Reflexões sobre o jornalismo jornalismo cultural contemporâneo HEROM V ARGAS Graduado em História (PUC-SP), mestre e doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), professor nos cursos de Comunicação da Universidade Metodista de São Paulo - Umesp e da Universidade Municipal de São Caetano do Sul - IMES. Coordenad or do curso de pós-graduação lato sensu em Jornalismo Cultural na Umesp. Autor de artigos sobre música popular e pesquisador nos projetos Música e Mídia – M usiMid, da Univ ersidade Católica de Sa ntos - Unisantos, e Memórias do ABC, da Universidade IMES. Email:
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O artigo discute a situação do jornalismo cultural atual a partir das mudanças ocorridas na cultura contemporânea, tais como a publicidade, as tecnologias eletrônico-digitais e as características atuais da produção e do consumo da arte. Busca ainda desvencilhar o debate de uma espécie de saudosismo romântico que tenta fazer uma comparação, de certa forma anacrônica, entre a produção jornalística atual e a de décadas anteriores na área cultural. Palavras-chave: Jornalismo cultural – Pós-modernidade – Cultura.
Alguns dos sintomas do estado atual do jornalismo cultural tem a ver com sua permanente sujeição aos ditames da lógica mercantil no capitalismo, visível na incorporação da dinâmica da publicidade e no consumo/leitura imediata. Isso não é simples crítica, marca de um saudosismo romântico, mas uma objetiva constatação, com tudo de positivo e negativo que suscita. A questão é simples: como toda mercadoria dentro do sistema capitalista, a notícia não escapa do valor de troca, do rótulo colorido e prazeroso, da divulgação em públicos gerais ou específicos, do dever de ser interessante, atual e de fácil entendimento, do baixo custo de produção, da facilidade de acesso e, por fim, de sua função de gerar lucros à estrutura industrial que a produz, seja ela pequena, média ou grande. E, se isso acontece com qualquer produto consumido na sociedade contemporânea, no jornalismo não é diferente. O problema é que, quando se trata de jornalismo cultural, surge na cabeça de alguns a idéia de um exercício que paira acima dos fluxos tanto do sistema como da própria natureza comercial da atividade jornalística. Até quem o produz (o jornalista cultural) e
seus consumidores (um público informado e pretensamente erudito) carregam o estigma de terem o perfil de alguém que simplesmente pode prescindir das determinações do capitalismo. Essa é, talvez, uma das principais razões de o jornalismo cultural ser compreendido de forma parcial atualmente. É comum a visão saudosista da atividade, sem os apelos comerciais do jornalismo contemporâneo. Ela sente a falta do texto mais longo e da análise profunda e cuidadosa, ressente os espaços para os serviços, a menor atenção à crítica e a necessidade de estar preso à agenda diária ou semanal. Porém, essa visão não percebe que as condições de produção da informação e da notícia cultural se alteraram de tal forma que inviabilizaram as maneiras antigas da atividade jornalística, mais lentas e com “ganchos” mais frágeis. A questão que se coloca é como entender o jornalismo cultural contemporâneo exatamente em seus vínculos com os processos atuais de produção e com as dinâmicas da cultura pós-moderna.
