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Num mundo com tantas religiões - por que Jesus? Vivemos numa époea em que você pode crer em qualquer coisa, contanto que não afirme sér a verdade. Em nome da "tolerância", nossa cultura pósmoderna acolhe tudo, desde o misticismo oriental até a espiritualidade da Nova Era. Mas a realidade pura e simples é: nem todas as religiões são verdadeiras. ,
Em Por Que Jesus É Diferente, Ravi Zacharias demonstra a singularidade de Jesus na cultura pós-moderna, que deliberadamente tem adotado uma variedade de religiões. Nesta obra encontram-se as respostas para as objeções mais fundamentais sobre o cristianismo, tais como: • As religiões não são todas fundamentalmente iguais? • Jesus era mesmo o que afirmava ser? • A afirmação cristã de sua superioridade é valida? • Alguém pode estudar a vida de Jesus e demonstrar, de forma conclusiva, que ele era e continua sendo o caminho, a verdade e a vida?
Os TEMPOS MUDAM. A VERDADE PERMANECE Dr. Ravi Zacharias é presidente do Ministério Internacional Ravi Zacharias. Nascido na índia, já ensinou em mais de 50 países e em algumas das universidades mais proeminentes do mundo. É autor de vários livros, incluindo Pode o Homem Viver Sem Deus?, publicado no Brasil pela Editora Mundo Cristão.
EDITORA MUNDO
CR S
POR QUE
JESUS é
diferente
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Zacharias, Ravi Por que Jesus é diferente / Ravi Zacharias; traduzido por Josué Riheiro. - São Paulo: Mundo Cristão, 2003. Título original: Jesus araong other gods. ISBN 85-7325-264-2 1. Apologética 1. Título.
2. Cristianismo e outras religiões 3. Jesus C Cristo
C D D - 261.2
02-3714
índice para catálogo sistemático: 1. Cristianismo e outtas religiões 261.2 2. Cristianismo e religiões não-cristãs 261.2
Copyrighr © 2000 por Ravi Zacharias. Publicado originalmente por W Publishing Groups, Nashville, T N , EUA. Título Original em Inglês: Jesus among other gods Gerência de Produção Editorial: Sidney Alan Leite Capa: Magno Paganelli (adaptação) Revisão: Jefferson Magno Costa Theófilo José Vieira Os textos das referências bíblicas foram exrraídos da versão Almeida Revista e Atualizada, 2a edição, salvo indicação específica. A I a edição brasileira foi publicada em fevereiro de 2003, com uma tiragem de 3.000 exemplares.
Publicado no Brasil com a devida autorização e com rodos os direitos reservados pela: Associação Religiosa Editora Mundo Cristão Rua António Carlos Tacconi, 79 - CEP 04810-020 - São Paulo-SP - Brasil Telefone: (11) 5668-1700 - Home page: www.mundocristao.com.br Editora associada a: • • • •
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Associação Brasileira de Direitos Reprográficos Associação Brasileira de Editores Cristãos Câmara Brasileira do Livro Evangelical Christian Publishers Association
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POR QUE
JESUS é
diferente
Ravi Zacharias
Traduzido por
Josué Ribeiro
m EDITORA MUNDO CRISTÃO São Paulo
Em memória de dois amigos muito queridos, Charles Kip Jordon & Robert Earl Fraley Ambos tiveram participação neste esforço; Kip me incentivou muito a escrever este livro. Robert providenciou para que eu tivesse o tempo necessário. Nenhum de nós imaginava quão breve eles estariam com o Senhor, a figura principal desta obra.
tf sumario
LU
Agradecimentos Introdução 1. Escalando um alto muro 2. Em direção do lar celestial 3. A anatomia da fé e a busca da razão 4. Um sabor para a alma 5. Deus é a fonte do meu sofrimento? 6. Quando Deus fez silêncio 7. Existe um jardineiro? Notas
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agradecimentos
C
om a ajuda e o apoio de muitas pessoas, este livro finalmente tomou forma. Quero expressar minha gratidão a todas elas, de todo coração. Danielle D u R a n t , como sempre, proporcionou um apoio valiosíssimo nas pesquisas e assumiu a tarefa tediosa de investigar as fontes de informação. Os editores Jan Dennis e Jennifer Stair "apararam as arestas". Laura Kendall, juntamente com o pessoal da Word Publishing, fez as finalizações. A liderança da editora - David Moberg, Joey Paul, Rob Birkhead e outros — expresso minha sincera gratidão por suas graciosas palavras de encorajamento. Finalmente, e mais importante, meus agradecimentos à minha esposa Margie. Ela examinou minuciosamente cada página, dando sugestões de como melhorar. Eu alegremente submeto a ela a última palavra. Este livro é apresentado como a expressão de um coração grato a Deus por tudo o que ele tem feito em minha vida.
introdução
Q
uando comecei a escrever este livro, não fazia a mínima ideia de como esta tarefa seria difícil. A dificuldade, na verdade, não estava em não saber o que dizer, mas sim em saber o que não dizer. Vivemos numa época em que os melindres estão à flor da pele, muitas vezes manifestados por meio de palavras duras. Filosoficamente, pode-se acreditar em qualquer coisa, desde que não se afirme que seja a verdade. Moralmente, podese fazer qualquer coisa, desde que não se afirme que seja a "melhor" forma. Na religião, você pode se apegar a qualquer coisa, desde que não inclua Jesus Cristo. Se uma ideia espiritual for oriental, recebe imunidade crítica; se for ocidental, é ferozmente criticada. Assim, um jornalista pode entrar numa igreja e zombar da cerimónia, embora não ouse ter a mesma atitude para com uma seita oriental. Esta é a tendência do final do século XX. Uma tendência pode ser um estado mental perigoso, pois esmaga a razão sob o peso dos sentimentos. No entanto, creio que é exatamente isso que representa melhor o pós-modernismo — uma tendência. Como alguém que vive dentro de tais tendências pode comunicar a mensagem de Jesus Cristo, na qual a verdade e os absolutos são não somente assumidos, mas também sustentados? Vamos esclarecer alguns pontos. Certamente Jesus não era ocidental. De fato, algumas de suas parábolas tinham um cunho tão
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POR QUE JESUS É DIFERENTE
oriental, que creio que muitos ocidentais podem não entender claramente o rigor e o humor por trás de seus ensinamentos. O fato é que o impacto das suas palavras através dos séculos foi tão profundamente sentido que o etos e o ímpeto moral de sua mensagem mudaram o rumo da civilização ocidental. Os naturalistas ocidentais, demonstrando extrema arrogância, não enxergam isso. Agora, porém, o progresso tecnológico, a riqueza e os empreendimentos estão tão vinculados à mensagem de Jesus, que o modelo popular de cristianismo parece nada mais do que um misto de egoísmo e ganância no centro com camadas de pensamento cristão na periferia. Esta distorção tem feito por merecer os severos ataques dos críticos. Entretanto, faríamos bem em lembrar as palavras de Agostinho: Jamais devemos julgar uma filosofia por seus abusos. Além disso, a forma como Jesus falou, os provérbios e histórias que contou, bem como todo o contexto no qual proferiu seus discursos, tudo está imerso num idioma oriental. Não podemos esquecer este fato. No entanto, se o mundo ocidental pode ser acusado de adulterar a mensagem de Jesus, deixando-a irreconhecível, o mundo oriental muitas vezes esquece que, devido à omissão, deixou um conjunto de crenças religiosas, algumas delas bizarras, irresponsavelmente sem uma crítica. Tome, por exemplo, várias formas de práticas e de adoração orientais. Enquanto escrevia este livro, presenciei muitas. Numa delas, os devotos tinham ganchos espetados pelo corpo. Tinham facas atravessando a pele do rosto e pequenas lanças atravessando a língua. Visões como estas deixam visitantes, adultos e crianças, horrorizados. Temos de perguntar: por que os mesmos intelectuais que criticam as formas ocidentais de espiritualidade não fazem o mesmo com esses grupos? Mais próximos de nossa realidade, vemos os escritos de Deepak Chopra, que ensina uma doutrina de espiritualidade, sucesso e prosperidade costurada nos ensinamentos Veda, carma e autodeificação. Em contraste, vemos milhões de devotos dessa cosmovisão subreptícia vivendo na mais abjeta pobreza. Será que de alguma forma
INTRODUÇÃO
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deixaram de atingir o alvo? O que há de errado com este quadro? Podemos ver rapidamente que toda religião deve encarar a responsabilidade de responder às perguntas a ela dirigidas. Muitas outras questões podem ser levantadas, mas o ponto continua o mesmo. Como resultado disso tudo, sérias distorções acabaram virando moda. Alguns proponentes de outras convicções religiosas falam contra o "mito da unicidade cristã". Outros exigem que a propagação da fé seja considerada errada, e que a ideia de "conversão" deve ser banida. Tal tendência traz no final sua própria tirania. A realidade é que se a religião deseja ser tratada com respeito intelectual, então deve ser submetida ao teste da verdade, independentemente de qual seja a tendência em voga. Este livro é uma defesa da unicidade da mensagem cristã. Tratando desse assunto mais de perto, eu gostaria de ter dito mais e ter argumentado e apresentado mais contrastes, mas a tendência atual poderia não suportar mais do que isto. A rota que segui foi apresentar uma diferença clara entre Jesus e outras figuras que reivindicaram status divino ou profético. Peguei seis perguntas a que Jesus respondeu de uma forma que ninguém mais poderia ter respondido. Os oponentes podem discordar de suas respostas, mas quando elas são reunidas, ninguém é capaz de questionar sua unicidade. Creio que todas as respostas são fascinantes, e espero fazer justiça a cada uma delas. A medida que fui respondendo, os capítulos foram ficando mais longos, pois o assunto tinha de ser adequadamente abordado. A dificuldade de controlar a extensão do texto foi acentuada pelo fato de que eu também precisava contrastar as respostas de Jesus com as de outros líderes religiosos importantes. Sem sombra de dúvida, a questão mais difícil de abordar foi a pergunta que fizeram a Jesus concernente à dor e ao sofrimento. Esse capítulo foi dividido em três partes. O último capítulo não é uma pergunta feita a Jesus, mas uma pergunta feita em seu favor, aos seus seguidores e aos seus opositores. Só podíamos terminar desta forma.
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POR QUE JESUS É DIFERENTE
Como você logo notará, não confronto as respostas de Jesus com cada religião que oferece respostas sobre as mesmas questões. Tratei somente daquelas religiões que ainda atraem grande número de seguidores ao redor do mundo — islamismo, hinduísmo e budismo. Devo acrescentar mais uma coisa. Viajei milhares de quilómetros enquanto escrevia, não somente em prol do livro, mas também quando era convidado para falar em várias partes do mundo. Visitei templos, mesquitas e outros locais religiosos. Conversei com estudantes em universidades onde a religião predominante não é cristã. Nesses momentos, conheci pessoas gentis e finas. Por natureza, gosto de estar com pessoas. Gosto de conversar, principalmente durante uma refeição com novos amigos. Uma dessas pessoas foi um camareiro num hotel onde me hospedei. Ele é muçulmano. Diariamente, quando entrava para arrumar minha cama, ele me trazia uma xícara de chá e nós conversávamos. No seu dia de folga, levou-me a um passeio por sua cidade, onde visitamos muitos locais de culto. Jamais esquecerei aquele homem. Gostaria que mais pessoas demonstrassem a bondade e a cortesia que ele sempre oferecia. Este é o ponto que quero enfatizar. Podemos ter opiniões diferentes, mas sem raiva e sem ofensas. O que eu creio, encaro com toda seriedade. Por causa disso escrevi este livro. Devo tratar tudo o que é contrário da mesma forma. Minha oração fervorosa é que quando você ler esta obra, tire a sua conclusão sobre a mensagem cristã baseado na verdade e não nas tendências da nossa época. As tendências mudam. A verdade permanece.
capítulo
um
ESCALANDO UM ALTO MURO
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uero começar contando um incidente ocorrido em minha vida, que até hoje ainda causa um turbilhão de emoções dentro de mim. Temos facilidade de evocar certas lembranças. Outras, apesar da passagem do tempo, abrem e sangram como um ferimento. Por esta razão, reconheço que tenho dificuldade de relembrar muitos fatos do meu passado. Só consigo trazer esses velhos momentos de volta ao presente porque os anos intermediários me ajudaram a olhar além das antigas feridas. Mais do que isto, porém, esses acontecimentos tristes, junto com muitos outros, podem bem ter dado início à minha jornada em direção a Deus, levando-me a uma parada obrigatória e forçando-me a fazer algumas perguntas bem difíceis a mim mesmo. Eu tinha 16 anos de idade e estudava num colégio comunitário, pois isso me proporcionava um atalho para a finalização da escola secundária. Um dia, após o final da aula, eu voltava para casa de bicicleta e nem imaginava o que ia acontecer a seguir. Do meu ponto de vista, era um dia como outro qualquer. Entretanto, aquele dia teria um final diferente. Quando entrei no quintal de casa, vi uma cena incomum. Normalmente naquele horário meu pai não estava em casa, mas lá estava ele, em pé na porta, com os dois braços abertos, como se quisesse bloquear meu caminho. Eu o cumprimentei com um olhar furtivo,
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POR QUE JESUS É DIFERENTE
mas ele não respondeu. Senti seus olhos sobre mim, e meu coração se encheu de medo. Meu relacionamento com meu pai deixava muito a desejar, e minha falta de propósito na vida era motivo de grande frustração para ele. Devo confessar que tinha medo dele, um sentimento que até hoje não consegui entender. Jamais esquecerei aquele momento. — C o m o foi a aula?— ele perguntou. Ele nunca perguntara isto antes. Geralmente meu boletim respondia a esta questão, ocasionando discussões tensas. Eu devia ter desconfiado que ele tinha uma razão para a pergunta naquele dia; no entanto, respondi que estava tudo bem, sem suspeitar de nada. Seria difícil repetir suas palavras exatas, mas sua explosão de raiva e a bofetada que recebi me deixaram tremendo e soluçando. Se minha mãe não tivesse interferido, eu poderia ter sido seriamente machucado. Insensatamente, eu iniciara um jogo, e agora ele chegava ao final, sem nenhum vencedor. A verdade é que eu não estivera na escola naquele dia. De fato, já não ia à escola há algum tempo. Passava meus dias vagando pelas ruas de bicicleta, procurando algum jogo de críquete para assistir ou até participar. Sem ir às aulas, eu era desmascarado nas provas. Não sei como imaginava levar a farsa adiante. No entanto, as escolhas erradas têm o poder de privar as pessoas até do bom-senso. Por que tudo aquilo havia acontecido, para começar? Alguém pode pensar que todo o episódio indicava apenas que eu não gostava de estudar. No entanto, era muito mais do que isto. Ninguém que me conhecia seria capaz de imaginar o tamanho do vazio em meu interior. Eu era um desses adolescentes que se debatem com os problemas interiores e não sabem onde buscar as respostas. Para dizer a verdade, eu nem sabia se de fato existiam respostas para meus anseios mais profundos. Será que as pessoas que eu conhecia passavam pelos mesmos conflitos e apenas dissimulavam melhor? Ou será que o ceticismo era a sina de uns poucos desafortunados? Falando claramente, para mim a vida simplesmente não tinha sentido. Todos os anseios, reunidos, não acrescentavam nada — exceto um grande desejo que não
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tinha possibilidade de ser satisfeito. A descrição de Jean Paul Sartre da vida, como uma paixão inútil, parecia perfeita e apropriada para o meu caso. Aquele confronto com meu pai provavelmente resumia tudo o que estava me despedaçando por dentro. Naquela noite, fui colocado de castigo, de frente para uma parede. Parecia uma ótima metáfora de minha vida. Meus maiores conflitos tinham me aprisionado, e naquelas horas, corroído pelo remorso, eu me perguntava como poderia me libertar e respirar o ar fresco de uma vida sem cadeias. Um dos poemas de Oscar Wilde, escrito na prisão, descreve bem o que eu sentia: Nunca vi homens tão tristes olhando com olhar tão atento para um pequeno teto azul que nós, prisioneiros, chamamos de céu, para as nuvens descuidadas que passavam livres e felizes. Eu era um desses "homens tristes", embora nunca demonstrasse. Tinha aquele profundo anseio por liberdade. Assim, naquela noite triste, fixei minha atenção naquela parede, que parecia impossível de mover. Se eu quisesse compreender a realidade, teria de olhá-la bem de perto. A intensa busca da alma que teve início naquela noite finalmente me conduziu até a pessoa de Jesus Cristo. O fato de isso ter acontecido numa cultura essencialmente panteísta e (pelo menos na letra) controlada pela religião é em si mesmo um milagre. Gostaria de traçar para você alguns dos passos que dei. O L H A N D O AS PLACAS PELO R E T R O V I S O R Não é tarefa fácil selecionar os momentos decisivos. Num enorme esforço para ser justo e realista, procurei rever algumas das placas de sinalização pelas quais passei, e desejo mostrar a você o ponto de partida da minha argumentação. Da perspectiva cronológica, pode-
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mos discordar da sequência na qual uma experiência leva a um argumento. No entanto, olhando anos mais tarde em retrospecto para a estrada, do ponto de vista lógico, vejo que o argumento foi precedido e, com o tempo, sustentado pela experiência. Portanto, este capítulo de abertura começa com minha história; os capítulos seguintes, porém, tratarão do argumento. O propósito deste livro é mostrar ao leitor as razões por que creio firmemente que Jesus Cristo é quem ele afirmava ser - o Filho do Deus vivo, aquele que veio para buscar e salvar a humanidade perdida. E algo extremamente necessário numa época de nossa história cultural em que o Ocidente está mais parecido com o Oriente, e o Oriente tenta, sutilmente, copiar o Ocidente. As religiões estão experimentando um avivamento, mas com frequência esse avivamento é uma mistura híbrida de técnicas de marketing ocidentais e misticismo oriental — uma combinação devastadora de sedução por intermédio da mídia e do misticismo. A primeira vítima de tal mistura é a verdade e, consequentemente, a pessoa de Deus. Mesmo assim, para que o espírito humano sobreviva e todas as disciplinas legítimas encontrem uma expressão frutífera, a verdade não pode ser sacrificada no altar de uma pretensa tolerância. Falando de forma clara e simples, não é possível que todas as religiões sejam verdadeiras. Algumas crenças são falsas, e nós sabemos que são falsas. Portanto, não é proveitoso colocar um halo sobre a noção de tolerância, como se tudo pudesse ser igualmente verdadeiro. Considerar todas as crenças como igualmente verdadeiras é tolice, por uma simples razão: negar esta afirmação também teria de ser verdade. Entretanto, para que a negação de tal afirmação seja verdadeira, teríamos de concordar que nenhuma religião é verdadeira. Nos conflitos da vida real entre certo e errado, justiça e injustiça, vida e morte, percebemos claramente que a verdade não importa. Jesus Cristo falou várias vezes sobre o valor supremo da verdade. Embora sua vida tenha sido mais esquadrinhada do que a de qualquer outro homem, é notável que mesmo os céticos concordam e reconhecem a singularidade de sua vida e do impacto que causou.
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A q u i , por exemplo, está a opinião de u m e r u d i t o a l t a m e n t e respeitad o , o famoso historiador W. E. H . Lecky: O caráter de Jesus não foi somente o mais elevado padrão de virtude, mas também o mais forte incentivo em sua prática, e exerceu uma influência tão profunda que podemos dizer com verdade que o simples registro de três anos de atividade fez mais em prol da regeneração e da suavização da humanidade do que todas as reflexões dos filósofos e todas as exortações dos moralistas.1 Historiadores, poetas, filósofos - e m u i t o s outros - consideram Jesus c o m o a peça central da história. Ele p r ó p r i o fez u m a afirmação dramática e ousada. Disse ao apóstolo T o m é : "Eu sou o c a m i n h o , e a verdade, e a vida; n i n g u é m v e m ao Pai senão p o r m i m " (Jo 14:6). C a d a palavra desta declaração desafia as crenças fundamentais da cultura indiana da qual eu v e n h o ; n a realidade, de fato se põe contra t o d o o nosso m u n d o atual. O l h e m o s para as reivindicações implícitas desta afirmação. Primeiro (e mais i m p o r t a n t e ) , Jesus disse q u e h á s o m e n t e u m c a m i n h o para D e u s . Isso choca as tendências e a m e n t a l i d a d e p ó s - m o d e r n a . O h i n d u í s m o e o b a h a í s m o h á m u i t o q u e s t i o n a m o conceito de u m ú n i c o c a m i n h o p a r a D e u s . A religião h i n d u , c o m seu s i s t e m a multifacetado de crenças, ataca c o m ferocidade tal exclusividade. Jesus t a m b é m afirmou, sem s o m b r a de dúvidas, que D e u s é o Autor d a vida e q u e o significado d a vida está e m chegar a ele. Esta declaração seria categoricamente negada pelo b u d i s m o , o qual é u m a religião não teísta, ou até ateísta. Jesus se revelou como o Filho de Deus, que liderava o caminho ao Pai. O islamismo considera tal afirmação u m a blasfémia. C o m o Deus p o d e ter u m Filho? Jesus afirmou q u e p o d e m o s conhecer a D e u s e o caráter absoluto de sua natureza de forma pessoal. O s agnósticos n e g a m tal possibilidade. P o d e m o s analisar essas linhas e perceber q u e cada u m a das afirmações de Jesus sobre si m e s m o desafiava as suposições mais básicas da m i n h a cultura sobre a vida e seu significado. (Evidentemente, é
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importante lembrar que os elementos religiosos básicos dentro da esfera do hinduísmo não se harmonizam entre si. Buda era hindu até que rejeitou algumas das doutrinas fundamentais do hinduísmo e concebeu no lugar delas a visão budista. O islamismo é radicalmente diferente do induísmo.) Ironicamente, o próprio apóstolo Tomé, a quem Jesus proferiu essas palavras, levou as afirmações exclusivas de Cristo à índia e pagou o preço da mensagem do evangelho com a própria vida. Jesus era quem afirmava ser? Será que a unicidade de Cristo era um mito? E possível estudar a vida de Cristo e demonstrar, de forma conclusiva, que ele era e continua sendo o caminho, a verdade e a vida? Estas são as perguntas que me proponho a responder neste livro. Creio que há evidências esmagadoras que apoiam as afirmações de Jesus. Começo com minha história pessoal somente para estabelecer o contexto de como minha própria jornada começou e como cheguei à conclusão de que Jesus é quem ele afirmava ser. U M VISLUMBRE P E R I G O S O E compreensível que nesses pensamentos preliminares haja uma incerteza pessoal. Como posso dizer o que preciso dizer sem ferir outras pessoas ou até culturas? E difícil. Família e cultura são os berços de ouro onde as pessoas são nutridas. Eu mesmo me acho dividido entre o amor à verdade e o preço da candura. O perigo em tal empreendimento abateu-se sobre mim alguns meses atrás, quando li o poderoso livro Ar Rarefeito, de Jon Krakauer. O autor conta sobre uma equipe (da qual ele próprio fez parte) que escalou o monte Everest. Notei, com empatia, sua apologia angustiada no final do livro aos muitos parentes daqueles que pereceram na jornada, devido aos erros que cometeu no início de sua narrativa. O fato de ter escrito pouco tempo depois da tragédia levou-o a mencionar detalhes que posteriormente teve de corrigir ou até se retratar. Ele concordou que, se estivesse esperado um pouco mais antes de escrever seu relato, teria evitado muitos erros.
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Houve mais um elemento, e aqui se deu o maior problema. Algumas coisas que ele escreveu criaram uma imagem errónea não somente dele próprio, mas também do caráter e dos esforços dos outros membros da equipe. Este foi o pior erro. Trata-se de um erro muito grave, pois a vida de um indivíduo pode ser exposta à custa de seu sacrifício pessoal, mas não à custa da confiança sagrada de outrem. Quero ser cauteloso quanto a este aspecto; se eu falhar, será somente porque, se suprimisse alguns detalhes, estaria distorcendo a verdade de meu conflito. Agora posso gozar do benefício da passagem do tempo. Encontrei o Jesus que conheço e amo aos dezessete anos de idade. N o entanto, seu nome e seu poder de atração significam infinitamente mais para mim agora do que quando entreguei a ele minha vida. Eu o busquei porque não sabia mais para onde ir. Continuo com ele porque não quero ir para outro lugar. Fui a ele almejando algo que não tinha. Continuo com ele porque possuo algo de que não abro mão. Fui a ele como um estranho. Continuo com ele na mais íntima amizade. Fui a ele incerto quanto ao futuro. Continuo com ele certo quanto ao meu destino. Eu o busquei em meio aos ensurdecedores gritos de uma cultura que possui 330 milhões de divindades. Continuo com ele sabendo que a verdade é, por definição, exclusiva. Crescendo no Oriente, você ouve isto milhares de vezes, ou até mais: "Nós andamos por rotas diferentes, mas acabamos todos no mesmo local". Entretanto, eu digo que Deus não é um lugar, uma experiência ou um sentimento. Culturas pluralistas são seduzidas pela ideia atraente que sinceridade ou condição social é tudo o que conta, e que a verdade está sujeita à vontade de quem a possui. Em nenhum outro aspecto da vida os indivíduos podem ser tão ingénuos a ponto de afirmar que as crenças herdadas dos antepassados ou as crenças preservadas na tradição são os elementos que determinam a verdade. Por que, então, cometemos o erro catastrófico de pensar que todas as religiões estão certas, e que não importa se as suas reivindicações são uma verdade objetiva?
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As religiões não são iguais. Nem todas elas apontam para Deus. Nem todas dizem que todas as religiões são iguais. No cerne de toda religião há um compromisso inegociável a uma forma particular de definir quem Deus é ou não é, e de definir o propósito da vida. Qualquer um que afirma que todas as religiões são iguais demonstra não somente ignorância em relação às religiões, como também uma visão caricata até das religiões mais conhecidas. Nesse aspecto, todas as religiões são exclusivas. No entanto, o conceito de "muitos caminhos" foi absorvido de forma subliminar em minha vida, quando eu era jovem. Eu já estava condicionado a esta forma de pensar antes de descobrir seus preconceitos sutis. Levei anos para descobrir que o clamor por abertura nunca é como se propõe. Quando alguém lhe diz: "Você tem de ser aberto para tudo", na verdade quer dizer: "Você tem de ser aberto para tudo o que eu sou aberto e concordar com tudo o que eu concordo". A cultura indiana tem um verniz de abertura, mas é altamente crítica em relação a tudo o que discorda dela. Não é por acaso que a assim chamada cultura tolerante deu origem ao sistema de castas. As filosofias que tudo abrangem só podem se desenvolver à custa da verdade. Nenhuma religião nega suas crenças básicas. Dentro de tal relativismo sistemático, o indivíduo tende a se desviar ao sabor das ondas culturais, sem dar atenção à natureza implacável da realidade. E assim que se vive dentro de uma cultura panteísta. Sem dúvida, há uma riqueza de pensamento que construiu uma cultura impressionante para mais de um bilhão de pessoas, uma cultura que desafia a privação económica, a instabilidade política e as hostilidades religiosas, existindo, nas palavras do seu povo, como a "Mãe índia". Não temos a vantagem de escolher onde queremos nascer. Apesar disso, as palavras do poeta — "Expira o homem cuja alma está morta, que jamais disse a si próprio: 'Esta pátria é minha, minha terra natal'" 2 — soam dolorosamente verdadeiras. Neste clima cultural, minha vida, minha língua e meus valores foram moldados e testados. Sempre serei grato pelo privilégio e pelos tesouros que me
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foram concedidos. Espero jamais esquecer as canções, o idioma e os sons que foram alojados em meu interior. No entanto, a busca pelo Deus verdadeiro numa terra repleta de deuses é uma tarefa assustadora. A religião tem uma história diversificada, sendo que alguns dos seus detalhes são questionáveis. Herdeiro de uma cultura tão complexa, cresci vendo os muros de um desespero calado gradualmente se elevando dentro de mim, levando-me passo a passo até o ponto da crise pessoal. Ouvi dizer que as fraquezas de uma pessoa capaz geralmente são decorrentes do uso exagerado de alguma força. O mesmo se aplica à cultura. No contexto do ambiente onde cresci, os abusos das forças culturais confirmam este adágio. VULNERABILIDADE NA F O R Ç A Em primeiro lugar (e o mais importante), vem a força da família nuclear. Conforme eu a conheci, a cultura é forte e tem uma reverência louvável pela família imediata. Na índia, os laços familiares são fortes. No entanto, esta força facilmente se torna vulnerável ao exagero. Muitos pais parecem buscar aliviar a própria vida por meio dos filhos; o sucesso dos filhos eleva o status da família toda. A individualidade é absorvida pelo clã. Todos os dias, centenas de propagandas são impressas nos jornais da terra, numa seção chamada seção matrimonial — pais procurando cônjuges para os filhos. Todos os candidatos são mencionados como "de boa família" e os pretendentes também devem ser "de boa família". "Meu filho é engenheiro"; "minha filha é médica"; "meu filho é o primeiro da classe"; "minha filha ganhou uma bolsa de estudos". Assim correm os boatos nas reuniões sociais. Todo esforço é feito para preservar a unidade familiar, a vontade dos pais é reverenciada em tudo, desde emprego até casamento. Para mim, a força da família foi também o solo para as sementes de solidão interior. Esta solidão era decorrente de um fato importante: um pai altamente bem-sucedido e influente, que não podia tolerar um filho indisciplinado que flertava constantemente com o
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fracasso. O pai alcançou um nível elevado de poder. Até onde o filho chegaria? A segunda dimensão, além do elo familiar, é a realidade social da intensa competição académica. Tudo o que define um indivíduo e seu futuro é moldado por seu desempenho escolar. Todo estudante deseja ser o primeiro da classe. Não é suficiente se sair bem. Você precisa estar entre os primeiros da turma. O intelecto é reverenciado como um ídolo. Quando eu estava na escola, todas as notas dos estudantes e sua colocação no ranking da classe eram impressas nos principais jornais da cidade, para todos verem. O sucesso ou o fracasso eram motivo de orgulho ou vergonha geral. Um dos meus melhores amigos pensou em suicídio depois das provas finais na escola secundária porque não foi o primeiro colocado dentre rodos os estudantes de Nova Delhi. Outro colega de classe de fato se suicidou, ateando fogo no próprio corpo, porque não conseguiu se formar. Tais distorções, que ferem tantas pessoas, continuam atuantes em várias culturas. Tal atitude é totalmente errada, mas é alimentada com grande paixão. Esta combinação de família-padrão e aluno-padrão tornou-se uma mistura volátil em minha vida. Logo eu demonstrei que não seria o orgulho de um pai poderoso. Não era algo deliberado; era apenas falta de capacidade e falta de condições de buscar um propósito. Minha vida se arrastava adiante enquanto o longo braço da pressão cultural ia gradualmente se estendendo em minha direção — e eu sabia que não passaria no teste. Todas as manhãs, éramos acordados pelo barulho de várias pessoas (entre homens e mulheres) em pé à nossa porta, desejando ter pelo menos um minuto de conversa com meu pai. Ele tinha o controle de muitos empregos e contatos. Torcendo as mãos, elas imploravam por uma chance num emprego. Enquanto se encaminhava para o carro, ele assentia com a cabeça, como se estivesse dizendo: "Deixe comigo". Na verdade, muitas pessoas eram beneficiadas com suas conexões. Seu nome era proferido com respeito por causa desse poder. Será que algum dia eu não poderia tirar proveito dessa in-
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fluência? No entanto, muitas coisas impediam uma resposta simples a esta questão. Além do mais, meu pai tinha um lado difícil de lidar. Apesar de sua posição de influência, ele lutava contra um temperamento explosivo. Minha falta de objetivo criava uma situação de crise iminente. Essa combinação de elementos nos levou a um relacionamento lastimável. Sempre serei grato a Deus porque a situação não terminou como começou. Enquanto meu pai desejava que eu tivesse uma carreira brilhante, tudo o que me interessava eram os esportes - uma paixão pela qual ele não demonstrava nenhum interesse. Ele tinha uma opinião. Todo garoto sonhava em ser um jogador de críquete e jogar na seleção nacional, como todo jovem sonharia em jogar na seleção nacional de futebol. N o entanto, eu demonstrava certa habilidade e prometia. Participei de muitos esportes no tempo da faculdade: críquete, hóquei, ténis e ténis de mesa; nenhuma vez meu pai foi assistir, embora eu tivesse participado de jogos importantes. Nós caminhávamos em direções diferentes. Naqueles anos, eu jamais perdi o respeito por ele. Até hoje creio que meu pai foi um bom homem, ou até um grande homem; só que não sabia como lidar com uma criança problemática. Eu, por meu lado, me fechava e convivia com a dor. Com o passar dos anos, passei a acreditar que essas coisas são mais importantes do que as pessoas comuns imaginam, mas talvez menos importantes do que os extremistas querem nos levar a acreditar. De alguma forma aprendemos a superar, exceto quando tais situações nos empurram para o extremo da auto-rejeição e nos deixam mais vulneráveis quando os sonhos são desfeitos. Deixe-me ilustrar este ponto. Alguns anos atrás, recebi a visita de um ex-atleta olímpico. Ele estava buscando direção para sua vida. Era um homem forte e bem constituído. Era um privilégio ficar perto dele — na esperança de que músculos fossem contagiosos! Ele contou sobre a época em que representava seu país nos Jogos Olímpicos. Era uma história de sonhos que tinham lutado contra
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um pesadelo em potencial. Desde os doze anos, as Olimpíadas tornaram-se seu grande alvo. Todo o dinheiro que ganhava era investido na esperança de um dia ganhar uma medalha de ouro no evento que adorava. Concentrava-se totalmente nesse alvo. Era o que queria. No entanto, ele tinha um relacionamento turbulento com o pai, o qual não compartilhava dos seus sonhos; por isso, o rapaz tinha de conseguir o dinheiro sozinho. Quando ele tinha dezessete anos, filmou o campeão mundial da sua modalidade e estudou o filme quadro a quadro, prestando atenção em cada gesto, para aprender suas técnicas. Depois, filmou a si próprio realizando os mesmos movimentos e comparou os dois filmes, nos mínimos detalhes, detectando exatamente onde estava perdendo os preciosos segundos que separavam sua marca da marca do campeão; decidiu igualar as marcas. Por meio de enorme força de vontade, disciplina e coragem, seu objetivo ficou ao alcance das mãos. Ele foi convocado para fazer parte da seleção nacional nos Jogos Olímpicos e subitamente parecia que sua vida flutuava sobre uma nuvem. Venceu todas as provas classificatórias e emergiu como revelação e vencedor potencial das finais. Será que era realidade, ou era um sonho? Era real — ele ficava repetindo para si próprio. Ele ficou entre os finalistas, e todo o seu país estava assistindo. Milhões de pessoas estariam gritando seu nome, com o coração aos saltos, esperando ler nas manchetes do dia seguinte a história do "menino do interior". De fato, lembro que também assisti ao evento. A corrida estava para começar. Era o momento que aquele rapaz esperara a maior parte de sua vida. Entretanto, sua mente, com toda sua tenacidade e determinação, abrigava também anseios secretos. Ele me disse: —Vindo não sei de onde, um pensamento subitamente inundou minha mente: Será que meu pai está assistindo? Aquele pensamento inesperado o deixou momentaneamente atordoado, atrasando por uma fração de segundos sua largada, privando-o de conquistar a medalha de ouro. Com grande esforço ele ainda conseguiu ganhar o bronze. Ser o terceiro homem mais veloz do mundo não é pouca coisa. Entretanto, para ele, a vitória na pista perdeu seu encanto quando teve de disputar com o maior anseio de
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sua vida - a aprovação de quem ele amava. Aquele atleta olímpico não imaginava como meu coração se acelerava ao ouvir sua história. Eu o compreendia bem. Os sonhos dos jovens podem ser estranhos, mas eles não serão corrigidos sendo ridicularizados. Devem ser incentivados por uma voz amorosa que conquistou o direito de ser ouvida e não imposta por meio do poder. Esta é uma lição difícil para os pais. Quando a cultura perde seu poder de restringir, há uma maior necessidade de amor e respeito entre pais e filhos, para que se construa um relacionamento baseado na confiança e não na autoridade que emana da posição de força. Provavelmente as palavras mais duras que ouvi meu pai me dizendo foram: "Você nunca será nada na vida!" Francamente, parecia que ele tinha razão. Ele queria apenas me fazer enxergar a realidade. O consolo da minha mãe só me ajudava a sobreviver. Nesse sentido, aquele dia fatídico quando cheguei em casa de bicicleta foi o ponto crítico no qual deveríamos ter sentado e conversado. Contudo, suponho que a liberdade de conversar não emerge num vácuo. O momento da oportunidade é construído sobre horas gastas na preparação. O N D E PROCURAR, PARA P O D E R E N C O N T R A R ? Nosso relacionamento tenso tornou-se ainda pior mediante um pensamento fundamental. Se a vida não tinha propósito, por que então se preocupar com ela? Quando eu falo sobre propósito e significado, não me refiro apenas a um sentimento de paz existencial. Refiro-me a uma direção na vida que sustenta a razão e a emoção. E crítico que entendamos isso. Agora que me mudei para o Ocidente, vejo que, embora muitos jovens daqui se identifiquem com este problema, ele é inexplicavelmente ignorado no mundo adulto. Por que eu digo isto? No mundo empresarial, todas as grandes empresas formulam uma declaração de propósito. Esta declaração, por sua vez, é invocada quando se deseja medir o progresso ou o fracasso. Se uma empresa
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não sabe o motivo de sua existência, então jamais saberá se está tendo sucesso ou está fracassando. E significativo que todos nós que labutamos horas a fio para alcançar o propósito de uma empresa que fabrica palitos de dente ou faz funerais jamais paramos o tempo suficiente para escrever uma declaração de propósito para nossas vidas pessoais. Acabo de ler um artigo com uma entrevista de um dos maiores jogadores de críquete da Austrália. Ele está participando de um campeonato mundial, representando seu país. Um tanto entristecido num estilo de vida que deveria ser sem restrições, ele confessou um arrependimento. Enquanto participava daqueles jogos, sua esposa estava a quilómetros de distância, dando à luz o segundo filho. Ele disse: —Quando nosso primeiro filho nasceu, eu estava viajando, e agora, no nascimento do segundo, também estou ausente. Cheguei à conclusão de que o críquete é importante em minha vida, mas não é tudo. Esta afirmação suscita algumas questões, não é? O que é tudo? Será que qualquer coisa é tudo? Por que somos tão ansiosos em provar ao mundo que somos os melhores naquilo que fazemos e não nos preocupamos em responder quem somos ou por que somos o que somos? Eu desejava muito encontrar respostas para estas questões. Pode ser que houvesse, mas eu não conseguia identificá-las no meio de tantas vozes enganadoras numa terra religiosa. O propósito é para a vida o que o esqueleto é para o corpo. Os músculos podem ter força, mas precisam de apoio e de ligação. Minhas realizações não tinham uma estrutura para apoiá-las. Minha vida ficava à deriva em meio aos esportes e afeições, mas sem um propósito supremo. Pense um pouco nas alternativas que nossa cultura nos dá. Prazer, riqueza, poder, fama, destino, caridade, paz, educação, orgulho racial - a lista é infindável. Quando nenhuma dessas alternativas funciona, abraçamos um misto de espiritualidade e pragmatismo. Essas alternativas, porém, não nos dizem por que estamos aqui em primeiro lugar. Podem ser formas de organizarmos nossa vida, mas a
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vida deve ser definida de acordo com o que buscamos ou minha busca deve ser definida de acordo com o significado da vida? Numa cultura onde a formação académica é o valor supremo e minha vida não correspondia, uma cultura onde a filosofia é abundante, mas o propósito da vida nunca é compartilhado, para onde eu poderia ir? A maior perda é a vergonha diante do fracasso. Aquilo que chamamos de vergonha está profundamente arraigado na linguagem hindi; tanto que quando alguém fracassa, parte do opróbrio que sofre é ser catalogada como uma pessoa sem vergonha. Naquela noite, senti como se minha vergonha fosse durar para sempre, e minha punição foi ao mesmo tempo uma metáfora e uma realidade. A Q U E L E Q U E BUSCA D E S C O B R E Q U E FOI E N C O N T R A D O Em algum ponto no meio de toda esta instabilidade, o "Perdigueiro do Céu" encontrou meu rasto. Agora, quando olho para trás, vejo as marcas de sua passagem por toda parte. Na verdade, estava mais próximo do que eu imaginava. Revendo o passado, agora posso ver que o rasto era claro, mesmo nos momentos de maior confusão. Quando você mora numa casa pequena, de dois cómodos, junto com quatro crianças pequenas e mais os pais, não dá para se esconder. Mesmo assim, é surpreendente como uma pessoa pode se esconder dentro de si mesma. No entanto, a obra de Deus já tinha começado muito tempo atrás. Um dia minha irmã foi convidada para uma reunião de jovens onde haveria música e uma palestra. Ela me chamou para ir com ela. O orador seria um homem que, embora para mim fosse um completo estranho, era um líder cristão respeitado e conhecido internacionalmente. 3 Minha lembrança do evento é muito nublada para contar o que exatamente aconteceu ali. No entanto, uma coisa eu sei. Ele pregou sobre um texto que provavelmente é o mais conhecido da Bíblia: "Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigénito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jo 3:16).
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Sua atitude foi ainda mais poderosa do que as palavras, e ele falava com profunda intensidade. Havia suavidade e poder. Sem costume de participar de tais eventos, quando me dei conta, estava caminhando para a frente diante de todos, atendendo ao apelo para confiar em Jesus Cristo como meu Senhor e Salvador. Embora eu tivesse sido criado numa igreja, tinha tão poucas esperanças de que aquela mensagem tivesse algo a ver com minha vida, que captei somente parte do que o pregador disse. Nada do que ele dizia significava algo para mim. Seu vocabulário era estranho. Eu só sabia que minha vida estava errada e que eu precisava de alguém que a endireitasse. Eu queria novos desafios, novos anseios, novas disciplinas e novos afetos. Sabia que tinha de me importar mais com Deus. Só não sabia como encontrá-lo. Voltei para casa naquela noite com uma pequena noção de que a mensagem estava certa, embora não a tivesse entendido totalmente. Apesar de continuar um tanto confuso, um contexto muito importante havia sido estabelecido. Nas semanas seguintes, continuei a participar de todas as festas hindus e assistindo às dramatizações da sua mitologia. Eu tinha um amigo que era hindu fervoroso, que se esforçava muito para que eu abraçasse a cosmovisão do hinduísmo. Então aconteceu um episódio muito significativo. Eu estava passando perto de um local de cremação; parei e perguntei a um sacerdote hindu onde aquela pessoa cremada estava naquele momento, depois que seu corpo fora transformado num monte de cinzas. Ele me disse: —Jovem, você fará esta pergunta durante toda a sua vida, sem jamais descobrir uma resposta razoável. Se isto é o melhor que um sacerdote pode responder, eu pensei, que esperança haverá para um leigo como eu? Com o passar do tempo, e sem encontrar as explicações que precisava, a contínua perda de significado me levou a um momento trágico. Se naquele estágio de minha vida eu tivesse ouvido o filósofo ateu Jean Paul Sartre, ele teria confirmado todo o senso de isolamento que eu sentia. Dois dos seus livros mais vendidos, A Náusea e Sem Saída, descreviam exatamente meu estado. Sartre chegara a ponto de dizer que a única questão a que podia responder era por que
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não cometera suicídio. Não é engraçado que, quando a vida perde o significado, os poetas e artistas não têm medo de assumir a culpa, enquanto os racionalistas demonstram aquela eloquência vazia, tão destituída de razão? Minha decisão foi calma, porém firme. Uma saída silenciosa salvaria minha família e eu de novos fracassos. Coloquei minha ideia em prática. Como resultado, acabei numa cama de hospital, tendo sido levado para lá às pressas, nas dores de uma tentativa de suicídio. Naquele quarto de hospital, alguém me deu uma Bíblia, e, na situação desolada em que eu estava, leram para mim uma passagem. A mensagem do pregador naquela reunião de jovens continuava ecoando deniio de mim. Eu precisava de uma base sobre a qual consumi .II|MI. lie linha pregado sobre o amor de Deus, com base em Jo.i<> *>. Ali no hospital, leram para mim sobre o propósito de Deus, com lu.se em |oao 1 4. As palavras naquele capítulo foram dirigidas ao apóstolo Tomé, o qual, como eu disse, foi à Índia. Seu memorial existe até hoje, a poucos quilómetros de onde eu nasci. Lembre-se de que Jesus lhe disse: "Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim". Minha atenção, porém, foi atraída por algumas palavras mais adiante, quando Jesus disse aos discípulos: "Porque eu vivo, vós também vivereis". Novamente, eu não entendia o significado dessas palavras. Sabia que significava mais do que a vida biológica. Juntando todas as peças, o amor de Deus em Cristo, a maneira que este amor foi demonstrado e a promessa de vida por seu intermédio - naquele leito de hospital eu decidi entregar minha vida e minha busca em suas mãos. Os conflitos dos meus relacionamentos, minhas origens e meu destino, tudo foi abordado naquela conversa que Jesus teve com seus discípulos dois mil anos atrás. Atualmente meu compromisso de entrega permanece como a decisão mais maravilhosa que já tomei. Entreguei minha vida totalmente a Cristo. No mesmo poema que citei acima, Oscar Wilde diz: Todas as dores que o levaram A dar aquele amargo clamor, Os lamentos e o suor de sangue,
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Ninguém conhecia melhor do que eu: Aquele que tem mais vidas, Também deve morrer mais vezes... E cada coração humano que se quebra Nas celas de prisão ou nos quintais, É aquele vaso quebrado que entregou Seu tesouro ao Senhor, E encheu a casa do leproso impuro Com o aroma do nardo precioso. O! Felizes daqueles cujos corações Se quebrantam e paz e perdão encontram! Como mais o homem pode endireitar Seus planos e limpar a alma do pecado? Como Cristo poderia entrar, exceto por meio de um coração quebrantado? Saí daquele quarto de hospital como um novo homem. O Senhor Jesus tinha entrado em minha vida. Eu jamais poderia ter imaginado a profundidade desta transformação. Não há outro meio de descrevê-la. Dali em diante meus anseios, esperanças, sonhos e todos os meus esforços têm sido viver para aquele que me resgatou, estudar para aquele que me deu inteligência, servir aquele que formou minha vontade e falar daquele que me deu voz. O desejo ardente de aprender, o reconhecimento do valor do estudo e a necessidade de entender os grandes pensadores e seus pensamentos — tudo isso gradualmente foi sendo colocado no devido lugar. Nosso intelecto não foi designado para ser um fim em si mesmo, mas somente um meio para alcançarmos a mente de Deus. Os livros, que antes eram uma maldição para mim, tornaram-se uma mina de ouro. Os israelitas tinham um jargão pelo qual eles simbolizavam o ideal de vida: "Cada homem debaixo de sua própria figueira". Se o Senhor me permitisse usar uma metáfora hoje, seria: "Cada homem dentro de sua própria biblioteca". A mesma busca que anteriormen-
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te trazia tanta dor interior, agora é o deleite transcendente do meu coração. Eu não imaginava a longa jornada académica que tinha à minha frente. Se soubesse, teria adorado. Aconteceram tantas coisas desde aquele dia que, se fosse contar tudo, encheriam vários livros. Deus me concedeu o privilégio de falar dele em todos os continentes e em dúzias de cidades, apresentando a defesa da fé cristã em algumas das melhores instituições do mundo. Meu privilégio é enorme. Sinto-me tão em casa em Nova Delhi, como em Atlanta ou Toronto. Amo as pessoas dos lugares por onde passo, cada uma com seu linguajar e costumes peculiares e suas idiossincrasias. Realmente amei o desafio e o privilégio de ser um apologista cristão. Apologética cristã é a tarefa de apresentar uma defesa da pessoa e da mensagem de Jesus Cristo. Com o passar dos anos, tornei-me mais convicto do que nunca de que ele é exatamente quem ele afirmou ser — Deus encarnado, que veio para nos dar vida em abundância e nos apontar a beleza e a liberdade da verdade. Não posso negar como é empolgante ver milhares de vidas transformadas. O PADRÃO SE REVELA Ao concluir este capítulo, quero compartilhar como um desígnio cheio de propósito emerge quando Deus tece um padrão daquilo que, para nós, muitas vezes pode parecer um disparate. Alguns anos atrás, visitei um local onde são fabricados alguns dos mais belos sáris — a roupa típica das mulheres indianas. Geralmente ele é bem longo. Os sáris usados nos casamentos são uma obra de arte; são tecidos com filamentos de ouro e prata, resplendentes numa profusão de cores. O local que eu visitei é conhecido por fabricar os melhores sáris de noiva do mundo. Eu esperava encontrar um sistema intrincado de máquinas e equipamentos. Nada disso! Cada sari era feito manualmente, por uma equipe de pai e filho. O pai se sentava numa plataforma a alguns centímetros acima de onde estava o filho, cercado por vários carretéis de linha, alguns escuros, outros brilhantes. O lilho fazia apenas uma coisa: a um sinal do pai, movia uma alavanca
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de um lado para o outro e voltava. O pai arrumava alguns fios de linha com os dedos e fazia outro sinal para o filho, o qual, por sua vez, movimentava novamente a alavanca. Este processo se repetia por horas a fio, até que começávamos a enxergar um magnífico padrão se formando no tecido. O filho tinha a tarefa fácil — apenas mover a alavanca, ao sinal do pai. Durante todo o tempo o pai já tinha em sua mente o desenho que desejava fazer no tecido e só precisava ir ordenando os fios de linha. Quanto mais eu reflito em minha própria vida e observo a vida de outras pessoas, fico fascinado ao ver o desígnio que Deus tem para cada um de nós individualmente, bastando que consintamos. Encontro pequenos lembretes pelo caminho, que me mostram os materiais que ele usou para tecer minha vida. A história a seguir é um pequeno exemplo. Cerca de trinta anos depois que entreguei minha vida a Cristo, minha esposa e eu retornamos à índia e decidimos visitar o túmulo de minha avó. Eu tinha uma vaga recordação do seu funeral, o primeiro do qual participei. Tive dificuldade para informar ao funcionário do cemitério o ano em que ela faleceu. Finalmente conseguimos nos lembrar do ano — eu tinha uns nove ou dez anos de idade. Depois de vasculhar os antigos livros de registro (maiores do que a mesa), finalmente encontramos o nome dela. Com a ajuda de um jardineiro, caminhamos através do mato e do entulho espalhado pelo cemitério, até que encontramos uma grande lápide de pedra, marcando o túmulo da vovó. Ninguém visitava aquele local há quase trinta anos. Com um pequeno balde de água e uma pequena vassoura, o jardineiro limpou a lápide, e, para nossa total surpresa, abaixo do nome, gradualmente foi surgindo um versículo bíblico. Minha esposa apertou minha mão e exclamou: —Olhe aquele versículo! Estava escrito: "Porque eu vivo, vós também vivereis". Como eu disse, Deus já estava no meu encalço muito antes que eu me desse conta disso. Com o passar dos anos, fizemos uma pesquisa sobre como o evangelho entrou em nossa família. Tanto do lado do meu pai como
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de minha mãe, os primeiros cristãos surgiram dentre a casta mais alta dos sacerdotes hindus, cinco ou seis gerações atrás. O primeiro membro da família a encontrar o Senhor foi uma mulher. Ela ficou intrigada com a mensagem levada à sua aldeia por missionários e continuou buscando, a despeito do enorme desgosto da família. Um dia, quando ela se preparava para sair das dependências da missão e voltar para casa, antes que a família descobrisse onde estava, as portas da missão foram fechadas devido a uma epidemia de cólera. Ela teve de ficar com os missionários durante várias semanas até o final do período de quarentena. Naquele período, ela entregou sua vida a Cristo. As paredes lacradas da missão foram o meio que Deus usou para levá-la a ter um encontro íntimo com Jesus Cristo. Nem todas as paredes são obstáculos. Elas podem estar ali com um propósito. Quando olho para trás, sempre vem à minha mente uma imagem e dois poetas. O Novo Testamento conta sobre a conversão de Saulo de Tarso. Ele era o terror dos cristãos. Deus graciosamente o capturou com seu amor para torná-lo um dos apóstolos escolhidos. Aqueles que outrora eram seus amigos agora ameaçavam sua vida. Os discípulos o colocaram num cesto e o desceram pelo muro da cidade, para escapar dos seus perseguidores. Para mim, a perseguição era interior. Deus dirigiu algumas pessoas que me colocaram num cesto de amor e de persuasão e me desceram por cima dos muros que eu não podia escalar por meus próprios meios. Assim é a graça de Cristo — nos alcança onde estivermos. Os conhecedores da literatura inglesa se lembram da vida turbulenta de Francis Thompson. Seu pai desejava muito que ele estudasse em Oxford, mas ele se perdeu nas drogas e foi reprovado em mais de uma ocasião. Porém todos os que o conheciam percebiam sua genialidade latente, aguardando que sua vida fosse recuperada. Quando Francis Thompson finalmente sucumbiu à perseguição de Cristo, escreveu seu poema imortal "Perdigueiro do Céu", descrevendo os anos anteriores ao momento da transição: Ku fugia dele noite e dia, lui fugi durante o passar dos anos, Ku fugi dele nos labirintos dos caminhos
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De minha própria mente: no meio das lágrimas Eu me escondia dele e em meio aos risos fugazes Das esperanças passadas, eu acelerava. Sob a coberta enorme do medo Daqueles pés fortes que me seguiam, Embora eu conhecesse seu amor, Sentia o mais profundo terror. Tudo que recebi de ti Recebi, mas não das tuas feridas. Tudo o que foi perdido pelos erros de teu filho, Eu entesourei para você em casa: "Levante-se, agarre minha mão e venha". Interrompe minha queda: Esra é minha sina, afinal, A sombra da tua mão, estendida com amor. Todos os aflitos, cegos e fracos, Sou eu a quem vocês buscam! O teu grande amor dirigido a mim, Encaminhou-me para ti. Foi u m dia maravilhoso q u a n d o parei de fugir e, c o m a força de D e u s , permiti que seu a m o r m e envolvesse. As palavras d o famoso h i n o escrito p o r Charles Wesley refletem este triunfo e m i n h a história: Meu espírito há muito está aprisionado, Preso no pecado e na noite da natureza. Teus olhos irradiaram uma luz difusa, E eu despertei, o calabouço inundado de luz. Minhas cadeias caíram, meu coração estava livte, Eu levantei, saí e te segui.4 Q u e r o acrescentar só mais u m a coisa. Eu t i n h a vinte anos de idade q u a n d o m i n h a família mudou-se para o Canadá. Ali, m i n h a mãe e m e u pai t a m b é m entregaram suas vidas a Cristo. Foi u m novo dia para todos nós. M e u pai trabalhou duro para recuperar os anos perdidos. E m 1974, ainda na casa dos vinte anos e jovem n o ministério, fui ao C a m b o j a para pregar em circunstâncias b e m interes-
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santes. Meu pai entregou-me uma carta, recomendando que eu só a lesse depois que viajasse. Nela, ele refletia sobre os dias em que parecia que tudo estava perdido em nosso relacionamento. Era uma carta muito bonita. Eu a li deitado em minha cama em Phnom Penh. Uma linha resumia todo o seu conteúdo: "Agradeço a Deus porque ele considerou nossa família, chamando um dos nossos filhos para ser seu servo". Meu pai faleceu em 1979, aos 67 anos de idade. Sinto falta dele nestes anos maravilhosos de ministério. Ele teria me dado grande encorajamento. A graça de Deus está acima de qualquer descrição. Ele levantou todos nós acima dos muros da nossa prisão pessoal. Chega de história. Agora vamos aos argumentos.
capítulo
dois
EM DIREÇÃO DO LAR CELESTIAL
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ma das maiores oportunidades que já foram concedidas a um membro da nossa família ocorreu quando a rainha Elizabete e o príncipe Philip visitaram a índia no final da década de 50. Meu irmão mais novo, que na época tinha uns sete ou oito anos de idade e era o membro mais novo do coral da Catedral de Delhi, ia ser formalmente apresentado à rainha no final do culto dominical. Certamente não faltaram conselhos de como ele devia se preparar para aquele encontro extraordinário. Nós o orientávamos sem parar, lembrando-o repetidamente para dirigir-se à rainha como "Sua Majestade" e não como "Tia", uma forma de se demonstrar carinho pelas pessoas idosas na índia. Chegou o momento do encontro, e meu irmão foi aprovado com honras. Nós não sabíamos, mas o encontro de meu irmão com a rainha foi mostrado num noticiário na Inglaterra; muitas pessoas telefonaram para a emissora perguntando se aquele "garotinho esperto" estava disponível para ser adotado. Desde aquele dia, cada vez que ele se comportava mal, os outros irmãos não perdiam a oportunidade de insinuar que a família devia ter aceitado a oferta dos ingleses! Quarenta anos já se passaram desde aquele dia memorável em que ele se inclinou diante da rainha, mas ele também, por seu lado, não perde a oportunidade de nos lembrar do grande privilégio que teve.
