Han s Belting Belting
Hiroshi Sugimoto (japonês, residente nos EUA, nascido em 1948), The Royal Family , da série “Wax Museums”. Cortesia da Galeria Sonnabend, Nova York
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c o n c in n ita s
Po r u m a a n t ro p o l o g i a d a im a g e m
Por uma antropologia da imagem Hans Beltin g*
Tradução Jason Campelo Revisão técnica Roberto Conduru * Hans Belting é diretor da recém-criada Internationales Forschungzentrun Kulturwissenschaften, em Viena, tendo assumido anteriormente cargo de professor nas universidades de Heidelberg, Munique e no Hochschule für Gestalt ung, em Karlsruhe. Ele é fortemente comprometido com a reorientação da história da arte no sentido de um estudo interdisciplinar de imagens ou como uma antropologia de imagens. Suas publicações estendem-se ao longo de uma dimensão diacrônica da história da criação de imagens européia, desde as mais antigas máscaras mortuárias, seguindo pelos ícones bizantinos, até os primórdios das pinturas em cavalete ocidentais e das práticas de arte contemporâneas. Entre suas numerosas publicações, muitas delas traduzidas para muitas línguas, estão Bild und Publikum im Mittelalter (1981), Das Ende der Kunstgeschichte? (1983), Bild und Kult: Eine Geschichte des Bildes vor dem Zeitalter der Kunst ( 1 9 9 0 ) , a n d B i l d - A n t h r o p o l o g i e : Entwürfe für eine Bildwissenschaft ( 2 0 0 1 ) . Atualment e ele está escrevendo um n ovo estudo chamado Bild und Mask: Eine Bildf rage . 1 Hans Belting. Bild-Anthropologie. Entwürfe für eine Bildwissenschaft. Munich: Wilhelm Fink, 2001. Tradução francesa no prelo: Paris: Editions Gallimard, 2004. 2 Robert Frank, The Lines of My Hand . London: Secker and Warburg, 1989. ano 6, volum e 1, núm ero 8, julho 2005
Hans Belting propõe neste artigo uma abordagem antropológica da imagem, extrapolando o âmbito artístico, para analisar a questão “ o que é uma imagem?”. Para tanto, observando os estudos de Jean-Pierre Vernant a respeito da idéia de imagem concebida pela cult ura grega, separa o meio f ísico em que a imagem se estabelece e aquilo que ele denomina imagem mental, ou seja, não material. É na cultura grega, afirma Belti ng, que surge o conceito de imagem, inserido na distinção entre a aparência e o ser. E é na condição da imagem como “presença de uma ausência” que ela se relaciona com a morte – e o autor recorre a máscaras, efígies ou aos crânios enfeitados evocadores da pessoa falecida. Esse processo de evocação é aspecto que perdura até hoje em nossa concepção de imagem. É a distinção entre imagem e medium que permite ao autor falar sobre uma “evolução mediológica” e de iconoclastia – esta como tentativa de destruição da presença de um medium , em que se estabelece determinada imagem, por ele tornada pública. Imagem, antropologia, fotografia
Na capa de meu li vro Bild-Anthropologie , origin almente deveria ter aparecido uma fotografia que Robert Frank tirou em 1977. Foi uma imagem que ele fin alment e incluiu n a segunda edição de sua peculiar auto biografi a, The Lin es of My Hand , em que esse retrat o apareceu em meio a out ras fot ografi as que ele rearrumou e republicou n aquela ocasião. 1 A mesma foto grafia, lá, introduz uma nova f ase de sua vida, que começou qu ando el e se mudo u para Nova Scoti a. A paisagem represent a a vista de sua nova moradi a, mas o prim eiro plan o é fechado por uma antiga fotografia de sua série “The Americans”. No mesmo plano, ali aparece uma imp ressão em n egativo de uma f olha de p apel com a in scrição “w ords”, um plural em um singu lar: words [ palavras], que na autobi ografia são substi tuídas por retrat os. 2 Palavra e imagem são partes de uma mise-en-scène muito pessoal de seu próprio passado. O mesmo arranjo também fornece a questão: o que, en tão , é uma imag em? Ou: on de está a im agem? Está em nosso olh ar ou apenas em sua memó ria, e at é que grau ela est á no im presso? Robert Frank questi onou a id enti dade da impressão e da imagem fot ográfica, a qual nós tão f ácil e impensadamente to mamos como natural. Desse modo, ele enfatizou a distin ção entre o meio vi sual, que no seu caso era a fotografi a, e a imagem que não é igual a seu suporte artístico, e que t ambém transcende a uma id enti ficação 65
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como mero assunt o ou matéria. Casualment e, meu próprio livro já h avia sido im presso quand o Frank in esperadament e retiro u sua permissão para a reprodução da imagem da capa. De modo que o mesmo livro fo i republi cado com uma capa inteiramente nova. A questão “ O que é uma imagem” p recisa de uma abordagem antropol ógica, j á qu e uma i mag em , co mo ve re mos, em últ imo caso at inge uma def in ição antrop ológi ca. A históri a da arte norm alment e responde a out ras questõ es, já que ela estu da a obra de arte (seja ela uma imagem, escultura ou i mpressão), um objet o t angível e histórico que permit e classificação, datação e exibição. Uma imagem, por ou tro l ado, desafia t ais tentat ivas de reificação, mesmo naquela escala em que ela geralmente f lut ua ent re a existênci a física e ment al. Ela pode viver em uma obra de arte, mas não coincide com ela. A distinção ing lesa entre image [ imagem ] e picture [ gravura ] 3 é pertin ente n o meu caso, mas apenas no sent ido em que essa distin ção permite-no s aguçar a busca da imagem no ret rato. Em um n ível mais geral, a questão diz respeit o à imagem em um d ado meio, seja ele fot ografia, pin tu ra ou mesmo vídeo. Mas ela só faz sent ido quan do somos nós que a pergunt amos, porque vivem os em corpos físicos, com os quais geramos nossas próprias imagens e, por conseguint e, podemos cont rapô-las a imagens do mundo visível. Parecerá evident e, agora, que não uso o termo “ antrop ologia” no sentid o de etnol ogia, e sim que sigo uma defi nição européia, sobre a qual devo a vocês alguma explicação. Do mesmo mod o, não falo exclusivamente de “art e”, o que exigiria um discurso levemente diferente, mas de “i magens”. Insisto nessa disti nção a fim de evitar expectativas errôneas. Como h istoriador da arte, li do com a arte ocident al, à qual não se aplica o famoso debate da arte com a et nologi a – qual seja, a questão de a arte et nográfica necessitar de um m useu de arte o u de document ação etn ográfica. Ant ropólogos in gleses recentement e acusaram a chamada antropologia da arte de carecer de qualquer matéria ou t ema distint ivos. Logo, Jeremy Coote e Anthony Shelton propuseram um rompimento com a estética, a fi m de superar “ um respeito exagerado pela arte”. 