Nú ero 1 – Abril 2010
Guitarra Clássica
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Editorial: Após assistir a um concerto de música contemporânea com uma formação de música de câmara de geometria variável, apercebi-me que este projecto, a Revista de Guitarra, partilha pontos em comum com esse concerto. A construção de cada número é fruto da contribuição de diversos elementos, compondo assim um todo que alia a perspectiva científica à humana, sempre em torno da guitarra. Recebemos com muito agrado, artigos do outro lado do Atlântico, começámos a dar a conhecer os luthiers nacionais e procurámos novas obras para publicar. Neste número, inauguramos o espaço onde os leitores poderão escrever e, consequentemente, expressar as suas impressões. Para tal, bastará que nos escrevam um e-mail com “Espaço do Leitor” no Assunto (
[email protected] ).
[email protected] ). Em alternativa, poderão deixar os comentários no nosso blog: Revista de Guitarra Clássica http://revistaguitarra.blogspot.com/ criando assim uma maior inter-ligação entre Revista e Leitores, num caminho conjunto que se pretende longo. Pedro Rodrigues
É com enorme prazer que vos apresentamos o primeiro número da Revista Guitarra Clássica. Nesta edição temos como cabeça de cartaz, um dos mais conceituados guitarristas da actualidade, Ricardo Gallén, recentemente nomeado Professor Catedrático da Hochschule für Musik Franz Liszt de Weimar. Incluímos também uma entrevista a Piñeiro Nagy, um dos impulsionadores da guitarra clássica em Portugal, uma obra inédita do jovem compositor português Nuno Miguel Henriques, entre outros artigos. Esperamos que este número da Revista Guitarra Clássica seja do vosso agrado e naturalmente incentivamos aos leitores interessados que se tornem colaboradores, enviando sugestões, artigos e composições para
[email protected] [email protected].. Os nossos agradecimentos especiais a Nuno Miguel Henriques pela sua importante colaboração nesta edição. Até ao próximo número em Julho! João Henriques
Índice: Espaço do Leitor Entrevista a Ricardo Gallén Entrevista a Piñeiro Nagy Entrevista Paula Sobral VII Encontro Nacional de Guitarra Luthier.pt Novas Gravações O nacionalismo musical na obra de Manuel de Falla e Frederico Garcia Lorca Páginas com Música
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Equipa: Francisco Morais Franco, João Henriques, Nuno Miguel Henriques, Tiago Cassola Marques, Luiz Henrique Mello, Filipa Pinto-Ribeiro, Jorge Pires, Pedro Rodrigues, Alba López Sánchez, Manuela Vieira
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Entrevista a Ricardo Gallén Por Alba López Sánchez Faz muito frio em Weimar; há vários dias que neva. Fevereiro alemão. Aconchego-me na Pizzaria Antonio para entrevistar o guitarrista Ricardo Gallén que foi nomeado no passado Outono Professor Catedrático da Hochschule für Musik Franz Liszt. Trinta minutos muito interessantes passados à conversa em que ele responde a cada uma das minhas perguntas para a Revista Guitarra Clássica.
Alba López: Alguns anos atrás, Francisco de Paula perguntou-lhe numa entrevista sobre a sua nomeação
como assistente no Mozarteum de Salzburgo. Vários anos mais tarde, o que significa para si a cátedra na HFM Franz Liszt? Ricardo Gallén: Gallén : No fundo é importante. Ouvi falar desta vaga através de Joaquín Clerch, um dia antes de o prazo terminar, e foi tudo muito rápido. No começo senti um pouco de pressão, tendo recebido conselhos sobre como agradar aos membros do júri, mas toda a pressão desapareceu quando decidi que ia ser eu mesmo, com as minhas loucuras, como tocar com o nariz entre outras coisas, e cheguei à conclusão que "se não gostarem, não gostaram, mas não vou enganar ninguém". Então, quando me foi comunicado
que
tinha
ganho,
senti-me
satisfeito,
mas
sem
muita
importância.
Penso que terá sido a mesma sensação de quando estava em Salzburgo; só no segundo ano é que percebi o que significava ser assistente. Em Espanha, um professor do conservatório tem quase a mesma importância que um pedreiro, e um professor catedrático a mesma coisa, mas aqui na Alemanha há uma consideração enorme...e continuo a mesma pessoa, normal como sempre, mas entendo que dizer que se é professor abre alguns caminhos, ajuda. O melhor de tudo é poder estar tranquilo e planear outras coisas para o meu futuro, sem depender dos concertos. A.L: Quais são as impressões iniciais do primeiro semestre? É muito diferente de Salzburgo?
R.G: R.G: Sim, é bastante diferente; nota-se no ambiente. Em Salzburgo, todas as aulas acontecem no mesmo edifício, com os seus problemas como em outros lugares, mas há uma atmosfera muito boa, lá você encontrará todos os instrumentistas e gera-se uma vida social que aqui não há, especialmente quando os prédios estão separados. Eu em particular sinto-me muito isolado no Belvedere (edifício onde se leccionam as aulas de guitarra). A.L: Já começou a terceira edição do mestrado na Universidade da Estremadura (Espanha), no qual tem
alunos de Portugal. Será difícil conciliar o ensino em Weimar com o mestrado na Estremadura? R.G: R.G: Agora não será. Teria sido difícil se o mestrado fora como nas anteriores edições em que a periodicidade das aulas era a cada duas semanas, mas este terceiro mestrado é mais longo, uns dois anos e meio, quase três. As aulas são mais espaçadas, com apenas 9 alunos, em vez de 14, dando-me mais liberdade e tempo para viajar.
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A.L: Qual é a sua avaliação das anteriores duas edições do mestrado?
R.G: R.G: Muito boa. Com este mestrado nunca aspirei a criar “bichos de concurso”. A minha ideia era simplesmente plantar a semente que, ao longo dos anos, venha a mudar algo no mundo da guitarra. A maioria dos meus alunos de mestrado não ganhou concursos. São pessoas normais, que trabalham em conservatórios, fazendo o seu trabalho e o resultado ver-se-á com o tempo. A.L: Como é que enfrenta a solidão das viagens de concerto para concerto, de cidade para cidade?
R.G: R.G: Por vezes, oprime-me um pouco. Normalmente quando viajo sozinho, 90% das vezes, raramente saio. Levo um livro, música, computador e fico no hotel, desfrutando da intimidade que normalmente não tenho. Até agora, a minha vida tem sido três dias num lugar, e três dias noutro, 8 a 10 horas de aulas. Quando estava entre cidades, ficava em casa de amigos, e por isso não senti essa solidão, esse momento
de
não
fazer
nada,
o
silêncio
absoluto,
o
meu
momento.
Aproveito muito as viagens. No avião aproveito para dormir e se, após o concerto ou as aulas, não estiver com pessoas com um trato mais íntimo (se forem somente conhecidos do trabalho) volto para o hotel e lá estou tranquilo, desfrutando, mesmo que esteja sozinho. A.L: O ano de 2009 foi um ano importante com a sua nomeação como Professor Catedrático, mas
também com a homenagem a Leo Brouwer para o seu 70º aniversário. Como foi a experiência de trabalhar com Leo Brouwer? R.G: R.G: Tem sido uma grande experiência, muito gratificante e instrutiva. Eu sempre tive um fascínio pela sua música, sobre como se baseia a sua escrita. Há 12 anos atrás tive uma aula com ele e nesta deixoume claro de alguma forma, as bases daquilo que era o seu modo de pensar, e trabalhar com ele foi a confirmação de tudo isso. O mais importante, sobretudo, mais do que o facto de trabalhar a interpretação da sua música, fora os jantares em que falamos sobre o que tinha acontecido, o que ele esperava da música e dos músicos, do ser humano, além da confirmação de tudo o que eu via na sua música. Li uma vez que Christian Zimmermann considerava que as suas melhores aulas foram na Polónia com o seu mestre, pensando com ele em seu barco, e simplesmente falando. Acho que aprendi muito mais com o Leo como ser humano, como pessoa e como músico, após os concertos que toquei a sua própria música e isso é muito gratificante, de verdade. A.L: Brouwer disse numa entrevista após a homenagem em sua honra que "a composição é a essência
do que é revelado e que o identifica. Uma extensão de si mesmo". É a guitarra a sua essência? R.G: R.G: Não, absolutamente. A música sim é a essência, a guitarra para mim é um instrumento afortunado e desafortunado. Afortunado porque tive o privilégio de expressar-me com ele e desafortunado, porque eu gostaria de fazer isso de muitas mais formas, mas não se pode ter tudo na vida.
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A.L: Então, Ricardo Gallén poderia ter sido pianista ou percussionista?
R.G: R.G: Ser pianista era o meu sonho. Quando comecei os estudos no conservatório com 10 anos (comecei a tocar a partir dos quatro) iniciei-me na guitarra e no piano, e com toda a humildade do mundo devo dizer que eu era melhor no piano. Sempre tive a obsessão de compreender a música ao piano e de imediato fazer isso mesmo na guitarra para melhorar a minha interpretação, e não fechar-me na guitarra como um instrumento em si, mas como um veículo, um meio. A.L: É da sua opinião que prática de um segundo instrumento traz algo de útil para a guitarra?
R.G: R.G: Gostaria de colocar a prática de um segundo instrumento obrigatório em todos os conservatórios. Quantas mais áreas são dominadas, em certo sentido, haverá mais facilidades. Por exemplo, se nos limitarmos a fazer sempre a mesma digitação na guitarra, quando surgirem problemas sem alternativas, bloqueamos. Tocar outro instrumento além de dar maior desenvolvimento da compreensão física do som, dá apoio a nível fisiológico. Com um instrumento de sopro trabalha-se a respiração, com um instrumento de arco move-se todo o braço, enquanto na guitarra apenas se move os dedos, o que impede uma interacção entre corpo e o instrumento. Ajuda-nos também a abordar certos aspectos de forma diferente, mas nós temos que usar a palavra-chave: aplicação. No instrumento ou em qualquer faceta da vida temos que encontrar uma aplicação. A.L: Como aborda uma peça nova?
R.G: R.G: A primeira coisa que faço é usar o piano ou se tiver a opção, ouvir outras músicas do compositor. Se o compositor não é guitarrista procuro música, se possível, sinfónica ou para piano; se for guitarrista, por exemplo Giuliani, procuro a sua música orquestral para ver como ele trabalha o material na orquestra (articulação, nuances, etc...). Uma vez que tenho o ouvido treinado, trabalho com o piano para não me submeter a tirania da guitarra. A digitação na guitarra pode condicionar automaticamente o resultado musical sem que seja um processo racional. É preciso que seja um processo racional, justificado e em função disso, desenvolver a técnica. A.L: Estuda de uma maneira diferente uma obra a ser gravada do que uma peça que tocará em recital?
R.G: R.G: Não, estudo da mesma maneira. O certo é que não é necessário esforçar-se tanto a nível dinâmico ao gravar. A maioria dos álbuns de guitarra tendem a ser muito planos, porque a dinâmica está normalmente a um nível média-alta, como se tocássemos numa sala. Para tocar numa sala é necessário forçar a dinâmica porque o pianíssimo não se ouve, mas quando é uma gravação com microfones, é o contrário, temos que explorar muito mais o pianíssimo em vez do forte.
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A.L: Quais são para si os pontos fracos do mundo guitarrístico na Europa?
R.G: R.G: Solidariedade para começar. Temos que tocar muito mais com outros músicos, porque não só levanta questões na interpretação, como também em termos de personalidade. Entre os guitarristas que se consideram como “muito bons” e pianistas com a mesma atitude, há uma grande diferença, não só
em
termos
de
dedos,
mas
também
de
interpretação
e
ao
nível
cultural.
Falham muitas coisas: desenvolver o ouvido, ser capaz de decifrar a harmonia... Outros instrumentistas como violinistas e flautistas (aos quais também ensinei) também têm problemas, por ser um instrumento melódico, mas estes tocam em orquestra e o ouvido paralelo é muito mais rico, e conhecem o grande repertório, Shostakovich, Prokoviev... Mas nós, se sairmos do repertório da guitarra, ficamos perdidos. Temos que ouvir muita música, ler livros, trabalhar com manuscritos, tocar outros instrumentos… Não é só passar oito horas fechado praticando com a guitarra. Esse é o grande problema que eu vejo nos instrumentistas em geral e particularmente entre os guitarristas que passam muitas horas sozinhos. Depois de 8 horas, não gostam de ouvir música clássica, mas é muito importante porque é a formação, é saber como estudar melhor, tocar melhor e nós temos que fazê-lo; não fazê-lo é uma perda de uma parte muito importante da história da música. A.L: É essa busca na música a origem da sua técnica tão pessoal?
R.G: R.G: Sim, além do que eu disse anteriormente sobre o piano. Ao trabalhar com o piano eu estou experimentando harmonias que me lembram outras obras. Ao piano com o pedal podemos tocar em todas as teclas e podemos ouvi-las todas, mas na guitarra só podemos tocar seis. É uma grande desvantagem e temos que jogar com o factor psicológico para criar esse ambiente, tentando manter o maior número possível de notas numa certa harmonia. Para determina-lo, uso o meu conhecimento de harmonia e do repertório de outros compositores (por exemplo, Ravel, Debussy). Esses conhecimentos foram adquiridos através do estudo de dezenas de obras de outros compositores, tentando entender o porque dessa forma de escrita que resulta num futuro de certa forma, diferente. Após ter o ideal sonoro na minha cabeça é quando eu procuro as digitações na guitarra e resultando em estranhas e fantasmagóricas digitações, que em 99% dos casos funciona.
