável pela minha tristeza e pela minha alegria, desejo ser feliz. Mente e Cérebro: O que podemos entender por ser feliz? Lama Michel: É encontrar um estado interior de equilíbrio e satisfação, independentemente do que está à nossa volta. Quanto mais o bem-estar de uma pessoa estiver atrelado ao que acontece ao seu redor menos ela assume o cuidado consigo mesma, e tende a acreditar que para ser feliz precisa de alguém que cuide dela, a ame, a reconheça, faça coisas por ela. Aprendemos que para nos sentirmos bem precisamos nos sentir amados e isso nos mantém em estado de carência. Muitos se sentem vítimas do desamor alheio porque acreditam que os outros não fizeram o que deveriam ter feito para fazê-los felizes e se estão mal é porque o mundo não é como deveria ser. Na verdade a solução não é ser amado, mas amar. É justamente o contrário. Amar a si mesmo é se autorresponsabilizar pelo próprio corpo, pelo próprio estado mental, pela própria vida como um todo, o que de forma alguma quer dizer se isolar. Faz parte desse processo de amar a si mesmo reconhecer a preciosidade da própria vida, aprender a regozijar-se, reconhecer a cer-
teza da morte e a incerteza do momento da morte e disso vem a valorização de cada dia, de cada momento. Depois disso vem o processo de compreensão da lei de causa e efeito: cada ação leva a um resultado. O objetivo é o desenvolvimento de uma identidade mais profunda. Algo muito importante é acreditar em si mesmo, reconhecer o próprio potencial. No caminho em direção à iluminação, da mesma forma que temos fé em Buda, temos fé em nós mesmos, no próprio Buda que um dia nos tornaremos, porque só tendo amor próprio é possível desenvolver o verdadeiro amor pelos outros. Mente e Cérebro: Caso contrário, há o risco de nos dedicarmos aos outros tentando aplacar a própria carência. Lama Michel: Por um lado, todo relacionamento é uma troca; se damos um conselho, por exemplo, queremos que o outro escute. E se damos algo é porque temos e vamos continuar tendo; mas se esperamos receber em troca pode haver uma hora em que a gente se sinta sem nada. E aí vem a cobrança: “Como você pode fazer isso comigo, depois de tudo o que fiz por você?”. O processo de amar a si mesmo leva a uma estabilidade, o que torna nossas relações mais verdadeiras e saudáveis, tanto com nós mesmos quanto com os outros.
Lama Gangchen Rinpoche estará no Brasil de 10 a 27 de novembro de 2017. Programação e informações: http://centrodedharma.ngalso.org.
PARA SABER MAIS A essência do budismo. Elizabeth Clare Prophet. BestSeller, 2017 Chaves para a felicidade, para uma vida significativa. Phakchok Rinpoche. Makara, 2012 Coragem para seguir em frente. Lama Michel Rinpoche. Editora Gaia, 2006. Mania de sofrer. Bel César. Global/Gaia, 2006. Uma jovem ideia de paz. Lama Michel Rinpoche. Editora Sarasvati Multimídia, 1996. E-book gratis: Budismo moderno. Geshe Kelsang Gyatso.
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CRIATIVIDADE
Sonhar para resolver problemas É possível “escolher” as imagens oníricas que desejamos acessar quando dormimos? Focar a questão que queremos solucionar antes de dormir pode ajudar incomodam. Exames de imagem mostram que regiões cerebrais que normalmente restringem nosso pensamento ao que é familiar são menos ativadas quando sonhamos – ou seja, nos permitem experimentar soluções “absurdas”, que se estivéssemos acordados sequer nos permitiríamos cogitar. Usando uma metáfora, é possível
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Sabe aquele ditado que diz “nada como um dia após o outro com uma noite no meio”? Pois é. O rebaixamento dos mecanismos de censura e da racionalidade que predomina quando dormimos – e sonhamos – pode ser fundamental para nos permitir ver a realidade de outros ângulos e encontrar soluções para questões que nos
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neurocircuito
dizer que resolver um quebra-cabeça da forma “errada” leva a insights surpreendentes. Um número significativo de voluntários que participaram de experimentos nessa área relatou ter conseguido visualizar soluções em sonho após uma semana de exercícios desenvolvidos com esse propósito. Um desses estudos foi coordenado pelo psicólogo holandês Ap Dijksterhuis, na Universidade Radboud, Segundo ele, sonhar intencionalmente com determinado problema – processo chamado de incubação – aumenta as chances de vislumbrarmos pistas para resolvê-lo. O termo “incubação” foi tomado por empréstimo de antigas práticas gregas executadas no templo de Esculápio (ou Asclépio), onde, em sonho, os doentes buscavam curar suas enfermidades. A psicologia comportamental sugere que podemos procurar interferir nesse processo de forma consciente seguindo alguns passos simples, que se baseiam na hipótese de que o ritual e a concentração ajudam a estabelecer o foco de atenção, ao mesmo tempo em que a mente está livre de repressões e mais apta a encontrar respostas. Um deles é, na hora de dormir, escrever resumidamente a questão que queremos resolver, de preferência numa frase curta, e manter papel e caneta ao lado da cama para anotar o sonho quando acordar. Depois disso, a pessoa pode se imaginar sonhando com a situação que deseja resolver, acordando e anotando tudo num papel. Já deitado, vale pensar no problema e evocar uma imagem concreta, uma cena e em repetir para si mesmo que quer sonhar com essa questão. Ao despertar, é importante permanecer imóvel por alguns segundos antes de se levantar e tentar se lembrar do que sonhou, recapitulando ao máximo os detalhes do sonho, para em seguida fazer anotações, registrando primeiro as palavras-chave e depois acrescentando detalhes. Muitas vezes, o sonho com a situação que incomoda não aparece logo na primeira noite, é preciso repetir os procedimentos – e insistir algumas noites
Uma pausa para ter boas ideias A ideia de que soluções para assuntos que nos incomodam podem aparecer durante momentos de relaxamento, como quando estamos adormecidos, encontra respaldo num fato já conhecido por pesquisadores que se dedicam ao estudo da criatividade: afastar-se mentalmente do problema ajuda a baixar expectativas, autocensura e favorece o surgimento de boas ideias. Faz sentido, portanto, que o estágio do sono conhecido como REM (movimento rápido dos olhos), ou fase de sonhos, possa ajudar a estabelecer associação entre percepções aparentemente remotas. Essas conexões são capazes de ajudar a solucionar enigmas que nos perturbam antes de adormecermos. Benefícios semelhantes podem surgir durante a vigília, ao deixarmos a mente vagar ou nos distrairmos deliberadamente. Em um experimento, o psicólogo Ap Dijksterhuis e seus colegas propuseram a um grupo que inventassem novos nomes para produtos. Os voluntários que tiveram a tarefa dividida em duas etapas e intercalada com outra diferente criaram nomes mais originais que os que trabalharam com o problema de forma contínua. Em estudos posteriores, a equipe de Dijksterhuis demonstrou que o processamento inconsciente poderia produzir respostas para problemas complexos, que exigem acesso ao conhecimento armazenado. Estes resultados sugerem que, se estiver se debatendo com um problema difícil, vale a pena fazer uma pausa e se ocupar com outra coisa. novembro 2017 • mentecérebro 35
