UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
AS ILHAS DA ENCANTARIA: O REI SEBASTIÃO NA POESIA ORAL NUTRINDO IMAGINÁRIOS
Claudicélio Rodrigues da Silva
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
AS ILHAS DA ENCANTARIA: O REI SEBASTIÃO NA POESIA ORAL NUTRINDO IMAGINÁRIOS
Claudicélio Rodrigues da Silva
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AS ILHAS DA ENCANTARIA: O REI SEBASTIÃO NA POESIA ORAL NUTRINDO IMAGINÁRIOS Por Claudicélio Rodrigues da Silva Orientador: Prof. Dr. Alberto Pucheu Neto
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para a obtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Poética). Examinada por: _______________________ __________________________________ ______________________ ______________________ ______________________ __________________ _______ Presidente: Prof. Dr. Alberto Pucheu Neto (Departamento de Ciência da Literatura, UFRJ) ______________________ _________________________________ ______________________ _______________________ _______________________ ___________________ ________ Prof. Dra. Jacqueline Hermann (Departamento de História, UFRJ) ______________________ _________________________________ ______________________ ______________________ ______________________ ___________________ ________ Prof. Dra. Martha Alkmin (Departamento de Ciência da Literatura, UFRJ) _______________________ __________________________________ _______________________ _______________________ ______________________ __________________ _______ Prof. Dr. Eduardo Coutinho (Departamento de Ciência da Literatura, UFRJ) _______________________ __________________________________ ______________________ ______________________ ______________________ ___________________ ________ Prof. Dr. Gustavo Bernardo Galvão Krause (Departamento de Literatura Comparada, UERJ) _______________________ __________________________________ ______________________ ______________________ ______________________ ___________________ ________ _______________________ __________________________________ ______________________ ______________________ ______________________ ___________________ ________
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Silva, Claudicélio Rodrigues da. As ilhas da Encantaria: o rei Sebastião na poesia oral nutrindo imaginários/ Claudicélio Rodrigues da Silva. – Rio de Janeiro: UFRJ, 2010. xiii, 387 f.; Il.; 30cm. Orientador: Prof. Doutor Alberto Pucheu Neto. Tese (Doutorado) – UFRJ/ Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, 2010. Referências Bibliográficas: f. 269-278 1. Sebastianismo. 2. Maranhão. 3. Mito. 4. Poesial Oral. 5. Performance. I. Neto, Alberto Pucheu. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação Pós-Graduação em Ciência da Literatura. III. Título.
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O mytho é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É um mytho brilhante e mudo O corpo morto de Deus, Vivo e desnudo. (Fernando Pessoa, Mensagem)
Rei, ê rei, Rei Sebastião Rei, ê rei, Rei Sebastião Se desencantar Lençóis Vai abaixo o Maranhão. (doutrina para o Rei Sebastião)
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RESUMO AS ILHAS DA ENCANTARIA: O REI SEBASTIÃO NA POESIA ORAL NUTRINDO IMAGINÁRIOS IMAGINÁR IOS Por Claudicélio Rodrigues da Silva Orientador: Prof. Dr. Alberto Pucheu Neto
Resumo de Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para a obtenção do Título de Doutor em Ciência Ci ência da Literatura, Poética.
O rei Sebastião, monarca português do século XVI, viveu apenas 24 anos e se tornou não apenas símbolo da nação portuguesa, mas ícone da cristandade. Antes mesmo de nascer, recebera o epíteto de “O desejado”, e após sua possível morte, na batalha de Alcácer Quibir, em 1578, passou a ser “O encoberto”. O sebastianismo - a crença na volta do rei - foi transplantado para todas as colônias portuguesas, suscitando na gente simples a promessa de ser para sempre livre do jugo da opressão. Passados cinco séculos, o rei ainda é esperado e lembrado com muito vigor. No Brasil, duas ilhas maranhenses dizem abrigar o corpo místico do encoberto: a Ilha de São Luís e a Ilha de Lençóis. O rei surge metamorfoseado num touro ou num pássaro, trajando uma veste real abrasileirada, e convida todos para o seu desocultamento. Para ele são entoados doutrinas, cantos e toadas, no rito afro-brasileiro do tambor de Mina e na manifestação popular do bumba meu boi. O reino sebastiânico é apresentado na poética da Encantaria. Encantaria. Esta tese constitui um estudo fronteiriço fronteiriço em que vários campos do saber convergem para o mito sebastiânico, no cerne do poético. Como uma mitopoética é construída para dar conta da vida, morte e destino? Como o rei Sebastião, símbolo da saudade, sai da história e torna-se mito? De que modo, em pleno século XXI, o rei é reverenciado por uma comunidade pré-letrada, onde a oralidade e a memória são a estrutura da manutenção do legado cultural? De que modo a cultura letrada se apropria desse discurso para reapresentar reapresentar o mito sebastiânico? sebastiânico? Palavras-chave: Palavras-chave: Sebastianismo, Maranhão, Mito, Poesia Oral, Performance.
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ABSTRACT MYTHICAL ISLANDS: KING SEBASTIAN IN THE ORAL POETRY Por Claudicélio Rodrigues da Silva Orientador: Prof. Dr. Alberto Pucheu Neto
Resumo de Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para a obtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura, Poética.
King Sebastian, XVI century Portuguese monarch, lived only 24 years and became not only a symbol of the Portuguese nation, but an icon of Christianity. Even before he was born, he was called “the desired”, and, after his possible death at the Alcácer Quibir battle in 1578, they called him “the uncovered”. Sebastianism - the belief in the king's return – was widely transplanted throughout the Portuguese colonies, making humble people believe in the promise of always being free from oppression. Five centuries later, the king is still expected and remembered with much vigor. In Brazil, two islands in Maranhão are known for sheltering his mystical body: Ilha de São Luís and Ilha de Lençóis. The king emerges in a metamorphose of a bull or a bird, in a Brazilian royal vest and invites all to his uncover. In his behalf the people sing religious chants, with the afro-Brazilian Mina Drum and in the popular demonstration of the bumba meu boi folklore. The sebastianic kingdom is presented inside a poetic conjure. The present thesis constitutes in a study dealing with a borderline between many fields that converge to the sebastianic myth, in it's poetic heart. How is poetic myth built to take over life, death and destiny? How does king Sebastian, symbol of longing (missing someone), leave history to become a myth? How can the king, in the XXI century be reverenced by a pre-literate community, where speach and memory are the maintenance structure of the cultural legacy? In which ways does the literate culture appropriate itself of this speech to reintroduce the sebastianic myth? Key Words: Sebastianism, Maranhão, Myth, Oral Poetry, Performance.
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RESUMEE – UEBERBLICK
ILHAS MÍTICAS: O REI SEBASTIÃO NA POESIA ORAL Por Claudicélio Rodrigues da Silva Orientador: Prof. Dr. Alberto Pucheu Neto
Der Koenik Sebastian, portugiesischer Monarch im XVI (sechzehnten Jahrhundert), lebte nur 24 (vierundzwanzig) Jahre und ist nicht nur ein Symbol der portugiesischen Nation geworden, sondern auch Ikone des Christentums. Noch bevor er geboren wurde, bekam er den Spitznamen der Gewuenschte“ und nach seinem moeglichen Tod, im Kampf zu Alcácer Quibir, 1578, wurde er der Versteckte“. Der Sebastianismus – der Glaube an die Wiederkunft des Koenigs – wurde in allen portugiesischen Kolonien implantiert, um so in den einfachen Leuten das Versprechen hervorzurufen, fuer immer von der Unterdrueckung befreit zu werden. Nach fuenf Jahrhunderten wird der Koenig immer noch erwartet und man erinnert sich noch sehr an ihn. In Brasilien wird von zwei Inseln berichtet, die den mystischen Koerper des Versteckten“ beherbergen: die Insel São Luis und die Insel der Lenções (Duenen). Der verwandelte Koenig taucht auf einem Stier oder auf einem Vogel mit einem verbrasilianischten, koeniglichem Gewandt auf und laedt alle zu seiner Entschleierung ein. Zu seiner Ehre werden Lehren, Lieder und Weisen im afro-brasilianischen Rythmus der Mina – Trommel, sowie durch den Bumba meu Boi“, ein volkstuemlicher Brauch, eingestimmt. Das sebastianische Reichwird in der Poetik der Verzauberung dargeboten. Diese These stellt ein Grenzstudium dar, bei welchem verschiedene Wissensfelder zum sebastianischen Mythus im poetischen Kern zusammen laufen. Wie wird ein poetischer Mythos aufgebaut, um vom Leben, Tod und Schicksal Rechenschaft ab zu geben? Wie kann der Koenig Sebastian, Symbol der Sehnsucht, aus der Geschichte hervorgehen und zum Mythos werden? Auf welche Art und Weise wird der Koenig, mitten im XXI Jahrhundert, von einer ungebildeten Gemeinde, wo die muendliche Ueberlieferung und die Erinnerung Struktur und Aufrechterhaltung des kulturellen Vermaechtnisses sind , verehrt? Auf welche Art und Weise eignet sich die gebildete Kultur diesen Bericht an, um um den sebastianischen Mythos neu vorzustellen? Schluesselworte: Sebastianismus; Maranhão; Mythos; muendliche Poesie; Auffuehrung.
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Ao Pucheu, que me ajudou a pensar os sebastianos e foi âncora e leme.
Aos pescadores da Ilha de Lençóis - homens, mulheres, jovens, crianças, idosos que me apontaram onde fica a Encantaria, embora eu nunca tenha chegado lá.
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Esta tese foi possível graças ao auxílio do CNPq.
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SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS INTRODUÇÃO – TRAÇAR ROTAS E RESERVAR PASSAGENS................................18 ROTA I – BARCO SEGURO, LEVANTAR ÂNCORA, IÇAR VELA, RUMO NORTE....................................................................................................................................30 1. PANORAMA.......................................................................................................................31 1.1 NATUREZA E SENTIDO DO IMAGINÁRIO MÍTICO..................................................41 1.2 MITOPOÉTICA – ESPAÇO SAGRADO DA POESIA....................................................46 1.3 CORPOREIDADE E PERFORMANCE: DA VOZ COMO GESTO................................52
ROTA II – A HISTÓRIA VIRA MITO COM OS FIOS DA SAUDADE E A TESSITURA DA ESPERANÇA ............................................................................................67 2. O MITO DA SAUDADE: DO SONHO DO IMPÉRIO AO IMPÉRIO DO SONHO ..68 2.1 SOB O SIGNO DA CRUZ: PAIXÃO, MORTE E RESSURREIÇÃO. DE QUEM?.......74 2.1.1 Kyrie Eleison para o rei desejado.....................................................................................76 2.1.2 Te Deum laudamus para o rei cristão...............................................................................78 2.1.3 Hoc est enim Corpus meum: exéquias para um corpo ausente.......................................81 2.1.4 Réquiem para o rei mitificado.........................................................................................84
ROTA III – DICÇÕES MITOPOÉTICAS DAS ILHAS SEBASTIÂNICAS ..................94 3. CARTOGRAFIAS IMAGINÁRIAS DE UMA ILHA ....................................................95 3.1 AS ILHAS SEBASTIÂNICAS, A POÉTICA DA ENCANTARIA E A CONSTRUÇÃO DAS HETEROTOPIAS..........................................................................................................102 3.2 A ILHA DE SÃO LUÍS: A SAUDADE SE FAZ CANTO E DANÇA..........................112 3.3 ILHA DE LENÇÓIS: PASSAPORTE PARA A ENCANTARIA..................................123 3.4 MITOPOÉTICA DOS ELEMENTOS PRIMORDIAIS.................................................153 3.5 A QUADRATURA DO CÍRCULO: TEMPO QUE SE CUMPRE E SE RENOVA.......186
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ROTA IV - DAS VOZES PARA AS LETRAS: PRESENÇA DO SEBASTIANISMO MARANHENSE NA CULTURA LETRADA....................................................................207 4. QUANDO A LITERATURA VAI BEBER NAS FONTES DO ORAL ........................208 4.1 A visão do rei Sebastião como presságio de morte no romance Cais da Sagração......... 209 4.2 A visão do navio dos mortos em O dono do mar....................................................... .......212 4.3 O prenúncio do reino da justiça em Ferreira Gullar..........................................................217 4.4 Releitura do encanto na poesia de Augusto Cassas...........................................................220 4.5 O profundo mistério das ilhas em Bandeira Tribuzi.........................................................223 4.6 A corte que fantasmeia no romanceiro de Stella Leonardos.............................................232 4.7 O encantado galope à beira-mar no poema de Bandeira de Mello...................................244 4.8 Visagens viventes no conto de Nagib Jorge Neto.............................................................249 4.9 Faces do mito em outras poéticas.....................................................................................255
CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIAGEM OU POSSESSÕES DA ILHA ......................265 BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................269 DOSSIÊ SEBÁSTICO ..........................................................................................................279
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1. Detalhe do documento em que aparece pela primeira vez a palavra-sinal "Portugal", 1129, p. 76. Figura 2. Cristóvão de Morais, O Rei D. Sebastião 1571, óleo sobre tela, 99 x 85cm, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, Portugal, p.79. Figura 3. O brasão do rei Sebastião contém o escudo das quinas, ladeado pelas flechas que fazem referência a São Sebastião, p. 81. Figura 4. Batalha de Alcácer Quibir. ANDRADE, Miguel Leitão de, 1553-1630., 2 grav. desdobr. : il. ; 4º (17 cm), Biblioteca Nacional de Lisboa, p. 83. Figura 5. Foto de satélite, Ilha de São Luís. Capturada do Google Earth, p. 112. Figura 6. Detalhe do centro histórico de São Luís. Fonte: Google Earth, p. 114. Figura 7. Faixa litorânea do Estado do Maranhão, p.123. Figura 8. Faixa ocidental maranhense. A região das reentrâncias, com arquipélago de Maiaú na parte superior, p. 124. Figura 9. Baía de Lençóis e Arquipélago de Maiaú, p. 124. Figura 10. Arquipélago de Maiaú, p. 124. Figura 11. Mapa físico, detalhe, itinerário São Luís-Lençóis, p. 125. Figura 12. Detalhe do Arquipélago de Maiaú com ilha de Lençóis em destaque. Fonte: carta náutica número 400, p. 125. Figura 13. Ilha de Lençóis: povoado ao centro, manguezal e oceano no alto, p. 127. Figura 14. Desenho feito por um menino e dado a uma turista que havia pedido para o mesmo desenhar o rei da ilha. Janeiro de 2009, p. 139. Figura 15. Dona Teresa canta. O olhar longe, volta-se para a luz, enquanto canta, p. 167. Figura 16. Dona Teresa. A mão paira sobre a mesa-altar e começa a marcar o ritmo, p. 168. Figura 17. Dona Teresa. As batidas fortes dos dedos sobre a mesa lembram o toque dos tambores, p. 168. Figura 18. Dona Teresa. Ao narrar, os braços acompanham o rumo da história e dão o tom da grandeza do evento narrado, p. 168. Figura 19. Dona Teresa. As mãos também falam, p. 169.
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Figura 20. Dona Teresa. A narradora ri e o relato assume o tom de conversa, p. 169. Figura 21. Dona Nini começa a cantar e seu semblante evoca uma saudade, p. 170. Figura 22. Dona Nini. A mão gesticula ao narrar as visões da ilha, p. 171. Figura 23. Dona Nini. O braço se ergue e aponta os lugares onde aconteceram as visões, p. 171. Figura 24. Dona Nini. O dedo indica firmemente que o rei está querendo tomar de volta a ilha, p. 171. Figura 25. Telma. A narradora aponta com energia, ao falar das visões, p. 172. Figura 26. Telma descreve como o rei aparece, p. 173. Figura 27. Telma. A descrição da grandiosidade do palácio real é visível nesse quadro, p. 173. Figura 28. Telma. Os dedos enumeram a riqueza doada pelo rei, p. 173. Figura 29. Maneco, o novo pajé é também amo do boi, p. 175. Figura 30. Maneco. Enquanto fala sobre o auto, intercala a fala com toadas, p. 175. Figura 31. Maneco. De repente, quando o assunto é desviado para o rei Sebastião, sua aparência muda, p. 176. Figura 32. Maneco, indicando a origem do encanto, p.176. Figura 33. Maneco. Sua mão também dá indicação para onde o rei se mudou, p. 176. Figura 34. Ribamar. Redes de pesca ao fundo indica o ofício do narrador, p. 177. Figura 35. Ribamar. Os dedos ágeis promovem o ritmo no instrumento de improviso, p. 178. Figura 36. Ribamar. Até a argola de arame, presa à bacia, torna-se indispensável às sonoridades obtidas, p. 178. Figura 37. Dunga olha para a câmera e se prepara para entoar, p. 180. Figura 38. Dunga toca o maracá, após a primeira parte à capela, p.180. Figura 39. Dunga sopra o apito, avisando que a toada acabou, p. 180. Figura 40. Seu Chico. O olhar do narrador encara o ouvinte, impõe respeito, p. 181. Figura 41. Seu Chico indica a referência do lugar onde sua família morava, p. 181. Figura 42. Seu Chico faz gestos para dizer como a ilha foi fundada, p. 182. Figura 43. Seu Chico descreve o palácio do rei, p. 182.
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Figura 44. Seu Chico. A mão coçando a fronte indica retomada no relato, p. 182. Figura 45. Seu Chico. Braços erguidos indicam a areia levantando para formar um muro e esconder o rei, p.183. Figura 46. Seu Chico. O dedo indicador atesta que a visão trouxe mal estar, p.183. Figura 47. Ouroboros. Manuscrito alquímico, Theodoros Pelecanos, 1478, Bibliothèque Nationale, Paris, p.196.
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LEGENDA
Este ícone ao lado de um texto, relato ou canto, significa que o trecho faz parte do DVD documentário “Sebastianos: os narradores de Lençóis”, parte integrante da tese.
Este ícone indica que o texto da canção, toada, doutrina ou relato faz parte do CD de áudio que acompanha a tese. Logo abaixo deste ícone, há um quadro com o número da faixa no CD.
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INTRODUÇÃO- TRAÇAR ROTAS E RESERVAR PASSAGENS
É mais difícil interpretar interpretações do que as coisas. Montaigne
O mistério – isto é, a “inacessibilidade absoluta” – não é senão a expressão da “outridade”, desse Outro que se apresenta como algo por definição alheio ou estranho a nós. O Outro é algo que não é como nós, um ser que é também um não ser. E a primeira coisa que sua presença desperta é a estupefação. (Octavio Paz, O arco e a lira, 1982, p. 156)
Do inapreensível. Sendo impossível apalpar um corpo constituído de névoa e vislumbrar sua pulsação, já que ele é pura evanescência, de que maneira deve-se apresentar um estudo cujo objeto é da ordem do velado e cujo desvelamento, a voz, é também de natureza efêmera? Diante do inapreensível, o mundo do saber secularizado desaba, incrédulo de sua limitação e ao pesquisador parece restar apenas a exposição de suas restrições frente à iminente ineficácia de um enfoque teórico. Afinal, precisa salvaguardar seu estudo. O que dirão os examinadores diante de um trabalho acadêmico assim construído? Onde se sustentaria seu trabalho? Qual seria o chão dele? A estrutura do estudo estaria fundamentada numa base teórico-científica? O percurso teria consistência? Projetei-me num pulo, saindo do chão da teoria e ainda não consegui tocar o solo. No entanto, sequer tateei o objeto, alto demais. Como percorrer um caminho impossível, visto que os pés não estão no chão e o corpo não tem asas? Nessa situação, todo método é ineficaz, porque aponta para algo que não é sensível, uma fissura. Porém, sendo o método um percurso, pensar em caminhar já é pôr-se a caminho. Uma saída seria resgatar o começo, tecendo um discurso sobre o processo, que
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funcionaria quase como uma justificativa do suposto fracasso, uma forma de encontrar luz na escuridão do decurso. Ou encontrar a própria escuridão, já que a luz pode ofuscar a essência. Talvez, outro modo de pensar isso seja possível. Aquilo que nos afasta é também o que no une; aquilo que parece ineficaz torna-se, de repente, caminho para o pensamento. E então este trabalho se nutre dessa ineficácia para fortalecer-se no que tem de mais concreto: lidar com o objeto perdido, garantindo sua inacessibilidade. Percorro o caminho aos sebastianos deparando-me com a inacessibilidade a eles, mas, nessa viagem mesmo, sei que posso lidar com eles pela ausência, pela falta, por tentar chegar a uma ilha da qual me afasta, revolto, o mar do pensamento. A experiência crítica do pensamento que norteia minha pesquisa me tira do labirinto da indecisão “para dizer essa verdade da linguagem com o objeto ausente ou perdido pelo privilégio da negatividade [...]” (PUCHEU, 2008, p. 26) 1. Quando a experiência da linguagem obriga a pensar a falta dela - o negativo - porque a linguagem não dá conta do dizer, que resta a fazer ao poeta, ao filósofo, ao pesquisador? Dizer o indizível através das fagulhas do obscuro. Mas dizer o que não se diz é deixar que a abertura aconteça para outros campos do pensamento e da visão. É entregar-se de tal maneira ao incompreensível e cegamente permitir-se ver o não-lugar. Habitar um não-lugar na poesia, na filosofia, na crítica é como realizar a experiência mística, na qual o crente não discute o significado da experiência, porque ela só se realiza no sentir. É como participar da experiência mítica, na qual o homem primitivo depositava todas as explicações na palavra sagrada, através da experiência da ritualização que é também e sempre uma reatualização. Deixar que a palavra não seja é buscar o não-lugar. Aliás, sagrado quer dizer exatamente marcado com o sinal. E o sinal da linguagem é ser insignificante, ou seja, não se traduz no dizer 2. Ainda que pareça uma digressão, este início quer ser, na verdade, uma espécie de regressão, uma sessão onde arrisco-me a resgatar o que fui durante o trajeto e, consequentemente, dar conta das posturas que assumi. Quem sabe, tentando recompor meus
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fragmentos de pesquisador, possa entrever melhor os passos dados, a fim de que meu trabalho seja compreendido a partir do não-lugar que lhe é próprio. Não seria incorreto assegurar que o meu objeto de estudo congrega diferentes áreas do conhecimento e, no entanto, não se sustenta em nenhuma isoladamente. Vejamos: falar de um rei que perdeu uma guerra é convocar a História. Mas se esse rei virou lenda e mito a ponto de suscitar a criação de narrativas por diferentes nações, isso pertence à Mitologia. E se a memória desse rei se encarna no rito e vira culto, isso é da ordem da Teologia. Se a figura do rei modifica o cotidiano de pessoas simples, que explicam os fenômenos com base no sobrenatural, isso compete à Antropologia. Se a presença do rei suscita a construção de um legado artístico (dança, canto, gesto, pintura, cinema), isso interessa à Arte. Se a palavra congrega canto e conto no ecoar da voz, isso é de natureza da Poesia. Este estudo evoca tudo isso e não tem pretensão de dar conta de nada que não seja o instante das narrativas, as simultaneidades e temporalidades da palavra que se faz mito, que um dia foi História. Sei onde estou, num abismo. Abismar-se é experimentar a sensação desconfortável de projeção para um lugar desconhecido, de forma brusca, sem a velha segurança. É entregar-se diante do novo, como quem se atira de um precipício, certo de que será amparado no fim. Ou não. Uma palavra que poderia, ainda que sem muito mérito, amparar o sentido dessa congregação das diferentes áreas em torno de um assunto é a interdisciplinaridade 3 (ou talvez a noção de metadisciplinaridade, pensando não mais em disciplinas, mas para além delas). Entretanto, não foi meu objetivo entrar nas questões de cada área, percorrendo seu horizonte reflexivo. Meu lugar sempre foi e é a literatura, ou melhor, a poesia, naquilo que ela tem de mais originária, uma reunião de eventos, pela palavra. É a linguagem o meu esteio, meu ponto de partida, meu ponto de chegada e, sempre, um porto de passagem. E aqui sinalizo para a noção também da linguagem como o ressoar do silêncio. Já sei onde é meu lugar: preciso assegurar que estou partindo da poesia para chegar nela. Nesse percurso, vou apenas acenando
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para outras áreas, sem ultrapassar a fronteira. Este estudo é e deve ser pensado como uma zona fronteiriça, que não se sustenta fora desse limiar e precisa ficar na borda de certos conhecimentos para ser livre.
