EDITORA
FUN DA ÇÃ O U NIVERSI DADE DE BRAS ÍLIA Reitor: Cristovam Buarque Vice-reitor: João Cláudio Todorov
José Caruso M oresco Danni — Presidente José W alter Bautista Vidal Luiz Fernando G ouvêa Laboriau M urilo Bastos da Cunha Odilon Ribeir o Coutinho Pau lo Espírito Santo Saraiva Ruy Mauro Marini Timothy Martin Mulholland VIadimir Carvalh o Wilson Ferreira Hargreaves
A RELIGIÃO E O DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA MODERNA TndvçJo: Ferrando iJ-iüium Vieira
Digitalizada por: jolosa
Ed
Edicnra UniwrsiLjBdc-ÍC lifhE.lUd
1^5
Este livro ou q ualqu er parte dele não p ode ser reprodu zido, po r qualquer meio, sem autorização e scrita do Editor. Impresso no Brasil. Editora Univ ersidade de Brasí lia Campus Universitário, Asa Norte 70.910 Brasíli a, D istrito Federal Livraria e Editora Polis Ltda. Rua Caram uru, 1196 04138 Sã o Pau lo, S. P. Copyright ©1 972 by Professor R. Hooykaas Publicado pela primeira vez em 1972 pel a Scottish Ac adem ic Press Ltd.
Direitos exclusivos de edição em lingua portuguesa: Editora U niversidade de Bras ília EQUIP E TÉC N IC A Editor: Manuel M ontenegro da Cruz Contro le de Te xto: Fatima Rejane de Men eses Capa: Nanch e Las-Casas ISBN: 85-230-0227-8 Ficha Catalográf ica elaborada pel a Biblioteca Cen tral da Unive rsidade de Brasíl ia
H7 89r
Hooykaas, R. e o desenvolvim ento da ciência mo derna . Trad . de Fer A religião nando Dídimo Vieira. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1988. 196 p. Título srcinal: Religion and the Rise of M ode rn Science 215
261.6
Sumário Nota de agradecim ento..................................................... 11 Introdução.......................................................................... 13 1. DEUS E A N A TU R EZ A A. A visão g re g a ............................................................... 17 a. Os pré-soc ráticos................................................... 17 b. Platão ...................................................................... 20 c. Aristóteles ............................................................. 22 d. Os e stó le o s .............................................................. 23 e. Galeno .................................................................... 24 /. A Idade Média ....................................................... 24 B. C. D. E.
A visão b íbe lica............................................................ Pai, autor cria dor do mund o ................................. A concep ção mecanicista do mund o ...................... Da crítica mecanicista à concepç ão organicista d o mundo ...................................................................... a. Basso ................................................................ .... b. Boyle ........................................................................ F. A crít ica radical do n atu rali sm o ...............................
a) Malebranche
.........................................................
25 27 32 35 36 37 39 40
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A RELI GIÃO E O DESENVO LVIMENTO DA CIÊNCIA M ODERNA
b. Berkeley ................................................................... 42 c. Retrospecto .............................................................. 45 2. RA ZÃ O E EXPERIÊNCIA A. Racionalismo e empirismo na Antigüidade e na Idade M é d ia ................................................................. 49 a. Raci onal ismo e e m p iris m o ..................................... 49 b. O racionalismo d os filóso fos gregos .................... 51 c. Raciona lismo escoldst ico e seus críticos m e dievais........................................................................... 52 d. Empi rismo no m ina lista ......................................... 53
B. Em pirism o e racionalism o no início do século XVII 56 a. O em pirism o matem ático de Gal ileu e Ke pler .. 56 b. Em pirismo histó rico -na tura l ............. ................... 58 c. O em pirism o histórico-natural de Francis Bacon 61 C. Cartesianism o ............................................................... 63
a. O tari sm o de teológico de Desc artes ............ ............. 65 b. O volun raciona lismo Desca rtes na Ciência D. Oposição em pirista a Desc artes ................................. 67 a. Pascal■....................................................................... 68 b. Boyle ......................................................................... 70 c. Newton ..................................................................... 73 d. Retrospecto .................................... ........................ 75 3. NA TU RE ZA E ARTE A. O contraste entre ar te e Natureza ............................. 77 a . Supremacia de physis sobrete c h n é ....................... 77 b. A ilegit imidade da competição com a Natur eza . 79 c. A influê ncia da separação de arte e Natu reza na mecânica e na química ..........................................
80
d. Paracelso ................................................................ 83 e. A superação da Natu rez a pela arte ..................... 84 B. A abo lição do contraste entre Nature za e a r te ........ 85 a.mecanicista A transição da concepção organicista para a 85 ................................................................ b. A defesa de Francis Bacon do po de r da arte ........ 87 c. A sínt ese artificial dos comp ostos natu ra is ........ 90 d. Mecanici smo e tec no log ia .................................... 91 C. O domíni o do hom em sobre a Natu reza ................. 92 a. A religião em fa vor do direi to e do dev er de do minar a Na tureza ................................................... 92 b. A pesquisa cient ifica como u m d eve r de caridade 95 c. O repúdio romântico a Francis B a c o n ................. 98 4. O AV AN ÇO DA CI ÊNCI A EXPERIMENT AL A. A avaliação do trabalho manual e da experimen tação na A ntigü idad e ................................................. 102
a. Ofícios manuais na A n tig ü id a d e .......................... 102 b. Ciência aplicada na A n ti g ü id a d e .......................... 105 c. Os enge nheiros na An tigü ida de ......................... 107
d. A experimen tação na A n tig ü id a d e ..................... 109 B. A avaliação judaico-cr istã do trabalho manual . . . . 111 a. Os ofícios manu ais na Bíblia ................................ 111 b. Os ofícios man uais e a experimentação no m u n do cristão ................... ................................................. 113
C. A cooperação do cérebro e da mão nos primórdios da ciência moderna ................................................... 116 a . A rtes mecânicas'e liberais no século X V I ........ 116 b. A sanção religiosa para o trabalho manual e experimental .............................................................. 120 c. A atitude pur itan a em relação à ciência exper i
mental
........................................................................
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A RELIGI ÃO E O DESENVO LVIMENTO DA CIÊNCIA MOD ERN A
5. A CI ÊNCI A E A REFORMA A. A d a Reforma ciênci a ................. a. influência A participação dos prosobre testanates na pesquisa cien tífica ............................................................................. b. Asc eti sm o intram und ano e atividad e cient ífica . c. 1‘Para a Glória de Deus ” .................................... d. Predes tinação e de term inism o ............................ e. O sacerdócio geral dos crente s .............................. B. Ciên cia e exegese b íb lic a ............................................. a. A Bíblia como uma fo n te para a c iê n c ia ............. b. A posição de Calvino sobre ciência e Esc ritur a . c. Infl uên cia da teoria da acomodação de Calvino . d. A posição de Galileu sobre as Escrituras e o m ov im ento da Terra ................................................. e. A posição de Jo hn Wilkin s sobre Bíblia e ciênci a /. Copernicanismo e anticopernicanismo entre os
127 127 131 137 139 141 148 148 152 160
C. Preformados uritanism o e.................................................................. ciência ................................................. a. O caráter do puri ta nis m o ....................................... b. Baco nismo purit an o ............................................... c. Uma ‘‘Idade da Luz ’ ’ ........................................... d. ‘ ‘Exaltação ’' e sa b er .............................................
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Epílogo
195
162 165
À memória de Janet C. MacKay
1892-1964
N O T A DE A G R A D E C IM E N T O
As Conferências Gunning, que serviram de base a este livro, foram proferidas sob os auspícios da Faculdade de Teo logia da Universidade de Edimburgo, em fevereiro de 1969Meus sentimentos de apreensão, em razão de ter sido este primeiro contato com uma faculdade teológica no de cursoo de uma longa carreira, dissiparam-se felizmente. De fato, a antiga tradição que Fleming e Miller legaram ao New College deixou sua marca na vivida consciência da necessi dade de se lançar um a luz sobre as relações existentes en tre o pensamento científico e o religioso. Sou particularmente grato ao Reitor Mclntyre e ao sr. David Wright por tudo o que fizeram para tornar a minha estada t ão confortável qu anto prov eitosa, e a o Professor T orrance por ter generosamente dedicado muito do seu tempo à discussã o de tópicos de m útu o interesse. Para dar a este livro a sua forma atual, a colaboração do Professor D. M. MacKay, do sr. Douglas Grant e de toda a equipe da Scottish Academic Press foi realmente inesti mável.
R. Hooykaas
Introdução
A revolução essencial do pensamento científico teve lu gar nos séculos XVI e XVII. Por maiores que tenham sido as mudanças ocorridas em nossa época, Planck, Einstein e Bohr não tornaram obsoleta a ciência newtoniana, ao passo que a ciência clássico-moderna, edificada a partir de Copér nico até Newton, anulou e invalidou a maior parte da ciência antiga e medieval. Essa afirmação suscita o problema de saber por que a ciência mo derna surgiu num deter minado lug ar na Europa e num determinado momento, e não em algum outro lugar, ou numa época diferente. É geralmente reconhecido por to dos que devemos aos gregos, se não os dogmas essenciais, pelo menos os instrum mentais de nossa cia. Não importa o que osentos séculos XVI ebásicos XVII possam ter ciên rejeitado da antiga herança científica, ainda assim uma par cela desse conhecimento continuou a ser usada — a lógica, a matem ática e a experimentação. A outra fonte da civilização européia, a judaico-cristã, sofre uma apreciação menos positiva. O consenso atual é o de que a ciência pro gred iu graças aos clássi cos e a despeito da
tradição bíblica. Até mesmo teólogos e religiosos mostram,
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A RELIGI ÃO E O DESENVO LVIMENTO DA CIÊNCIA MODE RNA
muitas vezes, grande empenho em desabonar o passado eclesiástico e em deplorar a influência retrógrada da Igreja no desenvolvimento da ciência. Tem sido enfatizado muitas vezes o papel desem pen had o pela exege se bíblica, ao oferecer resistência às novas teorias científicas sobre o movimento da Terra, a idade do planeta e a srcem das espécies animais. Não obstante, da mesm a maneira que seria falso culpar A ris tóteles por todas as interpretações preconceituosas, dogmá ticas e até mesmo simplórias de sua filosofia, divulgadas por seus seguidores escolásticos, seria igualmente errôneo atri buir aos autores bíblicos as interpretações obtusas daqueles que se valeram do trabalho desses autores para se opor aos juízos e âs descobertas científicas. Ademais, as disputas so bre o alegado conteúdo científico dos textos bíblicos foram incidentes que não afetaram o desenvolvimento da ciência em todos os lugares e em toda s as épocas. Por outro lado, um estudo mais aprofundado mostra que há um a difer ença essenci al entre os l egados c ultura is dos gregos e os da Bíblia. Os gregos possuíam uma sofisticada visão científica do mundo e lançaram os fundamentos de al gumas disciplinas científicas, tais como a astronomia e a óp tica. A Bíblia, ao contrário, não apresenta nenhuma visão científica do mundo, e não contém quaisquer dados cientí ficos que pudessem servir de base a um futuro desenvolvi mento. Conseqüentemente, os hebreus deram ainda menos contribuições de valor duradouro para o conteúdo material de nossas ciências do que os gregos. Não obstante, já que o legado principal dos gregos deve ser buscado não em suas teorias específicas, mas antes na atitude geral que nos trans mitiram (uma atitude de investigação racional da natureza, por interm édio da lógica, da matemática e da observação), poder-se-ia indagar se o mesm o não pode ser dito da influên
cia N ão te riadoa mvisão do amundo, ou, pelo nos,bíblica. sua concepção und o,bíblica tido um infl uência posi me tiva e
INTRODUÇÃO
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duradoura na ciência? Parece difícil acreditar que, embora o pensamento europeu tenha sido profundamente influenciado tanto pelas fontes greco-romanas como pelas fontes bíblicas, somente as primeiras possam ter deixado a sua marca nos nossos processos de pen sam ento científ ico. N o en tan to , até a revolução científica dos séculos XVI e XVII, os conteúdos e métodos d a ciência não difer iam essencialme nte dos da A n ti guidade. Embora alguns dos primeiros cristãos rejeitassem inteiramente a filosofia e a ciência gregas, outros buscaram afanosamente uma conciliação, sem descobrir novos cami nhos. A ciência do início da era cristã era em tudo seme lhan te à ciência do final da era pagã . Na Idade Média, a Bíblia era, em grande parte, lida com lent es “ greg as” , e o resul tado, muit as vezes, era uma con ciliação precária. Dificilmente poder-se-ia dizer que a teolo gia cristã tivesse exercido uma influência purificadora ou enriquecedora sobre a herança clássica. A ciência medieval não deu um passo no sentido de eliminar os principais vícios inerentes à postura grega em face da natureza, pois nela deparamos novamente a mesma subestimação do poder hu mano e a mesma deificaçao da natureza; a mesma superestimação da r azão hu man a e a mesma deprec iação do trabalho manual. Isso suscita a questão de se os corretivos pos teriorm ente aplicados a essas fraqu eza s — isto é, um ‘ ‘de se nd eu samen to’ ’ da natureza, uma avaliação mais modesta da razão humana, e um maior respeito pelo trabalho manual — poderiam estar presentes, de forma latente, em alguns aspectos negligencia dos da tradição bíblica. No caso afirmativo, poderíamos ter condições de identificar alguns traços gerais do pensamento bíblico capazes de exercer uma influência salutar no desen volvimento da ciência, os quais, no decorrer dos séculos
XVI e XVII, talvez tenham concorrido para corrigir as fa lhas da atitude grega.
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A RELIGIÃO E O DES ENVO LVIM ENT O DA CIÊNCIA MO DER NA
É claor que a religião, conquanto fator importante na criação do clima espiritual do pensamento, não é, todavia, o único. Influências externas, sejam sociais, econômicas, políticas ou geográficas, e internas, tais como a filosofia e a ética, também contribuem com a sua parcela. A situação se torn a ainda mais complexa em razão d e esses fatores e starem inter-relacionados; por exemplo, as concepções religiosas e sociais estão intimamente interligadas. Mas, à época em que surgiu a ciência moderna, a religião constituía um dos fato res poderosos d adeuses) vida cuinfluenciava ltura l. O q ue pe ssoas pen vammais de Deus (ou dos suaasconcepção da sa natureza, o que, por sua vez, influenciava os seus processos de investigação da natureza, ou seja, a sua ciência. Nas conferências aqui apresentadas, investigaremos até que po nto os fatores bíblicos e gregos influe nciaram a criação de uma certa atitude em relação à natureza. Faremos isso comparando as concepções gregas e bíblicas de Deus e da na ture za , e as metodol ogias c ientíficas que resu ltara m dessas concepções, com ênfase especial no escopo e nas limitações da razão humana (racionalismo e empirismo), no poder do homem (os limites da natureza e da arte), e na participação do cérebro e da mão na investiga ção da na ture za.
1. Deus e a natureza
A) A VISÃO GREG A
a) Os pré-soc ráticos Para os intimamente antigos theologoi gregos,oscosmogonia e teogonia estavam relacionados; deuses personifi cavam o s poderes cós micos resultan tes de proce ssos de am or e geração. O mundo era um organismo vivo, a divina fonte de todos os seres vivos — e até dos deuses. Embora o physikoi jônico despersonalizasse os mitos, a idéia fundamental perm anecia a mesm a. Para eles, physis representava princi palm ente o processo do vir-a-ser e do crescim ento de todas as coisas; significava praticamente o mesmo que gênese. A 4‘m at ér ia’ 5tinha-se transformad o no pr óprio ser divino, que atuava nela e com ela formava um todo indi viso.1 Tales (sé culo VI a.C.) considerava a água como a srcem de todas as coisas, e, segundo Aristóteles, os antigos expressavam a mesma idéia, de uma maneira mitológica, quando afirma
(1) O. G ilbert. Dte meteorologisch en Tbeo rien des griecb isch en A ltertum s, Leipzig, 1907, p. 70.
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A RELIGIÃO E O DESE NVOLV IMEN TO DA CIÊNCI A MO DER NA
vam que Oceano e Tétis estavam nas srcens do mundo.2 Conta-se que Heráclito, que considerava o fogo como sendo a srcem de todas as coisas, costumava ficar perto do fogo, na cozinha, saudando os seus hóspedes com as seguintes pa lavr as: 4‘Ap roxim em -se, aqui também há deuse s” . Estes fi lósofos encaravam a própria natureza como uma divindade, um ser eterno em processo de contínua auto-regeneração. Algumas vezes, eles a identificavam com os deuses olímpi cos. Dessa maneira, estes deuses, que se srcinavam dos espíritos que animavam as árvores, os lagos e os rios, reassu miam seurmava: caráte ír‘Zeu ori ginal, zada. És quilo afi s é o num éte r, aZeforma us é aracionali te rra , Zeu s é oJácéu, é tudo e t udo o qu e est á aci ma disso” . Assim , “ a filosofia pode ter sido a morte dos antigos deuses, mas era, ela pró pria, uma religião ’ ’ .3 Após os filósofos eleáticos (século V a.C.) terem de monstrado que o ser divino não pode absolutamente sofrer qualquer mudança, os filósofos da natureza que se seguiram lançaram-se à tarefa de “ salvar os fenô meno s” . Embora mantendo a imutabilidade do verdadeiro ser, eles tentaram, ao mesmo tempo, explicar as aparentes mudanças do mundo dos fenômenos através da reorganização, separação e união de pequenas partículas inalteráveis. Os quatro elementos de Empédocles (terra, água, ar e fogo) ostentavam os nomes de deuses olímpicos; de sua união, pela força do amor (Afrodite), surgiram coisas, o Sol, até mesmo í ‘ostodas deusesaseternos5’ .A a Terra, as árvores e Os atomistas, ao rejeitarem qualquer princípio racional na natureza, permaneceram, a esse respeito, afastados da (2) Aristóteles, Metaftsica, i, 3. (3) W. Jaeger, Die Theologie derfrühengriechischen D enker, Stuttgart, 195 3, p. 87.
(4) Empédocles, B 21, 23. Os pré-socráticos são citados segundo H. Diels,
Fragm ente der Vorsokra tike r, 5? edição.
DEUSEANATUREZA
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tradição religiosa dos filósofos naturais. Não obstante, essa tradição foi mantida, de certa forma, quando eles deificaram a na turez a quase tan to q uanto os seus predecessores. Os atomistas igualmente reconheceram a imutabilidade do verda deiro ser, mas, a exemplo de Empédocles, defenderam um politeísmo filosófico, em contraposição ao monoteísmo filo sófico dos eleáticos; eles postulavam a existência de um nú mero infinito de átomos inalteráveis e indivisíveis, que assu miam u ma infini ta var iedad e de tam anh os e formas, e se m o viam n um espaço vazio infinito . Os fenôm enos foram salvos, todas a s aparentesdesses mud anças udançaaqui s locais ereduzindo-se á separação ou reorganização átomos.a m Temos o ser divino pulverizado em átomos, os quais, no entanto, os tentam inequivocame nte atributos divi nos: são eterno s, im u táveis e auto-suficientes. Os atomistas chegaram à conclusão de que todas as coisas acontecem segundo a lei da Necessida de. Não obstante, esta Necessidade é uma causa eficiente, que repousa nas propriedades inerentes aos átomos, e não uma causa final, ou um plano. Ainda assim, encontramos novamente, nesta Necessi moira dade, um vestígio da antiga religião, que considerava (destino), ananke (necessidade) e dike (justiça) aspectos de uma ordem univers al do mu ndo, a qual nem mesm o os deu ses podem viol ar sem inc orrer em alguma sanção. 5 De ac or do com Heráclito, o Sol permanece confinado nos limites que de lhe dike estão(justiça), reservados, pois, c aso ntrário , as Fúderias,(anan se r vas o persegui rão.co 6A N eces sida ke), então, é como se fosse um superdeus, a ordem moral da natu reza , à qual não som ente os deuses olí mpicos, ou os de u ses da natureza, dos filósofos, mas até mesmo os deuses-áto(5) F. M . Cornford, From Rehgion to Philosopb y, Londres, 1912, pp. 12, 13, 16, 118, 119.
(6) He ráclito , B 94.
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A RELIGIÃO E O DESENVO LVIMENTO DA CIÊNCIA MOD ERNA
mos t êm de se subm eter. Não im porta quão divergent es pos sam ter sido as diferentes concepções dos filósofos pré-socráticos, ainda assim, como salientou O. Gilbert, ‘ ‘toda a espe culação dos jônicos e dos eleáticos, e até mesmo dos pitagóricos, nada mais é do que a busca da divindade: isto é, da substância div ina que determ ina e di rige o desenvolvimento do m undo” .7
b) Platão Platão (429-348 a.C.) foi grandemente influenciado pe los eleáticos; ele considerava o mundo como formado por Idéias absolutamente imutáveis, das quais o mundo visível dos fenôm enos e d as mu danç as não pas sa de um a pálida im a gem. O conhecimento é proporcional ao grau de verdadeira essência do seu obj eto; o ser está para o torn ar-s e (vir-a-ser ), assim como a verdade está para a opinião (doxa ) . As ‘ ‘Idéias ’ ’ são os modelos eternos, dos quais as coisas visíveis são, por assim dizer, as imagens distorcidas e não totalmente reais. Em seu Timeu , Platão nos faz um relato da srcem do mundo visível. O demiourgos , um cr iador “ pes soa l” , m o delou o mundo segundo um plano definido. Mas as suas mãos estavam atadas em dois aspectos: ele era obrigado a seguir, não o seu próprio projeto, mas o modelo das Idéias eternas; e, em segundo lugar, ele tinha de imprimir o selo das Idéias em uma matéria caótica e recalcitrante, que ele próprio não havia criado. Ele era mais um poder regulador, que introduzia a razão em um a matéria irraci onal,8 do que propriamente um Criador, no sentido bíblico. Não podia fa zer mais que imitações de Idéias, e, assim mesmo, de uma (7) O. Gilbert, em: A rc h .f. Gesch. P hi ., xxii, p. 279(8) Cf. Platão, Timeu, 30 E.
DEUS E A NATUREZA
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maneira imperfeita, já que a matéria, insurgindo-se contra ele, oferecia-lhe resistência. Torna-se difícil colocar o demiurgo em seu devido lu gar, na hier arqu ia platô nica . Talv ez ele fosse a personificação mítica da suprema Idéia do Bem. Nesse caso, a história da srcem do mun do não seria mai s do que um a vers ão c ron oló gica de uma relação puramente ontológica, e o demiurgo assumiria o lugar das Idéias. Torna-se, portanto, compreen sível que se diga que ele tenh a feito a Terr a, os céus e os d eu ses, e “ inclusive a si próprio” .9 Não obst ante, exi stem grandes obstáculos no que se refere à interpretação, como o próprio Platão reconheceu ao afirmar: ‘ ‘É muito difícil en con trarmo s o auto r e pai de ste u niv erso ” .10 Platão considerava o próprio universo visível como sendo também um ser divino, a imagem do Deus supremo, que é o reino da s Idéias. D en tro dest e un iverso divino, “ a coorte celestial dos deuses” — as estrelas, o Sol, a luz e a Te rra — são “ os deuse s visíveis e criado s” . Em outros diá logos, estes corpos recebem deuses olímpicos (Zeus era o equivalente ao céuosdenomes estrelasdefixas, Héstia era a Ter ra ),11 os quais, embora não essenci almente im ortais, ja mais estâriam sujeitos à desintegração. Como seria impossí vel a criação de coi sas morta is pelo Deus ete rn o, estes ‘ ‘de u ses criados” assumem a tarefa de formar os corpos dos ho mens e dos animais, embora suas almas sejam dadas pelo próprio Deus supremo. Platão rejeitou a concepção sofista da cega necessidade da natureza (ananke physeos). As coisas visíveis, que seus oponentes chamavam physis, vêm somente em segundo lu gar; elas próprias são produtos do Intelecto e do Desígnio. (9) Platão, República, 136 C. (10) Platão, Timeu, 28 C. (11) Platão, Fedro, 246 D.
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A RELIGIÃO E O DESE NVO LVIM ENTO DA CIÊNCIA MO DER NA
physis tanto Por conseguinte, Platão empregava o termo para a alma do mundo (o princípio animado e movente do universo), como para as Idéias e até mesmo para as estrelas. Devemos lembrar que todas estas entidades eram conside rada s como “ divina s” . O que eqüi vale a dize r que, a des peito de uma ênfase diferente, ele dava continuidade à antiga tradição grega ao fazer de physis , o intelecto do mundo, um Deus eterno.
c) Aristóte les Aristóteles (384-322 a.C.) direcionou a ênfase no sen tido do mundo das coisas visíveis. Para ele, o mundo das Idéias (ou Formas, como ele as chamava) coincide com o mund o visível. O universo esfé rico possui um movim ento de rotação; seu centro é ocupado pela Terra imóvel. Há uma diferença essencial entre o mundo supralunar, que com preende o aither e só admite movimentos circulares, e o mundo sublunar dos quatro elementos (terra, água, ar e fogo), onde o único movimento natural é o retilíneo, quer seja para baixo, no sentido do centro do mundo, quer seja para cim a, no sentido da esfera da Lua. O deus de Aristóteles é o Primeiro Motor; ele, no en ta nt o, não é um a causa ef iciente, mas um a causa f inal — está absorvido em autocontemplação e não se preocupa com o mundo. O Primeiro Motor não é o criador; o mundo, as Form as (Idéi as), a m atéria , todos sã o etern os. Po r outro lad o, Aristóteles reconhece plenamente que ocorrem mudanças neste mundo sublunar, o que o fez povoá-lo de Formas. Os indivíduos podem nascer e morrer, mas as mudanças são sempre as mesmas; as Formas, que sempre existiram, exis tirão sempre — os indivíduos podem mudar, mas a espécie
perm anece a mesm a. Como o Prim eiro M otor representava
DEUS E A NATUREZA
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a mais elevada das Form as (da me sm a m aneira que a Idéia do Bem, de Platão), segue-se que a imutabilidade do Primeiro M oto r é com partilhada até pelas For mas inferi ores. A essên cia ou Forma de uma coisa é o fim seuurez desen volvimento individual; é a suanatural physis, sua do “ nat a” . A physis , a física, por conseguinte, é a disciplina que estuda a Forma de cada coisa, e os movimentos ou mudanças no sen tido da plen a realização das Form as. Physis é também a totalidade de todas as Formas, em sua ordem racional; é eterna, imutável, incriada, auto-regeneradora e racional. Aristóteles falava sobre a natureza de uma maneira antropomórfica. Para el e, a nature za “ faz coi sas” (demiourgein ), ou , como afirmava, “ a nature za faz tud o com um det ermin ado propósi to” .12 Quanto mai s pró ximas estiverem as Formas da Forma suprema, tanto mais próximas estarão da divindade; por conseguinte, as esferas celestes, as estrelas e os planetas são seres divinos, inteligen tes e eternos, imperecíveis mesmo como indivíduos. Na opi nião de Aristótele s, osdestes deuses olímpic os resultaram uma concepção errônea antigos poderes divinos da“ de natu reza” .13
d) Os estóicos Os estóicos, a exemplo de Platão e Aristóteles, formu laram uma concepção dualista do mundo. A matéria bruta, ousia , é informada pelo princípio racional e espiritual do pneúm a , aither ou fogo (este último era considerado como um a forma extrem am ente sutil d a matéria). As almas indivi duais dos animais, homens e corpos celestiais são partes (12) Aristóteles,
D epart. anim al., i. 1,641b.
(13) Aristóteles,
M etafísica , xii. 8, 1074 b.
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A RELIGIÃO E O DESENVOLVIME NTO DA CIÊNC IA MO DERN A
desta alma universal do mundo, de tal forma que todas as coisas se relaci onam harm onicam ente um as co m as outra s, e todas estão estruturad as pelo Desti no. A n ature za, como um todo, é a alma e o intelecto do mundo; é identificada com o Ze us da r eligião popu lar: ‘ ‘tudo está repleto d e Jú pit er” , diz Virgílio.14
e) Galeno Nos escritos do médico grego Galeno (c. 129-201), que exerceu uma enorme influência nas épocas subseqüentes, encontramos esta mesma concepção teleológica, a mesma identificação de Deus e da natureza, a mesma ênfase sobre a arte divina, techné. Por causa desta devota concepção teleo lógica, Galeno, como Sêneca, foi considerado pelos cristãos da Idade Média e da Renascença como tendo sido basica m en te um cristão. É ve rdade que ele propiciou o raro exemplo de um escritor p agão produziu umrecon a ob ra em sintonia com a histó ria mosaica d aque criação, j á que hecia um plano di vino. Não obstante, rejeitou o relato de Moisés, uma vez que o De us do Livro do Gênesis é inte iram en te livre, e não é limitado em suas atividades nem mesmo pela natureza da matéria.15
f ) A Idade Média A filosofia e a teologia gregas influenciaram grande mente o pensamen to crist ão posterior. A teologi a física, ou a física teológica do s estóicos, se ha rm oniz ava com as conce p (14) Virgilio, Bucol., iii. 60. (Cf. Mendes, João Pedro, Bucó lica s , Brasíl ia, Editora Univ ersidade de Brasí lia, 1986.)
Construção e Arte das
(15) Galeno, De usu p arti am , xi, 14.
DEUS E A NATUREZA
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ções bíblicas, ao considerar a natureza como encarregada da direção do m un do , n o qual o Deus da Bíbl ia interfere apena s esporadicam ente. O platonism o medieval d o século XII (Bernard Silvestris, Alanus de Lille) colocava a natureza como uma e spécie de ser intermed iário entre De us e o mundo: “ a natureza, pela graça de Deus representante e lugar-tenente do reino d o m undo’ \ 16 A introdu ção da fi losofia aristotél ica resultou num outro compromisso entre a teologia bíblica e a filosofia pagã. No entanto, como adiante veremos, houve constantes protestos, por parte d os teólogos cristãos, contra este naturalismo quê deprecia o poder soberano de Deus.
B) A VISÃO BÍBLICA Há um con traste radi cal entre a deificação d a natu reza, na religião pagã, e, de uma forma racionalizada, na filosofia grega, e o desendeusamento da natureza da Bíblia. Em con traposição à adoração da natureza pelos povos vizinhos, a re ligião de Israel foi um fenômeno sem paralelo. O Deus de Israel, por sua pala vra, cria todas as coisas d o nada.17 Ele é realmente todo-poderoso: não é limitado por nenhuma ma téria que tenha de ser ordenada, e não tem que lidar com Formas eternas; sua vontade soberana, sozinha, criou o mundo e o sustenta. No primeiro capítulo do Gênesis fica evidenc iado que absolutam ente nada, senão D eus, te m qua l quer direito à condição divina; até mesmo o Sol e a Lua, supremos deuses dos povos vizinhos, são colocados em seus lugares, junto âs ervas e aos animais, e postos a serviço da (16) Cf. E. R. C urth is, Europaiscbe Literatur undla te in is ches M iítela líer , Ber na, 19542, Cap. VI.
(17) Salmo s 39: 9- (Brasília, Sociedade Biblica do Brasil, 1969.)
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hu manid ade .18 Os deuse s pessoais dos greg os tinham um a srcem, a despeito de sua imortalidade. O Deus da Bíblia é o único deus imutável e eterno, diferente de todas as coisas criada s, que estão sujeitas a muda nça s e à destru ição fin al.19 Nada mais possui poder divino, nem mesmo por delegação: ‘ ‘Eu sou o S enhor, e não há outr o” ,20 O Novo Testamento torna a proclamar a mensagem de que não existe nenhum ciclo eterno na natureza ou na his tória. A história do mundo se desenvolve no sentido do seu destino final, e o céu e a terra estão fadados a retornar ao nada onde asurgiram. Não apenas a criação do mundo, como de também sua preservação, dependem tão-somente de Deus; o que eqüivale a dizer, Jeová não é um ser divino su premo que, após o ato criativo, tenha deixado tudo à discri ção das leis inatas da natureza; ele não se recolhe, como o dem iurgo platônico, “ em um a forma de se r que s ó a Ele pertence’ *. Ele permanece, para todo o sempre, como a von tade e o pod er por trá s de todos os aco nte cim en tos 21 — Cris to “ sustenta tod as as coisas pela palavra do se u p od er” .22 É verdade que existe ordem, tanto no mundo vivo como no mun do sem vida;23 mas é uma ordem que não exi ste de pr ó prio direito, senão como testemunho do desvelo paternal de Deus pelo homem e pelos animais. A Bíblia não se refere à “ N ature za” ,233 apenas fala das “ criaturas” que são, em sua srcem e existência, totalmente dependentes da vontade de Deus. Por conseguinte, o mundo natural é admirado (18) Gênesis 1: 17; Salmos 104:19. (19) H eb reu s 1: 10-12; Salmos 10 2: 26-28. (20) Isaías 45: 5. (21) Salmos 135: 6-7; 9-10. (22) Hebreus 1:3. (23) Salmos 104: 19, 27. (23 a) Ne sta e em outras pas sage ns, “ N atu reza ” (co m N m aiúsc ulo) é usa da
para in dicar a deificação ou personificação da n atu re za.
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como uma obra de Deus e como uma evidência do seu Cria dor, mas nunca adorado. A natureza pode infundir no ho mem um sentimento de pavor, mas este é suplantado pelo conhecimento de que o homem é um colaborador de Deus, que com partilha com Ele o mando das demais c ria tu ra s,24 o “ dom ínio sobre os pei xes do m ar, sobre as a ves dos céus, sobre os animai s domést icos , so bre toda a te rra ... ” .25 Po r tanto, numa contradição total com a religião paga, a natu reza não é uma divindade a ser temida ou adorada, mas uma obra de Deus, que deve ser admirada, estudada e controlada. Quando comparamos as religiões pagã e bíblica, encontra mos um contraste fundamental entre as respectivas idéias acerca de Deus e do homem. Na Bíblia, Deus e a natureza não mais se opõem ao homem, mas Deus e o homem con frontam juntos a natureza. A negação de que Deus coincide com a natureza implica a negação de que a natureza seja semelhante a Deu s.
C) PA I, AU TO R E CRIADOR DO M UN DO Para a maioria dos filósofos gregos, a natureza era um organism o vivo e divino , que produ ziu, po r geração, todas as coisas, todos os deuses, homens e animais. Hesíodo julgava que a terra tivesse ger ado as monta nha s, enq uan to, segundo o livro do Gênesis, foi em obediência ao comando de Deus que a ter ra seca separou-se d o ma r. À primeira vista, o demiurgo de Platão parece asseme lhar-se ao Criador bíblico. O demiurgo modela o barro, como um oleiro, dando-lhe as formas estabelecidas, da mes
(24) Salmos 8: 4-17.
(25) Gên esis 1: 26.
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ma maneira que São Paulo compara a relação entre Deus e o hom em com a que existe en tre o oleiro e o b ar ro ,26 e o salmista fa la do trabalho das mãos de De us.27 Nã o obstante, existem grandes diferenças. Em primeiro lugar, na Bíblia, a imagem do oleiro e do barro é apenas uma metáfora que ex pressa a dependência do homem, ao passo que, com Platão, a comparação vai mais além. O demiurgo, à feição do artífice humano que fabrica utensílios domésticos, tem de reunir duas coisas existentes, o material e o plano; um resiste à perfeição do trabalho, o outro restringe a liberdade de sua concepção. Em segundo lugar, demiurgo de Platão deixa a manutenção do universo para a oalma do mundo, delegandolhe até mesm o a criação d os seres viv os, inclusive o h om em , uma vez que o divino oleiro considera a criação de um arca bouço material como algo que está abaixo de sua dignidade e além do seu poder. Finalmente, no Timeu , o homem é feito por deuses secundários à imagem do universo — uma mera imagem da imagem de Deus; na Bíblia, o homem é feito â imagem do própri o D eus. A concepção de uma alma do mundo levou, inevitavel mente, à idéia de que o kósmos é um ser vivo, e que a gera ção é o ato fundamental da natureza. Embora'o fato de ter o demiurgo seguido um plano racional pudesse indicar ser ele um autor, o caráter orgânico do mundo deixou patente que ele era antes (talvez num sentido alegórico) o pai ou o procriadoreudosouuniverso. falardeacerca ‘ ‘dasfunobras daspai quais o au torPlatão e pai’ o5.2SfezFoi, fato, esta ção de que torn ou impos sível p ara e le gerar o hom em de for ma im e diata — o sem elha nte gera o sem elhan te. “ Se eu desse vida aos m ortais ” , diz ele, “ eles ser iam igua is aos deuses” . A (26) Romanos 9-20-21. (27) Salmos 8:4.
(28) Platão, Timeu, 41 A; 37 C; 28 C.
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diferença entre um pai e um autor é que um pai transmite sua própria Forma por auto-reprodução (o que não implica que perpetra um ato racional), enquanto um autor transmite uma Fo rm a que foi conceb ida por sua R azão, Essas duas im a gens aparecem reunidas no Timeu de Platão.
Em contraposição a Platão, Aristóteles não fez uso da mitologia. Segundo sua versão da. criação das coisas, é a pró pria natureza que possui as propriedades tanto de autor como de pai. Da mesma maneira que Platão, Aristóteles reconhe ceu dois aspectos principais na natureza: que ela é inteligí vel, e que é um organismo vivo. O primeiro aspecto implica que a natureza produz coisas como um artífice, como um carpinteiro ou um cozinheiro, embora Aristóteles não ti vesse chegado ao ponto de dizer que a natureza age conscien temente, ou mesmo que ela tenha qualquer liberdade. Os produtos da natureza são inteligíveis por serem o resultado de auto-reprodução de Formas racionais. Isto é, a idéia de geração (procriação) do semelhante pelo semelhante foi igualmente enfatizada. A Forma ( lógos ) do embrião é to mada de em préstim o ao pai, que já a pos suía. 29 Ou seja, a auto-reprodução é um processo lógico, que produz algo inte ligível, e é um processo gerador de algo semelhante, que é também vivo e divino. Por conseguinte, a fabricação e a ge ração representavam são grega da na ture zao. aspecto racional e organístico da vi Essa afirmação também é verdadeira quando aplicada às concepções dos estóicos. Segundo Zenão, a alma (oü fogo) penetra na matéria como um esperma fertilizante (lôgoi spermatikoi ), infundindo-lhe, dessa maneira, vida, ordem e
(29) Aristóteles,
D eg en. a n i m i, 734 b.
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lei. A expressão ‘ ‘razão se mina l” , usada pel os estói cos para indicar a natureza ou a essência das coisas, exprime, de forma adequada e sucinta, os dois aspectos da concepção grega da natureza, isto é, o aspecto lógico, nocional da cria ção de coisas segundo um modelo, e o aspecto biológico de sua geração. De acordo com Cícero, é necessário considerar a na ture za com o um ser racional, já que e la dá srcem a seres racionais .30 Ad em ais, a natu reza deve se r comparada mais a um animal ou a uma planta do que a um corpo inanimado. A expressão latina natura-artifex também denota a dupla função de genitor (procriador) responsável pela produção a partir de umae autor: semente, natura e artifexé pelo caráter racional deste processo. No entanto, esta produção racional não foi uma fabricação realizada em um estado de liberdade; ela perm anece u den tro d os li mites da eterna repr odução bio lógica, visto que o mund o era tid o como um organismo vivo. Esta grande diferença entre a concepção bíblica de um criador transcendental, criando o mundo do nada por sua livre vontade, e a concepção grega de crescimento e geração por meio da natureza divina im anente, acarretou significa tivas conseqüências. O ulterior desenvolvimento da ciência da na ture za de pend eria, em grande parte, de qual dessas duas concepções lhe serviria como b ase espiritua l. O m étodo cie n tífico repousa nos preconceitos que o cientista tem sobre a natureza, e estes preconceitos dependem, entre outras coi sas, de sua crença em Deus. A Bíblia, no entanto, não ofe rece nenhum sistema científico ou filosófico. Essa é a razão pela qual os filósofos cristãos da Idade Média e do final da Idade Antiga, ao examinarem uma ciência ou filosofia que tivess e u ma base religiosa pagã, s e defr ontavam com grandes obstá culo s e achava m difícil separar o j oio do trig o.
(30) Cícero, De natura deorum , ii. 34.
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Acresce ainda que a iidéia de um criador divino implica que as coisas criadas não só dependem dele, de forma abso luta, como também diferem totalmente dele. Não obstante, a opini ão dom inan te en tre os filósofos cristãos da Idade M é dia não se harmonizava totalmente com essa concepção. A natureza era considerada como um poder semi-independente, e quando as coisas aconteciam de acordo com a natu reza isso significava que seguiam um modelo que parecia ra cional à mente humana, um modelo descoberto por Aristó teles. Em consonância com este esquema, a natureza alcan çaria a plena realização de suas Formas imanentes por inter médio de causas eficientes e finais. Nestas últimas, de uma mane ira sutil , os poderes có smic os, o “ am or” e a “ gera ção” da velha r eligião da natu reza c ontinuaram a ter alg uma influência. Na Idade Média, portanto, a visão bíblica estava apenas sobreposta à concepção aristotélica, mas não a elimi nava. A ordem regular da natureza era considerada como algo instituído por Deus, embora suscetível de ser anulada por Ele, de uma forma sobrenatural (o termo é significativo), ao realizar um milagre. Tomás de Aquino achava que uma das funções úteis da filosofia natural era permitir-nos distin guir aquilo que pertence somente a Deus (por exemplo, os milagres ou a srcem das coisas) do que pertence â natureza. A Bíblia, no entanto, atribui a Deus, de forma imediata, todos os acontecimentos, por mais insignificantes que sejam. As coisas naturais nada mais são do que Seus instrumentos, (i a ordem da na tur ez a está f unda me ntada não em um a lógica imanente, mas no desvelo de Deus por Suas criaturas. Deus não interfere em uma ordem da natureza que é semi-indeprndente; Ele age ou de acordo com um modelo regular ou de uma maneira mais excepcional, ou mesmo,de uma ma neira insólita.
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D) A CONCEPÇÃO MECANI
CI STA DO MUN DO
Ao contrário, talvez, do que seria de se esperar, uma visão mais acentuadamente bíblica do mundo favoreceu, desde o século X V I, o desenvolvim ento da ciênci a m od ern a e da sua correspondente concepção do mundo. O modelo do mundo como um organismo foi substituído pelo do mundo como um meca nismo; todo o desenvolvimento de Copérnico a New ton pode ser apropriadam ente denominado de m ecan i zação d a concepção do mun do . Tempromove sido dito,ram como dfreqüência, que os atomistas também esende usamento d a naturegregos za, e qu e eles, à feição dos “ filósofos meca nicis tas’ 5 do século XV II, atribuíam toda mudança à união e desunião, e ao movi mento de pequenas partículas. Além disso, como eles não compartilhavam da opinião dominante entre os gregos de que “ toda s as c oisas es tão repl etas de deuses” , estav am, pelo menos a este respeito, mais próximos do cristianismo e da ciência moderna do que Platão, Aristóteles e os estóicos. Do ponto de vista dos ad eptos d a an tiga religião da n atu rez a, ta nto os cristão s como os epicurista s eram ‘ ‘ate us’ *. Po r seu turno, no século XVII, os adeptos da antiga escola aristotélica achavam que a fi losofia m ecanicista levaria nece ssaria mente ao ateísmo; enquanto isso, alguns dos protagonistas crist ãos d a “ nova f ilosofia” (Beeckmar; , Basso , Gassendi, Boyle) consideravam favoravelmente epicuristas. Boylehon julgava que a doutrina “ da matéria os e do m ovim ento” rava mai s a Deus d o que a doutrina da “ na tureza ” , e q ue Aristóteles causou mais prejuízos à religião do que Epicuro.31 Ao mesmo tempo , reconhe cia que Epicuro e Lucr é-
(31)
Boyle, A Free In quiry into th e Vulgarly Received N otion o f N a ture ,
ção I.