A.L: Quais os projectos para o futuro?
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R.G: R.G: Em Março gravarei Bach. As quatro suites para alaúde; prelúdio, fuga e allegro BWV 998, fuga BWV1000 e o prelúdio BWV 999. A fuga BWV 1000 é uma versão das versões para órgão, violino e alaúde, incluindo ornamentos da versão do órgão. A.L: Para quando um concerto em Portugal?
R.G: R.G: Eu tinha uma proposta para um concerto, mas não sei como terminou, porque é o trabalho do meu representante.
A.L: Você permanece fiel à sua guitarra do luthier Paco Santiago Marin. Nunca encontrou outra guitarra
que o encantasse?
R.G: R.G: Há muitas guitarras que me cativam. Eu penso que não existe um instrumento perfeito. Se só pudesse ter uma guitarra seria a Paco Santiago Marin, porque é um instrumento muito versátil que me dá o que eu quero num instrumento que é uma resposta muito rápida, potência e muita claridade no contraponto. Eu gosto muito de pinho, porque é muito claro e tem muita projecção. Mas não para todo o repertório. Eu E u gosto de t ocar mais música do século XX e música de câmara contemporânea. cont emporânea.
A.L: As suas interpretações são consideradas originais pela sua personalidade como artista, pela sua
interpretação histórica e pela visão tão pessoal sobre a música. Suponho que muitas vezes não seja muito compreendido por parte dos sectores mais tradicionais da guitarra. O que é melhor, permanecer fiel a si mesmo e sofrer a ignorância e o isolamento vendendo-se ao público ou tentar encontrar um caminho intermédio?
R.G: R.G: Eu sou fiel a mim mesmo. Serve de exemplo o que mencionei anteriormente, tendo eliminado a pressão do exame em Weimar, mudando o repertório, em princípio, por um "mais adequado" para este tipo de exame, por outro mais arriscado mas muito mais confortável para mim. Durante o tempo que fiz vários concursos experimentei a pressão de tentar agradar cada um dos jurados, não sendo sustentável ter várias maneiras de tocar em função de quem faz parte do mesmo, por isso, tomei a decisão de ser eu mesmo. Não me posso vender e fazer essas concessões para sempre.
Com a derradeira pergunta terminamos a entrevista a Ricardo Gallén. Continuámos à conversa sem ter vontade de enfrentar o inverno alemão. Um verdadeiro prazer ter partilhado esta conversa com Ricardo Gallén e muito mais partilhá-la na Revista Guitarra Clássica. www.ricardogallen.com
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Entrevista com José Piñ eiro Nagy Por Filipa Pinto Ribeiro
Filipa Pinto-Ribeiro: Voltando alguns anos atrás,
quais os motivos que o leva ram a escolher a guitarra? Foi uma decisão pe soal e solitária ou fruto de uma conjuntura social e familiar? Piñeiro Nagy: A vida é
ma sucessão de
circunstâncias e de opções po r elas geradas. “El hombre y sus circunstancias ”, dizia Ortega y Gasset. Estar atento a esta r alidade, por vezes ténue e fugaz, pode ser det erminante para o passo a seguir. Recebi uma educação de raiz cultural centro europeia. De família aristocrática, minha mãe proporcionou-me, d sde que me conheço, vivências artísticas genuínas d tradição húngarocroata através do piano, da mú sica sinfónica ou do ballet e a ópera. Não sei precis ar qual terá sido a primeira melodia que me trans itiu; mas, certamente, Liebesträume, Liebesträume, de Franz Liszt, acompanhou-me desde muito cedo, às noites, a tes de adormecer. O piano, esse instrumento mag nífico, seria o meu meio de relação física com a mú sica, porém sem grande continuidade. O repertório s infónico ou o canto pareciam ter maior influência, sentindo com eles uma mais profunda afinidade que, ao mesmo tempo, se cruzava com a minha outra o rigem: a espanhola. O sentido do belo, a prática do requinte, a procura do sublime e o poder da emoçã , foram conceitos cada vez mais claros na relação c m a música, com a arte e com a vida. Mas, uma tarde, depois das a las do liceu, ouvi um colega sul-americano cantar uma linda canção fazendo-se acompanhar com u a guitarra. Fiquei fascinado e pedi-lhe para me ensi ar a tocar. A partir de aí, nas festas que organizáv amos com uns quantos colegas, ele e eu passámos a ser o momento esperado pelas nossas apaixona as, à espera de ouvir as canções românticas da altu a… Até que um dia ouvi uma gravação de Andrés Se góvia, e tudo mudou…! F.P.R.: Conviveu durante muitos anos com um dos maiores pedagogos da guitarra, E mílio Pujol, do qual
é discípulo. Como foi essa experi ncia? Que recordações guarda dessa época? P.N.: Não convivi muitos anos c m o Maestro Emílio Pujol. Na realidade, fui dos seus últimos discípulos. Mas foi uma convivência muito serena e franca, onde o respeito mútuo fortaleceu
nossa relação. De
grande humanidade e doçura, fi nura de espírito e humor oportuno, atributos de um ser de inteligência superior, o Maestro sempre tinh a uma palavra de apreço e estímulo na difícil tarefa do ensino. Guardo, por isso, memórias reconfortan es que muito me têm auxiliado na vida profissional . Procurar soluções no nosso íntimo profundo, será, porventura, uma das confirmações mais marcantes.
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A sua natureza romântica não o impedia de estar totalmente aberto à inovação. A titude com o novo repertório era sempre de gran e abertura e curiosidade. O cuidado e interesse c m que ouviu pela primeira vez o Prelúdio e Baileto , de Fernando Lopes-Graça, nos cursos de C ervera de 1970, já com cerca de 80 anos de idade, foi uma liç ão de jovialidade e humildade. Fiquei gratamente su rpreendido quando me escolheu para fechar o prog rama do concerto final de participantes (como curio idade, lembro que por lá apareceu um casal
orte-americano muito novo, magrinho e bastante “hippie”. Ele
imediatamente se destacou pel sua forte e refinada personalidade artística, nasce do entre nos uma empatia instantânea que perdu ra até hoje. Ouvi-o tocar admiravelmente as Quatr Pièces Breves, Breves, de Frank Martin, que ninguém co hecia… Chamava-se Hopkinson Smith. A dada alt ra do curso - que durava cerca de um mês - Alber o Ponce passou uns dias e, depois dum jantar, toco para nós o Tiento, Tiento, de Maurice Ohana, peça que t ambém ninguém conhecia e que tinha acabado d
gravar em disco!
Foram momentos memoráveis n a companhia do Maestro que se prologaram pela noi te fora…). O seu apoio espiritual firme e entusiasta para criar o curso guitarra na Academi de Amadores de Música foram cruciais para o futuro do instrumento no país. Muitos outros as ectos podiam ser abordados, mas receio não term os espaço suficiente… F.P.R.: Aparentemente, e tendo em conta que
Portugal tinha pouca ou nenhuma tradição guitarrística, era um país complicado para um guitarrista em início de carr ira e com grandes ambições para o seu futuro. Deste modo, o que o trouxe para Portugal, sa endo de antemão que iria encontrar dificuldades? P.N.: Voltamos às circunstâncias. Na realidade, não foi a guitarra que me tr uxe para Portugal, mas, de um certo modo, o in erso, porque eu já Com Emilio Pujol, na Academia de Amadores de Música (Lisboa, 1969)
cá vivia. A guitarra é um instrumento co m grande tradição
em Portugal, profundamente i plantada na música popular. Creio não haver dú ida. Porém, o seu estudo, numa perspectiva aca émica, nunca chegou a ter consistência. A pres ença esporádica e intermitente (mês e meio por ano) de um mestre como Emílio Pujol desde os nos 30 do século passado, não contribuiu, infeliz mente, para resolver o problema na sua origem. É uma questão que nunca compreendi. Por outro l ado, na década de 60 o ensino do instrumento no s conservatórios e escolas superiores ou universid des do meio internacional estava a dar os primeiro passos no sentido de o integrar de forma estável os planos curriculares. Por exemplo, a Itália, um do s países com maior tradição e história do instrum ento, só na década de 80 consegue que o curs
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de guitarra seja
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oficialmente reconhecido e integrado nas instituições de ensino, depois de um longo debate que acabou por ter de ir a aprovação em comissão parlamentar. É incrível! Preparar o caminho para que em Portugal não se perdesse tempo e se criasse o curso com solidez, não podia deixar de ser um desafio e um estímulo. Por natureza, gosto do desafio; mas também é verdade que não podia ter melhor mentor do que o Maestro. É um privilégio para Portugal que o curso tenha começado desta forma e nestas circunstâncias. Creio que ainda há por aí muito boa gente de Deus que, meio distraída, ainda não se apercebeu disto. F.P.R.: Desempenhou um papel muito importante no desenvolvimento e na implementação do ensino da
guitarra em Portugal, uma vez que foi o Professor que iniciou o curso de guitarra na Academia de Amadores de Música, em 1967. Foi difícil impor a guitarra, que era até então praticamente desconhecida, perante os alunos, a comunidade musical e o público em geral? P.N.: Vejamos: a ausência do ensino académico da guitarra não impediu a existência de amantes do instrumento, praticantes e luthiers. luthiers. Eu próprio, como muitos outros por esse mundo, iniciei o estudo de forma praticamente autodidacta, o que não quer dizer que se ignorasse os mestres do passado. Sor, Aguado. Tárrega, Pujol, entre outros, foram (bem ou mal tratados…) a fonte de trabalho “solitário”. Aliás, se assim não tivesse sido, nunca teria conhecido o Maestro. Portanto, criar o curso numa instituição histórica e prestigiada, como era o caso da Academia de Amadores de Música, teria forçosamente de dar bons resultados desde que acompanhado de um programa de concertos que permitisse o contacto com um repertório em grande parte desconhecido. A vertente histórica, focando a relação com instrumentos ancestrais afins como a vihuela e o alaúde, assim como a sua peculiar participação na música de câmara, foram aspectos abordados de início, oferecendo uma ampla perspectiva da guitarra na vida musical, fundamental, portanto, para a sua integração natural quer no meio académico, quer na actividade pública do concerto. Claro que não foi fácil compreender o que o instrumento realmente é. Olhado por um certo meio musical como algo exótico, e popularucho por grande parte do público pouco informado (diria, inculto), a única referência na altura, aliás recorrente, era a Escola de Guitarra Duarte Costa. E recorrente, porque foi a direcção da Academia, desconhecedora do processo histórico da guitarra, que o convidou para leccionar os primeiros interessados no estudo do instrumento. Decorria o ano 1964. Porém, apesar de conhecer os seus dotes artísticos, Duarte Costa era consciente das suas limitações para se integrar num meio académico. Quando me transmitiu as suas inquietações sobre este assunto e me propôs um trabalho conjunto, iniciou-se um período de transição que teria como consequência o seu afastamento (por iniciativa própria), culminando na criação do Curso Geral de Guitarra no ano lectivo 1967-1968. Portanto, a principal tarefa foi (e continua a ser…) formar uma nova mentalidade.
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F.P.R.: Desenvolveu uma intensa carreira enquanto concertista, com concertos em vários países.
Contudo, isso nunca o levou a colocar de parte o ensino. Qual o motivo dessa opção? O que o preenche mais: o palco e o contacto com o público ou a sala de aula e o contacto directo com os alunos? P.N.: Opção… A opção é sempre um dilema. “Se vou por aqui, posso ir por ali?”; “se fizer isto, deixo de fazer aquilo?”; “posso estar aqui e ali?”. Como?, quando? e … porquê? A vida tem só um sentido? E que “sentido” dar à vida? A interrogação agiliza o intelecto. A resposta pode ser uma, duas ou várias… Mas também há outras questões: como contribuir para o bem comum? Como partilhar o belo? A arte é um dos melhores meios para o fazer. Claro que se pode “consumir” arte sem conhecimento. Pablo Casals tocava suites de Bach para os operários nas fábricas e Albert Schweitzer fazia algo semelhante na África Equatorial (o resultado também pode ser paupérrimo). Mas conhecimento é o primeiro passo para se apreciar a essência da vida. Juntem-se, então, as duas coisas, arte e conhecimento, e temos uma combinação fantástica! É por isso que levo a vida a aprender com o público, com os alunos e a constatar que existe um denominador comum: o poder de comunicar com o indivíduo, seja ele europeu, asiático ou americano. FPR: É professor há 43 anos, 20 dos quais no ensino superior. O que pensa do actual estado do ensino da
guitarra em Portugal? PN: Tanto tempo? Ainda não me tinha apercebido. Há um tempo intemporal que parece não passar por nós. Ou seremos nós que passamos pelo tempo sem nos dar conta? Responder a esta pergunta é como falar de ontem. Que consequências ocorrem a partir do que se começou “ontem”? O que é que andamos a fazer? E para quem? Procuramos o belo? Sabemos, acaso, o que é? Será um sonho? E, se o é, o que é o sonho? Reconhecemos o belo num Fra Angélico? (a propósito, quem era Fra Angélico?) E Renoir? Ou Oscar Wilde? … Hermann Hesse…? “Todo o guitarrista devia ler Virgílio, Platão, Racine”, aconselhava sabiamente Emílio Pujol. Ah, tanto para aprender e admirar! Seremos capazes de ver numa linha melódica algo mais de que uma sucessão de notas? E até onde a sabemos tocar sem a partir? “Estudem lentamente e meditem sobre cada nota. A velocidade é a inimiga da emoção”, dizia o Maestro. São tantas as questões que podemos levantar em torno da simplicidade do belo que facilmente nos podemos interrogar inter rogar sobre os caminhos do ensino. F.P.R.: E qual a sua opinião acerca dos actuais guitarristas portugueses?
