Bert Hellinger
RELIGIÃO, PSICOTERAPIA E ACONSELHAMENTO ESPIRITUAL
Tradução
NEWTON A. QUEIROZ
1ª Edição
EDITORA CULTRIX São Paulo, 2005
Bert Hellinger
RELIGIÃO, PSICOTERAPIA E ACONSELHAMENTO ESPIRITUAL
Tradução
NEWTON A. QUEIROZ
1ª Edição
EDITORA CULTRIX São Paulo, 2005
Bert Hellinger já documentou em muitas obras publicadas que a família está ligada não só por uma alma comum, mas também é conduzida por ela. O método das constelações familiares, criado por ele, mostrou que estamos incluídos em ordens e inter-relacionamentos maiores, que influenciam a nossa vida, independentemente dos nossos medos e desejos. Os efeitos profundos do Holocausto nas gerações seguintes é uma prova disso. Essas experiências vão além dos nossos ídolos e comportamentos tradicionais. Esses conhecimentos não justificam o aconselhamento espiritual realizado até hoje. É por isso que Bert Hellinger aborda essas questões religiosas de uma nova maneira.
BERT HELLINGER nasceu em 1925 e estudou Filosofia, Teologia e Pedagogia. Durante 25 anos foi membro de uma ordem católica. Depois, tornou-se psicanalista e, fazendo uso de diferentes procedimentos terapêuticos, chegou ao próprio sistema de terapia familiar. Bert Hellinger é autor de vários livros, entre eles: A eles: A Simetria Oculta do Amor, Constelações Familiares, Ordens do Amor e No Centro Sentimos Leveza, publicados pela Editora Cultrix. Peça catálogo gratuito à EDITORA CULTRIX Rua Dr. Mário Vicente, 368 – Ipiranga 04270-000 - São Paulo, SP E-mail:
[email protected] [email protected] http://www.pensamento-cultrix.com.br
PSICOLOGIA / RELIGIÃO
Numa cuidadosa seleção de cartas, constelações, conferências, histórias e entrevistas, dispostas em ordem cronológica, Bert Hellinger - criador de uma nova abordagem da Psicoterapia Sistêmica e autor do best-seller A Simetria Oculta do Amor, publicado pela Editora Cultrix - expõe, a partir de sua própria experiência, pensamentos críticos e inovadores sobre a religião em suas relações com a psicoterapia e o aconselhamento espiritual, questionando especialmente os danos que acarretam à alma determinadas imagens e práticas religiosas. EDITORA CULTRIX
Título original: Religion — Psychotherapie — Seelsorge Copyright © 2000 Bert Hellinger. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou usada de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópias, gravações ou sistema de armazenamento em banco de dados, sem permissão por escrito, exceto nos casos de trechos curtos citados em resenhas críticas ou artigos de revistas. A Editora Pensamento-Cultrix Ltda. não se responsabiliza por eventuais mudanças ocorridas nos endereços convencionais ou eletrônicos citados neste livro. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Hellinger, Bert Religião, psicoterapia e aconselhamento espiritual / Bert Hellinger; tradução Newton A. Queiroz. — São Paulo : Cultrix, 2005. Título original: Religion, Psychotherapie, Seelsorge. ISBN 85-316-0895-3 1. Aconselhamento pastoral 2. Orientação espiritual 3. Psicologia e religião 4. Psicoterapia 5. Religião I. Titulo. 05-3853 ____________________________________________________ CDD-261.515 índices para catálogo sistemático: 1.
Psicoterapia e religião 261.515
2.
Religião e psicoterapia 261.515 O primeiro número à esquerda indica a edição, ou reedição, desta obra. A primeira dezena à direita indica o ano em que esta edição, ou reedição, foi publicada.
Edição
Ano
1-2-3-4-5-6-7-8-9-10-11 11 Direitos de tradução para a língua portuguesa adquiridos com exclusividade pela EDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA. Rua Dr. Mário Vicente, 368 — 04270-000 — São Paulo, SP Fone: 6166-9000 — Fax: 6166-9008 E-mail:
[email protected] http://www.pensamento-cultrix.com.br que se reserva a propriedade literária desta tradução. Impresso em nossas oficinas gráficas.
05-06-07-08-09-10-
SUMÁRIO PREFÁCIO ..................................................................................................................... 10 AGRADECIMENTOS ..................................................................................................... 12 I — “Eu Creio na Experiência da Comunidade” . ........................................................ 12 O diálogo ........................................................................................................................ 12 A conversa essencial ...................................................................................................... 14 O risco ............................................................................................................................ 14 A experiência ................................................................................................................. 15 Os limites da experiência ............................................................................................. 16 A liberdade ..................................................................................................................... 17 O intercâmbio ................................................................................................................ 19 II — Do Céu que Faz Adoecer e da Terra que Cura ................................................... 20 A comunidade unida pelo destino ................................................................................ 21 O vínculo e suas consequências ................................................................................... 21 Semelhança e compensação . ......................................................................................... 21 A doença acompanha a alma ......................................................................................... 23 “Antes eu do que você” ................................................................................................. 23 O amor consciente .......................................................................................................... 24 “Compulsão de desaparecer” ........................................................................................ 25 “Mesmo que você vá, eu fico” . ..................................................................................... 26 “Eu sigo você” ............................................................................................................... 27 “Eu vivo ainda algum tempo” . ..................................................................................... 27 A fé que faz adoecer . ..................................................................................................... 28 O amor que cura ............................................................................................................ 29 Fé e amor ........................................................................................................................ 29 A doença como expiação ............................................................................................... 30 A expiação que duplica o sofrimento . ......................................................................... 31 A compensação que proporciona bênçãos .................................................................. 32 A expiação como fuga da relação ................................................................................. 33 Na terra, toda culpa é passageira ................................................................................. 34 A doença como expiação por alguém ........................................................................... 35 Doença e recusa de assumir os pais . ............................................................................ 35 Honrar os pais é honrar a terra .................................................................................... 35 III — Aconselhamento Espiritual ................................................................................ 38 Confiar ........................................................................................................................... 38 Recolhimento .................................................................................................................. 39 Desapego ........................................................................................................................ 40 Despedida ...................................................................................................................... 41 Experiência e pensamento ............................................................................................ 41 A palavra que cura ........................................................................................................ 43 O olhar ........................................................................................................................... 44 Olhar para a frente ........................................................................................................ 44 Imagens .......................................................................................................................... 44 Caminhos espirituais .................................................................................................... 45 Religião e amor .............................................................................................................. 48 Libertação ....................................................................................................................... 52
Matrimônio simulado .................................................................................................... 53 A alma ............................................................................................................................ 53 Doença e alma . ............................................................................................................... 55 Psicose ............................................................................................................................ 55 Parar ............................................................................................................................... 56 O bem e o mal ................................................................................................................ 56 A identificação com a resistência armada . .................................................................. 57 Abuso sexual .................................................................................................................. 57 Moral .............................................................................................................................. 57 Estupro ........................................................................................................................... 58 Aborto ............................................................................................................................. 58 Vergonha e pudor .......................................................................................................... 58 Destino ........................................................................................................................... 58 A força ............................................................................................................................ 59 A contradição ................................................................................................................. 60 Alma e espírito .............................................................................................................. 60 O pai ............................................................................................................................... 61 A retirada ....................................................................................................................... 61 A mãe .............................................................................................................................. 61 Os pais ............................................................................................................................ 62 Os mortos ....................................................................................................................... 62 IV — Máximas e Pequenas Histórias .......................................................................... 63 Introdução ...................................................................................................................... 63 O oculto .......................................................................................................................... 64 O vazio ........................................................................................................................... 65 O zelo ............................................................................................................................. 66 A expectativa ................................................................................................................. 67 O fogo ............................................................................................................................. 67 A terra ............................................................................................................................. 67 O melhor ........................................................................................................................ 69 Renúncia ........................................................................................................................ 69 A dependência ............................................................................................................... 70 O mesmo ........................................................................................................................ 70 V — Ordens do Amor . ................................................................................................... 71 A questão religiosa ....................................................................................................... 71 Preocupar-se por Deus .................................................................................................. 72 As mulheres que aparecem como Deus . ...................................................................... 73 O homem e a mulher...................................................................................................... 82 Renegando Deus ............................................................................................................ 83 A fé maior ....................................................................................................................... 85 O Deus maior ................................................................................................................. 86 Imagens de Deus ........................................................................................................... 87 O espiritual .................................................................................................................... 88 VI — Experiências de Deus .......................................................................................... 90 A religião em concordância .......................................................................................... 90 A psicoterapia em concordância .................................................................................. 91 O medo diante de Deus ................................................................................................ 91 O mistério ...................................................................................................................... 91
A atitude religiosa . ........................................................................................................ 92 O caminho ...................................................................................................................... 93 “Deus está morto” .......................................................................................................... 94 VII — Religião, Psicoterapia e Aconselhamento Espiritual ...................................... 94 Teologia feminista ........................................................................................................ 94 Experiências religiosas em psicoses ............................................................................ 95 A cautela ........................................................................................................................ 95 VIII — O Fácil e o Habitual ......................................................................................... 97 A compensação .............................................................................................................. 97 Caminhos da mística na vida cotidiana ...................................................................... 98 1. O caminho da purificação . ................................................................................... 98 2. O caminho da iluminação .................................................................................... 99 3. O caminho da união ............................................................................................. 99 A religião natural .......................................................................................................... 99 Conversão e apostasia ................................................................................................... 99 A perfeição ....................................................................................................................100 “Sou um ser humano” .................................................................................................. 101 O serviço .......................................................................................................................103 A devoção ......................................................................................................................104 Plenitude .......................................................................................................................105 Cura e salvação .............................................................................................................105 O bem supremo ............................................................................................................107 A consciência ................................................................................................................1 08 A parada ........................................................................................................................109 A noite do espírito .......................................................................................................110 Sabedoria ......................................................................................................................111 O fácil e o habitual ........................................................................................................112 O momento .................................................................................................................... 113 A humildade ................................................................................................................. 113 A serenidade ................................................................................................................. 115 O obscuro ......................................................................................................................115 A vítima .........................................................................................................................116 Os nomes .......................................................................................................................116 IX — Psicoterapia e Religião .......................................................................................119 A revelação ....................................................................................................................119 Contradições ................................................................................................................. 121 A oração .........................................................................................................................122 A mística .......................................................................................................................122 Religião natural ............................................................................................................124 Psicoterapia fenomenológica ......................................................................................124 Jesus ..............................................................................................................................126 A purificação ................................................................................................................128 X — Culpa ou Dor ........................................................................................................129 A alma da família .........................................................................................................129 Constelação familiar e terapia individual ................................................................. 130 A culpa dos pais não diz respeito aos f ilhos .............................................................132 O simbólico e o real .....................................................................................................134 A alma ...........................................................................................................................135
A recordação como exigência ......................................................................................138 Realidade interior e realidade exterior ......................................................................138 Frases que curam ..........................................................................................................139 Expiar por alguém ........................................................................................................140 Estímulos e acompanhamento .....................................................................................142 Crescimento e reparação .............................................................................................. 144 A vergonha como exigência .........................................................................................144 Rituais ...........................................................................................................................146 XI — A Presença dos Mortos na Nossa Vida ............................................................. 149 As constelações familiares ............................................................................................150 Envolvimentos sistêmicos ........................................................................................... 151 Transgressão de limites ............................................................................................... 152 Assassinos e vítimas ....................................................................................................152 Perfeição e plenitude ...................................................................................................153 A imagem de Deus .......................................................................................................154 O Deus grande ..............................................................................................................155 Vivos e mortos ..............................................................................................................156 A reconciliação .............................................................................................................157 A percepção ...................................................................................................................158 Palavra final .................................................................................................................. 159 XII — A Compreensão Por Meio da Renúncia ........................................................... 160 O entendimento ............................................................................................................160 A via científica e a via fenomenológica do conhecimento ....................................... 161 O processo .....................................................................................................................162 A renúncia .....................................................................................................................162 A coragem .....................................................................................................................163 A sintonia ......................................................................................................................163 Fenomenologia filosófica ............................................................................................ 164 Fenomenologia psicoterapêutica ................................................................................165 A alma ...........................................................................................................................166 Fenomenologia religiosa .............................................................................................167 O retorno .......................................................................................................................167 XIII — Religião e Psicoterapia ....................................................................................169 O método fenomenológico ..........................................................................................170 A alma e o eu na religião ............................................................................................. 170 As religiões reveladas ..................................................................................................171 A comunidade religiosa ............................................................................................... 171 A religião natural .........................................................................................................172 A religião como fuga ....................................................................................................173 Filosofia e Psicologia ...................................................................................................174 Psicoterapia e religiões reveladas ...............................................................................177 A prática profissional ..................................................................................................177 Corpo e alma ................................................................................................................. 178 A comunidade unida pelo destino .............................................................................. 180 O centro vazio ...............................................................................................................181 O círculo ........................................................................................................................182
PREFÁCIO Religião, Psicoterapia e Aconselhamento Espiritual são temas de que me ocupo há muito tempo. Durante 25 anos fui membro de uma ordem religiosa católica. Aí me formei em Filosofia e Teologia, tornei me sacerdote e trabalhei 16 anos, como missionário e professor, entre os zulus da África do Sul. Meu acesso à psicoterapia se deu por meio da Dinâmica de Grupos e da Psicanálise. Logo verifiquei, porém, que muitos métodos psicoterapêuticos raramente atingem as camadas mais profundas da alma. Pois, influenciados pela filosofia ocidental de inspiração cartesiana, conferem ao sujeito e ao eu um valor e uma posição que o isolam de seu entorno. Desmentindo a liberdade postulada por essa filosofia, o sujeito se experimenta como objeto de forças que dispõem sobre o seu eu, e depende delas. A terapia familiar, pelo uso do método das constelações familiares, evidencia que as pessoas não somente dependem de seus pais, pelos quais são influenciados e marcados de muitas maneiras, como também eventualmente se enredam nos destinos de outros membros da família, frequentemente através de várias gerações, sem que tomem consciência disso. Ilustro isso com exemplos. Certa mulher imitava uma tia que ficou solteira para cuidar de seus pais e, por essa razão, foi desprezada pela família. A sobrinha igualmente renunciara ao casamento para cuidar de seus pais, e nem ela nem os outros membros da família estavam conscientes dessa conexão. Um rapaz sentia um desejo incontrolável de suicidar-se. Mediante uma constelação familiar verificou-se que o pai dele queria seguir seus companheiros mortos na guerra, e o filho lhe dizia interiormente: “Vou morrer para que você fique, querido papai”. Nesse processo se evidencia que os membros da família são unidos e
dirigidos por uma alma comum, de que participam. Ela obedece a ordens que permanecem amplamente ocultas para os membros da família e só se depreendem pelos seus efeitos. As transgressões dessas ordens, mesmo que sejam inconscientes, acarretam efeitos funestos e destinos trágicos, ao passo que o seu reconhecimento produz efeitos benéficos. Vivenciamos ainda, nas constelações familiares, que estamos ligados a ordens e contextos ainda mais amplos, que nos tomam a seu serviço, sem consideração para com nossos desejos e medos. Por exemplo, na descendência de vítimas do holocausto, muitas vezes um membro da família precisa identificar-se secretamente com algum criminoso nazista. Ao mesmo tempo, na descendência dos perpetradores, algum filho ou neto se identifica com suas vítimas e deseja sofrer e morrer em solidariedade a elas. Em ambos os casos essa conexão não é percebida. Fica bem claro que nossas imagens tradicionais de Deus e nossas posturas religiosas já não resistem a essas experiências. Evidencia-se também que, em face delas, já não se justifica a tradicional cura de almas, em seu sentido mais amplo. Por essa razão, fui obrigado a me defrontar de novo com a questão religiosa. Este livro documenta o resultado desses esforços. Os diferentes capítulos descrevem os efeitos produzidos na alma por determinadas imagens e atitudes. Não obstante, o mistério religioso em si permanece intocado, e é respeitado como tal. Todos os capítulos giram em torno do mesmo tema. Eles não dependem uns dos outros, e podem ser lidos separadamente. Foram ordenados aproximadamente pela sequência cronológica, o que deixa perceber um certo desenvolvimento e aprofundamento de minhas percepções no decorrer dos anos. Fica igualmente claro que todas as experiências são transitórias. Assim o leitor também se sentirá estimulado a confiar na própria
experiência e a se deixar conduzir por ela.
BERT H ELLINGER
AGRADECIMENTOS Sou especialmente grato à Dra. Flitner, que me incentivou a publicar um livro sobre este tema. No trabalho da coleta dos textos, recorri também a algumas passagens das seguintes publicações anteriores: Ordnungen der Liebe, 1 Verdichtetes [Condensações], F inden, was wirkt [Encontre o que faz efeito] e Die Mitte fühlt sich leicht. 2 Otto Betz e Günther Linemayr me proporcionaram importantes estímulos. Hartmut Weber, Gabriele ten Hövel e Tilmann Moser, como parceiros de diálogos e entrevistas, deram importantes contribuições a alguns capítulos. Norbert Linz me forneceu valiosas indicações. A todos eles expresso o meu cordial agradecimento. Agradeço também a todos os que, em mesas redondas ou em cursos, me estimularam e provocaram a refletir mais profundamente sobre a dimensão religiosa da psicoterapia e do aconselhamento espiritual.
I — “Eu Creio na Experiência da Comunidade” 3 O diálogo
Quando ouço um católico dizer: “Eu creio na experiência da 1 Ordens do Amor, publicado pela Editora Cultrix, São Paulo, 2003. (N.T.) 2 No Centro Sentimos Leveza, publicado pela Editora Cultrix, São Paulo, 2004- (N.T.) 3 Palestra na Südwestfunk, 1972.
comunidade”, isso desperta em mim ecos de esperança e de dúvida. Meus desejos me animam a esperar, mas minhas experiências cotidianas na Igreja me levam a duvidar. Assim, quando repito a mesma afirmação, isso reflete menos minha situação atual do que um programa para o futuro. Começo relatando uma vivência pessoal. Em 16 de outubro do ano passado, abria-se o Sínodo Diocesano de Sankt Polten, no mesmo dia e local em que eu começava um seminário de dinâmica de grupos. No fim da tarde, várias pessoas corriam pelos corredores, chamando em alta voz os participantes do sínodo que não haviam retornado à sessão. Muitos tinham saído mais cedo, e não havia mais quórum para decidir. Mero acaso? Talvez. Sabemos, porém, que, quando se discute a renovação da Igreja, muitos cristãos não se dispõem mais a participar. Já se cansaram e se retraem. Alguns anos atrás, nossas expectativas eram mais otimistas. Naquela época, depositávamos uma grande esperança na conversa entre nós — no diálogo, como dizíamos — e testávamos novas estruturas que o viabilizariam. Essas esperanças não se concretizaram. Muitas formas de organização pós-conciliares acabaram se transformando em exercícios obrigatórios sem força transformadora. As concessões formais não foram suficientes para banir o medo das consequências de um diálogo desprotegido. Nos odres novos das estruturas melhoradas conservase ainda o mesmo vinho velho da intimidação e da tutela. Pode-se perguntar: onde encontramos grupos eclesiais em que podemos falar de nossa experiência pessoal e das provações da fé, sem recear que alguém se levante e coloque em dúvida ou mesmo conteste nossa vivência pessoal? Quantas vezes ainda precisaremos ver cristãos desestimularem seus iguais com expressões de espanto e menosprezo, sorrirem com indulgência ou se insurgirem indignados quando alguém comenta algo pessoal, ou se incapacitarem mutuamente apelando para autoridades ou escudando-se em citações
de dogmas e leis? Como resultado, não ousamos dar fé a nossas próprias vivências, nem confiamos que Deus se manifesta e atua em nossa experiência pessoal individual. Buscamos refúgio em debates sobre estruturas ideais e conjuramos com ideologias nossa responsabilidade pessoal. Nós nos admoestamos, julgamos e ameaçamos mutuamente com critérios de avaliação que não foram confirmados por nossa vivência pessoal. Por essa razão, não é de admirar que nossas longas discussões degenerem em fórmulas vazias, em exigências descompromissadas, em leis mortas e num conformismo geral. A conversa essencial
Pouco espaço restou, na vida pública dos grupos oficiais de igreja, para a conversa essencial. Entendo por este nome a conversa sobre a nossa experiência pessoal da fé, as tentações e dúvidas a respeito dela, a conversa sobre os problemas que nos angustiam e a noite do espírito, que às vezes parece interminável. Sob o nome de conversa essencial, entendo também a conversa sobre a mensagem transformadora de Jesus em nosso dia a dia: como ela orienta e purifica, como exige uma nova liberdade e abre caminho para a esperança e a força. Eu me pergunto: Por que é tão raro na Igreja esse diálogo pessoal? O que me impede de levar a sério minha experiência com a fé, e de manifestá-la na conversa? Quando me confronto com a experiência viva que tive a respeito da fé, e reconheço o que essa experiência pessoal exige de mim, o que pode acontecer comigo? O risco
Muita coisa! — penso eu. Dentro da Igreja institucional, a conversa pessoal sobre a fé é um risco, pois nesse diálogo preciso colocar-me inteiramente, e fico totalmente exposto. Coloco principalmente em risco minha relação com a Igreja, pois os seus dirigentes se arrogam o direito de medir a minha experiência pela sua. Podem rejeitar
minha experiência, julgá-la perigosa ou mesmo errada. Podem exigir de mim que eu a renegue, que abandone meu questionamento e minha busca se não caminharem na direção que me predeterminaram. Como medida extrema, podem me repreender publicamente e me excluir da Igreja visível. Talvez os dirigentes da Igreja não façam uso dessa prerrogativa em casos concretos. Mas nesse caso sempre se encontram outros membros da Igreja que, sob a proteção da autoridade e apelando para ela, se arrogam o direito de julgar a expressão de minha experiência e me intimidam e ameaçam quando ela não se coaduna com a deles. Por essa razão, é difícil encontrar um grupo eclesial em que se escape dessa pressão, e é tão raro encontrarmos na Igreja um diálogo realmente aberto. Na Igreja, experimento também que outras pessoas se julgam responsáveis por minha relação com Deus. São pais e pastores, diretores espirituais, professores, juízes e muitos outros que, com uma naturalidade um tanto ingênua, se julgam autorizados a interferir em minha vida em nome de Deus, e a dizer-me autoritariamente quem ele é, o que ele quer e como ele julga. No entanto, não consigo perceber que eles tenham à sua disposição algo mais do que eu. Eles igualmente só podem exibir a sua experiência pessoal. Entretanto, também para eles, Deus habita numa luz inacessível. A experiência
Pode-se objetar que os adeptos da autoridade religiosa não apelam para sua experiência pessoal, mas para a revelação divina, o dogma e a lei da Igreja. Se, porém, pesquisamos imparcialmente e nos perguntamos como realmente acontece uma revelação divina, como se chega à proclamação de um dogma e de uma lei divina, e como se origina uma exigência religiosa a outras pessoas, deparamos também, e exclusivamente, com experiências pessoais, pois toda revelação divina se manifesta como uma experiência pessoal, que é transmitida
a outros. E os dogmas e as leis religiosas são apenas, em sua origem, a interpretação pessoal e a utilização dessa experiência. Em nenhum caso a revelação, o dogma eclesiástico e as prerrogativas de uma autoridade religiosa ultrapassam o âmbito da experiência pessoal, de uma forma demonstrável para outras pessoas. Por conseguinte, quando alguém apela para a revelação, o dogma, a lei divina ou alguma outra autoridade religiosa, não está apelando para algo que seja certo e seguro, independentemente de uma experiência pessoal. Apela sempre e unicamente para uma experiência pessoal. Isso gera consequências. Se a revelação, o dogma, a lei e toda autoridade religiosa são expressões de uma experiência pessoal, só podem merecer fé e obrigar outras pessoas na medida em que sua pretensão encontre um eco na experiência pessoal dos receptores e seja validada por ela. Pois se alguém tem o direito de confiar em sua experiência pessoal, os outros igualmente possuem esse direito. E, ainda mais: se nas questões da fé eu me reporto à minha experiência pessoal, então a experiência decisiva é a minha, não a de outra pessoa. Isso não quer dizer, entretanto, que as experiências religiosas dos outros não tenham importância para mim. Pelo contrário, elas estimulam, corrigem e enriquecem minhas próprias experiências. Isso, porém, não significa que o outro possa impor-me, sem mais nem menos, a sua própria experiência. Só posso agir com responsabilidade quando me baseio na minha própria experiência. A experiência de outra pessoa só se torna válida e obrigatória para mim quando é confirmada pela minha. Quando, portanto, na minha responsabilidade pessoal, dou fé a uma mensagem religiosa e me submeto a ela, o decisivo para mim é o efeito que essa mensagem produz em mim. Assim eu creio, antes de tudo e em primeiro lugar, em minha própria experiência. Os limites da experiência
É fácil objetar-me que a experiência própria é, muitas vezes, ilusória. É verdade. Reconheço-a como pouco confiável, simplesmente pelo fato de que ela evolui e minhas intuições também mudam no decurso de minha experiência. O que hoje é importante para mim talvez eu abandone mais tarde. Porém, nas questões de fé, estou entregue exclusivamente a essa minha experiência pessoal. Se ela é insegura, a experiência da outra pessoa também o é. E, se minha experiência não é definitiva, porque está em processo de mudança e desenvolvimento, a experiência do outro tampouco é imutável. Também não me adianta que o outro apele para sua maior experiência. Tenho de me decidir baseado em minha própria experiência atual, pois só dela disponho e só por ela posso responder. Portanto, embora pareça insegura, a experiência pessoal é a mais segura que posso ter. A liberdade
Muitos são assaltados pelo medo, tanto em face da própria liberdade, quanto da autoridade eclesiástica. Neste particular talvez nos ajude uma promessa da Sagrada Escritura. Aquele que foi intimidado em nome da Bíblia, também pode escutar nela outra palavra que incentiva à liberdade e à confiança na própria experiência religiosa. No profeta Jeremias e na Epístola aos Hebreus encontramos as seguintes palavras sobre a Nova Aliança: “Esta é a aliança que selarei com a casa de Israel depois desses dias, diz o Senhor: Colocarei minha lei em seus sentidos e a escreverei em seus corações. Então serei o seu Deus, e eles serão meu povo. E ninguém precisará mais ensinar seu próximo ou seu irmão, dizendo: ‘Reconhece o Senhor!’, pois todos me conhecerão, dos menores aos maiores — porque perdoarei suas iniquidades e não me lembrarei mais de seus pecados” (Jer. 31, 33-34; Hebr. 8, 10-12). Esse importante texto é para mim uma dessas palavras cheias de vida e de força que, mais cortantes do que uma espada de dois gumes, penetram no sentimento mais íntimo. É uma dessas que atingem os pensamentos mais secretos, trazendo-os à luz e corrigindo -os. Diante
dessa palavra, sinto que nossa maneira habitual de falar e ensinar, de orientar e julgar, se revela como profundamente não-resolvida. Aquilo que muitos consideram a expressão suprema da fé e da fidelidade — a sujeição incondicional a uma autoridade religiosa —, eu identifico, de acordo com essa palavra, como pusilanimidade e temor servil. E, por detrás do zelo sagrado, distingo agora, com mais segurança, a presença oculta da arrogância e do ódio. Nessa palavra da Bíblia, são prometidos a todos os que participam da Nova Aliança o conhecimento da lei e o conhecimento do Senhor, por meio da experiência pessoal de cada um. E toda tentativa de ensinar outras pessoas sobre o conhecimento de Deus, de sua lei e seu julgamento, é expressamente rejeitada como usurpação de uma prerrogativa divina. A cada um de nós é assegurado o direito e o dever de confiar em sua própria experiência religiosa. Essa confiança não nos torna culpados, mas livres. Entendo essa palavra no seguinte sentido: o conhecimento do Senhor e de sua lei me é possível, justamente porque posso confiar no amplo e definitivo perdão de minha culpa. Pois somente confiando nesse perdão abrangente é que encontro a força de escutar aquilo que, em minha experiência diariamente renovada, percebo interiormente como sendo conhecimento do Senhor e exigência de Deus, independentemente de qualquer autoridade externa. Fazendo um balanço, resumo em três teses minhas ponderações anteriores: 1. O diálogo sobre a experiência pessoal da fé é dificultado pela Igreja. O apelo à autoridade funciona como o principal instrumento de pressão. 2. Toda autoridade religiosa se baseia, em última análise, na experiência pessoal. Por isso, minha própria experiência religiosa não pode ser desvalorizada pelo apelo a uma autoridade. 3. Também a tradição bíblica reconhece o primado da revelação
pessoal. O intercâmbio
O resultado dessas reflexões é o seguinte: Quando dizemos: “Creio na experiência da comunidade”, isso não significa conformidade ou sujeição coletiva a uma doutrina religiosa. Nada tem a ver com a uniformidade de opinião e de expressão característica das organizações totalitárias. Pois a fé recusa qualquer pressão externa, e a comunidade se caracteriza justamente pelo fato de que seus membros não se limitam mutuamente em sua integridade pessoal, mas a reconhecem e promovem. A melhor imagem que faço da fé na experiência da comunidade é a de uma banda de jazz- Cada executante tem seu próprio instrumento, toca sua própria melodia e desenvolve ao máximo suas ideias e sua musicalidade. Não obstante, todos se ouvem mutuamente. Cada um se inspira nas melodias dos outros, e procura um complemento, uma provocação, um contraste, uma variação, uma harmonia com elas. Os músicos se articulam sem abandonar suas próprias inspirações e sem se impedirem ou se sobreporem mutuamente. É justamente no máximo desenvolvimento individual que alcançam um máximo resultado comum, uma grande riqueza de melodia e de ritmo, numa grande variedade de sons. Aplicando essa imagem à Igreja, percebemos que não sobrevirá nenhum caos se dermos uma chance autêntica à experiência pessoal da fé e à livre partilha dessa experiência. Imaginemos um grupo de cristãos, todos igualmente convencidos do valor único da experiência pessoal da fé. Nesse grupo ninguém precisa temer que sua experiência seja questionada ou menosprezada, ou que ele próprio seja ridicularizado ou atacado. Por conseguinte, cada um pode encarar corajosamente seus sentimentos, angústias, dúvidas e luzes, e levá-los a sério, defrontando-se, de forma diferenciada, com os próprios desejos, motivações e conflitos. Ninguém empurra para outros a responsabilidade por sua fé. Cada
um é solicitado, e assim adquire para si e para os outros uma nova e única importância. Nesse grupo, ninguém busca sua segurança religiosa apegando-se a doutrinas e mandamentos. Por isso, a pessoa não se expõe à tentação de usar o dogma e a lei como moedas para distinguir quem é pobre e quem é rico diante de Deus. O dogma e a lei não são tomados como padrões para se avaliar o verdadeiro e o falso, o bom e o mau. A palavra do outro jamais é dirigida a mim como uma exigência ou um julg ju lgam amen ento to,, mas ma s como co mo expr ex pres essã sãoo de uma um a expe ex peri riên ênci ciaa pess pe ssoa oal,l, de um sentimento ou de uma questão. Com isso, posso escutar sua palavra com muito mais receptividade, e ela ganha para mim uma relevância imediata. Para corresponder à comunicação pessoal do outro, preciso dar-lhe espaço, abrir-me a ela, deixar-me sensibilizar por ela. Somente assim perceberei se nossas experiências se coadunam, ou se a experiência do outro permanece estranha a mim. Assim, eu retomo ao outro, como resposta, o que senti em mim quando entrei em contato com a experiência dele enquanto permanecia em contato comigo mesmo. Então acontece com ele o mesmo que se passou antes comigo. Ele acolhe minha comunicação, dá-lhe espaço, coteja-a com sua própria experiência e me dá, como resposta, o eco que minha experiência despertou nele. Assim nasce uma troca de experiências pessoais de fé. Cada interlocutor permanece livre, e somente ele é responsável por si mesmo. Não obstante, cada um é exigido e promovido pelo outro. Essa conversa sobre a fé se torna um diálogo.
II — Do Céu que Faz Adoecer e da Terra que Cura 4 O que se diz aqui sobre o céu descreve o que leva a doenças graves, acidentes ou suicídios na comunidade unida pelo destino, constituída 4 Conferência no Congresso Internacional sobre Medicina e Religião, em Garmisch-Partenkirchen, Alemanha, 1993.
pela família e pelo clã familiar. E o que se diz sobre a terra descreve o que, às vezes, consegue reverter tais destinos. Doenças graves, acidentes e suicídios na família e no clã familiar são desencadeados por atos associados a imagens do céu, de sofrimento e expiação por outras pessoas, de reencontro após a morte e de imortalidade pessoal. Essas imagens seduzem a um modo mágico de pensar, desejar e agir, fazendo o enfermo ou o moribundo acreditar que, se assumir voluntariamente um sofrimento, poderá salvar outros de seus sofrimentos, mesmo que lhes tenham sido impostos pelo destino. A comunidade unida pelo destino
Pertencem a essa comunidade, em que esse pensamento atua de modo nefasto: os irmãos, os pais e seus irmãos, os avós, eventualmente algum bisavô, e todos os que cederam lugar a alguma dessas pessoas. Entre os que cederam lugar incluem-se os parceiros anteriores, cônjuges ou noivos dos pais e dos avós, e ainda todos aqueles cujo desaparecimento ou desgraça possibilitou a alguém o acesso a cesso ao grupo familiar ou qualquer outra vantagem. O vínculo e suas consequências
Nessa comunidade unida pelo destino, todos se ligam a todos. Os vínculos mais fortes são os que ligam os filhos aos pais, os irmãos entre si e os parceiros entre si. Um vínculo especial de destino liga também os membros subsequentes aos que lhes cederam o lugar, principalmente se estes tiveram um destino fatal: por exemplo, os filhos do segundo casamento do pai à primeira mulher dele, falecida no parto. O vínculo liga, menos fortemente, os pais aos filhos e, menos ainda, os que cederam lugar aos que o obtiveram: por exemplo, uma ex-noiva do marido à atual mulher dele. Semelhança e compensação
O vínculo faz com que os membros mais novos e mais fracos da
família queiram reter os mais antigos e mais fortes, para que não se vão, ou pretendam segui-los se já partiram. Também por efeito do vínculo, os membros que obtiveram vantagem querem assemelhar-se aos que ficaram em desvantagem: filhos saudáveis a pais doentes, filhos inocentes a pais culpados. O vínculo faz ainda com que os membros saudáveis da família se sintam responsáveis pelos membros doentes, os inocentes pelos culpados, os felizes pelos infelizes e os vivos pelos mortos. Em consequência disso, os que se percebem per cebem em vantagem também se dispõem a arriscar e sacrificar sua saúde, inocência, vida ou felicidade pela saúde, inocência, vida ou felicidade dos outros, pois alimentam a esperança de que, se renunciarem à própria vida e felicidade, poderão assegurar ou salvar a vida e a felicidade de outros membros dessa comunidade unida pelo destino, e até mesmo restituir e recuperar a vida e a felicidade dos que as tenham perdido. Na comunidade unida pelo destino, constituída pela família e pelo clã familiar, reina, portanto, em razão do vínculo e do amor que lhe corresponde, uma necessidade irresistível de balanceamento entre a vantagem de uns e a desvantagem de outros, entre a inocência e sorte de uns e a culpa e desgraça de outros, a saúde de uns e a doença de outros, a vida de uns e a morte de outros. Em razão dessa necessidade, se um foi infeliz, o outro igualmente quer ser infeliz; se um adoeceu ou sente culpa, um outro, saudável ou inocente, também fica doente ou se sente culpado; e se um morreu, um outro, que lhe é próximo, também deseja morrer. Dessa maneira, no interior dessa estreita comunidade unida pelo destino, o vínculo e a necessidade de compensação levam ao balanceamento e à participação de uns na culpa e na doença, no destino e na morte de outros. Tenta-se Tenta- se pagar a salvação do outro com a própria desgraça, a cura do outro com a própria doença, a inocência do outro com a própria culpa ou expiação, e a vida do outro com a própria morte.