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cio estabeleceram, no lugar do Deus único rejeitado, uma infinidade de deuses, os átom os, aos qu ais atribu íam pro prie dades divinas, tais como eternidade e soberania. Ou seja, ele acreditava que as diferenças entre a filosofia de Epicuro e a sua eram maiores do que as afinidades. Nesse aspecto, Boyle tinha de fato razão, e não somente do ponto de vista reli gioso, como tamb ém do científico. O an tigo atom ismo c om partilhava, juntam ente com a filosofia mecanicista, da cren ça de que as transform açõe s ocorrem através da ma téria e do movimento, em bora o atomismo não reconheç a nenhu m pla no na natureza. entanto, um mecanismo é o produto de um plano. DessaNoforma, a concepção do mundo como uma máquina não somente excluía o naturalismo organicista de Aristóteles, como também o materialismo de Epicuro. A imagem d e um a máquin a impli ca a d e um au tor ex terno que a produz iu, ou seja , a cr ença teísta num Deus transcend ente. O homem que compara o mundo ao relógio de Estrasburgo, salientou Boyle, pode aceitar Deus como seu criador e sustentáculo?2 Na filosofia mecanicista, o elemento planejador não ad vêm da “ na tur ez a” das cois as, mas, a ntes, das proprie dades com as quais Deus as agraciou. Estas propriedades podem talvez me smo cond uzir a 4 ‘Fo rm as” diferent es das até então manifestadas. A filosofia mecanicista reconheceu também causas finais, mas estas foram consideradas como perten cendo umrelógio outro nfoi ívelfeito que não n ão explicava o da físicaopuseu ra — o fim pa ra o qualaum comporta mento. Na filosofia mecanicista, a teleologia se situa num píano mais elevado do que a teoria física. Ao passo que um organismo vivo sugere a idéia de uma causa .final imanente (a manu tençã o da vida do indivíduo), um a m áquina en con tra
(32) Boyle, A Free í nq uiry , Seção I.
34
A RELIGIÃO E O DESE NVOL VIME NTO DA CIÊNCIA MOD ERN A
sua razão de ser no plano do seu autor, que é exterior a ela. Um organismo m undial é gerado ; um mecanismo mundial é
fabricado . Esta é a razão pela qual este último se adapta me lhor a um a visão bíblica do mundo.33 Dessa form a, a filosofia mecanicista do século XVII não representou uma nova tran sigência da Cristandade, desta feita com o materialismo an tigo e não com o antigo organicismo ou com o idealismo, ma s, a ntes, um passo no sentido da cristianização e da em an cipação da ciência natural. Nem o desendeusamento do mundo pelos materialistas, nem a racionalização do mundo pelos idealistas foi de molde a descobrir o modelo certo para a ciência. Evidentemente, para que isso ocorresse, foi neces sária a mecanização da concepção do mundo (um desendeu sam ento ra dical, no sentido bíbl ico). É claro que o modelo mecanicista não oferece um qua dro adequado. O autor de uma máquina sofre severas restri ções em função do ca ráte r de seus materia is, en qua nto o cria dor cria, ele próprio, os seus materiais; uma máquina, uma vez fabricada, adquire uma certa independência, mas o Deus dos autores bíblicos jamais abandona a sua obra, pois isso significaria sua redução ao nada. A imagem de um deusmecânico está, portanto, subordinada à de um deus-criador, mas não em discrepância com esta, como o estaria no cas o da imagem de um deus que procriasse o universo. Por conse guinte,naa Bíblia, idéia deestá ummais mundo-máquina, embora encondo trada de acordo com o seunão espírito que a idéia de um mundo-organismo. A Bíblia oferece uma certa visão do mundo — a de que o mundo depende totalmente do seu Criador —, mas não uma concepção definida do mundo. A concepção de um mundo-máquina se ajusta bem à idéia de Deus enquanto
(33) M. B. Foster em:
M ind, 44 (1935), pp. 439-466.
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autor. Todavia, como a atividade de um Criador onipotente não tem equivalente humano, o produto desta atividade, opor mundo inteiro, não pode ser na adequadamente representado nenhum modelo. Nada natureza pode nos proporcio nar um conhecimento real de Deus, uma vez que, como acentuou Franci s Bac on, “ todo conhecimento progride por semelhança; Deus só é semelhante a Ele mesmo e não tem nada em comum co m qual quer criatu ra” .34 O que a natu reza realmen te é não p ode ser expr esso adequadam ente c om parando-a a uma máquina, e quem Deus realm ente é não pode ser apropriadamente representado pelo term o “ mecâ nic o” . Isso não pode ser feito, nem mesmo transform ando a ciência natural em matemática, ou chamando Deus, “'por falta de um a pala vra mai s abran ge nte” ,35 de um grande m a temático.
E) DA CRÍTICAJV1ECANICISTA À CONCEPÇÃO ORGA NICI STA DO MUN DO Alguns dos filósofos e cientistas mecanicista do século XVII, tais como Basso, Boyle e Newton, assinalaram, com veemência, que nem as Formas de Aristóteles nem os áto modernos devemteser Elesdareconheceram omos elemdos ento pagão presen emdeificados. grande parte filosofia na tur al em voga no seu tempo, e consideraram as Formas substan ciais como sendo noções supérfluas, eivadas de conotações metafísicas danosas.
(34) F. Bacon, Valerius Terminus , c. I. (35) James Jeans, The Mystertous Universe,
Cambridge, 1930, pp. 134, 136.
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a ) Basso O mé em seussubstan es cr ito s,36 datados de dico 1621,francês rejeitouSebastian as FormasBasso, e Inteligências ciais. Em sua opinião, elas eram numina , poderes quase di vinos que, de acordo com a antiga religião grega, residem em árvores e fontes. Segundo a filosofia escolástica prev alec ente , acredit ava-se que el as agi am com o lugare s-tene ntes de D eus. Por outro lado, Basso era de opin ião que o “ intele cto ” de Deus age sobre todas as coisas, movimenta-as e as conduz para o seu objetivo final, de tal forma que as ‘ ‘naturezas” ou Formas especiais tornam-se supérfluas. Em sua opinião, exis te somente um a ‘ ‘natu re za ” geral , um a caus a geral, qu e é o próprio Deus. Tudo o que anteriormente era atribuído à natu reza Ba sso im pu tou a Deu s, de forma imedi ata: “ Ele, que está presente em toda a parte, age imediatamente sobre todas as co isas” , ensin a a Bíblia. Bas so conde nou — já que criava mais confusão — a opinião esposada pelos jesuítas de que existe uma cooperação da natureza intrínseca das coisas para com Deus. Em sua opinião nada deve dim inuir o poder e a soberania absolutos de Deus. A preservação do mundo é um processo contínuo, o que torna inteiramente supérfluo o conceito da natureza como uma espécie de vice-gerente do mundo. No entanto, como Deus age em consonância com a ordem e a regra, pod e parece r que as várias espécies almejam o seu próprio fim em virtude de algum poder inato, que po deria ser cha mado “ na turez a” . Por cons eguint e, Ba sso manteve a teleologia em nível religioso ou metafísico, mas, sob o pon to de vista da f ísica, não he sitou em afirmar q ue os átomos se movem aleatoriamente e não de acordo com um objetivo final. Isto é, Basso, ao contrário dos antigos atomis-
(36) Seb. Basso, Pbilosophiae naturalis adversus Aris tote le m Itbri X II, Ams terdã , 1649 (segunda ediçã o).
DEUS E A NA TU RE ZA
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tas, descartou as causas finais do ponto de vista metodoló gico, mas não do ontológico .
b) Boyle
Esse desendeusamen to da natu reza e da ciênci a natu ral, sobre fundamento bíblico, foi proposto ainda mais clara mente por Robert Boyle, em 1666 e 1682. Em seu exame crítico do concei to de nature za,37 susten ta que ela , ge ral mente apresentada como um ser quase divino, não passa de uma “ coisa nociona l” . A “ noção vulg arment e aceit a” é um insulto a Deus e um obstáculo a uma investigação fide digna de Suas obras. Deus, como um hábil maquinista, colo cou as leis do movimento na matéria e as faz funcionar por Sua co ntín ua cooperação, para o que El e não necessita de um “ lugar -tenen te ou vice- ger ent e” . A “ natureza” não é um “ age nte sepa rado” , mas um “ sistema de regras” . Boyle preferiu o term o “ regra” , em vez de “ lei da natureza” , porque uma lei é um a regra de ação ditada por uma vontade superior; é claro que somente pessoas dotadas de razão po deriam receb er “ leis ” . A “ alma do m un do” platônica é, na opin ião de Boyle, da mesm a espécie que a “ na tu re za ” aristotélica. Ele detestava profundamente a expressão popu lar “ Deus e a natu reza não f azem nad a em vão ” , em voga em sua época, porque estes dois eram mencionados juntos, “ não como cr iador e cria tura , mas como dois di rigentes consorciados, à feição dos cônsules rom an os ” . Em oposi ção â necessidade da Natureza, Boyle sustentava que Deus é
(1682). (37) Boyle, A Free In quiry into the Vulgarly Rec eived N otio n o f N atu re
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“ um agent e abs olut amente livre” , que não cr iou o mundo da necessidade, e que o constituiu quando não havia ne nh um a outra substân cia a lém Del e própri o, e nenh um a cria tura a quem Ele devesse qualquer obrigação ou que pudesse restringi-Lo. Evidentemente Boyle não considerava Platão um ‘ ‘Moisés ático’ ’! A noção de N ature za sob reviv eu à “ filosofia vu lga r” , ou seja, ao escolasticismo do tempo de Boyle. No século XIX, Darwin se referiu à seleção natural da mesma maneira antrop om órfica, afirmand o, po r exemplo, que ‘ ‘a seleção na tural com infalível habilidade, as melhores varieda na des ” escolhe, , de tal forma q ue o geólogo Charles Lyell sentiu-se obrigação de indagar-lhe se ele não estaria deifícando demais a seleção natu ral. M esmo atualm ente, um a refe rên cia à N a tureza eqüivale à invocação a uma divindade para muitos membros da igreja científica, enquanto um apelo ao que é “ natu ra l” ainda parece ter a força de um comando divi no para alguns membros influentes da Igreja católica. A deificação da na tu re za ainda está viva, e o fato de esta d ivindade não ter n en hu m culto esp ecial não prova nada em con trário. Não havia nenhum culto especial da Natureza na Antiguidade, nem templos erigidos em sua homenagem; no entanto, ela era adorada sob o s nom es de outros deuses.
Devemos admitir que alguma coisa da antiga noção de natu reza perm ane ceu , tan to na filosofia mecanicista d e Boyle como na de Newton. Boyle declarou que quando matéria e movimento não são suficientes para explicar os fenômenos isto é um a indic açã o da int erve nção mira culosa de Deu s.37a Um vestígio semideístico semelhante pode ser encontrado
(37a) Vide p. 32.
DEUS E A NATUREZA
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em Newton, que acreditava que Deus, de vez em quando, regula a máquina do mundo. Não obstante, Newton se pro nunciou claramente sobre a relação entre Deus e Suas cria turas, ao rejeitar a idéia de que Deus, onipresente em todo o mundo , fosse, con seqü entem ente, a alma do mund o: “ Ele não é a alma do mundo, mas o Senhor que reina sobre tudo ... Pois De us é um a palavra que ex press a um a relação, que se refere aos servos ... um Ser, ainda que perfeito, mas sem do mínio, não pode ser chamado Senhor Deus, pois que dize mos meu Deus, seu Deus, o Deus de Israel ... mas não meu Eterno, Eterno, ... ou meu Infinito, ou m eu seu Perfeit o; essoesEterno são tít de ulosIsrael que não guardam nen hu m a relação com servos ... pois que um Deus sem domínio, pro vidência e desígnio, não é outra coisa senão Necessidade e Natureza . . . 5’ ?8 É verdade que Newton também acreditava que o curso no rm al da natu reza era o efeito imediato da ativi dade preservadora de Deus. Na prática, entretanto, o mecanicismo de muitos dos seguidores de Boyle e Newton mos trava uma tendência a um semideísmo, que talvez diferisse em grau, mas não em essência, da crença dos adeptos da “ filosofia vulgar” . F) A CRÍTICA RADICAL
DO NATUR ALISM O
As cau sas finai s ou ‘ ‘natu re za s’ *podem te r sido desc ar tadas como causas semi-independentes de acontecimentos naturais, mas as causas eficientes permaneceram, e estas também implicavam uma espécie de independência em rela ção a Deus. A crítica radical desses derradeiros vestígios do
Isaacgenerale. Ne wto n, Philosophiae Naíuralis Principia M ath em atica , 2? ed., Londres,(38) 1713. Scholium
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antigo naturalismo veio de Malebranche e Berkeley, que libertaram a noção física de força do seu caráter metafísico oculto.
a) Malebranche O falecido Michael B. Foster salientou o fato de que, assim como a cosmogonia de Hesíodo refletia-se na filosofia de Aristóteles, assim a doutrina da criação do Livro do Gê nesis e nc on tro u sua con trapa rtida n a crítica f ilosófica de Be r keley e Hume à idéia de forças imanentes das coisas, às quais , como “ cau sas” , produziriam ‘ ‘efeitos’ ’. No entan to, mesmo antes de Berkeley, o padre oratoriano Nicolas De Malebranche (1638-1715) já tinha formulado uma crítica semelhante, salientando que a filosofia vulgar (escolasticismo), ao considerar as Formas substanciais como causas verdadeiras, tinha misturado cristã como com filosofia pagã. Não obstante, se algo éreligião considerado atuando em função d e sua própr ia natu reza (embora subordinado à Causa suprema), assume o caráter de uma divindade (embora su bordinada ao Deus supremo). Destarte, este preito à filosofia pagã levou a uma aceitação inconsciente de idéias pagãs: “ o cora ção p ode ser cristão, m as, no f undo, a mente é pagã” . Como só existe um Deus, só pode existir uma Causa — “ a natu reza de cada coisa nadá é senão a vontade de D eu s” .39 Porém, a crítica de Malebranche estendeu-se também às causas eficientes. Por exemplo, quando duas esferas coli dem, um a não é a “ cau sa” do movime nto da ou tra — e a colisão é apenas a oportunidade em que o autor da natureza
(39) N. Malebranche,
De la recherche de Ia vérité , VI, 2, c. 3-
DEUS E A NATUREZA
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age dessa ou daquela forma. Malebranche acentuou que “ Deus não pode fazer de suas criaturas causas verdadeiras, não pode fazê-las de use s” , e afirmou que Fo rma s e Poderes são ‘ ‘os pequenos deuses dos pagãos” introduzidos pelo Ma ligno para ocu par os coraç ões que o Criador moldou para que pertencessem a Ele próprio. É uma manifestação da filosofia da Serpente; desde a Queda, a mente humana tem sido intei ramente pagã. Os adeptos desta doutrina adoram as ficções de suas próprias mentes, da mesma maneira que os pagãos adoram as obras de suas próprias mãos. Por outro lado, a filosofia me canicista, que se ergue como u m espantalho diante das mentes fracas, reconhece apenas a Causa única, e de monstra que todas as ca,usas secundárias (ou os deuses da fi losofia) nada mais sã o do que matéria im po ten te.40 Quand o um dos participantes do Diálogo sobre a Metafísica de Ma le bra nch e41re pre end e o ou tro p orque ele se refere demais à s verdades da fé, a resposta é que, sem essas verdades, existi riam milhares de dificuldades para as quais ele não encon traria a solução, incluindo, por exemplo, a questão de saber se as coisas realmente existem fora da mente. Sobre esse ponto, a autoridade da fé ensina que Deus criou o mundo e que isso transforma todos os fenômenos em realidade. Malebra nch e re conh eceu que a filosofia mecanicista p o deria facilmente incidir no erro de acreditar que , já que Deus havia criado o mundo, então o mundo existiria por seu pró prio direito. No entanto, em sua opinião, isso eqüivaleria à independência, e ele preferia acreditar que o mundo cessará de existir tão logo Deus pare de desejar que ele exista; a man ute nç ão das criat ura s é um a ‘ ‘inc essan te cria çã o’ ’. Aqu i Malebranche faz claramente a diferença entre a noção de (40) N. Malebranche,
De la recherche de la vérité. Naturalmente Malebranche
apresenta(41) aquiMalebranch a filosofia ‘e,Entretienssurlatnétapbysique, ‘me can icista” em sua pró pria versão ix.purificada. 5.
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criador e a de autor. Em sua opinião, é errado pensar em De us e sua s obras faz endo analogi a com atividades hu man as. O a rqu iteto, afirmava ele, tem de lidar com m ateriais já exis ten tes .42 e aOcasa que strói coio, ntinfoiuacriado rá a existir apósa,a e sua m orte univ ersele o, con ao co ntrár do nad de pende tão completamente de Deus que seria reduzido ao nad a, se Deu s deixa sse de ma ntê -lo po r Sua vontad e.43
b) Berkeley A crítica do bispo anglicano George Berkeley foi talvez ainda mais contundente. Ele teve de extirpar da ciência as tendên cias deís tas que su rgiram nos círculos cient íficos após Newton, assim como M alebranche tinha-se insurgido con tra as que bro tara m da filosofia de Descartes. Berkel ey rep u diou a tend ênc ia de se tran sferir noções antropom órficas, tais como vontade, causa ou força, para coisas materiais. Por outro lado, uma vez que o homem tinha sido criado â ima gem de Deus, estava ele autorizado a transferir para Deus, por um processo de ampliação, certas propriedades hum a nas, ta is com o a vontade.44 Isto é , Berkeley entendia que o fato de ser o homem uma imagem de Deus devia-se princi palm ente a ter ele uma vontade, e não a suas habilidades mecânicas ’ ’. Para Berkeley, a f ísica tinh a u m ca ráte r pu ra mente descritivo. Embora aceitasse a concepção mecanicista do mundo, Berkeley negava que pudesse haver qualquer efi cácia na forma, tamanho, movimento ou forças das partícu las. Ele julgava que nem mesmo Newton tinha sido suficien (42) Cf. abaixo Dc scarte s, cap. 2, p. 65. (43) Malebranche, Entretiens, vii. 8.
(44) G. Berkeley,
Tbree Dialogue s between Hylas and P hilo no us, III.
DEUS E A NATUREZA
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temente radical em sua rejeição de entidades independentes (naturezas), afirmando que as noções de Newton de espaço absoluto, movim ento abs oluto e forças eram “ produtos da imaginação” e “ fantasmas” .45 Apara idéiaBerkeley. da existêEm nciasua da m a téria era particularmente enervante opinião, essas noções estavam além da experiência e deviam ser banidas da filosofia científica. Nada, em absoluto, detém qua lquer ativi dade em si mesm a, e me smo as impressões que as coisas deixam em nossas m entes são o resulta do de atos da vontade de Deus; me smo a existência das coisas está som ente no espírito de Deus: “ um a vez que el as não sã o percebid as por nenhum espírito criado, elas devem ... subsistir na mente de alg um e spírito e te rn o” .46 Berkeley rejeitava o conc eito de “ na ture za ” por uma razão metodológica — é uma palavra vazia — e por uma razão religiosa — é adotado por pagãos e filósofos que impu tam coisas à Natureza, à Matéria e ao Destino, enquanto a Sagrada Escritura as atribui im ediatam ente à mão de D eus. Berkeley, exemplo con cepçãoa era equivade lentMalebranche, e à “ criaçãoreconhecia co ntín ua ”que , e,sua como Newton, enfatizava que Deus acompanha os nossos mínimos pensamentos e ações. Em seu tratado Sobre o Movimento (1721), Berkeley critica cab alm ente os princíp ios da filosofia m ecan icista, afir mando que símbolos tais como força, peso e atração podem ser úteis para cálculos, mas não revelam a natureza do movi mento. A ciência (experiência) não prova sua existência, já que sua única tarefa é reduzir a multiplicidade dos fenôme nos a regras gerais, ligando o que precede ao que se segue. A ciência i ndica as relações en tre fenôm eno s, usando sím bo los, como “ força” . Esses símbol os, no entan to, não de vem (45) Berkeley, Siris 249, 292, 293.
(46) Berkeley, The Pr inc ipi es o/H um an Know ledge , 6.
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ser considerados como causas reais, já que é impossível dis tin guir a ativi dade de um corpo de s eus mo vim ento s.47 Cerca de 150 anos depois, em 1882, o físico inglês J. B. Stallo fez um a crítica sem elha nte à noção d e força,45 e Clerk Maxwell seguiu a mesma linha. A única realidade acerca da noção de f orça, segu ndo Stallo, é que ela estabelece um a liga ção entre todos os fenômenos físicos. Um autor recente ex ternou a mesma idéia em outras palavras, afirmando que não havia lugar para a noção de força, em seu sentido metafísico de atividade causai, na ciência do empirícamente mensu rável.4 N9atu ralm ente, Berkeley reconhecia que existe ordem no mundo, mas, a exemplo de outros filósofos cristãos que o antecederam, ele atribuía essas leis da natureza não a uma necessidade interior, mas ao exercício da livre vontade de Deus que, desse modo, torna a vida possível. Nesse ponto, o bispo assumiu o seu lugar numa longa tradição, entre Santo Ago stin ho , que afi rmava que “ a vontade d e Deu s é a necessi dade d as coisa s” , e Charles Kingsle y (1860), que d i zia que aquilo que cha ma mos leis da na tur eza ‘ ‘não são rea l mente leis da na tureza , mas t ão-somente hábit os de D eu s” . Deus pode muito bem ter feito de qualquer um fenômeno a antecipação do próximo, e, por essa razão, Berkeley enfati zava que somente a pesquisa empírica pode dar alguma cer teza acerca dessas regras, e que todas as deduções lógicas têmlevou, de darpor lugar a essa pesquisa. supranaturalismo radi cal consegu inte, a umSeu empirismo descri tivo e stri tamente matemático. Berkeley acreditava que nada age por si mesmo, que somente Deus age; nada existe em si mesmo, mas somente em Deus; não existe nem espaço nem tempo (47) Berkeley, De m otu, II. (48) J. B. Stallo, The Con cepts and Theor ies of M ode m Physics , Londres, 1882, pp. 166-167.
(49) M, Jammer,
Th e Concepts of Force , 1957, p. 229.
DEUSEANATUREZA
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absolutos; não existem forças ou causas eficientes, e não há absolutame nte ne nhu ma exist ência a fora Deus. O tênue e abstrato idealismo de Berkeley assemelha-se, pela simplicidade de suas conclusões, ao realism o ingênuo daqueles que, como criancinhas, se limitam a observar os fatos. Ele estava propenso a concordar com aqueles que afir mam que aqui lo que perc ebemos exi ste realm ente, mas rep u diava os que apelam para o testemunho dos sentidos para demonstrar coisas como matéria ou substância, por ele con sideradas com o ficções filosóficas. Afirm ava que não era ele, realmente, quem se mostrava cético a respeito da realidade física, mas aqueles que degradavam o mundo visível em be nefício de um a pretensa r ealidade subjacente.5 0 Em outra s palavras, para ele, o m undo dos fenômenos era mais real do que o das Formas, Naturezas e Idéias da filosofia antiga e medieval, e também mais real do que o mu ndo dos á tomos e forças da ciência newtoniana mecanicista (ou, poder-se-ia acrescentar, do que o dos elétrons, campos, funções-/tfi e outras coisas da ciência moderna). De uma maneira geral, essas coisas são cons ideradas mais “ reais” e mais “ verda de ira s’ ’ em física do que os fenômeno s ime dia tam ent e per ce bidos. Berkeley, porém, as considerava como ficções conve nientes, estabelecidas com a finalidade de interligar esses fe nômenos, para que possamos manipular e classificar as coi sas naturais.
c) Retrospecto Fizemos um exame das diferentes concepções acerca da relação entre Deus e o mundo: a do pai para com o filho,
(50) Berkeley, Tbree Dialogues, III.
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a do artífice para com o produto artificial, a do criador para com as criatu ras. A p rimeira d elas le vou o mun do a ser co n siderado como um ser orgânico e divino, possuidor de um caráter inteligível. Essa concepção encontrou expressão na ciência de Platão e Aristóteles, e da maioria dos filósofos escolás ticos e ren asce ntista s. A segunda favorece u a imagem do mundo como uma máquina, e levou a uma visão mecani cista do mundo, tal como foi delineada por Descartes, Gassendi, Boyle, Huygens e Newton. É deveras notável que um dos primeiros escritores mecanicistas, Basso, já tivesse per cebido que as Formas substanciais, tão firmemente arraiga das na ortodoxia religiosa, nada m ais eram do que os numina dos pagãos sob disfarce, e que cien tistas e f ilósofos de ten dên cias tão amplamente diversas como Boyle, Malebranche e Berkel ey tivessem con cordado em to rn ar aind a mais evidente que as Formas não passavam de ídolos de uma superstição largamente difundida. Não menos notável foi a antevisão de M aleb ranc he e Berkeley d e que os átomos, forças e causas da Nova Filosofia — ainda que mais úteis na construção de um sistema científico — eram, da mesma forma, ficções indevi dam ente d eificadas da mente hum ana. A visão mecanicista do mundo foi, portanto, adaptada (embora com alguma reserva, e ressalvadas as suas impropriedades) à concepção de Deus como um criador. Essa adap tação, por seu tur no, levou a um a conc epçã o em pírica e posi tiva da ciência, que foi aceita por homens como Pascal e Berkeley, e, até certo ponto, por Boyle e Newton. Ela for mou a base daquele empirismo racional que se tornou o mé todo legítimo da moderna ciência. O cientista de hoje, ao utilizar modelos ou concepções mecanicistas ou de qualquer tipo, considera-os apenas como meios de descrição racional, e não como explicações da essência do mundo. O mundo do
físico é uma tradução, em símbolos, do mundo dos fenô menos, tornando-os mais suscetíveis de manipulação mate
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mática, e cujas conseqüências podem facilmente ser referidas a fenômenos externos. Isso foi claramente reconhecido por muitos fís icos de reno me du ran te o últim o século, de He rtz a Heisen be rg.51 M uitos cientistas dos século X IX e X X , ao adotarem essa visão, podem não ter tido consciência do fato de que os fundamentos metafísicos de suas disciplinas foram edificados em grande parte, e a despeito de toda secularização, a pa rtir da concepção bíbl ica de De us e da cri ação.
(51) “ A ciência não é uma filo sofia que apresen te uma visão do mu ndo da natureza.com o um todo, o u que trate da e ssência d as coisas” (W. Heisenberg , The Pbysic ist's Concepticn o fN ature, Londres, 1958, p. 152).
Prinzipien der M ech anik (1876), Einleitung. Gesammelte Heinrich Hertz, Werke, III, Leipzig, 1894.
2. Razão e experiência
A) RAC IONALISM O E E MPIR ISMO N A A N TIG Ü ID A D E E N A IDADE M ÉDIA
à) Raciona lismo e emprirism o A ciência parte dos fenômenos, estabelece um sistema racional de relações, explicações e previsões, e termina tes tando esse sistema através de experimentos realizados no mundo dos fenômenos, de onde começou. Quando o ele mento racional contribui com mais do que é devido, surge o racionalismo, que considera a racionalidade como sendo o critério e atribuiPor umoutro papellado, secundário à obser vação edaá realidade, experimentação. um empirismo racional reconhece que a razão é indispensável à criação da ordem, mas que ela tem de se submeter ao que está dado no mundo, atentando para a contingência da existência e da maneira de ser das coisas. De acordo com os filósofos greg os idealistas, a na tur eza é plena de razão e de necessidade lógica, às quais até mesmo
o demiurgo de Platão foi obrigado a submeter-se. No en
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tanto, o Deus da Bíblia, Jeová, é um Deus que a nada preci sava obedecer, nem mesmo às Idéias. Entre essas duas atitu des há um c ontra ste t ão fundam ental d e conce pçõe s do m un do que chega a influenciar o método de aquisição do co nhecimento científico a respeito do universo. A necessidade lógica, que reina sobre um mundo de Formas eternas que perpetuamente se regeneram, implica uma ciência que obe dece aos ditames da razão; a concepção bíblica de um mundo construído e criado por um livre ato da vontade de Deus implica uma ciência sujeita a dados e fatos, coisas dadas e feitas, quer sejam ou não racionais. Todos os esforços no sentido de reconciliar Atenas e Jerusalém sobre este ponto levaram a tensões internas e a novas controvérsias. Um dos pontos cruciais em debate era saber se as coisas eram boas porque Deus as queria ou se Deus as queria porque eram boas. O voluntarismo rebelou-se contra o intelectualism o. Poderia Deus fazer tudo o que quisesse, ou estaria Ele limi tado pe la na ture za das cois as? A opção por um método cient ífico racionalis ta ou em pí rico era determinada, de uma maneira geral, pela natureza de considerações teológicas como essas. Com efeito, se Deus é o pai da natureza (ou se Ele se identifica com ela), e, além disso, se a geração é um processo lógico, então o homem — sendo parte e produto do lógos que impregna o universo — deve ter um conhecimento intuitivo da natureza. Por outro lado, se Deus é um criador, não limitado por qualquer mo delo ou propósito final, então ao homem só cabe descobrir, a posteriori , até que ponto os dados da natureza são com preensíveis à razão humana. A Bíbli a proclam a, repetidas v ezes, que os pen sam entos de Deus não sã o os do homem.1 Deus não a ge em conso
(1) Isaías 55: 8, 9.
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nância com as expectativas humanas, e seus caminhos, ao revelar-Se em Jesus de Naza ré, são “ um a louc ura para o s gen tios ’ ’.2 Os a póstolos pro clam ava m não as coisas q ue lhes pareciam razoáveis, mas aquilo que “ tin ham visto com os olhos e apalpado com as m ão s” . Essa atitud e, transferida para o campo da ciência, significa que, assim como a fé dos cristãos não estava fundamentada em um sistema engenho samente elaborado, mas naquilo que eles reconheciam como sendo fa tos conc reto s, assim a ciência tem de aceita r os fatos, mesm o que pareçam estar con tra a razão e a reg ra.3
b) O racionalismo dos filóso fos gregos A ciência grega, ao contrário, possuía um caráter acentuadamente racionalista, que se patenteia particularmente em sua atitude com relação ás mudanças. A mudança é incompreensível p ara a mente hum ana , já que um a muda nça real é como se fosse uma nova criação: a coisa transforma-se naquilo que não era antes. Em razão disso, os filósofos eleáticos negavam a realidade de qualquer mudança. Por esse mesmo motivo, Platão considerava a matemática como um dos melhores exemplos da verdadeira ciência, uma vez que ela lida com coisas que não estão sujeitas a mudança, ao passo que de a física é muito precisa, os poisfenômenos trata de coisas passíveis mudança. Pormenos conseguinte, visí veis nos céus não correspondem à verdadeira e real astrono mia, pela mesma razão que o triângulo desenhado na areia não é o mesm o que o verdadeir o objet o da geo metria, o tr iâ n gulo ideal. Uma ciência baseada na observação não podia ser (2) 1 Corín tio s 1: 23.
(3) Luca s 24: 39; Joã o 20: 25-29; 1 Joã o 1: 1.
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um a ciência verdadeira. E m c onseqüên cia, P latão ri dos pitagóricos, que incidem no mesmo erro dos astrônomos, pois enquanto os últimos voltam os olhos para coisas visíveis, para aprender a verdadeira astronomia, os primeiros dirigem os ouvi dos para son s audíveis , para apren der harm onia . M es mo Aristóteles, embora considerando as mudanças como in teligíveis4e admitindo que todo conhecimento começa pelos sentidos, desenvolveu um sistema físico baseado principal mente no raciocí nio dedutivo.
c) Racionalismo escolástico e seus críticos medievais Aristóteles estabeleceu, apriori , que os céus devem ter um movimento circular eterno, que a Terra deve existir, e que deve haver quatro elementos. Tudo no universo está li gado a todas as outras coisas por uma lei de necessidade ló gica. M uitos filósofos medievais,5 e em particular o s ave rroístas, acreditavam que, quando criou o universo, Deus teve de seguir essa lei. Em conseqüência, Ele não podia fazer a matéria sem o auxílio dos corpos celestiais, que estavam colocados entre Ele e a Terra. A idéia fundamental era que não podia haver nenhuma inovação nos resultados, assim como não podia haver qualquer mudança na causa suprema (Deus). Por con seguinte, segundo ess e raciocí nio, a existên cia de Deus estava ligada a uma longa cadeia de aconteci mentos naturais, desde os movimentos celestiais até os mais triviais fenômenos terrestres. Os filósofos, portanto, chega
(4) Mudança, segundo Aristóteles, é a transição do potencial para o atual, do ser-possí vel para o ser-real.
(5) Sobr e Tem pier, Buridan e Oresme, cf . R. Hooykaas, “ Science and Theolo gy in the Middl e A ges” , Free University Qua rterly, 3 (1954), pp. 77-163.
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ram à conclusão de que , “ se os céus parassem de s e mov i m en tar, o fogo não queimaria a lenha, porque D eus não exis tiri a” . Reagindo a essas concepções, o bispo de Paris, Étienne Tempier, a instâncias do papa João XXI, condenou, em 1277, 219 proposições, muitas das quais acolhiam essenecessitarismo que restringia o poder de Deus pela imposição da quilo que parecesse razoável ao Homem. De fato, o que real mente interessava a Tempier era que fossem plenamente re conhecidas a soberania e a liberdade de Deus, mas, ao rejei tar quaisquer limites a esses atributos, ele, involuntaria mente, liberou também de qualquer restrição a teorização científica. Não apenas a teologia da necessidade estava sendo contestada, mas também a ciência natural da necessidade. Entre as proposições condenadas estavam aquelas que suge riam que Deus não podia fazer um espaço vazio, que Ele não podia criar novas espécies, que não podia fazer mais do que um único sistema planetário, e que só podi a dar m ovim entos circulares aos corpos celestiais. Todas essas proibições estor vavam a liberdade da pesquisa científica; e todas elas, com o passar do tempo, revelaram não possuir qualquer funda mento.
d) Empirismo nominalista Cem anos depois, os nominalistas fizeram ressurgir essa teologia voluntarista e demonstraram, de uma forma mais explícita, sua relevância para a ciência. Os nominalistas se recusavam a tirar deduções da natureza das coisas; para eles, as Formas substanciais não passavam de nomes, nomina\ a única realidade integral estaria nas coisas individuais. Em princípio, isso implicava uma ênfase maior nos fatos empí ricos como base da ciência, e, por conseguinte, um método
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mais empírico. Depositavam sua confiança na razão crítica, e não na razão teórica. Jeanlibé Buridan 1350)a afirmava Deus, “ emgusuar a vontade rrim a” (c. , poderi ter cr iado que coisas que não dassem conformidade com as nossas expectativas razoáveis e “ na tura is” . Deus pod eria ter c riado uma ordem do mundo dife rent e, que seria também “ natu ra l” . Em sua opinião, simplesm ente não exis te uma subordinação nec essár ia a cau sas eficientes, à exceção do próprio Deus. Talvez Deus seja a única causa eficiente, e o fogo queimaria a madeira, mesmo que não houvesse corpos celest iais .53 Som ente a rel ação entre Deus e os fenômenos é necessária; todas as outras re lações não o são. Isto é, a contingência da natureza foi tão plenamente reconhecida por Buridan, no século XIV , como o seria por B erkeley, no século XV III. Nicole D ’Oresm e (1377), que pertenceu à mesm a es cola, rejeitou a tese d e que não poderia hav er um vazio . A r gum nosso entend im entoproduzir depe ndeuma d os sentidos ,e estes,entava sendo que materiais, não podem noção ade quada do im aterial. Um vazio exterior ao mun do transcen de a nossa compreensão; seria o mesmo caso com um movi mento retilíneo dos céus. Mas a tese de que isto seria impos sível foi conden ada em Paris: “ depende d a vontad e de D eu s” , que move os céus co mo Lh e apr az. D ’Ores me rejei tou a tese de que a madeira não queimaria, se os céus paras sem de se mover, referindo-se novamente à condenação de Paris .6 Em sua opini ão, o racio cíni o de Aristótele s não po deria prov ar que o s céus se mov em em círculos e que a Ter ra perm anece imóvel, uma vez que isso depende da vontade de Deus, e para Ele não há absolutamente nenhuma necessi(5a) Cf. Cap. 1, p. 36, onde encontramos a mesma questão com Basso (1621),
epp. 41, Malebranche. (6) Nicole Oresme,
Le Livre du ciei et du monde, ii, 95a.
RAZÃOEEXPERIÊNCIA
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dade de causar esses movimentos. Da mesma maneira, um outro nominalista, Heinrich von Langenstein, acreditava que m uitas espécies surgiriam curso do tempo.deE vi dentemente, ele não novas acreditava que a no atividade criativa Deus estivesse sujeita à preexistência de um estoque limi tado de Formas etern as. N aturalm ente, era um tanto arriscado deixar que a cre dulidade chegasse ao ponto de admitir, alegando-se a onipo tência de Deus, a possibilidade da existência de qualquer coisa imaginável, por mais fantástica que fosse. É por essa razão que as tendências racionalista e naturalista de Tomás de Aquino são freqüentemente elogiadas pelos críticos mo dernos como sendo mais “ científi cas” do que a visão “ teo lógica” sustentada pelos nominalist as. No e ntanto , enquanto no tomxsmo as coisas incompreensíveis eram consideradas sobrenaturais e miraculosas,7os nominalistas inclinavam-se a considerá4as naturais. Deve ser salientado que o que im porta é o que julgamos serem as conseqüências lógicas de umanão determinada atitude, mas, de fato, o que essas conse qüências foram na reali dade histórica. Acontece portanto que, na verdade, os nominalistas fo ram menos propensos à crença nos milagres do que quais quer outros pensadores medievais. Em sua concepção, Deus era um Deus de ordem. Dessa forma, D’Oresme acreditava que a credulidade era a fonte de muitos acontecimentos su postamente não-naturais. A credulidade destruía a ciência e acarretava grandes perigos para a religião; muitos casos de bruxaria podiam ser atribuídos à auto-sugestão e à extorsão de conf issões. Po r outro lado , D ’Oresme acentuava que muitos acontecim entos natu rais, como, por exe mplo, a q ueda de uma pedra, ou os fenômenos de combustão, são tão in
(7) Ver Cap. 1, p. 31
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compreensíveis à razão como a ressurreição do corpo. Daí D ’Oresm e conc luir, parafr aseando a expressão socráti ca: “ Namenos verdade, tudo devidamente consider ess as co isas são conhecidas do que alguns artigos deado, fé. Portanto, só uma coisa eu sei com certeza: é que nada sei com cer teza” . Foi precisamente o fato de que os nominalistas espera vam da ciência somente probabilidades, e não certezas abso lutas, que lhes permitiu erigir o seu sistema científico com maior grau de liberdade. Seu princípio de economia — não devem ser admitidas mais causas do que as estritamente ne cessárias — implicava uma simplificação do sistema cientí fico.8 Ao reco nhe cer o f ato de que não conseguimos chegar a um entendimento completo, mas, na melhor das hipóteses, a um a exat a des crição d a natu reza , D ’Oresm e antecipou-se, não apenas a Pascal e Boyle, mas também a alguns dos maio res cientistas do século XX.
B) EM PIRISMO E RA CIONA LISMO N O INÍCIO DO SÉCULO XVII
a) O empirism o matem ático d e Gali leu e Ke pler Galileu e Kepler, dois dos fundadores da ciência mo derna, acreditavam, como Platão, que Deus, ao criar o mundo, agiu em consonância com modelos matemáticos. Ha via, e ntre tan to , um a diferença essencial en tre o seu ponto de vista e o do grande filósofo grego. Platão acreditava que a
(8) Em princípio, os nom inalis tas abandonaram a difer ença esse ncia l entre mo vimentos terrestre s e cel esti ais, e en tre mov imentos naturais e não-n aturais (forçados) .