especial
Psicoterapia
breve
Já usado por Freud no século retrasado, esse tipo de tratamento se consolidou na contramão das análises prolongadas e hoje reúne diversas modalidades de intervenção focal, usadas por correntes psicanalíticas, psicodrama, fenomenologia e cognitivas. Embora tenha tempo delimitado, a técnica não se restringe ao atendimento de curta duração; exige planejamento terapêutico específico, objetivo definido e grande empenho do terapeuta por Martha S. Dantas
A AUTORA MARTA S. DANTAS é psicóloga, especialista em psicoterapia breve pelo Instituto Sedes Sapientiae, doutora em psicologia clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). É professora e supervisora da Universidade Presbiteriana Mackenzie e membro da Society for Psychotherapy Research. 36
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especial • psicoterapia breve
C
ada vez mais o mundo contemporâneo solicita modalidades de assistência psicológica capazes de oferecer soluções rápidas e eficazes para situações complexas, urgentes, críticas ou, ainda, de caráter preventivo. Essa demanda suscita questões de diferentes naturezas – teórico-clínicas, políticas, éticas, pedagógicas e econômicas. Nesse contexto, a psicoterapia breve (PB) é uma das alternativas que podem dar conta da crescente demanda de volume de atendimento. Não se trata apenas de uma psicoterapia de curta duração. A técnica tem tempo delimitado, exige planejamento terapêutico específico, foco, objetivo definido e maior atividade do terapeuta. Além disso, seria mais adequado falar em psicoterapias breves (PBs), no plural, dada a grande diversidade de propostas em relação aos aspectos citados, e diferenciá-las de intervenções breves. Apesar dos preconceitos e da histórica resistência da psicanálise às tentativas de abreviar o tempo do processo terapêutico, as psicoterapias breves são reconhecidas hoje como técnicas válidas. Um dos pioneiros das PBs, David H. Malan, que teve grande influência na consolidação dessa técnica, escreveu que “o divã de Procusto era tão inflexível quanto seu leito”, para ilustrar o questionamento do uso exclusivo de uma técnica para todo e qualquer caso clínico. O autor referia-se ao uso indiscriminado de psicoterapias psicanalíticas nas clínicas psiquiátricas no período após a Segunda Guerra Mundial. Segundo ele, muitas vezes caricaturas de psicanálise. Cabe uma ressalva: as terapias breves só puderam se desenvolver devido à experiência clínica adquirida em tratamentos longos. Foi a partir de tratamentos fundamentados nas técnicas tradicionais que se delineou a compreensão da dinâmica da personalidade, dos padrões de doença e processos terapêuticos, base para o desenvolvimento de terapias breves. Ainda hoje, em instituições como hospitais, ambulatórios, centros específicos de atendimento público e clínicas-escolas, é visível o descompasso entre a enorme demanda 38
e a escassez de recursos. A psicologia e a psicanálise conquistaram credibilidade e amplo campo de atuação para além dos consultórios particulares, sendo obrigadas a repensar os modelos clássicos de formação profissional e atendimento clínico. Se, de um lado, há grande entusiasmo com a aplicação das PBs como solução para as demandas atuais, de outro, elas são alvo de frequentes críticas que, em geral, as acusam de não passarem de trabalhos adaptativos, superficiais, limitados ao ego, com resultados transitórios, pouco profundos ou incapazes de propiciar mudanças psíquicas significativas e duradouras. É interessante examinar a história das psicoterapias breves de base psicanalítica que são as fontes de inspiração de outras propostas desenvolvidas atualmente no Brasil e no mundo. Vale ressaltar que uma única corrente fundada na teoria psicanalítica pode propiciar diversas propostas de psicoterapia breve. Aliás, no conjunto da própria psicanálise encontramos diferentes formulações e proposições. Desde Freud, o aparelho psíquico tem sido o objeto de estudo da teoria psicanalítica, cuja construção ocorreu principalmente por meio do estudo dos fenômenos como os sintomas, os atos falhos e os sonhos. O conceito central é a teoria do inconsciente e seu funcionamento. Porém, tendo como origem comum a teoria das motivações inconscientes, surgiram estudos que enfatizaram diferentes aspectos, tais como a teoria das pulsões, a teoria das relações de objeto e a organização estrutural. Essas variações conduziram às diferentes abordagens psicanalíticas. Assim, a partir de uma noção central (o inconsciente) surgiram diferentes abordagens ou correntes de pensamento. Percorrendo a história do surgimento das psicoterapias breves de base psicanalítica, observa-se que muitas das questões, a favor ou contra as PBs, com as quais nos deparamos hoje, já estavam presentes nos momentos iniciais do aparecimento dessas técnicas; seja baseada na teoria das pulsões, seja na teoria das relações de objeto ou na teoria psicanalítica estrutural. Questiona-se não só a relevân-
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cia e a eficácia da técnica, como também seus limites. Discute-se, além disso, aspectos relacionados à prática e à teoria, como o número de sessões (desde uma sessão até no máximo um ano de psicoterapia), conceito e definição de foco para o trabalho terapêutico, atitude adotada pelo terapeuta ao longo do processo (neutralidade, atitude mais ativa, atitude docente etc.), regras abstratas do enquadre (associação livre do paciente ou direcionamento do terapeuta, atenção flutuante ou seletiva etc.) indicação, contraindicação e objetivos da psicoterapia breve, entre outros. Em pronunciamento no V Congresso Psicanalítico em Budapeste, em 1918, Freud anuncia a necessidade de a psicanálise desenvolver novas técnicas de atendimento para dar conta da demanda social e do prolongamento excessivo das análises clássicas. O modelo
então vigente de formação e atendimento não era suficiente para a demanda (o número de analistas habilitados era inferior às necessidades da população). Outras questões, também anunciadas no pronunciamento em Budapeste, dizem respeito à atitude do analista diante da reação terapêutica negativa à exacerbação de sintomas, bem como à evolução do processo analítico. Experiências traumáticas como a Segunda Guerra Mundial e algumas catástrofes ocorridas nos Estados Unidos criaram uma enorme procura de atendimento para problemas de ordem psíquica, o que foi determinante para o desenvolvimento e a consolidação das psicoterapias breves. Nas décadas de 10 e 20, a psicanálise vivera o fenômeno que Malan chamou de “inflação dos tratamentos psicanalíticos”, ou novembro 2017 • mentecérebro 39