4 Não desejo interferir nesse debate, uma vez que ele não diz respeit o ao meu t ópico, n em me sinto competent e o suficient e para int erferir nas mais recentes discussões em estudos culturais e cultura visual. Além do fato de que meu campo de embate t em sido na Europa, onde o utras discipli nas tomam p arte. Na Alemanha, muitas disciplinas orientadas para o texto, como a crítica lit erária, recentemen te descobriram mei os visuais como o fil me, a fotog rafia ou a int ernet como seu novo do míni o. Elas são apoiadas por novos tip os de estudo de mídia que definem cultura em termos de tecnologia e comunicações, e usualmente reaplicam ant igas teorias de semiolog ia. Seu canto de guerra é o Bildwissenschaft , visão de um novo g ênero de iconologia, confo rme anunciado por W.J.T. Mit chell. Mas esse gênero, por sua vez, não chegou a solo seguro. É 66
3 No texto em inglês, a distinção é formada pelas palavras image e picture ; a diferença é sutil. Image significa “imagem; fi gura; símbolo, representação, retrato, reprodução; estátua; ídolo; imagem mental, idéia, concepção”; picture “pin tura, quadro, painel, retrato; cena; gravura, desenho, estampa, ilustração; fotografia, semelhança, imagem, descrição; fi ta de cinema”. Uma vez que ambas significam ‘retrato’, entendemos que a palavra image estaria mais diretamente relacionada ao aspecto ‘mental’ da imagem, já que também significa ‘imagem mental’ e ‘idéia’. A palavra picture , por sua vez, remeteria mais ao aspecto concreto; material; palpável; no que julgamos ser mais correlata à palavra ‘retrato’ que, a nosso ver, remeteria ao ato concreto de ‘gravar’, materialmente, uma imagem (ant es idealizada) em algum material concreto e tang ível. Por isso, relacionamos a palavra image a ‘imagem’ e picture a ‘gravura’. (NT) 4 Jeremy Coote e Anthony Shelton (orgs.). A n t h r o p o l o g y , A r t a n d A e s t h e t i c s . Oxford: Clarendon Press, 1992, I-II c o nc innita s
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5 Gunther Gebauer. “Überlegungen zur A n t h r o p o l o g i e ” , i n G u n t h e r G e b a u e r . Anthropologie . Leipzig: Reclam, 1998, 7-21; Christoph Wolf e Dietmar Kamper. Logik und Leidenschaft. Erträge hi storischer Ant hropologie. Berlim: eimer, 2002, 1-8. 6 Jean-Claude Schmitt. Le Corps, les rites, les rêves, le tem ps. Essais d’ant hropologi e médiévale. Paris: Edit ions Gallimard, 200 1; Marc Augé. An Anthropology for Contemporary Worlds. Palo Alt o: Stanford University Press, 1999. ano 6, volum e 1, núm ero 8, julho 2005
menos preocupado com um método do que com a reivindicação em prol da compet ência relati va à mídia icôni ca que não é baseada em text os. De qualquer maneira, deve ser dit o que a produção visual e a experiência geralment e tendem a ser confun didas com a imagem em part icular. Mas, em mi nh a visão, a imagem deve ser identifi cada como uma entidade simbólica (portanto, também um item de seleção e memória) e distinta do fluxo permanente em nossos ambientes visuais. O subt ítulo de meu li vro é: “ Propostas para uma Bildwissenschaft ” , já que considero o esforço do que venha a ser um projet o int erdiscipli nar do fut uro (e port anto sem i nt eresse especial para a história da arte, que cont inua a t er seus próprios territórios). O debate alemão, de qualquer maneira, diz respeito ao assim chamado di lema da hi stória da art e: se ela deve – sem perder seu perfil herdado – contri buir p ara esse debate t ransdisciplin ar ou se deve manter-se longe e, portant o, deixar o terreno para out ros. Não posso parti lhar dessa falsa alternati va, já que mesmo hi storiadores de arte famosos têm vivi do facilment e com as duas opções, como Ernst H. Gombrich, que li da com a h istória da art e clássica e com sua própria versão de uma psicologi a da percepção. Aby Warburg teria desenvolvido uma ant ropologia das mais important es, no que diz respeito a imagens (tanto imagens da cultura ocidental quanto além), se não tivesse sido interrompido por sua saúde e drasticamente reduzido ao nível de uma icon olog ia no s termos de Erwin Panofsky e de Edgar Wind, os quais desagregaram a parte mais perigosa de sua visão ini cial, t ransforman do suas idéi as em um mero métod o de prática da história da arte. Na Alemanha, o grupo Historische Anthropologie de Berlim, situado na Freie Universit ät, t em insistido f irmemente na tradição filosófica da antropologia, como um a ferramenta analít ica para discussão da p rópria cult ura. Christoph Wulf e Gunt her Gebauer identi ficaram protagon istas como Norbert Elias, Helmuth Plessner e Vict or Turner, cuja ant ropol ogia da performance tem freqüentemente servido de inspiração. Wulf e seus colegas investi gam t emas como o rit ual da vida cotidi ana ou a mimese como uma atit ude transcultural; assim como uma vasta gam a de aspectos do corpo. Seu objet ivo m ais amplo é a reorient ação das ciências humanas, cujo conhecimento acumulado haverá de ser testado no espelho d e nossa reflexão atual e experiência de mun do.5 Na França, um g rupo similar t rabalha na Maison de l´Homme ( École des Hautes Étu des), onde Jacques Le Goff , Jean-Claude Schmit t e Marc Augé têm at uado como p rincip ais fundadores. Le Goff e Schmi tt consolidaram-se em hi stória medieval enquant o Augé fixou -se na etnologia. 6 A posição atu al de Marc Augé é mais bem revelada em seu livro An Anthropology for Cont emporary Worlds . Sua antropologi a social é m ais cent rada no que ele chama de “supermodernidade” do que no pós-modernismo. Seus temas lidam muit o proximamente com o status das imagens tanto na história quanto nos dias de hoje, e alguns de seus tópicos favorito s dizem respeit o à redefinição atual do espaço, ao futuro da imaginação ou ao novo poder da 67