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O encontro com personagens históricos não é uma experiência banal. Os passos são recapitulados, as perguntas são debatidas e o protocolo é ensaiado muito antes do evento. Não tenho dúvida de que quanto mais elaborada a pompa e o espetáculo do evento, maior é o medo de se dizer ou fazer algo impróprio. Podemos imaginar a conversa na casa de André e de Simão Pedro, os primeiros seguidores de Jesus, quando André chegou com a notícia de que achava que tinha encontrado o Messias há muito aguardado. A figura do Redentor era a única esperança para uma nação que sofria sob o látego do domínio estrangeiro. Todo bom israelita orava pela vinda daquele que libertaria o povo. Os mais cínicos presentes na hora do jantar provavelmente engasgaram quando André anunciou que ele e Simão tinham voltado de um encontro com o libertador mencionado nas profecias. Muitas barbas foram coçadas enquanto os dois irmãos insistiam que não estavam malucos. Tinham conversado com ele, passaram horas em sua companhia, e André até teve a oportunidade de fazer-lhe algumas perguntas. Movido pela curiosidade, alguém na mesa deve ter murmurado, dirigindo-se a André: — E o que, afinal, você lhe perguntou? — Perguntei onde ele morava— foi a resposta confiante. Será que ouvimos direito? Silêncio total na mesa. — Foi o melhor que conseguiu pensar, André? Perguntar onde ele mora? Será que não haveria uma pergunta mais adequada para comprovar as afirmações de Jesus? Pelo menos é como nós, em nosso tempo, teríamos argumentado. Por que André, ao ficar face a face com aquele que alegava uma condição tão única, não apresentou um desafio maior do que apenas perguntar: "Onde assistes [moras]?" Malcolm Muggeridge, jornalista inglês, lembra em sua autobiografia as oportunidades que teve de entrevistar pessoas famosas ao redor do mundo. Sendo cínico e iconoclasta incurável, e apenas com o propósito de brincar com os leitores, ele fazia perguntas deliberadamente absurdas e constrangedoras; por exemplo, ele perguntava a um bispo no momento mais tocante da entrevista e diante de uma audiência altamente reverente: "Os bispos são realmente necessários?" Ele reco-
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nhecia que fazia isso porque sobrevivia em sua profissão como jornalista à custa do choque, em detrimento do conteúdo. Será que a pergunta de André foi um tipo de "pergunta chocante", uma gozação, no sentido de que poderiam encontrar o "endereço" do Messias e então ridicularizar suas afirmações? Será que ele também estava brincando com a audiência? Quanto mais penso sobre isto, mais fico convencido de que o candidato a discípulo tinha boas razões para fazer a pergunta que fez. Tinha começado uma investigação séria sobre a pessoa de Jesus. Será que ele era o Cristo, o Ungido? Por quase dois mil anos os profetas tinham falado sobre sua vinda. Será que estava se cumprindo? Vamos olhar mais de perto o que ocasionou uma pergunta tão básica, diante de uma afirmação tão monumental. U M A I N T R O D U Ç Ã O PROVOCATIVA O contexto da pergunta de André nos é apresentado no primeiro capítulo do Evangelho de João. Quando começamos a ler, imediatamente somos tocados pela casualidade com que Jesus fez sua aparição. Não houve rufar de tambores, nem grandes tumultos e nem desfiles para anunciar a chegada daquele cujo nome estaria nos lábios da humanidade de uma forma que nenhum outro nome jamais estaria. Não houve tempo para ensaios. João Batista recebeu a honra de fazer o anúncio desprovido de adornos. Vestido de forma estranha e mantendo uma alimentação ainda mais estranha, o precursor estava ganhando muitos seguidores. Aos olhos dos devotos, ele era um profeta digno de toda honra. Na verdade, mesmo antes do seu nascimento, o anjo tinha falado sobre seu chamado privilegiado, dado por Deus e cheio de propósito. Seu lugar na história seria daquele que apresentou Jesus ao mundo. Dentre todos os métodos mirabolantes que poderia ter escolhido para este fim, João escolheu um simples pronunciamento. Foi tão desprovido de acompanhamento real que nenhum "fazedor de rei" conceberia tal modéstia para um anúncio que transformaria o mundo. Principalmente no Oriente.
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Mesmo assim, num dia determinado e num momento divinamente escolhido, Jesus foi a João Batista para ser batizado. Pasmado pelo privilégio, João achou-se indigno de tal honra, declarando que não era digno nem de desatar as sandálias do Senhor. Como ousaria batizá-lo? A cena foi imortalizada pela pomba que desceu e pousou sobre Jesus. Depois desta confirmação celeste, João olhou para seus próprios discípulos e disse: "Eis o Cordeiro de Deus". E difícil ignorar imagens impressionantes por trás desta afirmação. A família judaica comum estava familiarizada com cordeiros e sacrifícios. Provavelmente o templo recendia a carneiro e a carne queimada, principalmente no Dia da Expiação. Apesar de sua grandeza e esplendor, no exterior do templo havia apenas um altar sem acabamento. Todos os cordeiros sacrificados ali pertenciam às pessoas que os ofereciam; assim, eram cordeiros de homens oferecidos a Deus. De fato, não eram nem mesmo representantes dos homens, ou iguais a eles. Eram cordeiros pertencentes aos homens, animais indefesos e ingénuos levados ao templo e de onde jamais retornavam. Agora, naquele momento escolhido da história, uma oferta veio do próprio Deus, dada^or ele em favor da humanidade. Era o Cordeiro de Deus. Entretanto, como podia ser? Como alguém podia nascer com o propósito específico de um dia ser sacrificado sobre um altar? Este fato não suscitaria outras questões entre aqueles que desejavam ser seus discípulos, em especial aos que ouviram a abrupta apresentação de João Batista? Alguém versado nas Escrituras provavelmente se lembraria de imediato da narrativa de Génesis 22; Abraão recebeu ordem de sacrificar seu filho Isaque, ao qual esperara tanto tempo para ter. Enquanto pai e filho caminhavam em direçao das montanhas, Isaque fez uma pergunta óbvia: "Eis o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto?" No desenrolar da história, o próprio Isaque foi colocado sobre o altar e esteve a ponto de ser sacrificado. No último instante, quando a mão de Abraão brandia a faca sobre o corpo do filho, Deus exclamou: "Não estendas a mão sobre o rapaz!" Tendo planejado tudo aquilo para testar Abraão, o Senhor
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tinha providenciado um carneiro, para servir como substituto de Isaque, representando outro cordeiro que viria em outro dia. O anúncio de João de fato dizia: "Aqui está ele — o Cordeiro de Deus, há muito prometido". Aproximava-se o dia em que haveria outra colina e outro altar, e desta vez a mão do Pai não deixaria de sacrificar. Os discípulos de João que ouviram a apresentação de Jesus como o Cordeiro de Deus passaram a segui-lo. A primeira pergunta que Jesus lhes fez tinha uma falta de profundidade deliberada e compreensível: "Que buscais?" Naquele momento, eles não tinham um verdadeiro entendimento de que estavam seguindo Aquele cuja jornada era só de ida e terminaria num altar — numa cruz. Fico me perguntando se algum de nós faria a mesma pergunta que eles fizeram naquele encontro memorável. A melhor pergunta seria: "O que João quis dizer ao chamá-lo de Cordeiro de Deus? Você está se encaminhando para um final sangrento?" Pelo contrário, eles estavam interessados em seus primórdios e por isso fizeram a pergunta inesperada: "Onde moras?" Anteriormente eu afirmei que no Oriente o lar é um indicador cultural bem definido. Tudo o que determina quem você é e como será seu futuro está ligado à sua herança e à sua condição social. Absolutamente tudo. Na primeira vez em que retornei à índia, depois de uma ausência de onze anos, minha esposa (que é canadense) testemunhou em primeira mão a estima que se confere à família. Na recepção realizada em nossa homenagem em Bombaim, na qual eu iria falar, ela ficou surpresa pela forma como fui apresentado. A apresentação longa e formal foi cheia de superlativos. Mesmo assim, no geral, absolutamente nada foi dito a meu respeito. O discurso foi uma bem elaborada descrição das credenciais e das realizações do meu pai. Foi um daqueles momentos em que você deseja olhar ao redor e localizar a pessoa que está sendo homenageada. Finalmente, a última frase foi: "E este é seu filho, que falará a nós". Foi tudo o que disseram de mim. Minha resposta imediata foi rir por dentro. Subitamente, porem, dei-me conta de que estava ali representando alguém maior do
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que eu mesmo - meu pai. Por causa dele, eu tive a oportunidade de falar. Eu sabia que estava no Oriente. No Ocidente, especialmente na América do Norte, a apresentação giraria em torno do que eu fiz ou não fiz. As credenciais são individuais, como se o indivíduo fosse ele próprio o possuidor de suas origens. Há pouca ou nenhuma menção da família. Na índia, porém, o país natal de meu pai, as credenciais dele, o nascimento de minha mãe e minhas raízes são extremamente importantes para a audiência. Noto esta diferença significativa até hoje. No Ocidente, não demora muito para um estranho nos perguntar: "Onde você trabalha?" ou "O que você faz?" Os pensamentos de quem pergunta estão formando um quadro, tentando determinar seu status financeiro e sua influência no mundo empresarial, para que a conversa siga esta linha. No Oriente, a pergunta é feita com o mesmo propósito: "Em que cidade você morava, quando vivia aqui?"; "Em que parte da cidade você foi criado?"; "O que o seu pai fazia?". Nomes, endereços e a história da família são importantes. Oriente ou Ocidente, o objetivo pode ser o mesmo: situar você na sociedade. Somente o processo é diferente. Numa sociedade estratificada, seu endereço residencial dá ao interlocutor todas as informações que precisa sobre você. O privilégio do nascimento abre portas. Não é surpreendente a observação de Natanael, quando ouviu falar de Jesus pela primeira vez: "De Nazaré pode sair alguma coisa boa?" Esta afirmação é seguida por outra alguns versículos adiante: "Não é este o filho do carpinteiro?" Como, em nome de tudo o que é razoável, a resposta para as esperanças e sonhos de Israel, na busca do Messias, poderia vir de uma cidade tão sem importância e de uma família de status profissional tão modesto? A melhor maneira de descobrirem se Jesus realmente podia ser quem João dissera que ele era era seguindo-o até sua casa o endereço terreno daquele que afirmava ser o Filho de Deus. A resposta de Jesus cria mais enigma. Ele não deu um nome de uma rua ou a identificação de uma casa. Disse simplesmente: "Vinde e vede". Eles o acompanharam, viram onde estava hospedado e evidentemente pernoitaram ali. André retornou e disse ao irmão Simão
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que tinham encontrado o Messias, quer dizer, o Cristo, e convidou-o para também ir vê-lo. No dia seguinte, Filipe, que também morava na mesma cidade, convidou Natanael para se unir a eles, dizendo: "Achamos aquele de quem Moisés escreveu na lei, e a quem se referiram os profetas, Jesus, o Nazareno, filho de José". Aqui você tem os elementos — a cidade e o parentesco. Natanael agiu com ceticismo e recebeu o mesmo desafio: "Vem e vê". UM E N C O N T R O MEMORÁVEL A Escritura mantém silêncio sobre numerosas questões. Assuntos nos quais estamos profundamente interessados são deixados de lado sem maiores explicações. Em que tipo de casa Jesus morava? Em que tipo de oficina trabalhava — se é que trabalhava em alguma? Como era a mobília de sua casa? Quanto dinheiro possuía? Muitas vezes eu penso que parte do espaço dedicado às genealogias poderia ser dedicado a outros detalhes da vida de Jesus, que também seriam de grande interesse dos leitores. Quanto ele ganhava? Que tipo de roupas vestia? Como era sua aparência? No entanto, talvez seja aqui que a visão de Deus da realidade busca nos elevar acima da escravidão e das distorções de nossa visão terrena. Figuras históricas têm casas que a posteridade pode visitar; o Senhor da história não deixou nenhum endereço. Os eruditos têm bibliotecas e escrevem suas memórias; Jesus deixou apenas um livro, escrito por pessoas normais. Os libertadores falam sobre vitória por meio do poderio militar e da conquista; Jesus falou de um lugar no coração. Seria difícil preservar uma peça de roupa ou um móvel usado por Jesus, para que pudéssemos colocar num museu e ser visto por todo o mundo? Podemos visitar pequenas cidades no Oriente e ver escavações arqueológicas de casas do tempo de Jesus. Por que sua própria casa não foi preservada? Num museu na Turquia, podemos ver a espada de Maomé e aquilo que dizem ser fios de sua barba. Recentemente fomos informados de que encontraram um dente de Gautama,
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o Buda. Podemos retroceder no tempo e ver coleções extraordinárias de artefatos relacionados aos monarcas e heróis de tempos até anteriores à época de Cristo. Aquele que é dono das alimárias sobre milhares de montanhas não deixou tais informações. Sobre Cristo, ouvimos que ele não tinha onde reclinar a cabeça. O mesmo escritor (João) afirma de forma extremamente direta: "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.f...] E o Verbo se fez carne e habitou entre nós..." (Jo 1:1, 14). A expressão "no princípio", empregada por João, faz um tocante paralelo com as primeiras palavras das Escrituras: "No princípio, criou Deus...". Embora o parentesco terreno de Jesus fosse importante, seu endereço residencial não era terreno - pois num sentido muito real ele não tinha princípio. Em meio às perguntas "onde" e "quando" que marcam nossa natureza finita, aquele que é eterno e infinito não sofre tais limitações. A tarefa de Jesus era elevar tais questões, e por isso disse aos interlocutores: "Vinde e vede". Desconfio que haveria um choque e a necessidade de maiores explicações. André tinha motivos para fazer sua pergunta, e Jesus estava oferecendo uma jornada de reflexão como resposta. Nós empreenderemos esta jornada. Neste momento, coloque-se no lugar de André. Ele fora convidado para ir à casa daquele que fora identificado por um reconhecido profeta como o Cordeiro de Deus. André foi. O que ele esperava? Será que ficaria desapontado? Billy Graham conta sobre uma cruzada que realizou em Pittsburgh. Ele acabara de entrar no saguão do hotel onde passaria o fim de semana e, na companhia de alguns membros de sua equipe, dirigiu-se ao elevador, onde alguns empresários estavam conversando. Quando o elevador começou a subir, um dos empresários disse: — Ouvi dizer que Billy Graham está neste hotel —. Outro homem que reconheceu o Dr. Graham sorriu, olhou para aquele que falara e disse, apontando para ele: — Olhe ele aqui —. Surpreso, o empresário se virou, olhou bem para Billy Graham e disse: — Que anticlímax! — Sendo um homem humilde, o Dr. Graham concordou
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plenamente com o desapontamento do empresário e admitiu que o que ele estava vendo era tudo o que havia para ser visto. O que aquele homem realmente esperava? Alguma figura com asas e auréola, que não precisava usar elevadores e que só seria encontrada orando e pairando no ar? Em nossa imaginação humana, muitas vezes queremos que nossos heróis sejam maiores do que a própria vida. Nós os exaltamos de uma forma que até os prejudica. Em nossa imaginação, nós os transformamos em figuras irreais, de plástico. Quando eles sangram, envelhecem ou tropeçam, nós os deixamos de lado ou arranjamos uma maneira de perpetuar o mito. Para sustentar esta ilusão em nossa mente, construímos estátuas e erigimos monumentos; os artistas fazem pinturas com auréola, estabelecendo uma imagem surrealista. Nós nos convencemos de que eles são ou foram algo essencialmente diferente do resto da humanidade. Naquele encontro histórico, aquela pessoa era essencialmente diferente do resto. Mas... de Nazaré? Filho de um carpinteiro? O templo edificado como habitação de Deus possuía beleza e riquezas inimagináveis em sua construção. Agora que Deus tinha encarnado, sua casa era comparativamente indigna. Para ajudar a organizar a questão, Natanael entra em cena. Estava tão comprometido com a verdade que, quando foi convidado para se encontrar com Jesus, concordou em ir, provavelmente na esperança de dissipar o "engano" que se criara na mente de seus amigos. No entanto, quando ele chegou perto de Jesus, este se referiu a ele escolhendo cuidadosamente as palavras: "Eis aí um verdadeiro israelita em quem não há dolo!" Ali se operou a primeira surpresa. Não há nada mais incómodo para uma pessoa do que ter seus pensamentos mais íntimos revelados nas palavras de um estranho. Natanael esperava "desmascarar" aquele homem e, em vez disso, seu próprio caráter foi revelado, como realmente era. "Donde me conheces?", ele inquiriu. Jesus replicou: "Antes de Filipe te chamar, eu te vi, quando estavas debaixo da figueira". O que isso significava para Natanael?
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Sobre o que ponderava debaixo da figueira? Será que teve o pressentimento de que se aproximava o momento em que sua vida passaria por uma transformação? Será que foi um momento de intimidade, o qual ele achava que ninguém jamais saberia? Algo na revelação de Jesus fez Natanael agir impulsivamente, quase com violência, e ele pronunciou as palavras que transformam vidas: "Mestre, tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel!" (Jo 1:49). Creio que Jesus venceu o ceticismo de Natanael revelando gentilmente os pensamentos e intenções do seu coração. Foi neste ponto que a pergunta de André - "Rabi, onde assistes [moras]?" — recebeu a resposta mais inesperada. Jesus tinha visto Natanael quando este não sabia que estava sendo observado. Ele identificou a determinação com a qual Natanael buscava a verdade, o que certamente atraiu sua atenção. Num dos seus salmos, o rei Davi confessou que não podia fugir da presença de Deus, pois Deus conhecia sua mais profunda intimidade - "Aonde eu vou, tu estás lá" (139:7-10). Natanael acabara de descobrir a mesma verdade. Jesus também sabia que Natanael não tinha uma opinião favorável sobre Nazaré. Reconhecendo o que havia em seu coração, Jesus desafiou sua resposta impulsiva e lhe disse: "Porque te disse que te vi debaixo da figueira, crês? Pois maiores coisas do que estas verás. [...] Em verdade, em verdade vos digo que vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem" (Jo 1:50,51). Resumindo, Jesus estava dizendo: "Você está chocado porque lhe revelei seu próprio ser? Espere até ver a plena revelação de quem eu sou e de onde vim". Ele caminhou com Natanael desde a explicação de coisas mais simples até o destino final das revelações gloriosas. A descrição dos anjos subindo e descendo sobre o Filho do Homem não ficou solta num vácuo. Apontava para o "parentesco" de Jesus. Pedro, André e Natanael conheciam a história do patriarca nacional, Jacó, a qual de fato proporcionou o pano de fundo para a resposta de Jesus. O Antigo Testamento registra o incidente. Quando jovem, Jacó enganou o irmão Esaú e depois teve de fugir de sua ira. Em sua jornada para uma terra distante, ele pensou que estava sozinho, lon-
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ge dos olhos de qualquer pessoa. Ele fora criado num lar onde o altar desempenhava um papel importante, como o centro da adoração a Deus feita pela família. Seu avô, Abraão, era conhecido como "o homem da tenda e o homem do altar". Para Abraão, o lar era temporário, mas a adoração era permanente. Agora, durante a fuga, Jacó estava sem lar e sem altar. Quando chegou ao local chamado Luz, dormiu com uma pedra em lugar de travesseiro. Mesmo para um morador do deserto, era uma condição bem precária. Enquanto dormia, o Senhor lhe apareceu num sonho, no qual ele viu uma escada que ligava a terra e o céu. Anjos subiam e desciam pela escada. No alto estava o Senhor, que disse: "Eu sou o SENHOR, Deus de Abraão, teu pai, e Deus de Isaque" (Gn 28:13). Quando Jacó acordou, disse a si mesmo: "Na verdade, o SENHOR está neste lugar, e eu não o sabia.[...] Quão temível é este lugar! É a Casa de Deus, a porta dos céus" (w. 16,17). Jacó fez uma pilha de pedras e deixou-a como marca no local que passou a chamar de Betei — que significa "a casa de Deus". Quer os discípulos tenham compreendido totalmente ou não, uma mensagem tremenda foi transmitida quando Jesus pronunciou aquelas palavras a Natanael. Ele registrou uma reivindicação. Será que eles tinham consciência de que o Senhor que formou o céu e a terra estava ali na frente deles? Hostes angelicais se movimentavam ao seu redor. Até hoje ainda nos debatemos para compreender exatamente suas palavras. A palavra casa imediatamente traz à nossa mente os conceitos de residir e de limites, nenhum deles apropriado para Aquele que não teve princípio e que é onipresente. Jacó descobriu que a presença abençoadora de Deus pode transformar qualquer local na casa de Deus. Agora, os discípulos estavam aprendendo o mesmo. Estavam inclinados a julgar Jesus pelo seu pai terreno, o carpinteiro José. Estavam tentando medir sua dignidade pela sua cidade terrena, Nazaré. Ele lhes expôs a verdade que qualquer local na terra onde ele está presente torna-se a entrada do céu. Esta afirmação deve ter trazido enorme conforto para eles.
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No entanto, acima de tudo, a partir do que Jesus disse, eles inferiram corretamente que ele viera do Pai celeste, o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó. Recuou com eles para muito além do entendimento que tinham e elevou-os a grandes altitudes para mostrar que a palavra casa era, na melhor das hipóteses, somente uma analogia de viver com Deus. Os discípulos claramente estavam atónitos com este impacto inicial. Não compreenderam totalmente todo o significado daquele encontro. Suas vidas mudariam muito além do que poderiam imaginar, de modo que chegaria o dia em que deixariam suas próprias casas para contar ao mundo sobre Jesus de Nazaré. "Se você está maravilhado com o que eu lhe mostrei sobre você mesmo, Natanael, saiba que é somente o começo. Espere até que eu lhe revele minha glória". Isso, ele assegurou, não seria um anticlímax. VISLUMBRES DE O U T R O LAR Jesus introduziu algumas verdades significativas naquela simples troca de palavras — verdades que elevam nossos pensamentos. Vamos abordá-las uma a uma. O indicador principal aqui, literal e figurativamente, é a revelação de Jesus da esfera de sua existência. Perguntar "onde" é a casa de Jesus é o mesmo que perguntar "quando" foi o início de Deus. Tais elementos são necessários em nossa existência finita, pois houve um tempo em que não existíamos. Deus, porém, transcende essas categorias. As referências de Jesus a uma habitação e aos anjos subindo e descendo ao seu redor apontam para o fato de que ele é o Senhor do céu e da terra, que existe eternamente. Sua existência precede todas as metáforas espaciais. Assim como é impossível para ele não ser, assim também não é necessário que tenha um lugar para viver. Foi precisamente o que disse a Davi, quando este desejava construir um santuário onde Deus pudesse "morar" (2 Sm 7:5). Seria mais razoável perguntar-lhe onde prometeu nos abençoar do que perguntar em que local estaria sua existência. Tais categorias transcendentes parecem fora do nosso alcance, mas mesmo assim estão intimamente associadas ao nosso destino
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supremo. Mesmo hoje reconhecemos que conceitos como tempo, espaço e movimento estão tão presos às dimensões limitadas de nosso entendimento da natureza da realidade, que para a maioria das pessoas parecem o domínio dos espíritos. Mesmo assim, quanto mais fundo penetramos nesses mistérios, mais inexoravelmente somos atraídos ao mínimo denominador comum que torna a vida como ela é. Procuramos a parte mais ínfima da realidade no mundo físico, de modo que podemos, nas palavras de um cientista, chegar a uma teoria de algo. Jesus reverteu o processo. Ele nos disse que a única forma de entendermos quem somos é lançar nosso olhar não para a equação que reúne todos os elementos, mas para o relacionamento do qual nos aproximamos no cômputo total do nosso ser. É a reunião dos elementos que forma um objeto, e não a sua divisão. Nas palavras de Jesus a Natanael, nossa surpresa será ilimitada quando entendermos todo o significado da esfera da existência de Deus. Nenhum outro personagem que reivindica status divino ou profético teria respondido àquela pergunta sobre sua casa desta maneira. O próprio João Batista se esforçou muito para lembrar seus discípulos desta diferença: "O homem não pode receber coisa alguma se do céu não lhe for dada.[...] Quem vem das alturas certamente está acima de todos; quem vem da terra é terreno e fala da terra; quem veio do céu está acima de todos e testifica o que tem visto e ouvido; contudo, ninguém aceita o seu testemunho" (Jo 3:27, 31,32). Mesmo que estejam ensinando a verdade, todos os outros que reivindicam ou recebem status profético ainda são, quando muito, seres humanos com um chamado especial de Deus. Seu comissionamento é dado por outrem; eles são os receptores humanos. Jesus, por seu lado, é o Supremo Doador de si mesmo. Ele é "de cima", diz o escritor do Evangelho. Em outra conversa, Jesus afirmou que sua ascensão ao céu foi precedida pela sua descida (veja Jo 3:13). Implícita nesta palavra está a afirmação de que seu conhecimento é perfeito e completo. Só este fato já o coloca numa posição exclusiva. Sua visão da realidade, sua explicação da vida, sua revelação de mistérios e seus vislumbres
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daquilo que importa e daquilo que não importa procediam de sua condição de eterno. Esta é a questão. Sua jornada terrena não originava nada, era apenas uma visita. Todas as outras pessoas que se encontram no cerne de alguma religião tiveram um princípio, seja factual ou fantasioso — de qualquer forma há um princípio. O nascimento de Jesus em Belém foi um momento precedido pela eternidade. Seu ser não se originou no tempo e nem foi produzido pela vontade humana. O Autor do tempo, que vivia no eterno, encarnou no tempo para que possamos viver com a visão no eterno. Nesse sentido, a mensagem de Cristo não foi a introdução de uma religião, mas a introdução da verdade sobre a realidade como somente Deus a conhece. Buscar a espiritualidade e ao mesmo tempo negar a mensagem de Jesus é conjurar uma religião imaginária na tentativa de enxergar o céu com a visão confinada à terra. Foi exatamente este desafio que Jesus apresentou quando disse: "Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância" (Jo 10:10). Sua vida recende a vida. A vida do leitor ou a minha vida, separadas dele, recendem a morte. P O S I C I O N A D O PELA T R A N S C E N D Ê N C I A "Onde tu assistes [moras]?", perguntou o discípulo curioso. "Moro com meu Pai celeste", foi a resposta. Para Natanael, subitamente irrompeu em sua consciência uma nova visão do ser e do tempo. No entanto, surge uma questão óbvia: Como Jesus podia sustentar tal reivindicação? Afirmar não ter princípio é uma coisa; tornar esta afirmação racional é outra. Se o céu é o ponto de referência para toda realidade, então duas ramificações principais foram entalhadas para os discípulos e, por conseguinte, também para nós. A primeira é a posição com referência a Jesus, e a segunda, a posição com referência a nós. Evidentemente, pela lógica, a segunda é precedida da primeira. O que quero dizer com posição? Refiro-me à posição privilegiada da qual agora podemos encarar a vida, por causa dele.
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Você já experimentou confusão ao contemplar uma configuração aparentemente sem sentido num póster ou num desenho, que parece mostrar linhas ou pontos aleatórios? Você continua olhando, e, quando move a cabeça para um lado ou outro, subitamente uma palavra ou um desenho surge naquele padrão confuso. Chamamos isso de criptograma. Algo fascinante acontece assim que você percebe que os pontos ou sombras estavam apenas mascarando a mensagem real. Você move a cabeça novamente, tentando perder de vista o padrão ordenado e rever a desordem inicial. Este exercício é feito somente porque você fica se perguntando como foi possível deixar de ver a palavra quando olhou pela primeira vez. Quando o olho captura a imagem, interpreta a mensagem como ela é. Quando o olho perde a mensagem, a desordem domina. Posso sugerir que o desafio do ministério terreno de Jesus foi nos capacitar a ver a mensagem, a fim de entendermos o quadro. Olhando o criptograma da vida, vemos o nome de Jesus brilhando de forma inquestionável, ou vemos a confusão das religiões sem uma única mensagem, mas apenas crenças mutiladas que assolam nossa existência, cada uma delas justificada pela voz da cultura. Esta pode ser a tragédia do sentimento enganador que chamamos de tolerância, a qual tornou-se um eufemismo para contradição. O resultado é escorregadio. Jesus Cristo veio para desafiar cada cultura na face da terra a fim de adquirirmos uma perspectiva mais elevada. No entanto, como podemos alcançar este plano mais elevado? Podemos ver um traço de nossa situação até mesmo do nosso ponto de vista inferior. A despeito das limitações de nossa perspectiva terrena, ainda reconhecemos a impiedade. Ainda comentamos sobre o testemunho do mal. Pode ser que haja uma razão. C. S. Lewis nos ajuda neste ponto: O céu compreende o inferno, mas o inferno não compreende o céu... Para nos projetar num caráter ímpio, só temos de parar de fazer algo, algo que já estamos cansados de fazer; para nos projetarmos num caráter bom, temos de fazer o que não podemos e nos tornar aquilo que não somos.1
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"Fazer o que não podemos e nos tornar aquilo que não somos". Essas limitações fazem a separação entre a pureza e o mal. Para mudar este fato, os olhos do céu devem estar fixos em nós. E isso que Jesus oferece àquele que vai a ele — sermos aquilo que em nós mesmos não podemos ser, e fazermos aquilo que por nós mesmos não conseguimos fazer. Quando eu era menino, lembro de ter lido uma história sobre Sir Isaac Newton, que me deixou uma profunda impressão. Ele tinha trabalhado durante horas em suas pesquisas científicas sobre o tamanho do universo físico, trabalhando incansavelmente sob a luz de uma vela. Ao seu lado, estava seu amado e inseparável cão. Em dado momento Newton saiu da sala e o cão levantou-se para segui-lo; inadvertidamente, o animal bateu no lado da mesa, derrubando a vela e incendiando os pape'is. Em poucos segundos, todo o trabalho exaustivo foi reduzido a um monte de cinzas. Quando Newton retornou ao seu escritório para ver o que restara do seu trabalho, ficou com o coração despedaçado. Reunindo o pouco que conseguiu salvar, ele se sentou e chorou copiosamente. Depois, afagando gentilmente o cão, ele disse: — Jamais, jamais você saberá o que fez. Mesmo que fosse possível o cão perceber que algo trágico tinha ocorrido, seria impossível saber o tipo de tragédia e não somente a gravidade do que tinha feito. Por analogia, esse tipo de distância essencial é o que torna a nossa situação tão claramente impossível. Vivendo num mundo mau, tenho maior facilidade para compreender minha própria impiedade do que pensando nos termos claros como cristal da pureza perfeita. Na biografia que escreveu de madre Teresa, Christopher Hitchens estabeleceu como seu alvo descobrir algo que maculasse seu caráter. Ele disse a respeito dela: "Para o ateísta que há dentro de mim, ela é o grande cachalote branco". 2 Assim, ele tinha de fazer o papel de Acabe e sair em sua perseguição. Isso fala muito sobre a natureza humana. Nós nos sentimos incomodados com a pureza. E de estranhar que não consigamos compreender Deus? A lacuna não é somente moral; trata-se também de
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capacidade. Para mim é mais fácil pensar em termos de tempo do que em termos de eternidade. Como poderei explicar a habitação de um Ser perfeito na eternidade, quando meu ser está trancado na imperfeição e no tempo? Como posso entender o sobrenatural, quando estou escravizado pelo natural? H á um termo em alemão que separa a existência da vida: dasein ohne leben — "existência sem vida". Jesus veio para nos lembrar que nós, que estamos presos no temporal, subsistimos sem a matriz da vida. Embora continuemos a existir, carecemos da vida no seu verdadeiro significado. Ele deseja que vejamos o que significa viver por meio das lentes do eterno. Isso ocorre quando ele torna nossa vida sua habitação. Ali ele promete nos abençoar. Certa vez Jesus disse às pessoas que o questionavam: "Se, tratando de coisas terrenas, não me credes, como crereis, se vos falar das celestiais?" (Jo 3:12). Será que este elemento distintivo da habitação celestial de Cristo é um fator único nas religiões mundiais? É claro que sim. Talvez esta credencial singular de Jesus esteja na mente dos eruditos muçulmanos quando tentam atribuir a Maomé uma excursão fantástica ao céu. O islamismo afirma que em um ponto de sua vida, numa noite em particular, Maomé foi transportado ao céu numa jornada única, para ter um vislumbre de como era o céu. 3 Independentemente de todos os argumentos confusos sobre esta afirmação, ela na verdade afirma que, ainda que tal fato realmente tenha ocorrido, só mostra que Maomé não conhecia o céu. Esta é a grande diferença entre ele e Jesus. Com esta diferença tão singular, os céticos podem fazer uma pergunta legítima: há alguma evidência que sustenta a afirmação de Jesus quanto à sua origem? C O N C E P Ç Ã O SEM C O N S U M A Ç Ã O Se Jesus não tinha início, então seu próprio nascimento tinha de explicar como ele pôde ter "nascido" e mesmo assim não ter um princípio. Seu nascimento virginal certamente responde a essa questão.
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Quando se procura evidências que confirmem uma afirmação surpreendente, é preciso olhar para outras fontes que lhe dêem base, mesmo que não seja em benefício dos seus interesses pessoais. O nascimento virginal de Jesus pode ser colocado nesta esfera, tanto por aqueles que estiveram envolvidos nos acontecimentos como pelos opositores. Para a própria Maria, afirmar uma concepção tão estranha teria colocado não somente a sua própria vida em risco, como também a vida de Jesus. Embora já tenha me referido várias vezes a este fato, quero repeti-lo aqui. Certa vez perguntaram ao famoso entrevistador Larry King quem ele entrevistaria, se pudesse escolher qualquer personagem da história. Ele respondeu que gostaria de entrevistar Jesus Cristo e que lhe faria apenas uma pergunta: "Você realmente nasceu de uma virgem?". "A resposta a esta pergunta", ele afirmou, "me explicaria toda a história".4 Larry King está certo. O nascimento virginal, na pior das hipóteses, aponta para um mundo não escravizado pelo naturalismo. A reivindicação é elevada, mas pense nela dentro do seu contexto original. O nascimento virginal de Jesus foi afirmado e ao mesmo tempo recebeu a clara possibilidade de ser checado ao longo de muitas linhas. Dentre todas as pessoas influentes que você já estudou, pergunte como elas justificariam um nascimento virginal e uma existência eterna, se tivessem feito tais afirmações. E uma questão particularmente significativa se tal fato foi predito antes do nascimento da pessoa. Como faríamos para reunir as profecias — de fato, centenas delas - e seu cumprimento? Para os opositores de Jesus, teria sido fácil medir, geração após geração, se esta afirmação de ser o Messias poderia ter suportado o escrutínio dos eruditos e o teste das Escrituras. Por isso as genealogias eram muito mais importantes para os primeiros discípulos do que a mobília de uma casa. Além de Maria e José, considere os testemunhos do sacerdote Zacarias e de sua esposa Isabel (os país de João Batista), para quem teria sido natural não desejar que o filho desempenhasse um "papel secundário" diante de um primo, principalmente este sendo mais
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novo. Numa cultura que valoriza o poder e a posição, onde a opinião alheia conta muito, ninguém escolheria a vergonha. Se o nascimento virginal não fosse verdade, tal afirmação seria o caminho do ostracismo ou até do suicídio social para todos os envolvidos. Isabel perdeu o filho João sob a espada de Herodes e Maria foi alertada por um anjo que uma espada despedaçaria seu coração — nenhuma mãe desejaria tais coisas. Maria, José, Zacarias, Isabel, João Batista e os discípulos arriscaram tudo em favor desta verdade. No entanto, além dos costumes judaicos e das disposições familiares, provavelmente a afirmação mais surpreendente sobre o nascimento virginal procede de uma religião que durante séculos tenta se levantar contra o cristianismo — o islamismo. Mesmo o Alcorão, escrito 600 anos depois de Jesus, afirma seu nascimento virginal (veja Surah 19.19-21). O islamismo não tem nenhuma vantagem em fazer tal afirmação. Aqui, então, está o homem de Nazaré, afirmando que sua origem era o céu e que seu Pai era o próprio Deus - um Filho não nascido mediante a consumação física e sem necessidade de tal relação, mas como a expressão suprema de Deus encarnado, em comunhão eterna com o Pai. Seu nascimento não se deu por meios naturais. O mesmo não pode ser dito sobre Maomé, Krishna ou Buda. Embora defenda o nascimento virginal, o islamismo nega que Jesus é o Filho de Deus. Portanto, jamais foi capaz de se livrar da contradição criada em torno da filiação de Jesus. Seu argumento de que sugerir que Deus pudesse ter um Filho é blasfémia baseia-se na noção de que para que uma criança nasça é preciso que haja união sexual, o que desonraria a Deus. Assim, há uma meia-verdade aqui, com uma irónica distorção para uma religião cujo profeta fundador teve numerosas relações sexuais, todas elas (segundo seus seguidores) inspiradas por Deus. Deixando isso de lado, porém, desde que concordam com o nascimento virginal, teriam de reconhecer que Deus, em seu infinito poder, pode iniciar a vida sem relação sexual. No princípio, a comunhão e o poder de dar vida existiam no próprio Deus. Em seu ser infinito, o relacionamento era intrínseco, sem o pré-requisito
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carnal da consumação física. Deus, que é Espírito, é, de fato, Ser-emrelacionamento. Em Cristo, o Verbo se tornou carne. Só ele, que habitava na eternidade, podia consagrar a carne e ao mesmo tempo fazer distinção entre o poder inerente da criação e o poder concedido da procriação, apesar de ele transcender os meios aos quais nós estamos presos. U M A VIDA SEM MÁCULA No entanto, houve uma segunda forma mediante a qual Jesus provou sua existência eterna e absoluta. Sua vida sempre foi considerada como a mais pura que já foi vivida. Em numerosas ocasiões, seus opositores foram desafiados a trazer alguma prova contrária contra ele. Nunca conseguiram obscurecer sua vida imaculada. Ele desafiou seus adversários a apontar qualquer pecado em seu comportamento. No transcorrer deste livro, veremos que eles tentaram com todas as forças. Por contraste, nenhum outro indivíduo suscitou tal investida. Por iniciativa própria deles, incluímos aqui Maomé, Buda e Krishna. Suas vidas e esforços são registrados dentro de suas próprias escrituras. Por todo o mundo muçulmano atual mantém-se a crença de que todos os profetas eram isentos de pecados. Esta doutrina nos maravilha, desde que jamais foi o perfil dos profetas apresentados no Antigo Testamento e nem fica evidente em seus próprios escritos. Os deslizes dos dois profetas mais respeitados no Islã, Abraão e Moisés, são claramente afirmados no Alcorão. Por exemplo, na Surah 28,16 Moisés pediu perdão depois de ferir o egípcio. Na Surah 26,82 Abraão pediu perdão no Dia do Juízo. A palavra usada aqui, a qual os muçulmanos traduzem como "falta" e não "pecado", é a mesma empregada em outros contextos e traduzidas como "pecado". Nas Surahs Al e 48, o próprio Maomé foi orientado a pedir perdão pelo pecado, e o termo outra vez é traduzido como "falta" e não "pecado". Novamente, a palavra usada na Surah 47,19 é a mesma traduzida como "pecado" na Surah 12,29, onde é aplicada à esposa de Potifar, em suas tentativas de seduzir José. Muitos linguistas vêem
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isto como uma tentativa de passar por cima do que realmente foi dito, considerando como nada menos do que o desenvolvimento de uma tradição, de modo que a vida de Maomé não seja depreciada em contraste com a vida de Jesus. Há grande diversidade nas tentativas de explicar este fato. No entanto, que tipo de "falta" precisa ser perdoada? Será algo que devia ser de certa maneira, mas não é? Será um pensamento induzido ao erro? Há muito a ser dito no contraste entre a vida de Maomé e a vida de Jesus. O casamento do primeiro com onze esposas tem sido um assunto fascinante que exige explicações dos eruditos muçulmanos. Mesmo que o casamento não prove mais nada, estabelece claramente a necessidade gradual de morrer para o eu, para que os dois se tornem um. Trata-se de um processo de cair e levantar e não de aperfeiçoamento. No entanto, mesmo que alguém consiga explicar todas as práticas questionáveis de Maomé, inclusive a descrição embaraçosa do céu como "vinho e mulheres" no Alcorão {Surah 78,32 ss, que os muçulmanos consideram como metáfora), não há nenhum vestígio na vida de Jesus de que alguma vez foi impelido pela sensualidade ou teve de pedir perdão por algo que tenha feito. Somente ele emerge como o imaculado, isento de qualquer tipo de erro, de omissão ou comissão. Também deve ser notado que este contraste não somente é evidente na forma como Jesus e Maomé viveram, mas também na forma como entenderam o próprio chamado. Este senso de origem e de chamado é tão diferente que, de acordo com os relatos do próprio islamismo, quando Maomé afirmou pela primeira vez ter recebido revelações, ficou confuso e sem entender o que significava. Foram outros que lhe disseram que podia ser a voz de Deus falando com ele. Jesus, por outro lado, sabia exatamente quem era e de onde viera. O hinduísmo não está isento desse escrutínio. O tom brincalhão de Krishna e suas façanhas com as leiteiras, relatadas no Bhagavad-Gita, é claramente um embaraço para muitos eruditos hindus.
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Como Buda se qualifica dentro dos padrões de pureza pessoal estabelecidos por Jesus? O simples fato de que ele experimentou várias encarnações implica numa série de vidas imperfeitas. Quando ele saiu do seu palácio, deixando para trás a esposa e o filho, estava em busca de uma resposta. Ele não começou com a resposta. Sua "iluminação" era um ideal. Era um caminho para a pureza e não a pureza em si. Jesus não iniciou sua missão deixando um ambiente mais confortável para adquirir iluminação, a fim de encontrar respostas para os mistérios da vida. Essa foi a origem do budismo. Jesus não veio para dar a certo grupo étnico uma dignidade para que também pudessem ter uma identidade como os outros povos ao redor tinham; o islamismo começou por esta razão.5 Jesus não deu a nenhum povo razão para se vangloriar de privilégios particulares por terem uma cultura antiga ou a clara força da unidade social; praticamente todas as culturas panteístas se orgulham de sua existência milenar. Jesus não veio para afirmar pessoas que se orgulhavam do poderio militar, como os cidadãos de Roma, que afirmavam que sua cidade era eterna. Jesus não veio para homenagear os gregos por sua habilidade intelectual. De fato, ele nem mesmo veio para exaltar uma cultura por ser o recipiente da lei moral de Deus, algo em que os hebreus se vangloriavam. Sua reivindicação forte e inequívoca era que o céu era sua morada e a terra, o estrado dos seus pés. Nunca houve um tempo em que ele não existia. Nunca haverá um tempo em que ele não mais existirá. Ele ocupa uma posição de verdade, dentro de uma perspectiva eterna que o coloca numa condição única. MUDANDO O NOSSO ENDEREÇO Eu disse anteriormente que não somente nosso campo de visão foi afetado, mas também nosso lugar na vida foi redefinido. Se a posição privilegiada de Jesus nos dá seu ponto de vista único, sustentado
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pelo seu nascimento sobrenatural, então se segue uma aplicação extremamente necessária, se formos aplicar sua verdade às nossas moradias. A implicação foi claramente uma surpresa para Natanael, para quem nada de bom poderia sair de Nazaré. Esta cidade mal aparecia nos mapas. Os eruditos levaram anos para estabelecer sua localização. Dentre todos os lugares do mundo, por que o Senhor do céu e da terra escolheria Nazaré? Seria possível que desde que o céu era a sua morada e a terra, o estrado dos seus pés, ele escolheu o ponto mais baixo do estrado a fim de que aqueles que se orgulham do lugar onde nasceram notem que nosso Pai celestial tem credenciais melhores para nós do que nossas raízes terrenas? Nosso mundo se desviou tanto da vontade divina que afundamos na miséria medindo-nos em termos de raça, poder, progresso ou conhecimento académico. As chamas dos preconceitos de todos os tipos queimaram durante vinte séculos. A politização e o absolutismo cultural podem bem ser a causa do próximo confronto mundial. Todos os privilégios do nascimento e das posses materiais tornam-se destrutivos quando são apartados das mãos do Criador. As palavras de Jesus são um claro lembrete a todos nós que, quando levado ao extremo, o orgulho do nascimento pode ser um vórtice que nos suga para meios destrutivos de pensar e de viver. A voz crescente do nacionalismo tem liberado horrores indescritíveis. Nas muitas viagens que já fiz, visitei regiões do mundo onde as pessoas acham que são superiores por causa de sua cultura — lugares como China, Oriente Médio, Europa e América. De uma forma ou de outra, todos nós achamos que somos o centro do universo por causa da nossa posição na vida. Mas não tivemos absolutamente nada a ver com nosso nascimento. Jesus teve de escolher e escolheu a mais improvável das cidades para chamar de lar. Ele não foi seduzido pelas cordas frágeis e enganadoras do nacionalismo. N o entanto, se a cultura ou o nascimento jamais devem dar lugar ao preconceito, a riqueza também não deve se tornar um meio de medir o valor pessoal. Creio que o silêncio das Escrituras em relação à condição financeira de Jesus é muito instrutivo. Numa
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cultura na qual endereço e cidadç significam tanto, a única pista que temos, em relação a Jesus, é que ele veio de uma condição económica inesperada. Creio que é um lembrete solene para não termos como propósito de nossa vida a busca dos bens materiais. A sedução é enorme, e o desapontamento é proporcional. Certa vez li num jornal de grande circulação de Nova Iorque uma entrevista com a esposa de um jogador de beisebol que acabara de assinar um contrato de 89 milhões de dólares com o time dos Yankees. Ele demorou um longo período para assinar, na esperança de que a direção cobrisse a proposta de 91 milhões de dólares feita por outra equipe. Os Yankees não cederam. Na entrevista, sua esposa disse: "Quando ele entrou em casa, eu percebi imediatamente que não conseguira persuadi-los a aumentar o valor do contrato de 89 para 91 milhões de dólares. Ele estava arrasado. Foi um dos dias mais tristes de nossas vidas". Infelizmente, essa é uma das idiossincrasias da mentalidade humana. A maioria de nós jamais ficaria com o coração partido se nos fosse oferecido um contrato de 89 milhões de dólares e não de 9 1 , como esperávamos. Nós, porém, perdemos o rumo dentro do nosso próprio contexto material. Não é o valor do cheque que mexe conosco; são as nossas prioridades. Não creio, nem por um momento, que a Bíblia condene a riqueza. No entanto, há sérias advertências para aqueles que fazem da riqueza seu alvo mais elevado. A riqueza deve ser administrada por meio de uma filosofia de vida que seja maior do que a riqueza em si. Senão, ela molda a mente e traz amargo desapontamento. Através dos anos, Deus tem me dado o privilégio de ter contato com pessoas que possuem o dom natural de multiplicar aquilo que lhes é confiado. Muitas delas admitem que é extremamente difícil aprender a conviver com a riqueza. De acordo com seu livro The Last Temptation ofChrist, Nikos Kazantzakis estava totalmente errado sobre Jesus. Ele mostra uma cena na qual Satanás passa pela imaginação de Jesus tudo o que ele teria se resistisse à cruz — um lar em Betânia e a escravidão de uma esposa, que poderia ser Maria ou Marta — ou até as duas! Kazantzakis
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estava errado. Lamentavelmente errado. Nunca parou para pensar que um lar em Betânia não seria exatamente uma tentação para aquele cuja habitação era o céu. Quero encerrar este capítulo e sua lição com uma lembrança pessoal. Alguns anos atrás passamos o Natal na casa dos pais de minha esposa. Não era um dia feliz na casa. Muita coisa tinha dado errado nas semanas anteriores, e havia muita tristeza pairando no ambiente. Mesmo assim, no meio de tudo aquilo, minha sogra manteve seu costume de convidar as pessoas que não tinham para onde ir para participarem da ceia. Naquele ano ela convidou um homem que, aos olhos de todos, era uma pessoa estranha e de comportamento excêntrico. Não se sabia muito sobre ele na igreja, exceto que a frequentava regularmente, sentava-se sempre sozinho e ia embora sem conversar muito. Obviamente morava sozinho e parecia uma figura triste e solitária. Assim, ele foi o nosso convidado do Natal. Devido a outros acontecimentos na família, um dos menos sérios foi que minha cunhada foi levada ao hospital para dar à luz seu primeiro filho. A casa estava uma confusão. Todos sentiam os nervos à flor da pele. Eu fui encarregado de fazer sala para aquele cavalheiro. Devo confessar que não gostei da incumbência. Devido a uma vida de viagens constantes, sou zeloso em guardar a época de Natal para passar somente com a família. Teria de abrir mão desse privilégio e não estava muito feliz. Quando me sentei na sala, fazendo companhia para ele enquanto os outros estavam ocupados, pensei: "Parece que este será um dos piores Natais de minha vida". E assim a noite foi transcorrendo. Evidentemente aquele homem apreciou a comida, o fogo crepitando na lareira, a neve caindo lá fora, as músicas natalinas e a profunda discussão teológica, na qual ele e eu estivemos engajados — por sua iniciativa, devo acrescentar. Era um homem esclarecido e que gostava de falar sobre temas complexos. Eu também gosto, mas, francamente, não durante a ceia de Natal. No final da noite, na hora de se despedir, ele apertou a mão de cada um dos presentes e disse: "Obrigado pelo melhor Natal de
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minha vida. Jamais esquecerei". A seguir, saiu para a escuridão da noite, de volta à sua existência solitária. Diante daquelas palavras carinhosas, meu coração se apertou, e senti a consciência pesar. Tive de me esforçar muito para conter as lágrimas. Poucos anos depois ele faleceu, relativamente jovem e surpreendendo a todos. Já revivi muitas vezes aquele Natal em minha memória. O Senhor me ensinou uma lição. O propósito primário de um lar é refletir e distribuir o amor de Cristo. Tudo o que usurpa isso é idolatria. Tendo se levantado acima do preconceito cultural, Jesus ajudou os discípulos a reavaliarem a posição da riqueza. O impacto sobre eles foi tão forte que nos anos seguintes muitos deixariam suas casas e iriam às partes mais distantes do mundo a fim de proclamar a mensagem do céu que redefinia os lares terrenos. Onxe deles pagaram com a própria vida. A primeira vez em que caminhei pelas ruas barulhentas de Belém e senti seus aromas, adquiri um novo senso da diferença entre nossos cânticos de Natal, que falam do glamour e da doçura dos "sinos de Belém" e a dura realidade de Deus tornando-se homem e habitando entre nós. Mas isso não faz parte da maravilha da revelação de Deus, a realidade que ele aponta para aquilo com o que convivemos para nos mostrar o significado da verdadeira vida? Para os discípulos, a resposta de Jesus a esta simples questão "onde assistes [moras]?" - elevou-os acima da questão racial e cultural, acima da riqueza e do poder, acima do tempo e da distância, tornando-os genuínos cidadãos do mundo, informados sobre o mundo vindouro. Jesus levou-os a uma forma de viver e pensar totalmente diferente daquela a que estavam acostumados. Mostroulhes o caráter inclusivo do seu amor por todo o mundo. No entanto, implícito a isso estava também a exclusividade de sua verdade, pela qual eles se dispuseram a sacrificar a própria vida. Nós revertemos a ordem de Jesus. Tornamos a verdade algo relativo, exaltamos a cultura e fomos deixados num mundo onde impera a impiedade. Jesus trouxe a verdade à luz e trouxe a perspectiva de um novo mundo. Em Jesus meu coração encontra o verdadeiro lar.