Jornalismo e capitalismo Historicamente, o crescimento do jornalismo sempre esteve atrelado à expansão do capitalismo. Se o hábito de enviar e receber notícias vem desde a antiguidade, com os murais e o correio do Império Romano, por exemplo, o mundo moderno viu nascer a notícia com o mercantilismo. O crescente trânsito de mercadorias por mares e continentes era sempre acompanhado pelo vai-e-vem das notícias dos lugares distantes e que, normalmente, respondiam aos interesses dos mercadores (Marcondes Filho, 1984, p. 13ss). Por serem procuradas por comerciantes para balizar suas atividades, as notícias também se tornavam mercadorias sujeitas às variações de oferta, procura e preço. Pagava-se bem por informações “quentes” sobre novas demandas, mercadorias com melhores preços, diferentes mercados, dados sobre o tráfico negreiro, pirataria, novidades de mercadorias em oferta etc. O mesmo atrelamento entre notícia e capitalismo pode ser apontado no período da Revolução Francesa, quando a burguesia usou o jornal como instrumento de transmissão de informações e de divulgação ideológica do liberalismo. Se, antes, o jornal era o meio de divulgação das informações mercantis, agora a burguesia o utiliza para compor um cenário ideológico contra as determinações do Antigo Regime e sua política de privilégios de sangue (Albert e Terrou, 1990, p. 21ss). A Revolução Industrial e seus desdobramentos tecnológicos ao longo do século XIX imprimiram novo formato ao jornalismo e à imprensa ao transformar seu modo de produção e consumo: as antigas prensas manuais ainda da época de Gutenberg são substituídas sucessivamente pelas prensas mecânicas e pelas rotativas, a produção industrial aumenta as tiragens, o consumo também cresce motivado pelo processo de universalização da alfabetização e pelos novos interesses político-partidários das sociedades de regimes democráticos da Europa Ocidental e dos Estado Unidos (Albert e Terrou, 1990, p. 29 e 51). Há também as invenções da fotografia, do telégrafo, do disco, do cinema e do rádio e as expansões dos meios de transporte (trem e avião) e da propaganda, fenômenos característicos da modernidade até o início do século XX. O último grande salto parece ter sido o das tecnologias eletroeletrônicas e digitais, desenvolvidas em meados do século XX. Com a televisão, o satélite e os computadores, toda a parafernália comunicacional ganhou novos trâmites e perfis e gerou diferentes demandas na produção das notícias. A internet pôs a informação, ao mesmo tempo, em muitos e distantes lugares e à disposição de múltiplas e inimagináveis leituras (o hipertexto, por exemplo). A imagem nunca foi tão divulgada, sobretudo pela propaganda, em ambientes públicos urbanos e nos meios de comunicação; a televisão reorientou o cotidiano
da sociedade; a moda ampliou seu raio de consumo, a velocidade e o experimentalismo de suas inovações plásticas. Enfim, aquilo que se convencionou como pós-modernidade – não sem um tanto de polêmica – adquiriu grande vigor a partir dessas invenções técnicas. Até mesmo a velocidade do pensamento, da vida e do trânsito das pessoas aumentou muito. Não exatamente a rapidez em si, mas o crescimento do número de acontecimentos que ocorrem e são noticiados em tempo cada vez menor. Tornamo-nos mais acelerados para poder dar conta dos excessos, das atividades que precisam ser cumpridas no mesmo espaço de tempo de antes. Tudo tende a se tornar mais imediato, fugaz e rapidamente trocado. Este cenário é bem definido por Marcondes Filho (1993, p. 93): O resultado é uma compressão do tempo. Tudo se torna radicalmente comprimido e isso exige que as pessoas atuem mais rapidamente. Como conseqüência, surge a precedência do volátil, do descartável, da troca rápida de várias coisas, desde objetos até relacionamentos sociais, passando por empregos, atividades das mais diversas, viagens, posse de bens móveis, tudo se torna mais rapidamente cambiável.
Nesse sentido contemporâneo, a dúvida que se mantém é como é possível avaliarmos a produção jornalística da área cultural, levando em conta sua característica de produto no sistema capitalista e a manutenção de determinado nível de qualidade que, obviamente, não encontramos nas mercadorias, muito mais estandardizadas e voltadas à mera finalidade hedonista do consumo. Em outras palavras, como manter certo grau de profundidade e reflexão em um produto que teima em ser superficial, por conta das relações de determinação mútua travadas com seu entorno cultural e técnico?