Da necessidade de uma etnografia. Era necessário transformar minhas experiências em narrativas. Assumindo o lugar de narrador sei que corro riscos ao tomar partido e fazer escolhas. Mas esta postura não teria como ser diferente, pois é a partir da interpenetração das vozes do eu e do outro que o discurso se tece e se mostra, num processo dialógico e polifônico (BAKHTIN). Além disso, este estudo quer ser entendido menos como um produto teórico-reflexivo e mais como uma rapsódia tecida com as vozes de muitos narradores. Assim, “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seu s ouvintes” (BENJAMIN, 1985, p. 201). Não pode o pesquisador ser neutro, nem conseguirá fazer emergir a voz do outro isolando a sua. Ir ao encontro do outro, conviver com ele, ainda que por pouco tempo, entrevistá-lo, fazer-se presença na vida dele, assumir a condição de um curioso que a tudo pergunta e que não sabe de nada, anotar, gravar, filmar: eis as funções de um pesquisador de campo. Na volta para casa, o que resta? Inúmeras anotações, horas de gravações a serem transcritas e depois interpretadas com o olhar aguçado e puramente engajado. Não, não parece que estou descrevendo uma atividade comum ao pesquisador da Literatura, e, sim, da Antropologia. Refiz todo o caminho do etnógrafo, até agora. O pesquisador da área de Letras não seria aquele que se lança noutra viagem, a saber, o texto já impresso, sobre o qual se debruça para construir teorias? No entanto, quando o livro que se quer estudar ainda não foi escrito no papel, mas está inscrito nos corpos dos falantes, que tecem com a voz um discurso sobre um lugar e personagens existentes concretamente na tradição, que é por excelência de base oral, o pesquisador volta-se para o cerne da literatura,
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que é o acontecer poético. Foi assim que li as pessoas com quem convivi. À medida que realizava o meu trabalho, minha cabeça ia ficando povoada daqueles seres excelsos que tanto interferem na vida de pessoas reais. Cada entrevistado se configurava para mim na página de um livro que vem sendo escrito/inscrito há mais de um século no espaço oval de uma ilha literalmente isolada. Ao conviver com aqueles pescadores, naquele lugar, era como se eu estivesse inserido numa enciclopédia viva, e as palavras ganhavam força maior nos espaços mitificados da ilha a ponto de qualquer ruído soar para mim com um alerta. Ali tudo tem sentido, nada acontece ao acaso, naquele lugar em que a condição do homem é ser prisioneiro de um continente-oval e subserviente ao tempo da natureza se quiser usufruir dela. Foi preciso perceber o tempo sob outra expectativa. Quando um pescador dizia que ia pescar à noite, não era à hora do relógio que ele obedecia, mas à lua. Para partir da ilha, é preciso esperar a maré subir e se coadunar com o estuário, assim como para desembarcar às vezes é necessário esperar a maré secar. Até as festas do lugar só podem acontecer no quarto-crescente, que é quando os homens voltam da pesca. Quando o sol em união com a brancura da areia me obrigava a ficar escondido em casa entre 10 da manhã e 4 da tarde, refém da claridade, uma claridade desconcertante, eu percebia o quanto o homem estava atrelado às forças da natureza e a ela obedecia piamente. A natureza dita as ordens, domina, coloca o homem no seu devido lugar. Eu não queria ser o etnógrafo para fazer o papel do antropólogo, aquele que tudo descreve, ancorado numa pretensa autoridade. Ao tentar retratar uma situação, o antropólogo não estaria também assumindo uma posição similar à do intérprete literário, trazendo para a cena do seu texto as intersubjetividades e se mostrando como autor ou narrador, numa perfeita heteroglossia, como indicava Bakhtin em sua teoria dialógica?! (1953). Se na antropologia interpretativa o pesquisador adquire a função de um narrador-observador ou personagem, também o intérprete literário, ao tomar para si a prática etnográfica, não se torna neutro diante
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da leitura que faz. Ambos são narradores e a finalidade da leitura é que direciona os caminhos. Literatura e Antropologia caminham lado a lado, tateiam os mesmos espaços, olham a cultura com os mesmos olhos interessados; mas enquanto uma tende a transformar pessoas em personagens e fatos em enredos, a outra preocupa-se em mapear o sentido dos ritos, da vida, das representações. Seguem de mãos dadas, no limite de suas fronteiras. No entanto, penso que a melhor aproximação para esse mapeamento que fiz seria o termo etnopoética, que me permite apresentar a poesia no seu cerne, inebriada das vozes, bocas e corpos dos narradores.
Da urgência do uso da imagem-movimento para apreensão da performance. Desde o início do projeto de doutorado, eu sabia que se quisesse trabalhar com a voz e o corpo, deveria pensar na dificuldade de analisar as vozes dos narradores sebastiânicos de modo satisfatório. Tal empecilho poderia ter uma solução no mínimo desconfortável, a saber, o estudo com base no material transcrito. Quando a palavra é entronizada no papel, perde um pouco de sua aura e magnitude, passando a ser representação da representação. A ideia inicial foi trabalhar com gravação de áudio, a voz capturada no tempo-espaço de uma performance e presa ao eterno momento de sua enunciação gravada, como diria Paul Zumthor. Além dos registros sonoros já coletados por outros pesquisadores (em entrevistas, curta-metragens e pesquisas etnográficas), também quis fazer minhas próprias coletas. O primeiro contato físico com a ilha de Lençóis, que eu conhecia há oito anos das pesquisas bibliográficas e videográficas, deu-se em janeiro de 2007, quando fiz as primeiras entrevistas. Munido de um notebook com programa de áudio e microfone, apresentava-me aos ilhéus e lhes explicava o objetivo da pesquisa. Só depois marcava a entrevista, que poderia acontecer logo em seguida ou apenas no outro dia. De posse das entrevistas, o trabalho seguinte foi ouvir pacientemente cada gravação para fazer as transcrições. Aqui, um novo impasse surgiu, pois era imprescindível escolher
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entre realizar a transcrição literal (aproximada da fala, com as pausas, indicações de risos, uso do registro fora do padrão gramatical) ou adaptada à escrita, sobretudo com cortes de repetições, supressões de palavras de retomada (anafóricas). E nesse momento percebi que nunca estaria no meu texto o texto tal qual fora dito. Tampouco resgataria e transmitiria ao leitor o momento, o lugar, as expressões corporais, as modulações verbais tão significativas no instante único da entrevista. Foi a partir daí que senti a urgência de também filmar os espaços da ilha e as entrevistas. Assim, eu poderia ver, quantas vezes quisesse, os gestos, as entonações, os ruídos dos entrevistados, elementos muito importantes na leitura, e sem os quais a palavra seria destituída de suas marcas de temporalidades e espacialidades. É isto, portanto, o que constitui o termo performance no meu estudo: o corpo da voz no corpo do narrador, no corpo da terra em que ele habita. A captura da imagem e do som, decerto, acaba por interferir na apresentação de tudo isso, pois a escolha da modulação da cor, a tomada de cena, os cortes na edição, o volume do áudio, enfim, alteram significativamente a percepção do olhar. Mas é aí que também está o meu papel de narrador. Não há neutralidade nesse tipo de trabalho. Nunca houve. Deixar que o leitor/espectador leia a partir de minha leitura é um caminho possível. Não sei se é seguro, mas é meu caminho que ofereço generosamente e sem esperar outra coisa que não seja a vontade de oferecer o narrado. Abertura para um espaço virtual, a imagem na tela é pura heterotopia, termo impresso por Foucault, mundo projetado para além do real e que espelha outros espaços simultaneamente. De posse de uma câmera HDV, a minha preocupação ao chegar a Lençóis era com a reação dos entrevistados. Afinal, não é qualquer pessoa que se mostra à vontade na frente de um quase desconhecido portando uma câmera nada discreta, além de outros materiais. No entanto, para minha surpresa, ao montar o aparelho e começar a conversar, percebia que o entrevistado sequer notava a câmera, diante do que tinha para contar. A mim parecia que cada
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um entrava numa espécie de transe, pela palavra que proferia e, de modo muito natural, a entrevista tornava-se a captura de um momento mágico, sagrado, ritualizado na confluência da narração e do canto. O documentário Sebastianos: os narradores da Ilha de Lençóis é a minha versão da lenda do Rei Sebastião. Nele há a palavra, a imagem e o silêncio. Talvez o espectador possa, durante sua exibição, vislumbrar o sentido do termo Encantaria, quando toda a ilha deixa de ser simplesmente uma ilha paradisíaca e passa a ser narrada como morada do Encoberto. Embora ache que a tese apresenta uma nuance de rapsódia na medida em que cantos e contos foram costurados para dar conta de uma unidade narrativa, ela deve ser percebida mais como um livro de viagem, um diário de bordo ou relato de viagem. Logo no início, entrego a você a carta náutica número 400, que corresponde aos espaços que iremos visitar. A seguir, os capítulos apresentam as rotas que percorreremos, navegantes, rumo a um lugar que não fica em lugar algum. Para ler performaticamente ao longo do texto aquilo que está documentado no CD e no DVD, ícones indicam que o texto ao lado corresponde a um arquivo de áudio ou vídeo.
Dos desdobramentos da pesquisa. Ultrapassando os limites acadêmicos, dois produtos surgiram como consequência da minha pesquisa: um livro infantojuvenil e uma casa de cultura para a Ilha de Lençóis (memorial e biblioteca) 4. Não estavam nos meus planos, mas surgiram, culminando meu projeto. Prova de que o conhecimento acadêmico deve mesmo é suscitar uma mudança na sociedade. Nada mais justo devolver o conhecimento ao verdadeiro dono. O texto do livro O rei que virou lenda (Editora A Girafa, 2009), ilustrado por Eloar Guazzelli, nasceu num momento em que eu andava atormentado, com dificuldade para organizar os relatos dos entrevistados em linguagem acadêmica sem lhes silenciar. Queria
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deixar que os ilhéus falassem por eles mesmos, sem a necessidade de fazer ressoar sua voz a partir de teóricos. Para mim não estava clara ainda a rota das dicções. Por outro lado, cabia a mim organizar essas falas como quem constrói uma narrativa de ficção. Os rumos dependem do autor, ainda que o leitor recrie suas rotas. Então, imerso na história do rei Sebastião e nos relatos de suas visões, escrevi essa narrativa em forma de poema. Os seis poemas podem ser uma outra leitura da tese, já que faço o mesmo que fiz academicamente, ou seja, narro a história do monarca, de como ele, saindo da história para entrar no mito, acabou por abrasileirar-se. Os seis poemas-capítulos são acompanhados por seis ilustrações em traços próprios do universo das histórias em quadrinhos. Os poemas foram impressos em fonte branca sobre o fundo terracota para sugerir a realeza do Encoberto. A casa de cultura da ilha de Lençóis começou a ser desejo meu quando, em 2008, numa das visitas para pesquisa, ouvi que a comunidade havia tentado construir uma biblioteca com a ajuda de um rapaz que conviveu com eles e trouxera muitos livros doados. A casa não foi feita e os livros estavam se estragando nas casas de alguns moradores. Antes disso, eu já pensara em doar todo o material que me serviu de pesquisa, sobretudo obras bibliográficas e videográficas sobre a lenda do rei Sebastião naquela ilha. Para Lençóis se dirigiram e continuam se dirigindo inúmeros pesquisadores, além de repórteres, a procura das belezas naturais quase intocáveis ou atraídos pela exotismo dos albinos que ali moram. Se por um lado esses documentos preservam a memória desta comunidade, por outro, quase nada desse material era conhecido pelos moradores. Agora, com a chegada da energia, e com ela a TV, o DVD e o aparelho de som, já estão ameaçadas as conversas à noite, quando velhos e jovens contavam suas experiências e relatavam as histórias dali. É tempo de trazer de volta aquilo que eles já estão perdendo, a riqueza da tradição oral. Diante disso, o “Memorial Rei Sebastião” foi construído com o objetivo de trazer a memória dos velhos ao espaço cotidiano do jovem, utilizando sua linguagem, já que o diálogo
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está ficando escasso, garantindo que as crianças reconheçam a herança cultural mítica e sintam o desejo de perpetuar esse imaginário. É resultado do esforço de muitos amigos que me ajudaram com doações e campanhas. A comunidade de Lençóis também deu sua parcela de ajuda e no dia 20 de janeiro de 2010 (dia do aniversário do nascimento do rei Sebastião e dia de São Sebastião) a casa foi inaugurada com muita festa. O espaço cumpre três propósitos: abre-se ao morador para que ele reconheça sua história nos objetos ali presentes, oferece ao turista a riqueza cultural da ilha e acolhe o pesquisador interessado sobretudo no sebastianismo. Trata-se de um espaço múltiplo de apresentação, preservação e construção de saberes. Fundado por voluntários, também está sendo gerenciado por voluntários. Resta agora dizer que, antes da viagem, eu era o inexperiente, a ilha era o desconhecido; as rotas, percursos incertos. Então me pus no caminho das rotas que me foram possíveis. Se o objetivo era experienciar o novo, aquilo que para mim soava distante, aqui revelo não a experiência que tive, mas aquela que não me foi dada enquanto lá estive. Na qualidade de um ex-viajante que, revendo suas imagens, as anotações dos diários, as passagens e bilhetes, só quando a viagem já não existe é que a linguagem dela começa a vigorar. Só quando não há mais viagem é que podemos pensar o que ocorreu. E desse ponto em diante, as imagens reminiscentes adquirem seu poder simbólico, dizível, posto que durante a viagem, estávamos cegos pelo êxtase puro do viajante deslumbrado. Nem por isso, deixei de ser inexperiente. Que venham outras viagens!
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NOTAS 1
Portanto, uma teoria que trabalha a negatividade, tal qual se configura no projeto de Agamben, é que me dá segurança neste trabalho. A ideia da experiência da linguagem como a falta, o negativo, se mostra de modo preciso no ensaio de Pucheu sobre o Estâncias, do Agamben: “Da linguagem que deseja falar o não -linguístico, recusado, chega-se a uma vivência da linguagem que traz em si o negativo, a rachadura que impõe uma falta não só entre a realidade não-linguística e a linguagem, como entre o homem e a linguagem, em uma infância que, desde sempre e para sempre, nos constitui em todas as idades. Do mesmo modo em que se fala de um objeto perdido, poder-se-ia falar de um sujeito perdido. Ao homem, falta o próprio homem, e, nesta falta, destituído de si, suprimido justamente disso que o conserva, lançado numa vacância indizível, o lugar do homem se mistura a um não-lugar, o homem se confunde com o inumano. O homem é um vivente divorciado de si pela linguagem que, nele, abre o negativo” (PUCHEU, 2008, p. 26) 2
“Nesta ambiência da experiência da linguagem do ser negativo do homem que, „assim‟, faz emergir o vazio do fundamento, realizando-o, se apresenta uma „poesia pura‟, uma filosofia pura e uma crítica pura [...]” (PUCHEU, 2008, p. 26). 3
O rei Sebastião e o bumba meu boi são temas maranhenses pesquisados nas mais diversas áreas acadêmicas. Se alguns estudiosos focalizam aí o histórico, outros querem dar conta da indumentária ou da organização do rito e da brincadeira. Outros, ainda, se fixam na recepção dessas manifestações pela mídia do passado e do presente . Há também quem investiga a apropriação da linguagem e do discurso popular para fazer uma releitura nas artes visuais. Temas interdisciplinares por excelência, que obrigam o pesquisador a aventurar-se por outras fronteiras. Além das obras que fazem parte da bibliografia, cito como exemplo alguns trabalhos acadêmicos relevantes sobre o sebastianismo no Maranhão, além, é claro, das obras literárias, teatrais, midiáticas e plásticas inspiradas no imaginário sebastiânico maranhense e mencionadas ao longo da tese. Os cursos estão sublinhados, para ser ter noção da amplitude do tema estudado e do interesse de áreas distintas: a) SANTOS, Tânia Lima dos. Do mito sebastianista à lenda de D. Sebastião no Maranhão . Mestrado em Letras, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, 1999. b) GODOY, Márcio Honório de. Dom Sebastião no Brasil: fatos da cultura e da comunicação em tempo/espaço. Mestrado em Comunicação e Semiótica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2000. c) PEREIRA, Madian de Jesus Frazão. O imaginário fantástico da Ilha dos Lençóis: estudo sobre a construção da identidade albina numa ilha maranhense. Mestrado em Antropologia. Universidade Federal do Pará, UFPA, Brasil, 2000. d) FELIZOLA , Ana Alice de Melo. Rei Sebastião : o mito narrando nações. Curso de Mestrado em Letras, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Pará, Belém, 2001. e) PEREIRA, Rosuel Lima. O Sebastianismo e o imaginário brasileiro . Mestrado em Letras. Bordeus, França, 2001. (Atualmente está desenvolvendo tese sob o título: O papel das Ordens religiosas na divulgação do sentimento sebastianista nos séculos XVI e XVII no Brasil -Maranhão. Universidade Michel de Montaigne Bordeaux III Bordeus. Departamento de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos). f) ANDRADE, Joel Carlos de Souza. Os filhos da lua: Poéticas sebastianistas na Ilha dos Lençóis – MA. Dissertação de Mestrado em História. UFCE. Fortaleza, 2002 g) SILVA, Claudicélio Rodrigues da. Uma estética da oralidade: Problemática da poética oral . Mestrado em Teoria Literária. Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2005 (Aqui eu já menciono o mito sebastiânico e faço um elenco do que viria a ser analisado no doutorado). h) PEREIRA, Madian de Jesus Frazão. O Patrimônio da ilha encantada do rei Sebastião: bens simbólicos e naturais no cenário do ecoturismo e das unidades de conservação . Doutorado em Sociologia. Universidade Federal da Paraíba, 2007. i) GODOY, Márcio Honorio de. Dom Sebastião no Brasil: Das Oralidades Tradicionais à Mídia. Doutorado em Comunicação e Semiótica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP, 2007. Além desses trabalhos acadêmicos, cito dois outros que me chegaram após a conclusão da tese. O primeiro é um espetáculo de dança chamado A dança do Encoberto, de autoria de Larissa Malty, de Brasília, 2001, com música composta por Marcello Linhos, violeiro, instrumentista e compositor. O espetáculo foi apresentado em São Luís,
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Brasília e Madri. O outro trabalho é o documentário A Ilha de Dom Sebastião, de Ivan Canabrava e Marcya Reis, Brasília, 2002. 4
O texto original do livro e a ata de inauguração do memorial, bem como fotos da construção e inauguração estão nos anexos.
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ROTA I BARCO SEGURO, LEVANTAR ÂNCORA, IÇAR VELA, RUMO NORTE.
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1. PANORAMA
Na segunda metade do século XIX, pesquisas sobre oralidade tentavam desvendar a dinâmica da poesia oral, tomando como produção modelar os epítetos da composição grega arcaica dos séculos XII-VIII a.C. (Ilíada, Odisseia, Teogonia, por exemplo). Numa sociedade eminentemente oral, a poesia era o fundamento, e por ela as leis eram dispostas, os ritos celebrados, o passado presentificava-se e se designava o universo. Na voz dos aedos e rapsodos, a poesia congregava deuses e homens na ação/germinação da palavra. Todas essas pesquisas tomavam como ponto de partida a poesia de comunidades pré-letradas contemporâneas aos pesquisadores para se chegar à dinâmica da poesia grega arcaica, num método comparativo. As diversas áreas (Antropologia, Literatura, Artes Cênicas, História, etc.) estudavam o mesmo objeto oral sem perceber que era a performance o termo comum e integrador de tais estudos. Século XVI d.C. - Portugal espera um rei ardentemente. O desejado nasce, e o reino não cai em mãos espanholas. Aos 24 anos, na África, numa batalha contra os mouros, o rei perece, tornando-se “o Encoberto”, e só resta a Portugal voltar a sonhar com o seu retorno, para a fundação do Quinto Império. Metrópole e colônias constroem e passam a alimentar o mito do ocultamento, propagando-o através de narrativas orais, trovas, cantos, cartas, sermões e relatos da vida e da morte do rei. Século XXI. Passados quatro séculos, o rei ainda é esperado nas nações lusófonas e ressurge nas artes verbais faladas, cantadas e escritas. É assim que, no Maranhão, a figura do Rei
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Sebastião ressoa familiar tanto na Ilha de São Luís (capital), quanto na Ilha de Lençóis, uma comunidade de cerca de 300 habitantes, a oeste do estado, na região das reentrâncias maranhenses. Numa prosa informal, nas doutrinas entoadas por mineiros (representantes do rito afro-maranhense do Tambor de Mina), nas manifestações populares, na música e na literatura, o rei aguarda o grande dia: quando seu reino emergirá do fundo do oceano, para fundar, no Maranhão, o novo Império. Esses percursos se unem na minha pesquisa, convergindo para o fundamento da palavra, o cerne desse caminhar. Palavra oralizada e oralizante, corporificada. Vejamos o ponto de partida. Da Grécia, busco nos deuses, aedos, rapsodos e nas vozes das Musas uma elucidação da função da Poesia, para a análise mais fecunda das narrativas sebastiânicas faladas e cantadas nas ilhas maranhenses. Como a Poesia os inspirava a narrar as grandezas do mundo sagrado, uma vez que não havia o registro escrito? Dos deuses, desejo que sua cosmogonia me sirva de sustentação na tese da construção de um mundo pela palavra; mundo sagrado, mítico e místico que na Poesia tem o poder de irromper. Isso é capaz de me acenar para o quê?
Por enquanto, vislumbro a estruturação de uma mitopoética das ilhas
maranhenses que, à semelhança do mundo grego ágrafo, explicaria seu cotidiano e os fenômenos naturais a partir de uma cosmovisão mítica, cujo centro é a figura de Dom Sebastião. E é nesse caminho que se põe meu passo. Sobre o alicerce da memória oral, no Maranhão, uma mesma narrativa é costurada de diferentes modos, com distintos materiais. Nas vozes dos cantadores e contadores, as palavras tecem fios multicoloridos, construindo uma colcha rendada e enredada de lendas e mitos. Pelo poder da palavra professada e cantada, essas vozes trazem constantemente ao presente o passado e o futuro, através dos ritos e da brincadeira. Tal criação poética, unindo-se à memória e à história, concretiza-se nas vozes dos
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anciãos, pela perpetuação da tradição, onde a memória produz, alimenta e dá vigor ao imaginário, anunciando e instaurando o novo. As vozes polifônicas das toadas do boi nos largos e praças, os cantos dos encantados do culto afro-maranhense do Tambor de Mina e as conversas e relatos fantásticos de um prosador: eis o legado poético. A Poesia quer ser ouvida, não apenas lida; quer ser cantada outra vez. A Poesia quer de volta o seu estatuto, palavra como fundamento, função que constrói, restaura e salvaguarda um mundo. A voz necessita de um corpo palpável, ainda que ele não seja o fim, mas apenas a via de acesso para a sua materialização. Se a Poesia é ação criadora corporificada, cadê o corpo da palavra? Para falar do corpo é preciso deixar o corpo falar, dar voz à voz emudecida, silenciar mais ainda o que é silêncio, a saber, a palavra escrita. É preciso resgatar o corpo. Eis a urgência do nosso tempo: entronizar a voz no templo da poesia, corporificando-a. Parece um paradoxo falar da voz na terra da letra. No mundo grafocêntrico, a palavra escrita vale por verdade, papéis ganham status de documentos, de jóias, enquanto a fala, acusada de instantânea, nem é ouvida claramente. Mas não é à toa que nas comunidades interioranas, onde todos se conhecem e a vida parece transcorrer num ritmo mais calmo, as leis, os testamentos e os tratados ainda são firmados pela boca, mesmo que depois sejam fixados na moldura oficial do papel. Pronunciada na frente de testemunhas, a voz vale tanto quanto um pedaço de papel carimbado num cartório. “Te dou a minha palavra” soa como carimbo, afiançando o compromisso assumido. Ora, ninguém dá a palavra por dar. É que a palavra dada vai ao outro cheia de confiança. “Vou cumprir minha palavra” teria, por conseguinte, o mesmo peso de responsabilidade que a assinatura de um documento escrito e lavrado. É o estatuto da palavra com o vigor da voz, que é também prova da justiça nas relações em que a palavra oral é o fundamento. O homem oferece aquilo que de mais valor ele tem: a palavra. Na pesquisa para o mestrado 1, meu objetivo era estudar o contexto do sebastianismo nas manifestações maranhenses que têm o oral como suporte. No entanto, à medida que
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coletava material para o estudo, deparava-me com uma diversidade de textos que nem sequer caberiam naquilo que se costumou nomear de “literatura oral”. Na verdade, o que se convencionou designar “literatura oral” não teria muito sentido ao ser aplicado a esse corpus, pois incorreria numa abordagem dicotômica, por oposição à literatura escrita, sempre vista como superior, erudita, enquanto a outra seria destituída de valor autoral por ser fruto da gente iletrada2. Essa lacuna em termos teóricos e a dificuldade de encontrar teoria que não tratasse o objeto de forma díspar entre cultura ágrafa e cultura letrada, canônica ou não, erudita ou popular, me fez tentar pensar a poesia oral sem ter que justificar na polarização a defesa de uma ou outra forma de representação do imaginário. Por essa razão, desloquei o foco da pesquisa, procurando inicialmente percorrer o caminho dos teóricos da oralidade, no intuito de encontrar uma estética da poesia oral. Porém, ao agir desse modo, também não estaria eu incidindo numa abordagem dicotômica? Se o foco da minha pesquisa consistia em mostrar o vigor poético do oral e seu discurso mítico absorvido pelo escrito, minha preocupação não deveria ser no contraste oralidade/escritura, mas na tentativa de buscar um caminho viável para apresentar essa poética sebastiânica sem incidir numa análise folclorizada por um lado, ou, por outro, num estudo com base na tradição escrita, ambas culminando no uso do termo “literatura oral”. Por isso, achei mais coerente percorrer o caminho das controvérsias da poesia oral e da literatura, apresentando uma dissertação que apontava a problemática da poética oral para estar mais seguro (e, sobretudo, mais liberto) no doutorado. Resumindo: cunhado no século XX por oposição a literatura escrita, não suportando o hibridismo das produções verbais, o termo “literatura oral”3 nunca abarcou a diversidade de gêneros constituintes de uma poesia oral, preterida pela academia, e somente estudada na área das ciências sociais como artefato folclórico. Fora essa exclusão do mundo das letras, há que se levar em conta a dificuldade de classificação de uma tipologia oral, em meio a uma variedade de gêneros. A pequena lista a seguir apresenta a dimensão da produção oral e o
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problema de conceituar tal objeto em estudos tradicionalmente da ambiência da escritura: a) pequenos relatos de fatos reais alimentados com a imaginação do prosador; b) ditos e provérbios; c) cantos de natureza lúdica ou de trabalho; d) cantos litúrgico-religiosos, originários do culto oficial ou provenientes das manifestações populares e sincréticas (misturas de cultos e ritos populares marcados por cores locais) como pontos e doutrinas; e) trovas populares e cordéis produzidos inicialmente para declamação ou para o canto em praça pública, acompanhados de viola, que mais tarde foram adaptados para folhetos impressos numa linguagem coloquial (herança dos romanceiros europeus). f) lendas, mitos e relatos fantásticos envolvendo personagens do passado ou memórias de fatos cotidianos, ampliados pelo fundo sobrenatural e com traços cômicos, satíricos ou dramáticos; g) repentes, desafios e cantorias, acompanhados de viola; h) toadas de manifestações populares de rua; i) a produção nos grandes centros urbanos dos happenings e canções representativas populares nacionais que usam como suporte outras mídias, como o vídeo e o cd; j) releituras urbanas de cancioneiros, cordéis e repentes, através de uma roupagem rítmico-performática contemporânea. Através desses caminhos diversos, múltiplos e divergentes, e para além das querelas dicotômicas, pude constatar que o único acesso a uma poética da voz pressupõe um retorno ao sentido originário da poesia, gestão de mundo, fundamento de um universo, quando tudo era descrito e narrado poeticamente, no rito performático, e por isso sacro. Quando a cultura era eminentemente oral, a poesia produzia o livro vivo nas vozes dos anciãos, numa enciclopédia oral, desenvolvida no cotidiano social, político, religioso e de lazer.