P.N.: Quando se iniciou o curso na Academia de Amadores de Música, partiu-se para uma aventura de um certo modo arriscada. As carências da altura em diversas áreas e a total ausência de vida guitarrística marcaram esse tempo “heróico”. Que futuro para o instrumento num ambiente culturalmente redutor e conservador? Se assim não fosse, e se não se tivesse desperdiçado a presença do Maestro Emílio Pujol durante mais de 30 anos, teríamos em 1967 uma ou duas gerações de guitarristas portugueses, certamente de muito bom nível. Nada disso existiu. Criar um ambiente, formar
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mentalidades e colocar o instrumento no lugar que lhe cabe na vida musical parecia uma tarefa gigantesca. Porém a forte convicção nos princípios orientadores e a vontade inquebrantável em dignificar o instrumento, fazendo-o respeitável, abriram perspectivas que em pouco tempo se transformaram numa dinâmica imparável. Há pouco recordávamos 1967 como o ano de partida. Num rápido olhar retrospectivo desde os nossos dias, podemos identificar quais foram os momentos que contribuíram para essa dinâmica. O primeiro foi, sem dúvida, a actividade de informação desenvolvida na Academia através de concertos regulares com primeiras audições e conferências (chegámos a ter 24 concertos em 2 anos!). O segundo impulso foi dado em 1971 com a inclusão da guitarra nos Cursos Internacionais de Música da Costa do Sol (hoje do Estoril). O terceiro aconteceria com o 1º Encontro de Guitarra realizado no Porto em 1975. O convite que me foi dirigido pela direcção do Conservatório do Porto nessa altura, teve, entre muitos outros aspectos, a virtude de me proporcionar uma visão concreta do ambiente na região e, em consequência, permitir a criação do curso no Norte do país (foi-me dada a oportunidade de conhecer Fernando Lencart, homem conhecedor do instrumento e de vasta cultura. Guitarrista amador da geração de Duarte Costa e ouvinte assíduo dos cursos de Andrés Segóvia em Santiago de Compostela, exerceu o ensino a nível privado). O quarto foi determinante para o futuro, ou se quisermos, para o presente. Consistiu no apoio da Secretaria de Estado da Cultura à realização sucessiva, até início dos anos 80, de cerca de 40 encontros em praticamente todo o país, de Viana do Castelo a Faro, passando pelos Açores. E o quinto, a consolidação, através da inclusão do curso na Escola Superior de Música de Lisboa em 1990. Tão densa sementeira teria de dar frutos. Comparativamente a outros países com maiores recursos e profunda tradição musical, é grato e reconfortante constatar a evolução deste processo. Numa perspectiva histórica, em relativamente pouco tempo atingiu-se um nível semelhante ou superior a tantos outros deste mundo. É por isso que temos, hoje, um restrito conjunto de guitarristas portugueses que nada devem aos mais conceituados no meio internacional. Em alguns casos, e pontualmente, são ou podem vir a ser músicos mais interessantes. Sim, a guitarra pode gozar de boa saúde em Portugal. F.P.R.: Em 1975 cria o festival de Música do Estoril, um dos mais importantes festivais nacionais. Como
surgiu essa ideia? Foi um processo complicado? P.N.: Pela terceira vez, as circunstâncias são protagonistas em mais um processo. Tudo o que até agora tem sido dito vai ao encontro da pergunta. A inclusão da guitarra nos cursos internacionais do Estoril em 1971 deve-se ao interesse do director de então, o Mtº. Manuel Ivo Cruz, e do conhecimento que ele tinha acerca do processo da Academia. Naturalmente, o seu gosto pelo instrumento foi decisivo para que tomasse a iniciativa de me falar na ideia. Com a sua amabilidade nata, teve a simpatia de me convidar para Assistente da Direcção dos Cursos, em especial no tocante à guitarra e ao respectivo professor, o guitarrista uruguaio Raul Sanchez (julguei desnecessária essa função, talvez originada pelo
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desconhecimento ou pouco à vontade dos músicos da direcção no relacionamento com o instrumento…). Aceitei com entusiasmo e, a partir de então, tive a oportunidade de contactar com os cursos “pela parte de dentro”. Devo dizer que, desde há alguns anos, era assíduo ouvinte das aulas de grandíssimos mestres como Sandor Vègh, Maurice Eisenberg, Karl Engel, Yvonne Lèfebure, Helena de Sá e Costa e tantos outros que de melhor havia no mundo. A organização dos cursos decorria sob a responsabilidade da então Junta de Turismo da Costa do Sol presidida por Miguel de Serra e Moura, uma personalidade ímpar na política do regime que seria um bom exemplo para o que hoje se vê por aí… Desportista inveterado (sobretudo no ténis), amante das artes, culto, dinâmico e possuidor de um charme muito especial, despertou em mim a confiança suficiente para com ele conviver e confirmar uma sintonia que me levaria a propor uma reestruturação dos cursos na qual se contemplasse a criação de um festival internacional, entre outras actividades, com a participação dos mestres e dos jovens valores emergentes. Apesar da sua concordância e entusiasmo, a ocorrência do 25 de Abril em 1974 e a consequente destituição do cargo, não permitiu que ele presidisse à nova estrutura. Seria a primeira Comissão Administrativa (com um coronel reformado à frente…que, por certo, adorava bandas de música!) nomeada pelas autoridades revolucionárias que, em Outubro de 1974, aprovou o projecto. Não foi, portanto, um processo complicado. Foi, até, bastante pitoresco. Na realidade foi, apenas, o resultado da prática do senso comum para a criação de algo necessário (convém lembrar que, na altura, não havia um só festival internacional em Portugal). F.P.R.: É curioso verificar que o festival de Música do Estoril não é um festival de guitarra, mas sim de
música, embora conte com diversos concertos e master-classes de guitarra, nomeadamente as de Alberto Ponce. Isso leva-me a pensar que, apesar de guitarrista, não se centra exclusivamente no seu instrumento e sempre procurou o contacto com outros instrumentistas e realidades para além da guitarra. Considera essa abertura importante na formação de um guitarrista? P.N.: Podemos começar pelo fim da pergunta…ou pelo princípio da entrevista… Vejamos: o guitarrista deve ser, antes de mais, um músico; e um músico não pode ser, apenas, um executante prendado que se isola de tudo. Portanto, podemos voltar ao início e pensar quão determinante é, na vida profissional de um artista, a convivência com outras formas, outras artes, a história, a literatura, a filosofia, enfim, o conhecimento. É este que nos confere a faculdade de saber interpretar os sinais, os códigos, as linguagens. Em última análise, o pensamento. Como tantas vezes dizia Agustin Barrios “não se pode ser guitarrista se não se é baptizado na fonte da cultura”. Por outro lado, a génese do festival do Estoril é muito peculiar. Nasce dos cursos. É filho dos cursos. Não podia, por isso, alhear-se do seu ancestral pedagógico. E, como filho aplicado e bom, ultrapassou o pai. Fez-se grande e versátil. Deu-se a conhecer ao mundo e hoje, desde 1983, é o único festival português membro da European Festivals Association, Association, instituição do maior prestígio mundial que abrange mais de 100 festivais. O Festival é uma porta aberta para todos os músicos e para a vida artística internacional. O seu contributo à criação é impar. Em 35 anos de vida apresentou mais de 350 obras em primeira
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audição em Portugal, incluindo árias dezenas de estreias absolutas e encomendas. Neste ambiente, a guitarra também tem tido a sua quota-parte, quer através de concertos, nos quais pa rticiparam diversos guitarristas portugueses, quer através dos cursos internacionais. F.P.R.: Quais os principai conselhos que dá
aos jovens guitarristas? P.N.: A experiência é algo que se ganha, não se
aprende.
Mas
experiência
sem
conhecimento não basta. Do mesmo modo que educação e instruçã não devem estar Com Alberto Ponce Ponce e Hopkiinson-Smith (Festival do Estoril, 1 983)
dissociadas na formação do indivíduo, é fundamental que conhecime to e experiência
caminhem lado a lado. É atravé s do conhecimento que obtemos uma sólida experi ência. No entanto, conhecimento implica abrangên cia e mente circular, ou seja, que se possa expandir a partir do centro. Que não cristalize em arestas.
ue a expansão leve a outras matérias, a outras áre as, a outras artes…
Sem nunca deixar de olhar par o nosso íntimo mais profundo, fonte última da e ergia humana. De pouco vale procurar soluções f ra de nós. De pouco vale tentarmos ser outros. Es tamos condenados pela nossa condição a viver tod a vida connosco. Não será mais inteligente tentar c ompreender o que somos? Ou seja, conhecermos o ser que somos e aceitá-lo de braços abertos co o um mistério da natureza? Não há maior prazer que a des oberta. Ainda que constatemos posteriormente qu e outros chegaram primeiro… E a descoberta ocorr e quando há observação e reflexão. É com estes val ores que podemos construir a nossa personalidad e e, solidamente, adquirir a confiança (que tant as vezes julgamos improvável) não se confundind com a dúvida tranquila de quem questiona as coi sas para melhor as compreender. F.P.R.: Não podia terminar esta entrevista sem falar do trabalho que desenvolveu co m Fernando Lopes-
Graça, que lhe dedicou grande arte da sua obra para guitarra. Como foi essa expe riência de contacto directo com Lopes-Graça? P.N.: A minha relação com o c ompositor pode ser vista sob duas perspectivas: a profissional e a da amizade, de carácter muito pes soal. Perspectivas que frequentemente se cruzam e confundem. Creio, no entanto, que entre nós não erá sido esse o caso, nem ocorrido, sequer, a prep nderância de uma sobre a outra. A admiração pela sua forte personalidade e a convergência com i deais de exigência artística e intelectual associado ao belo, são, na realidade, os parâmetros que mellhor podem definir uma relação assente em sólidas bases de respeito mútuo.