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G. K. C h e s t e r t o n c a p t o u a maravilha de c o m o o endereço terreno de Jesus m u d a o nosso endereço, de u m a forma q u e só ele p o d e fazer. Uma criança num estábulo, Onde os animais se alimentam e descansam; Onde somente ele estava desabrigado, Você e eu nos sentimos em casa: Temos mãos que criam e mentes que pensam, Mas perdemos nosso coração - há muito tempo! Num lugar aonde não vai carro e nem navio, Sob a abóbada do céu. Para uma casa aberta na noite, Para onde todos os homens vão, Para um lugar mais antigo que o Éden, Uma cidade maior do que Roma. Para o fim da jornada da estrela, Para as coisas que não podem ser, mas são, Para o lugar onde Deus estava desabrigado E todos os homens estão em casa.6 O n d e Jesus vivia? Venha a Cristo e veja o q u e significa viver.
capítulo
três
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C
erra vez perguntaram ao conhecido filósofo ateu Bertrand Russell: "Se você se encontrar com Deus depois da morte, o que lhe dirá para justificar sua incredulidade?" "Eu lhe direi que não me deu evidências suficientes", ele disparou. Bertrand Russell pode ter demonstrado uma hostilidade incomum contra as crenças religiosas e contra o cristianismo em particular, mas sua sede por evidências ou seu anseio por provas não é único. Particularmente, confesso que me preocupo mais com aqueles que não buscam tal suporte para aquilo em que crêem do que com aqueles que buscam. Há centenas, ou até milhares, de pessoas com as quais cruzei em minhas viagens que não somente "creram teoricamente" em alguma divindade, mas também se dedicaram a ela de todo o coração. "Deuses" e "deusas" com aspecto e atributos assustadores são venerados por milhões de pessoas que apresentam suas ofertas e se prostram em adoração. Não me conformo com tal dedicação sem questionamentos, motivada por um sentimento engendrado e herdado da cultura. Por outro lado, também concordo que encontrar uma justifica(iva racional e firme para a crença pode ser uma tarefa tediosa e muitas vezes perigosa. No entanto, se a verdade for o motivo da busca e se esta for feita de modo racional, há recompensas. Há um velho ditado que diz: "E melhor debater uma questão antes de con-
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cluir do que concluir antes de debater". Minhas batalhas intelectuais pessoais foram bem necessárias numa terra onde o número de deuses é quase igual ao número de pessoas. Infelizmente, por razões justificáveis e injustificáveis, os indivíduos hostis à crença em Deus muitas vezes a execram como sendo a armadilha da emoção se agarrando a uma ideia enquanto a mente fica desativada. Não crêem que a fé pode sustentar o peso das emoções e da mente. Creio que cada pessoa tem uma capacidade diferente de pensar em tais assuntos. Entretanto, esse fato não constitui razão suficiente para sustentar uma visão em detrimento de outra. Não podemos fugir das questões que os oponentes têm levantado contra aqueles que "vivem pela fé". Eles estão certos em desejar saber qual é a diferença entre a fé e a insensatez ou a irracionalidade, quando nenhuma lógica coerente é oferecida como base para a "fé". Certa vez minha mãe me perguntou, profundamente frustrada: "De onde você tira essas perguntas? Acha que tem de haver uma explicação para tudo?" Eu invejei sua simplicidade. No entanto, deixando de lado nossas idiossincrasias, tenho de levantar o contraponto num mundo assolado pelas formas contraditórias de definir a realidade suprema. Se alguém submete sua vida, hábitos, pensamentos, objetivos, prioridades — tudo — a certa cosmovisão sem questionar, do ponto de vista dos seus oponentes está construindo a vida sobre um fundamento questionável. Neste encontro com Jesus, trataremos de uma questão difícil a ele dirigida e, como resultado, veremos a anatomia da fé e a busca da razão. De fato, Jesus advertiu severamente aqueles que buscavam sinais. No entanto, ele também comprovou suas afirmações com feitos extraordinários. Há um equilíbrio, e nós temos de encontrá-lo. Alguns anos atrás, enquanto eu estava nas Filipinas, pregando em algumas reuniões, fiquei hospedado n u m pequeno hotel familiar. A mulher que administrava o locai era formada em filosofia, e nós entabulamos uma conversa sobre a racionalidade ou a irracionalidade da fé em Deus. Durante a conversa, ela me pergun-
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tou se eu conhecera uma família que estava hospedada no hotel; tinham vindo da Austrália, para que o filho fosse curado de câncer por um "milagreiro". Finalmente, uma noite pude entrar no quarto desse casal e do filho deles. Não me lembro da idade do menino, mas creio que devia ter uns doze anos. Ele estava deitado, muito magro e sem se mover. Era uma figura triste e quase sem vida. Sua face mostrava-se cinzenta, como se estivesse às portas da morte. Os pais e eu conversamos em voz baixa. Ao lado da cama havia um criado-mudo, sobre o qual havia uma vasilha com um líquido escuro e uma massa de carne avermelhada, de aspecto assustador, da qual saíam fios como raízes. A mãe do menino apontou para a vasilha e perguntou: —Está vendo o que há dentro da vasilha? Eu assenti. — Ê o câncer que o homem removeu sem cirurgia. É como mágica. Temos certeza de que agora nosso filho está curado. Eu apenas olhei para eles, com o coração pesado, pensando na dor terrível que sentiam. Ao mesmo tempo, era extremamente difícil ficar face a face com tal credulidade, olhando nos olhos de pessoas dispostas a colocar a vida do filho nas mãos de "milagreiros", muitos deles reconhecidos como charlatões. Contra todas as evidências, duas pessoas educadas e esclarecidas se orgulhavam de uma cura realizada por alguém que proferiu algumas palavras mágicas e, supostamente, sem fazer qualquer incisão, extraiu aquela coisa do tamanho de um punho que estava "causando o câncer" no filho. Como se pode explicar esta forma extrema de "fé"? A capacidade humana de crer no bizarro, especialmente diante de necessidades extremas, é ilimitada. Não tenho dúvida de que nas Escrituras muitas vezes Deus interveio curando o físico das pessoas; sei que continua fazendo isso ainda hoje. No entanto, este episódio estava muito longe disso, pois nele os elementos da ganância e da falsa religião eram óbvios demais para serem ignorados. Antes de ir embora, expliquei àquele casal que meu trabalho me levava a várias partes do mundo e que me ajudaria muito saber se o poder daquele milagreiro era real ou um engodo. — Eu ficaria agrade-
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eido se vocês me escrevessem dentro de uns dois meses e me dissessem se o menino realmente foi curado —, eu disse. Eles pegaram meu endereço e prometeram que escreveriam. Já se passaram mais de dez anos. Não tive mais nenhuma notícia deles. Se ocasiões isoladas exigem que não arrisquemos nossas vidas diante das reivindicações distorcidas de algum demagogo, quão muito mais importante é que não arrisquemos o destino da própria humanidade por causa de alguém que insiste que é a única resposta verdadeira para o propósito da vida e do destino — a menos que tal afirmação seja totalmente testada e aprovada. E interessante notar que para aqueles como Bertrand Russell, que argumentam que as evidências são precárias, a Bíblia faz um contraponto surpreendente. Ela afirma categoricamente que o problema não é a ausência de evidências; em vez disto, é a supressão das evidências. A mensagem de Jesus Cristo muda a acusação de insuficiência do volume de evidências para a intenção do indivíduo. Será que Jesus estava insinuando que a crença não é nada mais do que a sujeição cega da vontade? Creio que não. Mas ele disse, com efeito, que se você testar suas afirmações com a mesma medida que fundamenta outros fatos, descobrirá que ele e seus ensinamentos são totalmente confiáveis. A evidência já foi apresentada. A negação de Cristo tem menos a ver com fatos e mais a ver com a tendência motivada pelo preconceito. Depois de anos me debatendo com esta questão no ambiente académico, tenho visto repetidamente a prova de sua veracidade. Note, por exemplo, as palavras de Thomas Nagel, professor de filosofia na Universidade de Nova York. Veja como ele explica sua profunda antipatia pela religião: Ao falar sobre o medo da religião, não me refiro à hostilidade totalmente explicável para com certas religiões estabelecidas... em virtude das suas doutrinas morais questionáveis, política social e influência política. Nem me refiro à associação de muitas crenças religiosas com superstição e com a aceitação de falsidades claramente empíricas. Refiro-me a algo muito mais profun-
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do - ou seja, o medo da religião em si... Eu quero que o ateísmo seja verdade e fico desconfortável em ter de reconhecer que algumas das pessoas mais inteligentes e bem informadas que conheço são religiosas. Não é só uma questão de não acreditar em Deus e ter esperança de que ele não exista! Eu não quero que Deus exisra; não quero que o universo seja assim.1 Isso é incredulidade clara e deliberada. "Não quero que Deus exista". Embora o ceticismo de Bertrand Russell possa ser representado como uma busca honesta da razão, é melhor termos certeza de que não é a incredulidade descontrolada de Thomas Nagel que espreita por trás da busca intelectual. Este tipo de ceticismo é a distorção da razão, disfarçado de candura. Para tal disposição, nenhuma evidência é suficiente. Veremos que quando estudamos este tema de razão e fé e o lugar dos sinais, Deus tem muito mais a dizer sobre isso do que imaginamos. NADA N O V O NA DEMANDA Muito antes de os nossos céticos modernos começarem a exigir evidências, os homens mais religiosos da época aproximaram-se de Jesus e perguntaram: "Que sinal nos mostras, para fazeres estas coisas?" (Jo 2:18). Não eram os Russells e Nagels daquela época, fustigando o sobrenatural. De fato, eram uma parte vital da vida do templo, o qual representava o oceano religioso e mercenário para o qual fluíam todos os esforços. Mesas eram armadas no interior do templo, sobre as quais se obtinham lucro do desejo das pessoas de estar quites com Deus. Desde carneiros até facas, os exploradores e os explorados mantinham uma atividade frenética, enchendo o recinto com os ruídos dos temores eternos e temporais. Os menos favorecidos e os necessitados se aproximavam o máximo que lhes era permitido, em busca de cura e de restauração. Os que guardavam a lei moral, a lei cerimonial e as leis de sua própria autoria consideravam o templo como sua grande salvação.
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Dentre todos os empreendimentos nos quais o coração humano se envolve, nenhum é tão suscetível ao exagero e à manipulação quanto a religião. Aqui, o sacrifício e a ganância se encontram no contexto mais confiável e explorador. Certa vez o respeitado erudito e missionário Stephen Neill disse: "Estou inclinado a pensar que a ambição em qualquer sentido ordinário do termo é quase sempre pecaminosa nas pessoas comuns. Tenho certeza de que no cristão ela é sempre pecaminosa e ainda mais inescusável nos ministros ordenados".2 Creio que Neill tinha razão. De Voltaire a Einstein, os pensadores têm lançado sérias suspeitas sobre a religião institucional por causa do seu passado comprometedor. É trágico que a história da religião, inclusive o cristianismo, esteja tão repleta de abusos a ponto de os céticos muitas vezes estarem corretos em sua "rejeição racional" da mensagem. Jesus foi alvo da fúria das autoridades eclesiásticas quando as lembrou de que a hipocrisia era a causa da incredulidade das massas. Foi nesses confrontos entre Jesus e os guardiães do templo que surgiu a exigência de um sinal. Jesus entrou no templo e virou as mesas dos comerciantes da parafernália religiosa, expulsando-os do local. "Tirai daqui estas coisas; não façais da casa de meu Pai casa de negócio" (Jo 2:16). Eles tinham transformado um local de adoração num covil de criminosos. Certa vez fiquei num hotel em cuja frente havia um pequeno santuário. Todas as manhãs eu ficava observando enquanto milhares de pessoas entravam no santuário. Muitas paravam, se inclinavam, juntavam as mãos ou faziam algum sinal de reverência à divindade e depois entravam. Muitos daqueles que realizavam aquele cerimonial de reverência afastavam-se alguns metros e ficavam à espreita, esperando os turistas incautos. Desde fotos de mulheres nuas até os serviços de prostitutas, relógios Rolex falsos vendidos a 20 dólares, passavam o dia em atividades ilegais e imorais. Eram zelosos e agressivos ao fazerem os ingénuos se desviarem. Enquanto eu observava essas cenas, tentava reunir os hábitos de adoração e os negócios escandalosos que praticavam. Cheguei à conclusão de que hipócrita é uma palavra inócua para descrever tal estilo
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de vida. As atividades daquelas pessoas, tanto as sagradas como as perversas, não eram ocultas — faziam tudo abertamente. Creio que o que realmente acontecia era que o nervo da espiritualidade era extirpado até a raiz, de forma que não chegava ao coração, às mãos e aos pés. A vida é vivida em compartimentos estanques, sem nenhuma conexão entre si. Quando se inclinam, reconhecem o sagrado. Quando exploram os outros, exaltam o material. Na vida diária, profanam a vida de outras pessoas sem nenhum peso na consciência. No entanto, se alguém fizer qualquer menção de profanar o santuário, correrá perigo de vida. Trata-se de uma religião distorcida, que presta homenagem a Deus, mas que ficaria profundamente surpresa se Deus se manifestasse. Foi para esses rufiões que Jesus veio. Foi um confronto sem precedentes. Usar o jargão moderno — "politicamente correto" — seria uma descrição de cordeiro para uma atitude de leão. Entrar em choque com os "manda-chuva" e referir-se ao templo como a casa de seu Pai? As atitudes e as palavras foram chocantes para os presentes. Este acontecimento ficaria gravado a fogo na memória dos que o testemunharam e selaria em seus adversários a determinação de acabar com ele. Ao observarem toda a cena, os discípulos ficaram extremamente nervosos. Entretanto, o relato nos diz que uma voz do passado fustigou suas consciências. Subitamente lembraram de uma passagem das Escrituras escrita pelo rei Davi, mil anos antes: "Tornei-me estranho a meus irmãos e desconhecido aos filhos de minha mãe. Pois o zelo da tua casa me consumiu, e as injúrias dos que te ultrajam caem sobre mim" (SI 69:8,9). Eles notaram que Jesus personificara a predição. Os oponentes não conseguiram conter a raiva e exigiram que Jesus exibisse um sinal que justificasse sua ousada ação. Ele os aborreceu mais ainda argumentando que a pergunta deles não era nada mais do que a busca da verdade. N o entanto, ele não parou aí. Em sua resposta, ofereceu provas que nenhum outro que reivindicava ser o Messias ou ser divino conseguira cumprir. Diante de um desafio tão enorme, aquela seria uma demonstração de poder sem paralelos.
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U M A NOVA RESPOSTA "Jesus lhes respondeu: Destruí este santuário, e em três dias o reconstruirei" (Jo 2:19). — O quê? —, eles se indignaram. "Em quarenta e seis anos foi edificado este santuário, e tu, em três dias, o levantarás? (v. 20). O escritor do Evangelho acrescenta: "Ele, porém, se referia ao santuário do seu corpo. Quando, pois, Jesus ressuscitou dentre os mortos, lembraram-se os seus discípulos de que ele dissera isto; e creram na Escritura e na palavra de Jesus" (w. 21,22). Havia muitas formas diferentes de ele demonstrar sua autoridade. Ele escolheu um ponto de referência em particular — o templo. Mas incorporou na metáfora um significado que atingiria os céticos e os religiosos. No corpo humano residem possibilidades opostas: nossa propensão para a sensatez e a disposição de desfigurar o corpo em benefício do espírito. Jesus não poderia ter escolhido uma ilustração melhor para justificar sua autoridade: a referência ao corpo em conexão com o templo. Há pelo menos três facetas distintas na sua resposta. Para ver a primeira, precisamos olhar para o pretexto trazido pelos céticos para a troca de palavras. "Que sinal nos mostras, para fazeres estas coisas?" Neste desafio, veremos o conflito entre fé e razão. A segunda faceta é o texto da resposta de Jesus: "Destruí este santuário, e em três dias o reconstruirei". No momento oportuno, esta seria a maior prova de sua condição messiânica. Séculos de determinação em tentar provar ser ele espúrio somente fortaleceram ainda mais as provas. A última faceta da resposta de Jesus é o contexto dentro do qual ele desejava que sua mensagem fosse compreendida. Ele ofereceu o milagre supremo, tomando aquilo que se apresenta como a maior ameaça da inclinação espiritual e transferindo-o para o centro da espiritualidade. No momento certo, eles reconheceriam que sua resposta era única e era sustentada pela história. A S E D U Ç Ã O E A D E D U Ç Ã O DE U M SINAL Vamos olhar primeiro para o pretexto dos céticos. Alguém pode ficar surpreso ao ouvir que a história não apresenta uma lista longa de pessoas que fizeram reivindicação séria de status
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divino. Entretanto, o resultado foi a manufaturação gradual da divindade, pela escolha humana. Aí a lista é enorme. Certa ocasião eu fiquei ao lado de uma estrada, olhando para uma estátua dourada de um "deus" sendo transportada de um templo para outro. Milhares de pessoas seguiam atrás, para fazer oferendas e receber uma bênção. Os sacerdotes que acompanhavam a estátua tinham incenso e cinzas nas mãos e generosamente distribuíam a boa vontade da divindade sobre qualquer fruto ou peça de roupa colocada diante deles. A visão era extraordinária. Ricos, pobres, jovens e velhos estendiam as mãos em direção da carroça que seguia vagarosamente. Perguntei a uma mulher que acabara de receber sua "bênção" se aquele deus realmente existia ou era apenas a expressão de um anseio interior. Ela hesitou um pouco e depois disse: — Se você acha que ele existe, então ele existe. — E se você achar que ele não existe? — perguntei. — Então ele não existe— ela disse calmamente. Esta possibilidade resume os principais personagens aos quais é atribuída divindade em nossos dias. Alguns tentarão provar suas crenças; outros simplesmente as carregarão no coração, criando divindades e depois tentando aplacá-las. O senso comum diz que ao estabelecer a convicção em uma crença, fazemos mais do que oferecer um desejo do coração ou apresentar alguns elementos isolados das credenciais daquele que faz as reivindicações, com as quais saltamos para conclusões grandiosas. A verdadeira defesa de qualquer reivindicação deve também lidar com as evidências que a questionam ou contradizem. Em outras palavras, a verdade não é somente uma questão de ofensiva, no sentido de fazer algumas afirmações. É também uma questão de defesa, no sentido de que deve ser capaz de dar uma resposta racional e sensível aos argumentos contrários que são suscitados. Aqui emerge algo muito importante. Às vezes a escolha não é entre aquilo que é claramente contraditório e aquilo que é consistente e coerente. E fácil estabelecer um contraste entre o líder de seita Jim Jones e Jesus. O desafio maior surge quando aquele que reivindica status divino pode ter alguns aspectos singulares, embora
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cubra uma multidão de ensinos contraditórios e um estilo de vida questionável. Pessoas ingénuas cometem um erro fatal quando juram lealdade a um sistema de pensamento concentrando-se em seus benefícios e ignorando suas contradições. Toda a vida daquele que faz reivindicações proféticas ou divinas deve ser observada à luz dos seus ensinamentos. Numerosas questões históricas e filosóficas entram em cena quando avaliamos seriamente tais reivindicações. E exatamente este ponto que torna Jesus tão singular. Toda a sua vida e seus ensinamentos podem ser submetidos ao teste da verdade. Cada aspecto do seu ensino é um elo num todo maior. Cada faceta é como a face de um diamante, que vai refletindo a luz à medida que é virado. Supomos, neste estágio da história do pensamento, que os antigos eram mais facilmente enganados do que nós e que nós chegamos numa época em que, na verdade, a credulidade que mostramos faria os antigos estremecerem. Se alguém nega este fato, basta perguntar aos propagandistas o que vende mais: a forma ou a substância. Várias vezes nos Evangelhos as pessoas desafiavam Jesus a dar um sinal que comprovasse suas reivindicações. Não eram pessoas ingénuas. Vemos que praticamente em todas as ocasiões o desafio culminou na realização de um milagre. Eles nem se satisfaziam com os sinais que testemunhavam. Sempre queriam mais. Por exemplo, em João 6:30, a exigência de um milagre segue a multiplicação dos pães. Logo depois do milagre, os céticos lembraram Jesus de que Moisés alimentara o povo no deserto com o maná. "Que sinal [tu] fazes para que o vejamos e creiamos em ti?" (ênfase acrescentada). No Evangelho de Mateus, a exigência por um sinal veio depois da cura de um homem surdo e mudo (12:22-45). Esses fatos nos dão uma ideia de quem eram os oponentes de Jesus e por que ele respondeu da forma que fez. Quando os fariseus e os mestres da lei exigiram um sinal em Mateus 12, ele replicou com palavras duras: Uma geração má e adúltera pede um sinal; mas nenhum sinal lhe será dado, senão o do profeta Jonas. [...] Ninivitas se levantarão, no
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Juízo, com esta geração e a condenarão; porque se arrependeram com a pregação de Jonas. E eis aqui está quem é maior do que Jonas. A rainha do Sul se levantará, no Juízo, com esta geração e a condenará; porque veio dos confins da terra para ouvir a sabedoria de Salomão. E eis aqui está quem é maior do que Salomão. (vv. 39, 41,42) Jesus estava afirmando que a motivação deles para exigir um sinal revelava que não buscavam sinceramente a verdade; além disso, sua resistência à verdade, apesar de serem religiosos, fazia com que os pagãos duros de coração parecessem melhores. Em outras palavras, não era a ausência de sinais que os perturbava. Era a mensagem por trás dos sinais que provocava o desconforto. Se Jesus pudesse provar quem era, as implicações para eles seriam catastróficas. Tudo o que buscavam e possuíam, cada vestígio do poder que gozavam - dependia da capacidade de determinarem o destino de outras pessoas. Às vezes a religião se torna um enorme obstáculo para a verdadeira espiritualidade. A ponta aguçada da flecha verbal de Jesus acertou um nervo exposto quando ele disse que mesmo um povo homicida como os ninivitas era mais honesto do que eles. Por quê? Porque a pregação de Jonas em Nínive resultou num arrependimento nacional de tal grandeza que entrou para a história. A sabedoria de Salomão foi tão amplamente reconhecida que pessoas viajaram longas distâncias apenas para ouvi-lo. Resumindo, Jesus estava dizendo que a mensagem em si conquistou o coração dos pagãos, mas aqueles que afirmavam possuir fervor espiritual estavam fugindo das implicações daquilo que já sabiam ser verdade. Ele demonstrou mais por meio de sinais e da persuasão do que Jonas, mais beleza e profundidade nos pensamentos do que Salomão. Jonas não foi o autor dos milagres. Jesus era. Salomão não era a fonte da sabedoria. Jesus era. No entanto, tal diferença não significava nada para eles. Dali em diante, durante todo o caminho até sua morte na cruz nas mãos deles, Jesus provou que não era evidência que eles busca-
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vam, mas o controle dos seus empreendimentos, mesmo à custa da verdade. Eu sugeriria que o ceticismo de alguns em nossa época pode bem proceder da mesma motivação. A principal diferença entre as pessoas comuns de hoje e as pessoas do tempo de Jesus é que ele estava tentando estabelecer a si próprio como o Messias para uma audiência que pelo menos acreditava na existência de Deus. Só assim podemos apresentar as evidências de que Jesus é Deus encarnado. Para as mentes religiosas, o desafio é mais complexo. Como estabelecemos que Jesus é o único caminho a Deus? Onde encontramos o ponto em comum para iniciar? FÉ E RAZÃO A fé nem sempre foi um elemento suspeito como é em nossos dias. Os hebreus e os gregos tinham compreensão da fé. É verdade que havia algumas diferenças, mas a fé continuava tendo legitimidade. Atualmente, se a fé é admitida, é vista como a fé para ter fé. Ela é empacotada como uma questão privativa e banida da esfera intelectual. "Todos têm de ter algum tipo de fé", dizemos em tom sarcástico. "Se não fosse pela minha fé, eu jamais teria conseguido", ouvimos as pessoas dizendo. Fé em quê? - alguém pode perguntar. Neste tipo de fé, muitas vezes o foco está em tudo menos na verdade e em tudo que concorda com o pragmatismo - "Para mim funcionou, seja ou não verdade". Tais pronunciamentos nos tornam vulneráveis aos profissionais da fé dos nossos dias. E tempo de fazermos uma "purificação do templo" de nossa mente e encararmos a realidade. Primeiro, devemos compreender claramente o que a fé não é antes de estabelecermos o que ela é. A fé mencionada na Bíblia não é a antítese da razão. Não é apenas a vontade de crer, não obstante os elementos contrários. Não é uma predisposição de forçar cada peça de informação a fim de encaixá-la no molde dos desejos pessoais. No sentido bíblico, a fé é substantiva, baseada no conhecimento de que aquele em quem a fé é baseada provou ser digno de confiança.
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Em sua essência, fé é a confiança na pessoa de Jesus Cristo e em seu poder, de modo que, mesmo quando seu poder não serve aos meus propósitos, minha confiança nele permanece, devido à pessoa que ele é. Para o cristão, a fé é a resposta da confiança baseada em quem Jesus afirmou ser, o que resulta numa vida que leva mente e coração a um compromisso de amor a ele. Será esta uma resposta irracional baseada em tudo o que Cristo demonstrou ser? Cada indivíduo que chega a este tipo de fé no Deus único e verdadeiro faz isso por meio de lutas diferentes. No Antigo Testamento, Moisés foi o exemplo clássico de como a fé foi construída em alguém para quem as implicações da confiança não eram fáceis. Deus o buscou incansavelmente até que ele compreendeu que o Deus a quem servia esperava sua confiança e que provaria a si próprio, antes e depois da demonstração de confiança. Ao longo de sua jornada, Deus lhe deu o suficiente para demonstrar quem era, mas deixou a prova suprema para o final de sua jornada da fé. Por outro lado, Abraão é mostrado como alguém que tinha tanta sede de Deus que estava disposto, com um mínimo de provas externas, a deixar seu lar e construir para a posteridade uma comunidade de fé no Deus vivo. No entanto, mesmo no seu caso, cada passo em seu processo de edificação da fé foi dado com a confirmação divina. Deus lida com todo tipo de pessoas, aquelas que anseiam por mais evidências e aquelas para quem poucas evidências já são suficientes. Entretanto, ele opera sempre em harmonia com a revelação do seu caráter. Note, porém, que há certa confusão aqui. A primeira é a da confiança. Jesus afirmou ser a expressão suprema de Deus. O verdadeiro crente confia que ele disse a verdade. Tudo o que ele disse e fez sustenta tal afirmação; do mesmo modo, nada do que disse ou fez contraria essa afirmação. Já disseram que a natureza humana abomina o vácuo; isso deve ser verdade também em relação à nossa fé. Ninguém vive confortável numa fé vazia. Deve haver ambos: a substância da fé e o objeto da fé. No entanto, há um segundo mal-entendido comum sobre fé. Muitas vezes supomos que a fé é uma espécie de muleta para aqueles
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que estão feridos ou precisam de algum tipo de intervenção transcendente numa situação da qual não podem escapar sozinhos. Com frequência ouvimos testemunhos de fé dados por enfermos e por aqueles que têm doenças terminais. Supomos que se tratem das mais elevadas expressões de fé. Sem dúvida, a fé que permanece firme nas tempestades da vida é uma fé invejável. Posso sugerir, porém, que na realidade esse tipo de situação é muitas vezes a conscientização do teste da fé do indivíduo. Uma fé igualmente viável é demonstrada quando mostramos dependência de Deus no meio do sucesso e quando tudo vai bem. Esse tipo de fé reconhece cada momento da vida e cada sucesso como um dom de Deus. Posso ilustrar este ponto de duas formas distintas e contrastantes. Alguns anos atrás, tive o privilégio de conhecer um casal chamado Mark e Gladys Bliss; ambos trabalharam como missionários no Irã durante catorze anos. Nós nos encontramos numa reunião de cristãos iranianos. No decorrer da noite, nosso anfitrião iraniano me chamou de lado e me contou a história dos Bliss. Disse que em 1969, Mark e Gladys estavam num carro, junto com os filhos e alguns amigos, indo visitar uma igreja nova a alguns quilómetros de Teerã. Aquele homem me disse: "Eu era pequeno, e eles passaram em minha casa para que eu fosse junto. No entanto, não pude ir". Durante a viagem, eles sofreram um terrível acidente, no qual os três filhos dos Bliss - Karen, de 13 anos, Debbie, de 12 e Mark, de apenas 3 anos de idade — morreram. O outro casal que estava no carro perdeu o bebé de seis meses na tragédia. (O pai do bebé morreu como mártir 25 anos mais tarde. Haik Hovsepian foi esfaqueado por causa de seu amor e serviço a Jesus Cristo. Evidentemente, a tragédia anterior não diminuiu sua fé.) Ao ouvir essa história, olhei para Mark e Gladys Bliss, e meu coração deu um salto. Como era possível mostrarem tanta paz depois de terem sepultado os três filhos, todos em tenra idade? Tal perda parece grande demais para ser contida dentro do coração. "O testemunho deles tornou-se uma luz brilhante em nossa comunidade",
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disse o anfitrião. "Só conseguiram superar por causa da fé em Deus." Contraste este fato com o seguinte. Há alguns anos, fui convidado para ir ao Oriente por um empresário para falar numa reunião de pessoas chamadas de executivos "colarinho de diamante". Ele próprio era conhecido como uma das pessoas mais ricas do seu país. De fato, posteriormente fiquei sabendo que era um dos homens mais ricos do mundo. Quando me encontrei com ele, perguntei-lhe o que o tinha levado a crer em Jesus Cristo. Ele respondeu: — H á cerca de dezoito meses eu disse à minha esposa: "Tenho tudo na vida, mas ainda sinto-me vazio. Não sei o que fazer. Creio que preciso de Deus". Sua esposa concordou. Ali eles começaram a buscar e encontraram Jesus Cristo. Nada de dramático. Nenhuma grande cruzada. Foi apenas durante a participação regular numa reunião de estudo bíblico. Ali eles entraram em sintonia com a riqueza de um novo relacionamento com Jesus Cristo. Será que a fé de um casal é menor do que a do outro? Pode ser que talvez uma fé tenha sido testada mais do que a outra. Certamente, porém, voltar-se para Deus quando todas as suas necessidades materiais já estão supridas é expressar de forma clara que fé em Deus é confiar nele, mesmo quando se tem outras fontes de segurança. Jesus disse que era quase impossível que os ricos assumissem tal compromisso. Graças a Deus, porém, ele terminou dizendo que para Deus era possível. Veja bem, essa é a forma como fomos designados por Deus. Uma das coisas mais chocantes relacionadas à vida é que ela não começa com a razão e termina com a fé. Ela começa na infância com a fé e é sustentada pela razão por meio dessa fé ou pelo abandono cego da razão em favor da fé mal direcionada. A mente infantil tem uma capacidade bastante limitada de confiar na razão e nas informações. No entanto, seja descansando no ombro ou se alimentando no seio materno, seja correndo para os braços do pai, ela faz isso devido a uma confiança implícita de que aquele ombro irá acolhê-la, que o leite irá sustentá-la e que aqueles braços irão ampará-la. Se a qualquer
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momento essa confiança é testada, será o caráter dos pais que provará se a confiança é sábia ou tola. A fé não descarta a razão. FÉ E O IRRACIONAL Há outro lado da questão. Jesus lembrou a seus seguidores que a submissão da vontade pode ser algo enganador quando se volta contra os braços de Deus. A tendência do coração humano é tão desafiadora que todas as gerações encontram formas de desafiar as orientações de Deus. Este ponto é crítico no entendimento de que, seja qual for a prova oferecida em qualquer época da história, sempre exigiremos algo mais. Jesus disse: A que, pois, compararei os homens da presente geração, e a que são eles semelhantes? São semelhantes a meninos que, sentados na praça, gritam uns para os outros: Nós vos tocamos flauta, e não dançastes; entoamos lamentações, e não chorastes. Pois veio João Batista,
não comendo pão, nem bebendo vinho, e dizeis: Tem demónio. Veio o Filho do Homem, comendo e bebendo, e dizeis: Eis aí um glutão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores! Mas a sabedoria é justificada por todos os seus filhos. Lucas 7:31-35, ênfase acrescentada Por meio destas palavras, Jesus denunciou severamente as inclinações da vontade humana. Quando João os advertiu da severidade da lei, acusaram-no de possessão demoníaca porque queriam mais liberdade. Quando Jesus veio e se envolveu com os marginalizados, chamaram-no de hedonista porque queriam a rédea mais curta da lei. Jesus, porém, declarou que a sabedoria se revela pelo que produz. Não é preciso olhar muito para ver em nossa sociedade a total ausência de sabedoria, porque não compreendemos nem a lei nem a graça. Para tal mentalidade, a fé sempre será uma caricatura de um sintoma de credulidade. Jesus não hesitou em mostrar o blefe deles, assim como mostra o nosso. No entanto, ele virou a mesa sobre eles e lembrou que a falta de fé naquilo que sabiam ser verdade falava mais sobre o caráter deles do que as evidências. Creio que este é o elemento essencial que muitas
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vezes falta na discussão da fé. Sim, há o componente do conteúdo que fala da verdade. Sim, há o componente do amor que fala sobre o misto de emoção e compromisso. Mas, há também o componente da honestidade que fala da confiabilidade ou da integridade do indivíduo. E aqui que a linha de batalha é publicamente desenhada. É aqui que a verdade sobre a razão é revelada. O VERDADEIRO CONFLITO Um artigo publicado recentemente no jornal Times da Inglaterra, intitulado "A Fúria da Razão" e escrito por Matthew Parris, é bem típico do pensador que afirma ser amante da razão contra a irracionalidade da religião. Ele fundamenta sua reivindicação num desejo de Bertrand Russell, Thomas Paines e David Hume de uma volta ao passado que nos liberte do açoite da "tolice religiosa" ao redor. Não posso repetir aqui tudo o que ele disse, mas quero responder a pelo menos uma de suas invocações. Repetindo as palavras de Blake, ao chamar Milton — "O Milton, tu devias estar vivo neste momento; a Inglaterra precisa de ti!" —, Parris suplica: "O David Hume, devias estar vivo neste momento; precisamos de ti". 3 David Hume, que viveu no século XVIII, foi um dos filósofos mais veementes a contender sobre a natureza factual da ciência contra o que ele chamava de irracionalidade da religião. Era totalmente cético, e seu ataque filosófico contra a natureza das crenças religiosas ecoa até hoje nos recintos académicos. Hume questionava abertamente até a possibilidade dos milagres. O escritor do artigo no Times, Parris, cita as famosas palavras de Hume, as quais muitos céticos têm usado repetidamente sem ponderar nelas com cuidado: "A religião cristã não somente começou com milagres, como até os nossos dias não pode ser crida por qualquer pessoa razoável sem eles". Estas foram as palavras de Hume e até este ponto, tudo bem. Agora, porém, note o que Hume diz sobre qual deve ser o teste para qualquer coisa significativa:
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Se nos chega às mãos qualquer volume, seja de divindade ou algo da escola metafísica, por exemplo, devemos perguntar: Ele contém algum raciocínio abstraio concernente a quantidade ou número? Não. Contém algum raciocínio experimental concernente a matéria de fato ou de existência? Não. Então, atire-o no fogo, pois não contém nada além de sofisma e ilusão.4 Citando essas linhas com um ar de triunfo, Parris parece pensar que um golpe devastador foi aplicado na religião, de forma que agora ela jaz inconsciente diante da estupenda estatura da ciência. Todas as religiões foram estigmatizadas como nada além de "sofisma e ilusão" porque seu "volume de divindade" não passa no teste da matemática ou da ciência. Se uma afirmação não se encaixar em uma dessas categorias, deve ser "atirada no fogo". O único problema com o teste de significado de Parris, citando Hume, é que o próprio teste não passa no teste. A grande afirmação de David Hume não é matemática e nem científica. Se, para ter significado, uma afirmação tiver de ter respaldo matemático ou comprovação científica, então a afirmação de Hume é em si desprovida de significado. Trata-se de um solvente filosófico que dissolve a si mesmo. O imperador não tem roupas, embora se vanglorie de vestir os mais finos tecidos. Que atitude arrogante diante de uma mentalidade tão estreita! Na verdade, é este tipo de irracionalidade que perdeu a visão de si própria! A Bíblia, de fato, fala das pessoas que olham no espelho e depois se afastam, esquecendo-se da própria aparência. Hoje em dia são abundantes os escritores como Parris, que se gabam de viver sob a clara luz da razão e desejam libertar o mundo das trevas das crenças religiosas. Apenas exteriormente são mais sofisticados do que a mulher que disse: "Se você deseja crer que ele existe, então ele existe". O raciocínio oco deles não serve mais para nada. Recentemente abordei essa crítica de Hume, na Universidade Oxford; no final, um estudante disse: —Certo, então nós somos irracionais—. Nossa conversa subsequente podia se encaixar na categoria de tragédia ou comédia, dependendo do ponto de vista.
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É lamentável que tantas pessoas estejam vivendo nas trevas da falta de razão, agarrando-se ao ceticismo absoluto. As profecias, a pessoa e as obras de Cristo, sua ressurreição e muitas outras afirmações têm pontos de verificação na história. O que os naturalistas fazem com eles? Não, a fé cristã não é um salto no escuro; é uma confiança bem posicionada na luz - a Luz do Mundo, que é Jesus. No entanto, esta é apenas a metade do problema dos naturalistas. Alguns anos atrás, eu estava jantando com alguns eruditos, muitos deles cientistas. Era um grupo agradável, e eu estava honrado de estar com eles. Em dado momento, nossa discussão enveredou em direção do conflito entre o ponto de partida naturalista — natureza e somente a natureza — e o ponto de partida sobrenaturalista, ou seja, que Deus é a única explicação suficiente para nossa origem. Fiz algumas perguntas. — Se o Big Bang de fato foi onde tudo começou [ao que se pode bem concordar, pelo menos neste ponto do pensamento científico], posso perguntar de onde veio o Big Bang? Como eu previa, a resposta deles foi que o universo tinha diminuído até o ponto da singularidade. —Não é correto afirmar que a singularidade, conforme definida pela ciência, é um ponto no qual todas as leis físicas entram em colapso?— eu insisti. —Exatamente —responderam. —Então, tecnicamente, o ponto de partida de vocês também não é científico. Houve silêncio, e as expressões faciais demonstravam o esforço mental para encontrar uma escapatória. Mas, eu tinha outra pergunta. Perguntei se concordavam que quando a visão mecânica do universo tinha se tornado a principal influência, pensadores como Hume tinham repreendido os filósofos por adotarem o princípio da causalidade, aplicando-o a um argumento filosófico para a existência de Deus. A causalidade, ele advertiu, não podia extrapolar da ciência para a filosofia. Eu acrescentei: —Agora, quando a teoria quântica entra em foco, o elemento aleatório no mundo subatômico é colocado como base
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para a casualidade na vida. Vocês não estão fazendo a mesma extrapolação sobre a qual nos advertiram? Novamente houve silêncio, e então um homem disse com um sorriso meio debochado: —Nós cientistas parecemos manter uma soberania seletiva sobre o que permitimos que seja transferido para a filosofia e o que não permitimos. Esta é a verdade, em termos nus e crus. A pessoa que exige um sinal e ao mesmo tempo já determinou que tudo o que não pode ser explicado cientificamente não tem sentido não está apenas trapaceando; está perdendo em seu próprio jogo. A M E N T E P O R DETRÁS D O Q U E S T I O N A D O R Há mais uma coisa que precisa ser dita sobre a exigência de sinais. Será que a própria exigência não é um sinal? Afinal, a razão para se pedir um sinal é que somos seres inteligentes. Buscamos evidências porque pensamos, e o pensamento só pode ser resultado de uma mente. No entanto, nossa mente não poderia justificar nossa propensão para a razão se não houvesse uma razão suprema e se não houvesse uma mente por trás da existência de nossa mente, porque o perfil dela é o resultado de informações complexas. Temos de nos maravilhar não somente pelo que a mente busca, mas pelo que ela é. Lewis Thomas faz o seguinte comentário em sua obra Medusa andthe Snail sobre a riqueza das informações no código genético humano: A mera existência daquela célula deve ser uma das maiores maravilhas da terra. As pessoas deviam andar por aí o dia todo, desde a hora em que acordam, exclamando umas às outras em surpresa sem fim, falando somente naquela célula... Se alguém conseguir explicá-la, alugarei aeroplanos, talvez toda uma frota deles, para que desenhem no céu um ponto de exclamação após o outro, até que todo o meu dinheiro se acabe.1 Falando sobre a mesma célula humana, Chandra Wickramasinghe, professor de matemática aplicada na Universidade de Cardiff, País de Gales, lembra a seus leitores que a probabilidade estatística
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de se formar uma única enzima, a pedra angular do gene, o qual por sua vez é a pedra angular da célula é de 1 em 1O40-000. Significa que o número de tentativas para a formação da enzima seria maior do que o número de átomos em todas as estrelas existentes em todas as galáxias do universo conhecido. Embora seja budista, o Dr. Wickramasinghe concede esta noção sobrenatural. 6 Tal evento é tão "impossível" que Francis Crick, o cientista ganhador do Premio Nobel que ajudou a desmembrar o código do D N A humano, disse tratar-se de "quase um milagre". 7 Resumindo, o teste de David Hume e a busca de Bertrand Russell por evidências forçam o indivíduo a se perguntar quem precisa ter mais fé: o cristão que usa a mente para confiar em Deus ou aquele que, sem fazer qualquer tentativa de explicar como sua mente passou a existir, usa a mente assim mesmo para exigir sinais e duvidar de Deus? Quando pediram a Russell que explicasse a existência do universo, ele disse: "Ele apenas está lá". Não é uma explicação. E uma divagação. Há muito tempo, o rei Davi falou em seu salmo de louvor a Deus: "Graças te dou, visto que por modo assombrosamente maravilhoso me formaste" (SI 139:14). Alguns anos atrás, li uma piadinha num jornal. Um homem estava deitado no convés de um transatlântico luxuoso. Ele se virou para um estranho que estava deitado ao seu lado e confidenciou: — Consegui pagar este cruzeiro porque recebi 10 mil dólares do seguro, por causa de um incêndio em minha casa. O estranho replicou: —Eu consegui pagar porque recebi 20 mil dólares do seguro, por causa de uma inundação que destruiu minha casa. O primeiro homem ficou em silêncio, depois olhou para o outro e perguntou: — C o m o se provoca uma inundação? É fácil começar incêndios e inundações tendo fósforos e água. Como um universo, que se desenvolveu a partir do nada, pode imprimir em cada cadeia de D N A humano informações específicas em número suficiente para encher seiscentas mil páginas de informações, a partir do nada? A inteligência é intrínseca à nossa formação. Jesus advertiu contra tomarmos aquilo que é intrínseco e manipular-
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mos num cenário que exclui outras facetas igualmente intrínsecas que nos aproximam de Deus. Resumindo, portanto, a fé em Jesus Cristo é um compromisso cognitivo, passional e moral com aquilo que suporta o escrutínio da mente, do coração e da consciência. Não é uma escapatória que vem em nosso socorro quando a vida sai do controle. E submeter cada ameaça e possibilidade que a vida nos apresenta ao desígnio de Deus. Por isso Jesus questionou a noção de que mais evidência teria gerado mais fé. George Macdonald disse anos atrás que "dar a verdade para quem não a ama é somente dar mais razões para falsas interpretações". A M A I O R DE T O D A S AS PROVAS Agora Jesus coloca o texto de sua resposta contra o teste supremo de sua afirmação: "Destruí este santuário, e em três dias o reconstruirei". Que maior prova ele poderia oferecer do que ressuscitar dentre os mortos? O naturalismo é compelido a acreditar que a morte é a cessação da vida, quando toda a atividade cerebral cessa em caráter irreversível. Há um senso de fim em relação à morte que séculos de discussão não foram capazes de dissipar. O filósofo Albert Camus disse com um suspiro: "A morte é o único problema da filosofia". Se a morte pudesse ser vencida de alguma forma, a vida poderia ser redefinida. Jesus deu a maior prova de sua autoridade predizendo corretamente sua morte e o tempo de sua ressurreição física. Dentre todas as pessoas, as autoridades do templo deviam estar atentas a esta promessa, mas jamais sonharam que ela de fato se realizasse. Tinham certeza de que se tratava de uma bravata vazia. O cumprimento da predição de Jesus revela sua unicidade acima de todos os seus antagonistas. E importante notar que Jesus não predisse meramente a ressurreição espiritual. Seria uma saída fácil. Ele predisse uma ressurreição física, facilmente verificável. Depois que foi colocado no túmulo, os líderes do templo só teriam de preservar seu cadáver ali para provar a
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falsidade de sua afirmação. Mas eles não puderam fazer isso. As coisas aconteceram exatamente como Jesus predissera. A esperança que ele traz reside na demonstração de que a morte foi vencida. Paulo, reconhecendo a afirmação cristã, disse que se a esperança que procede da ressurreição de Cristo não for verdadeira, "somos os mais infelizes de todos os homens" (1 Co 15:19). Foi o encontro com o Jesus ressuscitado que transformou um indivíduo obstinado, um assassino chamado Saulo de Tarso no apóstolo Paulo. No entanto, a unicidade de sua ressurreição não é deixada como uma esperança "futurista". É vinculada a privilégios e responsabilidades presentes. É neste ponto que Jesus se moveu além do pretexto deles e do seu texto para um contexto maior para todos nós. Q U A N D O OS C O R P O S N Ã O FAZEM D I F E R E N Ç A No início deste capítulo, afirmei que houve uma razão para Jesus usar o conceito do corpo para falar sobre o templo. Suas palavras de fato carregavam um sentido duplo, tanto para os céticos como para os religiosos. A Bíblia diz que os que o ouviram dizer aquelas palavras não reconheceram que ele estava falando sobre o templo do seu corpo, chamado por ele de "templo de Deus". Este é o contexto dentro do qual ele deu sua resposta. Ele elevou os olhares acima das paredes de pedra e argamassa para o lugar onde ele busca habitar — dentro de cada ser humano. O seu corpo e o meu são o seu templo. Esta é uma extraordinária atribuição de santidade sobre o que significa ser humano. Significa que seu corpo é digno de respeito e de reverência. Isso não somente prova que a autoridade de Jesus é diferente de qualquer outro candidato à divindade; prova também que sua aplicação e implicação apresentam um universo de diferenças. Por favor, preste bastante atenção no que estou dizendo. Em todas as religiões panteístas e no pensamento da Nova Era, o corpo é visto como uma extensão ou continuação do universo. O famoso orador e escritor Deepak Chopra é'um exemplo clássico disso. Ele é um expositor de temas sobre espiritualidade, riqueza e sucesso e é o representante de uma cosmovisão panteísta em sua essência, e que se
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orgulha de misturar naturalismo com espiritualidade. Chopra defende a ideia de nossa unidade com todas as partes do universo. Ele argumenta que, em sua causalidade, o mundo subatômico proporciona a base para toda a vida. A partir da causalidade e da unicidade cósmica, encontramos nosso ser, nossos valores comuns e nossos objetivos espirituais. Eis a explicação que ele apresenta em seu livro The Seven Spiritual Laws ofSuccess: No nível material, você e [uma] árvore são compostos dos mesmos elementos reciclados: muito carbono, hidrogénio, oxigénio, nitrogénio e outros elementos em quantidades menores. Você pode comprar esses elementos numa loja pagando alguns dólares. [...] A verdadeira diferença entre você e a árvore está na energia e na informação.[...] Seu corpo não está separado do corpo do universo, porque nos níveis da mecânica quântica não há limites bem definidos. Você é como um meneio, uma onda, uma flutuação, uma convulsão, um redemoinho, um distúrbio localizado no campo quântico maior. Este campo quântico maior — o universo — é o prolongamento do seu corpo.8 Devemos nos perguntar como tal raciocínio pode de fato reter a integridade lógica. Com efeito, ele viola as disciplinas da ciência e da religião. Ele reduz meu ser à simples matéria enquanto o espiritualiza, e exalta a mente à supremacia espiritual enquanto a coloca no nível natural. Basear toda uma filosofia de vida no mundo subatômico impessoal e ao mesmo tempo defender sua causalidade e caráter absoluto é dar a impressão de fazer mágica com as palavras. Chopra faz extrapolações filosóficas que são elas mesmas um exagero. Pode-se argumentar que se suas deduções forem verdadeiras, sua filosofia não é nada mais do que uma onda, ou um distúrbio localizado. Tal é a sedução e a redução desse tipo de raciocínio, supostamente feito em nome da sabedoria e do sucesso. O mundo de Chopra da essência humana e a descrição da dignidade humana feita por Jesus estão em extremos opostos. Uma verdade extraída da obra de Shakespeare, The Merchant of Venice, proporciona uma boa ilustração. Basicamente a obra trata da
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história de um homem que tomou dinheiro emprestado do amigo de um amigo. O homem que emprestou, Shylock, colocou seu amigo António como responsável pelo empréstimo, até que fosse pago. Segundo o acordo firmado entre ambos, se a dívida não fosse paga, Shylock teria direito a arrancar um pedaço de carne do corpo de António. Como era de esperar, os navios de António se perderam no mar, e, quando chegou a data do pagamento da dívida, ele não teve como pagar. Excitado, Shylock exigiu seu pedaço de carne a ele devido de acordo com a lei. O juiz, porém, sendo um homem comedido, declarou: "Você pode tirar seu pedaço de carne, mas, se no processo derramar uma só gota de sangue, terá de pagar com seu próprio sangue". Shylock foi derrotado em seu próprio jogo. Tornar o corpo humano inviolável e ao mesmo tempo reduzi-lo à condição de simples matéria é tão fácil quanto tirar um pedaço de carne sem derramar sangue. Os naturalistas não podem ter seu pedaço de carne sem tirar dele a vida. Através da substância da carne humana flui a vida. A vida é mais do que matéria. As religiões que tentam manter o corpo sagrado e ao mesmo tempo negam a mão do Criador estão no mesmo barco dos céticos que tentam proteger a vida e ao mesmo tempo dizem que ela não é nada mais do que matéria. Todo o processo de profanação que sufoca nossa cultura baseiase nesse esforço para se compreender o lugar e a santidade do corpo. O direito de toda vida individual, mesmo aquela que ainda está no útero materno; o prazer e a consumação dos deleites sexuais, reservados à santidade do matrimónio; a injunção contra o suicídio; o cuidado e a proteção da saúde; a injunção contra o homicídio e o mandamento de amarmos o próximo mais do que a nós mesmos e buscarmos o seu bem — tudo isso flui do fato de que este corpo torna-se a habitação de Deus. Nosso mundo seria um lugar diferente se compreendêssemos este sublime privilégio. Se perdermos de vista esta verdade, o que mais nos resta? Pornografia e a cruel degradação de homens, mulheres e crianças; morte no útero em nome dos direitos pessoais; a falência da família por uma miríade de razões; a profanação do sexo na indústria do entrete-
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nimento; violência em proporções alarmantes. Só podemos chorar pelo derramamento de sangue e pela perda. Ao perder de vista o elevado valor que Deus atribui ao corpo humano, lançamo-nos em queda livre e ficamos à mercê da ganância, da crueldade e da luxúria. Numa de minhas viagens, conheci uma mulher que trabalhava numa agência internacional que cuida de crianças. Em nossa conversa, ela confessou que, depois de tudo o que vira em seu trabalho, era muito difícil manter-se otimista quanto ao futuro do mundo. Perguntei-lhe por que se tornara tão cética. Ela pensou e depois começou a me contar uma história de partir o coração. Citou uma cidade onde estivera recentemente e descreveu o horror de tudo o que acontecia ali. N u m bairro da cidade, chamado "Alameda da Serpente", os homens se reuniam e bebiam uma mistura de álcool e sangue de cobra. Depois que a bebida fazia efeito, eles se dirigiam a uma sala nos fundos onde usavam crianças para satisfazer seus desejos sexuais. Aquela mulher disse que tinham encontrado ali um bebé de onze meses, em estado deplorável. Muitas crianças eram mortas depois de usadas e muitas morriam durante o próprio ato. Eu perguntei: — E onde estavam os pais dessas crianças? —Estavam participando— ela respondeu. Como é possível atribuir legitimidade a atos como esses? O u será mais fácil fingirmos que não acontece? A violência e a vileza são decorrentes de uma mente que perdeu o respeito pelo corpo humano, enquanto este perdeu seu caráter sagrado. Os horrores que ocorrem perto de nós seguem o mesmo raciocínio, embora as histórias sejam diferentes. Em março de 1998, dois garotos (um de onze e outro de treze anos) dispararam armas de fogo na escola onde estudavam em Jonesboro, Arkansas, matando quatro meninas e uma professora e ferindo dez pessoas. Na época, a tragédia foi noticiada como o maior massacre numa escola na América. Na noite dos disparos, muitas pessoas estavam sendo aconselhadas na sala de espera do hospital. Amigos e parentes aguardavam notícias das vítimas. Toda a cena era de desolação e horror. Uma mulher estava sentada sozinha num canto, parecendo desconsolada. Um conselheiro foi até ela para ver se precisava de ajuda
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e descobriu que era a mãe de uma das meninas mortas. Ela não tinha marido, nem amigos e nem parentes. — Eu vim aqui para ver como posso pegar o corpo da minha filhinha—, ela disse. No entanto, o corpo tinha sido transferido para outra cidade, para ser submetido à autópsia. 9 "Eu vim para pegar o corpo da minha filhinha." Aquela mulher não estava ali para pegar uma onda ou uma flutuação. Estava ali para pegar o corpo de sua filha e não apenas uma extensão do universo. Que lembrete triste para nós! Com nossas atitudes indulgentes, nós banalizamos o corpo humano. Tratamos o corpo como um meio para outras finalidades. No entanto, quando a morte chega, nós nos voltamos para ele e o valorizamos, porque é a única coisa que nos resta. Jesus deixou claro que o corpo não é apenas diferente dos outros elementos em termos de informação; ele tem também um propósito diferente. Por isso a ressurreição é física em seu âmago. O corpo é relevante também no sentido eterno e não somente no sentido temporal. UM ELOGIO MEMORÁVEL A implicação final das palavras de Jesus a todos nós é gratificante, pois, se nosso corpo é sua habitação, a adoração eleva-se acima de um local. Em nenhuma outra cosmovisão religiosa é feita esta conexão entre o corpo e o templo. De fato, em todas as outras cosmovisões há uma clara distinção entre ambos. O corpo deve ser submetido a certas regras antes de poder entrar no templo. Listas enormes de prérequisitos cercam a entrada nos assim chamados "lugares sagrados" de adoração. Enquanto escrevia este livro, tive o privilégio de assistir a um festival chamado Thaipusam. Caminhei no meio da multidão e presenciei o que as pessoas faziam no desejo de adorar; minha mente ficou em constante estado de choque. Os devotos envolvidos na cerimónia demonstravam a terrível extensão do que estavam dispostos a fazer para conseguir o favor da divindade. Eles caminhavam
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vários quilómetros com lanças de ferro enfiadas pelo corpo e espetos enormes atravessados nas bochechas e na língua. Cada devoto contava com a ajuda de outro, que prendia cordas nas lanças e puxava na direção oposta, dificultando a caminhada. No final da jornada, eles contavam cem passos até o templo de Senhor Murugan, o segundo filho de Shiva, o deus hindu. E surpreendente perceber que a pele dos devotos não fica dilacerada e o sangramento é mínimo. Todos eles entram em transe. O templo fica agitado quando os participantes chegam e se livram dos aparatos que estiveram carregando; a cerimonia prossegue. N o final, o devoto traz na testa uma marca feita com cinza de estrume queimado e "purificado". Tudo isso é feito para conseguir a bênção da divindade adorada na "santidade" do templo, o lugar de encontro com o seu deus, e receber a bênção do sacerdote. Como surgem tais crenças, tão estranhas? O leitor há de se lembrar do assassinato da primeira-ministra da índia, Indira Gandhi. O crime foi motivado por vingança, porque ela enviara tropas militares ao Templo Sikh, onde havia armas escondidas. Ela foi assassinada para preservar o templo. Jesus teria dito que eles de fato tinham destruído o que deveria ser o seu templo a fim de preservar um local. Mais recentemente, hindus e muçulmanos se envolveram num conflito que causou muitas cenas violentas por causa do local de nascimento (considerado sagrado) de uma divindade hindu, onde tinha sido construída uma mesquita. Ironicamente, esta fúria é o resultado previsível de uma crença que exalta pontos geográficos como locais exclusivos onde Deus é encontrado. Os muçulmanos jamais permitirão que em seu país uma igreja tenha um campanário mais alto do que uma mesquita. Onde já existe uma igreja, é comum construírem uma mesquita mais alta do lado. O islamismo ridiculariza o cristianismo por profanar o nome de Deus, chamando a encarnação de Jesus de blasfémia. No entanto, em sua encarnação, ele exalta o corpo físico, primeiro por ter sido concebido no útero de uma virgem, e depois assumindo a forma humana e concedendo-lhe a mais gloriosa expressão de Deus na carne.