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Meu percurso por esta temática parte do seguinte pressuposto: busco uma interpretação do interesse do sujeito pós-moderno com o resgate daquilo que foi remediado pelo mundo racionalista, a saber, o mito, o rito, as manifestações e comportamentos de comunidades não-inseridas nos espaços modelados pelos iluministas, espaços estritamente grafocêntricos nos quais estamos mergulhados há tempos. É à poesia dos não-letrados que recorro. Por que o interesse pelo canto, dança, lendas e mitos dessas camadas sempre postas à margem do conhecimento e da cidade? Há quase um século, Walter Benjamin denunciava a pobreza nas relações humanas, a escassez da experiência, ou melhor, a ausência da transmissão das vivências pelo puro prazer de contar. A fonte onde bebem os narradores, a experiência, estava em desuso, com a pressa gerada por uma era em que o lucro é que controlava os ponteiros do tempo, a humanidade acabava de acordar ainda tonta do pesadelo que foi a Primeira Guerra e vivia na iminência de uma outra mais poderosa e catastrófica. Mas não parece contraditório que uma sociedade que vira morrer um século e nascer outro, vivera o sonho do progresso, e no auge da Belle Époque fora arrebatada ao pesadelo das trincheiras, voltara da guerra nula de histórias e, portanto, empobrecida de experiências, justamente essa sociedade seja atualmente explorada por todos os mecanismos ficcionais, sobretudo a literatura e o cinema? Todos os anos somos bombardeados por uma infinidade de narrativas que ficcionalizam a brutalidade que emudecera os verdadeiros personagens. Começamos o século XX pobres de narradores, uma vez que aquelas experiências não deveriam ser rememoradas, e começamos o século XXI regurgitando esses horrores em nome do entretenimento. Prazer pelo horror ou seria expiação? Pobreza de experiência ou busca pelas vozes emudecidas que podem ser instigadas a ecoar enquanto é tempo? Benjamin assegura que “entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos” (1985, p. 198).
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Dois modelos arquetípicos desses narradores são o camponês que, cuidando da terra, morre ali no seu lugar; e o marinheiro, que percorre terras distantes, comercializando. Ambos têm o que contar uma vez que, suas experiências, por mais dolorosas que sejam, aguçam uma escuta. Nesses dois narradores residem duas formas de narrar: um traz ao seu lugar as experiências de lugares distantes, enquanto o outro traz de um tempo distante, pela memória, uma tradição passada de geração a geração. Benjamim associa essa arte de narrar à arte de tecer, o trabalho manual propiciava o desenrolar da prosa, lenta e calma, no ritmo preciso da agulhada na rede, ou da martelada no sapato, ou ainda, no preparo do alimento. Os artífices, portanto, foram os herdeiros dessa experiência narrativa dos dois arquétipos de narradores (BENJAMIN, 1985, p. 199). Se as experiências de narrar estão em baixa, isto se deve pelo fato de que acordamos todos os dias simplesmente cheios de notícias, repletos de cobertura dos fatos, e assim passamos o dia, sendo bombardeados pela informação, mas essas informações não estão a serviço da narrativa, continuamos “pobres em his tórias surpreendentes” (BENJAMIN, 1985, p. 203). Enquanto a informação só é útil na sua efemeridade, e uma vez que é lançada já não terá mais serventia, a narrativa continua resoluta, “conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver” (BENJAMIN, 1994, p. 204). À parte isso, principalmente na segunda metade do século XX, ao mesmo tempo em que as cidades se avolumaram, incharam, e o campo se despopularizou, pôs-se em evidência o universo rural, analfabeto, marginal e popular nos mass media que culminou numa verdadeira enxurrada de pesquisas acadêmicas sobre o tema. O mundo ficou pequeno, do tamanho das novas tecnologias, que reduzem os espaços e fundem as paisagens, dando ao homem a falsa impressão de conhecer todos os lugares ao mesmo tempo em que lhe tira o direito à exploração não-virtual dos territórios. As subjetividades foram então ameaçadas pela homogeneização do sujeito. Os ciberespaços promovem, segundo Guattari, uma
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desterritorialização do ser humano: O ser humano contemporâneo é fundamentalmente um ser desterritorializado. Seus territórios, existências originais – corpo, espaço doméstico, clã, culto – não estão mais plantados em solo estável, mas integram-se – desde agora – em um mundo de representações precárias e em constante movimento (1994, p. 9)
A crise do racionalismo exacerbado aponta para essa necessidade de uma volta às origens, como foi a revolução romântica em fins do século XVIII e início do século XIX. O autoritarismo da razão, conduzindo a humanidade à visão cronológica, não possibilitou uma abertura do pensar, ao contrário, preparou-nos para uma totalização do pensamento, e nos fez chegar ao Terceiro Milênio com o bojo acumulado e nos sentindo vazios, conforme assegura Portella: Século vespertino vem a ser século de acumulação e de vazio. Todas as conquistas, os afazeres e as tarefas, os relacionamentos, as instituições, os grupos e os indivíduos, tudo enfim é protegido, promovido e favorecido. Ao mesmo tempo em que hipoteca a liberdade e paralisa a criatividade. Estamos falando do amparo que subjuga. Impera por toda parte um espaço saturado pelas dependências de ter e não ter.1
Esse século vespertino, uma metáfora para o que Portella denomina de modernidade tardia, está repleto de ambivalência e ambiguidade, quebrando qualquer paradigma, inclusive o lugar da História e seu olhar carrancudo para a narrativa. E um recomeço é esboçado pelo homem. Estamos sempre num recomeço. Talvez, preocupado com a perda do sonho, o homem desterritorializado busca resgatar sua ancestralidade, procura fincar os pés no chão de um caminho possível. As pesquisas etnográficas, a Etnomusicologia, a Antropologia, a Etnocenologia, a serviço de uma transdisciplinaridade, têm colaborado para um caminho que culmine não mais numa polarização bem à moda racionalista do erudito/popular, letrado/iletrado, centro/margem, etc.,
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Palestra proferida em 10 de fevereiro de 1999, por ocasião das instalações do Comitê Caminhos do pe nsamento hoje, Paris: UNESCO/colégio do Brasil (ORDECC), sob o título Revisitando o começo da História.
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mas a uma recondução dos espaços subjetivos. Nessa perspectiva, o corpo se insere como a ponte viável, e cobra seu espaço, seu território. Mais próximo do que Guattari denomina ecosofia, essa expectativa vigente na atualidade procura destituir o totalitarismo do pensamento, inserindo uma “escolha ético-política da diversidade, do dissenso criador, da responsabilidade frente à diferença e à alteridade” (1994, p. 10). É preciso, pois, buscar novos caminhos para o pensamento, espaços onde as mentalidades sejam reterritorializadas. Guattari aponta um itinerário: Recuperar o olhar da criança e da poesia, ao invés do olhar cego e seco para o sentido da vida, próprios dos especialistas e tecnocratas. Não se trata de opor aqui a utopia de uma nova „Jerusalém Celeste‟, como aquela do Apocalipse, face às urgências de nossa época, mas de instaurar uma nova „Cidade subjetiva‟ no coração mesmo de suas necessidades, reorientando as finalidades tecnológicas, científicas, econômicas, as relações internacionais [...] e as grandes máquinas dos mass mídia” (GUATTARI, 1994, p.11).
Ensaiando passos no caminho apontado por Guattari, minha reflexão não mira o olhar para os habitantes do coração da cidade, mas àqueles que formam um corpo na união dos seus corpos, e celebram um novo começo, ou um recomeço: os habitantes da margem, os isolados, no sentido mais etimológico que a palavra isolar possa ter, a saber, o habitante ilhado, ou tornado ilha. Os espaços periféricos da urbe servem agora de cenário para uma polifonia que se apresenta aos olhares acadêmicos, vindos do centro da cidade, para beber da fonte, e resgatar o novo homem na voz mitopoética. Não se trata de um olhar antropológico, sociológico ou, ainda, de natureza folclorizante. Tampouco constitui um olhar isolado. Tratase de olhares plurais, caleidoscópicos, destituídos daquele saber arrogante que ia ao primitivo para especular, interpretar. O objetivo agora é buscar no outro o pedaço de nós que ficou perdido, já que ele é a fonte primária desse conhecimento. Portanto, interessa perceber a linguagem poética que funda o sagrado (tomado aqui não como suporte da religião, mas como essência formadora do homem), denuncia a história e instaura o novo pelo vigor poético. O território do sagrado não se limita, pelo contrário,
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agrega todas as vozes e mundos para celebrar a promessa, na liturgia do mito. Assumo, pois, a condição de um narrador viajante, o marinheiro. Viajo para longe, a um lugar ermo, a fim de buscar o tempo necessário para o ouvido atento. É lá que encontro o narrador pescador, que, embora nunca tenha saído do seu espaço, tem muito a contar para quem tem todo o tempo a ouvir. Numa cabana de palha e madeira, enquanto conserta a rede para o trabalho noturno, o narrador vai também tecendo os fios das histórias. Com a agulha e a linha vai alinhavando e dando nós na rede, e alinhando os eventos que ouvira dizer ou presenciara. Para esta viagem, de certo modo, foi preciso que eu me afastasse do mundo letrado a fim de voltar-me à comunidade de oralidade secundária, que produz sua poesia totalmente com o auxílio da memória e do oral.
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1.1 NATUREZA E SENTIDO DO IMAGINÁRIO MÍTICO
Vida. Morte. Destino. Três palavras fortes. Tão densas que não suportam o peso do próprio sentido. Mas elas só têm esse peso para quem foi agraciado com a capacidade de experienciar a linguagem. Elas só causam medo para quem se pergunta sobre elas. O que é a vida para um animal? O que significa morrer para uma planta? E que ideia uma rocha faz do destino? Se apenas o homem tem a capacidade de transcender, isso significa que não há escapatória. Todo o pensamento humano se esforça para entender o conteúdo dessas três palavras. Para que nascer? E, se nascemos, por que devemos acabar? Somos destinados a quê? Esse pensamento é privilégio apenas de filósofos, cientistas e poetas? Não, todo homem está em contato o tempo todo com uma voz que o guia por caminhos ou rios de questionamentos. Percursos tortuosos que às vezes dão em algum lugar e muitas vezes em lugar algum. Desde que o homem é homem, para além das divergências da escala evolutiva da espécie humana, desde que o homem pensa, não há nada mais desafiador do que o conteúdo dessa tríade. O pensamento fez o homem buscar uma outra experiência da realidade, para além do físico, do sensível. Há um mundo inteligível, abstrato, que ultrapassa nossa finitude, nossa limitação física. Por que nascemos? Essa indagação surge quando nos damos conta de que a vida é transcorrer e esse desenrolar nos cobra ações. E quanto mais nos aproximamos da morte, mais a ideia da vida ferve em nossas veias. Com ela nos apegamos. Não queremos desistir dela. Por que devemos morrer, se nos foi permitido saborear o gosto da existência? Se pudéssemos subverter a natureza e mudar o curso... Se pudéssemos ser donos do nosso próprio caminho... E não somos? Não escolhemos entre variantes infindas? Não existe o infinito para o vivente. Um dia vamos morrer e tudo poderá estar acabado. O ser passou para a categoria do não-ser.
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Aquilo que o homem acha mais bonito, a vida, será aniquilada. É nesse momento que lá dentro começa a rebentar uma revolta, uma vontade de pedir retratação à existência, um desejo enorme de justiça. Não é justo dar o gostinho da vida para tirá-lo em seguida. Não é direito não dar possibilidades de escolha diante da morte. Não é ético que um ser sozinho, a natureza, resolva brincar com os seres. Mas o que é justiça, o que é direito e o que é ética? Outras palavras que o homem criou para ajudá-lo a suportar a carga pesadíssima daquela tríade. O que fazer, então, diante de tão desafiadoras questões? Desde que o homem teve o seu primeiro espasmo diante de um trovão e saiu a imitar o barulho, e o raio flamejante possuiu o galho despertando neste homem uma paixão, e a água borbulhante conduziu este homem a um balbucio, e o bisonte despertou o desejo de captura através da tintura na caverna; desde que esses arroubos de consciência habitaram o homem, foi descoberta a passagem para o mundo paralelo e inteligível. Basta que analisemos as descobertas arqueológicas sobre os homens pré-históricos para chegarmos à conclusão de que lá, bem no começo, o medo girava em torno da tríade vida, morte, destino. O impulso do desejo é o medo. Mas não o medo paralisante. Por que enterrar o morto? Ainda mais: por que enfeitá-lo, velá-lo, construir para ele um templo, enchê-lo de recomendações, rodeá-lo de presentes, cercá-lo de lamentos ou festa? Por que preocupação com aquilo que já não é mais, que não tem mais sentido no mundo sensível? É que morto está o ser, mas não a morte. Ela está ali presente, com toda sua majestade, com toda sua grandeza. Ela está ali dizendo para quem quiser ouvir: “Derrotei a vida. Derrotarei sempre. Não há como fugir. Eu sou o teu destino”. Mas, paradoxalmente, é também ali, num funeral, realizado há milênios, que está a fraqueza da morte. No momento em que se valoriza a fraqueza, o homem se descobre grande perante o inevitável. Diante do morto, é urgente que se celebre a vida, que seja lembrada uma trajetória, prodígios e
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conquistas. Não é apenas pelo morto que se chora, senão também pelos vivos, para que continuem vivos, para que sejam mais fortes ainda diante da ameaça constante. Os mortos não escutam a sua história 4, mas os vivos precisam dela para dizer tudo o que a existência é capaz de permitir e, enfim, sonharem com uma possível eternidade. Eis a instauração do mito. Estava fundada a mitologia, a religião e tudo o que somos hoje enquanto pensamento. Imaginar é o poder de ampliação do horizonte humano, já que o horizonte que divide o mundo sensível do inteligível é ilusório. A imaginação é construção do sentido da existência, mas não significa que esta faculdade se apoia no irreal apenas porque tenta tornar o imaterial palpável. Não está absorto no irracional esse horizonte. Narrar os prodígios do morto e elaborar pela palavra outros feitos é responder àquela questão tão velha que nasceu junto com o pensamento: como domar vida, morte e destino? Como então pensar que o mito leva ao irracional? Que ele não dá conta das questões, já que é mera invenção? O mito nos aproxima ainda mais do mundo real, porque nos dá força para o enfrentamento do nosso dilema. Assim, não deve ser encarado como natureza alienante, pois se servindo do concreto nos faz tocar o indizível. Volve nossa face para o mundo em que habitamos, enquanto projeta-nos para o mundo paralelo, pura doação. Como dizer que o mito é a grandeza da divindade apontando nossa pequenez, se somos nós os construtores dos deuses, se eles são o reflexo da nossa pergunta primordial? Domínio do fogo, domínio da caça, domínio da representação... Sempre a tríade incitando o homem. Sem fogo, a morte se fortalece; sem caça, a fome é a morte; sem representação, acontece a morte da memória. O medo fez o homem criar o rito para ter domínio sobre si. E o rito é a liturgia, um ato de libação e oblação para a existência. O mito vislumbra o desconhecido do cimo da montanha da linguagem, e descobre que tudo é um, tudo-um. Por isso, toda experiência mítica é da ordem do excepcional. Além do que somos e temos, somos desafiados a avançar ao desconhecido, numa experiência extrema em prol da
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vitória da vida. O mito reconfigura a vida, recriando-a, restaura o poder do homem que, tendo consciência de sua finitude, celebra a vida enquanto fita a morte com probidade. Tudo era um. Para os homens do passado, deuses, fenômenos meteorológicos, elementos da natureza, animais e pessoas não só habitavam o mesmo espaço como também estavam ligados emocionalmente. As respostas para problemas cotidianos, um mínimo problema que fosse, podiam vir de um relâmpago, do sereno, do cheiro da terra, das folhas caindo, da mudança das estações... A natureza falava diretamente ao homem, quando ouvi-la era capacidade primordial para garantia da sobrevivência. Esse sentido congregava os outros. Se tudo é substância de algo infinitamente maior que não consegue ser explicado, as mesmas leis regem os seres visíveis e invisíveis, palpáveis e impalpáveis. Desse modo, atitudes e sentimentos não seriam muito diferentes das árvores, da água, da rocha e das nuvens, pois também estariam impregnados da força necessária para modificar o mundo. Uma simples dor mata, uma simples inveja corrói, uma simples atração pode virar tormenta. Se as forças subjacentes aos homens, e que se concretizam nas atitudes e qualidades, têm o poder de engrandecê-los ou derrotá-los, então é justo construir um roteiro de normas para ensinar a comunidade a entender o mundo, as emoções, os medos e alegrias. Portanto, quando o mito mostra o comportamento dos deuses, que não têm características distantes dos homens, está indicando, na verdade, o caminho para as relações humanas, na melhor pedagogia possível, que é a pedagogia do prazer (acaso existe uma pedagogia eficaz sem o prazer?). Foi essa forma de ver e sentir o mundo que moldou o homem primitivo, instituiu as civilizações e mesmo após o advento da ciência, na idade da razão, não foi sucumbido de todo, mas continuou e continua organizando a trajetória humana. O tempo do mito, por conseguinte, não opera na linearidade cronológica, nem se sustenta aí. Uma vez que mundo interior, mundo exterior e mundo do transcendente se irmanam, não é possível associar eventos de naturezas tão distintas na sucessão e transcorrer
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históricos. Se os eventos da natureza, as emoções e os fatos estão num mesmo nível de importância, o tempo que abraça e beija todas essas instâncias é o da graça benevolente, que traz à superfície do presente o acontecido e o que ainda virá, para a celebração da vida. A palavra é entronizada no rito para promover a catarse que opera a cura. Todo mito é procura. Todo mito evoca uma saudade intemporal do mundo perfeito porque uno. Essa noção de intemporalidade é muito complexa para o homem de hoje que caiu nas artimanhas do cronômetro e há tempos não consegue explicar sua existência no mundo sem a necessidade da linearidade do transcurso, ordenadamente, do antigo para o novo, do passado para o presente. Isso é tão caro ao homem que o relógio do novo milênio tem a precisão atômica. Mas não foi a teoria quântica que veio quebrar a noção de causa e efeito, como o fato de dois corpos não poderem ocupar o mesmo espaço? Que relógio mede o tempo de um pensamento? Qual a medida de tempo das emoções? Por que o relógio biológico não segue o mesmo esquema do relógio-objeto? E por que o relógio-objeto precisa, de tempos em tempos, ser adiantado em relação aos movimentos dos astros? Os homens do passado resolveram muitos problemas quando instituíram a fundação do mito no tempo do rito. Assim, o que já ocorrera, continuaria a ocorrer sucessivas vezes. Ritualizar é, pois, re-atualizar a vida, livrando-a das artimanhas do tempo linear. O mito promove um jogo utilizando-se da poesia e da música, da dança, do gesto, enfim, do corpo, para operar uma epifania, manifestação do inexprimível. Mito é engajamento para uma possibilidade. Essa possibilidade não aniquila as verdades sabidas, só projeta para outros modos de vê-las. O mito só quer ter eficácia na irrupção de um imaginário.
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1.2 MITOPOÉTICA: ESPAÇO SAGRADO DA POESIA
A natureza e o sentido do imaginário mítico permitem que o vejamos apenas de modo rarefeito. Sendo vivência, o mito se oculta e só consente ser vislumbrado por imagens moventes. Como uma tentativa de ver além da cortina, na busca de um sentido para a sua existência, o humano concebe arquétipos cujas referências primárias possibilitam interpretar fenômenos, fatos, destinos. Este estudo pretende constituir a reunião de um imaginário e não propriamente a interpretação de uma mitologia. Sendo o mito um impulso originário, criação por excelência, o interesse se dá em observar o como e o porquê dessas expressões imagéticas, tomando como modelo o mito sebastiânico. Num imaginário, são estruturadas leis, ideais se efetivam em sonhos, instituem-se os ritos e se dá sentido à vida. Não havendo separação entre ação e pensamento, já que a manifestação da palavra é ação e o mito, a presença do ausente, a experiência mítica da linguagem não suporta a redução interpretativa, pois se fundamenta a partir de experiências múltiplas. Segundo Bachelard, a imaginação é menos a possibilidade de formar imagens do que a faculdade de deformá-las, ou seja, a capacidade de mudar a imagem presente numa ausente. Assim, “o vocábulo fundamental que corresponde à imaginação não é imagem, mas imaginário” (2001, p.1). Imaginação é sempre uma abertura do/para o imaginário, o inesperado deflagrado pelo esperado. Isso acontece numa mobilidade, não há imaginário no repouso, na inércia, pois é no movimento que as imagens se processam. Mito é imagem que não cessa de acontecer, através do anúncio da fala, do gesto, do corpo. O mito suscita um rito que é a abertura para o imaginário. Para percorrer um caminho mais seguro, é preciso delimitar o conceito de mito, já que a palavra assume historicamente inúmeras acepções, algumas até bem distanciadas do
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originário grego Mythos. Ao conceito de Mito costumou-se contrapor o de Logos, pressupondo divergência, um abismo. Mito é constantemente apresentado como sendo uma narrativa de origem, ou seja, um relato de ordem cosmogônica. A explicação do surgimento de um mundo pela palavra constituiria o sentido de mito. Enquanto logos assumiria a realidade, o mito seria a ficção, portanto, não-realidade. Se tanto logos quanto mito querem dizer a palavra por excelência, o mito poderia se configurar como o outro do logos, mas não o oposto. Na vertente deste pensamento, Vernant afirma: Os mitos são outra coisa: são relatos aceitos, entendidos, sentidos como tais desde nossos mais antigos documentos. Comportam assim, em sua origem, uma dimensão de “fictício”, demonstrada pela evolução semântica do termo mythos, que acabou por designar, em oposição ao que dá ordem do real por um lado, e da demonstração argumentada por outro, o que é do domínio da ficção pura: a fábula. Esse aspecto de narração [...] relaciona o mito grego ao que chamamos de religião, assim como ao que é hoje para nós a literatura. (1996, p. 230).