Alguns nós Como já indicamos, há análises sobre o jornalismo cultural atual bastante românticas. Um desses casos está em um artigo de Sérgio Augusto de Andrade, numa edição da revista Bravo! que traz uma série de ensaios sobre o tema. O autor, cansado do que se diz atualmente sobre essa área, retoma a saudade da “melhor tradição de nosso ensaísmo – o de Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Duarte, Álvaro Lins, Murilo Mendes e, em certo sentido, o de Vicente Ferreira da Silva e José Guilherme Merquior” (Andrade, 1997, p. 19). Não somos contra esse tipo de ensaísmo. Muito pelo contrário, trata-se realmente de umas das melhores tradições do pensamento nacional, na mesma altura dos melhores autores da tradição ocidental. No entanto, cabe sinalizar um razoável deslocamento entre esses autores e o que se define atualmente como jornalismo cultural, a partir da configuração da cultura contemporânea, de suas solicitações de texto e edição, de comunicação, linguagem e recepção. Como se sabe, tratar de cultura hoje é um exercício muito diferente do que se fazia há alguns anos ou algumas décadas. Atualmente, cultura é um grande negócio; há investimentos que geram empregos, empresas que disputam um mercado e uma crescente profissionalização. Como em qualquer setor da economia, há funções em que é fundamental uma formação sólida e há também possibilidades de emprego para profissionais de nível técnico. Em termos de demanda, determinado público com poder aquisitivo bem acima da média nacional consome, em relativa quantidade, produtos com alto valor simbólico agregado. E tal consumo gira em torno também de uma imagem vinculada a ele. Em outras palavras, há sentidos em termos de status do consumo em determinados bens culturais, donde o alto valor simbólico desse bem, muito diferente do que acontece em outras áreas ou do que acontecia em décadas atrás.
Se a cultura se tornou um negócio e se profissionalizou dessa forma, não existe a possibilidade de manter aquela forma de análise e o grau de desenvolvimento do texto compatível com a tradição citada por Sérgio Augusto de Andrade. Certamente, pela rapidez da vida urbana atual e pela presença marcante da televisão e da internet, a agilidade do texto e a visualidade das edições são necessidades básicas e evidentes. Além disso e aumentando ainda mais o grau de profissionalização, hoje existem assessorias que “vendem” – no bom e no mau sentido da palavra – seus eventos ou produtos culturais. Muitos acontecimentos e produtos desse campo são pensados conforme sua divulgação em canais – especializados ou não – a públicos – segmentados ou geral – usando uma linguagem também adaptada a essas estruturas. Criaram-se profissionais sérios e competentes para tais atividades, dentro, mesmo, do próprio jornalismo. E isso não pode ser visto como um corpo estranho à atividade jornalística, mas, ao contrário, como uma transformação da área da comunicação tendo em vista as novas dinâmicas da cultura contemporânea. É isso que também não percebe Sérgio Augusto, importante jornalista brasileiro, homônimo daquele citado anteriormente. Para ele (que militou em muitas redações, desde o alternativo O Pasquim até como repórter especial nos grandes jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo e como autor de um definitivo livro sobre a chanchada no cinema carioca), esta é a diferença entre o jornalismo e o marketing : enquanto na primeira atividade – na visão do autor, certamente, mais nobre – é o repórter que vai atrás do seu assunto, faz a cobertura e trata a pauta da maneira mais correta e com estilo, na segunda, a pauta é “empacotada” por agentes e promoters e trazida às redações, fazendo com que vários veículos trabalhem o tema provocando uma redundância nos cadernos e nas revistas de cultura (Augusto, 1997, p. 17). O engano que o autor comete é confundir um jornalismo superficial, preguiçoso e redundante, porque somente publica o que as assessorias divulgam, com outro mais sério e conseqüente que desenvolve a pauta “vendida”, pluraliza os pontos de vista e repercute com fontes de prestígio e de opiniões consistentes. A redundância nos cadernos de cultura é, assim, muito mais o exercício enganoso do jornalismo, e não simplesmente um possível efeito nocivo da ação das assessorias. O trabalho destas, quando bem executado e bem recebido nas redações, só tende a qualificar o jornalismo cultural. Certamente, Sérgio Augusto sente a diferença que existe hoje. A profissionalização atual no trato da cultura não existia há algumas décadas. Antes, o jornalismo não sofria ação tão forte do mercado e dos divulgadores, não era pressionado a publicar a mais recente informação para servir ao leitor. Hoje, há a presença constante do serviço, uma atividade jornalística cuja finalidade é transmitir, de forma objetiva e clara, dados de utilidade prática ao leitor a respeito de algo que esteja acontecendo ou irá acontecer na