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Pessoa de grande simplicidade, trato algo reservado, cuidado requinte e bom gosto nas suas escolhas, fruto de uma vasta cultura, não ispensava o afecto dos amigos. Nas frequentes visit s que nos fazia nas frias noites de Inverno, a conv rsa à lareira alongava-se pela noite dentro. Às vez es, quando o sono começava a cair e me preparava para o acompanhar a casa, próximo da nossa, dizia-n os: “Olhem lá! Não se preocupem comigo. Eu fico a dormir aqui mesmo no chão em cima do tapete ao é da lareira! Então não é tão bom?!!” Guarda a memória muitos momentos com este delicioso sabor, alguns deles vividos em viagens fora do país. Porém, não são menos ric s os que fazem parte de um caminho que percorre mos juntos na vida profissional. Se, por um lado, m é especialmente grato lembrar episódios relaciona os com o trabalho em torno da guitarra, por outro, a possibilidade de ter contribuído, através do Festiv al do Estoril, para a estreia absoluta de diversas obr as suas, onde o Requiem pelas vítimas do fascismo em Portugal ocupa especial destaque, constitui uma recompensa de valor incalculável. Perguntar-se-á em que altura de sperta o interesse de Lopes-Graça pela guitarra. Muit o antes do que nós imaginamos. Escondidamente, desde a sua infância em Tomar, ouvindo o s u pai tocar esse instrumento. No entanto, foram as circunstâncias ocorridas a partir de 1967 que o es timularam a entrar no mundo sonoro do instrume to, na altura em que se iniciou o Curso de Guitar a na Academia de Amadores de Música, instituição que o tinha como símbolo, uma espécie de ícone. U
dia, cruzando-me
com ele no corredor, perguntou -me se seria “tocável” uma peça que tinha escrito e m 1968. Tratava-se de Prelúdio e Baileto… Baileto… Aberto
sugestões, mesmo vindas de um jovem guitarrist a, aceitou a minha
ousada proposta de introduzi r elementos característicos da linguagem guitar rística, tais como harmónicos, inversões, rasguea os e, até, um ¼ de tom no final do Baileto reforçan o a expressividade de um discurso difuso que se a fasta e extingue progressivamente, como que dist rcido pelo espaço. Seduzido pelo resultado, para el e surpreendente, adoptou, pela primeira vez, o ¼ de om. Após a estreia na Academia em Maio de 197 0, o repertório de guitarra conquistava, a partir
esse momento, a
primeira obra portuguesa de v lto. Em menos de um ano, L pes-Graça teve a generosidade de me ded icar uma Partita, Partita, inicialmente em sete and mentos, obra de dimensão e linguagem insu speita. Num estilo de pureza linear, a nova obra constituiu um marco renovador no seu processo criativo,
Com Fernando Lopes-Graça e Dulce Cabrita (1973)
seduzido pelas subtilezas
a guitarra e pela
autenticidade que lhe vem
a antiga tradição,
usando uma linguagem, de
erto modo, nem
sempre revelada anteriormente . Dir-se-ia que, através desse encantamento, mostr ndo uma vertente lírica desconhecida, compreen e-a e ama-a profundamente sem se afastar das uas convicções. A
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história em torno desta peça e das que se seguiram seria matéria para uma outra conversa, tão rica de episódios que, naturalmente, podem suscitar interesse nos amantes da música e em especial nos guitarristas. Na altura em que tomei a iniciativa de elaborar as bases de um programa de reestruturação do Cursos Internacionais de Música da Costa do Sol, contei, entre outras personalidades, com a sua preciosa colaboração. Nas diversas acções propostas no programa, a criação de um festival internacional de música e a divulgação da música do nosso tempo, com especial ênfase nos compositores portugueses, era, desde logo, objectivo a alcançar de imediato. Das nossas reuniões, recordo o seu habitual e perspicaz sentido crítico, nunca desprovido de humor, quando debatíamos o título do festival em articulação com o dos cursos. Sendo esta uma organização da então Junta de Turismo da Costa do Sol, o festival deveria ter agregado a denominação da Costa do Sol, em lugar de do Estoril, apenas, como era nosso desejo (e é a actual denominação). Quando o alertei para esse condicionalismo, espontaneamente comentou bem no seu jeito: “Pois! Também podia ser da Costa do Castelo...ou da Aldeia da Roupa Branca!” (títulos de dois filmes típicos da comédia portuguesa…). O estreito relacionamento com o festival atingiria o ponto culminante em 1981, quando da estreia absoluta do seu Requiem num concerto memorável realizado na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa. Outras obras suas foram pela primeira vez executadas no âmbito do festival. Em 1975, o Concerto da Camera col violoncello obligato; obligato; em 1976, Tre Capricetti ; 1977, Paris 1937; 1978, Deux Airs; Airs; 1980, Sete predicação d’Os Lusíadas. Lusíadas. Como guitarrista, foi um privilégio trabalhar a seu lado e partilhar cumplicidades artísticas. Como responsável pelo Festival do Estoril, é uma honra ter contribuído para a difusão da sua obra e ter usufruído da sua colaboração. Mas é no aspecto humano da nossa relação, simples e despreocupada, que guardo os mais íntimos afectos. F.P.R.: Mais recentemente iniciou um projecto de transcrições para três guitarras e cordas das obras de
Albéniz e Granados. Sentiu necessidade de acrescentar algo mais ao repertório da guitarra ou estas transcrições são apenas a concretização de uma vontade que só agora foi possível de realizar? P.N.: Foi puro acaso. Desde 1994 tenho dirigido na Suíça vários master-classes de música de câmara com guitarra nos “Rencontres Musicales Internationales” da International Menuhin Music Academy , nos quais têm participado diversos guitarristas portugueses. Estes encontros de música de câmara foram sempre dirigidos pelo violinista Alberto Lysy a quem me ligou uma amizade e afinidade de três décadas. Além de discípulo dilecto de Yehudi Menuhin, foi um artista de excepção que nos deixou, inesperadamente, em Dezembro de 2009. Possuidor de um refinado bom gosto e auto exigência do mais alto nível, construiu ao longo da sua vida uma carreira sólida com um sentido estético ímpar consumado na criação da Camerata Lysy, agrupamento de cordas da maior reputação mundial.
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De imaginação fértil e espírito inquieto, produto da sua origem argentina, mas também ucraniana, criava contínuos projectos sempre de grande interesse e equilíbrio. A paixão pela descoberta era uma constante. Depois do Rencontre de 2007, desafiou-me para mais um projecto, desta vez incidindo na música ibero-americana para guitarra e cordas, com a intenção de o apresentar num grande concerto da temporada de 2008 do Teatro Victoria Hall, de Genebra. Dissuadi-o, de certa forma, por falta de repertório adequado. Mas imaginei que podia ser interessante experimentar algo diferente com obras conhecidas de compositores espanhóis como Albéniz e Granados. Recusei, no entanto, a tentação do habitual arranjo para guitarra e procurei a transcrição tão fiel quanto possível do original para piano. Era como um retorno ao que tinha feito no início dos anos 70 com as transcrições das Canciones Populares Españolas, Españolas , de Federico Garcia Lorca, ou de alguns Romances Tradicionais Portugueses, harmonizados por Fernando Lopes-Graça, entre outras. A possibilidade de agora usar três guitarras permitiu-me manter as tonalidades originais ou encontrar soluções próximas e, ao mesmo tempo, tratar as vozes de modo a não alterar o carácter nem a transparência das obras. Albéniz e Granados são personalidades contrastantes da cultura catalã. Em Albéniz, a sua visão de Espanha, embora parta de fontes tradicionais e seja precursor do estilo nacionalista, afirma-se através de um universalismo de carácter hispânico na linha de Chopin e Liszt. A longa convivência com a música francesa, fá-lo adoptar a linguagem harmónica impressionista, ao mesmo tempo que exprime de forma inimitável a riqueza imaginativa, o calor e a luz meridional. Debussy, deslumbrado com este manancial, chegou a exclamar “que, com tanta luz, Albéniz chegava, num gesto de generosidade, a atirar a música pela janela…” Com Granados, encontramos a finura e a transparência mediterrânica de um romântico que morre prematuramente. Não sendo europeizado como Albéniz, nem procurado a via nacionalista, é uma personalidade de uma subtil elegância que o define como um poeta do piano de afinidades directas com Chopin, Schumann e Grieg. Ao entrar neste campo, o resultado teria necessariamente necessariamente de ir ao encontro dos que, conhecendo bem os originais, os ouçam com outras cores. Quanto ao mundo da guitarra, é natural que alguns fiquem surpreendidos por descobrir certas “novidades”… A partir das transcrições para três guitarras, pensei, então, numa segunda versão com cordas para tocálas com a Camerata Lysy. Curiosamente, a única transcrição que, até agora, não é original para piano, é o “Intermezzo” para orquestra, da ópera “Goyescas”, de Granados. A transcrição para três guitarras permite, entre outros recursos, usar a percussão e o efeito das castañuelas escritos no original Concluindo, a resposta à pergunta é não. Não senti necessidade de acrescentar nada, nem de concretizar vontade nenhuma do passado. Uma vez mais, as circunstâncias foram o ponto de partida. No entanto, ao fazê-lo, procurei que se compreenda melhor Albéniz e Granados. Compreender a sua música. Conhecer a diversidade cultural espanhola e a sua geografia. Compreender que “Astúrias” não tem nada a ver com o flamenco. Se tivesse, chamava-se “Andalucía”…
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Quero dizer, ainda, que o cont ibuto do Pedro [Luís] e do Miguel [Vieira da Silva] , com a sua ajuda, sentido crítico e arte de bem-fa zer, foram fundamentais para o resultado final, assi
como a de Tiago
Derriça na orquestração das peç as de Albéniz. Finalmente, deixem-me felicitá -los por terem a iniciativa de criar esta revista e agradecer-vos a amabilidade de fazer uma entre vista com perguntas tão pertinentes e tão bem pen sadas. É a primeira vez que me acontece isto! Parab éns e felicidades!
Discípulo do eminente edagogo Emilio Pujol, é responsável pela introdução em Portugal do Curso de Guitarra, criado em 1967 na Academia de Amadores de Música. Tem prestado especial atenção ao repertório guitarrístico do século XX, apresentando numerosa s estreias no País com especial destaque para a obra de Fernando Lopes-Graça , parte da qual lhe é dedicada, executando-a em primeira audição quer na Europa, quer no Extremo Oriente. Tem participado em prestigiados festivais internacionais de numerosos paíse europeus, assim como no Extremo Oriente e stados Unidos. Participa em júris de concurso internacionais e tem dirigido Master-Classe nos Estados Unidos, Suíça (International Menuhin Music Academy), Hungria, Bulgária Beijing, Macau e Seoul. O Governo Brasileiro conce eu-lhe a Medalha Medalha Heitor Heitor Villa-Lobos Villa-Lobos or ocasi ocasião do centenário do nascimento do compositor . Em 1975 cria o Festival do Estoril e em 2001 o projecto Mare ostrum. É membro da Eur opean Festivals Association desde 1983, onde exerceu funções executivas entre 1997 e 2005. Por ocasião do 30º aniversário do Festival do storil, recebeu do Presidente Jorge Sampaio a omenda da Ordem do Infante D. Henrique em r conhecimento ao relevante trabalho desenvolvido à frente dessa instituição e em homenagem aos seus notáveis méritos como músico e profes sor. Lecciona na Escola Superior e Música de Lisboa desde 1990. www.pineironagy.com
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Entrevista com Paula S obral Por Pedro Rodrigues
Revista
Guitarra:
Internacional
de
O Co curso e Festival guitar ra
clássica
de
Sernancelhe é um dos eve ntos que há mais tempo existe em Portugal de dicados à guitarra, tendo
atraído
guitarristas
dos
cinco
continentes. Conte-nos como surgiu a ideia para a realização de tal evento. Paula Sobral: Este evento surgiu em 1999 quando eu estava no 5º ano da licenciatura em guitarra na Universidade de veiro. Na altura não existia
enhum concurso
internacional em Portugal
edicado ao nosso
instrumento, por isso, em "co nversa de café", o meu antigo professor de cons ervatório Christopher Lyall lançou-me a ideia. E
achei-a bastante
megalómana para ser levada a c abo por nós os dois, no entanto aliciava-me bastante e logo tratamos de nos por ao trabalho. O José Carlos (meu marido) junt u-se a nós e, agora que já éramos uma equipa maio , começamos a por em prática esse sonho. O munic ípio de Sernancelhe (minha terra natal) pareceu-nos o local ideal, pelas suas paisagens calmas de granit e castanheiros e, como tinha um presidente de câ ara aberto às artes e às novas ideias, conseguimos d esde logo o seu apoio. R.G.: Sernancelhe cedo afirmou o seu grande nível artístico graças a participação d guitarristas como
Marcin Dylla, Gaelle Chiche, D jan Ivanovic, Thibault Cauvin, Gabriel Bianco entr muitos outros. A calendarização do festival é um factor que muito contribui para esta procura por parte parte dos músicos. Como é (ou foi inicialmente) pen ado o agendamento do festival? P.S.: Penso que o principal facto r para a procura deste concurso são os guitarristas q e por cá passaram, eles são o nosso meio mais efic z de publicidade. Causa-nos grande satisfação ver e ste evento ligado a nomes tão sonantes. Quando pl aneámos este evento tivemos como ambição entra na “alta rota” dos concurso e, como tal, foi muit o importante uma pesquisa prévia das datas já in stituídas, pois não tínhamos interesse em colidir co m outros concursos. Depois de escolhido o mês de etembro, achamos por bem dar-lhe continuidade p ra enraizar a data no calendário da guitarra. R.G.: Os Festivais de Guitarra, t irando algumas honrosas excepções, estão normal ente vaticinados a
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localidades afastadas das capitais. Será simbólico da posição da guitarra no mundo musical ou encontra outras razões? P.S.: Não creio que haja aqui algum tipo de simbolismo. Não devemos sentir nenhum complexo de inferioridade. Devemos perceber que a guitarra, apesar de ser um instrumento antiquíssimo, começou a impor-se como um instrumento clássico muito tardiamente se o compararmos com outros instrumentos de tradição clássica. Ainda hoje há alguma confusão relativamente ao seu reportório. A guitarra, como um instrumento mais jovem na tradição clássica, encontra mais facilmente as portas abertas em localidades com menos tradição em eventos culturais. R.G.: A participação de guitarristas portugueses é relativamente escassa, quando não o deveria ser. Que
justificação encontra para que tal aconteça? P.S.: Infelizmente os guitarristas portugueses participam pouco. O ensino da guitarra nos conservatórios portugueses e universidades é muito recente e o nível de ensino em alguns países estrangeiros é muito alto. Por outro lado, enquanto Portugal tem, por exemplo, 5 bons guitarristas, outro país europeu terá 50 e isso faz-se notar na pouca participação dos portugueses em concursos. Mas vivemos numa aldeia global e, quanto a mim, há uma tendência para um maior equilíbrio entre a qualidade de ensino. R.G.: Seria viável a criação de um prémio que recompensasse o melhor guitarrista português em prova à
semelhança do que acontece em alguns eventos de outros países para atrair concorrentes da nacionalidade do concurso? P.S.: É uma boa ideia para este concurso. Talvez, em breve, possamos fazer a inclusão desse prémio, sem que isso signifique um prémio menor. R.G.: Sernancelhe irá agora para a sua 12ª edição. Que momentos particularmente marcantes retém
deste percurso? P.S.: O ano de arranque marcou-me pelo receio do fracasso. Foi um arranque extremamente tremido. As inscrições não apareciam e fomos obrigados a estabelecer um número mínimo de participantes. Começamos com apenas 4 bravos concorrentes que tinham a particularidade de serem todos portugueses. Pudemos respirar de alívio quando o presidente da câmara nos deu novo voto de confiança para avançarmos para a segunda edição. O segundo ano também foi um marco, representando a internacionalização do concurso e a sua procura por um número mais confortável de participantes. Aliado ao concurso existe também um festival de guitarra que, nesse ano, se destacou com a primeira interpretação do Concerto de Aranjuez em Sernancelhe pelo Carlos Bonell. Fez uma interpretação absolutamente marcante! Devo ainda indicar o 10º aniversário do evento como o marco mais recente. Comemorámos esse ano com um alargamento de músicos convidados e com a inserção das master-classes que trouxeram muita
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gente a Sernancelhe. R.G.: A partir de certa altura, começou a associar a função pedagógica ao concurso, criando master-
classes leccionadas por diversos músicos. Que projectos tem para as próximas edições? P.S.: De momento, sinto-me confortável com o modelo instituído, mas gostaria muito de, num futuro, poder alargar o festival para mais dias de concertos, dando oportunidade a várias formações de câmara, instrumentistas portugueses e a outras vertentes da família guitarra. R.G.: Falando um pouco do Concentus Duo, a sua formação camerística com o guitarrista Manuel
Tavares, conte-nos como surgiu o duo e que projectos e concertos terão durante este ano. P.S.: Este duo surgiu depois de sairmos da Universidade onde estudámos. Sempre tive uma grande admiração pela música feita em duas guitarras e, quando o Manuel veio dar aulas para Viseu, surgiu a oportunidade de formarmos um duo. Tem sido sempre um prazer tocar em duo e isso complementa a minha vida profissional. O Concentus Duo está actualmente a viver momentos de descanso. O meu colega está a viver a nova experiência de ser pai e, por vezes há que se pesar as prioridades. Apesar de, por vezes, a preguiça dos fins-de-semana em família saberem bem, é pouco agradável não ter concertos à vista, no entanto estamos a organizar o tempo para montar reportório novo. R.G.: Com a sua organização do Festival e Concurso Internacional de Sernancelhe, o panorama musical
português ficou muito mais rico. Quanto a si o que está por fazer no plano musical em Portugal? P.S.: Penso que todos os municípios deveriam apoiar com seriedade a música com verbas decentes de modo a possibilitar a organização de um maior número de concertos com músicos nacionais e estrangeiros. Felizmente temos assistido a um acréscimo de iniciativas no campo da guitarra, mas nem sempre essas iniciativas têm o apoio que merecem. A educação tem um papel absolutamente primordial para o sucesso das actividades culturais. Estou bastante optimista relativamente à nova “avalanche” de crianças que estão a entrar nos conservatórios. Integrarão, no futuro, um público interessado e crítico e, muitas delas, terão um futuro profissional na música. Esta visão pessoal de um futuro próximo, traz-me muito optimismo. Espero que a minha expectativa não seja defraudada com um baixar de qualidade! Por fim, acho absolutamente lamentável o papel “deseducador” da televisão que passa tanta música má para as massas. Era urgente acabar com isso.