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matéria fora um emp ecilho para que ,as Idéias matem áticas se reflet issem exatam ente no mu ndo dos fenôm enos (a s leis m a temáticas da astronomia e da acústica não encontram nele a sua expressão completa). Por sua vez, Galileu e Kepler acre ditavam que o Criador realizou cabalmente o Seu plano ma temático do universo. Não lhes parecia que a matéria pu desse ser um obstáculo à ativi dade criadora d e De us; “ onde está a matéria, aí está a ge om etria” , diz K epler,9 e Gali leu compartilhava dessa opinião. Demais, para eles, a experiên cia não era irrelevante. As Formas matemáticas, julgavam eles, est ão no espírito, mas som ente a expe riência pod e de ci dir quais delas encontraram expressão no mundo material. Por conseguinte, Kepler e Galileu, ao contrário de Platão, idealizara m um emp irismo m atemático. Isso ficou bem evidenciado num dos momentos mais decisivos da história da ciência. Até a época de Kepler, ti nha- se const ituído nu m dog ma da “ igreja científ ica” a crença de que os movimentos dos Em céustodos teriamosde ser neces sariamente uniformes e circulares. lugares, to dos tinham, a priori , sempre aceito isso como verdadeiro; platônicos e aristotélicos, idealistas e nominalistas, bem como Copérnico e Galileu, todos tinham adotado esse dog ma, e o próprio Kepler estava inteiramente convencido de sua veracidade. Não obstante, uma diferença de oito minu tos en tre a observaçã o e o cálculo da órbita do plan eta M arte obrigou -o, após um a indeci são de vários anos, a abando nar o dogma de ci rculari dade e a postular um mo vim ento não-uniforme, em órbitas elípticas. Preferiu capitular, ante a evidên cia dos fatos, a manter-se fiel a um antiquado preconceito; em sua mente, o empirismo cristão sobrepujou o raciona lismo platônico; um homem sozinho rendeu-se aos fatos e
(9) J. Kepler, De fu ndam entis astrologiae certioribus (1601) , tese XX ,
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rompeu com uma tradição de dois mil anos. Ele declararia, com inte ira justiça: ‘ ‘Esses oito minu tos prep araram o ca mi nho par a a refor mulação de t oda a astron om ia” . E foi tam bém com inteira justiça que, em 1609, ele deu ao seu livro o título Nova Astronom ia. Malgrado o grande respeito que sentia pelo “ divino filósofo” , Kepler teceu críticas ao m es tre, pois Platão não reconhecia que a perfeição e a necessi dade das Formas matemáticas tivessem sua srcem na von tade de Deu s, preferindo fundam entá-las, sem o co ncurso de Deus, nas próprias Idéias matemáticas, e, por conseguinte, ‘ ‘violava, de al guma m an eira, a fé ” .
b) Em pirismo hist órico-nat ural Mesmo antes de Kepler e Galileu terem aparecido em cena, a certeza da visão tradicional e racionalista do mundo sofreu alguns duros golpes, em conseqüência de descobertas da história natural não relacionadas com qualquer teoria re volucionári a. Os antigos haviam dem onstrado racionalm ente que as regiões tropicais eram inabitáveis por causa do calor escaldante. No entanto, já no final do século XV, os nave gadores portugueses foram além do Equador e descobriram que os trópicos, como também o hemisfério sul, eram habi tados. Em particular, o fato de que essas descobertas foram feitas por marinheiros, engenheiros, artífices, pilotos, ou seja, por pessoas “ inc ulta s” , abalou a reputaç ão d e especu lações eruditas da filosofia natu ra l.93 Camões escreveu, no século XVI: “ Te nho visto coisas qu e os marinheiros incu l tos, que têm como mestre apenas sua long a experi ência, pro íba) Cf. R. Hooy kaas, “ Th e Impact o f the Voyag es of Discovery o n P ortu-
gue se Hu m anist Litera ture” (I Reuni ão da História d a Náu tica, outubro , 1968), R e vista Univ. Coimbra (1970),
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clamam como verdadeira s, en quanto os eruditos, que j ulgam apenas pela ciência e pela pura razão, dem on stram não serem verdade iras ou serem mal compreend idas” . Sessenta a nos mais tarde, o clérigo inglês William Watts (1633) expressouse de forma aind a mais contun den te ao dize r: “ Os pensa mentos dos filósofos foram desmentidos pelas inesperadas observações dos nav egan tes” . Coisas semelhantes aconteceram na astronomia. Aris tóteles e seus seguidores tinham demonstrado que nenhuma mudança poderia jamais ocorrer nos céus. No entanto, em 1572, uma nova estrela surgiu na Cassiopéia, visível para todos. Alguns explicaram esse fato como sendo um fenô meno sublunar, mas Tycho Brahe provou que ele ocorrera acima da Lua. Ele viu a estrela pela primeira vez quando estava indo do laboratório para o observatório. Como não podia acreditar no que estava vendo, indagou aos seus assis tentes s e eles também estavam testem unh and o a mesma coi sa. M esm o assim, eles não se sentiram confiantes, e som ente acreditaram no que viam quando obtiveram a confirmação de alguns camponeses. Tycho observou que eram principal mente as pessoas iletradas, e não os astrônomos, que anun ciavam o novo fenôm eno .10 É evide nte que, de um a m ane ira geral, os letrados só viam aquilo que julgavam ser possível existir. Mais tarde, um outro dogma aristotélico, o da impossi bilidade de espaço vazio, ruiu perante os fatos. Comentando isso, Pascal observou sarcasticamente que simples operários tinham conseguido convencer aqueles grandes homens cha mados “ filósofos” 11 de que estavam er rado s. Foram, po r tanto , esses homens incultos, qu e testemun haram os inespe (10) Tycho Brahe,
Astro nomia e Instauratae Pro gymnasm ata , P. ii, Cap. 3.
(11) B. Pascal, Conclusão.
Traités de Véquilibre. des liqueurs et de la pesanteur de l'air
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rados eventos que se afiguravam impossíveis para os letra dos, que mais pron tam ente s e disp user am a acredi tar “ na quilo que foram vi am com os olhos e tocavam com m ão s” . Essasde palavras usadas com freqüência em as muitos relatos observações e experimentos escritos por artífices quase iletrados. O oleiro huguenote Bernard Palissy, por exemplo, prometia aos seus visitantes que lhes ensinaria mais em duas horas, apalpando e observando fósseis, do que seriam capa zes de aprender se passassem cinqüenta anos estudando os livros dos filósofos >l A demonstração empírica tornava-se agora mais con vinc ente do que a prova racional. A Razão teve de se adaptar à Exp eriência, já que a “ nova fi losofia pu nh a dúvida em tudo” (Donne). E, efetivamente, a razão adaptou-se. Um dos primeiros exemplos disso é representado por D. João de Castro, que observou que a inabitabilidade da zona tropical parecia outrora ser contra a Razão, mas, depois que os ho me ns constatara m que e la é habitada, “ parece a coisa mais razoável do m un do ” .13 Cons iderar algo como “ racional” resume-se m uitas veze s em nos acostumarm os ao f ato, como foi claramente exposto por John Donne em um sermão de Páscoa: “ Não há nada que Deus t enh a est abelecido no curs o constante da natureza, e que, por conseguinte, é repetido todos os dias, que não parecesse um milagre e provocasse nossa admiração se acontecesse apenas uma vez ... no en tan to, a repeti ção diári a dissipa a adm iração ” . Mas um a aquiescência do aparentemente absurdo ocorreu com fre qüên cia, m esm o .antes que a famili aridade tirasse o inu sitado do fato. Por exemplo, o cientista holandês Isaac Beeckman (1588-1637), um dos primeiros defensores da filosofia ato(12) B. Palissy, Discours admirable (158 0). A dvertên cia aos leitores.
(13) D . João de Castro, Tratado da sphaera, em: Obras com pleta s de D. João de Castro, ed. crit. por A. Cortesão e L. de Albuquerque, Coimbra, 1968, vol. 1, p. 58.
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mista, concluiu que esse sistema continha uma antinomia que ninguém, nem mesmo ele, poderia resolver: os átomos podiam ser ou perfeitamente rígidos ou perfeitamente elás ticos. Não obstante, ele decidiu aderir ao atomismo, por julgá-lo a m elhor teoria disponível.14 Casos como esses provam que a modesta experiência das descobertas tinha feito com que muitos cientistas se dis- • pusessem a abandonar a pretensão de uma explicação inte ira mente racional do mundo, contentando-se com uma descri ção mais ou men os mate mática que revelasse, se poss ível, as relações entre os fenômenos. surgiram causais freqüentemente. Em nossaSituações própria semelhantes época tem acont ecido o mesmo, por exemplo, quando Boh r form ulou a suposi ção, apare ntem ente absurda, d e que os elétrons s e m o vem em su as órbitas sem perda de energia; o u, aind a, quando os físicos passaram a representar os elétrons segundo dife rentes modelos, ora considerando-os como partículas, ora como ondas.
c) O em pirism o histórico -natu ral de Francis Bacon N o início do século XVII, Francis Bacon tornou-se o defensor do novo empirismo histórico-natural. Embora ele próprio quase não tenha dado nenhuma contribuição à ciên cia, sua influência sobre os cientistas foi muito marcante. Estava perfeita mente cônscio d o ca ráter semipagão da antiga ciência. Dessa forma, a despeito de sua aversão em usar a Bíblia como uma espécie de compêndio científico, é certo que sua atitude, como salienta o professor B. Farrington, (14)
Isaac Beeck man , Jo urn al , ed. C. de Waard, vol. 2, p. 100 (agosto, 1620).
Cf. “ Science andI (1951), Rel igion the Seventeenth C entury ; Isaac Beec k man”R. ,Hemooykaas, Free Univ. Quart., pp.in169-183-
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poderia ser resumida no slogan : ‘ ‘Abaixo Aristóteles — viva a Bíblia” . Na opinião d e Bacon, a raiz de todo o mal em ciência reside na violação da verdade da natureza por um preconceito racionalista. “ Cometemos o mesm o pecado de nossos primeiros pais ... Eles desejavam ser semelhantes a Deus, mas os seus descendentes almejam ser ainda maiores. Pois nós criamos mundos, dirigimos e tiranizamos a Natu reza, e, em nossa insensatez, queremos que todas as coisas sejam como achamos que devam ser , e não como pareça mais apropriado à divina providência, ou como, de fato, elas são ... claramente imprimimos o selo de nossa própria imagem nas criaturas e nas obras de Deus, em vez de examiná-las cuidadosamente, procurando reconhecer nelas a marca do próprio Criador.” Por conseguinte, perdemos nosso domí nio sobre a na turez a, “ porque des ejamos ser semelhantes a Deus e seguir o s dit ames de nossa própria razã o” . E, mais adiante, Bacon implora a seus leitores, numa linguagem quase bíblica, que “ aban done m essas filosofias absurd as, que ... cercearam a liberdade d a experiência, 'e buscaram triu nfa r sobre as obras de Deus; e acheguem-se, com humildade e veneração, para desven dar o livro da Criação” . Vez es sem conta Bacon criticou o intelectualismo dos gregos, seu des caso pelos exp erim ento s, e sua precipit ada elabor ação de teo rias sobre uma base fática demasiado frágil. Na opinião de Bacon, somente o contato com a realidade do mundo dos fenômenos forçaria nossas mentes à sobriedade e à modéstia: “ Quando a mente do homem trabalha s obre a natureza, as criaturas de Deus, ela encontra aí a sua limitação; mas quando trabalha ensimesmada, ou sobre uma base muito di minuta de coisas materiais, ela se enreda em uma tortuosa trama d e conh ecim entos” . Em outr as pal avra s, o restabele cimento da ciência demandava, acima de tudo, a coleta de
mais seja,deuma história Somente após é que fatos, ser ia ou tempo começar novnatural. am ente a teoriza r. isso
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A anal ogia entre os dois livros ^ Escrituras e a N atu reza) revelou-se, então, de forma irresistível. A religião cristã reivi ndicava estar ba seada em fenômenos “ his tó ri cos” (reais), observados pelos fiéis, ou transmitidos por tes temunhas idôneas. A ciência, a interpretação do livro das criatura s, está tamb ém fundam entada em fenômenos. Bacon achava que o homem jamais poderia esgotar a fonte de co nhecimentos do livro da palavra de Deus, ou do livro das obras d e De us, no estudo da divindade ou da ciência. Em sua opin ião, assim como os filósofos escolásticos hav iam org ulh o samente s ubstiinvenções, tuído o ““orác d aa palavra s” por suas próprias da ulo mesm maneirade , naD ieu nvestiga ção da natureza, eles abandonaram o oráculo das obras de Deus” para adorar as imagens deformadas de suas próprias mentes, ou de uns poucos autores aceitos. Bacon chegou mesm o a afirmar que Cristo, quando disse “ Vós errais, por não conhecerdes as Escrituras nem o poder de D eu s” , es tava se referindo aos dois livros, o das Escrituras e o das cria turas í4a C) CARTESIANISMO
a) O voluntarismo teológico de Descartes É estran ho que ao tr iunfo do em pirismo raciona l tenhase seguido tão rapidamente o aparecimento do racionalismo cartesiano. O voluntarismo na teologia estava relacionado com o empirismo na ciênc ia,15 enqu anto o intelect ualismo na teologia estava muitas vezes ligado ao racionalismo na (14a) F. Bacon, The Advancem ent SfLe arni ng (1605), Livro I.
(15) Na Idade M édia, os nom inalist as; no s éculo X V II, Pascal, Boyl e, Ne wton.
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ciê nc ia.16 No e nta nto , a despei to do racionalism o cient ífico de Desca rtes, suas conc epções t eológica s revestiam -se de um caráter decididamente voluntarista. O homem foi feito à imagem de Deus, mas, na opini ão de Descartes, isso não im plica que a semelhança seja tão grande que o homem possa ser capaz de descobrir os desígnios de Deus na natureza. Mesmo o livre-arbítrio no homem é bem diferente do de De us; o ho mem não pode julgar o que é bo m, pois isto j á foi feito pelo Criador. “ A Idéia do Bem não forç ou D eus a es colher uma coisa de preferência a outra.” Segundo o Livro do esisf, azer a razcomo ão porelas quesão todas coisasoera que EleGên as quis ” .17asMesm as m verboas dade‘scéete r nas, que parecem absolutam ente inc ontrove rtíveis, não o são necessari ame nte para Deus: “ As verdades matemáticas são estabelecidas tanto por Deus e dependem tanto Dele como todas as outras criaturas; aquele que afirma que elas são independentes Dele, transformam-No num Júpiter ou num Saturno, e O submetem ao Desti no e à Nece ssidade” . Po deríamos dizer que ‘ ‘De us pode f azer tudo o que co mpre en demos, mas não podemos dizer que Ele não pode fazer aquilo que não compreendemos, pois seria presunçoso pensarmos que nossa imaginação vai tão longe quanto o Seu poder’ *. Se Ele tivesse desejado que assim fosse, os três ângulos do triân gulo não seriam iguais a dois ângulos retos; essas verdades não se ligam mais necessariamente à Sua essência do que a qua lqu outra ‘cria tu ra *’. O er Deus de ‘Descartes não é o Pai do unive rso ( “ as ve r dades eternas não emanam de Deus, como os raios emanam do Sol” ) e Ele é mais do que o seu a uto r. De us é o Criador absolutamente soberano, que não ombreia com nenhuma na turez a indepen dente, sej am as Idéias, seja a matéria: “ o
(16) N aDescartes, Idade M édia, ideali stas, e3aos
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arquiteto é a causa da casa, assim como o pai é a causa do filho e do seu vir-a-ser, mas a obra pode continuar a existir sem a causa ... todavia, Deus é a causa das coisas criadas, não som ente em relação ao seu vi r-a-ser, como em relação ao se r” .18 Po rta nto , na metaf ísica de Desc artes, todas a s condi ções para o desenvolvimento de uma ciência positiva pare cem estar preenchidas. Sua crença de que todas as coisas fo ram apenas doadas poderia ter proporcionado um poderoso estímulo para uma metodologia empírica; sua ênfase na von: tade inescrutável e incompreensível de Deus poderia ter blo queado o cam inho para o racional ismo.
b ) O racionalismo de Descartes na ciência N a verdade, no entanto, Descartes não se transform ou num dos fundadores do empirismo racional, produzindo an tes um sistema cosmológico racionalista e dedutivo. Qual seria a razão para essa situação paradoxal? A razão é que, na opinião de Descartes, Deus fez as nossas mentes de tal ma neira que somos obri gados a recon hec er como racional e pos sível, na natureza, aquilo que aprouve a Deus colocar na natureza, e se reconhecemos imediatamente as verdades pri meiras como “ claras e distintas” , é porque Deus a s ins ti tu iu pa ra que as sim fossem: “ É verdade que os três ângulos de umporque triângulo sãoassim necessariamente a dois ângulos retos Deus o quis” (ou iguais seja, isso é evidente para nós). As verdades fundamentais são, portanto, inatas. Se não conseguimos formar a noção de uma coisa, essa coisa não existe. Por conseguinte, em última instância, a razão humana tornou-se o instrumento de medida da verdade da (18)
Descartes, M editationes, Quintae resp onsiones . Cf. Malebranche, Cap. 1,
p. 42 deste liv ro.
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existência! Não pode existir um vazio, não porque Deus não pudesse havê-lo criado, mas porque Ele não quer que assim seja, e sei disso porque a minha mente não consegue conce ber a possibilidade da existência de um vazio. O homem compreende o mundo não por causa de sua analogia com Deus (como no escolasticismo), mas em razão do fato de Deus não querer iludi-lo. É claro que, na prática, o resultado foi o mesmo: o homem pode construir uma ciência natural de um a for ma dedutiva, da mesm a ma neira que desenvolv eu a matemática. Embora Deus pudesse ter feito coisas que não compreendemos, Ele, de fato, não o fez. Portanto, Descartes achava que os princípios primordiais daquilo que existe ou pode existir no mundo devem ser buscados em “ certos ger mes da ver dade que perten cem , por n atureza , à nossa alm a’ 5. Descartes, desviando-se do seu ponto de vista srcinal, chegou mesmo a dizer que, porque Deus é im utáve l, a qu an tidade de movimento do mundo deve também permanecer constante; ou seja, ele relacionava a realidade da existência de Deus à veracidade da lei da conservação do impulso. Não foi a vontade de Deus, mas Sua própria essência, a causa dessa lei, e foi por ter adotado esse ponto de vista que o voluntarismo de Descartes transformou-se em necessitarismo. Descartes deduziu então sete leis de colisão, e disse que a dem onstra ção dessas leis era t ão certa que , se a experiência parecesse provar o contrário , “ seriamos obrigados a confiar mais em nossa razão do que em nossos sentidos’5. Infeliz mente, seis das suas sete leis, bem como sua versão da lei fundamental, resultaram serem falsas. Apesar disso, ele de clarou triunfantemente, no final dos seus Principia Philosophiae , que 4‘se pode ter mais do que simplesmente uma cer teza moral de que todas as coisas são como aqui provamos que podem s er’ \ Ele pretendeu mesmo ter deduzido a água ,
o ar, o f ogo, os m inerais e o utro s corpos simples a pa rtir dos
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germes inatos da verdade. Naturalmente, o resultado foi uma cosmogonia fantástica, sem qualquer valor científico real. O caráter matemático dessa cosmogonia (do qual ele tan to se vangloriava) consistia e m sua ontolog ia, em seu m é todo dedutivo e em seus modelos geométricos, mas não em uma descrição confiável e em um inter-relacionamento de fatos através de fórmulas matemáticas. Suas teorias logo des moron aram , ante a crít ica d e Hu ygens e de Ne wton. Huy ge ns salientou que Descartes errara ao supor que as noções fundamentais da mecânica fossem inteiramente evi dentes à razão. E até mesmo Malebranche finalmente reco nheceu que a ligação feita por Descartes da lei da conserva ção da quantidade de movimento com a imutabilidade de Deus infringia a Sua liberdade. Na opinião do padre oratoriano, esta lei não seria mais do que uma escolha puramente arb itrária de Deus, e a única ma neira d e nos certificar mos de sua veracidade seria por uma espécie de revelação, isto é, através da verif icação e xp erim en tal.19
D) OPOSIÇÃO E MPIRISTA A DESC ARTES N atu ralm ente, as críticas aos postulados racionalistas tornar-se-iam mais incisivas quando se tornasse patente que a realidade física não é totalmente conforme ao que nós, nu ma determ inada época, consi deramos ser racional, e qu an do a não-racionalidade, ou mesmo a absurdidade da realidade (ou de um a parte da realidade) tivesse de ser re co nh ecida .20 Essa percepção viria com Pascal e com os £‘cristãos virtuo
(19) Por estranho que pareça, Malebranche demonstrou ser mais racionalista do que De scartes, ao man ter a eterna verdade dos fundamentos matemáticos indepen
dentemen te da vontade de Deus. (20) Cf. acima, B eeckman e De Castro.
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so s” , os ingl eses Boyl e, H ooke e Ne wto n. Esses pens adores abandonaram todas as pretensões platônicas acerca do valor da matemática, e toda especulação a priori sobre quais leis matemáticas devem prevalecer na natureza .
a)Pascal Quando Descartes rejeitou o vazio porque, se ele exis tisse, alguns fenômenos físicos seriam incompreensíveis, Pasca l conder trapôs é b za em. poss ívelé con hece r de umnossa a coiscap a sem com preen sua que na ture ‘ ‘ Não em razão a cidade de conhecer as coisas que devemos julgar sobre sua verac idade .” 21 Desde que nã o poss amos dem on strar que existe alguma matéria no espaço de Torricelli, para nós ele está vazio. 22 Na opini ão de Pascal, é um a defici ência n atu ral do hom em pen sar que sempre está d e poss e da ver dade; pode ser incompreensível que a luz se desloque através do espaço vazio, mas isso não dá aos filósofos o direito de introduzir causas e fluidos im aginá rios, a fim de to rn ar a natu rez a c om preensível: “ para satisfazer sua vaidade pelo aniquilamento da ve rda de ” .23 Na ciência as coisas devem ser aceita s como Deus desejou fazê-las.. A analogia entre o caráter de algo dado, próprio do mund o na tur al, e o da revel ação religiosa apresentou-se ta m bém Pascal. Emqureligião, aceitar a ma neira acomo Deus is revelarsomos -Se, isobrigados to é, “ ema Jesus Cristo, sem o qual nenhuma comunhão com Deus é possível’ ’. Isso pode não corresponder às idéias grandiosas sobre a Div in
(21) Pascal, Pen sées, {f. 233. Sobre Pascal, cf . R. H ooyk aas, “ Pascal, his Science and his Religion” , em: Free Univ. Qua rt . , 2 (1952), pp. 106-137.
(22) Pascal, Pascal, Exp ériences n ouveltes touchant le vide (1647). (23) Traités , Conclusão.
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dade produzidas pela razão hum ana , mas, “ como ous a um ser tão ínfimo arrogar-se o direito de atribuir a Deus os li mites que o seu próprio pe nsam ento lhe im põ e? ” .211 Para Pascal, uma revelação divina tem de ser aceita (ou rejeitada), mas não pode ser posta em dúvida só porque não é racional. Da mesma maneira, em ciência, os fatos têm de ser aceitos, estejam ou não em conformidade com as expectativas da ra zão. Portanto, a despeito de sua estrita distinção metodoló gica entre a ciência e a teologia, o método científico de Pas cal tra z a marca de sua f é religi osa. Ele a ssum iu u ma atitude empírica em relação a ambos os estudos: experiência revelou (para mim ou para os outros), oo que que afoi tocado e visto, é o fundamento de ambos. Em física, dizia, a expe riência tem mais poder de convencimento do que a razão; os experimentos são os verdadeiros guias que devem ser segui dos, Em con seqüê ncia, a física não pode ser to talm en te perspícua à razão. Pascal negava que o homem tivesse uma compreensão perfeita das noções fundamentais da física, como a matéria, o espaço ou a gravitação, e acreditava ser de uma enorme presunção afirmar que se podia explicar todas as coisas com o auxílio de princípios científicos. Embora Descartes fosse de opinião que esses princípios eram claros, Pascal os conside rava inevitáveis, mas obscuros. Se a Razão fosse realmente razoável, afirmava ele, as pessoas abandonariam tais preten sões; mas ele não acreditava que a razão jamais desistisse de ir em busca do horizonte. Apesar disso, Pascal não era irracionalista, pois considerava a razão como o dom mais su blime do homem — “ toda a nossa dignidade reside no pen sa m en to” . Suas crít icas est avam volt adas para a razão espe culativa, não para a razão crítica, e a chava que o ú ltim o está
(24) Pascal, Pen sées , fr. 430.
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gio do processo da razão era o seu reconhecimento de que um a infinid ade de coisas estão além da razão .25
b) Boyle Por volta dessa mesma época, os físicos ingleses desen cadearam um ataque semelhante contra o racionalismo, em bora talvez com menos profundidade e vigor. Os membros da Sociedade Real, “ tendo diante dos seus ol hos tan tos exemplos desastrosos dos erros e falsidades em que vagueou a humanidade durante tanto tempo, por ter confiado apenas na força da razão humana, começam agora a corrigir, pelo senso , todas as hipóteses” (R. Hooke). Esses membros se consideravam baconianos, e até mesmo Newton, embora certamente não imitando Bacon em seu descaso pela mate mática, seguia, segundo Henry Pemberton, o verdadeiro método baconiano o método i ndução, sobre oHq oo ual toda a ciên cia se fun—da“m en ta” . Dedaacor do com Robert ke, “ a ciência tem de com eçar com a s mãos e os olhos, c on tinuando depois com a Razão, para voltar novamente às mãos e aos olhos *’. Ele pedia a seus leitores que não consi derassem sua s “ peque nas con jecturas” como ci ência irrefu tável, m as apenas como suposi ções incertas. Boyle, cujo trabalho esteve durante algum tempo inti mamente relacionado ao de Hooke, assumiu a mesma ati tude cética. Embora fosse também um ardoroso defensor da “ filosofia meca nicista ” , ressalt ava, aind a mais firme mente, o caráter experimental da ciência. Achava racional abando nar teorias racionais sempre que fossem contestadas pela ex periência. Em sua opinião, a contingência da natureza retira
(25) Pascal, Pensé es , fr. 267.
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qualquer caráter de necessidade lógica da ciência, já que Deus es tabel eceu livreme nte as leis da natu reza . Em partic u lar, Boyletão achava Descartes errado em conhecia bem que a extensão da estava imutabilidade de supor Deus que que podia transformar isso num argumento a pri ori em favor de sua lei da conservação do movimento. A única certeza que podia ser introduzida nesse argumento era a de que a expe riência não o contraria. O homem não deveria indagar o que Deus poderia fazer, mas o que Ele efetivamente fez. Boyle observou, com agudeza, que a verdade exclusiva da filosofia mecanicista não podia ser comprovada: era aceitável porque estabelecia um relacionam ento coerente entre fenômenos d i vergentes. Boyle, evidentemente, não considerava que mesmo as noções funda mentais de sua própria fil osofia m ecanicista fos sem perspícuas à razão. Contrariamente a Descartes, não acreditava que a mente humana fosse totalmente adaptada à ordem quepor os exemplo, nossos pensamentos sobrea espaço, criada. matériaEntendia e átomos, poderiam levar absurdos, e que somos incapazes de dar definições satisfató rias desses conceitos. Não obstante, o físico pode lidar com eles, e Boyle julgava corretamente que uma das diferenças entre um filósofo especulativo e um filósofo experimental é que este últim o se m ostra disposto a usar até mesm o conc ei tos que não compreende integ ralme nte. Da mesma forma, em nossa própria época, alguns dos maiores cientistas têm-se ocupado com a investigação de princípios fundamentais, e chegaram à mesm a maneira de pensar de Pascal, Boyle e Newton, fundadores da ciência moderna que, afinal, sentiram que a única coisa que podiam fazer era ‘ ‘ficarem bo quiab ertos” . Boyle considerava a ciência como uma excelente escola
para religião. em Salientava quefundamentais tanto a ciência a religião estão abaseadas princípios que como são incom
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preensíveis, e que ambas estão erigidas sobre fatos de cunho mais histórico do que racionalmente necessários. O cientista depara muitas coisas natureza que aptidão não alcança integral mente, o que faz comnaque tenha uma especial para aceitar coisas que parecem estar além da crença ao ‘ ‘filósofo vulgar’5— aquele que pensa compreender todas as coisas e que considera aquilo que não guarda conformidade com a sua filosofia como carecendo de veracidade. O cientista está preparado para colher ensinamentos até de pessoas iletradas; da mesm a m ane ira como seria poss ível apren der m ais sob re a história natural da América convivendo com um compa nheiro de Colombo do que ouvindo uma centena de mestres, seria poss ível apren der mais sobre Deus com aqueles hom ens rudes, os apóstolos, que estavam em íntima comunhão com “ Aquele que estava no coração do Pa i” , do que com qu al quer filósofo.26 Na opinião de Boyle, a ciência empírica, experimental, é uma aliada da religião, e é até mesmo não obstante a distinção metodológica entre guiada ambas.por A ela, hostili dade existe apenas entre a metafísica especulativa, de um lado, e a religião un ida à verdad eira ciência, do ou tro . Boyle, especialmente em seu Christian Virtuoso , enfoca com particular atenção esse tópico dos paralelos entre a ciência e a religião. Nenhuma das duas faz qualquer uso de ‘ ‘idéias ina ta s” ; ambas reconhecem que noss o limitado intelecto só pode conceber noções corretas com o auxílio dos modelos oferecidos nas “ obras e nos julgamentos de Deus” — so mente assim podemos saber que as idéias dos antigos sobre ambos o s tem as eram inc orretas .27
(26) R. Boyle, The Christian Virtuoso , Prim eira Parte, prop. II, 2. (27) Boyle, The Christian Virtuoso , Primeira P arte, prop. II.
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c) N ew ton Por último, Isaac Newton fezbaconianos um esforçocom paraocombinar a experimentação e o empirismo método matemático. No Prefácio do seu Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (1687) ele já havia revelado seu em pirismo: “ Ofereço este trabalho como os princípios m ate máticos da filosofia, uma vez que toda a tarefa da filosofia pa rece consistir nisto: partir dos fenômenos dos movimentos para investigar as forças da natureza, e, em seguida, utilizar tais forças para demonstrar os demais fenômenos’ *. O empi rismo de Newton, da mesma forma que o de Bacon, Pascal, Hooke e Boyle, tinha um fundo teológico. O caráter voluntarista do seu pensamento torna-se evidente no prefácio de Cotes à segunda edição do seu Principia : “ Sem dúvida al guma este mundo ... não pôde surgir de outra coisa senão da vontade perfeitamente livre de Deus ... Desta fonte ... brota ram o que denominamos leismais da natureza, nas quais estão mas presentes muitos sinaisas da alta engenhosidade, nem o mais leve vestígio de necessidade. Por conseguinte, essas leis não devem ser buscadas a partir de conjecturas in certas, mas antes através de observações e experimentos. Quem for presunçoso o bastante para achar que pode desco brir os verdadeiros princípios da física e as leis das coisas na turais unicamente pela força de sua própria mente e da luz interna da razão, deve ou supor que o mundo existe por ne cessidade e, em função dessa mesma necessidade, obedece às leis propostas; ou, se a ordem da natureza tiver sido estabe lecida pela vontade de Deus, que ele, um miserável réptil, é capaz de disc ern ir o que era m ais apropriad o para ser f eito ’ ’. A prim eira arrem etida é dirigi da con tra os gregos, a segunda contra Descartes .
Newton nunca defendeu o seu sistema com o mesmo ardor com que Descartes propugnava pela sua filosofia. Não
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considerava a gravitação como sendo a causa un iver sal na fí sica. N ão obstan te, os seus discípulo s dem onstraram possuir uma tendência indevida para a generalização e para tornar absolutos não apenas os resultados que obteve, mas também suas incertas conjecturas. O poeta Cowley chamava Bacon de o Moisés que mostrou a Terra Prometida, e Newton de o Josué que entrou nela. Até o Papa declarou que, em New ton, “ tud o era lu z” . No entant o, o própr io Newton mos trou mais modéstia quando, na velhice, reconheceu as limi tações parecer do seu ao en mundo, tend im ento , afirmando: “ Nã oque sei fui o que posso mas, para mim , acho ape nas um garoto br incando na praia e divertindo-me em desco brir, aqui e ali, algum seixo mais liso ou uma concha mais bonita, enquanto, diante de m im , estendia-se, incógnito, o grande oceano da verd ade ’ ’. Talvez não pareç a tão estranh o, no fi nal das con tas, que os adeptos da nova filosofia experimental ou mecanicista considerassem a si mesmos como virtuosos cristãos, e isso a despeito do fato de serem protagonistas, seguindo na esteira de Bacon, de uma cisão entre a ciência e a teologia. Os de fensores da antiga filosofia escolástica os acusavam de sola par a religião e de introduzir princípios materialistas em substituição aos princípios aprovados e mais espirituais de Forma, essência, Idéia e propósito. Os virtuosos, ao contrá rio, aachavam secularização da ciência a cristíanizava, um vez que elque es aa haviam liber tado da autoridade te rren a de teólogos e filósofos e do jugo opressivo dos seus antigos ído los, chamados Formas e Idéias. Isso aconteceu porque eles seguiam obedientemente o Livro das Criaturas, escrito, con forme sua firme crença, pelo próprio Deus. Quando subli nhavam a contingência da natureza e o caráter sempre inaca bado da ciência natural, estavam externando conceitos bíbli
cos. Embora sem extrair dados científicos das Sagradas Es crituras, eles estavam convencidos de que a Bíblia havia tor
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nado sua ciência verdadeiramente livre. Boyle expressa esse ponto de vista quando afirma: “ As verdades reveladas, se representarem um peso para a razão, são como se fossem, para um gavião, o peso das penas que, ao invés de estorva rem seu vôo, lhe permitem elevar-se até os céus e desfrutar de horizontes mais amplos do que seria capaz se não tivesse penas ’ *.
d) Retrosp ecto Recapitulando tudo o que foi exposto, podemos ver que a controvérsia na ciência teve como conseqüência a vitória do em pirism o rac ional sobre o racionalismo, e que o primeiro encontrou apoio na teologia voluntarista. O empirismo racionalista reconheceu que o homem, sendo a imagem de Deus, estava apto a descobrir uma certa ordem na natureza, mas que tinha também de aceitar a realidade, mesmo quando esta não lhe parecesse racional. A diferença entre os pontos de vista representados, de um lado, por Descartes, e, do ou tro, por Newton, foi sucintamente exposta por Fontenelle (secretário da Académie des Sciences') quando afirmou que o primeiro com eçou daquilo que entendia claramente a fim de descobrir a s causas d o que via, enq uan to o segu ndo começou do que via a fim de descobrir-lhe as causas, claras ou obs curas. M uitos p rotagonistas d a ciênci a mo derna reconhec eram o paralelo en tre suas concepções reli giosas e c ientífico-m eto dológi cas. Francis Bacon repo rtou-se a isso ao salientar que , para chegar a uma ciência verdadeiramente confiável, é ne cessário primeiro que sejamos como criancinhas. Sprat afir mou a mesma coisa, quando sugeriu como características
com uns a um crist ão e a um cientist a o fato de ambos terem uma certa desconfiança de seus próprios pensamentos; e, no
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século XIX, até mesmo o agnóstico T. H. Huxley apoiou esse ponto de vista, dizendo: “ Para mim , a ciênci a parece ensinar, da forma mais sublime e enfática, a grande verdade que est á cor pori ficada na concepção cristã de inte ira subm is são à vontade de Deus: ‘Perante o fato, mantenha a atitude de uma criança, esteja pronto a abandonar toda e qualquer noção preconcebida, siga humildemente em direção a qual quer abismo a que a natureza o conduza, ou não aprenderá nada’
(28) T . H . Hux ley para Ch. K ingsley, 23 de set ., 186 0.
3. Natureza e arte
A) O CONTR ASTE ENTRE ARTE
E NA TU RE ZA
a) Supremacia de physisío# /^ téchn é Techné (arte), em seu sentido srcinal, abrangia tan to a elaboração de leis como a habilidade de medir e contar; in cluía desde as belas-artes até a fabricação do pão. Não obs tante, concentraremos nossa atenção sobre a tecnologia em seu sentido moderno, considerada como uma ciência apli cada da natureza, como a obtenção do domínio sobre a natu reza, a fim de colocá-la a serviço do homem. Sobre esse as pecto, nossos ancestrais se defrontaram com três problemas. Está o artífice apto a fazer o que a natureza faz? É permitido ao artífice tentar fazer o que a natureza faz? Finalmente, deve a arte ser deixada aos artífices, ou devem os eruditos ocupar-se também com esse assunto? Em outras palavras, a questão é saber se o filósofo da natureza conseguiria, deveria ou poderi a im itar e dominar a natureza.
De início, epbysis e techné dizia respeito principalm enteo àproblema ética e dà lei. Para alguns filósofos gregos,
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a natureza representava nada mais do que os elementos mo vidos pela necessidade cega (ananke) ou pelo acaso ( tycbe ). Sobrepunham essa necessidade da natureza à lei e à religião, que consi deravam como send o meras instit uições arbitrárias, dependentes dos caprichos humanos e variáveis no tempo e no espaço. Eram “ arte s” , que se opunham à natureza e, como tal , era m inferiores a ela. Platão, em vigoroso protesto contra essas concepções ímpias, inverteu a ordem, ensinando que a lei ( nomos ) e a arte (techné) são a verdadeira natureza e que são elas a ori gem de todas as coisas. Assim, o mundo visível é um pro duto da arte da alma do mundo, que dirige os elementos mudos, os quais, por conseguinte, estão sujeitos à arte e ao lógos não se con stituindo em natu reza , n o sentido próprio. A ênfase na concepção da Natureza como um artífice foi desviada, por outros filósofos idealistas, como Aristóteles e Galeno, da lei política e moral para a física. Comparavam o lôgos do mundo a um artífice, um arquiteto, um cozinheiro, um oleiro, um carpinteiro; isto é, acreditavam que a Natu reza executa um plano. No entanto, essa supremacia da arte não significava que a arte humana pudesse ser superior à da Natu reza. Ao contrário , muito embora a imagem do artífice tivesse sido inspirada na do artífice humano, eles, na ver dade, consideravam este último como sendo apenas um pá lido reflexo do Grande A rtífice, a Na tureza. “ A A rte imita a N atu re za ,” As a rtes hum anas, d izia Aristót eles, “ o&, tendo como base a Natureza, levam as coisas a um ponto além do que a Natureza poderia fazer” (como na agricul tura), ‘ ‘ou im itam a N at ure za” 2(como na fiação). Ess a idéia
,J
(1) Platão, Leis, 892 a.C, O tópico desta conferência também foi abordado em “ La Nature et 1 ’ar t” , em: Revista Fac. de Ciências da Univ. de Coimbra, 39 (1967),
p p . 1-26. (2) Aristóteles,
Física, ii. 8 , 199a.
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de que as artes se srcinaram de uma imitação da Natureza foi um tema popular entre os poetas e filósofos da Antigui dade. Demócrito dizia que a aranha nos ensinou a fiar e a te cer, e a an do rinh a, a arte de co nstr uir, Lucrécio achava que a arte de cozinhar tinha sido inspirada pelo Sol, enquanto, se gundo Vitrúvio, a observação da rotação dos céus levou â construçã o das máquinas. A antiga no ção de Natu reza , especial mente a de A ristó teles, tinha um aspecto tanto racionalista como vitalista.3 Somente o prim eiro guar dava alguma semelhança com a ati vidade dos artífices, pois tanto o artífice como a Natureza trabalhavam em conformidade com um lógos e com um plano. No entanto, no que concerne ao últim o aspecto, as coisas naturais somente detêm seu princípio de movimento e crescimento no sentido da obtenção da plenitude de seu ser ou Forma dentro delas próprias, ao passo que as coisas arti ficiais recebem sua forma e seus movimentos de alguma causa externa. Isto é, as coisas naturais surgem através da geração por intermédio de uma coisa semelhante; as coisas artificiais, por fabricação. Cícero falou por todos os antigos quando disse que nenhuma arte, nenhuma mão, nenhum artífice poderia equiparar-se à habilidade da Natureza, por imitação.4
b) A ilegitimidade da competição com a Natureza A idéia de que é impossível competir com a Natureza através d a arte f oi, antes de tud o, um tem a de dis cussão para os filósofos, ao passo que os teólogos e os poetas defendiam o ponto de vista de que tal competição é, de fato, ilícita. A rgu
(3) Ve r Cap. 1, p. 29. (4) Cícero, De Natu ra D eorum , i. 33.
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mentavam que, se a Natureza é divina, o homem estaria invocando para si mesm o prerrogati vas divi nas, ao pre tend er fazer o seu traba lho. Ta l ato implicaria a vi olação dos limites de um reino que a Natureza (ou o destino, ou um deus) havia reservado para si, e seria uma infringência ao moira , a eterna ordem do mundo. A penalidade pela intrusão nesse reino é a vingança divina. Prometeu, que roubou o fogo dos deuses, foi devidamente punido pelo Senhor dos Céus; Salmoneu, “ o auda cioso e ím pio” , como Vir gílio o chamava, que ten tara im itar o trovão e o ‘ ‘inimitável relâm pag o” , foi atingido pelos raios do “ Pai Todo -Poderoso” . O artificial era considerado inferior ao natural, mesmo de um ponto de vista moral. Isso foi enfatizado em histórias sobre a Idade de Ouro, quando o homem ainda vivia sobria mente e, como diria Sêneca, sem arquitetos, carpinteiros e tecelões, ou, como Lucrécio pensava, até mesmo sem agri cultura, e quando todos eram sadios e felizes.
c) A influ ênc ia da separação de arte e Na tur eza na mecânica e na química O efeito desse antagonismo entre arte e Natureza foi sentido espec ialmen te nos campos da química e da mecâ nica. Em química, qualquer esforço no sentido de produzir algo equivalente a um produto natural era considerado como es tando fadado previamente ao fracasso, uma vez que o ho mem s ó p o d ia ^ /w o homem, emb ora pu desse, na mel hor das hipóte ses, fabricar outra s cois as, dando-lhes Formas arti ficiais. A mecânica também podia ser entendida como uma ação contra a Natureza — por exemplo, quando cargas pesa das eram levantadas por pequenas forças. As palavras me-
chane e machina significavam instrumento, mas também eram usadas no sentido de artifício. Pappus (século III) es
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creveu que os mecânicos que se ocupavam com a pneumá tica e com os autômatos eram chamados de fazedores de mi lagres ithaumatourgot ). Aparentemente, a mecânica ia con tra a Natureza, tentando ludibriá-la; considerava-se, por tanto, que essa ciência devia estar relacionada com a magia, que é o esforço para subjugar a Natureza. O mais antigo manuscrito alquímico conhecido mostra desenhos de apare lhagem de destilação, acompanhados de fórmulas de invoca ção dos corpos celestiais e da serpente, que simboliza o ciclo da Natureza. A antiga concepção da relação entre Natureza e arte sobreviveu até a Idade Média. Nessa época, somente os alquimistas pretenderam ir além e transformar uma espécie, chumbo, em outra, ouro. Jean de Meung escreveu que a “ alquimia é a verda deir a arte ... que faz ouro da pra ta ” . O arg um en to c on tra es sa idéia de arte era o de que tudo o que é capaz de gerar gera algo semelhante a si mesmo — a Forma, essência ou alma do chumbo não pode produzir a Forma do ouro; um asno não dá srcem a um cavalo. Assim, o que a N atu reza não pode fazer estaria além do que a arte pode rea lizar. Não obstante, o reino absoluto das Form as eternas foi diretamente atacado pelo Bispo Tempier, quando ele conde nou a tese de que Deus não pod ia cri ar novas F orm as.5 Um posterior enfraquecim rigidez dado doutrina das Formas foi motivado pela crençaento dos da nominalistas século XIV de que as espécies — assim como as Formas que as determinam — não passam de abstrações, designações dadas a grupos de indivíduos semelhantes, que são as únicas coisas dotadas de uma existência real e concreta. Por conseguinte, a distinção entre Formas natura is e artificiais tornou-se menos relevante.
(5) Cf. Cap.2,p. 53.
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Essa tendência antiarist otélica tornou-se ainda mais pa tente na doutri na das “ latitude s” . Segundo o nominali sta Heinrich vonmesmos Langenstein, outras proporções outros trata For mentos dos ma teriai s podi am dar orie gem a novas mas. Ele esperava que Deus continuasse criando novas espé cies no futuro, e afirmava que se Deus não estava sujeito a Formas eternas preexistentes, poder-se-ia dizer o mesmo com re lação à Sua imag em , o hom em . O problema , porém , é que existe uma infinidade de proporções e uma infinidade de tratamentos possíveis, de tal forma que seria virtualmente impos sível enc on trar a combinaç ão necessári a para produ zir, por exemplo, o ouro. Embora, na prática, isso fosse quase impossível, era concebível, em princípio, que uma subs tânci a “ natu ra l” pude sse ser feita por um proc esso arti fi cial. Naturalmente, a teoria atômica, que rejeitava inteira mente as Formas substanciais, podia levar a essas mesmas conclusões, como alguns nom inalist as — D ’Oresm e, por exemplo claramente recon . linha de raci ocíni o. Os al— quimistas segui ram hec um eram a o utra Alegavam que sua imitação da Natureza era perfeita, e que seu ouro artificial não podia ser distinguido do natural. De uma maneira geral, não pretendiam que sua fabricação pela arte s e equiparasse à ger ação pela Natu rez a, mas se refer iam ante s ao ou tro procedimento d a art e, mencionado por A ris tóteles.6Os processos artificiais dos alquimistas destinavamse tão-somente a auxiliar e apoiar a Natureza na realização plena do objetivo, já parcialm ente atingido, de chegar â For ma perf eita. O process o que a Na ture za g eralm ente leva mil anos para realiza r a arte ten tava acelerar, p ara que a sua re ali zação final pudesse ser atingida em poucas sema nas. Isso im plicava que não havia nenhum a transmutação real das For
(6) Cf. acima, p. 78.