seja, o aumento da frequência das sessões e do tempo de duração das análises. Esse é um ponto ainda polêmico no meio psicanalítico. Em Psychoanalytic therapy: principles and application (1946), Franz Alexander afirma: “Não há correlação entre os resultados terapêuticos e a duração e intensidade do tratamento”. A partir dessa constatação, ele formulou dois eixos principais de posicionamento dos psicanalistas diante da questão. O primeiro, chamou de posição construtiva, usando como exemplo reformulações técnicas propostas por Sándor Ferenczi (leia texto nas págs. 74 e 75). O segundo, denominou posição de crença quase supersticiosa de que os resultados rápidos são apenas transitórios. É interessante observar que as principais crenças apresentadas na época persistem até hoje: a profundidade da terapia é diretamente proporcional ao tempo do tratamento e frequência de sessões; os resultados terapêuticos obtidos em número reduzido de sessões são necessariamente superficiais e temporários; justifica-se o prolongamento da análise com base no princípio de que a resistência do paciente será finalmente superada, obtendo-se o resultado terapêutico desejado. 40
Os primeiros casos de Freud foram “breves”. A obra Estudos sobre a histeria (1895) o autor descreve terapias de curta duração, que oscilam entre uma única sessão e alguns meses. Em 1990, o atendimento do caso Dora durou 11 semanas; o do pequeno Hans, dois meses; em 1906, o atendimento do maestro Bruno Walter e a “cura” de uma paralisia em seu braço direito deram-se em seis sessões; em 1908, uma única conversa de quatro horas à beira de um penhasco “curou” a impotência sexual de Gustav Mahler. Mas, se os primeiros casos eram breves, o que provocou o alongamento das análises? Qual o divisor de águas? Dois casos clínicos de Freud podem ser citados como fontes de inspiração das PBs. O primeiro é o caso Katharina, descrito em Estudos sobre a histeria e resgatado por Michael Balint no seu livro Terapia focal (1972) como exemplo de atendimento breve e focal. Nesse caso, Freud teve uma única conversa com Katharina que lhe permitiu relacionar suas crises atuais de angústia histérica com duas séries de episódios passados de caráter sexual suprimidos de sua memória consciente/pré-consciente por meio de mecanismos de recalque. Num primeiro momento, a jovem Katharina descreve as crises com sintomas de falta de ar, chegando a se sentir sufocada. A partir das perguntas formuladas por Freud, baseadas em pressupostos sobre a patologia histérica, Katharina fornece mais detalhes da crise atual, caracterizando uma crise de angústia, mais precisamente, “ataque histérico cujo conteúdo era a angústia”. Na sequência, diz ver nesses momentos sempre um rosto medonho. Então, com mais perguntas, recordase da primeira crise similar, dois anos antes. Nesse ponto, Freud sugere à paciente ter visto ou ouvido algo que a constrangeu e de que preferia não tomar conhecimento. Ela recorda da situação na qual ocorreu a crise, quando vira pela janela o tio deitado sobre uma moça, sua prima. O episódio desencadeou a separação dos tios por “culpa” dela, a responsável pela revelação do fato. Freud segue indagando se ela tinha sentido repulsa pelo o que vira, fazendo-a recuperar a lembrança da cena, o significado e o impacto afetivo do que vira, e a dolorosa lembrança de episódios anteriores, reativadas com a com-
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especial • psicoterapia breve
preensão do caráter sexual da cena. Quando ainda mais jovem, sofrera investidas de caráter sexual desse mesmo tio, com quem morava e fizera algumas viagens. Ela não sentia repulsa pela visão da cena do tio com a prima, mas pela lembrança que despertara, ou seja, as investidas dele contra ela própria. A conversa com Freud possibilitou associar tais lembranças com seus sintomas atuais, e no final sentia-se revigorada e aliviada. Podia verbalizar que o rosto que via era o do tio furioso, que a ameaçava por ter revelado tudo à tia, culminando no divórcio. Anos mais tarde, Freud reviu sua compreensão das histéricas, ‘deixou de “acreditar” nas histórias narradas por elas e desenvolveu a teoria das fantasias. Abandonou a técnica da catarse, empregada na época, e criou a técnica da associação livre. Balint usa esse caso para ilustrar e legitimar como um atendimento breve e focal permite relacionar o conflito atual a experiências passadas (infantis), interpretá-las, e liberar o paciente de seu sintoma ou padecimento.
O segundo caso é o do Homem dos Lobos, um jovem russo neurótico obsessivo, apresentando em História de uma neurose infantil (1918) e rediscutido em Análise terminável e interminável (1937). Freud propõe estabelecer uma data fixa para o término da análise, visando assim acelerar o processo, então estagnado. Se, em um primeiro momento, Freud entendeu ter sido produtiva sua atitude, ele mais tarde a reavalia, considerando-a inadequada. Em 1937, ele chama de “trabalho de bombeiro” a rapidez para eliminar sintomas e desqualifica as tentativas de abreviar o tratamento analítico por meio de atividades do analista que visem ativar conflitos para trabalhá-los em análise. Podemos agora responder à questão sobre o divisor de águas em relação ao prolongamento das análises. Diante das dificuldades encontradas na clínica, em especial a reação terapêutica negativa, Freud recorre à metapsicologia e reformula a teoria, mantendo a técnica. Abandona a concepção inicial do conflito entre pulsão sexual e pulsão de autoconser-
Fundada em Londres em 1920, a Clínica Tavistock tinha como objetivo levar ao campo da prática médica a experiência acumulada pela psicanálise durante a Primeira Guerra Mundial. Oferecia psicoterapia sistêmica a pacientes com transtornos neuróticos. No começo dos anos 30, além da assistência, iniciaram-se as atividades de ensino e pesquisa para profissionais de diversos campos, como cientistas sociais, médicos, psicólogos e psiquiatras. Depois da Segunda Guerra, as equipes da Clínica Tavistock e do então recém-fundado Tavistock Institute of Human Relations começaram a se dedicar ao estudo da estrutura e do funcionamento de pequenos grupos, com a importante contribuição de W. R. Bion. Além de explorarem do funcionamento de grupos e da formulação de propostas de intervenção social, as equipes passaram a se dedicar a formas de abordagem e compreensão clínica de casais, famílias e outros grupos da comunidade. Entre eles está presente o grupo de clínicos gerais que desde 1950, frequentam programas coordenados por Michael Balint, os quais abordam os problemas psicológicos no campo da medicina geral. Em meados da década de 50, um grupo de especialistas liderado por ele desenvolveu o novo método de psicoterapia, a terapia focal.