Essa distinção entre mito e logos surge justamente a partir da introdução da cultura grafocêntrica, em virtude do domínio do pensamento lógico. Outra dubiedade apontada por Vernant é a que coloca o mito em posição oposta à História. Enquanto a História dá conta do passado marcadamente factual e recente, ancorando-se inclusive no testemunho e nos vestígios documentais, o mito refere-se ao passado remoto, numa esfera distante, atemporal e por isso difícil de ser compreendida, ficando sua verdade condicionada à palavra. Tanto pela palavra oral quanto pelo caráter libertário do tempo, o mito mostra-se no plano do fabuloso, da ficção, enquanto a história se pretende verdadeira 5. O que se observa atualmente é a produção de mitos, a necessidade deles, mesmo em meio a tentativas de desmitificação da experiência humana. Para Carneiro Leão (2002) é necessária uma análise originária para se entender por que esse interesse pelo retorno ao mito. A própria ciência constrói os seus, numa atitude aparentemente contraditória, demonstração
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de que a racionalidade não é suficiente para o processo de elaboração do pensamento. A verdade original encerrada no mito está sendo consumida nas narrativas cotidianas, nos mecanismos de produção de cultura, nos sistemas financeiros virtuais e até na banalização dos anseios do homem atual mergulhado no mundo não definido do ciberespaço. Na Grécia antiga, o mito não se confundia com poesia, pois era a própria poesia. Podemos dizer que os gregos tinham como suporte para sua história política, educacional e religiosa toda uma enciclopédia oral mitopoética. Todo mito opera uma realidade, sua finalidade é ter eficácia, produzindo um mundo pela narrativa. Por isso se sustenta de atemporalidade e universalidade. Sua geografia também é outra. Entendido como uma narrativa que enumera ações, o mito conta como alguma coisa surgiu, como se deu esse aparecimento. É, pois, em princípio, uma narrativa de fundação. Todas as coisas que apareceram nesse mundo, apareceram também através da narrativa, nesse fluir poético. Pode-se então falar em termos de uma coletividade mítica ou sociedade mítica em que as ações de seres sobrenaturais acontecem numa temporalidade e espacialidade nãohumanos. A mitopoética funde esses mundos para que o homem possa sentir-se parte de uma esfera numinosa, maior que ele e suas forças. Se o tempo mítico não é cronológico, é a narrativa que instaura um momento original, onde algo vem a ser a partir de tempo e lugar sagrados. É o tempo mágico da origem. Essa geografia também é descontínua e tênue porque, embora opere uma realidade com eficácia, sua função transcende o real, aponta para outro mapeamento da percepção da vida. Está-se sempre na origem, celebrando-a, revivendo-a, ritualizando-a. portanto, o mito não apenas aponta para um passado primordial, como também presentifica esse instante o tempo todo. O homem, então, precisa do rito para sentir esse êxtase criador. Nesse sentido, também uma mitopoética é sempre uma teopoética. A mensagem do mito ou sua hermenêutica (hermeneuein = transmitir = interpretar) é concebida na vivência e na sua expressão dinâmica:
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Nem toda interpretação é uma hermenêutica. Somente aquela que descer até à dinâmica do destino que estrutura a história. Nesse contexto o mito assume um outro sentido. Deixa de ser uma lenda – isto é, um relato de estórias sem verdade – para reaver toda a força de sua palavra. Pois ho mythos exprime o destino que se lega historicamente à existência.” (CARNEIRO LEÃO, 2002, p. 196)
Para Cassirer, ao oferecer uma origem, o mito também assinala um vir-a-ser, não se restringindo apenas numa criação confundida com um passado remoto e não-datável, a não ser pela marca de origem, como o momentum primordial em que algo nasce: O verdadeiro mito não nasce simplesmente no momento em que a intuição do universo com suas partes e forças se configura em certas imagens e figuras de deuses e demônios, mas no momento em que se atribui a tais figuras, uma emergência, um via-a-ser, uma vida no tempo (1987, p. 129).
O mito assinala não somente o rito de criação, mas nos insere num tempo alheio ao cronômetro da História (quer esse tempo seja linear ou cíclico). Apresenta, pois, uma outra dimensão. Segundo Freitag 6 (2002), o conceito de tempo subjacente no mito não pode ser entendido como um desenrolar, próprio do tempo histórico, em que fatos e eventos se sucedem. O mito lança-nos para o tempo original ( Urzeit ), um tempo efetivo (eingtliche Zeit ) ou sagrado (heilige Zeit ): “Essa passagem corresponderia a um „rito de passagem‟ para uma nova qualidade de vida, em que é dado o salto qualitativo no tempo, do tempo profano para o tempo sagrado (ou não)” (FREITAG, 2002, p.118). Desse modo, podemos dizer que o mito é a saga que não se esgota no discurso, mas se constrói múltiplo e poeticamente. A mitopoética, assim, apresenta-se como o impulso para a criação ao mesmo tempo em que reúne e dá sentido ao corpo de imagens resultantes das experiências do pensar, dizer e fazer. Como se dá a experiência mítica da linguagem? Ou melhor, como a linguagem é capaz de ser o próprio fazer mítico? Pelo rito o mito se move, sublimando as ações humanas. Daí a dificuldade de pensar o mito teoricamente sem um retorno à sua constituição original, lá onde
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a razão nem se anunciava ainda, e as leis só eram entendidas pela saga do fazer-dizer. Há que se penetrar na narrativa do mito e experimentá-la para vislumbrar sua voz. Digo vislumbrar porque o mito é duplamente manifestação e ocultação e sua aparência é mistério para a linguagem. Mas se o Mito é origem que se funda no discurso, então aí se encontra o Logos, palavra fundante e instauradora que cobra do dizer uma postura, e do ouvido, a plena atenção, já que ambos vigoram na ordenação da vida pela linguagem: [...] o Logos é linguagem ontológica da vida, no mais elevado grau de sua explosão na história humana, por isso, a vigência criadora do Logos revoluciona não apenas a fala e o discurso, mas também o ouvido e o ouvir. Nas peripécias da criação, ouvir é escutar o Logos, seguindo o advento de sua dinâmica de reunião no curso da história. (CARNEIRO LEÃO, 2002, p. 140)
Tudo que é de alguma forma o é porque foi ordenado na consciência cósmica do mundo. O dizer constitui esse realizar pleno e ontológico, conjuntura estrutural e força de congregar. Na casa do dizer tudo é coesão e estrutura, aí impera a totalidade deste mundo que se organiza na operação da linguagem. Não há espaço para a desordem e conflitos (CARNEIRO LEÃO, 2002 , p.140). Embora se pense na Linguagem como um meio, e meio natural, instrumental, ela não define o homem de modo reducionista, pelo contrário, só o define na sua essência. Os limites do mundo passam necessariamente pelos limites da linguagem, as fronteiras da linguagem sinalizam sempre possibilidades infinitas de aberturas, nunca fechamento. Por isso a experiência da Linguagem é, antes de tudo, a abertura do ser para o mundo, seja no êxtase provocado pela voz das Musas, ou escutando e auscultando a voz originária do dizer. Essa voz poderosa é o âmago da existência ou da ideia de existência, corpo do poético, pura construção e doação. A poesia neste trabalho quer ser vista liberta do estético, além do sentido religioso e do lúdico. A poesia congrega tudo isso, mas é livre para ser mais, no reino do mundo que lhe é próprio, o imaginário. No imaginário somos e não somos, mitificamos e
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mistificamos a vida para que ela seja grandiosa, libertando-se das amarras do físico e do tempo. Buscar destituir a noção que temos de poesia é o primeiro passo para a leitura deste trabalho, que não se enquadra em área alguma do pensamento cartesiano academicista. É ele, o poético, que deve vigorar no seu rito próprio, na harmonia de sua música, no fulgor obscuro de sua voz que quer ser palavra, mas nem sempre a palavra a compreende. É por isso que a poética aqui apresentada é a poética da Encantaria, como feitiço, liturgia, profecia e adivinhação, é encanto lançando seu grito atemporal, extemporal, atópico e inebriando o ouvinte atento7.
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1.3 CORPOREIDADE E PERFORMANCE: DA VOZ COMO GESTO.
No princípio era a voz, emanação original do ser no mundo. Só muito depois é que veio a palavra, tentativa de concretização do pensamento. Na noite da evolução, a palavra vestiu-se da voz e foi para o baile flertar com o mundo. E a voz emudeceu pelo concretismo da palavra? Talvez. Mas quando a palavra não consegue abarcar o mundo, que se torna indizível, inexprimível, só a voz é que se exprime soberanamente, ecoando sons primitivos, a música da origem que deve ser sentida, não explicada. A voz é experiência plena do ser aqui e agora. Mas o que seria essa voz que é instrumento do jogo poético e objeto de si mesma, emanada de um corpo? (ZUMTHOR, 1993, p. 240). A voz que ressoa palavras, que emudece, que ecoa ruídos não linguísticos, que evoca sons primitivos, silvos, gritos, grunhidos? Que voz é essa que precisamos escutar e que é carne e ar? Onde está a linguagem aí, anterior ao homem que fala, ou a partir da história oral dele? Essa é a questão que a Linguística vem se debruçando há muito tempo para tentar entender a experiência do homem com a linguagem. A experiência que somos capazes de realizar se dá na linguagem ou a antecede? Onde acaba o entendimento, poder-se-ia perceber o quê? Não é o mito uma forma de apresentar uma experiência que dispensaria a linguagem por ela mesma? De qualquer modo, houve sempre um confronto de posicionamentos sobre a origem da linguagem: invenção humana ou dom divino? Essas questões são feitas por Agamben, ao retomar as posições benjaminianas sobre a pobreza da experiência e as indagações de Benveniste a respeito do sujeito que enuncia o eu. Para Agamben, ao se buscar um início da linguagem, uma origem, um momento que a antecede, recuperar-se-ia nessa infância do homem, uma dimensão transcendental, o lugar primordial da experiência (2008, p. 54-78). Assim, o homem é sempre um infante para a experiência da linguagem, pois onde
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acaba o humano e começa o linguístico? E onde se dá a ruptura da linguagem para que possa emergir a experiência? Agamben aponta: “O inefáv el é, na realidade, infância” (2008 , p. 62); e ainda: “experienciar significa necessariamente, neste sentido, reentrar na infância como pátria transcendental da história” (2008, p. 65). É por não assegurar a natureza da voz que ecoa do corpo e se projeta para outros corpos que a performance talvez seja uma via para se entender uma poética da voz. Voz que é constituída pelo pensamento e se corporifica; voz que se lança ao mundo, sendo também corpo da palavra ou destituída dela. Voz primitiva, nesse intermédio da linguagem que não consegue dizer, e do humano, que não pode dizer. O corpo é concebido como a via do dizer projetante e poético, onde o homem realiza-se como obra plena. É difícil para nós, herdeiros do alfabeto, pensar na palavra sem que deixemos de lado a sua visualidade, a pseudoconcretude do significante. Por isso, para voltar a uma cultural oral, torna-se imprescindível pelo menos perceber o abstracionismo presente na palavra. De que me serve a palavra se permaneço em silêncio? Palavra quer ser doação. É isto a palavra. A força daquilo que não se vê, calando fundo na alma. Algo entre o físico e o extrafísico, o pedaço do outro que chega até mim. A alteridade tornada concretude. A porção sensível e invisível capaz de trocar de corpo e preencher o outro. Tomar a palavra é sempre um rito de evocação e invocação. Evocá-la pressupõe tirá-la de um lugar onde ela nunca esteve e para o qual nunca mais voltará. E, no entanto, toma os corpos, é continente de um conteúdo, percorre caminhos sem se atrelar a um tempo, porque ela própria constitui o evento. Daí porque, desde que os homens se reuniram e formaram grupos de convivência, a palavra tem sido encarada como uma força poderosa capaz de mudar os destinos da humanidade e dar sentido às coisas, muito diferente das sociedades grafocêntricas, que vêem as palavras não como algo real, eventual, mas como rótulo, etiqueta das coisas que nomeiam (ONG, 1998, p. 43). Os sentidos nos põem em contato com o mundo, ou melhor, o mundo interior encontra
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o exterior na tradução contínua. Como um feixe simultâneo de troca de informações e sensações, enxergamos no interior o exterior e vice-versa. Responsáveis por essa tradução simultânea que faz o reconhecimento do abstrato no concreto, os sentidos físicos atuam de modo a nos presentear de mundificação. Dos sentidos, a experiência do som nos traduz o mundo exterior plenamente. Tato, paladar, olfato e visão, ainda que intrínsecos, fazem um recorte do exterior, dando-nos uma parcela. O som não: “a vista isola; o som incorpora” (ONG, 1998, p. 85). Ele penetra em nós, força viva, para nos fazer estremecer. Ele nasce de nós, sopro vivo, e parte para o outro. Somos a nossa própria ponte, limite. Ouvir e falar são, pois, atos de congregação de mim mesmo e do mundo. A natureza do som é ser unificador: “Quando ouço, no entanto, reúno o som ao mesmo tempo de qualquer direção, imediatamente: estou no centro do meu mundo auditivo, que me envolve, estabelecendo-me em uma espécie de âmago da sensação e da existência.” (1998, p. 86)
Para reconhecer que há um interior e um exterior, temos que nos conceber como corpo. Ele não deve ser negado, nada nele deve ser negligenciado. E, no entanto, não passa de fronteira, região limítrofe, ponto de referência espacial: “O corpo é uma fronteira entre mim mesmo e tudo o mais. O que quero dizer com „interior‟ e „exterior‟ pode ser comunicado somente com referência à experiência da corporalida de” (ONG, 1998, p. 86). É então que surge a necessidade de pensar o corpo como arte. Estaria aí esboçado o desejo da construção do conceito do corpo performático. Se fossemos traçar uma arqueologia dos estudos da performance, precisaríamos partir de caminhos comuns, mas não iguais, nas artes, e percorreríamos a evolução do pensamento sobre o corpo em cada um desses percursos até que os feixes dessa evolução se cruzassem ou convergissem. Essencialmente, precisaríamos partir de dois pontos: da evolução dos estudos acadêmicos sobre as artes, especialmente a literatura e a linguística; da revolução do conceito de arte que surge nos trabalhos de intervenção investigativa do teatro, da dança e da pintura
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do final do século XIX e início do século XX. Esses dois pontos vão percorrer um traçado comum para, finalmente, convergir, na década de 60, na ideia da performance como eixo integrador das linguagens e saberes. Resumindo, teríamos então: a) Em primeiro lugar, os estudos da oralidade, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, vão se mostrar interessados nos estudos comparativos de textos orais da atualidade com as obras épicas gregas homéricas, passando pelos movimentos de vanguarda do Modernismo, nas primeiras décadas do século XX, e culminando no estudo das vocalidades ou artes verbais e suportes midiáticos, da década de 1960 em diante, sob influência dos poetas que realizam vocalmente sua poesia. As contribuições das ciências sociais, sobretudo dos métodos de pesquisa da sociologia e antropologia, o uso da etnografia, etnologia para entender as culturas foram a dinâmica dos trabalhos do final do século XIX e início do século XX. b) Em segundo lugar, no final do século XIX, as artes plásticas se libertam do academicismo com os movimentos de vanguarda (Cubismo, Futurismo, Surrealismo) que culminam na construção do projeto modernista, suscitando uma aproximação entre linguagens fronteiriças (teatro, pintura, música, escultura). A própria constituição da noção de uma perda de valor da arte diante da monstruosidade da guerra, que norteia o Dadaísmo, já prenuncia a importância do corpo na construção da subjetividade, o homem passa a ser o centro da obra de arte e não mais sua obra por ela mesma (o que seria a arte de Duchamp senão um aceno à arte conceitual e à performance?!). Na literatura modernista, o texto cada vez mais assume a coloquialidade, a oralidade marca presença na prosa e no verso, numa desconstrução da língua formal e distante do corpo. No início da década de 1960, aparecem movimentos associados à essa mistura de teatro, música, artes visuais. São os happening (acontecimento), a body art (arte do corpo), associados à ideia de que o conceito deve imperar sobre o objeto, ou seja, a temática vigora através do meio, não sendo mais o objeto pronto e exposto numa galeria que
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define o que é arte, mas tudo o que o artista propõe que a arte seja. É por essa época que a mídia passa a ser mais utilizada não apenas como instrumento de execução, divulgação e concepção da arte, mas como experimentação da arte. Fotografias, vídeo, panfletos, cartazes, livros, painéis decorativos, o vestuário; tudo integra o instante, tudo dialoga com o presente instantâneo8 e circunda o artista. Inicialmente identificada como arte do efêmero, a performance surge aí, menos como um movimento ou uma expressão, e mais como um elo entre linguagens. De origem francesa, mas utilizada pelo inglês já nos anos 30 nos espaços de dramaturgia, a palavra performance era associada a representação, atuação, a Performance Art, sobretudo aquela revestida de um certo número de improvisações, livres associações do corpo com o texto e a vida. Os antropólogos, por sua vez, fizeram uso do termo para designar apresentações, rituais e relatos de uma comunidade estudada na relação com o espaço, ou seja, o termo abrigaria o universo híbrido das tradições orais. Desse modo, se aplica tanto a um evento comunicativo específico quanto a qualquer ação humana, num sentido mais geral. Até pouco tempo, nos estudos literários ainda se empregava a palavra em itálico, como se faz com estrangeirismo 9. Apesar disso, desde a década de 1970 o termo já constava do dicionár io brasileiro, ainda que com o sentido de “atuação”. O seu emprego evidentemente era voltado ao uso de um texto literário em prosa ou verso adaptado para a apresentação a um público (leitura, teatro, música...) naquilo que conhecemos por performance literária ou texto performatizado. O uso da performance como um evento está mais próximo do uso para o sentido literário, uma vez que se torna base para a arte verbal, sendo um instante da fala, uso da linguagem: [...] não se faz mais necessário começar com textos de arte, identificados como campos formais independentes e então reinseridos em situações de uso, de modo a conceitualizar a arte verbal em termos comunicativos. Melhor do que isso, em termos do enfoque que está sendo desenvolvido aqui, a performance se torna constituinte do domínio da arte verbal como comunicação falada (BAUMAN, 1977, p. 11) [tradução nossa].
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Partindo da concepção de arte oral dada pelos folcloristas e antropólogos, Bauman amplia o sentido do termo, percebendo-o também como uma pluralidade de gêneros, bem como múltiplas formas de uso que se faz da palavra, englobando desde uma narrativa de base mítica ou até mesmo uma simples conversa entre membros de um grupo. Nesse caso, para além das limitações que as teorias modernas fazem da arte verbal, ao considerarem o texto como ponto de partida para a compreensão da palavra, a performance focalizaria a totalidade da ação dessa palavra tomando a análise da arte verbal a partir da própria performance. Portanto, uma das tarefas do pesquisador, como enfatiza Bauman (1977), consiste em investigar o modo de representação estabelecido pela “moldura interpretativa da performance”. Uma arqueologia da performance passa a ser esboçada, ainda que não sistematicamente, sugerindo a necessidade de uma estética para os eventos literários móveis (sem texto escrito) que pensassem necessariamente na palavra a partir de termos como voz, corpo, intérprete e espectador. Estudos assim, têm sido feitos pelo pesquisador americano Richard Schechner, da Tisch School of the Arts (EUA), que tenta levar em conta de fato o caráter interdisciplinar do termo “performance”, não esquecendo sua ambiguidade. Embora ligado ao teatro, Schechner desenvolve pesquisas sobre a teoria da performance de modo transdisciplinar, procurando integrar diferentes áreas. Suas obras, cujos títulos incluem o termo Performance Theory (1977; 2002), parecem querer dar conta dessa amplitude. O próprio departamento a que o professor está vinculado na Tisch School intitula-se Departamento de Estudos da Performance, e agrega estudos de teoria e prática de eventos performáticos, reconhecendo-os no seu caráter intercultural, interdisciplinar, bem como sua natureza social. Resta saber que elementos seriam definidores da caracterização de uma performance nas artes verbais. De certo modo, os estudiosos da oralidade, sobretudo aqueles que
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mostraram a forma, o conteúdo, a psicologia da poética grega arcaica, foram precursores daquilo que viria a ser denominado performance, ao darem importância não apenas ao texto, mas ao situá-lo no seu contexto de produção e recepção. Por isso, as características de uma psicodinâmica da poética oral apresentada por Milman Parry e Albert Lord - que estudaram as inúmeras fórmulas dos epítetos presentes na obra homérica, comparando-os aos cantos de camponeses Iugoslavos, publicados em The Singer of Tales (1960), mais tarde divulgados e ampliados por pesquisadores como Ruth Finnegan (1977; 1992), Eric Havelock (1966) e Walter Ong (1982) - podem ser tomados como marcadores e definidores de uma insipiente emolduração da performance. Características estudadas por esse grupo, tais como as modulações da voz, a psicologia do intérprete, a sintaxe oral, as fórmulas que garantem a memorização, as movências dos textos orais apresentados em espaços e tempos distintos, as diferenças do uso da mnemônica em culturas orais, as técnicas da declamação poética, a importância do prazer do espectador para proporcionar a continuidade da obra; tudo isso sugere aos estudos da teoria literária um avanço e uma nova postura no trato com a palavra, para além das polarizações. A performance, pois, passa a ser compreendida como eixo norteador e integrador de diversas áreas de pesquisa, cooperando para que as distâncias entre estudos que tomam um mesmo objeto sejam minimizadas, ainda que as fronteiras de disciplinas afins não possam ser transpostas. Nas últimas décadas do século XX, coube ao medievalista Paul Zumthor retomar a questão da oralidade, preferindo o uso dos termos “vocalidade” e “performance” ao estudar as gestas, sermões e cantigas medievais. Mais tarde, o pesquisador vai se voltar para as vocalidades atuais, sobretudo quando entra em contato com as manifestações orais do nordeste brasileiro, resultado do seu colóquio com a USP na pessoa da pesquisadora e sua aluna, a brasileira Jerusa Pires Fernandes. Sem se preocupar com a polarização erudito/popular e escrita/oralidade, Zumthor valorizava a presença da voz como um fato
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constitutivo desses textos, convocando o leitor a tentar ouvir e perceber a performance dos textos medievais. Sua recusa pelo termo oralidade é justificada no sentido de que o oral é abstração e só a voz tem caráter concreto, “apenas sua escuta nos faz tocar as coisas” (1993, p. 9). A linguagem revestida de performance não está atrelada ao tempo e ao espaço, embora aconteça neles. Corpo e voz realizam uma única apresentação, que não se repete, nem envelhece ou atualiza, visto que é sempre outra performance a realizar o poético. Ao inserir numa apresentação elementos não-verbais como música, gesto, dança e cenário, entre outros, a palavra não pode mais ter o mesmo valor. O externo evoca o interno que se reveste de significação. Por outro lado, a interação entre performer e audiência cobra de ambos percepções sensoriais mais aprofundadas, ainda que o som emane soberanamente. As expectativas, portanto, já mudaram com o foco. A performance leva em conta o evento em si, num contexto mais amplo, dando destaque à transmissão oral, pois ela sempre se realiza para a coletividade, para além do tripé autor-obra-leitor. É nesse sentido que o termo pode ser entendido como um aglutinador de áreas, disciplinas e ajuda a integrar estudos com foco comum. Sua função é multidisciplinar, interligando saberes antes dispersos e impossíveis de serem reunidos. Mas como dar conta da performance numa tese cujo cerne é o poético? A resposta está na pergunta. Não estamos falando do texto, da escritura, da palavra em estado de livro, mas do livro-corpo flutuante, ambulante, integrado ao mundo, interagindo com outros corpos, na confluência dos espaços. O poético reside aí, nos espaços, nas ausências, nas presenças, no fluir. O corpo é o poético na minha tese, território da voz, que nunca se prende, e até quando se cala é mensagem. Nesse sentido, ainda que não haja propriamente uma teoria da performance que dê conta das categorias texto, corpo e voz nas expressões artísticas, sobretudo no campo da
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Teoria da Literatura e de suas poéticas, os elementos em evidência numa poética oral podem ajudar a perceber a dimensão estética da palavra cantada e falada. No estudo da performance é preciso dar conta do corpo, observando seus constituintes (membros, tronco, cabeça, o rosto e suas expressões). Porém, o elemento que funciona como o ponto de atuação da performance, é a voz. O poético reside na voz que se torna corpo e por isso podemos dizer que o corpo se encheu do poético ao encher-se da voz. Por isso comecei esse item falando da voz para chegar à performance e agora retomo o conceito da voz como o impulso da performance. Percebendo a amplitude da voz nos estudos da oralidade, os pesquisadores do século XX acabaram substituindo o termo “artes verbais” ( verbal arts) e passaram a utilizar o termo “vocalidade” ou “artes vocais”. Se a voz nutre de materialidade o signo verbal, é pela voz que também expressamos o indizível. O indizível não é o que não pode ser dito, mas apenas aquilo que não se exprime por palavra. A voz diz o não-dito, proclama o sentimento sem dizer. Murmúrios, lamentos, gritos, sussurros, muxoxos, suspiros, assovios etc., não dizem nada? Dizem muito. É o nosso corpo sendo expressão originária, primitiva e plena, sem necessidade de tradução. Essas inflexões vocais, aliadas aos ritmos, ao silêncio e à palavra alcançam o status de musicalidade, conforme já citava Mário de Andrade, na primeira metade do século XX: Como o arco primitivo, o instrumento vocal (que aliás também é mortífero...), tem dois destinos profundamente dissemelhantes: a palavra e a música. Como o arco que vibra tanto pra lançar longe a flecha como pra lançar perto o som: a voz humana tanto vibra pra lançar perto a palavra como pra lançar longe o som musical. E quando a palavra falada quer atingir longe, no grito, no apelo e na declamação, ela se aproxima caracteristicamente do canto e vai deixando aos poucos de ser instrumento oral pra se tornar instrumento musical (ANDRADE, 1982, p. 43).