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A história da cristandade não está isenta de perversões. Entretanto, Jesus deixou uma mensagem alta e clara. Nós somos seu templo. Não nos voltamos em certa direção para orar. Não vivemos presos à ideia de ter de ir a certo edifício para usufruirmos da comunhão com Deus. Não existem posturas, tempos ou limitações únicas que restrinjam nosso acesso a Deus. Meu relacionamento com Deus é íntimo e pessoal. O cristão não vai ao templo para adorar. O cristão leva o templo junto consigo. Jesus nos eleva acima do edifício e concede ao corpo humano a mais elevada homenagem, transformando-o em sua morada, o local onde se encontra conosco. Ainda hoje ele vira a mesa daqueles que o transformam em mercado dos desejos, da ganância e da cobiça. Será que esta não era a verdade chocante por trás do gesto da mulher quando derramou o perfume sobre Jesus, conforme descrito em Lucas 7? Por um lado foi um preparativo para sua morte, mas por outro lado ocorreu ali algo maior. Ela era uma mulher de má reputação. Provavelmente ganhava a vida como prostituta. Jesus a acolheu e restaurou a dignidade do seu corpo. Em seu sujo templo terreno, ela ofereceu uma oferta àquele que habitaria naquele templo. Jesus disse que onde o evangelho fosse pregado, a história do que aquela mulher fizera por ele também seria contada. Foi a transação suprema entre a corrupção dela e a pureza dele. Representava o relacionamento transformado entre a habitação e seu ocupante. O apóstolo Paulo disse: "Cristo em vós, a esperança da glória" (Cl 1:27). Que notícia mais gloriosa podemos ter do que descobrir que ele busca habitar dentro de nós? "Que sinal você nos dá?", eles perguntaram. "Destruam este corpo, e dentro de três dias eu o ressuscitarei". Eles não sabiam que ele se referia ao templo do corpo. Por quê? Porque, na ganância e sede de poder, eles se concentraram no templo feito de pedras. Quanto eles perderam explorando outras pessoas, outros templos — e até a si próprios — dentro dos quais Deus desejava habitar! Nenhum outro candidato à divindade teria respondido como Jesus.
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izem que "a verdade é mais estranha do que a ficção". G. K. Chesterton responde por que é assim: "E porque nós fazemos a ficção se adequar a nós". As técnicas modernas só reforçam a capacidade da produção em massa das mentiras. Com esta combinação de propensão e facilidade, convivemos com o fato de que às vezes parece impossível acreditarmos na verdade. Alguns anos atrás, minha família e eu visitamos a cidade de Bedford, na Inglaterra, próximo de onde morávamos (Cambridge). Bem no centro da cidade, há uma estátua enorme do famoso escritor John Bunyan, que viveu no século XVII. A estátua é tão impressionante que algum engraçadinho pintou marcas de pé gigantescas no chão, desde a escultura até um banheiro público próximo. A mensagem implícita (sarcástica ou não) é: João Bunyan está vivo. Todo apreciador de literatura sabe que embora Bunyan tenha falecido há muito tempo, seu brilhante trabalho, O Peregrino, continua vivo. Este livro foi traduzido em mais idiomas do que qualquer outro livro na história, exceto a própria Bíblia. Visitamos um museu construído em sua homenagem, no qual há um exemplar do seu livro em cada língua em que foi traduzido. Ficamos impressionados ao ver pessoas de várias nacionalidades caminhando de sala em sala, olhando as obras exibidas.
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Quando estávamos saindo, comentei com a funcionária da recepção: —Não é surpreendente que um simples livro, escrito por um homem que consertava panelas, tenha adquirido esta aclamação mundial? Ela respondeu devagar: —Suponho que seja verdade, mas devo confessar que não li o livro. Se não houvesse um piso firme debaixo dos meus pés, acho que teria desmaiado. Incapaz de me controlar, perguntei: — Por que não leu? —Achei muito complicado—, foi a resposta seca. Se o choque pudesse ser medido numa escala, eu acho que estaria perto da nota máxima. O que podemos dizer para uma pessoa que vende ingressos para um museu que deve sua existência a um livro, o qual ela nunca leu? Eu recomendaria que, mesmo que seja por pura curiosidade, ou até pelo desempenho profissional, ela tente ler pelo menos a versão simplificada para crianças, para ter uma ideia vaga do que se trata. Esta ilustração é um exemplo notável de pobreza auto-imposta! E possível alguém ter um tesouro nas mãos e ignorá-lo, concentrando-se mais na embalagem que o envolve. Esta proximidade da verdade e a distância do seu valor ocorre repetidamente em nossa vida. Nas palavras de Chesterton, retemos a areia e jogamos o ouro fora. Ninguém viu esta tragédia de forma mais vívida do que Jesus. As multidões com frequência iam até ele e depois se afastavam agarradas a coisas menores enquanto desprezavam o verdadeiro tesouro que lhes fora oferecido. Muitas vezes ele demonstrou surpresa diante da falta de seriedade deles, incapazes que eram de olhar além da superfície. Uma das ilustrações mais chocantes disso foi o encontro daquelas pessoas com uma verdade tão cativante e tão dramática. A maior tragédia em toda a história é que milhões de pessoas continuam cometendo o mesmo erro, deixando de ler as palavras de Jesus, ou então as distorcendo vergonhosamente. Eu enfrentei uma distorção dessas num desafio público. Eu terminara de dar uma palestra para uma audiência hostil na índia. No
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final, tivemos um tempo para perguntas; subitamente, um homem gritou lá de trás: — O s cristãos são canibais! Jesus promoveu o canibalismo! Não havia absolutamente nenhuma conexão entre o que eu tinha dito e seu comentário explosivo. O ataque simplesmente revelava sua animosidade para com a mensagem da fé cristã. Em minha experiência, embora eu não seja alvo de muitos ataques desse tipo, certamente aprendi a me prevenir contra eles. Nossa inclinação natural é responder à altura, atacando o oponente — escárnio por escárnio, golpe por golpe, insulto por insulto. No entanto, essa não é a solução para tratar com um interlocutor zangado. Tais respostas apenas diminuiriam a eficácia de qualquer argumento. Na verdade, eu sabia por que aquele homem estava fazendo tais insinuações, embora a maioria da audiência estivesse prestando atenção. Minha resposta foi simples: —Por que você diz isso, e qual é a sua fonte? Ele não soube responder. Disse que precisava ir à sua casa e olhar no livro que estivera lendo. Ele na verdade não precisava sair à procura do livro. Eu podia citar o nome do filósofo, bem como a página do livro onde havia tal alegação. Os filósofos ateístas não poupam esforços em sua ânsia de ridicularizar as palavras de Jesus. Assim, eu sabia exatamente o que aquele estudante tinha em mente. Convidei-o a vir à frente para que pudéssemos debater a questão, mas ele recusou o convite. "Os cristãos são canibais!" Sobre o que ele estava falando? Será que já tinha lido a Bíblia? Será que procurara uma explicação para o que tinha lido? Ou será que era nisso que desejava acreditar? Aqueles que cresceram num lar cristão ou que participaram ativamente de uma igreja jamais se demorariam numa tese tão bizarra. No entanto, para aqueles que se tornam cristãos depois de adultos e não estão familiarizados com o ambiente cristão, ou para os céticos que buscam argumentos, uma passagem em particular pode saltar
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das Escrituras e causar um efeito desconfortável. As palavras são diretas e impressionantes. "Este é o meu corpo ... tomai e comei"; "Este é o meu sangue ... bebei dele todos". Estas palavras de Jesus causaram um choque tão grande quando foram proferidas, que podemos compreender a reação do estudante indiano. Lembro-me muito bem de quando eu era criança e ouvia estas palavras impressionantes, domingo após domingo, na igreja que eu frequentava com relutância e displicência. No entanto, minha lembrança mais vívida é que passava o culto inteiro esperando aquelas palavras e não tinha ideia do que elas significavam; na verdade, jamais pensei muito nelas. Eu via as pessoas se encaminhando para frente, ajoelhando-se com as mãos estendidas e recebendo algo que a seguir colocavam na boca. De minha parte, o mais importante era o horário. Eu sabia que quando aquelas palavras eram pronunciadas, estariam faltando cerca de vinte minutos para o final do culto, e dentro de uma hora eu estaria no campo de críquete ou no cinema. Eu estava imensamente próximo de uma das verdades mais sublimes ensinadas e demonstradas por Jesus e ao mesmo tempo tão distante do seu significado. Como a funcionária do museu de Bunyan, eu ignorava as palavras. Agora sei que, para aquele que realmente busca compreender todo o seu significado, sua profundidade é imensurável. Novamente, se devemos seguir a trilha do entendimento, temos de prestar atenção na sequência das afirmações de Jesus. Primeiro o simples, e a seguir o profundo. Creio que seu pronunciamento oferece um elemento do evangelho que faz um contraste único e reluzente com as outras convicções religiosas. I M P U L S I O N A D O S PELO SENSACIONAL A terra estava cheia do céu, E cada arbusto queimava com Deus; Mas somente aquele que enxerga tira a sandália; O resto se senta e colhe amoras.1
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Assim se expressa a poetisa Elizabeth Barrett Browning. Seu poema nos remete de volta ao grandioso relato onde Deus se revelou a Moisés na sarça ardente e o chamou para liderar seu povo para fora da escravidão, para a terra que manava leite e mel. Browning destaca que a epifania não foi para o deleite gastronómico de Moisés. Devo acrescentar também que os trovões e relâmpagos no Monte Sinai não foram para o povo apreciar os efeitos pirotécnicos sobre a paisagem. A manifestação ofuscante e quase assustadora dos elementos, nos dois momentos cruciais para seu povo, apontava para além das forças da natureza, para Aquele que é capaz de controlá-las. A presença inexaurível de Deus marcou aqueles eventos com um esplendor brilhante e magnífico. A falta de visão do povo era inconcebível, chegando a um ponto onde os sinais tornaram-se fins em si mesmos, e Aquele que significava tudo se tornou um meio. Os efeitos especiais tornaram-se atrações, e a figura central foi obscurecida. A humanidade vive em cegueira total, e o erro é repetido em todas as gerações. Foi assim que, séculos depois daqueles eventos, as pessoas continuavam cegas. A multidão seguia o ministério de Jesus e se intrometia em seus momentos a sós. Apresentaram-lhe um desafio ardiloso, exigindo que lhes desse o maná, como Moisés dera ao povo no deserto. Eles jamais esperavam uma resposta como a que receberam. A conversa sobre pão foi a parte mais fácil. As palavras que se seguiram foram chocantes para eles. Quando ele terminou, muitos o abandonaram, dizendo: "Duro é este discurso, quem o pode ouvir?". A verdade, nesta situação, estava além da capacidade de crer porque a mente não estava disposta a ponderar na provisão e, é claro, na implicação. Havia uma grande lacuna entre a expectativa deles e a oferta de Jesus, e eles começaram a se afastar sem esperar uma explicação. Jesus, então, olhou para seus discípulos e perguntou-lhes se também iriam abandoná-lo. Será que era demais para eles também compreenderem? Depois de sua morte, eles iriam lembrar daqueles momentos e ilo que ele dissera. Milénios mais tarde, enquanto a Igreja repete aquelas palavras em praticamente todas as línguas existentes, muitos
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continuam considerando este discurso muito duro e continuam abandonando-o sem compreender. I N T E R P R E T A N D O MAL A ESCRITURA Quando Jesus disse: "Tomai, comei, este é o meu corpo ... Bebei dele todos; porque isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança..." (Mt 26:26-28), ele não estava falando num vácuo cultural, instigando seus discípulos ao canibalismo. Pelo contrário, suas palavras deviam arrancar os ouvintes de uma existência estéril, dominada pela comida, e levá-los ao reconhecimento da fome suprema da vida, que só pode ser saciada com um pão diferente. Foi exatamente naquela jornada liderada por Moisés que ele disse pela primeira vez que o pão físico tem um poder limitado de sustentar. Ele desejava saciar uma fome maior. Para uma cultura com instruções tão específicas sobre as necessidades espirituais, sem mencionar as estritas leis alimentares, somente a ignorância podia gerar a noção de que Jesus estava prescrevendo o consumo de carne humana. A acusação deles de ser um "discurso duro" demonstrou a falta de compreensão. É essa resposta que priva todo ser humano do verdadeiro sentido da vida. Quanto mais pondero nas palavras de Jesus, mais profundamente sou levado a reconhecer por que a fome por algo transcendente está tão arraigada em nosso ser — sim, mesmo nos nossos apetites físicos. Pode ser por isso que não conseguimos extirpá-la, por mais que tentemos. Portanto, é uma perda significativa que um ensino tão profundo tenha sido acolhido com um entendimento tão vazio. Infelizmente, como o estudante na Índia, em vez de receber a verdade que Jesus estava revelando, muitos "se sentam ao redor dela", na posição de filósofos ou de críticos, e "comem amoras". Que contexto nós temos? O que antecedeu a exigência da multidão de ver descer pão do céu? Antes do registro dessa conversa, João já tinha descrito vários milagres realizados por Jesus. O primeiro foi a transformação de água em vinho, onde Jesus demonstrou seu poder sobre os elementos da natureza. Depois João narrou dois episódios de cura, nos quais
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Jesus mostrou seu poder sobre as enfermidades. A seguir, descreveu Jesus multiplicando o lanche de um jovem, alimentando com ele cinco mil pessoas — mostrando seu poder sobre toda a provisão. Finalmente ele relatou a conhecida história de Jesus andando sobre a água — mostrando seu poder sobre as leis naturais. Cada uma dessas histórias é seguida por respostas variadas, desde reverência até ridiculização, desde reações práticas até filosóficas. Captando a beleza da água sendo transformada em vinho, o poeta Alexander Pope disse: "Conscienciosa, a água olhou para seu Mestre e corou". Esta descrição sublime pode ser editada para explicar cada milagre. Em princípio, seria difícil um corpo aleijado se endireitar a um comando do seu Criador? Seria demais para o Criador do universo, que criou todas as coisas a partir do nada, multiplicar pão para a multidão? Aquele que trouxe todas as moléculas à existência não seria capaz de agrupá-las para caminhar sobre elas? Por que as pessoas não faziam esta conexão? Não é próprio da impertinência agarrar o dom e ignorar o doador? O naturalismo trata de arrancar o milagre do seu lugar legítimo, substituindo-o por explicações que desafiam a razão. Aqueles que zombam do fato de Jesus ter caminhado sobre a água esquecem do milagre que ele já tinha operado, ao alterar a composição da água. Pense nisto um momento. Em 18 milímetros de água (cerca de duas colheres), há 6xl0 2 3 moléculas de H 2 0 . Quanto é 6xl0 23 ? Um computador moderno pode realizar dez milhões de cálculos por segundo. Este computador levaria dois bilhões de anos para calcular 6x10 23 . Olhemos de outra maneira. Uma resma de papel tem cerca de 500 folhas e cinco ou seis centímetros de altura. Qual seria a altura de uma pilha de 6x10 23 folhas de papel? Essa pilha iria da Terra ao Sol, mais de um milhão de vezes.2 Mesmo assim, Deus agrupou esta enorme quantidade de moléculas em apenas dois goles d'água. O milagre de caminhar sobre a água é pequeno para Aquele que a criou. A multiplicação dos pães se deu a um simples comando para Aquele que criou a Terra com uma
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ordem (C. S. Lewis disse que um milagre pequeno não é mais fácil de realizar do que um milagre de grandes proporções). Evidentemente, os céticos questionam a credulidade que aceita tais histórias, mas não percebem que quando tomam um gole de água de um copo, estão presenciando um grande milagre. As pessoas e os discípulos que viram Jesus operando o milagre da multiplicação dos pães seguiram-no com intenções deliberadas. Buscavam o poder que acreditavam que tornaria a vida mais deleitável — assegurando barriga cheia e uma provisão inexaurível de pão. Quem poderia culpá-los? Recentemente ouvi sobre um homem que ganhara uma grande soma de dinheiro numa loteria. "Qual foi a maior mudança em sua vida?", perguntaram-lhe. "Agora eu janto fora com mais frequência", foi a resposta. Comida e poder distraem a mente, fazendo-a esquecer da falta de alimento para a alma. A generosidade de Deus, manifestada nos milagres, tornou-se uma pedra de tropeço porque as testemunhas perderam de vista o propósito da obra e almejaram apenas tirar vantagens pessoais. Queriam saber como o lanche de um indivíduo podia alimentar milhares de pessoas e ainda sobrar vários cestos cheios. Como um paralítico de quase quarenta anos de idade podia andar novamente? Será que aquele poder era transferível? Poderia ser comprado? E crucial notarmos que a resposta de Jesus à demanda do povo forma um nítido contraste com o auto-engrandecimento que se esperaria de alguém que se dizia ser o Messias. Em vez de se acalentar com os louvores fingidos e aumentar o número de seguidores, Jesus se esgueirou e saiu do meio da aclamação. De fato, ele chorou ao ver a forma como se enganavam. Ele sabia os motivos e os conceitos errados com os quais conviviam. Querendo apanhá-lo numa armadilha, levantaram esta questão: "Nossos pais comeram maná do deserto... por que você não nos alimenta da mesma forma?" Foi aí que Jesus iniciou sua resposta, levando-os muito além do que tinham planejado ir. No entanto, primeiro ele tentou afastá-los do erro, para poder conduzi-los à sua verdade.
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IGNORANDO O AUTOR Não é surpresa que a primeira tentação que Jesus enfrentou no deserto foi para transformar pedras em pão. "Faça isso", Satanás lhe disse, "e o mundo o seguirá". Qualquer pessoa que já esteve em países onde a fome é exposta publicamente como meio de inspirar compaixão e de se conseguir alguma ajuda pode entender o efeito emocional de tal tentação. Eu mesmo cresci numa terra onde nunca faltavam pessoas famintas. Como o alimento pode se acomodar confortável em seu estômago quando ao seu redor tantas pessoas sofrem pela falta dele? Portanto, não foi uma tentação leve lançada sobre Jesus. O tentador conhecia a força de sua investida. De que outra maneira Deus poderia ser tão relevante, além de providenciar o pão necessário à vida? Como uma religião pode ser boa, se não pode alimentar os famintos? Satanás estava perigosa e dolorosamente próximo da verdade. No entanto, usava uma meia-verdade; a meia-verdade se liga tão intimamente à mentira que a mistura se torna mortal. Faça esta pergunta a si próprio: Que tipo de lealdade resultaria se a única razão da afeição para com o líder é que ele distribui pão entre seus seguidores? Ambos os motivos seriam errados — do provedor e do receptor. Estes são os termos do sistema de recompensa e castigo que motiva mercenários, cria cumplicidade, mas não inspira o amor. Seu apelo é logo esquecido, quando é usado em forma de sedução ou quando é retido para instilar o medo. A dependência sem comprometimento sempre buscará meios de romper suas cadeias. A tentação que Satanás colocou diante de Jesus o espreitou durante todo o seu ministério, mesmo quando a multidão o apertava exigindo uma provisão inesgotável de pão. Política de poder por meio da abundância não é uma invenção nova. E a forma usada pelos demagogos para controlar as massas. Jesus esforçou-se para mostrar ao povo que a preocupação com pão como propósito primário e expressão de satisfação tinha alterado perigosamente o objetivo real do pão e o verdadeiro significado da vida. Em nossa vida frenética, esta verdade não é assimilada mais facilmente do que era na antiga Palestina. Em nossa sociedade voltada
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para o consumo, nosso apetite continua sendo grande, sempre carecendo de satisfação. Não devemos pensar sobre isso? Isso em si já não seria um indicador de que nossa fome está mal direcionada? Em sua peça Nossa Cidade, Thornton Wilder conta a história da vida cotidiana mundana em meio às suas dificuldades. Os detalhes são específicos, mas a lição é como um espelho erguido diante de todos nós. Vemos a rotina em toda a sua monotonia - a entrega do leite, o café da manhã, os operários indo para o trabalho, as donas de casa envolvidas nos seus afazeres, os jardineiros trabalhando — cada dia sendo uma repetição do dia anterior. Na história, a virada se dá quando Emily Gibbs morre ao ter um bebé, e a rotina é subitamente quebrada. No mundo dos mortos, Emily recebeu a chance de voltar à terra, num dia à sua escolha, para ver como realmente viveu quando estava viva. Agora, de sua nova existência no outro mundo, ela olhava a vida com olhos cheios de nostalgia. Observou a atividade frenética em sua casa, na celebração de seu 12° aniversário. Como bem lembrava, toda a família estava preocupada com os presentes, as comidas e as brincadeiras. A festa transcorria alegre e animada. Agora, porém, em seu estado irreversível, Emily notou a total falta de atenção pessoal, embora seu coração almejasse isso. A atenção geral, porém, estava nas coisas que precisavam ser feitas e não na pessoa para quem tudo era feito. Ela sentiu-se mal diante de tamanha cegueira para com suas verdadeiras necessidades. Sem poder ser vista, ela implorava: "Por um breve momento estamos felizes. Vamos olhar uns para os outros". No entanto, seu lamento não podia ser atendido. Eles não podiam ouvi-la porque estavam presos às coisas superficiais. A festa tinha de prosseguir, viria outro aniversário e o momento se dissiparia em ativismo. Quando proferia sua despedida final, Emily exclamou: "O Terra, tu és maravilhosa demais para ser notada por alguém!" Na peça, ela se vira para o administrador do cenário, que serve como narrador, e faz esta pergunta carregada de remorso: "Será que algum ser humano nota a vida enquanto a vive — cada, cada momento?"
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A resposta vem: "Não. Os santos e os poetas, talvez - eles notam". "Será que algum ser humano nota a vida enquanto a vive?" A única forma de notarmos a vida enquanto estamos vivos é reconhecermos que a vida não é uma questão só de nutrição, mas uma fome maior, que está além das palavras e dos alimentos. Não vivemos para poder comer, e nem comemos apenas para poder viver. A vida é digna em si mesma de ser vivida. A vida não pode ser vivida se é considerada como uma questão de consumo. A vida só é realmente plena quando está repleta daquilo que satisfaz a fome física e espiritual, numa reciprocidade que sustenta ambos sem a violação de nenhum. Autenticidade e continuidade procedem do verdadeiro e do eterno. Para os milhões de indivíduos que vivem a vida cotidiana tendo como foco principal dos sonhos e das ações a provisão de pão, a vida, como deveria ser, passa despercebida, e seu apetite insaciável continua clamando no interior. "Os santos e poetas, talvez — eles notam", porque eles param, pensam e olham além das atividades para seus anseios e vislumbram a possibilidade de significado que transcende a ação. Resumindo, se quisermos entender realmente quem somos, temos de entender o que o pão pode fazer e o que não pode. Jesus tinha uma pergunta igualmente tocante para sua audiência, como também para todos nós. Será que vivemos cada minuto de nossa vida, conhecendo seu valor essencial? Para sentir o pleno impacto da paciência de Jesus para com eles, temos de lembrar que não era a primeira vez que o assunto de comida e fome tinha emergido numa conversa entre Jesus e seus seguidores. Anteriormente ele já tentara esclarecer este ponto a fim de tirá-los da busca da "religião do pão". A discussão mais ampla ocorrera pouco antes de um evento que surpreendeu os discípulos — a conversa com a mulher samaritana (veja Jo 4:1-42). Naquele diálogo, Jesus tentara abrir o entendimento deles para o que dava forma e substância à vida. De fato, ele dera um brilhante exemplo, só que eles não ouviram e consequentemente não entenderam.
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Eles estavam com as lancheiras vazias e por isso ficaram profundamente preocupados. Jesus falava com uma mulher socialmente marginalizada e desesperada, cuja vida fora usada e abusada até que ficou sem nenhum senso de dignidade. Eles o repreenderam por estar falando com um pária. "Você deve estar com fome", disseram; "não está na hora de comer?". "Tenho algo para comer que vocês não conhecem. [...] A minha comida é fazer a vontade do meu Pai." Eis aqui o primeiro ponto digno de nota. Se eu quiser ser pleno, devo buscar uma vontade maior do que a minha — a vida plena é aquela centralizada na vontade de Deus, não nos apetites da carne. Jesus prosseguiu e disse: "Abram os olhos e vejam os campos! Estão maduros para a colheita" (veja Jo 4:32-35, NVI). Aqui está o próximo item. Mantendo a metáfora do alimento, Jesus apontou para uma fome universal e que ia além do pão e da água — uma fome distinta, de proporções cósmicas. Cada frase de sua resposta tinha alimento, mas de um tipo diferente. Havia fome em toda parte, ele disse, e comida suficiente para todos. No entanto, não era trigo e água. Era o próprio Cristo, o Pão da Vida e a fonte de água viva. A mulher samaritana absorvia suas palavras com o fervor que procede da consciência da verdadeira necessidade. A transição foi fascinante. Ela chegara ali com um cântaro vazio. Jesus a enviou de volta com uma fonte de água viva. Ela chegara como uma rejeitada. Jesus a enviou de volta plenamente aceita por Deus. Ela chegara ferida. Ele a mandou de volta totalmente curada. Ela chegara cheia de perguntas. Ele a enviou de volta como uma fonte de respostas. Ela chegara vivendo em mudo desespero. Voltou para casa cheia de esperança. Os discípulos não viram nada disso. Estavam no horário de almoço. É interessante notar que logo depois da conversa com a mulher samaritana Jesus operou o milagre da multiplicação dos pães. Assim, pão e alimento não estavam ausentes de sua mente. Jesus estava
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movendo seus interlocutores de elementos mais difíceis para os mais fáceis; do eterno para o temporal; das necessidades da alma para os apetites do corpo. No entanto, eles estavam presos no desejo de mais comida. Só que nesta primeira vez eles não captaram. LEVANTANDO A CORTINA Assim, voltamos ao capítulo seis de João. Desta vez, porém, Jesus acrescentou um elemento extremamente dramático. A fome agora assume um sentido mais amplo, como teria no final, se fosse considerada como o indicador da vida. Se fôssemos enumerar todas as nossas fomes, ficaríamos surpresos ao constatar quantas delas são legítimas. A fome da verdade, a fome de amor, a fome de conhecimento, a fome de pertencer, a fome de expressão, a fome de justiça, a fome de imaginação, a fome da mente e a fome de significado. Poderíamos citar outras. Muitas teorias psicológicas surgem a partir do reconhecimento dessas fomes, ou necessidades. Este é o ponto. Algumas de nossas iniciativas pessoais podem satisfazer algumas dessas fomes. Educação pode trazer conhecimento. Romance pode trazer um senso de pertencer a alguém. As realizações podem trazer significado. A riqueza coloca algumas coisas ao alcance das mãos. Porém, a mensagem de Jesus afirma que nada satisfará todas essas fomes. Além do mais, ninguém pode nos ajudar a reconhecer se os meios de satisfazê-las são legítimos ou não, até que nos alimentamos do pão da vida que Jesus nos oferece. Este alimento define a legitimidade de tudo o mais. Quando buscamos essas fomes, não somente continuamos insatisfeitos, como também a própria busca traz a desorientação que nos impede de saber de onde vem a verdadeira satisfação. É extremamente importante que saibamos isso. Como já mencionei, o livro de Jon Krakauer, Into Thin Air, relata os perigos que cercaram os alpinistas na expedição ao monte Everest na primavera de 1996. Naquele ano, a tentativa de alcançarem o topo resultou em perda de vidas. Algumas circunstâncias saíram
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fora de controle, mas eles também cometeram erros fundamentais que custaram muito. Alguns desses erros, infelizmente, foram cometidos quando ainda havia possibilidade de solução. Um dos que perderam a vida foi Andy Harris, um dos líderes da expedição. Harris chegou ao pico que ficava além do ponto máximo que eles mesmos tinham estabelecido como alvo. Na descida, sentiu falta de oxigénio. Pelo rádio, conversou com o pessoal da base de apoio, falando de sua necessidade e informando que acabara de passar por alguns cilindros de oxigénio deixados por outros alpinistas — todos os cilindros vazios. Os membros da equipe tinham passado pelos cilindros ao retornarem e sabiam que não estavam vazios. Pelo rádio, insistiram com Harris para que procurasse novamente os cilindros, mas não adiantou. Já afetado pela falta de oxigénio, Harris continuou a afirmar que os cilindros estavam vazios.3 O problema foi que a falta daquilo que precisava deixou sua mente tão desorientada que embora tivesse um suprimento ao alcance das mãos, continuou reclamando a ausência. Aquilo que tinha nas mãos faltava em seu cérebro e destruiu sua capacidade de reconhecer o que tinha à disposição. O que o oxigénio é para o corpo, o Pão da Vida é para a alma. Sem este pão, todas as outras fomes serão percebidas de forma inadequada. De fato, como aconteceu com o oxigénio, a ausência desse pão por um período prolongado faz com que ele próprio pareça sem valor. A vida deve ser a realização de uma necessidade que define todos outros meios de realização e um amor que define todos os outros afetos. Por meio dos seus milagres, Jesus demonstrou a partir do maior para o menor. Em suas respostas, ele movia a audiência do menor para o maior. Em suas palavras na Ceia, ele lembrou que o físico e o espiritual se encontram. Ali o agora e o eterno convergem. A vida e a morte se mesclam. Implícita nesses versículos está a direção apoteótica para a qual Jesus se dirigia e à qual devia voltar, momentos antes de sua morte. O povo podia ter compreendido mais. Veja bem, na mente oriental, o pão não é apenas uma fonte de alimento. Ele leva em si muito
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mais do que isso. O alimento é um meio de comunhão. Em Apocalipse 3:20 Jesus diz que está à porta e bate; se alguém abrir a porta, ele entrará e ceará com ele. Trata-se de uma linda expressão de comunhão. O alimento é um meio de celebração. O retorno do filho pródigo foi celebrado com a morte do novilho cevado, o que sinalizou o começo da festa. O alimento também é um meio de prazer. No palácio de Salomão os banquetes eram fartos e frequentes. Até hoje, o alimento é extremamente importante na cultura oriental. Além de proporcionar sustento, também é um meio de se promover a amizade, celebração e prazer. A diferença entre ocidentais e orientais não é muito grande — e nós sabemos disso. Mesmo assim, apesar de toda a nossa boa alimentação, nossas amizades, celebrações e prazeres, chegam certos momentos cruciais quando nenhum alimento pode sustentar a vida, nenhuma amizade pode superar as perdas, nenhuma celebração dura para sempre e nenhum prazer satisfaz plenamente. O corpo envelhece e enfraquece, e o alimento não tem a capacidade de restaurar a força e a juventude perdidas. O corpo se move para uma decadência inexorável. Resumindo, o alimento está sujeito a duas limitações. A primeira é óbvia. O corpo físico enfraquece e um dia morre. Tenho um amigo cuja vida enriqueceu muito a minha ao longo dos anos. Houve uma época em que sua esposa foi acometida de câncer. Jamais esquecerei seu exemplo. A única palavra que vem à minha mente é como ele a nutriu. Por natureza ele é um indivíduo dinâmico e ágil. Alguém pode ficar cansado só de olhar para ele. Mesmo assim, quando ele soube que a esposa estava com os dias contados, deixou todas as suas atividades para cuidar dela. Durante semanas e meses, a vida dele se resumiu em um único propósito: cuidar de quem ele amava. Ficava sentado ao lado da esposa, expressando seu amor enquanto a vida dela se desvanecia. Oferecia a ela o que havia de melhor: sucos de frutas frescas e selecionadas, feitos nos melhores aparelhos. Nenhum país que oferecesse uma possibilidade de cura era considerado longe demais. Nenhuma tentativa de restaurar-lhe a saúde era considerada cara demais.
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No entanto, finalmente chegou o momento em que o físico da esposa tornou-se fraco demais, além da possibilidade de ser fortalecido por algum alimento. Nenhum elo foi forte o bastante para mantêla ali. O problema não estava na alimentação ou na falta de desejo de prolongar a vida. O problema era que células destrutivas se espalharam de tal forma por seu organismo que nenhuma alimentação podia restaurar aquilo que estava morrendo. Esse momento chegará para todos nós, em situações e formas diferentes. A nutrição do alimento, os elos de amizade, as ocasiões de celebração e os deleites do prazer legítimo terminam em questão de minutos em toda vida e todo relacionamento. É para esta vulnerabilidade que Jesus aponta. O poeta expressa esta ideia da seguinte forma: Nossa vida contém milhares de mananciais E morre se um deles se seca; É estranho que uma harpa de mil cordas Possa manter o tom durante tanto tempo. Um antigo adágio diz que você pode dar um peixe a um homem faminto, ou então fazer melhor: ensiná-lo a pescar. Jesus acrescentaria que você pode ensinar uma pessoa como pescar, mas o melhor dos pescadores tem fomes que o peixe não pode satisfazer. P E R M A N E C E N D O N O S BASTIDORES Há uma segunda verdade — não tão óbvia — relacionada ao alimento. Jesus disse: "Eu sou o pão da vida; o que vem a mim jamais terá fome; e o que crê em mim jamais terá sede". Note o poder implícito nesta afirmação. No cerne de todas as grandes religiões há uma figura principal. Quando suas exposições são estudadas, emerge algo muito significativo. Surge uma bifurcação, ou uma distorção entre a pessoa e seus ensinamentos. Maomé e o Alcorão. Buda e as Verdades Nobres. Krishna e suas filosofias. Zoroastro e sua ética. Seja qual for nossa posição diante de suas reivindicações, uma verdade é inescapável. São mestres que apontam para seus ensinos
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ou mostram um caminho em particular. Em todos eles emerge uma instrução, uma forma de viver. Você não pode se voltar para Zoroastro; você deve ouvir Zoroastro. Não é Buda quem o liberta - é seu Caminho Nobre que o instrui. Não é Maomé quem o transforma — é a beleza do Alcorão que causa impacto em você. Por outro lado, Jesus não somente ensinou ou expôs sua mensagem. Ele se identificou com sua mensagem. "Nele", diz a Escritura, "habita corporalmente toda a plenitude da divindade". Ele não se limitou a proclamar a verdade. Ele disse: "Eu sou a verdade". Ele não se limitou a mostrar o caminho. Ele disse: "Eu sou o caminho". Ele não somente oferece o visto de entrada. Ele disse: "Eu sou a porta". "Eu sou o Bom Pastor". "Eu sou a ressurreição e a vida". "Eu sou o EU SOU". Nele não há somente uma oferta do pão da vida. Ele éo pão. Por isso ser cristão não é somente uma forma de se alimentar e de viver. Seguir a Cristo começa com uma forma de se relacionar e de ser. Vamos usar o budismo como um exemplo específico. Trata-se de um sistema que tem conseguido muitos seguidores entre os astros de Hollywood. Muitas vezes o budismo é definido de forma simplista como a religião da compaixão e da ética. Na verdade, porém, provavelmente não há um sistema de crenças tão complexo quanto este. Embora comece com as quatro verdades nobres sobre o sofrimento e sua cessação, depois se move para o caminho de oito passos sobre como acabar com o sofrimento e depois emerge em centenas e centenas de outras regras para lidar com as contingências da vida. A partir de uma base simples de quatro ofensas que resultam na perda da condição de discípulo, é construído um incrível edifício de formas de restauração. Aqueles que seguem os ensinamentos de Buda recebem trinta regras sobre como evitar esses precipícios. Entretanto, antes mesmo de lidarmos com eles, existem 92 regras que se aplicam a apenas uma ofensa. Há 75 regras para aqueles que entram para a ordem. Há regras de disciplinas que devem ser aplicadas sendo 227 para homens e 311 para mulheres. (Os conhecedores do budismo sabem que Buda teve de ser persuadido a permitir que as mulheres alcançassem a condição de discípulas. Depois de muita
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insistência por parte de um dos seus discípulos, ele finalmente atendeu o pedido, mas determinou mais regras para elas.) Mesmo que alguém cumpra todos esses requisitos, fica claro que num sistema religioso sem uma divindade, como é o budismo, a ética torna-se o centro e as regras vão sendo acrescentadas ad infinitum. Buda e seus seguidores são os criadores dessas regras. No budismo, a oração mais comum pedindo perdão, a qual consta na Oração Comum Budista, reflete este exagero numérico: Senhor, eu suplico, eu suplico, eu suplico me deixe!... Que todo o tempo eu possa ser livre dos quatro estados de Ai, dos Três Sofrimentos, das Oito Circunstâncias Erradas, dos Cinco Inimigos, das Quatro Deficiências, dos Cinco Infortúnios e que rapidamente possa voltar ao Caminho, à Fruição e à Nobre Lei de Nirvana.4 Na melhor das hipóteses, este ensino nos inspira à moralidade, mas não é intrinsecamente eficaz. O ensino é como um espelho. Pode lhe mostrar se seu rosto está sujo, mas não pode limpar. Para entender melhor esta teoria complicada, o indivíduo quase que precisa ser diplomado em filosofia ou psicologia! Jesus, pelo contrário, de uma forma muito simples mostrou a verdadeira necessidade de sua audiência, ou seja, a fome de natureza espiritual comum a todo ser humano; assim, a essência humana não é viver ou fazer, mas ser. Não precisamos simplesmente de uma ética superior — precisamos de coração e vontade transformados, a fim de fazermos a vontade de Deus. Jesus também ensinou e levantou um espelho em nossa frente, mas por meio de sua pessoa ele transforma nossa vontade a fim de que busquemos a sua. Ele deseja alimentar o nosso ser. Ele adverte que há áreas profundas em nossa fome aonde o alimento físico não chega. Há altitudes nas aspirações existenciais que nossa atividade humana não alcança. Há espaços de necessidades que o natural não pode ocupar. Em resumo, Jesus nos lembra que o pão não pode sustentar indefinidamente. Ele é o Pão da Vida que sustenta eternamente. E ele faz isso de uma forma que nenhum outro consegue fazer.
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EXPLICANDO O PLANO Tendo deixado claro seu ponto sobre as limitações do pão e o fato de que ele era o Pão da Vida, Jesus agora apresenta um pensamento que eles deviam analisar com cuidado. Ninguém negaria a unicidade desse pensamento. Não há nada, em nenhuma outra religião, que se aproxime desse ensino profundo. Nossa maior fome, conforme descrita por Jesus, é de um relacionamento pleno que combine o fisico e o espiritual, que inclua assombro e amor e que se expresse em celebração e compromisso. Em outras palavras, essa fome é de adoração. Contudo, adoração não é efetuada somente por uma transação pronunciada numa oração ou num pedido. Adoração é uma postura de vida que assume o propósito primário, o entendimento do que realmente significa amar e reverenciar a Deus. Esta é a mais sagrada de todas as intimidades. E onde o pão partido proporciona os meios de expressão e de prática. Em minha primeira visita à Jordânia, minha família e eu fomos convidados para uma refeição especial na véspera de nossa partida. A ocasião chamava-se Mensef. Os convidados se postavam ao redor de uma grande vasilha de arroz, lindamente decorada com temperos suculentos e condimentos aromáticos que nos deixavam com água na boca. Então veio a parte engraçada. Todos nós arregaçamos as mangas e nos servimos diretamente da vasilha, comendo com a mão. Era a comida do Oriente Médio, com todos os seus propósitos. Para um indiano como eu, era como estar de volta ao lar. Há um simbolismo naquela forma de se comer. O prazer de uma combinação agradável de alimento, a comunhão entre os participantes, o toque das mãos no mesmo prato e a celebração da vida e seu propósito — tudo isso significa confiança, proximidade e a lembrança dos dias passados juntos. Cada detalhe era como um convite, dizendo: "Seja bem-vindo à nossa casa e torne-se um conosco". Fomos saudados com um beijo e despedidos com um beijo. Reunimo-nos como amigos e nos separamos com a confiança mútua de uma amizade mais profunda. Isso, devo acrescentar, é apenas uma ilustração pobre daquilo que Jesus estava oferecendo aos seus seguidores — comunhão com
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ele. Mesmo religiões sem divindade como o budismo e religiões panteístas como o hinduísmo, embora neguem o Deus pessoal e absoluto, também se debatem em formas de adoração endereçadas a um ser pessoal, porque o isolamento interior induz o ser a outro ser pessoal transcendente. A razão disso é que buscamos mais do que um simples ritual. Na verdade, estamos separados. Estamos separados de Deus e do nosso próximo. E por fim, a realidade mais crua é que estamos separados até de nós mesmos. Não conseguimos concatenar todos os aspectos de nossa existência. A vida humana é uma história de separação. Este fato está no âmago do evangelho. Nós fomos separados de dentro para fora. E Jesus traz a verdadeira resposta para esta separação, muito mais do que um simples convite, "venha e coma". Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém dele comer, viverá eternamente; e o pão que eu darei pela vida do mundo é a minha carne.[...] Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tendes vida em vós mesmos. João 6.51-53 Ao ouvirem isso, muitos dos seus discípulos disseram: "Duro é este discurso; quem o pode ouvir?" Jesus, porém, lhes disse: "Isto vos escandaliza? Que será, pois, se virdes o Filho do Homem subir para o lugar onde primeiro estava? O espírito é o que vivifica; a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos tenho dito, são espírito e são vida. Contudo, há descrentes entre vós" (Jo 6:60-64). Se Jesus só tivesse dito isso sobre o assunto, não tenho dúvida de que seria o enigma supremo de seu ensino. A aspereza com que suas palavras são traduzidas para a nossa linguagem deixa o leitor totalmente confuso. No entanto, como em muitos dos seus discursos, Jesus foi dando pequenas porções de informação, até o momento final. Então os discípulos se lembraram da primeira ocasião em que ele mencionou esta verdade. Suas palavras citadas acima são claramente uma pista. O cumprimento ocorreria pouco tempo antes de sua morte e a plena compreensão só se daria depois.
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Vamos averiguar o evento que explicou o enigma. Em primeiro lugar, é óbvio que quando Jesus falou em "comer sua carne e beber o seu sangue" não se referia a uma ação literal, pois ele estava presente, dando-lhes pedaços de pão, não de sua carne. Segundo, se ele se referisse à sua carne física e ao seu sangue, seria o equivalente a dizer que só um pequeno número de pessoas poderia participar da vida que ele oferecia. Ela seria restrita a um numero finito de pedaços que um corpo humano pudesse ser repartido. Terceiro, seria um ato cronologicamente restrito. Aquele corpo logo entraria em decomposição, e o sangue logo deixaria de carregar vida. Somente as pessoas presentes em sua morte física poderiam participar da refeição. Quarto, Jesus já tinha dito que ressuscitaria naquele corpo depois que fosse morto, de modo que, se estivesse se referindo ao corpo físico, tornaria todo o processo posterior uma fraude. Quinto, ele ordenou que a Igreja repetisse o que fez por toda a história, como um memorial. Tal ação seria impossível em relação ao seu corpo físico. Sexto, ele disse que suas palavras eram Espírito e não carne. Finalmente, quando chegou o momento áo seu sacrifício, como ele predissera, ele explicou o que tudo aquilo significava. Sentou-se para a Páscoa com seus discípulos. Juntos, gozaram do alimento que sustentava, da comunhão proporcionada pela refeição, da celebração e do prazer da provisão de Deus. Só que havia também peso nos corações. Para aliviar aquele peso, só o maná não ajudaria. Era o momento de encarar o valor supremo da vida. Uma oferta digna estava para ser oferecida. O Cordeiro de Deus estava abençoando a refeição, embora estivesse para ser sacrificado. Jesus tomou o pão, deu graças e distribuiu aos discípulos, dizendo: "Tomem e comam. Este é o meu corpo dado por vocês; façam isso em minha memória". A seguir, tomou o cálice, deu graças e disse: "Este é o cálice da Nova Aliança no meu sangue, derramado por muitos para a remissão de pecados". Eles provaram, tocaram, cheiraram, conheceram e sentiram as dimensões da salvação. Jesus estava fisicamente presente, enquanto distribuía os elementos.