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Paula Sobral nasceu em S rnancelhe, Viseu. Iniciou estudos musicais no Conservatório de Música de Viseu, onde estudou guitarra com Luís Lapa e Christopher Ly ll que a orientou até ao fim do curso comple mentar. Em 1994 iniciou o curso Licenciatura em Ensino da Música na Unive sidade de Aveiro, na área específica de Guit rra Clássica, sob a orientação de Paulo
az de Carvalho.
Depois de concluir a licenci tura continuou o estudo do instrumento c m o guitarrista eslovaco Jozef Zsapka. Conj gou o estudo da guitarra com a actividade docente no Conservatório de Viseu. Participou em vári s master- class. Leccionou igualmente na Esc la de Música do Colégio de S. José (Guarda) e o Conservatório de Música de Seia. Actualmente lecciona no Cons ervatório de Música de Viseu “Dr. José de Azere o Perdigão”. Em 2007 concluiu o seu me trado em Música de Câmara na Universidade de Aveiro sob a orientação dos Professores Paulo Vaz de Carvalho, Helena Marinho, Fa sto Neves e do guitarrista brasileiro Odair As sad (membro do célebre duo Assad). Desde 1999, conjuntamente c om José Carlos Sousa, é directora artística do C ncurso e Festival Internacional de Guitarra Cl ássica de Sernancelhe, evento pioneiro no pa s, já na sua 12ª edição. A sua actividade artís tica marca-se pela actuação em música de câm ara com o duo de guitarras Concentus Duo, ond e toca com Manuel Tavares desde o ano 2000.
duo apresentou-
se em várias cidades do pa ís, no Festival Ciclo de Guitarra Clássica de Oliveira do Bairro, Festival de Guitarra da Fund ação António de Almeida, Festival Internaciona l de Sernancelhe, Centro Cultural de Belém, F estival Internacional Guitarmania (Almada e isboa) e Festival Internacional de Guitarra de anto Tirso. Fora de Portugal marcou pre sença no Festival Internacional de Guitarra em Hondarribia, País Basco, "Guitarre-Essone" em Paris, França e Festival Internacional de Guit arra de Palencia, Espanha. www.concentusduo.com www.cm-sernancelhe.pt Guitarra Clássica
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VII ENCONTRO NACIONAL DE GUITARRA (CONSERVATÓRIO REGIONAL DE CASTELO BRANCO, 31/03/09) Por Jorge Pires
“No próximo ano encontramo-nos outra vez: 1ª terça-feira das férias da Páscoa”. Tem sido assim que os guitarristas (professores e alunos) participantes nos Encontros Nacionais de Guitarra marcam novo encontro para o ano seguinte. E foi também assim que, em 2008 em Viseu (Conservatório de Música José Azeredo Perdigão), se agendou o VII Encontro Nacional de Guitarra para a interrupção lectiva da Páscoa de 2009. Estes encontros tiveram o seu início em 2003 na Academia de Música de Santa Maria da Feira por iniciativa dos professores e guitarristas Carlos Marques e António Andrade com o objectivo de promover a troca de experiências entre alunos de guitarra de diferentes escolas através da partilha das suas interpretações. Este evento foi-se repetindo nos anos seguintes e sendo acolhido sucessivamente por diversas escolas. O último, à data em que escrevo, foi então o VII Encontro Nacional de Guitarra (ENG) e realizou-se no Conservatório Regional de Castelo Branco (CRCB) a 31 de Março de 2009. E é sobre este que o Pedro Rodrigues me propõe escrever algumas linhas. No VII ENG participaram professores e alunos das seguintes escolas: Academia de Música e Dança do Fundão, Academia de Música de Santa Maria da Feira, Escola de Música do Centro de Cultura Pedro Álvares Cabral (Belmonte), Conservatório de Música José Azeredo Perdigão (Viseu), Conservatório de Música de S. José da Guarda, Escola Superior de Artes Aplicadas (Castelo Branco), Academia de Música de Ovar, Conservatório de Música de Coimbra e Academia de Música de Lagoa, para além do Conservatório anfitrião. Todos eles, perfaziam 47 professores e alunos (aos quais se somaram cerca de 20 ouvintes visitantes) dos quais, 34 inscritos a proporem-se para audição pública. Uso a precisão destes números, sem arredondamentos, para evidenciar uma das dificuldades que tivemos, enquanto organizadores: Os três momentos previstos para estas audições quase se revelavam insuficientes e saíram frustradas as tentativas de redução de programa a alguns dos que se propunham tocar. É verdade que alguma “negociação” se conseguiu mas, no geral, quem nesse dia se deslocou de longe a Castelo Branco ia para tocar. Receávamos que os momentos musicais se tornassem maçudos e aborrecidos por tão longos, mas não foi isso que aconteceu, mantendo-se o interesse até final de cada um destes momentos. Resultado: mais de três horas de música com executantes de vários níveis de desenvolvimento (dos cursos de iniciação ao superior) e ouvintes atentos e entusiásticos. Para isso terá ajudado também o conforto e a beleza do espaço – o edifício do CRCB tinha sido inaugurado há pouco de importantes obras de recuperação e o auditório principal (onde decorreu parte do Encontro) confirmou as suas simpáticas qualidades acústicas para o nosso instrumento. Com o apoio de uma pequena loja de música da cidade fez-se um modesto passatempo, o !GuitarQuiz, com questões relacionadas com a guitarra e que serviu de pretexto para oferecer brindes (cordas!) a alguns dos presentes.
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Voltemos um pouco atrás neste texto e à quantidade de participantes: foram 47 as inscrições, mas este número teria sido superior, não fosse o inconveniente da data. Esta é uma actividade centrada nos conservatórios e academias e, consequentemente, está condicionada pelo calendário escolar. Disto resultou que vários professores (e respectivos alunos) estivessem impedidos de estar presentes por terem sido convocados para reuniões de avaliação nas suas escolas. Daí que se tenha decidido que o próximo ENG seria, não à terça, mas à primeira quinta-feira da interrupção lectiva da Páscoa. Já depois da parte musical e da entrega dos certificados de participação deu-se início ao painel “A Guitarra em Portugal – ao encontro de um debate”. A mesa do painel era constituída, para além de mim próprio, por Pedro Rufino, Paula Sobral, Hugo Simões e Carlos Semedo, que moderou a sessão. Carlos Semedo é programador e coordenador de produção do Cine-Teatro Avenida de Castelo Branco e é gerente da Apsara – Gestão Cultural. É um observador perspicaz e com sentido crítico das questões educativas e culturais e presidiu a sessão de uma forma bastante dinâmica, tendo sido acompanhado pelos outros elementos da mesa e pelo público em geral. Citando, resumidamente, C. Semedo depois do Encontro: “Eis o que destaco da minha participação no Encontro: senti um forte interesse pelo instrumento e pelos mais diversos assuntos relativos ao seu ensino, programas, as didácticas e pedagogias. O encontro serviu também para se verificar o forte interesse que o instrumento continua a motivar junto dos mais jovens e a grande dispersão territorial deste impacto, com todas as escolas de música, com cursos oficiais, a terem na sua oferta educativa, a Guitarra. Foi com alguma perplexidade que dei conta da não resolução da questão da nomenclatura: Viola Dedilhada versus Guitarra. Do que mais gostei foi da participação activa, com muitas perguntas, alguma discussão e a exposição de pontos de vista, sem formalidades.” Uma pequena nota final: estava prevista a constituição de uma associação de guitarra de âmbito nacional (tema também discutido no painel de debate), sendo esta a terceira tentativa, nestes encontros. O assunto tinha sido abordado no V ENG (Guarda, 2007) e, depois do VI ENG (Viseu, 2008), chegou a avançar-se para uma formalização jurídica. Mas após alguns entraves com a denominação e o desinteresse de alguns dos envolvidos, o assunto acabou por ser deliberadamente esquecido. Provavelmente por aversão a formalidades e burocracias. Trocam-se e-mails, telefonemas e SMS. Marcam-se ensaios, estágios orquestrais e encontros com 10, 20, 50 pessoas. Mas quando se trata de formulários, carimbos e conservatórias, quase todos fogem! Algo se perderá com isto, certamente. Mas é verdade que não é por isto que deixa de se fazer música. E com guitarra de preferência.
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Luthier.pt Retrato de Óscar Card so (n. 1960) por Francisco Morais Franco
Natural de Cinfães do Do ro, foi em criança que surgiu o seu interesse pela construção de instrumentos musicais. Sen do filho de Manuel Cardoso (1933-1991), tam ém construtor de guitarras, desde cedo com çou a ajudar o pai na oficina. Refere que por volta dos se s 14 anos de idade construía, “quase que por div ersão”, 3 guitarras por semana que depois vend ia para uma loja de instrumentos musicais. Pas ou por uma fase essencialmente dedicada ao res auro e à construção de guitarras clássicas, sempre s obre orientação do seu pai, até que com 19 anos co eça também a construir guitarras portuguesas. Em 1986, com uma bolsa da Sec retaria de Estado da Cultura, foi estudante na “Scuo la Internazionale di Liuteria” em Cremona (Itália) o de tirou curso de luthier . Óscar Cardoso sublinha a importância desta formação ao nível teórico, vist o que “na prática já fazia parecido” devido aos ensinamentos que recebera do seu pai que por sua vez tinha aprendido com o mestre Álvaro Mercean da Silveira (18831975), importante luthier Português, que também tinha estudado na mesma esc la em Itália. Após concluir o curso em 1990, regres sa a Portugal onde continua a parceria com o seu pa i e por morte deste fica o responsável pela oficina.
Filosofia Óscar Cardoso constrói o tradicional mas gosta de inovar (“Não gosto de ideias concebidas”), procura t razer algo novo e diferente tanto ao nível da acústica como do design. Dentro d s seus modelos padrão,
destacam-se
para
além
das
guitarras clássicas de co certo, certo, as guitarras clássicas sem fundo, com um fundo amovível que quando re tirado favorece os agudos (apesar de uma
equena perda de
baixos) e que segundo Óscar Ca doso, visto não ter uma caixa de ressonância fechad : “usa o espaço da
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sala de concerto como acústica do próprio instrumento, (…) não perde tanta definiç o ao perto nem ao longe visto que a velocidade de propagação do som é superior quando comparada com uma guitarra com fundo”. Para além destes modelos, t em construído vários “híbridos” resultantes da fusão de guitarra portuguesa, alaúde e guitarra c lássica. Estes modelos são frequentemente usados por músicos como Pedro Jóia e José Peixoto, entr outros. Óscar Cardoso refere ter tido o privilégio de receber na sua oficina o afamado guitarrista
e jazz Pat Metheny que ao ficar surpreso levou onsigo um destes
híbridos. A sua mais recente invenção at é à data vem no seguimento de um pedido de u consiste numa guitarra, també
cliente especial e
híbrida, mas com dois tampos bilaterais (um trase iro em cedro e um
frontal em pinho) e dois braços ( um para cada tampo). Quando questionado sobre qua l a melhor madeira para a construção de instrume tos responde sem hesitação: “todas as madeiras s ão boas, desde que se faça uma boa análise da es essura, densidade, vibração, elasticidade e modo d aplicação”. Apesar de tudo não esconde o seu favor itismo pelo Pinho e pelo Pau-santo do Brasil, respect ivamente para tampos harmónicos e costas. O tempo de espera desde o pedi do à entrega ronda os 12 meses.