área cultural, como endereço, valor do ingresso, horário da sessão, duração do evento etc. Parece que se tem tornado mais importante a informação de localização no tempo e no espaço (balizas importantes na sociedade urbana) do que a análise e o balanço crítico do evento ou produto em questão. Daí também a importância e a conseqüente necessidade da cobertura de uma agenda, seja diária, semanal ou mensal. Isso ocorre porque o jornalismo cultural tornou-se, em parte, movido pela dinâmica do mercado artístico e de sua estrutura de lançamentos e distribuição. Mas, ao mesmo tempo, não há como negar essa força do mercado, pois, como afirma Ana Maria Bahiana (2004), outra importante jornalista, “sem ele não existiria a energia básica que propele o jornalismo cultural”. Da mesma forma que a crescente pressão do mercado imputou ao jornalismo cultural essas novas dinâmicas e alterou suas formas de abordagem e cobertura, também trans-
formou os assuntos tratados nas editorias de jornais e nas revistas da área. Se, antes, tratar de cultura era discutir eminentemente literatura1, teatro, artes plásticas e música erudita, quase que nessa ordem de importância, atualmente novas linguagens e campos estéticos foram colocados na pauta cultural. Primeiro, foram incorporados o cinema e a música popular. Atualmente, os veículos não devem prescindir de cobrir eventos ligados à arquitetura e ao design , sobretudo em um momento em que a visualidade dos objetos e do cenário urbano estabelece diálogos cada vez mais complexos com a cultura pós-moderna. A gastronomia, a televisão e o comportamento também foram elevados ao patamar de pautas culturais em boa medida pela ampliação da visão aristocrática que se tinha sobre a cultura, sem restringi-la aos eventos eminentemente artísticos, mas culturais, ou seja, de produção simbólica na sociedade. O que se nota é uma mudança na própria noção de cultura utilizada no jornalismo, alterada e ampliada agora para uma concepção mais próxima do que os antropólogos têm do conceito. Além disso, como comenta o jornalista Otávio Frias Filho (1997, p. 16), houve um crescimento na produção e na circulação dos produtos artístico-culturais, o que tornou ainda mais complexa a atividade jornalística: As fronteiras entre os gêneros se confundiram, novas formas de produção passaram a ser vistas como tais, a circulação de informação cultural cresceu muito. Há simplesmente mais filmes, mais discos, mais livros e mais peças à disposição do público. É mais difícil cobrir essa área de repente tão ampliada.
Há também outro agravante nos processos contemporâneos do jornalismo e que afeta bastante editorias, publicações e sites de cultura, paralelo à complexidade temática e ao aumento numérico. Trata-se do crescimento do público interessado nessa produção simbólica. Muito mais pessoas abrem um jornal ou revista ou acessam um site para saber a que espetáculo ou apresentação irão assistir, que disco ou livro poderão comprar, que concerto ou exposição lhes agradará mais. Por um lado, cada vez mais heterogêneo, esse público força, por exemplo, as editorias dos jornais diários ou das revistas semanais, programas de tevê e de rádio a adaptar as linguagens (texto e edição gráfica, áudio e imagem) a essa multiplicidade de leitores e leituras. De outro, existe também um forte processo de segmentação que leva os veículos a se especializarem em áreas limitadas voltadas para um público cada vez mais restrito e que consome com seriedade esse tipo de informação temática detalhada. São os casos de sites ou revistas que tratam de temas específicos, como música, cinema, moda etc. A diminuição dos espaços para crítica, a superficialidade das pautas, a presença constante dos esquemas de divulgação de assessorias, a ampliação e variedade de temas tratados sob o guarda-chuva da cultura e o crescimento e a segmentação do público podem levar à idéia de que o jornalismo cultural está sofrendo de uma lenta agonia. Se pensamos, saudosamente, que antes os textos eram mais extensos, a leitura, mais cultivada, sem a presença da tal “divulgação”, os temas, menos diversificados e o público, mais seleto, realmente o cenário é de puro definhamento. No entanto, parecenos muito simplória a mera negação da produção atual acusando-a de redundante, superficial e suscetível a modismos. Em um artigo assinado em 1998 e divulgado pela internet, o jornalista e professor Manuel Carlos Chaparro faz alguns comentários sobre um conceito criado por Alcino Leite Neto, então editor do caderno Mais!, da Folha de S. Paulo. Segundo Chaparro (2004), Alcino comentava sobre os rumos do jornalismo, mais especificamente sobre o fim do jornalismo tradicional, substituído por um jornalismo híbrido que incorpora os fundamentos da publicidade e do entretenimento – e chama isso de “publijornalismo”,
produto de uma “revolução silenciosa” que (…) vem ocorrendo há décadas na imprensa brasileira e internacional.
