Douglas Ladislau dos Santos
Resenha: Crônica dos índios Guayaki
2 São Paulo 2009
Douglas Ladislau dos Santos
Resenha: Crônica dos índios Guayaki
Trabalho apresentado à disciplina “Leituras de Etnologia III: A antropologia política de Pierre Clastres”, no curso de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo. Docente: Renato Sztutman
3 São Paulo 2009 “Crônica dos índios Guayaki” encontra lugar nas ciências sociais não pelo seu valor estético, já que em Lèvi-Strauss na sua obra “Tristes Trópicos” podemos perceber algo semelhante: um livro que é ao mesmo tempo uma crônica antropológica e um ensaio filosófico, aliado a uma dose de relatos de viagem. Nas crônicas de Clastres há uma compilação de suas principais idéias acerca da filosofia indígena, notadamente na relação tribo-chefe. A chefia Guayaki pretende-se detentora do discurso, mas esvaziada de valor potencial, pois não tem autoridade sobre o grupo, chefia sem poder, discurso sem conteúdo. Muitos criticam Clastres por ser genial em seus insights, mas pouco eficaz no seu trabalho empírico. As crônicas demonstram o poder etnográfico de Clastres, que nos apresenta a riqueza dos povos da floresta paraguaia. Não é por acaso que esta obra atingiu, guardada as devidas proporções, um patamar próximo dos “Tristes Trópicos”, só que com a ausência do grande público para lhe atribuir valor. A teoria da chefia ameríndia, a troca desproporcional de mulheres e o gosto pela guerra estão presentes no livro, sob o aspecto exemplar dos Aché Gatu. A teoria da chefia indígena foi produzida através das leituras de Clastres, isto é, ele chegou no Paraguai já com uma idéia fixa: a de que os povos da floresta rejeitam autoridade ou a grande divisão. Ele partiu da filosofia ocidental e de leituras em etnologia para indagar sobre a natureza do poder político ameríndio, fazendo uma reaproximação entre antropologia e filosofia, por ora afastadas por uma antropologia estrutural ortodoxa. Clastres observou entre os Guayaki uma postura ativa para que a autoridade fique longe de seu modelo social, por meio de algumas práticas, como por exemplo um controle demográfico bastante eficaz. Mas este livro é mais do que uma compilação das idéias de Clastres: ele é uma reflexão etnográfica sobre o povo Guayaki, abarcando vários aspectos de sua sociedade, desde o nascimento até os rituais do sepulcro. A organização dos capítulos do livro segue uma lógica semelhante à ordem humana, onde nascemos, crescemos, ganhamos responsabilidades de adulto, morremos e nos enterram, contudo, nos Guayaki, é sua própria cultura que padece diante do mal branco. O contato com os paraguaios foi de fim trágico para os Guayaki. Os Guayaki pertencem ao tronco lingüístico Tupi-Guarani, habitam as florestas paraguaias e se constituem de pequenos grupos autônomos, que por vezes se reúnem garantindo uma unidade ritual Guayaki. É uma sociedade nômade, que não pratica agricultura e se baseia na
4 caça e na coleta. A divisão do trabalho é evidentemente sexual, já que a caça é prerrogativa masculina e a coleta atividade exclusivamente feminina. Demograficamente, podemos dizer que há uma constante preocupação em evitar uma prole feminina, refletindo numa desproporcionalidade entre os sexos, sendo o sexo masculino preponderante. Isto acarreta na possibilidade de existir a poligamia, algo declarada, para o lado feminino, afinal, não há mulheres para todos os homens. A primeira experiência etnográfica de Clastres foi entre os Guayaki, em 1963, que viajou ao Paraguai com sua esposa. A sua tese de doutorado baseou-se nestas experiências, que de certo modo também renderam este livro. Depois destas experiências com os Guayaki, ele não mais retornou a este povo, já que segundo estimativas de 1968, os Ache se resumiam a trinta almas! Evidentemente, trata-se de uma sociedade em extinção, que agora depende das benesses governamentais para o seu sustento material, este é o fruto da civilização! No capítulo 1, “Nascimento”, Clastres descreve um parto