Perspectivas Sobre as suas perspectivas de fu turo, apesar de considerar que em Portugal ainda n o existem grandes horizontes de mercado quer p ara os músicos quer para os construtores, recon ece que a grande concorrência internacional faz c m que seja difícil um luthier Português luthier Português afirmar-se. I dependentemente disto, Óscar espera continuar a fazer as suas experiências e confessa que lhe dá go to apresentar algo novo e diferente e ver a reacção das pessoas. “(...) quer gostem quer não vou s empre fazer as minhas loucuras, como gosto de lhes hamar.”
Contactos Rua 25 de Abril Vivenda Cardoso Casal do Previlégio 2620-412 Póvoa de Santo Adrião
[email protected]
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Novas Gravações por Tiago Cassola Marques
A sensação de um universo sonoro estranho, novo e belo. Dois mundos quase sempre de costas voltados (piano e guitarra, entenda-se), de repente juntam-se e celebram a música. O novo disco do duo Debs-Fruscella Opus Mixtum, Mixtum, é isso mesmo, uma nova e bela experiência de duo, fazendo um mix de mix de música barroca, clássica, espanhola e brasileira, bem tocada, séria e divertida. Um repertório musicalmente rico e variado, juntando timbres, estilos e técnicas tão diferentes quanto originais. As interpretações causam um verdadeiro prazer na audição, fazendo uma leitura muito interessante de todas as obras. La vida breve de Manuel de Falla viva e enérgica; a Sonatina de Diabelli (com a cadenza original do A. Fruscella) é esteticamente muito bem conseguida, interpretada com segurança e virtuosismo; a releitura da Suite Retratos de Gnattali, misturando o timbre e as cores do piano, um equilíbrio perfeito; e ainda uma bela sonata de Bach, dois grandes choros de Augusto Sardinha, e novamente o Corta Jaca de Gnattali, desta vez com percussão. Fraseado, articulação, swing, swing, sincronia quase sempre perfeita... é clara a excelência e o profissionalismo do duo em qualquer estilo. As transcrições são igualmente boas, mais uma vez denotando equilíbrio e clareza no discurso. Para La vida breve utilizaram a transcrição para violino e piano de Kreisler, os dois choros de Sardinha foram transcritos por Gnattali, e a Suite Retratos e a Sonata BWV 1027 de 1027 de Bach foram transcritos pelo próprio duo. A Sonatina é uma das quatro obras originais para piano e guitarra do compositor e editor austríaco Anton Diabelli. Quanto à gravação, aquilo que poderia ser um problema, simplesmente deixa de o ser. O equilíbrio é muito agradável, às vezes excelente, e a captação dos dois instrumentos é quase sempre cristalino. Sem dúvida, um disco que merece fazer parte da discoteca de qualquer amante da música. Fica a curiosidade de como será ao vivo. Manuel de Falla, La vida breve; breve; Anton Diabelli, Sonatina op. 68 (Andante sostenuto, cadenza, rondo) ; Johann Sebastian Bach, Sonata BWV 1027 (I. 1027 (I. Adagio II. Allegro ma non tanto III. Andante IV. Allegro moderato); Hanibal Augusto Sardinha, Desvairada; Desvairada; Radames Gnattali, Suite Retratos (I. Choro II. Valsa III. Schottisch IV. Corta Jaca); Hanibal Augusto Sardinha, Gente humilde; humilde; Radames Gnatalli, Corta Jaca (with percussion)
Rania Debs – piano, Antonio Fruscella – guitar (
[email protected] /
[email protected] ) Ref.: op.mix.2009/1
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O nacionalismo musical na obra de Manuel de Falla e Frederico Garcia Lorca As Siete Canciones Populares Españolas e as Canciones Españolas Antiguas por Luiz Henrique Mello e Manuela Vieira O presente trabalho pesquisa a história das Siete Canciones Populares Españolas, de Manuel de Falla e as treze Canciones Españolas Antiguas, de Frederico Garcia Lorca, suas origens e influência exercida pelo nacionalismo musical europeu. Busca justificar a escolha da cultura popular andaluza pelo pensamento nacionalista pesquisando a história da ocupação árabe na Península Ibérica bem como a sua influência na cultura andaluza. Aborda ainda a vida e a obra de Manuel de Falla e Frederico Garcia Lorca e importância que eles tiveram no cenário musical e social espanhol de sua época. As Siete Canciones Populares Españolas são: El paño moruno; Seguidilla Murciana; Asturiana; Jota; Nana; Canción e Polo. As Canciones Españolas Antiguas são: Anda, jaleo; Los cuatro muleros; Las tres hojas; Los mozos de Monleón; Las morillas de Jaén, Sevillanas del siglo XVIII; El Café de Chinitas; Nana de Sevilla; Los pelegrinitos; Zorongo; Romance de Don Boyso; Los reyes de la baraja e La tarara
Espanhóis, árabes e indianos A invenção de Andaluzia As rivalidades por ocasião de uma mudança de reinado no século VIII mergulharam o reino espanhol em uma sangrenta guerra civil. Com a morte do rei Vitiza, em 710, parte da nobreza pretendia repartir o reino entre os próprios filhos, enquanto outros nobres apoiavam a escolha de um novo rei. Um novo rei foi de fato eleito, mas a guerra civil deixou o reino completamente arrasado. Os nobres derrotados buscaram então apoio do conde Julian, no norte da África, para retomar o controle do país. Julian era provavelmente aliado dos muçulmanos e estes, percebendo a oportunidade que tinham em mãos, invadiram a Península em abril de 711, sob as ordens de Yebel al-Tariq, cujo nome latinizado batiza o Estreito de Gibraltar. Em poucos anos, toda a Península estava sob domínio árabe, do Estreito de Gibraltar aos Pirineus. 1 Por volta do ano de 1400, tribos ciganas que fugiam da perseguição dos cavaleiros do Grande Tamerlão 2, na Índia, chegam ao Oriente Médio. Vinte anos mais tarde, essas tribos aparecem em diferentes povos da Europa e entram na Espanha com os exércitos sarracenos que desde a Arábia ao Egito, desembarcavam periodicamente na Península 3. A Espanha muçulmana formava um bloco relativamente homogêneo onde, assim como no norte da África, se falava a mesma língua, seguia-se a mesma religião e obedecia-se à mesma lei. Os árabes denominavam al Andalus o território da península que estava sob seu domínio. Nos anos imediatamente posteriores à invasão, al Andalus abarcava quase toda a península, com exceção de alguns redutos nos Pirineus e na Cordilheira Cantábrica. Com o tempo, os cristãos se reorganizaram e, lentamente, foram retomando o território; e por volta de 1085, os territórios cristãos e muçulmanos estavam equilibrados. As batalhas continuaram, os cristãos avançaram e o território conhecido com al Andalus foi se restringindo cada vez mais ao sul da Península,
1 PÉREZ, Joseph. Historia de España. España. Ed. Crítica 2 Tamerlão (versão de seu nome turcomano, Timur-i-Lenk, ou Timur, o Coxo) foi o último dos grandes conquistadores nómadas da Ásia Central de origem turco-mongol. 3 LORCA, Frederico Garcia. Conferências. Conferências. Editorial Comares
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na região onde hoje fica o estado de Andaluzia. Al Andalus se reduziu então à região de Granada, que continuou independente até sua queda, em 1492.
O nacionalismo musical A arte como bandeira O início do século XX foi um período de crise para os compositores europeus. Neste período, conhecido como Romantismo Tardio, se tentava romper com as últimas amarras da tonalidade deixadas por Wagner e Liszt. A obra destes dois compositores foi tão revolucionária no que se refere à expansão da tonalidade e técnicas de modulação que parecia nada mais haver a ser feito. feito. Segundo Paul Griffiths, Debussy resolveu o problema abandonando a ortodoxia harmônica e estrutural; mas se os antigos modelos de desenvolvimento contínuo deviam ser preservados, tornavam-se necessárias novas formas de compromisso, no mínimo para satisfazer o senso formal legado pela tradição 4. Foi um período de contrastes: de um lado, compositores que tentavam a todo custo manter a estética romântica novecentista; e do outro, compositores em crise tentando romper com ela. A rivalidade entre “conservadores” e “radicais” sempre existiu, mas naquele momento era diferente: não existiam apenas duas correntes, mas sim várias opções a escolher e Griffiths situa o início dessa divergência no período entre 1890 e 1910, auge do Romantismo Tardio, período em que se encorajou cada compositor a buscar dentro de si a resposta para o dilema tonal. O tenso período que precedeu a Primeira Guerra Mundial levou os compositores europeus a se voltarem para o folclore de seu próprio país, em vez de seguir a tendência vienense, como de costume.
Nesse sentido, poucos têm a estatura de Béla Bartók (1881-1945), que se dedicou com afinco à pesquisa da música folclórica, tornando-se um dos maiores especialistas de canções folclóricas em todo o mundo e o maior compositor nacionalista de sua época. Sua intenção não era apenas utilizar temas folclóricos, mas incorporar o modo popular de se expressar expressar em sua composição. Segundo ele,
“(...)o estudo dessa música camponesa teve para mim importância decisiva, pois me revelou a possibilidade de uma total emancipação da hegemonia do sistema maior-menor. A maior parte desse tesouro de melodias – também a mais valiosa – deriva dos antigos modos da música de igreja, de escalas da Grécia antiga e ainda mais primitivas (notadamente a pentatônica), apresentando mudanças de andamento e ritmos variados.” 5
Mas o que se supõe ser fruto das pelejas teóricas dos compositores do início do século XX, na verdade já havia sido plantado muito antes por um teórico de suma importância, então praticamente esquecido, chamado Antonio Eximeno. Padre Antonio Eximeno nasceu em Valência, em 26 de setembro de 1729.
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GRIFFITHS, Paul. A Paul. A música moderna – uma história concisa e ilustrada de Debussy a Boulez. Jorge Zahar Editor. GRIFFITHS, Paul. A Paul. A música moderna – uma história concisa e ilustrada de Debussy a Boulez. Jorge Zahar Editor.
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Educou-se em sua cidade, no se minário Nobles, sob a direção dos jesuítas. Em 1767, quando os jesuítas foram expulsos da Espanha, Exi eno foi para a Itália e se estabeleceu em Roma, ond e passou o resto da sua vida. Faleceu em 1808. 6 Em Roma, Eximeno se dedicou a o estudo da música e em 1774 publicou em italiano
livro: Dell’ origine
e delle regole della musica, coll storia del su progresso, decadenza e rinnovazionn e (Da origem e das regras da música, com a história do seu progresso, decadência e renovação) 7. Nesta bra revolucionária, Eximeno rompe com os teóricos de sua época, dizendo que seus ensinamentos são mais obstáculos do que apoios aos que desejam f azer boa música. Para ele, a música é uma lingua gem que expressa emoções, e o músico pode se gu iar por bons exemplos e pelo próprio instinto. Segundo Gilbert Chase, Felipe Pedrell, insigne compositor e teórico do nacional ismo espanhol, se apropriou da seguinte frase de Eximeno: “Sobre a base do canto nacional deveria c onstruir cada povo seu sistema”. Não nos cabe aq ui aprofundar-nos na obra de Eximeno, mas não
odemos deixar de
ressaltar que ele, ainda no sécul XVIII, antecipa os ideais nacionalistas dos composit res românticos. Na Espanha, o nacionalismo fo i abraçado por Manuel de Falla que, orientado po Felipe Pedrell, se dedicou à pesquisa de canções f lclóricas andaluzas. Seus estudos com Felipe Pedrell duraram três anos. Falla emergiu esteticamente for talecido e com uma vívida realização dos valores c iativos inerentes à música espanhola. Na pesquisa e coleta de canções andaluzas teve como parceiro Frederico Garcia Lor a, tornando-se seu amigo para o resto da vida. E m 1920, Garcia Lorca, Manuel de Falla junto com o filólogo Ramón Menéndez Pidal, visitaram os ci anos de Albacín e Sacromonte para formalmente c letarem canções e baladas, surgindo daí as melodi as que inspiraram as treze Canciones Españolas Ant guas, guas, de Frederico Garcia Lorca.
Frederico Garcia Lorca Poesia, música, folclore e política Frederico Garcia Lorca nasceu em cinco de junho de 1898, em uma província nos arredores de G ranada. Artista no sentido amplo do termo, foi poeta, dr amaturgo, músico, escritor e até pintor. Muitos o consider am o maior artista espanhol desde Cervantes. Frederico Garcia Lorca teve importante presença artística na Espanha, nos Estados Unidos e em m uitos outros países desde o seu primeiro livro - Impress es e Paisagens -
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CHASE,Gilbert. In Revista Musical Chilena. Instituto de Extensión Musical de la Universidad de Chile. Santi go, Julho – Agosto de 1946. 7 CHASE,Gilbert. In Revista Musical Chilena. Instituto de Extensión Musical de la Universidad de Chile. Santi go, Julho – Agosto de 1946.