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Então Jesus prosseguiu e disse: "E digo-vos que, desta hora em diante, não beberei deste fruto da videira, até aquele dia em que o hei de beber, novo, convosco no reino de meu Pai". Então, é assim. Aqueles pedaços de pão representavam o que estava para acontecer. Jesus seria física e emocionalmente moído de uma forma que atrairia a atenção dos amigos e dos inimigos. Mesmo assim, aquele quebrantamento factual incluía reparação. Foi providenciado a nós o meio de nos conectarmos com Deus, com nosso próximo e conosco mesmo. Teríamos acesso a um novo relacionamento, o qual faz parte de um corpo maior, individual e corporativamente, porque seu corpo foi partido por nós. Podemos fazer parte de uma comunhão que não pode ser quebrada porque ele viria habitar dentro de nós. Podemos tomar parte de uma celebração eterna, pois estaremos para sempre na presença de Deus. Podemos conhecer o prazer na sua mão direita porque a adoração seria sua expressão suprema. Estes símbolos do seu corpo partido por nós, sua união para o nosso desmembramento, concedem um aspecto tangível aos elementos quando nos reunimos para adorar. Embora, ao lembrarem do ensino anterior de Jesus, os discípulos tivessem um entendimento parcial do que estava acontecendo naquela noite, ainda não conseguiam apreender todo o significado. Esta clareza foi alcançada num momento significativo depois da ressurreição. O dia da morte de Cristo foi um dia que eles não poderiam compreender ou apreciar. Eles viram seu corpo quebrado, e suas vidas ficaram arrasadas. Ficaram cheios de dúvidas e não tinham ninguém para esclarecê-las. Depois da crucificação, alguns deles estavam retornando para suas casas, e quando andavam pela estrada que levava a Emaús, um estranho se aproximou deles. Muita coisa tinha acontecido naqueles últimos dias, e eles estavam comentando os fatos, tentando compreendê-los. Ao ouvi-los, o estranho perguntou por que estavam tão desanimados. Eles contaram sobre os acontecimentos trágicos da morte de Jesus e acrescentaram: "És o único, porventura, que, tendo estado em Jerusalém, ignoras as ocorrências destes últimos dias?"
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Na verdade, Jesus era o único em Israel que sabia o que tinha acontecido. Entretanto, os discípulos ainda não sabiam quem ele era. Jesus começou a expor toda a história e como ela se relacionava àquele dia e àqueles eventos. Os dois discípulos ficaram maravilhados pela maneira como os fatos estavam conectados. Eles ainda não sabiam que era Jesus e insistiram para que ficasse com eles e partilhasse da sua refeição. Quando se sentaram para comer, chegou o momento culminante. Ele partiu um pedaço de pão. A Bíblia diz que, quando ele fez isso, os olhos deles foram subitamente abertos e reconheceram Jesus. Não há na história um ato mais simples com um significado mais profundo e transcendente. Que momento! Que refeição! Que mensagem! Que transcendência! De fato, até os nossos dias, os cristãos se reúnem e compartilham o pão partido e o cálice. Nesse gesto simples, toda a história alcança seu significado na pessoa de Cristo. A morte de Jesus no passado é lembrada no presente e aponta para o futuro quando partiremos o pão com ele na eternidade. Cada sentido entra em ação — tato, paladar, olfato, audição e visão. Neste ato, todas as barreiras são quebradas — a barreira do pecado entre nós e Deus, a barreira entre corpo e alma como conexão física e espiritual, a barreira entre vida e morte e a barreira de raça e preconceito - pois nós estaremos diante do Senhor na mesma refeição. Esta é a "Mensefàe Deus". Pode haver razão maior para celebrar? Agora a vida pode ser percebida como tendo sido vivida a cada momento. Em seu livro Life After God, Douglas Coupland conta uma história fascinante. Ele caminhava por um lindo parque quando se deparou com um grupo de mulheres cegas, fazendo um piquenique. Quando elas o ouviram se aproximando, pediram que tirasse uma foto do grupo. Ele consentiu alegremente, e elas se ajuntaram para a foto. Quando ele se afastou, começou a pensar: "Por que um grupo de pessoas desprovidas de visão iria querer uma foto?"5 Posso sugerir que quando nos formou, Deus nos capacitou a aproveitarmos a capacidade de outras pessoas, de modo que podemos compartilhar um benefício, mesmo sem a habilidade de
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experimentá-lo diretamente. Provavelmente as fotos seriam mostradas a outras pessoas com visão, as quais poderiam enriquecer o sentimento daquelas mulheres que podiam reviver a ocasião em sua lembrança, indo além da forma como a viveram na primeira vez. Naquele momento único na história, ao oferecer um pedaço de pão, Deus trouxe a visão e o sentimento aos participantes, por meio da vida daquele cujo corpo foi quebrado e que, portanto, pode nos elevar numa memória sagrada. Naquele gesto simples, ele se reforma numa nova plenitude. Aquele pão partido estabelece uma ponte em cada abismo humanamente intransponível em milhões de vidas. Nós vemos a verdade de uma forma que ninguém poderia ter nos capacitado - por meio dos olhos divinos, na sua presença. T R A D U Z I N D O PARA A
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Na prática da fé cristã, este compartilhamento do pão e do cálice tem sido apropriadamente chamado de Comunhão [a Ceia do Senhor]. Deus se aproxima, e nós gozamos de sua presença em nós. Neste aspecto, o contraste com todas as outras convicções é mais agudo do que se pode imaginar. No seu âmago e em seus objetivos, o hinduísmo ensina que devemos buscar a união com o divino. Por que a união? Porque os hindus afirmam que somos parte e uma parcela desse universo divino. Portanto, o objetivo do indivíduo é descobrir sua divindade e praticá-la. Veja novamente as palavras de Deepak Chopra sobre este propósito da vida. Ele faz esta afirmação no começo de seu livro: "Na realidade, somos uma divindade disfarçada; os deuses e deusas que vivem em nós em estado embrionário buscam se materializar plenamente. Portanto, o verdadeiro sucesso é a experiência desse milagre. E a manifestação da divindade dentro de nós". 6 Mais adiante, Chopra faz uma declaração que forma a base de sua filosofia: "Nós devemos descobrir por nós mesmos que em nosso interior há um deus ou uma deusa em estado latente que deseja nascer, a fim de que possamos expressar nossa divindade". 7
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Não posso deixar de perguntar: "Quem é este "nós"? Quem é o deus? São diferentes entidades com as quais coabitamos? Existe um deus que precisa de mim (quem sou "eu"?) para trazê-lo (quem é "ele", se na verdade sou "eu?) à luz, a fim de que o meu ser iludido deixe de ser iludido e possa emergir divino como o verdadeiro "eu"? Como esse deus terminou em forma embrionária enquanto eu crescia, a fim de que agora eu lhe conceda o privilégio de nascer e liberar minha humanidade para encontrar minha divindade? Correndo o risco de parecer frívolo, eu diria que esta é a versão suprema do "Quem nasceu primeiro?". No final do livro, Chopra nos pede para fazermos um compromisso com as crenças que foram defendidas, com estas palavras: Hoje irei alimentar com amor o deus ou a deusa em estado embrionário que está no fundo da minha alma. Darei atenção ao espírito dentro de mim que anima meu corpo e minha mente. Despertarei para esta profunda quietude dentro do meu coração. Carregarei a consciência do Ser eterno no meio das experiências limitadas pelo tempo.8 Este é o coração do hinduísmo filosófico — a autodeificação. Um dos principais filósofos indianos fez uma declaração claríssima: "O homem é deus num estado temporário de auto-esquecimento". Como podemos ser o refugo do mundo quântico e deuses ao mesmo tempo? Será que é isso que aprendemos em alguns milhares de anos de história humana? Somos deuses solitários e confusos que perderam o rumo? É por isso que o "você" desaparece no hinduísmo e o processo meditativo é aproveitado, de modo que, como indivíduos, podemos nos unir com o absoluto impessoal - o "Eu" supremo, porque não há outro significado.9 A união com o absoluto impessoal desafia a linguagem, a razão e as realidades existenciais. Não satisfaz o anseio humano por comunhão. Entretanto, embora possamos respeitar a intenção de tal ensino, se acreditarmos que ele é filosoficamente coerente, enganamos a nós mesmos. Ele não é. Por isso alguns dos mais respeitados filósofos e intelectuais hindus definem esta ideia como um dos sistemas
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mais contraditórios do propósito da vida que já foram apresentados. 10 Além disso, o hinduísmo não poderia sobreviver à esterilidade desse tipo de autodeificação. Divindades pessoas surgiriam aos milhões, com templos apinhados de pessoas buscando adorar. Não, a sugestão da divindade interior prende psicologicamente e o indivíduo escapa para procurar outra. Enquanto o hinduísmo vai para um extremo — a deificação do ser —, o islamismo vai para o extremo oposto. N o Islã, a distância entre Deus e a humanidade é tão grande que o "eu" nunca chega perto do "ele" que representa Deus. Visto que a distância entre ambos é impossível de ser atravessada, a adoração assume um aspecto de atividade frenética, destinada a levar o adorador para mais perto. Repetição e submissão substituem o calor de um relacionamento. Basta olhar um muçulmano adorando para se perceber a diferença. Apesar de toda a obediência e a observância de todas as regras, o islamismo jamais oferece à pessoa comum a certeza do céu. Dizem que tudo depende da "vontade de Deus". O destino do indivíduo é deixado à mercê de uma vontade desconhecida. Quando o relacionamento é absorvido pelas regras, o poder político e a repressão tornam-se os meios de se manter a ordem. Certa vez eu e um amigo muçulmano estávamos passando um dia juntos. Eu esqueci que o jejum do Ramada acabara de começar e sugeri que parássemos num restaurante para tomar um café. —Posso passar anos na cadeia por causa desse copo de café—, ele disse; evidentemente, eu pedi desculpas pela sugestão. Depois, em voz baixa, ele admitiu que seu jejum limitava-se à sua conduta pública, mas que não era guardado na vida privada. —Não posso trabalhar dez horas por dia sem comer—, ele replicou. Houve um silêncio pesado e finalmente ele suspirou: —Não creio que Deus tenha estabelecido essas regras. Basta perguntar a qualquer muçulmano e ele admitirá com um sorriso que durante o mês de jejum do Ramada vende-se mais alimentos do que nas outras épocas. No entanto, o consumo ocorre entre o anoitecer e o amanhecer em vez de entre o amanhecer e o anoitecer. O legalismo sempre gera cumplicidade e sufoca o propósito.
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Na mensagem cristã, o Deus distinto e distante se aproximou a fim de que o fraco fosse feito forte e fosse atraído para uma comunhão íntima com o próprio Deus, apesar de mantermos nossa identidade. Aquele simples ato de comunhão englobava o propósito da vida. O indivíduo mantém sua identidade, mesmo vivendo em comunidade. O físico mantém suas características, mas é sobrepujado pelo espiritual. Os elementos retêm sua distinção, mas tornam-se portadores da verdade que aponta para além deles próprios, para uma comunhão espiritual almejada pelo nosso espírito. Assim como a consumação do amor entre marido e esposa expressa de forma concreta tudo aquilo que o relacionamento moral e espiritual envolve, o simples ato de partir o pão e partilhar o cálice envolve a verdadeira realidade da presença de Deus na vida do indivíduo. Trata-se de um ato de adoração que representa a vida plena de significado. As implicações são profundas. A REALIDADE EXPERIMENTADA Deixe-me levar você para um lugar singular: a borda de um deserto. Estive lá, e meu coração foi tocado de uma forma indescritível. Participe de um culto no domingo pela manhã, e é isto que você verá. Ali estão sentadas duas mulheres missionárias, cercadas por um grupo de pessoas que parecem tristes, mesmo quando sorriem. Quando se aproxima delas, você sente um nó na garganta. No entanto, são pessoas maravilhosas que amam a Cristo. Trata-se de um abrigo para leprosos. Ali naquele local, chegou o momento da Comunhão. Os elementos são distribuídos, e a lição prática é profunda. Acima da hediondez da enfermidade, emerge a gloriosa mensagem de unicidade e de esperança. O corpo de Cristo é partido por todos nós, de modo que seu cuidado, sua amizade, sua celebração e seu gozo nos unem como um. Um dia todos aqueles corpos enfermos serão glorificados e todos nós beberemos do mesmo cálice e comeremos o pão com nosso Pai celestial. Isso nos leva a uma tocante conclusão sobre o significado da adoração. Alimento e saúde podem ser uma ramificação relevante, à qual
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nos apegamos. No entanto, o tronco arraigado no chamado sagrado de Deus para adoração é baseado na reversão dessa relevância. Não quer dizer que Deus precisa ser relevante conosco. É exatamente a nova perspectiva que temos de Deus que nos inspira a nos tornarmos relevantes com ele. O que quero dizer? Em seu livro The Integrity ofWorship, Paul Waitman Hoon inclui um capítulo intitulado "A irrelevância da adoração". Seu ponto principal é resumido num parágrafo no qual nos lembra que a experiência da adoração às vezes pode nos chamar para olhar além da nossa necessidade para aquilo a que Deus está nos chamando: Com muita frequência almejamos luz em nossa vida no mundo, só para sermos chamados a ponderar sobre o nosso destino na eternidade. Com frequência ficamos preocupados com a igreja local, e em vez disso encontramos nossa visão voltada para a Igreja triunfante e universal. Com frequência perguntamos se a adoração abençoa nossa alma com paz, e só ouvimos a lição do dia chamando-nos para uma guerra santa. Com frequência desejamos ter forças para vencer o mundo, só para aprendermos que devemos ser apedrejados e dilacerados pelo mundo. Com frequência buscamos conforto para nossas tristezas, e em vez disso encontramos as tristezas do mundo adicionadas às nossas. Tais reversões podem ser estranhas aos homens. No entanto, somente essas contradições respondem às realidades relevantes e irrelevantes que estão no âmago da adoração cristã.11 Os discípulos não experimentaram essa reversão. Eles foram a Jesus pedindo a abundância de pão, a fim de terem o estômago cheio. Descobriram que havia um tipo diferente de pão partido por eles, por causa de um vazio mais profundo do que imaginavam. Tinham comprado lanche num restaurante próximo. No entanto, estavam sendo convidados para outro tipo de mesa. Apesar de terem comprado alimento, logo estariam com fome. Jesus estava oferecendo-lhes realização eterna com renovação a cada momento. Por isso a tarefa da Igreja não é tanto tornar Deus relevante para o povo, mas sim tornar as pessoas relevantes para Deus.
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Há uma magnífica peça esculpida em madeira em Worms, Alemanha, chamada "O Altar do Sangue". Trata-se de uma ilustração de Jesus partindo o pão para os discípulos. Eu fiquei contemplando aquela obra-prima, a qual o escultor levou anos para completar, e percebi que estava além de minha capacidade descrevê-la. Era o cerne daquilo que Deus nos chama para fazer. E naquela troca que ele acalma a mente, aquieta o coração e supera todas as barreiras. Será que nosso Deus é tão pequeno que não pode compartilhar vida sem canibalismo? Aqueles que entendem a profundidade do significado da Comunhão compreendem a realização da adoração. Aqueles que não entendem se afastam famintos e devoram a própria alma. O compositor nos exorta corretamente, para que a nossa fome mais profunda seja saciada. Querido Senhor, parte para mim o Pão da Vida, Como partiste os pães, à beira do mar; Além das páginas sagradas, Eu te busco, Senhor, Meu espírito suspira por ti, O Palavra viva. Tu és o pão da vida, Para mim, para mim, Tua santa Palavra, a verdade Que me saivou, Dá-me para comer e viver Contigo nas alturas. Ensina-me a amar a tua verdade Pois tu és amor. Oh! envia teu Espírito, Senhor, Agora sobre mim, Que ele toque meus olhos E me faça ver; Mostra-me a verdade escondida Dentro da tua Palavra, E em teu Livro revelado, Eu vejo o Senhor. n
capítulo
cinco
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G
ostaria de iniciar este capítulo citando respeitosamente, com a permissão do autor, porções de uma das cartas mais tocantes que já recebi. Realmente admiro a coragem, a candura e a disposição de aprender do homem que a escreveu. Obviamente não é fácil desnudarmos nossa alma. Meu coração pesa por ele e sua família, por sua experiência terrível e dolorosa. Esta carta, embora seja específica e relacionada ao contexto do autor, representa uma pergunta feita a Jesus dois mil anos atrás, numa situação semelhante. De fato, se formos honestos, por trás desta questão reside uma das maiores barreiras para a fé em Deus. Prezado Sr. Zacharias, Preciso desesperadamente de sua ajuda. Não estou pedindo dinheiro ou algo assim... Preciso do seu conselho. Por favor, leia esta carta. Ela é extremamente pessoal e revela um coração partido. Minha situação é séria, e já estou no segundo ano de tormento e medo. Pensei que seria capaz de vislumbrar todas as "respostas" que precisaria para encontrar paz em minha alma, mas continuamente tenho terminado no proverbial "beco sem saída". Ou talvez a resposta esteja lá o tempo todo e seja muito triste para mim aceitá-la. Não sei. Resumindo, estou confuso e assustado. Preciso de sua ajuda.
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No dia 4 de agosto de 1997, às 1 5 h l 5 , meu filho, Adam Mark Triplett, morreu num acidente de avião, ocorrido n u m a cidade de New Richmond, Wisconsin. Adam era instrutor de vôo numa escola especializada em St. Paul, Minnesota. Ele era um estudante respeitado, um bom músico, bom profissional, amigo afeiçoado e um cristão dedicado. Também era um irmão agradável, bom marido e bom filho. Meu único filho. Ele morreu aos 23 anos de idade, depois de apenas três meses de casado. Não consigo imaginar a vida sem ele... Há alguns anos minha esposa e eu tínhamos comprado um computador novo. Eu não fazia ideia do perigo que traria à minha vida. Um dia, quando navegava casualmente pela Internet com meu novo amigo tecnológico, fiquei surpreso ao descobrir u m e-mail anónimo em minha caixa postal. Ao abrir a mensagem, fiquei chocado ao me deparar com uma foto pornográfica. Fiquei furioso com aquela invasão vulgar e decidi descobrir de onde viera a mensagem. Continuei procurando, pensando que poderia me tornar um defensor da decência. No entanto, caí vítima da vileza e do engano do diabo e logo fiquei escravizado pelo hábito de olhar tais fotos. Se eu tivesse um "dia ruim" no trabalho, ou se o carro quebrasse (qualquer pretexto servia), eu balanceava as coisas com uma pequena "espiadela". Eu justificava o hábito afirmando para mim mesmo que era algo inofensivo... Não estava molestando e nem incomodando ninguém. Não percebia o mal que estava fazendo para mim mesmo. Um dia, durante um culto na igreja, percebi que estava dando uma "espiadela" mental e não estava prestando atenção ao que o pastor dizia. O medo brotou em meu coração e tentei me afastar daquela prática nociva. Não consegui. A espiral descendente continuou afetando meu trabalho e minha vida familiar, sem mencionar minha responsabilidade como líder na igreja. No dia 4 de agosto, levei meu filho ao aeroporto. Seu próximo aluno estava esperando. Quando ele saiu do carro, ele sorriu, levantou o polegar e me fez sinal de "positivo". Enquanto eu me afastava, olhei para ele pelo espelho retrovisor... e tive a estranha
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sensação de que seria a última vez que o veria. Afastei a ideia como se fosse um pensamento casual. Ignorei-a. Esqueci-a completamente. Voltei ao meu trabalho. No final do dia, sentia-me furioso, só Deus sabe por que... [e decidi que] ia para casa me acalmar e dar uma "espiadela". Pensei que teria pelo menos uma satisfação. [Enquanto dirigia meu carro], senti Deus falando comigo numa voz mansa, amorosa, quase n u m sussurro: "Mark, por favor, não quero que faça isso". Minha resposta foi dura e direta: "Oh!, você não quer que eu faça isso! Grande coisa! Você não quer que eu faça nada, não é? Eu sempre tenho de ser perfeito, não é? Bem, hoje não!" Então o Senhor falou um pouco mais alto e mais sério: "Estou pedindo para que você não se comporte dessa forma". Novamente, eu respondi com arrogância: "Como você vai me impedir? O que você fará? Matará meu filho?" Pela terceira vez o Senhor Deus falou comigo. Desta vez, porém, seu tom era mais severo, mais firme e autoritário. "Mark, você não entende. Estou lhe dizendo que N Ã O Q U E R O que você se comporte dessa forma". Neste ponto, meu ego estava no pleno controle. Minha resposta foi deliberada e direta. Não queria mais ouvir nada sobre aquele assunto. Cheguei em casa por volta das 17h30. Minha esposa estava assando algo na churrasqueira, nos fundos de casa. Ela perguntou se eu tinha ouvido algo sobre um acidente de avião ocorrido naquele dia. Eu disse que não. Ela parecia nervosa e assustada. Eu "senti" que algo estava errado... Logo depois o xerife chegou com a notícia. Nossa filha Katrina (irmã de Adam) começou a gritar. Minha esposa começou a chorar descontrolada. Eu fiquei completamente sem ação, mas senti que uma força assumiu o controle de meu corpo e minha mente. Acredito que era o Espírito Santo de Deus. Nas semanas que seguiram à morte de Adam, comecei a lembrar dos fatos daquele dia. Fui consumido pela culpa do meu
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pecado contra Deus. Tornei-me dolorosamente consciente da necessidade de cair aos pés do Senhor e buscar o seu perdão... Será que fui o culpado por aquela tragédia? O querido Deus, não permita que seja assim.1 Como você pode imaginar, esta carta interrompeu meu dia. Enquanto lia, a cada parágrafo a angústia se intensificava e eu sentia minhas artérias latejando. Meu coração se apertava, batendo no ritmo do auto-exame. Tudo o mais se desvaneceu, assumindo um papel secundário. Coloquei-me no lugar daquele homem e imaginei seu horror. O que pode ser mais doloroso na vida do que carregar uma culpa tão enorme, provocada por uma tragédia dessa natureza? Quando as palavras chegaram ao fim, a dura pergunta permanecia: "Deus tirou a vida do meu filho? Ele estava me fazendo pagar por ir contra a sua vontade?" A busca das respostas para essas duas perguntas — "Deus é o autor da dor?" e "minha dor é decorrente do meu pecado?" — tem incomodado os céticos e os religiosos. Cada pessoa razoável que tenta buscar sentido num mundo enriquecido pelo bem, mas convulsionado pelo mal tenta pensar nessas questões, mas não encontra solução simples, especialmente diante de um acontecimento dramático como este. Depois de séculos de debate, encontrar uma resposta adequada continua sendo tarefa árdua. Trata-se de uma questão digna de toda nossa atenção. Ao mesmo tempo, estou convencido de que não há uma resposta mais completa para o problema do sofrimento e do mal do que aquela apresentada pela fé cristã. A Bíblia não evita entrar neste debate. Jesus encarou esta questão de frente. Às vezes ela chegava até ele de forma sutil, outras vezes num tom mais direto. O incidente mais tocante no qual ele enfrentou este desafio está registrado no nono capítulo do Evangelho de João. A discussão segue nos calcanhares de um dos relatos mais longos de um milagre operado por Jesus. Há mais do que o diálogo normal que precede e segue esta cura particular — e isso porque as pessoas buscaram uma explicação para a deformidade física do indivíduo.
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Quando Jesus caminhava junto com seus discípulos, um homem cego atravessou seu caminho. Os discípulos, nessa ocasião, não se contentaram em testemunhar o milagre da restauração da visão. Foram ao cerne da questão, questionando qual era o papel de Deus numa situação trágica. Um deles perguntou a Jesus de forma até abrupta: "Mestre, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego: Quer dizer, ele mesmo é responsável pela sua sina, ou é culpa de outra pessoa? Jesus os surpreendeu ao responder que a responsabilidade pela deformidade do homem não era dele e nem dos seus pais. "Respondeu Jesus: Nem ele pecou, nem seus pais, mas foi para que se manifestem nele as obras de Deus. E necessário que façamos as obras daquele que me enviou, enquanto é dia; a noite vem, quando ninguém pode trabalhar. Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo". O que Jesus queria dizer com "para que se manifestem nele as obras de Deus"? Enquanto Jesus desvendava a resposta, lembre-se que ele lidava com quatro grupos de pessoas, cada grupo com suas próprias razões para questioná-lo. O primeiro grupo eram os próprios discípulos. Queriam uma resposta porque buscavam uma explicação para o sofrimento individual. No entanto, havia também os vizinhos. As pessoas sabiam que um milagre fora realizado e estavam confusas sobre "como" acontecera. Como ele podia restaurar a vista ao cego? Os céticos dentre eles tinham visto o efeito, mas não queriam admitir o "quem" por trás da ação. Não gostavam do lugar para onde a resposta de Jesus os encaminhava porque seriam compelidos a decidir ser honestos, repudiar o orgulho e segui-lo. Finalmente, havia o homem cego. Ele experimentara pessoalmente a transformação e estava um tanto abalado com todas as implicações — especialmente diante das críticas. Sua conversa pessoal com Jesus levou-o a reconhecer, sem nenhuma dúvida, que ele não era apenas aquele que restaurava a visão; ele também transformava o coração. E óbvio que a resposta de Jesus nesta passagem vai além da agonia dos pais que perdem um filho ou daqueles que suportam com
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graça muita dor. Ele reconheceu imediatamente que havia uma questão por trás da questão. Portanto, a resposta vai mais fundo, não somente para tocar a dor do coração humano, mas para compreender a amplitude do mal, da dor e do sofrimento. Se desejarmos mergulhar mais fundo, certamente a resposta nos levará numa longa jornada. A pergunta simplesmente não pode ser respondida se ignorarmos as possíveis objeções em todos os estágios da resposta. Aqueles que aceitam isso verão que a cosmovisão bíblica é a única que aceita a realidade do mal e do sofrimento respeitando a causa e o propósito e oferecendo a força e o sustento dados por Deus. Aqueles que se recusam a aceitar as verdades apresentadas por Jesus continuarão a considerar esses elementos como barreiras para Deus e, ouso acrescentar, barreiras para a própria razão. Alguns anos atrás, ouvi uma história engraçada. Houve uma pane numa usina elétrica e a cidade entrou em confusão. Muitos engenheiros tentaram encontrar o defeito e não conseguiram. Finalmente, um homem conseguiu resolver o problema e reativar o sistema, apenas apertando um botão. Ele cobrou da cidade um milhão e um dólares. Surpreso com o valor, alguém lhe perguntou por que estava cobrando um milhão e um em vez de arredondar para um milhão. Ele respondeu que estava cobrando um dólar por ter apertado o botão e um milhão por saber qual botão tinha de apertar. A primeira vista, a resposta de Jesus à pergunta dos discípulos parece bem precária. Consiste em apenas algumas poucas afirmações. No entanto, aquelas poucas palavras têm um peso enorme. Por isso a incrível profundidade na resposta só pode ser apreciada quando compreendemos a cosmovisão por trás dela. Agarrar-se a essas poucas linhas sem perceber o contexto da mensagem completa é violentar um tema extremamente importante. Para evitar tal perigo, levarei a questão de volta ao seu desafio fundamental e encararei o debate doloroso (embora real) sobre o mal e o sofrimento num mundo governado por um Deus amoroso. Uma vez que compreendamos a perspectiva cristã mais ampla, entenderemos que Cristo responde à pergunta imediata à luz da questão maior por trás dela.
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U M A A N G Ú S T I A UNIVERSAL Desde o princípio, lembremos que toda cosmovisão — não somente a cosmovisão do cristianismo — deve dar uma explicação ou uma resposta para o mal e o sofrimento. Ou o mal prova categoricamente que Deus não existe, como juram os ateus, ou não existe "realmente o verdadeiro mal", como afirmam os panteístas, ou o mal é explicado com mais coerência pela visão cristã de Deus e seu propósito na criação. Em resumo, não se trata de um problema exclusivo do cristianismo. Quem se opõe à fé cristã não deve se limitar a levantar a questão. Todos nós temos de oferecer uma resposta para o problema do mal, independentemente do sistema de crenças que adotamos. Uma das descobertas que fiz ao estudar este assunto foi que todos os escritores que tentam responder esta questão têm algo em comum e uma pressuposição fundamental. O fator comum é que cada um começa com uma litania de horrores e atrocidades. Não é somente uma pessoa cega de nascença, ou um bebé inocente sendo morto. A lista parece interminável. É como se nós mesmos precisássemos de lembretes da carga emocional envolvida neste problema, que desafia qualquer solução racional. Horrores de proporções inimagináveis são catalogados. Eu percebi que este fato em si é instrutivo, e esta abordagem tem uma lição à qual voltarei mais à frente. Entretanto, emerge um segundo componente, ou seja, a determinação do ponto de partida. Muitos elementos são pressupostos ou escondidos logo no início. Para o cético, a questão o paralisa imediatamente. Esta confusão deveria prestar atenção no fazendeiro que, ao responder aos turistas onde ficava certo local, disse: "Se é para lá que querem ir, não é daqui que devem partir". Veja bem, muitos céticos começam suas questões sobre a existência de Deus com o problema do mal ou pelo menos reservam a maior parte de seu fervor para essa discussão. Ao fazerem isso, porém, cavam um abismo mais fundo do que aquele do qual estão tentando sair, porque ao levantarem o problema do mal sem Deus, correm o risco de fracassar. Entretanto, muitos começam aqui, mas tomam a direção errada. No decurso desta discussão, destacarei por que não se trata de um ponto de partida
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saudável em termos lógicos para aquele que busca negar a existência de Deus. P O S I C I O N A N D O O PROBLEMA A cosmovisão cristã sugere que o mal é mais posicionado como um mistério do que como um problema. Agora, antes que a oposição se levante e clame: "Tolo!" — achando que ao definir como mistério estou tentando fugir de uma solução, deixe-me explicar. Chamar de mistério não é necessariamente evitar uma resposta. Problemas demandam solução, mas mistérios exigem mais — precisam de uma explicação. Quer dizer que haverá necessidade de linhas convergentes de argumentação e não apenas uma resposta seguida de Q.E.D.* No entanto, há uma questão muito importante para classificar o mal como mistério. Gabriel Mareei define mistério como um problema que se enrosca em seus próprios dados. Quer dizer que aquele que questiona torna-se involuntariamente o objeto da questão. Não somos meros observadores da realidade do mal. Estamos envolvidos nela além da mera discussão académica. Peter Kreeft, professor de filosofia na Universidade de Boston, comenta: "Ir a Marte é um problema. Apaixonar-se é um mistério". 2 O mal, como o amor, não é um problema. É um mistério. Não podemos abordar o problema do mal sem terminarmos como foco do problema. Os céticos calmamente ignoram esta realidade e agem como se fossem expectadores observando um fenómeno, quando na realidade fazem parte do fenómeno. Posicionemos o desafio do teísmo cristão nas palavras do renomado intelectual David Hume e rapidamente veremos como a questão arrasta consigo o questionador. Hume disse o seguinte: Se um estranho chegasse subitamente a este mundo, eu lhe mostraria, como amostras dos seus males, um hospital cheio de enfermidades, uma prisão povoada de malfeitores e caloteiros, um Q.E.D - Abreviação de quod erat demonstrandum, que significa "que foi provado" ou que algo que se diz é a solução para um problema ou a resposta para uma questão. (N. do T.)
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campo de batalha coberto de cadáveres, uma frota naval singrando os oceanos, uma nação sofrendo sob a tirania, a fome ou a peste. Para lhe mostrar o lado bom da vida e lhe dar uma noção dos seus prazeres, aonde deveria levá-lo? A um estádio, a uma ópera, ou a um tribunal? Ele pensaria, corretamente, que eu estaria apenas mostrando a diversidade das angústias e das tristezas.3 Em outro lugar Hume reclama que é impossível limitar um mundo assim com um propósito supremo de amor. Provavelmente essas palavras foram mais adequadas do que Hume imaginava, pois na questão ele vislumbrou uma explicação na própria questão. Sua objeção é direta. O problema da dor e do sofrimento é real e sentido individualmente. Por isso todos os grupos envolveram-se com Jesus nesta questão. O problema não somente é real e pode ser sentido, como também é universal. Nenhuma religião tenta explicar isso mais do que o budismo. Toda a peregrinação de Buda em direção da "iluminação" começou por causa de seu interesse no mistério do mal e do sofrimento. Foi a universalidade do problema que o lançou em sua busca. No entanto, assim como há a realidade e a universalidade do problema, há também a sua complexidade. O mal é questionado em pelo menos três aspectos: o problema metafísico (qual é a sua fonte?), o problema físico (como os desastres naturais se encaixam na discussão?) e o problema moral (como pode ser justificado?). O terceiro aspecto é o cerne da questão: Como um Deus bom permite tanto sofrimento? Imediatamente entramos num sério dilema. Como você responde ao lado intelectual da questão sem perder de vista seu lado existencial? Como você responde aos "MarkTriplett" deste mundo sem descambar para a filosofia? Aqueles que sentem mais a dor da questão, muitas vezes, estremecem ao ver como as respostas filosóficas são teóricas. Não gostamos de trabalhar com o lado intelectual da questão porque não percebemos onde a lógica e a filosofia se encaixam no problema da dor. Se você acaba de sepultai um filho, testemunhou ou foi vítima de brutalidade, esta porção da argumentação trará mais raiva do que conforto. Quem deseja a lógica quando o coração está despedaçado?
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Quem deseja um tratado filosófico sobre os componentes do osso quando sofre de uma fratura exposta? Nesses momentos buscamos conforto. Queremos um analgésico. No entanto, concentrar-se apenas no resultado sem dar a devida atenção ao processo pode atenuar a dor apenas temporariamente, deixando a fratura sem tratamento. Em algum lugar e em algum momento a lógica deverá entrar em ação. Se a argumentação for fundamentada, o conforto virá em seguida. Por isso, peço ao leitor: mesmo que esta primeira porção pareça enfadonha, por favor, siga em frente, porque é aqui que estudamos a questão, antes de elaborarmos uma resposta. Não devemos permitir que a angústia do coração nos faça ignorar o processo mental. A explicação deve satisfazer as demandas emocionais e intelectuais da questão. Responder às questões da mente e ignorar as emoções conturbadas parece crueldade. Curar as feridas emocionais e ignorar a luta do intelecto parece insensatez. Qual, então, é o ponto de partida? Desde que o cerne do problema é em primeiro lugar o questionamento moral, como pode haver uma justificativa moral para o mal? Uma analogia feita por C. S. Lewis pode ajudar. Ele lembra que quando um navio está em alto mar, pelo menos três perguntas devem ser respondidas. Pergunta número um: Como evitar que o navio afunde? Pergunta número dois: Como evitar que bata em outros navios? Estas duas perguntas parecem óbvias, mas por trás delas espreita a mais importante de todas, a pergunta número três: Para começar, por que o navio está lá? A primeira pergunta trata da ética pessoal. A segunda aborda a ética social. A terceira se debate com a ética normativa. Nossas culturas, quando muito, abordam as duas primeiras perguntas. Ignoram a defesa racional do próprio propósito da vida e não sabem onde obter direção. Se o indivíduo não sabe qual é o seu propósito, qualquer rumo serve. Quando o navio começa a afundar ou bater em outros navios, como pode chegar em segurança ao porto sem os instrumentos? Podemos ter certeza de que nenhum imperativo ético pode ser estabelecido e nenhum pronunciamento moral pode ser feito sem
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primeiro haver o estabelecimento do imperativo da vida e o conhecimento de como medir o progresso. Por que eu existo? E neste ponto que os céticos ficam à deriva no oceano da vida. Se estivermos aqui puramente por acidente e navegamos ao acaso, como se pode determinar se estamos ou não na direção certa? Por que devemos estar em certo lugar e não em qualquer outro? Agora veremos por que a questão em si derrota os céticos que desejam negar que exista de fato qualquer propósito para a vida. VIVENDO COM CONTRADIÇÕES Deixe-me apresentar duas portas por meio das quais a pessoa que levanta a questão da existência de Deus tenta escapar do envolvimento com a incredulidade, assumindo um aspecto de razão. Receio, porém, que essas portas estejam "trancadas". A primeira rota de escape do problema do mal é proposta por aqueles que afirmam que Deus não pode existir porque há muito mal evidente na vida. Não enxergam nenhuma contradição lógica dentro do seu sistema, desde que não têm de provar que o mal coexiste com um Criador bom. Afirmam em tom categórico: o mal existe; portanto, o Criador não existe. Neste ponto, porém, o cristianismo proporciona um contra-argumento lembranào-lhes que não escaparam do problema da contradição. Se o mal existe, então temos de supor que o bem existe, a fim de estabelecermos uma diferença. Se o bem existe, devemos supor que existe uma lei moral pela qual medimos o bem e o mal. Mas, se existe uma lei moral, não devemos concluir que existe uma fonte para ela, ou no mínimo uma base objetiva? Quando me refiro a uma base objetiva, quero dizer algo que seja uma verdade transcendente em todas as épocas, independentemente se creio ou não. Este argumento é forte e deve receber a devida consideração por parte daqueles que negam a existência de Deus mas aceitam a presença do mal. Em oposição à afirmação cristã que Deus é necessário para se situar as noções de bem e mal, os céticos respondem com uma pergunta: "Por que a evolução não pode explicar nosso senso moral? Por que precisamos de Deus?".
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Esta é a mais recente abordagem dos intelectuais ateístas que buscam explicar o bem e o mal à parte de Deus. Ao longo dos anos, os naturalistas primeiro negaram a causalidade como um argumento para provar a existência de Deus. Por que temos de ter uma causa? Por que o universo simplesmente não apareceu? Depois negaram o desígnio como um argumento para a existência de Deus: Por que precisamos de um designer! Por que as coisas não podem simplesmente ter acontecido, dando a aparência de um desígnio? Agora eles negam a moralidade como argumento para a existência de Deus: Por que precisamos estabelecer uma lei moral ou uma fonte para ela? Por que não podemos viver numa realidade puramente pragmática? Acho isso fascinante! Eles desejam uma cansa para o sofrimento ou um desígnio para o sofrimento, mas já negaram que tais elementos sejam necessários e valham qualquer esforço. Esta tentativa de negar Deus por causa da presença do mal é tão ilógica que é incrível que alguém possa aceitá-la. Nenhum proponente da ética evolucionária explica como uma primeira causa amoral e impessoal tenha produzido, por meio de um processo amoral, uma base moral para a vida, enquanto ao mesmo tempo nega qualquer base moral objetiva para o bem e o mal. Não parece improvável que de todas as permutas e combinações que um universo aleatório possa dispor, tenhamos terminado com as noções de verdade, de bem e de beleza? Na verdade, por que classificar qualquer elemento como bem ou mal? Por que não chamar de azul ou amarelo? Assim, classificaríamos como preferências diferentes. Bertrand Russell tentou adotar esta abordagem e pareceu patético. A verdade é que não podemos escapar do giro existencial fugindo da lei moral. Os valores morais objetivos existem somente se Deus existir. Por exemplo, é correto mutilar bebés apenas por diversão? Qualquer pessoa racional diria que não. Sabemos que existem valores morais objetivos. Portanto, Deus deve existir. O exame dessas premissas e sua validade apresenta um argumento muito forte. De fato, J. L. Mackie, um dos ateístas mais ferozes que questionam a existência de Deus com base na realidade do mal, concordou pelo menos com esta conexão lógica quando disse:
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Podemos bem argumentar... que os aspectos prescritivos intrinsecamente objetivos, supervenientes aos aspectos naturais, constituem um grupo tão improvável de qualidades e relações que dificilmente surgiram no curso ordinário de eventos, sem um Deus todo-poderoso para criá-los.4 Portanto, temos de concordar com a conclusão de que nada pode ser intrinsecamente bom e nem prescrito como tal sem que exista também um Deus que formou o universo. No entanto, é exatamente este Ser que os céticos querem negar por causa da existência do mal. A primeira porta de saída para se fugir de Deus é aberta, e a visão é aterradora. Só sobra uma opção, ou seja, tentar alterar a forma da porta. Reconhecendo que, se o mal é admitido, então uma lei moral objetiva precisa ser invocada, os céticos tentam uma nova jogada. Veja esta explicação incrível dada por um defensor do ateísmo, Richard Dawkins, de Oxford: Num universo deforçasfísicascegas e de replicação genética, algumas pessoas vão ser feridas, outras terão sorte e não encontraremos nenhuma lógica, razão ou justiça nisso. O universo que observamos tem precisamente as propriedades que deveria ter, se na base não houvesse desígnio, propósito, nem bem e nem mal. Nada além de uma indiferença triste e cega. O DNA não sabe nem se importa. O DNA apenas é. E nós dançamos segundo a sua música.5 Você vê o que aconteceu? Os céticos começaram apresentando uma longa lista de coisas horríveis, dizendo: "Essas coisas são imorais; portanto, não existe um Deus". No entanto, levantar esses elementos como questões morais é supor uma situação que a evolução não pode proporcionar. Não há como se chegar a uma questão moral, dentro das suposições do naturalismo. Então, o que os céticos fazem? Negam os valores morais objetivos porque aceitar tal realidade seria reconhecer a possibilidade da existência de Deus. Eles concluem então que na verdade não existe algo como o mal. Será que esta é uma resposta? Se o D N A não sabe e nem se importa, o que então promove o nosso conhecimento e nossa preocupação? Será que somos computadores encarnados e superestimamos
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nossos sentidos? Se nossos sentimentos não têm nenhum peso na realidade dessa questão, então pode ser que a nossa inteligência seja artificial, e que a inteligência dos computadores seja genuína, pois não têm sentimentos, mas somente informações. Os computadores não se "importam", e não se "entristecem" com o mal; portanto, estão mais próximos da realidade. Será que é a isso que chegamos? Devemos tomar cuidado, pois uma vez que empreendemos a descida, não há como parar nessa ladeira escorregadia. A negação de uma lei moral objetiva, baseada na compulsão de negar a existência de Deus, resulta necessariamente na negação do próprio mal. Será que podemos dizer a uma jovem violentada que o estuprador apenas obedeceu a seu DNA? Podemos dizer ao pai do jovem Adam Triplett que ele apenas está dançando ao som do seu DNA? Dizer às vítimas de Auschwitz que seus algozes apenas obedeciam ao DNA, ou dizer aos entes queridos das pessoas devoradas por Jeffrey Dahmer que ele apenas obedecia ao seu DNA? Vá em frente! Isso é repugnante! Não é uma dança! E o pé do escapismo na garganta da razão, lutando por racionalidade e ao mesmo tempo negando que existem pontos de referência lógicos. Com efeito, enquanto busca uma resposta para a questão do mal, o escapista termina negando a questão. De fato, eu fiz um teste com esta história, apresentando-a aos estudantes da Universidade de Oxford. Perguntei a um grupo de céticos: se eu pegasse um bebé e o despedaçasse diante deles, teria feito algo errado? Eles negavam a existência de qualquer valor moral objetivo. Houve silêncio diante da minha pergunta; depois uma voz se elevou do grupo, dizendo: "Eu não gostaria de ver tal coisa, mas não poderia dizer que você fez algo errado". Uau! Que resposta! Ele não iria gostar. Que irracionalidade — não poderia considerar errado. Eu só tive de lhe perguntar o que então sobra da pergunta original, se o mal é negado? Dawkins poderia tê-lo ajudado mais. Em suas aulas em 1922 para a Associação Humanista Britânica, ele fez uma afirmação chocante. Tendo menosprezado a noção de Deus em seus numerosos escritos e explicado o mal como a dança do DNA, o que fazemos então com o
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senso de moralidade que encontramos na experiência humana? Por que ficamos levantando essas questões sobre bem e mal? Dawkins tem a resposta. Vírus. O vírus se instala nos dados dentro do gene humano e espalha suas informações falsas. Se pudermos neutralizar o vírus que nos fez pensar dessa forma, seremos purificados e livres dessa noção deturpada de Deus, do bem e do mal. 6 Conforme Dawkins, aqueles que fizeram a pergunta a Jesus precisavam de um antivírus. De fato, o próprio Jesus precisou ser reprogramado. Eu diria que aquele que moraliza os motivos do Holocausto precisa de uma nova proteção anti-vírus. Dessa forma, a questão do mal nem emerge. Poderíamos perguntar a Dawkins se somos moralmente obrigados a remover esse vírus. Não esqueçamos que ele mesmo, é claro, está livre do vírus e, portanto, pode "carregar" nossos dados morais. O problema se enrosca em torno de si mesmo. Numa tentativa de escapar do que chamam de contradição entre um Deus bom e um mundo mau, os céticos exorcizam a mente das noções ateístas, mas depois suas mentes são dominadas e vencidas por uma contradição de sete lados. Embora eu tenha citado muitas vezes G. K. Chesterton em sua crítica a esse tipo de pensamento, ninguém fala melhor sobre isso; por isso, vou citá-lo novamente: Toda denúncia implica em algum tipo de doutrina moral, e o cético moderno duvida não somente da instituição que denuncia, mas da doutrina pela qual ele faz a denúncia. Assim, eie escreve um livro reclamando que a opressão imperialista insulta a pureza das mulheres e depois escreve outro livro, uma novela na qual insulta a si próprio. Como um político, ele clama que a guerra é um desperdício de vidas e depois, comofilósofo,clama que a vida é uma perda de tempo. Um pessimista russo denuncia um policial por matar um camponês e depois prova pelos princípios mais elevados da filosofia que o camponês devia ter se matado. Um homem denuncia o casamento como uma mentira e depois denuncia a aristocracia por tratar o casamento como uma mentira. O homem desta escola vai primeiro a uma reunião política onde reclama que os índios são tratados como animais. A seguir, pega o chapéu e o guarda-chuva e vai a uma reunião científica onde prova
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que os índios praticamente são animais. Resumindo, o revolucionário moderno, sendo um cético infinito, está sempre engajado em solapar seu próprio alicerce. Em seu livro sobre política, ele ataca os homens por desrespeitarem a moralidade; em seu livro sobre ética, ele ataca a moralidade por desrespeirar os homens. Portanto, o homem moderno revolrado torna-se praticamente inútil para todos os propósitos da revolta. Rebelando-se contra tudo, ele perde o direito de se rebelar contra qualquer coisa.7 Deixe-me ilustrar o ponto de Chesterton com algo mais atual. Por meios patéticos, vimos um exemplo disso quando a América foi apanhada nas malhas do escândalo Clinton/Lewinsky. A contradição moral revelou uma espantosa inclinação cultural. A famosa observação do presidente, que "tudo depende de qual é a definição 'daquilo'", fez com que pesquisadores saíssem às ruas com a pergunta do século: "As palavras têm um significado definido, ou podemos dar-lhes um sentido à nossa escolha?" (o que pode ser mais estranho do que criadores de palavras perguntando se as palavras têm algum significado e empregando palavras para fazer a pergunta?). Para grande "surpresa" dos pesquisadores, a maioria das pessoas pareceu concordar que às vezes as palavras significam coisas diferentes para pessoas diferentes, supondo, é claro, que não havia equívoco no significado da pergunta e da resposta. Isso levou à próxima pergunta: "A moralidade é algo absoluto ou uma questão subjetiva?" A resposta surpreendente foi que moralidade é uma questão privativa. Essas duas perguntas tornaram-se o foco principal nos noticiários. Primeiro, as palavras têm um significado pessoal. Segundo, a moralidade é uma questão privativa. Ironicamenre, o terceiro item nos noticiários foi que os Estados Unidos tinham lançado uma severa advertência a Saddam Hussein: se ele não parasse de fazer jogos de palavras com a equipe de inspeção nuclear, os americanos começariam a bombardear o Iraque. Subitamente, as palavras passaram a ser consideradas importantes. Os americanos não podiam permitir que Saddam Hussein dançasse ao som do seu DNA. Não podiam permitir que ele escrevesse
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seu próprio dicionário. Não podiam permitir que ele vivesse segundo sua própria ética, mas eles podiam permitir que seus cidadãos determinassem o sentido das palavras que usavam e insistissem que a moralidade que praticavam não era da conta de mais ninguém. Este é precisamente o mundo ao qual Dawkins e aqueles que adotam filosofia similar são impelidos (pela lógica). Trata-se de um mundo de agudas contradições. Se a moralidade não é nada mais do que uma escalada evolucionária, não há como avaliar se chegamos ou não ao topo. Eles mesmos admitem que não há como prever a ordem dos átomos. No final, tal filosofia do mal torna impossível a vida em comunidade. Dawkins não pode explicar o mal negando a lei moral objetiva, e não pode negar o mal sem perder seus argumentos quanto à existência de Deus. Para os céticos, esta porta está "trancada", mesmo quando o seu navio afunda. P E D I N D O A DEUS PARA SER C O N T R A D I T Ó R I O A princípio, a segunda porta parece ser uma boa saída. Os céticos perguntam por que Deus não poderia nos fazer sempre escolher o bem. Os filósofos de renome levantam esta questão como o ponto crucial de suas objeções ao cristianismo. Mas aqui também a objeção viola a razão. Alvin Plantinga, da Universidade de Notre Dame, considerado por muitos como o mais respeitado filósofo protestante de nossa época, apresenta um argumento forte e convincente contra esta objeção dos céticos. Ele argumenta que esta opção traz uma falsa visão do que significa a onipotência divina. Temos de reconhecer que Deus não pode fazer aquilo que é mutuamente exclusivo e impossível dentro da lógica. Deus não pode fazer círculos quadrados. Os termos são mutuamente exclusivos. Plantinga tem razão. Eu devo acrescentar que se Deus pode fazer qualquer coisa, mesmo aquilo que é mutuamente exclusivo, então ele pode contradizer seu próprio caráter, o que, por implicação, resolveria o problema do mal, o qual não precisaria de apologia. A própria razão para levantarmos a questão é que buscamos coerência. N u m mundo onde o amor é a ética suprema, a liberdade deve ser a base. Um amor programado ou compelido não é amor; seria apenas uma resposta condicionada ou uma expressão de autogratificação.