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ficção. Em seu livro La Guerre des rêves , Augé refere-se explicit ament e à obra La Guerre des images , de Serge Gruzinski; em que o autor traça a história das imagens no México durante e além dos limites temporais da colonização. 7 A edição de 2003 de L´Homme , editada por Carlo Severi, reúne uma gama de colaboradores de disciplin as como etnologi a, história social, e h istória da arte, sob o t ítulo “ Image et Anthropologie”. 8 No Collège de France, Jean-Pierre Vernant iniciou uma nova ati vidade na “ chaire d’étude comparée des religions anti ques”, nos anos 70. Ele concentrou sua “anth ropologie h istorique de l’image” n a Grécia ant iga on de, em suas próprias palavras, “l e stat ut de l’image, de l’imaginat ion et de l’imaginaire” f oram suas principais preocupações. 9 Para esse propó sito , ele divul gou as relações cont íguas que existem entre a hi stória dos artefatos visuais e a evolução do pensamento grego que discutiu as imagens no que diz respeit o ao símbolo, semelhança, imitação e aparência. A Grécia é um caso singular, porquanto suas imagens primevas estão refleti das no pensamento cont emporâneo, cuja lingu agem ainda surge em nossa terminologi a e epistemol ogia. Particularment e, Vernant devot ou muit a energia ao signifi cado de eidolon e kolossos no pensamento pré-clássico. Eidolon era entendi do como a i magem de um sonho , a aparição de um deus ou o fan tasma de ancestrais mort os. Também abrange largamente o signi ficado de imagens mentais e mnemôn icas no pensament o simbóli co, assim como imagens projet adas sobre o mund o exterior. Oposto a essa nat ureza transitória, kolossos representa o art efato de pedra ou metal que hoj e chamaríamos meio [ ou medium ] , no qual as imagens se materializam, apesar de kolossos ser também adotada no senti do moderno da palavra. 10 Tanto o eidolon quanto o kolossos remontam ao ser humano, como um terceiro parâmetro n esta conf iguração: uma pessoa vivendo em um corpo físico, que experimentou o eidolon e fabricou o kolossos , sendo o primeiro um produt o da imagin ação, enquanto o segundo o resultado de artefat os criadores. Minha met a é generalizar a configu ração de Vernant e propor uma int er-relação t riangular, em que i magem, corpo e meio poderiam conju gar-se como t rês marcos. 11 Cont udo, um aspecto m erece atenção especial. É a questão do qu e é e o que f az uma imagem. Vernant fala de uma ruptura no pensamento grego que teria sido necessária para causar a nossa compreensão do conceito de imagem. A rupt ura ocorreu por volt a de 500 d.C., quando a líng ua grega usou, pela primeira vez, o t ermo eikon ; incidentalmente ao m esmo t empo em que o t ermo mimesis faz sua prim eira aparição. Eikon desvalorizou, imediatament e, o eidolon , que a partir de então adotou uma significação negativa: no sentido de cópia ou imit ação inerte. Enquant o eikon atraiu a n ecessidade de defini ções ont ológi cas. Vernant supõe a definição da imagem apenas após essa ruptura, enquanto reserva os termos “d uplo” ou “ substit uto ” para os artefato s precedentes a essa 68
7 Marc Auge. La Guerre des rêves. Exercices d’ethno-fiction . Paris: Editions du Seuil, 1997; Serge Gruzinski. La Guerre des imagens. Paris: Fayard, 1990. 8 Carlo Sevei. “Pour une anthropologie des i m a g e s ” , i n L ’ H o m m e . R e v u e f r a n c a i s e d’anthropologie , 165, 2003: 7-9. 9 Jean-Pierre Vernant . Mythe et pensée chez les Grecs . Paris: Gallimard, 1990, 349 ss.; JeanPierre Vernant . Figures, idoles, masques . Paris: Julliard, 1990, 13. 10 Vernant, Figures , 25-30 e 34-41. 11 Belting, Bild-Anthropologie , 7-9 e 11-18. Cf . Hans Beltin g et alli. Quel Corps? Eine Frage der Repräsentation. Munique: Wilhelm Fink, 2002, IX-X (discutindo acerca do p rograma de pesquisa do grupo Karlsruhe). c o nc innita s
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12 Belting, Bild-Anthropologie , 173. 13 Hans Belti ng. “Aus dem Schatt en des Todes. Bild und Körper in den Anfängen”, in Constantin von Barloewen Der Tod in den Weltkultu ren und Weltreligionen , (ed.). Munique: Diederichs, 1996, 92-136. Cf a versão revisada e ampliada i n Belting, Bild-Anthropologie , 143-88. 14 Belting, Bild-Anthropologie , 150-54. Kathleen M. Kenyon. Excavations at Jericho. Londres: British School of Archaeology in Jerusalem, 1981, 3: lâminas 51-60. ano 6, volum e 1, núm ero 8, julho 2005