A doença acompanha a alma
Essa necessidade de equiparar e compensar cria um anseio pela doença e pela morte. Assim, a enfermidade é condicionada pela alma. Por essa razão, a cura requer ainda, além da assistência médica no sentido estrito, uma assistência experiente nas necessidades da alma, a ser prestada pelo próprio médico ou por outra pessoa em apoio ao tratamento médico. Entretanto, ao passo que o médico emprega métodos ativos para curar a doença, o assistente da alma de preferência se retrai, pois vê-se, com assombro, em presença de forças com que não tem a pretensão de medir-se. Em sintonia com essas forças, e atuando mais como seu aliado do que como adversário, ele se esforça por reverter o destino fatal. Citarei um exemplo. “Antes eu do que você”
Numa sessão de hipnoterapia em grupo, uma jovem mulher que sofria de esclerose múltipla reviu a cena em que ela, então criança, se ajoelhou diante da cama de sua mãe paralítica e fez este propósito: “Querida mamãe, antes vá eu do que você”. Os participantes desse grupo se emocionaram, ao testemunhar o grande amor que uma criança sente por seus pais, e a mulher sentiu-se em paz consigo mesma e com seu destino. Uma participante, porém, não conseguindo suportar esse amor que se dispôs a assumir, em lugar da mãe, a doença, as dores e a morte, disse ao terapeuta: “Gostaria tanto que você pudesse ajudá-la”. O terapeuta ficou consternado. Foi como se, com suas palavras, ela tivesse anulado tudo. Pois como ousaria alguém tratar como algo de mau o amor dessa filha? Não iria com isso molestar sua alma, agravando seus sofrimentos, ao invés de mitigá-los? Não iria a filha ocultar ainda mais seu amor pela mãe e apegar-se tanto mais fortemente à sua esperança e à decisão que tinha tomado, de salvar a mãe querida por meio de seu próprio sofrimento? Outro exemplo. Uma mulher jovem, que sofria igualmente de
esclerose múltipla, configurou num grupo, com a ajuda de outros participantes, sua família de origem e a rede de relações que nela atuava. Seu pai foi colocado à esquerda da mãe. Diante deles ficaram a paciente, que era a filha mais velha, à sua esquerda seu irmão do meio, morto aos 14 anos de insuficiência cardíaca, e, mais à esquerda, um pouco mais afastado, o irmão mais novo. O terapeuta pediu ao representante do irmão morto que saísse pela porta. Numa constelação familiar, isso simboliza a morte. Quando ele saiu, a fisionomia da filha se abriu de repente e também a mãe se sentiu bem melhor. Então o terapeuta mandou que se retirassem também o irmão mais novo e depois o pai, pois notou que ambos também se sentiam atraídos para fora. Quando todos os homens saíram — significando que estavam mortos —, a mãe se aprumou triunfante. Ficou claro que, fossem quais fossem seus motivos, ela se sentia destinada à morte, e ficara aliviada pela disposição e vontade dos outros de abraçar a morte em seu lugar. Então o terapeuta chamou os homens de volta e fez com que a mulher saísse. De repente, todos se sentiram livres da obrigação de participarem do destino da mãe e ficaram bem. Porém o terapeuta suspeitava que a esclerose múltipla da filha também estava associada à obrigação de morrer que a mãe sentia. Por isso chamou a mãe de volta, colocou-a à esquerda do pai e colocou a filha ao lado da mãe. Então disse à filha que encarasse sua mãe com amor e lhe dissesse, olhando-a nos olhos: “Mamãe, eu faço isso por você!” Quando ela disse isso, todo o seu rosto se iluminou e o sentido e finalidade de sua doença ficou claro para todos os presentes. Portanto, o que o médico ou um assistente da alma tem o direito de fazer aqui, e o que deve evitar? O amor consciente
Trazer à luz o amor de um filho é frequentemente a única coisa que um assistente experimentado pode e deve fazer. Seja qual for a carga
que um filho tenha tomado sobre si em virtude desse amor, ele se sente nobre e bom, por estar de acordo com sua consciência. Quando, porém, com a ajuda de um assistente compreensivo, o amor da criança pode vir à luz, talvez se revele ao mesmo tempo a impossibilidade de alcançar seu objetivo. Pois esse amor espera poder, pelo seu sacrifício, curar a pessoa querida, protegê-la da desgraça, expiar talvez sua culpa e tirá-la da infelicidade; e até mesmo, se essa pessoa já morreu, espera poder resgatá -la dos mortos. Entretanto, quando se revela, juntamente com o amor da criança, o caráter infantil de seu objetivo, a criança, que agora já é adulta, percebe, ainda que dolorosamente, que com seu amor e seu sacrifício não pode superar a enfermidade, o destino e a morte da pessoa querida, e que precisa defrontar-se com esse destino, sem poder mas com coragem, aceitando-o como ele é. Assim, os objetivos do amor infantil e os meios usados para alcançálos passam por uma “desilusão” quando se manifestam, pois fazem parte de uma fantasia mágica do mundo que não subsiste diante do saber de um adulto. Porém o amor subsiste. Trazido à luz, ele procur a caminhos que também resistam à prova da verdade. O mesmo amor que causou a doença busca, quando se associa à compreensão, uma outra solução que seja consciente, neutralizando, assim, se ainda for possível, o agente causador da enfermidade. Neste particular, o médico e outros assistentes talvez possam apontar direções. Mas isso só será possível se reconhecerem o amor da criança, para que ele fique em evidência, e o honrarem, para que possa dirigir-se a um objetivo novo e maior. “Compulsão de desaparecer”
Como fator condicionante de uma enfermidade mortal, reconhecemos com frequência o propósito de um filho ou uma filha, diante de uma pessoa amada: “Antes desapareça eu do que você”. Na anorexia o propósito é o seguinte: “Antes desapareça eu do que
você, querido papai”. Na esclerose múltipla o propósito foi, no exemplo que vimos: “Antes desapareça eu do que você, querida mamãe”. Uma dinâmica semelhante acontecia antigamente com a tuberculose, que talvez por causa disso era denominada entre nós “compulsão de desaparecer”. A mesma dinâmica está presente também no suicídio e no acidente fatal. “Mesmo que você vá, eu fico”
Quando essa dinâmica se manifesta, numa conversa com o enfermo, qual seria a solução que ajuda e cura? Como acontece em toda boa descrição de um problema, a solução já está contida na descrição e atua por seu intermédio. Ela começa quando se traz à luz a frase que provoca a doença, e o paciente, com toda a força do amor que o move, a diz com ênfase, colocando-se diante da pessoa amada: “Antes desapareça eu do que você!” Nesse processo é importante que a frase seja repetida tantas vezes quantas forem necessárias, até que a pessoa amada seja percebida e reconhecida pelo paciente como um interlocutor e, portanto, apesar de todo o amor, como outra pessoa. Caso contrário, permanecem a simbiose e a identificação, fracassando a diferenciação e a separação que curam. Quando se consegue dizer amorosamente essa frase, ela circunscreve os limites da pessoa querida e do próprio eu, separando o próprio destino do destino da pessoa amada. Essa frase obriga quem a diz a perceber o amor da outra pessoa e não apenas o próprio amor. E a obriga a reconhecer que aquilo que se deseja fazer em lugar da outra pessoa representa para ela antes um peso do que uma ajuda. Então é o momento de dizer à pessoa amada uma segunda frase: “Querido pai, querida mãe, querido irmão, querida irmã — ou seja quem for — mesmo que você vá eu fico”. Às vezes, especialmente quando se diz a frase ao pai ou à mãe, o paciente ainda acrescenta: “Querido pai, querida mãe, abençoe-me, mesmo que você vá e eu
ainda fique”. Cito um exemplo. O pai de uma mulher tinha dois irmãos deficientes: um era surdo, o outro psicótico. Ele se sentia atraído por seus irmãos e, por fidelidade a eles, desejava partilhar seu destino, pois não suportava a própria felicidade em face da desgraça deles. Mas sua filha percebeu o perigo e saltou na brecha. Ela se colocou ao lado dos tios, em lugar de seu pai, e em seu coração disse a ele: “Querido papai, antes desapareça eu, e me m e junte aos seus irmãos, do que você” e “Querido papai, antes partilhe eu a desgraça com eles do que você”. E ficou anoréxica. Qual seria a solução para ela? Ela precisaria pedir aos tios, mesmo que só interiormente: “Por favor, abençoem meu pai se ele fica fic a conosco; e me abençoem se fico com meu pai”. “Eu sigo você”
Por trás do desejo de desaparecer do pai ou da mãe, que o filho procura impedir com a frase “Antes eu do que você”, existe frequentemente nos pais uma outra frase. Eles a dizem, como filhos, a seus pais ou irmãos, quando estes morreram cedo, contraíram uma longa enfermidade ou ficaram inválidos. A frase é: “Eu sigo você”. Mais exatamente: “Eu sigo você em sua doença” ou “Eu sigo você na morte”. Na família, a frase que atua primeiro é “Eu sigo você”, voc ê”, que é também uma frase infantil. Mais tarde, porém, quando essas crianças se tornam pais, seus filhos os impedem de executá-la executá -la e então dizem, por sua vez: “Antes eu do que você”. “Eu vivo ainda algum tempo”
Quando a frase “Eu sigo você” foi detectada como c omo o quadro de fundo de enfermidades graves, acidentes ou tentativas de suicídio, a solução que ajuda e cura consiste em que o filho, com toda a força do amor que o move, diga com ênfase, encarando a pessoa amada: “Querido pai, querida mãe, querida irmã — ou seja quem for —, eu sigo você”. Também nesse caso é importante fazer com que a frase seja repetida
tantas vezes quantas forem necessárias, até que a pessoa amada seja percebida e reconhecida como uma pessoa autônoma que, apesar de todo o amor, é separada do próprio eu. Então o filho reconhece que seu amor não ultrapassa os limites que o separam do ente querido, e que ele precisa deter-se diante desses limites. Nesse caso, a frase o obriga a reconhecer o amor da pessoa amada, tanto quanto o seu, e a entender que ela carrega e cumpre melhor o seu destino quando ninguém a segue nele, muito menos o seu próprio filho. Então o filho pode dizer ao morto querido também uma segunda frase, que realmente o dispensa e libera da obrigação do seguimento fatal: “Querido “Querid o pai, querida mãe, querida irmã — ou seja quem for — , você morreu, eu vivo ainda algum tempo e então também morrerei”. Ou ainda: “Eu realizo a vida que me foi dada, enquanto durar, e então ent ão também morrerei”. Quando o filho vê que um de seus pais quer seguir na doença e na morte alguém de sua família de origem, ele precisa dizer: “Querido pai, querida mãe, mesmo que você vá eu fico” ou então: “Mesmo que você vá eu lhe dou um lugar de honra, e você sempre continuará sendo meu pai (minha mãe)”. Ou ainda, se um um dos pais cometeu suicídio: “Eu me curvo diante de sua decisão e diante de seu destino. Você sempre continuará sendo meu pai (minha mãe), e eu sempre continuarei sendo seu filho (sua filha)”. A fé que faz adoecer
As duas frases “Antes eu que você” e “Eu “ Eu sigo sigo você” são ditas e realizadas com a consciência tranquila e com a certeza da inocência. Ao mesmo tempo, correspondem à mensagem cristã e ao modelo cristão, por exemplo, à palavra de Jesus no Evangelho de São João: “Ninguém tem maior amor do que quem dá a vida por seus amigos”, e o apelo a seus discípulos para segui-lo, no caminho da cruz, até a morte. A doutrina cristã da redenção por meio do sofrimento e da morte, e o
exemplo dos santos e heróis cristãos reforçam a fé e a esperança da criança de que ela pode substituir outras pessoas, assumindo em seu lugar a doença, a desgraça ou a morte. Ou ainda que, se pagar a Deus e ao destino o mesmo preço, poderá salvar outras pessoas da enfermidade e do sofrimento assumindo-os em seu lugar, e arrancar da morte essas pessoas mediante a sua própria morte. Ou ainda, se não conseguir na terra uma salvação para as pessoas queridas, que poderá reencontrá-las por meio de sua própria morte. O amor que cura
Quando existe esse tipo de envolvimento, a cura e a salvação ultrapassam os limites da simples intervenção médica e terapêutica. Elas exigem uma realização religiosa, uma conversão a algo maior, que ultrapasse o pensamento mágico e o desejo mágico, e neutralize ambos. Esse algo maior — em oposição à promessa enganosa do céu — seria a terra. Quem afirma a terra, afirma a firma igualmente sua plenitude e o fato de ter princípio e fim. Às vezes, o médico ou outro assistente pode preparar e apoiar esse ato. Mas ele não depende de seu poder e não resulta de um método como um efeito resulta de uma causa. Esse ato, quando se consegue, exige o extremo e é experimentado como uma graça. Como exemplo desse tipo de conversão a algo maior trago aqui uma história, que, com o título de “A fé maior”, está sendo reproduzida em outra parte deste livro. Fé e amor
Certa noite, um homem sonhou que ouvia a voz de Deus que lhe dizia: “Levantaste, toma teu filho, teu único e querido filho, leva le va-o -o à montanha que eu te mostrarei e ali me oferece esse filho em sacrifício!” De manhã, o homem se levantou, olhou para seu filho, seu único e querido filh fi lho, o, olho ol houu para pa ra sua su a mul m ulhe her, r, a mãe m ãe da cria cr ianç nça, a, olho ol houu par p araa seu s eu De Deuu s. Tom To m ou o filho, levou-o à montanha, construiu um altar, amarrou as mãos do filho, puxo pu xouu a fac f acaa e que q ueri riaa sa sacr crifific icáá -lo. -l o. Mas Ma s ent e ntão ão ouvi ou viuu uma um a outr ou traa voz v oz e, em vez
de seu filho, sacrificou uma ovelha. Como o filho olha para o pai? Como o pai olha para o filho? Como a mulher olha para o homem! Como o homem olha para a mulher? Como eles olham para Deus? E como Deus — se existe — olha para eles? Um outro homem sonhou, à noite, que ouvia a voz de Deus que lhe dizia: “Levanta-te, toma teu filho, teu único e querido filho, leva -o à montanha que eu te mostrarei e ali me oferece esse filho em sacrifício! ” De manhã, o homem se levantou, olhou para seu filho, seu único e querido filho, olhou para sua mulher, a mãe da criança, olhou para seu Deus. E lhe respondeu, encarando-o: “Isso eu não faço!” Como o filho olha para o pai? Como o pai olha para o filho? Como a mulher olha para o homem? Como o homem olha para a mulher? Como eles olham para Deus? E como Deus — se existe — olha para eles? A doença como expiação
Outra dinâmica que provoca doenças, suicídios, acidentes e mortes é o desejo de expiar pela culpa. Encara-se como culpa, às vezes, o que foi obra do destino sem possibilidade de interferência: por exemplo, um aborto espontâneo, uma enfermidade, uma deficiência ou a morte prematura de uma criança. O que ajuda, nesse caso, é olhar para os mortos com amor, enfrentar a dor e deixar em paz o que passou. Se, por obra do destino, acontece alguma coisa que causa dano a
outros e proporciona a alguém alguma vantagem, a salvação ou a vida, isso também é experimentado como culpa; por exemplo, a morte da mãe no próprio nascimento. Contudo, existe ainda a culpa verdadeira, de responsabilidade pessoal, por exemplo, quando alguém, sem necessidade, entregou ou abortou um filho ou quando exigiu de outros ou causou a eles algo nefasto. Para apagar uma culpa, quer decorra de imposição do destino ou de um ato pessoal, as pessoas frequentemente recorrem à expiação, querendo pagar com danos próprios os prejuízos infligidos a outros. Assim, pretendem “descontar” a culpa com a expiação e restituir o equilíbrio. Esses processos expiatórios, por mais danosos que sejam para todos os envolvidos, são também estimulados por doutrinas e exemplos religiosos, por exemplo, pela fé na redenção por meio do sofrimento e da morte, e na purificação do pecado e da culpa por meio da autopunição e do sofrimento externo. A expiação que duplica o sofrimento
A expiação satisfaz nossa necessidade de compensação. Mas o que se consegue realmente quando se busca a compensação por meio da enfermidade, de um acidente ou da morte? — Pois então, em lugar de uma pessoa lesada, haverá duas; em vez de um morto, haverá dois. Pior ainda: para as vítimas da culpa, a expiação duplica o dano e a infelicidade porque sua desgraça alimentará outra desgraça, seu dano provocará novos danos e sua morte acarretará outra morte. Há outro aspecto a considerar. A expiação, como o pensamento mágico e a ação mágica, é um recurso fácil. Nessa ótica, a salvação do outro resulta exclusivamente da própria desgraça e basta assumir o sofrimento para que o outro se salve. Acredita-se que o sofrimento e a morte são suficientes, sem que se encare a relação e se sinta a outra pessoa; sem que, com ela diante dos olhos, se sinta a dor pela sua
desgraça; e sem que se precise fazer, com o consentimento e a bênção dessa pessoa, algo de bom pelos outros. Na expiação também se paga com a mesma moeda. A ação é substituída pelo sofrimento, a vida pela morte e a culpa pela expiação, e acredita-se que o sofrimento e a morte são suficientes, sem ação e sem realização. Quando se tornam realidade, as frases “Antes eu do que você” e “Eu sigo você” apenas aumentam a desgraça, o sofrimento e a morte. O mesmo efeito produz a expiação, quando é consumada. Um filho que perdeu a mãe no parto sente-se permanentemente culpado diante dela, porque ela pagou com sua morte pela vida dele. Ora, quando o filho expia por isso, sentindo-se mal, recusando-se a tomar essa vida, embora ela tenha custado a morte de sua mãe, ou mesmo suicidando- se em ato de expiação, a desgraça é duplamente funesta para a mãe. Pois o filho não assumiu a vida que ela lhe deu, não respeitou seu amor de mãe e sua disposição de lhe dar tudo. Assim a morte dela foi inútil; pior ainda, em vez de trazer vida e felicidade, trouxe uma nova desgraça pois, em lugar de uma só morte, acontecem duas. Se quisermos ajudar esse filho devemos ter em mente que, além do desejo de expiar, ele tem um outro desejo: “Antes eu do que você” ou “Eu sigo você”. Assim, só poderemos conseguir a cura de um desejo funesto de expiação, se simultaneamente conseguirmos a solução salvadora para as frases mencionadas. A compensação que proporciona bênçãos
Qual será para esse filho a solução que convém a ele e à sua mãe? Ele precisa dizer: “Querida mamãe, você pagou um preço alto pela minha vida. Que isso não tenha sido em vão. Farei dela algo de bom em sua memória e em sua homenagem”. Mas então o filho precisa agir, produzir, viver, ao invés de sofrer, fracassar e morrer. Se agir assim estará ligado à mãe de um modo totalmente distinto do que seguindo -
a na desgraça e na morte. Quando o filho perece por simbiose com a mãe, está ligado a ela apenas de um modo cego e inconsciente. Quando porém, em memória da mãe e de sua morte, produz algo que promove a vida, quando assume sua vida dando algo dela a outros, então se liga à sua mãe de um modo totalmente distinto e se sente amando em sua presença. Pois, assumindo e preenchendo assim sua vida, conserva sua mãe diante dos olhos e a guarda no coração. Então fluem para o filho as bênçãos e a força da mãe porque, a partir do amor a ela, ele faz de s ua vida algo de especial. Ao contrário da atitude de compensar expiando, que quer compensar pelo funesto, pelo dano e pela morte, essa seria uma compensação pelo bem. Compensar pela expiação é um recurso fácil, que tira e prejudica sem reconciliar. Compensar pelo bem é mais difícil, mas traz bênçãos e tem mais condições de fazer com que a mãe e os filhos se reconciliem com seus próprios destinos. Pois o bem que esse filho realiza em memória de sua mãe acontece por intermédio dela. Por meio do filho ela tem parte nisso e assim continua a viver e a atuar. Essa seria, à diferença de uma compensação mágica, uma compensação adequada à terra. Ela se baseia na compreensão de que nossa vida é única e que, ao extinguir-se, ela abre espaço para quem chega; mesmo depois de extinta ela nutre a vida presente. A expiação como fuga da relação
Expiar é um recurso para não encarar a relação. Pois, por meio dela, tratamos a culpa como uma coisa, pagando por um dano com algo que igualmente nos custa. Porém, se cometi injustiça a alguém, c ausei sua infelicidade e lhe infligi um dano irreversível ao corpo e à vida, o que pode produzir uma tal expiação? Buscar alívio na expiação, prejudicando-me, é algo que só posso fazer quando perco de vista a outra pessoa. Pois quando a tenho diante dos olhos sou forçado a reconhecer que pretendo anular pela expiação algo que
necessariamente permanece. Isso também deve ser levado em conta quando há uma culpa que envolve responsabilidade pessoal. Frequentemente, para expiar por um aborto ou pela perda de um filho, uma mãe contrai uma doença grave ou abre mão da relação com o pai da criança, renunciando a um novo relacionamento. A expiação por uma culpa pessoal também se realiza de um modo inconsciente, mesmo que seja conscientemente negada ou explicada. Junto com a necessidade de expiar, manifesta-se eventualmente nas mães o desejo de seguir uma criança que morreu, do mesmo modo que um filho deseja seguir a mãe morta. Poderíamos supor, porém, que a criança que morreu por culpa da mãe também tenha dito a ela: “Antes eu do que você”. Nesse caso, essa morte terá sido inútil se a mãe adoecer e morrer no intuito de expiar por ela. Também no caso da culpa pessoal, a solução consiste em substituir a expiação pela ação reconciliadora. Isso acontece quando olhamos nos olhos a pessoa contra quem cometemos injustiça ou de quem exigimos algo de mau — por exemplo, quando a mãe olha nos olhos uma criança abortada, negada ou abandonada — e dizemos a essa pessoa: “Sinto muito”, “Agora eu lhe dou um lugar em meu coração”, “Eu reparo isso, na medida em que posso repará -lo”, e ainda “Você terá parte no bem que eu fizer em sua memória e com você diante dos meus olhos”. Então a culpa não terá sido em vão, pois o bem que a mãe — em nosso exemplo — realiza em memória dessa criança, acontece com a criança e por intermédio dela. Ela toma parte nisso e permanece por algum tempo em ligação com a mãe e com as suas ações. Na terra, toda culpa é passageira
A respeito da culpa, é preciso ter em vista mais uma coisa: ela passa, e precisa ter o direito de passar. Uma culpa eterna só existe na perspectiva do céu. Na terra a culpa é passageira. Como tudo o mais,
também ela passa, depois de algum tempo. A doença como expiação por alguém
A culpa e a expiação também são frequentemente adotadas na família e no clã familiar. Pois um filho ou um parceiro també m podem dizer: “Antes eu do que você” no que toca à culpa e à expiação, assumindo a culpa e suas consequências quando outros se recusam a isso. Certa mulher relatou num grupo que não quis acolher sua mãe idosa e a deixou num asilo de velhos. Na mesma semana uma de suas filhas ficou anoréxica, vestiu-se de preto e passou a visitar um asilo duas vezes por semana para cuidar de pessoas idosas. Entretanto nin guém, nem sequer a própria filha, percebeu a conexão de seu ato com a atitude da mãe. Doença e recusa de assumir os pais
Outra atitude que leva a doenças graves é a recusa do filho em tomar amorosamente seus pais e em honrá-los como seus pais. Esses filhos se elevam acima da terra porque, diante do céu ou de uma outra coisa elevada, consideram-se melhores e escolhidos. Há doentes de câncer, por exemplo, que preferem morrer a reverenciar a sua mãe ou o seu pai. Honrar os pais é honrar a terra
Quem crê no céu possivelmente acredita que pode, com a ajuda dele, elevar-se acima da terra e dos pais. Porém honrar os pais é honrar a terra. Honrar os pais significa assumi-los e amá-los como eles são. E honrar a terra significa assumi-la e amá-la como ela é: com a vida e a morte, a saúde e a doença, o início e o fim. Isso, porém, constitui propriamente o ato religioso, denominado antigamente devoção e adoração. É experimentado como o despojamento extremo, que tudo toma e tudo dá — com amor. Vou ilustrar isso com uma história. Poderia chamar-se “Dois tipos de felicidade”, mas aqui recebe outro nome.
O não-ser
Um monge, que andava buscando, pediu a um mercador uma esmola. O mercador se deteve por um momento e, ao dar-lhe o que pedia, perguntou ao monge: “Como é possível que me peças o que te falta para viver e, no entanto, menosprezes a mim e ao meu modo de vida, que te pr oporcionamos isso!”
O monge lhe respondeu: “Em comparação com o Último, que busco, o resto parece desprezível ". Mas o mercador retrucou: “Se existe um Último, como pode ser algo que se pode buscar e encontrar como se estivesse no fim de um caminho ? Como poderia alguém sair ao seu encontro como se fosse uma coisa entre outras muitas, e apossar-se dele mais do que muitos outros? E, inversamente, como poderia alguém afastar-se desse Último, ser menos conduzido por ele ou estar menos a seu serviço do que as outras pessoas?
O monge respondeu: “Encontra o Último quem renuncia ao próximo e ao presente”. Mas o mercador ainda ponderou: “Se existe o Último, ele está próximo de todos, mesmo que esteja oculto no que nos aparece e no que permanece, do mesmo modo que, em cada ser, se oculta um não-ser e, em cada agora, um antes e um depois. Comparado ao ser, que experimentamos como fugaz e limitado, o não-ser nos parece infinito como o antes e o depois, comparados ao agora. Porém, o não-ser se revela no ser, assim como o antes e o depois se revelam no agora. O não-ser, como a noite e a morte, é um início desconhecido, e só por um breve instante, como um raio, nos abre o seu olho no ser. Assim também, o Último só se aproxima de nós no que está perto
e ilumina agora”. Então o monge perguntou, por sua vez: “Se fosse verdade o que você diz, o que nos restaria, a mim e a ti?” O mercador respondeu: “Ainda nos restaria por algum tempo a terra”.
III — Aconselhamento Espiritual 5 As cartas que seguem são respostas a perguntas que me foram feitas, muitas vezes por pessoas desconhecidas. As respostas se limitam ao núcleo das perguntas, por isso são breves. Algumas delas foram escritas a colegas ou amigos, falam de problemas comuns ou agradecem por uma indicação, uma conferência ou um livro. As cartas foram aqui ordenadas por temas, porém são independente s entre si. Confiar
9.10.1987 Aquele que, em sintonia com um Todo maior, confia na boa Providência, mantém a esperança, resistindo às aparências contrárias, às objeções e aos medos. Esta é uma importante realização espiritual. Já o excesso de reflexão indica desconfiança. Então aquilo que provê e dirige se retrai e nos entrega a nós mesmos. A confiança é uma antecipação da morte. Por isso, também aqui, só ajudam a humildade 5 Cartas terapêuticas 1984-1999.
e a confiança. 3.1.1989 Algumas dificuldades persistem porque fazemos sua solução depender de certa condição. É melhor confiar em que o essencial se disporá quando chegar o momento oportuno. Com nossos planos, porém, frequentemente estorvamos o caminho dessa boa Providência. 1.5.1990 Aquele que experimentou, como você agora, que existe uma boa Providência e orientação quando seguimos a alma silenciosa, já não pode se desviar muito do essencial. Essa recordação lhe proporciona confiança e força. 3.1.1991 Alcançamos a inteireza, de preferência, quando nos abandonamos a uma boa força que atua por nosso intermédio, sem querermos interferir em sua direção. Essa força cuida de ambos os lados, e atua como força e como contraforça no devido tempo. Pois tendemos a ver a contraforça como pura oposição. Recolhimento
7.3.1989 Se você percebe primeiro as realidades do mundo e depois as reencontra em suas leituras, isso certamente é fruto da contemplação. A preocupação pelos outros diminui quando confiamos que, não menos que nós, eles são dirigidos por uma força positiva. O critério para saber se devo intervir ou abster-me é o recolhimento. Se estou centrado em minha ação, ela produz um bom efeito; se me inquieto, ela se frustra. O mesmo vale para o abster-se. Na dúvida, é preferí vel não agir. 14.5.1990 Sua carta, chamando a atenção para os domínios em que q ue não existe a
presunção de saber (mais), vai diretamente ao coração. Foi um presente que me deixou feliz, e sou-lhe grato por ele. Todos nós retornamos à origem primeira. Seja como for que ela nos move e forma, as diferenças são sempre finalmente abolidas. Enquanto elas persistem, a alma pode entretanto antecipar o fim e sentir-se, apesar de todas as diferenças, igual a todos os seres. 3.7.1990 A grande Alma frequentemente se retira quando, em vez de nos dirigirmos a ela, preferimos buscar conselho e ajuda no exterior. Só podemos fazer isso sem nos enfraquecermos quando ela própria nos impele a isso. Quem, em última instância, ouve a própria alma e se orienta por ela, deixa a infância para trás e fica, ao mesmo tempo, só e livre. 6.1.1995 As experiências que você descreve exigem que você se entregue a elas com humildade e coragem. Você atua porque algo atua por seu intermédio. Por isso, tampouco deve comentá-las com outros. Seria uma espécie de traição. Desapego
21.12.1990 O esquecimento é uma disciplina do espírito que está ligada ao progresso. Como diz o Tao Te King: “O homem escolhido não se detém em seu sucesso mas segue em frente”. O mesmo vale, naturalmente, para o insucesso e o desejo de ser lembrado. Quando você aparece sob uma luz equívoca, precisa aceitar isso também e ir em frente. Inexplicavelmente nos enredamos tanto nas situações felizes, como nas infelizes. É preciso acolher umas e outras. E abandonar os porquês. Pois responder a eles é esquivar-se do que é e atua. 20.1.1998 Na medida em que esperamos mudanças em nossa alma quando
outras pessoas mudam, traímos a nós mesmos. Abandonar essa expectativa nos equilibra e fortalece. Despedida
13.1.1998 Sua perturbação e seu entorpecimento são justificáveis. Você cuidou de seu ex-marido com muito amor, quando ele adoeceu. Tanto mais profunda é agora a dor da separação. E você está paralisada porque necessita apoio e depende da boa vontade da nova parceira dele. Você só poderá voltar a agir quando interiormente se afastar dele. Então sua nova parceira perderá o poder sobre você. Você ficará livre e, sobretudo, não ficará prejudicada em sua alma. Para seus filhos vale o seguinte: Eles podem perfeitamente tomar o que o pai lhes deixou como herança. E precisam renunciar interiormente ao que o pai não lhes legou. Então ficarão livres também. 4.1.1996 Uma filha sente esse desespero quando perde sua mãe. No que toca à separação do marido, trata de se aprumar interiormente e aguardar algo melhor. Você o conseguirá mais facilmente reconhecendo a felicidade que experimentou, e levando-a consigo. 3.9.1997 Numa separação, é preciso recordar o que foi bonito, principalmente o começo da relação. Renunciar a procurar a culpa, em si ou no parceiro. E permitir-se sentir a dor e a tristeza. Então é possível resolver o mais importante, em paz e com objetividade. Outra coisa a observar: nos filhos, continue amando o parceiro, como no princípio. Experiência e pensamento
20.12.1990
Suas reflexões me estimularam a investigar a oposição entre o que se experimenta e compreende, e o que é apenas pensado, e a analisar as consequências. Uma experiência só pode resultar de um acontecimento ou da correta comunicação de uma experiência. Mas é inútil querer demonstrá-la. Pois ela se comprova por meio do acontecimento que gerou a experiência. Posso produzir pensamentos sem haver uma realidade experimentável que corresponda a eles. Eles podem ser belos, corretos e interessantes, sem que sejam necessariamente verdadeiros. O perigo está em avaliar minha experiência com base em meus pensamentos, e em compará-la com eles. Então passo a crer nos pensamentos, em vez de confiar na experiência. Esse procedimento encerra o risco de alienação. Portanto, quando abandono os pensamentos em favor de uma experiência, isso me leva ao recolhimento. Mesmo abandonando algo, tenho uma experiência de riqueza e de ganho. Quando, pelo contrário, abandono a experiência resultante de um acontecimento vivido e de uma compreensão, apenas por pensar outras coisas, vivencio isso como uma fuga do centro e como uma perda. A compreensão é a parte que cabe ao espírito na experiência. Ela sempre leva ao recolhimento, inclusive quando é comunicada. Já o pensamento, mesmo quando se refere à experiência, produz, comparado a ela, um efeito diminuidor. Em confronto com a compreensão, que é plena e simples, o pensamento parece pálido e complicado. 14.5.1992 Aquilo que se revela como realmente eficaz, como verdade da alma, e que finalmente conta, é sempre a atitude de sair do habitual e enfrentar o risco. Assim, a verdade se revela como nova em cada caso. Não obstante, é sempre a mesma. Aqui não ajudam perguntas nem
objeções. O que vale é o intercâmbio de experiências corajosas e sérias. 17.5.1995 Há algum tempo, recebi de presente o livro Feldivege (Veredas), de Heidegger. Lendo-o, enxerguei com clareza, pela primeira vez, o profundo abismo que separa o nosso pensamento habitual — que Heidegger associa à ciência e à técnica — do pensamento original, que exige uma atitude básica totalmente diversa. Essa atitude não é voluntariosa, ela se deixa olhar, em lugar de olhar, é totalmente relaxada e despreocupada (o termo é meu). De acordo com essa visão, a Ecopsicologia seria apenas uma variante do pensamento técnico e, em última análise, como o próprio pensamento técnico, inútil quanto ao essencial. Ver e ouvir
11.10.1988 Gostaria de mostrar uma diferença. Uma criança tem o desejo de pertencer, e percebe o mundo pelos olhos das pessoas de quem depende e a quem ela ama. Logo que vê o que é válido e sagrado para elas, ela concorda com isso, com todas as consequências. Quando o sistema se abre a novos caminhos, a criança os segue de bom grado, porque ama. Nesse processo, embora seja orientada e dirigida, ela pode confiar no que vê e no que reconhece por si mesma, talvez apenas intuitivamente. Porém, quando os adultos lhe pregam a moral, produz-se nela um deslocamento, do olhar para o ouvir. Então, em lugar de reconhecer por si mesma e de seguir com o coração o que reconheceu, a criança precisa ouvir e obedecer. Em lugar de ver as coisas por si mesma e de seguir o próprio conhecimento, de agora em diante ela precisa submeter-se. A palavra que cura
12.2.97 A palavra que cura é sempre breve e atinge a alma, em oposição ao eu. Ela ilumina o olhar e atua por um longo tempo. Mas esse efeito pode ser destruído quando essa palavra é explicada, organizada e exaustivamente verbalizada, pois então ela se retrai. É preciso haver respeito e reserva, por parte do terapeuta e do paciente. O olhar
23.4.92 É importante que vocês preservem, em seu trabalho, o respeito diante do mistério que existe em toda parte, e a aceitação dos próprios limites. A aprendizagem propriamente dita resulta do olhar. Sem se perturbar, ele esquece o que nos transmitiram as teorias e considera principalmente os efeitos e o fim. Olhar para a frente
1.10.93 Olhar para trás é sempre inútil. Convém olhar para a frente e orientarse pelo que permanece. E o que permanece começa do zero; portanto, de baixo. 19.8.1996 Quem olha para trás, ou quer recuperar coisas antigas, perde o que é viável no momento. O que deve ser realizado está aqui, e a humildade o torna possível. 30.9.1998 Quem perdura no papel de vítima é incapaz de agir. Quem olha para trás sacrifica o futuro. Imagens
25.11.1991 A mística, tanto no Ocidente quanto no Oriente, nos ensina o desprendimento das imagens. Já a psicologia de Jung às vezes nos
seduz para que as tomemos como reais. De vez em quando, porém, a alma encontra uma imagem que condensa a realidade — o que é algo bem diferente. 18.2.1992 O que importa, no fundo, é que, libertos das imagens que estimamos — inclusive a do céu — permaneçamos na pura contemplação, resistindo à tentação de saber mais do que nos é acessível. A terra serve como símbolo dessa limitação. Mas o que importa vai além do que aparece na superfície. Não negamos o mistério, não o substituímos por imagens, não o interpretamos. Renunciando a isso, estaremos respeitando o mistério. É uma atitude difícil, mas talvez a mais apropriada a ele. 12.1.1995 As imagens interiores de colocar-se ao lado do pai e fazer-lhe uma profunda reverência atuam por si mesmas por um longo tempo. Sua repetição voluntária desconsidera que a alma simplesmente completa o seu efeito a seu tempo. Caminhos espirituais
7.6.1984 Muitos dos assim chamados caminhos espirituais procuram abreviar ou simplificar algo cujo sucesso exige o caminho inteiro e o tempo inteiro. A afirmação de que tudo depende exclusivamente de nós mesmos tem ah go de tentador e, sob muitos aspectos, é correta. Sua absolutização é, no entanto, uma perigosa forma de orgulho, pois nega nossa interconexão e nossos envolvimentos. A espiritualidade humilde os reconhece e se contenta com o necessário para a ação. 24.1.1987 Seus textos me causam impressão. Sente-se neles um longo e intenso trabalho e uma grande força de espírito. Mas também têm um toque de sofisticação e fazem sentir a falta do outro lado.