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Novamente, mesmo os pensadores hostis ao cristianismo inadvertidamente proferem verdades que concordam com o pensamento cristão. Por exemplo, Jean Paul Sartre, em sua obra Being and Nothingness, diz: O homem que deseja ser amado não deseja a escravidão daquela pessoa a quem ele ama. Ele não determina se tornar o objeto da paixão, a qual flui mecanicamente. Ele não deseja possuir um autómato, e se desejarmos humilhá-lo, só precisamos tentar persuadi-lo que a paixão da pessoa amada é o resultado de um determinismo psicológico. Aquele que ama sentirá então que seu amor e seu ser foram desvalorizados... Se a pessoa amada é transformada num autómato, aquele que ama sente-se sozinho.8 Que profundo! O amor compelido é o precursor da solidão. Ter a liberdade de amar quando pode escolher não amar é dar ao amor seu significado legítimo. Por isso eu disse anteriormente que David Hume tinha mais a dizer sobre o problema da dor do que imaginava. Não seria o propósito supremo do amor a única forma de equacionarmos o problema da dor? Pedir que nos seja negada a liberdade e que tenhamos de fazer somente o bem não é pedir amor, mas sim compulsão e algo que vai além da condição humana. As duas portas de escape dos céticos estão bem trancadas. Não podemos situar o mal sem uma lei moral transcendente, o que a macroevolução não pode sustentar. Não podemos alcançar a ética mais elevada sem a possibilidade de liberdade. A primeira nos conduziria a uma vida de contradições. A segunda exige que Deus se contradiga. Resumindo, para os naturalistas, o homem cego de nascença estava dançando ao som do DNA. Assim como a questão por trás da questão, os naturalistas não só fracassam em responder-lhe, mas também fracassam em justificá-la. Como outras religiões responderiam à pergunta dos discípulos, e à questão por trás da questão? Como já afirmei, as religiões panteístas tentam dar respostas extensas, e muitas vezes elas são terrivelmente confusas. A dificuldade
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no hinduísmo é que não há uma resposta monolítica para o problema do sofrimento. Declarando que tudo no mundo físico é irreal, ilusório, mutável, transitório, acaba criando enormes problemas filosóficos. Além do mais, é claro que alguém perguntará: "O que ocasionou esta 'ilusão' do mal, desde que tudo faz parte da realidade divina?". Os hindus não conseguem responder. Há uma passagem clássica no Bhagavad-Gita na qual Krishna aconselha o jovem Arjuna, que se encontra no campo de batalha, a encarar a possibilidade de matar seus meio-irmãos. Ele se debate e não consegue fazer tal coisa. Krishna, que se apresenta como o condutor da carruagem de Arjuna, conversa com ele sobre sua obrigação: cumprir a responsabilidade de sua casta como guerreiro. E assim que a vida se move. Krishna diz a Arjuna para não temer sua obrigação, pois todo o bem e todo o mal se fundem em uma única realidade suprema, Brahman. Ali, segundo Krishna, a distinção se dissipa. Aquilo que parece mal é apenas a realidade inferior. No final, toda a vida, todo bem, todo mal fluem de Deus e voltam para ele. "Vá para a guerra e faça seu trabalho". Esta convergência de tudo numa realidade absoluta forma o eixo da resposta à questão por trás da questão. Pode-se ver como o senso de fatalismo domina quando toda a realidade é revelada, de forma inexorável e inevitável. Há uma história engraçada relacionada ao principal filósofo indiano, Shankara. Ele tinha acabado de dar uma aula ao rei sobre o engano da mente e sua distorção da realidade material. No dia seguinte, o rei soltou um elefante que estava fora de controle; Shankara correu e buscou segurança em cima de uma árvore. O rei lhe perguntou por que ele fugira se o elefante não era real. Para não cair em contradição, o filósofo respondeu: "O que o rei viu na verdade foi um 'eu' irreal subindo numa árvore irreal!" Poderíamos acrescentar: "Trata-se de uma resposta irreal". Embora seja apenas uma fábula, o hinduísmo clássico não tem uma forma de abordar o problema do mal. Negar que o mal seja real não diminui a impiedade nem aplaca o desejo do coração de buscar a pureza. Grande parte da adoração hindu é voltada para os rituais de purificação. Por essa razão todo o hinduísmo popular está repleto
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de formas de adoração, medo de punição, meios de se obter o favor de Deus, etc. No entanto, por que esses anseios são vistos como reais? De fato, uma das fortes críticas do hinduísmo ao cristianismo e a razão para se recusar sua validade é a referência hindu aos dias do British Raj [período de domínio britânico na índia] e os danos da exploração dos subjugados. Não podemos adotar os dois caminhos; o mal não pode ser ilusório e concreto. O hinduísmo explica esta percepção do mal como induzido pela ignorância. Isso, porém, só empurra a questão um passo adiante. Se tudo é um, e a pluralidade é uma ilusão gerada pela ignorância, então quem mais, além dessa unidade, pode ser a fonte da ignorância? E se o um é a fonte da ignorância, então o absoluto impessoal no u m é um absoluto que carece de verdadeiro conhecimento. Aqui, porém, encaramos a verdadeira resposta hindu à questão do cego de nascença. A reencarnação é um aspecto central da filosofia hindu. De fato, alguns pensadores orientais citam a passagem do cego como prova de que a Bíblia ensina a reencarnação. Como mais o homem poderia ter pecado antes de nascer? Vamos deixar claro que se trata de uma interpretação errónea da passagem e uma atitude de evitar encarar o que exatamente a doutrina da reencarnação defende. Primeiro, esta passagem dificilmente "ensina" sobre reencarnação. Trata-se apenas de uma pergunta feita a Jesus. O ensino bíblico é que "aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo, depois disso, o juízo" (Hb 9:27, ênfase acrescentada). Na verdade, no mesmo contexto Jesus afirmou que não houve conexão direta entre qualquer ato prévio e a condição do homem e que a oportunidade para se escolher crer na mensagem divina é breve, depois da qual não há apelação. Por contraste e por definição, a reencarnação é um ciclo recorrente de causa e efeito, repetido até que todas as infrações sejam pagas e se alcance o absoluto. Jesus negou claramente esta possibilidade. "A noite vem, quando ninguém pode trabalhar", ele disse. A oportunidade termina.
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Em vez de ouvir meus pensamentos sobre o que significa a reencarnação, ouça as palavras dos Upanixades sobre este assunto: Aqueles que têm uma conduta agradável aqui — a perspectiva, de fato, é que entrem num útero agradável, seja o útero de um brâmane [a classe sacerdotal], ou o útero de um xátria [a classe guerreira ou real], ou o útero de um vaixá [a classe operária ou profissional]. Mas aqueles que têm uma conduta deplorável aqui — a perspectiva é, de fato, que entrarão num útero deplorável de um cão, ou o útero de um suíno, ou o útero de um marginal (Chandogya Upanishad, 5.10.8). Há outras passagens descritivas que dão mais detalhes e ideias que não podem ser lidas com indiferença. Neste ponto o hinduísmo inclui um senso de erro, o qual é levado à próxima vida, em forma humana, animal ou vegetal. Na doutrina hindu, esta doutrina não é negociável. Há passagens nos Upanixades que são bem chocantes. O budismo também invoca a doutrina do carma e da reencarnação. As linhas de abertura dos seus escritos dizem que todo indivíduo é a soma total de tudo o que pensou na vida passada. Uma das coleções de discursos de Buda é chamada de Anguttara Nikaya. Eis aqui algumas das suas reflexões: Minha kamma [ações presentes e passadas] é minha propriedade pessoal, kamma é minha única herança, kamma é a única causa do meu ser, kamma é minha única família, minha única proteção. Sejam quais forem as minhas ações, boas ou más, eu me tornarei herdeiro delas.9 Note que a linguagem páli, empregada nos escritos do budismo, tem um som diferente para algumas palavras que se tornaram comuns no Ocidente. Kamma, por exemplo, tem o mesmo significado que carma. Assim, também para o budismo, a resposta para a pergunta dos discípulos sobre a condição do cego — "Quem pecou, ele ou seus pais?" — seria: "Este homem e seus pais pecaram". O sofrimento do cego é uma herança dos seus pecados em sua vida passada e os pais também têm parte na herança dessa situação.
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Entretanto, há uma diferença. O hinduísmo argumenta dizendo que por trás do mundo transitório ou irreal reside o real supremo. O budismo inverte esta afirmação dizendo que por trás do mundo real reside aquilo que não é permanente. Assim, a razão para todos os nossos anseios é que, por acharmos que existe uma permanência, então temos anseios. Uma vez que sabemos que nada é permanente, nem mesmo o ser, então deixamos de ter expectativas. No estado de "Iluminação", o ser é extinto, e todos os desejos (bem como o sofrimento) se desvanecem. Este é o objetivo do budismo. Como podemos acabar com o sofrimento? De acordo com o ensino budista, se conseguirmos obliterar os desejos, obliteraremos também o mal. De fato, a própria palavra nirvana significa a negação da selva de desejos à qual os nossos renascimentos nos condenaram. E difícil deixar de perguntar: como uma cosmovisão que considera tudo provisório pode explicar a origem da falta da transitoriedade e a sedução da mente de enxergar essas coisas como permanentes? O que é, então, o ser, se ele nem mesmo existe, exceto como uma ilusão? A resposta de Buda é que ele mesmo viveu sob a ilusão da permanência até que por meio de múltiplas reencarnações descobriu a transitoriedade da realidade. Depois ele anunciou que esta seria sua última existência, desde que obtivera a completa falta de desejos. E claro que naquela última encarnação ele corrigiu seus discípulos das opiniões erróneas. Ele questionou vários ensinamentos hindus. Acima de tudo, porém, o budismo encara um problema de proporções gigantescas. Se a vida é cíclica e não há início das encarnações, por que há um final? Como alguém tem um regresso infinito de causas, se há uma encarnação final? O filósofo William Lane Craig lembra que um regresso infinito de causas é como tentar sair de um buraco sem fundo. Como se pode começar a sair, se jamais chegamos ao fundo? Por outro lado, podemos bem perguntar: se todo nascimento é um renascimento, que carma o indivíduo recebe no primeiro nascimento? Também se pode perguntar: se a falta de desejos é o nirvana supremo, então é
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certo afirmar que neste estado não há nem mesmo o desejo de ver o mal ser extirpado? O aspecto mais incrível desse ensino é que quanto mais dolorosa é a existência, maior é a certeza de que a vida anterior está pagando suas contas. Assim, quando alguém encara uma criança deformada de nascença, o kamma entra em operação. Podemos não admitir, mas esta é a realidade existencial do ensino. Alguns anos atrás, soube de um grupo de missionários que morreram (junto com suas famílias) num acidente de ônibus num país budista. Em poucos minutos, os moradores locais saquearam os destroços do ônibus e os cadáveres das vítimas. A razão alegada foi que as pessoas que morreram estavam recebendo seu kamma e não era errado despojar alguém que está pagando seus débitos. Se toda a vida é um pagamento por uma vida anterior, podemos nos perguntar por que Buda relutou tanto em permitir o ingresso de mulheres na ordem sagrada e decretou mais regras para governar o comportamento delas. De fato, as mulheres mais antigas na ordem tinham de reverenciar os homens iniciantes. Se o kamma está em operação, por que o acréscimo de regras, supondo-se que há uma ordem mais elevada imposta sobre algumas pessoas? A menos, é claro, que em virtude do seu sexo, a mulher tivesse herdado um kamma maior. O que fica evidente é que o navio panteísta se despedaça contra os recifes do mal. Não se pode afirmar a ausência de um ser individualizando o nirvana, e não se pode falar sobre a cessação do sofrimento sem também dar a origem do primeiro pensamento errado. O budismo possui um intrincado conjunto de normas e regulamentos porque precisa disso. Como um caminho desprovido de uma divindade, trata-se de estrada pavimentada com o kamma. Reconhece o mal e depois, de forma fatalista, fecha os olhos e busca um escape. N u m agudo contraste, a mensagem cristã reconhece o horror do mal e busca oferecer uma razão moralmente justificável para que Deus permita o sofrimento. Voltemo-nos para a resposta cristã, para que possamos ver a diferença.
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O D O A D O R DA VIDA Quando tudo o que a Bíblia diz é colocado junto, há seis elementos que se combinam para dar uma explicação coerente e única. Não se busca nenhum escape, seja por meio da negação da questão ou das implicações da resposta. Primeiro, o Deus da Bíblia se revela como o Autor da vida e como o Ser no qual habita toda a bondade. A distância entre céticos e cristãos é grande desde o início. Deus não é apenas bom. Quer dizer que no que se refere a ele, estamos lidando com mais do que assuntos morais de certo e errado, prazer ou dor. Estamos tratando com uma fonte transcendente de bondade que é adotada não por ser "melhor" numa hierarquia de opções, mas porque é apropria base sobre a qual todas as diferenças são estabelecidas. Para nós, as categorias morais com frequência se movem em comparações e hierarquias. Falamos que uma coisa é melhor do que outra em termos de julgamento ou sentimento. Nossa cultura é mais avançada moralmente do que outras (pelo menos é o que pensamos). A existência de Deus muda essas categorias variadas e nos move não para categorias comparativas, mas para a apresentação da própria essência do fundamento da palavra bondade. Deus é santo. Esta diferença é o argumento quase impossível de ser abraçado pelos céticos. Santidade não é apenas bondade. "Por que Deus não nos criou para escolhermos apenas o bem? Por que coisas ruins acontecem com pessoas boas?" A realidade é que o oposto do mal, em grau, pode ser a bondade. No entanto, o oposto do mal absoluto, em espécie, é a santidade absoluta. No contexto bíblico, a ideia de santidade é a tremenda "singularidade" do próprio Deus. Ele não se limita a se revelar como bom; ele se revela como santo. Na peça O fantasma da ópera, há uma canção intitulada "A música da noite". Ela é cantada pela figura meio sinistra do Fantasma, que seduz a mulher que ama. Ele a enfeitiça com sua voz e a atrai para o seu mundo, dizendo que a escuridão da noite aguça as sensações e ativa a imaginação. Ele suplica para que ela abandone suas defesas e se entregue aos sentidos, mesmo quando a noite obscurece os olhos da verdade.
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Então a música diz: "Cubra seu rosto da luz ofuscante do dia", porque, na escuridão, o indivíduo pode submeter os "deveres" da consciência ao deleite das paixões. A melodia é assustadora, as palavras são cheias de sedução e a vontade é dobrada. Para tal linha de raciocínio, a luz é ofuscante porque expõe a impiedade que fica encoberta nas trevas. A santidade de Deus é como luz num mundo escuro. Assim como a chegada do alvorecer expõe os pensamentos e obras da noite anterior e muitas vezes cria um sentimento mórbido de culpa, a santidade revela o que a luz é em si — a fonte para se descobrir e libertar aquilo que tem estado preso pela mentira. O profeta Isaías do Antigo Testamento descreveu seu estado de assombro quando Deus se revelou a ele. Sendo um homem moralmente bom, mesmo assim caiu por terra e imediatamente sentiu que não era digno de estar na presença de Deus. Não estava apenas na presença de alguém melhor do que ele. Estava na presença Daquele por quem e por cuja causa toda a pureza encontra seu ponto de referência. Por isso ele ficou sem fala. Neste ponto, islamismo e cristianismo encontram uma perspectiva parcialmente comum. Deus é transcendente não somente em seu ser, mas também na sua natureza. A santidade de Deus, por sua vez, transmite uma santidade intrínseca à nossa vida. Nós somos descendência de Deus. Não é uma condição sagrada conferida culturalmente ou determinada juridicamente. Toda pessoa tem valor intrínseco. Este valor é seu por direito de nascimento, com Deus como seu Pai celestial. Não foi este reconhecimento que ocasionou a questão, em primeiro lugar? Se meu nascimento é sagrado, então que erro deve ser punido com cegueira? A F O N T E DA H I S T Ó R I A Segundo, uma dedução flui dessa autoria. Se Deus é o Autor da vida, deve haver um script. Nós não somos, nos termos de Jean Paul Sartre, bolhas vazias flutuando no mar do nada. Não estamos num cruzeiro sem propósito, sem destino e sem direção.
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Não quer dizer que o mundo é um palco, e nós temos de escolher e desempenhar roteiros diferentes. As linhas que temos nos dizem que não se trata de uma peça de teatro, mas da vida real que dirige a história em cada ato e pensamento. Os desempenhos individuais devem obter sua direção a partir da história mais ampla do propósito de Deus para nossas vidas. Todos conheciam a história: o homem cego, os discípulos e os vizinhos. No princípio, Deus criou o céu e a terra. Deus era soberano sobre toda a vida. Como aquele homem cego se encaixava na história? O particular estava buscando uma explicação no contexto maior. Se o plano maior fosse plenamente compreendido, a história menor faria sentido. Há uma forma bem simples de ilustrar este ponto. Anteriormente citei uma canção da peça O fantasma da ópera de Andrew Lloyd Webber, um dos musicais de maior sucesso na Broadway. A música é excelente, e a história é muito interessante. Lembro-me de que, quando ouvi as músicas da peça pela primeira vez no rádio, fiquei surpreso ao sentir que algumas partes pareciam desconexas, às vezes até desagradáveis. Como o mesmo compositor podia criar algo deleitoso e incómodo? Eu não consegui unir as duas ideias até que assisti à peça. Então, tudo se encaixou - o magnífico e o patético, a harmonia e a dissonância, o hediondo e o belo. Por que? Porque havia um roteiro que explicava tudo. Quando abordamos a história dos planos e propósitos de Deus nascidos a partir de seu caráter puro e santo, o bem e o mal falam dentro do seu contexto. Sem Deus, não há história, e nada faz sentido. Certa vez tive o privilégio de assistir a uma palestra de Stephen Hawking na Universidade Cambridge. Seu objetivo era discutir sobre a questão: "O homem é determinado ou livre?". Hawking apresentou seus argumentos meticulosamente e depois chegou à tão esperada conclusão: "O homem é determinado? Sim. Entretanto, desde que não sabemos o que foi determinado, podemos também não ser". (Não pude deixar de me perguntar se ele mesmo tinha se elevado acima do determinismo a fim de fazer tal pronunciamento,
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ou o pronunciamento era parte do determinismo que ele defendia. Será que os dados estavam enrolados em torno de si mesmos?) Houve um murmúrio na audiência, um sinal visível do desapontamento geral. Veja, não há como entender desígnio sem um padrão. Não há uma forma correta de se viver se não houver um roteiro. De fato, nós não somente perdemos a história de vista, mas perdemos também toda referência comum para o significado. Durante a I Guerra Mundial, algo fascinante ocorreu numa noite de Natal. No meio do incómodo silêncio das armas, subitamente uma voz solitária começou a cantar uma música natalina. Logo outra voz não resistiu e se uniu à primeira, e, antes que alguém se desse conta, havia um coro de vozes falando sobre Belém, de ambos os lados, quando os inimigos se uniram para ler o mesmo script. A história do bebe na manjedoura, o Príncipe da Paz, foi capaz de trazer comunhão entre partidos em guerra, mesmo que por algumas horas. E assim que um compositor conta a história. Infelizmente, só posso citar aqui algumas estrofes: Oh!, meu nome é FrancisTolliver, Sou de Liverpool. Dois anos atrás a guerra Estava me esperando, Quando saí da escola. Da Bélgica para Flandres, Da Alemanha até aqui, Lutei pelo rei e pelo país Que tanto amo. Era Natal nas trincheiras, O frio era amargo e cortante Os campos gelados da França Estavam quietos. Não se ouvia nenhum som de paz. Nossas famílias na Inglaterra Estavam pensando em nós, Seus bravos filhos tão distantes.
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Eu estava deitado com meus companheiros, No chão duro e gelado, Quando um som peculiar Foi ouvido através das linhas inimigas. Eu disse: "Ouçam isso, rapazes", Todos os soldados prestaram atenção, Enquanto uma voz jovem cantava em alemão. "Ele canta bem", meu companheiro disse. Logo, uma a uma, outras vozes alemãs Entraram na harmonia. Os canhões permaneceram em silêncio E, as nuvens de gás não se elevaram Quando o Natal nos trouxe uma trégua na guerra. Assim que terminaram E uma pausa reverente se fez, "Glória a Deus nas alturas", Entoaram umas vozes de Kent. A próxima que cantaram foi "Stille Nacht", "Noite Silenciosa", E, em duas línguas, uma canção Subiu até os céus.10 Veja como duas linguagens podem proclamar o mesmo significado quando ambas conhecem a mensagem. Se a simples noção da presença de Deus pôde parar a violência naquek noite, que impacto maior não teria a submissão a todo o seu scriptí A bondade pode durar alguns momentos; a santidade define toda a vida. Deus tem um roteiro. Ele fala sobre isso em sua Escritura. A descoberta do roteiro nos leva para mais perto da solução do mistério. O P O N T O DA H I S T Ó R I A Terceiro, se há uma história, qual é o seu âmago? Deus não somente é santo, como também revela a nós a natureza sagrada do amor, ao
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qual ele nos atrai. Este caráter sagrado do seu amor deve originar todos os outros amores. O aspecto importante desse fluxo lógico é a santidade intrínseca que proporciona a razão e os parâmetros do amor. A incapacidade de entender o mistério do mal leva à incapacidade de entender a santidade do amor. Creio que, na busca de significado, nossa cultura comete um erro fatal: a ilusão de que o amor desprovido de santidade, um amor desnudo, é tudo o que precisamos para passar pelos testes e paixões da vida. Tal amor não pode nos sustentar. Milhões de vidas são machucadas diariamente em nome do amor. Milhões de traições são praticadas a cada dia por causa do amor. O amor pode fazer o mundo girar, mas não mantém a vida no rumo certo. De fato, o amor em si tornará o mal ainda mais doloroso. O amor só pode ser o que foi destinado a ser quando primeiro é vinculado ao sagrado. Santidade significa separação. Santidade atrai não somente o amor, mas vai incrementando até que chega ao clímax — a adoração. O que tudo isso tem a ver com o sofrimento? Tudo. Veja, quando os céticos perguntam por que Deus não nos formou de modo a escolhermos somente o bem, perdem completa e drasticamente de vista o que significa bondade aos olhos de Deus. Bondade não é um efeito. Se um efeito fosse tudo o que importasse, certamente Deus nos faria dessa forma. Em termos de lógica, não há nada contraditório em nos criar como autómatos. No entanto, se a vida emana da santidade, nem a bondade nem o amor são os alvos supremos. O alvo é a reverência, a qual deve ser escolhida, mesmo quando é difícil e custa caro. Este tipo de amor é uma escolha de deixar a santidade da vida ditar o comprometimento da vontade. Esse tipo de amor reverente pode olhar acima do sofrimento e ver além da limitação do tempo e através da vitória da eternidade. O Dr. J. Robertson McQuilkin foi presidente da Universidade e Escola Bíblica Columbia. E uma das pessoas mais notáveis de nossa época, solicitado para conferências, e escritor reconhecido. No entanto, nenhum desses atributos excede seu amor exemplar e tocante por sua esposa enferma Muriel. Há vinte anos ela vivia no mundo triste e
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solitário do mal de Alzheimer. O Dr. McQuilkin desistiu da presidência e de muitas outras responsabilidades para cuidar dela e amá-la. Ele registrou sua jornada emocional em um dos livros mais magníficos que já foram escritos. Num ponto da narrativa, ele conta este incidente: Nosso vôo atrasou em Atlanta e tivemos de aguardar algumas horas. A cada minuto eu ouvia as mesmas perguntas, e dava as mesmas respostas sobre o que estávamos fazendo ali e quando iríamos para casa. E a cada minuto caminhávamos apressados até o terminal de embarque, numa busca frenética... o que estávamos procurando? Muriel sempre andou depressa. Eu tinha de correr para acompanhá-la. Uma mulher atraente estava sentada perto de nós, trabalhando diligentemente num computador. Uma vez, quando voltamos ao terminal, ela disse algo, sem tirar os olhos do seu trabalho. Desde que ninguém nos repreendeu e nem protestou pelas nossas idas constantes ao mesmo local, eu disse: —Não entendi o que você falou. —Nada, estava apenas dizendo a mim mesma se algum dia encontrarei um homem que me ame desta forma!11 Eis aí um grande testemunho de um grande amor e de uma grande fome. Será que qualquer um de nós encontrará um amor abnegado como este? Todos nós reconhecemos um amor sagrado quando vemos um e almejamos por ele. O amor sagrado não é desprovido de limites. Há linhas que o compromisso não deve atravessar, porque, quando são cruzadas, deixa de ser amor. É interessante que antigamente, nas cerimonias de casamento realizadas na Igreja Anglicana, cada nubente postado diante do altar jurava ao outro: "Com meu corpo, eu te adorarei". Era um juramento notável. Significava que havia uma exclusividade e reverência expressa fisicamente e que atribuía uma linguagem ao amor. Se não entendermos esse tipo de amor, jamais entenderemos por que ele não pode ser programado. Por causa disso, jamais apreenderemos a verdadeira natureza do mal. Esse amor flui da adoração. Por isso Deus não nos obriga a escolher o bem. Não somos chamados à bon-
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dade, mas sim à adoração. Jesus não disse apenas: "Amarás ao Senhor teu Deus". Ele descreveu isso como uma postura que incorpora mente, coração e alma. Quando esse tipo de amor é expresso a Deus, todos os outros afetos encontram sua expressão. Robertson McQuilkin terminou seu livro com estas palavras: Mesmo assim, em seu mundo silencioso Muriel é tão contente, tão amável que às vezes eu oro: "Por favor, Senhor, permite que eu cuide dela um pouco mais de tempo". Se Jesus a levasse para a glória, eu sentiria profundamente a falta de sua doce presença. Sim, há momentos em que fico irritado, mas são raros. Não faz sentido. Além do mais, gosto de cuidar dela. Ela é meu tesouro.12 O livro é intitulado A Promise Kept. Veja, há um script, e somente quando este script está arraigado no coração a vida pode ser realmente vivida. Douglas Coupland faz uma sóbria reflexão de uma geração, ele mesmo incluso, que vagou pelo deserto da vida sem Deus. Ele corta através da aparência e do verniz da liberdade absoluta e no final do seu livro apresenta um pós-escrito surpreendente: Agora, eis aqui o meu segredo: digo a vocês com o coração aberto de uma forma que duvido se conseguirei alcançar novamente; assim, oro para que você esteja lendo estas palavras numa sala quieta. Meu segredo é que preciso de Deus, estou doente e não posso mais suportar sozinho. Preciso da ajuda de Deus, porque não me sinto mais capaz de dar; ele precisa me ajudar a ser bondoso, porque não me sinto mais capaz de ter bondade; ajude-me a amar, porque parece que esta capacidade está fora do meu alcance.13 Somente quando a santidade e a adoração se encontram, o mal pode ser conquistado. Para isso, só a mensagem cristã tem a resposta. A PEÇA C E N T R A L DA H I S T Ó R I A Tudo isso nos leva ao quarto passo. Como é possível que o sagrado reconheça a realidade do mal e ainda seja capaz de oferecer uma explicação moralmente justificável?
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A mensagem cristã apresenta um caminho que para todos os efeitos tem sido uma expressão singular em face do mal. Jesus descreveu sua jornada até a cruz como o propósito para o qual veio. A forma da sua morte traz uma mensagem de força dobrada. Demonstra o poder destrutivo do mal, o qual é a causa do sofrimento e, neste exemplo particular, a habilidade de suportar o sofrimento, mesmo quando ele é imerecido. O sofrimento e a dor não pouparam o próprio Filho de Deus. As mesmas pessoas que cantaram canções festivas no dia do seu nascimento estavam olhando para ele na cruz. Para Maria, sua mãe, foi um momento profundamente traumático. Aquele que foi concebido por Deus agora estava à mercê dos homens. No entanto, desconfio que ela sabia em seu coração que algo ainda não fora completado no scrípt. Olhando para a cruz, o mal se torna um espelho da realidade assustadora. No entanto, olhando com atenção na cruz, descobrimos que não é opaca, mas translúcida e através dela podemos vislumbrar o verdadeiro mal. O sofrimento de Jesus é um estudo da anatomia da dor. Em seu âmago, o mal é um desafio de proporções morais contra um Deus santo. Não é meramente uma luta contra o desconforto. Neste ponto emergem duas verdades surpreendentes. Lembre-se que, quando começamos esta discussão, eu mencionei que todos os exponentes parecem começar com uma longa lista de tragédias e atrocidades terríveis. Aqui está a primeira implicação. Quanto mais intenso é o dilema moral, menos os céticos são capazes de justificá-lo como mal. Plantinga destaca isso para nós: O que causa surpresa e espanto genuíno não é o sofrimento, mas sim a impiedade humana. Mas, será que existiria impiedade tão horrível se os naturalistas estivessem corretos? Não vejo como. Só pode existir tal coisa se houver uma forma de vida para as criaturas racionais, a qual sejam obrigadas a viver, e a força da norma seja tamanha que a natureza horrível da impiedade genuína seja o seu inverso. Talvez o naturalismo possa lidar com a insensatez e a irracionalidade, agindo contra seu próprio interesse. Não podemos acomodar a impiedade aterradora.14
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Quanto mais triste é a realidade que enfrentamos, mais óbvio é o padrão de medida. Embora os pensadores seculares insistam em esconder esta verdade, não podemos explicar a impiedade aterradora sem olhar através dela para o que é a realidade. Alguns anos atrás, um grupo de Rap gravou uma canção que imediatamente se tornou um grande sucesso. Se eu citasse aqui a letra da canção, a reação do leitor seria de choque, revolta e horror. Canções com letras que falam de crueldade desumana, sadismo e a celebração da violência levaram a vulgaridade a um abismo mais profundo de depravação. Mesmo assim, poucos dias depois de lançada, a música já estava sendo comprada por milhões de fãs ávidos. Como responder a isso? O u melhor, como explicar tal coisa? Não foi ao observar o deleite sádico da audiência num cinema, vibrando com a crueldade mostrada na tela, que o poeta William Auden começou sua busca por Deus? O mal sem retoques levou-o a uma reflexão estarrecida. Precisava encontrar uma explicação. Onde podemos encontrar a explicação? Em grande medida, a cruz de Jesus Cristo coloca em evidência o ataque do mal contra a inocência, de modo que podemos ver um espelho e uma janela. Posso fazer uma frágil tentativa de explicar como isso acontece. É aqui que emerge a segunda verdade surpreendente. Eleonore Stump, professora de filosofia na Universidade de St. Louis, escreveu um excelente ensaio intitulado "O espelho do mal". Revelando sua jornada pessoal em direção a Deus, ela trouxe à baila um argumento fascinante. No início, ela conta a luta de Philip Hallie sobre a mesma questão, conforme ele descreveu em seu livro Lest Innocent Blood Be Shed. Hallie estava se debatendo para resistir à depravação humana. A impiedade terrível que transformou toda a sua vida era semelhante à brutalidade sem limites dos campos de extermínio nazistas. Seu desespero chegou ao ponto máximo quando ele escreveu: Meu estudo sobre o mal tinha se tornado uma prisão cujas grades eram minha amargura em relação à violência e cujas paredes eram minha indiferença horrorizada em relação aos assassinatos
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em massa. Entre as barras e as paredes eu me revolvia como um louco... No correr dos anos, eu me enterrara no inferno.15 Ao se afundar nesse inferno feito pelo homem, Hallie notou que seu coração se endurecia. Deixou de sentir o horror do mal. No entanto, como um prisioneiro de sua própria indiferença, algo aconteceu. Ele tomou conhecimento do trabalho tocante dos moradores de uma pequena vila francesa, chamada Le Chambon e viu-se reagindo aos seus gestos abnegados — atos de extraordinária bondade em face do mal. Desprezando a crueldade praticada ao redor deles, os chambonnais repetidamente arriscavam suas vidas para resgatar e dar alívio às pessoas que sofriam mais diretamente a brutalidade nazista. Quando Hallie leu sobre as obras de misericórdia deles, viu-se enxugando uma lágrima, depois outra e mais outra, até que seu rosto estava todo molhado. Surpreso com a erupção de emoções de um coração que achava que estava morto, ele parou e perguntou a si próprio: "Por que estou chorando?" Será que fora libertado das grades da amargura e da indiferença? Será que o espelho translúcido do mal permitira a passagem de luz suficiente do outro lado para que ele pudesse enxergar não somente a face da perversidade, mas também uma possibilidade frágil além do espelho, o semblante de Deus? Será que alguma luz tinha brilhado no canto mais escuro do mundo e dirigido o passo daquele que fora apanhado pelo medo? Na iminência de ver-se despojado de todo sentimento no abismo da impiedade, a misericórdia tinha aberto uma torrente de lágrimas. Os chambonnais tornaram-se um símbolo de tudo aquilo que era contrário ao inferno liberado pelo Terceiro Reich. Para Hallie, não havia mais perplexidade. Havia apenas um antídoto. Ele olhou através da impiedade e depois escreveu: Vivemos numa época (talvez como todas as outras) em que há tantos que, nas palavras do profeta Amos, "convertem o juízo em alosna". Muitos não estão satisfeitos em viver na simplicidade do prumo ético do profeta, quando ele diz no capítulo cinco do seu
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livro: "Buscai o bem e não o mal, para que vivais; e, assim, o Senhor, o Deus dos Exércitos, estará convosco...". Nós temos medo de nos envolver, temos medo de ser crédulos, mas não temos medo da escuridão da incredulidade sobre assuntos importantes... No entanto, a perplexidade é um luxo ao qual não posso me entregar... Para mim, como para minha família, há o mesmo tipo de urgência no que diz respeito a fazer julgamentos éticos como havia para os chambonnais quando faziam seus julgamentos éticos sobre as leis de Vicky e dos nazistas... Para mim, a consciência do padrão de bondade é a consciência de Deus. Vivo com a mesma sentença em minha mente que muitas das vítimas dos campos de concentração pronunciaram ao caminhar para a morte: "Shema Israel, Adonai Elohenu, Adonai Echod' - "Ouve, Israel, o Senhor, teu Deus, é o único". 16 T o m a n d o esta história emprestada de Hallie e p e n s a n d o nas lágrimas derramadas e m resposta à b o n d a d e , Eleanor S t u m p faz a sua aplicação pessoal. Ela c o m p r o v a o a r g u m e n t o de Hallie p o r m e i o de o u t r a ilustração: Uma mulher que fora condenada a prisão perpétua, sem direito a condicional, por ter matado o marido, teve sua pena inesperadamente comutada pelo governador e chorou ao ouvir a notícia. Por que ela chorou? Porque a notícia era boa, e ela estava acostumada a só ouvir coisas ruins. No entanto, por que chorar ao ouvir boas notícias? Talvez seja porque, se a maioria das notícias são ruins, você tem de endurecer o coração para suportar. Assim, você se acostuma a receber notícias ruins e, de uma forma ou outra, aprende a se proteger delas, ralvez não pensando muito no assunto. Então, uma notícia boa parte seu coração. Faz com que ele se torne novamente sensível a todo o mal contra os quais tornou-se duro. Também abre seu coração para anseios e esperanças; a esperança é dolorosa, porque aquilo que se espera ainda não chegou... Assim, em certo sentido, o espelho do mal pode também nos conduz a Deus. Um olhar desagradável nos males do mundo e em nós mesmos nos prepara para ficarmos mais tocados pelo
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sabor da verdadeira bondade quando a encontramos e mais determinados a ir aonde ela nos levar. E ela nos leva até a mais verdadeira de todas as bondades - a bondade de Deus.17 Descobri esta verdade surpreendente em minha própria vida. Certa vez estive em Calcutá. Trata-se de uma cidade que mostra publicamente suas feridas. Há estimativas de que existem dois milhões de pessoas sofrendo e vivendo nas ruas — velhos, jovens e crianças. A dor é tão evidente e tão disseminada que causa um efeito anestésico nas pessoas. Junto com alguns amigos, fomos visitar um orfanato administrado pela ordem fundada por madre Teresa. Quando entramos, as crianças se levantaram das camas e gritos de "Tio!" vieram de diferentes partes do recinto, ao mesmo tempo que os bracinhos eram erguidos. Nosso coração se derreteu, e todos nós choramos. A bondade em face do mal é magnífica, porque é mais do que bondade - é o toque de Deus. Provavelmente era isso que Malcolm Muggeridge quis dizer: Contrário ao que podia ser esperado, olhei para trás, com satisfação, para as experiências que na ocasião pareciam especialmente desoladoras e dolorosas. De fato, posso dizer com toda verdade que tudo que aprendi em meus setenta anos de vida neste mundo, tudo o que melhorou e iluminou minha existência, tem ocorrido por meio da aflição e não por meio da alegria... Evidentemente, é isso que a cruz significa. E foi a cruz, mais do que qualquer outra coisa, que me chamou a Cristo de forma inexorável.18 O ganhador do Prémio Nobel Elie Wiesel relata em um dos seus ensaios uma experiência que teve quando estava preso em Auschwitz. Um prisioneiro judeu estava sendo enforcado e os outros foram obrigados a assistir. E n q u a n t o o prisioneiro ficava pendurado — esperneando e agonizando, recusando-se a morrer — um dos que observavam murmurou, num desespero crescente: "Onde está Deus? Onde está ele?" Sem saber de onde, Wiesel diz que uma voz em seu interior respondeu ao seu próprio coração: "Está bem ali na forca; onde mais ele *
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O teólogo Jurgen Moltmann, comentando sobre a história de Wiesel, observou astutamente que qualquer outra resposta teria sido uma blasfémia. Será que há uma ilustração mais concreta do que a morte de Cristo para dar substância à presença de Deus, bem ali no meio da dor? Ele suportou o peso da dor infligida pela impiedade dos seus perseguidores — e nos mostrou o coração de Deus. Jesus mostrou em seu próprio sofrimento em que consiste a obra de Deus, que transforma nosso coração do mal para a santidade. De fato, uma das realidades mais menosprezadas emerge das Escrituras. Jesus lutou com o peso de ter de se separar do Pai durante os momentos da crucificação, quando carregou o peso do mal. Ele clamou: "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?" A incrível verdade era que no exato momento em que o Pai parecia ter se afastado dele, ele estava no centro da sua vontade. É exatamente isso que significa o entendimento da cruz. Somente quando vamos à cruz e olhamos para ela e além dela, temos uma perspectiva do mal. O que emerge de todos esses pensamentos é que Deus conquista não a despeito do mistério escuro do mal, mas por meio dele. Mahatma Gandhi comentou que dentre todas as verdades da fé cristã, aquela que se mantinha suprema para ele era a cruz de Jesus. Ele concordava que esta não tem paralelos. Era o inocente morrendo pelo culpado, o puro trocado pelo impuro. O mal não pode ser compreendido por meio dos olhos daqueles que o crucificaram, mas por meio dos olhos do Crucificado. A mulher que foi estuprada — não o estuprador — entende o que é o estupro. Aquele que é caluniado — e não o caluniador — entende o que é calúnia. Somente Aquele que morreu pelo nosso pecado pode nos explicar o que é o mal— e não os céticos. A cruz aponta o caminho para a plena explicação. A cruz nos conduz ao "como" tudo isso acontece. O C H O Q U E DA H I S T Ó R I A Quinto, se tudo o que foi dito até aqui é verdade, então o foco do mal deve ser mudado dramaticamente. O mal é mais do que uma realida-
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de exterior que engloba o sofrimento universal; é uma realidade interior da qual nós corremos. Lembro-me de uma conversa que tive com um empresário rico e bem-sucedido; durante toda a conversa ele repetia a mesma pergunta: — E quanto a todo o mal que existe no mundo?— Finalmente, um amigo que acompanhava a conversa disse: —Estou ouvindo você expressando várias vezes seu desejo de ver uma solução para o problema do mal ao seu redor. Você se preocupa com o problema do mal dentro de você?— No silêncio pesado que se seguiu, a expressão daquele empresário demonstrou sua hipocrisia. Quanto mais me deparo com esta questão do mal, mais fico convencido da falta de honestidade de muitos que a levantam. Participei de um fórum cujo tema era o mal e o sofrimento; um ateu me perguntou: "Se você descobrisse que Deus realmente não existe, o que você faria, que não faz agora por temor a Deus?" Só esta p e r g u n t a revela a mentalidade. H á um tipo de antinomianismo — um estado de mente antagónico à lei. "Se Deus 'largasse do meu pé', eu poderia fazer muitas coisas". Podemos perguntar: "Se não existissem policiais para fiscalizar, a que velocidade você andaria com seu carro?" ou "Se não houvesse um sistema judiciário, que crimes você cometeria?" ou "Se ninguém descobrisse, em que perversidades você se engajaria?". Resumindo, trata-se da falha em ver que o coração desprotegido na verdade torna-se uma prisão para todos — uma prisão onde não há regras. O mal é para a vida aquilo que a contradição é para a razão. Se um argumento é contraditório, a razão entra em colapso. Se a vida é consumida pelo mal, ela entra em colapso. O problema do mal começa comigo. Uma das cartas mais curtas escritas a um editor foi feita por G. K. Chesterton; a carta dizia: "Prezado, em resposta ao seu artigo: "O que há de errado com o mundo" — o que há de errado sou eu. Sinceramente, G. K. Chesterton". A D M I T I N D O A SURPRESA Isso nos leva ao ponto final no processo de sustentar a cosmovisão crista concernente ao mal. A evidência mais clara de que o mal não é
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inimigo do significado é a realidade existencial inescapável: a falta de sentido surge não quando nos cansamos da dor, mas quando nos cansamos do prazer. Esta verdade óbvia está convenientemente ausente nos argumentos dos céticos. Não foi a dor que empurrou o Ocidente para o vazio; foi porque ele afundou no oceano dos prazeres. O prazer errado é uma maldição maior do que a cegueira física. A cegueira para aquilo que é sagrado é a causa de todo mal. E neste ponto que a resposta de Jesus à questão do homem cego surge com extraordinário poder e relevância. Quando ele diz que a cegueira do homem não era causada pelo seu pecado nem pelo pecado dos seus pais, mas para que a glória de Deus fosse revelada, a lição é drástica porque o mensagem é profunda. A restauração da sua visão espiritual era indispensável para a compreensão do horror da cegueira do pecado. A escuridão é devastadora, e Jesus oferece luz e vida. Sua cura era para ajudar as pessoas a enxergar a verdadeira cegueira que se recusavam a reconhecer. O problema do mal tem uma fonte suprema. E a resistência à santidade de Deus que obscurece toda a criação. E um mistério, porque somos engolfados na cegueira espiritual. E em última análise há apenas um antídoto: a gloriosa manifestação da ação divina dentro da alma humana, trazendo restauração. Esta transformação amolece o coração, a fim de que deixe de ser parte do problema e se torne parte da solução. Tal transformação começa na cruz. No entanto, como os céticos dos dias de Jesus, alguns desejam encontrar uma razão para negar quem Cristo é e a cura que ele pode trazer. Como os vizinhos, as massas curiosas desejam saber como aconteceu. Como os pais, aqueles que chegam mais perto testemunharão a transformação que Cristo opera. E como o cego, aqueles que experimentam pessoalmente o poder de Cristo de transformar suas vidas entenderão a cegueira maior da qual foram libertados. Esta pode ser uma ilustração da vida real da luta sobre a qual Mark Triplett escreveu. A verdade não é que seu sofrimento e dor foram causados pela morte do filho e o medo de ter sido ele o causador. Como ele mesmo reconheceu, pelo terrível peso de ter profanado aquilo que era sagrado, ele já tinha causado a separação de Deus
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e o sofrimento de sua própria alma. Ele reconheceu o que fizera a si próprio - tinha traído a esposa, traído sua família e traído seu Deus. Os provedores do prazer sensual sabiam muito bem que seu envolvimento insaciável com suas ofertas o colocariam no caminho do desperdício financeiro e da morte potencial de seu casamento. Em nome do prazer, tinham infligido a dor suprema. Tudo o que valia a pena fora perdido. Aqui, pelo menos, um homem parou em sua busca para entender a causa e o efeito de uma forma que os céticos parecem jamais entender. A verdadeira questão não é se o pecado do pai causara a morte do filho. De fato, na verdade, quando Mark pronunciou aquelas palavras zangadas a Deus, seu filho já estava morto. O que é pertinente agora é que por meio da perda do filho, o pai foi colocado face a face com o que o estava matando por dentro. No entanto, no meio da tragédia, a obra de Deus se manifestou. Ele procurava prazeres infinitamente maiores do que os prazeres profanos da excitação sem dignidade e sem promessas. O abraço de uma esposa disposta a perdoar, o impacto duradouro da partida do filho, o novo compromisso com as verdades sagradas da vida — esses são os reais tesouros da vida. Aquilo que o seduzira e prendera subitamente tornou-se nauseante e repugnante. Agora ele está livre para dizer ao mundo que o verdadeiro valor da vida encontra-se somente em Deus. Quando Deus restaura nossa visão espiritual por meio do mistério do mal, somos capazes de ver a sua obra manifestada dentro do esquema de nossa questão mais difícil. Com lágrimas de alegria, nos prostramos diante dele. Em suma, para o cristão, o mal é real, este mundo é real e o tempo é real. Jesus reconheceu todas as três realidades em relação ao homem cego. Ele destacou que este mundo constrói dentro de si o componente do tempo. E sobre a bigorna do tempo bate o martelo da eternidade, até que o tempo finalmente reflita os valores do eterno e se abrirá como uma concha, de dentro da qual as verdades supremas serão livremente abraçadas. Quando entrarmos neste estágio, descobriremos que a verdadeira bigorna é a eternidade, que o tempo proporcionava o martelo e que a glória e os propósitos de Deus serão o que restará.
capítulo
seis
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a peça de Robert Bolt, baseada na vida de Sir Thomas More, intitulada Um homem para todas as estações, há um momento profundamente tocante quando More é levado diante de um tribunal provisório. O juiz e o júri estão furiosos porque ele não aceita participar de um esquema para apoiar o rei numa decisão imoral. Ameaçando-o com a sentença de morte, eles o pressionam para que se una a eles. Mas More fica em silêncio diante de todos, recusando concordar. Eles sabem o que significa sua resposta sem palavras, mas continuam a ameaçar, tentando fazê-lo quebrar seu silêncio e falar algo. Calmo, More não diz nenhuma palavra. Em dado momento, um dos juízes lhe diz: —Então seu silêncio deve ser interpretado como uma negação da afirmação que buscamos, pois é isso que significa para o povo. Sir Thomas More replicou, medindo bem as palavras: — O mundo pode interpretar como bem entende. Esta corte deve interpretar de acordo com a lei. Eles finalmente desistiram. Não conseguiram dobrá-lo. No entanto, More pagou com a própria vida seu compromisso com a verdade. Os melhores novelistas e teatrólogos têm uma boa razão para basear suas narrativas no solo da injustiça. Desde o tempo de Sócrates e Platão, os filósofos têm colocado extremo valor na virtude da justiça, em qualquer sociedade civilizada. Aristóteles chegou a dizer
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que a justiça era a pedra angular de toda a ética. Por quê? Porque a justiça é a guardiã da verdade; quando a verdade morre, a justiça é enterrada junto com ela. O silêncio que cerca tal tragédia pode bem ser o silêncio oferecido aos algozes, um momento sombrio de verdade. Provavelmente Thomas More viu seu precedente em Jesus, que ficou em pé diante de um tribunal similar e foi acusado, entre outras coisas, de traição contra o rei. Quando Jesus foi levado diante de Pôncio Pilatos e de seus acusadores, seu comportamento foi fascinante. Seu silêncio deixou os inquiridores profundamente nervosos. Eles esperavam vencê-lo numa batalha de palavras. Não foi por acaso que a conversa, supostamente tratando sobre a justiça, acabou numa discussão sobre a verdade. A sequência de eventos que levaram Jesus diante de Pilatos mostra como o crime organizado também tem um legado antigo. A covardia, traição, falsidade, intriga, assassinato - todas as paixões que povoam os enredos das novelas de suspense — tomam vida na dura realidade da mais histórica demonstração de injustiça da história, quando a verdade estava sendo julgada. Os líderes religiosos queriam Jesus fora do caminho. Todavia, estavam divididos entre dois sistemas jurídicos: a lei judaica e a lei de Roma. Por mais que tentassem, não conseguiam obter uma base moral sobre a qual matar Jesus. No entanto, mesmo que conseguissem construir o cenário da justificativa moral, não tinham autoridade para executá-lo, como era sua intenção. Muitas vezes, quando a lei moral protege o inocente, uma lei cerimonial é invocada para se alcançar os fins imorais. Ao afirmar ser igual a Deus, Jesus cometeu uma ofensa imperdoável aos olhos dos líderes judeus. Evidentemente, tal afirmação não tinha nenhuma gravidade num tribunal romano, desde que não ameaçava César. Dizem que, no mundo greco-romano, na mente popular todas as religiões eram consideradas igualmente verdadeiras; para os filósofos, todas eram falsas; para os magistrados, todas eram úteis. Resumindo, Roma não tinha simpatia pela religião judaica. A única esperança do sumo sacerdote e seus partidários era apresentar
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o crime de Jesus como um desafio contra César e como traição. Não se importavam com o imperador romano mais do que este se importava com eles. No complô, porém, Roma iria ajudar. Apanhado no meio de todos esses elementos estava o fraco governador romano, Pôncio Pilatos. O especialista em Antigo Testamento Dennis Kinlaw notou com astúcia que a velha Sra. Pilatos jamais visualizou o nome do filho entrando para a história — citado nos credos cristãos. Sem dúvida, nem ele mesmo imaginou que aquele julgamento espetacular entraria permanentemente para os anais da história da civilização. De tudo o que Jesus disse, o que mais maravilhou Pilatos foi seu silêncio. A Bíblia diz: "Os principais sacerdotes o acusavam de muitas coisas. Tornou Pilatos a interrogá-lo: Nada respondes? Vê quantas acusações te fazem! Jesus, porém, não respondeu palavra, a ponto de Pilatos muito se admirar" (Mc 15:3-5). A cena nos dá um olhar crítico de como Jesus lidava com o incómodo dos céticos e com a raiva dos religiosos contra ele. Ele já fora submetido a uma série de eventos extenuantes. Primeiro foi preso, ao ser traído por Judas Iscariotes, em troca de um punhado de moedas; foi levado à presença de Anás, sogro do sumo sacerdote Caifás. Depois de interrogá-lo, Anás enviou-o para o genro Caifás, o qual astutamente tentou justificar a crucificação, citando a Escritura que era imperativo que "um morresse por muitos". Caifás, por sua vez, enviou-o a Pilatos; o sumo sacerdote não sabia que o governador fora advertido pela esposa para não se incriminar envolvendo-se naquele terrível complô. Ao descobrir que Jesus era galileu, Pilatos usou este fato como desculpa para evitar julgar a questão, enviando-o ao rei Herodes. Pilatos, porém, não podia evitar seu encontro com o destino. Herodes, depois de escarnecer de Jesus, enviou-o de volta ao governador. Jesus ficou como um objeto, passando de mão em mão, enquanto as palavras e intenções iam tomando forma para subverter a verdade — tudo em nome da moralidade. Quando Pilatos terminou de interrogá-lo, disse às autoridades religiosas: "Apresentastes-me este homem como agitador do povo; mas, tendo-o interrogado na
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vossa presença, nada verifiquei contra ele dos crimes de que o acusais. Nem tampouco Herodes, pois no-lo tornou a enviar. E, pois, claro que nada contra ele se verificou digno de morte. Portanto, após castigá-lo, soltá-lo-ei" (Lc 21:14-16). Assim, Pilatos mandou açoitálo, tentando acalmar a turba. Este era o momento que os líderes da sinagoga esperavam, e dentro da vontade divina, era o momento para o qual toda a história vinha se movendo e mediante o qual seria marcada para sempre. H á muito mais a ser dito aqui, mas nos concentraremos na conversa entre Jesus e Pilatos. AS LINHAS DE ABERTURA Conforme veremos, o texto bíblico não começa com o silêncio de Jesus. Começa com uma breve interlocução com Pilatos, até que Jesus se recusou a responder a algumas perguntas. Portanto, seria prudente primeiro olharmos para as respostas que ele deu, porque seu silêncio é compreendido à luz das palavras que proferiu. A primeira pergunta de Pilatos foi bem direta: "És tu o rei dos judeus?" Era uma pergunta bem específica. Pilatos preferia manter a questão como um assunto interno entre os judeus. Dessa forma, possivelmente poderia evitar a responsabilidade. Os sacerdotes, por outro lado, sabiam que, se quisessem ter autoridade legal para executar Jesus, tinham de incluir Roma no problema. Com esses propósitos entrecruzados, começou o julgamento. Jesus respondeu à pergunta de Pilatos sobre sua condição de rei com outra pergunta: "Vem de ti mesmo esta pergunta ou to disseram outros a meu respeito?" Pilatos rebateu: "Porventura, sou judeu? A tua própria gente e os [teus] principais sacerdotes é que te entregaram a mim. Que fizeste?" (veja Jo 18:33-35, ênfase acrescentada). Evidentemente, Pilatos ficou irritado com a pergunta, mas era óbvio que não a compreendeu. O que Jesus queria mostrar era que se tratava de uma pergunta capciosa - a mera curiosidade cerimonial. Responder a uma questão para a qual não se busca honestamente
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uma resposta é apenas prolongar a charada. Jesus estava se aproximando de Pilatos para lhe mostrar que na verdade sua atitude não era diferente daqueles que tinham trazido as acusações. O significado desta pergunta é que o confronto não era exclusivo de uma nação ou de um povo. Todo o mundo estava envolvido. Seus acusadores estavam deliberadamente surdos à sua resposta, enquanto Pilatos estava desempenhando o papel de seu cargo, sem nenhum respeito pela verdade por trás dos seus julgamentos. Deus estava no banco das testemunhas; a humanidade fazia suas intrigas jurídicas. Aqui surge uma lição imediata. Ouvimos tantas críticas por parte dos céticos sobre o que eles muitas vezes classificam como "fé de segunda mão". A ideia implícita é que muitas pessoas acreditam em Deus só por causa do contexto do nascimento, do histórico familiar ou alguma outra circunstância. Se tal crítica é justificada (e sem dúvidas muitas vezes é), por que não mostramos a mesma desconfiança para a "dúvida de segunda mão"? Se é possível que a crença de uma pessoa seja meramente um eco da fé de outrem, será que também não há hipocrisia na incredulidade? Será que se tratava de uma busca sincera por parte do governador romano, ou era apenas uma encenação, parte do procedimento, refletindo uma verdadeira indisposição de ouvir? Esse era o ponto de Jesus. Em muitas ocasiões, já ouvi pessoas empilhando valentemente perguntas sobre perguntas, questionando a fé cristã. Os argumentos começam a soar ocos quando as palavras são de outras pessoas e as ideias são emprestadas de algum intelectual. Não quero insinuar aqui que os argumentos ou as perguntas não tenham validade. Quero apenas afirmar que, muitas vezes, as assim chamadas razões para se refutar a verdade são tão misturadas com os preconceitos individuais que é difícil fazer uma distinção entre a pergunta e os desejos ocultos de quem a faz. Há algum tempo, eu estava ensinando numa universidade sobre o assunto "Ética e a invasão do Cyber Espaço''. Soube que fora convidado por ser teísta, para que houvesse pelo menos um orador que
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propusesse uma base transcendente para os julgamentos éticos! Foi uma conferência fascinante. Depois da aula, sentamo-nos para almoçar juntos, convidados pela diretoria da faculdade e pelos líderes estudantis. Durante a refeição, uma professora disse algo assim: "Toda esta conversa sobre moralidade objetiva parece elevada e cheia de peso filosófico. Para mim, a questão básica é simples: Como evitar que os estudantes 'colem' nas provas?" Enquanto respondia à pergunta, eu também a lembrei de que estava se concentrando nos sintomas e ignorando a causa. No final do almoço, um grupo de estudantes me cercou e fez uma enxurrada de perguntas. Uma aluna disse em voz baixa: —Eu realmente tenho um problema. Minha professora me pediu para vir participar da sua palestra e refutar o que você dissesse. A verdade, porém, é que, depois de ouvir seus argumentos, descobri que concordo com você. — Bom, então por que não escreve isso? — Não! Se eu concordar com seu raciocínio, corro o risco de não me formar. A professora tinha certeza de que eu discordaria de você e queria que eu rebatesse com veemência. Estou precisando de nota e não posso deixar de me formar. — Você tem certeza de que o sua professora puniria você apenas por concordar com a minha posição sobre ética?— perguntei. — Tenho certeza. — Esta professora estava presente no almoço? — Sim — foi a resposta hesitante. — Quem é ela? Houve um silêncio embaraçoso e depois uma admissão ainda mais incomoda — Aquela que perguntou como podia impedir os alunos de 'colar'. Um pouco distante da genuína fome pela verdade. Eu duvido seriamente se um professor desse tipo realmente deseja que os alunos aprendam a não trapacear ou quer apenas que aprendam a pensar como ela, mesmo que signifique uma vida inteira de fingimento - dúvida de segunda mão.
