Simbologia do episódio da Ilha dos Amores (IX,18 – X, 143)
Resumo do episódio
Depois de várias dificuldades em Calecute, os Portugueses iniciam a viagem de regresso à Pátria. Estamos em finais de julho de 1498. É então que Vénus decide premiar os corajosos nautas por todo o trabalho e sofrimento que haviam tido, “Por mares nunca de antes navegados” (I, 1). A deusa “Já trazia de longe no sentido, / Pera prémio de quanto mal passaram, / Buscar-lhe algum deleite, algum descanso, / No Reino de cristal, líquido e manso” (IX, 19). Esse deleite é proporcionado com a chegada a uma “ínsula divina”
(IX, 21) repleta de prazeres. Uma ilha “alegre e deleitosa” (IX, 54), onde um grupo de Ninfas apaixonadas os espera, impacientemente. Mais uma vez, é Fernão Veloso quem dá o alerta: “Senhores, caça estranha (disse) é esta!” (IX, 6 9).
O que se passou durante o dia, “famintos beijos, “mimoso choro”, “afagos tão suaves”, “risinhos alegres”, “Milhor é experimentá -lo que julgá-lo; / Mas julgue-o quem não pode experimentá- lo” (IX,
83). Chega-se mesmo a celebrar a união entre os homens e aqueles seres divinos, fazendo-se juras de “eterna companhia, / Em vida e morte, de honra e alegria” (IX, 84).
Tethys explica, depois, ao seu Vasco da Gama que tudo aquilo é o merecido prémio pelos “trabalhos tão longos” (IX, 88), referindo as futuras glórias que lhe serão dadas a conhecer. Após a
explicação do sentido alegórico da Ilha, o poeta termina, tecendo considerações sobre a forma de alcançar a Fama. Ainda na Ilha dos Amores, os nautas são brindados, no canto X, com um banquete oferecido por Tethys, durante o qual são profetizadas as conquistas futuras dos Lusitanos no Oriente. Após uma interrupção nas estrofes 8 e 9, para o poeta fazer uma última invocação a Calíope, prossegue o discurso profético. Vasco da Gama é, entretanto, encaminhado por Tethys ao cume de um monte, onde lhe é mostrada a “Máquina do Mundo” e a futura dimensão do Império Português no Oriente.
Em seguida, dá-se o embarque dos marinheiros e a viagem de regresso à Pátria, que havia de decorrer de forma tranquila: “Podeis-vos embarcar, que tendes vento / E mar tranquilo, pera a pátria amada” (X, 143). E “Assi foram cortando o mar sereno, / Com vento sempre manso e nunca irado” (X,
144).
Leitura simbólica
Todo o episódio, que representa cerca de vinte por cento do poema, tem um carácter alegóricosimbólico (cf. IX, 89-92). Em primeiro lugar, a “ilha” é, com frequência, associada a imagens paradisíacas e é considerada em diferentes culturas como a representação de um mundo perfeito, separada do restante mundo comum, exigindo a demanda, a aventura e o esforço para lá se poder chegar.
Prof. Luís Arezes – Agrupamento de Escolas de Ponte da Barca
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Simbologia do episódio da Ilha dos Amores (IX,18 – X, 143) Neste episódio, é descrita como um locus amoenus (local agradável, ameno), propício à fruição da tranquilidade do espírito, e apresentada como um prémio, “bem merecido” (IX, 88), que representa a glorificação do povo português, a quem é reconhecido um estatuto de excecionalidade. Pelo seu esforço continuado, pela sua persistência, pela sua fidelidade à tarefa de expansão da fé cristã, os Portugueses como que se divinizam (“esforço e arte / Divinos os fizeram, sendo humanos” – IX, 91), adquirindo um estatuto de imortalidade que é, afinal, o galardão máximo a que pode aspirar o ser humano, ao mesmo tempo que são admitidos à visão do cosmos. Podemos dizer que é a energia criativa do Amor que conduz os Portugueses à imortalidade, é o Amor que deifica homens e humaniza deuses, unindo-os num só ser e fazendo com que entre eles não haja mais distinção. Não se trata de um amor qualquer, mas do Amor desinteressado, do Amor à pátria, do Amor ao dever, do empenhamento total nas tarefas coletivas, da capacidade de suportar todas as dificuldades, todos os sacrifícios. É esse Amor que manifestam Gama e os seus homens e que permite a tantos libertar-se da "lei da morte", um Amor que o narrador já havia referido na “Dedicatória” a D. Sebastião: “Vereis amor da pátria, não movido / De prémio vil, mas alto e quase