Guayaki e suas conseqüências rituais e míticas para o povo Guayaki. O livro começa com um nascimento e prossegue apresentando suas conseqüências “drásticas”, já que ele é vivido drasticamente. Clastres descreve minuciosamente o ritual de boas vindas ao novo membro do grupo, além de contar os mitos Guayaki que ratificam o ritual. O nascimento para os Guayaki significa subir, upi, isto é, elevarse de nível, sair da animalidade do feto e alcançar a humanidade, o recém-nascido. A sujeira contida no bebê reflete a natureza, que deve ser liquidada, o bebê é banhado, almejando a cultura, a condição humana. Para Clastres há um jogo de espelhos entre o rito (banhar o bebê) e o mito, porque “o ritual é o meio de transformar, socializando-o, um dado bruto imediato em um sistema simbólico mediatizado; ou para dizê-lo de outro modo, é no e pelo espaço do ritual que a ordem natural se converte em ordem cultural” (Clastres, 1995:24). Ele também apresenta a questão bayja, que é a relação de perigo presente na caça, onde o caçador encontra-se em situação dúbia, onde é caça e caçador ao mesmo tempo, sendo vítima iminente do jaguar, símbolo do perigo e desordem entre os Guayaki. O caçador Bayja está no limiar entre a natureza e a cultura. Enquanto que no capítulo 1 Clastres apresenta o nascimento Guayaki para os Guayaki, no capítulo 2, “De dois tratados de paz”, o objetivo é apresentar o nascimento dos Guayaki para os historiadores e para Clastres, que nos apresenta os motivos que o estimulou a estudar os Aché Gatu. Os Guayaki eram tidos como misteriosos para a literatura histórica dos jesuítas, que acreditavam que havia uma tribo indígena com indivíduos de pele branca, naquela região do Paraguai. Clastres trabalha com fontes históricas neste capítulo, pretendendo confrontá-las com
5 sua observação etnográfica. Ele se baseia nos relatos de expedições que visavam a captura e o extermínio de indivíduos Guayaki. Em “Ao revés”, Clastres apresenta a teoria da chefia indígena, com o exemplo Guayaki. O livro “A sociedade contra o Estado” se dedica a discutir este tema, no capítulo 3 das crônicas Clastres faz uma breve apresentação de como a chefia indígena é pensada entre os Guayaki. A selvageria indígena não é fruto de uma falta, mas de uma ação positiva da sociedade em manterse naquela posição. Segundo Alfred Métraux, “para poder estudar uma sociedade primitiva é preciso que ela já esteja um pouco apodrecida”, e é isto que ocorre com os Guayaki. Para Clastres, há um fundamento do poder selvagem que é dotado de certas características, tais como: o poder é discursivo e a fala pertence ao chefe; não há igualdade entre violência e poder, são de natureza oposta; conforme dizemos o poder está na palavra e quem fala é o chefe; o chefe não controla o grupo, mas sim o grupo controla o chefe e a recusa incessante destas sociedades em se tornarem coercitivas. Também neste capítulo Clastres estuda o povoamento dos povos Guarani, em específico o caso Guayaki. Seu método é comparativo, já que ele confronta os dados de historiadores jesuítas com suas observações etnográficas. Resta-nos uma dúvida: como explicar o déficit histórico de mulheres Guayaki? Clastres remete-se a vida ritual dos Guayaki. Por fim ele trata do ascetismo corporal Guayaki e afirma que “...é preciso que ele porte em si a marca da cultura” (1995:86). No quarto capítulo, “Gente Grande”, há duas preocupações principais: a relação entre gente grande (civilização/Ocidente/nós) e gente pequena (barbárie/indígenas/outros) e como se dá a relação entre gente grande e gente pequena entre os Guayaki. Clastres quer saber onde se dá fronteira espaço-temporal entre a civilização e a barbárie, no sentido construído pelo Ocidente em relação ao seu outro, ou seja, as populações amerídias. Na segunda parte, Clastres analisa a socialização das crianças Guayaki, ou seja, o ritual de transformação da criança em gente grande, tanto masculina quanto feminina. Em “As mulheres, o mel e a guerra” Clastres procura apresentar as conseqüências do contato entre paraguaios e índios Guayaki, sob uma perspectiva, digamos, pessimista e realista ao mesmo tempo. Uma das principais conseqüências é a diminuição no consumo de carne. Neste capítulo Clastres descreve algumas técnicas de caça e coleta Guayaki. Ele também apresenta a figura do Jaguar, símbolo do mundo em desordem, ele é a metáfora da desordem. A terceira parte do capítulo é a mais importante, onde as relações entre os sexos são discutidas. Em “A sociedade