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Tenho certeza de que existem dezenas de milhares de estudantes que saem das faculdades com a mente treinada a não acreditar em Deus e não aceitar nenhum argumento ou evidência em contrário. O pai do racionalismo moderno é o filósofo francês René Descartes. Seu dito: "Penso, logo existo" — ressoa pelas salas de filosofia. Partindo desta abordagem fundamentalmente racionalista da existência, os céticos extrapolaram e criaram seu próprio ditado: "Eu duvido, portanto sou um intelectual". Para muitos, tal incredulidade na verdade segue um particular intelectual em vez de enfrentar as questões do intelecto. U M REI D I F E R E N T E Jesus tinha plena consciência do efeito contagiante da dúvida. Foi por isso, em parte, que manteve silêncio. Pilatos, claro, rapidamente se esquivou de qualquer envolvimento pessoal nos procedimentos, insistindo que se tratava de uma questão interna da comunidade judaica, a qual para começar iniciara todo o problema. Jesus então tratou de levar o governador a ver que de fato tinha interesse na questão, porque seu reinado não tinha nada a ver com o governo de uma nação ou de uma cultura, mas tinha tudo a ver com o governo do coração. Jesus disse: "O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para que não fosse eu entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui" (Jo 18:36). Apanhado um pouco de surpresa, Pilatos exclamou: "Logo, tu és rei?" Foi neste ponto que veio a resposta definitiva: "Tu dizes que sou rei. Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz" (v. 37). Imediatamente notamos que foram feitas três afirmações dramáticas. Primeiro, o reino de Jesus não era assistido por poderio bélico ou diplomático. Seu governo não é territorial ou político. A história
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prova que a propagação do evangelho por meio da espada ou da coerção não leva a nada, a não ser à má interpretação da sua mensagem. Podemos ter certeza de que Jesus não estava falando sobre pacifismo ou guerra. Estava estabelecendo uma distinção clara entre a forma de crescimento do seu reino e a forma como as nações terrenas estabelecem o controle. Estava mostrando um ponto significativo a um procurador com motivos políticos. Seu reinado não pode ser e não será estabelecido pela força ou pela ameaça. Só este fato teria dado a Pilatos razão suficiente para ir além da superfície do que estava acontecendo. Na verdade eram as nações deste mundo que estavam no banco das testemunhas, e Deus que estava julgando. Pilatos devia saber imediatamente que não era nenhum César que estava em pé diante dele. Era alguém com um tipo de autoridade totalmente diferente. Correndo o risco de ser repetitivo, neste ponto gostaria de contar um exemplo que compartilho em outro livro. Faço isso porque quero levar esta questão um pouco mais adiante. Alguns anos atrás, um general russo me convidou para falar num debate com os diretores de diferentes departamentos do Centro de Estratégia Geo-política de Moscou. Desde o começo, a atmosfera na sala era fria e antagónica, e as pessoas tinham uma expressão dura no rosto. Um por um, os ataques eram dirigidos contra a religião de modo geral e sobre o cristianismo em particular, com sua história marcada pelo derramamento de sangue. Tentei responder a cada questão, mas percebi que a discussão não estava progredindo, porque eles continuavam revirando o passado da cristandade. Subitamente o ambiente tornou-se tenso. Um dos oficiais, com a voz alterada, virou-se para mim e disse: —Quando eu era criança, lembro que um soldado alemão entrou em nossa casa e matou minha avó a tiros. No seu coldre estava escrito: 'Deus é por nós'. Isso foi o que a religião fez pelo nosso país!— ele acusou. Ele estava certo. Talvez não se lembrasse, ou nem soubesse, que a inscrição no coldre não foi feita pelos nazistas, mas era equipamento remanescente dos dias do Kaiser. Quando a máquina militar nazista começou a sofrer seriamente com a falta de equipamentos, apelaram
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para as sobras de uma época que já terminara. Além disso, desde o tempo do imperador Constantino, o símbolo da cruz tem sido tão repetidamente gravado em armas de guerra e ódio que a mensagem de Cristo foi interpretada pelo que Nietzsche chamou de "a vontade do poder". Eu fiz uma pausa e admiti ao oficial que concordava parcialmente com suas palavras. Ele ficou surpreso e aos poucos foi baixando a guarda. Então eu disse: — N o entanto, general, você sabe que Jesus não veio para estabelecer um governo sobre as pessoas usando a força. Ele nem mesmo falou sobre sistemas políticos. Ele veio para reinar nos corações, e não para estabelecer um poder político. Ele pede para viver em você e não para controlar seu país. Depois disso, fui adiante e compartilhei com eles meu testemunho pessoal. Fiquei com vontade de citar as palavras de Alexander Solzhenitsyn, que a linha fina entre bem e mal não corre por estados e ideologias, mas passa pelo coração de cada ser humano. Não o fiz, porém, temendo que a simples menção do nome causasse uma discussão política. Quando terminei, os oficiais ficaram quietos, refletindo; alguns deles relutantemente assentiam com a cabeça, em sinal de concordância. O general que me convidara tinha um olhar calmo e triunfante, como se dissesse: "Bem, cavalheiros, vocês e eu jamais esperávamos esta resposta". Perguntei-lhes o que os setenta anos de marxismo tinha feito pelo povo. Lembrei-lhes o vazio na vida dos jovens russos, os quais estavam vivendo num país praticamente sem leis. Da mesma forma súbita que o assunto tinha sido trazido à baila, o teor da conversa mudou de repente. Creio que é irónico que a cidade de Moscou carregue as cicatrizes da brutalidade do nazismo e das campanhas militares de Napoleão. Há memoriais do que os nazistas fizeram e marcas de onde Napoleão chegou em sua tentativa de derrotar a Rússia. Seus nomes simbolizam terror e guerra para o grande Império Soviético. As memórias ainda vivas das selvagerias fazem o povo russo encarar com ceticismo qualquer poder que ameace.
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M e s m o assim, n u m a declaração espantosa sobre Jesus Cristo, Napoleão disse algo que praticamente supera todos os outros líderes políticos. Transcreverei sua citação na íntegra, p o r causa da sua incrível sabedoria. Gostaria de ter conhecimento dessas palavras q u a n d o m e encontrei c o m aqueles generais. Napoleão expressou esses pensamentos q u a n d o estava exilado na Ilha de Santa Helena. Ali, o conquistador da Europa civilizada teve tempo de refletir sobre a medida de suas realizações. C h a m o u o conde M o n t h o l o n e lhe perguntou: "Você pode m e dizer q u e m foi Jesus Cristo?" O conde evitou u m a resposta. Napoleão argumentou: Bem, então eu lhe direi. Alexandre, César, Carlos Magno e eu mesmo temos fundado grandes impérios; mas do que dependem essas criações do nosso génio? Dependem da força. Só Jesus fundou seu império sobre o amor, e até hoje milhões de pessoas estão dispostas a morrer por ele... Creio que entendo um pouco a natureza humana; e lhe digo: todos eles eram homens, assim como eu sou homem: ninguém mais é como ele; Jesus Cristo era mais do que um homem... Tenho inspirado multidões com uma devoção e entusiasmo tão grandes que morreriam por mim... mas para que fizessem isso era necessário que eu estivesse presente visivelmente com a influência elétrica dos meus olhares, minhas palavras e minha voz. Quando eu olhava para os homens e lhes falava, acendia a chama da devoção em seus corações... Só Cristo teve sucesso em elevar a mente do homem para aquilo que é invisível, transcendendo as barreiras do tempo e do espaço. Através de 1.800 anos, Jesus Cristo faz a exigência mais difícil do que qualquer outra; ele pede aquilo que um filósofo muitas vezes procura em vão nas mãos dos seus amigos, ou o pai na mão dos filhos, a noiva na mão do esposo e o irmão na mão do outro. Ele pede o coração humano; deseja possuí-lo inteiramente. Exige a entrega incondicional; e sua exigência é atendida. Maravilhoso! Desafiando o tempo e o espaço, a alma humana, com todos os seus poderes e faculdades, é anexada ao império de Cristo. Todo aquele que crê sinceramente nele experimenta este amor memorável e sobrenatural para com ele. Este fenómeno é inexplicável; está totalmente fora do
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alcance do poder criativo do homem. O tempo, o grande destruidor, é impotente em extinguir esta chama sagrada; o rempo não pode exaurir suas forças e nem limitar seu alcance. E isso que me afeta mais; muitas vezes penso sobre isso. E este fato que me prova, sem sombra de dúvida, a divindade de Jesus Cristo.1 Seja qual for a nossa réplica, é difícil explicar essas palavras como mera eloquência. De fato, Napoleão fez esta afirmação justamente para se opor à mera demagogia e ao poder superficial. Com incrível lucidez, ele viu como Jesus Cristo conquistou. Não foi pela força, mas ganhando os corações. Napoleão entendeu Jesus melhor do que Pilatos. Provavelmente o governador romano não tinha ideia do que Jesus quis dizer quando afirmou: "Meu reino não é deste mundo", ou quando, no futuro, Cristo iria conquistar — sem empregar os métodos que os impérios geralmente empregavam para expandir suas fronteiras, dos quais Roma era um ótimo exemplo. U M A CAUSA D I F E R E N T E Depois de dar a primeira parte de sua resposta, Jesus se moveu para a segunda parte. "Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz" (Jo 18:37). Trata-se de uma das afirmações mais definidas de Jesus, tanto sobre sua missão como de sua condição suprema. Seu propósito em vir a este mundo era dar testemunho da verdade. Ele já sabia quem ele era. Seu testemunho era para nos revelar quem nós somos. Apesar das pressões feitas por seus acusadores, suas respostas eram sempre as mesmas. Sempre que ele falava, apresentava a verdade. Sua conversa teria colocado Pilatos numa situação singular na história, ao lado do que era correto, se ao menos ele fizesse a pergunta e esperasse a resposta. Em vez disso, porém, numa atitude dramática, ele respondeu com impaciência à afirmação de Jesus de que todo aquele que está ao lado da verdade ouve sua voz: "Que é a verdade?" Tendo dito isso, se afastou. Não esperou uma resposta
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e provou o ponto de Jesus que não estava realmente buscando a verdade. Pilatos saiu do saguão abruptamente e tentou libertar Jesus. Só queria sair de toda aquela situação. Ofereceu uma opção à multidão. Devido ao costume da Páscoa, soltaria um prisioneiro à escolha do povo, podendo ser qualquer um. Esperava e provavelmente tinha certeza que escolheriam Jesus. No entanto, ele desconhecia a determinação dos líderes religiosos. Em vez de pedir a libertação de Jesus, clamaram por Barrabás, preso por tomar parte numa rebelião política. Este fato em si provava que não estavam contra Jesus por causa da sua rebelião contra Roma; pelo contrário, era a rebelião deles contra Deus que estava instigando suas paixões. Eis como a Bíblia conta a história, registrada em João 19:4-7: Outra vez saiu Pilatos e lhes disse: Eis que eu vo-lo apresento, para que saibais que eu não acho nele crime algum. Saiu, pois, Jesus trazendo a coroa de espinhos e o manto de púrpura. Disselhes Pilatos: Eis o homem! Ao verem-no, os principais sacerdotes e os seus guardas gritaram: Crucifica-o! Crucifica-o! Disse-lhes Pilatos. Tomai-o vós outros e crucificai-o; porque eu não acho nele crime algum. Responderam-lhe os judeus: Temos uma lei, e, de conformidade com a lei, ele deve morrer, porque a si mesmo se fez Filho de Deus. Depois a Bíblia acrescenta: Pilatos, ouvindo tal declaração, ainda mais atemorizado ficou, e, tornando a entrar no pretório, perguntou a Jesus: Donde és tu? Mas Jesus não lhe deu resposta. Então, Pilatos o advertiu: Não me respondes? Não sabes que tenho autoridade para te soltar e autoridade para te crucificar? Respondeu Jesus: nenhuma autoridade terias sobre mim, se de cima não te fosse dada; por isso, quem me entregou a ti maior pecado tem. João 19:8-11 Finalmente Pilatos o entregou para ser crucificado. Em muitos aspectos, Pilatos era um personagem digno de pena, pois vivia cercado de temores por todos os lados. Tinha medo do
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imperador romano, de que soubesse que não puniu devidamente alguém que representava uma ameaça para Roma. Tinha medo das implicações do que estava fazendo, porque sua esposa lhe dissera que tivera um sonho e que ele não devia ter parte na punição daquele homem inocente. Tinha medo do próprio Jesus, sem saber ao certo com quem estava lidando. Pilatos pode bem ser o exemplo quintessencial do que os políticos podem se tornar. Ele sabia o que era certo, mas sucumbiu à sedução de sua posição.Nos mais severos testes de motivo da vida, há um político dentro de cada um de nós. Enquanto Pilatos era ignorante sobre o papel que estava desempenhando, os sacerdotes justificavam suas ações hediondas citando as Escrituras para sustentar sua causa. O propósito divino, a manobra política e o fervor religioso se encontraram no plano da redenção. Em primeiro lugar, Jesus veio ao mundo para ser o Cordeiro pascal de Deus. O mundo desejava explicá-lo à sua própria maneira. Ele se levantou em nome da graça de Deus e falou de misericórdia. Foi neste ponto que o Cordeiro de Deus começou a se mover para o momento de sua morte. Há quatro referências distintas ao silêncio de Jesus ao longo do seu julgamento, até sua morte. Vamos dar uma olhada. O primeiro ocorreu quando ele estava diante do Sinédrio, conforme relatado em Marcos 14:60. Depoimentos contraditórios foram apresentados por falsas testemunhas. As acusações nada acrescentaram, mas mesmo assim Jesus permaneceu em silêncio. A contradição em si deve ser um indício de mentira. Quando não é vista desta forma, a verdade e a confiabilidade morreram. O segundo silêncio ocorreu quando, na presença de Pôncio Pilatos, os sacerdotes repetiram as acusações de traição. Jesus não disse nada. Sabia que estavam determinados a crucificá-lo. E difícil trazer uma defesa contra a religião desprovida de verdade, especialmente quando é galvanizada por uma turba. Qualquer palavra que Jesus proferisse em sua defesa seria sem sentido. Creio que neste aspecto o comportamento de Jesus é um exemplo profundo. Era o silêncio da verdade em meio aos ruídos do ódio e do preconceito. Eu pessoalmente já passei por situações como esta
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e testemunhei o exemplo de outros. Aquele que fica em silêncio diante dos escarnecedores ou de pessoas cheias de ódio expõe a capacidade escandalosa do ódio e, em seu silêncio, fala em voz alta sobre o caráter de Deus. O terceiro momento de silêncio de Jesus foi diante de Herodes e seu grupo de zombadores. Eles queriam um show. A Bíblia diz: Herodes, vendo a Jesus, sobremaneira se alegrou, pois havia muito queria vê-lo, por ter ouvido falar a seu respeito; esperava também vê-lo fazer algum sinal. E de muitos modos o interrogava; Jesus, porém, nada lhe respondia.[...] Mas Herodes, juntamente com os da sua guarda, tratou-o com desprezo, e, escarnecendo dele, fê-lo vestir-se de um manto aparatoso, e o devolveu a Pilatos. Naquele mesmo dia, Herodes e Pilatos se reconciliaram, pois, antes, viviam inimizados um com o outro. Lucas 23:8,9, 11,12 Esta passagem conta uma história aterradora. Muitas pessoas desejam que Jesus não seja nada mais do que um operador de milagres ou um showman. É irónico como dois inimigos se reconciliaram mediante o propósito comum de acabar com ele. Será que algo mudou desde aquela época? A quarta vez que Jesus fez silêncio foi quando Pilatos ficou com medo, ao ouvir que ele afirmava ser Filho de Deus. "Donde és tu?", perguntou-lhe. Jesus, porém, ficou em silêncio. Já tinha dito a Pilatos de onde viera, mas o governador não teve coragem de acolher a resposta. No meio dessas respostas silenciosas, há um tesouro de reflexões de Deus para nós. UM PODER DIFERENTE Primeiro há o silêncio da bondade em face do mal orquestrado. Todo o episódio diante do Sinédrio era um esforço para culpá-lo. Eles conheciam seu poder. Ele conhecia a fraqueza deles. Eles conheciam a letra da lei. Ele conhecia o espírito do código moral. Eles não o conheciam. Ele os conhecia.
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Sempre que o mal se organiza, sua ferocidade exala os aromas do inferno. Não há nada que possa aplacar sua fúria. Não pode ser parado até que alcance seus objetivos. Por isso o inferno não tem fim. Sua natureza é queimar por dentro, e nenhum consolo ou influência exterior pode mudar a impiedade que é inflamada por números. O segundo é o silêncio da percepção. Quando o mal se justifica posando como moralidade, Deus se torna o diabo e o diabo se torna Deus. Esta mudança torna o indivíduo insensível à razão. Sem dúvida, os sumo sacerdotes representam esta categoria. Nada, absolutamente nada que Jesus dissesse teria servido para convencê-los de quem ele realmente era ou teria feito com que se importassem. A capacidade de odiar e o amor que nutriam pela lei cerimonial excediam muito qualquer desejo de conhecer a verdade ou a bondade. Jesus sabia que o amor deles pela lei não era nada além do desejo de encontrar formas de manipular a legislação para servir aos seus próprios objetivos imorais. Sempre que a Escritura é citada para expressar o propósito de alcançar objetivos egoístas, a luz se transforma em treva. Em toda a literatura clássica, existem pouquíssimas passagens tão penetrantes e lúcidas quanto o retrato do Grande Inquisidor feito por Dostoievski em sua obra Os Irmãos Karamazov. Numa conversa com seu irmão mais novo, Alyosha, que tinha uma mente muito mais espiritual do que a sua, Ivã, um ateu, estava contando como houve uma época em que ele próprio se preocupava com as questões espirituais. De fato, até escrevera um poema intitulado "O Grande Inquisidor". Este foi o nome que Iva dera a um velho cardeal que liderara a Inquisição espanhola. Alyosha pediu a Ivã que lhe falasse sobre o poema, e o irmão o narrou em forma de prosa. Este se baseava nos eventos do século XVI, na cidade espanhola de Sevilha, quando a Igreja estava queimando os "hereges". Depois de dar o panorama histórico, Ivã começa sua história. Em certo dia em que muitos hereges tinham sido torturados e queimados sob o comando furioso do Grande Inquisidor, subitamente, no meio de todos os sons e as visões horripilantes da tortura, uma figura surgiu e andou gentilmente no meio do sofrimento.
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Ele se aproximou de leve, sem ser notado, c mesmo assim (é estranho dizer), todos o reconheceram... As pessoas eram irresistivelmente atraídas a ele, cercavam-no e seguiam atrás dele em bandos. O sol do amor queimava em seu coração, luz e poder emanavam dos seus olhos, e o brilho deles, derramado sobre as pessoas, despertava em seus corações uma resposta de amor. E óbvio q u e n a narrativa d e Ivã, esta figura é Jesus Cristo, camin h a n d o c o m simplicidade entte as pessoas. Subitamente, o G r a n d e Inquisidor chegou e m sua carruagem e o viu. R e c o n h e c e n d o q u e m era, i m e d i a t a m e n t e m a n d o u q u e fosse preso e atirado na prisão. N a q u e l a noite, lanterna n a m ã o e e m b r u l h a d o e m seu casaco, ele foi visitar o prisioneiro. A conversa entre os dois é profunda: "És tu? És tu?" Sem receber resposta, ele acrescentou: "Não responda, fique em silêncio. O que podes dizer, de fato? Eu sei muito bem o que irias dizer. Tu não tens nenhum direito de acrescentar algo ao que disseste outrora. Por que, então, vieste nos atrapalhar? Pois vieste para nos atrapalhar, e tu sabes disso. Mas sabes o que acontecerá amanhã?... Eu o condenarei e o queimarei na fogueira, como o pior dos hereges. E, amanhã, as mesmas pessoas que beijaram tua face, ao meu sinal, correrão para aumentar as chamas ao teu redor...". Quando o inquisidor cessou de falar, esperou um pouco para que seu prisioneiro respondesse. Sentia o silêncio pesando sobre si. Viu que o prisioneiro ouvira atentamente, olhando gentilmente em seu rosto e não demonstrando nenhuma intenção de replicar. O velho ansiava que o prisioneiro dissesse algo, mesmo que fossem palavras amargas e terríveis. Subitamente, porém, o prisioneiro se aproximou em silêncio do Inquisidor e o beijou nos lábios pálidos. Aquela foi sua única resposta. O velho Inquisidor tremia. Seus lábios se moveram. Foi até a porta da cela, abriu-a e disse ao prisioneiro: "Vá embora e não volte mais ... Não volte, nunca, nunca mais!" E, assim, permitiu que ele saísse para as ruelas escuras da cidade. 2
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A genialidade de Dostoievski revela um entendimento brilhante do poder do milagre, mistério e autoridade. O Inquisidor vive em muitas mentes religiosas até os nossos dias. Clamamos a Jesus, mas não desejamos nenhuma resposta que acrescente algo às afirmações que ele já fez. Queremos que ele vá embora e não volte mais. Esta era a mentalidade dos líderes religiosos. O silêncio de Jesus era deliberado. Ele sabia o que seus inquiridores queriam. No entanto, seu silêncio não foi somente de caráter e percepção; foi também o silêncio da coerência. Por meio do seu silêncio ele nos ensinou como lutar contra a calúnia. Seu comportamento era coerente com seu ensino. Ao longo dos anos, tenho percebido que de todos os exemplos que Jesus nos deixou, este é o que perdemos com maior facilidade, em face daquilo que é repreensível no comportamento humano. Seu silêncio nos ensina que nem sempre a resposta está de acordo com a razão. Ceder à tentação de lutar contra a calúnia com palavras em muitos casos suja o caluniador e o caluniado. Portanto, escapar da calúnia é uma tarefa perigosa quando a própria acusação pode se tornar válida não por causa da verdade, mas devido à falta de compostura que o indivíduo demonstra ao se defender. Jesus não cometeu esse erro. Alguém me contou sobre um incidente ocorrido alguns anos atrás. Como não estava presente, não fiquei sabendo de todos os detalhes. No entanto, recebi a mesma descrição dos fatos de várias fontes diferentes. Um líder cristão estava sendo vítima de falatórios por parte de alguns membros da igreja que desejavam que ele saísse. Não havia nenhum argumento decisivo que pudessem usar contra ele. Acusações leves e ridículas eram feitas com visível ferocidade e caíam todas no vazio. Relatos idênticos diziam que a expressão mais eloquente da situação foi o exemplo do líder, que se sentou silencioso diante dos seus acusadores, com lágrimas correndo pelo rosto. Não tinha nada a dizer e mesmo assim tudo estava sendo comunicado. A ira e os comentários dos atacantes não eram nada mais do que o veneno mortal de vidas mal direcionadas. Tais cenários devem nos ensinar o
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significado do verdadeiro poder. O homem que estava sendo acusado se identificava com Cristo diante dos seus inimigos. Finalmente, porém, temos de entender que o silêncio de Jesus era o silêncio da missão cumprida. Seu silêncio diante daqueles que haviam de tirar sua vida fora predito pelo profeta Isaías, 800 anos antes de acorrer: "Ele foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca; como cordeiro foi levado ao matadouro; e, como ovelha muda perante os seus tosquiadores, ele não abriu a boca" (Is 53:7). A reação natural é falarmos em nossa defesa, mesmo quando estamos errados. Jesus ficou em silêncio, embora fosse inocente. Seu silêncio era por nós, porque agora ele se levanta diante do Pai em nosso favor. No cerne de todo esse episódio há uma verdade estabelecida por Deus antes da fundação do mundo. Na sua obra O Leão, a feiticeira e o guarda-roupa, C. S. Lewis escreveu uma passagem magnífica ilustrando este ponto. Aslan, o leão, é uma figura de Cristo. Uma das crianças, Edmond, tinha traído Aslan e colocara seus filhos em perigo, vendendo-os para a bruxa malvada, a Rainha de Narmia, a qual seduzira o garoto oferecendo-lhe uma guloseima turca. De acordo com a lei, a traição devia ser punida com a morte. Havia somente uma forma de salvar Edmond: Aslan devia ser entregue nas mãos da rainha; de fato, este era o único objetivo dela. Quieto e sem esboçar resistência, o poderoso Aslan submeteu-se às exigências da rainha. Depois de ser humilhado, foi amarrado sobre uma mesa de pedra (que representava a lei) e foi morto. As irmãs de Edmond, Lucy e Susan, sentiram-se totalmente desamparadas, ao chorar a morte do amigo. Subitamente, Aslan apareceu diante delas, triunfante sobre a morte. "O que significa tudo isso?", elas perguntaram. Neste ponto da história, Lewis faz sua brilhante observação: "Significa", disse Aslan, "que embora a rainha conheça a Grande Mágica, há uma mágica ainda maior que ela não conhece. O conhecimento dela remonta apenas ao alvorecer do Tempo. Mas se ela pudesse olhar um pouco mais para trás, para a quietude e a
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escuridão que precederam a alvorada do Tempo, teria visto um encanto diferente. Ela saberia que quando uma vítima voluntária que não cometeu traição fosse morta no lugar de um traidor, a Mesa racharia e a própria Morte retrocederia".3 Este encanto ao qual Lewis se refere é a vontade anterior de Deus, que Aquele que não conheceu pecado entregaria voluntariamente sua vida para pagar o preço do pecado. A Palavra de Deus se cumpriu, conforme fora prometido. UMA FORMA DIFERENTE Será que o silêncio de Jesus, com todas as implicações que já mencionamos, revela um contraste com outros em situações similares que reivindicavam status divino ou profético? Sim. E de forma dramática. Ele veio com uma mensagem e um método que aborda três diferenças significativas nos indivíduos e na sociedade. Refiro-me a conversão, compulsão e revelação. Como a fé cristã é única? Primeiro vem a questão da conversão. A mensagem de Jesus revela que cada indivíduo, seja judeu, grego, romano ou de qualquer outra civilização, chega ao conhecimento de Deus não em virtude do nascimento, mas mediante uma escolha consciente de permitir que ele assuma o governo de sua vida. O reino de Jesus não é deste mundo; nossa hetança em seu reino não é um mundo no qual entramos mediante o nascimento físico. E importante entendermos este ponto. Vivemos numa época em que vozes iradas exigem com crescente insistência que não devemos propagar o evangelho, que não devemos considerar as pessoas "perdidas" só porque não são "cristãs". "Todos nós nascemos em diferentes crenças e, portanto, devemos continuar assim" — é o que diz a "sabedoria" tolerante do nosso tempo. Mahatma Gandhi, por exemplo, condenou veementemente a ideia da conversão. Quando as pessoas fazem estas afirmações, esquecem ou não sabem que ninguém nasce cristão. Todos os cristãos o são em virtude da conversão. Pedir aos cristãos que não alcancem mais ninguém que seja de outra crença é pedir que neguem sua própria fé.
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Dizem que um dos principais "santos" da índia, Sri Ramakrishna, já foi muçulmano, foi cristão e finalmente voltou a ser hindu, porque chegou à conclusão de que tudo é o mesmo. Se é tudo o mesmo, por que ele voltou ao hinduísmo? Dizer que todas as religiões são iguais simplesmente não é verdade. Nem mesmo o hinduísmo é igual internamente. Assim, negar ao cristão o privilégio da propagação é impor sobre ele as crenças fundamentais de outras religiões. Desde que a conversão é individual e não ocorre em virtude do nascimento, isso nos leva à próxima questão, a compulsão. O ensino de Jesus é claro. Ninguém deve ser compelido a se tornar cristão. Este fato estabelece uma profunda distinção entre a fé cristã e o islamismo. Em nenhum lugar onde as pessoas que professam a fé cristã são a maioria é ilegal propagar outra fé. Não conheço nenhum país do mundo onde alguém seja perseguido pelas autoridades por renunciar à fé cristã. Apesar disso, há numerosos países islâmicos onde é ilegal proclamar publicamente o evangelho de Jesus Cristo, e onde um muçulmano que renuncia à sua crença no Islã para crer em outra coisa corre risco de vida. A liberdade de criticar o texto do Alcorão e a pessoa de Maomé é proibida por lei e considerada como blasfémia, com pesados castigos. Devemos respeitar a preocupação de uma cultura em proteger aquilo que considera sagrado, mas tornar a fé em Jesus Cristo obrigatória é uma prática estranha ao evangelho e esta é uma diferença vital. O contraste é claríssimo. E na questão da conversão e da compulsão que emerge a teoria política. Como já afirmei antes, o evangelho não deve se propagar na ponta de uma espada. Quando a cristandade apela para tais métodos, não é o evangelho de Jesus Cristo que é difundido, mas uma teoria política que emprega o evangelho para beneficiar instituições e indivíduos com sede de poder. As pessoas têm medo (o que é compreensível) quando percebem que a religião trabalha junto com o controle político. O método de Jesus era tocar o coração dos indivíduos de modo que respondessem a ele por amor e não por compulsão ou controle. Faça um contraste com a prática de Maomé. De qualquer forma que interpretemos, a espada e a guerra são parte integrante da fé
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islâmica. Mesmo os melhores apologistas do Islã reconhecem o uso da espada em sua religião, mas atenuam o fato dizendo que em todas as ocasiões foi com propósitos defensivos. Sugiro que o leitor dê uma olhada no Alcorão e na história do islamismo e veja por si mesmo se não é assim. Quanto às execuções realizadas a pedido de Maomé, seus defensores argumentam que não foram ordenadas por ele, mas realizadas em seu favor. Novamente, recomendo que o leitor leia a narrativa para ver se esta defesa é coerente com os registros históricos. No entanto, mesmo os melhores apologistas muçulmanos são pressionados ao navegar por uma injunção do próprio Maomé para matar, ilustrada num verso do Alcorão, conhecido como o ayatussaif, ou "o verso da espada". Mas quando os meses proibidos passam, então lute e mate os idólatras onde encontrá-los; pegue-os e prepare para eles uma emboscada. Mas se eles se arrependerem e passarem a adorar e a pagar o que devem aos pobres, então deixem o caminho deles livre {Surah 9.5). Um erudito muçulmano seleciona esta passagem e faz o seguinte comentário: Um traidor culpado de alta traição é um fora da lei e pode ser morto por qualquer um, sem qualquer autoridade especial. Que Deus nos guie à verdade e espalhe a paz e a unidade na humanidade!4 Não falarei mais sobre esta questão complicada e polemica porque qualquer comentário pode suscitar sentimentos negativos, e este não é meu desejo. O que se pode ver claramente é isto. Cristianismo e islamismo concordam com uma coisa: a verdade é suprema; entretanto enxergam a verdade revelada em sua forma final em pessoas diferentes - o islamismo vê a verdade em Maomé e o cristianismo a vê em Jesus Cristo. Por isso se faz necessário uma comparação entre ambos. Assim, chegamos à última questão. No âmago de tudo isso há um assunto. O silêncio de Jesus não significa que ele não fala. Ele nos
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lembra que já falou em sua Palavra, a Bíblia. Aqui, a fonte final de autoridade é realmente divergente das outras convicções religiosas. O muçulmano vê o Alcorão como a revelação final e perfeita de Alá. Alá era o revelador e Maomé era o receptor e as palavras lhe foram ditadas. Maomé, então, é para eles o último e o maior de todos os profetas. A prova dessa supremacia é a beleza do Alcorão. Ele é o livro, considerado a expressão suprema da perfeição e o repositório da verdade. A dificuldade aqui é multiforme. Como alguém pode sustentar que este texto é perfeito? Vamos considerar só mais um aspecto problemático: as falhas gramaticais que foram encontradas. Ali Dashti, um escritor iraniano e muçulmano fervoroso, comentou que os erros no Alcorão eram tão abundantes que as regras gramaticais tiveram de ser alteradas para poderem manter a afirmação de queele era perfeito. Ele dá numerosos exemplos desses erros em seu livro Vinte e três anos: A vida do profeta Maomé (a única precaução que ele tomou antes de publicar o livro foi pedir que fosse publicado postumamente) . Outro problema que os antigos compiladores do Alcorão enfrentaram foi o número de variações de alguns textos importantes. Agora, em épocas mais recentes, os eruditos começaram a olhar o Alcorão e a levantar algumas questões bem sérias concernentes à sua origem e compilação. Este fato deixa muitos eruditos islâmicos lutando para encontrar uma resposta.5 Temos de concordar que o estilo poético do Alcorão é lindo. A mente pragmática pós-moderna tem muito a aprender sobre o lugar da beleza no discurso. Entretanto, a questão diante de nós é se este livro pode ser considerado como a Palavra de Deus. Também, considerando-se que o Islã afirma que Maomé era o profeta do mundo, o "milagre" limita-se a uma língua, sendo que uma porção significativa dela é considerada incompreensível, mesmo para aqueles que a conhecem. Em outras palavras, para vermos de fato o milagre, temos não somente de falar árabe, mas também precisamos ter um profundo conhecimento da língua. Tal reivindicação é estreita e altamente restritiva.
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Quanto à verdade no hinduísmo, o terreno se torna extremamente pedregoso. Gandhi, por exemplo, disse: "Deus é a verdade e a verdade é Deus". 6 Entretanto, o que isso quer dizer? Não responde à pergunta mais fundamental: se a existência de Deus é verdadeira ou falsa. Shankara, um dos principais expoentes do hinduísmo, fugiu da questão dizendo que embora uma pessoapossa adorar a Deus, esta é apenas uma forma inferior de expressar a verdade. Em última análise, o adorador se move para a verdade suprema que ele é idêntico a Deus. O fundamento é que os hindus apontam suas escrituras como a verdade. Neste ponto o desafio é bem complexo. As escrituras hindus na verdade são divididas em duas categorias amplas — Smriti e Sruti. A primeira significa "aquilo que é lembrado". Os autores são muitos e as afirmações que fazem são diametralmente opostas. Neste conjunto estão as especulações dos sábios indianos, abrangendo desde o profundo até o bizarro, o que eles mesmos admitem. Sruti, por outro lado, significa "aquilo que foi revelado". Trata-se da revelação eternamente verdadeira do hindu devoto. Se esta revelação é eternamente verdadeira, então a religião não pode afirmar que todos os caminhos são verdadeiros pela simples razão que algumas religiões negam a veracidade eterna dos Vedas. Muçulmanos, budistas e cristãos negariam tal afirmação. Para dizer a verdade, até mesmo alguns eruditos hindus negariam tal reivindicação. Ou a negação deles é verdade, ou a afirmação do hinduísmo é verdade. No entanto, há uma questão mais profunda. Se "aquilo que foi revelado" é a autoridade eterna, então a questão lógica para o panteísmo, o qual afirma que tudo é um, é: Quem faz a revelação? A simples tentativa de responder a esta pergunta exigiria outro livro. Algumas palavras de Sri Ramakrishna revelarão o problema: Somente Deus é, e é ele quem se torna este universo ... "Como a serpente eu mordo, como o curandeiro eu curo". Deus é o homem ignorante e Deus é o homem esclarecido. Deus, como o homem ignorante, permanece enganado. Novamente, como o guru, ele dá esclarecimento a Deus no ignorante.7
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Vemos assim as implicações (complicadas) de tal visão de Deus e da revelação. Se tudo o que existe é Deus, então tudo o que sabemos é Deus em ignorância ou Deus em esclarecimento. Daí surge a questão: quando Buda rejeitou os Vedas, ele era Deus em ignorância ou em esclarecimento? Quando Maomé estabeleceu o monoteísmo e a forma de submissão a Alá, ele era Deus em ignorância ou era Deus em esclarecimento? E por aí segue uma cadeia de questões quando tudo o que existe é Deus. O revelador e o receptor são o mesmo, só que em estágios diferentes da verdade. N u m contraste dramático, a visão cristã da revelação é apresentada a nós nas Escrituras. A afirmação dos escritores é dada com clareza: Sabendo, primeiramente, isto: que nenhuma profecia da Escritura provém de particular elucidação; porque nunca jamais, qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens [santos] falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo. 2 Pedro 1:20,21 A Bíblia diz também que "Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo" (Hb 1:1,2). Qual, então, é a diferença? Trata-se apenas de mais uma reivindicação? Não. Para começar, em contraste com o Alcorão, a Bíblia foi escrita não por apenas um autor, mas por vários autores humanos. Ela foi escrita num espaço de mais de 1.500 anos, por escritores de vários backgrounds, épocas e níveis sociais, os quais, sob a inspiração divina, escreveram a revelação. Apesar do longo espaço de tempo, a mensagem é única - aponta para o nascimento, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo, o Filho de Deus. Quando pensa sobre isso, você percebe uma incrível confluência de pensamentos por cerca de dois milénios. A própria preservação desafia a explicação natural. Muito antes de tudo convergir na pessoa de Jesus Cristo, seu advento foi visualizado, prefigurado e descrito em detalhes. Depois de sua morte, a Palavra escrita falou de forma dramática sobre o
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nascimento, a vida, a crucificação e a ressurreição. Em outras palavras, Deus falou e nos deu sua Palavra. E o clímax dessa Palavra é a pessoa de Jesus Cristo. A Palavra escrita é completa. Ele é perfeito. Ele nos lembrou que a Escritura não pode ser quebrada - sua Palavra jamais passará. Além do mais, no cumprimento da profecia, quando ele ficou calado, mostrou outro aspecto da autoridade da Escritura. A Bíblia não é meramente um livro de auto-referência, mas um livro no qual a história, a geografia e o conteúdo miraculoso da profecia e outros atos foram sujeitos aos princípios de verificação. Já vimos alguns desses elementos sobrenaturais nos outros capítulos, afirmados e defendidos. Assim, quando Jesus permaneceu calado diante dos seus acusadores, ele já tinha profetizado em sua Palavra, séculos antes, que ficaria em silêncio diante deles. Eles conheciam as Escrituras e até a citaram, mas suprimiram a verdade para justificar a vida de injustiça. Ambas as atitudes convergiram num cumprimento. Aqueles que se espantaram com o silêncio perderam a maravilha do que ele tinha dito. Por meio de suas palavras e do seu silêncio e pelas palavras e obras deles, vemos que o julgamento foi exatamente como a Palavra de Deus dissera que seria. Vemos nisso o respeito de Jesus pela sua Palavra e nosso desrespeito. Será que ainda estamos dispostos a ver a nós mesmos retratados nas Escrituras? N u m mundo de barulhos, o silêncio de Deus pode ser aterrorizante. Uma vez Martinho Lutero clamou: "Abençoe-nos, Senhor! Sim, ou até nos amaldiçoe! Mas, por favor, não fique em silêncio!" Graças a Deus, ele não fica em silêncio para conosco. Por isso o apóstolo Paulo disse ao jovem Timóteo: Tu, porém, permanece naquilo que aprendeste... desde a infância, sabes as sagradas letras que podem tornar-te sábio para a salvação pela fé em Cristo Jesus. Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra. 2 Timóteo 3:14-17
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Há mais uma coisa que precisa ser dita. Pouco antes de SirThomas More ser morto, sua filha Margaret lhe perguntou por que ele não podia simplesmente assentir verbalmente e proferir palavras de apoio ao rei, mesmo sem querer. Ela justificou o plano para salvar a vida dele dizendo:' "Você mesmo me disse que o que importa são os pensamentos e não as palavras. Apenas diga. Mesmo que não seja o que queira dizer". A resposta de More à filha foi brilhante: Seu argumento é pobre, Meg. Quando um homem faz um juramento, ele está segurando o próprio ser com as mãos, como água [ele mostrou as mãos em concha]; se ele abrir os dedos, então não precisa tentar se encontrar novamente. Alguns homens não são capazes de fazer isso, e odeio pensar que seu pai é um deles.8 O tribunal e a própria família de More tentaram arrazoar que ele podia dizer algo sem querer realmente dizer aquilo. More lembrou que a palavra de uma pessoa vale tanto quanto ela. A palavra de alguém é sua vida. E uma enorme verdade. Por isso Jesus não temeu seus acusadores. Ele estava comprometido com sua Palavra. Ele, acima de tudo, teve uma vida onde a palavra e a vida eram idênticas. Não se pode dizer o mesmo de nenhuma outra pessoa. O u existe uma ruptura na palavra, ou existe uma ruptura entre a vida e a palavra. Jesus, honrando sua Palavra, ofereceu a eles e a nós a sua vida. Ele não morreu meramente pela justiça. Ele morreu num cumprimento profético, demonstrando que não se pode matar a verdade. Portanto, num sentido real, eles também não podiam destruí-lo. Uma vez vi um póster numa parede da diretoria de uma escola. Dizia apenas: "Se você não consegue compreender minhas palavras, como compreenderá meu silêncio?" O mundo tenta interpretar a verdade por meios próprios. O cristão interpreta a verdade pela Palavra de Jesus — e pelo seu silêncio.
capítulo
sete
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ulher, por que choras? A quem procuras?" Estas perguntas foram feitas a Maria, quando foi ao jardim onde o corpo de Jesus fora sepultado. Durante os poucos anos em que os discípulos tinham estado com Jesus, suas conversas eram povoadas de perguntas. Há, portanto, uma nota acusatória quando esta pergunta é feita a eles. Na verdade este fato salienta uma pergunta que Jesus já lhes fizera em mais de uma ocasião. Uma vez ele perguntou aos seus primeiros seguidores: "Que buscais?" Perguntou o mesmo aos discípulos de João Batista: "O que saístes a ver?" Podemos presumir que várias vezes ele fez com que parassem para se perguntarem o que queriam que Deus fosse para merecer a aprovação deles. Durante os anos juntos, a incapacidade deles de apreender muito do que Jesus disse conquista nossa simpatia e nossa confusão. De fato, eles estiveram na companhia daquele que não tem outro igual; por isso, a atitude indecisa que assumiam a cada passo do caminho é compreensível. No entanto, como ele poderia ser mais específico, para que vissem claramente quem era? O caminho desta questão se expande por toda a existência humana e retrocede através dos milénios até outro cenário, quando os primeiros seres humanos foram colocados num jardim e surgiram as questões da vida e da morte. Num resumo, a história de Jesus de
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Nazaré poderia ser contada r a p i d a m e n t e ao redor d o cenário de quatro jardins. Escolhi este esquema n o qual desejo apresentar algumas das evidências mais convincentes da unicidade de Jesus Cristo n a história e nas religiões d o m u n d o . E S C O N D E N D O PARA P R O C U R A R M u i t o s anos atrás, os filósofos A n t h o n y Flew e J o h n W i s d o m esboçaram u m a parábola, apresentando a questão da existência de D e u s da seguinte forma: Certa vez, dois exploradores chegaram a uma clareira na selva. Ali, crescendo lado a lado, havia muitas flores e muita erva daninha. Um dos exploradores exclamou: "Deve haver um jardineiro cuidando deste lugar!" Por isso, eles armaram suas barracas e ficaram observando. Embora tivessem esperado vários dias, não apareceu nenhum jardineiro. "Talvez seja um jardineiro invisível", eles pensaram. Por isso, cercaram a clareira com arame farpado e cerca eletrificada. Também patrulharam o jardim com ca.es, pois lembraram que o "homem invisível" de H. G. Wells podia ser farejadove tocado, embora não pudesse ser visto. No entanto, n e n h u m som sugeria que alguém tivesse recebido um choque elétrico. N e n h u m movimento na cerca denunciava a passagem de uma figura invisível. Os cães jamais deram alarme. Mesmo assim, o explorador mais crédulo continuava com a convicção de que havia de fato um jardineiro. "Deve haver um jardineiro, invisível, intocável e que não sente choque elétrico; um jardineiro que não tem cheiro e nem faz nen h u m ruído, um jardineiro que vem aqui secretamente para cuidar do jardim que ama." Finalmente, o explorador cético se desesperou: "Mas o que sobra da sua afirmação original? Qual é a diferença entre aquilo que você chama de jardineiro invisível, intangível e eternamente oculto e um jardineiro imaginário ou nenhum jardineiro?" 1
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O ponto principal da parábola é claro. Quantas vezes não dissemos a nós mesmos que precisávamos ver Deus, só para termos certeza de que ele realmente existe? No entanto, apesar de toda a nossa espera e investigação, como os exploradores à procura do jardineiro, nós não o vemos, mas mesmo assim insistimos que está lá. Os ateus olham e imploram: "Mostrem-nos Deus". Nossas respostas parecem evasivas porque não temos nenhum corpo visível para mostrar. Flew e Wisdom fazem uma pergunta: Qual é a diferença entre um jardineiro invisível e oculto e nenhum jardineiro? E uma boa pergunta. O filósofo John Frame respondeu com um brilhante contraponto. Eis aqui a sua parábola: Certa vez, dois exploradores chegaram a uma clareira no meio da selva. Havia um homem ali, arrancando ervas daninhas, adubando a terra e podando os ramos das plantas. O homem se voltou para os exploradores e se apresentou como o jardineiro real. Um explorador apertou sua mão e trocou com ele algumas amenidades. O outro explorador ignorou o jardineiro e se afastou. "Não deve haver nenhum jardineiro nesta clareira", ele disse. "Deve ser algum truque. Alguém está tentando boicotar nossa descoberta." Eles armaram acampamento. Todos os dias o jardineiro chegava para cuidar do jardim. Logo todo o local estava cheio de flores lindas. O explorador cético, porém, insistia: "Ele só está fazendo isso porque nós estamos aqui — quer nos enganar, para que pensemos que aqui é o jardim real". Um dia, o jardineiro levou os dois ao palácio real e apresentou-os a vários oficiais que comprovaram suas credenciais. O cético, então, fez uma última tentativa: "Nossos sentidos estão nos enganando. Não existe jardineiro, nem flores, nem palácio e nem oficiais. E tudo uma farsa!" Finalmente o explorador crédulo se desesperou: "Mas o que fica da sua afirmação original? Qual é a diferença entre uma miragem e um jardineiro real?"2 O ponto de John Frame também é bastante claro. Há tanta inteligibilidade e complexidade neste mundo que tentar dar uma
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explicação sem reconhecer que há uma inteligência por trás de tudo parece um preconceito deliberado. Será que a moralidade, a personalidade e a realidade podem ser explicadas racionalmente sem uma primeira causa pessoal e moral? Como alguém pode explicar alguns aspectos do jardim sem reconhecer que há um jardineiro? Que tipo de prova da existência de um jardineiro bastará? E se o jardineiro viesse, fosse visto e desejasse que nossa confiança em seu trabalho não dependesse apenas da visão direta, porque a essência do nosso relacionamento não é a constância da visão e da intervenção, mas a firmeza da confiança e da suficiência? Onde nós ficamos, na lacuna entre as duas parábolas? Será que a evidência da existência de Deus é apenas uma questão de ponto de vista? Será que cada lado pode simplesmente rechaçar o outro e deixar assim? E interessante que a última questão que os discípulos ouviram quando procuravam por Jesus responde às questões levantadas nessas parábolas. Há um jardineiro na combinação de flores e ervas daninhas que chamamos de planeta Terra? Este é um caminho complicado. No entanto, quando chegamos ao final, a razão da jornada pode abrir novos horizontes. O objetivo será ver se ele falou ou não conosco e como Cristo revela Deus a nós. C O M E Ç O U N U M JARDIM A narrativa bíblica começa com as palavras "No princípio". O foco move-se rapidamente para o mundo que Deus criou, sendo que o ponto culminante foi a criação do homem e da mulher. O contexto mostra um mundo de relacionamentos, propósitos e beleza, com as leis naturais estabelecidas e o cuidado do jardim confiado ao ser humano. Tragicamente, o naturalismo (toda a realidade é explicada em termos naturais) e o teísmo discordam quanto a esses versículos de abertura da Bíblia. Em vez de compreenderem a intenção e o contexto daqueles para quem a revelação foi dada, os naturalistas zombam da descrição bíblica dos atos de criação de Deus como uma ofensa à sofisticação científica. No outro extremo estão os teístas que
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tentam fazer com que o registro da criação pareça uma dissertação cosmológica e depois se debatem para defendê-la. Nenhuma porção das Escrituras jamais reivindicou ser material técnico científico e nem tencionou satisfazer a mente técnica. Já ouvi muitos iconoclastas populares ridicularizarem a antiga crença de que a terra era chata e a crença de que o mundo foi criado em 4004 a . C , declarando que essas afirmações são ensinadas na Bíblia. Nunca param para provar suas afirmações mostrando onde leram essas coisas na Bíblia. Desde o histórico e histriónico julgamento Scopes em 1925, qualquer discussão entre um teísta e um ateísta sobre a questão das origens é tratada como se somente um tolo defenderia a origem sobrenatural do mundo como sendo plausível. Com frequência esses fatos são trazidos às conversas, fustigando a visão cristã das origens. Eu descobri que muitos daqueles que falam sobre isso nunca leram o script e o contexto em volta do julgamento (quando muito, assistiram ao filme). Neste capítulo final, não é minha intenção reabrir o conflito, porque há excelentes livros que trazem o debate para o diálogo dos nossos dias. No entanto, esta afronta nas mãos de opositores competentes ainda pesa sobre nós como uma mortalha. Quero retornar só por um motivo a esta questão para destacar a falácia e o preconceito mostrados na época dos eventos e mantidos até agora. Se a mesa fosse virada e os métodos empregados na época contra os teístas fossem usados contra os naturalistas, o escárnio seria mais alto. U M A PÁGINA D O PASSADO Qual foi a falácia? Vamos começar pelos antecedentes. O julgamento ocorreu em Dayton, Tennessee, em 1925. Os ânimos estavam exaltados, com a mídia assumindo o controle e transformando toda a questão num grande entretenimento. Como era de se prever, o ponto principal foi menosprezado. Havia tantas questões interligadas que ficamos nos perguntando se o cenário, os argumentos e o processo tinham algo a ver com os detalhes específicos do caso. Se fôssemos analisar hoje o questionamento a que William Jennings
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Bryan foi submetido por Clarence Darrow, veríamos claramente que as respostas de Darrow teriam sido consideradas no mínimo pouco convincentes. Todo o seu esquema consistiu em persuadir Bryan a se levantar em defesa dos milagres e em seguida destruí-lo. Bryan pensou que estava acabado e para ele, era o equivalente a fazer O. J. Simpson provar a luva encontrada pela polícia. Os elementos sobrenaturais das Escrituras, apresentados como caricaturas por Darrow, não se encaixavam no esquema "científico" e por isso Bryan pareceu esfarrapado e derrotado. Entretanto, será que era realmente a forma de se determinar se a Bíblia é confiável como documento das origens? Eis aí a falácia. Será que as particularidades de uma cosmovisão podem ser defendidas sem primeiro se defender a própria cosmovisão? A forma como um elemento tão tendencioso pode ser tomado como prova definitiva desafia a lógica. Qualquer advogado brilhante pode dizer que na maioria dos julgamentos, quando somente fatos selecionados têm acesso ao tribunal, qualquer um que saiba jogar bem com as palavras pode criar uma farsa. A mídia só intensifica as coisas. Pense sobre isto. Uma das questões para as quais Darrow exigiu uma resposta de William Jennings Bryan foi onde Caim conseguiu sua esposa. Poderia ser uma pergunta legítima se fosse permitido que primeiro a Bíblia fosse defendida em sua intenção e conteúdo e se a afirmação também contivesse todos os detalhes de como começou a reprodução humana. No entanto, nada disso foi feito. Por isso, vamos reverter o inquérito e desafiar os naturalistas a responder à mesma pergunta. Como o primeiro Homo sapiens arranjou "seu" parceiro (ou "sua" parceira")? Toda a orientação dos nossos valores baseia-se em como respondemos a essa pergunta. Será que Darrow daria uma resposta persuasiva? Como a sexualidade humana e o casamento emergem no esquema da evolução? Eu gostaria de pedir a Darrow que explicasse como o "Big Bang conseguiu atribuir à sexualidade a enorme combinação de intimidade, prazer, realização, concepção, gestação, nutrição e expressões supremas de amor e de cuidado. Tudo isso ocorreu a partir de uma explosão singular? Em nenhuma outra disciplina tanta
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informação pode ser catalogada sob a nomenclatura do acaso. No caso de Darrow não conseguir elaborar uma resposta, posso ajudá-lo até com as pesquisas mais modernas. William Hamilton, de Oxford, oferece uma teoria (esta é séria, diga-se de passagem): "O sexo serve para combater os parasitas". Quer dizer, nas regiões de clima quente, onde parasitas microscópicos ameaçam a saúde dos hospedeiros, estes solapam o poder das pragas por meio do sexo e da procriação. Para isso serve o sexo: para estarmos na frente na corrida das espécies!3 Uau! Como as prescrições de hoje são diferentes das antigas curas das pragas. Imagine o que os humoristas não fariam com essas informações!... As piadas serão mais hilárias do que o engano colocado diante de Bryan. A pequena quantidade de argumentos oferecidos como base para a verdade sobre a qual tudo isso é montado é um processo ilícito no qual tudo pode parecer absurdo. Não podemos formar uma conclusão sobre a presença de um jardineiro estudando apenas um arbusto. Há muito mais. Aqui vemos numa pequena escala o que realmente devia ser o ponto principal. Um olhar no resumo do julgamento mostra onde está o verdadeiro preconceito, como ele se apresenta hoje. No terceiro dia de julgamento, o juiz pediu a um pastor presente que fizesse uma oração de abertura. A polemica que se seguiu foi semelhante a um circo. No entanto, a despeito da forte objeção de Clarence Darrow, o juiz permitiu a oração. Então a equipe de advogados de Darrow reuniu um grupo de pastores e pediu que assinassem uma petição protestando contra a oração, com base na afirmação de que as convicções teológicas particulares deles não foram representadas. A objeção foi negada. Finalmente, eles apresentaram outra petição assinada por dois pastores unitarianos, um pastor congregacional e um rabino. O documento declarava que Deus se revelara igualmente na Palavra escrita e nas maravilhas do mundo; daí, uma oração que não refletisse esta verdade era abominável para eles. Só nos resta sacudir a cabeça, sem acreditar. E irónico que as "maravilhas do mundo" fossem colocadas em pé de igualdade com a
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Palavra de Deus, enquanto o caso que estava sendo julgado era se as maravilhas requeriam uma explicação natural ou sobrenatural. Veja bem, a verdadeira questão não era como explicar o mundo material. A verdadeira questão era se Deus tinha falado por meio de linguagem assim como se revelava por meio da natureza. Novamente surgiu a ideia do Éden - "Deus realmente disse aquilo?" Será que há somente o jardim para olharmos, ou há também uma voz por meio da qual o jardineiro fala? Da mesma maneira que ocorreu naquele julgamento, nós trazemos este preconceito para Génesis e achamos que somos capazes de decidir se Deus agiu em seis dias ou se precisou de quinze bilhões de anos. De maneira alguma esta era a intenção. Os quatro principais pensamentos do texto de Génesis se perderam no meio do volume dos debates fúteis. A principal ênfase nas páginas de abertura de Génesis é que Deus é o Criador e que ele é pessoal e eterno — um Deus vivo que se comunica. A segunda ênfase é que o mundo não surgiu por acidente, mas foi designado tendo-se o homem em mente - o homem é um ser inteligente e espiritual. A terceira é que a vida não pode ser isolada, mas deve ser vivida em companheirismo o homem é um ser dependente e criado para o relacionamento. A quarta é que o homem foi formado como uma entidade moral com o privilégio da autodeterminação — é um ser racional e responsável. Há três relacionamentos envolvidos: entre o homem e Deus - a santidade da adoração; do homem com seu cônjuge e com seu próximo - a santidade do relacionamento; e do homem com a ordem criada — a santidade da mordomia. Sobre e a partir do primeiro fluem os outros dois. Se esta ordem for contrastada com o que dizem os naturalistas, surge o seguinte padrão. O universo impessoal trouxe a si mesmo à existência e apenas aconteceu, atingindo as condições nas quais a vida podia surgir — a eliminação de todo propósito supremo. Em algum momento, para driblar as doenças, a destruição e para sobreviver, a procriação trouxe a multiplicação - o materialismo do sexo amoral. Foram criados códigos mutuamente benéficos — a natureza cultural e relativa da moralidade.