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publicado em 1918. Ele não era uma figura isolada, mas parte de um grupo de elite de intelectuais e artistas, incluindo a dançarina La Argentinita 8, o pintor Salvador Dalí, o compositor Manuel de Falla, o toureiro Ignácio Sanches Mejías e o diretor Luis Buñuel. Influenciado por seu tio-avô – também chamado Frederico – e seus amigos mais próximos, o jovem Garcia Lorca mergulhou na cultura rural da Espanha. Em 1921, ele tomou lições de violão flamenco com dois ciganos de Fuente Vaqueros, no subúrbio de Granada, onde ele nasceu. Ele declarou em uma carta a um amigo, que estava apto a acompanhar as danças flamencas fandangos, peteneras, tarantos, bulerías e romeras9. A primeira gravação das Canciones Españolas Antiguas – muitas das quais ele havia coletado e memorizado desde a infância - data de 1931, feita pelo próprio Garcia Lorca e La Argentinita. Muitas delas foram rearmonizadas ou reescritas por ele para a gravação do projeto. Foram dez canções lançadas em cinco discos de 72rpm 10. As canções hoje são consideradas de Garcia Lorca, porém, mais acurado seria considerá-las como parte de sua pesquisa de canções. Essas músicas eram e ainda são freqüentemente apresentadas por grupos flamencos e produções de danças espanholas e as mais populares são Anda Jaleo, Zorongo, El Cuatro Muleros e En el Café de Chinitas. Chinitas. A conexão entre as canções e a infância de Garcia Lorca é ressaltada pelo fato de que En el Café de Chinitas foi ensinada a ele por seu tio-avo, que ganhava a vida tocando bandurrias em nightclub flamenco chamado Café de Chinitas, em Málaga 11. Há citações de vários recitais e palestras oferecidos por Garcia Lorca sobre vários temas. Muitos desses eram acompanhados por La Argentinita, que cantava, dançava e tocava castanholas com Garcia Lorca ao piano ou violão. As Canciones Españolas Antiguas de Garcia Lorca e La Argentinita fizeram fama antes de sua gravação, incluídas nesses eventos., Em 1922, Lorca se uniu a Manuel de Falla, Miguel Ceón, Hermenegildo Lanz, Ignácio Zuloaga e outros para promover a criação do Concurso de Cante Jondo, Jondo, com a finalidade de resgatar o primitivo canto andaluz. Em agosto de 1936, a vida de Garcia Lorca – que tinha 38 anos - teve fim tragicamente, em Granada. Em visita a sua família, os falangistas 12 o prenderam e em alguns dias, o executaram nas montanhas próximas a Viznar em Fuente Grande, perto de Granada.
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La Argentinita, nome artístico de Encarnación López Júlvez (Buenos (Buenos Aires; Aires; 1895 - Nova York; York; 24 de setembro setembro de 1945 1945). ). Bailarina, coreógrafa e dançarina de flamenco. Estava sempre presente nas apresentações de Garcia Lorca. 9 THOMAS, Katherine. The political and artistic impact of Federico García Lorca's Anda Jaleo on flamenco in Spain and the United States . 1998. 16p. Flamenco History C onference at the University New Mexico 10 THOMAS, Katherine. The political and artistic impact of Federico García Lorca's Anda Jaleo on flamenco in Spain and the United States. States. 1998. 16p. Flamenco History Conference at the University New Mexico 11 THOMAS, Katherine. The political and artistic impact of Federico García Lorca's Anda Jaleo on flamenco in Spain and the United States . 1998. 16p. Flamenco History C onference at the University New Mexico 12 A Falange era um pequeno partido de estilo fascista fundado por José Antonio Primo de Rivera em 1933 que depois se fundiu em 1934 com as mais proletárias JONS (Juntas de Ofensiva Nacional-Sindicalista). Havia tensões entre os “reacionários modernos”, que seguiam José Antonio e acreditavam acima de tudo nos ideais nacionalistas da Velha Espanha, e ala socialista, que se ressentia do modo como a sua ideologia anticapitalista era pisoteada pelos señoritos de classe alta. A facção “esquerdista” sofreu ainda mais desvantagens com o enorme fluxo de oportunistas em 1936 e 1937. A sua influência foi esmagada quando Franco institucionalizou o movimento, fundindo-o com os monarquistas carlistas.
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A origem de Anda Jaleo e sua importância na ditadura de Franco Em 1920, Lorca e seus companheiros coletaram essas canções populares e baladas em uma visita às cavernas dos ciganos de Granada. Eles também invocaram uma variedade de canções espanholas do século XIX, incluindo os Cantos españoles: coleción de aires nacionales y populares, populares , de Francisco Ocón, e os Cantos populares asturianos, de José Hurtado. As coleções de Hurtado e Ocón incluem as primeiras versões de Anda de Anda Jaleo, Jaleo, intituladas A intituladas A carruagem e Os contrabandistas de Ronda13. Anda Jaleo se tornou o título popular da canção com a reedição de La Argentinita e Garcia Lorca, embora em nota a um programa de dança, tenha-se feito tributo às primeiras versões de Anda Jaleo que, de acordo com a nota é “um romance de contrabandistas do século XIX” e uma dança sobre “os cavaleiros das Serras e suas lutas, amores e despedidas.” Imediatamente após a Guerra Civil Espanhola 14, a censura ganhou força total na Espanha. Nenhuma menção podia ser feita sobre os indivíduos associados ao Exército Republicano, prisões ou execuções, sobre Garcia Lorca e suas obras, incluindo as canções coletadas, que não estavam disponíveis e não podiam ser discutidas publicamente. Durante a Guerra Civil, Anda Civil, Anda Jaleo era entoada como um hino do exército republicano, com uma letra politicamente explosiva. Nessa época era chamada Tren Blindado, Blindado, uma clara referência ao mítico trem da revolução russa. De acordo com as letras que circulavam na época, o trem fazia com que los sublevados (os nacionalistas), os inimigos dos republicanos, recuassem aterrorizados. Eis as letras:
Anda Jaleo) Tren Blindado ( Anda 1ª letra
2ª letra
Yo me subí um pino verde
Yo marché con el tren blindado
Eu subi em um pinheiro verde
Eu marchei com o trem blindado
Por ver si Franco llegaba Para ver se Franco chegava
Camino de Andalucía A caminho de Andalucía
Y solo vi al tren blindado
Y vi que Queipo de Llano
E só vi o trem blindado Lo bien que tiroteava E quão bem ele atirava
E vi que Queipo de Llano Al verlo retrocedía Ao vê-lo retrocedia
Refrão
Refrão
Anda, jaleo, jaleo
Anda jaleo, jaleo
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THOMAS, Katherine. The political and artistic impact of Federico García Lorca's Anda Jaleo on flamenco in Spain and the United States . 1998. 16p. Flamenco History C onference at the University New Mexico 14 A Guerra Civil Espanhola foi um conflito conflito bélico deflagrado após um fracassadogolpe fracassadogolpe de estado de um setor do exército contra o governo legal e democrático da Segunda República Espanhola. Espanhola. A guerra civil teve início após um pronunciamento dos militares rebeldes, entre 17 e 18 de julho de 1936 1936,, e terminou em 1° de abril de 1939 1939,, com a vitória dos rebeldes e a instauração de um regime ditatorial de caráter fascista fascista,, liderado pelo general Francisco Franco. Franco.
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Vamos, grite, berre Silba la locomotiva
Vamos, grite, berre Silba la locomotiva
A locomotiva sibilou
A locomotiva sibilou
Y Franco se va a paseo E Franco se foi
Y Queipo de Llano se va a paseo E Queipo de Llano se foi 16
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Manuel de Falla Nacionalismo, folclore e Felipe Pedrell Manuel Maria de Falla y Matheu nasceu na idade de Cádiz em 23 de novembro de 1876. Sua mãe foi sua rimeira professora de piano e Falla adquiriu uma teoria musical rudimentar com os músicos locais. Mas foi depois de ouvir uma série de concertos sinfônicos no Museu de Artes em Cádi
que lhe veio a
determinação de se dedicar inteiramente à m úsica 17. Mudou-se para Madrid para estudar pian
com José Tragó,
apesar de não aspirar ser um grande pianist a: seu desejo era a composição. Mas nessa época não exist ia na Espanha, a produção musical em suas manifestações mai s cultas e elevadas. Manuel de Falla
Não havia recompensa material e, com a r ecorrente falta de
dinheiro, Falla foi levado a comp or canções populares para ganhar a vida. Nesta crucial conjuntura, Falla onheceu o homem que estava destinado a exercer decisiva influência em sua carreira artística. Seu no e era Felipe Pedrell. Felipe Pedrell foi o principal pe sador do nacionalismo musical espanhol, tendo infl enciado toda uma geração de músicos a pesquisar anções populares e incorporar gêneros populares a uas composições. Falla estudou com Pedrell dura te três anos. Estudou formas musicais, como lied e coral, com grande seriedade e aprofundamento, vi sto que Pedrell era extraordinariamente exigente e s evero a respeito da escrita musical. Manuel de Falla terminou de es rever as Siete Canciones em 1911, pouco antes de a 1ª Guerra Mundial começar, antes de sair de Pari s. O motivo que o levou a compô-las foi o pedido de uma artista espanhola da Companhia de
pera Cômica para que lhe indicasse canções esp anholas para uma
apresentação que faria em Paris. Anteriormente, um professor d canto grego desejava colocar acompanhamento e
algumas canções
populares de seu país e, como não sabia fazê-lo, perguntou a Falla se ele se di sponibilizaria. Falla
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Gonzalo Queipo de Llano foi um dos g nerais que arquitetou o golpe militar contra a Segunda República, cujo fracasso levou a Guerra Civil Espanhola. 16 THOMAS, Katherine. The political and artistic impact of Federico García Lorca's Anda Jaleo on flamenco in Spain and the United States. States . 1998. 16p. Flamenco History Con erence at the University New Mexico 17 PAHISSA, Jaime. Vida y obra de Manue l de Falla. Falla. Buenos Aires. Ricordi Ricordi Americana S.A. 1946.
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acedeu, e harmonizou as canções para canto e piano usando sua sua técnica e seu próprio sistema sistema de harmonização. Este sistema próprio foi fruto do estudo do livro L’acoustique nouvelle. nouvelle. Consiste em conhecer como notas próprias da harmonia as notas produzidas pela ressonância natural das mesmas, incluindo-as na harmonia, o que leva a resoluções ou cadências inesperadas, por transformação da função tonal das notas de um acorde. Este teste lhe pareceu de excelente resultado; e, apesar de nunca mais ter voltado a ver o professor grego e de nunca ter ouvido falar da sua canção, serviu para encorajá-lo a escrever as Siete Canciones. Canciones. No trabalho de harmonização das Siete Canciones, Canciones, Falla não se limitou ao puro acompanhamento do canto popular tal como sai da boca do povo. Quando parecia bom para ele, seguia o caminho que sua livre inspiração lhe ditava; e assim, em algumas canções, a melodia é de todo folclórica, em outras nem tanto e outras, ainda, são totalmente originais. As Siete Canciones Populares Españolas foram estreadas em 1915, por ocasião de uma homenagem recebida pelo Ateneo de Madrid, antes de Falla fazer, com Garcia Lorca, a visita às cavernas de Granada para coletar melodias. Sem dúvida, Manuel de Falla foi o compositor espanhol de maior envergadura a se dedicar ao nacionalismo musical, incorporando de fato o folclore andaluz em sua criação, não se limitando apenas à coleta e harmonização de melodias. Em abril de 1922 foi nomeado acadêmico de honra da Real Academia Hispano-Americana de Ciências e Artes de Cádiz. Em 28 de setembro de 1939, depois da Guerra Civil Espanhola e nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, Falla se exilou na Argentina, mesmo com o assédio do governo de Franco, que lhe oferecia uma pensão caso ele voltasse para a Espanha. Faleceu em 14 de novembro de 1946, ao sofrer uma parada cardiorrespiratória.
Garcia Lorca e Manuel de Falla Nacionalismo musical e o cante jondo A intenção de incorporar o folclore local às composições levou os compositores europeus do início do século XX, seguindo o exemplo de Béla Bartók, a pesquisarem e catalogarem os cantos de seu país. A Espanha é composta por quatro regiões distintas, cada uma com os seus costumes, sua própria cultura e dialeto. Cada uma dessas regiões pensa, sente e age de acordo com seus interesses, e a unidade nacional nunca fez parte dos seus objetivos principais. Mas essas “nações” tão diferentes se unificam por um traço cultural comum, a resistência, seja ela herdada dos setecentos anos de dominação moura (que jamais chegou ao território basco) ou a resistência ao domínio de Napoleão. Quando a guerra da independência em 1808 acabou e a cavalaria francesa foi derrotada, surgiu na consciência espanhola um orgulho racial exacerbado. Esse nacionalismo desmedido influenciou diretamente numa ainda maior marginalização dos ciganos, que já na época demonstravam verdadeiro fascínio pelas terras andaluzas.