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mas; o chum bo era ti do como sen do um a variedade imperfeita do metal que manif estava sua Forma per feit a como ouro. A l guns alquimistas, inclusive Geber, no século XIII, foram ainda mais longe e mostraram uma tendência a se aproximar da teoria corpuscu lar da matéria. Geber audaciosamente afir mou que a diferença entre o ouro e o chumbo é acidental; a transm utaçã o do último no p rimeiro consis te em muda r as proporções dos elementos e eliminar as im purezas. Chegou mesmo a declarar que as espécies da Natureza nem sempre eram fixas, e que, quando um verme se transforma numa mosca, há uma transmutação de espécies. Por que então seria demasiada presunção tentar ajudar a Natureza a trans forma r chumbo em ou ro ?7 Os nom inalista s desafiaram não ape nas o pretenso m on o pólio da produção de Form as como também outras prerroga tivas da Natureza. A distinção essencial entre movimentos naturais e forçados foi eliminada, aplicando-se a mesma teo riatura do l,impulso á queda àdos corpos,dos quecorpos é um, movimento na como também projeção que é um mo vimento não-natural; até mesmo a rotação de uma pedra de moinho passou a ser tratada de maneira análoga à rotação dos céus.
d ) Paracelso Teo frasto P aracel so (1 493-1541), em particula r, co nt ri buiu de maneira decisiva para eliminar a fronteira entre arte e Natureza. Salientou que todos os procedimentos artificiais estão baseados e m processos na tur ais, enfatizando, dessa for ma, o enfoque segundo o qual a arte aperfeiçoa e auxilia a
(7) Geber, Summaperfectionismagisterii
, lib. I, pars 2, c. II.
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Natu reza. Fundamentou seus exemplos não apenas na agri cultura, como também no trabalho de artesãos como padei ros, carpinteiros e sapateiros. Mas Paracelso escolheu o alquimista como seu modelo principal. Aqui, provavelmente pela primeira vez, um acadêmico ficou do lado daqueles que, aos olhos do s filósofos escolásticos, estavam ten tan do fazer o que não podia ser feito, o que não devia ser feito, e, ainda mais, aquilo que estava abaixo da dignidade do verdadeiro sábio intentar fazer. Os próprios alquimistas, a despeito de de todas essas objeções, tinham sempre afirmado que sua “ arte ” era também uma “ ciên cia” , um a filosofia. O rgu lhosos e desafiantes, denom inavam -se a si mesm os de “ filó sofos pelo fogo ” . Paracelso apoiou-os afi rman do que o fogo, seja ele usado no trabalho de destilação, forja ou cozedura, era o meio suprem o util izado tanto pela Na ture za como pel a arte pa ra aperfeiçoa r as suas obras.
e) A superação da Natur ez a pela ar te A crença geral na Idade Média era de que os feitos da Natu reza só poderiam ser ultrapassados pela mágica. No en tanto , Roger Bacon, que viveu no sécul o X III, salientou que muitas cois as apa rente mente impossíve is são passí veis de se rem realizadas pelos artífices, embora aqueles que sabem como essas coisas são feitas admitam que os efeitos são ob tidos colocando-se as forças da Natureza a serviço do ho mem. Bacon achava que essa mágica natural era perfeita mente legítima, mas, mesmo assim, foi considerado feiti ceiro, já que qu alqu er esforço por parte do hom em para ig ua lar ou superar a Natureza era tido como ímpio. Por outro lado, Bacon declarou audaciosam ente que era poss ível ao ho
mem fazerend umos am que e trovões e relâmpagos mais trem doistu queraos dasproduziss forças natu rais. Especialm ente
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dur ante*a Renas cença , essa “ mági ca natu ra l” preparou o caminho para o rápido desenvolvimento dos experimentos científicos do século XVII; a palavra experimentum abran gia tanto a prática de sortilégios como a experimentação científica.
B) A ABOLIÇÃO DO C ON TR ASTE ENTR E NA TUR EZA E ART E
a) A transição da concepção organicista para a mec anic ista O início do século XVII marcou uma reviravolta na apreci ação da arte em comparação c om a na ture za. Mesm o o muito conservador jesuíta espanhol Martin dei Rio (1599), que via magia d iabólica em cada esquina, mostro u um a certa boa vontade com relação â química. Naturalm ente, conside rava esta arte como uma extensão ou um apoio da natureza, mas reco nhe ceu a possibilidade de transm uta ção de espécies, um a vez que, segundo el e, isso também ocorre na natu reza.8 No entanto, não se mostrou disposto a dar o passo seguinte, e con tinu ou a sus ten tar que substâncias produzidas p ela arte, e que não ocorriam na natureza, não podiam ser produtos da “ N atu re za ” . Aq ui o precon ceito es colástico impe diu -o de fazer maiores progressos. Um abandono mais completo da distinção entre arte e natureza só pôde aparecer com o triunfo da concepção meca nicista do mund o. N a concepção grega, a arte exercitada pela Natureza era uma auto-reprodução inim itável e não-cons-
(8) qu. I, sec. 3.
M artin us dei Rio, S. J. , Disquisitionum magicarum lib. VI, Lib. I, c. 5,
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ciente, adstrit a às suas Formas eternas im anen tes. Po r outro lado, na concepção cristã, segundo a colocação de Thomas Browne, natureza é aprecisamente arte de Deus,doe mesmo esta artemodo de Deus se reflete naaarte humana como a vontade absolutamente livre de Deus se projeta na vontade relativamente livre d o hom em . De acordo com o autor francês Henri de Monantheuil (1599), Deus é um mecânico e a sua obra é um mecanismo: “ O mundo é uma máquina; é o instrum ento mais be lo e mai s signi ficat ivo ” . Argum enta que o homem é um mecâ nico porque é a imagem de Deus; por outro lado, o homem sabe que Deus é um mecânico, porque ele próprio o é. A grande diferença é que Deus não necessitou de nenhum ins trumento, já que Ele criou Sua obra por um ato de vontade.9 Não é fácil abandonar a visão organicista do mundo e aceitar a versão m ecanicista. William Gilbert (1600) julga va que seria uma degradação do mundo negar-lhe uma alma, um vez que se a Ter ra g erava seres vivos , ela espécie própria dedevia ser adotada de ,vida; se mesmo os vermes têm uma alma, a Terra também a teria. Considerar Deus um mecâ nico, e o mundo um mecanismo, parecia-lhe injurioso para ambos. Kepler teve a maior dificuldade em mudar de um ponto de vist a par a o ou tro. Em 1597, m antin ha um a posi ção orga nicista; em 1605, argumentava que a máquina do mundo não podia ser explicada segundo o modelo de um animal di vino, mas segundo o de um relógio. Em 1619, retornou ao antigo ponto de vista de um mundo animado, sustentando que existem almas planetárias e que a Terra é um ser vivo que respira. Em 1621, retomou a antiga concepção mecani(9)
He nricus M onantholius,
Arisiote lts Mechan ica ... commentariis M us trata,
Parisiis, 1599, Epist. dedic. e I r; Praeí. ad lect. i III v. Cf. R. Hooykaas, Das Verhàltnis vo n P by ük und M echanik in his tor ischer Hinsicht, Wiesbaden, 1963, pp. 11-16.
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cista, a qual, na história de sua vida, parece estar associada a esforços constantes no sentido de criar modelos mecânicos do mundo . No entanto, Gilbert e Kepler eram típicas figuras de transição; o inovador filosófico mais radical, Isaac Beeck man, re jeitou, como desti tuídos de valor, to dos os argu m en tos de Copérnico, Gilbert e Kepler que apelavam para a be leza, a dignidade e a simplicidade do universo. A idéia de uma Te rra animada par ecia-lhe “ ind igna de um cienti sta na tur al ” .
b) A defesa de Fr ancis Bacon do poder da arte Se o homem foi feito à imagem de Deus, é razoável que se possa esperar ser ele capaz, ao menos, de fazer algumas das coisas que Deus fez. Enquanto os gregos achavam que dominar a Natureza era tentar o impossível, já que até mesmo os deuses eram obrigados a respeitar a lei da necessi dade, o s autores bíbl icos a credit avam que D eus conferira u ma parcela do Seu divino poder de comando â mais sublime de Suas cria tura s. Po r con seg uinte , a nítida linha divis ória en tre o natural e o artificial tornou-se imprecisa, em razão da in fluên cia dos ensinam ento s bíbli cos. Essa talvez, ética aindadas mai s evidente na pela medida em que elainfluência inverte a é, avaliação tentativas feitas techné hum an a no s entido de dom inar a natu reza . Os greg os viam como uma impiedade (hjtbtis) ou, pelo menos, como uma audácia, qualquer esforço para competir com a Natu reza, na criação de seus produtos; ao contrário, na visão bí blica, é assegurado ao homem o domínio sobre as outras criaturas. Por outro lado, enquanto para os gregos não era
nenhuma hybris pens ar que o hom em pod ia ter um en tend i
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mento global das obras de Deus, para os autores bíblicos tal idéia era a ltamen te presunçosa. A esse respeito, é importante lembrar que Francis Ba con (1561-1626), o arauto da ciência moderna, defendeu a nova pos tura sobre a techné , mesmo antes do triunfo da filo sofia mecanic ista. A s duas col unas de Hé rcu les, os símbolos do antigo non ultra (não além), significavam para ele a superestimação da antiga ciência e a subesümação da possibili dade de ultrapassá-la, No frontispício do seu Great Instauration (1620) está estampado o desenho de um navio passando por entre inscriçãoaosplus (mais além). Comessas efeito,colunas, imitandocom o quea acontece céus,ultra os ho mens tinham circunavegado a Terra, e, ao invés de se referir ao “ inimitável relâmpago” dos antigos , os modernos p ode riam falar do “ ímitável relâm pago ” .10 Esses dois exe mplos foram dado s por Bacon para dem on strar que o hom em é capaz de com petir tan to com a na ture za celest ial como com a te rre s tre. As descobertas, acentuou Bacon, são, por assim dizer, novas criações e imitações das obras de Deu s, Em sua opinião, o domínio do homem sobre as coisas depende inteiramente das artes e das ciências; o homem não deveria mais partilhar com Aristótele s da desesperança d e que o poder da arte possa competir com a natureza; não havia mais razão para pensar que o fogo artificial não pudesse fazer as mesmas coisas que o Sol, ou que o ho mem só pudess e fazer m istu ras , e não ve rda deiros compostos. Bacon vigorosamente a da opinião d e Aristó tel es de também que a arterejeitou pode ser apenas a serva Natureza e ajudá-la a concluir o que ela havia iniciado. Sus tentava , ao con trário de Aristóteles, que o hom em podi a diri gir os mo vim entos dos corpos de tal sorte q ue, tendo com o base
(10)
Francis Baco n, De dignitate et augmentis scientiarum (1623), lib. II, c. 10.
Redargutio philoso pbiaru m (escrito em 1606 ou 1607).
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a natureza, a arte tinha condições de fazer as mesmas coisas que a natureza realizava sem nenhum auxílio. A diferença entre a ajuda artificial à natureza de Aristóteles e de Bacon era, evidentemente, que, para Aristóteles, o homem ajuda o impulso imanente da Natureza para sobrepujar tanto as difi culdades externas como as suas próprias fraquezas, ao passo que Bacon a rgu men tav a que as forças e as coisas natu rais são simplesmente dirigidas de acordo com um plano humano. Segundo a concepção aristotélica, a Natureza só pode ser ajudada a cumprir seus próprios desígnios, enquanto Francis Bacon Homem.quer usar a natureza para cumprir os desígnios do Com Baco n, as potencia lidades da arte foram ampliadas, em razã o da idéi a da ger ação t er sido abando nada em favor da de fabricação de coisas naturais. Negou a existência de qual quer distinção essencial entre movimentos naturais e artifi ciais na mecânica, ou entre produção natural e artificial (ou entre geração e fabricação) na química. Dessa forma, a his tória (descrição) das artes mecânicas tornou-se, para ele, uma parte da história da natureza e podia mesmo ser deno minada “ Hist ória d a Natureza, trab alhada o u m ecâni ca” .11 Assim, não havia, na verdade, nenhuma contradição entre a ênfase de Bacon no domínio do homem sobre a natureza e sua afi rmação de qu e o hom em deve seguir obed ientem ente a na turez a; pois “ a natu reza não p ode ser comandada s e não for obed ecida” . Adas basepotenciali da argum entaçã era a zade-— que impossíve l ir além dades da onature masé essas potencialidades são muito maiores do que seria de se esperar se a na ture za fosse deixada por sua própria conta. No entanto, para que possa ter sucesso, a interferência humana na natureza tem de estar em conformidade com as leis fun
(11) Bacon, De augm entis , II, c. 2.
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damentais dela; tem de estar fundamentada, portanto, num conh ecim ento seguro da natu reza . “ E, assi m, es sas duas entidades gêmeas, o conhecimento humano e o poder hu mano, convergem realmente para uma só; e é da ignorância das causas que advém o fracasso da op eraç ão .’ ’12 A rejeição de uma diferença essencial entre formas na turais e artificiais levou Bacon a prever grandes feitos da tec nologia hum ana. Em seu Nova Atlântida , afirmou que com postos naturais poderiam ser feitos artificialm ente, e que no vos metais poderiam ser produzidos; seria poss ível que espé cies botânicas que novas mudanças espécies animais fossemsofressem geradas, transmutação, que fossem provocadas artificiais nos climas, e tudo isso “ não po r acaso , m as em virt ude d o conhecim ento, d e acordo com um p lano ” .
c) A síntese artificial dos comp ostos naturais E notá vel que , precisam ente na épo ca em que Bacon fez essas previsões, alguns com postos natu rais tive ssem , de fato, sido feitos por processos artificiais. Angelo Sala demons trou, em 1617, a identidade de alguns compostos naturais e artif iciai s.13 N a opiniã o dos ari stotéli cos, os compostos arti ficiais não passavam de falsos compostos; não tinham uni dade, e não eram mais do que justaposições das partículas dos sem umaeram “ Form a” próprcomo ia. Por outr o lado,componentes, os compostos naturais considerados sendo perfeitamente homogêneos, e como tendo sua própria natu reza e Forma. Mas, à medida que aumentaram as possibili
(12) Bacon, N o vu m Q rg anum , I, af. 3; Instauratio magna, distributio operis; N ovum Org anum, I, af. 129.
(13) HAngelo Sala,E le mAnato m ia viirioli “ Bre vis dem ons trado ” . Cf. R. et Begrip en t , Utrecht, Hooykaas, 1933,(1617. pp. 148-157.
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dades de sintetização de compostos naturais, a distinção entre produtos da arte e da natureza tornou-se cada vez me nos significativa, e a interpretação mecanicista dos compos tos químicos aumentou progressivamente o seu campo de aplicação. P or co nse gu inte, a química, por sua própria con ta, sem o auxíl io da filosofia, ab andonou grad ativam ente as Fo r mas substanciais. Naturalmente, a oposição teórica entre a “ filosofia mecan icista” e a doutrina da s Formas sub stan ciais foi uma aliada bem-vinda. Boyle, por exemplo, usou ambos os métodos, o da experimentação e o da crítica racio nal da filosofia grega, para apoiar um utr o. A concepção organicista do mundo mal admitia que no os ocompostos natu rais pudessem ser feitos pela arte, ao passo que a filosofia mecanicista, segundo a qual a geração é, de fato, uma espé cie de fabricação, era quase um convite para que se con cluísse que a arte ( mechane ) fosse considerada como sendo capaz de fazer, pelo menos, algumas das coisas que a natu reza produz.
d) Meca nicism o e tecnologia Como seria de se esperar, a partir de então, ao invés da ênfase exagerada na incapacidade do homem de competir com a natureza, multiplicaram-se os argumentos em favor da capaciedade da arte hueram man a.meros P ara De scarte s, até mesmo plantas os animais mecanismos: “ Não as há absolutamente nenhuma diferença entre as máquinas que os artífices constroem e os corpos que a natureza faz por sua própria conta; todas as regras válidas para a mecânica tam bém o são para a física, de tal forma que as coisas naturais são também artificiais. Ê tão natural para um relógio indicar as horas por intermédio dos seus mecanismos, como o é para
uma ár vor e produzir fru tos ” . A analogia entre organi smo e
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mecanismo transformou-se aqui em identidade. Por outro lado, Descartes supunha que os animais e as plantas eram máquinas tão complicadas que o homem jamais teria condi ções de constru í-las. Monantholius tinha asseverado (em 1599) que o meca nismo do mundo é mais perfeito do que as máquinas feitas pelo homem, já que o próprio A utor que o havia criado é mais perfeito do que o homem. Não obstante, a nova con cepção aboliu a distinção absoluta e essencial entre os pro dutos da natureza e da arte; de acordo com Robert Hooke, a diferença em engenhosidade é imensa, mas, para ele, isso não implica que seja uma diferença essencial. De qualquer sorte, enquan to anteriorm ente “ me cânica” significava “ matem ática aplicada’ ’ e se constituía num a arte m anual, e a física era uma filosofia contemplativa sobre a essência (na tureza, physis) das coisas, a partir de então a mecânica es tava destinada a ser a parte mais importante da física experi mental, já que ela proporcionava tanto as manipulações como a base teórica. A mecanização d a concepção do mu ndo aboliu a oposição entre natureza e arte.
C) O DO M ÍNIO DO HO M EM SOBRE A NA TU RE ZA
a) A religião em fa vo r do direit o e do dever de dom inara natur eza A concepção bíblica a respeito da natureza libertou o homem dos grilhões naturalistas da religiosidade e da filoso fia gregas, e proporcionou um beneplácito religioso para o desenvolvimento da tecnologia — isto é, para o domínio da
natureza pela arte humana. Embora a visão mecanicista do
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mundo não esteja contida na Bíblia, ainda assim ela tem em comum com o conceito bíblico o fato de implicar um desendeusamento da natureza. Isso afastou os obstáculos resultan tes de sua deificação pelos antigos, e tornou possível aceitar que o homem não apenas poderia competir com a natureza ou mesmo sobrepujá-la, mas que deveria assim proceder, já que agora não subsist ia nen hu m a proibiç ão, e o c aráter sacro e numinoso da natureza havia desaparecido. O homem pode não ser capaz d e descobrir todas as obras de De us, porém foilhe outorgada a difícil tar efa d e tenta r consegu i-lo,14 ju nta mente com o direit o e o dever d e dominar a natureza . Num a época em que, como nos séculos XVI e XVII, a aprovação religiosa se fazia indisp ensáv el para que qu alq uer coisa vies se a florescer, a ciência e a tecnologia se beneficiaram grande men te com essa mu dan ça de visão. Francis Bacon percebeu claramente que a adoração da na turez a pelo hom em era um grand e empecil ho ao seu dom í nio sobre as criatura s inf eriores : “ Muitos consideraram não apenas impossível, como também um tanto ímpio, tentar abolir os limites que a natureza parece ter imposto às suas ob ras ” . N a opinião d e Bacon, Deus f ez-nos seu s colabora do res e nos ordenou que investigássemos Suas obras. Julgava mesmo que Deus havia preordenado a coincidência das des cobertas geográficas (o novo globo material ) com o início de uma nova ciência (o globo intelectual ), segundo as palavras do profeta Daniel: “ M uitos irã o de um lado para outro , e o conh eci mento será aum entado” . De acordo com Bacon, existem duas fontes de erro teo lógico: a de ignorar a vontade de Deus, revelada nas Escri turas, e a de ignorar o poder de Deus, revelado ou tornado visível em Suas cria tura s.15 Nã o devemos, com receio de que
(14) Fr. Ecclesiastes (15) Bacon, 1: The12-13. Advancement o/Learning
(1605), Livro I.
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A RELIG IÃO
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O DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA MODERNA
a investig ação científica poss a levar a um a falta de rev erên cia para com a revelação de Deus, cair no erro oposto de pensar “ que a invest igaçã o de qu alquer parte da n aturez a deva ser pro ibida” . É errado transferir a proibição contra uma pene tração demasiado curiosa nos mistérios da essência de Deus para a investigação dos mistérios da natureza, já que em ne nhum lugar nas Escrituras isso está proibido; muito pelo contrário, salientou Bacon, isso foi até encorajado. Em sua opinião, a primeira Queda não foi uma conseqüência do de sejo demasiado grande de conhecimento da natureza; foi uma conseqüência de o homem querer estabelecer a lei do bem e do mal, em vez de seguir a revelação da vontade de Deus. Deus deixou ao homem o domínio sobre a natureza, mas iss o foi perdido em raz ão de um a segu nda Qu eda, ‘ ‘por que novamente quisemos ser iguais a Deus e seguir os dita mes de nossa pró pria ra zão ’ *. Aq ui há novamente um notável contraste entre a anti ga e a nova atitudes. Na Antiguidade e na Idade Média, uma conf iança e xagera da na ca pacidade hum ana de com preender a natureza fazia se acompanhar de um sentimento de deses pero pela fraqueza do poder do homem sobre a natureza. Nos séculos XVI e XVII, ao contrário, a nova humildade de postura no que concerne à profundidade do conhecim ento científico cresceu lado a lado com um otimismo quase ilimi tado em re lação ás possibilidades tecnoló gicas. K epler achava que tão logo a arte de voar fosse inventada, uma colônia de homens seria estabelecida na Lua. John Wilkins lembrava a seus leitores que os antigos julgaram o primeiro homem que se aventurou no mar como possuidor de extrema audácia, e prossegue afirmando: “ agora, como isso é fácil mesm o para uma nature za ti morata e covarde” . Acrescen ta aind a qu e, ‘ ‘indubitavelmente, algum tipo de transporte para a Lua não
pode parecerpara maisos incrível do que a navegação transoceânica antigos, epara que, nós por conseguinte, não
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há nenhuma razão de nos sentirmos desencorajados em nossa esp era nça de alca nçar um sucesso s em elha nte ’ *,16
b) A pesquisa científ ica com o um deve r de caridade Bacon temia que a nova ciência pudesse dar lugar a um novo hybris e a uma nova queda, se ela não crescesse lado a lado com a caridade, pois *‘o saber ensoberbece, mas o amor edif ica”ao;1reinado 7 para eldee, Deus. o reinado do ciência hom emsignifica está intiomam ente ligado A nova resta belecimento de nosso domínio sobre a natureza, que havía mos perdido em nossa segunda queda; significa uma purifi cação do intelecto de todo o seu orgulho e de suas falsas con cepções; é uma aceitação humilde do que nos foi dado na natu reza, “ pois a entrada no Re ino do Hom em , ali cerçado sobre as ciências, não difere muito da entrada no Reino dos Céus, onde ninguém pode entrar, a não ser que seja como uma crian cinh a” . Po rtan to, o divórcio de Ba con entre ciên cia e teologia não era o divórcio entre ciência e religião . Ao contrário, a essência de seu profético anúncio do Reino do Hom em era a sua fé no R eino d e Deus. Na época de Bacon, a humanidade vivia num medo constante dos poderes da natureza. Embora, segundo a teo ria cristã, a natureza não tivesse poder divino, ela o havia conservado, na prática e na crença geral. Inundações, secas, fome, doenças e pestes assolavam o homem como irresistí veis desastres naturais, e embora o índice de natalidade fosse elevad o, tamb ém o er a o índice d e mo rtalidade. No diário de Isaac Beeckman podemos ler como suas crianças morreram
(16) J. Wilkins, The D iscove ry of a N ew World (17) 1 Cor ínt io s 8: 1.
(1638), Livro I, prop. xiv.
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muito cedo, uma após outra; como uma epidemia da qual nunca houve registro dizimou um quarto da população de Do rdrecht, e como seusEle i rmãos sucum biram, diminuição um após outro, vítimas de tuberculose. anotou sua própria lenta de peso, até que o último apontamento no diário, feito por seu irmão mais jovem e único sobrevivente, registrou que Beeckman havia morrido também em conseqüência de tuberculose. A triste expres são us ada na cerimônia batismal da Igreja Refo rma da Ho lan desa — ‘ ‘esta vida não é mais do que uma morte contínua” — não era uma amostra do cará ter sombrio do calvinismo, como muitos hoje pensam, mas uma realidade daqueles tempos. Mesmo assim, alguns dos quadro s da Idade d e O uro da Ho landa, conser vadas nos m u seus, dão testemunho da fortaleza e do esplendor que preva leceram, a despeito da tristeza reinante. Durante este pe ríodo, o físico Willebrord Snel perdeu quatorze dos dezessete filhos de seus dois matrimônios; somente três deles conti nuav am Na vivosInglaterra, à época de osuateólogo m ort e, John e destes, dois (1616-1683) mo rrera m jovens. Owen perdeu dez dos seus onze filhos quando ainda eram bem pe quenos. O cientist a Conrad Gesne r, um amigo d e Bu llinger, morreu vítima da peste, em 1567, juntamente com cerca de 3 700 dos 6 000 habitantes de Zurique. A ciência médica, ao invés de melhorar a situação, muitas vezes a tornava pior, como no caso do Dr. Boate, o amigo de Boyle e Hartlieb, que morreu ‘ ‘ ao ser submetido a uma sangria por esses car niceiros comuns da humanidade” (Hartlieb, 1653). A hu manidade, portanto, vivia desprotegida, e não de forma tão idílica como alguns profetas pessimistas de nossa própria época gostariam de nos fazer acreditar. Francis Bacon tinha razão em ficar seriamente pertur bado com os perigos, as dores e os sacrifícios da vida contem
porânea. quão insignificantes haviam sidocomo os pro gressos daSalientou ciência médica desde o tempo dos gregos,
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era du ra a labuta para a grande maioria do s hom ens, e como lhes era difícil conseguir alimento e vestuário, apesar de to dos os seus orços. Fez r os clarinsdonaorgulho g ue rra co ntraigno os pecados da esf preguiça, da vibra desesperança, e da rância, e concitou os seus contem porâneos, por amor a Deus e ao próxim o, a reass um irem os direi tos que D eus lhes havia outorgado, e a restaura rem aque le domínio sobre a natureza que Deus lhes havia concedido. Não foi a paixão por inova ções filosóficas, mas a indignação moral, que inspirou sua cruzada con tra os esco lásticos. S ua antiga “ ciênc ia” não produzia frutos, não mitigava as dores da vida, porque sepa rava a arte da natureza e colocava as Formas além do alcance do homem. Mas, assim como, na opinião de Bacon, uma filosofia natural que se apegava a palavras e produzia frutos estava tão morta como uma fé sem obras, assim também deveria a ciência ser dirigida no sentido de beneficiar o ho mem , um a vez que, “ ainda que e u fale as línguas do s ho men e dos anjos, se nãootiver o bronze quea soa, sou co mo o címbal que am retior, ne”serei .18 como Seu ideal era um ciência a serviço do hom em , como um a conseqüência d o res tabelecimento d o domínio do homem sobr e a natureza . Para ele, isso não era um a obr a puram ente hu m an a, mas de inspi ração divina: “ O início vem de Deus ... o Pai da s Lu ze s” .19 Concluiu com uma oração o prefácio de sua Historia Naturalis: “ Pos sa De us, o Fundador, Preservador e Reno vado r do Universo, em Seu amor e compaixão pelos homens, pro teger a obra, tanto em sua ascensão para Sua glória, como em sua descida para o bem do Homem, através de Seu único Filho, o Deu s-co no sco ’ ’. Po r conseg uinte, a mode rna tecnol ogia, i sto é, um a tec nolog ia intim am ente relaci onada com a ciênci a, enc ontrou o
(18) 1 Coríntios 13: 1. Fr. Bacon, (19) Tiago, 1: 17.
The Ad vancem ent o f Lear ning, Livro I.
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A RELIGIÃO E O DESENVOLV IMENTO DA CIÊNCIA MODE RNA
seu mais eloqüente defensor num homem que a colocava numa base decididamente cristã, e é bastante compreensível que oso puritanos da Commonwealth, esperavam oestabe lecer Reino de Deus sobre a Terra, que considerassem Reino do Hom em como uma parte integran te do primeiro.
c ) O repúdio romântico a Francis Bacon Bacon era tido em alta conta pelos poetas do Iluminismo, mas, ao fim do século XVIII, alguns dos poetas ro mânticos se mostraram menos entusiastas. De acordo com William Blake, “ a filosofia de Bacon ar rui no u a In gla te rra ’ ’; “ ele é chamado o grande Bacon; eu porém o chamo de pe queno Bacon; a filosofia de Bacon destruiu a arte e a ciên ci a” . Em nossa própria épo ca, na da menos d o que uma p es soa do valor de C. S. Lew is20 form ulou um vigoroso pro test o contra tecnologia sua de opinião, a magia ea ciência aaplicada têmbaconiana. em comumEm o fato que ambas tentam submeter a realidade aos desejos do homem, numa situação em que a solução é técnica; a sabedoria de épocas anteriores, ao contrário, entendia como seu problema a necessidade de reconciliar a alma com a realidade, e a solução era conside rada como o conhecimento, a autodisciplina e a virtude. Por estranho que pareça, esse erudito, que era um cristão con victo, condenava o domínio humano sobre a natureza, por considerá-lo hybris , ao mesmo tempo em que elogiava a an tiga “ sabedoria” de conf ormaç ão com a natu reza, embora essa tenha sido uma sabedoria mais dos estóicos do que dos cristãos. Na opinião de Lewis, havia uma im pressionante seme
(20) C.S. Lewis,
The Aboliti on o fM an, No va Iorque, 1947.
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lhança entre Bacon, ‘ ‘o maior arauto da era moderna’ ’, e o Faust o de Marlowe, que d izia que “ um bom mágico é um deus p o dsile encioso r o s o e sque e‘todas qu e se entr e os pólos devem es tarasa coisas seu coman domo ” . vem O objetivo de Bacon era estender o poder do homem ao desempenho de toda s as coisas possíveis. No entanto, poder-se-ia indagar se o conhecim ento, em si me smo, seria semp re um a coisa tão grandiosa. N ão apena s a ciência tecnoló gica, mas tam bém ‘ 7 a Scie nce po u r la Scien c e ” (a ciência por si mesma) pode ser uma “ Scie nce sans conscience'\ De outra parte, quando duas pessoas dizem o mesmo, elas nem sempre expressam a mesma coisa. O Faus to de Marlowe queria o poder em seu próprio benef ício; Ba con almejava-o em obediência à segunda injunção da Lei: isto é, para ajudar a toáas as pessoas. E, finalmente, Bacon enfatizava que o objetivo mais elevado não era o lucro, nem o poder, nem qualquer dessas “ coisas inferiores” ; era o amor pelo próximo que nos deveria incitar a reformar as ciências. Baco n perc ebeu claramente que um a ciênci a p uram ente utilitária seria de pouca valia. Se os cientistas se concentras sem na aplicação, sem antes estabelecer uma base sólida de ciênci a pur a, estar iam enveredando n um beco sem saída, e as pessoa s que as sim procedessem “ se desviariam do seu curso, como Atalanta, em busca da maçã dourada, e, assim, não al cança riam a vitó ria ” . Inúm eras vez es Baco n salient ou que o objetivo de aliviar as misérias da vida humana não pode ser alcançado sem um verdadeiro conhecim ento cientí fico: “ a contem plaçã o da luz é mais su blim e do que todos os frutos d os inv en tos ” . Nã o fazia opção entre ciência e s uas aplicações utilitárias; para ele, ambas estavam tão indissoluvelmente ligadas com o a fé e as obra s: 6‘as obras devem ser
consideradas ainda mais símbolos como contribuições para como as comodi dadesda da verdade vid a’ 5. do que
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A REU GIÃO E O DESENVO LVIMENT O DA CIÊNCIA MODER NA
Não podemos, por conseguinte, concordar com a opi nião de Lewis de que ‘ ‘o movim ento científico m oderno nas ceu em am biente doentio, e nu ma épo ca desfavor ável” . É verdade que o s resultado s de nosso d omínio sobre a nature za têm sido desfavoráveis, em muitos casos; o poderoso caudal da ciência e tecn ologi a mode rnas oc asi on ou , muitas vezes, desastrosas inundações. Mas, por outro lado, e aproveitando a mesma comparação, a visão contemplativa e quase medie val que nos é oferec ida como a lternativa seria com o um poço de águas estagnadas.
4. O avanço da ciência experimental
Uma das condições indispensáveis ao avanço da ciência moderna foi a aplicação constante do método experimental. A observação imediata da natureza pode ser importante, mas, em geral, um experimento específico provocará, por parte da natureza, respostas menos ambíguas às questões que lhe são propostas. Experimentação científica não é o mesmo que tecnologia ou ciência aplicada; seu objetivo primordial não é obter domínio sobre a natureza, mas descobrir os seus segredos por meio de artifícios racionalmente planejados. Para poder ser aceita, a experimentação científica teve primeiro de ser aprovada moralm ente. Isto é, teve de afastar qualquer suspeita de estar sendo usada como um instru mento de curiosidade ilícita ou de cobiça pelo poder. Em segundo lugar, a experimentação científica teve de receber uma sanção social; ou seja, teve de passar a ser considerada um objetivo digno para um filósofo ou um cidadão livre. Como a experimentação é uma espécie de trabalho manual, não é necessá rio dizer q ue a apreciação valorativ a dos ofí cios manuais evoluiu paralelamente á da experimentação. De mais, os instrumentos utilizados pela experimentação foram
srcinalmente tomados de empréstimo aos ofícios, de tal
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sorte que os artesãos mais intelectualizados — os engenhei ros e os arquitetos — desempenharam um papel importante na introdução dos experimentos no método científico. Em função d esse fato, a ascensão da ciênci a m od ern a r ep rese nta , em grande parte, a ascensão da ciência experimental, e isso está relacionado com a valoraçao social e religiosa do traba lho manual e da tecnologia.
A) A AVALIAÇÃO DO TRABALHO MA NU AL E DA EXPERI MENTAÇÃO NA ANTIGÜIDADE
a) Ofícios manuais na Antigüidade Na Grécia pré-socrática, isto é, antes do século IV , o trabalho manual era altamente valorizado. Sólon, no século VI, estabeleceu que todo ci dadão de Aten as deveria apren der um oficio, e Péricles, no século V, declarou que aos artesãos não faltava senso político. Essa últim a observação revela, no entanto, que a concepção oposta já tinha sido difundida. Licurgo proibiu os espartanos de se ocuparem com ofícios. Posteriormente firmou-se a idéia, especialmente entre os aristocratas, de que o trabalho manual deve ser deixado aos escravos, e que os artesãos livres não eram melhores que esses. O lazer era indispensável para o cumprimento dos deveres relacionados com o governo e com a defesa do país. De acordo com Heródoto, tanto os gregos como os bárbaros consideravam os artesãos como pessoas inferiores; entre os gregos, os espartanos, em particular, tinham essa concep ção, enquanto os coríntios não chegavam a desprezá-los tanto.
grandesdefilósofos idealistas atenienses, sobretudo, eram Os da opinião que o desenvolvimento intelectual e espi
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ritual necessário ao exercício dos deveres de cidadão não po dia realizar-se em conjugação com o trabalho manual. Os sen entoexceção s aristocrpara áticos dessesmilitar, filósofos l hes ptempo erm itiam abrirtimuma o serviço ao só mesmo em que o seu conservadorismo os compelia a prestigiarem a agricultura, que era considerada harmônica com a natureza e a vida simp les. Platão, em seu Estado ideal, considera a agricultura como sendo a base da vida, embora o trabalho manual que lhe é próprio deva, naturalmente, ser deixado aos escravos.1 Xenofonte, da mesma maneira, acha que um cidadão livre não deve cultivar ofícios manuais, porque todos eles, e em particular os que envolvem o manuseio do fogo, exercem uma influência deletéria sobre o corpo, bem como sobre a mente e a moralidade .2 Os hom ens deve m segu ir a crença do rei dos persas, que considera a agricultura e a arte da guerra como as ocupações mais nobres e necessárias. Ele dedica atenção às duas, já que ambas são igualmente necessárias à manu tenção do país. A terra, para ser cultivada, tin ha de ser defendida por guerreiros, e estes não podiam viver sem a ajuda dos agricultores. Xenofonte refere-se ainda à história do príncipe persa Ciro, que tinha tanto orgulho em cultivar e lavrar a terra como em ser um guerreiro. Ciro declarava or gulhosam ente que e le própri o medi a e organiz ava seu “ pa raíso ” , e que, co m suas próprias mãos, fazia parte do pla n tio, e que nunca se sentava para comer sem que antes não tivesse trabalhado duramente em alguma tarefa agrícola ou marcial. Tais ocupações, portanto, além de serem tradicio nalmente aceitáveis, tornavam-se ainda mais defensáveis pelo fato de um grande príncipe haver revelado interesse por elas. Ademais, o treinamento corporal próprio do trabalho
(1) Platão, Leis V, 743 D; vii, 806 D. (2) Xenofonte, Oeconomicus , iv, 2-3.
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agrícola era tido como excelente exercício para o cidadão livre e para o futuro gue rreiro. 3 Aristóteles,imediatos, talvez aindaenfatizou mais firmemente do que maléficas seus predecessores as influências do banausikai technai . Era de opinião que somente o nô made, o agricultor, o pescador e o caçador levavam vidas realmente naturais e produtivas, enquanto a atividade co mercial, em particular, devia ser desprezada. Não obstante, no Estado ideal de Aristóteles, não são primordialmente a agricultura e a guerra que devem ocupar o cidadão livre; o lazer é necessário para o aprimoramento da virtude e para a participação na política. No Estado ideal, portanto, o cidadão não era um lavrador e , seguram ente, tamp ouco pr aticava ofí cios mecâ nicos ou m erc an tis, já que es tes são ignóbei s e ho s tis à virtude. Os guerreiros não devem cultivar suas próprias terras, mas de vem dei xar essa tarefa pa ra os escrav os.4 Na opinião de Aristóteles, a contemplação é uma atividade inte lectua l ainda ais elevada que a política a arte da gu err a, porque o seumobjetivo estádocontido dentroe de si mesma; ela existe em função dela própria, e é a atividade que mais se aproxima da atividade autocontemplativa do Primeiro Mo tor. Por ou tro lado, as artes prát icas sempre buscam alguma vantagem além d e sua própria at ividade.5 O artesão livre m al é contemp lado no Estado i deal de Aristóteles; executa o tr a balho de um escravo, sem ter a apropriada atitude mental de obediência — o que o torna, de fato, inferior a um escravo. Na concepção de Aristóteles, o escravo é uma “ ferramenta an im ad a” , e se existi ssem robôs em condiç ões de realizar todo o trabalho, el es tornar -se- iam supérfluos.6 Evidente m en te, Aristó teles julgav a que i sso era um absurdo. (3) Xenofonte, Oeconomicus , iv, 45; 12; 15; 17; 22-24, V, 1; 14. (4) Aristóteles, Política , vii, 9 (1, 5, 9); 8 (2-3).
(5) Aristóteles, (6) Aristóteles,
Ética a Nicômaco X, 8; 7. Política , i, 5 (3-10); i, 2 (4, 5).
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Da mesma maneira, o filósofo romano Cícero compar tilhava da idéia de que todos os artesãos realizavam um tra balho sórdido e vulgar; uma oficina mecânica “ não contém nada digno de um cidadão livr e” ; 7 o comérci o vareji sta é uma ocupação sórdida, embora o comércio atacadista não deva ser totalmente rejeitado, principalmente quando o ho mem de negócios retira-se da cidade marítima para uma mansão no interior; nesse caso, ele teria direito a alguma consideração.
b) Ciência aplicada na Antigü ida de O baixo conceito em que era tido o trabalho manual implicava uma atitude semelhante em relação à ciência apli cada. Os eruditos cultores da matemática e da mecânica teó rica consideravam indigno ocuparem-se com as aplicações práticas de suas invenções; isso era deixado para os artesãos. Além disso, para os filósofos da escola platônica, a investi gação das coisas materiais era inferior à busca de coisas espi rituais. O trabalho manual, ainda que para um fim cientí fico, era considerado abaixo da dignidade do filósofo. Eudóxio e Arquitas, amigos de Platão, foram os primeiros a pôr em prática as ciências mecânicas. Demonstraram, por meio de exemplos concretos e com o auxílio de instrumentos, al gum as teses que não puderam provar de um a m aneira lóg ica. Platão então os repreende, por terem destruído a beleza da geometria, abandonando os instrumentos intelectuais e va lendo-se de meios materiais que dependiam de desprezível trabalho m anua l. P orta nto , no mom ento em que eles podi am
(7) Cícero, De officiis, i, 42.
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ter começado a reuni-las, Platão tentou separar a ciência aplicada e expe rim ental da ciência pura. Naturalm ente, á “ ciência aplicada” , cultivada com vistas a um fim prático e útil, ainda era atribuído um status inferi or à ciên cia pura base ada em experim entos. Até mesm o o term o geometri a (ge, terra; metron , uma medida) deve ter desgostado Platão. Em sua opinião, havia expressões demais nessa ciência que lembravam o trabalho manual (e. g. fio de prumo); “ sua linguagem tem ranço de escravidão” ; os cien tistas usam a linguagem de pessoas cujo propósito é a apli cação prátic a, ao passo que o verdadeiro obje tivo da m ate m á tica é o conhecimento.8O estudo aritmético dos números é uma ocupação filosófica e sublime, mas o cálculo é vulgar, e usado som ente por mercadores e varej istas. N o século XVI, Petrus Ramus (embora um grande admirador de Platão) sa lientou que a aceitação da advertência de Platão, a respeito do divórcio entre ciência e suas aplicações, foi uma das ra zões da estagnaç ão da ciência até aquela época. Xenofonte, por outro lado, mais prático do que Platão, tinha em mais alto apreço as simples aplicações da matemá tica para medir a terra e para calcular os lucros da lavoura. Demonstrava, contudo, pouca simpatia por uma ciência da natureza desinteressada, que reputava como desagradável aos deuses, que não gostam que os homens descubram como eles regulam os cursos d os plan etas.9 De q ua lqu er forma, ele também repudiava qualquer cooperação entre a ciência e a tecnologia. Aristóteles, em cujo sistema o mundo visível possui realidade plena, demonstrava possuir menos preconceitos metafísicos contra a ciência prática do que Platão, mas seu preconceito social contra a ciência aplicada era bastante for
(8) Rep ública , vri, 527, iv, A-B. (9) Platão, Xenofonte, M emorabilia 7, 2-8.