A ambivalência da voz aqui é expressa por meio da alegoria do arco. Anterior a essa comparação, Mário apresenta o conceito de poesia como a arte da palavra em prosa e verso e desenvolve sua reflexão sobre a tentativa de fusão do canto com a poesia, luta antiga. Para
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Mário, o ritmo seria o elemento de oposição, uma vez que se encontra numa fronteira entre fala e música. É esse limiar da voz que a torna concretude do ser poético. A resistência da voz a classificações é apresentada por Castarède (1998), sendo algo de natureza impalpável. Os sortilégios da voz fazem parte do homem, pois sendo portadora de sensibilidade, antes de ser linguagem, a voz é expressão: Instrumento fundamentalmente musical, a voz libertou o som, arrancando-o às coisas; o homem gera a música através da sua voz. Muito antes de „falarem‟ com os que o rodeiam, o homem primitivo e o bebê descobriram a expressão vocal, a música da voz, para se dirigir a eles. A voz, como emanação da sensibilidade humana, passa a ser o primeiro instrumento da arte. [...] A música emana da voz; apoia-se no primeiro órgão dos sentidos, através do qual o mundo nos é dado: o ouvido. (CASTARÈDE, 1998, p. 260)
A voz oscila entre fala, música e grito. Instrumento primitivo a serviço da arte. Essas modulações não devem ser negligenciadas na análise de uma performance poética. Se a sociedade letrada é centrada no visual, para analisar a palavra cantada e narrada oralmente é preciso deslocar o meio, re-educando o imprescindível elemento auditivo. Isso não quer dizer que o visual não tenha sua relevância numa performance. Mas o sentido da audição permite a experiência da troca de corpos e de mundos, reordenando o operar dos outros sentidos. Onde estaria então a função do autor inerte, do escritor fechado no seu mundo de produção? Num contexto oral, autor é aquele que executa uma obra, performatiza. O performer da palavra pode não ser autor do que conta e canta, na maneira como uma sociedade grafocêntrica reconhece autoria, mas tem uma autoridade sobre o que apresenta. A autoridade legitima a autoria, que leva em conta a performance, cujo acontecimento se dá pela corporificação da palavra. Daí que não faz sentido pensar no autor como o detentor dos direitos da obra. Autor é aquele que entra em ação. Da mesma forma, o leitor só pode ser encarado como tal no domínio da performance, o momento da recepção. Autor e leitor seriam categorias atemporais, não fixas, uma vez que a performance traz sempre o texto para o agora da apresentação.
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Certamente essa re-estrutura é ainda relativamente nova para o círculo literário e a consequência disso é que um pesquisador da performance precisa elencar termos novos que possam dar conta do estudo de uma obra oral. O que se pode perceber mais concretamente nessa tentativa de estudar o que antes se considerava efêmero, mas que num passado arcaico era o cerne da poesia nas comunidades primitivas, é que no fio da voz se integram o texto e o corpo, no instante da performance. Neste estudo, tomei os termos “ performance” e “ performer ” para evidenciar, respectivamente, o momento da voz que anuncia e enuncia o narrado e o intérprete dessa voz. Mas é importante delimitar o sentido desses termos para não haver a confusão com o sentido empregado no teatro e em outras artes. Os narradores sebastianos, centro deste estudo, não são atores teatrais, não têm uma plateia nem palco definidos, não estudam o corpo, as modulações da voz, muito menos conhecem teoria musical. Não são atores de profissão, mas atuam nos seus espaços sociais: seus corpos evoluem na modulação da voz para dar conta de narrar o que viram e ouviram. Suas vozes entoam canções majestosamente, que funcionam como um poder encantatório para o ouvinte atento. Ao narrar os eventos fantásticos, ao cantar canções e toadas, ao dançar no terreiro, eles estão sendo performers sim, e sua atuação é deliberadamente uma parceria entre a palavra que quer ser dita sobre os fenômenos naturais e sociais e o desejo do ator em ser portador dessa palavra. Atuar aí significa, portanto, desempenhar o papel de transmissor de um legado cultural do qual são detentores. Os únicos momentos em que a performance é preparada, ensaiada e tem um local específico e um momento para realizar-se é no rito da Mina (o terreiro de culto) e no auto do boi (o terreiro da rua). Aí, sim, a indumentária, os instrumentos acessórios, a ornamentação dos espaços, acontecem tal qual um espetáculo teatral, ainda que com finalidades completamente distintas. A dinâmica da análise das performances só pode ser possível neste trabalho com o auxílio dos multimeios, da tecnologia, que captura o corpo e a voz e tornam o instante objeto
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mais palpável. Aquilo que era efêmero, a apresentação e a fala, garante sua permanência na gravação, ainda que a edição contribua para que o produto final não seja o que foi o evento, ainda que o espectador-leitor não tenha a mesma recepção que o espectador in loco, a obra existe para ser apreciada inúmeras vezes. O termo performance, enfim, encaixa-se perfeitamente ao meio midiático. Mas a ideia da autoridade aqui fica completamente comprometida, se tivermos nossos olhos voltados para a velha comparação com o texto escrito onde autor, produtor e leitor têm papéis bem definidos e espaços delimitados. No meu trabalho, apresento as performances me utilizando das gravações coletadas por mim e por outros. As imagens e os áudios foram editados para proceder a uma limpeza de ruídos na sonoridade e nas cores ou para acrescentá-los. Isso por si só já evidencia uma construção. Há todo um projeto de como organizar a sequência de falas e cantos, bem como a apresentação das paisagens. Ou seja, 6 horas de fitas de vídeo, mais 3 horas de gravação de áudio culminam em no máximo 30 minutos de um documentário e 1 hora de DVD para as entrevistas isoladas. Quem é autor? Quem é narrador? Quem é intérprete? Quem é leitor? Não existe fronteira para a autoridade no tempo da performance. Portanto, prefiro dizer que minha leitura da performance dos sebastianos é também uma performance. Quando analiso os cantos, doutrinas e relatos a partir do CD da dupla Paulo & Baiano (2000), resultante de uma remixagem e remasterização de um documentário de 1978, por exemplo, assumo meu papel de leitor-ouvinte, insiro no meu texto a impressão de minha audição, como se eu estivesse em transe proporcionado pela manipulação das gravações da dupla, ao inserir diversas sonoridades que não estavam presentes no original. Quando analiso as imagens e gravações que eu próprio fiz, meu papel não é mais daquele espectador que esteve no local no momento da gravação, mas de um outro, que depois de editar o material, passa a se ocupar de nuances que passaram despercebidas no momento da gravação. Um olhar, a posição da boca, um gesto, uma modulação na voz, tudo agora pode
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evocar significado, pois assume o status de significância. Mas eu mesmo não estou conduzindo a meu modo o leitor? Não ofereço o caminho, sem deixar que o leitor siga sozinho? Não sou eu que insisto em dizer coisas para fazer com que o outro veja o que talvez não existe por si só? Pois bem, sendo performance uma palavra de múltiplos sentidos, usada por todas as linguagens e ainda cheia de incompreensões, preferi ancorar meus estudos na imagem. A fotografia captura o instante e o paralisa, enquanto o vídeo captura momentos numa sequência. Para entender a voz corporificada entoando o mito, uso o recurso da captura dos quadros do vídeo, a fim de que um gesto, um olhar, um relance no corpo do narrador seja evidenciado. Para isso, tive que rever pausadamente todas as fitas e capturei apenas os quadros cuja atuação do narrador evocasse algo do dizer que merecia apresentar. Estabeleci as sequências performáticas onde apresento algumas fotos-capturas para que o leitor possa perceber o gesto, as ênfases, os mecanismos de persuasão do narrador. Além das letras e das transcrições dos relatos estarem no corpo da tese e no dossiê ao final, a concepção do DVD contendo o documentário breve, a seleção de entrevistas e o CD com as canções, ajudam o leitor a penetrar nesse mundo da performance poética. São tentativas que ofereço, além do texto teórico. A tese, portanto, é um conjunto de linguagens e não poderia ser diferente. Vamos, pois, mudar de rota. Que venham a história, o mito e a poética sebastiânica.
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NOTAS 1
Mestrado em Teorias da Literatura, realizado na Universidade Federal Fluminense, 2003-2005, título da dissertação: “Uma estética da oralidade: problemática da poética oral”. Nesse estudo investiguei pesquisas relevantes sobre a análise da poesia oral, evidenciando a problemática da ausência de uma estética relativa à palavra contada e cantada. Procurei fazer um elenco de problemas comuns à metodologia de uma poesia oral, a saber: a tensão entre oralidade e cultura escrita, o equívoco de se tomar a palavra oral sob o modelo da escrita, bem como sua análise usando os mesmos critérios. Também analisei aí a natureza do poético a partir da noção de uma poesia do ingênuo. Outro problema que apontei na dissertação foi a necessidade de uma reeducação do ponto de vista teórico para ler/ouvir uma poesia oral. Investiguei também de que maneira, no século XX, houve um processo de assimilação ou retorno da palavra oral, quer cantada ou falada, nos estudos acadêmicos, as posições teóricas relevantes para os estudos da oralidade em culturas modernas, apesar de tais estudos enfocarem comunidades orais primárias da Antiguidade, sobretudo a cultura greco-romana. No que se refere ao Brasil, ainda que brevemente, apresentei um histórico do interesse pela palavra oral no Brasil, situando meu percurso entre a segunda metade do século XIX, com os estudos de literatura oral e folclore e o final do século XX, com as tendências dos estudos acadêmicos da atualidade, inserindo aí a noção de performance. Desse modo, minha tese é herdeira da teoria que estudei e problematizei durante o mestrado. Se agora talvez eu não enfatize muito as noções de oralidade e performance, é porque não quero incorrer novamente em teorizar a teoria e deixar de lado o percurso, que constitui o sebastianismo, os narradores, as ilhas sebastiânicas, o discurso, os eventos, as nuances do rito e as fulgurações do mito. Se devo muito às pesquisas para o mestrado, esclareço que mais me interessa o percurso da poesia oral, vê-la narrando o mito, no corpo dos falantes, tal como tento apresentar aqui. 2
O próprio termo literatura pressupõe letra, vem de littera, portanto pensar uma literatura oral seria algo como definir que essa produção constitui uma espécie de transcrição do oral para moldes escritos. 3
No Brasil, o projeto romântico da formação de uma identidade nacional vai investigar as fontes orais. Inspirados pelas ideias dos pré-românticos e dos românticos alemães, que buscaram no povo o modelo natural para o cidadão, os brasileiros foram buscar no índio o modelo para o brasileiro legítimo. Na poesia de Gonçalves Dias, por exemplo, a voz e o corpo do índio ressoam na métrica, no ritmo que nos remetem ao gestual performático da dança. Essa primeira investida na cultura popular, também pode ser vista no modelo simples e musical dos poemas inspirados no romanceiro português: as trovas, xácaras e canções que foram transplantadas para cá. A partir da segunda metade do século XIX, no entanto, são esboçados os primeiros estudos sobre a poesia tradicional no Brasil. E é o maranhense Celso de Magalhães que na década de 1870 se debruça sobre a importância da valorização da poesia oral, quando publica uma série de dez artigos no jornal O trabalho, do Recife, e O Domingo, no Maranhão. Trazendo uma variada coletânea de produções orais (poesia popular, lendas, danças, festas, cantigas e trovas do romanceiro ultramarino), Celso de Magalhães se interessa por comparar as versões colhidas sobretudo em Pernambuco, na Bahia e no Maranhão com a tradição portuguesa. Esses estudos, influenciados pelas ideias naturalistas, acabam por depreciar a produção oral brasileira, observada apenas como cópia deformada da tradição ibérica. O que na verdade Celso pretendia era confrontar as versões coletadas a fim de, por uma “limpeza”, se chegar ao original oral europeu. Mas é com Sílvio Romero que, oficialmente, as pesquisas sobre o oral são divulgadas no Brasil. Em 1888 publicou o livro Estudos sobre a poesia popular no Brasil , resultado de coletânea de seus artigos publicados em jornais de Recife e do Rio de Janeiro. A valorização do mestiço em seus estudos parte do pressuposto de que seria este o genuinamente nacional, visto que resultava das três raças formadoras do povo brasileiro. Sílvio Romero critica a maneira como os românticos entendiam a poesia popular, aquilo que o povo canta, e propõe que deve ser poesia popular sobretudo aquilo que o povo produz, e seus representantes seriam encontrados nas populações rurais e incultas. Nesse caso, Sílvio Romero parte da noção do termo Naturdichtung , proposto pelos irmãos Grimm, cujo significado se traduz e se entende que a poesia da natureza nasce da gente inculta. A noção de literatura oral, como vemos, estev e sempre ligada ao povo, termo amorfo e geralmente tido como inculto, não-letrado. No início do século XX, Mário de Andrade toma a palavra falada e cantada como objeto de atenção e investigação. Sem dúvida, esse interesse pela oralidade norteia a produção da poesia de vanguarda do modernismo brasileiro, abrindo, inclusive, caminhos para a valorização dos diversos falares propostos nos romances regionalistas. No intuito de apresentar um panorama identitário oral do brasileiro, Mário de Andrade se volta à pesquisa etnográfica, e viaja pelo país fazendo coleta, gravando e anotando musicalmente as composições. Esse interesse se acentua de tal maneira que chegou a formular o projeto à criação de uma Gramatiquinha da Língua Brasileira, que não foi concluído. O material das coletas possibilitou a criação da Discoteca Pública Municipal de São Paulo, na década de 1930, início do que seria o Museu da Palavra. Também nas primeiras décadas do século XX, surge o trabalho de Câmara Cascudo,
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que assume o termo “literatura oral”, segundo o qual, criado por Paul Sèbillot para designar tanto uma produção puramente oral como aquela herdeira do oral, assumidamente de caráter popular. É folclórico, segundo o pesquisador, toda produção que, sendo antiga, ganha anonimato, persiste no tempo e está pautada na oralidade. Ele reconhece o caráter de mobilidade e variação de um texto oral e a importância de se levar em consideração o caráter dessa movência, o que possibilitaria ver o universal no local. 4
É curioso observar a força do mito nas descobertas arqueológicas. Urnas funerárias, vasos, túmulos e tumbas, câmaras mortuárias embora estejam permeados da lembrança da morte, é à vida que eles se direcionam nas inscrições, os alto e baixo-relevos, as manifestações da arte, o alfabeto, o livro dos mortos. Quanta vida nos foi oferecida pela morte. É menos o corpo que ali está e mais a memória coletiva que se oferece para o futuro. 5
No entanto, chegamos ao terceiro milênio descrendo inexoravelmente da verdade histórica. As verdades, plurais, se inserem cada vez mais nas intenções das narrativas e já não há verdade singularizada e singularizante. Nunca houve. A autonomia da filosofia perante o mito não se sustentou, porque de fato a racionalidade não conseguiu abarcar a verdade com o recurso do irracional e a-lógico. 6
Freitag estuda a megalópole como o mito que engole outros mitos, as personagens dos romances estudados. Nesse caso, a cidade não gera personagens míticos novos, mas devora os existentes. 7
Tento fazer entender aqui que não é meu objetivo trabalhar a noção do que é poesia ou do que ela não é, ou ainda, teorizar os limites da estética, ou ainda comparar a poesia oral com aquela produzida nas culturas arcaicas e primitivas. Esse procedimento culminaria nas dicotomias e embates que, desde a segunda metade do século XIX vêm se estendendo e parecem ter servido apenas para ratificar o privilégio do escrito sobre o oral. Tomo como suporte teórico o capítulo “O jogo e a Poesia”, de Huizinga, em Homo Ludens, que apresenta outra compreensão da poesia, a partir do encantamento, do sonho que ela é capaz de despertar, e por isso as civilizações antigas precisavam se fortalecer de poesia para o enfrentamento do mundo complexo, de difícil explicação. Enquanto as religiões, os estudos linguísticos, a filosofia e tantas doutrinas tentam entender o mundo, os antigos viam na poesia, se não a explicação da vida, mas uma outra maneira de se encher de vida. Huizinga faz uma advertência: “A primeira coisa que é preciso fazer para ter acesso a essa com preensão é rejeitar a ideia de que a poesia possui apenas uma função estética ou só pode ser explicada através da estética. Em qualquer civilização viva e florescente, sobretudo nas culturas arcaicas, a poesia desempenha uma função vital que é social e litúrgica ao mesmo tempo. Toda a poesia da antiguidade é simultaneamente ritual, divertimento, arte, invenção de enigmas, doutrina, persuasão, feitiçaria, adivinhação, profecia e competição” (2001, p. 134). 8
Basta citar no caso do Brasil, o movimento tropicalista em que as canções dos novos baianos, por exemplo, vão dialogar com os parangolés de Helio Oiticica, que dialogam com as trabalhos sinestésicos e as superfícies moduladas da Lygia Klarc, que dialogam, mais tarde, com o movimento neoconcretismo de Pignatari, Ferreira Gullar, o movimento da poesia declamada na rua, com a Nuvem Cigana, etc. 9
A palavra consta do dicionário Aurélio desde 1975, como “atuação”, e do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, edição 1999, mesmo com a abreviatura inglesa. É mais recente seu uso na área comercial e financeiro com o sentido de desempenho.
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ROTA II A HISTÓRIA VIRA MITO COM OS FIOS DA SAUDADE E A TESSITURA DA ESPERANÇA
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2. O MITO DA SAUDADE: DO SONHO DO IMPÉRIO AO IMPÉRIO DO SONHO
Na verdade, não temos saudades, é a saudade que nos tem, que faz de nós o seu objeto. Imersos nela, tornamo-nos outros. Todo o nosso ser ancorado no presente fica, de súbito, ausente. (Eduardo Lourenço, Mitologia da Saudade, p. 32)
Esta reflexão sobre a saudade tem sua razão de ser. Somos todos herdeiros de uma saudade lusitana ou lusófona. Saudade que, de tão alimentada, fundou e sustenta muitos mitos. A própria noção de sentidos múltiplos concentrados num único significante, que nos orgulhamos de dizer ser originalidade portuguesa, fez de tal palavra o seu próprio mito. O grande mito da nação portuguesa, que justifica não um saudosismo histórico, mas cultural, é o sebastianismo1. Toda saudade fortifica um desejo porque já traz na sua essência um querer. Toda saudade carrega desejo porque está cheia de ausências, e isso coopera na construção de um ideal de mundo. Quando, porém, o ausente se torna presença, só resta ao desejo evanescer. Toda saudade nutre-se de uma espera, paciente ou apressada, silenciosa ou ruidosa, que impulsiona ou paralisa o ser saudoso. Mas do que se sente saudade? Que motivo seria tão importante a ponto de sua ausência suscitar um embate na vida de outrem? A nação portuguesa fundou sua identidade e moldou sua subjetividade no anseio, no desejo e na aventura. Que mais podemos pensar de um povo cujo nome e língua foram originados a partir de um vocábulo que representa partida e chegada? Porto, Portucale, Portugal, língua portuguesa: esses nomes trazem na sua raiz a premissa do ponto de partida, porto de passagem, despedida. Quando alguém parte, tudo é espera, anseio e saudade. Mesmo
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quem partiu vive o tempo da espera. Toda a história portuguesa aponta para o sonho de grandeza. Mas como um território acossado entre potências do Velho Continente e o mar desconhecido pode imaginar-se grandiosa? A resposta estava a ocidente, no finis terrae: as feras e monstros do Mar Tenebroso precisavam ser domados para que fosse concretizado o sonho de dominar a terra. Grande aventura só podia ser realizada por sonhos grandes. Esse destemor com que os portugueses se lançaram no abismo do conhecimento do século XVI para afrontar as águas, para além das conjecturas mercantilistas, só foi possível por causa de uma coragem no mínimo suicida. E talvez após a época das grandes navegações, quando os cinco continentes já abrigavam as colônias portuguesas, o sonho de grandeza só conseguiu ser mais sublimado ainda: “tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Esse verso de Pessoa contém o sentimento e o sentido do que é ser português, de corpo e alma. Ser grande no pequeno. A aventura imperialista e colonizadora alcançou o status de um poema épico, o desejo de fazer brilhar os raios do império nos confins do mundo. O povo português se orgulha de ter feito a sua Odisseia, tão bem documentada nos Lusíadas. Imprimiu-se na literatura a aventura histórica para que fosse perpetuado o sonho heroico. Sentir saudade significa comungar de um legado cultural e linguístico cujas matrizes se assentaram num desejo uno: ser potência. Mas, uma vez que afirmar “eu posso” e “eu quero” apenas acena para a possibilidade, a potência também fundamenta o não-poder. Não houve outro modo de fazer acontecer esse desejo senão pelo imaginário. As aventuras, a coragem e o sonho duradouro de grandeza serviram de tábua de sustentação sempre que a nação portuguesa esbarrou na impossibilidade e incógnita. Não há impossível para o imaginário. Ele se nutre justamente de sonhos, ainda que loucos; dos receios, ainda que covardes; do obscuro, ainda que alienante. O imaginário se nutre de todos os anseios e provações próprios do homem.
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A história de um rei que viveu a realidade de um sonho que pretendia ser duradouro, mas teve a eternidade de um sopro, parece ser enredo mais para o universo literário que histórico. E de fato, o que ficou de Dom Sebastião foi o personagem idealizado pelo sonho da nação anterior a ele e modelado pela mesma nação, após sua morte. O Sebastião homem, quase sempre apontado nas crônicas como um jovem impossibilitado de governar um povo, extremamente egocêntrico e intransigente, desinteressado por governar, procurando um motivo qualquer para promover a guerra, não pode receber as insígnias de herói. No entanto, é justamente essa louca e inverossímil humanidade o trunfo para o nascimento do Sebastião mítico. Nessas fraquezas, ele reúne forças que o tornam apto a ser louvado à semelhança de uma divindade ou herói grego (se pensarmos exatamente na concepção grega das divindades com todas as fraquezas humanas). O desejo de enaltecer a nação, alargando domínios, o desejo de vingança em nome de uma cristandade que o elevaria a alcunha de guerreiro de Cristo, o desejo de provar para si mesmo que o rei fraco podia ser herói; enfim, a soma de todos esses desejos selou o destino do Rei Sebastião e de Portugal. A ideia mítica de uma nação sonhadora, esmiuçada pelo pensador português Eduardo Lourenço, ajuda nossa tentativa de saber onde a História deixou de ser História e passou a responder como mito, e o que isso significou para a lusitanidade. O pensador tem se dedicado a expor profundamente as questões ligadas ao saudosismo português, que é, na verdade, de ordem plural. Além de fazer uma arqueologia desse sentimento e da própria ideia que o português tem de si, o pensador põe no divã histórico o destino da nação portuguesa, ancorada na tentativa de se estar sempre além, a procura de não sei o quê: Portugal, imerso com doçura no mundo, natural e sobrenaturalmente maravilhoso, converteu-se em ilha-saudade. Um lugar sem exterior onde lhe fosse impossível distinguir a realidade do sonho, um porto onde não se sai, como Ulisses, para defrontar os monstros e a traição dos elementos - mesmo se nenhum povo os afrontou com maior afoiteza -, mas para tentar recuar até os limites o momento de encontro consigo, imposto pelo outro, o verdadeiramente outro, aquele que não nos vê como nós nos vemos: cavaleiros do Graal adormecidos, mas de pé, imóveis, no coração da
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realidade (LOURENÇO, 1999, p. 14).