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A Andaluzia e sua cultura, depreciada e temida ao mesmo tempo pelos espanhóis depois da desocupação árabe, formou durante séculos uma espécie de mundo à parte dentro do contexto nacional. Porém, tanto exotismo acabou por chamar a atenção, na segunda metade do século XIX, de compositores de toda a Europa, formando uma corrente conhecida como alhambrismo. alhambrismo. O alhambrismo musical é um estilo pitoresco vinculado ao marco concreto do castelo de Alhambra, em Granada, símbolo da cultura muçulmana mitificada, que soava duplamente romântica por suas raízes medievais e orientais 18. Não há dúvida de que as obras compostas nessa estética ajudaram a formar a idéia de música espanhola que temos hoje, e, embora não tenha tido tanto compromisso folclórico quanto o movimento nacionalista que viria a seguir (não há menções ao cante jondo nesse movimento, por exemplo), certamente ecoa algo da cultura musical popular andaluza. De acordo com Manuel de Falla, existem três momentos na história musical espanhola, sobretudo a andaluza, nas quais se identificam as influências que lhe foram impostas. São elas: •
A invasão dos bizantinos em 524, no começo da nossa era, quando conquistaram a Espanha meridional.
•
A invasão árabe em 711 e os subseqüentes séculos de dominação
•
A imigração e estabelecimento na Espanha (especialmente em Andaluzia) de numerosos grupos de ciganos.
Essas tribos ciganas, provenientes da Índia, que entraram na Espanha no início do século XV, trouxeram elementos antiqüíssimos de sua música, que acabaram se mesclando com outros elementos nativos igualmente antigos e têm importância capital no gênero considerado a raiz da música andaluza, o cante jondo. jondo. Em 1922 Manuel de Falla e Garcia Lorca se uniram outros intelectuais e promoveram o Concurso de Cante Jondo, Jondo, onde Garcia Lorca, em palestra, expõe os princípios do ancestral canto andaluz calcado em seu próprio trabalho de pesquisa com Felipe Pedrell e Manuel de Falla, grandes entusiastas do gênero. Felipe Pedrell chama a atenção para influência da cultura bizantina na música espanhola:
“O fato de na Espanha persistir em vários cantos populares o orientalismo musical tem profundas raízes em nossa nação por influência da civilização bizantina, antiqüíssima, que se traduziu nas fórmulas próprias dos ritos usados na igreja espanhola desde a conversão de nosso país ao cristianismo no século XI, época em que foi introduzida a liturgia romana propriamente dita 19”
Segundo Garcia Lorca, dá-se o nome de cante jondo (canto profundo) a um grupo de canções andaluzas, cujo tipo genuíno seria a siguiriya gitana, gitana, da qual derivam outras canções ainda conservadas pelo povo como polos, como polos, soleares e martinetes. martinetes. As denominadas malaguñas, granadinas, peteneras, etc., são apenas 18
SOBRINO, Ramón. Manuel de Falla. Falla. Presses de l’Université de Paris-Sorbonne. Série Études LORCA, Federico Garcia. Conferências. Conferências. Brasília/São Paulo. Ed. UnB/Imprensa Oficial. 2000. p. 22
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conseqüências dessas primeiras, diferem das outras tanto por sua arquitetura como por seu ritmo e são consideradas flamencas. O flamenco, portanto, seria um desdobramento do cante jondo20. Para Manuel de Falla, a diferença entre o cante jondo e o flamenco é que as raízes do cante jondo encontram-se nos primitivos sistemas musicais indianos; o flamenco é um desdobramento do cante jondo, jondo, e toma a sua forma definitiva no século XVIII. A melodia do cante jondo é composta por ondulações, passagens melismáticas às vezes difíceis de se representar na pauta, enquanto a melodia do flamenco move-se por saltos 21. Segundo Manuel de Falla, o cante jondo é o único no continente que conservou toda a sua pureza, tanto por sua composição como por seu estilo, qualidades que levam em si o canto primitivo dos povos orientais 22. E comenta ainda que, embora a melodia cigana seja rica em floreios ornamentais, como nos cantos indianos, estes se empregam somente em determinados momentos; e que, na verdade, menos que floreios ornamentais, eles são inflexões vocais impostas pela força emotiva do texto, embora na pauta assumam a forma de floreio. Explica a construção da melodia de forma ainda mais objetiva: “O enarmonismo como meio modulante, o emprego de um âmbito melódico tão restrito que dificilmente ultrapassa uma sexta e o uso reiterado e até obsessivo de uma mesma nota, procedimento próprio de certas fórmulas de encantamento (...)23”
As Siete Canciones Populares Españolas, Españolas, de Manuel de Falla, e as Canciones Españolas Antiguas, Antiguas, de Frederico Garcia Lorca, têm inspiração claramente popular e foram escritas nos moldes do nacionalismo musical, corrente que imperou entre os compositores europeus do início do século XX. Essas canções têm origem na coleta de cantos e danças populares e narram cenas do cotidiano andaluz. O leque de gêneros abarcados é extenso: bulerías, bulerías, sevillanas, peteneras, zorongos, jotas, polos, cantigas de roda, roda, etc., podem ser encontrados nessas duas séries. A obra musical de Frederico Garcia Lorca é baseada na coleta de cantos e danças, em sua maioria andaluzos, dos quais escreveu os arranjos e alterou algumas letras. Nas Canciones Españolas Antiguas, Antiguas, Garcia Lorca retrata cenas como a corrida de touros (Los ( Los mozos de Monleón), Monleón ), o preconceito contra mouros, reflexo de séculos de ocupação (Romance ( Romance de Don Boyso), Boyso), cantigas de roda (Los ( Los reyes de la baraja) baraja) e cenas cotidianas, como a disputa entre dois irmãos para ver quem seria o melhor toureiro ( El Café de Chinitas). Chinitas). Mostra ainda vibrantes danças flamencas, como AndaJaleo (bulería), El Café de Chinitas (petenera), Sevillanas del siglo XVIII (sevilhana) e Zorongo e Zorongo (zorongo). Manuel de Falla, apesar de também ter escrito suas obras sob influência da música popular, teve um enfoque diferente. A primeira canção, El paño moruno, é igual à conhecida canção popular. A melodia de Asturiana também é copiada da popular, mas o interessante interessante acompanhamento é considerado, pelos estudiosos estudiosos de Falla e do folclore espanhol, coisa nova. Muito do folclore existe igualmente em Seguidilla Murciana, mas grande 20
LORCA, Federico Garcia. Conferências. Conferências. Brasília/São Paulo. Ed. UnB/Imprensa Oficial. 2000
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LORCA, Federico Garcia. Conferências. Conferências. Brasília/São Paulo. Ed. UnB/Imprensa Oficial. 2000 LORCA, Federico Garcia. Conferências. Conferências. Brasília/São Paulo. Ed. UnB/Imprensa Oficial. 2000 23 LORCA, Federico Garcia. Conferências. Conferências. Brasília/São Paulo. Ed. U nB/Imprensa Oficial. 2000 22
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parte de Jota de Jota é composição original, forjada no modelo popular. Nana é uma canção de ninar andaluza, a primeira música que Falla ouviu em sua vida. A nana andaluza é diferente de todas as canções de ninar, não só da Espanha como do resto da Europa. Falla não acreditava que Nana pudesse ser de origem árabe ou moura, pois os melismas contidos na melodia se aproximam mais da música hindu. Em Polo também se destaca muito da originalidade enfática de Falla 24. Não é difícil identificar os princípios do cante jondo e do flamenco expostos acima na obra de Falla e Lorca. Em Nana, de Manuel de Falla, por exemplo, está presente a questão do emprego do floreio ornamental, que no texto encontra lugar no acalanto emocionado da mãe para seu filho. Em Polo essa característica é ainda mais nítida, em ornamentos que representam a dor de uma desilusão amorosa (maldito seja o amor e quem me fez entender o que ele é ), ainda contendo a repetição obsessiva de determinadas notas. Na obra de Garcia Lorca, o flamenco se faz mais presente na vibrante Anda Jaleo, Jaleo, com a contagem de 12 compassos cíclicos na linha de baixo e pesados acentos nos tempos 12, 3, 6, 8 e 10 – alternando entre ¾ e 6/8, marcação característica da bulería, bulería, En el Café de Chinitas (uma petenera ensinada por seu tio-avô) , Zorongo (zorongo) e em Sevillanas del Siglo XVIII (sevilhana). Tem ainda belos exemplos de cante jondo em Nana de Sevilla, Las Morillas de Jaén e Romance de Don Boyso. Boyso . Robert Schumman afirmou certa vez que a música popular era a única música verdadeira. De fato, não há nada mais genuíno e sincero do que o canto de uma raça; e, por seu sincretismo, a cultura andaluza é caso ímpar na Espanha. Não há dúvida de que, nas duas séries estudadas nesse trabalho, está presente todo o sentimento de um povo.
O Duo Vieira-Mello, formado no início de 2009 por Luiz Henrique Mello (violão) e Manuela Vieira (soprano), tem seu foco voltado inteiramente para a música e cultura espanholas. Além do levantamento dos compositores espanhóis e seu repertório, investimos na pesquisa estilística e histórica como ferramentas fundamentais para incorporar o espírito ibérico em nossa interpretação. Visando abordar o que há de mais característico na cultura musical popular espanhola - o folclore andaluz - as escolhas naturais para este trabalho foram as séries Siete Canciones Populares Españolas e as treze Canciones Españolas Antiguas de Manuel de Falla e Frederico Garcia Lorca, respectivamente. Este trabalho busca explicar as origens dessas obras, bem como dos gêneros nela abordados, procurando entender as entrelinhas do texto musical, enriquecendo assim a interpretação de quem pretende montar este maravilhoso repertório. Esperamos que o leitor tenha tanto prazer em ler este trabalho quanto nós tivemos em escrevê-lo; e que seu conteúdo possa contribuir de alguma forma para os músicos que pretendem estudar este repertório ou para que o simples diletante possa entendê-lo e apreciá-lo melhor.
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PAHISSA, Jaime. Vida y obra de Manuel de Falla. Falla . Buenos Aires .Ricordi .Ricordi Americana S.A. 1946.
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Páginas com Música Uma pequena viagem…- Caminho do Imperador – Nuno Miguel Mi guel Henriques
Sobre a obra: “ Uma pequena viagem... no ocaso da vida, pelas veredas que iriam mais tarde ficar conhecidas por acolher os seus passeios ao ar livre... um exílio na freguesia da Nossa Senhora do Monte na ilha da Madeira... um símbolo da Europa decadente e destroçada, no fim do seu período hegemónico... um epitáfio à vida do Imperador Carlos I do Império Austro-húngaro.” Nuno Henriques
Sobre o compositor: Nuno Miguel Henriques nasceu a 7 de Maio de 1978. Filho de um violoncelista, iniciou os seus estudos musicais aos seis anos no Conservatório de Música da Madeira na classe de violoncelo do prof. Agostinho Henriques tendo mais tarde estudado piano com o prof. András Hennel. Estudou composição na classe de Análise e Técnicas de Composição com o maestro Roberto Pérez entre 1995 e 1998, altura em que compôs as suas primeiras peças. Ingressou na Escola Superior de Música de Lisboa em 1998 no curso de Composição, tendo estudado com os professores António Pinho Vargas, Christopher Bochmann e Sérgio Azevedo, concluindo a licenciatura em 2003. Prosseguiu os seus estudos no Conservatório de Roterdão com o professor Klaas de Vries entre 2003 e 2005, como bolseiro da Secretaria da Educação do Governo Regional da Região Autónoma da Madeira, tendo também estudado com Peter Jan Wagemans. Actualmente frequenta o Mestrado em Composição na Universidade de Évora sob orientação de Christohper Bochmann. Frequentou seminários de composição com os professores Emmanuel Nunes e Salvatore Sciarrino na Universidade de Aveiro em 2000. No mesmo ano, participou com uma peça seleccionada nas 4ª Jornadas Nova Música em Aveiro sob a direcção de Edwin Roxburgh. Desde 2001 que frequenta regularmente os seminários de composição na Fundação Gulbenkian com o professor Emannuel Nunes. Em 2003 e 2004 foi seleccionado para o 1º e 2º Workshop Gulbenkian para Jovens Compositores Portugueses, tendo sido estreadas as obras Guitarra Clássica
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Contraste para Orquestra e lementos para 12 instrumentos pela Orquestr Gulbenkian, sob direcção do maestro Guillau e Bourgogne. Em 2003 teve uma peça exec utada pela Orchestrutópica no Festival de Músic a da Madeira. Em 2004 obteve uma encomen da pela Fundação Calouste Gulbenkian e no mesmo ano foi seleccionado para participar no Workshop para Jovens compositores orga izado pelo ASKO Ensemble em Amesterdão e
Maio de 2005. Em 2006 participou com a p ça Elementos no
concerto “Diques” organizad pela Orchestrutopica dirigida por Cesário Costa . Foi professor na Escola Profis sional de Música de Almada, leccionando a disci plina de Análise e Técnicas de Composição II e III durante o ano lectivo de 2001/2002, e no Instituto Vitorino Matono no ano lectivo de 2 08/2009. Desde o ano lectivo 2006/2007 dese nvolve actividade como docente na Academia de música de Elvas, leccionando a mesma disc plina. Também é docente na Academia de Mús ica de Lisboa - Os violinhos desde o ano lectivo 008/2009. Obteve duas menções ho rosas no Concurso de Composição para I nstrumento solo “EURITMIA”, em 2006 e 200 com a peça Cadenza - para violino solo, e a p ça Uma pequena viagem... – Caminho do Impe ador – ador – para guitarra solo, respectivamente.
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