divi são. Segundo seu pon to d e vista, a distin ção filosófi ca entre aparência e ser era necessária ant es de as im agens t orn arem-se possíveis e pen sáveis. Não obstant e, eu não me admi raria se as imagens não estivessem lá desde o início, mesmo quando elas não se encaixavam nas defini ções platônicas. Foi a criação das imagens que estabeleceu seu lu gar no pensament o h umano. Mas, como Vernant corretamente enfat iza, é assunto diverso que essa mesma im agem tenh a necessitado de um m oment o crítico na cult ura grega, quando elas foram pela primeira vez debatidas, justamente por terem sido questionadas. O teatro grego também contribuiu para esse novo debate emergente. O público do teatro ático riu quando estátuas começaram a correr pelo palco ou, de repente, começaram a falar. Soube- se que as imagens não eram capazes de compo rtar-se como pessoas vivas e, port anto, experiment ou-se um g esto de esclareciment o, cujo porta-voz era aquele que viria a ser o grande mediologista Platão, que inclui u im agens em sua críti ca violenta à escrit a, em oposição à língua viva. 12 Efetuei meu próprio ingresso no discurso antropológico com o tópico da imagem e morte, quando, em 1995, participei de um colóquio dedicado ao signifi cado da morte em diferent es religiões e cult uras no mun do. 13 Logo tornouse claro que eu havia por acaso encontrado um exemplo crucial para o entendimento da criação das imagens. O corpo e o meio estão igualmente envolvidos no sent ido d as imagens em funerais, à medida em que é n o lugar do corpo ausente d o mort o que são instalad as as imagens. Mas essas imagens, por sua vez, permaneciam n a carência de um corpo artif icial, para ocupar o lugar vago do falecido. Aquele corpo artif icial pod e ser chamado mei o (não só material) , no senti do em qu e as imagens necessitavam de corporifi cação para adquirir qualquer forma de visibilid ade. Nesse sent ido, o corpo perdido é t rocado pelo corpo virtual da imagem. É nesse ponto que alcançamos a origem da exata contradição que para sempre caracterizará a imagem: imagens, como todos concordamo s, fazem uma ausência visível ao transformá-l a em uma nova forma de presença. A presença icônica do mort o, t odavia, admit e, e até mesmo encena intencionalmente, a finalidade desta ausência – que é a morte. Logo, a medialidade de imagens é originada da analogia ao corpo físico e, incident almente, do senti do em que nossos corpos físicos também funcio nam como meio s – meios vivos cont ra meios fabricados. As imagens acontecem entre nós, que as olh amos, e seus meios, com os quais elas respondem ao nosso fit ar. Elas se fiam em doi s atos simból icos que envolvem nosso corpo vi vo: o at o de fabricação e o de percepção, sendo este últ imo o propósit o do anterior. Permitam-me, neste momento, introduzir brevemente as descobertas da chamada Cult ura Neolítica B (para usarmos a termi nolo gia de Kathl een Kenyon) no Oriente Médio, dat ada por volta d e 7000 a.C. e que recebeu mui ta at enção em t empos recent es. 14 Porém, a atenção t em sido concent rada em apenas um dos três ti pos de imagens que, n esse primeiro caso específico de assent ament os 69
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humanos, representam os ancestrais mortos. Os famosos crânios que foram transformados em vi vas imagens ou cabeças, ao nelas adicionar-se uma n ova pele de barro, to ques de cor viva e inserirem- se olh os capsulares, ant es de ser mon tad as em pequenas fig uras de suporte. Nesse caso, o corpo perdi do da pars pro toto do crânio f oi restaurado à guisa de imagem. O crânio age como imagem e ao mesmo t empo como um m eio autênt ico que suporta a imagem de sua vida perdida. Podemos até ir um passo além e deduzir, a partir deste at o ( a permuta de uma nova imagem em contraposição à antiga imagem cobrindo o crânio vivo) , a hi pót ese de que a face, criada via essas pessoas, pod eria ser tida com o uma im agem viva por sobre os ossos. Mas existem doi s outros ti pos de imagens que merecem igual atenção. Uma delas é o tipo de efígie ou boneco, represent ando o corpo como um t odo e construído como um corpo natural, por um estranho símile de ent ranhas embrulhadas em uma espécie de pele, um ti po ut ilizado, provavelmente, para funções efêmeras no rit ual do sepult amento . O out ro, um t erceiro t ipo d e imagem que, ent re os três, t eria sucesso duradouro, é a máscara que cobriu tant o o crânio do m orto quant o, posteriorment e, a face de ato res vivos que represent avam a presença do mort o. A máscara é a invenção mais brilhant e que já ocorreu na criação de imagens e encena uma narração a respeit o de seu signi ficado. Ela compendi a belament e a simultaneidade, como também a oposição, entre ausência e presença que tant o t em caracterizado a m aioria das imagens em uso humano. A máscara expõe uma face nova e permanent e (porque n ão é perecível) ao esconder out ra face, cuj a ausência é n ecessária para criar essa no va presença. Mesmo a máscara com as órbit as vazias e um espaço de boca aberta já estava pront a para servir como imagem falan te. Helmut h Plessner discuti u as imp licações ant ropoló gicas da máscara em seu famoso ensaio sobre a ant ropolo gia do at or.15 Podemos ir um passo além e arriscar a visão de que toda a imagem, de uma maneira, poderi a ser classificada como máscara, seja tran sformand o um corpo em im agem, seja existindo como uma entidade separada, ao lado do corpo. Decoração facial e tat uagem pod em tran sformar a face humana efet iva em máscara. Nesse pont o, a metamorfose como a origem da imagem é altament e relevante. O significado antigo da máscara como persona recebeu muita atenção no pensament o hum anista. Nesse caso, em um art igo recent e, discuti a respeito da cobertura que restou de um retrato perdido da Renascença, do qual a máscara, paradoxalment e coberta com cores vivas, preten dia t ambém denun ciar o mesmo retrato que ela, em seu t empo, como tal serviu para ocultar. Lê-se no epigrama que acompanha: “ Sui cuiqu e persona” , ou, “ Para todos seu [ ou sua] persona ” , o qual conscient emente joga com o duplo sent ido do t ermo persona , significando tant o máscara quanto pessoa. 16 No sent ido em que é a máscara mais peculiar de um rosto, o retrato também pert ence à história da relação que eu chamo imagem e morte. 70