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A CLÍNICA TAVISTOCK
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especial • psicoterapia breve
Para Alexander, o objetivo da terapia é melhorar as habilidades do paciente para encontrar satisfação de necessidades subjetivas de maneira aceitável para ele e para o outro vação, e desenvolve o conceito de pulsão de morte, de compulsão à repetição (justificando o prolongamento das análises), passando a ver no jogo pulsional um conflito entre as pulsões de vida e as pulsões de morte. Em 1937, Freud aponta três fatores decisivos para o sucesso terapêutico: o prognóstico mais favorável dos casos de origem traumática; a importância das considerações quantitativas, ou seja, da força constitucional dos instintos; e as alterações do ego. Contudo, as discussões mantidas com Freud a respeito do caso do Homem dos Lobos e o pronunciamento de 1918 motivaram Ferenczi, entre outras coisas, a fazer experiências e reformulações técnicas para abreviar e intensificar os tratamentos, depois conhecidas como “técnica ativa”. Ferenczi e Otto Rank questionaram a rigidez da técnica psicanalítica e da atitude do analista, além do prolongamento excessivo dos tratamentos, sendo considerados por isso como precursores das PBs. Assinalaram a discrepância entre o grande desenvolvimento da teoria psicanalítica e a parca literatura sobre a técnica. Identificaram uma importante lacuna no que diz respeito a soluções práticas e técnicas para dificuldades encontradas na clínica. Mais do que a recuperação das lembranças e as reconstruções que caracterizavam a técnica psicanalítica corrente, Ferenczi e Rank enfatizaram a experiência emocional do paciente na relação transferencial. Inspiraram outros autores, como Alexander e Balint, também preocupados com a duração das análises, com a aplicação de um único modelo para todos os quadros psicodinâmicos e com o alcance social desse modelo. Psychoanalytic therapy: principles and application (1946), de Franz Alexander e Thomas French, foi um marco histórico para as PBs. Apesar da péssima repercussão no meio psi42
canalítico, uma vez que apresenta a proposta da experiência emocional corretiva (EEC) como a etapa seguinte nas reformulações da técnica psicanalítica, a obra contribuiu para a definição da técnica da PB. Para os autores, a sequência histórica do desenvolvimento da técnica psicanalítica seria constituída pelas seguintes etapas: hipnose, sugestão, associação livre, análise da transferência e, finalmente, a EEC. Desconsiderando o impacto negativo, que levou à desvalorização das PBs no meio psicanalítico, o livro tem o mérito de provar a eficácia de tratamentos breves. A obra foi resultado de sete anos de pesquisas do corpo docente do Instituto de Psicanálise de Chicago, cujo objetivo era formular princípios básicos que tornariam possível o tratamento breve e eficiente, e desenvolver técnicas específicas de atendimento. Os autores indicam, para isso, o uso consciente de várias técnicas. Defendem a flexibilização da técnica e sua adaptação à natureza de cada caso, levando em conta a psicodinâmica, os conflitos atuais e o objetivo terapêutico desejado, o que pressupõe um planejamento terapêutico. Para eles, tal atitude tornaria a psicanálise mais útil e atingiria um maior número de pessoas. Além disso, assumem uma nova atitude visando a prevenção de “doenças emocionais”. Apresentam o princípio da flexibilidade e o princípio da EEC, cujos aspectos fundamentais seriam o controle e a manipulação da relação transferencial. Para Alexander, o objetivo terapêutico é sempre a melhoria das habilidades do paciente para encontrar satisfações às suas necessidades subjetivas, de uma maneira aceitável para ele mesmo e para o mundo em que vive, e, assim, liberá-lo para desenvolver suas capacidades. A EEC pressupõe o terapeuta ativo desde os momentos iniciais. Considera que todos os conflitos antigos não resolvidos surgem na relação transferencial, cabendo ao analista assinalar as diferenças entre as reações das figuras parentais e as reações dele (analista) como a chave para produzir mudanças. Nessa técnica, o analista assume conscientemente uma atitude diferente daquela adotada pela figura parental na experiência passada não resolvida, visando possibilitar uma nova
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e mais saudável solução. Alexander e French definem o conflito da situação atual do paciente (na transferência ou mundo externo) como o conflito focal a ser trabalhado, que se encontra mais próximo da superfície em qualquer sessão, contrapondo-se ao conflito nuclear originado na infância. Sustentam que a experiência emocional substituiria a busca de lembranças e a reconstrução intelectual. A decisão de tratar ou não estava diretamente ligada à reação do paciente às primeiras interpretações, o que poderia resultar em tratamentos que poderiam ser desde terapias de apoio até terapias profundas com alterações da organização psíquica. O grupo de Chicago considerava o uso cuidadoso da interpretação como o melhor método para controlar a intensidade do tratamento. Para a indicação de terapia, avalia fatores externos (deficiência física, deficiência intelectual, idade avançada) e fatores internos (força egoica, desenvolvimento da personalidade, forma de lidar com a crise). Os anos 50 marcam o início de vários programas de pesquisa em psicoterapias breves (principalmente na Europa, Estados Unidos, e América do Sul) e a expansão dos serviços psiquiátricos de urgência nos Estados Unidos. No pós-guerra, na Clínica Tavistock, em Londres, Balint e Malan dão continuidade aos estudos de Ferenczi sobre reformulações técnicas e questionam a aplicação de um mesmo tratamento-padrão, sejam quais forem o diagnóstico e as necessidades clínicas do paciente. Repudiam, também, a atitude frequente de atribuir ao paciente – “por sua falta de cooperação” – a culpa pelo insucesso ou pela falha terapêutica, e alertam para as regressões prejudiciais a que a técnica-padrão induzia. Além desses questionamentos, destacam a importância da prevenção primária. Com o estudo de um caso clínico, Balint formulou o que ficou conhecido como terapia focal. Seu objetivo era investigar a psicoterapia em nível profundo e intenso, porém em tempo breve. Considerava a necessidade de a técnica ser praticada por terapeutas com conhecimento teórico e prático em psicanálise. Para Balint, todas as atividades do terapeuta deveriam estar restritas às intervenções interpretativas. A atividade do terapeuta deveria