6 contra o Estado”, o ideal troquista das Estruturas Elementares do Parentesco é posto em dúvida, já que a troca elementar introduz uma diferença elementar no seio da sociedade ameríndia: o déficit de mulheres. Entre os Guayaki ocorre algo semelhante, já que há uma relação desigual entre os grupos. As guerras são originárias deste déficit elementar, invertendo a relação entre violência e casamento de Lèvi-Strauss. As relações sexuais entre os Guayaki são naturalizadas, não são mistificadas nem escondidas das crianças. A troca matrimonial é a representação Guaiaky da guerra: o fim da guerra é o arranjo de mulheres. Clastres também descreve o ritual de casamento Guayaki, além de apresentar as restrições/ interdições, inerentes ao controle demográfico. No capítulo 5 Clastres apresenta como são as relações dos Guayaki com os estrangeiros, com os outros. Esta relação é potencialmente hostil, pois todos os “Outros” são inimigos potenciais e a linguagem da violência é a única possível. Aqui neste capítulo inaugura-se o trato com os mortos, que será concluído nos capítulos seguintes. O principal ritual analisado é o do assassinato (ritual) e o da punição ao assassino. No sexto capítulo podemos dizer que Clastres estuda a vida e a morte de um inadaptado, seguindo a linguagem de Margareth Mead, mas Clastres não utiliza este conceito, já que o pederasta não é resumido a um inadaptado cultural. Clastres faz uma distinção entre os espaços geográficos disponíveis para os Guayaki: a floresta (espaço da segurança, familiaridade, casa) e a savana (espaço perigoso, localidade do homem branco, risco de morte e de seqüestro). O pederasta é tido como a ordem Guayaki invertida, Krembegi é um homem que possui uma cesta e Chachubutawachigi tem o arco mas abdica da caça, por ser um bayja constante. Em homenagem a Montaigne, “Os canibais” tratam do estigma de o povo da floresta ser um povo canibal, perigoso. A principio, os discursos indígenas indicavam que canibais eram os “Outros”, tratava-se de uma prática suja, “nos Aché Gatu enterramos os corpos”, bem aos moldes ocidentais. Contudo, a literatura jesuíta indicava que os povos da floresta eram praticantes da antropofagia, inclusive os índios de pele clara do Paraguai. Mas, afinal, a antropofagia não seria uma desculpa para a guerra justa contra os indígenas? Clastres viu que não, os Guayaki são um povo antropofágico, mas se trata de um endocanibalismo, eles só comem seus mortos, o estômago é a morada dos mortos. Há também uma identidade entre exogamia e exocozinha. Quando alguém morre, a alma ainda ronda em torno do corpo sem vida, constituindo em um perigo excessivo, o canibalismo é uma técnica suplementar de luta contra as almas dos mortos.
7 O livro é concluído com uma reflexão pessimista acerca do futuro dos Aché Gatu e dos indígenas em geral, o contato com os europeus destruiu toda a riqueza do universo Guayaki, e expandindo a analise, toda a riqueza do povo americano pré-colombiano. Como afirmou Montaigne sobre a empreitada européia das grandes conquistas do século XVI: “ Tantas cidades arrasadas, tantas nações exterminadas, tantos milhões de povos passados no fio da espada, e a mais rica e bela parte do mundo transtornada pela negociação das pérolas e da pimenta! Mecânicas vitoriosas” (Montaigne apud Clastres, 1995:247). É a perda da liberdade em um fluxo que pretende modernizador, é a empresa do capitalismo mercantil do século XVI que não poupou os povos que são contra a economia, fim trágico de um livro trágico.