Para o jornalista da Folha , o jornalismo teria se deixado inocular por um conjunto de sistemas oriundos da publicidade e que retiravam de si a forte relação crítica que mantinha com a realidade e que o particularizava frente a outras atividades na comunicação. Essa nova dinâmica tem feito do jornalismo um mero veículo produtor de bens para um mercado: se ele critica ou investiga, é apenas com o objetivo de vender um determinado produto a um público que o consome, sem a antiga determinação de cumprir a função de instrumento ideológico ou político em uma sociedade de classes. Para o bem ou para o mal, esse movimento invasivo da publicidade ocorre também em outros setores da vida urbana contemporânea, nítido no consumo, na moda e nas campanhas eleitorais, por exemplo. É um sintoma do contexto pós-moderno moldado pelas tecnologias eletrônico-digitais, pelo design e pelos simulacros que rondam nosso cotidiano (Santos, 1986). No jornalismo também não é novidade, como já detectou Ciro Marcondes Filho (1993). Mesmo assim, Chaparro lança uma idéia distinta da exposta por Alcino, justificando tais mudanças e hibridismo que ocorrem no jornalismo. Trata-se de concebê-lo como fruto do complexo processamento das informações na sociedade atual. Antes, produtoras de informação e conteúdo, as redações tornaram-se apenas um dos pólos desse processo. Os outros pólos são o que ele chama de “fontes organizadas”: aquelas fontes, oficiais ou não, pessoais ou institucionais, verossímeis ou duvidosas, geradoras das informações que chegam aos jornalistas e às redações, todas interessadas em algum tipo de divulgação, organizada ou não, de idéias e imagens próprias ou de outros. Esses são os conteúdos do jornalismo e os jornalistas são os agenciadores e organizadores desse vasto, contraditório e polêmico material. Essa dificuldade atual não existia anos atrás.
Tentativas de desatar os nós Apesar de não tratarem especificamente da área cultural, as citações de Alcino e Chaparro buscam refletir sobre as condições atuais do jornalismo e podem muito bem ser trazidas para a esfera que aqui nos interessa. Como indicamos no início, o jornalismo é uma atividade social que dialoga com seus respectivos contextos culturais e técnicos de produção e consumo. Seu produto não foge do estatuto de mercadoria, com seu perfil rotulado e bem acabado, simplesmente porque se encontra inserido no universo simbólico do capitalismo. E todas as transformações comentadas acima justificam-se por conta de sua inserção contemporânea. Isso não significa que todas as mudanças que possivelmente possam retirar qualidade do jornalismo cultural devam ser aceitas de maneira inquestionável. Ao contrário, o crivo da qualidade da informação precisa estar no horizonte de quaisquer atividades, sobretudo na comunicação e, indiscutivelmente, no jornalismo. No entanto, não há como fugir totalmente dos sistemas organizados pela cultura e pela tecnologia, estruturas universais que, desenvolvidas pelo ser humano, sempre, cada uma à sua época, fizeram do homem um criador em potencial. Mas, enfim, como é possível produzir esse idealizado bom jornalismo cultural atualmente, sem se deixar levar pelos esquemas de divulgação das assessorias, sem se submeter silenciosamente à ditadura da agenda, à presença constante da linguagem publicitária, à limitação dos textos e aos processos de generalização simplificadora e/ou segmentação limitadora dos públicos e dos veículos?