ser alcançar o foco apropriado dentro do que o paciente oferece e aproximar-se desse problema focal somente pela interpretação. Nessa proposta técnica, o terapeuta utiliza-se da atenção seletiva e da negligência seletiva. O que não está relacionado com o foco é deixado sem interpretação. Malan – que integrava o Laboratório de Terapia Focal na Tavistock – desenvolveu vasta novembro 2017 • mentecérebro 43
especial • psicoterapia breve pesquisa buscando estabelecer critérios de seleção e avaliação dos resultados. Para tanto, realizou entrevistas clínicas durante anos, com intervalos regulares, em dois grupos de pacientes atendidos em períodos subsequentes na referida clínica. Para pesquisa, Malan realizou extenso levantamento sobre psicoterapias breves propostas na época e classificou-as em dois campos opostos, que nomeou de visão “conservadora” e visão “radical”. Podemos encontrar até hoje posições nesses dois extremos. Grosso modo, a visão conservadora indica a PB para patologias mais leves e de iní-
cio recente, as técnicas utilizadas devendo ser superficiais, e a interpretação transferencial, especialmente evitada. A visão radical considera a possibilidade de mudanças psíquicas profundas em pacientes com enfermidades mais severas e/ou crônicas, por meio da técnica de interpretação ativa que contenha a maior parte de elementos essenciais de uma análise nos moldes tradicionais. Os resultados da pesquisa de Malan ratificaram os aspectos da visão radical. Porém, é importante destacar que um dos principais aspectos a ser considerado como critério de
O MENINO TERRÍVEL DA PSICANÁLISE Sándor Ferenczi, cujo verdadeiro nome era Sándor Fraenkel, nasceu em 1873 em Miskolcz, pequena cidade da Hungria, em uma família de 11 filhos. Seu pai, Bernàt Fraenkel, imigrante judeu polonês nascido em Cracóvia, era entusiasta da Revolução Liberal de 1848 e participou da insurreição húngara contra a dominação austríaca. Estabeleceu-se depois como livreiro; o negócio prosperou, e ele passou a exercer também o ofício de gráfico e editor. Em 1879 mudou o nome de Fraenkel (judaico) para Ferenczi (húngaro). Morreu em 1888. A viúva, Rosa Eibenschutz, assumiu, com sucesso, a direção dos negócios. A infância de Ferenczi parece ter transcorrido num ambiente familiar intelectualmente estimulante. Após os estudos secundários, foi para Viena, onde se diplomou em medicina em 1894. Até então jamais encontrara ou ouvira falar de Freud. Formado, estabeleceu-se em Budapeste como clínico geral e psiquiatria. Exerceu a clínica geral até 1910, dedicando-se depois apenas à psicanálise. A primeira leitura de A interpretação dos sonhos não o animou; só mais tarde, em 1907, ao saber de um método elaborado em Zurique (a associação de palavras de Jung, com quem estão estabeleceu os primeiros contatos) escreveu a Freud solicitando uma entrevista. Inaugurava-se assim a longa correspondência entre eles, de 25 anos e cerca de 1.250 cartas. Embora a técnica do tratamento tenha sido objeto de preocupação constante de Ferenczi, seu interesse maior foi sempre o tratamento propriamente dito, e não a elaboração de um sistema meticuloso. Muitas de suas experiências técnicas vieram a fazer 44
parte da chamada técnica clássica. Seu conceito de introjeção, sua noção de trauma, suas reflexões acerca da transferência e da contratransferência justificam as palavras de André Green, para quem Ferenczi é “o pai da psicanálise contemporânea”. Michael Balint, seu discípulo e amigo, divide a produção de Ferenczi em três agrupamentos quase correspondentes aos períodos: até 1919, contribuições à técnica clássica; até 1926, a “técnica ativa”; a partir de 1927, indicações para futuros desenvolvimentos. No primeiro, Ferenczi busca a ampliação considerável de seu campo de observação e maior compreensão e conhecimento do inconsciente humano. Já no período da “técnica ativa”, ele exigiu de si observações mais rigorosas e um conhecimento maior para melhor compreender os pacientes e desenvolver uma forte empatia, capacitando-o a intervir na hora exata e da forma correta. Tendo como preocupação fundamental a situação do paciente em seu sofrimento, em sua urgência de “curar-se”, e pouco satisfeito com as práticas lentas e intelectuais da psicanálise oficial, Ferenczi não hesitava em buscar novas formas de atender. Tais tentativas, aliás, fizeram dele o enfant terrible dos psicanalistas. Quase no fim da Primeira Guerra Mundial, logo depois de sua análise com Freud, Ferenczi começou seus experimentos técnicos chamados, inicialmente, de “técnica ativa”, com o apoio de Freud. De acordo com essa técnica, no momento exato, o analista encorajaria o paciente a se expor ou mesmo a produzir, intencionalmente, situações nas quais ele chegaria a um considerável estado de tensão. Com isso,
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seleção foi a alta motivação para o insight; e o fator mais importante relacionado à técnica, a interpretação da transferência durante todo o tratamento, com ênfase na ligação da transferência com a infância e com a elaboração da raiva e do sofrimento pela perda do terapeuta na ocasião da alta. Muitos trabalhos foram desenvolvidos nesse campo. Na Universidade Harvard, Erich Lindemann iniciou pesquisas com psicoterapia dinâmica breve, estudando processos de luto e possíveis reações patológicas dos sobreviventes e parentes de vítimas de um incêndio
FERENCZI, 1922, em Budapeste, Hungria
deveria irromper na consciência um desejo ou pulsão até então recalcados, transformando um sistema desagradável em satisfação agradável, e permitindo às associações do paciente, até ali interrompidas, a possibilidade de fluir novamente. Embora tivesse aderido de início à ideia, Freud rapidamente se convenceu de tratar-se apenas de um sucesso ilusório e imprevisível, e abandonou-a. É desse período, embora com diferente perspectiva, outra de suas “criações”: a bioanálise, nova ciência cuja proposição teórica seria estender as teorias analíticas à biologia. Em sua obra Talassa, publicada em 1924, mas cuja elaboração remonta a 1914, quando o serviço militar o obrigou a abandonar a atividade clínica, Ferenczi formula a hipótese segundo a qual a existência intrauterina constituiria a repetição das formas anteriores da vida, cuja origem seria marinha. O nascimento representaria a perda desse estado originário, ao qual todos os seres aspiram retornar. Para Edmond Gilliéron, as diferentes técnicas de psicoterapia breve se inspiram, todas, na “técnica ativa” de Ferenczi, por ele desenvolvida com o intuito de evitar certos benefícios secundários inerentes às perturbações neuróticas. Tratava-se, pois, de lutar contra as resistências dos pacientes, a técnica ativa visando elevar o nível de angústia do paciente para favorecer o processo psicanalítico. Isso não equivale a dar ênfase apenas ao sintoma, e sim, ao processo psicanalítico. Os temores de Freud em face das inovações de Ferenczi se justificam pelo fato, realmente ocorrido em muitas variedades de terapia surgidas, de se dar maior