O ensaísta percorre densamente, e sem pretensões sociológicas ou históricas, o seu questionamento, desvendando o labirinto da saudade, ou uma mitologia baseada na saudade, desde a criação do sonho português, com as grandes navegações, amparados pela imagem de um reino cristão, passando pela construção de uma imagem de nação heroica (de Os Lusíadas de Camões a Mensagem de Pessoa), um processo de regeneração simbólica pelo literário, culminando no isolamento e noção de fragilidade e pequenez em relação à Europa. Esse itinerário feito por Lourenço percorre também o imaginário messiânico que o povo português tomou para si com a construção coletiva do sebastianismo. Tudo isso conduz para a afirmação de que “com a saudade, não recuperamos apenas o passado como paraíso; inventamo -lo” (LOURENÇO, 1999, p. 14). “Ninguém morre no país da Saudade. Como nos sonhos” (LOURENÇO, 1999, p. 15). Tudo vira matéria do invisível, apelo do sobrenatural. A própria morte ganha seu ser mitificado e já não mete medo. Na ilha-saudade, o tempo não é senhor de todos da mesma forma, mas é apenas avanço, signo para não-estagnação. É preciso partir, mesmo que seja por caminhos imaginários. Os brasileiros herdamos de Portugal essa saudade mitificada e mitificante de um império que sequer existiu. Foi-nos legada essa saudade que mitifica tudo a sua volta (natureza, homens, pensamentos e atitudes) e promove o arrebatamento para a eternidade, a fim de que suportemos heroicamente as ausências: “Sob outros nomes ou sem nomes, a saudade é universal não apenas como desejo de eternidade, mas como sensação e sentimento vividos de eternidade. Ela brilha sozinha no coração de todas as ausências” (LOURENÇO, 1999 , p. 15). E eis que estamos imersos no imaginário de um rei que nasceu para ser símbolo de uma ausência que insiste em ser presença. Sim, porque o sebastianismo não é obra de D.
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Sebastião, mas surgiu muito antes, quando Portugal teve seu nome instituído sob o signo da cruz, palavra-selo. D. Sebastião torna-se mito antes mesmo de nascer, quando fora desejado ardentemente e aclamado salvador. O destino parecia estar votado a que se cumprisse a criação do mito: a morte prematura do pai, D. João, e o nascimento do rei justamente no dia do mártir São Sebastião sugeriam o vaticínio de um novo mártir do império. Conspiração de quem? Do destino? Alcácer Quibir enterra o desejo de potência de um povo, enquanto faz brotar a saudade daquilo que nem chegou a ser; uma saudade que, ao invés de apontar um passado, projeta-se para a frente, mostrando o futuro. As areias moventes do deserto, modeladas ao prazer do vento e tão poderosas na sua mansidão, talvez anunciaram ao português a instauração de um tempo de advento que perdura até nossos dias e do qual somos todos herdeiros, ex-colonizadores e ex-colonizados: Quem desaparecera no areal não era um adolescente imaturo, vítima de sonhos mal sonhados. Era um rei frágil de um reino frágil que a sua morte punha à beira da inexistência. O ritual do poder já interiorizara com força suficiente a ideia de que um rei morre, mas não morre o rei sem que a sua morte seja fim do reino. E do reino ninguém queria nem podia querer o fim (LOURENÇO, 1999, p. 46).
O sebastianismo que vigora no Maranhão evoca a crença num reino, numa promessa, muito além de nacionalismos, querelas políticas, temporalidades. O rei Sebastião encoberto naquelas ilhas maranhenses não deseja outra coisa senão o estabelecimento da liberdade, a edificação de um reino em que a última coisa que o povo quer é o governo de um rei. O sebastianismo evoca a universalidade e não a salvação de Portugal, apresenta-se como um fenômeno cultural sem fronteiras, prefigurando o imagin ário da “realeza universal” (LOURENÇO, 1999, p. 51). E será mesmo que a figura que perece nas areias de Alcácer Quibir seria a mesma figura a cobrir-se nos alvos lençóis de areia do Maranhão? O Dom Sebastião dera lugar ao rei Sebastião? Quando vivido além de um desejo histórico e político, o sebastianismo ganha a
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dimensão universal do homem em busca de si mesmo, confrontando suas fraquezas e forças, lutando com seus demônios para alcançar seus deuses, invocando sua memória para dar conta de algo mais além do real, o que poderia ser somente experienciado pela fantasia, tão necessária, ganha a dimensão de uma experiência numinosa do majestoso. Quando nos damos conta de que não somos o que a razão nos diz ser, mas o que fazemos e até mesmo o que deveríamos e queríamos ser, nos aproximamos mais profundamente do mistério evocado pela saudade lusitana, agora de caráter mais universal, que os poetas lusitanos tornaram sublime no seu canto, os cronistas sebastiânicos se esforçaram por apresentar e a Igreja quis severamente negar. Lourenço sintetiza esse apego ao sebastianismo como aquilo que começou com o sonho de um império, culminando num império do sonho, por isso mesmo coletivo: Singular inversão e singular constância de um mito: de objeto de mitificação coletiva, d. Sebastião volve-se objeto de apropriação coletiva e, ao mesmo tempo, de absoluta impessoalidade. O Portugal-D.Sebastião de Pessoa é todo-o-mundo-e-ninguém, como ele, Pessoa-d.Sebastião, é ninguém-e-todomundo, um e outro a „eterna criança que há de vir‟, aquele que morre como particularidade nacional ou pessoal, para ser tudo em todos, exemplo de um mundo e de uma personalidade sem limites nem fim (LOURENÇO, 1999, p. 54).
É esta saudade o sentimento que os portugueses levaram com suas conquistas e doaram às nações lusófonas. Somos todos culturalmente herdeiros desse sentimento. O que nos une e o que nos separa deve passar necessariamente pela saudade daquilo que nem fomos, nem somos e talvez nem cheguemos a ser. Mas tudo isso evoca uma esperança. Quem tem saudade vive de uma espera, já se disse. Espera-se Deus, o outro, os rumos, a História... O mundo lusófono tem um jeito ímpar de construir tramas com os fios da saudade e a tessitura da esperança: é a literatura a maior herdeira desse destino.
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2.1 SOB O SIGNO DA CRUZ: PAIXÃO, MORTE E RESSURREIÇÃO. DE QUEM? 2
LXVIII Forte nome He Portugal Um nome tão excellente, He Rei do cabo poente, Sobre todos principal. Não se acha vosso igual Rei de tal merecimento: Naõ se acha, segun sento, Do Poente ao Oriental. LXIX Portugal He nome inteiro, Nome de macho, se queres: Os outros Reinos mulheres, Como ferro sem azeiro; E senão olha primeiro, Portugal tem a fronteira, Todos mudão a carreira Com medo do seu rafeiro. (Gonçalo Annes Bandarra, Barcelona, 1809)3
Portugal, nome de um destino. O nome traz o nume, apresenta o ser nomeado à existência, não sendo portanto mera representação. Foi em 1179 que Portugal recebeu o reconhecimento como país independente, numa bula papal intitulada Manifestis Probatum. O responsável por essa façanha seria Afonso I, mais conhecido como D. Afonso Henriques (1109-1185), que lutou pela autonomia do Condado Portucale contra o Reino de Leão. “O Conquistador”, como ficou conhecido, expulsa os mouros da Lusitânia, em sucessivas conquistas, chegando a receber respeito dos próprios muçulmanos, que o denominavam El Bortykali, (O Português). O mais famoso combate se deu em 1139, ao sul de Portugal, a Batalha de Ourique contra o domínio mouro. Com esta vitória, D. Afonso se autoproclama rei de Portugal. Esta e outras batalhas serão o orgulho dos portugueses e temas recorrentes do seu imaginário poético, como o canto terceiro de Os Lusíadas4, que apresenta nas estrofes de 42 a 54 a narrativa dos feitos de D. Afonso na batalha de Ourique:
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Mas já o Príncipe Afonso aparelhava O Lusitano exército ditoso, Contra o Mouro que as terras habitava D'além do claro Tejo deleitoso; Já no campo de Ourique se assentava O arraial soberbo e belicoso, Defronte do inimigo Sarraceno, Posto que em força e gente tão pequeno. [...] "Cinco Reis Mouros são os inimigos, Dos quais o principal Ismar se chama; Todos exprimentados nos perigos Da guerra, onde se alcança a ilustre fama. Seguem guerreiras damas seus amigos, Imitando a formosa e forte Dama, De quem tanto os Troianos se ajudaram, E as que o Termodonte já gostaram. [...] "Cabeças pelo campo vão saltando Braços, pernas, sem dono e sem sentido; E doutros as entranhas palpitando, Pálida a cor, o gesto amortecido. Já perde o campo o exército nefando; Correm rios de sangue desparzido, Com que também do campo a cor se perde, Tornado carmesi de branco e verde. [...] [52] "E nestes cinco escudos pinta os trinta Dinheiros por que Deus fora vendido, Escrevendo a memória em vária tinta, Daquele de quem foi favorecido. Em cada um dos cinco, cinco pinta, Porque assim fica o número cumprido, Contando duas vezes o do meio, Dos cinco azuis, que em cruz pintando veio. (CAMÕES, 1980, p. 81-84)
A estrofe 52 explica o motivo dos cinco escudos na bandeira. Cinco escudos contendo onze pontos brancos cada, se referem à lenda que menciona uma visão que D. Afonso teve durante o cerco de Ourique. Enquanto rezava, o rei teria visto Jesus crucificado. Ao ganhar a batalha, acrescentou à bandeira do Condado Portucalense, que era uma cruz azul sobre fundo
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branco, os besantes brancos (dinheiros) em agradecimento ao milagre. Toda a simbologia da fundação de Portugal remete à cruz. Mas nada tem um sentido tão profundo do poder do Cristianismo sobre os alicerces da nação portuguesa como o nomesímbolo de Portugal que aparece no documento de fundação da nação 5.
Figura 2. Detalhe do documento em que aparece pela primeira vez a palavra-sinal "Portugal", 1129.
Assim, sob a égide da cruz uma nação é proclamada. Sob a mesma cruz as dinastias estabelecem e ampliam conquistas. A cruz ao lado da espada, fé e guerra, guerra santa a favor do sonho alto de servir a um Cristo em nome de uma igreja. Nação-vassala. Não é à toa que o jovem Sebastião formará sua identidade real cultivando sonhos incompatíveis com o Renascimento, sonhos loucamente medievalescos. 2.1.1 Kyr ie Eleison para o rei desejado.
[...] porque a previzão do que ha de ſ er he prerogativa eſ pecial ſ ó de Deos: agora o Povo attendia ao perigo preſ ente, e o mal que veyo ao depois eſ tava reſ ervado à ſ ciencia, e providencia Divina. Os primeyros, que fizeraõ preces publicas, pedindo a Deos alumiaſſe a Princeza D. Joanna forão os moradores da Villa de Santarem: ordenarão ſ uás Prociſsões; a primeyra a Noſſa Senhora do Monte; a ſ egunda a Saõ Domingos; a terceyra ao Santo Milagre, todas com Sermaõ, a aſſiſ tencia do Clero Secular, e Regular, e Confraria; e quando foy no Domingo I4 de Janeyro ſe fez huma Prociſſaõ geral de todo Povo da Villa, e ſ eu termo; de todo Clero, e Religioens [...] e nota a memoria Coetanea, que choveo todo dia. Imitaraõ a Santarem as mais Cidades, e Villa do Reyno; e Liſboa, alèm de outras preces antecedentes, mandou o Arcebiſpo, que toda a Cidade eſtiveſſe attenta ao final de hum ſino, que haviaõ de tocar na Sè, quando ſobrevieſſem à Princeza as dores do parto, e dado o ſinal acodiſſ em todos a
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qualquer hora de ſoſſe [...] (História Sebástica, 1735, Frei Manuel dos Santos, p. )6.
Por muitos séculos, Portugal foi ambicionado pela Espanha, que planejava uni-lo a Castela. Na falta de um rei, a Espanha tomaria para si a guarda de Portugal, destituindo o império e promovendo a unificação. Em 1521, Dom João III, filho de D. Manuel I, assume o trono português. Com as conquistas ultramarinas, Portugal é dono de um vasto império. Cabe ao novo rei manter e fortificar as colônias. No Brasil, são instituídas as capitanias donatárias, como forma de facilitar o povoamento. Mas, no norte da África, com os constantes ataques dos mouros, Portugal resolve abandonar importantes pontos colonizados em Marrocos, como as cidades Arzila, Aguz e Alcácer-Ceguer. Por ser extremamente religioso, D. João III recebeu a alcunha de “O piedoso”, o que culminou numa orientação do reino aos desígnios da Igreja, favorecendo, por exemplo, a introdução da Santa Inquisição em 1536, uma das decisões tomadas na Contrarreforma 7. Um rei sem herdeiro carrega sobre si uma grande maldição. D. João III não teve muita sorte com isso. Os nove filhos morreram, gerando no reino uma enorme preocupação. Em 1537, nasce João Manuel, que se torna herdeiro em 1539, quando morreram seus quatro irmão mais velhos. De saúde frágil, sofrendo de diabetes, foi cercado de cuidados e logo aos 14 anos (1552) casa-se com Joana de Hasburgo, da família real espanhola. O objetivo da união era a urgência de um herdeiro. Um ano depois, Dona Joana fica grávida. Em janeiro de 1554, pouco mais de duas semanas antes do nascimento do menino, morre D. João Manuel, aos 16 anos de idade, de diabetes do tipo I. O pânico toma conta do reino com a iminência de o herdeiro não nascer e o prenúncio tão odiado da união ibérica. É com preces, choros, lamentos e litanias que o sucessor de João III é esperado. Pelas ruas do reino o povo comenta a fatalidade que aflige a família real. Nas igrejas, vigílias rompem as
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noites. Procissões carregam as relíquias do santo mártir, São Sebastião, pedindo proteção à princesa na hora do parto. Todos os esforços são feitos para que o herdeiro da coroa nasça, até mesmo não revelar para Dona Joana de Hasburgo o falecimento do esposo.
2.1.2 Te Deum l audamu s para o rei cristão.
[..] postos em grande silencio, sem se ouvir rumor de tão grande multidão, pela attençaõ de sua esperança, sendo de dia, como huma voz cahida do ceo, appareceraõ nas janellas do paço fidalgos e donas, os quaes com palavras mal pronunciadas, interrompidas da alegria, denunciarão ao povo como tinhaõ principe. Tal foi o alvoroço e rumor de contemtamento subitamente nacido em toda aquella multidão, antes emmudecida pela prompta attençaõ, que rompendo com lagrimas d‟alegria o silencio forçado, não cessavaõ dar louvores ao Senhor por tão grande mercê. Desfeita d‟improviso aquella companhia, entes unida em hum só cuidado, discorria cada hum pelas ruas da cidade a dar novas aos absentes, e mandar cartas, e correos por todo o reino, com que alevantassem os animos caídos do povo com o contentamento do novo príncipe e herdeiro do reino de Portugal. A este tempo tornando a procissão pêra a Sée cantando as ladainhas, na rua dos escudeiros se publicou ser o príncipe nacido, onde logo mudando o tom e letra alevantarão te deum laudamus com muita alegria e com corações soltos da incerteza do sucesso em que todos hiaõ suspensos. (Frei Bernardo da Cruz (1541-1579), Chronica de ElRey D. Sebastião, 1837, p. 8-9)8
20 de janeiro. Enquanto o povo faz procissão e vigília, levando pelas ruas as relíquias de São Sebastião, eis que enfim nasce aquele que é o prometido, esperado ardentemente e que se configura como a salvação. Festas de júbilo e louvores ao rei nascido ecoam pela nação. O esperado, o Desejado, é mais do que promessa, é o sucessor do trono português, aquele que deveria, em nome da fé cristã, expandir os domínios do império para além das terras ultramarinas. Quanta responsabilidade repousa no berço do pequeno infante que, alheio aos louvores e ação de graças, descansa enquanto pode. Nascer no dia do santo mártir da igreja e receber seu nome seria predestinação? Amparado pela Igreja, o recém-nascido não sabe que além de ser cristianíssimo, lutará para ser obedientíssimo à fé do reino. Tudo se cumpriu
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como se a história estivesse conspirando passo a passo na construção do herói por quem ansiava a nação lusitana.
Figura 2. Cristóvão de Morais, O Rei D. Sebastião 1571, óleo sobre tela, 99 x 85cm, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, Portugal 9.
Logo após o nascimento, Dona Joana, filha da casa espanhola, fica sabendo da morte do marido e também que é obrigada a regressar para a Espanha a pedido do pai, que tenciona abdicar o trono espanhol em favor do filho, Felipe II. Em Portugal, é dona Catarina da Áustria, avó do menino, quem se torna regente de Portugal e tutora do futuro rei, sendo depois substituída pelo cardeal Henrique de Évora, tio-avô de Sebastião. Receber a alcunha de rei com apenas três anos de idade, demonstra a ansiedade dos portugueses na espera do seu soberano. Enquanto o cardeal representava as forças políticas portuguesas, a rainha dona Catarina era a forte influência espanhola no embate, uma ameaça castelhana. Crescer num
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ambiente familiar de disputas por domínios, em que intrigas e discórdias fazem de irmãos, tios e avós verdadeiros inimigos políticos, não deve ser muito fácil para a realeza. Em nome dessa soberania portuguesa, durante a menoridade de D. Sebastião, cessaram as expansões ultramarinas. O objetivo agora era assegurar a educação e condução do rei menino nos destinos do império. Uma educação jesuítica, diga-se de passagem. O menino Sebastião teve como formador o padre Luís Gonçalves da Câmara, que o encaminhava no ofício divino. Enquanto isso, seu aio, Dom Aleixo de Menezes, obstinava-se em seduzi-lo para o militarismo. Resultado: um cavaleiro do tipo medieval-cristão em busca de uma retomada da posse da Terra Prometida se fixou no imaginário do menino. Um templário de Cristo, zeloso e corajoso para o qual Portugal deveria ser o centro da cristandade. Eis o sonho de grandeza depositado no menino com a cruz e a espada. Em 1568, aos 14 anos de idade, D. Sebastião assume o reinado. Embora de frágil saúde e muito mimado, pouco se interessava pelo governo do império, incutido da ideia de ser um cavaleiro de Cristo e promover batalhas contra os mouros do norte da África. Nesse sentido, a educação dada pelo tutor cardeal só poderia mesmo conduzi-lo à loucura do sonho da expansão da fé. Basta observar que durante a regência os assuntos políticos do império se pautavam sobretudo na consolidação da expansão da Inquisição pelas colônias. A mesma cruz que fora gravada no nome de Portugal e tremulava nas bandeiras das naus portuguesas, também regia os caminhos do jovem monarca. As flechas apontando o solo que ladeiam o brasão do rei, e a cruz da ordem militar no alto do brasão, indicam que o soberano defende a cristandade, apoiando-se nela para promover seu sonho.
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Figura 3. O brasão de D. Sebastião contém o escudo das quinas, ladeado pelas flechas que fazem referência a São Sebastião. No alto, a cruz da Ordem militar e religiosa de Cristo, que tremulava nas naus portuguesas e era gravada no peito das armaduras militares. Em latim, o versículo 6 do salmo 44: “Tuas flechas agudas acertarão o coração dos inimigos do rei; a teus pés cairão os povos. ”
Um rei inexperiente, envolto por bajuladores, educado pelo tio cardeal, e sobrinho de um rei poderoso, Filipe II de Espanha. Confiança demasiada numa cabeça alucinada, teimosa e sedenta de guerra só podia culminar num infortúnio. Felipe II não aceitou compactuar com a guerra, e a promessa de oferecer uma de suas filhas como esposa a D. Sebastião foi adiada para depois da guerra. 2.1.3 Hoc est enim Cor pus meum : exéquias para um corpo ausente.
Aſſ im depois de andar por todo o campo, e particularmente por entre as fileiras dos Aventureios, chamando a ſ i os Capitaens, fidalgos, e Senhores lhes fez efta breve fall: Bem ʃ ey, amados, e leias Va ʃʃ allos que vo ʃʃ o valor naõ há mi ʃ ter lembrança, nem eu farey mais que dizervos o contentamento, que podeis ter com taõ boa occa ʃ iaõ pois hoje começais abrir as portas àquella taõ ju ʃ ta, e Santa empreza de todo o Mundo taõ encomendada, e
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ʃ u ʃ pirada de meus antece ʃʃ ores. Muy bem ʃ abeis os males, que recebe a Chri ʃ tandade cada hora de ʃ ta infiel terra, qua ʃ i dome ʃ tica inimiga, e bem ʃ e deixaõ ver os damnos, que ʃ e offerecem de novo com a proxima vi ʃ mbança da gente [...] Bem creyo que ʃ abeis, e todo o Mundo ʃ abe, que o zelo da Santa Fé Catholica, a nece ʃʃ aria prevençaõ ao fiel povo, a clemencia, que ʃ e deve aos afligidos, me obriga totalmente a ʃ eguir e ʃ ta empreza ʃ em a ʃ pirar a outra cousa; pelo que e ʃ pero em Deos ajudará minha tençaõ, e e ʃ tou muy ʃ eguro, que todos a ʃʃ im vireis aprovando o effeito della. Nem ʃ erá nece ʃʃ ario, oh Va ʃʃ allos fieis, trazer à memoria por quem fazeis a guerra, à gente que venceis, a Ley que profe ʃʃ ais, com cujo pre ʃ upp ʃ to já mais vos póde ʃ ucceder ʃ enaõ felicidade; pois de qualquer maneira os guerreiros de Chri ʃ to, quando tem fe ba ʃ tante, ʃ aõ Senhores do campo; e antes da vitoria já triunfaõ [...] (Discurso do rei Sebastião no campo de batalha, segundo a História Sebástica, 1735, Frei Manuel dos Santos, p. 404-405)10
4 de agosto de 1578. Uma batalha. Um dia para ser esquecido. Um dia para jamais cair no esquecimento. Três reis e uma mesma destinação: a morte. Somente o vencedor foi o deserto de Alcácer Quibir, no Marrocos. Uma nação perdia ali não só o seu rei, mas seu império. Essa experiência trágica para os portugueses culminou no seu exílio. Quando o corpo de um rei tomba numa batalha, tombam também os corpos dos seus exércitos, bem como o corpo soberano que se chama Império. É necessário juntar os fragmentos para entender por que o rei Sebastião carregou sobre seus frágeis ombros um peso muito maior do que poderia suportar. Apesar de muitos conselhos e pedidos para que não se metesse em confronto com os mouros, a loucura da guerra era mais forte no íntimo do rei. Leitor dos romances de cavalaria da Idade Média, guarnecido pela instrução eclesiástica, o jovem rei estava decidido a provar o gosto da aventura. Motivos e justificativas não lhe faltaram. Era preciso recuperar as praças do Norte da África perdidas no reinado do seu avô. Em 1576, o sultão Mulay Mohammed foi deposto por seu tio, o sultão Mulei Moluco. Uma vez que, para essa deposição, o sultão Moluco fora auxiliado pelos Otomanos, que eram uma ameaça para o comércio e a segurança portugueses, D. Sebastião decide apoiar Mulay na retomada de Marrocos, em troca da região de Arzila. Outros reis também foram convidados a participar da empreitada. A Itália, a
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Alemanha e Flandres enviaram soldados. Felipe II, rei de Espanha e tio de D. Sebastião, se absteve dessa perigosa empresa, advertindo o sobrinho diante da iminente sorte. O exército português foi convocado e, apesar de falta de preparo e inexperiência, o recrutamento contou com cerca de 15.000 combatentes.
Figura 4. Batalha de Alcácer Quibir. ANDRADE, Miguel Leitão de, 1553-1630., 2 grav. desdobr. : il. ; 4º (17 cm), Biblioteca Nacional de Lisboa.