A questão da qualidade, nos parece, independe desses elementos que diferenciam o jornalismo antigo do atual. Como já indicamos acima, a propósito de uma citação de Sérgio Augusto, bom e mau jornalismos existem independentemente do momento histórico em que se encontram. Por exemplo, se atualmente a notícia virou rótulo de um produto bem desenhado, que se produza algo de consistência dentro dessa embalagem colorida consumida pelo público. A diversificação dos assuntos, por outro lado, não é um dado negativo, mas um acréscimo de temáticas e visões sobre a cultura. O cenário atual não pode ser visto apenas sob a ótica das “grandes artes”, como antes, mas evidenciado em sua pluralidade complexa como é, de fato, a complexidade da cultura. Nesse sentido, gastronomia tem tudo a ver com arte; o design , desde o início do século XX, tem importância crescente, pois vem transformando e modulando nossa percepção cotidiana; a moda não é mais simplesmente a vestimenta, mas um código intrincado e criativo que não dá margens a amadorismos no seu trato; a própria produção artística tornou complexas suas estruturas de linguagem incorporando dados externos a elas, como a tecnologia e a publicidade, além de misturar as fronteiras entre os gêneros e usar materiais mais inusitados. Finalmente, o universo artístico-cultural não se resume mais a meia dúzia de acontecimentos para uma elite pensante, mas pluralizou-se em eventos massificados para públicos amplos e diversificados e ocupando todos os espaços urbanos. O desafio é ter qualidade dentro desse contexto. Sérgio Rodrigues, sem falsos saudosismos, aponta algumas saídas, como o cuidado com as informações das assessorias, um maior investimento na qualificação intelectual da equipe de jornalistas, mais atenção às áreas que não estão sendo cobertas ou são poucos citadas – casos como o da internet, por exemplo –, criatividade nas pautas e nas coberturas e, por fim, o que ele chama de “uma certa coragem de ir contra o público”, ou seja, uma coragem de mostrar ao leitor coisas importantes e interessantes, diferentes daquilo a que ele está acostumado ou que deseja ver, ler e ouvir. E, sobretudo, distintas do que as pesquisas de opinião colocam como fundamentais para a linha editorial (Rodrigues, 2004). No mesmo sentido, aproximando-se de um tom professoral, Daniel Piza, em recente publicação, dá as famosas “dez dicas” para um bom jornalista cultural que, em resumo, se atém às grandes máximas do jornalismo: cuidados com as fontes, com a criatividade das pautas e com o texto (Piza, 2003, p. 86-88), receita aparentemente óbvia, mas importante de ser pensada e colocada em prática nesses tempos de mudanças e questionamentos. Afinal, o que faz um bom jornalismo cultural não são somente as técnicas, as fontes ou os processos de produção. Tudo isso sempre existiu e sempre demarcou, de uma forma ou de outra, a atividade. Além dessas dinâmicas, o que faz um bom jornalismo cultural são, simplesmente, bons profissionais, bons textos para boas pautas e coberturas, bons conhecimentos e boa inteligência.
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LORENZOTTI, Elizabeth de Souza. Do artístico ao jornalístico : vida e morte de um suplemento. Suplemento Literário de “O Estado de S. Paulo” (1956 a 1974). (Dissertação – Mestrado em Ciências da Comunicação). São Paulo: ECA-USP, 2002. MARCONDES FILHO, Ciro (org). Imprensa e capitalismo. São Paulo: Kairós, 1984. MARCONDES FILHO, Ciro. Jornalismo fin-de-siècle. São Paulo: Scritta, 1993. PIZA, Daniel. Jornalismo cultural. São Paulo: Contexto, 2003. RODRIGUES, Sérgio. Tendências contemporâneas do jornalismo cultural. Disponível em
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