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Cada afirmação desse paradigma vai contra a razão e a intuição. São incoerentes em termos científicos e existenciais. Pegue a primeira delas. Não se tem notícia de que o nada tenha criado alguma coisa. Será que alguém pode explicar cientificamente como um estado de nada absoluto pode criar processos e resultados inteligentes? Embora possamos discordar dos processos, o fato é que vivemos num universo ontologicamente assombrado. Quero dizer que a causa suprema do nosso ser e do nosso modo de pensar exige que aquilo que somos e como nos tornamos não podem ser explicados como simplesmente "aconteceu". Há inteligibilidade correndo por nossas veias, e não podemos fugir deste fato. Toda dedução por parte dos naturalistas pode ser rebatida, desde a forma como passamos a existir até os relacionamentos que experimentamos com outros e os imperativos morais em nossas vidas. Por isso, devo acrescentar, milhões, ou até bilhões, de indivíduos neste mundo jamais se apartarão do sobrenatural, não importa quanto os naturalistas gritem. Não porque esses bilhões, sejam tolos, mas porque uma certeza clara e intuitiva lhes diz que tal complexidade espiritual e física não pode ter surgido do nada. No relato de Génesis, a questão não é se o jardim aparecera por desígnio ou por acidente. Este era o reconhecimento mais razoável. No entanto, a dúvida foi semeada em torno da questão se Deus tinha falado e estabelecido as regras básicas para a vida. A resposta dos naturalistas é um estrondoso "não!". Aceitar que Deus falou é abrir mão do primeiro princípio do naturalismo. Assim, foge-se do debate real por meio da zombaria e das ofensas. Esta diferença entre ofender e argumentar está na diferença da cosmovisão. Explicarei isso quando o argumento for revelado. No entanto, desde o início vemos que as diferenças entre um mundo silencioso e um no qual Deus falou é a dramática linha divisória entre os teístas e os naturalistas. UM SILÊNCIO RUIDOSO Algum tempo atrás, tive de me submeter a um exame que empregava a ressonância magnética a fim de diagnosticar uma hérnia de
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disco. Foi uma daquelas experiências em que o exame parece tão incomodo — ou até mais — do que o próprio problema. Tive de me deitar numa cama móvel, a qual deslizou para dentro de um túnel estreito, o qual a seguir foi totalmente fechado. O espaço era tão exíguo e a escuridão tão intensa que tenho certeza de que aquele aparelho foi inspirado nos sarcófagos egípcios. Brincadeira à parte, foi uma experiência terrível, principalmente para alguém que sofre de claustrofobia, como eu. Logo depois que a porta se fechou, encontrei-me num mundo todo escuro e silencioso. Os segundos passaram longos e assustadores, até que ouvi a voz do operador do aparelho no intercomunicador; ele disse: — O senhor tem alguma pergunta, antes de começarmos? Eu tinha perguntas! Respondi nervosamente: —Você estará aí durante todo o tempo em que eu estiver aqui? Ele respondeu: —Eu prometo, Sr. Zacharias, que estarei aqui durante todo o exame. A simples lembrança do episódio me faz tremer. Quero que você saiba que a voz de uma pessoa totalmente desconhecida foi de imenso conforto dentro daquela caixa fechada. Enquanto eu estava ali deitado, subitamente um pensamento horrível se abateu sobre mim. Num esquema naturalista, a humanidade foi enfiada neste sistema fechado chamado universo, e estamos vagando pelo espaço, sem nenhuma voz falando conosco. Não há ninguém para nos perguntar se temos dúvidas e ninguém para nos dizer que está ao nosso lado. Como disse um comediante: "Estamos nisso juntos, sozinhos". Estamos por conta própria. Era este mundo que, com efeito, Darrow estava defendendo. Também é o mundo que a Bíblia rejeita com veemência. Deus existe e Deus falou. Se não há nenhuma voz exterior, então somos a causa e os guardadores do jardim. Todos os relacionamentos podem ser legitimamente redefinidos. Falamos por nós mesmos. Definimos a nós mesmos. Regulamos a nós mesmos. A sociedade livre zomba de qualquer conjunto de regulamentos, mas quando se trata de viver em comunidade, é exatamente o que fazemos. Note o número de leis que o mundo livre tem de criar para evitar que destruamos o
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jardim, pois não há jardineiro nele, exceto nós mesmos. O naturalista está apenas olhando para si próprio. Não há ninguém para falar por nós, exceto nós mesmos. Deus, por outro lado, preserva tudo com base em uma lei — amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, toda a tua alma e todo o teu entendimento e amarás o teu próximo como a ti mesmo. Esta lei não foi prescrita nos planetas; foi escrita para nós na Palavra. Por sua graça, Deus colocou esta lei em nossos corações. Quando nós a arrancamos dali e questionamos se ele de fato falou, muitas e muitas leis têm de ser escritas para substituir a lei divina, e incontáveis instituições têm de ser criadas para impor essas leis. Há ainda outro ponto de inferência. Desse mundo interior, silencioso e solitário, segue logicamente a desintegração daqueles relacionamentos revelados em Génesis como sagrados. Génesis não nos contou como Caim arranjou sua esposa porque, no mundo em que Deus é o Criador, essa é uma preocupação secundária. De fato, quando Deus falou com Adão e Eva sobre a prioridade do marido e da esposa sobre pai e mãe, ainda não havia pais e mães. Génesis nos diz que um homem e uma mulher estavam num relacionamento de amor e de união, abençoado por Deus e como progenitores da raça humana por meio do estabelecimento de uma família. O lar e a família foram ideia de Deus e não nossa. Caim rejeitou isso, assassinou seu irmão e despedaçou o coração dos pais — e houve uma ruptura na família. O jardim se transformou numa selva de medo e morte. Essas mesmas implicações dizem respeito a nós hoje, conforme ilustra a seguinte história. Há alguns anos, Edmund Gosse escreveu um livro poderoso intitulado Pai e Filho. Trata-se do relato tocante e verídico da luta de um filho entre a fé de seu pai e suas próprias dúvidas quanto à existência de Deus. Seu pai era um biólogo marinho e ele, o filho, era estudante de literatura e depois se tornou bibliotecário da Casa Britânica dos Lordes. No livro, ele traçou sua jornada pelo ceticismo até o dia em que finalmente disse ao pai que estava rompendo com Deus e que não conseguia mais crer na sua existência. O pai lhe escreveu uma carta, nos termos mais tocantes. No final do livro, Gosse cita a carta na íntegra e diz: "Ela se enterrou como
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u m a flecha n o m e u coração". Eis aqui alguns trechos da carta d o pai: Querido filho, Quando sua mãe morreu, ela não só entregou você a Deus, como também deixou uma responsabilidade solene para mim: criálo na disciplina e na admoestação do Senhor. Busquei cumprir esta tarefa... Na sua infância, Deus manifestava seu amor e seu cuidado por você; você parecia verdadeiramente convertido a ele... Tudo isso enchia meu coração de alegria e de gratidão... [Mas,] quando você veio nos visitar no verão, um grande peso caiu sobre mim; descobri quanto você estava afastado de Deus. Não era só uma questão de ter afundado na forte correnteza das paixões da juventude... era algo que já tinha se instalado em sua mente... solapando o próprio fundamento da fé. Parecia que não sobrara nada para o que eu pudesse apelar. Descobri que não tínhamos mais nenhuma base comum. A Bíblia Sagrada não tinha mais autoridade... Você podia explicar facilmente qualquer oráculo de Deus; até mesmo o caráter de Deus você pesava em sua balança da razão e tratava de acordo. Assim, você descia rapidamente pela correnteza, rumo à eternidade, sem nenhum guia com autoridade (tendo jogado fora todos os mapas), exceto aquilo que você podia modelar e forjar em sua própria bigorna... E com tristeza e não com raiva que eu [escrevo]... na esperança de que você possa ser levado a rever todo o curso, do qual este é apenas um estágio diante de Deus. Se lhe for concedida esta graça, alegremente enterrarei todo o passado e novamente terei comunhão doce e terna com meu filho amado, como antigamente. 4 Assim terminava a carta. E d m u n d escreveu sua resposta, dizend o ao leitor que t i n h a u m a escolha entre "reter sua inteligência e rejeitar a D e u s " o u "rejeitar sua inteligência e se s u b m e t e r a D e u s " . Foi assim q u e ele concluiu seu livro, falando n a terceira pessoa. Assim, desesperadamente desafiada, a consciência do jovem atirou longe o jugo de sua "dedicação" e, da forma mais respeitosa
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possível, sem hesitar e sem remorso, assumiu o privilégio que o ser humano tem de moldar sua própria vida interior.5 O relacionamento entre pai e filho foi permanentemente prejudicado. Como tudo aquilo aconteceu? O livro de Darwin, A origem das espécies, caiu nas mãos do jovem Gosse, e esse foi o começo de tudo. Quanto mais ele pensava sobre o assunto, chegava à conclusão de que, se fosse necessário, estava disposto a abandonar tudo — inclusive a comunhão com Deus e com sua família. Se não havia lugar para o coração num sentido supremo, por que haveria num sentido temporal? Com a obra de Darwin nas mãos, Edmund forjou um propósito que não tinha bússola própria, mas sim aquela feita por ele mesmo. Esta história verídica serve como uma reflexão sobre o que aconteceu no jardim que Deus criou. O cerne da questão foi levantado: será que Deus realmente falou? Quando Adão e Eva questionaram a autoridade de Deus, a sedução colocada diante deles foi que podiam se tornar como Deus, definindo o bem e o mal. O que o tentador não disse foi que o bem e o mal, conforme definidos por Deus, estão arraigados no seu caráter, e não há nada contraditório em Deus. O bem e o mal, conforme a definição da humanidade caída, nascem de um espírito rebelde que resulta na desintegração da vida. Será que uma pessoa racional não pode ver a diferença que isso tem feito na história humana? Vivemos no meio da devastação das três santidades: adoração, relacionamento e mordomia. O próprio Charles Darwin temia que as ramificações filosóficas da seleção natural tivessem implicações sérias. "Natureza com unhas e garras" não era só uma descrição poética, mas a realidade de uma rebelião contra uma lei moral transcendente. A zombaria e escárnio no julgamento Scopes não foi a zombaria de um intelectual contra um lunático. Era a zombaria da voz do homem contra a voz de Deus. No primeiro jardim, Deus falou, e a humanidade negou que ele tivesse falado. Nasceu o humanismo, e o homem se tornou a fonte do significado.
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ROCHAS E FOME Agora vamos ao segundo jardim, e aqui é acrescentada uma estranha mudança. A questão neste cenário não era tanto se Deus tinha falado de fato, mas sim se seria possível atribuir outro significado ao que ele disse. O cenário era ideal para distorção, porque não era tanto um jardim, mas sim um deserto. Os jardins podem seduzir pela beleza que há ao redor, que é um deleite na estética, embora afronte a moral. Por outro lado, os desertos podem gerar miragens, de modo que aquilo que na verdade é irreal e imaginário pode parecer real. No primeiro cenário, o engano tem a ver com a vontade; no segundo, a desorientação é na mente. Jesus estava faminto, fisicamente fraco, e o tentador o bombardeou com uma série de incómodos. Um deles foi: "Salte e veja se seu Pai honrará sua palavra". Todas as tentações traziam o mesmo desafio: "Por que você não faz as coisas à sua própria maneira e prova sua autonomia?" Onde, então, está a mudança? No Éden, a questão era textual: Deus realmente falou? Aqui, ela é contextual: mude o significado do texto e você pode ser Deus. Enquanto no primeiro cenário nasceu o humanismo, no segundo nasceu a religião sem verdade — uma forma de politeísmo, com muitos deuses, ou panteísmo, onde a individualidade é exaltada como divindade. A ironia aqui é que, embora Jesus fosse divino, ele não podia reivindicar seu poder sem abrir mão de sua missão. A incapacidade de pensar no contexto se manifesta nos conflitos morais que vivemos hoje. Toda grande batalha moral que lutamos é porque negamos o texto ou porque justificamos o contrário apelando para um contexto diferente. Pela mudança de uma palavra ou por algum tipo de justificação, nada é mais essencialmente bom ou mau. Como resultado, nasce um elemento com muitas implicações. O senso comum nos diz que não podemos viver sem uma lei moral. No entanto, como podemos elaborar uma lei moral se Deus não falou? A única solução é arranjar uma moralidade de fabricação própria, a qual, embora mística e transcendente, é alcançada mediante os esforços pessoais. Dessa forma, apelamos para nossa inclinação es-
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piritual e ao mesmo tempo incorporamos nosso ser no centro. Se pudermos ser bons sem Deus e retermos nossa religiosidade, conquistamos o secular e o sagrado. As filosofias da Nova Era vieram satisfazer essa exigência. Será que há uma forma melhor de se aplicar uma teoria económica de procura e oferta do que manufaturar uma religião que tem um suprimento ilimitado e pode ser formatada para servir às exigências pessoais? Uma religião personalizada com um Deus impessoal — é o que é. Este tipo de religião, por sua própria natureza, tem uma imensa capacidade de refletir o sonho pragmático do camaleão. No deserto, a tentação não era para se inventar uma explicação naturalista, mas sim para reinterpretar a revelação, massageando seu contexto. Nenhuma religião fez mais para provar a realidade dessa tentação do que o hinduísmo e o budismo. Com repetidos esforços, eruditos e praticantes tentam obscurecer as verdades do cristianismo e fazer com que se pareçam com suas próprias cosmovisões. Versículos como "o reino de Deus está em vós" ou "eu e meu Pai somos um" são usados para sustentar o panteísmo. Alguns dos mais renomados filósofos hindus se esforçam para provar este ponto e nos dizer que não existe diferença. Qualquer leitura do contexto no qual essas afirmações bíblicas foram feitas mostra claramente seu uso ilícito por aqueles que buscam distorcê-las. Esse raciocínio é uma violação da lógica e do teísmo. O que começa com um afastamento sutil da verdade pela sedução da autodeificação no final resulta na deificação de todos e de tudo. Um mundo assim seria destruído pelos poderes em conflito, pois cada poder reivindicaria autonomia. Por isso os épicos hindus são cheios de guerras e mortes, como parte integrante do comportamento de deuses e deusas. Figuras animais se misturam ao divino, sendo que as histórias delas confundem a cabeça de qualquer um. E no meio do politeísmo e do panteísmo, outras divindades são acrescentadas — rios, ventos e fogo. Começou o mundo dos deuses fabricados. A Escritura cristã é totalmente diferente. Quando Deus enviou as pragas contra o Egito, no Antigo Testamento, elas se destinavam a mostrar que só ele era supremo sobre os objetos que os egípcios dei-
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ficavam (rios, planetas, criaturas, mágicas, etc.) e que não havia outro como ele. A natureza, a humanidade e qualquer outra entidade ou quantidade é distinta de Deus. Não podemos tentar eliminar esta distinção impunemente. Desde o panteísmo até a adoração da natureza, a tentação do deserto continua conosco hoje, ou seja, ter uma religião sem Deus. A rejeição do texto de Deus no primeiro jardim pavimentou o caminho para o humanismo; a rejeição do seu contexto no segundo jardim levou ao politeísmo ou panteísmo — muitos deuses ou a autodeificação. O J A R D I M DA D O R O terceiro jardim é o ponto no qual realmente desejo me concentrar porque, mediante qualquer padrão de medida, aqui a fé cristã oferece uma resposta, a qual nenhum outro sistema nem esboça arranjar um substituto. Tendo passado no teste onde foi desafiado a fazer as coisas a seu modo, Jesus foi a outro jardim e agora se ajoelha no momento mais desolador de sua missão. Foi para cumprir esta missão que ele resistiu à compulsão de invocar o sobrenatural como um caminho mais fácil. Todos os escritores dos Evangelhos o descrevem no Getsêmani, onde ocorreu a traição de Judas. Mateus nos dá uma visão ampla da angústia que Jesus experimentou naqueles momentos que precederam sua prisão. Esse jardim tornou-se sinónimo de solidão, tristeza, dor e morte. Os eventos ocorridos durante aquelas horas devem ter sido fonte de grande embaraço para os discípulos quando ocorreram e depois, quando tiveram de relatar. Ali eles não se vangloriaram, pela simples razão de que jamais esperavam ver Jesus ou eles mesmos num tempo de horror como aquele. Não era o que eles tinham "ido ver". Como o Filho de Deus poderia passar por tal angústia e ficar às portas da morte? Não era a própria morte o grande inimigo a ser vencido? Como ela podia vencer o Autor da vida? Uma vez que eles entenderam o propósito e os meios da morte de Jesus, esses elementos tornaram-se a verdade fundamental do evangelho que pregaram com convicção inabalável. O apóstolo
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Paulo disse: "Nós pregamos a Cristo crucificado... poder de Deus e sabedoria de Deus" (1 Co 1:23,24). Depois ele prossegue e acrescenta: "Decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo e este crucificado" (1 Co 2:2). O que representa a cruz? Como aquilo que os gregos consideravam loucura e a pedra na qual os judeus tropeçaram (veja 1 Co 1:21) podia ser descrito como o poder de Deus? Até hoje, não soa como obra do poder de nenhum construtor de impérios. Pascal certa vez referiu-se à humanidade como a glória e a vergonha do universo. Na cruz, vemos por que essa descrição é tão apropriada. C H E G A N D O MAIS PERTO DA C R U Z O teólogo Martin Hengel escreveu um livro extraordinário chamado Crucifixion: The Ancient World and the Folly ofthe Cross. Hengel leva o leitor através da tristeza e dos detalhes históricos de todo o significado e as implicações da crucificação em geral e da crucificação de Jesus em particular. Em seu sumário final, ele destaca vários pontos. Apresento aqui alguns deles: A crucificação era uma punição política e militar, os persas e cartagineses a infligiam sobre altos oficiais, enquanto os romanos a empregavam nas classes inferiores — escravos, criminosos violentos e os maus elementos da sociedade. Crucificar um indivíduo satisfazia principalmente o desejo de vingança e trazia grande prazer sádico. Era o triunfo do Estado. Ao mostrar a vítima nua, num lugar proeminente, a crucificação representava a maior de todas as humilhações. Muitas vezes, os condenados à crucificação não eram sepultados, de modo que o cadáver era devorado pelos animais.6 Pense nisso. Se a morte em si já é uma "derrota", quanto mais a morte na qual a política, a vingança e o poder infligem sua marca no condenado. São instituições e atitudes com as quais medimos a influência. Para os discípulos, principalmente os judeus, esta punição significava a perda de tudo. Ira, poder, orgulho e crueldade tiveram vitória sobre Aquele que afirmava ser Deus.
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Milénios mais tarde, vemos o símbolo da cruz nos colares e nos enfeites das igrejas com tanta frequência que perdemos a noção do seu significado e daquilo que implica. De fato, se essas verdades fossem claramente pronunciadas, ficaríamos ofendidos com o pregador. Hengel nos ajuda com suas afirmações finais: E impossível desassociar a conversa sobre a morte expiatória de Jesus ou o sangue de Jesus dessa "palavra da cruz". A ponta da lança não pode ser tirada da haste. Pelo contrário, a complexidade da morte de Jesus é... que... Jesus não teve uma morte tranquila como Sócrates, com seu copo de cicuta, e muito menos morreu "velho e entrado em dias" como os patriarcas do Antigo Testamento. Jesus morreu como um escravo, ou um criminoso comum, em tormentos, na árvore da vergonha... Jesus não morreu qualquer morte; ele foi "dado por nós todos" na cruz, de forma cruel e desprezível. A reflexão na realidade dura da crucificação na antiguidade pode nos ajudar a vencer a perda aguda da realidade, encontrada com frequência na teologia e na pregação moderna.7 Eu acrescentaria: "A perda aguda da realidade encontrada com frequência hoje, na pregação e na recepção da mensagem". Mesmo que fosse pregado, parece que não temos mais a capacidade de ouvir em atitude de reflexão. A primeira e mais importante realidade é que sofrimento e morte não são somente inimigos de toda a vida, mas são um meio de nos lembrar das realidades gémeas da vida: amor e ódio. Aqui, o amor e o ódio não acontecem por acaso. Os caminhos são escolhidos. Aqueles que feriram Jesus o odiavam. Ele amava aqueles que o odiavam. Aqueles que o mataram queriam tirá-lo do caminho. Entregando-se para ser morto, tornou possível para eles viver. A crucificação de Jesus foi a expressão viva da rebelião contra Deus. Sua desolação foi uma profunda tentativa de sepatar o próprio ser de Deus, na santa Trindade. No entanto, este é o ponto. Ele não morreu como mártir por uma causa, como outros fizeram; ele também não apelou para o pacifismo, como outros fizeram, de modo que o inimigo se rendesse mediante a
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pressão da opinião púbica, como ainda outros fizeram. Ele nem mesmo morreu porque estava disposto a pagar o preço para que outrem pudesse viver. Ele veio para derramar sua vida para que aqueles mesmos que o mataram, que representavam todos nós, pudessem ser perdoados por causa do preço que ele pagou no inferno de um mundo que não reconhece sua voz. Aqueles que rejeitaram o texto e manipularam o contexto de sua Palavra viram e ouviram o que o Deus encarnado manifestou da realidade. Cada sentimento que experimentaram, cada estado mental, cada pronunciamento era o oposto do que Jesus sentiu, fez e disse. Sua contra-perspectiva permanece num contraste agudo e brilhante, mesmo quando ele os convida, com base em sua morte, para virem a ele para receber perdão, pois este é o seu anseio: alcançá-los. Em Crime and Punishment, Dostoievski escreve estas linhas sobre o convite de Deus: Então Cristo nos dirá: "Venham vocês também, venham os bêbados, os fracos e os filhos da vergonha..." E os homens sábios e aqueles que têm entendimento dirão: "O Senhor, por que recebes esses homens?" E ele responderá: "Eu os recebo, ó homens de entendimento, porque nenhum deles se considera digno". E ele estenderá a mão para nós e nós nos prostraremos diante dele... e choraremos... e entenderemos tudo!... Senhor, venha o teu reino.8 Henry Nouwen, cuja vida curta foi caracterizada por um profundo compromisso com Jesus Cristo, conta sobre uma experiência pessoal comovente. Como alguns sabem, Nouwen foi um notável erudito, tendo ensinado nas Universidades de Notre Dame e Harvard. Desistiu de tudo para trabalhar com pessoas retardadas num centro em Toronto. Em seu livro The Return ofthe Prodigal Son, ele traz à vida uma das pinturas de Rembrandt. Nouwen foi profundamente afetado pela descrição de Rembrandt do filho pródigo retornando ao pai que o esperava, em cujos braços ele se atirou. Ele viajou para ver o quadro original e admitiu ter ficado apreensivo, com medo de a pintura ser menos do que sua imaginação sugeria. Veja como expressa o impacto que sentiu depois de ter ficado sentado diante do quadro durante quatro horas:
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Ali estava eu, olhando para a pintura que povoara minha mente e meu coração por quase três anos. Fiquei atónito diante de sua beleza majestosa. Seu tamanho, maior do que a vida; suas cores abundantes, vermelho, marrom e amarelo; suas sombras e fundos brilhantes; no entanto, acima de tudo, foi o abraço do pai e o filho, cheio de luz e cercado por quatro observadores misteriosos, tudo isso veio sobre mim com uma intensidade muito além da expectativa. Houve momentos em que me perguntei se a pintura real poderia me desapontar. A verdade foi o oposto. Sua grandeza e esplendor fizeram tudo retroceder para segundo plano e me cativaram completamente. O abraço pintado por Rembrandt permaneceu gravado em minha alma muito mais profundamente do que qualquer expressão temporária de suporte emocional. Ele me colocou em contato com algo dentro de mim que está muito acima dos altos e baixos da vida, algo que representa o anseio constante do espírito humano, o clamor por um retorno final, um senso único de segurança, um lar duradouro.9 Essas linhas finais atingem profundamente minha própria alma - "um senso único de segurança, um lar duradouro". Passei metade de minha vida de mala na mão, às vezes olhando o mundo de mais de mil metros de altitude. Tinha de olhar várias vezes onde guardara meu passaporte, a carteira e todas as outras coisas que formam a bagagem da vida de viajante. Fecho minha mala todas as vezes que saio do hotel. No meu passaporte há vistos de países próximos e distantes. Guardas alfandegários já cumpriram sua rotina de trabalho muitas vezes na minha vida. Ando consciente de estar em solo estrangeiro, olhando de vez em quando por cima do ombro. Oh! como é maravilhoso ter um senso de segurança, num lar duradouro! E a realidade da cruz gravada profundamente na minha alma que traz o conforto de um lar final que me espera. Posso me identificar com o compositor que escreveu: O Amor que não acaba, não me abandones, Eu descanso minha alma cansada em ti; Devolvo a ti minha vida,
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Que em teu oceano ela flui Mais rica e mais plena. O Cruz que levantou minha cabeça, Não ouso pedir para fugir de ti, Sinto-me no pó, prostrado e sem vida, E desse solo germina A vida que não tem fim.10 Quando o missionário John Paton chegou às Ilhas Hébridas no século XIX, começou a traduzir o Novo Testamento. Primeiro, tinha de criar uma escrita para a língua nativa. Trabalhou com a ajuda de um jovem, para criar um vocabulário. Não sabia como ilustrar a palavra crer. Finalmente, quando ele se acomodou totalmente numa cadeira, colocando sobre ela todo o peso do corpo, emergiu em sua mente o conceito de confiança. João 3:16 foi traduzido assim naquela língua: "Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigénito, para que todo aquele que coloca todo o seu peso sobre ele não pereça, mas tenha a vida eterna". Esta é a mensagem da cruz. Qualquer forma de cristianismo que carrega o nome, mas perdeu a cruz de vista, não é cristianismo. Uma pessoa "religiosa" que acha que não há diferença entre a natureza e a cruz não entende nada. A cruz de Cristo é a colina de onde fala aos nossos jardins. Sua era a coroa de espinhos. Sua voz ecoa acima dos sons do ódio, da tortura e da morte: "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem". O ÚLTIMO JARDIM Do jardim Getsêmani, que precedeu a cruz do Calvário, agora nós nos movemos para o último jardim. Depois que Jesus foi crucificado, dois homens pediram permissão a Pilatos para tirar seu corpo da cruz e sepultá-lo. Eram homens que, enquanto Jesus estava vivo, tiveram medo de segui-lo abertamente. Um era José de Arimatéia, a quem a Bíblia descreve como um seguidor secreto. O outro foi um mestre que anteriormente se encontrara com Jesus à noite, para não ser visto em sua companhia. Seu nome era Nicodemos.
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Os dois levaram um saco de mirra e aloés e, juntamente com perfumes e tiras de pano, embrulharam o corpo de Jesus, de acordo com o costume judaico. Os inimigos, porém, estavam nervosos. Foram ao governador e pediram para que colocasse guardas ao redor do túmulo, pois temiam que os discípulos de Jesus roubassem o corpo e depois afirmassem que havia ressuscitado, como dissera que faria. Acho isso impressionante! Evidentemente os inimigos de Jesus sabiam o que ele dissera melhor do que seus próprios discípulos. Estes estavam escondidos, com medo de serem presos e terem o mesmo fim do Mestre. Seus inimigos, porém, entenderam que Jesus dissera que ressuscitaria dentro de três dias. Muitas vezes, aqueles que rejeitam a mensagem têm mais medo de que possa haver uma verdade assustadora do que aqueles que afirmam crer. Eles tomaram precauções extras para evitar o problema. Entretanto, não podiam lutar para sempre contra Deus. Veja como a Bíblia descreve os momentos finais dessa parte da história: No lugar onde Jesus fora crucificado, havia um jardim, e neste, um sepulcro novo, no qual ninguém tinha sido ainda posto. Ali, pois,[...] depositaram o corpo de Jesus. No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao sepulcro de madrugada, sendo ainda escuro, e viu que a pedra estava revolvida. Então, correu e foi ter com Simão Pedro e com o outro discípulo, a quem Jesus amava, e disse-lhes: Tiraram do sepulcro o Senhor, e não sabemos onde o puseram. Saiu, pois, Pedro e o outro discípulo e foram ao sepulcro. Ambos corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais depressa do que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro; e, abaixando-se, viu os lençóis de linho; todavia, não entrou. Então, Simão Pedro, seguindo-o, chegou e entrou no sepulcro. Ele também viu os lençóis, e o lenço que estivera sobre a cabeça de Jesus, e que não estava com os lençóis, mas deixado num lugar à parte. Então, entrou também o outro discípulo, que chegara primeiro ao sepulcro, e viu, e creu. Pois ainda não tinham compreendido a Escritura, que era necessário ressuscitar ele dentre os mortos. E voltaram os discípulos outra vez para casa.
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Maria, entretanto, permanecia junto à entrada do túmulo, chorando. Enquanto chorava, abaixou-se, e olhou para dentro do túmulo, e viu dois anjos vestidos de branco, sentados onde o corpo de Jesus fora posto, um à cabeceira e outro aos pés. Então eles lhe perguntaram: Mulher, por que choras? Ela lhes respondeu: Porque levaram o meu Senhor, e não sei onde o puseram. Tendo dito isto, voltou-se para trás e viu Jesus em pé, mas não reconheceu que era Jesus. Perguntou-lhe Jesus: Mulher, por que choras? A quem procuras? Ela, supondo ser ele o jardineiro, respondeu: Senhor, se tu o tiraste, dize-me onde o puseste, e eu o levarei. Disse-lhe Jesus: Maria! João 19:41,42; 20:1-16 Que momento maravilhoso - um momento que abrange os quatro jardins. Desde o texto no jardim, para o contexto, no deserto; do confronto no Getsêmani, ao contraste e o clímax, no jardim onde o sepultaram. Ele era o Senhor do universo, mas mesmo assim chamou aquela mulher simples pelo nome. De repente, tudo passou a fazer sentido. A história da vida agora é vista através dos olhos do Senhor ressuscitado. Não é de estranhar que ela imediatamente corresse para tocá-lo. Deus é pessoal, Deus se relaciona, e Deus vê as coisas do ponto de vista eterno. A vitória foi de Jesus sobre aqueles que queriam silenciá-lo, naquela época e nos séculos que se seguiram. Ele não só falou, mas também os chamou pelo nome. Essa é a diferença no nosso mundo de ódio, ira e rancor. Chamar de nomes é um sintoma do nosso colapso. Como podemos entrar plenamente na maravilha e exultação que agora deve pulsar no ser daqueles que o amaram e seguiram, e cujos nomes ele proferiu com tanto carinho? Recentemente, eu estava lendo as seguintes palavras escritas por um historiador, ao descrever o dia em que a II Guerra Mundial acabara: Os homens choravam, incapazes de se conter... Sentimentos presos e condenados atrás das paredes de cinco anos sucessivos de tortura estavam irrompendo. Os sentimentos brotaram como mananciais, transbordaram, inundaram as ribanceiras e correram
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sem empecilhos e sem controle. Franceses com o rosto banhado de lágrimas se beijavam em ambas as faces - a saudação de irmãos. Eles beijavam os soldados aliados, beijavam quem estivesse por perto. A tempestade de emoções irrompeu. Lar e país assegurados, os entes queridos aguardavam... amados... estavam chamando acima do abismo dos anos de ausência. O homem se encontrava no meio da grandeza daquele momento de libertação. Uma nobre sintonia arranjada pelo Grande Compositot tinha chegado ao seu final glorioso e, quando o último acorde triunfal ecoou no hino das Nações, o homem olhou na face do seu Criador voltada para ele, uma visão de bondade, espelhada por um instante na pureza da sua própria torrente de alegria e gratidão. Nesse momento, montanhas se movem a uma ordem humana, pois ele tem tal poder aos olhos de Deus." Somente quem lutou na guerra pode realmente compreender o que significam essas palavras. O campo de batalha subitamente se transformou na celebração da vida, quando as montanhas se moveram, flores se abriram, as armas foram deixadas de lado e o som das vozes das pessoas amadas podia ser novamente ouvido. Somente alguém que conheceu a prisão e a escravidão do peca_do e o vazio que ele traz pode vislumbrar a plena libertação da cruz e a glória da ressurreição — ouvir novamente sua voz. Não é de admirar que o mundo do pensamento cristão seja tão adornado com uma riqueza musical. São os sons de júbilo ao se descobrir que há mais de um jardim. Quando Jesus diz: "Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida", ele faz uma reivindicação que nenhum outro fez. Quando ele diz: "As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão", ele fala como nenhum outro. A Bíblia diz que, embora Deus tenha falado a nós por meio dos profetas e dos apóstolos, sua expressão final é na pessoa do seu Filho, Jesus Cristo (veja H b 1:1,2). No segundo capítulo do Livro de Filipenses, o apóstolo Paulo fala sobre Jesus:
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Pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morre e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai. (w. 6-11) Jesus chamou Maria pelo nome e lhe perguntou: "Por que você está chorando? O que está procurando?" O escritor Ken Gire conta esta linda história. Uma menina, que vivia próxima de uma floresta, certa vez saiu vagando entte as árvores e achou que podia explorar os segredos sombrios da selva. Quanto mais longe ela ia, mais a selva se tornava densa, até que ela se perdeu e não sabia mais como voltar. Com o cair da noite, o medo a assaltou; cansada de soluçar e gritar, ela adormeceu entre as árvores. Amigos, parentes e voluntários vasculharam a área à sua procura, mas tiveram de desistir, devido à escuridão da noite. No dia seguinte, logo cedo, quando seu pai se preparava para continuar a busca, subitamente vislumbrou sua filhinha deitada sobre uma pedra; correu o mais rápido que pôde, chamando-a pelo nome. Ela acordou assustada e estendeu os braços para ele. Apertada nos braços do pai, ela repetia: "Papai, pai, eu encontrei você!"12 Maria descobriu a verdade mais assombrosa de todas, quando saiu à procura do corpo de Jesus. Ela não percebeu que a pessoa que encontrara era Aquele que tinha ressuscitado e que viera à procura dela. Talvez, se os naturalistas parassem de procurar apenas por um jardineiro, ficariam surpresos com quem iriam encontrar, ou, devo dizer, com quem os encontraria. Eles de fato poderiam ouvi-lo chamando-os pelo nome e poderiam entender realmente, pela ptimeira vez, os jardins e desertos deste mundo. Ele não está morto. Ele está vivo no sentido mais profundo do termo. A celebração começou.
notas
Capítulo um: Escalando um alto muro 1.
LECKY, W. E. H . A History ofEuropean Moraisfrom Augustus to Charlemagne, II. Londres: Longmans Green & Co., 1869. Citado por BRUCE, E. F., Jesus, LordandSavior. Downers Grove, 111.: InterVarsity Press, 1968, p. 15.
2.
SCOTT, Sir Walter, "Patriotism: Innominatus", The Oxford Book of English Verse 1250-1900. Oxford: The Clarendon Press, 1924, conforme citado na Coleção Bartleby da Universidade Columbia. Naquela ocasião, o orador foi o Rev. Sam Wolgemuth, presidente da Mocidade Internacional para Cristo. O filho de Wolgemuth, Robert, publicou meu primeiro livro em 1991, A Shattered Visage: The Real Face ofAtheism. Nashville: Wolgemuth & Hyatt. Desde aquela noite, Sam Wogemuth tornou-se um amigo precioso e querido, um pai espiritual — algo que jamais imaginei como uma das centenas de pessoas sentadas e ouvindo um pregador naquela noite cálida em Delhi. Ele também se lembra daquela noite. Ele se lembra de ter dado pouca importância quando apenas uma pessoa foi à frente, no grande auditório. C o m o sabemos, aquela pessoa era eu.
3.
4.
WESLEY, Charles, "Pode ser assim", Hymns ofthe Christian Life. Harrisburg, Pa.: Christian Publications, 1978, p. 104.
Capítulo dois: Em direção do lar celestial 1. 2.
LEWIS, C. S., citado em ELLIOT, Elizabeth. Discipline: The GrandSunender. O l d T a p p a n , NJ.: Fleming H . Revell Co., 1960, p. 62. H I T C H E N S , Christopher, citado em E N G E L B R E C H T , Carla C , "Discurso controvertido de Hitchens gera polemica", Campus Times News. Universidade de Rochester, edição online, 13 de novembro de 1997.
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3.
4. 5.
6.
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Este evento é registrado como Al-Miraj, na Surah 17.1. É muito importante notar que este versículo no Alcorão, sobre o qual eles baseiam a jornada celestial de Maomé, na verdade não especifica se esta jornada foi literal ou uma visão. Os intérpretes estão em lados opostos sobre o que esta jornada noturna significa. Um dos desafios (embora não o menor) é que a esposa de Maomé disse que ele ficou ao seu lado toda a noite e nunca se afastou dela fisicamente. Outra consternação dos eruditos muçulmanos é que há um episódio muito similar na lenda de Zoroastro (anterior ao islamismo), que fala de uma jornada ao céu. Os críticos textuais continuam a questionar se esta história foi tomada emprestada pelo Islã. Usado com permissão pessoal de Larry King. Desde o início o islamismo era primariamente predisposto em relação a uma pessoa em particular. Há pouquíssima dúvida de que, nesta acepção, o Islã foi uma reação geopolítica a outros grupos ao redor. Mesmo aqueles que simpatizam com esta religião, tais como Ali Dashti, o notável jornalista iraniano, comentam que o maior dos milagres no islamismo é que deu uma identidade aos seguidores de Maomé, algo que lhes faltava devido às várias lutas tribais. A própria linguagem do Alcorão é restritiva. Afirmar que o único milagre de Maomé foi escrever o Alcorão e depois afirmar que não se pode reconhecer o que ele escreveu a menos que se conheça a linguagem empregada torna o milagre pouco universal. Como um "profeta do mundo" pode ser tão restrito a um grupo linguístico? Diz-se que o Alcorão ê apenas inspirado na língua original — nenhuma outra língua pode repetir o milagre. A restrição desse apelo étnico não pode ser ignorada. CHESTERTON, G. K., " The House ofChristmas", de Robert Knilie, ed., As I Was Saying. Grand Rapids: William B. Eerdmans, 1985, pp. 304,5.
Capítulo três: A anatomia da fé e a busca da razão 1. 2. 3. 4. 5. 6.
NAGEL ,Thomas. The Last Word. Nova York: Oxford University Press, 1997, p. 130. NEILL, Stephen, citado em SANDERS, J. Oswald. Spiritual Leadership. Chicago: Moody Press, 1994, p. 15. PARRIS, Matthew, "A fúria da razão", (Londres), Times, 22 de maio de 1999, p. 22. HUME, David. On Human Nature and the Understanding. Anthony Flew, ed. Nova York: Colher Books, 1962, p. 163. THOMAS, Lewis, citado por BRAND, Henry e YANCEY, Philip. Fearfully andWonderfullyMade. Grand Rapids: Zondervan, 1980, p. 25. WICKRAMASINGHE, Chandra, citado por GEISLER, Norman, BROOKE, A. F. e KEOSH, Mark J. The Creatorin the Courtroom. Milford, Mich.: Mott Media, 1982, p. 149.
NOTAS V :
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7. 8.
CRICK, Francis. Life Itself. Nova York: Simon and Schuster, 1981, p. 88. C H O P R A , Deepak. The Seven Spiritual Laws ofSuccess. San Rafael, CA: Amber Allen Publishing, 1994, p. 68, 69.
9.
Citado em G R O S S M A N , David, "Treinado para matar", Christianity Today, 10 de agosto de 1998, p. 7.
Capítulo quatro: Um sabor para a alma 1.
B R O W N I N G , Elizabeth Barrett, "Aurora Leigh", citada em GIRE, Ken. Windows ofthe Soul. Grand Rapids: Zondervan, 1996, p. 39.
2.
ZACHARIAS, Ravi. Cries ofthe Heart. Nashville: Word Publishing, 1998, p. 2 2 1 .
3. 4. 5.
KRAKAUER, Jon. Into Thin Air. Nova York: Villard Books, 1996, p. 187, 88. B R O W N , David A. A Guide to Religions. Londres: SPCK, 1975, p. 148. C O U P L A N D , Douglas. Life After God. Nova York: Pocket Books, 1994, p. 338.
6.
C H O P R A , The Seven Spiritual Laws to Success, p. 3.
7. 8. 9.
Idem, p. 98. Idem, p. 102. Devo acrescentar que foi por isso também que houve uma revolução no pensamento hindu. Os filósofos mais modernos repudiam esta noção de Deus impessoal, e uma gama de ensinos emerge no pensamento hindu subsequente, os quais levam à adoração de deuses pessoais. A Gita forma a escritura hindu mais popular e está cheia de canções de adoração e louvor dirigidas a uma divindade pessoal.
10. Veja Radhakrishnan em sua obra Hindu View of Life (Nova Delhi, índia: Indus, 1993) e Pandit Nehru em seu comentário sobre hinduísmo, citado em Brown, A Guide to Religions, p. 63. 11. H O O N , Paul Waitman. The Lntegrity ofWorship. Nashville: Abingdon Press, 1971, p. 164. 12. LATHBURY, Mary A. e GROVES, Alexander. "Partindo o Pão da Vida", Hymns ofthe Christian, p. 4 1 1 .
Capítulo Cinco: Deus é a fonte do meu sofrimento? 1. 2. 3. 4.
Usada com permissão de Mark Triplett. KREET, Peter, Making Sense Out ofSuffering. Ann Arbor, Mich.: Servant Books, 1986, p. 5 1 . H U M E , David. Dialogues Concerning Natural Religion, Part 10, Henry D. Aiken, ed. Nova York: Hafner Publishing Co., 1963, p. 64. MACKIE, J. L., citado por M O R E L A N D , J. P. "Reflexões sobre o significado da vida sem Deus", The Trinity Journal, 9 NS (1984), p. 14.
222
5. 6. 7. 8. 9.
P O R QUE JESUS É DIFERENTE
DAWKINS, Richard. OutofEden. Nova York: Basic Books, 1992, p. 133. DAWKINS, Richard. "Vírus da mente", 1992 Voltaire Lecture. Londres: British Humanist Association, 1993, p. 9. C H E S T E R T O N , G. K. Orthodoxy. Garden City, NY: Doubleday, 1959, p. 4 1 . SARTRE, Jean Paul. Being and Nothingness. Nova York: Pocket Books, 1984, p. 4 7 8 . Extraído de Anguttara Nikaya, 7.5, citado no Guide to the Tipitaka. Bangkok: White Lotus Company Ltd., 1993, p. 97.
10. M C C U T C H E O N , John. "Natal nas trincheiras", letra e música de John McCutcheon/Appalsongs (ASCAP), 1984. 11. M C Q U I L K I N , Robertson. A Promise Kept. Wheaton, 111.: Tyndale House Publishers, Inc., 1998, pp. 18, 19. 12. Idem, p. 85. 13. C O U P L A N D , LifeAfter God, p. 359. 14. PLANTINGA, Alvin. "Vida cristã parcialmente vivida", Kelly James Clark ed., Philosophers Who Believe. Downers Grove, 111.: InterVarsity Press, 1993, p. 73. 15. HALLIE, Philip. LestInnocentBloodBeShed. Filadélfia: Harper &Row, 1979, p. 2, citado por STUMP, Elenore em seu ensaio "O espelho do mal" emThomas V. Morris, ed., God and the Philosophers. Nova York: Oxford University Press, 1994, p. 244. 16. Idem, pp. 2 4 1 , 4 2 . 17. STUMP, "O espelho do mal", pp. 240, 42. 18. M U G G E R J D G E , Malcolm. A Twentieth Century Testimony. Nashville: Thomas Nelson, 1978, p. 72. 19. WIESEL, Elie, citado em N I G I E N , Dennis, "O Deus que sofre", Christianity Today, 3 de fevereiro de 1997, p. 40.
Capítulo seis: Quando Deus fez silêncio 1. 2. 3. 4. 5.
Citado em L I D D O N , Henry Parry. Liddons Bampton Lectures 1866. Londres: Rivingtons, 1869, p. 148. D O S T O I E V S K I , Fyodot. The Brothers Karamazov. Gatden City, N.Y.: International Collectors Library, Chapter 5: "The Grand Inquisitor". LEWIS, C. S. TheLion, theWitch andtheWardrobe. Nova York: Collier Books, pp. 1 5 9 , 6 0 . SARWAR, Hafiz Ghulan. Muhammad: The Holy Prophet. Lahore, Pakistan: Sh. Muhammad Ashraf, 1969, p. 195. Para aqueles interessados em seguir os desafios mais recentes, ler o jornal Atlantic Monthly de janeiro de 1999, que contém um artigo fascinante sobre estudos no Alcorão: "O que é o Alcorão", escrito por Toby Lester, pp. 43-56.
NOTAS
6.
7. 8.
223
GANDHI, M. K. Pathway to God, compilado por M. S. Deshpande. Ahmedabad: Navajivan Publishing House, 1971, pp. 8,9,23. Veja também In Search ofthe Supreme, vol. 2, do mesmo autor e editora, 1961, pp. 265 ss. ISHERWOOD, Christopher, ed. Vedanta for Modem Man. Nova York: New American Library, 1972, p. 246. BOLT, Robert. A Man for AU Seasons. Toronto: Irwin Publishing, 1963, p. 82.
Capítulo Sete: Existe um jardineiro? 1.
FLEW, Anthony. "Teologia e falsificação", em HICK, John ed., The Existence ofGod. Nova York: Colher Books, 1964, p. 225. 2. FRAME, John. "Deus e a linguagem bíblica: Trancendêncía e imanência'', mencionado em MONTGOMERY.J. W (ed.). Gods InerrantWord. Minneapolis: Bethany Fellowship, p. 171. 3. HAMILTON, William, citado em RIDLEY, Matt, "Por que os machos devem existir?" U.S. News and WorldReport, 18 de agosto de 1997. 4. GOSSE, Edmund. Father and Son. Nova York: Penguin Books, 1907, 1989, pp. 249-51. 5. Idem, pp. 16,17. 6. HENGEL, Martin, Crucifixion: The Ancient World and the Folly ofthe Cross. Filadélfia: Fortress Press, 1977, pp. 86-88. 7. Idem, pp. 89,90. 8. DOSTOIEVSKI, Fyodor. Crime and' Punishment. Nova York: Bantam Books, 1987, p. 20. 9. NOUWEN, Henry, citado em GIRE, Windows ofthe Soul, p. 85. 10. MATHESON, George, "O Love, That Wilt Not Me Go", Hymns ofthe Christian Life, p. 181. 11. REID, P. R. TheLatterDaysat Colditz. Londres: Hodder and Stoughton, 1952, pp. 226,27. 12. GIRE, Windows ofthe Soid, p. 215.