15 Helmuth Plessner. “Zur Anthropologie des Schauspielers”, in Gebauer, Anthropologie , 185202. 16 Hans Belting. “Repräsentation und AntiRepräsentation. Grab und Porträt in der frühen Neuzeit”, in Belting, Quel Corps? , 41-43. c o nc innita s
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17 Julius von Schlosser. Tote Blicke. Gerschicht e der Porträbildnerei in Wachs . Thomas Medicus (ed.). 1911, reimpresso em Berlim: Akademie Verlag, 1993, 119-30. 18 Thomas Kellein. Hiroshi Sugimot o: Time Exposed . Basel: Hansjörg Mayer, 1995, 17-28 (“Wax Museums I” ) e 97-108 ( “Wax Museums II ”) . Para Sugimoto, cf . também Hans Belting. “The Theater of I llusion”, in Hiroshi Sugimoto Theaters . Nova York: Sonnabend Sundell, 2000, 1-7. 19 Roland Barthes. La Chamb re Claire. Note sur l a photographie. Paris: Gallimard, 1980, 31. 20 Belting, Bild-Anthropologie , 181 e 185-86. 21 Jay Ruby. Secure the Shadow. Death and Photography in America. Cambridge: MIT Press, 1995. ano 6, volum e 1, núm ero 8, julho 2005
Mudando para os tempos modernos, eu gostaria de lemb rar-lhes a opinião de Julius von Schlosser, publicada em 1911, de que a fotografia herdou, de algum a maneira, aquel as fun ções das fig uras de cera, que àquela época se haviam tornado obsoletas. Naquele tempo, o gabinete da figura de cera havia depreciado a tradi ção das ant igas efígies simb ólicas, mesmo que estas aind a fossem usadas em funerais reais ou na forma de estát uas voti vas, em igrejas. O gabinet e continuou um meio antigo na descontinuidade de seu signifi cado, o que nos diz algo a respeit o das complexidades inerentes a qualquer medialidade.17 Hiroshi Sugim oto aument a essa complexidade em suas foto grafias de figuras de cera. Essa in teração de dois meio s subverte in tencion almente e desestabiliza o caráter de índi ce da foto grafi a. Os corpos que esperaríamos ver em tal ret rato submet emse aos seus duplos sem vida, que, n ão obstant e, aparentam estar mui to vivos.18 Somos ou pegos na armadilha dessa confusão, ou convidados a apreciar a ambígua referência cruzada. A ambigüidade, paradoxalment e, auxilia a enfat izar um meio na evidência do out ro, mediant e a cont ra-referência. Sugimo to t ambém salient a involun tariament e um pont o colocado por Roland Barthes. Ao ver-se em uma foto grafia, Barthes escreveu, “t ornei-me t odo-i magem, i. e. morte em pessoa”, e acrescentou com a declaração de que essa “microexpérience de la mort ” f oi precedida por uma longa obsessão pelo duplo. 19 A foto grafia tornou -se um novo t ipo de cunhagem. Não mais a modelagem ou desenho da superfície do corpo como volum e, e sim a imp ressão da aparência plana do corpo sob luz e subseqüentement e no papel. Esse tipo de im pressão fixou o m oment o na permanência e, desse modo, reencenou aquele hábito de desenh ar a sombra lançada sobre a parede que levou Henry Fox Talbot , durant e algum t empo, a pensar em chamar seu invent o de “ciog rafia” ant es de decidir nomeá-lo “fotografia”. 20 Em seu livro, Secure the Shadow , Jay Ruby publicou uma fot ografia nort e-americana do século XIX, na qual uma famíli a posa com a fot ografi a de seu falecido m arido e pai. Dessa manei ra, com inocent e precisão, o fotógrafo repetiu um antigo ritual que tem servido, em qualquer época, à reint egração social do mort o por mei o de sua imagem. O retrat o parece cont er não só outro retrato, como t ambém encena uma imagem da memória como uma relíquia do tempo perdido. 21 Não posso discut ir o sufi cient e sobre nossas experiênci as cont emporân eas acerca da imag em e da mort e. Apenas para apont ar um caso, esperamos que a mort e de uma personali dade públi ca seja alvo das not ícias. A gravura do mort o, de qualquer modo, não é mant ida à vista para permanecer posteriorment e em nossa memória, e sim para introduzir o morto em seu novo status (baseado apenas em gravuras). A gravura ocupa o lugar nos meios de massa que os indi víduos mortos teriam cont inuado a ocupar, caso ainda esti vessem vi vos. Portanto , t emos que distinguir dois propósitos radicalmente opostos. Enquanto a gravura de tal p essoa, aind a viva, seria um mero in stantâneo natu ral, essa 71
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mesma gravura, mort a a pessoa, muda seu signi ficado compl etament e. Ela agora representa a ausência de alguém, o u seu espaço vazio, no m esmo ambi ente d e que essa pessoa, até aquele mo ment o, era parte i nt egrante. Mesmo em t ais práti cas residuais, experiment amos a sobrevivência daquela “t roca simbó lica”, a qual Jean Baudrillard dedicou seu famoso livro. 22 De qualquer modo, n ão é o signif icado da mort e e sim a bu sca da imagem que justifi ca o tópico, em meu caso. Uma perspectiva um t anto simi lar – pelo menos em parte – é a que caracteriza o livro de Régis Debray Vie et mort de l’image , que me fornece a oportunidade de introduzir ainda outro nome. 23 Debray é mais conhecido por seu programa, chamado “médiologie”, ao qual retornaremos. Todavia, nesse livro ele se concent ra na imagem. No prefácio, ele chama a imagem de “terreur” domesticado, já que sua origem “é fortemente ligada à mort e”. Ele insiste com j usteza na importância da evolução mediológ ica, e, por essa razão, pode dizer que “qualqu er imagem fabricada é datada t anto por sua fabricação quanto pela recepção que se segue”. Mas ele t ambém em preende uma igual discussão acerca de todas aquelas imagens que vivem apenas em nosso pensamento e imagin ação. Conseqüentement e cita a f órmula de Gaston Bachelard “ a morte f oi prim eiramente uma i magem, e sempre persistirá como tal” , uma vez que não sabemos o que a morte realmente é . 