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te. Em sua Metafísica , expôs a teoria de que, para um ho mem livre, que existe apenas para sua própria satisfação, a únic a ocupação vá lida a ciência cultivada funçã o de si mesma. Somente apósé um os necessários inventosem tecnológi cos terem sido produzidos, poderia a verdadeira ciência sur gir nos locais onde as pessoas tivessem o lazer próprio para cu lti vá-la.10
c) Os engenheiros da Antigüidade Entre as artes manuais, a do arquiteto era a mais acei tável, ou, antes, a menos repreensível para Platão, porque envolvia o maior uso da matemática. Em especial, tinha um certo apreço pelo mechanopoios , que construía máquinas de guerra e podia, por conseguinte, salvar uma cidade inteira. Ape sar disso, dizia aos dem ocráticos ateni enses, “ vocês o desp rez filha am e ao à sua a rt e” ; ninguém oa vontade, trega ria sua filho desse homem,, de ou bcasaria com en a filha dele ,n Arquimedes fabricou muitos instrumentos mecânicos, mas apenas com a finalidade de defender a cidade que esti vesse em perigo. Não escreveu sobre essas coisas vulgares, as quais, segundo Plu tarc o, “ consider ava ba ixas e banausos ’’, re strin gin do sua sede de conh ecim en to às coisas que são belas, sem contaminá-las com qualquer aplicação. So mente em medicina foi o trabalho manual verdadeiramente exaltado pelos gregos; o médico hipocrático era, ao mesmo tempo, um cirurgião, cheirourgos — um trabalhador ma nual. Entretanto, â época dos romanos, a cirurgia já havia sido rebaixada de nível. Cícero julgava que certas profissões
(10) Aristóteles, M eta física , i, 1. (11) Platão, Górgias , 511D-512D.
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intelectuais, tais como a me dicina, a arquitetu ra e o m agisté rio, que requeriam um grande intelecto, eram ocupações respeitáveis para aquelas p essoas “ a cujas classes socia is elas se ajustavam ’ ’. Posidônio foi o único que atribuiu aos filó sofos a autoria das grandes invenções técnicas, tais como a roda, ou a arte de cozer o pão, embora acreditasse que eles imediatamente transferiram para outros a aplicação de suas descobertas. Mas até nisso Sêneca enxergou algum exagero. Acreditava que o martelo e a tenaz tinham sido inventados por alguém de espírito vivo e penetrante, embora não pro priamente profundo e grandioso, uma vez que coisas desse tipo só podiam ser descobertas com o corpo dobrado e a mente dirigida para o chão. Todos os inventos técnicos ti nham sido concebidos por escravos miseráveis; a sabedoria tem o se u assento nu m plano mais el evado ; ela não in str ui as mãos, mas a mente . 12 Quanto aos próprios engenheiros, é claro que eles não concordavam com as arrasadoras opiniões dos filósofos. A doutrina estóica de que a verdadeira sabedoria conduz â paz de espírito foi jocosamente aplicada por Héron de Alexan dria (século I) á fabricação de máquinas de guerra, que dei xam tranqüilos os cidadãos, já que os ataques podem ser evi tados quando o inimigo toma conhecimento de que a cidade está bem guarnecida c om ess as máq uinas. A auto estima t am bém ficou patente quando o engenheiro Pappusseria rejeitou energicamente a opinião platônica de que a matemática prejudicada se fosse associada à aplicação mecânica. A despeito dos filósofos, portanto, havia uma tradição tecnológica bastante acentuada na civilização helenística. Embora muitos princípios mecânicos possam ter sido aplica dos em artefatos bélicos e na fabricação de brinquedos artifi
(12) Sêneca, Epist. m or,, 90, 26.
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ciais e outras diversões científicas, suas aplicações na vida civil permaneceram desapontadoramente abaixo da capacidadepotencial. No século I a. C., um poeta grego teceu loas à roda d *água , rec ent em en te inventada àquela época, que devia libertar as mulheres do duro labor de moer o trigo, e parecia anunciar um retorno à vida supostamente prazerosa da Idade primitiva. No entanto, essa moenda mecânica con tinuou a ser uma raridade durante os doze séculos que se se guiram . Em razão, talvez, d a abundância de “ ferramentas animad as” , tanto manas , qua seou nãoautomos e sen tia nece ssidade de hu instru mencomo tos “ animais não-ani mados ve nte s” . Não foi certam ente a falta de capacidade tecn oló gica que entravou a transição da teoria para a prática, mas antes o desprezo pelo trabalho manual. A ciência era algo que perte nci a ape nas à cabeça, e não às mão s.
d) A exper imen tação na Antigüidade Indubitavelmente, sobreviveram muitos exemplos de experimentos científicos engenhosamente arquitetados — isto é, concebidos com o objetivo de obter da natureza uma resposta para alguma questão, ou de confirmar uma hipó tese. obstante, ciência antigaNão é a de que elaafoiimpressão construídageral comdeixada base na pela especulação, e, algumas vezes, com o auxílio da observação exata, como ocorreu na astronomia e na zoologia; mas, no todo, a expe rimentação desempenhou um papel muito secundário. Pla tão tin ha apenas despr ezo pelos pitagóricos, “ essas boas p es soas, que infligem mil torturas às cordas e as colocam na roda, e as distendem com a s suas cu nh as” .
Não há nenhuma dúvida de que os gregos podiam reali zar experimentos, porém não se sabe ao certo por que eles
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fizeram tão pouco uso d esse instru m en to cien tífico. Um a r a zão poderia residir no fato de que todo início é difícil; muitas vezeseles é preciso e seevitados env eredeposteriormente. po r becos sem Contudo, saída, a fim que possamquser os de fundadores da ciência moderna conseguiram rapidamente obter m uito mais sucesso utilizand o esse processo. Já foi salientado antes que o racionalismo, a deificação da natureza e a subestimação da arte, bem como o desprezo pelo trabalho manual, foram fatores que militaram contra o uso da experim entação. O racional ismo sempre tende a con siderar como supérflua a verificação experimental de suas deduções, enquanto o naturalismo implica que as atividades artificiais não podem propiciar um entendimento real dos fe nômenos naturais. A análise dos fenômenos naturais na ciência da mecânica, que os divide em partes ideais, teria sido compa rada à destruiçã o de um proces so orgânico. Todos os experimentos devem ter sido considerados algo assim como a tentativa de estudar fisiologia nos membros desarti culados de um cadáver em um laboratório de anatomia. As pessoas que compartilhavam a opinião de que 4‘se os céus ficassem imóveis, o lenho não ard eria ” , não teriam se pre o cupado muito com a impossibilidade de testar experimental mente essas afirmações. Numa ciência da mecânica na qual o meio desempenhava um papel fundamental na explanação do movimento, deve ter parecido absurdo dissociar o movi mento natural para que uma de suas partes pudesse repre sentar o movimento ideal no espaço vazio. Demais, muitos experimentos lidam com fenômenos e coisas que não ocor rem no curso normal da natureza. De acordo com a maneira de pensar do mundo antigo, esses fenômenos artificiais não podiam lançar nenhum a luz sobre os naturais; a mecânica não tinha nenhuma relação com a física. Por fim, um filó
sofo julgava não ser compatível com a sua dignidade usar os métodos de trabalho da mecânica para solucionar os seus
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problemas científicos, e certamente não se sentia inclinado a colocar sua ciência a serviço daqueles que lidavam com a mecânica. Existia um enorme abismo entre os que trabalha vam com as mãos (os mecânicos e artífices) e os que traba lha vam com a cabeça (os filósofos).
B) A A VA LIAÇ AO JUDA ICO- CRISTÃ DO T RABAL HO M ANUA L
a) Os ofícios manuais na Bíblia Ao fazermos uma apreciação da atitude bíblica, confronta mo-no s com um a valoraçã o positi va das art es manua is. Mesm o antes da Qu eda, o hom em tin ha de ‘ ‘cultivar e gu ar dar” o jardim do É den ;13 após a Qu eda, foi a fadiga do tr a balho, e não o trabalho em si mesm o, que constituiu a puni ção. Os autores bíblicos não exaltavam o ótium (lazer), o qual, segundo os filósofos, era uma característica e uma vir tude da vida do cidadão grego. A regra estabelecida na Bíblia para uma vida boa é a que está expressa no mandamento: ‘ ‘Seis dias traba lhará s, e farás tod a a tu a obra ’ \ 14 Po r con se guinte, os ofícios eram reverenciados como tendo sido insti tuídos por Deus, que deu aos homens o talento para exercit á-l os, 15 que “ en ch eu ” os construt ores do tab erná cul o “ com o espír ito de Deus, manifes to em sabe dori a e con he d(13) Gênesis, 2: 5.
(14) Deuteronômio 5: 13. (15) Êxodo 35: 35.
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men to, habilidades nos ofícios ,16 e que ‘ ‘criou o fe rre iro ” .17 Os rabinos judeus tinham de aprender um ofício. Jesus era um c ar piosnte tessalonicences iro 18 (tektori), eafilho de umarem ca rpincom teiroas,19me Paulo exortou trabalh ão s,20 como el e próprio tin ha dado o exem plo,21 pois ele e ra, de profissão, ‘ ‘um fabricante de tendas” )skenopoios).22 Na Bíblia, todo trabalho é considerado sagrado para o Senhor; não importa que ele seja executado por um escravo ou por um homem livre. A ocupação com coisas materiais, que são, da mesma forma que as coisas imateriais, criaturas de Deu s, nã o é tida como alg o desonros o. Foi o próprio Deus que criou todas as coisas visíveis e invisív eis,23 sem ne nhu m a delegação de responsabilidade a coisas intermediárias. Por conseguinte, os fatores que, na filosofia grega, en travavam o desenvolvimento da ciência experimental, não estão prese ntes na Bíbl ia; o artesão é respeitado e, em co nse qüência, o trabalho manual também o é; a natureza não é colocada da artenãhumana, uma jvez queé um ambas foram de “ criadas”acima ; a matéria o é inferior, á que a criatura Deus; o lazer não é superior ao trabalho. O Deus de Israel não se recolheu a um estado de existência que Lhe é próprio, nem permanece absorvido em autocontemplação. Ao con trário, é ativo: “ Ele trabal ha at é agora” 24 num a cr iação contínua e dirige a história da humanidade. Dessa forma, a ação recebe o indispensável beneplácito da religião, o mesmo acontecendo, indiretamente, com a ciência experimental. É (16) Êxodo 31: 3. (17) Isaías54:16. (18) Mateus 6: 3. (19) Mateus 13: 55. (20) 1 Te ssalo nice nses 4: 11. (21) 2 Te ssalo nice nces 3: 8-11. (22) Atos 18:3.
(23) João 1: 3; Con/ess. Nic. (24) João 5: 17.
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claro que isso não implica que Israel tenha, de fato, desen volvido uma tecnologia própria; não há dúvida de que, a esse res peito , Isra el teve de valer-se dos países vizinho s.25
b) Os ofícios manua is e a experim entaçã o no m undo cristão Devemos creditar aos gregos as matérias de que se for mou a ciência (a lógica, a matemática e o início da interpre tação racion al do mun do ), m as as vit am inas indis pensáveis a um desenvo lvimento saudável advi eram da conc epção bíblica da criação. O fato d e que o triunfo do cristianism o não a ca r retou, de imediato, uma liberação das limitações da metafí sica grega não invalid a absolutam ente es sa assertiva. A tr an sigência da religião cris tã, prim eiram ente com o platonism o, e, mai s tarde, com o arist otelis mo , exerceu um a marcada in fluência não apenas no conhecimento secular, mas também na teologia. Até mesmo a valoração positiva dos ofícios na Bíblia não conseguiu suplantar as atitudes tradicionais das concepções sociais greco-romanas (e possivelmente também autóctones), especialmente após o ímpeto inicial de amor ter-se exaurido e o cristianismo ter-se tornado uma religião mundial firm em ente estabelecida. Contudo, a tecnologia progrediu consideravelmente durante a Idade Média. Os moinhos de água (após 1050) e, um pouco mais tard e, os mo inhos de ve nto , foram colocados a serviço da indústria. Entretanto, persistiam ainda grandes obstáculos sociais à introdução de novidades tecnológicas. Além disso, os ensinamentos escolásticos contribuíam para manter vivo o contraste entre as artes liberais e as não-liberais ou “ servis” , bem como o s preconcei tos contra e stas últimas. Assim como existia uma escala moral de valores,
(25) 1 Crô nic as 14: 1; 2 Crô nic as 2: 14.
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que colocava as ocupações intelectuais e religiosas acima dos ofícios manuais, havia também uma hierarquia feudal, na qual cada categoria tinha seus deveres específicos: à nobreza competia defender, ao clero rezar, e aos trabalhadores sus tentar a todos. E até mesmo esta última hierarquia tinha um significado moral: segundo Tomás de Aquino, um rei que governasse bem receberia uma recompensa mais alta no Céu do que um súdito que vivesse bem sob esse gove rno. A despeito desta atitude, experimentos científicos fo ram realizados, ainda que raramente, até mesmo por clérigos e nobres. A Carta sobre o Magneto de Pedro deo artífice Maricourt (1269) recomendava que, na ciência experimental, procurasse possuir não somente um conhecim ento da teoria, como tamb ém habi lidade m anu al que lhe permitisse corrigir erros que jamais descobriria se recorresse apenas aos conhe cimentos físicos e matemáticos. O monge franciscano Roger Baco n ref eria-se a Pedro d e Ma ricou rt co mo o “ mestre do s ex perim ento s” , habi lidoso em artes t eóricas e técnicas e que não dispensava nenhuma atenção a disputas sobre palavras , dedi cando -se inte iram ente a obras de sabedoria. Entretanto, como um g rupo, eram som ente os alquimis tas que atribuíam um lugar importante aos experimentos em seu trabalho. Ao invés de se sentirem envergonhados por terem as mãos ene grecidas de carvão, el es orgulho sam ente s e intitulavam “ fi lósofos pelo fog o” . Pa ra os filósofos conte mpo rân eos essa expressão deve ter parecido a filosofia podia ser construída com oautocontraditória: trabalho das mãos, menosnãoainda com aquela arte reles, que manipulava o fogo. O notáv el tratado do imp erado r Freder ico II, Da arte de caçar com ave s , além de proporcionar preciosas informações sobre a vida dos falcões e de suas presas, evidenciava um espírito crítico e experimental. Porém, isso era excepcional, e não repre sen tav a, de forma algum a, alg o típico na zoologia
medieval. Um largo fosso a separava da zoologia escolástica,
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menos comedida e sobrecarregada com noções tradicionais sobre os animais, extraídas sem uma análise crítica de obras anteriores. Em história natural, havia uma ciência oficial, tradicional, que continuava lado a lado com o conhecimento prático concentrado nas “ artes mecânicas” — o qual, para o leitor m od erno , m uitas vezes parece ser mu ito mais ‘ ‘cie n tífi co” . Para nós, hoje, os mapas dos primeiros pilotos m arí timos são muito mais satisfatórios do que os da geografia me dieval convencional. Em conseqüência dessa atitude, a ciência medieval ad quiriu uma ereputação de esterilidade. o poder de observação a habilidade tecnológica Contudo, evidenciados nos tra balhos práticos, e a agudeza de raciocínio dos tratados filo sóficos, demonstram sobejamente que não foi falta de capa cidade o que tornou a ciência medieval um tanto estagnada. Praticamente os mesmos argumentos podem ser levantados tanto em relação à ciência medieval, como em relação â ciên cia antiga. A ciência medieval era por demais racionalista, e mes mo quando havia recurso à experiência, essa ainda era a ex periência mencionada em compêndios. De acordo com Thomas Bradwardine (1338), um magneto ligado a um pedaço de ferro continu a co m .o mesm o peso de ant es, “ como a exp eriência nos ensina ” ; a con clusão d este “ experimento” é mencionada novamente por Heinrich von Langenstein, que evidentemente não realizou nenhum testereferência para coma m ui prová-la. Os compêndios medievais faziam tos experimentos idealizados, mas que nunca foram cientifi camente testados e que nem mesmo se queria testar. As de monstraçõ es cientí ficas seguiam s empre o model o: “ se A e B são ve rda deiro s” , conclui-se então o me smo em relação a C e D. Po r conse gu inte, os mesm os fenômenos (um exemplo é o da queda livre) são tratados por diferentes autores no
levantamento de diferentes hipóteses, mas nenhum esforço é
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feito no sentido de dec idir en tre alternativas, em con seqü ên cia da realização de testes experimentais. O melhor que se poderia dizer desse método é que ele exercitava a mente e desenvolvia a capacidade d e formulaçõe s precisas. Além disso, os filósofos medievais considera vam a exp e rimenta ção um at o “ m ecâni co” . Mesmo Albert o Magno (1193-1280), um dos mais cientí ficos en tre os filósofos, e que dem onstrava um grande interess e em obser vaçõe s e assuntos práticos, rechaçou depreciativamente um opositor com as palavras: ‘ ‘Gilgil era um mecânico, e não um filósofo’ ’. Na Idade M édia, da mesm a maneira que na A ntigui dade, a razão mantinha a experiência manietada, a arte era tida como incapaz de competir vitoriosamente com a natu reza, e a tecnologia mantinha-se separada da ciência. O cé rebro e a mão não eram estimula dos a cooperar m utu am en te.
C) A C OOPER AÇÃ O SDO CÉCIÊNCIA REBRO EM DA MÃO NOS PRIM ÓRDIO DA ODERNA
a) A rte s mecân ica e liberal no século X V I A cooperação entre o cérebro e a mão tornou-se muito mais estreita durante o período da Renascença. A emanci pação dos burgueses, que muitas vezes eram também arte sãos, levou a que se valorizasse mais não só o trabalho ma nual, como também o comércio e a indústria, exceto entre aqueles humanistas cujo servilismo em relação aos antigos sobrepujava de muito o dos escolásticos. Os cientistas que tinham interesses tecnológicos, e, muitas vezes, até mesmo
habilidade manual, imiscuíam-se com os artesãos que que
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riam dar ao seu trabalho um fundamento científico. Gerhard M ercator, na Holanda, Nicol aus Kratzer, em Oxfo rd, H artmann e Schoner, em Nuremberg, foram estudiosos de gran de habilidade na elaboração de mapas, globos e relógios de sol. Por outro lado, engenheiros e artífices inteligentes, como Albrecht Dürer, em Nuremberg, e Simon Stevin, na Holanda, buscaram contato com matemáticos, astrônomos e filósofos, e escreveram livros científicos. Em centros comer ciais e industriais como Florença, Nuremberg e Antuérpia principalm ente, havia uma estreita cooperação entre cientis tas artesãos. Em Nuremberg, porséculo exemplo, fundidor de ferroe Sebald Beheim, no início do XVI, opediu ao reli gioso e matemático Johannes Werner que traduzisse Euclides para o alemão, em benefício de seu filho, e sugeriu que cada tese f osse acom panh ada de aplic ações práticas. Luis Vives (1492- 1540), que viveu muitos anos nos Paí ses Baixos, mencionou o exemplo de Virulus, reitor de um colégio da universidade de Lovaina no século XV, que fez contatos com artífices de todos os tipos. Vives aconselhava os jovens estudiosos a seguir este exemplo e visitar as ofici nas, a fim de compor uma *‘história das artes” que iria con tribuir grandemente para o aumento dos conhecimentos: uma “ ocupa ção ver dadei ramente digna de um b urgu ês” . Segundo ele, o s camp oneses e artífices conheciam a natu rez a das coisas con cretas m elho r do que “ aquele s grandes f iló sofos’ ’ou qu tra, e, d que escocons nhe cend a na“tureza navam istiaoem Formas,real Id das éiascoisas, e outrasimquagii me ras” . Paracelso, da mesma forma, aconselhava seus leitores a buscar conhecim ento entre as pessoas comuns. Seu discí pulo, o médico dinamarquês Peter Sorensen (1540-1608), aconselhava os jovens a pesquisar montanhas e lagos; a ob servar animais, plantas e minerais; a fazer experiências quí
micas, e a não se env ergonh arem de aprender co m os cam po
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neses os seg redos d a ter ra e do céu.26 E o médico hu man ista Georgius Agrícola enfatizava a utilidade da mineração, que ele considerava como um dom de Deus, uma ocupação de cente para pessoas dece ntes, a despei to do que os antigos h a viam escrito con tra ela . O humanista Petrus Ramus (1515-1572), cujas obras exerceram uma grande influência entre os puritanos na In glaterra e na América, demonstrou um grande interesse nas relações entre as artes mecânicas e as liberais. Acreditava numa estreita cooperação entre artífices e filósofos e acon selhava estes últimos a visitar a rua dos banqueiros e comer ciantes em Paris, a fim de aprender a prática do cálculo. De clarava, com orgulho, que não havia oficina mecânica em Paris que não tivesse pesquisado inteiramente mais de uma vez, e, em sua opinião, as aplicações práticas eram mais im portantes do que a ciência pura. Ramus referia-se com fre qüência a Sócrates, sempre usando — embora não mencio nasse expressamente o fato — citações da versão de Xeno fonte à s palavras de Só cra tes,27 e rejeitava o “ cego preco n ceito ’ ' de Pla tão , que e xaltava a contem plaçã o e repu diav a as aplicações práticas. Na opinião de Ramus, as ciências mate máticas tinham quase sido destruídas por este preconceito, uma vez que elas somente podiam florescer quando estimu ladas pela prática dos artesãos. Colocava o cálculo acima da teori a dos núm ero s, a agrim ensura acima da geom etria pura, a ciência náutica acima da astronomia teórica, e, fazendo isso, exagerava a utilidade dessas ciências aplicadas de tal maneira que foi apeli dado de usuarius. Um ramista de Cambridge, Gabriel Harvey, elogiava a (26) P. Severinus, ldeae Medicinae pbilosophicae , 1571. (27) Sobre a atitude de Ramus em relação às artes manuais, cf. R. Hooykaas,
H um anis m e, Science et réform e — Pierre de la Ram ée , Leyden, 1958, especialmcntc o Cap. VII I D: “ Les Deux Socra te’ pp. 59 -62.
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grande habilidade do fabricante de instrumentos Humphrey Cole, do co nstr uto r naval M atthew Baker, d o arquit eto Joh n Shute, do armeiro William Bourne, do perito náutico Robert Norm an e do químico John Hester, dizendo que esses ‘ ‘em píricos” seriam lembrados quando cientistas maiores esti vessem esquecidos. Ser ia presun ção, julgava ele, d esprezar o operário manu al habilit ado, “ por mais ilet rado que foss e” . Destacou ainda que os grandes matemáticos Digges , Harrio t e Dee tinh am o maior respeito por a rtífices de espírito inv en tivo. Evidentemente, não eram apenas artífices eminentes que estavam interessados na ciência, havia também eruditos de renome interessados na tecnologia; o conhecimento cien tífico foi colocado a serviço das artes mecânicas. Este interesse mútuo foi auxiliado pela crescente dispo sição dos eruditos em divulgar os seus conhecimentos para os iletrados, isto é, para os que desconheciam o grego e o latim. Por volta de 1550, Robert Recorde, médico e escritor teológico, escreveu seus trabalhos matemáticos em inglês, para que pudessem ser entendidos pelos artífices. Leonard Digges declarou que não queria esconder os seus talentos e limitar o seu conhecimento a línguas estrangeiras, e que es crevia em inglês em proveito de pessoas tais como agrimensores, carpinteiros ou pedreiros. Seu filho Thomas Digges abandonou a matemática puramente contemplativa para de dicar-se a ‘‘noções exp erim entais” . O erudito John D ee co locou os livros de sua grande biblioteca á disposição de seus amigos artífices. A partir de 1588, Thomas Hood passou a fazer conferências públicas em Londres, sobre matemática e astro nom ia, p ara marin he iros , artífices e soldados. Em 1598 , o Gresham College de Londres tornou-se conhecido como um local de encontro de estudiosos e artífices, onde eram realizados conferências sobre ciência, matemática e teolo gia, tanto em latim como em inglês. Os renomados Henry
Briggs, Henry Gellibrand e Samuel Foster figuravam entre os seus professores, e é evidente, pelas suas biografias pes
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soais, que essa escola também fez jus à sua reputação de cen tro ativo d o puritanism o. Nos Países Baixos, por volta de 1600, existiu também a mesma estreita cooperação entre estudiosos e homens práti cos. Uma escola para engenheiros foi fundada na Universi dade de Leyden, onde o ensino devia ser ministrado em lín gua holande sa. O m inistr o protestante Pe trus Plancius en si nava ciência náutica a marinheiros, do púlpito da Oudezyds Kapel, em Amsterdã. No início do século XVII, o erudito Dr. Isaa c Beeckman fundou um a Facul dade de M ecânica em Roterdã, mem de bros eramju ontam próprio (dir etorassist entecujos d a escola latim), en teBeeckman com um tintur eiro de sedas, um comerciante, um fabricante de moinhos, um fabricante de navios, um carpinteiro, um médico, um mate mático e um cirurgião. Quando Beeckman tornou-se diretor de escola em D ord rech t, fundou a primeira estação m eteo ro lógica da Europa; realizou observações astronômicas com a ajuda do ministro protestante Philips van Lansbergen, e ti nha entre os seus discípulos George Ent e Jan de Witt, que se tornaram famosos, o primeiro como defensor de Harvey, e o ou tro como estadi sta e matemático. b) A sanção religiosa para o trabalho manual e experimental Não é preciso dizer que esta cooperação entre artífices e estudiosos levou a um rápido desenvolvimento e aperfeiçoa mento do método experimental. A habilidade manual e o pensamento metódico passaram a caminhar juntos. O traba lho experimental pôde tornar-se respeitável, já que a ativi dade dos artífices tinha sido aceita como louvável. A eman cipação social da classe artesã, em particular nas sociedades tipi camente burguesas, t ais como as de N urem berg , A n
tuérpia, Londres e Amsterdã, desenvolveu-se paralelamente
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à emancipação religiosa, favorecendo uma ética de trabalho segundo a qual qualquer apelo vocacional, e não somente a vocação era conside rado com ogeral 4‘divino Semr eligiosa, dúvida alguma, a familiaridade com ’a’.Bíblia, nos círculos da Reform a, estim ulou ess a concepção. William Perkins, teólogo puritano do século XVI, era de opinião que um ofício ma nu al, desemp enhado para a glória de Deus e em benefício da humanidade, era tão abençoado por Deus como o de um magistrado ou de um ministro da religião. Hugh Latimer dizia a seu público que ninguém deveria se sentir indi gno de seguir a Cristo, o carpinteiro, em u ma “ vocação co m um ” , já que todas as ocup ações fora m abençoa das por Seu exemplo. N o sécul o seguinte, en contram os Georg e Herbert, em seu célebre poema Elixir , ensinando que a expres são “ Por Seu am or” torna divina a dura lida de um servo: “ Quem varre um a sala em obediênci a às Suas leis, execu ta bem a sua tarefa e faz disso uma ação m eritória’ ’. A cerimô nia casamento Igreja da Holanda refere-se ao “decham am entoda div ino Reformada ” do esposo. Reconheceu-s e que não era o trabalho man ua l em si mesm o, mas o seu exercício laborioso e estafante, que representava a punição para o pe cado . Os avanços tecnoló gicos passaram a ser conside rados al gumas vezes como parte de uma restauração cristã, precisa mente pelo fato de abrandarem o caráter penoso do trabalho manual. Idéias desse tipo certamente contribuíram para aumen tar a auto-estima dos artífices. Isaac Beeckman (1588-1637) havia sido preparado para ser um teólogo no ministério da Igreja Reformada, e havia também obtido o grau de doutor em medicina. No entanto preferiu, durante vários anos, se guir o ramo de comércio da família como fabricante de velas e de cond utos p ara á gua, porque esse trabalho deixava-o mais
livre eáem condições de realizar experiências para as quais, época, as oficinas mecânicas estavam físicas muito melhor
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aparelhadas do que as universidades. A opção de Beeckman prova que, nos Países Baixos, um letrado não julgava ser in digno de sua condição o fato de seguir ofício. O oleiro huguenote Bernard Palissy (século XVI) um sentia orgulho do seu desempenho como artesão; exortava os jovens da no breza a produzir inventos em benefício da agricultura, em vez de desperdiçarem tempo e dinheiro em busca do prazer. A agricultura, enf atizava ele, “ era um trabal ho honesto, digno de ser elogiado e resp eit ad o’ ’, e que req ue ria mais ‘ ‘fi losofia” (ciência ) do qu e q ualque r outra o cup ação .28 O método usado, uma investigação por meios mecâni cos, estava agora em consonância com o objeto investigado: o mecanismo do mundo. Esta é a razão pela qual a filosofia exp erim ental (uma expressão que s e refere ao método exp eri mental que era aplicado) teve de transformar-se, em grande parte, numa filosofia mecanicista (um term o tomado de em préstim o do conceito teórico). O respaldo teológico a essa identificação dadocopor parao.29 quem Deus era um foi mecâni e, oMonantholius mu ndo, um (1599), mecanism Entre ta nto , em seu caso, a força do prec once ito social da épo ca c on tra os trabalhadores manuais revelou-se na ênfase posta na afirmação de que Deus ‘ ‘m ec an iza ” por Sua palavra e não por Suas mãos; a mecânica era glorificada não pela exaltação do trabalho manual, mas exatamente por não ser necessaria mente manual. Francis Bacon foi mais radical. Argumentava que, em bora em geral fosse considerado desonroso para um homem de letras rebaixar-se a investigar assuntos mecânicos, isso representava a maneira mais própria de construir uma ciên cia natural que não consistisse em especulações sutis, mas (28) B. Palissy, Récepte véritablc (156 3), Au lecte ur.
(29) H. Monantholius, tória, a III r.
Aristote lis Mechanica ..., Paris, 1599. Epistola dedica
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que ajudasse a aliviar o peso da vida. Era errado pensar que a dignidade da mente hum ana pude sse s er preju dica da po r en trar em contato com coisa experimentos e coisas materiais, comoonce i se houvesse alguma de mesquin ho nisso. Os prec tos contra a investigação da natureza com o auxílio das artes mecânicas deveriam ser postos de lado, uma vez que ativi dades como a agricultura, a química, a fabricação de vidros ou de sabão modificavam as coisas natu rais, revelan do, dessa forma, a sua natu re za.30 Bacon reconheceu, em 1605, que, para que se pudesse dar andamento à reforma científica, seria necessário que se fizesse uma reforma nas escolas. Sugeriu que se ensinasse menos lógica e menos retórica, e que se lidasse com coisas mais concretas; demonstrações botânicas e astronômicas, o emprego de globos e de mapas, e experimentos mecânicos e químicos deveriam ser introduzidos nos currículos. Estas propostas não eram inteiramente novas; Vives, Palissy e Re corde tinham feito semelhantes. as universidades aindaobservações não estavam preparadasEntretanto, para aceitar esses novos métodos, e a sua utilização ficou restrita ao Gresham College e a sociedades eruditas.
c) A atitude puritana em relação à ciência exp erim enta l Entre os puritanos, em particular, as idéias de Bacon sobre a reforma do ensino foram recebidas com entusiasmo. A visita de Comenius à Inglaterra (1640-1641) teve como objetivo apoiar a s reformas dentro do espírito ba co nian o.31 En con tram os o capelão do exército de Cromw ell, Joh n Webs(30) Francis Bacon,
N ovum Organum , I, af. 83; De augm entis , II, c. 2; Paras -
ceve , af. 5. (31) J. A. Comenius,
Via Lucis (escrito em 1641); prefácio (publ. em 1668).
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te r solicitando que tam bém fossem forneci dos laboratórios às unive rsidades, e não som ente biblioteca s, para que os jo vens não recebessem unicamente especulações vazias, mas que pudessem aprender a usar as mãos e acostumar-se ao traba lho, “ e manipu lar o cadinho, para f icarem fami liarizados com as ma ravilhas d a qu ím ica ” .- Além disso, a du ra re ali dade dos fatos experimentais os impediria d e “ ficar em o rg u lhosos co m as criações de suas própri as m ente s” .32 William Petty, um tintureiro que se tornou médico, e, durante o go verno de Cromwell, professor de anatomia em Oxford, que ria que até os filhos da classe mais elevada aprendessem um ofício, para que soubessem realizar experiências e, mais tar de, se tornassem protetores da ciência. Havia, por conse guin te, um desejo gener alizado d e mais “ demo nstrações oculares” , mais expe riências “ com as m ãos” , mais quí mica, e um a “ divulgação maior d o conh ecim ento mecâ nico” . Joh n Wilkins ( que seri a, mais tarde, cunhado de C rom well) criticava o s gregos por seu descaso pela s artes prática s. É uma característica da atitude prática de Wilkins o fato de ele considerar Galileu, antes de mais nada, um sucessor dos engenheiros, e não dos filósofos da Antiguidade. Essa atitude implicava uma mudança radical da ordem segundo a qual os letrados de sua época julgavam os homens que compunham essas categori as da ativi dade hu man a. Wilkins era o líder espiritual do grupo que formaria a Royal Society, após a Restauração. Embora pessoas de todos os partidos políticos e ecles iásticos trabalha ssem jun tos nela, a maioria dos fundador es tin ha incl inações pu rita na s.33 N es (32) John Webster, Aca demia ru m Exa men , Londres, 1651, p. 106. (33 ) Som ente se limit armos a noção d e “ puritan o” , em conformid ade co m preconceitos pesso ais, é que isso poderia se r refutado. O fato de Sprat, em sua defesa da Royal Society, haver destacado a conformidade da Nova Filosofia com a Igreja da In
glaterra e negado qualquer conexão com o puritanismo não prova nada em contrário.
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ta sociedade, como sal ientou Spra t, “ o com erciante, o m er cador, o letrad o” repres entavam a “ união d as mãos e das me ntes dos ho m en s” ; eles preferiam “ obras a palavras” , e usavam a linguagem dos artífices e negociantes, e não a dos filósofos. N a opiniã o de Sp rat, ‘ ‘a ciência a tin girá a perfeição quando ou os operários mecânicos tiverem mentes filosófi cas, o u os fil ósofos tivere m mãos de m ecân ico s” ,34 Um testemunho evidente da aceleração da transforma ção intelectual naquele período foi dado por John Wallis ao declar ar que, antes da Revol ução Purita na , os estudo s m ate máticos quase erampoder-se-ia consideradosafirmar como acadêmicos, ao da passo que, emnão 1670, que “ o estudo química não é indigno d e um cava lheiro” . Essa mudança de atitude, do desprezo pelas artes matemáticas liberais (que eram apreciadas até pelos filósofos antigos), até chegar á aprovação das artes mecânicas mais comezinhas, demonstra que, durante o período puritano, um movimento que já es tava em curso havia feito grandes progressos. Cada vez mais os homens de letras da Europa Setentrional e Ocidental che gavam â constatação de que, para fazer progredir a ciência natural, não bastava apenas raciocinar com as cabeças; seria necessário também, segundo salientou o clérigo puritano Nathanael Carpenter, ter a 4‘mente nas m ãos’ V.
Sprat não teria agido de forma sensata, se não tives se enfati zado o c aráte r reformista da Igreja da Inglaterra, ao mesmo tempo em que caracterizava — como era o costume da época — como ti picament e “ pu ritanos” os ra dicais e os “ entus iastas” . Dessa forma , o seu própri o pass ado (e o de hom ens como Wilkins) deixa ria de ser “ pu ritan o” . (34) T h . Sprat, The H ist ory o fthe Roya l So ciely o f Londo n , 4? ed., Londres,
1734,p .43 4.
5. A Ciência e a Reforma
A) A INFLUÊNC IA D A REFORM A SO BRE A CIÊNCI A
a) A participaçã o dos pro tes tan tes na pesquisa científica As pesquisas sociológicas têm demonstrado que, até bem recentem ente, os protestantes foram relativamente mais numerosos entre os cientistas do que seria de se esperar em função do seu número global. A. de Candolle (1885) cons tatou que, entre os membros estrangeiros da Académie des Sciences de Pari s, de 1666 a 1883, os prote stan tes foram bem mais numerosos do que os católicos romanos. Na população da Europa Ocidental, fora da França, a proporção de católi cos romanos para protestantes era de seis para quatro, en quanto, entre os membros estrangeiros da Académie des Sciences, era de seis para vinte e sete. Na Suíça, a proporção de católicos romanos para protestantes era de dois para três;
no entanto, durante período mencionado, houve quatorze cató protestantes suíçoso membros da Académie, e nenhum
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A RELIGI ÃO E O DESENVO LVIMENTO DA CIÊNCIA MODE RNA
lico romano.1O professor belga J. Pelseneer, historiador da ciência, reg istrou que , nos Países Ba ixos do Sul (Bél gica), no século XVI, os protestantes formavam apenas uma pequena minoria (talvez 100000), no entanto, os cientistas protestan tes eram muito mais numerosos do que os de fé católica ro mana.2O sociólogo americano, professor R. K. Merton, sa lientou que, em 1938, entre o grupo de dez cientistas que, durante a Commonwealth, constituíram o núcleo que daria srcem à Royal Society, sete eram acentuadamente purita nos. Sessenta e dois por cento dos membros da Royal Society eram srcem nitidamente percentual que se torna de mais significativo empuritana, razão deumconstituírem os puri tanos um a m inoria da popul ação. 3 Sociólogos cat ólicos ro manos conf irmaram que, at é bem recentem ente, houve um a tendência mais acentuada, da parte de estudiosos protestan tes, a se voltarem para estudos tecnológicos e científicos do que entre os católicos romanos.4,5 (1) A . de Cando lle, Histoire des sciences ei des savants , 2? ed., Genebra-Bale, 1885. pp. 329-331. (2) J. Pe lsenee r, “ La Réíorm e et le progrès des sciences en Belgique au XV I siécl e” , em: Scie nce, M edicine and H istor y , Oxford, 1953, p. 281. “ Les persécutions contre l es savants e n Belgique” , em Le Flambeau, 1954, p. 636 e se guin te s, e outras publicaçõe s. (3) D. Stimson, “ Puritanism and the New Philo sophy i n Seventecnth-cent ury England” , em Buli. Inst. H ist. M edic. III (1935), pp. 321-334. R. K. M erto n, “ Scienc e, Technology and S ociety i n Seventeent h-Century E ngland ” , em Osiris, iv (1938), (4) pp.471-474. M. Matthijssen,
Kath oliek middeibaar onderwijs en in tellectuele em ancipatie, Een sociografische fa ce tstu die van het em ancipatie-vraagstuk der K ath olieken in Ned erland. Thesis Nijmegen 1958, pp. 67, 200. Esse autor é de opinião que as conclu sões de Candolle, acrescidas dos numerosos dados reunidos em seu próprio trabalho desen volvido em país es da Europa O cidental e nos Es tados Unido s, “ constituem uma sólida base em favor da hi pótese de que est e problema é ger al” (nâo res trito à Holanda). Alega haver demonstrado que as teorias sociológicas (de Weber, Merton e outros ) “ est ão ef eti vamente fundamenta das numa real idade” (op. cit ., p. 68). (5) J. J. Kane, em Am erican Catholic Sociological Revietv, 16 (1955), pp. 27-29- “ Católicos que atingem um a posiçã o de destaque ... são enc ontr ados prin cipal
mente em três c ampos: religiã o, direit o e educação” .
A CIÊNCIA E A REFORMA
)29
É provável que ò desenvolvimento das ciências exatas c da tecnologia, no final do século XVI e no decorrer do sé culo XVII, nos círculos protestantes, possa ser atribuído, em parte, à expansão do comércio, da indústria e da nave gação; mas isso não explica a razão do grande interesse con temporâneo na botânica e na zoologia, que não eram ob jeto de utilidade econômica imediata, A maior parte dos bo tânicos do século XVI pertenceu â minoria protestante. Brunfels, que morreu em 1534, Bock (1498-1554) e Fuchs (1501-1566) foram pro testa ntes zeloso s;6tam bém o foram os grandes botânicos dos ePaíses Clusiuspor (1526-1609) e Lobelius (1538-1616), os daBaixos, Suíça, como exemplo Conrad G esne r (1516-15 65), amigo de Zwing li e Bu llin ger.6a William T urn er (1508-1 568), * ‘o verdadeiro pioneiro da his tór ia natural na Ing laterra” , 7des empenh ou um papel im portante na introdução do calvinismo na Inglaterra, tendo trabalhado em contato direto com Latimer, John a Lasco e Cranmer. A coin cidênc ia dos “ novos co nh ec im en tos’ ’ e da ‘ ‘nova doutrina” é, portanto, um fato, embora não seja fácil de ser expli cada. V árias questões su rgem ; poder-se-i a indagar se fa tores religiosos ou sócio-econômicos foram decisivos na valorização da tecnologia e da ciência experimental. Teria a teologia reformada (ou mesmo puritana) tido um efeito esti mulante sobre a nova ciência, ou foi o desenvolvimento eco nômico e social a causa tanto da reformaentre científica como da religiosa? É quase impossível escolher estas alternati vas, já que estes fatores se apresentam intimamente interli gados. Nas cidades marítimas, como Londres e Antuérpia, e nos centros comerciais e industriais, como Nuremberg, (6) Agnes Arbert, H erb als , 2? ed., Cambridge, 1953, p. 266. (6a) H. Fischer, ConradGessner, Leben und Werk , Zurique, 1965. (7) C. E. Raven, English Natu ra lists from Neck am to R ay , Cambridge, 1947,
p. 127; cf. pp. 5 4 ,9 1 ,9 6 .
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A RELIGIÃO E O DES ENVO LVIM ENTO DA CIÊNCIA MO DER NA
a vida era dinâmica e menos provinciana do que na maioria das cidades un ivers itárias.8 Quand o a universidade d e P or tugal foi transferida de Lisboa para Coimbra, em 1537, essa decisão foi aplaudida como uma fuga ás distrações proporcio nadas por um centro comercial e marítimo. Por outro lado, em seu discurso de inauguração do Gresham College, em 1657, Christopher Wren congratulou-se com a cidade de Londres, por sua “ incli nação gene ralizada pela matem ática e pela libera philosophia , dificilmente encontrada nas pró prias academias” .9 Em cidades como Londres, havia um ativo intercâmbio outrasHavia civilizações, com outras reli os giões, filosofias e com costumes. movimento em todos aspectos, e é compreensível que estas cidades, uma vez emancipadas politicamente, ficassem também abertas à emancipação cultural e religiosa. As novas idéias científicas eram bem rec ebidas por quem já es tava sufi cientem ente pre parado para aceitar mudanças de qualquer natureza. Além disso, nas cidades comerciais, a tolerância religiosa foi favo recida pelos interesses do comércio, de tal sorte que, no sé culo XVI, em Veneza e em Antuérpia, a repressão ao pro testantismo foi um tanto hesitante e esporádica, e em Ams terdã, no século XVII, a tolerância em relação aos judeus e às seitas cristãs (até mesmo os socinianos) era maior do que na maioria das outras regiões da República das Sete Provín cias Unida s. Nos países a totalidade da população seguiaescandinavos, o Príncipe e porém, aceitavaonde a Reforma, dificil men te poderia te r existido es se efeito seleti vo. Para esses pa í ses, como também para a segunda e terceira geração de pro (8) O famoso astrônomo do século XV Regiomontanus fixou-sc em Nurem berg po r ser ela , àquela época, um im portante po nto dc enco ntro das ro tas continenta is de comércio, e por possuir artificies dotados de grande habilidade na confecção de instrumentos.