6.7.1988 Agradeço-lhe por suas conferências sobre Psicologia e Mística. A meu ver, o caminho individual resulta da conjugação de muitas forças. Quando as percebemos em conjunto, pressentimos que estão a serviço de uma Providência que não se deixa detectar por métodos científicos. Tanto a psicologia quanto a meditação podem estar a serviço dessa Providência, como ajuda ou como tentação. Por isso, é necessária uma metaposição, que esteja acima de ambas. É difícil captar essa atitude em seu conteúdo, mas podemos reconhecê-la, como uma árvore, por seus frutos. Eles incluem a sabedoria, a humildade, o amor, a alegria, a coragem, a gratidão, a aceitação da plenitude, do limite e da moderação. Isso pressupõe, em última análise, que aceitemos nossa própria impermanência e reconheçamos a morte como um ponto final. 22.3.1991 Quando nos sentimos vazios, muitas vezes é útil imaginar que nossas raízes mergulham mais fundo, até alcançar a água que flui secretamente e faz participar da plenitude do Todo. 18.12.1993 Alegro-me por ter em você alguém que simultaneamente me estimula e questiona, obrigando-me a pensar com mais precisão. A diferença entre fé na revelação e fé na criação não resiste ao pensamento rigoroso. Eu jamais publicaria algo assim. Gunthard Weber publicou em Zweierlei Glück [Dois tipos de felicidade] 6 comentários casuais que fiz em um curso, e eu não quis interferir. Mas o que me interessava na ocasião era principalmente a dialética entre a fé e a descrença; ou, mais precisamente, entre a fé (ou esperança contra um saber melhor) e a percepção. O ponto era, portanto, que a fé envolve sempre uma 6 Publicado em inglês, em sua maior parte, como Love’s Hidden Symmetry, e editado como A Simetria Oculta do Amor, pela Editora Cultrix, São Paulo, 1999. ( N.T.)
negação da realidade. Essa negação desfigura a própria fé e, no intuito de defendê-la, também desfigura algo que é banido do olhar como se não existisse. A bela frase “O que pode saber aquele que não sofreu?” é uma recordação que me acompanha desde meus anos de estudo s. Não me recordo de seu contexto original. Seja como for, venha ou não da Bíblia, é uma frase de peso. No que se refere à Bíblia, sou um descrente. Para mim ela é um livro humano, que tanto me fascina quanto — se me abandono a ela — me aliena de meu centro. Por essa razão, também não me oriento em meu trabalho por conceitos bíblicos. Humildade, ordem, arrependimento, amor, justiça e injustiça, culpa e inocência, consciência, e mesmo graça — o significado desses conceitos é lido e percebido pelo simples olhar. Eu os considero como verdades da terra. Em concordância com a terra, exerço um poder que pode parecer sacerdotal mas está a serviço da reconciliação com os excluídos, os esquecidos, os desprezados e os desqualificados. Muitas vezes, esse poder tem algo que salva vidas; por isso, parece grande. Mas não é esse o seu objetivo. Pois também está em sintonia com o terrível, e se detém quando a fatalidade se impõe de uma forma necessária e inevitável. Não sei da existência de projetos de dissertações teológica s sobre esse tipo de trabalho ou de pastoral. Também os acho perigosos, porque poderiam minar a pastoral da Igreja em lugar de promovê-la, por exemplo, mostrando a terra como aquilo que realmente cura e é sagrado. 23.11.1998 Alegrei-me com sua carta e com o livro Geistige lndividuation (Individualização espiritual). Quando comecei a lê-lo, achei difícil perceber com clareza e discernir entre o que havia de experiência e de especulação. Quando percebi que a leitura do livro me tirava do
centro, deixei-o de lado. Evidentemente existem várias vias de acesso ao mistério, mas nem todas atendem à necessidade de cada pessoa. Não obstante, sou-lhe grato pelo envio. Religião e amor
25.3.1984 Podemos pressupor que esse senhor assumiu o celibato em boa fé, e que seu comportamento na época não dava aos seus superiores razão para presumir que seria incapaz de mantê-lo. O fato de que, pela ausência do pai, assumiu inconscientemente o papel de parceiro, induziu nele uma intensa fixação à sua mãe. Com o posterior compromisso do celibato, essa fixação inconscientemente foi transferida para o domínio da Igreja, mobilizando as fortes energias, erroneamente interpretadas como um zelo especial, tanto pelo interessado quanto por seus superiores. Um compromisso duradouro e responsável com o celibato esbarra em limites que dificilmente se poderiam justificar moralmente. Tendo sido reconhecida essa fixação, no decurso de seu desenvolvimento psíquico, não se pode mais adiar sua resolução, como tarefa moral. O problema real consiste em que a decisão anterior, embora tomada de boa-fé, não pode ser mantida, desde que se reconheceu a dinâmica reprimida no decurso da evolução psíquica. A solução de considerar a decisão anterior como moralmente insuficiente ou inautêntica seria sentida como uma afronta, pois contraria o sentimento subjetivo. O dilema resultante só pode ser resolvido, em consonância com a veracidade interna, quando se reconhece a legitimidade moral, tanto da decisão anterior quanto da decisão atual. 6.5.1989 As perguntas de sua entrevista sobre a interdição do amor, a hostilidade ao corpo, o medo do sexo e o celibato, já pressupõem parcialmente as respostas sobre as causas e a solução dos problemas apresentados, e me deixam pouco espaço livre.
Pelo que tenho observado, o conceito de mensagens restritivas, seguidas de permissões que as anulam, não se comprova na prática. A tácita expectativa de que uma anulação da proibição reabrirá o caminho, transfere a responsabilidade justamente para aqueles de quem a pessoa deveria desprender-se, e cria uma nova dependência. Pode-se observar que os homens que permanecem na esfera de suas mães são muitas vezes desconsiderados e insensíveis para com outras mulheres. Aprenderiam a respeitá-las se passassem da esfera da mãe para a do pai. Do mesmo modo, as mulheres que permanecem na esfera do pai têm menos respeito por outros homens. Aqui, também, a solução seria que se associassem às suas mães. O amor exige que eu respeite os excluídos e os execrados, e os trate com compaixão, sem pretender mudá-los. Com isso, livro-me da identificação com eles. Se eu lutar contra eles e ganhar, tornar-me-ei semelhante a eles. Pois uma ovelha não supera seu pastor e suas exigências na medida em que luta contra ele, mas simplesmente indo embora. Com isso, não respondi às suas perguntas, mas marquei minha posição e considero o assunto encerrado. 11.4.1992 Li seu livro, com muito proveito. Lembrando Nietzsche, ocorreu-me esta frase: “Deus está morto, viva o amor!” É de notar que o amor, como a religião, está sendo considerado, cada vez mais, como um assunto privado. Mas o que atua num relacionamento é muito mais do que algo puramente pessoal: é que, quer o queiramos e entendamos ou não, somos tomados a serviço. Deus e os deuses
9.10.1995 Agradeço pelo seu livro Elemente des Religiösen [Elementos do fenômeno religioso], que li com grande interesse e proveito pessoal.
Achei de especial interesse o que você escreveu sobre a decadência dos fenômenos religiosos, principalmente dos que nasceram da mística. Se entendi bem, os fenômenos religiosos organizados pressupõem um Deus pessoal como oponente. Isso, aliás, também se aplica à mística. Parece-me que o Deus pessoal, por mais espiritualizado que possamos imaginá-lo, pertence à categoria dos deuses. Caso contrário, não o veríamos tão ligado pessoalmente a alguém, ou tão afeiçoado a um grupo particular. Parece-me que nossa atual experiência do mundo, como unidade e interconexão de todos, nos obriga a superar essa imagem e que, por conseguinte, provocará uma ulterior decadência dos fenômenos religiosos usuais. O ser e o não-ser
24.5.1991 Quem retorna, como você, está mudado e carrega com cuidado o que leva nas mãos. Pois nosso ser é cercado por um não-ser que o limita, do mesmo modo como o fim, que ainda não é, atua sobre o início, que já é. Toda escolha pressupõe uma renúncia, e todo princípio envolve seu fim. Quando reconhecemos o não-ser como presente no ser, e o fim como presente no início, o que empreendemos se torna grande por meio de ambos. E quando rejeitamos ou tememos o fim e o nãoser, o que empreendemos se torna, em virtude de ambos, menos e menor. 3.8.1991 Cada ser que conhecemos é limitado por um não-ser, que naturalmente é maior e mais denso do que o ser que ele limita. Esse não-ser, embora não seja, atua sobre aquilo que é, aumentando-o ou diminuindo-o. Podemos experimentar isso em exemplos mais familiares. Quando alguém escolhe uma forma de vida em detrimento de outra, aquilo que ele escolheu se torna um ser para ele, e o que não escolheu se
converte num não-ser, que limita esse ser. Se ele considera superior o ser que escolheu, e inferior o não-ser que não escolheu, o que ele escolheu diminui em virtude do não-ser que o limita. E, se ele honra e aprecia o que não escolheu, o que ele escolheu se acrescenta, devido ao não-ser que ele não escolheu. O mesmo acontece quando não pudemos escolher pessoalmente, quando o destino nos impôs uma coisa e nos privou de outra. Então consideramos inferior o que nos coube, e superior o que nos foi negado. Quem quer a totalidade, só pode tê-la junto com o não-ser que a circunscreve. Assim, tornamo-nos inteiros quando tomamos uma coisa e respeitamos a que não pudemos tomar. O mesmo acontece quando respeitamos o que nos foi imposto pelo destino, mesmo quando o desejo quer ter mais daquilo que nos foi negado. As enfermidades psicossomáticas ocorrem com maior frequência quando alguém se limita, tomando para si poucas coisas, e desprezando, como inferior ou mau, aquilo que não quis assumir. Ou, inversamente, quando despreza o que tem e considera superior o que lhe permanece inacessível. Essa pessoa encontra alívio quando reconhece como igualmente válido o que antes excluiu ou desprezou, e o honra de coração. A fé
24.3.1990 Com a fé e a descrença talvez ocorra o mesmo que acontece com a inocência e a culpa: só comparecem juntas. Por exemplo, quando olho para a criação e confio nela, eu talvez peque contra a fé numa palavra revelada, e vice-versa. Por outro lado, muitas vezes a fé estimula a pretensão de melhorar o mundo, embora afirme que ele foi criado por Deus. O resultado é que, muitas vezes, prejudicamos e destruímos o mundo quando tentamos melhorá-lo de acordo com nossas crenças. A fé no Deus onipotente absolutamente não nos impede de pretender
manejar o mundo melhor do que ele. Assim, as perguntas e os problemas não têm mais fim. A graça
25.3.1990 As experiências especiais que você teve devem comprovar-se na ação. Elas são vividas como uma graça que vem e passa. Não devemos buscá-la, nem tentar entendê-la. Pois ela atua independentemente da nossa compreensão. 7.4.1990 Reconhecemos o especial na medida em que ele nutre mas não pode ser retido. 31.1.1994 Quem sobreviveu, como você, também foi sustentado. Reverenciar essa força e entregar-se de novo a ela seria, também agora, um passo em direção à cura. Libertação
27.7.1999 Muitas coisas estão se movendo em seu interior, e quero dizer algo a respeito. Quem expia não se libera. Quem assume a culpa encontra abrigo. Muitas vezes, trata-se apenas de uma culpa infantil e imaginária que, se bem considerada, faz parte do crescimento. Sem ela o indivíduo permanece infantil. A despedida traz proteção, porque não nos apoiamos mais em algo transitório, mas em algo que ultrapassa nossa vida. A ferida, como a cicatriz que atesta sua cura, também pertence à vida, mesmo que o lugar continue sensível. Ela recomenda atenção e cuidado. O pedido para morrer, que a criança fez a Deus, é revogado pelo
adulto, porque o entende como um desafio e uma interferência em relação a Deus. Ele acolhe a vida como uma dádiva, assim como acolherá sua morte, no tempo devido, igualmente como uma dádiva. Matrimônio simulado
19.2.1997 Segundo minha experiência, os matrimônios simulados acarretam graves consequências, especialmente para a mulher, pois mais tarde terá dificuldade em se casar. Não se pode tratar o casamento dessa maneira. Como um homem olha uma mulher que se permitiu celebrar um matrimônio simulado? Além disso, ela assume em lugar do homem algo que é obrigação dele, e interfere em seu destino. O matrimônio simulado também tem graves consequências para o homem, pois ele empurra para outra pessoa algo que, seja como for, pertence a ele carregar. Ninguém tem o direito de transferir a outros, mesmo sob risco de morte e de tortura, as consequências de seus atos ou de seu destino, para que as carreguem por ele. Do contrário, os outros se tornam vítimas de seus atos, ou de seu destino. Uma consequência imediata de tal fato é que o homem também fica com raiva da mulher, porque se sente inferiorizado e como um traidor diante dela. Como poderá uma mulher livrar-se da pressão, num caso como esse? Deve procurar ganhar tempo, dizendo, por exemplo: “Preciso r efletir sobre o assunto, pois também terá consequências para mim”. Ou transfere para outros a decisão dizendo, por exemplo, que precisa discutir o caso com sua família. Depois poderá dizer que sua família se opõe e que lhe custa entrar em conflito com ela. Então ela própria aparece como envolvida num conflito, e isso restabelece o equilíbrio. Mas provavelmente essa mulher é excessivamente fraca para se defender. Então deve dizer que se casará com ele de verdade. A alma
3.1.1995 Quando digo a essa mulher que ela merece morrer, digo-lhe algo em que sua alma acredita. Pois ela se comporta como alguém que quer morrer, e não teme a morte. Com isso, por estranho que pareça, ela se sente entendida por mim em sua alma. É preciso notar que essa afirmação é terapêutica, e ajuda a salvar vidas. Às vezes, uma pessoa só desiste de sua intenção secreta de morrer quando é confrontada com ela. Somente então, percebendo que se sente merecedora da morte, ela entende que seus filhos estão dispostos a morrer para salvá-la. Essa compreensão mobiliza em sua alma forças contrárias, levando-a a defrontar-se com sua vontade de morrer, e a procurar uma solução melhor. O comportamento pessoal tem prioridade sobre o envolvimento sistêmico. Por outras palavras, um envolvimento sistêmico não atenua as consequências da culpa pessoal. Assim, quer a pessoa esteja enredada, quer não, seus filhos reagirão da mesma maneira. Por isso, não se deve alegar o envolvimento para desculpar o cliente, pois isso tiraria a seriedade do assunto. Se o cliente for aliviado desse modo, ele talvez não venha a agir de modo a salvar as outras pessoas. Por isso, também não trabalho com o sistema de origem quando existe uma culpa pessoal. Só quando essa culpa é abertamente encarada é possível mobilizar as forças boas do sistema de origem para apoiar a ação curativa. 11.4.1995 Como você sabe, um dos fundamentos de meu trabalho é o apreço pela alma e por seus caminhos, e a convicção de que, no fundo, qualquer pessoa é igualmente capaz de encontrar seu caminho. Que ele passa por tentativas e erros, é algo que todos devem experimentar, e evito interferir nisso. Por essa razão, também desconfio da cautela que percebi em suas palavras: “O que poderia suceder, se...”, pois presume que um caminho seja melhor do que outro, ou produza
melhores efeitos. Com isso, porém, não apenas eu, mas também você e muitos outros ficaríamos limitados, sem clareza no tocante a alternativas melhores. 14.12.1995 Pelas suas palavras, parece-me que sua alma se retrai na medida em que você busca a solução no exterior, procurando vários terapeutas. Acho conveniente confiar na alma, mesmo que o conduza numa direção que contraria seus desejos. 4.6.1996 Mesmo quando não temos uma clara percepção do caminho do cliente, a aplicação de métodos pode, às vezes, trazer uma solução, porque a alma do cliente compensa o que falta. Mas, quando o cliente só deseja experimentar métodos, sem observar a própria alma, ele se aliena de si mesmo. 27.9.1996 Quem persiste na recriminação, espera que a solução venha do exterior e, com isso, se desvincula de sua alma. Quem abandona a recriminação defronta-se com a própria culpa e com as consequências dos próprios atos, daí recebendo força. Doença e alma
16.8.1996 O que há de peculiar em certas doenças é que não existe nada fora de ordem, mas a alma precisa da doença para alcançar algo que não conseguiria de outra maneira. 6.6.1998 Será útil a seu marido encarar sua enfermidade como uma mensageira que traz uma notícia importante. Quem respeita a mensageira e ouve sua mensagem, encontra paz. Psicose
9.7.1996 Você ressurgiu e sabe com que sensibilidade reage o sentido de equilíbrio na alma. Assim, precisa lidar com isso com cuidado. Quanto à visão de Cristo, olhe para algum familiar seu que tenha falecido. Parar
17.5.1995 Seu corpo se manifestou e deteve sua alma, para que parasse e refletisse. Assim, quando alcançamos o limite, ele também se toma uma bênção. O que antes buscava expandir-se encontra na parada uma nova profundidade. O bem e o mal
19.2.1998 Não se pode admitir uma distinção entre livre — e, portanto, responsável — e não-livre — e não-responsável. Mesmo que a culpa seja inevitável, ela não exime da responsabilidade pelas consequências. Inversamente, quando um destino funesto é experimentado sem culpa, isso não faz com que a vítima seja melhor que as outras pessoas. As distinções morais têm um valor limitado para a convivência humana. Precisamos agir na pressuposição de que são acertadas. Entretanto, num nível superior, elas não se sustentam. Cito um exemplo. Com frequência, uma política moral é uma política má e uma política imoral é uma boa política. Porém, realizar coisas boas com uma política imoral é algo que não depende da vontade das pessoas. Isso ocorre independentemente de sua vontade e de seus planos. Se tudo isso fosse tão simples, nossa boa vontade deveria produzir coisas boas, o que não é verdade. Uma bela lenda de Stephen Zweig, Mit den Augen des ewigen Bruders [Pelos olhos do irmão eterno],
descreve admiravelmente o fracasso inevitável da boa vontade. Quem se submete a essas leis fica sereno tanto no bem quanto no mal. A identificação com a resistência armada
17.10.1995 A oposição a um modo novo e mais profundo de encarar a resistência armada e temas semelhantes, provavelmente se explica porque a identificação com heróis e vítimas permite ao indivíduo sentir-se melhor, superior e cheio de reivindicações, exigente, sem que tenha passado por sofrimentos, sem ter demonstrado coragem ou enfrentado riscos, e sem encarar em si mesmo a profundidade, o medo, a tentação e o fracasso. Nenhuma discussão será capaz de convencê-lo, mas apenas o próprio destino e a própria alma, que se tornou humilde a partir da experiência. Abuso sexual
3.2.1997 Quanto ao abuso sexual, sugiro que você faça um exercício, sob a condição de não comentá-lo com outras pessoas, pois poderia despertar indignação. Porém, se o fizer com o espírito inocente, talvez descubra algo que fará bem à sua alma. Imagine-se junto desse homem, olhando com ele para a multidão enraivecida. Mantenha-se tranquila, apesar da indignação deles. Depois de algum tempo, diga ao homem que agora ele precisa ir embora. Você se despede dele no seu coração, volta-lhe as costas e segue, pura e livre, o seu caminho. E nunca mais fale a ninguém do que aconteceu, nem sequer a si mesma. Moral
20.4.1999 O que é funesto não é o incidente em si, mas o que os chamados justos pensam e dizem dele. Se realmente fossem tão justos teriam compaixão. A solução para você seria encarar outra vez o incidente e
dizer sim a ele, do modo como aconteceu: aceitando a dor, a curiosidade, o prazer, exatamente como aconteceram. E então dê um lugar a esse incidente, como uma experiência humana. Estupro
30.11.1996 Também no estupro nasce um vínculo. E, também aqui, a solução é o amor. Esqueça os julgamentos e as condenações que costumam acompanhar essa vivência. Encare o jovem que a violentou e diga-lhe : “Agora eu amo você”. As outras questões talvez se resolvam com essa única frase. Aborto
28.2.1997 Para ter um encontro real com as crianças abortadas é útil que você as encare de olhos abertos e se deixe olhar por elas. Então talvez você receba delas um sinal ou uma palavra que une e rec oncilia. Vergonha e pudor
18.3.1994 Há vários tipos de vergonha. Uma delas está associada à consciência que nos vincula a um grupo. Ela vem quando somos descobertos transgredindo um mandamento ou atentando contra um valor do grupo. Existe, porém, um outro tipo de vergonha: o pudor. Ele significa respeito diante de um mistério. Protege algo grande, e justamente por isso se situa em sua proximidade. Destino
4.9.1997 Tome a separação de sua mulher como séria e definitiva. E tome a sério seu destino, de não poder gerar filhos, com todas as suas consequências, sem deixar que isso pese sobre outras pessoas, por
exemplo, sobre sua mulher. Porém, se você encontrar uma parceira que possa e queira conviver com esse fato, a relação pode ser muito satisfatória. E aceite que a linhagem termine com você, como se aceita o fato de que, depois de algum tempo, tudo termina, tudo quer e precisa terminar. Ficar na fazenda, junto com sua mulher, provocará conflitos e uma dor permanente. Já que estão separados, que seja totalmente. Mais uma observação sobre o espiritual. Dizer sim à realidade, tal qual ela é, é um ato profundamente espiritual. A força
18.2.1996 As suas objeções ao meu modo de proceder seriam justificadas se o terapeuta dispusesse de algum outro procedimento pelo qual pudesse responsabilizar-se. O que acontece, porém, quando ele é impelido a ir até o limite extremo? Algumas pessoas recuam assustadas diante desse limite. Usam o recurso fácil de atribuir essa ação ao terapeuta e não à força que o obriga a ir ao extremo. Quem recua assustado diante disso, mesmo que seja apenas como simples espectador, coloca-se contra esse movimento último e, com isso, também contra o cliente. O que você escreveu, em seu texto sobre a realidade e a percepção, está em contradição com o seu comportamento atual. Você se deixa levar por imagens, por exemplo, a do “anjo vingador”, e não mais por uma realidade que se apossa de nós, mesmo quando nos atemoriza. Tenho a impressão, às vezes, de que suas formulações, por exemplo, sobre o ato de assumir os pais, pretendem substituir a percepção da realidade, sobretudo quando ela se apresenta como dura e incontornável. Essas fórmulas são introduzidas para suavizar o terrível e tendem a separar da realidade, mais do que a levar a ela. Quando somos tomados a serviço, não compete a nós escolher o
objetivo. Quem recua diante do extremo sacrifica não apenas sua percepção mas também sua força. É possível que alguém não esteja disposto a ir até o limite. Mas estabelecer isso como medida, inclusive para outros, é transformar em medida o medo e não o poder que nos obriga a ultrapassá-lo, quer o queiramos, quer não. 16.12.1999 Temos o direito de intervir quando estamos em sintonia com o destino da outra pessoa, e ela nos convida e autoriza a isso. 6.5.1999 A consequência extrema do método fenomenológico é o abandono do controle e o mergulho num campo que ultrapassa em muito as dimensões do eu. Portanto, a questão da culpa e inocência ou as ponderações sobre o que daí resulta passam inteiramente para o segundo plano. Pois nesse nível não existe outra escolha, a não ser confiar em algo desconhecido. E também está claro para mim que não se pode exigir isso das outras pessoas. A contradição
8.9.1998 Quando você fica em silêncio, o ambiente também silencia. Por outras palavras: você não comenta o que faz e respeita os outros no domínio deles, por limitado que seja. O bem não cresce sem contradição. Alma e espírito
3.3.1998 Agradeço por seu retorno à minha conferência Wie Liebe gelingt [Para que o amor dê certo] na Rádio e Televisão Austríaca. Realmente, diante de meu público explico as coisas com muito mais clareza do que quando me sento e escrevo uma conferência. Contudo, limito-me a dar estímulos e resisto à tentação de querer primeiro saber exatamente, para só depois explicar com maior precisão. Do
contrário, a busca será da mente, não da alma. O pai
7.1.1997 No que toca ao problema com seu pai você precisa reconhecer: que recebeu a vida por meio dele, que foi criado por ele. Com isso ele cumpriu sua missão com você. O que vem depois pertence à sua responsabilidade em face da vida e da força que dirige você e o toma, em especial, a seu serviço. Nessa responsabilidade ninguém pode ou deve interferir, nem sequer os próprios pais. O que importa é que você reconheça, com amor, o que recebeu de seu pai. Com isso poderá permanecer sempre no amor. Ao mesmo tempo, dedique-se à sua vida e à sua vocação especial. Assim, traçará limites em relação a seu pai, sem que precise criticá-lo. Do mesmo modo que você, ele tem sua vida e é responsável por ela. Deixe-o, portanto, em seu domínio, com tudo o que lhe pertence, inclusive o erro e a culpa. E trace um círculo em torno de seu próprio domínio, onde você ficará totalmente consigo, de modo que seu pai não possa interferir nele. Deixe igualmente as palavras dele do lado de fora: elas pertencem a ele, não a você. Então sua alma ficará em paz. A retirada
30.1.1995 Você cuidou de seu pai do modo que lhe foi possível. Se ele nem sempre honrou isso, é porque já estava em retirada, deixando para trás de si o que ocorria em torno. Seus sentimentos de culpa são sentimentos infantis. Eles desaparecerão quando você se aprumar interiormente. A mãe
27.6.1995
Uma mãe não pode cair em desgraça junto à própria filha. Quando uma filha se atreve a isso, a mãe se apruma interiormente até que a filha estremeça. 20.12.1996 Seus filhos tomam o partido da mãe. Eles não buscam tanto o seu amor por eles quanto o seu amor pela mãe deles. A solução é esta: não ame apenas os seus filhos; ame neles também a sua mulher. 13.5.1997 Confie que de suas mudanças resultarão efeitos benéficos sobre seus filhos. Com suas preocupações, você pretende tomar o destino deles em suas mãos. Com isso, porém, perturba o que a alma deles faz espontaneamente por eles. 21.9.1998 Quando você respeita sua mãe e sente o seu apoio, você parece um pouco mais maduro. Os pais
27.11.1986 Você experimentou coisas tão difíceis quanto salutares. Na verdade, é na sua alma que você estará mais seguro. Seus pais precisam deixar que você saia de casa, sem ressentimentos e sem desejar outras coisas para você. A terra é maior. 2.9.1998 A vida vem de longe. Os pais são apenas a porta. Se agora, em vez de olhar para os seus pais, você olhar para a origem primeira da vida e a receber dela, você terá a vida em plenitude, independentemente do que tenha acontecido com seus pais. Os mortos
6.7.1995 Coloque-se no lugar devido, ao lado de seus meios-irmãos, e inclua
os mortos. Eles ajudam você a permanecer na terra e no que é simples. Isso também é útil para o seu filho. 10.8.1995 Os mortos estão simultaneamente presentes e separados de nós. Eles nos deixam livres quando nos lembramos amorosamente deles, sem deixarmos de olhar para a frente. Quando olhamos para a frente, também os liberamos. No que toca aos filhos, eles estarão seguros com a mãe, especialmente se ela continua a respeitar e a amar neles o pai. Então o pai continua amorosamente presente. Mas isso não impede que a mãe mostre aos filhos que também ela começa algo novo. Então o passado promove o novo, em vez de paralisá-lo. 19.3.1998 Talvez você tenha deixado com os mortos sua força vital. Você a reencontrará se descer até eles com recolhimento, deitar-se silenciosamente ao seu lado até sentir tranquilidade e união com eles. Aguarde então, até que algo venha deles para você. Tome isso em seu coração, e lentamente retorne à luz dos vivos.
IV — Máximas e Pequenas Histórias Introdução
A pura verdade nos parece clara mas, como a lua cheia, ela esconde um lado obscuro. Porque brilha, ofusca. Assim, quanto mais tentamos apreender ou impor a face que ela nos mostra, tanto mais impalpável e secreta
sua face oculta se furta a nossos conceitos. O oculto Chama-se, às vezes, religião, quando um coração medroso fabrica um deus à sua imagem, para que não o esmague. Ou então: a religião é uma onda, que nos ergue e nos lança numa margem distante. Contra essa torrente não existe retorno. Os mitos nos fingem clareza onde reina a penumbra, e nos fingem trevas onde tudo está patente a quem olha. As imagens que fazem efeito são obscuras. As imagens claras e os mitos claros fazem parte das trevas da mente, que o herói supera em seu caminho para não perder a cabeça. Os grandes mistérios dispensam proteção: eles se preservam por si mesmos. Querendo desvendar o mistério, a teologia o transforma em objeto.
O mesmo fazem, às vezes, a ciência, com a natureza, e a psicologia, com a alma. O mistério desvendado se vinga. A beleza é sempre fragmentária. Aquilo que tememos, frequentemente passa abençoando. A intenção não substitui a compreensão. Diante do reconhecido, o pensado empalidece. Toda tragédia envolve cegueira. O vento que sopra não é novo nem diferente; é o mesmo de sempre. Muitas vezes, o saber desgasta a verdade. Às vezes, a última palavra É o silêncio. O vazio Alguns discípulos deixaram um mestre e, ao voltarem para casa, perguntavam-se, decepcionados: “O que fomos buscar com ele?”
Um deles comentou: “Embarcamos cegamente num coche, que um cocheiro cego, com cavalos cegos, cegamente tocava para a frente.
Mas se nós mesmos andássemos tateando, como os cegos, quando chegássemos à beira do abismo, talvez percebéssemos, com a nossa bengala, o vazio”. O zelo A fé que une um grupo impede-o de amar outros grupos. A liberdade na fé me salva da fé alheia, assim como a liberdade de consciência me salva da consciência alheia. Os adeptos de Javé são ciumentos.
O pecado não deixa os puros em paz. Quem quer o eterno quer a fatalidade. Muitos piedosos dizem: — Não terás nenhum deus além de mim. Em vez de aplicar golpes baixos também é possível crescer. O que se enfatiza demais não é acreditado. O que vem mastigado não tem sabor. O eu quer, a alma tem. Muitos zelosos se assemelham ao besouro: pensam que rolam o mundo com as patinhas traseiras. Quem muito se eleva não fica muito tempo no alto. Cabeça muito levantada se cansa. O que ganhamos lutando não permanece.
Do que combatemos não nos livramos. O deus que criamos nos mente. A religião é para alguns um fazer que não tem o desprendimento da devoção. Quem se integra no Todo deixa que a História siga seu curso. A devoção não tem intenções. Se você também sabe disso podemos perfeitamente passá-lo em silêncio. Encontra a felicidade quem se inclina. A expectativa
Um motociclista, orgulhoso proprietário de uma moto imponente, fez uma parada durante a viagem. Ao estacionar descobriu uma pequena mancha no cano de escapamento. Tomou um pano e limpou-a com muito cuidado. Alguém que estava ao lado comentou: “Se você cuidar bem dela, ela o abençoará”. O fogo
Conta-se que Prometeu roubou para os homens o fogo dos deuses. Eles com sentiram nisso, mas Prometeu ficou acorrentado num rochedo. Ele não sabia que os deuses teriam dado o fogo aos homens por iniciativa própria. A terra
A medida não é o céu, mas a terra. Onde o céu nos divide, a terra nos sustenta. Embora muitos vejam o mundo como contrário a Deus e ao céu,
muitas vezes, a devoção ao mundo serve melhor ao amor que a devoção ao céu. O olhar para o céu se dirige ao vazio. Religião é a participação amorosa num todo cada vez maior. O que foi plantado também tem o direito de crescer. Somos nós que estamos na alma, não a alma em nós. Fenomenologia é visão de Deus. A beleza no ser é algo incompreensível que atua. Descansar significa pulsar com a terra. O aqui-e-agora flui. O que amadurece precisa de tempo. O recolhimento só acontece nos limites. A chuva que cai do céu corre para o mar por muitos rios. O mesmo vento empina muitos papagaios. Vejo tua estrela, e sigo a minha.
O melhor
Um jovem de uma família rica foi para uma terra distante e lá dilapidou sua herança. Quando tinha perdido tudo, procurou um camponês e se empregou como seu servo. Seu irmão procedeu da mesma maneira. E quando ele também tinha perdido toda a sua herança, procurou o mesmo camponês. Então ambos caíram em si, e um deles disse: “Quando lembro de nossa casa e penso como passam bem os criados de nosso pai, tenho vontade de voltar para ele. Direi a meu pai: “Fiz tudo errado. Por favor, acolha-me de novo e me conserve como um de seus criados”. Seu irmão disse: “Vou fazer outra coisa. Amanhã procuro um trabalho melhor, poupo algum dinheiro, caso-me com uma das filhas do país e vou viver neste lugar, como todos os outros”. Renúncia
O que antes se chamava entrega e devoção é um extremo desprendimento que tudo toma e tudo dá — com amor. Quando faltam os pais, floresce a mística. Aos ascetas, falta a mãe; aos viciados, falta o pai. Ninguém suporta uma vida de anjo. Não se pode censurar a Jesus que o jovem rico o tenha deixado tristemente. O silêncio provém da entrega centrada àquilo que sustenta. O silêncio atrai.
Quem permanece em sintonia com a própria alma, jamais imita. É leve o que deixamos vir. Vocação significa: Uma força nos toma a seu serviço. Os que se recusam, decaem. Deus se retirou do mundo — é a nossa queixa. Mas ele também se retirou da Bíblia. A um Deus que se retirou Não devemos rezar. O último é o princípio E o princípio é agora. A dependência
Um homem comprou uma ovelha e se tornou um pastor. Quando ele falava com a ovelha, ela concordava balindo: Mé... E o pastor ficava feliz. Mas, quando a ovelha envelheceu, e o pastor tornou a falar com ela, ela investia furiosa contra ele. Então o pastor pensava: Nunca foi tão grande a nossa ligação. Mais tarde, quando a ovelha envelheceu ainda mais, ela simplesmente foi embora. Então o pastor ficou triste, pois voltou a ser um homem comum. O mesmo
A brisa sopra e sussurra, a tempestade brame e enfurece; e, no entanto, é o mesmo vento, o mesmo canto.
A mesma água nos sacia e nos afoga, nos carrega e nos sepulta. Tudo o que vive se desgasta, se conserva e se destrói. Numa coisa e noutra a mesma força o impulsiona. É ela que importa. A quem aproveitam, então, as diferenças?
V — Ordens do Amor 7 A questão religiosa
PARTICIPANTE: Tenho uma insegurança em relação a meus clientes. É que, quando ficam mais esclarecidos, eles abordam a questão religiosa. Ainda não vi nenhum caso em que isso não tenha acontecido. Venho mantendo uma grande reserva, mas noto que eu realmente precisaria dizer mais. HELLINGER: Não abordamos o problema religioso. PARTICIPANTE: Mas para onde eles devem direcionar sua energia? O que devem fazer com sua criatividade e com sua dedicação? HELLINGER: Sobre o problema religioso, nada sabemos. Seus clientes se defrontam com mistérios, o que é algo diferente. Alguns, porém, pretendendo conhecer o mistério, se esquivam dele e, com isso, o privam de sua força. Na verdade, é o próprio mistério que se 7 Trechos de cursos reproduzidos em Ordens do Amor, publicado pela Editora Cultrix, São Paulo, 2003.
retrai diante deles. Preocupar-se por Deus
PARTICIPANTE: Sou, por profissão, ministra evangélica. Nestes últimos anos muita coisa mudou, pois assumi maiores responsabilidades. Há pouco tempo, também fui eleita para um conselho diretor da Igreja. Sinto que ainda preciso encontrar meu lugar nessa equipe. Isso me preocupa, até mesmo em sonhos. HELLINGER: Como a mais nova eleita, você precisa primeiro ganhar uma posição, até que possa exercer influência. Por conseguinte, deixe ainda, por algum tempo, que os outros deliberem sobre o que for necessário, e acate suas decisões. PARTICIPANTE: Enquanto as coisas acontecem aqui no grupo e você está falando, eu me vejo constantemente reunida com o conselho da Igreja, e ouço tudo a partir desse pano de fundo. HELLINGER: Vou lhe dizer uma coisa sobre os conselhos eclesiásticos. Eles se caracterizam por não terem confiança em De us e confiarem demais no próprio planejamento. Se Deus existe, eles não precisam preocupar-se tanto. Era uma vez um certo Pedro, sobre quem existe um relato nos Atos dos Apóstolos. Quando ele foi julgado por um tribunal em Jerusalém, um certo Gamaliel, que era uma espécie de sumo sacerdote, disse uma palavra sábia. Lembra-se dela? PARTICIPANTE: Sei o que você quer dizer. HELLINGER: “Se isso é uma coisa de Deus ninguém conseguirá detêla. E, se não é de Deus, se desfará por si mesma, e vocês nada precisam fazer para isso”. PARTICIPANTE: Ainda não estou preparada. HELLINGER: Estou vendo. Contudo, quando uma pessoa alcança esse nível de compreensão, ela se assenta num conselho desses como se não pertencesse a ele. Nesse momento, ela pode atuar sem agir.
PARTICIPANTE: Isso é bom. Mas me ocorrem ideias, e preciso entender o que está acontecendo. HELLINGER: Você quer entender os caminhos de Deus. Pode ser que a vontade de Deus se realize justamente quando algo sai errado. Quem sabe? PARTICIPANTE: Isso me toca, mas não o entendo. Por quê? HELLINGER: Reflita ainda sobre o seguinte: Como pode alguém atrapalhar Deus? Falando em termos teológicos ou filosóficos, qual é o ser mau que pode fazer algo contra Deus, ou impedi-lo de algo? E qual é o ser bom que tem esse poder? PARTICIPANTE: Sinto vontade de chorar, não sei por quê. HELLINGER: Isso eu posso lhe dizer, pois me lembro de nossa última sessão de terapia primal. PARTICIPANTE: Estou sempre pensando nela. HELLINGER: Você precisa abandonar seu sonho de menina, de que seu amor pode trazer seu pai de volta da guerra. Precisa despedir-se do sonho de que isso está em seu poder. Eu me lembro, e é disso que se trata aqui: despedir- se de um lindo sonho. Essa conexão está clara para você? PARTICIPANTE: Não completamente. Existe algo mais. Desde que você falou das imagens internas, eu me sinto oscilando entre sentimentos contrários. HELLINGER: Eu também participei de conselhos eclesiásticos. De vez em quando dizia, de passagem, uma frase sobre algo que percebera como correto. Na ocasião, desaprovavam com a cabeça. Porém, um ano depois, um deles repetia a frase e recebia aprovação, como se ela fosse evidente. Causa um secreto prazer verificar como uma frase atua silenciosamente durante um ano. Portanto, é possível atuar discretamente nesses conselhos. Mas precisa ser a frase certa! As mulheres que aparecem como Deus
THOMAS: Eu gostaria de colocar minha família de origem, e olhar para meus avós. HELLINGER: Quem pertence à sua família? THOMAS: Meu pai, minha mãe, eu, que sou o mais velho, e minhas quatro irmãs. HELLINGER: Algum dos pais teve uma ligação anterior? THOMAS: Antes de se casar, minha mãe teve um namorado que era casado. Tinha com ele uma grande afinidade de alma. Mas, quando encontrou o meu pai, ela disse: “Este homem foi d eterminado para mim”, e casou-se com ele. Quando meu pai morreu, ela retomou o relacionamento com o primeiro namorado. HELLINGER: E seu pai, teve alguma ligação anterior? THOMAS: Não, ele foi um teólogo frustrado. HELLINGER: O que significa um teólogo frustrado? THOMAS: Ele entrou para uma ordem religiosa e, pelo que me contou, era extremamente perfeccionista. Mortificava-se muito e era imensamente rigoroso consigo mesmo. Então teve um esgotamento nervoso, e deixou a ordem religiosa. HELLINGER: O que foi que seu pai não agradeceu? Qual foi a graça que ele deixou de reconhecer? — O esgotamento nervoso. Pois foi uma graça. THOMAS: O caminho dele foi totalmente marcado pelo fracasso. HELLINGER: A razão disso foi não ter agradecido por aquela graça. Vou contar-lhe uma pequena história a respeito. A graça passa
Numa enchente, depois de um longo temporal, um rabino subiu ao telha- do de sua casa e pediu a Deus que o salvasse. Pouco tempo depois, um homem se aproximou com um barco para salvado. Mas o rabino disse: “Deus me salva- rá”, e o mandou embora.