ênfase ao conflito externo e menor atenção ao conflito interno. Mas, vale insistir, isso em nada coincide com as ideias de Ferenczi, cujo foco de estudo e análise eram os sintomas surgidos no curso do tratamento. (Os autores cujas ideias correspondem melhor à linha traçada por Ferenczi acentuaram os problemas técnicos gerais, e não sintomas; são eles: Franz Alexander, Michael Balint e David. H. Malan.) Uma vez convencido da insuficiência da técnica ativa, a reação de Ferenczi foi novamente exigir de si observações ainda mais precisas, buscando conhecimento mais sólido. É o terceiro período – a partir de 1926 até sua morte –, no qual busca atingir uma forma especial de paciência, de bondade e até mesmo de indulgência. A ligação com Georg Groddeck (a quem procurou após a morte da mãe, Rosa) teve, nessa fase, impacto decisivo, e Ferenczi orienta-se para uma técnica da indulgência e do relaxamento, destinada a devolver ao paciente o amor do qual fora privado durante a infância. Tal posição viria a comprometer suas relações com Freud. Em seu último artigo – “Confusão de língua entre os adultos e a criança (A linguagem de ternura e da paixão)” –, definiu a honestidade e a sinceridade absolutas como dois fatores indispensáveis para atingir tal forma especial de paciência e indulgência. Ele morreu em Budapeste, em maio de 1993. Apesar de sua obra ter tido pouca divulgação nas décadas seguintes, ao seu falecimento, atualmente tem ganhado reconhecimento entre estudiosos e pesquisadores. novembro 2017 • mentecérebro 45
ocorrido em Boston. Além de Lindemann, outra influência importante na consolidação das PBs nos Estados Unidos é Erick H. Erikson, autor de uma teoria sobre o desenvolvimento humano e a crise emocional evolutiva ou acidental. Suas ideias fundamentam as intervenções breves no campo da saúde mental comunitária. Com base nas concepções desses dois autores, Peter E. Sifneos apresentou grandes contribuições nessa área. Seu primeiro livro, Short–term psychotherapy and emotional crisis (1972) é resultado de pesquisas realizadas no período de 1954 a 1968. A partir da constatação de diversas formas de trabalhar com psicoterapia breve, Sifneos identifica duas for46
mas distintas: a psicoterapia breve supressora de ansiedade e a provocadora de ansiedade. Para a PB provocadora de ansiedade, ele estabeleceu critérios rigorosos de indicação, aceitando apenas pacientes que desenvolvem força de caráter adequada e que apresentavam questões edípicas (o foco do trabalho). A PB supressora de ansiedade, ou de apoio na crise, é indicada para pessoas que por causas genéticas ou ligadas ao desenvolvimento nunca foram capazes de alcançar um nível de funcionamento psicológico adaptado para lidar com as vicissitudes da vida. Para esses casos, o foco do trabalho é a resolução da crise ou o alívio sintomático, ou seja, a volta ao equilíbrio anterior. Sifneos caracterizou a PB como: brevidade, reeducação emocional, resolução de problemas e objetivos limitados. Ele defende a ideia de evitar sistematicamente questões pré-edípicas e pré-genitais. Para ele, a atividade do terapeuta restringe-se às confrontações e interpretações apropriadas, valorizando o componente didático – concepção que foi alvo de crítica de outros autores. O psiquiatra e psicanalista Edmond Gilliéron, diretor da Policlínica Psiquiátrica de Lausanne, é outro personagem de destaque na psicoterapia breve psicanalítica. Ele parte do princípio de que é justificável o desejo de abreviar o tratamento analítico; porém, considera fundamental levar em conta o fator contrário a esse desejo – a lentidão das modificações psíquicas profundas, decorrentes do funcionamento atemporal dos processos psíquicos inconscientes. Em 1968 Gilliéron iniciou os estudos mais sistemáticos das PBs, formalizando o que ficou conhecido como técnica de Lausanne. Em um primeiro momento, a proposta seguiu orientação muito próxima à de Balint e Malan. Em seguida, dedicou atenção para as questões relativas ao enquadre, ou seja, para as influências do settings no processo terapêutico. Estudou o impacto das mudanças, principalmente a passagem da posição poltrona-divã para face a face (F-F) e a delimitação temporal com data marcada para o término. Avaliou como as modificações contextuais simples influenciam o processo associativo. Com base nas evidências clínicas encontradas, propôs a manutenção da atenção
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especial • psicoterapia breve
flutuante do analista e da associação livre do paciente, pois constatou que as variações do enquadre são suficientes para modificar o funcionamento psíquico e intensificar os afetos. A função do enquadre é criar uma situação psíquica apropriada para favorecer a eficácia da interpretação. Gilliéron conclui ser possível, em diversas formas de psicoterapia, tal como a PB, respeitar estritamente as regras básicas da psicanálise, desde que se compreenda a especificidade das resistências que aí surgem. O psicanalista suíço continua trabalhando com o método interpretativo, garantindo as condições adequadas de trabalho com as mudanças de enquadre. Posiciona-se de forma diferente em relação às indicações e contraindicações. Para ele, não há contraindicações absolutas, pois se deve considerar sempre a psicodinâmica de cada caso e, principalmente, a motivação para mudanças. Gilliéron fala de focalização pelo próprio paciente, ou seja, com as delimitações do enquadre (F-F e delimitação de tempo) já ocorre um processo associativo que segue as motivações inconscientes que levaram à busca por ajuda. Outra contribuição importante de Gilliéron diz respeito ao diagnóstico psicodinâmico precoce e à possibilidade de já na primeira entrevista se formular uma hipótese interpretativa. Baseado em sua experiência clínica e com influências da teoria da comunicação, ele desenvolveu um modelo de sessões iniciais. Nestas, observam-se atentamente os comportamentos verbais e não verbais do paciente desde os movimentos iniciais, antes mesmo do encontro com o terapeuta para consulta (cartas de encaminhamento, telefonemas, informações provenientes da instituição, secretaria etc.), até as primeiras falas significativas e a reação emocional do terapeuta. A formulação de Gilliéron pressupõe que o equilíbrio psíquico se apoia no ambiente afetivo. A ruptura desse equilíbrio leva à procura por ajuda e a buscar desse apoio perdido na figura do terapeuta. A interpretação inicial abarca esses elementos e abre a possibilidade da avaliação da indicação ou não de psicoterapia breve ou longa. Observam-se a elaboração do paciente ao longo das sessões iniciais, seu desejo de mudança ou retorno ao equilíbrio anterior, ou