24 Poderíamos falar em termos similares a respeit o do tempo e do espaço. Para lidar com esse outro ti po in tang ível de imagem ment al Debray int roduz, em seu lugar, o f it ar, poi s é, segundo sua visão, o fi tar que t ransmit e imagens de nat ureza mental. Enquant o David Freedberg, em seu livro The Power of Im ages – como anuncia o próprio subtítulo – aponta a resposta às imagens, Debray insiste no fi tar como sendo a força que transforma um quadro num a imagem.25 “ Prati car o fit ar não é simp lesmente acumular recepção, mas serve ao propósito de ordenar (ordoner ) o visível. A imagem retira seu signifi cado do fit ar, t anto quanto o t exto vive da leit ura”. O fitar, para ele, não é apenas uma técnica social próxima à viol ência, tal qu al a existent e entre os sexos, mas impli ca o corpo vivo como um t odo. O termo francês regard , com a im plicação de prendre garde , tem conot ações diferent es dos termos gaze , look e glance, 26 se usarmos as dist in ções na língua inglesa que têm sido discutidas por Norman Bryson. 27 As palavras inglesas regard e regardful 28 aproximam- se mais do que aqui é signif icado, o que também se aplica às expressões watch ou watch out, 29 que aparecem na vizinh ança lingüística do t ermo francês regard . Estamos conden ados a viver no labiri nt o de nossas próprias ling uagens, que tão freqüentement e restrin gem e m esmo cerram part es do espectro semânt ico que desejamo s descrever, estrei tan do não só no ssa terminologia como também nosso pensamento. O mesmo tipo de aporia se aplica, na outra margem, à experiência da imagem. Normalmente, não falamos em t ransmit ir im agens, apesar de isso se circunscrever exatamen te ao que aqui venho falando . Não é por acaso que Debray dedicou outro li vro muit o polít ico 72
22 Jean Baudrillard. L’Échange symbolique et la mort . Paris: Gallimard, 1976. 23 Régis Debray. Vie e mort de l’im age. Une histoire du regard en Occident . Paris: Edit ions Gallimard, 1991, 12, 16-41. 24 Gasto n Bachelard. La Terre et les rêveries du repos. Paris: Corti, 1948, 312. 25 David Freeberg. The Power of I mages: Studi es in the History and Theory of Response . Chicago: University of Chicago Press, 1989. 26 Fitar , olhar e relancear , respectivamente. (NT) 27 Norman Bryson. “ The Gaze and the Glance”, in Gryson. Vision and Painting: The Logic of the Gaze . New Haven: Yale University Press, 19 83, 87-132. 2 8 A t e n t a r / o l h a r f i r m e e a t e n c i o s o , respectivamente. (NT) 29 Vigiar e estar al erta , respectivamente. (NT) c o nc innita s
Po r u m a a n t ro p o l o g i a d a im a g e m
30 Régis Debray. Transmettre . Paris: Editions Jacob, 1997. 31 Bernard Stiegler. “L’image discrete”, i n Jacques Derrida e Benard Stiegler. Échographies de la télévision . Paris: Editions Galilée, 1996, 165-82. 32 Augé, La Guerre des rêves , 45-40 e 91-110. ano 6, volum e 1, núm ero 8, julho 2005
ao tópico da transmissão ( transmettre ) , cujo significado ele opõe ao senso banal de comunicação. 30 Em regra, encontramos imagens em situação de performance ; mas sua qualidade performática é depreciada pelas atuais terminologias do discurso. Podemos lembrar que as imagens não estão simplesmente ali, mas chegam com uma mise-en-scène predeterminada, que também inclui um lug ar predeterminado para sua percepção, o qual elas guiam por meio de performance . Em termos antrop ológi cos eu contestaria qualquer dualismo rígido, que tão freqüentement e separa a representação int erna da externa – uti lizando-n os aqui da terminolo gia atual em pesquisa neurobiológica – e que, portant o, as designa para duas áreas int eiramente d istin tas. Certament e nosso cérebro é local de representação interna, mesmo no processo que simplificamos ao chamar simplesmente de p ercepção. Tais imagens endógenas, porém, tamb ém reagem a imagens exógenas que tendem a assumir o encargo de parte dom inant e nessa cooperação. As imagens não existem só na parede (ou na t evê) nem soment e em nossas cabeças. Elas não p odem ser desembaraçadas de um exercício cont ínuo de int eração que deixou t antos vestígi os na história d os artefatos. Essa anti ga e nova int eração conti nua mesmo na era das imagens digit ais (images discrètes ) , conforme justamente apontado por Bernard Stiegler. “Nunca houve imagens físicas [ ima ges objet ] sem a particip ação de imagens mentais, uma vez que uma imagem, por definição, é algo que é visto (e só é algo quando é visto). Reciprocament e, as imagen s ment ais tam bém dependem de imagen s obj eti vas, no senti do em que aquelas são o retour ou a rémanence destas. A questão da imag em sempre diz respeito ao vestígi o e à in scrição.” 31 Em o ut ras palavras, as imagens mentais são inscritas nas externas e vice-versa. Augé fala a respeito disso quando menciona os “sonhos” que o indivíduo tem em oposição aos “ícones” do d omíni o públi co que aparecem nos sonho s.32 O seu dar e receber transforma o coletivo imaginaire em uma área altamente controvertida, que também atrai o desejo do controle político. A int eração ent re nossos corpos e as im agens externas, de qualquer modo , inclui um terceiro parâmetro, que chamo “ medium ” , n o sent ido de vetor, agente, dispositif (como di zem os franceses) ou suport e, anfit rião e ferramenta de imagens. Esse termo p ode encont rar alguma resistência, d ado que estamos famili arizados com os media apenas no sentido dos atuais ‘mass media’ . Portant o, eu gostaria de in trodu zir duas premissas que podem esclarecer meu argumento . Primeiro, poderia ser dito que não falo de imagens como media , como normalmente fazemos, ao cont rário, gostaria de argument ar que as imagens usam suas própri a media , a fim de t ransmit ir-nos suas mensagens e tornar-se, em primeiro l ugar, visíveis para nós. As imagens até m esmo m igram ent re media diferentes ou combi nam as característi cas disti nt ivas de vários media . E há a segun da prem issa: nomeadament e, a assunção de que mesmo nosso corpo opera por sua conta 73