Então chegou um helicóptero para resgatado, mas ele também o dispensou. Finalmente afogou-se. Quando chegou ao trono de Deus no céu, o rabino se queixou de que Ele não o tinha ajudado. Deus lhe respondeu: “Mas eu lhe mandei um barco e um helicóptero”.
HELLINGER (para Thomas): Bem, agora coloque a sua família. Figura 1
P
Pai
M
Mãe
1
Primeiro filho (= Thomas)
2
Segundo filho, mulher
3
Terceiro filho, mulher
4
Quarto filho, mulher
5
Quinto filho, mulher
HELLINGER (para os representantes da família): Com quem vocês todos estão zangados? SEGUNDO FILHO, MULHER: Com o pai? HELLINGER: Não. (para Thomas): Com Deus. — Esse Deus é aqui um homem ou uma
mulher? THOMAS: Não estou certo. Não consigo perceber. HELLINGER: Quando Deus aparece num sistema, na verdade ele é sempre uma pessoa do sistema. THOMAS: Então é um homem. HELLINGER: Não estou tão seguro. Bem, vamos começar. Como está o pai? PAI: Muito mal. Estou fixando o vazio, e nada tenho a ver com essas pessoas. HELLINGER: Exato; a graça não lhe serviu de nada. Como está a mãe? MÃE: Numa palavra: impossível! Absolutamente impossível! HELLINGER (para o representante de Thomas): Como está o filho? PRIMEIRO FILHO: Não estou bem. Quero sair daqui. SEGUNDO FILHO, MULHER: Sinto-me sobrecarregada, como uma mãe que cuida sozinha dos filhos. TERCEIRO FILHO, MULHER: Tenho a sensação de estar num canto totalmente abrigado. QUARTO FILHO, MULHER: Só estou bem porque não sinto nada. Não tenho mais nada a dizer. HELLINGER (para Thomas): Fale um pouco sobre a família de seu pai. THOMAS: Meu pai é o filho mais velho e teve sete irmãos. Tinha uma firma que pertencia a meu avô materno, e à qual meu pai se associou pelo casamento. Ali minha mãe era, e ainda é, a pessoa mais importante. HELLINGER: Houve acontecimentos marcantes, além dos numerosos filhos? THOMAS: Uma irmã de meu pai morreu tuberculosa. Seus irmãos
mais novos eram gêmeos. Um deles rolou de uma escada e morreu. Meu avô era destinado ao sacerdócio por sua mãe, mas o pai dele o impediu. HELLINGER: O pai dele o impediu? THOMAS: O pai de meu pai era destinado ao sacerdócio, assim como meu pai e eu também, mas o pai dele o impediu. O desejo de ter sacerdotes era aparentemente transmitido pelas mães e os pais o impediram — ou esse pai. HELLINGER: Está bem. — Deus é então um homem ou uma mulher? — Vamos colocá-lo. THOMAS: Quem? HELLINGER: Esse Deus. Quem pode ser? THOMAS: Agora eu escolheria uma mulher. HELLINGER: Sim, escolha uma mulher para representar esse Deus. (para o grupo): Vocês não precisam ter medo. Aqui os papéis são sempre humanos.
Figura 2
D
Deus
HELLINGER: O que mudou? PRIMEIRO FILHO: Fiquei um pouco aliviado.
TERCEIRO FILHO, MULHER: Não sei o que essa mulher está fazendo aí. E ela nem sequer olha para mim. HELLINGER: Mas o nível de energia se elevou. — Como está o pai? PAI: Com esse Deus não quero ter nada a ver. HELLINGER: Sim, quando ele aparece poucos querem ter algo a ver com ele. PAI: Isso me angustia e me deixa muito intranquilo. Gostaria de ir embora. MÃE: Eu gostaria de torcer o pescoço dela. REPRESENTANTE DE DEUS (THEA): EU sabia que Thomas ia me escolher para este lugar, pois frequentemente assumo o papel de uma figura ameaçadora. HELLINGER: Não precisa se desculpar. — Como se sente nesse papel? REPRESENTANTE DE DEUS: Nada bem. HELLINGER: Para onde vai a energia? REPRESENTANTE DE DEUS: Para o vazio, lá na frente. HELLINGER (para Thomas): Que mulher é essa, na realidade, e para onde ela está olhando? THOMAS: Estou pensando na outra avó, que morou conosco em nossa casa. HELLINGER: A mãe de sua mãe? — O que aconteceu com ela? THOMAS: Teve uma criança, que nasceu morta; depois, quase morreu, e então teve minha mãe. HELLINGER: Vamos introduzir também essa avó. Coloque-a ao lado da outra mulher. Vamos imaginar agora que Deus é a mãe de se u pai — o que provavelmente é o caso. Figura 3
MP(D)
Mãe do pai (Deus)
MM Mãe da mãe SEGUNDO FILHO, MULHER: A energia aumenta incrivelmente. PRIMEIRO FILHO: Eu também sinto um pouco isso, mas não é o certo. HELLINGER (para Thomas): Como se tira o poder de Deus? — Por meio dos dois maridos. Vamos colocar também os dois avôs? Coloque-os simplesmente, cada um ao lado de sua mulher, que ele priva de poder. Figura 4
PP
Pai do pai
PM
Pai da mãe
PRIMEIRO FILHO: Está ficando cada vez melhor. PAI: Está muito mais fácil. SEGUNDO FILHO, MULHER: Está muito menos perigoso. HELLINGER: Sim, exatamente. Porque as mulheres são perigosas. Os homens, em contraposição, representam a vida e a terra. SEGUNDO FILHO, MULHER: A terra? HELLINGER: A terra, por estranho que pareça. Quando os filhos estão em perigo, em risco de suicídio, por exemplo, quase sempre ficam mais seguros com o pai. PAI: Sinto um grande alívio, desde que os avôs estão presentes. HELLINGER: Busque agora a sua mulher! Ele bate palmas, vai até sua mulher, a enlaça e a coloca a seu lado. Ela o acompanha, rindo. Nesse meio tempo, a irmã mais velha se coloca à esquerda, junto de seu irmão. Figura 5
HELLINGER (para os pais do pai e da mãe): Como estão vocês? MÃE DO PAI: Agora já estou bem.
PAI DO PAI: Neutro, tudo em ordem. MÃE DA MÃE: Agora me sinto bem. PAI DA MÃE: Eles têm a minha bênção. MÃE: Quando apareceram os avós, minhas mãos pararam de tremer. Agora estão bem aquecidas. HELLINGER: Certa vez configurei o sistema de uma mulher cujo pai era um pastor evangélico. Em famílias de sacerdotes é sempre preciso incluir Deus na representação. O roteiro da constelação era “A Visita da Velha Senhora”. 8 Quando a mulher colocou os personagens, ela própria ficou de um lado, com os filhos e as babás, e o pai ficou sozinho do outro lado. Exemplo: Figura 1
P
Pai
M
Mãe
1
Primeiro filho, mulher (= cliente)
Segundofilho, mulher
2
Ba
Babá
Então perguntei a eles: Deus, nessa família, é um homem ou uma 8 Alusão ao drama de mesmo nome, de Friedrich Dürrenmatt (N.T.)
mulher? Ela respondeu: Uma mulher. Então a incluímos, e isso foi a “Visita da Velha Senhora”. Exemplo: Figura 2
D
Deus
É sempre terrível quando Deus aparece numa família assim. É um inimigo da vida nessas famílias, e quase sempre é uma mulher. Quando aparece como um homem, não é inimigo da vida. MÃE DO PAI (DEUS): Quando fiquei aqui sozinha tive de repente a sensação de que todas as agressões, tudo o que está neste espaço, se concentrava em mim. HELLINGER: Veja como é bom haver homens! (para Thomas): Creio que deixei a coisa bem clara. Você quer entrar pessoalmente em seu lugar? Thomas toma seu lugar e olha em volta, com um gesto de aprovação.
HELLINGER: Nesta constelação eu me limitei ao mais importante pois aqui isso é suficiente. Está bem? Thomas concorda com a cabeça.
HELLINGER: Bem, foi isso aí. O homem e a mulher
HELLINGER (para o grupo): Mais alguma pergunta sobre este assunto? ANNE: Ainda tenho uma pergunta: Por que a terra é algo masculino? Sempre ouvi dizer o contrário, e gostaria de saber. HELLINGER: Está certo, a terra é feminina. ANNE: A terra é feminina, mas você disse que a mulher...? Eu não entendi isso. HELLINGER: A terra é feminina, mas o homem, com o seu trabalho, faz com que ela floresça. Vamos dizer assim, porque as imagens têm muitas camadas. O que acontece é que a mulher dificilmente distingue entre si mesma e seus filhos. O homem sempre faz esta distinção, a não ser que esteja muito doente. Por isso, é junto do pai que as crianças estão mais seguras em sua individualidade. ANNE: Isso eu posso entender. HELLINGER: É assim. Não há nisso nada de mau, é algo que pertence à natureza. Por isso cabe aos homens — ainda! — um papel bem determinado. THOMAS: Eu me fiz uma pergunta: Como lidar com meu lado destrutivo, com minha inquietação destrutiva? HELLINGER: Você precisa passar para a esfera dos homens, é o que sempre lhe tenho dito. Um homem barbado, como você, deve passar para o lado dos homens, sobretudo dos pais. Precisa passar da esfera da mãe para a esfera do pai. Renegando Deus
HELLINGER (para Thomas): Você já terminou? Conseguiu tudo o que queria? THOMAS: Ainda me interessa o problema da identificação. Com quem eu estava identificado? HELLINGER: Não creio que identificação seja o termo correto neste
caso. Aqui se transmite simultaneamente uma obrigação e a necessidade de contestá-la. Ambas as coisas. THOMAS: Eu também sinto isso. HELLINGER: Ambas as coisas estão incluídas aí. A imitação exige que você simultaneamente assuma a obrigação e a rejeite. THOMAS: Correto. É exatamente isso. HELLINGER: E onde está a solução? — Em renegar Deus. Pois esse é um deus muito pequeno. Despeça-se dele com dignidade, e dedique se a algo maior. Então você estará na linha certa. O Deus maior enviou a seu pai o esgotamento nervoso, mas seu pai não o reconheceu. THOMAS: O problema é este: O que posso reconhecer como sendo de Deus? HELLINGER: Nada. Permaneça no amor à terra. Quem representa o papel de Deus em sua família apresenta-se como inimigo da terra. Entretanto, a terra é a única e a maior realidade que conhecemos. E ela, e não o céu, que encerra o maior mistério. THOMAS: Dedicar-me à terra é o que tenho feito ultimamente. HELLINGER: Justamente. É importante que também a criança que existe em você se deixe conduzir nesse sentido. Isso acontece se você se colocar ao lado dos homens ou na frente deles, de modo a ser apoiado pelas costas. Apenas isso. Está bem? Quero acrescentar algo sobre as vocações, as chamadas vocações divinas. Via de regra, elas procedem somente do Deus que aparece n a família — que geralmente é a mãe. Quando alguém não segue tal vocação, por exemplo, ao sacerdócio, e age em sentido contrário, como aconteceu em sua família, essa pessoa só consegue isso por meio de uma apostasia e de uma mudança de rumo. Caso contrário, acaba vivendo de forma mais limitada do que se tivesse seguido aquela missão. Alguém só pode escapar de tal vocação — para usarmos uma expressão drástica — se amaldiçoar esse Deus. Só é capaz disso quem tem uma grande fé e muita força. Quem não consegue isso também
não consegue a solução. Vou contar a vocês uma pequena história que serve de ilustração. Ela poderia chamar-se A apostasia, ou A fé, ou O amor. Nesta história, essas palavras têm o mesmo significado. A fé maior
Certa noite, um homem sonhou que ouvia a voz de Deus que lhe dizia: “Levanta-te , toma o teu filho, teu único e querido filho, leva-o à montanha que eu te mostrarei e ali me oferece esse filho em sacrifício!’’ De manhã, o homem se levantou, olhou para o seu filho, seu único e querido filho, olhou para sua mulher, a mãe da criança, olhou para seu Deus. Tomou o filho, levou-o à montanha, construiu um altar, amarrou as mãos do filho, puxou a faca e queria sacrificá-lo. Mas então ouviu uma outra voz e, em vez de seu filho, sacrificou uma ovelha. Como o filho olha para o pai?
Como o pai olha para o filho? Como a mulher olha para o homem? Como o homem olha para a mulher? Como eles olham para Deus? E como Deus — se existe — olha para eles? Um outro homem sonhou, à noite, que ouvia a voz de Deus que lhe dizia: “Levanta-te, toma o teu filho, teu único e querido filho, leva-o à montanha que eu te mostrarei e ali me oferece esse filho em sacrifício!” De manhã, o homem se levantou, olhou para o seu filho, seu único e querido filho, olhou para sua mulher, a mãe da criança, olhou para seu Deus. E lhe respondeu, encarando-o: “Isso eu não faço!” Como o filho olha para o pai? Como o pai olha para o filho? Como a mulher olha para o homem? Como o homem olha para a mulher?
Como eles olham para Deus? E como Deus — se existe — olha para eles?
HELLINGER: Deixei isto claro? HARTMUT: Claríssimo. HELLINGER: Com isso, esclareci a questão. Deixei claro o que significa a apostasia, que força de fé e de amor essa atitude requer, e como é mesquinha a fé dos crentes que sacrificam seus filhos e os entregam à justiça desse Deus. O Deus maior
HELLINGER (para uma participante): De que se trata? PARTICIPANTE: Gostaria de reencontrar a confiança. HELLINGER: Em quê? PARTICIPANTE: Em Deus, em primeiro lugar; depois, no amor e em mim mesma. É o mais urgente. HELLINGER: Gostaria de dizer-lhe algo sobre Deus. Ele é terrível. Ele não tem a compaixão com que contamos. Costumamos pensar nesse Deus do mesmo modo como pensamos em nosso pai e nossa mãe. E exigimos dele que seja justo, no sentido que damos a essa palavra. Isso ele não é. Seja qual for o nosso destino, leve ou pesado, bom ou mau, ele o dirige sem levar em consideração nossos desejos. Ele o dirige de uma tal maneira, que precisamos sofrer e morrer. O que parece funesto para nós não tem nenhum valor para ele. A religiosidade, a atitude religiosa, consiste nisto: inclino-me diante de meu destino, do modo como ele é, e renuncio à esperança e à felicidade sonhada. É curioso que, quando nos sujeitamos ao destino e simplesmente nos entregamos a ele, sentimo-nos sustentados por ele. Tudo fica maior, bem maior. E mais realizado. Alguma outra pergunta?
PARTICIPANTE: Muitas vezes eu me sinto bem distante, separada dos outros e incapaz de entrega. A intimidade é muito superficial. Na verdade, eu me retraio. Não consigo, por exemplo, encontrar um parceiro. HELLINGER: O movimento religioso é como subir às alturas, escalar uma montanha. Embaixo, no vale, estamos perto dos outros, em estreito contato, talvez felizes também. Quem sobe à montanha, na medida em que sobe mais alto, fica mais isolado. No entanto, descortina uma paisagem mais ampla e se conecta com muito mais coisas do que no vale. Mas não existe a mesma intimidade. Não é mais como uma criança, ligada à mãe, mas abrindo-se para a amplidão do espaço. Isso é um certo modo de morrer, e tem grandeza. Quem esteve no alto, totalmente só e isolado, ao descer para o vale traz luz em seu olhar. Imagens de Deus
As ordens do amor que experimentamos em nossos relacionamentos anteriores também afetam a nossa relação com a vida e o mundo como um todo, bem como com o mistério que pressentimos por trás dele. Assim, podemos relacionar-nos com esse Todo misterioso como uma criança se relaciona com seus pais. Nesse caso, buscamos um Deus Pai ou uma Grande Mãe, cremos como uma criança, esperamos, confiamos e amamos como uma criança. Então tememos esse Ser como uma criança; e também, como uma criança, talvez tenhamos medo de saber. Podemos também relacionar-nos com o Todo misterioso como com nossos antepassados e com nosso clã familiar. Nesse caso, sentimonos como seus consanguíneos numa comunidade de santos, mas também como rejeitados ou escolhidos, segundo uma lei implacável, cujos decretos não entendemos nem podemos influenciar. Ou ainda, podemos tratar o Todo misterioso como se fosse nosso igual num grupo. Tornamo-nos então seus colaboradores e
representantes, negociamos ou firmamos uma aliança com Ele e regulamos contratualmente os direitos e deveres, o que se dá e o qu e se recebe, os ganhos e as perdas. Podemos também comportar-nos em relação ao Todo misterioso como numa relação conjugal, onde existem um amado e uma amada, um noivo e uma noiva. Ou, ainda, podemos tratar esse Todo misterioso como os pais se comportam diante dos filhos. Então lhe dizemos o que Ele fez de errado e o que precisa melhorar, questionamos sua obra e, se este mundo não nos convém como ele é, procuramos salvar-nos dele, e salvar também outras pessoas. E pode acontecer, finalmente, que, ao nos relacionarmos com o mistério deste mundo, releguemos ao passado e esqueçamos as ordens do amor que conhecemos, como se já fôssemos rios que alcançaram o mar e caminhos que chegaram à meta. O espiritual
PARTICIPANTE: Certa vez, você fez uma distinção entre dizer-se mensageiro de algo espiritual e sentir-se participante de uma alma comum. Gostaria de perguntar-lhe se o seu trabalho pode ser chamado de espiritual. HELLINGER: Evito o termo “espiritual” sempre que posso, porque ele se presta a muitos abusos. Os que se denominam espirituais recusam-se, em sua maioria, a passar pela purificação. Quando se pensa, por exemplo, em São João da Cruz, que por vinte anos atravessou a longa noite do espírito, sabemos o que o espiritual significa, e que se pode praticá-lo gratuitamente. Essa purificação é exigida de todos os que passam por esse caminho, e os que a atravessaram não a comentam. Quem comenta essa experiência, geralmente não passou por ela. Falando em termos gerais, e algo pretensioso, pressentimos que o divino se associa antes ao não-ser do que ao ser. Ele está muito
distante. E há uma grande tranquilidade e humildade em deixá-lo manifestar-se e atuar. O divino não nos fornece instruções de manejo. Atrevo-me a dizer que dele não provém nenhuma revelação. Digo isso, embora seja uma afirmação muito ousada. Em contraposição, chamo de alma aquilo que atua e nos fornece instruções de manejo. A alma está associada ao ser, enquanto o divino se relaciona ao não-ser. Ilustro isso com uma imagem: todo ser é envolvido por um não-ser. Em comparação com o ser, que é limitado, o não-ser é muito maior, é infinito. O que transcende o ser é o nãoser. Mas ele é atuante. Ele não atua como um ser, mas o ser adquire grandeza quando o reconhece. Este seria para mim o âmbito do espiritual. Em contraposição, a alma é , posso confiar-me à sua atuação. Mas ela atua em diferentes níveis, um deles mais superficial e outro bem profundo. No meu trabalho, fui progressivamente descendo a esse nível profundo, na medida em que ele se manifestava. Talvez haja um estrato ainda mais profundo, do qual lentamente me aproximo, sem poder ainda captá-lo. É preciso que ele se manifeste no trabalho. Por isso, também é tão importante para mim que todas essas compreensões sejam adquiridas pela experiência. Sem ela, eu não poderia reconhecer isso. É algo que não podemos simplesmente imaginar: precisamos vê-lo na experiência. Por isso, também amadurecemos com esse trabalho. Ele nos possibilita um profundo desenvolvimento humano, uma harmonização com as profundezas. PARTICIPANTE: Isso me soa como um cântico ao amor. HELLINGER: Sim, a imagem me agrada. É justamente isso, um cântico ao amor. A pergunta final seria esta: a Alma, a grande Alma, é eterna ou efêmera? Talvez ela seja efêmera.
VI — Experiências de Deus 9 A religião em concordância
Tenho uma concepção da religião. Denomino-a religião em concordância com o mundo, tal como ele se manifesta. Dizer que estou em concordância com o mundo equivale a dizer: “Estou satisfeito com o mundo, tal como ele é. Estou satisfeito comigo, tal como sou. Estou satisfeito com os outros, tais como são. Estou satisfeito com aquilo que é assustador: com a morte, a culpa, o destino. Estou em concordância”. Essa seria para mim uma atitude religiosa. Nela eu saio de mim e me abro a algo mais amplo, sem tentar compreendê-lo. Amplio meu olhar, recuo alguns passos e então me detenho. Defronto-me com o mistério ou a morte, a culpa ou o destino, sem tentar interferir. Nesse momento, estou centrado diante do todo, da maneira como ele chega ao meu olhar ou ao meu sentimento. Esta é uma atitude muito humilde, porque não busca absolutamente nada. Em vez de tentar influenciar, deixo-me influenciar por aquilo que se manifesta e vem a mim. Por isso, não faço nenhuma imagem de Deus, ou de algo que o substitua. Porém sustento o mistério religioso, sustento o vazio. Esta seria para mim uma atitude religiosa. Essa atitude tem um efeito interessante: eu me coloco no mesmo nível de tudo. Sou um entre muitos. E cada um tem o mesmo valor, está na mesma posição de quem não sabe e, contudo, se abre a algo maior, sem tentar entendê-lo. Essa atitude eu chamo de humildade. Não procura saber, mas sustenta. Como podemos observar, quem se coloca nessa posição ganha uma força que resulta dessa sintonia. Ele não se coloca contra a realidade que se manifesta, mas é sustentado por ela. 9 De um colóquio no Congresso sobre Fundamentalismo e Arbitrariedade no campo da Ciência e da Terapia. Heidelberg, Alemanha, 3 de maio de 1996.
A psicoterapia em concordância
Descrevendo essa atitude religiosa, descrevi simultaneamente uma atitude psicoterapêutica. Essa atitude não visa salvar pessoas a partir de um determinado modelo, por melhor que seja, mas se defronta com uma realidade e espera que ela atue, no momento em que desejar. Então essa realidade já não será desfigurada por nossas imagens, por nossas intenções ou por nosso medo, e simplesmente virá à luz. O medo diante de Deus
Os medos que se acumulam em torno da religião e de Deus relacionam- se com rejeição e aceitação. Os principais medos são estes: Serei rejeitado? Ou, na expressão de Lutero: “Como encontr arei um Deus complacente?” Nesses medos o que está em jogo é sempre a necessidade de pertencer e a possibilidade de ser rejeitado. Observa-se que esse medo é sempre o mesmo, independentemente das diversas imagens de Deus que prevalecem em famílias judaicas, indianas, islâmicas, católicas ou evangélicas. Portanto, ele não depende de uma determinada imagem de Deus, mas do fato de que a fé em Deus é, na maioria dos casos, uma condição para pertencer a grupos importantes para a sobrevivência do indivíduo. Renegar Deus significa, portanto, renegar a família e seus valores, e acarreta a exclusão dessa família. Por essa razão, muitos medos projetados na relação com Deus são os medos de uma criança dentro da família. O mistério
Esta expressão: “Estamos a serviço de forças mais elevadas” é, naturalmente, uma afirmação religiosa. Porém desejo fazer uma distinção. Às vezes, criamos determinadas imagens de Deus. Dizemos, por exemplo, que ele tem de ser justo. Então julgamos o mundo a partir dessa imagem e dizemos que, se o mundo é assim, Deus não pode ser justo. Ou então dizemos que Deus é amor, e tiramos conclusões semelhantes. No entanto, posso renunciar completamente a fazer afirmações sobre
o mistério que existe e atua por trás da vida, do mundo e do ser. Todos percebem que aí existe um mistério que escapa à nossa compreensão. Inúmeras filosofias são tentativas de se apoderar desse mistério ou de representá-lo. Pois bem, quando vejo as contradições do mundo, tal como ele é — por exemplo, as guerras e os extermínios em massa —, e as vejo como algo que faz parte dele, e não tenho a pretensão de condenar isso como algo mau mas simplesmente deixo estar, inclino-me diante dessa realidade e me submeto a ela tal como é, adoto uma atitude em que cesso de combater interiormente e me harmonizo com as contradições. Nesse momento eu me mantenho centrado, e não preciso sair a campo contra ninguém, nem mesmo contra algum criminoso, por pior que seja. Então também não preciso acionar nenhum movimento para melhorar o mundo, no sentido de que deveria ser diferente do que é. Esta é para mim a atitude religiosa básica. Quando digo: “Estou em concordância com o mundo”, ou: “Atuam poderes que vão além de mim”, ou: “Fui tomado a serviço”, estas são, naturalmente, apenas metáforas que induzem uma atitude de respeito ou de contemplação face a um mistério, ante o qual preciso deter-me. É curioso que, quando tomo essa atitude, consigo produzir, a partir dessa concordância, efeitos muito superiores a meus planos. Então também poderíamos dizer que nesse momento atua uma força religiosa. Essa atitude é muito modesta. Quando quero alcançar algo no sentido da reconciliação entre os seres humanos, essa reserva é melhor do que qualquer planejamento. A atitude religiosa
O pressuposto do diálogo religioso é o respeito diante do mais ínti mo — pois o religioso é o que há de mais íntimo. No domínio do religioso, não posso distinguir entre o verdadeiro e o falso, pois todos caminhamos às cegas. Por essa razão, quando alguém se apoia numa concepção religiosa, tenho de respeitá-la. Nas diversas religiões há
grandes diferenças de conteúdo, mas as atitudes e a força que as pessoas retiram delas se equivalem e são igualmente profundas. Quero ainda ressaltar um outro nível. O que é decisivo na atitude religiosa me parece ser o modo de encarar a morte, a culpa, o destino. Muito do que se chama “religioso”, entre aspas, são tentativas de neutralizar o impacto da morte, do destino e do sofrimento, para evitar o confronto com essas realidades, na medida em que surgem diante de nós. A psicoterapia assume, às vezes, uma atitude semelhante quando quer neutralizar algo ameaçador, interpretando-o ou transpondo-o para um outro contexto, de modo a impedir ao indivíduo o enfrentamento da adversidade. Para mim, um dos primeiros processos de uma psicoterapia que visa não apenas tratar sintomas, mas também proporcionar uma orientação básica, é o de ajudar as pessoas a se defrontarem com seu próprio fim e a olharem a morte com tranquilidade. Essa é uma atitude religiosa cheia de força, que não tenta atenuar a morte, ou eliminá-la do mundo. Quem adota essa atitude não atribui às imagens religiosas um papel tão importante. O mesmo vale para a atitude do terapeuta em face dos diferentes destinos, do bem e do mal, de perpetradores e de vítimas. Exponhome à dicotomia e encaro com tranquilidade ambos os lados, sem querer dissolver as oposições. Caso contrário, interfiro em algo grande, como se pudesse fazê-lo. O caminho
Na mística vale o princípio de deixar imediatamente para trás toda experiência religiosa anterior, para que o caminho permaneça sempre livre e aberto. Por isso, sou muito cauteloso quando alguém diz que teve uma experiência religiosa, e deixo em aberto se realmente foi uma experiência religiosa. Exprimo o religioso por meio de várias imagens. A primeira é a do
caminho, em que progredimos na medida em que deixamos para trás o que passou. A outra imagem é o inverso da primeira: não existe absolutamente nenhum caminho. Precisamos apenas parar, e temos tudo de que precisamos. “Deus está morto”
A pergunta que se coloca é se existe um fundamento para a religião. Nietzsche falou: “Deus está morto”. Alguns tratam essa frase com o uma afirmação. Julgo, porém, que Nietzsche apenas constatou um fato: algo que existia antes morreu, foi-se embora; de repente, criouse um vazio. Muitos julgam que Deus se retirou da Bíblia. Percebo que ele estava lá, e muitas pessoas o encontraram: Bach, com sua música, grandes autores. Mas nós, os homens de hoje, já não conseguimos compor ou fazer obra de arte a partir dessa natural ligação com Deus que era vivida antigamente. Naquela época, Deus estava nas igrejas. Agora, de repente, muitas pessoas as sentem vazias, como se Deus não mais estivesse nelas, como se as tivesse abandonado. Para mim, a atitude religiosa deve comprovar-se na confrontação com esse vazio, com essa ausência. Esta seria para mim a mais profunda realização religiosa, sem fundamentação. Mas ela proporciona uma forma de segurança completamente distinta.
VII — Religião, Psicoterapia e Aconselhamento Espiritual 10 Teologia feminista
Sinto um certo constrangimento quando se propaga uma teologia feminista, ou se apresenta Deus sob forma feminina. Isso afasta muito do que realmente importa. Pois lidamos com um mistério que 10 De um colóquio no I Congresso Mundial de Psicoterapia. Viena, Áustria, 3.7.1996.
ultrapassa essas distinções. Experiências religiosas em psicoses
Uma terapeuta contou que um paciente seu teve experiências de Deus na psicose, e ela não sabe como lidar com isso. Num exemplo como este, ocorre dizer algo sobre a cooperação entre a psicoterapia e o conhecimento religioso. Como terapeuta, minha primeira medida seria tentar descobrir, na família do paciente, onde se encontram duas atitudes religiosas opostas. Então eu colocaria, lado a lado, representantes dessas duas atitudes, e diria ao paciente que abraçasse ambas as pessoas, imaginando que os contrários confluem e se unificam nele. A seguir eu viraria o paciente, fazendo-o apoiar as costas nessas duas pesso as, que colocariam as mãos sobre ele. Com isso, talvez a divisão se dissolvesse. Este seria o procedimento psicoterapêutico. Para lidar bem com isso, também seria preciso conhecer algo sobre as grandes tradições religiosas e as luzes adquiridas pela espiritualidade no Ocidente. Isso vale igualmente para a mística islâmica. O místico deve saber, em primeiro lugar, que toda experiência religiosa é efêmera. Um princípio da mística manda que a pessoa abandone imediatamente toda experiência anterior relacionada a isso. E que se abra ao desconhecido, não cedendo à tentação de atribuir um valor excessivo à nova experiência. No conhecimento da tradição religiosa da espiritualidade ocidental, o terapeuta encontra forças para manter uma tranquila distância dessas experiências e para transmitir ao cliente algo que o ajude a desapegar se delas. A cautela
Numa conferência desta manhã, alguém caracterizou a consciência como um degrau intermediário entre o humano e o divino. Tendo observado cuidadosamente, durante muito tempo, o modo de atuar da consciência, verifiquei que a maior parte do que se chama
por esse nome é, na verdade, uma pressão do sistema a que pertencemos, no sentido de nos adaptarmos a ele. Por outras palavras, a consciência está a serviço da vinculação ao nosso sistema de origem. Essa pressão é tão forte que qualquer desvio dos valores desse sistema é sentido como culpa. Essa consciência não tem nenhuma dimensão religiosa. Quem a segue é dirigido pelo exterior; por outras palavras, é determinado pelo sistema ao qual pertence. Em virtude da vinculação ao grupo, existe na alma uma tal confusão de sentimentos e ideias que a purificação exigida pela mística precisa avançar muito. Pois ela foi vista pela mística — e a psicoterapia a vem encarando amplamente do mesmo modo — como intrapsíquica. Essa purificação é bem-sucedida quando alguém, por meio da reconciliação, se desprende interiormente dos vínculos à família. Quando alguém chega a esse ponto, percebe que foi tomado a serviço de um modo totalmente pessoal, ou que tem uma vocação. Nesse momento, emergem subitamente das profundezas visões que o assustam. Pois ele é levado a atitudes que talvez pareçam estranhas a outros, e que ele assume, na intenção de cumprir uma missão que não compreende. Esse seria, portanto, o lugar preferencial da experiência que se costuma chamar religiosa. Digo-o assim, pois estou convencido de que, mesmo em face dela, é preciso ser extremamente reservado e evitar essa denominação, interpondo assim uma distância entre o que experimento e o mistério que talvez atue por trás dessa experiência. Só nessa extrema reserva, em que me despojo de meus próprios sentimentos e experiências, atua uma força estranha. E nisso consiste a concordância, que é bem próxima da terra, e traduz o que nela existe de especial. Cito um exemplo. Há pouco tempo, participou de um grupo um homem que, quando jovem, foi responsável por um acidente de moto. Ele se feriu gravemente e seu companheiro quebrou ambos os braços. Nessa ocasião, ele teve uma experiência em que se desprendia do
corpo e podia observar tudo o que lhe acontecia, como se pairasse acima disso. Ele considerou essa experiência como religiosa. No entanto, separou-se levianamente de sua família. Eu lhe disse que ele tinha se recusado a voltar para a terra, que isso teve efeitos funestos para sua família, e que ele permanecia totalmente desligado. Para ele, o ato religioso teria consistido em voltar-se conscientemente para uma realização absolutamente comum. Por isso, acolho com ceti cismo relatos de experiências religiosas.
VIII — O Fácil e o Habitual 11 A compensação
No interior dos sistemas humanos existe uma profunda necessidade de compensação. Essa necessidade, que frequentemente ultrapassa os limites estabelecidos, está a serviço do relacionamento. Quando, numa família, o marido faz à mulher algo de bom, ela se sente pressionada a compensar. Assim, retribui ao marido com um bem um pouco maior do que recebeu. Aí ele também se sente pressionado, e lhe retribui igualmente com um bem um pouco maior. A associação entre o amor e a necessidade de compensar leva a uma troca crescente, que fundamenta a felicidade numa relação. Por isso é tão importante a necessidade de compensar. Porém essa necessidade só faz sentido dentro de determinados limites. Quando, por exemplo, uma pessoa é salva da morte, ela geralmente sente a necessidade de compensar. Isto é, ela começa a pagar por sua salvação com uma nova enfermidade. Às vezes, a pessoa paga até mesmo suicidando-se. Isso significa tratar o destino como se ele fosse uma pessoa, da qual ela pode dispor em seu próprio benefício, se lhe pagar um certo preço. Muitas pessoas agem desse modo com Deus. Há religiões inteiras 11 Respostas a perguntas feitas em vários cursos.
baseadas na ideia de que algo precisa ser pago, e só se ficará bem quando for pago. Como é estranha a imagem de Deus que está por trás disso: é preciso pagar para que ele faça alguma coisa! É algo totalmente absurdo. Algo semelhante ocorre com a compensação entre as gerações. Se, por exemplo, os pais cometeram um crime, os filhos começam a pagar por ele, embora sejam inocentes. Ou então, outras pessoas exigem que os filhos comecem a pagar pela culpa dos pais, como se isso fosse possível. Aqui, portanto, é preciso estabelecer limites. A necessidade de compensação precisa cessar, depois de algum tempo. Inúmeras guerras resultam da necessidade de compensar posteriormente, frequentemente séculos depois, uma antiga injustiça. Então se comete uma nova injustiça, e o processo continua. A paz só advirá quando se puder relegar ao passado o que passou. Este é um ponto importante no trabalho com as constelações familiares. Trazemos à tona coisas passadas para as deixarmos, e não devemos mais voltar a elas. Algumas pessoas tornam a olhar o problema quando já têm nas mãos a solução. Com isso, facilmente a perdem. A solução positiva consiste em aceitar o destino favorável como um presente, mesmo que imerecido. De fato, a pessoa continua sob pressão, mas esta, em vez de levá-la a compensar por meio de algo funesto, lhe dá força para fazer algo de bom e belo — o que se transforma, então, em seu agradecimento. Caminhos da mística na vida cotidiana 1. O caminho da purificação
Ele exige: que nos despeçamos de nossos pais, das ilusões e do envolvimento nos destinos da nossa família; que abandonemos os sentimentos secundários, os sentimentos alheios e toda censura;
que assumamos nossas possibilidades e nossos limites, nossa responsabilidade e nossa culpa; que aceitemos o mundo tal como ele é, e estejamos dispostos a receber e a dar. 2. O caminho da iluminação
Exige a ação ordinária na profissão, na relação conjugal, na paternidade, e que encontremos e trilhemos o nosso próprio caminho. 3. O caminho da união
Seu sucesso depende da confiança em tudo o que nos foi dado, em termos de percepção, saber, felicidade, coragem e sucesso. A religião natural
Todos os seres humanos aderem de maneira semelhante à sua religião e aos seus mestres, são fiéis a ela, participam de seus ritos e festas. Assim, a adesão e a convicção religiosa não decorrem de alguma particularidade dessa religião, mas de uma experiência comum a todos os seres humanos, que condiciona e precede as religiões individuais. Que a religião e a prática religiosa precisam da purificação é algo que a espiritualidade e a mística cristã sempre souberam. A mesma coisa é mostrada pela psicologia. Por exemplo, que a imagem interna de um Deus amedrontador é muitas vezes a projeção sobre Deus da imagem interiorizada do pai ou da mãe. Também é preciso observar que os buscadores cristãos de Deus muitas vezes não tiveram pai ou não o sentiram como pai. Nesse caso, a busca de Deus se converte numa busca de um pai pelo filho. Nas pessoas que estão seguras de seu pai, essa busca de Deus é tranquila. Entre os católicos, o acesso ao pai é regulado pela “Mãe Igreja”. Entre os evangélicos, essa posição materna ciumenta foi assumida pela Bíblia. Conversão e apostasia
Do ponto de vista de seu fundador, cada nova religião é uma renegação da precedente, de sua família e de sua cultura, mesmo quando essa religião se apresenta como uma volta às origens. E toda conversão a uma religião representa para o convertido uma renegação de sua família e de sua cultura, talvez também de seu povo. Por isso, essa conversão é também vivenciada como culpa. Em alguns movimentos de renovação, a conversão é justamente o contrário. Ela significa submissão à família, ao clã familiar, à igreja, com abandono do próprio pensamento, dos próprios sentimentos e da própria vontade. Daí a diferença entre os efeitos. A conversão sob a forma de apostasia é coragem em relação ao novo. Ela dá medo, obriga à solidão, olha para a frente e é progressiva. A conversão na forma de submissão faz feliz, une, é sentida como inocência, olha para trás e é regressiva. A perfeição
Perfeição é um conceito de peso na vida espiritual. Nos mosteiros o esforço pela perfeição é o ideal supremo. Em termos secularizados, o esforço pela perfeição também existe na psicoterapia, por exemplo, na busca de uma análise exaustiva. Julgase que alguém é perfeito quando completou sua análise. O esforço pela autorrealização também é uma busca de perfeição. Fiz uma descoberta sobre o que constitui realmente a perfeição. Ela começa quando a gente se ama tal como é. Este é o primeiro ponto. Muitas pessoas estão divididas em seu interior, não estão contentes consigo. Quando se investiga, verifica-se que elas baniram de seu coração um de seus pais, ou mesmo ambos. Com isso perderam o contato com a fonte de sua vida. Quando alguém está desconectado de um de seus pais, só possui a metade de sua força vital. Isso leva à depressão, que não é uma sensação de dor, mas de vazio. E a sensação de vazio significa que está faltando um dos pais. Então o coração só se enche pela metade.