(9) Chr. WTen,Parenlalia , ed. Londres, 1750, p. 206.
ACIÊNCIAEAREFORMA
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testantes em países como a Holanda, o problema era dife rente, pois, quando o protestantismo se tornou um poder estabelecido, a adesão ao credo protestante deixou de repre sentar, por si só, uma indicação de independência espiritual ou de espírito progressista. A questão que aqui surge é se o estabeleci mento do protestan tismo propi ciou um a bas e espi ritual hostil, neutra ou favorável ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia. N aturalm ente, outros fatores, além da religião, desem penharam o seu papel. Um autor da época, Petrus Ramus (15151572), atrib uiu à Reforma reavivam ento dono interesse nas assim chamadas ciências exataso em Basiléia; mas, que diz respeito a algumas cida des da A lem an ha , apo ntou causas econômicas, ou seja, o interesse dos governantes pela indús tria da min era ção 10 e a sua necess idade de eng enh eiros mili tares. Diferentes concepções e estruturas sociais também desempenharam um papel significativo, além do fato de que a atitude da nobreza e do clero em relação ao comércio e à tecnologia não fo i a me sma em todos os lugares. De qu alquer maneira, como observamos anteriormente (pp. 75, 120), numa época em que a aprovação religiosa era necessária para que algo pudesse tornar-se socialmente aceitável, fazia um a gran de diferença s e a ciênci a era encarada com suspe ita, simplesmente tolerada ou positivamente estimulada pela re ligião prevalece nte.
b) Ascetismo intramundano e atividade científica O que haveria, então, na dogmática e na ética das Igre jas Reformadas, que pudesse explicar a predileção de seus (10) Cf. R. Hooykaas,
Hum anis m e,
S c ie n c e
et
réforme
— Pierre
de
la Ramée ,
Leyden, 1958, pp. 95-96; 86-87.
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A RELIGIÃO E O DESE NVO LVIM ENTO DA CIÊNCIA MOD ERN A
mem bros pela ciênci a? O profe ssor M erto n, inspirado na fa mosa Religions-soziologie de Max Weber, sugeriu, como causa, a importância da doutrina calvinista da predestinação. Na opinião de Weber, uma forma especial da doutrina da predestinação, surgida da crença de que a realização de ‘ ‘boas obras” é um sinal de predestinação (. Bewàhrungsglauben ), determinou a atitude de ascetismo intramundano (innerweltliche Askese ), adotado pelos reformados, inclusive os puritanos. Esse ascetismo deu origem a uma intensa ativi dade econômica, de tal forma que a atitude religiosa, talvez involuntária e inconscientemente, veio a favorecer o capita lism o.11 M erto n ampliou esta tese, demo nstrando que a ati tude de auto-repressão, simplicidade e diligência também fo mentou o interesse e a aptidão pela pesquisa científica e tec nológica.12 Não obstante, Weber e M erton deixaram bem claro, através de suas próprias i nvesti gações, que o as ceti smo “ in tramundano” foi também uma característica dos quacres, independentes, menonitas e pietistas, grupos estes que não eram inteiramente predestinacionistas, e, como tal, não sen tiam necessidade de que a predestinação fosse confirmada pela realização de boas obras.13 Embora o fator comum na crença dos predestinacionistas e não-predestinacionistas, ou seja, a adesão ao ascet ismo intr am un da no , possa ter exerci do uma ampla influência, não foi apresentada nenhuma prova concreta de que, no caso dos calvinistas, a doutrina da pre (11) M. Weber, Gesamm elt e Au fsatze zu r Religi onssoz iol ogie, vol. I, Tübingen,1920,pp.83,120,124,163. (12) Merton, op. cit ., p. 418. (13) Merton, op. cit., p. 417 : “ Os sentimen tos d e que estavam imbuídas a s vária s seitas pu ritan as, a despeito das diferentes racionalizações e po ntos de vista teoló gicos, levou-as aproximadamente a implicações idênticas, em relação à conduta sociar*. Weber e M erto n salientaram que, no que diz respei to a estas seit as, “ máximas
éticas semelhantes podem a fundamentos dogmáticos bastante dife rent es” . M erton, op.estar cit., correlacionadas p. 422.
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destinação e eleição tenha alguma relação com suas ativida des científicas. Merton não estava pisando em solo firme, ao se apoiar no ponto de vista de Richard Baxter, que conside rava apenas a glória de Deus e o benefício da humanidade quando lid ava co m a ssuntos de pesquisa cien tífica.14 A ati tude dos calvinistas a este respeito era, ao que parece, um tanto geral ; um a certa con cepção ét ica da miss ão da h um an i dade na Terra, e não qualquer dogma em particular, parece ter si do seu principal incentivo ou justificativa para o estudo da ciência.
1
e
(14) Merton, op. cit ., p. 419. Cí. J. T. McNeill, Calvinism , Nova Iorque, 1954, 1967, p. 222.
The History and Cbar acler o f
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A RELIGIÃO E O DESE NVOLV IMEN TO DA CIÊNCIA MO DER NA
avant
la
lettre
.15
No entanto, devemos reconhecer que foi quase inevi tável que uma florescente e devota classe burguesa buscasse uma aprovação religiosa a posteriori para as riquezas que acumulava. Foi ressaltado que, com a expansão do comércio e o triunfo do individualismo independente, veio a prevale cer o consenso de que todo sucesso pessoal era um sinal das boas graças de Deus. Jacob Cats, dos Países Baixos (15771660), bem-sucedido homem de negócios e poeta extrema mente popular, recomendava as obras de caridade como o “ depósi to mais seguro, já que o Banco do Cé u nu nc a vai à falência” . Não exis te nada de particu larm ente calvi nist a na teologia de Ca ts, bem c omo na crença do clérigo anglicano e mate mátic o Isaac Ba rrow de que ‘ ‘o exercício d a caridade é o método vantajoso melhorar ampliar en umtre patrimô nio’ \ 16mais Se o argu men todeem favo r doe vínculo a do utrin a (15) C. E. Raven, Science and Reiigion , Cambridge, 1953, p. 123. Cf. nossos comentários sobre esse livro (transmitido pela BBC, 3? programa, 1954) em: Free Univ. Quart . , 3 (1954) , pp. 205-211. R. K. Merton, op. cit., p. 417; cf. op. cit,> pp. 459, 432, n. 56. Sobre o jansenismo, Merton, op. cit. , p. 479 e S. F. Mason, M ain Currenls o f Scientific T ho ug h l , Nov a Iorq ue, 1953, pp. 137, 140. (16) “ É, porta nto, do interesse d e pessoas influentes ( da mag istratura, da no
breza, da alta burg ues ia, de todos aqueles com acen tuad as preocup açõe s mundan as)
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da eleição e a atividade econômica era frágil, o mesmo pode certamente ser dito de sua relação alegadamente estreita com a atividade científica e tecnoló gica. As *‘confissões de fé” amplamente aceitas das comuni dades reformadas são provavelmente os documentos mais representativos da opini ão dom inante en tre os genuínos calvinistas do século XVI. O exame dessas confissões dá a en tender que, segundo a fé protestante, as boas obras eram consi deradas como um “ fruto d a gratid ão ” pela salvação recebida, não um a reafi rmação de havê-l a recebido. De acor do comdos o Catecismo de Heidelberg, fé foi rações ho mens pelo Espírito S aanto .17 instilada A Confi nos ssãoco belg a (os assim chamados “ 37 A rtig os” ) procl ama que es ta fé tira o te rro r de De us; sem essa fé, “ o hom em jamais f aria algum a coisa por amor de Deus, mas somente por amor de si próprio e por receio da perdição” ; se tivéssemos de confiar em nossas boas obras, estaríamos sempre inseguro “ nos sas pobres consciências estariam sempre torturadas , se não depositássemos nossa confiança na paixão e morte de nosso Salva dor” . “ Os pecados qu e macul am até mesmo n ossas
que desejam continuar a usufruir, em paz e segurança, de sua dignidade, poder ou fortuna, proteger e promover, de todas as maneiras possíveis, a piedade religiosa como o melhor instrumento de sua estabilidade, assegurando, assim, o gozo tranqüilo das comodidades d o seu estado. Esta é, sob todos os títuíos, sua m elho r sabedoria e pol ític a: preserva r, no pre se nte , seu estado m aterial, e, com isso, satisfazer suas consciências e salva r suas almas, no futu ro ” (Is. Barrow, Works , vol. 1, Edimburgo, 1842, p. 11, “ Th e Profitableness of G odliness” ; 1? Epíst ola a Tim óteo 4, 8); suce sso, riqueza, honraria, discernimento, virtude, salvação ... normalmente são o fruto de noss a diligê ncia, que s e apres enta como o instru m ento e a for ma usual de alcançá-los” (op. cit., p. 479, “ Of Industry in ou r gene ral c allíng as Ch ristian s” , a respei to de Roman os 12, 11, “ nâo indolente nos neg ócio s5’)• M cN eill, referindo-sc a este e a outros autor es, salientou ap ropriadamente o caráter des encontrado do argum ento de R. H. Taw ney, que deline ia o desenvolvimento do indivi dualis mo econôm ico apen as atra vés dos escrit os pu ritan os (op. cit. , pp. 418-421 ).
(17) Catecismo de Heidelberg , Domingo 25, qu. 65.
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boas obras dissipariam nossa segurança.” 18 Estas não são palavras de almas torturadas, mas de pessoas que consegui ram a libertação. Por conseguinte, o ativismo dos membros das Igrejas reformadas, inclusive sua inclinação pela ciência, não pos suía o caráter de inquietude que seria de esperar-se pela lei tura de Tawney, von Martin e outros historiadores sociais. Da mesma maneira, tem passado despercebido, com fre qüência, que a doutrina da predestinação não é especifica mente calvinista, tendo sido exposta também por São Paulo, Tomás de Aquino e Lutero. É certo que Calvino emprestou a esta doutrina um caráter especial, porém as agudas perquirições dos sociólogos não conseguem descobrir nenhum elo entre a idéia de predestinação de Calvino e o capitalismo ou a ci ência mod erna. O que é mais impressionante acerca dos primeiros cien tistas protestantes é o seu amor pela natureza, na qual reco nhecem a obra das mãos de Deus, e o seu prazer em investi gar os fenômenos natura is. Um dos pais da an atomia com pa rada, o holandês Volcker Coiter (1534-1576), jamais se can sava de ex altar a providência do C riador, evidenci ada na ma ravilhosa adapt ação da es tru tu ra a nim al;19 o botânico Clusius declarou que as descobertas botânicas causavam-lhe tanta alegria como se ele tivesse descoberto um prodigioso te so uro ;20 o oleir o hug ue no te Bern ard Pali ssy (1510-1590) amav a apai. xonadamente as plantas, “ mesmo sua as mais des prezadas” Em uma ocasião, ele manifestou ira contra alguns trabalhadores por estarem maltratando plantas; em (18) Confessio Bélgica , Art. 23 e 24. O Catecismo de Heidelberg, a Confissão de Fé dos Países Baixos e os Cânones de Dordrecht são as declarações de fé oficiais das Igrej as Reformadas na H oland a. (19) Volcker Coiter, Externaru m et intern aru m principa lium hum ani corporis tabulae, Noribergae, 1572, c. 3.
(20) Cf. Arber, op. cit. , p. 88. .
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seu profundo sentimento por essas criaturas irmãs, ele dizia que não sabia por que as plantas não clamavam contra as tor tu ras que sofri am nas mãos dos ho m en s.21
c) ‘ 'Para a Glória de Deus ’’ O tema central da teologia da Reforma era ‘ ‘ a glória de Deus’5. Kepler escreveu, em 1598, que os astrônomos, na qualidade de sacerdotes de Deus no que diz respeito ao livro da na ture za , deviam te r em mente não a glória d e seu próprio intelecto, m as, ac ima de tudo, a glória de D eu s.22 A Co n fissão belga enfati za que a na turez a se apresenta “ ante n os sos olhos como um belo livro, no qual todas as coisas cria das, grande s ou pequ enas, são como letras que p atenteiam as coisas invisí veis de D eus” . A mesma concepção dos Dois Livros e seu paralelismo é encontrada na obra de Francis Bacon.3 3 A Igreja reformada ensinava que a obrigação de glorifi car a Deus por todas as Suas obras deve ser cumprida por todas as faculdades do homem, e não somente pelos olhos, mas també m pelo intele cto. Calvino era de opinião que aqu e les que negligenciavam o estudo da natureza eram tão cul pados como aqueles que, ao investigarem as obras de Deus, se esqueciam do Criador. Reprovava ve em ente mente aquel es “ fantá sticos” antagonistas d a ciência que di ziam que o es tudo apenas torna os homens soberbos e que não reconhe ciam que is to levava ao *‘con hec ime nto de Deu s e à or ie nta Réceptc véritable (21) B. Palissy, Oeuvres, ecl. Anatole France, Paris, 1880: (1564), pp. 35, 114. (22) Kepler para Herw art von Hoh enberg , 26- 3-15 98. (23) Confessio Bélgica , Art. 2. Ver Cap. 3, nota 15, e: Francis Bacon, The
A dvancem ent ofL earnin g , Livro I.
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ção da vid a’ ’ .24 Reiterad as vezes a firmo u que a pesq uisa ci en tífica é algo que penetra muito mais profundamente nas ma ravilhas da natureza do que a mera contemplação. Ao fazer essa declaração, não se referia à *‘física’ ’ especulativa de sua época, mas às sólidas disciplinas empíricas então existentes, ou seja, a astronomia e a anatomia, que revelavam, segundo ele, os segredos do ma croc osm o e do mic roco sm o.25 Essa tarefa de investigação científica não era tida como uma regra opressiva, mas era antes exaltada como um dever de amor e gratidão, como podemos constatar, por exemplo, nas de Bernard Robert Recorde Leonhard Fuchs, masobras Digges, Pal issy(1550), e Johannes Kepler. ElesThoen ten diam a pesquisa científica à luz da parábola dos talentos, que desempenhou um papel importante em sua ética. Segundo Calv ino, “ aque les que dispõem de tempo e capacidade” 26 não devem descurar do estudo da astronomia. Palissy dizia que, já que Deus lhe havia dado o talento de ver coisas, devia ele dedicar-s e ao estudo dos fósseis que e ncon trav a ao buscar barro para sua oficina. A expressão “ a cada um segundo os seus talentos” era utilizada por Kepler para argumentar que o homem iletrado, que honrava a Deus pelo que seus olhos viam, prestava-Lhe uma homenagem igual à do astrônomo, a quem Deus havia dado, em acréscimo, o olho da Razão, que lhe p erm itia enx erg ar com m aio r clareza (1609).2 7
(24) J. Calvino, Comentário sobre a Epístola de Paulo aos Coríniios I (8: 1). (25) J. Calvino, Institu tos , I. 5.2: Não obstante, segundo o falecido Dr. C. E. Raven (op. cit., p. 123), Calvino, em razão de sua severa disciplina religiosa, desenco rajava ativi dades que n ão favorec essem diretam ente a edificação d os santos. R. K . M erton d iz que Cal vin o “ dep rec iava a ciência” . (26) Calvino, Comentário sobre o Gênesis (1: 16).
(27) J. Kepler, Astro nom ia Nova (1609) , Introd uctio.
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d) Predes tinação e de term inism o Alguns dos que escreveram sobre a história da ciência aduziram ainda um ou tro efei to da do utrin a da predestinação sobre a ciência. Afirmam eles que o sistema calvinista com partilha, com o sistema das ciências naturais, a crença numa lei imutável; por conseguinte, a doutrina da presciência de Deus é tida com o capaz de fortalecer a cre nça n a lei natur al.28 Este argumento parece repousar num grave equivoco, uma vez que, praticamente, identifica predestinação com deternismo. as duas teorias comum a impli cação deCertamente que nada acontece por ac têm aso;em m as, e nq uan to u ma se fundamenta na livre vontade de Deus, e implica que Deus, que está além do tempo, conhece previamente tudo o que deseja, a outra é uma forma de necessitarismo; a primeira ressalta o reino de Jeová, a segunda, o império do destino e da necessidade.2 9 Os au tores bíb licos sus ten tam que exis te ordem no universo criado, e esta idéia foi também expressa por Tomás de Aquino, e pelo filósofo platônico Guilherm e de Conches. No entanto, estes dois últimos ressaltam que esta é uma ordem racional, que contém um elemento de necessidade. Por outro lado, segundo a Bíblia, esta ordem não possui nenhum caráter de necessidade; não é nem mes mo uma lei natural, mas um sinal do desvelo de Deus por Suas cri atu ra s.30 Calvi no não di scorria sobre es sa ordem de ntro), do tópico Preda estinaçã o” (que diziaesrespei sal vação mas sob o“ tem “ Prov idênc ia” (que tava to reláacio nado princip alm ente com coisas des te mun do). Não foi o cal(28) Sobre a crença de Calvino na lei imutável: Merton, op. cit., p. 468 (se guindo Hermann Weber, Die Theologie Calvtns, Berlim, 1930, pp. 29, 31) e S. F. Mason, op. cit ., pp. 142,137. (29) V er Cap. 1, pp. 31; Cap. 2, pp. 53-56. (30) Ver Cap. 1, sobre Malebranche e Berkeley. Também: W. J. Gravesande,
Oratio de Evid entia , Leiden, 1724, pp. liv-lv.
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A RELIGIÃO
E
O DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA MODERNA
vinismo, mas antes o tomismo (como na obra do teólo go anglicano Richard Hooker) que se aproximou bastante do determ inism o c ientífic o,31 ao passo que o pon to de vis ta de Calvino sobre este item mostrou uma maior afinidade com o scotismo e com o nominalismo moderado de Nicole D ’Ores me.32 Na verdade, o determ inismo não representou uma bên ção tão grande para a ciência como muitos são levados a crer. A despeito de todas as deduções em contrário, a realidade histórica tem mostrado que foi o voluntarismo, e não o de terminismo, que, a longo prazo, mostrou-se mais favorável â abertura de novos caminhos para a ciência. Nesta maneira de pensar voluntarista, a ordem da natureza não era nossa ordem lógica, mas aquela que representava a vontade de De us.33 Po rtan to, se a dou trina d a predesti nação tiv er sido favorável à ciência, isso deve ter ocorrido de uma maneira exatamente contrária à que foi proposta por Merton. Nos Institutos de Calvino está escrito, no capítulo sobre a Provi dência, que a mão paternal de Deus está presente em tudo o que acontece; as estrelas não nos podem fazer nenhum mal, todo tem or é infundado, poi s Deus reina. A ordem prové m de Deus, mas os desvios desta ordem, os eventos extraordiná rios, também promanam dele. A partir deste ponto de vista, não há difer ença es sencial en tre eventos com un s, tais como a seqüência dos dias e das noites; eventos extraordinários, como os terremotos; e eventos miraculosos, ou mesmo úni cos — “ Sol fique im óv el” . No s escri tos de Calvino não há (31) C. S. Lewis, English Literatura in lh e Sixte en tb C entu ry , Oxford, 1954, p. 49. (32) R. Hooykaas, Th e Princi pie ó f Un iformity i n Geology, B iology, and Theology, Leiden, 19591, 19632, pp- 211, 225. R. Hooykaas, “ Science and The ology in t he Middl e A ge s” , em: Free Univ.
Quart. (1954), §§6, 7, 2, 8, 12, (33) Ver Cap. pp. 13. 53-56, e pp. 58-61.
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refer ência a atos ou intervenções sob renaturais; a Prov idên cia de Deus é ‘ ‘obscurecida” por aqueles que a relacionam apenas ações especiais .34 caso dos nominalistas, foi para O aresultado, como no doxal: a ordem também era miraculosa. Isaac Beeckman (ele próprio um predestinacionista) afirmava que a Providência Divina faz com que todos os eventos da natureza coincidam com as resoluções de Sua livre vontade; quanto mais os ho mens procuram ordenar os eventos segundo leis mecânicas, tanto mais é possível compreender como esses eventos são misteri osos, ou, co mo sa lie ntou Be eckman : “ Qua nto mai s compreendemos a ordenação de Deus, tanto mais gloriosa e portentosa ela se nos apresenta” . Portanto, “ em ciência, devemos partir sempre do maravilhoso para o não-maravilhoso ... enquanto, em teologia, devemos ir do não-maravilhoso para o maravilhoso ... até qu e tudo pareça ser m irac u loso ” .35 Não obstan te, por mai s que o calvi nismo pos sa ter enfatizado a ordem estapredestinação, ênfase não tinha ne nhuma conexão comdoa universo, doutrina da em sua forma especificamente calvinista. Pouco a pouco, porém, a genuína doutrina da predestinação cedeu lugar ao determi nismo e ao deísmo, e o princípio metodológico da causali dade passou da ciência pa ra a teologia.
e) O sacerdócio geral dos c rentes Do que foi acima exposto, parece lícito concluir que, embora o sociólogo alemão e católico romano Müller-Armack est ivesse certo quand o afirmava que ‘ ‘em ne nh um ou (34) J. Calvino, Institu tos , I, cap. 16, § 4.
(35) R. Hooykaas, “ Scie nce and Reli gion in the Sev enteenth Ce ntury (Isaac Beeckman) ” em: Free Univ. Quart . , I (1951), p. 180.
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tro lugar a própri a estru tura dogmát ica incli nou-se mais i n tensamente em direção às coisas novas do que no protestan tism o” ,36 isso não er a devido espec ificament e à dou trina da predestinação. É provável que a influência preponderante deva ter s ido a ênfase tipicam ente pro testa nte (talvez m esmo “ reformada” ) no “ sacerdócio geral de todos os cre nte s” . Isso implicava o direito e mesmo a obrigação, para os que tinham os talentos, de estudar as Escrituras sem depender da autoridade da tradição e da hierarquia, e mais, o direito e a obrigação de estudar o outro livro escrito por Deus, o livro da natureza, semOrecorrer à autoridade fundadorespor da filosofia natural. huguenote Palissy foidos ridicularizado ter ele, um hom em “ sem instrução ” (isto é, não conhece dor do grego e do latim), ousado opor-se ao ponto de vista dos antigos, que acreditavam que os minerais crescem como as plantas. Um erudito, apresentado sob o nome de Theorique , pergunta-lhe em que livro havia aprendido sua nova opinião, e ele retruca dizendo que obteve seu conhecimento através da anatom ia da natu reza e nã o len do li vros : “ Nã o possuo nenhum outro livro além do céu e da terra, que são conhecidos por todos os homens, e que a todos foram dados para ler e conhecer” 37 Este sentimento da existência de um sacerdócio geral dos crentes encorajou os leigos protestantes a criticar livre mente os velhos sacerdotes (Pal issy acusou o clero de sua ci (36) A. Müller-Armack, Genealogie der Wirtschaftsstile, 3? ed., Stuttgart, 1944, p. 119. Nos séculos XIX e XX, isto tem sido aventado como uma possivel expli cação para a es cassa produção de cientistas por parte da população católica r om ana dos Esta dos Unidos: “ Pode também ocorrer que a li derança, m esmo for a do ca mpo pura m ente religioso, seja ainda co nsiderada um a prerrogativa clerical, e o m esmo pa rece ser igualm ente verdadeir o em relaç ão ao con hec im ento ” (J. J. Ka ne, ‘ ‘Th e socia l struct ure of Am erica n Catholic s” , em: Th e Am erica n Catho lic Soci ol. Re v . , 16 (1955), p. 30).
Discours admirables de la nature des ea ux et fo nta in es (1580), “ Des P(37) ier reB. s” Palissy, .
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dade de negligenciar sua obrigação de pregar o Evangelho, e de tosquiar suas ovelhas em vez de cuidar delas) bem como os novos presbíteros: Isaac Beeckman, como um membro leigo antigo da Igreja Reformada de Roterdã, por sua oposi ção à política religiosa dos ministros locais, mostrou-se tão independente em assuntos teológicos como em suas tendên cias cientí ficas .38 A convicção d e que qua lque r um podia ler o livro d a natu reza segund o sua capacidade encorajou os p ro tagonistas da nova ciência a concitar as pessoas incultas a auxiliá-los na coleta de dados para a elaboração de uma his tória natural e de uma geografia mais completas, transmi tindo-lhes observações sobre pássaros e flores, movimentos das marés, fenômenos celestiais e meteorológicos, e sobre a incl inação da agulha magnética.3 9 É clar o que este “ sacer dócio geral’ ’ para a interpretação do livro da natureza não surgiu apenas em função do seu similar teológico. Como já tivemos oportunidade de mencionar, o simples fato de nave gantes e artesãos haverem exposto ao ridículo as teorias dos letrados também contribuiu para isso. Mas a oposição desta nova ciência empírica â filosofia natural estabelecida atraía grandemente os protestantes. Suas mentes tinham sido for jadas com a idéia de que cada homem deve aceitar a respon sabilidade de descobrir a verdade tant o q ua nto possível por si (38) Beeckman, Journ al , vol. IV, pp. 88 e segs. O papel dos superiores diri gentes ( “ superiores leigos” ) nas I greja s Refo rmadas , e a regra que estabel ecia que nenhum ministro poderia sobrepor-se aos demais, bem como o princípio de eleição dos ministros (em contraposição à indicação vinda de cima), tudo isso resultou numa po sição não-clericalista. Por outro lado, R. H. Knapp e H. B. Goodrich, em seu estudo Ori gin s o f American Scienti sts, Chicago, sobre as srcens dos cientistas americanos ( 1952 ), oferecem, com o um a explica ção parcial da “ posiçã o nitidam ente inferior de pratica men te todas as in stituiçõ es católic as (dos Estados Unid os) na produ ção de cien tist as ” , en tre o utra s razões, o fato de que ‘ ‘o catolicismo dificultou a secularização das conce pções dos seus seguidor es e manteve uma estru tura firmem ente au toritá ria” ( op. cit. , p. 288).
fácio.
(39) W. Borough,
A Discourse o f the Variation o f the Compasse (1581). Pre
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mesm o, e de que deve hav er independência em relaç ão à au to ridade humana, para que a submissão á autoridade divina possa ser mais completa. Apesar disso, o tradicionalismo também permaneceu forte nos círculos protestantes. Nas universidades, em par ticular, predominavam o conservantismo e o conformismo. O “ estabel ecimento” de uma Igr eja fazia sur gir uma te n dência para a intole rânc ia e para o cl ericalismo, e isto explica os protestos dos independentes e de outros radicais contra o presbiterianismo (“ novo presbítero — versão ampliada do antigo sacerdote ” ). protestantes Esse clericalismo es tava en tre as inc on sistências das Igrejas estabelecidas, e suscitava reações violentas das facções e seitas independentes e radi cais. Não obstante, embora a força da tradição dentro do protestantismo fosse considerável, não desfrutava de ne nhum status ofic ial, nem era consider ada como um a fonte de revelação. Ademais, não havia, no protestantismo, ne nhuma forte autoridade central, à semelhança do Santo Ofí cio ou da Congregação do índex. Em razão disso, as opiniões individuais tinham melhores chances de serem ouvidas, es pecialm ente em países onde as seitas religiosas eram num e rosas e muitas vezes influentes, como na H oland a e na Ing la terra (e, durante um curto período, na Polônia). Nesses paí ses, o sectarismo científico e filosófico podia desenvolver-se com facilidade, e uma ampla margem de liberdade científica foi a conseqüência inevitável. Wilkins, escrevendo sobre a Universi dade de Oxfor d du rante a Com monw ealth, diss e que “ não se pode desej ar maio r liberdade em m atéria de opini ão e debate do que a que aqui ex iste ” .'10 Segundo ele, pra tica mente não havia ne nh um a hipótes e co nsistente, fosse antiga ou m oderna , como por exemplo a teoria atômica e a dou trina
(40) N. S. ( = Joh n Wilkins),
Vindiciae Academiarum
, Londres, 1654, pp. 1-2.
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de Copérnico, que não tivesse seus ardorosos defensores na quela unive rsidade, e havia total liberdade, seja para co nc or dar com Aristóteles, seja para di scord ar dele, todos “ pro n tos para segu ir a Band eira d a Verdade, desfraldada por quem quer que fosse5’, Nos países protestantes, os cientistas não eram obriga dos a aceitar o juízo de não-cientistas em matéria de ciência. Ao mesmo tempo em que, nos Países Baixos, o grande teó logo Gisbertus Voet (1588-1676) proclamava que a filosofia aristotélica constituía uma base indispensável da teologia ortodoxa, seus não menos ortodoxos oponentes, da corrente cocceana, ou separavam a teologia da filosofia, ou mostra vam uma tendência para o cartesianismo. Enquanto Voet defendia o sistema geocêntrico como o único compatível com as Sagradas Escrituras, sua influência era contrabalan çada por outros teólogos protestantes, que preferiam ou mesmo propagavam o copernicanismo, sem qualquer inter venção de sínodos ou de consistório s eclesiásticos. Assim como a Reforma religiosa assumiu uma atitude independente, não apenas em relação ao escolasticismo me dieval, mas mesmo (ainda que mais respeitosamente) em re lação aos Fund adore s da Igreja, da me sma m ane ira a reforma cientí fica rejeito u, n ão apenas a física escol ástica, como ta m bém, em muitos casos, a crença humanista na infalibilidade dos antigos. O inglês puritano Nathanael Carpenter admitia que Lac tâncio fosse “ um Pai piedoso e eloq üen te” , mas “ a infantilidade de seus argumentos terminaria revelando sua ignorân cia das noções m ais elem entares de Co smog rafia’ \ 41 Urgia que se promovesse um retorno âs fontes: ao livro das Escrituras, por um lado, e ao livro da Natureza (mais
(41) N. Carpenter, vro I, C a p .10.
Geographie Delienated Forth,
2? ed., Oxford, 1635, Li
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velho ainda do que os antigos), por outro. Era necessária a crítica, não apenas dos escolásticos, como também dos an tigos, reafirmar o valor da época presente. Talvez essa atitudepara de independência fosse mais difícil de ser assumida pelos eruditos do que pelos iletrados, já que os primeiros sabiam o quanto os conhecimentos da época, em, por exem plo, astronomia, matemática e engenharia, fundamentavam se na herança antiga. Não obstante, até mesmo o humanista Petrus Ramus admitia que uma única experiência de um ho me m inc ulto tin ha m ais peso do que a autoridad e de todos o s antigos; “ a antiga e verdadeira fi losofia nu nc a foi levada a aceitar facilmente tudo o que viesse dos filósofos, por mais conceitu ados q ue fos sem5*42 M uitas vezes os cientist as mostravam -se es sencialmente mais protestantes do que os teólogos. Kepler foi um devo tado lu tera no , m as a autoridad e de Lutero não o levou a acei tar a interpretaç ão lute ran a da eucaristia como sendo a única possível ou admissível. mesm a liberdade mantinha em questões cientí ficas: “Esta Santo é Lactâncio, queele negava que a Ter ra fos se esférica; santo é Ago stin ho , que adm itia a es fericidade da Terra, mas rejeitava a existência de antípodas; santo é o Ofício, que aceitou os antípodas, embora rejeite o movimento da Terra ... porém mais santa ainda para mim é a Verdade, que revel a que a Ter ra é um a pequena esfe ra, que os antí podas existem, e qu e a Terr a est á em m ov im en to” .43 Nathanael Carpenter, em seu Free Science (1622), manifes tou-s e con tra “ o supe rsticioso cult o de A ristóte les” e con cluiu sua exortação em favor da liberdade de pesquisa cie ntí fica com esta afirmação candente: ‘‘Sou livre, não estou su (42) P. Ramus, A ctiones duae habitae in senatu, pro regia mathematica professionis cathedra, II (1566). Cf. R. Hooykaas, Hutn anisme, science et ré fo rm e , Cap.
IV (“ La philos ophie l ibre de R am us ” ), pp. 15 -19. (43) J. Kepler, A str onom ia N ova (1609) , Introdução .
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jeito à palavra de ninguém , exceto àquelas inspiradas por D eus ” . O teólogo purit ano John Wil kins t ambém mostrou se contráriodeve ao autoritarismo na ciência. suaabertamente opinião, o homem valer-se, na teologia, dos Em mais antigos escritores (a Bíblia); mas, em relação àquelas ciên cias que se desenvolvem por meio de novas experiências e descobertas, nós somos os mais antigos: a Antiguidade foi a juventude do mundo. Estes argumentos seriam encontrados novamente na polêmica de Pascal com os jesuítas, alguns anos mais tard e. Segundo Wilkins, a ciência “ não é formada de ou tra coi sa que não nov idad es” ; na ciência, *‘a verdade é filha do tempo” (uma expressão copiada de Bacon). Apesar disso, Wilkins não quis impor sua opinião, já q ue “ o leitor pode fazer uso de sua própria liberdade” , ao avaliar a utili dade de seus argumentos. O peso de um grande número de autori dades não de ve te r uma influ ênci a prep onde rante, nem “ sua habili dade em a lgumas cois as deve torná-lo s dignos d e créditdeo silenciar nas demos ais” . Esta eúltima investi da foi feita no se n tido filósofos teólogos que usavam sua auto ridade para impor as próprias concepções em assuntos cien tíficos.44 Os de fensor es da Nova Filosofia estavam perfeitam ente cônscios da analogia entre a liberação da tradição filosófica e eclesiástica, através da Reforma, e a liberação da ciência da autoridade dos antigos, por meio dos novos conhecimentos. Thomas Culpeper (1655) salientou que uma não queria um papa em religião, a outra rejeitava o “ papa em filosofia” (Aristóteles), e ambas tinham um caráter colegiado — sínodos, de um lado, e socie dades científi cas, do outr o.45 Tho~
(44) J. Wilkins,
A Discourse concerning a ne.w Planet (1640), prop. I, consi-
dração I. (45) Th. Culpeper,
M orall Discourses a ndEssayes , Londres, 1655, p. 63.
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mas Sprat (1667) destacou aquilo que a Reforma e o Novo Conhecimento tinham em comum, isto é, o fato de ambos “ refugarem cópi as adultera das, para buscar esclareci mentos nos srcinais perfeitos: a primeira nas Escrituras, o segundo no volumoso compêndio das c riaturas ’ ’ .46
B) CIÊ NC IA E EXEGESE BÍBL ICA
a) A Bíblia com o um a fo nte para a ciência Ind ep en den tem en te da questão de saber se o clima geral criado por uma religião bíblica foi favorável ao cultivo da ciência, resta ainda o problema de avaliar se a representação do mundo, contida em algumas passagens bíblicas, aliada à injunção de aceitar a Bíblia como uma autoridade divina in contestável, não funcionou como um impedimento á liber dade da ciência. Os debates suscitados em torno do sistema de Copérnico demonstraram claramente que a interpretação literal ou não-literal de certos textos decidia se o movimento da Ter ra e ra ou não admissív el. total ou O ponto em debate não era se a Escritura era parcialmente inspirada por Deus, pois todos concordavam que ela representava a palavra de Deus, do Gênesis à Reve lação. Ao mesmo reconhecia-se a Bíblia não ha via caído do céu, tempo, mas que havia sido que escrita por homens, cada um dos quais usa seu próprio idioma, suas imagens, metáforas e crenças — e transcreveu, portanto, a verdade eterna em termos humanos. O problema, por conseguinte,
(46) Thomas Sprat,
The History ofthe Royal Society of London,
4? ed., Lon
dres. 1 734, p . 370.
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149
era saber até que ponto as passagens bí blicas em questã o eram , efetivamente, a revelação da autoridade divina, e até que ponto não passavam de concepções ou maneiras de falar h u manas, próprias da época e irrelevantes para a mensagem da salvação e a conduta da vida. Ademais, não teria o caráter “ hu m an o” da Escrit ura per mit ido que t ivessem guari da no texto sagrado as crenças ingênuas ou mesmo errôneas dos escritores (crenças não condizentes com a verdade científica “ ob jetiva ” )? Alega-se muitas vezes que o protestantismo, em virtude de haver rejeitado a Tradição como fonte de revelação, ape gou-se, ainda mais do que o catolicismo romano, a uma in terpretação literal da Bíblia. Isso parece bastante plausível, mas, como muitas vezes ocorre com deduções históricas, não encon tra r espal do nos fatos.1 Isso torna-se evidente quando consideramos a resposta de um dos maiores teólogos da Contra-Reforma, o Cardeal Roberto Belarmino, S. J. (1615), ao carmelita Foscarini, o qual (como Galileu)2sus tentava que a teoria do movimento da Terra, já que não in fringia nenhum artigo de fé, nem dizia respeito à salvação, podia ser verdadeira, mesmo que não fosse conforme â letra da Escritura. Belarmino contraveio, afirmando que o Conci lio de Trento havia ordenado que a Escritura fosse explicada em conformidade com os ensinamentos dos Santos Padres, e
(1) Sem levar em consideração princípios exegétícos, é evidente que na inter pretação de textos relacionados com a Eucaristia, os in té rp rete s da Igreja Reformada foram menos literalístas do que os adeptos da transubstanciação. Por outro lado, as passagens dos Evangelhos sobre os irmão s de Je sus não foram tomadas no sentido literal pelos exegetas católicos romanos, que partiam do pressuposto de que Maria perm an ec eu virgem . A in terp re taçã o literal de tex tos bíblicos foi o principal argum ento para a cond enação de Galileu; o desvio da filosofia aristotélica veio em segund o luga r em importância.
(2) ;Galileu di Lorena (1615), com referência e a tes. A gos tinho Galileupara paraCristina Ben edetto Cast elli (21-12 -1613) . V er pa pTertuliano . 162 e seguin
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estes, da mesma maneira que os modernos comentadores do Gênesis, Salmos, Eclesiastes e Josué, interpretavam o movi literal. Por con mento do Sol em torno da Terra no sentido seguinte, Igreja contrário não podiaaoapoiar uma exegese da Escri tura num asentido dos Padres. Belarmino não aceitava a objeção de que este assunto não era matéria de fé (“ matéria d i fede ex parte objecti ” ). É matéria de fé, dizia ele, porque é Ele quem fala (“ é matéria di fe de ex parte dicentis ” ). O homem que nega que Abraão teve doi s filh os, ou Jacó doze filhos varões, é tão herético como aquele que nega que Cristo nasceu de uma virgem, pois ambas as reve lações foram feitas pelo Esp írito S anto, pela boca d os p rofetas e dos apóstolos. Além disso, Salomão, que escreveu que o Sol se levan ta e volta a s eu lu ga r, era muito versa do em todo o saber hu m an o, e havia recebi do ess a sabedoria d e D eu s, de tal sorte que seria impossível que ele afirmasse algo que não fosse um a verdade demonstra da ou dem onstrável. 3 Ne ste ponto, portanto, a Tradição, como fonte de revelação, tor nou-se mais um implicava obstáculo àa liberdade tanto maisna que a Tradição influênciadadaciência, filosofia grega interp retaç ão da Bíb lia. O ponto de vista diametralmente oposto, que também fez uso de um a referê ncia a Salomão, foi adotado pelo t eólogo puritano John W ilkins, o qual, influenciado por Calvino, es creveu: “ Seriamos f elizes se pudéssemos isentar a Es critu ra de controvérsias filosóficas; se nos contentássemos em deixá-la ser perfeita dentro da finalidade para a qual foi conce bida, como uma Regra de nossa Fé e Obediência, e não ten tássemos transformá-la também em Juiz dessas Verdades Natu rais que devem ser descobertas por interm édio de nossa própria Indústria e Experiência” . O Espírito Santo poderia
(3) Roberto B elarmino para Paol o A nton io Foscar ini (12 -4-1615) .
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facilme nte ter- no s inform ado sobre elas — no en tan to , ‘ ‘Ele preferiu deixar que os filhos dos homens trilhassem esse ca m inh o” .4 Isto significa qu e W ilkin s e outros como ele des cartaram Bíblia não como como uma uma fonte diretriz para a pesquisa científica,amas apenas de informação con creta. Naturalm ente, havia a tentação, especialmente para aqueles que desejavam substituir uma teologia baseada em princípios aristotélicos por uma teologia puramente bíblica, de fundamentar também a ciência em bases bíblicas, e não aristotélicas. E esta fundamentação bíblica muitas vezes fazia com que se buscasse na Bíblia não apenas uma apreciação geral do mundo, mas também dados concretos sobre sua es trutura. A chamada filosofia mosaica (cosmologia, física, química) estava alicerçada nos textos bíblicos e opunha-se à “ filosofia gentílica” de Aristóteles. N o en tan to, a filosofia mosaica era, em traços gerais, uma projeção, na Escritura, daquilo que se supunha ser a sabedoria egípcia, e que teria vindo d e Abraão ou m esmo de Set, emb ora, n a verdade, pro viesse da Antiguidade recente.5 Entretanto, a idéia do estabelecimento de uma ciência natu ral “ bíbli ca” não teve uma aceitação g eral entre os adeptos da Reforma. A idéia foi rejeitada por escritores in fluentes, tais como Ramus e Francis Bacon, Kepler e Wil kin s. Na opinião de Bacon , buscar o “ céu e a te rr a ” na palavra de Deus era tentar encontrar coisas transitórias entre as eter nas ; p roc ura r filosofia na divi ndade era como pr oc ura r os mortos entre os vivos.6 Em ger al, o “ bibli cismo” dos (4) Eclesiastes, 3: 10. J. Wilkins, Discourse conce rnin g a new Planet (1640), prop. II. (5) Cf. R. Hooykaas, H u m a n i s m e , S c ie n c e e t réforme, cap. XIV (“ Ramus, Paracelse , et la Th eologia Pr isca” ), pp. 10 8-112. (6) Fr. Bacon, A dvancem ent o f L eam ing , II. Procurar ciência na Bíblia cria
não apen as uma pbilosopbia phantastica , como ta mbém um a religio haeretica (Bacon,
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cristãos pro testan tes não dizi a respeito a assuntos científi cos, e, ao buscarem os dados da ciência unicamente no livro da criação , eles seguiam o exemplo de um dos seus maiores mestres: João Calvino.7
b) A posição de Calvino sobre ciência e Escritura Calvino, embora muito crítico em relação ao pensa mento pagão, não repudio u tudo o que se relacionava com os pagãos. Sua doutrina da 4‘graça com um ” impediu-o de desa provar, em bloco, toda a herança literária e cultural dos gre gos. Ele era um humanista talentoso e realista demais para aceitar que a Queda tivesse levado o homem a uma total depravação no campo científico. Na opinião de Calvino, a luz da verdade b rilh a tam bém para os pagãos, e ‘ £se ac red ita mos que o Espírito de Deus é a única fonte da verdade, não podemos rejeitar ou desprezar a verdade, onde quer que ela se revele, sob pena de ofendermos o Espírit o de D eus” ,8 Era de se esperar, portanto, que Calvino acompanhasse a prática comum de descobrir na Escritura a cosmologia grega. No entanto, muito ao contrário, reconheceu, com maior clareza que seus contemporâneos, que havia uma dis crepância entre a astronomia aristotélica de sua época e a visão mundo do vastidão, Livro do os Gênesis. Enquanto Moisés fa única lava dedouma astrônomos faziam distinção entre diversas esferas. Mostrou que o Gênesis chama o Sol e N ovum O rganum , I, af. LXV). J. Kepler, Apologia contra Fludd (1622). J. Wilkins, Discourse co ncern ing a ne w Planei (1640), prop. IV, final. (7) J. Calvino, Comentários sobre o Primeiro Livro de Moisés, chamado Gê nesis (1554), cap. I, 15. Comentário sobre os Salmos (1557), Salmo 19: 4-6; Sal mo 24: 2.