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como um medium vivo. É com essa capacidade inat a (a d o corpo que representa) que fi camos em posição de fazer uso dos media fabricados e facilmente distin guilos das imagens inerent es; no sent ido d e que não assumim os tais media como simples objetos, nem como corpos reais. Platão j á estava cient e da dif erença entre corpos – como medium natu ral – opostos à escrita e pin tu ra – medium artif icial –, ao argument ar contra as últ imas, chamando-as de memórias mort as, enquant o defendia a memória viva ou corporal. O grupo d e Debray, embora com ênfase dif erente da minh a, tamb ém insiste na import ância mediológica tant o do passado quanto do presente. O periódico e os livros carregam a ind icação “Le champ medi olog ique”. O projet o de Debray vira-se contra o mon opóli o da semiologi a francesa, sendo, port anto , mont ado na direção de out ros aspectos da cultura, como sua face históri ca, simból ica e mat erial. Em seu livro Dieu, un iti néraire, Debray discute o i mpacto mediológ ico da escritura na evolução do mon oteísmo, enquanto Monique Sicard investi ga a fabrique du regard , a respeit o da ciência da imagem e tecnologi as da visão.33 Simpat izo com essa abordagem, apesar de mi nhas metas estarem mais centradas na imagem, a qual di scuto dent ro da evolução mediológi ca e do arranjo mental. Apenas para disti ngui r um caso que me é muit o fami liar, falar em evolução mediológica signi fica ident ificar o pain el da gravura européia como uma in venção mui to especifica e culturalment e localizada desde os primórdios da perspectiva, uma vez que ela não existia em nenh uma out ra cultura. Por outro l ado, arranjo mental signifi ca a mesma apropriação do medium , para fins de representação, conforme esteja imediatamente aparente a partir do retrato. O campo de observação enquadrado, como seria herdado pela tela de tevê e outros, primeirament e confiou em uma arquit etura mais específica baseada em panoramas, que se desenvolveu na Idade Média européia, e, depois, confiou numa ment alidade européia correspondent e, ansiosa por cont rolar o mundo at ravés de uma televista a partir de uma posição interio r, o que signi fica a partir de uma posição à parte (um dualismo separando int erior e exterior, sujeit o e mundo) . A distinção entre imagem e medium depende de no ssa mudança de at enção, seja para um ou para outro, ou seja, depende mais de nossa escolha do que de uma precondição inerent e a um dado artefato. I sso pode ser demonstrado por dois exemplos, escolhi dos aleatoriamen te. Podem ser parecidos, já que em cada um dos casos o espectador escrutina uma obra com uma lente de aumento, embora com in tenções diferentes. Um caso é o do histori ador de arte Bernard Berenson, que examina as pinceladas de Dürer em um quadro, sem prestar n enhuma atenção à imagem retratada nessa tela. A pintura, nesse caso, reduz-se ao espécime do esti lo de Dürer, ou seja, a u m medium histórico em seus próprios termo s. Logo Berenson, em sua aten ção profission al, está recortand o a imagem do medium . E há o caso do repórter no fi lme Blow-Up , de Michelangelo Anton ioni , que inspeciona uma impressão fot ográfica sua com o ún ico propósito de detectar 74
33 Régis Debray. Dieu, un itinéraire. Materiaux pour l” histoi re de l’eternel en occident. Paris: Edit ions Jacob, 2001; Monique Sicard. La Fabrique du regard. Im ages de science et appareils de vision . Paris: Edit ions Jacob, 1998. c o nc innita s
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Bernard Berenson na Villa Borghese, Roma, 1955
34 Rosalind Krauss e Norman Bryson. Cindy Sherman , 1975-1993 . Muni que, Paris e Londres: Schirmer/ Mosel, 1993. ano 6, volum e 1, núm ero 8, julho 2005
o vestígi o de um crime ocorrido no local e que poderia ter passado despercebido; inspeciona tant o quant o Berenson procura o vestígio da art e de Dürer. Nós, entretant o, costumamos fazer o oposto, e t endemos a ignorar o medium enquanto olhamos para uma i magem, como se as imagens pudessem existir por si mesmas. Imagem e medium , t ão in separáveis no resultado, novament e separam-se em nosso olhar. Artistas contemporâneos, como Cindy Sherman, usam essa ambivalência para criar confusas referências cruzadas entre diferentes media (efetivamente tão usados quanto aqueles mencionados), chegando ao ponto em que não pod emos mais seguramente discriminar imagem e medium . Menciono apenas seus pseudoquadros de filmes, que simulam filmes, mas são meras fot ografi as, ou penso em suas máscaras, as quais ela realiza ut ili zando a si mesma como mo delo dessas fot ografi as, da mesma maneira que os modelos em anti gas pinturas. 34 Dois tópicos muito discutidos na história das imagens convidam-nos à distin ção da imagem e do medium , ainda, a partir de um outro lado. Iconoclastia , como sendo vi olência cont ra as imagens, realizada apenas para destrui r seu suporte-medium , ou seja, seus corpos tan gíveis e visíveis. Essa prát ica pret endeu despojar as imagens de sua presença midi ática e, portant o, de sua presença públi ca. Os atos iconoclastas de destrui ção simbólica apenas refletem os ato s igualment e solenes de in stalação que t ais imagens experiment aram no espaço públ ico. Esses atos tam bém servem à int enção de aniqui lar as imagen s mentais que por elas foram inspiradas. A ambição dos iconoclastas leva-os a querer erradicar os ícones do inim igo d a imagin ação de uma dada sociedade. Mais uma vez, presenciamos isso recentemente na destruição das estátuas de Saddam 75