Uma pessoa pode amar-se tal como é quando respeita e ama ambos os seus pais. Quando o consegue, ela sente isso como uma graça. Pois é algo que ela não pode simplesmente realizar, como se estivesse em suas mãos. Quando o consegue, ela experimenta isso como uma dádiva. Então o sentimento básico se eleva no sentido da plenitude e da alegria, e a depressão passa. Pois bem, esse é o primeiro degrau da perfeição. O segundo degrau da verdadeira perfeição é alcançado quando todos os que pertencem ao meu sistema têm um lugar em meu coração. Isso inclui os avós, os tios e tias, todos os que me cederam lugar, os excluídos, os que tiveram um destino funesto, os desprezados e os outros que pertencem ao sistema familiar. Enquanto ainda houver algum excluído eu me sinto imperfeito. Quando tenho todos em meu coração, sinto-me perfeito. Essa verdadeira perfeição tem um efeito maravilhoso. No momento em que eu a alcancei sinto-me ao mesmo tempo preenchido e livre. Uma carta que recebi há pouco de um jovem judeu mostra até que ponto isso pode ser conseguido. “Sou um ser humano”
9 de dezembro de 1999 Caro sr. Hellinger, Num curso na Holanda, em setembro do ano passado, quando lhe fiz uma pergunta sobre o comportamento violento do meu pai, o senhor me chamou à frente, e fez comigo uma constelação em que estavam representados, de um lado, os meus pais e, de outro, o cristianismo e o judaísmo. A constelação terminou com a minha reconciliação com meu pai. Nos Estados Unidos, em dois cursos em março deste ano, atuei diversas vezes em constelações, representando pessoas que precisavam reconciliar-se com o pai. Com isso, também pude levar a termo, definitivamente, o meu movimento em direção a meu pai. No primeiro evento, num intervalo do café, em resposta a uma pergunta
minha, o senhor me sugeriu dois exercícios. O primeiro era que, em minha imaginação, eu visitasse o reino dos mortos, lá procurasse assassinos, me deitasse junto deles e lhes dissesse: “Eu sou um de vocês”. O segundo, que visse minha morte, não mais na minha frente, mas atrás de mim, e cada dia recebesse uma bênção especial. E o senhor acrescentou: “Mas não faça esses exercícios; não faça nada nesse sentido. Sua alma sabe como você deverá lidar com isso, no momento oportuno”. Isso me surpreendeu, mas segui sua recomendação e deixei de pensar nesses exercícios. Eles penetraram no meu interior, e confiei que minha alma providenciaria o que fosse apropriado.
Então, em maio deste ano, tive no sono uma experiência impressionante. Sei que foi um sonho, mas o efeito foi totalmente fora do comum, e depois de vários dias eu ainda me sentia num espaço totalmente diferente. Nesse sonho, eu pertenço a um grupo que assassinou várias pessoas. Sou parte desse grupo e também matei. Então sou levado a julgamento, e chega a minha vez de me defender. Decido me defender pessoalmente e recusar um defensor, embora isso não seja de praxe. Então faço uma declaração breve e simples. Digo que me confesso culpado, e que assumo a responsabilidade por minha culpa. Digo ao juiz £ às pessoas presentes que minha única defesa consiste em confessar que sou um ser humano. Digo a eles que sei que todo homem é capaz dos piores crimes, e que depende das circunstâncias se alguém se torna uma pessoa decente ou um monstro. Sou um assassino, mas ao mesmo tempo sou um ser humano como todos os outros. Ao dizer isso, eu me sinto tranquilo e sem nenhuma excitação. O juiz me condena à morte, e determina que a sentença seja cumprida dentro de poucas semanas. O sonho continua interminavelmente. Eu vivencio os dias e noites e, de certo modo, todas essas semanas. Escrevo cartas aos meus seres queridos, falo com minha família e com meus amigos e me preparo. Permaneço tranquilo. As vezes choro e sinto dor, mas fico cada vez mais lúcido. Na última manhã dessa semana, desde que desperto, tudo o que faço tem uma
qualidade particularmente atenta, eu vivencio tudo com extrema clareza. Lavo minhas mãos, escovo os dentes e sei que dentro de poucas horas não existirei mais. Logo me conduzem à cadeira elétrica. Enquanto espero na antessala, sinto a morte próxima e misteriosa. Tudo é tão próximo, tão intenso e ao mesmo tempo tão tranquilo. Quando estou lá sentado e espero, me avisam que a execução foi adiada. A espera começa de novo e dura muitas horas. A clareza e a paz permanecem, apenas imergem e se aprofundam. A tarde, venho a saber que o juiz comutou a sentença e que serei solto. Serei banido mas posso continuar vivo. Devo deixar minha terra e ir para outro país, à minha escolha. Sou logo libertado e me entregam um bilhete válido para todas as conexões ferroviárias. Vejo-me de pé em frente ao presídio. Deixei tudo para trás, despedi-me de todos, sobrevivi à morte de uma estranha maneira e me tornei um outro homem. Para mim, já não existe inocência nem culpa. Despertei do sonho, mas permaneci em estado de paz e de clareza. Passei a sentir mais vivamente as cores, e a viver cada coisa como se passasse em câmara lenta, pois tudo atraía minha total atenção. Meu coração batia tranquilo e firme. Nada podia me excitar. Permaneci centrado e atento, sempre consciente de que estou vivo e que me foi concedido um novo tempo de vida. Essa experiência me acompanhou durante certo tempo. Depois de alguns dias eu a integrei e voltei a sentir-me como a pessoa que eu conhecia antes. Contudo, eu me tomei outro. Foi assim que minha alma assumiu, à sua maneira, os exercícios sugeridos pelo senhor. Era isso que eu tencionava comunicar-lhe. (...) O serviço
Tenho uma profunda convicção de que, seja como for, cada pessoa é tomada a serviço. Ninguém pode escapar disso, nem mesmo pela culpa. Pois, ao tornar-se culpado, também é tomado a serviço por meio dessa culpa. Isso é algo difícil de assimilar. Quando a pessoa culpada encara isso desse modo, quando sente que
por meio de sua culpa foi tomada a serviço e que, apesar disso, carrega as consequências — pois elas também estão incluídas —, ela permanece em total sintonia, mesmo que seja culpada ou má. A pergunta sobre a responsabilidade torna-se então ociosa. Ser bom ou ser mau não é dado à liberdade de cada um. Quem é considerado bom talvez seja mais afortunado, mas não é superior. Na profundidade existe uma concordância básica entre todos os seres humanos, e nesse nível todos se equivalem. Cada um à sua maneira, todos foram tomados a serviço. Então posso ter compaixão por todos, porque me coloco ao seu lado. Posso ter compaixão pelos maus, pelos doentes, pelos grandes. Posso colocar-me ao seu lado. Dessa sintonia profunda me vem força, e com essa força posso atuar muito. A devoção
Gostaria de dizer algo sobre a relação entre a psicoterapia e a religião. Olhando sem preconceito a religião, podemos perceber o que acontece na alma quando as pessoas se sentem como religiosas. A experiência religiosa começa quando alguém esbarra num limite, além do qual ele não consegue ver, e seu saber, seus desejos e seus medos não alcançam mais. A meu ver, a atitude religiosa correta consiste em deter-se diante desse limite e respeitar o mistério oculto por trás dele. Essa atitude, que é ao mesmo tempo contemplação e humildade, gera uma grande força porque respeita esse mistério. Alguns não suportam isso, essa realidade grande e incerta que talvez pressintam mas não podem compreender. Eles criam pensamentos sobre o que pode estar atrás disso, ou procuram influenciar essa realidade com ritos, sacrifícios, orações ou de alguma outra maneira. É isso que geralmente experimentam como religião, mas difere da religião que acabo de descrever, pois foge do mistério, de sua força e de sua distância inaudita. A psicoterapia também existe sob essas modalidades. Existe uma que age como se pudesse ultrapassar os limites e mudar os destinos à força. E existe outra que se detém diante do mistério e o toma a sério,
tal como ele é. Ela leva a sério, por exemplo, que alguém queira morrer porque está doente. Não tenta convencê-lo de que poderia escapar dessa morte e dessa doença recorrendo a alguma forma de psicoterapia, mas o coloca em face desse limite, e aguarda. Agindo assim, o terapeuta permanece contemplativo, centrado, humilde, e tem uma força muito maior do que se buscasse mudar o destino do cliente. A psicoterapia que mostro aqui é dessa espécie. Por isso ela tem uma dimensão espiritual ou religiosa, mas apenas porque se detém diante do mistério e o respeita. Plenitude
UMA PARTICIPANTE: Como se procede diante do desejo de plenitude? Ou ele está em lugar de alguma outra coisa? HELLINGER: O desejo de plenitude ou de perfeição, como também se pode chamá-lo, é um desejo muito saudável. Posso dizer-lhe como se alcança a perfeição e a plenitude? Pois é algo muito simples. Algumas pessoas passam quarenta anos no deserto para alcançar a perfeição. Mas sobre este tema descobri algo extremamente simples. Eu me sinto pleno quando todos os que pertencem à minha família, vivos ou mortos, recebem um lugar em meu coração. Enquanto algum deles estiver excluído, eu me sentirei incompleto. O curioso, no tocante à perfeição, é que, quando todos estão reunidos em mim, eu sou livre. Cura e salvação
PARTICIPANTE: Tive anteriormente, quando atuei como representante, a sensação de que o que importa não é a represe ntação exata da história, mas o sentimento da pessoa envolvida. E que seu destino seja liberado. Percebi corretamente? HELLINGER: Sim. Tudo é encaminhado para a solução. Nesse processo, não importa se algo está certo ou errado. Quando temos em
vista a solução chegamos a ela, mesmo por meio de desvios. PARTICIPANTE: Assim, talvez a cura seja algo totalmente diverso do que geralmente acreditamos. Tive a sensação de que aqui se manifestam leis que compreendemos apenas em parte, e que alguma coisa fica totalmente obscura. Pareceu-me que a cura em alguns casos é totalmente incompreensível. HELLINGER: Para mim ela é totalmente incompreensível. Entretanto, existe uma grande diferença se estou visando à cura, em especial a cura física, ou se estou visando a que a ordem do sistema seja reparada. Quando se consegue isso, existe algo que libera e faz feliz. É realmente o que busco antes de tudo. E então também produz efeitos no corpo, maiores ou menores. Quando pacientes adoecem ou querem matar-se por amor à família e conseguem se livrar dessa pressão, vemos que se sentem acolhidos na família de um modo totalmente diverso. Se antes já estavam dispostos a morrer, nessa nova ligação não estão menos preparados para isso, caso a enfermidade leve até lá. Mas agora a encaram de uma nova maneira e já não tomam a saúde como o bem supremo. Muitos médicos e doentes se comportam como se a saúde fosse o bem supremo — o que ela não é — ou se comportam como se a vida fosse o bem supremo — o que também não é. A alma tem outros critérios. Quando admitimos que não somente o estar são tem sentido e grandeza, mas igualmente o estar doente, e que há sentido e grandeza em morrer no tempo devido, podemos lidar com a doença e a morte com uma atitude mais serena. A mais antiga máxima filosófica do Ocidente veio de um certo Anaximandro. Heidegger escreveu uma longa dissertação sobre ela, e sondou sua profundidade. Tal como é traduzida usualmente, a máxima afirma o seguinte: “Onde as coisas tiveram origem é necessário que também pereçam, pois precisam expiar e ser julgadas por suas injustiças, de acordo com a ordem do tempo”.
Isso quer dizer o seguinte: Quem segura sua vida além do tempo, peca contra o ser. Nós avançamos com o rio da vida e com o rio da morte. É esta a grande harmonia. Dentro desse rio acontecem a salvação e a cura, e igualmente a enfermidade e a morte. Então assumimos outra atitude diante da vida e da morte. O bem supremo
PARTICIPANTE: Se o bem supremo para a alma não é necessariamente a vida e a saúde, será o amor? HELLINGER: Para a criança é o amor, no seguinte sentido: “Eu quero, de qualquer maneira, pertencer a vocês, custe o que custar, mesmo que custe minha vida”. Assim é a criança, esse é o amor da criança. Esse amor é cego, pois a criança também acredita que tem o poder de salvar seus pais, se eles estiverem mal. Por essa razão, elas não têm medo da morte, da dor ou da culpa quando assumem isso em lugar de seus pais. A força do amor nas crianças é incrível. É esse amor que leva à doença, porque é cego. A missão da terapia nesse contexto seria fazer ressaltar o amor da criança. Quando esse amor vem à luz, a criança já não pode amar dessa maneira cega, porque ela vê que sua mãe ou a outra pessoa, por quem ela deseja sofrer, não quer isso, pois também a ama. Então a criança precisa abandonar as fantasias que associou ao seu amor. Isso produz uma limpeza e uma purificação na alma. Então a cr iança experimenta a saúde e a vida como uma renúncia ao poder, à inocência e à grandeza que ela sentiu. Por essa razão, a passagem do amor cego ao amor lúcido é uma certa realização espiritual, e exige algo da criança. Pois a felicidade exige muito mais dela do que simplesmente se retirar, chorar e sofrer. PARTICIPANTE: Qual é o bem supremo para o adulto? HELLINGER: Não existe coisa alguma que seja o bem supremo. Já não se distingue. Para a atitude de concordância, não existe um bem supremo. Ela própria é algo elevado, algo grande. Mas n ão existe algo
supremo. Tudo é igual. Você percebe o que se move na alma quando você confia que tudo é igual? PARTICIPANTE: Uma imensa amplidão. A consciência
Aquilo que geralmente chamamos de consciência é um sentido interno, semelhante ao nosso sentido de equilíbrio. Com a sua ajuda percebemos num grupo como nos devemos comportar para continuar a pertencer a ele, e o que precisamos evitar para não comprometer essa vinculação. Temos boa consciência quando preenchemos as condições impostas pelo grupo para pertencermos a ele. E temos má consciência quando nos afastamos dessas condições. As condições para o pertencimento variam de um grupo para o outro. Por exemplo, para pertencer a uma família de ladrões é preciso fazer coisas diferentes do que para pertencer a uma família de tradição cristã. Nos filhos de uma família e de outra, a boa e a má consci ência estão associadas a comportamentos totalmente distintos. Assim, muitos consideram moral o que vale na própria família, e imoral o que nela não vale. Por conseguinte, o conteúdo da moralidade é totalmente determinado pelo sistema. O que há de estranho é que buscamos na boa consciência o direito de prejudicar pessoas que são diferentes. Quando se apela para a própria consciência, o que se deseja é, na maioria dos casos, prejudicar alguém. Quando sou bom e quero o bem, não preciso apelar para a consciência. Isso realmente causa estranheza. Por conseguinte, o que é realmente bom é algo que está além da consciência, e para fazê-lo é preciso ter a coragem de ir além dela. O que é realmente bom é aquilo que serve a muitos e reconhece como válidas as diferenças de outros grupos, de outros sistemas ou de outras religiões. Entretanto, existe ainda uma instância superior que atua além da consciência que acabo de descrever. Essa instância atua quando
estamos em sintonia com algo maior. Nós a experimentamos, às vezes, durante uma constelação quando, de repente, todos os participantes ficam em paz, como em harmonia com algo maior. A instância superior também é percebida quando alguém se sente chamado a algo e não pode esquivar-se disso, sob pena de romper-se algo em sua alma. Ou quando percebe que, se fizer determinada coisa que, à primeira vista, lhe parece certa, algo também se romperá em sua alma. O que atua nesse caso também é uma consciência, uma consciência superior. E ela está muito próxima do ser, do essencial. A parada
Às vezes, faço reflexões sobre psicoterapia e religião. Há quem julgue que meu trabalho é religioso ou espiritual. Não estou certo disso. O sentimento religioso se manifesta em nós quando esbarramos num limite ou deparamos com um mistério inescrutável. Nesse momento nós nos detemos. Em vez de avançar, fazemos uma parada. O ato de nos determos diante do limite e do mistério é a característica essencial do sentimento religioso e do ato religioso. Se estivermos atentos ao que acontece quando se faz a parada, sentiremos um movimento na alma, no peito ou no coração. Algo se expande nesse momento. É justamente o ato de deter-nos que nos une ao que ultrapassa o limite e o saber. A parada cria a conexão. Esse tipo de sentimento ou de ato religioso é absolutamente simples. Nessa atitude e nesse ato somos todos iguais. Aí não existe diferença alguma. É um ato que cada indivíduo faz por si mesmo, inteiramente só. Mas ele cria uma comunidade, uma comunidade muito profunda e humilde, entre aqueles que ousam esse ato e fazem essa parada. Essa é a religião que une. No momento em que nos detemos ante esse limite, percebemos de que força precisamos para que simplesmente fiquemos tranquilos, sem avançar. Isso é algo que dificilmente suportamos. Muitos sentem uma grande dificuldade em parar e procuram, ao contrário, transpor
os limites. Criam imagens, querem investigar, constroem um sistema de ideias sobre o que poderia estar por detrás. Chegam a fazer experiências especiais, sem realmente estar em conexão com o que está além delas, e as chamam de experiências religiosas. Alguns chegam a proclamar essa experiência, presumidamente religiosa, e exigem que os demais creiam nela. Essa atitude é estranha, e eu a considero irreligiosa. Na psicoterapia ou, de modo geral, na medicina, o médico, o terapeuta, o assistente ou os familiares que acompanham a ação curativa vivem a mesma experiência do limite e do mistério intransponível. O que daria força, nesse momento, tanto a quem age ou deve agir, quanto a quem sofre, seria uma parada, a parada simples e recolhida. Com isso, sente-se o mesmo movimento interno de uma abertura e de um recolhimento. Nós nos detemos diante disso, independentemente do que daí resulte, mesmo que seja a morte. Esta seria uma atitude religiosa. Quando, porém, o limite se manifesta e, em vez de nos determos diante dele, nós nos entregamos freneticamente à ação, tentando isto ou aquilo, essa atitude se assemelha à da pessoa religiosa que esbarra num limite em sua experiência ou em sua atuação, mas não se detém diante dele e o ultrapassa, quando não pode nem deve fazê -lo. Então o terapeuta corre o risco de sobrecarregar o paciente ou a pessoa que sofre, porque falha diante do limite. A noite do espírito
Eu gostaria de dizer algo sobre a noite do espírito. Já se tor nou moda viajar para o Oriente em busca da sabedoria e da iluminação. De fato, a tradição do Oriente tem um grande valor. Mas nossas grandes tradições ocidentais ainda são praticamente desconhecidas, e as pessoas se mantêm estranhas a elas. A grande mística conhece três caminhos: o caminho da purificação, o caminho da iluminação e o caminho da união. Mas basicamente o que está em jogo é o caminho da purificação. Para segui-lo somos exigidos ao extremo.
O caminho da purificação culmina na noite do espírito, um conceito ou imagem que deriva de São João da Cruz. Ela exige que renunciemos a toda espécie de saber: sobre os fun damentos, sobre os mistérios do mundo, sobre Deus; uma renúncia total. Então ficamos vazios. No taoísmo, isso corresponde à imagem do centro vazio, onde tudo é silêncio. É curioso que, quando penetramos nesse centro e na noite do espírito, e buscamos saber cada vez menos, ler cada vez menos, cultivar cada vez menos pensamentos, e nos mantemos recolhidos nessa atitude, subitamente algo se passa em torno de nós, sem que precisemos fazer coisa alguma. Na medida em que permanecemos imóveis, entramos em sintonia com algo maior. Então nos vêm conhecimentos profundos que nunca poderíamos imaginar. Eles decorrem dessa singela disciplina da noite do espírito, que também inclui o esquecimento, inclusive o de nossa origem e de nossa história. Seria este o caminho. Mostrei algo dessa simplicidade que consiste em não querer saber nada, ou apenas poucas coisas. Quando ficamos assim recolhidos, reconhecemos imediatamente o que é essencial. Ouvimos poucas coisas, e imediatamente identificamos o essencial. Isso é produto desse simples recolhimento. Lerei sobre este assunto um pequeno trecho de meu livro Verdichtetes [Condensações]: Sabedoria
O sábio concorda com o mundo tal como ele é, sem medo e sem intenções. Reconciliou-se com o efêmero, e não se esforça por alcançar o que não acaba com a morte. Vê em perspectiva, porque está em sintonia,
e só interfere quando o fluxo da vida o requer. Sabe distinguir se algo é viável ou não, porque não tem propósitos. A sabedoria é fruto de longa disciplina e exercício, mas, quem a tem, a possui sem esforço. A sabedoria está sempre a caminho e atinge o alvo sem buscá -lo. Ela cresce. O fácil e o habitual
Nas constelações se evidencia como são poderosas as forças que atuam nas famílias. Com frequência recorremos a explicações simplistas, por exemplo, quando alguém se suicida, porque não entendemos as forças que atuam em profundidade. Elas também mostram que estamos enredados em muitos destinos, sobre os quais pouco ou nada sabemos. Isso nos liga a um passado bem mais distante, pois também participamos do sofrimento da humanidade. Muitas vezes, sentimo-nos impelidos a nos associarmos a esse sofrimento. E, a meu ver, inúmeras psicoses também estão em conexão com um mergulho nesse grande sofrimento, nesses destinos profundos e de muitos estratos, e participam deles. Para mim, só existe aí uma solução: emergir em algo totalmente comum, cotidiano, ligeiro. O indivíduo não suporta o mergulho nesse sofrimento. É grande demais, e nosso equilíbrio psíquico é muito frágil. Não conseguimos suportar a visão de tudo isso, pois ultrapassa em muito nossas forças. Resta-nos apenas a possibilidade de uma realização modesta, de algo totalmente simples: marido, mulher e filhos, divertimentos e lazer, felicidade e sofrimento, venham como vierem. Assim conservamos a leveza da alma, essa leveza na qual reside a maior força. O que é
muito forte é também muito leve. Entrar na leveza é algo que podemos praticar quando queremos, e acontece sobretudo nos afazeres comuns. O momento
PARTICIPANTE: Caso não seja uma pergunta excessivamente pessoal: O que sustenta o senhor em seu trabalho? É um fundamento, uma experiência religiosa? HELLINGER: O que me sustenta é o momento, nada mais. Este é também o segredo do método fenomenológico: apenas o momento. Não sei como irá terminar. Mesmo que não saia bem, permaneço sereno. PARTICIPANTE: E como podemos aprender a nos deixarmos sustentar pelo momento? HELLINGER: O próximo momento mostrará isso. A humildade
Esse trabalho, e o que ele revela, tem uma dimensão religiosa ou espiritual, seja como for que entendamos isso. Reflito, às vezes, no que resulta desse trabalho para a atitude religiosa, e naquilo que ele traz à luz. Ele nos obriga a reconhecer a terra e a perceber que estamos entrelaçados de muitas maneiras com coisas terrestres, com algo que nos pressiona e dirige, sem que o compreendamos. Parece-me que muitas religiões tendem a impedir-nos de olhar de frente essa realidade. Só quando a encaramos temos a humildade profunda que nos une àquilo que atua por trás de tudo, fazendo-nos confiar que, no final, acontecerá algo cheio de sentido. O que me impressiona particularmente é que, quando coloco em cena apenas uma ou duas pessoas, acontece algo que leva a uma solução, e ela ultrapassa qualquer planejamento humano. Essa força é sustentada pelo amor. Citarei um exemplo. Num de meus cursos, um homem contou que sua mulher estava em
coma, havia vários anos, devido a um acidente de automóvel, e ness e estado dera à luz uma filha. Ele me pediu para fazer uma constelação. Eu lhe disse que escolhesse representantes para sua mulher, sua filha, um antigo namorado da mulher e para si mesmo. Ele colocou a filha diante da mulher, o ex-namorado mais longe, e seu próprio representante um pouco afastado. Eu não fiz nada. Apenas me sentei e deixei que o processo se desenrolasse espontaneamente. Inicialmente, o antigo namorado da mulher aproximou-se lentamente dela, mostrando um profundo amor, e se colocou atrás dela. Ela se deixou cair para trás e fechou os olhos. A filha se aproximou lentamente da mãe. O representante do marido, o pai da criança, ficou inicialmente insensível. Eu o afastei um pouco, para que não perturbasse a cena. A filha se aproximou da mãe, abraçou-a, e o namorado da mulher abraçou a ambas pelas costas. Então o representante do marido se colocou atrás da filha, abraçou pelas costas a filha e a mãe, enquanto o ex-namorado se afastava lentamente. Não se poderia sentir, de um modo mais belo e profundo, o que é um vínculo, o que é o amor e como ele une. E tudo isso ocorreu de forma espontânea. Por conseguinte, existe uma força, uma força terrestre, que atua muito profundamente no sentido do amor e do reconhecimento de cada pessoa. Para ela, cada indivíduo tem o mesmo valor, é igualmente respeitado e igualmente importante. Ela encaminha o processo para uma solução. Vejo isso como a atuação de uma alma. Ignoro qual seja sua grandeza e seu alcance. Mas ela não pode ser algo divino. É algo terrestre. Ao mesmo tempo, atua nela uma força que também é terrível. Ambas as coisas, simultaneamente. Uma força terrível, que também nos impõe a fatalidade. E, contudo, quando a deixamos agir ela parece conduzir-nos a essas reconciliações, unindo o que estava separado. Entretanto, se quiséssemos interferir nesse processo com as ideias religiosas que conhecemos das diversas religiões, cristãs ou outras,
esse processo não transcorreria com igual profundidade. O presumidamente religioso perturbaria o autenticamente religioso. Ainda existe algo a considerar. O mistério propriamente dito permanece além disso. Só pode ser concebido como estando além disso. Assim, esse movimento não pode ser considerado como religioso. Porém, na medida em que o respeitamos como é, respeitamos o que está por trás dele. Quando contemplo, à luz dessas experiências, o que ocorre com aqueles que, como os monges budistas, muitos santos da Igreja Católica ou muitos místicos, seguem de forma radical um caminho religioso ou espiritual, parece-me que esses caminhos necessitam de uma purificação e uma depuração. O asceticismo é frequentemente uma negação da realidade atual, um escape, uma recusa de reconhecer o que é simplesmente comum. Esse tipo de ascese está quase sempre associado a um sentimento de superioridade em relação às pessoas ditas comuns. Este é o lado suspeito. Ele contradiz as experiências que obrigam a ver todos os seres humanos no mesmo nível: tanto os bons quanto os maus, tanto os vivos quanto os mortos. A serenidade
Ficamos inquietos quando esbarramos com as oposições entre o bom e o mau, o homem e a mulher, o justo e o injusto, a felicidade e a desgraça, a saúde e a doença, a vida e a morte. Ficamos serenos quando suportamos as oposições como complementares, nos fundimos com elas e por meio delas adquirimos amplitude e grandeza. A serenidade assim obtida conduz à contemplação. Porém, no momento oportuno, ela também nos leva à ação, a agir com uma força centrada. O obscuro
O que nos parece obscuro é frequentemente apenas a luz inacessível,
o mistério, que se esquiva de nós à medida que nos aproximamos e tentamos capturá-lo. Entretanto, se nos detemos ante o mistério obscuro e nos confiamos, mesmo sem saber, à sua direção, ele nos abriga do perigo, nos proporciona refúgio, se coloca em nosso caminho quando nos deixamos iludir e nos ilumina, mesmo que brevemente, quando o invocamos. A vítima
Algumas pessoas, buscando uma resposta para a graça da felicidade que experimentaram, ou para a presumida injustiça da desgraça que sofreram, pretendem forçar a divindade oculta a revelar-se a elas e a manifestar- lhes o que exige delas, como pagamento pela felicidade ou como preço para afastar a desgraça. Então lhe oferecem um sacrifício, por exemplo, privando-se de algo, praticando ascese, diminuindo-se diante da divindade ou lhe sacrificando algo que amam, às vezes até mesmo o próprio parceiro ou, pior ainda, um filho. No final, porém, aquilo que pressentimos como um mistério insondável, mas que não se submete ao nosso controle, manifesta sua grandeza justamente subtraindo-se a tais esforços. Os nomes
Por meio dos nomes que damos às coisas, nós as delimitamos, nos apoderamos delas, tiramos algo de seu lado ameaçador, mas também de seu mistério e de sua magia. Muitas vezes, os nomes entram no lugar da realidade. O efeito que isso produz sobre nossa relação com as coisas pode ser conscientemente experimentado quando, por exemplo, passeando por um jardim botânico, deixamos de ler os nomes das plantas e simplesmente as acolhemos sem nomes. O mesmo nos acontece com os nomes que usamos quando encontramos pessoas, por exemplo, na psicoterapia. Algo acontece, em nós e neles, quando esquecemos os nomes que usamos para chamá-los. Podemos fazer um exercício do coração, não nos olhando mutuamente como psicoterapeutas, nem olhando como clientes ou
pacientes as pessoas que nos procuram, mas apenas nos vendo e vendo a eles como seres humanos, que ousam confiar-se mutuamente por algum tempo. Isso podemos fazer com uma timidez inicial, devida à insegurança sobre nossos limites, e depois, de um modo cada vez mais aberto e vulnerável, conjuntamente entregues e comprometidos com algo maior. Com que diferença nos perceberemos então, e perceberemos os outros! Como uma árvore que deixamos atuar sobre nós sem nome, reconheceremos essas pessoas, não apenas em sua presença, do modo como se defrontam conosco, mas também em seu ambiente, com suas histórias especiais que necessariamente as transformaram no que são. Assim nos veremos também como resultado de circunstâncias especiais que fizeram com que nos tornássemos a pessoa que somos, e não uma outra pessoa. Com isso, também abandonaremos a segurança provinda dos recursos que associamos ao nome. Também deixaremos de buscar apoio em teorias que só fazem sentido chamando coisas diferentes pelo mesmo nome, e em métodos para dominar coisas diferentes q ue recebem igual denominação. Com isso, não pretendo afirmar que poderemos ser bem-sucedidos na psicoterapia sem usar nomes e sem teorias abrangentes. O que nos interessa aqui é o refinamento da consciência, a amplitude do olhar e a disponibilidade para se expor ao desconhecido. Dessa espécie de nomes e de palavras é preciso distinguir aquelas que não limitam mas ampliam, porque descrevem um processo, uma condição, algo que cresceu ou que está em crescimento. Por exemplo: homem, mulher, pai, mãe, filho, árvore, flor, pedra, e também terra, mundo, sol, lua, estrelas. Quando usamos esses nomes, seu efeito é diferente de quando, em lugar de árvore dizemos tília, ou em lugar de homens dizemos italianos — sem falar de denominações como alcoólatra ou psicótico. Entretanto, também usamos nomes e palavras para algo oculto que
não se deixa apreender, embora notemos que nenhum nome ou palavra que lhe dermos bastará para exprimi-lo. A este grupo pertence, por exemplo, a palavra alma. Observamos que os seres vivos são mantidos e dirigidos por uma força que os ultrapassa. Essa força é dotada de saber, e não se limita a esse ser vivo. Ela preside seu crescimento, seu desenvolvimento, sua decadência e sua morte. É difícil imaginar que ela acabe juntamente com esse ser vivo. Parece que ela apenas se retira e sobrevive a ele de algum modo. Contudo, ao darmos um nome a essa força, fazemos, às vezes, com que ela fuja de nós. Pois, em vez de nos confiarmos a ela e nos adaptarmos a ela, de respeitarmos seu movimento sutil e a seguirmos atentamente, nós lhe damos um nome, como se ela estivesse disponível e a nosso alcance. Assim nos alienamos dela, em lugar de lhe abrirmos o nosso interior. O Tao Te King fala do Tao, um termo chinês cujo significado é semelhante ao que damos à alma, principalmente à grande Alma. Segundo os ensinamentos do livro, quando tentamos nomear o Tao, já não significamos o Tao constante e permanente, que é sem nome e precede tudo. A própria tentativa de dar-lhe um nome nos priva de sua ação salutar. Ainda mais equivocado e arrogante seria tentar apreender pelo nome a realidade totalmente impalpável que pressentimos por trás de tudo o que atua, e também por trás da alma e do Tao, apropriando-se dela e tornando- a compreensível e mesmo disponível para nós, por exemplo, por meio do nome Deus. É muito diferente o efeito na alma, quando renunciamos a toda denominação e a todo conceito dessa realidade, quando nos conformamos com o fato de nada sabermos a seu respeito e, não obstante, nos sujeitamos à sua atuação do modo como a pressentimos: sem reivindicações, sem medo, tranquila e humildemente, seja qual for nossa sorte ou nossa missão. Dessa atitude provém uma força rara, e ela nos torna mais cuidadosos, mais abertos, mais ousados e mais eficientes em relação a tudo o que nos é
dado. Não é preciso denominar essa atitude, pois sem nome ela atua mais silenciosamente e com maior profundidade.
IX — Psicoterapia e Religião 12 HARTMUT WEBER: Sr. Hellinger, hoje nos limitaremos conscientemente ao tema Religião e Psicoterapia. O senhor tem se manifestado com frequência sobre esse assunto. Interesso-me em saber se o senhor poderia definir o que entende por religião. HELLINGER: Prefiro descrever o que acontece quando alguém se experimenta como religioso. Quando observo pessoas religiosas, vejo inicialmente que estão conscientes de depender de forças que não compreendem, como o destino. Sentem que sua vida não está em suas mãos, que ela termina. Em face dos mistérios com que se defrontam, assumem uma certa atitude que, se bem-sucedida, pode ser de reverência, de humildade ou devoção diante do que não compreendem. No entanto, existem pessoas que em sua atitude religiosa procuram manipular, influenciar e controlar aquilo que não entendem ou a que se sentem entregues, recorrendo a ritos, sacrifícios ou orações. Esse tipo de religião envolve dois aspectos: de fato, as pessoas reconhecem algo que as ultrapassa e que não compreendem; por outro lado, procuram manipulá-lo. Essa atitude é contraditória. As distorções da religião surgem quando alguém, em vez de se deter e de reconhecer o mistério, tenta entendê-lo e manipulá-lo. A revelação
HARTMUT WEBER: Essa primeira descrição da religião como a atitude em que me sinto dependente de algo — o sentimento da absoluta dependência, como define um teólogo — seria uma espécie 12 Entrevista da série “Perspectivas Evangélicas” na Rádio da Baviera, em 29 de setembro de 1996.
de religião natural, sem relação com as igrejas constituídas, como o Cristianismo, o Islã ou o Judaísmo? As religiões reveladas seriam tentativas para controlar esse sentimento de dependência? Pois o senhor já exteriorizou críticas sobre o tema das religiões reveladas em várias ocasiões. HELLINGER: Gostaria de fazer uma distinção. Quando ocorrem experiências religiosas, a saber, experiências de mistérios, por vezes alguém chama a atenção para a existência desses mistérios. Jesus, por exemplo, faz isso em diversas parábolas. Nisso, porém, ele não se apresenta como um revelador de algo que ultrapassa a percepção das outras pessoas. Ele aponta, se bem que de um modo especial, para algo perceptível, trazendo-o à compreensão delas. Elas então o acompanham em sua percepção. Trata-se de uma revelação natural. Há, porém, pessoas que anunciam ter recebido uma revelação ou possuírem uma experiência religiosa especial, inacessível aos demais, que eles proclamam às outras pessoas. Assim, os outros precisam crer, em lugar de perceber. Com isso, porém, eles não creem em Deus, mas no revelador; portanto, num ser humano. Quando me refiro ao Cristianismo, parece-me que, da parte de Jesus, na medida em que o entendo, existe pouca revelação nesse sentido. O que se proclama como revelado por ele é, em larga medida, obra de discípulos que se colocaram em seu lugar. HARTMUT WEBER:... E, ainda mais, de apóstolos como Paulo. HELLINGER: Justamente, dele também. Quando leio Paulo, tenho a impressão de que Jesus realmente lhe era indiferente. Paulo tem uma imagem própria e a aplica sobre Jesus. Daí resulta esta contradição: Jesus é apresentado como o revelador, mas não toma a palavra. Quando cotejo esses dois tipos de religião, essa forma de religião revelada e a outra, onde nos defrontamos com o mistério como o encontramos, vejo que essa religião revelada precisa de uma depuração.