O exército de Mulei Moluco era superior em número de soldados, em preparo e em conhecimento do terreno. O resultado da fome, do cansaço e despreparado do exército português foi a dizimação em massa na batalha de 4 de agosto de 1578, que durou cinco horas e ficou conhecida como a “Batalha dos três Reis”. Os três monarcas teriam perecido na guerra e os sobreviventes portugueses foram feitos prisioneiros e obrigados a professar a fé islâmica. Quem seria o culpado da derrocada? Ele, somente ele, o rei, que tem a palavra final e poderia cessar a guerra com um simples não. Mas em um “não” estaria a certeza do erro
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estratégico, a vergonha de fazer retroceder a palavra, o sentimento de impotência perante a lei dos homens e a lei de Deus. Um “não” de u m rei é a palavra mais difícil de ser lançada. No entanto, o culpado não estava ali para ser condenado e o povo tinha agora preocupações maiores do que apontar a culpa.
quiem para o rei mitificado. 2.1.4 Ré
[...] quem não crerá que está morto Sebastião? Assim o crêem os bárbaros, que já se retiram; assim o crê o tirano, que já está satisfeito; assim o choram os amigos, assim o lamenta a Igreja, assim o geme e suspira a cristandade; mas que importa que Sebastião esteja morto na opinião, se estava vivo na realidade? Isto é ser Sebastião, o Encoberto, porque encobriu a realidade da vida debaixo da opinião da morte: opinione mortuum, vivum repertum. [...]
Divino Sebastião encoberto, bem-aventurado na terra, e descoberto defensor que sempre fostes deste reino no céu, ponde lá de cima os olhos nele, e vede o que não poderá ver sem piedade quem está vendo a Deus: vereis pobrezas e misérias que se não remedeiam; vereis lágrimas e aflições que se não consolam; vereis fomes e cobiças que se não fartam; vereis ódios e desuniões que se não pacificam. Oh! como serão ditosos e remediados os pobres, se vós lhes acudirdes: Beati pauperes! - Oh! como serão ditosos e aliviados os aflitos, se vós os consolardes: Beati qui lugent ! - Oh! Como serão ditosos e satisfeitos os famintos, se vós os enriquecerdes: Beati qui nunc esuritis! - Oh! como serão contentes os odiados e desunidos, se vós os concordardes: Beati estis cum vos oderint homines! - Desta maneira, santo glorioso, por meio de vosso amparo conseguiremos a bem-aventurança encoberta desta vida, até que por meio da vossa intercessão alcancemos a bem aventurança descoberta da outra. Ad quam nos perducat , etc. (PADRE VIEIRA. Sermão de São Sebastião, pregado na igreja do mesmo Santo do Acupe, Bahia, 1634)
Com o desaparecimento do seu rei, Portugal não tinha outra saída senão aceitar o domínio espanhol. O lamento pela perda de autonomia leva embora o sonho de potência imperial a serviço da cristandade. Pior do que reconhecer a queda de um rei intransigente e frágil é ter de aceitar a humilhação de nação sem reino. Por todos os cantos do reino, murmúrios começam a surgir, juntamente com a notícia infame da morte do rei. Ele morreu? E o que fizeram do corpo? Não o encontraram? Como
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poderemos ainda pagar o alto preço de velar um corpo ausente? Rei morto, rei posto. Em 1580, após a morte do cardeal Dom Henrique, regente de Portugal, a Espanha se apossa de Portugal e de todas as suas colônias e o domínio só termina em 1640. Instituída a unificação com Castela, profetas populares aparecem para dizer que o rei não morrera, mas voltaria como o novo Cristo a instituir o Quinto Império. Quem começou a hastear a bandeira do messianismo não se sabe ao certo. Mas não foram poucos. Além disso, a história do rei desaparecido suscita no reino exilado o desejo de ser documentada; e aparecem os cronistas. Crônicas sebásticas tentam dar conta da vida e morte de D. Sebastião, o 16º rei de Portugal, à semelhança de um relato de paixão e morte, evangeliário cristão. Estava aí fundamentada a tentativa de narrar vida, morte e ressurreição de uma nação, agora simbolizada na figura do rei morto. Se, antes mesmo de nascer, o rei já fora agraciado com um epíteto, o Desejado, em vida, não foram poucas as qualificações. Depois da morte, ele receberia uma lista de codinomes que se assemelham a invocações de uma litania, uma ladainha. Para se ter ideia da dimensão dos epítetos 11 em inúmeras obras, segue um breve exemplo de codinomes dos textos do século XVI: Encoberto Desejado Jovem Rei Moço Rei Rei mancebo Cochillo de los paganos (1558) De felicíssima esperança (1556) Mui alto e poderoso Rei extremo entre os reis (1567) Rei glorioso (1568) Rei tão desejado De índole grandiosa (1570) Digno do sangue do seu avô Póstumo rapaz Segurança da nossa liberdade Maravilha fatal da nossa idade (1572) Animosíssimo príncipe da Lusitânia (1573) Rei montezinho Invictíssimo rei (1574)
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Perfeito parto de oiro de sua mãe Rei caído do céu Valoroso coração Rei moço (1580) Malheureux (1584) Infelice giovane (1585) Sfortunato príncipe Juvenis belligerandi (1586) Tenro moço belicoso (1588) Rei potente Coraggiosa e religiosa persona Esquivo moço (1590) Animoso rei (1594) penhor de todo nosso bem Forte rei Gram cavaleiro [...] (OLIVEIRA, 1990, p. 8-9)
Nesta lista de epítetos, só faltaria o refrão “Kyrie Eleison, Christie Eleison” para constituir uma verdadeira litania a uma fraca, mas engrandecida, criatura humana. De fato, os murmúrios sobre o retorno do rei dão conta de sua peregrinação a fim de expiar sua culpa. Penitência e expiação por sete anos. Essa condição é a maneira de o rei se redimir com seu povo para que sua volta seja favorável. À semelhança de Cristo, o rei doa seu corpo pelo reino. Corpo que congrega os corpos dos súditos, numa verdadeira comunhão. Mais tarde, um corpo foi entregue. Seria o corpo desnudo do rei português? Quatro anos depois da batalha, o mosteiro dos Jerônimos recebe o corpo do seu rei, numa cerimônia acompanhada de perto por Felipe II, que pretendia enterrar o mito junto com aquele suspeito corpo. O túmulo ganha uma inscrição em 1682 que contribui para o descarte da oficialização da morte do rei. O epitáfio descreve: Conditur hoc tumulo, si vera est fama, Sebastus Quem tulit in Libis mors properata plagis. Nec dicas falli regem qui viveree credit. Pro lege extincto mors quase vita fuit . 2 [grifo nosso]
“Si vera est fama”, “se o que se diz é verdade”. O “se” vira uma espécie de ponte 22
Sebastião está neste túmulo, se o que se diz é verdade Uma morte precoce o levou nas plagas africanas. Que não se tache de erro aquele que crê que o rei vive. Segundo a lei, a morte para o desaparecido foi igual à vida. (apud BERCÉ, 2003, p. 74)
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condicional para atestar o desaparecido. Portugal recebe um corpo, mas o rei já tinha sido mitificado e o corpo místico continuaria ausente. É preferível fazer a ausência presença do que ter uma presença que desonra. O epitáfio é claro na sua obscuridade cristã: vivo está todo aquele que acredita na ressurreição. Como cavaleiro de Cristo, Sebastião é glorificado com a promessa da ressurreição, ao mesmo tempo em que o texto parece evocar sua presença encoberta. O “se” evoca a lenda, dá estatuto a ela e a institui textualmente. É nesse período que surgem os movimentos messiânicos, sobretudo fazendo uma releitura das trovas de Bandarra, o famoso poeta popular da época de D. João III que vaticinou a vinda do Encoberto. Seria o rei D. Sebastião o tal Encoberto profetizado por Bandarra, ao cantar as glórias de Portugal e dar um prognóstico de seus males? O que dizer dos sonhos apresentados em sua poesia? O tempo é propício para qualquer crença, já que a humilhação do reino é insustentável. Daí que Bandarra não só é lido para testificar o retorno de D. Sebastião, mas, sobretudo, no intuito de apontar este possível novo Sebastião na figura de D. João IV. As trovas do sapateiro de Trancoso evidenciariam um possível profeta da restauração do reino. Surgem os relatos das visões com o rei Encoberto 12. Aparecem inúmeros impostores se autodenominando o novo Sebastião. Alguns pagaram sua audácia com a vida. A Inquisição julga, condena e tenta coibir as heresias. Muitos também resolveram criticar a cegueira daqueles que teimavam numa espera obstinada e absurda por aquele que não retornaria. Pela palavra dos adeptos da promessa ou dos críticos, D. Sebastião deu lugar a um movimento ora religioso, ora político, ora literário. O sebastianismo virou messianismo e não foi idealizado por uma minoria, mas se revelou como fruto coletivo, esforço de uma memória subjugada pela derrota dupla que Alcácer Quibir representou. Do clero ao povo, do letrado ao iletrado, toda a nação portuguesa estava envolvida, aceitando ou negando, na causa messiânica, a crença no messias davídico.
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Deixando os limites de Portugal, a crença na volta de D. Sebastião para estabelecer o Quinto Império ganha o alto mar e desembarca nas colônias. O Brasil é, pois, colonizado e povoado sob a memória trágica de Alcácer Quibir. A maior colônia portuguesa mal começara a ser explorada e já perdeu o seu rei. A ideologia da esperança, outrora defendida pelos poetas e cronistas portugueses, revestida de nostalgia e lembranças do passado glorioso, atravessa o oceano e, no nordeste brasileiro, transforma-se no mito distante do passado histórico português: Os longínquos habitantes do sertão nada têm a ver com a experiência vivida, depois rememorada, da derrota na África, da dominação estrangeira, da queda do reino junto com a da dinastia. O personagem de Sebastião familiar aos brasileiros perde então toda a substância histórica. Corresponde daí em diante a diversas imagens da lenda, as do rei verdadeiramente cristão, do cavaleiro que surgirá para vencer o Anticristo, ou do príncipe encantado oculto no oco de um rio (VALENSI, 1994, p. 165).
Além de expressar um vigor messiânico, os movimentos sebastianistas alcançaram no Brasil um viés político, revelando a insatisfação e insurgência popular ora contra o Império, ora contra a República. Foi assim em Pernambuco, com a tentativa da fundação da Cidade do Paraíso Terrestre, na Serra do Rodeador (1817-1820) e na Pedra Bonita (1836); na Bahia, com a Revolta de Canudos (1893-1897), e na fronteira entre o Paraná e Santa Catarina (19121916), com a Guerra do Contestado. Sem dúvida, a presença do Padre Antônio Vieira em Portugal e no Brasil, levando-se em conta as suas indas e vindas, bem como seu itinerário pelo nordeste (Bahia, Maranhão e Pará), vai contribuir para a propagação de uma ideia messiânico-sebástica, mas não necessariamente na figura de D. Sebastião. Sua leitura entusiástica das trovas do Bandarra e sua ligação com os judeus, cristãos-novos, vão fazer do padre Vieira um mensageiro do Quinto Império, ainda que não reconhecendo o retorno do Sebastião em carne e osso, mas a ideia de um restaurador na pessoa de D. João IV. Na linguagem cifrada e labiríntica do barroco, Vieira combate a escravidão enquanto faz um jogo conceptista em que Sebastião, o
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encoberto, parece ser o centro do sermão dedicado ao santo homônimo (ver fragmento que abre este item). Um jogo de concepções sebastiânicas à altura do orador. As polêmicas em que o padreVieira se envolveu não foram poucas, e todas convergem para questões de ordem políticas. Mas é principalmente uma carta destinada a um amigo padre em Portugal, datada de 29 de abril de 1659, escrita em São Luís do Maranhão, que instaura a polêmica e é usada no processo promovido pelo Santo Ofício, acusando o padre de praticar a heresia. O que claramente Vieira apresenta é um silogismo a partir da leitura de Bandarra, em que há uma profecia sobre a ressurreição de um rei que, para Vieira, seria D. João IV. Ao padre André Fernandes, 29 de abril de 1659. Conta-me V.S.a prodígios do mundo, e esperanças de felicidades a Portugal: diz-me V. S.a que todos referem tudo à vinda de El-Rei D. Sebastião, de cuja vinda e vida tenho já dito a V.S.a o que sinto. Por fim ordena-me V. S.a que mande alguma clareza do que tantas vezes tenho repetido a V.S.a da futura ressurreição do nosso bom amo e senhor D. João o quarto. A matéria é muito larga, e não para se escrever tão de caminho como eu faço, numa canoa em que vou navegando ao rio das Amazonas, para mandar este papel noutra a alcançar o navio que está no maranhão de partida para Lisboa. Resumindo, pois, tudo a um silogismo fundamental, digo assim: O Bandarra é verdadeiro profeta; o Bandarra profetizou que El-Rei D. João o quarto há-de obrar muitas cousas que ainda não obrou, nem pode obrar senão ressuscitando: logo El-Rei D. João o quarto há-de ressuscitar. – Estas três proposições somente provarei, e me parece que bastarão para a maior clareza que V.S.a deseja. (VIEIRA, 2003, p. 200)
Se é difícil pontuar uma data em que o sebastianismo ganha corpo na história do Maranhão 13, pelo menos é possível dizer que a presença do padre Vieira em São Luís, a partir de 1652, talvez tenha divulgado à população maranhense as novas messiânicas da metrópole e isso tenha contribuído para um maior conhecimento da figura do rei Sebastião. O seu empenho na defesa do índio no Maranhão, que lhe valeu a expulsão do Estado com os coirmãos jesuítas em 1661, depois de tanta denúncia, pregada com veemência nos seus sermões. Se o império da mentira não fora tão universal no mundo, pudera-se suspeitar que nesta nossa ilha tinha a sua corte a mentira. Todas as terras,
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assim como tem particulares estrelas, que naturalmente predominam sobre elas, assim padecem também diferentes vícios, a que geralmente são sujeitas. Fingiram a este propósito os alemães uma galante fábula. Dizem que quando o diabo caiu do céu, que no ar se fez em pedaços, e que estes pedaços se espalharam em diversas províncias da Europa, onde ficaram os vícios que nelas reinam. [...] E, suposto que à Espanha lhe coube a cabeça, cuido eu que a parte dela que nos toca ao nosso Portugal é a língua, ao menos assim o entendem as nações estrangeiras que de mais perto nos tratam. Os vícios da língua são tantos, que fez Drexélio um abecedário inteiro e muito copioso deles. E se as letras deste abecedário se repartissem pelos estados de Portugal, que letra tocaria ao nosso Maranhão? Não há dúvida, que o M. M – Maranhão, M – murmurar, M – motejar, M – maldizer, M – malsinar, M – mexericar, e, sobretudo, M – mentir: mentir com as palavras, mentir com as obras, mentir com os pensamentos, que de todos e por todos os modos aqui se mente. Novelas e novelos, são as duas moedas correntes desta terra (10), mas tem uma diferença, que as novelas armam-se sobre nada e os novelos armam-se sobre muito para tudo ser moeda falsa. (Padre Vieira, Sermão da Quinta Dominga da Quaresma, 1654)
Um império legítimo é o que os colonos almejavam. A província do Maranhão, independente do restante do Brasil, era uma terra cheia de problemas, mal administrada, de difícil colonização, formada sobretudo por pobres do reino ou cristãos novos. Os poucos escravos vindos da África não davam conta do trabalho na lavoura e nos engenhos, e os jesuítas travavam uma luta para proibir a escravização do índio. Uma terra onde todos os males se encontravam e onde todos se conhecem, parece ansiar mais fortemente pela promessa de salvação terrena encarnada na ausência do rei Sebastião. Pobres e ricos do Estado do Maranhão e Grão-Pará apresentam todos os indícios para crer e assegurar a volta do Encoberto, para além do sentimento de saudade próprio dos portugueses. Assim, se os portugueses esperam ainda o rei nutrindo uma nostalgia do império, no Maranhão a espera é uma urgência para o alento dos males. Mas onde está a origem dos males? Quem é que Sebastião deve salvar: a elite escravagista, os pobres colonos ou os escravos? Sebastião vai ter que rever seus objetivos, inclusive terá também de rever seus valores religiosos e procurar seu verdadeiro inimigo, se quiser ser o rei dessa gente.
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NOTAS 1
O Sebastianismo constitui a crença no retorno de um salvador, um novo Messias, para livrar o povo das aflições e restituir a paz. Na forma messiânica, é muito anterior à própria figura de Dom Sebastião, tendo suas origens ainda nas privações sofridas pelos judeus em Portugal, migrados da Espanha. Um messianismo judaico que se fixa na península ibérica e vai ser reconfigurado conforme o tempo e a situação em que se encontra o reino. A fuga dos judeus para Portugal acontece no século XII, antes mesmo dos mouros invadirem o território. Quando Dom Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal, reconquista Santarém, aí já encontrou sinagoga, e as três religiões, catolicismo, islamismo e judaísmo, eram professadas. E aí vão viver de forma mais ou menos pacíficas, com privilégios ou segregados da população católica (embora pagando aviltados impostos), até os reinados de D. Manuel e D. João III, quando se instaura a Inquisição e por temor à ela, os processos de conversão forçada do judeus em cristãos-novos e a perseguição à prática reclusa do culto judaico (KAYSERLING, 2009; D‟AZEVEDO,1921). Esse messianismo de cunho profético vai ser difundido sobretudo pelas letras, como as trovas do Bandarra, e servirão a leituras variadas em épocas posteriores, dialogando perfeitamente com o sebastianismo insipiente, conforme aponta D‟Azevedo, em Evolução do Sebastianismo: A crença messiânica em um salvador, que há de vir remir a pátria e exaltá-la ao domínio universal, não é, como o septicismo da nossa época nos inclina a julgar, facto somenos, na história da nossa raça, que por espaço de quási três séculos a acariciou. Quimera foi esta que, em todo esse tempo, vemos avigorar-se em cada uma das crises da nacionalidade. O patriotismo sagrado é a origem dela. Surge em um período de aparente grandeza, quando já todavia a estrela fulgente de África e da índia entrara em declínio; afirma-se na catástrofe em que perdemos a autonomia; alenta-nos nas horas tristes da sujeição a Castela; triunfa com a independência; decresce em seguida na apatia reinante; e revive no templo da invasão francesa, com fé igual à que animava os crédulos espíritos dos anos subseqüentes ao desastre de Acácerquibir. Só depois esta ingênua crena se foi gastando, aos atritos da razão, sem que todavia de todo se desvanecesse a idea que a produziu (1918, 5-6). 2
Todos os subtítulos deste capítulo apresentam expressões latinas q ue fazem parte da liturgia católica. A história de D. Sebastião é apresentada à semelhança do rito cristão, numa alusão à celebração do novo Cristo, o Messias prometido, que a nação portuguesa professou após Alcácer Quibir. A primeira parte da missa tridentina ( anterior ao Concílio Vaticano II) apresenta o Kyrie Eleison (Senhor, ouvi-nos), ladainha de todos os santos, aqui justificando a espera do povo pelo nascimento do prometido. A segunda parte, Te Deum laudamos (louvamos o Senhor), representa o canto de Glória pelo parto do rei Desejado. O terceiro momento é o rito eucarístico, em que o Cristo é oferecido pelos pecados, na forma de pão e vinho. Hoc est enim Corpus meum, pois, são as palavras do Cristo na última ceia (Eis o meu corpo). Aqui o intuito foi aludir ao corpo do rei que se oferece pelo reino e as exéquias, celebração especial para defuntos. Por último, para lembrar a saudade do rei e dar conforto aos vivos, um canto de réquiem. 3
Os textos de abertura conservar-se-ão na ortografia da época, sendo traduzidos para o português atual quando houver necessidade. 4
Ao retornar do Oriente, Camões consegue apresentar em recital os originais de Os Lusíadas ao jovem rei Sebastião, então com 18 anos, que expede alvará em 24 de setembro de 1571 autorizando a publicação da obra. Também o rei concede ao soldado poeta um auxílio por um período de dez anos, como recompensa aos esforços empreendidos por Camões em nome de coroa. A publicação de Os Lusíadas ocorreria no ano seguinte, porém o auxílio prometido não foi totalmente cumprido e o poeta morreu na extrema miséria, um ano após a batalha de Alcácer Quibir. Cf. CAMÕES, Luiz Vaz de. Os Lusíadas. [Apresentação e notas de Ivan Teixeira] São Paulo: Ateliê Editorial, 1999, p. 29. Cf. VASCONCELOS, José Maria do Carmo de Sousa Botelho Mourão e, Morgado de Mateus. Prefácio. In: Camões, Luís de. Os Lusíadas. Paris: Firmin Dodot, 1847, p. 14. 5
A Monarquia Portuguesa - Reis e Rainhas na História de um Povo, Lisboa, Selecções do Reader's Digest, 1ª edição, abril de 1999. A palavra-signo é, inclusive, usada atualmente numa das moedas de cêntimos do euro português. 6
[...] porque a previsão do que há de ser é prerrogativa especial só de Deus: agora o Povo atendia ao perigo
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presente, e o mal que veio ao depois estava reservado à ciência, e providencia Divina. Os primeiros, que fizeram preces públicas, pedindo a Deus alumiasse a Princesa D. Joanna foram os moradores da Villa de Santarém: ordenaram suas Procissões; a primeira a Nossa Senhora do Monte; a segunda a São Domingos; a terceira ao Santo Milagre, todas com Sermão, a assistência do Clero Secular, e Regular, e Confraria; e quando foi no Domingo 14 de Janeiro se fez uma Procissão geral de todo Povo da Villa, e seu termo; de todo Clero, e Religiões [...] e nota a memória Coetanea, que choveu todo dia. Imitaram a Santarém as mais Cidades, e Vila do Reino; e Lisboa, além de outras preces antecedentes, mandou o Arcebispo, que toda a Cidade estivesse atenta ao final de um sino, que haviam de tocar na Sé, quando sobreviessem à Princesa as dores do parto, e dado o sinal acudissem todos a qualquer hora de fosse. 7
É importante dizer que a instauração da Inquisição foi, sobretudo, uma tentativa de impedir que os judeus de Portugal continuassem firmes na sua fé, já que o decreto que os obrigava a ser conversos (convertidos) ou expulsos do reino contribuíra apenas para que esses cristãos-novos permanecessem com suas práticas religiosas clandestinamente (D‟AZEVEDO, J. Lucio. Historia dos christãos novos portugueses. Livraria Clássica Editora: Lisboa, 1922). 8
Esta crônica, atribuída ao Frei Bernardo da Cruz, foi escrita após a morte do cardeal Henrique, tio-avô de Dom Sebastião, e permaneceu apenas em manuscrito até o final do século XVII, q uando então foi publicada. Acreditase que o seu verdadeiro autor era Antônio de Vaena, que vivera no Marrocos e conhecia muito bem a região, descrevendo-a com detalhes (VALENSI, 1994, p. 23). No texto não há encobrimento da morte do monarca, o cronista mostra como o corpo do rei foi exposto em estado de decomposição para os soldados sobreviventes, que se recusaram a velar tão grande tristeza. 9
No site do museu há a seguinte descrição da pintura: “Pose e porte real, esta representação de um „príncipe maneirista por excelência‟ (José-Augusto França) revela-nos a imagem de D. Sebastião que Cristóvão de Morais fixou em pintura, ao fazer o retrato de um filho para sua mãe, D. Joana de Áustria, recolhida em Madrid no Convento das Decalzas Reales. O rosto ainda imberbe coroa uma armadura de aparato, minuciosamente descrita em todas as partes que a compõem e cujos reflexos metálicos alumiam o registo sombrio geral. A mão esquerda segura o punho da espada, companheira insubstituível de um príncipe aventureiro. O braço direito, esse, flecte-se em ângulo recto, a mão apoiada na cintura. A cabeça do cão desenha com o antebraço outro ângulo, anima a pose imperturbável e alude à fidelidade e vigilância que se oferecem a um príncipe”. (Museu Nacional de Arte Antiga, Portugal, in http://www.mnarteantiga-ipmuseus.pt, pesquisa realizada em junho de 2009) É curioso notar que nos relatos dos narradores da Ilha de Lençóis, no Maranhão, o rei apresenta-se acompanhado de cães, uma matilha, e os proíbe de latir com seres do mundo físico. 10
Assim depois de andar por todo o campo, e particularmente por entre as fileiras dos Aventureios, chamando a si os Capitães, fidalgos e Senhores lhes fez esta breve fala: “Bem sei, amados e leais Vassalos que vosso valor não há mister lembrança, nem eu farei mais que dizer-vos o contentamento que podeis ter com tão boa ocasião, pois hoje começais a abrir as portas àquela tão justa e Santa empresa de todo o Mundo tão encomendada e suspirada de meus antecessores. Mui bem sabeis os males que recebe a Cristandade cada hora desta infiel terra, quase doméstica inimiga, e bem se deixam ver os danos que se oferecem de novo com a próxima vingança da gente [...] Bem creio que sabeis, e todo o Mundo sabe, que o zelo da Santa Fé Católica, a necessária prevenção ao fiel povo, a clemencia que se deve aos afligidos, me obriga totalmente a seguir esta empresa sem aspirar a outra cousa; pelo que espero em Deus ajudará minha tenção, e estou mui seguro, que todos assim vireis aprovando o efeito dela. Nem será necessário, oh Vassalos fieis, trazer à memoria por quem fazeis a guerra à gente que venceis, a Lei que professais, com cujo presuposto jamais vos pode suceder senão felicidade; pois de qualquer maneira os guerreiros de Cristo, quando tem fé bastante, são Senhores do campo; e antes da vitória já triunfam”. 11
O pesquisador de Macau, Vitor Amaral de Oliveira, fez uma extensa pesquisa nos mais variados textos portugueses como compêndios de Historia, crônicas, poesia, ficção, iconografia, etc., o que corresponde a 4 séculos de textos, e coletou 314 qualificativos de base positiva e negativa ao rei Sebastião. 12
Nos processos da Inquisição em Portugal, pode-se perceber que os boatos de visões com o rei são ferozmente combatidos pela Igreja como heresia ou loucura. Muitas sentenças são também para acusados da prática do Islamismo por acusados de alimentar de esperança o povo português ao relatarem o desaparecimento do rei e boatos de seu possível refúgio numa ilha indescoberta. Alguns desses acusados participaram da batalha de Alcácer Quibir e, capturados pelos mouros, foram obrigados a se converterem ao islamismo, pagando agora alto
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preço por uma atitude que não tinha saída. Alguns acusados, além do açoite público, eram degredados às colônias. O Brasil foi destino de alguns sentenciados. Conferir detalhes desses julgamentos em HERMANN (1998, p. 249-303 ) 13
Breve nota sobre o povoamento do Maranhão. Foi D. João III quem instituiu a divisão do Brasil em capitanias donatárias como forma de povoar a colônia impedindo o contrabando francês de pau-brasil. Assim, no norte da colônia, duas capitanias foram chamadas de Maranhão. A primeira sessão ia da ilha de Marajó (PA) até a foz do rio Gurupi e foi doada a João de Barros e Aires da Cunha. A segunda sessão começava na foz do rio Gurupi até o rio Parnaíba (PI) sendo seu donatário Fernando Álvares de Andrade. Nas primeiras décadas do século XVI houve algumas tentativas de conquista e povoamento, todas fracassadas. Consta que em 1594 o Maranhão já era refúgio de piratas e traficantes franceses. O capitão Jacques Riffault deixou no Maranhão Charles des Vaux e outros homens em contato com os tupinambá e partiu para a França a fim de convencer o rei Henrique IV da possibilidade de fazer do Maranhão uma colônia francesa. Somente no início do século XVII, em 1612, é oficialmente tomada a posse da terra, por Daniel de La Touche, senhor de La Ravardière. Na ilha de Upaon-Açu, morada dos índios tupinambá, é fundada a cidade de São Luís, em homenagem ao rei menino de França, Luís XIII. Dá-se início à tentativa de fundar a França Equinocial. O padre capuchinho, frei Claude D‟Abbéville, foi o cronista desta expedição e escreveu a História da missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas. Os franceses só foram expulsos em 1615. Em 1621, o rei Felipe II da Espanha eleva as duas capitanias a Estado do Maranhão, ligando-o diretamente a Portugal. Tal autonomia se devia à intenção portuguesa de enviar degredados para estas terras, enquanto para o sul (Bahia) seriam levadas famílias nobres de Portugal e Castela. Consta-se que quase 80 % do povoamento do Maranhão se deu por degredo, entre eles ciganos e cristão-novos. Sabendo-se que o rei Felipe II é o tio do falecido Dom Sebastião, que tomara posse de Portugal após a morte do cardeal Dom Henrique, e que a terrível batalha de Alcácer Quibir contava com pouco mais de 40 anos, o povoamento do Maranhão vai se dar por portugueses que estão sob o domínio espanhol, saudosos do rei que lhes prometera um Império e, sobretudo, subjugados com a pena do degredo numa terra desconhecida e carente do básico. Isso talvez pode iluminar o apego a um sonho de liberdade na figura do rei Sebastião o que dificultava a evangelização, como relatam os cronistas da Companhia de Jesus da extinta província do Maranhão e Pará. Em 1641, os holandeses tomaram posse do Maranhão, causando saques nas fazendas, profanando as igrejas e levando os moradores ao pânico e fuga para o interior. Depois de sucessivos confrontos, a restauração só se deu em 1644. Com a atuação dos jesuítas no combate à escravidão indígena e as constantes invasões dos aldeamentos indígenas pelos colonos maranhenses, a fim de mão-de-obra para os engenhos, já que era muito caro importar escravos, em 1680, a Coroa resolve proibir a escravidão indígena e criar a Companhia do Comércio do Maranhão, em 1682, para dar fomento à produção de açúcar e o cultivo do algodão, em troca de envio de escravos (até 10.000 africanos, pelo menos 500 por ano) e alimentos. Ficou estabelecido que a Companhia deteria o monopólio num período de 20 anos. Os colonos logo se sentiram insatisfeitos devido ao encarecimento do preço dos gêneros e do atraso dos navios. A Companhia não arcou com o prometido, culminando em 1684 numa revolta nativista liderada por Manuel Beckman, senhor de engenho, filho de mãe brasileira e pai alemão. A luta clamava pela extinção da Companhia de Comércio e a expulsão dos jesuítas, contrários ao uso da mão-de-obra indígena. O movimento conseguiu fazer com que a Companhia fosse extinta mas não foram atendidos sobre a expulsão dos jesuítas. A revolta de Beckman, como ficou conhecida, foi sufocada em 1685, quando seus líderes foram condenados à forca (A história de Bequimão é contada em forma de romanceiro pela escritora Stella Leonardos, que associa o líder e protomártir da independência à figura do rei Sebastião encantado nas areias de Lençóis, conforme apresento no último capítulo). Boa parte do casario colonial de São Luís foi construída quando o Marquês de Pombal assumiu o cargo de Primeiro-Ministro régio e instaurou a política de expansão do comércio na Amazônia. Para melhor administrar o comércio na província, Pombal fundou o Vice Reino do Grão-Pará e Maranhão, com capital em Belém, criando em 1755 a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão e expulsando definitivamente os jesuítas. Com o incentivo à imigração, a proibição do uso do indígena no trabalho e o aumento do tráfico negreiro (o cálculo era de três mil escravos até a criação da Companhia e doze mil até 1777), o Maranhão se torna um importante exportador de arroz e algodão, enriquecendo os colonos e ligando-se diretamente à Metrópole. É nesse período que vem ao Maranhão um número maior de escravos, sobretudo oriundos da Mina e da Guiné (Forte de São Jorge da Mina, em Daomé), na política de tráfico pela rota do Atlântico Equatorial (LISBOA, 1852; LIMA, 2006; MORAES, 1987; SANTOS, 1983).