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Hussein em Bagdá, executada como vit ória simbólica sobre o ti rano. Cont udo, a purificação do imaginário coletivo nunca pode controlar aquilo que, em últ ima i nstância, int entaria: o apagamento ou desprezo, n as mentes das pessoas, das imagens destruíd as. A distinção entre imagem e medium aplica-se igualmente à definição in cont estável do que seja uma imagem: a presença de uma ausência. Sua presença certamente é uma em nosso fi tar, um fi tar de reconheciment o que nos ajuda a animar imagens como seres vivos. Mas a presença e a visibilidade factual das imagens dependem de sua transmissão por um dado medium , no qual elas aparecem ou são realizadas, seja em um m onit or ou in corporadas em uma ant iga estát ua. Em seu própri o no me, as imagens com sucesso atestam a ausência do que el as fazem present e. Graças a seus media, elas já possuem a presença daqui lo de que elas precisam para represent ar. Portant o o en igma das im agens – ser ou signi ficar a presença de uma ausência – resulta, pelo m enos em parte, de n ossa capacidade de distinguir imagem de medium . Estamos dispostos a creditar imagens em referência a alguma coisa ausente: d e fato, podemos ver aquela ausência que se repagina na visibi lidade paradoxal que pod e ser chamada de medium . Pode-se objet ar que isso t ambém se aplica ao signi ficant e e sign ifi cado da semiologi a, mas é preciso ser dit o que a semiol ogia, por sua vez, obteve essa mesma relação do ant igo d iscurso da im agem. A dif erença pode ser esclarecida ao cont rastarmos imagem e discurso: a palavra visível não p ertence à mesma categoria da ausência visível, um a vez que imagens não têm u m código seguro que as conecte a seu modelo. Melhor, é aqui que a analogia do corpo físico entra novament e em jogo. A relação ent re ausência – entendi da como invisibili dade 76
Cena do filme Blow-Up , de Michelangelo Antonioni, 1966
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Nam June Paik (norte-americano, nascido na Coréia em 1932). TV Buddha (estátua Buda, câmera, monitor), 160 x 215 x 80cm. Stedelijk Museum, Amsterdã, 1974
35 Hans Belting. “Beyond Iconoclasm: N. J. Paik, The Zen Gaze, and the Escape from Representation”, in Bruno Latour e Peter Weibel. (ed.). Iconoclash . Cambridge: MIT Press, 2002, 391-411. ano 6, volum e 1, núm ero 8, julho 2005
– e pre sença – en t en di da co mo vi si bi li dad e – é a últ i ma inst ân ci a base ad a em nossa experiência f ísica. O mesmo se aplica a no ssa memóri a física, que gera imagen s com o pro pósit o de represent ar eventos ausent es ou pessoas de outros tem pos, então relemb radas. Tendemos a imagin ar como present e o que de fato há mui to se to rnou ausent e e aplicamos a mesma capacidade às imagens externas que fabricamos. A medialid ade é o elo perdido en tre as imagens e nossos corpos. Para concluir a exposição um tant o breve de um tó pico que tenh o chamado Bildanthropologie , eu gostaria de consultar uma obra de arte contemporânea, a fim d e descobrir se meu argument o ajuda ou não a investi gar um caso concreto. Para esse propósito , escolh o a obra de Nam June Paik, a primei ra obra recriada como uma in stalação de circuito f echado pelo artista coreano e a primeira a aparecer de sua longa série de TV Buddhas , datadas de 1974. 35 Essa obra tem sido tema de muitos textos que venho publicando ao longo dos últimos 10 anos, sendo o mais recente o ensaio “ Beyond I conoclasm” , para a exposição Iconoclash de Karlsruhe, em 2002. A imagem em circuito interno, produzida por uma câmera de vídeo que projet a a mesma imagem do Buda 25 vezes por segundo na t ela da tevê, ainda reflete a ant iga fascinação com as imagens de vida nos notici ários da tevê que J. C. Bringu ier chamou de “ mystiqu e du direct”. 77
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O espaço de t empo usual a parti r do qual as imagens têm sempre vivido foi quebrado ( ou pelo meno s parece) nesse caso. Ao con trári o, somos lembrados a respeito de uma sit uação de espelho. O espelho ofereceu um a anti ga experiência de imagens, na qual qualquer reflexo acontece no tempo presente. Contudo mesmo a imagem reflet ida é suficien tement e complicada. A simet ria absolut a entre o corpo físico que olha e a superfície do vidro é uma fi cção. O espelho, como t al, é vazio e, port anto , necessita de um corpo para gerar uma imagem, mas a imagem, po r sua vez, precisa de nós, que a ident ifi camos como sendo o nosso “ out ro”, u ma capacidade que adquirimos no famoso estági o do espelho. Mas a analogi a do espelho, na obra de Paik, por sua vez, conf ia na fi cção. O Buda (que é, casualmente, um monge) não olha, e o espelho é operado por controle remoto. Paik cria uma tautologia falsa entre a velocidade do novo medium (t evê) e a imobil idade escultural do medium antigo (Buda), ambos de origem japonesa, porém divididos por um tempo abismal. Como vemos (ou parece que vemos) duas vezes a mesma imagem (um a anti ga e tridi mensional, a outra nova e eletrônica), somos novamente introduzidos à não-identidade entre a imagem e o medium . A im agem que po r duas vezes vemos não está nem em frent e nem dent ro da tela da tevê (para a qual, por sinal, chega a partir de uma fon te externa). A imagem é de uma ambigüi dade paradoxal, se estamos dispostos a esquecer, por um momento, a causalidade técnica respectiva: ela transgride as front eiras entre doi s media opost os por uma diferen ça radical. E há, fin almente, u m corpo cuja im agem vemos duas vezes, na im agem primária da estát ua e na im agem secundária da tela: um corpo represent ado (n a estát ua) e representando (refletindo) .
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