eterno” (I, 10). Na Ilha dos Amores, temos a glorificação do “peito ilustre lusitano”, a vitória da inteligência e do génio humano e ainda a embriaguez dos vários sentidos. A Ilha é também a manifestação da Beleza de um mundo ideal, onde todos os que merecem são compensados pelo seu esforço, onde o Amor corre livre e não é alvo de censuras, um mundo onde, lado a lado, se conjuga o terreno e o divino, o carnal e o espiritual. Ela é o restabelecimento da Harmonia, de modo que a consagração e a transfiguração mítica dos heróis apontam para a recolocação do Amor como centro da Harmonia e do Mundo. Assim como nos primórdios bíblicos uma mulher fizera Adão ficar sujeito à morte, também agora a inocência do paraíso é recuperada através da(s) figura(s) feminina(s) que liberta(m) os homens da lei da morte. Este regresso ao paraíso perdido remete para a questão da autodeterminação humana e do orgulho humanista. A deificação dos homens elevados ao estatuto de deuses é uma ideia adequada ao impulso do Renascimento, que assistiu a um importante avanço no domínio do planeta por parte do Homem. Neste contexto, é muito interessante que o humano Gama tenha alcançado, com a posse de Tethys, símbolo do domínio dos mares, aquilo que fora negado a Adamastor, um titã semidivino. Podemos, igualmente, aproximar a Máquina do Mundo da temática amorosa. De facto, o Amor é a força capaz de corrigir os desacertos e a desarmonia do mundo e, por isso, guiado por Tethys e pela força do Amor para contemplar a Máquina do Mundo, o “felice Gama”, agora divinizado, ouve o convite da deusa: “Faz-te mercê, barão, a Sapiência / Suprema de, cos olhos corporais, / Veres o que não pode a vã ciência / Dos errados e míseros mortais” (X, 76). “Comovido / De espanto e desejo” (X, 79), Gama contempla aquilo que só aos deuses era
permitido. “Diz-lhe a Deusa: ‘ O transunto , reduzido / Em pequeno volume, aqui te dou / Do Mundo aos olhos teus, pêra que vejas / Por onde vas e irás e o que desejas’” (X, 79). Prof. Luís Arezes – Agrupamento de Escolas de Ponte da Barca
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Simbologia do episódio da Ilha dos Amores (IX,18 – X, 143) Ao ser elevado acima das categorias do tempo e do espaço e ao ser proclamado senhor do “Saber, alto e profundo, / Que é sem princípio e meta limitada” (X, 80), o herói recebe a coroação
máxima. Com esta iniciação ao conhecimento ou Sapiência Suprema do Universo, passa do mundo profano, vulgar, para um mundo sagrado. A Máquina do Mundo simboliza, portanto, a vitória do conhecimento racional, do pensamento ordenado frente ao mundo desarmónico e confuso. Cabe ao homem, por meio de seus esforços, por meio do Amor, impor a si e àquilo que está em seu redor uma visão ordenada.
Conclusão
Tal como na Mensagem de Pessoa, também n’Os n’ Os Lusíadas “O mito é o nada que é tudo”. Não existe, mas tem um poder criador e fecundante, isto é, dá sentido. De facto, que razão de ser teria a existência se estivesse, irremediavelmente, votada à morte e ao desaparecimento? Mais uma vez, é notória a visão humanista de Camões e a exaltação das capacidades humanas: “um bicho da terra tão pequeno” (I, 106) consegue vencer as suas próprias limitações e ir além “do que prometia a força humana” (I, 1).
Recordo, a propósito, a exortação pedagógica que o épico dirige, no final do canto IX, aos que suspiram por imortalizar o seu nome. Faço-o citando Amélia Pinto Pais que reescreveu em prosa os referidos versos que apresentam um notável modelo de perfeição humanista: “CONSELHOS DO POETA. Por isso, queridos leitores e todos quantos amarem a
fama, procurai despertar do ócio que escraviza, refreai a cobiça e a ambição, abandonai o vício da tirania. Essas honrarias vãs, o ouro, não dão valor a ninguém : ‘Milhor é merecêlos sem os ter, / Que possuí- los sem os merecer’. Procurai, sim, ser justos na paz, fazendo leis que não dêem aos grandes aquilo que é dos pequenos; sede valentes na guerra contra os inimigos sarracenos (mouros); se assim for, possuireis riquezas e honras merecidas; e tornareis ilustre o Rei que amais, dando-lhe bons conselhos ou ajudando-o com as vossas espadas, como fizeram os vossos antepassados. Não é preciso fazer coisas impossíveis, já que querer é poder; se assim fizerdes, 1
sereis também recebidos nesta I lha de Vénus” .
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Amélia Pinto Pais, Os Lusíadas em Prosa , Areal Editores, Porto, 1995 , p. 69.
Prof. Luís Arezes – Agrupamento de Escolas de Ponte da Barca
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