ainda, a possibilidade de a intervenção psicológica se esgotar nas sessões iniciais. Em tais sessões, outros elementos são avaliados, como a história de vida, a organização da personalidade, a capacidade de elaboração e o desejo de iniciar trabalho elaborativo mais longo (Gilliéron considera PB um tratamento de até um ano de duração). O modelo de avaliação inicial proposto por Gilliéron é uma ferramenta técnica especialmente útil para avaliar a demanda por atendimentos psicológicos em instituições ou consultório, e definir quais modalidades são mais adequadas para diferentes procuras. Esse recurso pode evitar o abandono do tratamento e prolongamentos desnecessários. No panorama apresentado neste artigo, examinamos alguns modelos de psicoterapia breve, que apresentam profundas diferenças entre si. As propostas consideram desde a intervenção voltada para uma população muito restrita – quadros neuróticos, como indica Sifneos – até a possibilidade de indicação de PB para quadros mais “graves” e crônicos, dependendo da motivação, como sugerido por Malan e Gilliéron. Outras discrepâncias se verificam: por exemplo, a adoção, pelo terapeuta de uma atitude docente, ou a interpretação da relação transferencial desde o início. Esses últimos posicionamentos estão relacionados como o cuidado no estabelecimento de dependência ou com a neurose de transferência a ser evitada. Tais proposições técnicas baseiam-se na experiência clínica, na fundamentação teórica dos diferentes autores e nas realidades históricas, sociais e culturais nas quais se situam. Hoje, além da aplicação e adaptação desses modelos pioneiros, considerados clássicos das PBs, encontramos propostas de práticas ecléticas – cuja adoção não é consensual – que podem estar associadas a hipnose, psicodrama, relaxamento, medicação (é importante frisar que os psicotrópicos se desenvolveram muito nas últimas décadas e seu uso se disseminou), ou adaptadas a diferentes realidades. É de fundamental importância que os terapeutas reflitam criteriosamente sobre o que propõem e como, considerando as implicações decorrentes da escolha adotada no processo psicoterapêutico.
PARA SABER MAIS Psicoterapia breve de Casal. M. Hegenberg. Casa do Psicólogo, SP, 2016. Psicoterapia psicanalítica breve. T. Lowenkron. Artmed, Porto Alegre, 2006. Psicoterapias psicodinâmicas breves: propostas atuais. Org. E.M.P.Yoshida e M.L.E. Enéas. Ed.Alínea, Campinas, 2004. Psicoterapia breve. M. Hegenberg. Casa do Psicólogo, SP, 2004. As psicoterapias breves. E. Gilliéron. Jorge Zahar ed., RJ, 1983.
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livros | lançamentos PSICANÁLISE
Freud descomplicado
A psicanálise de Freud explicada.
Juan Adolfo Brandt. Zagodoni, 2017. 200 págs. R$ 56,00
Estudar psicanálise não é tarefa simples. Seja na faculdade de psicologia ou de maneira autônoma, e seja qual for a linha de estudo, é necessário mergulhar na obra de Sigmund Freud. O intuito do psicanalista Juan Adolfo Brandt, autor de A psicanálise de Freud explicada, é oferecer subsídios para “navegantes de primeira viagem”. Resultado de questões surgidas nos cursos de graduação e pós-graduação do doutor em psicologia social pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Instituto de Educação Superior de Brasília, o livro, com linguagem acessível e rico em exemplos, funciona como leitura introdutória complementar à obra freudiana, sem jamais suprimir o contato com o conteúdo original. A edição inclui também a revisão de termos traduzidos do alemão, exemplos de experiências adquiridas na clínica e resultados de pesquisas acadêmicas atuais.
NEUROCIÊNCIA FILOSOFIA
Certeza do subjetivo Se alguém lhe perguntasse do que você tem certeza, talvez algumas respostas viessem imediatamente à cabeça. Quando se trata de questões objetivas – a data do aniversário de um ente querido ou do vencimento da fatura do cartão de crédito, o conteúdo estudado para uma prova importante ou até que o céu continua azul – fica mais fácil ter convicção. Mas de onde vem essa sensação? Em Sobre ter certeza – Como a neurociência explica a convicção, o neurocientista Robert A. Burton, ex-chefe da divisão de neurologia da Universidade da Califórnia, investiga o que nos leva a ter certeza. Ele argumenta que chegar a uma resposta conclusiva não é uma escolha consciente, nem mesmo um processo de pensamento. Para Burton, a sensação nasce de mecanismos cerebrais involuntários que, como amor ou raiva, funcionam de forma independente da razão. Recorrendo a pesquisas de ponta na área da neurociência, o pesquisador discute limites biológicos da razão e o “sentimento de saber” derivado de regiões primitivas de nosso cérebro.
Sobre ter certeza – Como a neurociência explica a convicção. Robert A. Burton.
Blucher, 2017. 280 págs. R$ 39,00
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Revelando Foucault
Impressões de Michel Foucault.
Roberto Machado. N-1 edições, 2017. 240 págs. R$ 50,00
Em Impressões de Michel Foucault, o pernambucano Roberto Machado, pósdoutorado na Universidade de Paris VIII sob orientação de Gilles Deleuze, fala dos anos iniciais de sua carreira acadêmica, quando se dividia entre a militância política e as aulas, muito antes de conhecer Michael Foucault, de quem se tornaria amigo. Frequentador assíduo dos cursos que Foucault ministrava, Machado – hoje professor aposentado do departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), autor da obra que nos leva para perto de um dos maiores pensadores do século 20 – apresenta ao leitor a sensação de fazer parte da elite intelectual francesa da época, repleta de escritores, cineastas, filósofos, sociólogos e intelectuais em geral que frequentavam as aulas no Collège de France. Em meio às salas de aula abarrotadas e esfumaçadas, surge um Foucault maduro, de temperamento forte, já reconhecido por seu trabalho. Em tempos de intensa efervescência política da década de 70, o pensamento de Foucault toma um novo tom por meio das lentes de Machado. Muito mais do que traçar um desenho de sua pessoalidade, o autor brasileiro constitui o contexto vivido.