Contradições
HARTMUT WEBER: Vejo uma grande oposição entre o que o senhor acaba de descrever e o que ensinam as igrejas tradicionais. O senhor veio da Igreja Católica, atuou por longo tempo numa ordem religiosa e se formou em teologia. Esse entendimento da religião lhe veio por meio de uma evolução progressiva ou de uma ruptura? HELLINGER: Foi uma evolução progressiva. Quando observo como os indivíduos crescem em sua religião, um no Catolicismo, como eu, o outro na Igreja Evangélica ou no Islã, vejo que a religião de cada um faz parte da cultura a que ele pertence, ou é um valor altamente estimado em sua família. Portanto, a religião é algo que se recebe com a família. Por outras palavras, é como uma revelação, à qual a pessoa se submete sem ter uma visão própria. Ela crê em algo que lhe foi transmitido e que ela própria não viu nem decidiu. Essa religião faz parte de sua evolução ou socialização. Isso é bom, pois é algo que conecta e enriquece a pessoa. E em todas essas religiões se realizam valores elevados. No entanto, na medida em que o indivíduo se desenvolve, ele esbarra em conflitos. Por exemplo, se ele contempla a natureza e a leva a sério como criação de Deus, como ensinam as igrejas, ele também ouve mensagens diferentes, que se proclamam como reveladas. Ao comparar ambos os lados, percebe uma contradição entre eles. Se levar a sério o mundo, terá de questionar essas mensagens. E, inversamente, se as levar a sério como reveladas, terá de questionar o mundo, tal como o encontra. Cito um exemplo. Como seres humanos, experimentamos uma grande necessidade de justiça. Essa necessidade nos é inata. Ela pertence à nossa constituição psíquica, e possibilita a comunicação e o intercâmbio entre os seres humanos. Assim, se recebo algo de alguém, tenho a necessidade de retribuir-lhe com alguma coisa. Com isso nos mantemos em intercâmbio e podemos criar uma comunidade.
Contudo, quando olho a natureza e nela procuro justiça, reconheço que o mundo obedece a outras leis e não à justiça. Entretanto, muitas pessoas dizem que, se Deus existe, ele precisa ser justo, porque essa é uma necessidade humana. Assim, transferimos para Deus o que corresponde à nossa necessidade, e isso me parece inaceitável. Todas as perguntas do tipo: “Como Deus pode permitir isso?” provêm dessa necessidade. Porém, quando apenas olho para o mundo e o levo a sério, vejo que não posso penetrar ou resolver o mistério da justiça e da injustiça, tal como o entendo. Isso é difícil. Mas, quando me exponho a esse mistério, experimento um efeito muito mais profundo do que apelando para um Deus justo ou desejando que ele seja justo. A oração
HARTMUT WEBER: O senhor empregou há pouco o termo “oração”. Seria ela uma tentativa de controlar o religioso? HELLINGER: Isso depende do tipo da oração. Na mística existe a chamada contemplação ou, como se chamava na espiritualidade ocidental, o olhar, o olhar simples e tranquilo. Esta seria a devoção diante do mistério. Ela consiste numa entrega profunda. E a oração propriamente dita. A seguir, existe a oração de súplica. Aí tudo depende da atitude básica. Quando rezo por alguém, por exemplo, por um moribundo, não o faço no sentido de manipular. Eu entro em contato com algo. Ele também entra em contato, e talvez isso tenha um efeito curativo. Essa oração eu respeito muito, e também a faço. A atitude é diferente quando quero obter algo de qualquer maneira, por exemplo, um emprego, e ofereço uma vela nessa intenção. I sso já envolve uma certa manipulação. Mas não quero condenar isso, porque também aí se expressa uma atitude religiosa, uma necessidade religiosa. A mística
HARTMUT WEBER: Jesus já colocou um freio, quando disse: “Faça-
se a tua vontade”. Essa atitude deveria realmente estar em cad a oração. O senhor mencionou uma palavra muito importante para mim, a “mística”. Não sei se estou certo, mas penso que o que o senhor descreve como religião natural está bem perto do que os místicos pensaram e sentiram. Hoje existe, se estou certo, uma grande e nova receptividade à mística, que por longo tempo pareceu sepultada. E existe a famosa frase de Karl Rahner, que o Cristianismo se tornará místico ou acabará. Sem pretender controlá-lo por minha vez, o senhor se sente corretamente descrito por essas palavras? HELLINGER: Eu respeito a pergunta. E também faço distinções na mística. Em primeiro lugar, vou dizer o que me parece problemático a respeito dela. Observei que o comportamento religioso segue padrões conhecidos: por exemplo, o da relação entre pai e filho, o de parceiros iguais numa conversa ou num contrato, o que vigora nos relacionamentos do clã familiar, e o padrão da relação amorosa. Daí resultam diferentes comportamentos religiosos. Na mística encontramos, com muita frequência, o padrão da relação amorosa nos esponsais místicos e na mística do noivado. Considero isso problemático, porque se transfere algo de humano para um mistério inexprimível. Em contraposição, existe na grande mística — sobretudo no Ocidente, mas também no Islã, pelo que observo e leio — a experiência de que o divino constantemente se esquiva e não se deixa manipular. Assim o místico, quando faz uma experiência religiosa, apenas a toma como uma experiência, sem ousar chamá-la de religiosa. Nessa mística, cada uma das chamadas experiências religiosas é imediatamente posta de lado e a pessoa se abre para algo ainda maior, diante do qual permanece em contemplação. Essa é, a meu ver, a autêntica atitude mística. Ela é uma experiência plenamente natural. Nós a encontramos também em grandes literatos
e compositores. Bach, por exemplo, compôs sua grande música em presença desse mistério. Também encontramos essa atitude em grandes filósofos, por exemplo, em Heidegger. Quando o leio, percebo esse sentimento de devoção diante de um mistério. Ele me leva para lá, mesmo sem dar-lhe um nome. Religião natural
HARTMUT WEBER: Gostaria de retornar à sua descrição de religião natural. O senhor disse corretamente que essa religião leva à sintonia com o mundo, reconcilia com o terrível e abre o caminho às experiências com a morte, a culpa e o destino. Posso extrair muita coisa desses pensamentos. Tenho, porém, minhas dificuldades, como homem do século XX, e seguramente sou marcado pelo espírito do século. Eu me pergunto: qual é o lugar daquilo que normalmente percebemos como dando forma e produzindo transformação? Também está claro para mim que o problema de nossos dias, neste final de século, será, talvez, o delírio da facticidade, que por longo tempo se apossou de nós. Talvez a redescoberta da mística seja uma fase de um movimento pendular, e agora é necessário dar um passo no sentido contrário. Por outras palavras, esse criar e transformar me parece insuficiente aqui. HELLINGER: O senhor notou corretamente que, para mim, a atitude religiosa envolve a renúncia ao desejo de melhorar. O estranho, porém, é que, quando digo sim ao mundo, isto é, quando não somente o aceito mas concordo com ele, tal como ele é, com tudo o que faz parte dele, atinjo uma profundidade que me permite agir reconciliando e, às vezes, também curando ou melhorando alguma coisa, mesmo sem intenção de fazê-lo. A partir dessa simples harmonia com o mundo, recebo uma força que atua no sentido do bem. Isso é ter a ver com humildade. Psicoterapia fenomenológica
HARTMUT WEBER: A descrição de seu trabalho como terapeuta está
associada à sua afirmação de ser um psicólogo, ou um terapeuta, fenomenológico. Assim, o senhor trabalha intensamente baseando-se apenas na percepção e evitando conscientemente fazer juízos sobre as pessoas. Minha observação está correta? HELLINGER: Na psicoterapia, procuro trazer à luz uma realidade, com a ajuda de um grupo. Por exemplo, quando trabalho com uma pessoa doente — e frequentemente trabalho com pessoas gravemente enfermas — faço-a configurar sua família. Para começar, ela escolhe, entre os participantes, pessoas que lhe são totalmente estranhas, para representar seu pai, sua mãe e seus irmãos. Digo-lhe, então, que se concentre e posicione essas figuras de acordo com suas relações mútuas. Quando ela faz isso, surge no processo da constelação uma imagem inconsciente que se torna visível para ela. Ontem, por exemplo, compareceu uma mulher que tem um filho de 2 anos com uma doença grave. Ele tinha feridas por todo o corpo, e precisou ser carregado pela mãe, porque não podia andar. Eu disse a ela que segurasse o filho e ficasse com ele ao lado de seu marido. Ela disse que isso não era possível, porque a criança não deixava. Então eu disse: vamos fazer essa constelação. Ela procurou representantes para si, para o marido e para a criança, e os colocou de acordo com suas relações recíprocas. A criança se apoiava na mãe com a metade das costas, e o marido ficou de lado, diante da mulher. A mulher disse: “Sinto muita raiva de meu marido”, e o homem disse: “Sinto muita raiva de minha mulher”. A criança disse: “Eu me sinto muito mal, quero ir embora”. A constelação me mostrou que, postando-se na frente da mãe, a criança queria impedi-la de ir embora. Então afastei a mãe para o lado. Imediatamente, ela se sentiu aliviada. A criança e o pai também ficaram aliviados, e a criança quis ficar junto do pai. Foi isso que se manifestou, surpreendendo muito a mulher e surtindo um efeito imediato. Quando consigo que isso venha à luz, busco uma solução para todos. Nesse caso, o pai da mulher tinha se suicidado e ela queria seguido.
Coloquei-a então ao lado de seu marido e deixei a criança apoiar suas costas em ambos os pais. Ela imediatamente se sentiu muito bem. Então fiz com que a mulher dissesse ao marido: “Me abrace com força, para que eu fique”. E eles se reconciliaram. Não foi como se eu tivesse descoberto alguma coisa. Eu simplesmente identifiquei isso, e a partir dessa percepção procurei uma solução que fosse boa para todos. Essa é, portanto, a espécie de psicoterapia que ofereço. HARTMUT WEBER: O senhor não duvida, às vezes, de sua percepção? É quanto a esse ponto que as pessoas fazem críticas e questionamento ao seu trabalho. Elas se perguntam de onde o senhor tira a certeza de estar expressando exatamente o que percebeu. HELLINGER: O que eu digo pode ser visto. A mulher, por exemplo, estava muito emocionada, e pôde reconhecer imediatamente que era assim. Se fosse diferente, ela imediatamente teria protestado, e o mesmo teriam feito os demais participantes. Quando faço isso diant e de um grande público todos podem verificar isso. Quando alguém diz que não é como afirmei, eu imediatamente me redireciono. Então ponho à prova minha solução e procuro outra. Portanto, em minha percepção, também me oriento pelos outros. Eu começo e depois corrijo. Se eu apenas afirmasse, seria muito mau. Seria excessivamente arriscado para mim. Jesus
HARTMUT WEBER: Agora vou fazer uma pergunta herética. O senhor se sente, de fato, na trilha do Jesus de Nazaré do Novo Testamento? Pois nas histórias de cura também se diz muitas vezes: “Ele olhou para ele” ou “Ele olhou para ela”. Ou essa comparação lhe parece despropositada? HELLINGER: Realmente, sinto-me como alguém que, ao passar — e isso também se diz de Jesus — olha, talvez faça algo de bom, e logo segue adiante. Nesse sentido, sim. Quanto ao mais, nenhuma
comparação! Seria grande demais para mim. HARTMUT WEBER: A Bíblia também chama isso, às vezes, de seguimento. HELLINGER: Jesus’ tem grande influência sobre mim, e respeito profundamente a sua figura. Também o tomo como modelo em muitas coisas. Mas não fico me perguntando: O que fez Jesus, e o que faço eu? Isso não. Contudo, quando leio o que ele fazia, às vezes realmente penso: Sim, algo de bom poderia acontecer assim. HARTMUT WEBER: Considera Jesus um terapeuta? HELLINGER: Não. HARTMUT WEBER: Certamente é do seu conhecimento a teoria de Eugen Drewermann. Ele diz que as histórias de curas do Novo Testamento são histórias terapêuticas. HELLINGER: Isso diminuiria Jesus a meus olhos. Para mim, ele é muito mais do que um terapeuta. Está longe de mim considerá-lo desse modo. HARTMUT WEBER: É possível esclarecer um pouco mais o que diminuiria Jesus, se ele fosse um terapeuta, ou o que o distingue de um terapeuta? Pois esse pensamento de Drewermann me fascinou muito, e observei que muitos contemporâneos, por meio dessa conexão, ganharam um novo acesso a Jesus. HELLINGER: Para mim, o domínio religioso é autônomo. É um grande domínio, em que a terapia não deve tocar. Vejo Jesus como uma figura religiosa, que desperta no homem o sentimento religioso e produziu algo que vem atuando há mais de dois mil anos. Apesar de toda crítica às Igrejas, não se pode ignorar que o Cristianismo é um poderoso movimento histórico. Seria uma perda incrível se não o tivéssemos. Portanto, vejo Jesus, antes de tudo, como um homem religioso. Considerá-lo como um terapeuta equivaleria a esquivar-se dessa grandeza. Isso não me passa pela cabeça.
A purificação
HARTMUT WEBER: Posso colocar esta questão de outra forma, quase podendo antecipar sua resposta. Neste final de milênio, quando as Igrejas perderam em eficácia e atravessam uma profunda crise — que afeta grandemente a profissão do sacerdote e do pastor evangélico — existe uma teoria que afirma que os sacerdotes de hoje são os psicoterapeutas. HELLINGER: Não penso assim. Gostaria de fazer uma comparação. No desenvolvimento religioso pessoal, tal como é constantemente descrito pela espiritualidade do Ocidente e também do Islã, o caminho, de que se fala, começa sempre pela purificação. As ideias, os desejos, mesmo a fé, devem ser purificados. No final, é como se a pessoa, depois de alcançar a maior profundidade, se desnudasse em presença da escuridão. Também as religiões estão no caminho da purificação. Penso que isso começou com a teologia. O simples fato de ousarmos pensar sobre Deus já é uma purificação. Isso só existe no Cristianismo, não em outras religiões. Essa purificação começou com a teologia. A seguir, veio o iluminismo, depois a exegese bíblica. São processos de purificação. E então apareceu a psicoterapia, sobretudo com Freud. Ele percebeu o que descrevi há pouco, isto é, que as necessidades humanas tinham sido transferidas para Deus. Quando pensamos em Deus em termos filosóficos, deparamos com distorções absurdas. Isso foi claramente visto por Freud. Essa psicoterapia também tem, por conseguinte, um efeito esclarecedor ou esclarecido que leva a uma purificação da religião. Naturalmente, existem psicoterapias e escolas psicoterapêuticas que se apresentam como se fossem igrejas. Nelas também há um revelador e seguidores, existe uma doutrina certa e outra falsa, nos mesmos padrões das Igrejas. Isso eu considero péssimo. Essas psicoterapias, do mesmo modo que as Igrejas, precisam passar por uma purificação.
HARTMUT WEBER: E também pela confrontação com o nada. HELLINGER: Sim, justamente. HARTMUT WEBER: Muito agradecido.
X — Culpa ou Dor 13 GABRIELE TEN HÖVEL: Nosso tema de hoje é: Culpa ou Dor. Como a psicoterapia lida com descendentes dos perpetradores e das vítimas no nazismo? Nossos convidados são Bert Hellinger, psicoterapeuta, conhecido por sua abordagem, parcialmente controvertida, das constelações familiares, e Tilmann Moser, psicanalista e terapeuta corporal. Saúdo cordialmente a ambos. Minha primeira pergunta se dirige aos dois. Quando os senhores lidam com sobreviventes ou descendentes dos perpetradores nazistas, não trabalham somente com a primeira geração, mas principalmente com a segunda, isto é, com seus filhos e netos. Sr. Hellinger, uma de suas publicações se denomina Das Überleben überleben (Sobreviver à sobrevivência). Eu me pergunto: Por que isso ainda é tão difícil para os netos? HELLINGER: É difícil para os próprios sobreviventes, pois se sentem culpados por estarem vivos, enquanto os outros morreram. Por isso, reprimem a recordação das vítimas e evitam encarar os mortos. Em consequência, seus filhos, netos e bisnetos tomam o lugar dos mortos. A visão dos mortos é muito dolorosa para todos, por isso ela é tão reprimida. A alma da família
GABRIELE TEN HÖVEL: Como podem os netos olhar, por exemplo, 13 Gabriele ten Hövel entrevista Bert Hellinger e Tilmann Moser, no programa “Forum” da emissora alemã Sudwestfunk, 25 de agosto de 1998.
um avô falecido, sobre quem tudo ignoram? Precisam olhar um retrato? Ou a expressão tem um sentido metafórico? HELLINGER: Existe algo que chamo de alma familiar. Isso significa que os membros de uma família se relacionam como se fossem dirigidos por uma instância superior comum a todos — uma consciência familiar, ou alma familiar. Pela participação nessa alma da família todos sabem sobre todos. Essa alma vela para que cada membro da família seja reconhecido e respeitado. Quando um morto não é mais olhado, principalmente se teve uma morte trágica como na época do nazismo, quando ele não é mais lembrado no bom sentido, quando não é honrado, o sistema vivência isso como uma perturbação e procura repará-la, fazendo com que alguns descendentes, sem que tomem consciência disso, imitem essas pessoas e o destino delas. E então podem correr o risco de suicídio. Constelação familiar e terapia individual
TILMANN MOSER: Gostaria de dizer algo sobre esse termo “olhar”. Já assisti a trabalhos seus, e cheguei a participar de duas constelações. Assisti a vídeos seus, discuti com outras pessoas e fiquei muito impressionado. Sou, por assim dizer, um admirador crítico, com uma série de perguntas. Minha primeira pergunta é sobre o olhar. O senhor coloca as pessoas de modo a encararem diretamente os mortos. Isso desencadeia emoções muito fortes. Entretanto, já existe, há três décadas, uma psicoterapia em que nossos colegas também procuram trabalhar a época do nazismo e suas terríveis consequências. Assim, para não parecer que Hellinger foi o primeiro a ensejar uma reconciliação com os mortos, é preciso dar um sentido mais amplo a esse termo olhar. Ele pode ser entendido no sentido de recordar, de investigar, por meio de uma psicoterapia individual, por exemplo, quer seja a Gestalt, o psicodrama ou a psicanálise. Existe então uma tentativa de lembrar-se, de criar uma imagem. Mas,
às vezes, só é possível olhar os mortos quando o filho investiga quem era essa pessoa. Nesse ponto, percebo uma divergência entre nós. O senhor diz que um filho nada deve saber sobre a culpa dos pais. E enfatiza a razão: é para que ele não julgue e condene, o que seria arrogância. Pois, quando um se coloca acima do outro, os mesmos impulsos incontroláveis se repetem, até um possível extermínio. Para não desconsiderar outras orientações psicoterapêuticas que também podem contribuir para a elaboração da época nazista, amplio esse termo olhar para o sentido de recordar. Também será preciso, por exemplo, trabalhar com cadeiras vazias, e talvez, em várias sessões. Quando deixo um avô morto ou judeus assassinados se sentarem em cadeiras vazias, acontece um olhar. Ele talvez não tenha um efeito somático tão forte como em seu trabalho. Mas também produz um efeito, possivelmente mais duradouro. Esta é uma objeção contra o seu método de constelar famílias. Outra objeção visa à sua afirmação de que os filhos não devem saber da culpa dos pais, e que não devem investigar a respeito. Se entendo bem, o olhar, de que se fala, não se realiza no nível de um conhecimento novo. Não se trata de conhecer fatos, por exemplo, se o avô tinha cabelos louros e olhos azuis ou era moreno, e se fez isso ou aquilo. Não é isso o que o senhor entende por olhar, pois a constelação familiar funciona com a ajuda de pessoas desconhecidas, que representam essa família para o público. O cliente posiciona essas pessoas, que lhe são estranhas e nada sabem sobre sua família. E o senhor pressupõe que essas pessoas representam o irmão, a irmã, o pai, a mãe e, também, o avô assassinado. Os clientes olham nos olhos dessas pessoas — é assim que o olhar acontece. Se entendi bem, isso não tem nada a ver com as pessoas reais. HELLINGER: Quando os representantes são escolhidos e posicionados numa constelação familiar, eles se sentem como as pessoas reais. Isso é verdade. GABRIELE TEN HÖVEL: Como se explica isso?
HELLINGER: Não sei. Porém muitas pessoas que constelaram suas famílias se admiram da exatidão com que os representantes adotam os sentimentos e os modos de dizer, às vezes até mesmo a postura física das pessoas reais, sem conhecê-las. Existe algo como um campo de força, ao qual esses representantes se conectam, e do qual subitamente participam. Nesse campo acontece uma comunhão, um saber coletivo e a participação num todo maior. Isso também pode acontecer numa sessão individual. O que o senhor descreveu, Sr. Moser, me é muito familiar. Também eu mando, às vezes, que o cliente feche os olhos e imagine os membros de sua família. Ele entra então numa ligação semelhante com as pessoas, inclusive falecidas, do mesmo modo como na constelação familiar. Por conseguinte, também respeito esses outros métodos. A constelação familiar é um dentre muitos métodos terapêuticos. E também se pode vê-la como complementar a outros métodos. A culpa dos pais não diz respeito aos filhos
GABRIELE TEN HÖVEL: Se agora prescindimos da existência de diferentes métodos, fica de pé a pergunta: Por que o senhor diz que a culpa dos pais não diz respeito aos filhos? Eles não têm o direito de se imiscuir nesse assunto? HELLINGER: Quero fazer uma distinção, pois aqui existe uma incompreensão muito difundida. Se o pai foi membro da SS, 14 o filho geralmente sabe disso. Mas quando ele quer investigar em detalhes o que o pai fez, comporta-se como se tivesse o direito de sabê-lo. Porém isso atua na alma de uma forma nefasta. Basta-lhe saber que o pai foi criminoso. TILMANN MOSER: Mas para isso muitas vezes é necessário investigar. Por exemplo, a família diz que o pai esteve na SS mas não cometeu crimes. Por exemplo, que trabalhava n o setor de transportes, 14
Tropa de choque nazista. (N.T.)
ou que pertencia à cavalaria. A família não deseja que ele tenha sido um criminoso. Mas o filho sente como se carregasse um fardo. Aí ele precisa fazer um mínimo de investigação, para saber se o pai matou ou não, se foi ou não um assassino. Não no intuito de julgar — se bem que, quando um filho se lança a isso, inicialmente é também tentado a julgar; é quase inevitável. Acontece uma incrível flutuação na alma, até que ele vem a saber: “Ah, ele matou. Eu olho para ele, eu o entrego a um outro poder, e não ao meu julgamento”. Mas o senhor talvez tenha afirmado isso com muita ênfase, de modo que surgem malentendidos. HELLINGER: Tudo depende da atitude subjacente. Trata-se de uma tentativa de pôr alguma coisa em ordem? Ou alguém se sente tentado a julgar, a considerar-se superior? Essa é a diferença. Quando a atitude básica é a de reparar alguma coisa, o tipo de investigação que o senhor descreveu me parece correto. GABRIELE TEN HÖVEL: Mas aqui estamos falando em dois níveis diferentes. Um seria o nível sociopolítico; o outro, o nível terapêutico. Muitas pessoas aqui na Alemanha, há uns 20 ou 25 anos, se engajaram na oposição contra seus pais criminosos, e não num processo terapêutico. Portanto, não perguntaram: “O que isso tem a ver comigo? O que significa para mim?”, mas buscaram um discurso sociopolítico. HELLINGER: Não sei se podemos fazer essa distinção. O que importa, quando se investiga isso, não é tanto descobrir o que a pessoa fez, mas olhar para as vítimas. Só podemos abranger toda a dimensão quando olhamos para elas. Então temos a força necessária para olhar também a culpa dos pais, porém de uma outra maneira: não mais como uma acusação, mas como algo que impele os pais irresistivelmente para os mortos. Pois esta é minha experiência na psicoterapia: os assassinos só alcançam a paz quando se deitam ao lado dos mortos; portanto, quando também se dispõem a morrer por sua vez, e a deitar-se ao lado deles. Isso não significa que agora eles
precisam cometer suicídio ou ser executados. Trata-se de uma atitude interior: “Agora vou me deitar junto dos mortos”. Pois o assassino perde o direito de pertencer à sua própria família, e fica, por assim dizer, indissoluvelmente ligado ao destino das vítimas. O simbólico e o real
TILMANN MOSER: Aqui eu gostaria de acrescentar algo e de fazer uma pergunta sobre o grau do simbólico e do real. Suponho que a idade média das pessoas com quem o senhor faz constelações esteja entre 40 e 50 anos, aproximadamente. Os pais assassinos estão doentes ou já morreram. Então o senhor faz com que os representantes dos assassinos se deitem ao lado das vítimas. Onde é que isso produz um efeito, a não ser na alma do filho? Pois os assassinos reais não se tocam com isso. Eu só vejo a incrível emoção dos filhos, bem como dos participantes e do público. GABRIELE TEN HÖVEL: Gostaria que o senhor nos esclarecesse sobre o que acontece numa constelação familiar. Suponhamos que uma cliente esteja configurando sua família, e venha à luz que o seu avô assassinou crianças judias, e que algum membro da família esteja olhando para essas crianças. Essas crianças assassinadas são colocadas de pé ou deitadas? HELLINGER: Às vezes eu as deito no chão, outras vezes as deixo de pé. GABRIELE TEN HÖVEL: E o que se passa então com o algoz? HELLINGER: No início, quando colocamos a família sem as vítimas, com muita frequência os assassinos — os representantes deles — sentem-se grandes e poderosos. Manifestam a arrogância típica do regime nazista, mas também a força, a coragem ou o lado guerreiro que também o caracterizavam, e não mostram nenhum remorso. Mas, logo que coloco as vítimas, deitando-as no chão e dizendo ao algoz que as olhe, ele fica pequeno. Olhar as vítimas nos olhos é algo que ele jamais fez. Então, subitamente, a relação se inverte: as vítimas
mortas se tornam grandes, e o algoz fica pequeno. Então também fica evidente que ele precisa sair de sua família e deitar-se ao lado dos mortos. GABRIELE TEN HÖVEL: Deitar-se ao lado dos mortos? HELLINGER: Deitar-se ao lado dos mortos. Se ele não faz isso, algum de seus descendentes, ou vários deles, são levados a procurar os mortos em seu lugar, e a ficar ou deitar-se junto deles. GABRIELE TEN HÖVEL: Isso significa, portanto, que o perigo para os descendentes é a possibilidade de cometerem suicídio ou entrarem em depressão? HELLINGER: Exatamente, o perigo é esse. TILMANN MOSER: De levar uma vida de expiação, uma cansativa e extenuante vida de expiação. Mas, ainda sobre minha pergunta, o senhor disse agora, com muita precisão, que o avô já morreu. O neto ou a filha colocam esse avô, e o senhor manda que ele se deite junto dos mortos, ou que contemple as vítimas. Muita coisa se move em seu coração, ele fica pequeno. Qual é o lugar em que se opera esse efeito? A alma
HELLINGER: Sua pergunta, Sr. Moser, toca naturalmente o cerne da questão. Isso tem a ver com o modo de encarar a alma. A imagem que faço é que a alma é grande, e que não temos uma alma, mas estamos numa alma, participamos dela. Essa grande alma abarca tanto o domínio dos vivos quanto o dos mortos. Rilke a vê de um modo semelhante nas Elegias de Duíno e nos Sonetos a Orfeu. No domínio dessa alma, quando os mortos são honrados, alguma coisa é re parada, não somente para os vivos, mas também para os mortos. Nas constelações de descendentes de vítimas e de assassinos, podemos ver que os mortos que não foram honrados se sentem completamente apáticos, pesados e oprimidos. Logo que alguém
chega à presença deles e os olha e respeita, isso se atenua. É como se ficassem animados, e sua condição de mortos já não fosse experimentada de um modo tão sombrio e desconectado. GABRIELE TEN HÖVEL: Não apenas pelos mortos, mas também pelos vivos. HELLINGER: Uma tal constelação tem, por conseguinte, uma função curativa, que se estende ao domínio dos mortos. Estas são, naturalmente, afirmações muito ousadas. TILMANN MOSER: Eu diria que isso faz um efeito sobre os mortos na medida em que estão representados na constelação. Ou será isso excessivamente psicológico? HELLINGER: Isso seria, a meu ver, estreito demais. Naturalmente, não se pode afirmar isso do modo como estou dizendo. Porém, quando agimos dessa maneira e deixamos que aconteça numa constelação, produz-se em todos os presentes um efeito salutar. GABRIELE TEN HÖVEL: O que se passa exatamente numa constelação assim? Lá se postam pessoas estranhas que, como o senhor diz, reagem como os membros reais da família. O senhor falou de um campo de força. Aquilo que se entende por alma se difunde nesse campo de força? HELLINGER: Sim, ela se manifesta na constelação familiar. GABRIELE TEN HÖVEL: As pessoas que participam como representantes poderiam perguntar: “O que ele está dizendo da alma e dessas outras pessoas? Eu sou o Dr. Meier, aquele ali é o Sr. Müller”. Nesse enquadramento quase ritual, esse nível de percepção da realidade parece destituído de importância. O acontecimento real, relevante para o trabalho terapêutico, situa-se, de certo modo, num nível mais fundo, abaixo do nível pessoal. TILMANN MOSER: Em discussões com colegas, eu o chamei de nível arcaico dos sentimentos, a química básica, por assim dizer. Acima
disso, existe o edifício da psicologia biográfica individual. O senhor concorda com isso? HELLINGER: Sim, exatamente. TILMANN MOSER: Pois bem, tenho para mim que o senhor vem desempenhando uma espécie de missão, principalmente sobre esse tema da época nazista. Não sei se já é o momento de perguntar uma coisa. Percebo que o senhor ressalta que as vítimas devem ser encaradas, e que os assassinos devem deitar-se ao lado delas — e então acontece a reconciliação. Eu presenciei isso e vi com que profundidade as pessoas o vivenciam. Esse seu conceito de alma, em sua visão, pode ser generalizado, de modo a abranger a sociedade, ou se refere ao conjunto da família? Existe uma passagem entre o ritual das constelações e a consciência pública? Isso acontece por meio de uma difusão, de livros, talvez? Como se relaciona isso com os rituais públicos? Pois o senhor critica os rituais públicos, na medida em que neles sempre se exige um arrependimento ativo: consciência pesada, confissões de culpa, vergonha. O senhor diz que isso envenena a alma, porque neles não se olha para as vítimas e não se presta homenagem a elas. Portanto, pergunto mais uma vez: Qual é realmente o lugar social daquilo que o senhor faz? Eu percebo sua missão, creio que a perce bo e posso louvá-la; o que ainda não entendo é em que lugar se realiza o seu efeito. HELLINGER: Esse tipo de trabalho me veio da terapia, simplesmente trabalhando com doentes. Isso também foi ficando cada vez mais claro. Meu propósito é realmente oferecer uma ajuda aos indivíduos com quem trabalho. Mas é evidente para mim que aquilo que se manifesta aí também tem uma dimensão maior e atua num âmbito mais amplo. Entretanto, só pode expandir sua ação orgânica na medida em que cresce ou, como o senhor diz, se difunde sempre mais.