(8) Calvino, Institu to s, II. 2. 15.
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a Lua de “ grand es luze s” , ao passo que os as trônomos p ro vam, de forma irrefutável, que a pequenina estrela de Sa tur no é maior do que a Lu a.9 Por o utro lado, Calvino nã o rejeitava o sistema astronômico vigente. Sendo leigo em as tronomia, tinha como válido o sistema do universo geral mente aceitQ desde a Antiguidade. O motivo da diferença entre M oisés e os astrônom os era, e m sua opinião, que M oi sés escrevia de uma maneira popular, e descrevia tudo o que as pessoas com un s, dotada s de bom -senso, fossem capazes de compreender, enquanto os astrônomos investigam tudo o que a perspic ácia da mente hum an a pode pe net ra r.10 Desta forma, o método exegético de Calvino baseava-se na d ou trina pro testan te segundo a qual a mensagem religiosa da Biblia é acessível a todos. O Espírito de Deus, (afirmava Calvino), abriu uma escola comum a todos e, portanto, es colheu assuntos inteligíveis para todos. Moisés foi consa grado mestre tanto dos incultos como dos letrados; tivesse ele falado de coisas gera lm ente de sconh ecida s, as pesso as iletradas poderiam ter alegado, como desculpa, que esses assuntos estavam além de sua capacidade; por essa razão, Mois és “ procurou adapt ar seus escritos ao uso co m um ” . A Bíblia era, portan to, um “ livro para leigos” ; “ aquele que desejasse aprender astronomia, ou outras artes recônditas, que fosse a outros lugares’ ’ .n Calvino chegava mesmo a achar que o Espírito Santo tinha deixado passar outrogem equívoco vu lgaocasionalmente r, a fim de rev elar o sentido de um Sua ou m ensa esp iritua l. Em seus com entário s sobre o Salmo 58: 4, 5 (“ Eles são como a víbora surda que tapa os ouvidos para n ão ouvir a voz dos encantadores, d o mais fascinante em enc an tam en tos” ), (9) Calvino, Coment. Gênesis 1,16. (10) Calvino, Coment. Gênesis 1,6.
(11) Calvino, Coment. Gênesis
1, 15; veja abaixo, p. 131-
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Calvino tem dúvidas sobre a possibilidade de os en can tad ore s hipnotizarem serpentes e de as víboras taparem os ouvidos. Sugere,-portanto, uma alternativa à interpretação realista: “ Davi valeu- se, nesta compara ção, d e um equí voco com um , como se tivesse dito: n ão há astúcia que p ossa ser enc ontra da em serpren tes que não prevale ça nestes hom ens; pois embora as víboras possam se defender dos encantamentos, por sua própria malícia, ainda assim estes homens se mostram tão astuciosos como elas5’ .n O sólido bom-senso de Calvino também fica patente quand o 1elecomo interp reta nuvens. as “ águas firmum amoceano en to” do Gênesis sendo Elas acima não sãodonem verdadeiro, como julgavam os literalistas, nem anjos, como que riam os exegetas ale góricos (como O rígen es): ‘ ‘Pois pa rece contrário ao bom-senso, e inacreditável mesmo, que houv esse ág ua acima do f irm am ento ” . Calvino prefe riu in terpretar es sas águas da mes ma m aneir a “ como o s ign oran tes e incul tos teriam também p ercebido” .13 Nã o acreditava que a autoridade da Es critu ra exigi sse aceitaç ão de princípios não-racion ais, no que diz respeito â na ture za: “ a afirmação de alguns de que abraçam pela fé o que aqui leram a respeito de águas acima do firmamento, embora o seu entendimento não o alcance, não está de acordo com os desígnios de Moi sés” . 14 é,
(12) Calvino, Coment. sobre os Salm os , LVIII. 4-5. (13) A possibilidade de que fosse a própria visão do mundo do antigo escritor não foi levada em consideração. Entretanto, a diferença de sofisticação entre uma visão ingênua do mu ndo e um a obser vaçã o ingênua não é grande. (14) Calvino, Coment. Gênesis 1, 7.
(15) Calvino, Coment. 2? Timóteo,
3: 16.
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(16) Calvino, Coment. Romanos 5: 15. (17) Calvino, Coment. 1 Coríntios 1: 17. (18) Calvino, Coment. Gálatas 5: 11. (19) 1 Co ríntios 11 : 14: “ O u não vos ensina a própria n ature za ser desonroso para o hom em usa r cabelo c om prido ? ” . (20) Calvino, Coment. 1 Coríntios 11: 14.
(21)para N os os dos Ap7:14), óstolo mas s, Lucas escreveu que10:22 seten etaoe Gênesis cinco pes24:27 soas for am com Jacó o At Egito (Atos o Deuteronômio
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ex parte dicentis
Um a grande vantag em da exegese de Calvino é que, em casos contro vers os, ele não se sentia incl inado a f azer afirma ções apodícticas. Por esta razão, John Donne o preferia a M elanchton — “ Calvino diria: Videtur, parece ser assim; Melanchton: Não pode ser de outra maneira, senão assim. Mas os melhores homens são problemáticos; somente o Es pírito Santo ... possui infalibilidade” . Um elogio desse tipo seria o maior que poderia ser feito também a um cientista. Essa espécie d e exegese d o livro da E scritu ra foi um exemplo para os que se ocupavam com a interpretação do livro da Natureza. É meritório para Calvino que, embora reconhecendo a discrepância entre o texto bíblico e o sistema científico do univ erso em sua época, não tenh a repudiad o, em razão d isso, as conclusões da pesquisa científica. Portanto, já que o sis tema aristot élico ou ptol omaico, embora não presente na Bí blia, pode, não obstante, ser verdadeiro, as tentativas de en con trar na Bíblia os argu mentos para re jeitar outros sistemas
mencionam apenas setenta, Calvino atribuiu a isto um erro de transcrição da versão grega, talvez mantido por Lucas por estarem as pessoas acostumadas a ela; ou, talvez, estivesse registrado o número correto no texto srcinal, e alguém o tivesse adaptado à vers ão corren te do Antig o Testam ento ( i Coment , A to s 7: 14; Corp. Ref. LXXXV). No entanto, Calvino acrescentou que devíamos antes meditar sobre o miraculoso cresci mento do povo judeu, do que nos preocuparmos ansiosamente acerca de uma palavra que alterou um número. Em sua opinião, quando Lucas diz que os patriarcas foram postos no sepu lcro que Abra ão comprou aos filhos de Em or (A to s 7: 16), “ ele evi dentemente equivocou-se” , pois Abraão comprou uma caverna a Efrom, o heteu, na qual J acó foi enterra do (G ênes is, 50 : 13), enqu anto Jacó comprou um campo aos filhos de Em or (G ênesis 33 : 19), onde José fo i en terra do (Josu é 24: 32).
(22) Calvino, Coment. Actos, (23) Verp. 150.
7: 16.
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astronômicos perdem todo valor. É possível, então, admitir tam bém que o sistema d e Copérnico se ja verdad eiro, embora não esteja na Bíblia.
Comentário sobre o Gênesis
H is to ry o f ln te r p re ta ti o n
(24) A. D. White, A Histo ry o f the Warfare o f Science witb Theolo gy in Christendom, Londres, 1896. (25) White, op. cit. , p. 127. (26) F. W. Farrar, H isto ry o f ln terpreta tion, Londre s, 1 886, p. xviii: “ Q ue m ” , indaga Calvino , “ ousar á colocar a autoridade de Copérnico acima da do Espirito San to? ”(27) . R. Hooyk aas, “ Thom as Digges’ Pu ritanism” , em: A rch. In tern at. Hist. Sciences , 8 (1955) , p. 15 1: “ Science and Reforma tion” , em: ]. World H ist. , 3 (1956), pp. 136-138; Revue Hist. S c. , 8 (1955), p. 180. N ota adicional à segunda edição: A primeira edição deste livro já se encontrava no prelo quando o Prof. W. Voisé (Varsóvia) gentilmente nos transmitiu informação sobre uma recente publicação de R. Stauffer, o qual descobriu que, num sermão sobre 1 Cor. 10: 19*24, Calvino rejeitou a idéia de uma Terra móvel. Do ponto de vista históri co, isto não altera a situação, um a vez que nem os oponentes nem os part idários do sistema copernicano referiram-se a esta passagem. E, de fato, isto não poderia ter alterado nada, também do ponto de vista exegético. Calvino, ao rejeitar o movimento
da Terra, não o fez em razão de sua incompatibilidade com a Sagrada Escritura, mas
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por entrar em co nflito com o senso co mum . Em su a opinião , este é um o utro exemplo de um espírito de contradição que leva a absurdos, como seria o caso de afirmar que a neve é preta, Nem em seus comentários sobre textos com implicações cosmológícas, nem em seus sermões sobre o Gênesis, Calvino fez menção do problema do movimento da Terra; ele via isto num contexto ético, e não cosmológico. Além do mais, nem mesmo menciona o nome de Copérníco, ou qualquer outro nome, em conexão com a teor ia do mo vimen to da T erra. Consulte noss o artigo em Organon, 1973. (28) “ Ma s o maior exeget a e te ólog o da Reforma f oi, sem düvida alguma, Cal vino” (Farr ar, op. cit., p. 342; cf. p. 343); “ Um aspecto característico da exegese de Calv ino é a sua aversã o à ortodoxi a oc a” (p. 345); “ Sua vig orosa hones tidad e” , ao fazê-lo rejeitar pre conceitos ant iquados, “ atraiu sobr e ele o mais encarniçado ó dio ” de teólogos luteranos e católicos romanos (op. cit., p. 346). Na verdade, podíamos acres centar que do is grandes cientistas, que fora m acusad os de “ criptoca lvinism o” por seus comp anheiro s de fé lute ran os, seg uiram os mesm os princípios exegéticos de Calvin o. O físico ham burgue nse Joachim Jung ius f oi persegui do por haver d em onstrado a existên cia de “ hebraism os” no Novo T estamento Grego; e Kepler so freu por sua ati tude indu lgente em relação á interp retaç ão dada à Santa Ceia pe la Igreja Reformad a. (29) Farrar, op. cit., p. xvi ii. “ ‘A s descobert as de N ew ton 5, diz o puritano John Ow en, sã o ‘contrárias ao testem unh o da E scr itur a’ ” . Mais adiant e (op. cit,, p. 432, n? 2), Farrar indica o lugar: “ Quando Jo hn Owen (Works, XIX, p. 310) declara que as descobertas de New ton seriam ‘base adas em fenôm enos falívei s, e d esen volvidas segundo muitas suposições arbitrárias, contra o testemunho evidente da Es critura’, suas afirmações representam não mais do que um espécime das centenas e milhares de declarações obscurantistas de teólogos que atribuem infalibilidade a seus próprios erros de e xeg ese ' ’. Sem levar em conta o exagero da acusação contra Owen, esta citação, embora não totalmente fictícia (já que a passagem foi atribuída a Calvino), é enganosa. Na verdade, Owen, após mencionar a ordem dos planetas segundo o antigo sistema, con tinuou: “ Q uaisque r que sej am as alteraçõe s aqui introduzidas p ela hipótese mais re cente, que fixa o Sol como o centro do universo, baseada em fenômenos falíveis, e desenvolvida a partir de muitas suposições arbitrárias, contrárias ao testemunho evi dente da Esc ritura, ... não são aqui le vadas em consideraçã o” . Ne wton não é mencio nado, e, na verdade, seria estranho que o fosse, pois o trabalho de Owen é datado de 1671, ao passo que os Frincipia de Newton foram publicados em 1687, isto é, após a
morte de Owen.
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(30) Lutero, Tiscbreden , Weimar, 1916, vol. 4, n? 4638, d. d. 4 Juni 1539: ‘‘De novo quodam astrologo fiebat m entio ... Wer do will klug sein , der soll ibme nichts lassen gefallen das andere achten; er mus ibme etwas eigen machen, slcut ille facil, qui totam astrologiam inv&rtere vult. Etiam illa confusa tamen ego credo sacrae scripturae, nam Josua iussit solem stj re, non te r ra m " . Uma versão posterior acres centa: ‘ ‘o idiota quer inverter t oda a arte da astronom ia” (1566). C f, H . Bornka mm , “ Coperni cus im Urteil der Refor mati on ’ \ Arch, f. Ref. Gesch., 40 (1943), p. 171 e segs. (31) Melanchton, Initia doctrinaep hysicae (1549). Corp. Ref, XIII, 216 e segs. (32) A oração f oi proferida por Caspar Reinhold. Corp. Ref. XV,col. 833-841.
(33) Corp. Ref. IV, 810. 839.
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c) Infl uên cia da teoria da acomodação de Calvino Indubitavelmente, a teoria da acomodação de Calvino exerceu um a considerável influência so bre os astrôno mos se guidores de Copérnico, nos países protestantes. No prefácio que escreveu para o De Magnete de William Gilbert (1600), Edward Wright defendeu a teoria do movimento da Terra (que tam bém tin ha sido div ulgada pelo próprio G ilbert), afir mando não estar ela em conflito com a Escritura. Manifes tando-se co ntra as objeções literalistas l evantadas co ntr a esta teoria, repetiu oa intenção argu mento de que nem Moisés, os pro fetas, tiveram de divulgar sutilezas físicasnem e mate máticas, e, portanto, não entraram em minúcias supérfluas. Moisés ‘ ‘acomodou-se ao entendimento e à maneira de falar das pessoas comuns, como fazem as amas com as crianci nhas* \ 33a Isto foi sem elh an te à declaraç ão de Ca lvin o de que o Espírito Santo ‘ ‘escolhe adap tar-se e s e com un ica r conosco como que balbuciando, ao invés de bloquear o caminho do conh ecim en to às pesso as rudes e inc ultas ’ ’ .34 O ministro protestante Philips van Lansbergen (15611632), calvinista convicto e astrônomo famoso, foi o mais zeloso propagad or do copernica nismo nos Países Baixos . De fendeu o ponto de vista (1619; 1629) de que a Escritura não fala sobre assuntos astronôm icos “ segundo a situação real, mas segund o as aparências *’. O te stem un ho da E scritu ra, explicava ente ele, invo é a própria verdade, mas osua erroneam cada para demonstrar mo autoridade vimen to foi celes tial; “ a Es critu ra foi-nos outorga da por inspiração de Deus, e deve ser usada para doutrina, exprobação, correção, e para o exercí cio da probidade, mas não é própria para o ensino da (33a) William Gilbert, Wright),/»/. Vr.
De magnete , Londini, 1600.
Praefatio (por Edw.
(34) J. Calvino,
Coment. Salmos, 136: 7. Ver p. 153-154.
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geometri a e da astronom ia” .35 O método d e calcular a cir cunferência do círculo pode ser aprendido em Arquimedes, mas não na Escritura, que muitas vezes faz uso dos números de uma forma aproximada, como por exemplo quando de clara que o mar de fundição tinha dez côvados de diâmetro e um fio de trinta côvados era a medida de uma circunferên cia.36 Em 1633, seu filho, o médico Jacob van Lansberg en, escreveu um trabalho em defesa de seu pai, que tinha sido atacado pelo padre católico Fromondus e muitos outros. Em apoio à concepção de seu pai em relação â Bíblia, Jacob refe riuse expli citamente ao as “ nosso Cal vino” , Calvinus noster , e citou, aprovativamente, passagens relevantes dos escri tos do Reformador: “ o Espírito como que bal bucia para nós” , e tam bém o com entário sobr e o Salmo 58 , onde dis se que o E spíri to Santo acomoda-Se a erro s vulg are s .37 Johannes Kepler foi também, a exemplo de seu mestre em Tübingen, o teólogo-astrônomo Michael Mastlin, um ardoroso adepto de Copérnico. Contudo, ao ser acusado de criptocalvinismo, não seria de se esperar que ele citasse Cal vino. No entanto, seus argumentos exegéticos em defesa da ortodoxia cosmológica d e Copérni co a ssemelham -se bastante a alg uns con ceitos do Ref orm ado r.38 (35) Citação da Epístola d e Pa ulo a Timó teo (2 Tim óteo 3: 16). (36) 1 Reis 7: 23; 2 Crô nica s 4: 2. Philippus Lansbergen, Bed en ck ingen op den dagelijckschen ende laerlijcscben
loop vanlatina: den Aardkloot (1? ed., Middelburg, 17-22. Edição Commentaüones in motum terrae 1629); diurnamMiddelburg, et annuum 1650, pp, , Middelburg, 1660. Contro vérs ia prima de mo tu d iur no . (37) Jacobus Lansbergius, Apo logia pro Commen ta tionib us Pbilippi Lansbergii, Middelburgi Zelandiae, 1633, pp. 49-55. (38) J. Kepler, Astro nom ia N ova (1609). Intr oductio: “ As Sag radas Esc ritu ras falam sobre coisas com uns (no ensino daquilo par a o qual el as não foram instituídas) a criaturas hum anas, num a m aneira hum ana, para que pos sam ser compreendidas pe la humanidade; elas usam o que geralmente é reconhecido pelas pessoas, a fim de fazê-las enten der ou tras coisa s, mais elevada s e div inas ” . A intenção do Gênesis 1 é, na opi nião de Kepler, exaltar as coisas conhecidas e não perquirir sobre as coisas desconhe
cidas. Cf. J. Kepler,
Tertius interveniens
(1610 ), teses VII; L IV, 4,
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d) A posição d e Galileu sobre as Escritura s e o movimento da Terra A posição de Galileu acerca da relação entre exegese bíblica e teoria científica era muito mais complicada do que a dos protestantes. Ou a sua lealdade estava dividida, ou ele apenas fingia estar de acordo com o ponto de vista da Contra-Reforma. Como Calvino, Kepler e Lansbergen, aceitava a teoria da acomodação, mas apenas num nível superficial; pois, ao mesm o tempo, mostrava-se adepto da concepção romano-católi ca de que “ verda de” científica está na Bíblia, embora (em sua opinião) visível apenas para os iniciados. Utilizava o argumento da acomodação quando debatia sobre os mestres d a Igrej a, tais como A gostinh o, Jerôn im o ou T o más de Aquino (o qual, no entanto, nunca o aplicou a pro blemas astronômicos), que enfatizaram què a Escritura se refere a Deus como tend o mãos, como f icando irado, etc. Na opinião d e mesma Galileu maneira, , seria bl asfêmia tom adapta-se ar isto em áseu sentido literal. Da a Escritura crença comum quando fala do “ m ovim ento” do Sol.39 Ao aceit ar a autorid ade da Bíblia apenas em assunto s de fé e m ora l,40 o ponto de vista de Galileu coincidiu com o de Kepler e o de outros astrônomos. Todavia, o ponto de vista de Calvino de que a Bíblia é “ um livro p ara lei gos” dificilment e po deria se r com parti lhado na ínteg ra por Galileu, o qual, na qualidade de católic o romano, era obrigado a reconhecer a tradição e a autoridade do utriná ria dos papas e dos concíli os. P or tan to, em bora acei tando que a Escrit ura se acomoda à opini ão do vulgo qua ndo fala de coisas naturais, ele, por outro lado, acreditava (talvez sem muita sinceridade) que as decisões do papa sobre assun
(39) Galileu para Castelli, 21-12-1613; Galileu para a Grá-Duquesa Christina. (40) Galileu para Elia Diodaíi, 15-1- 1633.
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tos científ icos relacionados com a Bíblia deviam ser hu milde mente ac eita s.41 Mas parecia esperar que as autoridades da Igreja nenhum sobre assun tos de nunca ciênciaexternassem e m co nfronto com julgamento a Bíbli a, sem antes se aco n selhar com os cientistas. Ele devia ter sido mais atinado neste ponto, uma vez que seria extremamente improvável, àquela época, que os membros da hierarquia fossem indagar a leigos como in terp reta r textos bíbl icos. À primeira vista, parece estranho que Galileu julgasse poder encontrar apoio na Bíblia para sua defesa de Copér nico, já que era sabido que a Bíblia não usava linguagem científica. Acreditava, porém, que a Bíblia tem ainda um significado mais profundo, de tal forma que, em última aná lise, seu ponto de vista não difere essencialmente do de seus opositores. Em sua opinião, para os estudiosos realmente iniciados, a verdade astronômica (isto é, o sistema de Copér nico) está, de fato, contida na Bíblia. Afora o significado aparentemente imediato, outro Quando bem maisJosué profundo, queclaro nãoe se mostraexiste para um todos. mandou que o Sol parasse, o Sol ‘ ‘permaneceu parado em meio ao firma m ento ” , ao invés de girar sobre seu eixo em meio ao firmamento. Segundo a teoria de Galileu, a cessação da rotação do Sol faria com que a própria Terra se movesse mais lenta men te e os dias ficassem mais longos.4 2 Ou seja, ao tem po em que es creveu iss o, Galileu a creditava (ou fingi a acreditar) que suas descobertas (reais ou imaginárias) rela cionadas com a rotação do Sol, e a teoria de que esta rotação é a causa do movimento dos planetas, estavam latentes no texto bíblico, e que, portanto, ele contribuíra para sua me lhor interpretação. (41) Galileu para Piero Dini, 23-3-1615; Galileu para Leopoldo da Áustria,
23-5-1618. (42) Galileu para Castelli, 14-12-1613; para a Grã-Duquesa Christina (1615).
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Da mesma forma, a interpretação de Galileu do Salmo 19, 5-7 ( “ o Sol, como um noivo, sai de seus ap ose ntos ” ) não foi a de que isto é uma acomodação à observação ime diata, expressa em linguagem poética, mas que significa que o Sol emite raios, um princípio vital que se expande pelo mun do inteiro, e que é chamado de “ no ivo” em razã o do seu poder fertilizante. “ Ele se regozija como um he rói, a percorrer o seu cam inho” refere-se à emissão dos raios, que se processa num movimento como que elástico, e também á sua gran de velocidade e força, e à sua capacidade de pen etr ar todas seuso aSol po ésen corpo as solacoisas. r, mas“aSaindo luz, dade qual o tos” repos significa itório. “ não A leio do Senhor é perfeita, convertendo a alma” significa que a lei sem mácula de Deus é tão mais perfeita do que o Sol, que apresenta ma ncha s (m anchas solares), como o poder de guiar as almas é maior do que o poder do Sol de movimentar os corpos celestes.4 3 Isto é, Galileu admitia que o sal mista esti vesse fazendo uso do sistema heliocêntrico, aliado às desco bertas do século XVII, das manchas solares e da rotação do Sol, bem como à teoria de Kepler e Galileu, que supunha que a rotação do Sol proporcionava aos planetas a sua força de movimentação. Aqui, até mesmo uma passagem poética recebeu de Galileu uma interpretação literal que, além do mais, projetou na Bíblia não uma visão antiga ou comumente aceita do mundo, mas descobertas e hipóteses do iní cio doPortanto, século XVII. segundo o ponto de vista de Galileu, a Escri tura que, à primeira vista, se acomodava à opinião do vulgo sobre o sistema do mundo, estava efetivamente usando tal (43) Galileu para Din i, 23-3*1615. A exposi ção de Galileu está baseada no texto da Vulgata, Ps. 18: 6, 8: In sole p osu it tabernaculum su utn : et ipse tanqua m spon sus procedens de tbalam o suo: Exu ltavit ut gigas ad currendam viam . . . A su m nio coelo egressio ejus: Et occursus ejus usque ad summum ejus; nec est qui se abscondet a
calore ej us. Lex D om ini immaculata convertens animas
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opinião como u m a co rtina através d a qual o s eruditos logra riam discernir a verdade científica. Ao mesmo tempo, con fiava a exegese final desses textos bíblicos ao tirocínio de cientistas iluminados. A suposta que conformidade dos dois li vros, a Escritura e a Natureza, levou os literalistas â condenação do sistema de Copérnico, serviu para que Galileu o aprovasse, e, nesse aspecto, ele utilizou o mesmo mé todo do s seus opon entes.
e) A posiçã o de Jo hn Wilkin s sobre Bíblia e ciência Uma concepção bastante diferente foi defendida pelo ardoroso pu ritan o e copernicano Joh n Wilkins (1638; 1640), que freqü en tem ente fazi a referências a os com entá rios de Cal vino sobre o Gênesis e os Salmos, 44 bem com o ao “ nosso patrício M estre W right’ \ em apoio à sua interpretação nãoliteralista d a Es critu ra, no que t ange a assuntos c ientí ficos . É clarobém querepeli qualquer manifestação favorável defensor aos antigos tam da por es te inque brantável da seria ‘ ‘No va Filo sofi a” : “ não é Aristó teles, mas a Verdade, que d eve guia r a nossa opi nião ’ *,45 Não meno s e nérg ica foi a sua o po sição àqueles que “ buscam extrair o s segre dos da Natu rez a das palavras da Escritura, ou que examinam todos os seus conce itos à luz das reg ras exatas da filosofia’ ’ 46 Este anátema foi dirigido tanto aos filósofos e teólogos da velha escola como aos adeptos da ciência mosaica ou ‘ ‘her m ét ic a’ 5: ‘ ‘Nã o devemos nos m os trar dem asiadam ente audaciosos no que diz respeito às Verdades Divinas nem in (44) J. Wilkins, Discovery o f a N ew World (1638), prop. II; Discourse concerning a Ne w Planet (1640), prop. III. (45) Wilkins, Disco very, prop . II. (46) Wilkins, Discourse , prop. IV: “ Mu itos homens i lus tra dos cometeram
grande s absurdos, ao buscarem o entendime nto da f ilosofia nas palavras da E scr itur a” .
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vocar a Escritura em apoio às nossas próprias fantasias, em bora possam ser elas verdadeiras” .47 Wilkins, aderindo a este ponto de vista, não encontrou na Bíblia nem o aristotelismo seu próprio assuntos cientí ficos, nem o Espírito Santocopernicanismo; não expressou em as coisas como elas ‘ ‘são em si me sm as, ma s segund o suas aparên cias e na forma como s ão concebidas pelo sens o co m um ” .48 Apesar disso, em comparação com a posição assumida por Calvino, houve uma mudança de ênfase. Calvino tinhase referido a uma acomodação â concepção ingênua do mun do, como quan do “ duas grandes luz es ’ ’ são men cionad as no Gênesis, embora os astrônomos saibam que se trata de cor pos relativamente pequenos. Ele havia reconhecido a ver dade relativa (a verdade da vida diária) das expressões bíbli cas para as pessoas de todas as épocas. Até mesmo Kepler havi a salient ado que “ noss os sentidos, tam bém , têm sua própria espécie de verdade’ ’ ,49 Não obstante, uma concepção menos im aginativa da verdade fo i, aos pou cos, se insinu and o na filosofia du ran te o século XVII. Pessoas com as qualidades de Kepler foram-se tornan do cada vez mais raras, tan to en tre os cientistas como en tre os teólogos. O sig nificado da “ verd ade ” reduziu-se quase que exclusivamente a deduções euclidianas, ou a fatos con gruen tes com a imagem ci entí fica do mun do. A té mesmo as 4‘aparências dos sentidos’ ’ eram consideradas ‘ ‘erros vul ga res” , já que não se ajustavam àquil o que os cientistas co n sideravam como sendo a reali dade objetiva. Para o cientista Galileu, expressões metafóricas como “ mãos de D eu s” , bem como a manei ra ingênua d e o povo referir-se ao movimento do Sol, pertenciam, todas elas, à (47) Wilkins, D iscovery, prop. IX. (48) Wilkins, Discourse , prop. II.
(49) J. Kepler, A str onom ia Nova-, Jntrodu ctio.
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categoria de concepções errôneas vulgares. O teólogo Wil kins usa va a mesm a palavr a, “ erro ” , para qualquer d elas. Um a de suas propos içõe s est abel ece que “ o Espírit o Santo, em m uitas passa gensdedas Escrituras, amolda expressões aos Erros nossos Conceitos, e nãoclaram fala deente difesuas ren tes coi sas como e las sã o em si m esm as, mas segundo elas se nos apre sen tam ” .50 Wilki ns certamen te não concl ui qu e as Esc rituras, a ssim proceden do, estejam “ m inistran do ” erros, mas, não obstante, tem-se a impressão de que o pro fundo sentido da beleza da natureza e a experiência quase mística de uma revelação divina nas criaturas, que em Ke pler eram ainda tão marcantes, estão, nessa altura, desapa recendo gradualmente, sendo substituídas por aquilo que Boyle cham aria de ‘‘um a adoração racio na l” . É signi ficat ivo o fato de que W ilkins, da mesm a form a que seus amigos Seth Ward e William Petty, nutrisse pouca simpatia por metáras.51 Na “ linguagem f ilosófica” , propos ta em seu Essay Towards a Real Character, and a Philosophical Language (1668), havia p alavras parafadas, desi pgnar n en hu m produto de “ falível’não ’ ima ginaçã o, como or exemplo. De acordo com Wilkins, a expressão contida no Salmo 19, 5-6, “ o Sol, como um noivo, sa i de seus aposen tos” , refere- se provavelmente “ ao modo de pensa r das pes soas ignorantes, como se o Sol estivesse em repouso durante todo o tempo em que está ausente de nós, e saísse de seus apo sent os, ao ergu er-se no ho rizon te” . Aqui novamente e le e n fatizou o car áter 4‘err ôn eo ” das metáforas . O quan to as co n cepções simplórias de sua época influenciaram a exegese de Wilkins torna-se patente quando afirma que a expressão *‘e nada se fur ta ao seu ca lo r’ ’ foi usada “ ainda em con sonâ ncia com o equívoco comum, como se o Sol tivesse realmente (50) Wilkins, D iscovery , prop. III.
(51) R. F. Jones,
The Seventeenth Century
, Stanford, 19511, 19652, p. 155.
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calor próprio; e como se o calor do tempo não fosse gerado por reflexo, mas procedesse diretamente do corpo do Sol” .52 Enquanto Galileu projetava nos textos bíblicos suas moder nas concepções pessoais, Wilkins fazia o c on trári o, e julgava ser necessári o asseverar que suas opiniões ci entíf icas pa rtic u lares não deviam ser encontradas lá. No entanto, deve, ao meno s, ser-lhe creditado o f ato de que, em bora não adm itisse argumentos bíblicos em favor do antigo sistema, igualmente não inte nta ria us á-los par a servir ao s seu s propósitos. Q ua n do ele explicitamente opôs-se á posição de Galileu quanto à existência d e um significado cientí fico ocu lto no com ando de Jos ué: “ Sol, de tém -te” ,53 Wilk ins sali entou que a pas sa gem inteira guarda conformidade com a aparência das coisas e com o modo d e pensa r do vulgo. Com relação à frase “ o Sol perm anece u parado n o meio d o cé u” , isto também deve ser interpretado em consonância com a opinião das pessoas com uns, e d eve ser entendido como send o um lugar não p ró ximo do leste nem do oe ste .54 Deve ser enfatizado que estes e outros exemplos de acomodação não diminuem absoluta mente a convicção de Wilkins de serem as Escrituras de ins piração divina, como também sua aceitação da verdade his tóri ca dos milagres, t ais como o “ eclipse so bre na tur al” quando da m or te de Jesu s.55 Wilkins não se mostrou tão apodítico quanto a maioria dos copern ican os acerc ada “ verdad e” do novo sistema. D i zia que es te sist ema havia pr ovado que exis tem “ grandes probabilidades de o Sol estar no meio do m undo” ,56 e ju l gava que nenhum outro sistema podia se harmonizar tão
(52) Wilkins, Discours e , prop. II, I. (53) Jos. 10: 12. Wilkins, Discourse , prop. II. (54) Wilkins, Discourse, prop. II, 2, 30.
(55) Wilkins, Discourse, prop. II. (56) Wilkins, Discours e , prop. V II, final.
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bem com as aparências,57 porém afirmava apenas: “ (é pro vável) que a nossa Te rra sej a um dos P lan eta s” S8 (1640); an terioexistir rm en teum(16 38) havia “ (éLua” provável que possa outro Mundodeclarado: habitável na .S9 Se) bem que esta última assertiva possa desapontar o leitor moderno, o qual é levado a julgar os nossos ancestrais segundo sua “ pre sci ênci a” de nossas verdades, talvez possa ele encon tra r algum a compensação ao observar que Wilkins adicionou “ um a disser tação conce rnente â Poss ibilidade d e uma via gem até lá” .
f) Copernicanismo e anticopernicanismo entre os refor mado s 60 1. Os Países Baix os, A maneira culta de Calvino inter pretar a Bíblia exerceu, sem dúvida, uma influência liberalizante. Todavia, os membros das Igrejas Reformadas não estavam obrigados, de forma alguma, a seguir o seu líder; “ calvinista” , para eles, e ra um apelido inventado par a de preciar suas pretensões de que sua crença era “ católica” , porque bíblica. Ao mesm o tempo em que vindicavam o di reito de opta r pela nov a filosofia, não abdicavam do direito de serem fiéis à antiga. Por um longo período, a maioria, edu cada na filosofia escolástica (que durante os séculos XVI e XVII continuou a predominar nas universidades), mantevese apegada ao antigo sistema, seja por convicção seja por inércia, uma vez que não estavam interessados em proble mas científicos.
(57) Wilkins, Discourse, prop. X. (58) Wilkins, Discourse (1640), página de rosto.
(59) Wilkins, Discovery (1638), página de rosto. (60) Ver, acima, pp. 134 (Wilkins)e 131 (Lansbergen).
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Entre os membros da Igreja Reformada, o primeiro rei tor da U niversi dade de U tre ch t, G isbertus Voet (1 588- 1676 ), assumiu uma postura conservadora, no confronto entre a ciência e a Bíblia. Acreditava ser a filosofia escolástica a única que se harmonizava com as Escrituras. Além disso, em sua opinião, “ a Sagrada Escritura ensina não apenas aquilo que é necessário à salvação, como também estabe lece ... os fundamentos de todas as outras boas artes e ciên cias ” .61 Isto é, Voet rejeitava a opinião de que o “ en sino ” (a revelação no sentido próprio) se restrin gia a assun tos de fé e de ética, como Lansbergen e, ocasionalmente, Galileu acreditavam, e sua posição se aproximava da dos teólogos rom anos, que defendi am a “ infal ibilida de” da Esc ritura tamb ém em assun tos cient íficos. 62 Segundo Voet, o Salmo 19 não contém um tem a poéti co, mas um a verda de histórica e fatual; por conseguinte, o sistema de Copérnico está em franca contradição com o texto e a intenção da Bíblia. Se o Espírito Santo tivesse de s e acomo dar às pessoas co mun s, Ele teria m entido em n om e delas.63 Evidentemente, a estreita interpretação de Voet teve curso paralelo à pia chantagem de seu grande oponente René Descartes, que afirmava que nossos princípios matemáticos devem estar corretos, uma vez que Deus não nos pode en ganar. Esta afirmativa revela o mesmo tipo de estreitamento racionalis ta e “ euclid iano ” do conceit o de Verdade, como se não pudes sem exist ir verdades po éticas ou “ ingê nu as” , ao lado das ver dade s “ científicas” . Não é d e adm irar, po r tanto, que, ao aconselhar os iniciantes em teologia sobre que comentários do Gênesis deveriam ler, esse ‘ ‘calvinista” não (61) G, Voetius, p p .35-36.
Ser moen van de Nuttighe ydt der Acad emien,
Utrecht, 1636,
(62) Roberto Berllarmino P. A . Fo scarini, 1enos, 2-4-1615. (63) G. Voetius, Thersipara tes keautontimoroum Ultrajecti, 1635, pp. 266, 281,283-
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mencionasse os comentários de Calvino, mas recomendasse os de B. Pere ira, S. J., um dos conim bricenses.6 4 A teoria da acomoda ção d e Calvino er a precisamente o tipo de a rgu m en taçã o a que Voet se op unh a tenazm ente. No entanto , oposições dessa ordem, como as de Voet, na Holanda, e a de Alexander Ross, na Inglaterra, não tive ram grande efeito. De maneira geral, os teólogos que tinham um genuíno interesse em astronomia não foram influencia dos por elas. Nos Países Baixos, o mais influente teólogo protestante doinclinação início dopara século XVII, AndréORivet, uma acentuada o copernicanismo. conhe tinha cido cientista Dr. Isaac Beeckman foi um colaborador de Lansbergen; o discípulo de ambos, Martinus Hortensius, mais tarde professor em Amsterdã, era, como já foi mencio nado antes, um copernicano declarado. O secretário do sínodo de Dordrecht, Daniel Heinsius, e Jacob Cats escreve ram poemas laudatórios sobre a defesa de Lansbergen do co pernicanismo. Na estritamente ortodoxa Zelândia, o Estado conferiu a Lansbergen uma pensão, para que ele pudesse de votar todo o tempo a seus estudos astronômicos. O teólogo católico Libertus Fromondus, de Antuérpia, referiu-se de forma deprec iativa ao sist ema “ calvinista-copern icano” de seu opon ente Lansbergen, e salient ou que, e ntre os naveg an tes, somente os zelandeses e os holandeses haviam aderido ao sistema de Copérnico — deixou no que não foram seguidos portugueses. Entretanto, de mencionar por pelos que não havia copernicanos entre estes últimos, embora a razão pu desse ser encontrada no frontispícío de seu próprio livro, em que proclamava a refutação da astronomia de Lansbergen e a defesa dos decr etos do Santo Ofício.
(64) G. Voetius, Disputationes selectae, vol. I, Ultrajecti, 1648, p. 552 r.reatione)\ Tbersites , p. 256.
{de
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2. Inglaterra. Os puritanos ingleses gozam da reputa ção de professarem o mais rigoroso biblicismo, pelo que seria de se esperar que a idéia do movimento da Terra tivesse sido unanimemente repudiada por eles. Contudo, o seu bibli cismo estava ligado basicamente à forma do culto, à direção da Igreja e à moralidade. Não obstante, é bem provável que aqueles que não tinham nenhum interesse científico especial assumissem a mesma posição do renomado teólogo indepen dente John Owen, que se opunha ao copernicanismo por motivos bí blicos. P or ou tro lado, é notável que viessem a ser encontrados tantos ardorosos defensores da teoria do movi mento da Terra entre os puritanos ingleses ativamente inte ressados na ciência de sua época. Edward Wright (1600) e Nathanael Carpenter (1627) aceitavam apenas a rotação diá ria, que era precisamente o ponto em questão no debate so bre interpretação bíblica. Conseqüentemente, seus argu mentos não diferiam dos apresentados pelos adeptos de um sistema inteiram en tedecopernicano. Carpenter de movim fendiaento a “ li berdade filosófica” aceitar uma teoria do da Ter ra , em oposi ção ‘ ‘àquele s form alistas” , que 4‘conden am sem exame, e permanecem aferrados à simples letra, mal grado todas a s absurdidades ’ ’ Robert Recorde (que escre veu ant es do apar eci mento d o ter mo “ pu ritanism o” ) já ti nha sugerido, em 1556, que Copérnico poderia estar certo. O puritano Thomas Digges não apenas defendeu o sistema copernicano (1573), como, em 1576, foi ainda mais longe, quando propôs a idéia de um universo infinito, com as estr e las fixas a distâncias variadas, além da órbita de Saturno. Deste modo, Digges rompeu com a noção de um universo fechado, a qual mesmo Kepler haveria de endossar. Entre os puritanos inteiramente comprometidos com o sistema de
(65) N. Carpenter,
Geographie delineatedforlh,
Livro I, Cap. IV.
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Copérnico estavam Mark Ridley (1560-1624), Dr. John Bainbridge (1618), os professores Henry Briggs (1561-1630, celebrizado pe lo Logaritm o) e Hen ry GelHbra nd (1597-1636), do Gresham College, o famoso matemático John Wallis, e John Wilkins — talvez o mais ze loso de todos. A posição relativamente firme do copernicanismo e da Nova Filosofia em geral, nos países protestantes, foi ressal tada pela tendência dos próprios católicos romanos em iden tificar , até certo pon to, coperni canismo e pro testantismo , como quando Froidmo nt refer iu-se ao sist ema “ calv inistaco pe rnic an o’ \ Em 1624, um dos cardeai s aco nselhou o papa a ttr cuidado sobre uma decisão acerca do sistema de Copér nico, uma vez que todos os heréticos seguiam a opinião dele por a julgarem correta.66 Galileu, também, acreditava que “ todos os heréticos mai s des tacados” acei tavam t al dou tri na.67 Pode ser qu e sua correspondência com Kepler e com seu amigo Elia Diodati lhe tenha dado esta impressão, mas naturalmente ele sabia que os padres católicos Gassendi e Mersenne, na França, e um bom número de simpatizantes, na Itália, estavam também do seu lado, embora, após seu julgamento, sem dúvida julgasse de bom alvitre não mencio nar seus nomes num a carta. Naturalm ente não havia, àquela época, nenhuma prova irrefutável acerca da realidade do movimento da Terra. Por conseguinte, a recusa de um estudioso em aceitá-lo sem re servas nem sempre era um sinal de conservantismo ou mes mo de retrocesso. O próprio Galileu era de opinião que sua (duvidosa) explanação sobre as marés, em particular, pro porcionava uma demonstração fatual da veracidade da rota ção diária, mas Isaac Beeckman teria preferido dispor de um (66) Galileu para Federico Cesi, 8-6- 1624.