ENSAIOS
Transformações do contemporâneo Mutações: entre dois mundos propõe o exercício complexo de ir ao impensável seguindo o rastro de vestígios de coisas pensadas. Reunindo 23 artigos de intelectuais de vários países, o livro é o décimo volume da série publicada pela Edições Sesc anualmente desde 2008. Além disso, a obra celebra os 30 anos da realização de ciclos de encontros e conferências organizados pelo filósofo Adauto Novaes, com a proposta de discutir e contextualizar crises sociais e éticas, relacionadas às transformações e constantes reconfigurações que vivemos. Reunindo pensadores como Marilena Chauí, Maria Rita Khel, Vladimir Safatle, Francis Wolff, Frédéric Gros, Francisco Bosco e Eugênio Bucci, a obra aborda temas importantes, que já estiveram em foco em outras edições de Mutações, como memória, política, paixão, olhar, desejo, tempo, violência, ética, crença e futuro. Os ensaios percorrem dois sentidos: a retomada e o desvio do pensamento.
Mutações – Entre dois mundos.
Organizado por Adauto Novaes. Edições Sesc, 2017. 504 págs. R$ 76,00
Para ler menos e riscar mais
imagens: divulgação
Caderno de atividades ou livro? A ilustradora canadense Keri Smith, autora de Destrua este diário (também agora em versão colorida), e do recémlançado A linha (ambos voltados ao público infantil e pré-adolescente), não parece muito preocupada com a definição. Embora os produtos sejam vendidos como livros, a proposta não é oferecer conteúdo para leitura, mas sim convidar o leitor (ou seria coautor?) a soltar a criatividade e personalizar o material que tem diante de si. A ideia é que a pessoa deixe a própria marca, a começar pela capa. As tarefas, lúdicas e em geral bastante simples, no entanto, podem arrepiar os cabelos de leitores clássicos, que torcem o nariz para gente que mantém o hábito de fazer anotações nos cantos das páginas. Quando foi lançado no Brasil, em novembro de 2013, Destrua este diário provocou polêmica – afinal, convidava o feliz proprietário a amassar, sujar e arrancar páginas. As tarefas levaram alguns pais e educadores a questionar se os desafios – como destruir a lombada do livro, deixá-lo rolar ladeira abaixo ou colar insetos mortos em determinado lugar – seriam adequados. O fato é que os muitos adolescentes adoraram a proposta e a canalizaram com entusiasmado à violência devidamente consentida
A linha. Keri Smith.
Intrínseca, 2017. 224 págs. R$ 29,90
(e provocada) ao pobre diário. Em A linha, a tarefa é mais “delicada”: a ideia é que seja usado um lápis (às vezes, uma caneta, dependendo da atividade) para riscar, rabiscar, desenhar, escrever, criando uma linha que se estende na vertical, de uma página a outra, enquanto o leitor interativo responde a algumas provocações que ajudam a pensar um pouquinho em si mesmo, nos próprios desejos, medos, prioridades e escolhas. Nada muito profundo, mas a brincadeira pode ajudar adolescentes a prestar atenção em si mesmos. novembro 2017 • mentecérebro 49
limiar neurociências
Adivinhe quem vem para jantar?
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a época em que eu era criança, acreditava-se que, no futuro, robôs seriam misturas de geladeiras e aspiradores de pó com antenas saindo das orelhas. Fariam barulhos estranhos, teriam rodinhas e prestariam serviços domésticos a seus donos. A robô Rosie dos Jetsons, sempre uniformizada e solícita, era uma simpática escrava metálica que a classe média poderia aspirar a possuir sem culpa. No presente de nossas crianças, os robôs têm a inteligência dos sábios, a agilidade dos linces e a força dos titãs. Montam carros, fazem cirurgias, jogam xadrez, realizam chamadas telefônicas, buscam receitas na internet, apostam na bolsa de valores e elegem presidentes em países estrangeiros. Quem será o escravo depois que o futuro chegar? A boa notícia se espalha por todo o planeta: os robôs nos livrarão em breve de todos os trabalhos que não gostamos de fazer. A notícia ruim ainda escapa à maioria das pessoas: os empregos vão acabar. Todos (ou quase todos) os trabalhos serão robo-
tizados. Inclusive os que gostamos de fazer. Pesquisa com as palavras “robô” e “cérebro” no principal site de busca de publicações biomédicas do mundo, o PubMed, encontrou 1.037 artigos, quase todos publicados nos últimos 20 anos. A novidade mais recente, desenvolvida pelo neurocientista Ed Boyden no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), é um robô capaz de fazer registros intracelulares extremamente delicados, que requerem controle microscópico de finíssimas pipetas de vidro para tocar ou penetrar as membranas de neurônios, a fim de registrar sua atividade elétrica com máxima precisão. Trabalho que antes requeria pesquisadores altamente especializados agora pode ser feito – com muitas vantagens – por máquinas. Motoristas e cobradores. Pedreiros e gestores. Médicos e professores. Seguranças e pastores. Advogados e promotores. Pintores, jogadores, doutores. Psicólogos e assessores. Soldados e pecuaristas. Polícias e diaristas. Prostitutas e artistas. CEOs e cientistas. Não há profissão nem ofício impermeável à automação progressiva do terceiro milênio. A face robótica que se apresenta ao público ainda se parece com Rosie. O ChowBot, preparador automático de saladas frescas ao gosto do freguês, se populariza pelas empresas do Vale do
SIDARTA RIBEIRO
Silício sem que a maioria atente para o desaparecimento dos empregos de cozinheiro. Pinches mexicanos... Mas a verdadeira face do futuro é amorfa e está na nuvem. Em 2014 foi anunciada a criação do RoboBrain, gigantesco repositório de informações colhidas na internet pelas Universidades Cornell, Stanford, Brown e da Califórnia em Berkeley, para treinar robôs com informações já aprendidas por qualquer outro robô. Bilhões de imagens, vídeos e documentos já foram adicionados à plataforma, permitindo que novos robôs aprendam rapidamente o que os mais experientes já sabem. Um megacérebro online para todos os robôs do mundo. Há cerca de 600 milhões de anos começaram a evoluir sistemas nervosos capazes de representar internamente o mundo exterior. Há alguns milhares de anos, na linhagem humana, surgiram cérebros capazes de criar representações de suas próprias representações, gerando uma mente que observa a si mesma. Agora, com os robôs, criamos a representação da representação da representação. Uma mente que nos observa. Salve-se quem puder... Os robôs e seus algoritmos maravilhosos vêm aí. SIDARTA RIBEIRO, neurobiólogo, diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e professor titular da UFRN.
andrei verner (foto); shutterstock (imagem)
Diferentemente do que se imaginava que seriam no passado, os robôs têm hoje inteligência, agilidade e força; montam carros, fazem cirurgias, jogam xadrez, buscam informações na internet, apostam na bolsa de valores e elegem presidentes em países estrangeiros