Qualquer zelo missionário o destruiria imediatamente. Trata-se aqui de um processo vivo, que não pode ser promovido por métodos missionários. A recordação como exigência
HELLINGER: O que observo, com muita frequência, nessas proclamações públicas é que os organizadores e oradores assumem uma atitude predominantemente moralista. Muitas vezes se comportam como se estivessem por fora da situação, ou acima dela. É como se eles próprios não tivessem chorado. Quem chorou, quem ficou abalado e olhou os mortos, não pode falar de confissões de culpa dessa natureza. Isso simplesmente não funciona. Existe, porém, uma certa pressão social, uma compulsão conformista para agir dessa forma. GABRIELE TEN HÖVEL: Uma espécie de culto da recordação. HELLINGER: Sim. Eu acho isso péssimo, basicamente acho péssimo. Em contraposição, a outra atitude, a de olhar os mortos, respeitá-los, sentir dor e chorar com eles, é humilde, simples e profunda. Ela atua de uma maneira reconciliadora, e não somente para os vivos. Nota-se nas constelações que, quando os mortos, em seus representantes, são honrados, eles se retiram. Não querem absolutamente interferir na vida, de um modo que pese sobre os vivos. Quando os vivos olham os mortos e se deixam olhar por eles e, interiormente tocados, os reverenciam, estes liberam os vivos e se postam atrás deles, como uma força que cura e que promove. Realidade interior e realidade exterior
TILMANN MOSER: Bem, nesse assunto, como é natural, eu simplesmente me comporto muito mais como um psicólogo, e vejo o senhor mais como um teólogo. O senhor diz que os mortos se retiram e ficam reconciliados. Quanto a mim, prefiro vê-los somente como representantes de figuras interiores. A reconciliação significa que as imagens interiores já não se vingam. Deixam de ser imagens
vingativas e se tornam conciliadoras. GABRIELE TEN HÖVEL: Mas o seu ponto de referência, Sr. Hellinger, não é o indivíduo, como na concepção do Sr. Moser, para quem os mortos são imagens interiores. Seu ponto de referência é outro. HELLINGER: Sim, mas, digamos desse modo, o efeito é semelhante. Portanto, o ponto de vista que adotamos não importa tanto. TILMANN MOSER: Importa, sim. O senhor também coloca, como já presenciei, mortos desconhecidos: dez vítimas desconhecidas, dez assassinos desconhecidos. Então o senhor diz que as vítimas e os assassinos se reconciliaram, que eles se olharam. Onde está o lugar de dez mortos desconhecidos? Quem é que eles representam? HELLINGER: Vou dar um exemplo. Uma judia foi salva do campo de concentração de Theresienstadt. Em sua constelação, Coloquei representantes de pessoas que lá morreram e que a mulher naturalmente conhecera. Mas eu não os conheço, nem preciso investigar quem são. Mas não são totalmente desconhecidos, pois se relacionam com essa pessoa determinada. Eu não faria isso se não houvesse uma relação com determinadas pessoas. Mas, voltando ao que foi dito sobre as imagens interiores: p ara mim, é muito importante que todos os que pertencem à minha família, inclusive em sua acepção mais ampla, tenham um lugar em meu coração. O senhor também pode atribuir a isso um caráter de representação. Eles agora fazem parte de mim, e isso me faz inteiro e completo. Mas, quando os recebo em mim, eles não ficam, por assim dizer, assentados em mim. Uma vez recebidos, eles se retiram. Frases que curam
GABRIELE TEN HÖVEL: Gostaria de voltar ao seu método concreto de trabalho. O senhor leva os clientes, nessas constelações familiares, a dizer determinadas frases. Por exemplo: Um filho diz a seu pai: “Eu respeito a sua culpa” ou: “Eu ainda vivo algum tempo, depois irei
também”. Qual é o sentido dessas frases, que efeito elas produzem? HELLINGER: Quando alguém diz a seu pai: “Eu respeito a sua culpa”, isso significa: “Respeito que a culpa seja sua, e que você carregue as consequências. E, se você as carrega, eu não me interponho em seu caminho”. Expiar por alguém
GABRIELE TEN HÖVEL: E o que significaria interpor-se no caminho? HELLINGER: Por exemplo, assumir a expiação, no lugar dele. TILMANN MOSER: Como se fosse, às vezes, uma desapropriação. HELLINGER: Sim, e isso é fatal. TILMANN MOSER: E está associado a fantasias de grandeza. HELLINGER: Sim. TILMANN MOSER: Como se o filho dissesse: “Ele não pôde suportar isso, eu posso suportar”. GABRIELE TEN HÖVEL: Portanto — levando agora ao limite — o filho imagina que pode reparar a culpa do pai. Com isso ele arruma a própria vida, mas ao mesmo tempo se sente particularmente grande. HELLINGER: Sim. Mas também os acusadores assumem essa culpa, em virtude de sua acusação. Eles não negam a culpa, mas justamente com sua acusação participam dela, e então se consideram superiores. GABRIELE TEN HÖVEL: O senhor também diz, Sr. Hellinger, que essa ideia, de que os filhos podem assumir a culpa dos pais ou dos avós, tem algo de mágico. O que há de mágico nisso? Pois uma boa parte da abordagem pedagógica do passado alemão se baseia na ideia de que algo pode ser reparado. HELLINGER: Vou ficar inicialmente no nível da família. Quando a criança diz: “Se eu morrer você poderá viver”, isso é mágico. A ideia de que posso intervir em lugar de outra pessoa e redimi-la,
carregando sua culpa ou assumindo por ela a expiação, é um pensamento mágico. GABRIELE TEN HÖVEL: Mas isso também é a base do pensamento cristão, de que Cristo morreu por nós. HELLINGER: Tem razão, é a base do pensamento cristão. GABRIELE TEN HÖVEL: E o senhor diz que isso é mágico. TILMANN MOSER: Sim, se for trocado em miúdos e transferido para a psicologia. Jesus é o nível religioso, diria eu. Transferir isso para a psicologia é um grande salto. No nível da religião, existe uma pessoa que se sacrifica por toda a culpa do mundo. Por isso existe uma igreja universal e nós nos extasiamos, oramos e nos sentimos remidos. Mas, no nível da psicologia, isso não funciona tão bem. Ou então tem efeitos neurotizantes e provoca sofrimentos profundos. HELLINGER: Creio que aqui devemos permanecer no nível da observação, para não nos alçarmos a dimensões que, segundo penso, não nos competem. A mim não competiriam. Entretanto, podemos experimentar com muita frequência, justamente em filhos de assassinos, que eles querem assumir, em lugar de seus pais, a culpa e suas consequências. O curioso nisso é que então o próprio autor não pode ver a culpa. Acontece assim uma transferência, uma transferência no interior da família. TILMANN MOSER: Então surge, de novo, a pergunta: Se um criminoso já morreu, e seu descendente, seja seu filho ou neto, diz: “Eu respeito a sua culpa”, e a devolve, para onde vai essa culpa? Trata-se de um fenômeno intrapsíquico ou, falando grosseiramente, o morto ainda sente algo em seu túmulo? HELLINGER: A culpa sai do filho ou do neto, isso é o essencial. O outro lado já não me interessa tanto. O importante é que ela sai do descendente. Aqui, naturalmente, também é importante a observação de Freud, de
que o inconsciente não conhece tempo. Assim, alguém pode tentar a posterior? salvar alguém da morte ou da culpa, embora essa pessoa já tenha morrido. Isso não envolve contradição para o inconsciente. GABRIELE TEN HÖVEL: Por outras palavras, não é uma fantasia louca do neto assumir a culpa de uma pessoa falecida há longo tempo. Pois o avô continua vivendo, por assim dizer, em seu inconsciente. E, quando o neto assume a culpa e talvez adoeça em decorrência disso, a tragédia é dupla. Pois ele impede, com sua atitude, que a culpa vá para o lugar a que pertence. HELLINGER: Também é verdade que ele não faz isso conscientemente, em absoluto. Ele o faz pressionado por uma instância familiar que busca uma compensação. Se um não expia, o outro entra em seu lugar, sem que tenha consciência disso. Por essa razão, ajudas como a constelação familiar ou a psicanálise são úteis para que isso possa vir à luz e ser resolvido. GABRIELE TEN HÖVEL: Isso significa, no que se refere ao espaço sociopolítico, que quem toma para si a culpa do pai não está assumindo uma posição radical contra os assassinos. Este é um outro nível de aceitação. HELLINGER: Exatamente. Vou dar um exemplo de algo que foi assumido assim. Participou de um grupo meu uma mulher que sofria fortes ataques de pânico e mal conseguia respirar. Os avós dela tinham sido altos dirigentes nazistas na Áustria. Quando introduzimos, em sua constelação familiar, representantes de seus avós, de repente a representante da avó manifestou todos os sintomas da neta. Ficou bem claro que a neta assumira isso em lugar da avó. Então ela pôde deixar com a avó esses sintomas. Ela respeitou a avó deixando a culpa com ela, e se liberou. Mas é preciso que aconteça algo mais. Ela só ficará completamente livre quando também olhar as vítimas e as honrar. Estímulos e acompanhamento
TILMANN MOSER: Posso ligar duas perguntas numa só? Em meu livro Dabei war ich sein liebstes Kind [Eu era seu filho predileto], eu conto a psicoterapia de uma mulher de 69 anos, filha de um membro da SS. Ela se debateu, durante semanas, sobre se tinha o direito de devolver a culpa ao pai, e como faria isso. Em seus sonhos, o pai sempre se defendia, condenando-a e amaldiçoando-a. Como terapeuta individual, sei que uma coisa que o senhor faz num ritual de meia hora dura alguns meses em minha prática terapêutica. Gostaria de conversar mais a respeito disso. Em seu método tudo é altamente concentrado, mas como analista eu pergunto: Onde fica a elaboração? Às vezes, depois de uma constelação muito intensa, o senhor diz ao cliente: “Agora começa o seu trabalho”. Isso me tocou muito. GABRIELE TEN HÖVEL: A alma continua a trabalhar. TILMANN MOSER: Ela continua a trabalhar. Segundo suas hipóteses, sr. Hellinger, uma constelação familiar atua como uma espécie de medicamento de ação retardada, que vai se irradiando. Segundo minha experiência como analista, a alma dispõe de uma série de mecanismos de defesa. Ela não quer saber da verdade, tenta constantemente cuspi-la, jogá-la fora, negá-la. O que é preciso ocorrer com seu medicamento de ação retardada para conseguir êxito? Precisa ser acompanhado por algum assistente? HELLINGER: O que eu transmito, eu chamo de estímulos para um crescimento que continua depois. Está claro para mim que, com muita frequência, ainda é preciso haver muitas outras intervenções para que o crescimento se complete. Vou citar um exemplo. Um filho de judeus holandeses foi dado por seus pais logo após seu nascimento, para que fosse salvo. Ambos os pais morreram num campo de concentração. Quando fizemos a constelação de sua família, houve um emocionante encontro entre o filho e os pais falecidos. Antes que o cliente tomasse o seu lugar na constelação, ele foi representado por um homem que também era
judeu, mas desconhecia esse fato. GABRIELE TEN HÖVEL: O senhor quer dizer, o representante na constelação? HELLINGER: Sim. Ele imediatamente começou a chorar, e então Coloquei o cliente em seu lugar. Um ano depois, perguntei a esse representante se tivera notícias do cliente. Ele respondeu que efetivamente telefonara para o rapaz algumas semanas antes, mas que o outro ficou muito irritado e não quis mais falar da constelação. Portanto, isso existe e mostra que, depois de uma constelação, muitas vezes são necessárias outras intervenções. Penso que a alma, depois de passar por uma experiência assim, muitas vezes procura espontaneamente ajuda e a encontra, por exemplo, numa psicanálise ou em algum outro terapeuta experimentado que possa trabalhar isso passo a passo, com paciência. GABRIELE TEN HÖVEL: Mas pode levar anos até que realmente aconteça. HELLINGER: Eu estimo geralmente um prazo de um a dois anos, a partir do início desse processo de crescimento. TILMANN MOSER: Até que ele seja retomado? GABRIELE TEN HÖVEL: Pode acontecer também que simplesmente desapareça por três anos? Pois nos processos psíquicos não existe controle de qualidade, nesse sentido. Crescimento e reparação
TILMANN MOSER: Suponho que a ciência logo seguirá os seus passos, como espero. HELLINGER: Faço distinção entre duas imagens terapêuticas: o crescimento e a reparação. Para a reparação é necessária a inteireza; para o crescimento, o impulso para que haja progresso. Muitas psicoterapias trabalham com a imagem de processos de crescimento, inclusive muitas terapias longas. A vergonha como exigência
GABRIELE TEN HÖVEL: Gostaria de retornar ao nível concreto e abordar o problema da vergonha. Muitos dizem que o acontecid o não mais se repetirá se nos envergonharmos o suficiente. Isso também faz parte da abordagem pedagógica do passado, talvez não numa forma extrema. Minha geração cresceu com o sentimento de vergonha pelo passado alemão. Agora o senhor está dizendo que assim não haverá paz. Que efeito produz a intimação à vergonha, e que efeito ela é incapaz de produzir? HELLINGER: A intimação à vergonha é dirigida a pessoas que são inocentes. Já por esse lado ela tem algo de louco, pois algo está sendo deslocado. Sinto vergonha, ou pudor, ao proteger algo que me pertence, por exemplo, um segredo, algo íntimo. Porém, quando tenho de me envergonhar como povo, algo está sendo distorcido. Já não se percebe mais que um povo que precisa responsabilizar-se por algo nessas dimensões gigantescas está inserido num movimento histórico. Já não se percebe que um povo não é livre para se comportar de uma maneira ou de outra, mas, mediante conjunturas históricas, é impelido a algo, seja bom ou ruim. Quando reconheço que também atuam outras forças além das pessoais, posso encará-las e reconhecê-las. E agora, quando essas forças impelem numa outra direção, posso confiar-me tranquilamente a elas. Essas experiências terríveis liberaram entre os alemães inúmeras forças numa outra direção, mais humana. Quando, porém, tenho necessidade de me envergonhar, sou remetido de volta a mim mesmo e me enfraqueço interiormente. E talvez eu sinta até mesmo uma resistência contra o que se exige de mim. TILMANN MOSER: Pelo que me disseram professores de história e muitos diretores de escola, os alunos das últimas séries comentam: Nos dias tais e tais, temos de nos envergonhar de novo. HELLINGER: É isso que estou dizendo. Observo o movimento da alma e desejo que esse movimento continue em direção ao bem. GABRIELE TEN HÖVEL: E nesse sentido a vergonha é
contraproducente? HELLINGER: Esse tipo de vergonha, essa necessidade de envergonhar-se é contraproducente. Quem realmente se condoeu, quem olhou e honrou os mortos, quem tem respeito pelo povo judeu e por seu destino pesado através dos séculos, não precisa envergonhar-se de ser alemão. Como poderá envergonhar-se, se tem esse respeito? TILMANN MOSER: Essa é naturalmente uma afirmação muito ousada, e suscita contradição, pois não é fácil saber se as pessoas já se condoeram ou choraram. Essas frases podem ser facilmente entendidas como um modo de desobrigar-se. HELLINGER: Essa dor e esse respeito devem vir primeiro. Por exemplo, em vez de intimar alguém a envergonhar-se, posso levá-lo a visitar um campo de concentração. Há pouco tempo, assisti a um programa onde um sobrevivente judeu falou a classes escolares. Ele falou sem nenhuma acusação, em atitude de respeito diante das vítimas e com simpatia pela geração atual. Isso é salutar. Rituais
GABRIELE TEN HÖVEL: Mas isso naturalmente é também um nível social. Mesmo quando se trata de um movimento da alma, como o senhor diz. O que importa é até que ponto a alma pode abrir-se ao que ocorreu, e deplorá-lo. Isso não é antes um processo individual? Não é terrivelmente difícil fazer isso socialmente? TILMANN MOSER: Acho que o ideal seria se, por exemplo, por meio dos vídeos e do trabalho de Hellinger, um certo conceito de ritual atingisse o público, de modo que as cerimônias públicas não fossem tão acusatórias mas comoventes, e muitas pessoas pudessem ser tocadas por um discurso. Um exemplo disso foi o discurso do presidente Weizsäcker no Congresso; por isso foi tão elogiado. Penso que já existem pessoas capazes de realizar rituais públicos em que o que predomine seja uma emoção autêntica, não uma exigência
política. Contudo — e aqui chego a uma pergunta importante — quantas vezes se pode executar um ritual de modo que ainda faça efeito? Vou dizer isso de um modo mais direto. Sr. Hellinger, o número de seus discípulos cresce em proporção geométrica, e já presenciei casos em que frases que conheço de seu trabalho, e que foram vivenciadas e trabalhadas, são simplesmente puxadas da manga. Podem até ser muito corretas, mas é como se tivessem sido sorteadas de um baralho. Agora estou exagerando. HELLINGER: É péssimo quando isso acontece. TILMANN MOSER: Assim, os novos colegas terapeutas devem ser estimulados a encontrar frases próprias e a passar por uma experiência semelhante, ou precisam recorrer ao seu arsenal de fórmulas e gestos rituais? De qualquer maneira, senti-me constrangido ao presenciar como vem sendo utilizado o seu repertório de fórmulas. GABRIELE TEN HÖVEL: Sr. Moser, o senhor admite que Bert Hellinger basicamente acrescentou algo à psicoterapia? Ele tenta enquadrar a psicoterapia num ritual e, com isso, introduz nela um certo nível coletivo e ritual. Ele situa num espaço mais amplo o par terapeuta/cliente. E também há espectadores presentes. Agora, naturalmente, a segunda pergunta: Um ritual assim é de fato independente de seus agentes, ou cada um deles precisa realmente encontrar sua forma própria? E não é estranha a ideia que se faz da constelação familiar segundo Hellinger, tal como a lemos por toda parte? HELLINGER: É realmente estranha. Um ritual é primordialmente algo que se repete da mesma maneira. O que acontece nas constelações familiares é, na verdade, algo diferente. Quando, numa constelação familiar, eu me encontro no campo de força de uma família, ouço ou sinto o que a alma de alguém diz em
profundidade. Assim, ouço a sua alma e digo a essa pessoa as palavras que ouço. Quando são corretas, elas imediatamente a tocam e comovem. Mas, quando alguém usa uma fórmula preconcebida, ela não atinge a alma. Por isso, as palavras curativas são sempre diferentes e sempre novas em cada constelação, embora naturalmente algumas delas se repitam. Por exemplo, “Eu lhe presto homenagem” é uma dessas frases básicas. Porém, antes de dizermos outras palavras e frases, é preciso que as percebamos interiormente. Se não percebo nenhuma, prefiro não dizer nada. TILMANN MOSER: Eu confio que alguns discípulos realmente percebem muitas coisas. Mas isso requer um longo aprendizado. O bem e o mal
GABRIELE TEN HÖVEL: Para terminar, gostaria de fazer mais uma pergunta, reportando-me ao que o senhor disse sobre a vergonha. Num trecho de seu novo livro, o senhor afirma que também os maus são chamados e tomados a serviço, e que também Hitler foi tomado a serviço. O senhor disse ainda que um povo não é livre para decidir em que direção da história ele é impelido. Aí naturalmente nós gritamos. Os historiadores e os sociólogos perguntam: Onde está a responsabilidade pessoal? O que o senhor quer dizer com isso? Isso implica uma outra atitude básica no que toca à vida, de modo geral, e à história que está por trás dela? HELLINGER: Sim, essa é uma outra atitude básica. Entretanto, aquele que é tomado a serviço não está isento de responsabilidade por aquilo que faz. Em Goethe encontramos esta frase: “Deixas que o pobre se torne culpado, e depois o entregas ao tormento”. Assim, tudo está incluído. Por conseguinte, não se pode tirar daí uma justificativa para os assassinos. Isso não é possível. Contudo, ninguém pode agir nas dimensões em que o fizeram Hitler e o regime nazista, se não for sustentado por um grande movimento que lhe dê apoio e sustentação. Não imagino o que isso seja, apenas reconheço que é assim. E isso produz um efeito na alma.
Quando reconheço que aí estão atuando forças superiores, logo fico mais sereno. Julgo mais fácil fazer simplesmente algum bem, do que imaginar que sou chamado a impedir o mal no mundo, como se pudesse fazê-lo por minhas forças, sem ser sustentado. Pois, para fazer o bem, precisamos ser sustentados por uma força maior. E, na minha imagem, também o mal, quando assume grandes dimensões, é sustentado por uma força assim. GABRIELE TEN HÖVEL: Isso significa que, em sua imagem, já não existe distinção entre o bem e o mal. Eles existem apenas como realidades que se manifestam no mundo — mas em última análise, não. HELLINGER: Precisamos da distinção entre o bem e o mal em nossas relações sociais — isso é evidente. Mas, para distinguir entre o bem e o mal na história do mundo, não creio que tenhamos competência. TILMANN MOSER: Para mim, isso é excessivamente teológico. Mas ainda não refleti bastante a respeito. Noto apenas que é importante para o senhor, em termos de higiene mental. Por outras palavras, o senhor fala de um poder superior, e isso lhe dá serenidade para olhar as coisas com a profundidade com que o faz. Eu tenho de prescindir dela. Para mim, Hitler é um homem que conseguiu um poder incrível. Mas não conheço nenhum poder que pudesse tê-lo tomado a seu serviço. GABRIELE TEN HÖVEL: Assim chegamos ao termo de nossa transmissão. Estiveram em nosso estúdio Bert Hellinger e Tilmann Moser. Como moderadora atuou Gabriele Ten Hövel.
XI — A Presença dos Mortos na Nossa Vida 15 HARTMUT WEBER: Muitos sinais indicam que nossa sociedade 15 Entrevista com Hartmut Weber, da série “Perspectivas Evangélicas”, na Rádio Baviera 2, em 15 de maio de 1999.
continua descartando, em larga escala, a morte e os mortos. Identifico um grande número de sinais disso, pensando na falta de jeito com que costumamos lidar com os moribundos e nos despedir dos mortos nos funerais. Se vejo bem, em muitas pessoas a presença dos mortos foi substituída por uma recordação bem abstrata. A morte é, portanto, um tabu. Sr. Hellinger, em seu trabalho terapêutico e nas constelações familiares, o senhor toma conscientemente um caminho diametralmente oposto, aí introduzindo diretamente os mortos. Mas, antes de entrarmos no tema de nossa conversa, peço-lhe que nos esclareça, em poucas palavras, o que se entende por uma constelação familiar. As constelações familiares
HELLINGER: O que ocorre numa constelação familiar é que um cliente, sem deliberação prévia, escolhe, entre os participantes de um grupo, representantes para os membros de sua família. Estando interiormente centrado, ele posiciona cada um deles no espaço, em relação com os demais. O curioso é que as pessoas escolhidas passam a sentir e a expressar os sentimentos, os comportamentos e, com muita frequência, também os sintomas dos membros da família que eles representam, sem que disponham de informações prévias a respeito deles. Isso é o que surpreende. Nesse processo, observamos que não apenas os vivos, mas também os mortos são importantes numa família. Assim, introduzimos também representantes para os familiares mortos: por exemplo, para um filho que faleceu prematuramente ou um natimorto que foi esquecido. E vemos que esses mortos são importantes para os vivos. Quando, por exemplo, uma criança que nasceu morta foi esquecida, e talvez nem sequer recebeu um nome, observamos que na imagem inicial da constelação todos os membros da família olham na mesma direção. Isso mostra que está faltando alguém na frente. Quando
introduzo esse filho, que nasceu morto ou morreu cedo, a família tem, de súbito, uma sensação de grande alívio e de plenitude. Isso mostra que esses membros mortos pertencem à família, do mesmo modo que os vivos. HARTMUT WEBER: Como o senhor chegou à ideia de introduzir os mortos? Ela resultou de uma inspiração súbita ou o senhor foi levado progressivamente a isso, por meio de uma longa reflexão e de muitas experiências? HELLINGER: Isso resultou do trabalho com as constelações familiares. Quando as pessoas olhavam numa única direção, eu sentia necessidade de descobrir quem estava faltando. Quando eu perguntava se havia alguém que não fora mencionado, frequentemente falavam de pessoas já falecidas. E, quando eu as colocava diante dos outros membros da família, isso produzia um efeito em todos. Por trás disso, atua uma imagem que pouco a pouco foi se formando em mim: de que a família tem uma alma comum. Essa alma une os vivos e os mortos. Ela alcança até mesmo o reino dos mortos, e atua nele. Assim, os mortos estão ligados aos vivos, e os vivos aos mortos. E a forma dessa ligação é frequentemente decisiva no que toca à saúde e à doença. Envolvimentos sistêmicos
HARTMUT WEBER: Por conseguinte, também podemos afirmar que não se pode resolver certos problemas psíquicos de algumas pessoas, sem incluir familiares falecidos. HELLINGER: Exatamente. Por exemplo, se alguma pessoa foi esquecida, se morreu prematuramente ou de uma maneira particularmente trágica, e ninguém quer lembrar-se dela, essa pessoa, ou a grande Alma, procura na família alguém que a represente. Assim, muitas vezes um membro da geração subsequente, que pessoalmente nada tem a ver com o caso, é impelido a representar,
em seu modo de viver, a pessoa que foi esquecida ou excluída. A isso eu chamo de envolvimento. Numa constelação familiar, com a ajuda da pessoa que foi excluída, podemos então encontrar uma solução que resgata o póstero, livrando-o de seu envolvimento com aquele destino. Transgressão de limites
HARTMUT WEBER: Se estou correto, há um certo tabu na tradição cristã. Afirma-se que, quando procuramos entrar em contato com os mortos, transgredimos nossos limites. De meus estudos teológicos, recordo-me da história bíblica de uma mulher que invocava os mortos, no tempo do rei Saul. Numa situação desesperadora, ele tentou saber, por meio dessa mulher, coisas que o teriam ajudado, e foi punido com a loucura. O senhor está alerta para esse tabu? Como lida com esse tema, que esteve proibido por tanto tempo? HELLINGER: Essa história contém, a meu ver, uma verdade profunda, que também se confirma no trabalho com as constelações familiares. Vou citar um exemplo. Há pouco tempo, terminando sua constelação, um homem disse que precisava acrescentar algo importante: que era judeu. Isso se passou na Suíça. Não havia vítimas do holocausto em sua família. Não obstante, a irmã de sua mãe se suicidara, e ele próprio sentia a compulsão de fazer o mesmo. Isso ocorre com muita frequência em famílias judaicas, pelo desejo de seguir os mortos, num sentido mais amplo, os inumeráveis que pereceram. É justamente nessa vontade de seguir os mortos que existe uma transgressão de limites. Assassinos e vítimas
Introduzi então, naquela constelação, sete representantes para as vítimas e, por trás deles, sete representantes para os assassinos. Nada mais fiz, apenas disse que as vítimas se virassem e encarassem os assassinos. Então começou um processo espontâneo, que se prolongou por mais de doze minutos, levando a um contato e um
encontro entre as vítimas e os assassinos. Impressionou muito, nesse particular, que tanto as vítimas quanto os assassinos sentiram a necessidade de se encontrar. Uns e outros reconheceram, simultaneamente, que estiveram a serviço de forças que os dominaram, transformando uns em assassinos e outros em vítimas. Esse reconhecimento possibilitou uma reconciliação entre eles. Também ficou claro, nesse processo, que os mortos proíbem a intromissão dos vivos. Eles dizem que esse assunto lhes pertence, e que os vivos não devem interferir nele. Quando assistimos às discussões sobre a memória das vítimas e das crueldades na época do nazismo, vemos que elas são, muitas vezes, uma intromissão num processo que deve pertencer apenas aos mortos. Os descendentes, tanto das vítimas quanto dos assassinos, comportam-se como se devessem assumir esse processo, e isso compete unicamente aos mortos. Trata-se de uma transgressão de limites. HARTMUT WEBER: Então a transgressão dos limites seria a intromissão, ou o desejo de imitar. Para o senhor, se entendi bem, não há transgressão de limites quando procuramos incluir os mortos e tentamos, como acontece com muita intensidade em seu trabalho, reconciliar-nos com eles, reverenciando-os e pedindo sua bênção. Perfeição e plenitude
HELLINGER: Isso mesmo. Existe na mística cristã e, de modo geral, no esforço da piedade cristã, o grande conceito da perfeição. A busca dessa perfeição, ou plenitude, tem um papel muito importante nas ordens e congregações religiosas. Entretanto, observei em meu trabalho que uma pessoa experimenta o sentimento de estar completa quando todos os que, de um modo mais amplo, pertencem à sua família, inclusive os mortos, os maus, os excluídos e os esquecidos, recebem um lugar em seu coração e em sua alma. Subitamente, ela se sente plena. Isso reflete o que ocorre numa constelação familiar. Os membros da família se sentem bem somente quando todos os
excluídos são introduzidos, reverenciados e acolhidos novamente. HARTMUT WEBER: Gostaria de voltar brevemente ao que considero ser o fundo religioso e teológico desse pensamento. Um terapeuta, Albrecht Mahr, o expressou com as seguintes palavras: “Não podemos saber realmente onde estão os mortos. Todavia, as constelações familiares sugerem que eles e seus destinos são acolhidos e atuam no mesmo espaço intemporal em que nos encontramos”. Isso concorda, de modo relativamente preciso, com o s seus pressupostos. HELLINGER: Sim. Certa vez eu soube de um exemplo trágico. Numa família, nos últimos cem anos, suicidaram-se três homens com 27 anos, no dia 31 de dezembro. Havia, portanto, uma conexão, embora uns nada soubessem dos outros. O homem que me contou a história descobriu, após uma pesquisa, que o primeiro marido de sua trisavô morrera com 27 anos no dia 31 de dezembro, provavelmente envenenado pela trisavó e pelo homem que se tornou então o se gundo marido dela. Dessa maneira, percebe-se que uma ação nefasta atua através de várias gerações, e que na alma da família também existe um empenho em expiar isso, envolvendo nesse destino pessoas inocentes. A solução naquele caso foi conseguida quando mandei que o cliente, que corria perigo de vida, olhasse para o trisavô assassinado e o reverenciasse, dizendo-lhe: “Você tem um lugar em meu coração”. Com isso, ele se livrou da compulsão ao suicídio. Ele também precisou dizer: “A culpa fica com quem ela pertence, com a trisavô e seu segundo marido”. Portanto, é às vezes preciso reparar algo no passado, para que os vivos se libertem. A imagem de Deus
HARTMUT WEBER: Em seu livro Der Abschied [A Despedida], o senhor escreveu: “Não basta olhar as vítimas ou os assassinos, ou ambos juntamente. Uns e outros estão vinculados a algo que atua por
trás deles, a um poder que dirige a história, inclusive em seus aspectos terríveis. É um poder terrível, que provoca medo por sua grandeza e independência. Diante desse poder, vítimas e assassinos são iguais. Por isso mesmo, eles podem amar- se reciprocamente quando se percebem vinculados a esse poder. Somente quando isso é reconhecido, e quando entra em ação esse aspecto religioso subjacente, é que acontece a reconciliação e a liberdade para os vivos”. Para mim, isso resume bem o que o senhor acaba de dizer. Meu problema reside na diferença entre as imagens. O senhor fala de um poder, enquanto os cristãos falam do Deus que é tradicionalmente proclamado nas igrejas. Não se coloca aqui um obstáculo, que talvez dificulte a muitas pessoas o acesso ao seu trabalho? HELLINGER: Depois da experiência dos campos de concentração, teólogos conceituados afirmam que a antiga imagem de Deus já não pode subsistir. Vemos, subitamente, que a imagem de Deus como um ser que existe em função de nós, que cuida de nós e nos tem diante dos olhos, como se fôssemos seu principal interesse, já não resiste à realidade. Precisamos agora, sobretudo, encarar a realidade tal como ela se manifesta, e nos entregarmos a esse poder, inclusive em seus aspectos terríveis. Daí resulta, surpreendem temente, uma profunda paz de alma. De repente, chegamos a um nível bem diferente e mais profundo de compreensão da palavra “Faça-se a Tua vontade”. Quando permanecemos nesse nível, a realidade perde muito de seus aspectos terríveis, porque se desenvolvem, nas profundezas, uma paz e uma força que não podemos conseguir de outro modo. O Deus grande
HARTMUT WEBER: O senhor afirmou, certa vez: “Para os senhores, o momento mais autêntico na história de Jesus de Nazaré é a hora na cruz, quando ele diz: ‘Meus Deus, meu Deus, por que me abandonaste?’”
Contudo, essas palavras são frequentemente interpretadas por teólogos cristãos como se Jesus estivesse apenas recitando uma oração do Antigo Testamento. Eles entendem isso de outra maneira. HELLINGER: Os teólogos estão certos quando dizem que é a primeira frase de um salmo. É possível entendê-lo assim, e nessa perspectiva a história cristã pode ser entendida de um modo que sugere a redenção, no sentido cristão. O outro lado que vejo é o seguinte: Se essa palavra é tomada a sério, Deus é muito grande e Jesus, mesmo em sua grandeza, é pequeno. Deus não dá sua honra a ninguém, nem mesmo a Jesus. Nessa extrema nudez e desamparo, Deus se manifesta. E o ser humano, em sua dependência de Deus, se torna grande quando reconhece isso. Acho isso muito mais significativo do que tudo o mais que se diz a respeito. Vivos e mortos
HARTMUT WEBER: Em seu trabalho com as constelações, o senhor afirma, como evidente, que os vivos podem e devem fazer algo pelos mortos, e que também os mortos podem fazer algo pelos vivos. Poderia esclarecer esse ponto? HELLINGER: Nas constelações, sobretudo quando são incluídas vítimas do holocausto, fica claro que esses mortos, na expressão de seus representantes, se sentem apáticos, e realmente mal. Quando os vivos finalmente os olham e lhes prestam homenagem, deixando-se olhar por eles, essa sensação de estar morto recebe uma outra qualidade. Subitamente, eles se sentem mais ligados e presentes. Sentem-se melhor. E também os vivos se sentem melhor. Se os vivos temem olhar assim os mortos, é porque não querem se defrontar com o poder terrível que atua por trás deles. Por conseguinte, eu realizo um ato religioso quando me atrevo a olhar nos olhos de uma pessoa que morreu desse modo, deixo -me olhar por ela, e sinto, de repente, que ela é grande e completa, enquanto eu sou
ainda incompleto. Realizo um ato religioso quando lhe presto homenagem, sentindo que ela se dirige a mim com amor, e recebendo a sua bênção, que me mantém vivo e enriquece. Nesse sentido, o morto volta a atuar sobre o vivo, mas só depois que o vivo atuou sobre ele. A reconciliação
HARTMUT WEBER: O senhor iria tão longe quanto o já citado Albrecht Mahr, que vê nesse tipo de constelações algo relacionado à oração? HELLINGER: Sim. HARTMUT WEBER: Pode esclarecer como se entende isso? HELLINGER: Acontecem muitas coisas nas constelações, principalmente quando o terapeuta não interfere. Pode acontecer que os representantes sejam subitamente atirados ao chão por algum poder. Ou alguém cai, fica quase inconsciente; e, ao entregar -se a esse movimento, junto com a pessoa a que esse movimento se refere, chega-se a uma reconciliação. Portanto, essa força terrível atua no sentido de uma reconciliação, de um amor muito profundo. Então cada um também é profundamente tocado e enriquecido, inclusive no sentido religioso. Aí se revela que o poder que está por trás disso tem vários aspectos. Quando o presenciamos, somos tocados muito profundamente, num sentido religioso. Nessa medida, pode-se afirmar isso. HARTMUT WEBER: Provavelmente, poderíamos dizer também que somente uma percepção realmente autêntica libera e salva. Isso me remete ao que eu disse no início. As vezes, sentimos que algo que foi fortemente reprimido se torna muito mais violento e nos pesa muito mais. Aqui ocorre o efeito inverso: o ato de perceber os mortos tem para nós um efeito que libera e cura. Julgo que tudo isso se relaciona com as frases que o senhor costuma
dizer nessas constelações, onde me pareceu ter descoberto determinados passos. Primeiro, a saudade e a dor pelos mortos, quando se diz: “Você nos fez falta”. Depois, com muita frequência, o pedido de bênção: “Por favor, me abençoe”. A seguir, a advertência de que a vida continua: “Eu fico mais um pouco, depois vou também. E finalmente: “Eu lhe dou um lugar em meu coração”. Essas frases, mesmo quando apenas as cito, me fazem bem, possuem algo que libera e que cura. Vejo isso como o centro de seu trabalho. A percepção
HELLINGER: Trata-se de uma forma especial de percepção, que denomino compreensão por meio da renúncia”. Não é algo que se possa alcançar pelo pensamento. Mas, quando o terapeuta se detém numa constelação familiar, sem saber, absolutamente, como avançar, e se recolhe em si mesmo, subitamente lhe vem uma luz; às vezes, também ocorre uma palavra, uma frase. Quando a pronunciamos, ela atua. É algo totalmente diferente de quando primeiro pensamos uma coisa, e depois a dizemos, pois isso fica sem eco e sem efeito. Chamo de fenomenológico esse tipo de percepção. Isso significa que estou presente sem um propósito determinado e, sobretudo, sem temor, sem medo do que possa vir à luz e do que outros venham a comentar. Existe, assim, uma atitude de despojamento, precedendo a percepção — que então produz esse efeito. Esse tipo de conexão é, estritamente falando, uma conexão religiosa, porque os fatores humanos, a vontade, o ego, o eu, passam ao segundo plano. HARTMUT WEBER: Quero voltar a um ponto que já toquei anteriormente. Em que medida é necessário que as pessoas que colaboram com o seu trabalho partilhem os seus pressupostos religiosos, diretos ou indiretos? É possível que alguém que diga: “Nisso não posso acompanhá-lo” se associe ao seu trabalho? E como funciona isso com cristãos tradicionais? HELLINGER: Este trabalho se baseia na experiência e na percepção
imediata, sem nenhum pressuposto. Portanto, por meio dele, a pessoa se educa, por assim dizer, numa atitude religiosa. Ela faz experiências religiosas, mas de um modo totalmente aberto, livre de qualquer determinação de minha parte. Seja como for, ela vivência ligações com outras pessoas, com forças mais profundas, com uma alma maior, e isso supera suas concepções anteriores. Nesta medida, não é preciso que haja pressupostos. Os cristãos também encontram, muitas vezes, nesse trabalho estímulos para se ocuparem de um modo novo com os conteúdos da fé e talvez mesmo para aprofundá-los. Palavra final
HARTMUT WEBER: Lamentavelmente, nosso tempo se esgotou. Penso que, nessa temática difícil e altamente complexa, só poderíamos, no melhor dos casos, aflorar as questões. Espero que isso nos leve a avançar nesses pensamentos e deixar que se desenvolvam em nós. Gostaria de pedir-lhe, para concluir, que nos leia, como palavra final, o posfácio que escreveu para seu livro Der Abschied, porque julgo que aí se encontra resumido o que considera importante nesse assunto. HELLINGER: “Eu me despeço agora dos que morreram e de seus assassinos. Eles também têm, como nós, o direito de considerar como passado, depois de algum tempo, o que foi nefasto para eles. Então também poderemos tratar esse passado como Ló, quando deixou Sodoma sem olhar para trás. “Contudo, assim como Jacó, quando atravessou o Jaboc, não largou o anjo com quem lutava até receber dele a bênção, assim também só poderemos deixar esses mortos quando os reverenciarmos e formos abençoados por eles. Então eles se retiram em silêncio e nós, ainda que marcados, atravessamos livremente, com nossos bens, o rio que, por algum tempo, ainda nos separa deles”.
XII — A Compreensão Por Meio da Renúncia 16 Para começar, vou contar uma história: O entendimento
Alguém se decide afinal a saber. Monta em sua bicicleta, pedala para o campo aberto, afastando-se do caminho habitual e seguindo por outra trilha. Como não existe sinalização, ele tem de confiar apenas no que vê com seus olhos diante de si e no que mede com seu avanço. O que o impulsiona é antes de tudo a alegria do descobridor. E o que para ele era mais um pressentimento agora se transforma em certeza. Eis, porém, que o caminho termina, diante de um largo rio. Ele desce da bicicleta. Sabe que, se quiser avançar, deverá deixar na margem tudo o que leva consigo. Perderá o solo firme, será carregado e impulsionado por uma força que pode mais do que ele, à qual precisará entregar -se. Por isso hesita e recua. Pedalando de volta para casa, dá-se conta de que pouco conhece do que poderia ajudar e dificilmente conseguirá comunicá-lo a outros. Já tinha vivido, por várias vezes, a situação de quem corre atrás de outro ciclista para avisá-lo de que seu para-lama está solto: “Ei, você aí, seu para-lama está batendo!”. “O quê?”. “Seu para-lama está batendo!”. “Não consigo entender — retruca o outro —, meu para-lama está batendo!” “Alguma coisa deu errado aqui", pensa ele. Pisa no freio e dá meia-volta. Pouco depois, encontra um velho mestre e pergunta-lhe: “Como é que você consegue ajudar outras pessoas? Elas costumam procurá-lo para pedir seu conselho em assuntos que você mal conhece. Não obstante, sentem-se melhor depois”. O mestre lhe respondeu: “Quando alguém para no caminho e não quer avançar, seu problema não está no saber. Ele busca segurança quando é preciso coragem e quer liberdade quando o certo não lhe deixa escolha. 16 Conferência pronunciada no II Congresso Mundial de Psicoterapia, em Viena, Áustria, em 6 de julho de 1996. Publicada posteriormente na edição de Ordens do Amor.
Assim, fica dando voltas. O mestre, porém, não cede ao pretexto e à aparência. Busca o próprio centro e, recolhido nele, espera por uma palavra eficaz, como quem abre as velas e aguarda o vento. Quando a outra pessoa chega, encontra-o no mesmo lugar aonde ela própria deve ir, e a resposta vale para ambos. Ambos são ouvintes”. E o mestre acrescenta: No centro sentimos leveza. A via científica e a via fenomenológica do conhecimento
Dois movimentos nos levam ao conhecimento. O primeiro é exploratório e quer abarcar algo até então desconhecido, para apropriar-se e dispor livremente disso. O esforço científico pertence a esse tipo. E sabemos como ele transformou, assegurou e enriqueceu o nosso mundo e a nossa vida. O segundo movimento tem início quando nos detemos, durante o esforço exploratório, e dirigimos o olhar, não mais para determinado objeto sensível, mas para um todo. Assim, o olhar se dispõe a receber simultaneamente a diversidade com que se defronta. Quando nos deixamos levar por esse movimento diante de uma paisagem, de uma tarefa ou de um problema, notamos como o nosso olhar se torna simultaneamente pleno e vazio. Pois só prescindindo das particularidades conseguimos defrontar-nos com a plenitude e suportá-la. Assim, detemo-nos em nosso movimento exploratório e nos retraímos um pouco, até atingir aquele vazio que pode fazer face à plenitude e à multiplicidade. Chamo de fenomenológico esse movimento, que inicialmente se detém e depois se retrai. Ele nos proporciona conhecimentos diferentes daqueles obtidos pelo movimento do conhecimento exploratório. Porém ambos se completam. Pois também no movimento do conhecimento científico exploratório precisamos eventualmente parar e mudar a direção de nosso olhar, do estreito para o amplo, do próximo para o distante. Por sua vez, o conhecimento adquirido pela via fenomenológica necessita de
comprovação no indivíduo e no próximo. O processo
Na via fenomenológica do conhecimento, defrontamo-nos, dentro de um determinado horizonte, com a multiplicidade dos fenômenos, sem prévia escolha e sem avaliação. Essa via do conhecimento exige, portanto, que nos esvaziemos, tanto de ideias preexistentes quanto de movimentos internos, sejam do sentimento, da vontade ou do juízo. Nesse processo, a atenção permanece simultaneamente dirigida e não-dirigida, concentrada e vazia. A postura fenomenológica requer uma prontidão atenta para agir, sem contudo passar ao ato. Ela nos torna extremamente capazes e prontos para a percepção. Quando a sustentamos, percebemos, depois de algum tempo, que a multiplicidade presente no horizonte se dispõe em torno de um centro. De repente, reconhecemos uma conexão, uma ordem talvez, uma verdade ou o passo que nos faz progredir. Essa compreensão provém igualmente de fora, é experimentada como uma dádiva e, via de regra, é limitada. A renúncia
O primeiro pressuposto para alcançar essa compreensão é a ausência de intenções. Quem possui intenções impõe à realidade algo de seu. Pretende, talvez, alterá-la a partir de uma imagem preconcebida, ou influenciar e convencer outras pessoas por intermédio dela. Procedendo assim, ele age como se estivesse numa posição superior face à realidade, como se fosse ela um objeto de sua subjetividade, e não ele próprio o objeto dessa realidade. Aqui fica evidente a renúncia que se exige de nós, para abdicarmos de nossas intenções, inclusive das que são boas. De mais a mais, o próprio bom senso exige essa renúncia. Pois a experiência nos mostra que frequentemente nos damos mal no que fazemos com boa intenção, inclusive com a melhor das intenções. A intenção não serve de substituto para a compreensão.