Francesco Ingoli (em resposta quiete te(67) rraeGalileu contra Cpara opernici sys tem a , 1616), 1624. à sua
Disputatio de situ et
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model o mecân ico para testar a teori a, antes de ac eitá-la in te i ramente. O ponto em questão é saber se a teoria foi rejeitada após um exame de argumentos e preconceitos filosóficos ou mesm o teológi cos, ou exclusivamente ap ós um a comparação dos diferentes sistemas, para julgá-los segundo seus próprios méritos científicos intrínsecos. Admitindo esta última posi ção, a opção mais sensata àquela época seria considerar a hipótese do movimento da Terra não um dogma científico, mas tão-som ente um a teoria m uito prováve l (como o fizeram Beeckm an e Pascal ). De qual quer m aneira, mesmo nos séculos X V I e X VII, não seri a prude nte que tal decisão fo sse tom ada por qualq uer autoridade eclesiástica. Esta era também, de fato, a opinião de Galileu, a despeito de seus protestos de obediente submis são à decisão da Santa Sé. Havendo declarado que o Papa tinha poder absoluto para aprovar ou condenar uma tese, mesmo que não dissesse respeito a questões de fé, ele invali dou sua própria decl araçã o ao acrescentar que nen hu m a cria tura tem o poder de tornar as teses falsas ou verdadeiras, se elas já não o forem de fato, segundo sua n at ure za .68 Pascal, mais abertamente, negou sem rodeios o direito de autori dades da Igreja decidirem sobre assuntos científicos, quando disse aos jesuítas: ‘ ‘Foi tam bém em vão que obtive stes aq ue le decreto de Roma contra Galileu, que condenou sua opi nião no tocante ao movimento da Terra, pois isso não pro vará que a Te rra está im óvel, e se alguém tivesse fe ito sóli das observações demonstrando que ela realmente gira, nem toda a humanidade reunida seria capaz de evitar que ela girasse, ou qu e eles própri os gi rass em jun to com e la” .69 Entre tan to, (68) Carta de Galileu à Grã -D uqu esa Cristina, 1615. (69) B. Pascal, Le ttres provinciales, X V III, au père A nn at, S. /., 24-3-1657.
Cf. R. Hooykaas, Pascal, bis Science and bis Relig ion, em: Free Univ. Q u a r t 2 (1952), pp. 113;115.
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a obra de Pascal f oi colocada no Ind ex, e os teólogos católicos rom anos, em geral, tiveram de adotar uma posi ção co ntrária a Copérnico, convicção pessoal, seja como Wilkins colocou — seja compor receio de se desviarem da — exegese preconi zada pela “ sup ostam ente infa lível Igre ja’ ’.
C) PURITANISMO E CIÊNCIA
à) O caráter do pu rita nis mo Na Inglaterra, nos séculos X VI e XVII, era estreito o relacionamento entre a ciência e o puritanismo. Aqui e ali este fato tem sid o negado, particu larm ente por aquele s au to res ingleses em quem os sentimentos antipuritanos do pe ríododeda“ Restauração ainda Restringindo a defini ção pu ritan ism o” parperduram. a fazê-la abranger a penas um pe queno grupo de independentes da década de 1640, argu menta-se que a maioria dos cientistas daquela época não eram puritanos. Todavia, o puritanismo não excluía a leal dade à Igreja estabelecida, nem abrangia todos os calvinistas. Durante a primeira parte do reinado de Elizabeth, em espe cial, a teologia da Igreja da Inglaterra era acentuadamente calvinista. Muitos dos arcebispos e bispos anteriores a Laud, que foi Arc ebispo de C antu ária no reinado de Carlos I, foram “ calvinistas” em teologia; at é mesmo o Arcebi spo W hitgift, um homem geralmente hostil aos puritanos, mostrouse decididamente calvinista em sua declaração de Lambeth (1595) sobre a predestinação. A Igreja, no entanto, manti nha um ritual sóbrio e um governo episcopal, e, para o pró
prio Calvino, nem o. episcopado aem as cerimônias eram obstáculos à unidade
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Os puritanos (o nome apareceu pela primeira vez por volta de 1560) eram mais radicais; ou não queriam bispos de forma alguma, ou aceitavam bispos que fossem apenas supe rintendentes, e não prelados. Preconizavam uma pregação comum, em vez de uma liturgia elaborada; aspiravam a re modelar a Igreja naquilo que julgavam ser o expresso ensi nam ento d o Novo T estam ento, en quanto o outro lad o adm i tia práticas e padrões de comportamento que não fossem ex pressamente proibidos pela Sagrada Escritura. Em quase to dos os outros aspectos, os puritanos elisabetanos não dife riam dos outros protestantes ingleses do mesmoessencialmente período; tratava-se principalmente de uma questão de gradação. Os tópicos sobre os quais discordavam eram de tal sorte que a filiação à causa puritana nem sempre se mos trava de uma maneira inequívoca nos trabalhos científicos. Uma vez que muitas pessoas eminentes daquela época enca ravam com simpatia os princípios puritanos, embora não fos sem totalmente comprometidos com todas as suas idéias, torna-se hoje mais fá cil dizer s e um a determ inada pessoa era decididamente antipuritana, do que estabelecer quem era puritano. O problema se reveste de maior dificuldade pelo fato de que os puritanos não atribuíam a si mesmos essa de nominação.1 Por essa razão, antes da década de 1640, o setor mais progressista da Igreja da Inglaterra, podia ser considerado “ pu rit ano ” . Após essa época, a palavra “ pu ritano” pas sou a abranger d esde angli cano s “ não-p relatícios” e pre s biterianos, até os independentes e a ala esquerda destes últimos (batistas, quacres, partidários da Quinta Monar quia), cujos membros podem ser considerados separatistas. Além disso, enq uan to no perío do elisabetano e xisti am muitos
(1) p. 155.Cf. R. Hooy kaas, ’ ‘Thom as D igges’ Pu rita ni sm ” , em: A rch. In tern. Hist. Se., 8(1955),
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calvinistas não-puritanos, durante a Commonwealth algu mas seitas de esquerda não defendiam uma teologia calvi nista.2 Mas t odos tinham em comum as mesmas tendênci as de simplificação litúrgica e a mesma ênfase no sacerdócio de todos os crentes. Naturalmente, podiam ser encontradas entre eles as mesmas tensões que existiam entre os protes tantes europeus da época, e mesmo dentro da Igreja medie val: havia correntes racionalistas e pietistas, e também atitu des diferentes no que tange às relações entre a autoridade civil e a eclesiástica. Em discussões sobre as srcens da Royal Society, tem sido feita, algumas vezes, uma distinção entre os adeptos da “ nova filosofia” e os “ exaltados ” . Estes úl timos, em sua aversão à herança “ pag ã” clássica, não somente rejeitaram a filosofia natural aristotélica, como também buscaram uma alternativa em uma ciência natural (física, química) funda mentada em textos bíblicos. Como já foi salientado antes, eles, na verdade, valeram-se de tradições herméticas, teosóficas e parac elsistas.3 Os prote stante s mais mod erados, tendo como base a doutri na da “ graça co m um ” , ace itaram uma grande parte da antiga herança, mas (à exceção dos mais conservadores dentre eles) desejavam ir além dos antigos, especialmente em ciência; rejeitando-lhe uma vertente su postamente “ mosaica” , compartilhavam com os radicais a convicção de que a ciência, em última análise, deve estar funda me ntada na autoridade mais antiga, ou seja , no p róprio livro da na turez a. (2) O primo e homônimo de Thomas Digges fez distinção, num panfleto de 1601, entre “ prote stante s , ou seja, aqueles que estão subordinados a autoridades ecle siásticas” , e ‘'puritanos, ou se ja, os que bu scam perf eição na religião” . “ Mas esta expressão calvinistas compreendia tanto pro testantes como p u r i t a n o s Acreditava que todo protestante sincero era mais ou menos um puritano: ‘ ‘Todos somos puritanos deco ração” . Cf. A rch. In tern. Hist, S c. , 8, p. 157.
(3) Ver, acima, Cap. 5, p. 151.
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Entre os dois grupos não havia, entretanto, uma linha divisória nítida e segura. Richard Bostocke (1585), que era membro de um dos Parlamentos de Elizabeth, comparou os reformadores religiosos, tais como Wycliffe, Lutero, Zwingli e Calvino, com os reformadores científicos, salientando que todos se voltaram para a sabedoria verdadeiramente “ an tiga” , os pri meiros par a o livro da Escritura, e o s últi mos para o livro da Natureza. Entre estes Bostocke incluía Copé rnico (qu e, entre tanto , como “ pitagórico” , dificil mente pò dia ser cons iderado mai s “ bíbli co” em sua astro nomia do que Ptolomeu), bem como Paracelso, que era tido como o restaurador d a ciência “ mosaica” , mas que er a hos til aos filósofos gregos. Por outro lado, Thomas Tymme (1612), conhecido como tradutor de Calvino, mostrava-se, em assuntos bíblicos, favorável a Paracelso, mas era contra Copérnico. No século XVII, John Webster (um independente de esquerda, influenci ado pel o m ovim ento leveller) exaltou in discriminadamente Copérnico, Paracelso, Descartes, assim como a filosofia epicurista, tal como foi divulgada por Gassendi. Samuel Hartlieb e Jan Amos Comenius mostraram caracterí sticas de “ exaltaç ão” reli giosa, assim como traços racionalistas e baconianos. Entretanto, não se deve contras tar demasiadamente essas tendências. Hartlieb tinha afini dade tan to com os radicais como com os mo derados. Os platõnistas de Cambridge, dos quais fazia parte Ralph Cudworth, combinavam tendências espiritualistas e racionalis tas.4Ramus e Bacon não se mostravam favoráveis a Para celso e à ciência “ mo saica” , mas, ainda assi m, acredita vam, como o s paracelsist as, na s abedo ria dos “ egípcios” e dos pitagóricos. Mesmo alguns dos protagonistas da nova
(4) D. Roberts,
Eles tinham afini dade tanto com os quacres como com os latitudiná rios (J. From Protestantism to Platonism in Sevente enth -centu ry England ,
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filosofia corpuscular ou atômica, tais como Boyle ou New ton, acredi tavam na s abed oria dos “ mais an tigos ” filósofos e alquimistas. A ‘ ‘nov a filosofia” era, de um lado, um a do utrina antiaristotélica (ou seja, corpuscular, atômica, química), e, de outro, uma ciê ncia ba seada em “ expe rimento s m anu ais” , que reconhecia Francis Bacon como seu profeta. Muitos *‘co rpus culistas ” , en tre el es Basso, Sen nert, Jung ius e Boy le, viram que a química tinha aberto o caminho para eles, propagando o uso das mãos na investigação científica e le vando, inevitavelmente, teorias corpusculares. A ênfase pietista na experiência areligiosa se igualava com a da expe riência como base da ciência. É verdade que, para alguns filósofos quím icos, em bora não para todos, a “ experiência científica” tinha um caráter um tanto místico. Assim, é possível que os radicais Biggs, Webster e Hall, que defen diam a introdução da química nas universidades, tenham desejado intro du zir tam bém os ensin am ento s ‘ ‘he rm ét ico s’ ’ e paracelsistas, mas o que eles expressamente enfatizavam era o car áter experimental daquel a disciplina, e, nisto, foram aliados dos defensores mais moderados da nova ciência, tal como W ilkins . Sem dúvida, como em qualquer movimento de van guarda, houve fanáticos entre os puritanos; por outro lado, eles, como todos os seus contemporâneos, mantiveram alHaia, 1968, pp. 216, 230, 232). O platonismo de Cambridge surgiu na Faculdade puritana Em m anuel (Robe rts, op. cit ., p. 256). Ura dos textos favoritos dos platonistas de Cam bridge era: ‘ ‘O e spirito do hom em é a lâmpada do S en ho r’ ’ (Prov érbios 20: 27). A té que pon to el es se des viaram da linha puritana f oi claramente exposto por A . Tu ckney (None but Cbrist , Cam bridg e, 1654, pp. 5 0-51), qua ndo afirmou: “ Eu n3o apa garia esta lâmpada, antes mandaria limpá-la e adorná-la como a uma serva para a fé ... não aquela luz de vela, mas o Sol da Retidão, que g uiará os nossos passos no camin ho da paz” (R oberts, op. cit., p. 65). Ai está ^novament e o inevitá vel problema de “ razã o” e “ na turez a” , de que tanto s e ocuparam Pas cal , Boyle , et al., no século XVII, e os
nom inalist as, no sécul o X IV .
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gum as tradiçõ es med ievais, O falec ido professor C. S. Lewis, escrevendo sobre o puritanismo do século XVI, salientou que é um ‘ ‘ab su rdo ” a idéia de que os puritan os fossem p es soas “ senis e algo grotescas, afa stadas d a corre nte principal da vida ” . “ À sua próp ria maneira, e les representaram , de fato, o que havia de mais avançado. A menos que sejamos capazes de apreender a vitalidade, a audácia, e (logo em se guida) a atualidade do calvinismo, corremos o risco de for marm os um quadr o tot almen te falso. ” 5
b) Baconismo pu ritano O puritanismo encontrou muitos adeptos entre os inte grantes da classe recém-emancipada dos mercadores, arte sãos e navegantes, então em ascensão e que mostrava muito intere sse na c iência e na tecnologia. O Gre sha m College, se u local de encontro com intelectuais, era tido como um ponto de efervescência do puritanismo, e é compreensível que os escritos de Francis Bacon, o grande defensor da ciência e da tecnolog ia, fo ssem populares ness es círculos. Bac on, em bora não fosse puritano, tinha sido educado dentro do espírito do puritanismo elisabetano, como denotava seu credo religioso, e este espírito, conforme observou Spedding, foi incorpo (5) C .S. Lewi s, Eng lisb Utera ture in th e Six te enth Century, exclu din g Drama , Oxford, 1954, p. 43. De acordo com Taw ney, “ enquanto cat ólicos e angl icanos capta vam um vis lumbre do invisível, pairando como uma consagração sobre o mundo inferior dos sen tidos, e impregnando sua crosta impura com o resplendor sublime de uma beleza di vina, embora f amiliar, os puritanos lamentavam um Paraíso perdido e a cri ação imersa no pecado” {R, H . T awney, Religion and tbe Rise ofC apilalis m , Londres, 1938, p. 228). Este v eredicto tem apenas um valor retó rico . Evid en tem en te , Lewis e Taw ney , embora fos sem da mesm a conf issão angl icana (não-pu ritana), n ão possuíam , no mesmo
grau, a faculd ade de complace nte im aginação.
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rado à sua teoria do mundo. Todo o esquema da teologia cristã — Criação, Queda, Mediação e Redenção — estava na base de suas obras filosóficas; praticamente não havia nenhu ma espécie de argumentação em que ela não se infiltrasse.6 Esta filosofia se ajustava perfeitamente aos ideais dos purita nos, especialme nte dos mais radicais , que desej avam cristianizar, embora não clericalizar, todos os setores da vida. Além disso, sua desobediência não-baconiana a autoridades da Igreja e, posteriormente, do Estado refletia-se em uma ati tude seme lhante co m relaç ão à autoridade científica7— um a atitude que, neste ú ltimo caso , era decidida mente bac oniana. Finalmente, a linguagem quase bíblica de Bacon deve ter agradado a seus contemporâneos ingleses em geral, e a seus compatriotas puritanos, em particular. Muitas de suas ex pressões e slogans característicos são encontrados repetidas vezes em seus escr itos: “ pro gresso do sab er” , “ des cobe rta de um novo m undo” , “ novas reformas ” , “ luz” . 16 49, ,John Hall e nvi o Parlamento uma e“àmre o destaEm moção” “ concernen te ou ao apro gres so do saber forma das univ ersidad es” . Agora que a reforma do Estado e da Igreja tinh am sido realizada s, ele reivi ndicava “ esta ú l tima parte da reforma’ ’.8 Para os puritanos ingleses do século XVII, o Reino do Homem complementava o Reino de Deus; após a razão ha ver-se submetido à Verdade divina, a piedade eru dita e a er u dição piedosa levari am a um “ conhecimento sublim e” . Foi uma época de grandes expectativas. A descoberta de um novo mundo geográfico, no século anterior, levaria, segundo (6) ), Spe ddin g, “ Introduction t o Bacon ’s Rel igious W ritings” , em: Works of Francis Bacon, vol. VII, (7) D. Stimson, em Isis , 23 (1935), p. 374. (8) John Hall, A n H um ble M otion to th e Partiam ent o f England concem in g
the Advan cêment of Leam ing and t he Refor mati on o f the Univer sit ies , Londres, 1649, p. 21.
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Francis Bacon, á descoberta de um novo mundo intelectual. Joh n Wilkins, no escr ito em que afi rmava “ que ( pode) exis tir um ou tro mu ndo habi tável na Lua” e que existe a “ pos sibilidade de uma viagem até lá’ ’ (1638), antecipara a desco berta de um novo mundo no céu. Bacon havia condenado a imitar opinião de Aristóteles de que o homem podia apenas a natureza, ou ajudá -la a completar sua obra, mas nunca rivalizar com ela. Wilkins agora fazia dist inção en tre as artes que imitam a natureza, as que a auxiliam, e as que a con quistam e sobrepujam. Para ele, as artes pertencentes à ter ceira catego ria eram as mais excels as, poi s tin ha m o objet ivo mais elevado — afastar do trabalho a maldição e restabelecer o domínio do hom em sobr e a na ture za .9 Os inovadores do campo da ciência estavam também interessados em uma linguagem eficiente e universal, que pudesse tornar mais fácil a comunicação científica e cultural, ajud ar a propagação da r eligião e facili tar o comé rcio. Ap ós a Queda , dizi am eles , duas grandes maldi ções for am impostas à humanidade: o trabalho tornou-se uma carga penosa, e as línguas, uma confusão. A restauração do Reino do Homem que, em princípio, Cristo tornou possível, acarretaria então um a “ no vá ” ciênci a, impli cando não s ó o domíni o sobr e a na turez a, com o també m a aqui sição de um a lingua gem fácil, clara e cien tífica, para pôr fim á confusão de Bab el.10
c) Uma ‘ ‘Idade da Luz *' As expectativas utópicas e escatológicas atingiram um ponto elevado durante a Revolução Puritana. O Reino de (9) J. Wilkins, M ath em aücall Magick (1648), Livro I, Cap. 1. (10) J. Wilkins, M erc ury: or The Secret and Swift M essenger (1641), Cap.
XIII.
A CIÊNCIA
e a reforma
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Cristo seri a estabeleci do sobre a Ter ra com o uma preparação para a sua dissolução final. Àpós a Guerra Civil, tornou-se generalizada a crença de que a Idade da Luz havia começado, tanto na ciência como nâ religião, em assuntos profanos e espirituais. À Inglaterra seria o modelo para o resto do mundo. “ Vejo ... um a nobr e e pujante Nação, erguend o-se como um forte varão apó s o sono ... Vejo-a como um a Àguia ... que purifica ... sua perturbada visão na própria fonte de celestial res plendor. ’ ’ “ Pois agora parece have r chegado o temp o em que Moisés, o grande Pr ofeta, pode tom ar assent o nos céus, rejubilando-se em ver a obra gloriosa e memorável dos seus eleitos, quando não apenas nossos setenta Anciãos, mas todo o povo de Deus, tornar-se-ão Profetas.5,11 O apelo de Milton era semelhante ao chamamento de Bacon e de Boyle, conclamando todos os viajantes, marinheiros e co merciante s a participarem da taref a de e dificar um a H istória Natu ral do mundo que servisse de base a uma “ filosofia li vre ” , Os hom ens espera vam que a justiça s ocial fosse esta belecida, que a doença e o infortúnio desaparecessem, graças à nov a ciência profet izada por Bacon, a qual, evide ntem ente , tiv era sua srcem em *‘De us, o Pai das lu ze s’ ’ }2 Comenius escreveu o seu Via Lucis (1642) na Ingla terra. No crepúsculo do mundo, o conhecimento tornarse-ia geral, como profetizou Zacarias nestas palavras: “ Ocorrerá q ue á noit e have rá luz ” .13 No últ imo di a da se mana da criação, Deus f ez surg ir “ a luz intelectual, o espí rito do ho m em , que é cham ado à lâmp ada do Se nhor’ ’.l4 D a mesm a man eira , ao fi m do mun do , apareceria o ‘ ‘estágio d e luz mais el evado” , O Dia da L uz Universal, quando a M o (11 ) Nú m eros 11 : 29, J. M ilton, Aeropagitica, (12) Tiago 1: 17; F. Bâcon, N ovum Organum , I, af. 93. (13) Zacarias 14: 17.
20:d o27. Este era textodamuito apreciado Cambri (14) dge (Provérbios “ O espiri to homem é aum lâmpa do Senh or” ). pelos platonistas de
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narquia de Cristo seria estabelecida, estaria se aproximando, e nós teríamos que oferecer a Deus nossa humilde ajuda, pois Ele pode se dignar a usá-la, fazendo com que a suprema luz se quando erga maisesperamos rapidamente sobre todos n ós.pela “ Certam ente, pois, e rogamos a Deus restauração de um m und o a rruin ad o, no advento d a tão des ejada idade da luz, devemos compreender, ao mesmo tempo, que nós pró prios somos instados a apressar a sua vinda. ’ ’ ‘ ‘Nenhum ho mem deve recusar sua ajuda a Deus, se julga ser possuidor de algum dom ou inspiração que possa ser útil à humani dade. ’ ’ No esq uem a de Co meniu s, isto implica o incre men to da ciência e da tecn olog ia, com a finalidad e de aliviar a carga da vida, bem como o aprimoramento do ensino e da divul gação do Evangelho, para torna r os homen s “ mais ilum i nados ’ ’ .1S Sete anos mais tarde, John Hall (1627-1656) acreditava que esta plenitude do tempo era iminente; a idade da luz, dizia ele, chegou — uma idade cheia de milagres, que afu genta sombras, antes153doirrom advento do entre Grandeas Dia, pois... e “ quis as o Sol da Re tidão pe r por nuv ens nos inundar de mais luz. E como o Sol aqui embaixo não apenas ... se mostra a si mesmo, como também adorna e revela tudo em torno dele, assim aquele Sol eterno, quando se enche de luz, ilumina ao mesmo tempo todo o conheci mento humano e inferior. ... Agora, aparecendo a cada dia com brilho mais intenso, vem tornando mais iluminado o co nhecim ento hum an o *’ ,16 A prim eira vista, pode par ecer e stranh o que pess oas qu e lutaram com tanto afinco pela liberação da ciência da tirania de filósofos e religiosos mantivessem, ao mesmo tempo, a (15) J. A. Comenius, The Way ofLigbt. (15a) Cf. Malaquias 11: 2. (16) John Hall, op. cit., p. 18.
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convicção de que a iluminação científica e a religiosa deviam vir juntas, e que a religião devia permear, iluminar e revolu cionar a ciência. Deve ser salientado, entretanto, que, para estas pessoas, religião não significava teologia de bancos es colares, nem mesmo veredictos oficiais de autoridades ecle siásticas. Sua convicção era compartilhada, embora em ter mos mais comedidos, por pessoas moderadas, tais como Robert Boyle (um ‘ ‘pu ritano de coração’5, como jamais houve alguém, mas, ao mesm o tem po, um angli cano e re alista mo derado), Boyle e seus am igos, qu e queriam ver a ciência li vre da tutela de sistemas metafísicos, e que não tinham a Bíblia como fonte da ciência, consideravam-se, ainda assim, ‘ ‘cris tãos virtu oso s” , em virtude de sua nov a obe diência â reve lação de Deu s. Puritanismo e Nova Filosofia têm, por conseguinte, muita coisa em comum: antiautoritarismo, otimismo sobre as possibilidades humanas, empirismo racional, a ênfase na experiência: assim, “ a feliz união des tes dois mo vime ntos estava bas eada nu m a compatibil idade in trí ns ec a” (M erton ).17 Isto não implic a, necessariamen te, que o puritanism o, como tal, produzisse muitos cientistas altamente qualificados. Aqui o ponto em discussão pertence à sociologia da religião: o puritanismo criou, de fato, um clima espiritual favorável ao cultivo e à liberdade da ciência? A resposta afirmativa a esta que stão não é um a inven ção dos m odern os sociólogo s.18 (17) R. K. Merton, op. cit. , p. 495. (18) Tem-se afirmado que é impossível obter resultados estatísticos confiáveis sobre a f iliação religiosa dos cientista s em geral, ao passo que é m uito mais fác il obtê-los por disciplina, separadamente, em cujo caso é possível indica r os realmen te im porta n tes (F. Russo, S. J., em; }. World H is., 3, 1957, p. 857). No entanto, a soma dos integrantes das diferentes disciplinas científicas é o número dos cientistas em geral. Os sociólogos obtiveram esta informação de dicionários biográficos, de tal forma que suas próprias predisposições fo ram , em gran de parte, elim inad as. Não ob stante, na escolha dos realmen te im portantes, pode facil mente s er introduzido um outro fator subjet ivo:
quem de ve ser considerado não apenas um cientista, ma s um “ im po rtan te” cientista,
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Os defen sores da nov a ciênci a deram a mesm a resposta. Jo hn Wallis, escrevendo a Boyle em 1669, descreve um discurso proferido pelo Dr. South em Oxford, cuja prim eira parte consistia ‘ ‘inve ctivas con C romwem ell, execrações fanáticos, con a Royal Society eem a Nova Filosofia ... etraa última, tra o fanatismo, conventículos, abrangência e nova filo sof ia” .19 Isto significava que “ fanatis mo” (puri tanis mo) e nova ciência eram considerados pelos conservadores como vícios cogn atos. Foi por esta razão que Tho mas Sprat, o a po logista da Royal Society, teve de envidar tantos esforços para provar que não existia nenhum tipo de ligação entre os dois.
d) ‘ ‘Exaltação 5' e saber A solução encontrada por Sprat, e usada por seus segui dores até os dias atuais, foi a de romper a conexão entre os puritanos moderados — aqueles que tinham agora se ‘ *ajus ta do” , como Joh n W ilkins ( que se tornou bispo após a Res tauração), e como o próprio Sprat — e os radicais, que ti nham se oposto tanto aos moderados como aos conserva dores, e que agora tinham de levar a culpa por tudo o que de errado ocorrera durante o período da Commonwealth. Estes radicais tinham alguma afinidade com os anabatistas do con e quem não é imp ortan te? A dem ais, deve -se ter e m conta que a qual idade do trabalho é irrelevante para o estabelecimento da popularidade da ciência. A subjetividade deste método é evidente no próprio R ussq , que tanto o exalta. Para cada disciplina, ele en contra tantos cientistas de destaquç entre os católicos romanos como entre os protes tantes (e chega a este notável resultado omitindo cientistas importantes como, por exemplo, o astrônom o Ty cho Brah e), M esm o que sua conc lusão — a de que a s somas dos cientistas importantes de ambos os lados são iguais — fosse correta, isto apenas confirmaria a tese dos sociólogos; como o número total de católicos romanos é bem maior que o de protes tante s, a igualdade d e núm eros de grandes especial istas em ambos os lado s favoreceria, na verdade, o grupo m enor.
(19) Jo hn W allis para Robe rt Boyle, 1-7-1 669.
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tine nte europ eu, e eram cons ider ados por seus di versos opo ne ntes com o o que de pior havia e ntre estes. Os radicais des viaram-se, tomando direção ou racionalista ou espiritualista, e era m acusados de serem “ contra t odo o sabe r” . No en tanto, isso era um exagero sério e, muitas vezes, malévolo. A principal razão para tal acusação foi a violenta controvér sia sobre as universidades. As academias da Reforma con centraram seus esforços na formação de um ministério bem preparado. A necessidade disso tinha sido vigorosamente defendida, no continente, pelos reformadores, em contrapo sição à Igreja Romana, e, na Inglaterra, pelos primeiros puri tanos, em oposição aos tradicionalistas. Por outro lado, os anabatistas do continente e a ala esquerda dos puritanos te miam o aparecimento de um novo perigo, o de preferir-se um a fo rma ção teo lóg ica e hum anista a um cham am ento pro fético, passível de ser conferido apenas por inspiração do Es pírito Santo. O trágico debate entre o reform ador polonês Jan L aski (John a Lasco), um talentoso hu man ista que tin ha sido amigo de Erasmo, e Menno Simonsz, um pároco de aldeia que se tornou líder anabatista, revelou claramente a falta de en ten dimen to de ambos os lados.20 Nesta controvérsia, não apenas os tradicionalistas e os presbiterianos, mas também os independentes, como Joseph Sedgwick e Sydrach Simpson (um dos cinco “ irmãos dissi dentes” da Assembléia de Westminster), eram favoráveis a um ministério bem preparado. Se dgwick condenou o “ espí rito de Exaltação e pretensa Inspiração, que perturba e avas(20 ) M enno Symons, Beken tenisse en A enw ysin ge (1581). M el een grondelijke Confütaúon ... van Johanne a Lasco tegen ons in zijn De/ension opgebraght. M enn o e scre veu : ‘ ‘con hec im ento e dons de línguas eu não os m enospreze i em toda a minha vida, mas tenho-os amado e honrado desde minha juventude, embora (ai de m im!) não os tenh a adquirido. Graças a Deus não estou tão f ora do meu e ntend ime nto
aPalavra ponto da de graça desdenhar desprezar divinaouchegou até anóciência s ’’. das línguas, através da qual a preciosa
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sala as Un ivers idad es’ ’ (1653).21 Assin alou que “ a Refor ma da Religião e o reavivamento do saber profano” eram con temporâneo s e promov idos pelos “ mes mos instrum en tos” . Seria ‘‘estran hooutro se a Ref orma, ainic iada senão no Con hec im ento não encontrasse caminho seguir o retorno à ”, “ ignorância de épocas mais obscur as e deg eneradas” . De clarou ainda que a 4‘verdadeira filosofia é a descoberta de Deus, o qual se f ez acessível ao nosso ente nd im en to pela luz da Razão e pelas obras da Criaç ão” 22 — um prim eiro an ún cio da verten te racion alista que , no futu ro, haveria de afast ar muitos não-conformistas da ortodoxia. Simpson, na mesma época, afirmava que “ quan do o saber decai, a religião dec ai também ” .23 Por outro l ado , os assim chamado s “ exaltados ” , com exceção de alguns ultra-espiritualistas, milenaristas anabatistas e membros da Quinta Monarquia, nada tinham, em princípio, contra o avanço do saber, ou contra uma prepara ção acadêmica totalmente modernizada, embora tivessem muito as universidades, tais como eramreligiosos naquele tem po. Oscontra “ exaltados” nada tinham contra que sou bessem hebreu e grego, mas eram contra fazer disto uma condição indispensável, à qual até mesmo o Espírito Santo estaria sujeito, na escolha de pessoas para o ministério. John Saltmarsh, um dos extremados protagonistas da “ religião in ter ior ” , estava pronto a admitir a pres ença d o saber em “ qualquer lugar do reino do mund o, mas não no Reino de D eu s” .24 Até mes mo o er udit o John M ilt on, que tinha em grande apreço a tradição clássica, concordava com (21) J. B. Mullinger, Th e Univer slity o f Cambridge, vol. III, Cambridge, 1911, pp. 447 e segs, (22) Mullinger, op. cit. , p. 451. (23) Mullinger, op. cit., p. 452. (24) W. Schenk, Th e Conce rn fo r Soci al Justi ce in the Puritan Re vo lutio n ,
Londres, 1948, p. 89.
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este ponto de vista. Ele era contra uma Igreja estabelecida e uma formação universitária do clero, e lembrava a seus lei tores que, na Igreja reformada mais antiga (a valdense), os ministros aprendiam um ofício, para não serem um ônus para a Igreja, e estudavam a Escritura, ‘ ‘que é a única ver dade ira teologia” .25 Ao con trár io dos hum anistas Erasmo e Vives, ele não tinha nenhum desejo de substituir a filosofia escolást ica pel a c ultu ra clássica na educação teológi ca. Os violentos ataques âs universidades, desferidos por hom ens com o Joh n W ebster e William Dell, o deão do Caius College, não foram inspirados por nenhum ódio ao saher hu mano. Dell somente se opunha a este na medida em que se mescl ava à teol ogia. Em s ua argumen tação, Dell, “ que su s tentav a a dou trina da Luz Interior com a mesma intensidade dos qu ac res ’ ’, rep etiu muito do que Lutero havia dito co ntra a teologia escolástica: ‘ ‘O saber humano, misturado à teolo gia, ou o Evangelho de Cristo interpretado segundo Aristó teles, deu início, continuidade e acabamento ao mistério da iniqüidade da Igreja ex terio r” .26 Este era o argumento bá sico de todos aqueles que aspiravam a uma religião radical mente evangélica. Muitas das controvérsias entre puritanos e não-purítanos, ou dentro das seitas puritanas, tornavam patente a antiga e perene tensão entre Atenas e Jerusalém, os dois pólos da herança espiritual do Ocidente. Os Patriar cas tinham-se defrontado com este problema; no fim do sé culo ach XI, eeleWolfhelm veio à baila debate de Lautenb de no Colô nia ,27entre e os Manegold hu manis tas cristãos tinh am busc ado estabel ecer um novo equi líbrio. (25) Milton, Addre ss to Parliam ent (prefácio às Considerations touching the Ukeliest means to remove Hirelings out o f the Ch urch , Londres, 1659); cí. Mullinger, op. cit., p. 524. (26) Mullinger, op. cit. , p. 454. (27) R. Hooykaas, “ Scie nce and Theology i n the Middle Ag es ” , em: Free
Univ. Quart. , 3 (1954), p. 140, pp. 155 e segs.
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Os pu ritan os defensor es de um ministé rio *‘pro fétic o’ ’ sustentavam que nem o estudo da filosofia aristotélica, nem o conhecimento do grego e do hebraico, eram indispensáveis aos pregadores. Já em 1582, o pai do separatismo inglês, Robert Browne, tinha escrito ‘ ‘contra o abuso de línguas na pregação” . Este ataque era dirigido não contra a tradução esmerada da Bíblia, mas contra o uso pedante de citações greg as e latinas em sermões. Da m esma forma, investiu co n tra a ‘ ‘lógic a vã” na exposição da Es critu ra. Segundo B row ne, Salomão obteve sua sabedoria estudando e pesquisando as coisas, um a por um a, “ particularm ente p ela experi ên cia” ^ não pela ‘‘ lógica e a retórica” . O que, e m especial, o incomodava era o fato de que alguém tivese de estudar a filosofia pagã de Aristóteles, antes de tentar elucidar o texto da Esc ritura. Em bora nã o houvess e ne nhu m a razão para su por-se que tivesse algum interesse em ciência natural, ao menos se referia de uma forma mais positiva à astronomia dos cald eus do q ue à filosofia espec ula tiva dos gregos.28
(28 ) Robert Brow ne, A treatise ap on th e 23. o f M atthew e ... fo r avo yd ing ... wick ed Preacbe rs and hirelings (1582): “ Vós vos tendes preocupado em demasi a com as palavras ... e extenuado com vossas presunções lógicas, e alimentado com o ven to ...” (p. 181). Brow ne achava supérfluo o estudo das artes da Lógi ca e da Retórica, não apenas para a teolog ia, co mo também para a ciência da natu re za : 1‘Po is que hom em qu e qui sesse conhecer uma coisa não buscaria pesquisar a natureza dela, o modo como fun ciona e se conserva, aquilo que denominamos diferenças específicas: devíamos pesqui sar as obras de naturezas Deus, paraque quelhes pudéssemos conhecer as espécies de coisas, os nomes e as são próprias. Mas sua lógica ose variedades fez ficar tanto tempo aprendendo o que deveriam fazer que pouco ou nada fizeram ...” (p. 179). Browne salienta que Salomão, ainda que sobrepujasse em sabedoria os filhos do Oriente, não os excedia em Lógica ; sua m aneira de estudar as c oisas er a “ meditand o e examinando cada uma delas ... especialmente pela experiência” (p. 179). Nesta última sentença, Browne enfatiza o estudo empirico das coisas individuais, no espírito do nominalismo. Da mesma maneira, o brownista Henry Ainsworth manifestou uma atitude positiva em re laçã o à ciência e ao co nhec im ento , sa lientando, no enta nto , que a sabe dori a de que Pau lo fa la é um a espéc ie diferente e superior: “ O conhecimento , sobre o qual o apóstolo falou a Timóteo, e que amamos e almejamos, por ser o mais sublime de
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As ciências naturais, portanto, em geral tão negligen ciadas nas universidades, eram apreciadas favoravelmente pelos críticos dessas instituições. M esmo os extremistas polí ticos Gerrard Winstanley, o digger , e William Walwyn, o leveller , desejavam uma reforma da educação que colocasse em seu devido lugar a ciência e suas aplicações. O currículo educacional d e W in sta nl ey 29 consistia quase que exclusiva mente de ciência e tecnologia. Ele insistia no conhecimento experimental , tanto em assuntos espirituais como naturais; estes último s, na sua opinião, no s faziam “ ver e conh ecer a Deus (o Espírito de toda a Criação) em todas as Suas obras’ ’ (1649). alwyn aquela ( 1646) parte nada dele tinh aque co ntra “ qualquer esp écie de saber,Wexceto provocasse a sober ba” . Lembrava a seus leitores que Moisés era versado no sabe r dos egípcios, “ o que as Escrituras atestam sem c en sura, e S ão Paul o ce rtame nte li a os poe tas” .30 Além disso, os quacres, na Inglaterra, após a segunda metade do sé culo XVII, mostraram um profundo interesse em ciências aplicadas; e os menonitas dos Países Baixos, desde o início do século XVII, não evidenciaram nenhum traço de hostili tòdos: o conhecimento das Escrituras e de Jesus Cristo. Também não desprezamos os outros conhecimentos, antes os temos estudado e utilizado... com o entendimento que Deus nos deu, para o fortalecimento da verdade, em favor do próximo, e pela glória de Deus” (Apolo gie or Defence o f such true Christians as are com m only ( but injustly ) called Bro wn ists .,. against suc h imp utation s as are layd upon th em by the Heads an d D octorsoftbe University o f Ox ford (1604), p. 116. (29) W. Schenk, op. cit., 110. Gerrard W iné stanle y, em Freed om , escreveu: “ conhecer os sep. gredos da natureza conhecer as sua obrasThe de Law Deusof den tro d a Criação, é con hecer o próprio D eus; pois D eus habita em cada obra ou corpo v i s i v e l “ O ho mem vi rá a conh ec er os segredos da Natu re za e da Criação, em cu jo seio está contido todo o verdadeiro conhecimento; e a luz do homem deve erguer-se para busc á-lo” . A relig ião de W instan ley co nsiste num conhec im ento in te le ctu al e mistico da natureza; a despeito de sua heterodoxia, ela m ostra afinida de com os p rincí pios das seitas puritanas espiritualistas. (30) William Walwyn, W alwyns Ju st Defence agains t the A spersio ns cast upon him, in a late un-cbris tian Pam phlet entituled " Walwyns W iles ” , Londres, 164 9, pp. 9-10.
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dade em relação ao saber, como mesmo o seu crítico Voetius teve de rec on he ce r.31 A despeito de tudo isto, “ puritano s” e “ anabati stas” foram acusados de destruir todo o saber; seus inimigos mali ciosamente identificaram cada um destes grupos com suas alas esquerdas radicai s, e mesm o os extremistas e “ exalta do s” , com poucas exceçõe s, foram mal-interpretados, um a vez que sua ‘ ‘ho stilid ad e” era diri gida a penas co ntra a teolo gia e a filosofia escolá sticas , e não i ncluía as líng uas e as ciê n cias. Quão pouco fundamento havia para esta acusação tor nou-se evidente quando, após a Restauração, os puritanos foram acusados oposto, combinar tação” com um precisamente repreensível do apego ao de saber — isto‘ ‘exal é, ao saber do tipo condenável, o “ no vo ” saber . A o mesmo tempo, uma vez que o puritanismo estava em desgraça, mas a Nova Filosofia encontrava-se agora sob o patrocínio real, os defensores da nova ciência julgaram então por bem negar qualquer ligação com o puritanismo, identificando-o com os “ exaltados” que abomin avam a cultura. Desta forma, en quanto um lado acusava os puritanos de demonstrarem um amor demasiado à ciência, o outro os acusava de destruir toda a cu ltura. No entanto, estas recriminações não podem eliminar o fato de que, a despeito do seu aniquilamento político, muito da influência dos puritanos permaneceu. Os puritanos, através de toda a gam a de suas diversas concep ções, “ foram o principal sustentáculo da nova ciência antes da Restaura ção ” , e deixar am “ sua marca indelével na ger ação seguin te ” .32 N en hu m a diferença na int erpret ação dos fatos pode esconder a realidade dos próprios fatos, que foram trazidos á (31) G. Voetius,
Sermoen van de nuttigleydt der Academien,
p. 134. (32) R. F. Jones, em:
Isis , 31 (1939), pp. 65-67.
Utrecht, 1636,
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luz pela pesquisa histórico-sociológica, e que demonstram que o “ puritanism o, e o protestantism o ascético em geral ... desempenharam um papel importante no suscitamento de um interesse pe rm an en te pel a ciên cia ” .33
(33) R-K. Merton,
op. cit ., p. 495.
Epílogo Sem invocar qualquer superioridade intelectual dos cientistas dos períodos da Renascença e do Barroco em rela ção aos seus predecessores europeus antigos e medievais, ou aos filósofos orientais, somos obrigados a reconhecer, como um simple fato, que a “e ciênci m od ernda a” Eu surgiu somente noss séculos XVI XVII, anaclássica parte ocidental ropa. U ma vez descobertos os métodos apropriados e estabe lecidas bases consistentes, cada novo avanço da ciência fun damental da natureza (a física) aperfeiçoa e corrige, mas não derroga completamente a fase anterior. Por conseguinte, a partir desse ponto, qualquer pessoa, com o necessário ta lento, pode ajudar a construir a ciência sobre bases sólidas. Cientistas de nações cuja própria cultura não deu srcem a nada semelhante à ciência ocidental já deram contribuições notáveis ao seu desenvolvimento. Pessoas do Ocidente, que perderam todo o contato com a religião de seus ancestrais, dão continuidade, em suas atividades científicas, às tradições deles receb idas. Embora, aqui e ali, dogmas naturalistas e materialistas
sejam como séndo conclusões de resultados cienas tíficos,postulados essas alegações não são mais justificáveis do que
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pretensões de alguns dos nossos antepassados em fundamen tar princípios teoló gicos sobre um a base científ ica. Te nta mos dem real on strar, nas, que é maiséprov a situa ção tenhanestas sido pági o oposto: a ciência maisável umaqueconse qüência do que uma causa de uma certa postura religiosa. A confrontação da cu ltura greco-romana com a rel igião bíblica engendrou, após séculos de tensão, uma nova ciên cia. Esta ciência preservou as partes indispensáveis da he rança antiga (matemática, lógica, métodos de observação e experimentação), mas foi orientada por diferentes concep ções sociais e metod ológicas, que brotara m, em grande pa rte, de uma visão bíblica do mundo. Podemos dizer, metaforica men te, que, em bora os ingred ientes corpo rais da ciênci a pos sam ter sido gregos, suas vitaminas e hormônios foram bí blicos. Um a questão a ser levantada é se esse resultado poderi a ter sido alcançado de um a m aneira diferent e. É claro que,stão de um ponto de lógico, agoramum mun do não-cri manipula a “vista ciênc ia, nosese ntido o dern o” , esta mesm a situação poder ia ter sido possível no sé culo XVII e em outras épocas, como também em outros lu gares que não a Europa Ocidental. No entanto, do ponto de vista histórico, não faz muito sentido reconstituir um curso da história diferente do que ocorreu na realidade. As coisas aconteceram desta maneira, e, portanto, é assim que teriam de ter acontecido.
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The Concept of Chemical Element N atu re and History H is to ry o f Science
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