A coragem
O segundo pressuposto para essa compreensão é o destemor. Quem teme o que a realidade traz à luz, limita sua própria visão. E quem receia o que pensarão ou dirão os outros quando ele disser o que percebeu, fecha-se a um conhecimento ulterior. Aquele que, como terapeuta, teme defrontar- se com a realidade de uma pessoa — por exemplo, que lhe resta pouco tempo de vida — transmite-lhe medo, pois o cliente vê que o terapeuta não está à altura dessa realidade. A sintonia
A ausência de intenção e de medo permite a concordância com a realidade como ela é, inclusive de seu lado atemorizante, avassalador e terrível. Assim, o terapeuta fica em sintonia com a felicidade e a infelicidade, a inocência e a culpa, a saúde e a doença, a vida e a morte. Justamente por meio dessa harmonia ele adquire a compreensão e a força para encarar o funesto e, às vezes, ainda em harmonia com essa realidade, para mudá-lo. Sobre esse tema contarei outra história: Um discípulo perguntou a um mestre: “Diga-me, o que é a liberdade?” “Que liberdade?”, perguntou-lhe o mestre. A primeira liberdade é a estupidez. Lembra o cavalo que relinchando derrub a o cavaleiro, só para sentir depois o seu pulso ainda mais firme.
A segunda liberdade é o remorso. Lembra o timoneiro que, após o naufrágio, permanece nos destroços ao invés de subir no bote salva-vidas. A terceira liberdade é a compreensão. Ela sucede à estupidez e ao remorso. Assemelha-se ao caule que balança com o vento e, por ceder onde é fraco, permanece de pé.” “Isso é tudo?”, perguntou o discípulo. O mestre lhe respondeu: “Algumas pessoas acham que são elas que procuram a verdade de suas almas. Contudo, é a grande Alma que pensa e procura por intermédio delas. Como a natureza, ela pode permitir-se muitos erros,
porque está sempre e sem esforço substituindo os maus jogadores. Mas aquele que lhe permite pensar recebe dela, às vezes, certa liberdade de movimento. E, como um rio que carrega o nadador que se deixa levar, ela o leva até a margem, unindo sua força à dele”. Fenomenologia filosófica
Falarei agora sobre a fenomenologia filosófica e a fenomenologia psicoterapêutica. Na fenomenologia filosófica, procuro perceber o que é essencial na multiplicidade dos fenômenos, expondo-me totalmente a eles, com minha máxima receptividade. Esse essencial emerge repentinamente do oculto, como um raio, e sempre ultrapassa em muito o que poderíamos pensar ou deduzir logicamente de premissas ou conceitos. Contudo ele nunca se revela totalmente. Permanece envolvido pelo oculto, como todo ser é envolvido por um não-ser. Com essa atitude, pude apreender os aspectos essenciais da consciência: por exemplo, que ela atua como um órgão de equilíbrio sistêmico. Por meio dela, o indivíduo pode perceber imediatamente se está ou não em harmonia com o sistema, e se sua ação preserva e assegura seu pertencimento ao sistema ou se, pelo contrário, o ameaça ou suprime. Portanto, nesse contexto, a boa consciência significa apenas: “Posso estar seguro de que ainda pertenço”. E a má consciência significa: “Temo perder meu direito de pertencer”. Assim, a consciência tem pouco a ver com leis e verdades universais, mas é relativa, e varia de um grupo para outro. Do mesmo modo, reconheci também que essa consciência reage de modo totalmente diverso quando o que está em jogo não é o direito de pertencer, como descrevi há pouco, mas o balanço entre o dar e o receber. E ela reage ainda de uma outra maneira quando vela pelas ordens da convivência. Cada uma das diversas funções da consciência é dirigida e imposta por ela, mediante diferentes sentimentos de inocência e de culpa.
Contudo, a principal diferença que se evidenciou nesse contexto é a que existe entre a consciência que sentimos e a consciência oculta. Pois, justamente ao seguirmos a consciência manifesta, atentamos contra a consciência oculta. E enquanto a consciência manifesta nos declara inocentes, a consciência oculta pune nosso ato como culpa. A oposição entre essas consciências é a base de todas as tragédias — que, no fundo, são sempre tragédias familiares. Essa oposição leva a envolvimentos trágicos que ocasionam enfermidades graves, acidentes e suicídios. Ela é igualmente responsável por muitas tragédias de relacionamento, quando uma união conjugal se desfaz, apesar de haver um grande amor recíproco. Fenomenologia psicoterapêutica
Esses conhecimentos, porém, não provieram apenas da percepção filosófica e da utilização filosófica do método fenomenológico. Foi necessária ainda uma outra via de acesso, que chamo de saber por participação. Essa via se abre por meio das constelações familiares, conduzidas sob o enfoque fenomenológico. O cliente escolhe arbitrariamente, entre os participantes de um grupo, representantes para si mesmo e para outros membros importantes de sua família, por exemplo, para seu pai, sua mãe e seus irmãos. Estando interiormente centrado, ele os posiciona no recinto, de acordo com suas relações mútuas. Por meio desse processo, o cliente é surpreendido por algo que subitamente vem à luz. Com efeito, no processo da configuração de sua família, ele entra em contato com um saber que antes lhe estava vedado. Recentemente um colega me relatou um exemplo. Na constelação de uma família, evidenciou-se que a cliente estava identificada com uma antiga namorada de seu pai. Posteriormente, ela interrogou seu pai e outros parentes a respeito desse fato, mas todos lhe garantiram que estava enganada. Entretanto, alguns meses depois, seu pai recebeu uma carta de Bela- rus. Era de uma mulher que tinha sido seu grande amor durante a guerra e que, depois de muita procura, descobrira o
endereço dele. Mas este é apenas o lado do cliente. O outro lado é que o representante, uma vez posicionado, sente-se do mesmo modo que a pessoa que está representando. Às vezes, chega a experimentar sintomas físicos dela. Presenciei casos em que o representante ouviu intimamente o nome dessa pessoa. Tudo isso é sentido, embora o representante nada saiba sobre a pessoa que está representando. Fica claro, portanto, no processo de uma constelação familiar, que, entre o cliente e os membros do sistema, atua um campo de força dotado de um saber que é transmitido pela simples participação, sem mediação externa. O mais surpreendente é que também os representantes podem conectar-se com esse saber e com a realidade dessa família, embora não se relacionem com ela e nada saibam a seu respeito. O mesmo vale, naturalmente, e de modo especial, para o terapeuta. Mas a condição para isso é que tanto ele quanto o cliente e os representantes estejam dispostos a abrir-se à realidade que pressiona para manifestar-se, e a aceitá-la tal como é, sem intenções, sem medo e sem apelar para teorias ou experiências anteriores. Nisso consiste, aliás, a postura fenomenológica aplicada à psicoterapia. Aqui, também, a compreensão é obtida pela renúncia, pelo abandono de intenções e de medos, e pela concordância com a realidade, tal como ela se manifesta. Sem essa postura fenomenológica, sem a aceitação do que se manifesta, destituída de interpretações, de atenuações e de exageros, o trabalho com as constelações familiares permanece superficial, desvia-se facilmente e tem pouca força. A alma
Ainda mais surpreendente do que esse conhecimento, transmitido pela participação, é o fato de que esse campo ciente ou, como prefiro chama-lo, essa alma ciente, que transcende e dirige o indivíduo, procura e encontra soluções que superam em muito o que poderíamos
imaginar, e produzem efeitos bem mais abrangentes do que seria possível obter com uma ação planejada. Isso se evidencia, de modo particular, nas constelações em que o terapeuta procede com a máxima reserva, limitando-se a colocar representantes para as pessoas importantes e entregando-os, sem prévias instruções, àquilo que os arrebata, como um poder externo irresistível, e os conduz a luzes e experiências que de outro modo pareceriam impossíveis. Por exemplo, há pouco tempo, na Suíça, depois de constelar sua família atual, um homem achou necessário acrescent ar que era judeu. Coloquei então, lado a lado, sete representantes de vítimas do holocausto. Atrás deles, Coloquei sete representantes dos assassinos e fiz com que as vítimas se virassem para eles. Um incrível processo sem palavras desenrolou-se então entre todos, durante cerca de um quarto de hora. Ele mostrou claramente que existe o que poderíamos denominar uma morte consumada e uma morte não-consumada. Para a vítima e seu algoz, a morte só se consuma quando ambos se encontram, e reconhecem que foram igualmente determinados e dirigidos por um poder que atuou sobre eles, no qual finalmente se sentem acolhidos. Fenomenologia religiosa
Aqui o nível da filosofia e da psicoterapia é substituído por um outro mais amplo, em que nos experimentamos entregues a um todo maior, que temos de reconhecer como último e abrangente. Esse nível poderia ser chamado de religioso, ou espiritual. Mesmo nele, contudo, mantemos a postura fenomenológica, livres de intenções, de medo e de pressupostos, apenas presentes ao que se manifesta. Ilustrarei com uma terceira história o que isso significa para a experiência religiosa e para o ato religioso. O retorno
Alguém nasce em sua família, em sua pátria, em sua cultura. Desde cria nça ouve falar de seu modelo, professor e mestre, e sente um desejo profundo de
tornar-se e ser como ele. Junta-se a pessoas que têm o mesmo propósito, disciplina-se por muitos anos e segue seu grande modelo, até que se toma igual a ele — até que pensa, fala, sente e quer como ele. Entretanto, julga que ainda lhe falta uma coisa. Assim, parte para uma longa viagem, buscando transpor talvez uma última fronteira na mais distante solidão. Passa por velhos jardins, há muito abandonados. Ali florescem apenas rosas silvestres. Grandes árvores dão frutos todos os anos, mas eles caem esquecidos no chão porque não há quem os queira. Dali em diante começa o deserto. O viajante é logo cercado por um vazio desconhecido. Para ele todas as direções se confundem, e as imagens que esporadicamente aparecem diante dele são logo reconhecidas como vazias. Caminha ao sabor dos impulsos. Quando já tinha perdido, há muito tempo, a confiança nos próprios sentidos, avista diante de si uma fonte. Ela brota do solo e nele imediatamente se infiltra. Porém, até onde a água alcança, o deserto se converte num paraíso. Olhando em volta, o viajante vê então dois estranhos se aproximarem. Tinham procedido exatamente como ele. Seguiram seus próprios modelos até se tornarem iguais a eles. Partiram igualmente para uma longa viagem, buscando transpor talvez uma última fronteira, na solidão do deserto. E, como ele, encontraram a fonte. Juntos, os três se curvam, bebem da mesma água e acreditam que estão perto de atingir a meta. Depois dizem seus nomes: “Eu me chamo Gautama, o Buda”. “Eu me chamo Jesus, o Cristo.” “Eu me chamo Maomé, o Profeta.” Então chega a noite, e acima deles brilham as estrelas, como sempre brilharam, extremamente distantes e silenciosas. Os três se calam, um deles sabe que está mais próximo do seu grande modelo do que jamais estivera. É como se pudesse, por um momento, pressentir o que Ele sentira quando conheceu a impotência, a frustração, a humildade. E como deveria sentir-se, se conhecesse igualmente a culpa. E julgou ouvi-Lo dizer: “Se vocês me esquecessem, eu teria paz”. Na manhã seguinte ele retoma, fugindo do deserto. Mais uma vez, seu
caminho o leva por jardins abandonados, até que chega a um jardim que lhe pertence. Diante da entrada está um velho, como se estivesse esperando por ele. O velho lhe diz: Quem vai tão longe e encontra, como você, o caminho de volta, ama a terra úmida. Sabe que tudo o que cresce também morre, e quando acaba nutre”. “Sim”, responde o outro, “eu digo sim à lei da terra.” E começa a cultivá-la.
XIII — Religião e Psicoterapia 17 A psicoterapia e as religiões buscam ambas a salvação e a cura da alma e, por seu intermédio, a salvação e a cura do ser humano integral. Nisso se unem. Entretanto, também se diferenciam. Pois a psicoterapia, devido às suas origens, reconhece seu compromisso com a ciência e o iluminismo. Por essa razão, assume uma postura crítica em face das religiões tradicionais. Essa atitude, sob muitos aspectos, foi salutar para as religiões. Pois a psicoterapia, por meio de suas compreensões, as força a se purificarem, liberando-se de imagens, esperanças e temores míticos e retornando aos seus princípios e às suas raízes. A alma e o eu
Entretanto, no que toca à psicoterapia, também se questiona até que ponto ela própria permaneceu sob o fascínio de esperanças e imagens arcaicas, carecendo, portanto, de uma desmitificação. Limito-me a salientar aqui que o eu, da maneira como fascina alguns terapeutas, é também uma imagem mítica que alimenta esperanças míticas e procura conjurar os medos de uma forma que às vezes se assemelha à superstição. Também me parece um mito, tanto na religião quanto na psicoterapia, que a alma seja considerada como algo pessoal. Quando olhamos imparcialmente a forma de sua atuação, verificamos que não somos 17 Conferência pronunciada na I Jornada de Trabalho sobre a Prática da constelação Familiar, Wiesloch, Alemanha, 11 de abril de 1997.
nós que temos e possuímos uma alma, mas é ela que nos tem e nos possui. Não é a alma que está a nosso serviço; ao contrário, somos nós que somos tomados a seu serviço. Assim, há muitos pontos a questionar, tanto na religião quanto na psicoterapia. O método fenomenológico
Meu método é fenomenológico. Por outras palavras, na medida do possível, prescindo do usual, inclusive de teorias e de convicções, e me exponho à realidade experimentável, tal como ela se manifesta e se modifica no decurso do tempo. Então aguardo até que, a partir do oculto, algo se manifeste, que subitamente, como um raio, atinja o ponto e o esclareça, como verdadeiro e essencial. Essa luz permite sintonizar com uma realidade que ultrapassa em muito o saber, os planos e o querer do eu, e se comprova por seus efeitos. A alma e o eu na religião
Começando com a religião, pergunto: O que acontece nas pessoas quando se experimentam como religiosas? Observando-as, vemos que estão conscientes de depender de forças cuja atuação permanece misteriosa. Diante dessas experiências, elas tomam uma atitude de respeito, de humildade ou de devoção diante de algo misterioso que não compreendem. Esta é a autêntica atitude religiosa. Ela nos leva a dar antes um passo para trás, do que para a frente. Ela não reivindica, mas está em sintonia e em paz. Eu a denomino religião da alma. Existe, porém, um domínio da alma que dificilmente tolera essa reserva. Em lugar disso, procura apoderar-se da realidade por trás dessas manifestações, influenciá-la e servir-se dela por meio de ritos, sacrifícios, expiação, orações. É o que eu chamo de religião do eu. É verdade que na religião do eu também vibra algo da religião da alma, pois também ela reconhece uma realidade transcendente. Ao mesmo tempo, porém, ela tenta abolir o caráter oculto dessa realidade e dispor dela. Isto envolve uma contradição. Daí resultam
deformações da religião, na medida em que queremos decifrar e manejar o mistério, em vez de respeitá-lo. Com isso se indica às religiões e à prática religiosa um caminho de purificação. Ele se afasta do eu e retoma à alma. As religiões reveladas
Especialmente relevantes, neste particular, são as religiões reveladas. Elas se originam em alguém que proclama aos outros ter recebido uma revelação de Deus e exige deles, muitas vezes sob ameaça de condenação eterna, que creiam nessa revelação. A religião revelada — em nosso caso, sobretudo o Cristianismo — constitui, de certo modo, o ápice de uma religião do eu. Por um lado, o Deus de quem se afirma ter-se revelado se apresenta como um eu, com todos os traços que o caracterizam. Por outro lado, também o revelador fala como um eu, e exige dos demais que submetam o eu deles ao seu. Contudo, se também aqui olharmos o fenômeno sem preconceitos, perceberemos que o revelador fala apenas de si. E a fé que ele exige é, em última análise, uma fé nele. Ele também afirma que Deus não fará a mais ninguém uma revelação semelhante, que a negará a todos os demais, e que Ele próprio se sujeitará a essa revelação para sempre. Desse modo o revelador se eleva, por meio de sua revelação, não somente sobre seus adeptos, mas também sobre o Deus que proclama. Assim, são sobretudo as religiões reveladas que necessitam de esclarecimento e purificação. A comunidade religiosa
Ora, quando olhamos mais de perto o desenvolvimento do indivíduo, notamos que seu sentimento religioso, sua fé e seus atos religiosos começam na família, que lhe impõe suas concepções religiosas. A religião era antigamente uma das condições para se pertencer à família. Transgressões contra a religião eram experimentadas como uma renegação da família, e como tais eram punidas. Por isso, a renegação da religião era experimentada — e ainda o é, em parte —
antes de tudo como renegação da família, e se associava ao medo de perder o direito de pertencer-lhe. Considerando bem, esse medo nada tem a ver com os conteúdos religiosos, pois se manifesta de modo semelhante em famílias que pertencem a diferentes religiões, independentemente de suas doutrinas e práticas. Esse medo é experimentado de maneira mais ou menos forte, de acordo com o grau de seriedade com que a família toma a religião. Isso vale também para as atitudes conhecidas como irreligiosa e ateísta. Também elas atuam criando obrigação, na medida em que são condições para se pertencer à família. Essas religiões são, portanto, religiões de grupos. Muitas ve zes, é por meio delas que um grupo se diferencia dos demais, sentindo-se superior aos outros e procurando expandir sua própria influência, à custa deles. Vale-se da religião para justificar a opressão que exerce sobre outros grupos. As convicções políticas também podem ser defendidas com um zelo semelhante, e têm efeitos parecidos. Esses grupos atuam como se fossem um eu ampliado. Por conseguinte, a religião de grupos é uma religião do eu no sentido mais forte. Nela, o que está em jogo não é apenas apoderar -se de uma realidade oculta, mas também exercer poder sobre outras pessoas e grupos. A religião natural
Existe, porém, dentro de diversas religiões, superando a vinculação à família e ao grupo, um tipo de devoção pessoal profunda que, embora respeite, por lealdade ao próprio grupo, as formas exteriores da religião, interiormente cresce muito além de seus conteúdos. Por exemplo, as correntes místicas no Cristianismo e no Islã são tão semelhantes entre si que dão a impressão de que as diferenças entre suas religiões foram abolidas. Existe, portanto, superando os fatores de separação contidos nas tradições, nos credos e nos ritos, uma experiência religiosa pessoal
que não depende da religião do grupo. Ela se liga à experiência do mundo e dos limites que ele nos impõe, e essa experiência é comum a todos os seres humanos. Essa atitude religiosa, por ser igualmente acessível a todos, pode denominar-se religião natural. Ela não necessita de doutrinas, n em de ritos. Em oposição às demais religiões, não existem nela espírito de superioridade, propaganda ou reivindicação de poder. Aqui cada um está por si. Por essa razão, a religião natural une onde outras religiões separam. A religião natural é um modo de realização pessoal, talvez a mais elevada delas. Sua maneira de ser pode ser descrita pelo exemplo dos inícios da filosofia. Os primeiros filósofos que conhecemos no Ocidente conseguiram prescindir interiormente das ideias tradicionais sobre o ser humano e a natureza, e expor-se à realidade como ela se mostrava diante deles, sem preconceitos e sem medo. O que experimentaram foi sobretudo o espanto, a surpresa pela simples existência de algo. Pois a vida emerge a pa rtir de algo que permanece oculto, e volta a imergir nesse oculto. Esse espanto diante da realidade, tal como se manifesta, é uma atitude de contemplação diante daquilo que é, sem se esquivar e sem querer interpretá-lo. Essa contemplação consiste em deter-se diante do mistério, sem a pretensão de saber mais do que ele nos revela, e em concordar com os limites que nos impõe a realidade experimentável, sem a intenção de suprimi-los ou ultrapassá-los. Esta é uma atitude profundamente religiosa, sob uma forma natural e humilde. A religião como fuga
Em contraposição, muita coisa nas religiões tradicionais representa uma tentativa de escapar dessa realidade e de ser salvo dela; de alterar a realidade experimentável, de acordo com os próprios desejos e as próprias imagens; de dar um outro sentido a essa realidade, em
vez confrontar-se com ela; de decifrar seu mistério, em vez de respeitá-lo; e, sobretudo, de rebelar- se contra o fluxo da transitoriedade, e de apoderar-se da realidade incompreensível e colocá-la a serviço de si mesmo. Por trás dessas ideias, encontram-se esperanças e medos arcaicos e mágicos de uma época em que o ser humano, por sentir-se inteiramente dependente, tentava conjurar com recursos e ritos mágicos a realidade sinistra e perigosa. Dessas profundezas arcaicas da alma surgiu a necessidade de sacrifício, de aplacamento, de expiação e de manipulação. Essas necessidades se reforçaram ao longo dos tempos, e o hábito as transformou em convicções, sem q ue o ambiente desse indicações que atestassem sua realidade. Essas imagens arcaicas resultaram, sem dúvida, em larga escala, da transferência de experiências humanas para o domínio do oculto. Assim, essa atitude religiosa transferiu para o Outro oculto, que pressentimos mas não conhecemos, os conceitos de compensação, aplacamento, expiação e manipulação, que experimentamos nas relações humanas. Contra esse pano de fundo, destaca-se com nitidez o tipo de realização que a religião natural exige do indivíduo, com a purificação do espírito e a renúncia à manipulação e ao poder. Filosofia e Psicologia
Deve ser creditado à filosofia e à psicologia o mérito de terem aplainado o caminho para uma visão sem preconceitos da realidade e de seus limites, favorecendo o reconhecimento da religião em sua forma natural. Na psicologia deve-se mencionar Freud, que revelou o caráter de projeções de muitas ideias religiosas, e C. G. Jung, que reconheceu nas imagens de Deus ideais do eu e arquétipos preexistentes. Foi nos livros Die Atombombe als seelische Wirklichkeit [A bomba atômica como realidade da alma] e Drachenkampf oder Initiation ins Nuklearzeitalter [A Luta de dragões, ou iniciação à era nuclear], de
Wolfgang Giegerich, que encontrei a análise mais radical da religião judaico-cristã, em seus fundamentos e em suas consequências. Tratase de uma investigação trabalhosa e profunda sobre o espírito do Ocidente cristão. Giegerich prova, por exemplo, que a ciência natural e a técnica modernas apenas dão continuidade aos propósitos básicos do Cristianismo como religião do eu. Longe de questioná-los, elas os aplicam e completam até suas últimas consequências. Eu mesmo comparei as ideias e os comportamentos religiosos com as experiências de relações familiares, e pude verificar como a relação com o mistério religioso se orienta por essas imagens e experiências familiares. Isso coloca em questão a própria imagem de um Deus único, de caráter pessoal. Esse Deus foi dotado de características, intenções e sentimentos resultantes do trato com reis e governantes. Por essa razão, ele está em cima, e nós embaixo. Pressupõe- se que ele se preocupa com a própria honra, pode ser ofendido e faz julgamentos, recompensa e castiga, de acordo com nosso comportamento para com ele. Como um governante ideal, também precisa ser justo e benfazejo e proteger-nos contra intempéries e contra nossos inimigos, pelo que espontaneamente o chamamos de nosso Deus. Tal como um rei, também tem uma corte, constituída por anjos e santos, na qual muitos esperam vir a ser incluídos, como seus escolhidos. Outros padrões de nossa experiência que transferimos para a relação com o Outro oculto são a relação da criança com seus pais e a re lação com sua família e seu clã familiar. Então representamos o Outro oculto como um pai ou uma mãe, e aderimos à comunidade dos crentes como a uma família ou um clã familiar. Podemos igualmente observar que muitos buscadores de Deus carecem de pai. Essa busca termina quando encontram seu pai verdadeiro. E vemos que muitos ascetas, à semelhança do Buda, carecem de mãe. Pode-se ainda transferir para o Outro oculto o padrão do dar e tomar
que ocorre nas relações comerciais. É o que sucede nos votos religiosos. Ou se transfere ao Outro oculto o padrão do relacionamento entre o homem e a mulher, como na imagem das “núpcias sagradas” e na união amorosa com Deus. Mais raramente, comportamo-nos com o Outro oculto como pais se comportam diante de um filho mal-educado, prescrevendo-lhe o que ele precisa fazer e como precisa se comportar para que possa ser nosso Deus. Assim, dizemos, por exemplo, que Deus não deveria ter permitido tal ou qual coisa. Essas observações nos levam a uma desmitificação das religiões, principalmente das religiões reveladas. Mostram que as ideias religiosas correntes antes nos revelam algo sobre nós mesmos do que sobre Deus ou o divino. Forçam-nos a depurar nossos conceitos e nossa atitude em face do fenômeno religioso. E também nos remetem à experiência religiosa original e aos limites que ela nos aponta e coloca. Vou contar uma pequena história a respeito. Ela se chama: O vazio
Discípulos deixaram um mestre. Voltando para casa, Perguntavam-se, desiludidos: “O que fomos buscar com ele?” Um deles comentou: “Embarcamos cegamente num coche que um condutor cego com cavalos cegos cegamente tocava para a frente. No entanto, se nós próprios caminhássemos como os cegos , quando chegássemos à beira do abismo
talvez percebêssemos, tateando com a bengala, o vazio”. Psicoterapia e religiões reveladas
Quando olhamos, do mesmo modo e sem preconceitos, o campo da psicoterapia, vemos que algumas escolas psicoterapêuticas se tornaram semelhantes às religiões que pretendiam superar, sobretudo às reveladas. Essas escolas também têm um revelador ou fundador, e discípulos que aderem a elas e às suas doutrinas. Essas doutrinas podem conter muitas coisas certas. Quando uma pessoa adere a elas, seu olhar se estreita e ela exclui ou mesmo combate muita coisa que não está de acordo com essas doutrinas. Assim nascem as escolas psicoterapêuticas, que às vezes se relacionam como se fossem religiões. Nelas há uma ortodoxia, crenças e práticas corretas, e institutos que as fiscalizam, excluindo os que delas se desviam. Há outras semelhanças claras com as religiões: a iniciação doutrinária, o teste da confiabilidade e da moral comprometida com a escola, os ritos de admissão, as promoções superiores, a consciência de ser escolhido e a luta por influência e poder. Dentro dessas escolas, assim como nas religiões, encontram-se adeptos que, a partir de sua compreensão pessoal, se afastaram da doutrina e da prática prescritas. Mas, por medo de serem condenados e excluídos, receiam admitir isso em seu círculo profissional. A prática profissional
No essencial, a psicoterapia se baseia em técnicas que foram adquiridas pela observação e pela experimentação cuidadosa, e são constantemente aperfeiçoadas e aprimoradas pela compreensão e pela experiência. Por isso, existe também uma tendência a abandonar convicções e teorias, para desenvolver uma técnica instrumental que
precisa ser aprendida, conhecida, aplicada e dominada. Nesse processo, o terapeuta não poderá fazer justiça à multiplicidade de percepções e de necessidades se dominar um único método. Daí resulta um intercâmbio e uma aproximação entre as escolas, num espírito ecumênico, no qual os limites se tornam cada vez mais permeáveis. Muitos psicoterapeutas trabalham apenas com técnicas instrumentais. Sem vincular-se a escolas, es colas, aprendem vários métodos e os associam na prática, de acordo com a necessidade. Corpo e alma
Além das técnicas instrumentais, a psicoterapia também precisa prestar assistência à alma. Isso vale sobretudo para a psicossomática, uma forma de psicoterapia que, em colaboração com a medicina, pretende mitigar e curar doenças corporais por meio da alma. Com efeito, experimentamos que certos eventos, como uma separação prematura da mãe, produzem efeitos posteriores, não só na alma mas também no corpo. É possível resgatar o que antigamente fez sofrer a alma e mais tarde também atuou no corpo. A pessoa volta a encarar o ocorrido, reconcilia-se com ele, aceitando-o aceitando -o tal como foi, e encontra então, a partir da harmonia com seu destino, alívio e cura para seu corpo. Vou citar um exemplo. Durante um curso em Londres, uma mulher que estava em cadeira de rodas contou que aos 2 anos teve paralisia infantil, pela qual passou sem maiores consequências. Porém, nos últimos anos, começou a sentir-se incapacitada e precisou usar a cadeira de rodas. Eu lhe perguntei se ela havia agradecido, naquela época, pela sua cura. Como em muitos outros casos, isso não tinha acontecido. Quando uma pessoa foi salva de um perigo de vida, muitas vezes ela afirma que superou a doença ou, numa expressão ainda mais crassa, que a venceu. Então o eu se sente como um herói e no controle. Mas a alma, que é o que realmente atua, se retrai e deixa o eu entregue a seu destino. Com isso, muitas vezes, algo maior ensina o eu, de um
modo doloroso, a mudar de atitude. Sugeri a essa mulher que fechasse os olhos e dissesse interiormente. “Se minha incapacidade é o preço de minha sobrevivência, eu o pagarei de boa bo a vontade”. Como ela resistiu, eu lhe contei a história de um homem ainda jovem que, incapacitado por uma poliomielite, só conseguia mover um pouco a cabeça e uma das mãos. Quando lhe perguntei que história tocava mais profundamente sua alma, ele me contou esta história zen: “Um alpinista cai e fica dependurado acima de um abismo. Alguns ratos começam a roer a corda que o segurava. Então ele vê dois morangos silvestres na rocha, ao alcance de sua mão. Colhe-os, coloca-os coloca- os na boca e diz. ‘Como estão doces!’” Então perguntei à mulher: “Imagine, de um lado, que você teve uma vida saudável e, de outro lado, a veja ve ja como realmente foi. Qual dessas vidas é mais preciosa?” Ela resistiu e se desculpou d esculpou por algum tempo, mas depois chorou e disse: “Esta aqui é mais preciosa”. preci osa”. Esse foi um ato religioso, distanciando-se do eu e de seu controle na direção da entrega e da aceitação. Mas é justamente desse ato que nasce uma força que mitiga e cura. Por vezes, a alma também quer adoecer e morrer por estar em sintonia com algo maior, devido a uma atitude religiosa que renunciou a atuar. Pois, às vezes, a alma precisa de uma enfermidade para purificar-se; ou então deseja morrer porque sente que seu tempo já expirou. Há pouco tempo, uma mulher que tinha câncer me contou um sonho estranho: ela se olhava no espelho e se via sem cabeça. Eu lhe disse: “Esse é um sonho de morte”. Ela disse: “Mas eu não senti nenhum medo”. Eu lhe disse: “Justamente. A alma, em sua profundeza, não tem medo da morte”. Existe na alma um movimento de anseio para voltar à origem primeira. Quando chega o momento certo, a alma se inclina para a
origem primeira e fica em paz. Nesse movimento existe uma incrível beleza e profundidade. É o mais profundo dos movimentos. Algumas pessoas, porém, querem antecipá-lo. Com isso, interferem no movimento natural e causam dano à alma. Elas precisam de ajuda para que se detenham. Pois quem toma esse caminho antes da hora peca contra esse movimento, que é totalmente tranquilo e pacífico. Mas quem se confia tranquilamente a ele experimenta, às vezes, que ele se detém espontaneamente. Outro exemplo a respeito: Num programa de TV sobre curas espontâneas, foi apresentado um paciente que tinha sido operado de câncer. Percebendo que nada mais podiam fazer, os médicos lhe deram alta como incurável. Consciente de que sua vida estava no fim, o homem se sentou em casa com sua esposa e fez o seu testamento. Quando terminou, sentiu uma espécie de tranco no corpo e as células cancerosas começaram a morrer. Segundo o laudo dos médicos, ele ficou completamente curado. O que aconteceu? O homem se harmonizou com a morte, o destino e o fim, com a origem primeira, de onde emerge a vida e onde ela volta a imergir. Devido a essa harmonização, o movimento para a morte se inverteu nele e o trouxe de volta à vida. A comunidade unida pelo destino
Existem ainda, na família de origem dos pacientes, ocorrências e destinos que, embora não tenham sido pessoalmente vividos por eles, lhes trazem graves doenças. Também aqui funciona o eu, de uma maneira estranha. Muitas vezes, os pacientes tentam anular sua separação de um pai, de uma mãe ou de um filho falecido, dizendolhe interiormente: “Eu sigo você”. E muitas vezes transformam essa frase em realidade, por meio de uma enfermidade fatal, de um acidente ou do suicídio. Com muita frequência, as pessoas tentam mudar o destino trágico de algum ente querido com recursos mágicos, mesmo depois do
ocorrido, dizendo-lhe interiormente: “Antes morra eu do que você”. Também essa frase é às vezes realizada, por meio de uma enfermidade ou de um acidente, ou por suicídio. Muitas vezes, as pessoas tentam expiar culpas, próprias ou alheias, por meio da doença e da morte, como se fosse possível compensar ou anular um destino funesto com outro. Também nesses casos as técnicas instrumentais não são suficientes. Torna-se necessária uma psicossomática que esteja consciente dos antecedentes religiosos da enfermidade e da cura e os leve em consideração. Cabe-lhe levar a pessoa, com extremo cuidado, a trocar uma atitude religiosa que pretende conjurar magicamente a realidade da morte, da culpa e do destino, por uma outra que se amolde a essas realidades, reencontrando o caminho para o que lhe é próprio: a grandeza e a força, a vida, a saúde e a felicidade. Somente a partir dessa atitude é que as constelações familiares poderão desenvolver sua força que reconcilia e cura. O centro vazio
A pergunta que agora se coloca para os psicoterapeutas é de como poderão chegar a essa atitude, de modo a desencadear e a manter esses efeitos. Não formulo grandes pensamentos a respeito, porque sigo um amigo meu, um certo Lao-Tsé, morto há muito tempo. Ele fala no Tao Te King sobre os efeitos de se retrair e de se recolher a um centro vazio. Quem se recolhe no centro vazio é destituído de intenções e de medos. Sem que ele se mova, a multiplicidade se ordena espontaneamente em torno dele. Essa é a atitude que o terapeuta pode tomar diante de destinos pesados e de doenças graves: recolher -se ao centro vazio. E não é preciso fechar os olhos. Pois o centro não está encapsulado, mas em conexão. O terapeuta se defronta com o destino e a doença, com sua receptividade máxima e sem medo. Isso é especialmente importante, pois quem tem medo do que poderia acontecer perde sua força e sua vigilância.
No centro vazio estamos conectados com forças que transcendem em muito o eu e o seu planejamento. Quando nos confiamos a esse centro, emergem subitamente imagens da solução, frases solucionadoras e indicações de procedimentos, que então seguimos. Esse processo é naturalmente sujeito a algum erro, mas ele se regula pela resposta subsequente. Assim, o terapeuta não precisa ser perfeito em sua atitude. Ele não presume nada. Simplesmente fica tranquilo nesse centro. Então essa forma de terapia é bem-sucedida. Chamo de humildade essa atitude sem intenções, que diz sim ao enfermo, à doença e ao destino, tais como eles são. Ela surge da harmonia entre a alma e o eu, e é o ato verdadeiramente religioso. Para terminar, contarei ainda uma história sobre esse tema. É uma história ao mesmo tempo filosófica, religiosa e terapêutica, pois nela essas distinções são abolidas. O círculo
Um interessado perguntou a alguém que o acompanhava num trecho do caminho: “Diga-me: o que conta para nós?" O outro lhe respondeu: “O que conta, em primeiro lugar, é que nossa vida dura um certo tempo. Assim, ela tem um começo, quando já existem muitas coisas; e, ao terminar, volta a cair na multiplicidade que havia antes. E, como num círculo que se fecha, o fim e o começo são uma coisa só e a mesma, o depois de nossa vida se liga ao seu antes, sem costura, como se entre ambos não tivesse transcorrido nenhum tempo.
Portanto, só temos tempo agora.
O que conta, em segundo lugar, é que o que produzimos no tempo escapa de nós junto com o tempo, como se pertencesse a uma outra época, e como se nós, enquanto pensamos estar atuando, fôssemos acolhidos como simples ferramentas, usados para algo que está além de nós e depois deixados de lado. Quando somos dispensados, nos completamos”. O interessado perguntou: “Se nós, com aquilo que produzimos, duramos e terminamos, cada um a seu tempo, o que conta quando nosso tempo se encerra? O outro respondeu: “O que conta são o antes e o depois, como uma coisa só”. Então se separaram os seus caminhos e os seus tempos, e ambos pararam e fizeram uma pausa.