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ROTA III DICÇÕES MITOPOÉTICAS DAS ILHAS SEBASTIÂNICAS
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3. CARTOGRAFIAS IMAGINÁRIAS DE UMA ILHA
[...] Estás predestinado a ali chegar./ Mas não apresses a viagem nunca./ Melhor muitos anos levares de jornada/ e fundeares na ilha, velho enfim,/ rico de quanto ganhaste no caminho,/ sem esperar riquezas que Ítaca te desse./ Uma bela viagem deu-te Ítaca./ Sem ela não te ponhas a caminho./ Mais do que isso, não lhe cumpre dar-te./ Ítaca não te iludiu, se a achas pobre./ Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,/ e agora sabes o que significam Ítacas1. (Ítaca, Konstaninos Kavafis)
“Ele e seu feminino Ilha./Ele não existe/ Ele é a ilha./Só o oceano existe./Veja com que violência, por vezes,/o mar se obstina sobre sua ausência,/mais dura que a rocha”. Este início do poema “Relato” (1980) 2, de Edmond Jabès, em que a ilha é apresentada como o feminino para ele, a partir do jogo fônico das palavra Il (ele) e île (ilha), revela e oculta uma disputa cuja vitória é do mais fraco, a saber, ela, a ilha. Ele é Ilha, ou seja, ele é ela 3. A ilha sempre foi objeto de fascínio ao homem. O sonho com uma ilha deserta se propaga no inconsciente coletivo de tal modo que se imaginar habitante de uma, ainda que como sobrevivente de um naufrágio, é cena que todos, alguma vez, vislumbraram. É para uma ilha deserta que o amante anseia levar sua amada. A ilha dos sonhos do homem é sempre o paraíso perdido no meio do oceano, inabitada, esperando um felizardo prisioneiro do destino. Ou, então, é promessa de descoberta de uma fortuna, num tesouro enterrado e jamais encontrado. A ilha, que serviu de esconderijo para inúmeros piratas e receptáculo de seus tesouros, simboliza o esconderijo do homem, pequeno mundo que deve ser reconstruído a partir de leis próprias, sem interferências alheias. Então, ser ilha significa jogar duplamente e ao mesmo tempo com liberdade e aprisionamento, afinal, toda ilha, real ou imaginária, fundamenta-se num paradoxo para o habitante. Ilha sabe ser potência. Inicialmente pode-se conceituar a ilha como falta do oceano, a
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negação dele. Diante da existência da ilha, cadê o poder do oceano? Ele, que é temido pelas embarcações e sobre elas se atira com tanto furor. Ele, que rodopia e abraça as naus dos insensatos aventureiros, engolindo-os e encarcerando-os para sempre no seu estômago sombrio e frugal. Ele, que se estrebucha diante das tempestades e vocifera contra raios e trovões, mostrando-se soberano. Ele, que só permite que por si naveguem os suficientemente corajosos, mas também sabiamente temerosos. Ele, que traz no nome o vigor da masculinidade, a força que tudo arrasa e destrói. Diante de uma ilha, a fragilidade feminina, ponto insignificante do mundo, o oceano se abala, incapaz. A ilha é sua úlcera, sua intemperança, sua lacuna. Essa ausência na presença o deixa vulnerável, pois a ilha rompeu algo para ser um mundo superposto. Ela não existe sem o oceano e só ganha o estatuto de ilha por causa dele, que não a suporta, mas a sustém. Ela sabe que, se não fora o oceano, seria apenas um cume, pico de uma montanha. Rodeada de oceano, a ilha é ponta heroica que venceu e vence as águas furiosas para constituir, isolada, a vida. Quem é que contém quem? Quem está contido? E podem duas criaturas tão distintas e distantes na essência viver no limiar da pertença, um ser que não é senão pelo outro e no outro? Certo, da ilha se pode dizer isso. O oceano pode ser sem a ilha. Por isso ele se abala, por saber que aquela coisinha insignificante depende dele para ser. O corpo da ilha se estende para cima, olhando para o sol, tem sede de luz, não de água, da qual sua base se farta. E essa imponência mexe com os brios do oceano. Se ele se permitisse imaginar ao menos que ela, a ilha, é também ele... Mas não. Para ser oceano é preciso que os seres estejam imersos nele e não sobre ele. A ilha é, pois, uma afronta. Com que anseios os nautas em apuros não desejaram encontrar uma ilha que lhes trouxesse a salvação?! Bondade que enfurece o oceano, por ter sido destituído de sua máscula tirania. É na ilha que o sobrevivente espera, ansioso, o retorno ao continente, sobrepujando o oceano. É a ilha que gera a vida ou a refaz, no seu útero sagrado. Daí que as ilhas são sempre fontes de um mistério, lugares propícios para os mitos, para uma origem que nunca cessa. É
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nesse sentido que a ilha assume uma configuração tão imprecisa e ambígua: esteja onde estiver, ela sempre será um entrelugar, porque faz parte de sua essência ser isolamento. Um artigo em que Deleuze (2006) 4 apresenta o sentido místico e mítico da ilha deserta orienta esta análise. Nele são apontadas as causas e razões das ilhas desertas, reconfigurandoas como lugares singulares à construção do mito, pois a essência de uma ilha, antes de ser geográfica, é imaginária. Afinal, ilha pode ser entendida como aquilo que contém ou que está contido? Seria o negativo do mar? Por que o fascínio do homem pela ilha ao longo do tempo? Podemos citar alguns exemplos da presença da ilha no imaginário humano, apenas a título de ilustração: - As ilhas afortunadas assinaladas por Hesíodo como lugar de bênçãos, onde os deuses recebiam os espíritos honrosos dos heróis após a morte. Acreditava-se já nessa época que essas ilhas ficavam a ocidente. - A Atlântida, ilha onde habitava uma civilização perfeita, dizimada por seus vícios, de acordo com Platão; - Na mitologia grega, a ilha de Rodhes foi dada a Helius quando Zeus dividiu o mundo. Lá foi construída uma das sete maravilhas do mundo antigo, o colosso de Rodhes, estátua do deus Sol. Além disso, as inúmeras ilhas do mediterrâneo abrigando seres mitológicos nas aventuras de Ulisses, ele próprio nascido em Ítaca; - A ilha de Cipango, que seria o eldorado, lugar onde o ouro brotava incessantemente, cuja localização de Marco Polo confundiu-a com o Japão. Mais tarde, Colombo vai chamar a Ilha de Cuba de Cipango. Até o Brasil foi descrito como essa ilha maravilhosa 5. - A ilha de Tomas Morus, Utopia (1516), lugar perfeito, o reino insular imaginário ideal de sociedade; - A ilha do romance Robinson Crusoé (1719), que permite a Daniel Defoe construir o mito da solidão, da reconstrução do homem em meio à natureza selvagem. A mesma ilha de
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Robinson é apresentada no romance Sexta-Feira e os limbos do Pacífico (2002), de Michel Tounier, onde o autor restitui a saga solitária de Crusoé na tentativa de se refazer social e culturalmente na solidão de uma ilha; - A ilha de Páscoa, na Polinésia Oriental (província do Chile), com seus mil moais, estátuas em forma de cabeça de mais de 12 metros de altura, construídas por volta do século XIII da era Cristã que intrigam os pesquisadores e sobre os quais pairam inúmeros mitos. - A ilha mitológica de Darwin – onde estão impressas matrizes da ancestralidade das espécies e de sua renovação; - As ilhas afortunadas, lugar de benção, paraíso terreal, assinaladas por Camões, Pessoa, Jorge de Lima e tantos outros poetas. Para mapear o imaginário da ilha, inicialmente Deleuze apresenta a diferença entre os dois tipos de ilha. As ilhas continentais, derivadas do continente, resultantes do desmembramento continental, estão separadas do continente, mas numa proximidade, filhas de um acidente, de uma desarticulação. São sobreviventes daquilo que um dia foi uno, antes do desmoronamento. As ilhas oceânicas, distantes do continente, são originárias do fundo do oceano, sem contato com o continente, essenciais, surgem de baixo, como que rompendo barreiras, num movimento de liberdade (DELEUZE, 2006, p. 17). As ilhas são testemunho do severo embate entre oceano e terra. As ilhas continentais “lembram-nos que a terra está ainda ali, sob o mar, e congrega suas forças para romper a superfície” (DELEUZE, 2006, p. 17). O embate entre água e terra sinaliza que o homem precisa abster-se de um combate. Para viver numa ilha, será necessário esquecer o que ela representa, neutralizando o combate ou assegurando que ele não mais ocorre. Para existir, a ilha nega algo. Terra que nega água, que a define na sua repulsa. Na borda oval, o mar desenha a ilha que o rompe. A ilha é, pois, símbolo de destruição e reconstrução, afastamento e proximidade. Essas oposições na verdade não se excluem. O habitante da ilha tem também
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negado sua ideia de habitação, por isso em toda ilha impera o deserto. O homem sempre se movimentou na direção da ilha. Estar na ilha sempre foi seu sonho. Seu anseio de perder-se, naufragar-se, isolar-se, tem por fim uma ilha como ponto de salvação. O sonho com a ilha deserta e paradisíaca ou habitada por forças sobrenaturais são recorrentes no imaginário humano. Encontrar ilhas desertas e apossar-se delas faz parte desse sonho. Encontrar o itinerário das ilhas encantadas, a Atlântida, por exemplo, é estar frente a frente com o poder de transcender sua condição humana. O que liga o homem à ilha é o seu estado de superação e separação de continente. Longe do continente, o homem sonha que está perdido, que se separa ou se recria, num re-começo. Entretanto, uma condição não exclui a outra: “Já não é a ilha que se separou do continente, é o homem que, estando sobre a ilha, encontra-se separado do mundo. Já não é a ilha que se cria do fundo da terra através das águas, é o homem que recria o mundo a partir da ilha e sobre as água ” (DELEUZE, 2006, p. 18). Talvez o fascínio do homem pela ilha se deve justamente por sua configuração de isolamento. A ilha é sinônimo, ainda que aparente, de proteção diante da iminência da morte. Isolado das forças arbitrárias e grandiosas do continente, o ilhéu encontra abrigo assumindo os desígnios da criação de um mundo. As forças temporais que regiam o humano são agora re-significadas a partir desta ocupação demiúrgica. Foi necessário o ímpeto da separação para que o tempo da construção se operasse. Mas o que leva o homem a movimentar-se na direção da ilha, separando-se do mundo? Estar na ilha, porém, não significa que o homem a habita. Ela continua deserta porque percebendo sua condição insular, o homem deriva uma ilha imaginária, construída originalmente como mundo: “Em certas condições que o atam ao próprio movimento das coisas, o homem não rompe o deserto, sacraliza-o. ” (DELEUZE, 2006, p. 18). É a ilha que deve ter consciência de deserto por ser o sonho do homem. Para Deleuze, o homem habitante
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da ilha assume a condição de quase um deus, a mulher, de uma deusa, porque absolutamente se torna criador, precedendo a si mesmo nessa criação. A essência da ilha é ser desértica, construção imaginária e mitológica 6, e não real e geográfica, submetida às condições humanas. Mas esse imaginário se dá coletivamente, através dos ritos e mitologias: “ Na ilha deserta, uma tal criatura seria a própria ilha deserta à medida que ela se imagina e se reflete em seu movimento primeiro. Consciência da terra e do oceano, tal é a ilha deserta, pronta para recomeçar o mundo ” (DELEUZE, 2006, p.19). Seu formato oval já se mostra um cosmo, ovo cósmico. No mais, tudo é deserto, ilha e oceano são desertos, ainda que ambos estejam habitados. O próprio homem insulano padece de desertificação. Protótipo da alma coletiva, a ilha oferece ao homem o re-começo, a segunda origem, daí que é o local propício para a construção de uma mitologia: “a ilha é o mínimo necessário para esse recomeço, o material sobrevivente da primeira origem, o núcleo ou o ovo irradiante que deve bastar para re- produzir tudo” (DELEUZE, 2006, p.21). Não é o mito exatamente um recomeço, uma repetição? A ilha constitui um duplo mundo, pois geograficamente é ilha por estar cercada de águas, e também é topo de montanha furando a água. E esta segunda origem parte de uma catástrofe que deveria acontecer para que a reprodução ocorresse. Por causa disso, a ilha pode ser denominada de santa, ovo cósmico, destinada ao homem, não aos deuses. Também as figuras mitológicas ligadas à ilha são femininas, detentoras do poder de gerar e gerir vidas, uma vez que “[...] o começo partia de Deus e de um par, mas não o recomeço, que parte de um ovo, de modo que a maternidade mitológica é frequentemente uma partogênese” (DELEUZE, 2006, p. 22). Surgindo do mais profundo ser do oceano, a ilha revela um começo anterior ao seu começo: “[...] que o retoma para aprofundá-lo e recuá-lo no tempo. A ilha deserta é a matéria deste imemorial ou desse mais profundo” (DELEUZE, 2006, p.22).
O simbolismo da ilha solitária, que esconde segredos invioláveis, representa a
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condição insular do humano: o homem em estado de ilha organiza sua vida em função de um não-ser continente. Longe da terra firme, o ilhéu busca dividir-se entre a terra cercada de água e a água que limita a terra. É ele também o ponto de ligação, limítrofe, fronteiriço por excelência. Estando na terra, o homem precisa da água para o seu sustento (pesca). Estando na água, o homem precisa tornar à terra para repousar. Somos todos Ulisses à procura de nossa recôndita ilha. Nessa aventura perigosa, enfrentamos borrascas, entediamo-nos nas calmarias, mas nosso barco vai, ainda que inseguro, buscar nossas origens, lá onde o nosso umbigo foi enterrado e onde haveremos de descansar em paz. Somos todos Ulisses, enfrentando monstros no mar revolto, obrigamo-nos a parar pelo caminho, tornando a rota ainda mais distante, mas com o coração sempre pulsante, ansiosos pela chegada à pequena Ítaca, onde residem nossos grandes amores. Mas será que Ítaca nos espera? Será que ela sabe das nossas tormentas, do quanto ansiamos de desejo por ela? O seu amor está altura de nossa aventura? O seu colo de pátria-mãe continua afável e nos receberá com o mesmo encanto? Ítaca poderá ter mudado. Senão, somos nós quem mudamos, e então Ítaca não será a mesma. Resta a ideia de uma Ítaca que é chama flamejante dentro de nós, seus filhos, cujo paradeiro só poderia nos levar para dentro de nosso ser, no mais profundo escuro de nosso ser-oceano. E porque a ilha está dentro de nós e não fora, é que nosso fascínio por todas as ilhas nos faz levar para elas nosso imaginário, edificando-as como abrigos, lugares onde o tempo é o vir-a-ser. Na ilha colocamos todos os nossos sonhos, metaforizados em Sebastiões, Ulisses, Telêmacos, Penélopes, Sereias, Robinsons Cruzoés, etc., para que reinem absolutos sobre a terra e sob o céu tenebrosos. Projetamos nas ilhas indescobertas aquilo que gostaríamos de ser, o eterno.
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3.1 AS ILHAS SEBASTIÂNICAS, A POÉTICA DA ENCANTARIA E A CONSTRUÇÃO DAS HETEROTOPIAS
O sebastianismo, que historicamente está ligado à terra, seja no sentido de permanecer com a posse dela, seja no sentido de conquistar outra, na construção do mito passa a ligar-se topográfica e simbolicamente à ilha. No capítulo oito de Fábulas da Memória (1994), Lucette Valensi apresenta o discurso da ilha encoberta que aguarda a segunda vida de Dom Sebastião. Inicialmente a autora investiga o farto material escrito pelos portugueses do passado sobre as memórias da batalha e o desaparecimento do seu rei. Os historiadores atuais precisarão se debruçar sobre uma diversidade de material escrito nos mais variados gêneros e com distintas finalidades, desde o interesse político, passando pela voz dos trovadores populares, até o interesse religioso. Os eruditos historiadores da batalha e do ocultamento do rei eram, em sua maioria, oriundos do clero, e difundiam as questões: esperamos um rei? Que provas ou indícios existem de seu retorno? Nas duas décadas posteriores à batalha de Alcácer Quibir, essas questões se multiplicavam pelo reino, com nuances, nos inúmeros textos repassados nas ruas, praças, igrejas; textos anônimos ou marcados por uma autoridade. Muitos se mobilizaram para propagar esse desejo de um retorno. Mais que crença, o sonho do novo Império Cristão é gestado em cantos, contos, poemas, relatos, trovas, mensagens enigmáticas e aforísticas. Profecias, visões, pareceres astrológicos: tudo parece evocar o retorno do rei ausente. Para comprovar isso, inúmeros finais para a batalha são escritos. Um deles diz que o rei fugiu, após ser ferido, e vagou então pela Terra Santa, como um peregrino, tendo, inclusive, se apresentado ao papa, conforme atestam alguns desses documentos. Se o rei não se escondeu na Europa, na África ou na Ásia, e se o tempo propício ao retorno ultrapassou o limite humano, ele só poderia estar encoberto num lugar ermo, também escondido, fruto do
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sobrenatural. Seria uma ilha encoberta: O encoberto vive retirado numa ilha que também é encoberta. Essa ilha encantada, invisível, impossível de localizar de maneira definitiva, e que não figura em nenhum mapa, surge contudo das brumas diante dos navios em apuro. (VALENSI, 1994, p. 184)
O sebastianismo é filho das ilhas. Se Portugal continental não quis aceitar a morte do rei, depositando nos boatos de sua fuga a promessa de um retorno, o arquipélago de Açores é o primeiro a anunciar a data do retorno. Na ilha de Angra, um marechal vaticinou a volta do rei para o décimo dia de março de 1580. No dia marcado, a população avistou uma grande embarcação e acorreu à praia, esperando ansiosamente o desembarque real. Rei nenhum desembarcou a olhos vistos, mas surgiram rumores de que três homens desconhecidos aportaram ali e foram acolhidos secretamente no convento de São Francisco. Os franciscanos, segundo o relato, agiram de modo a que o mito se mantivesse, trazendo para o interior do convento roupas e coisas de valor. As ilhas não aceitaram o domínio de Felipe II, rei da Espanha, e em 1581, quando quatro embarcações espanholas tentaram desembarcar em Angra para tomar posse em nome da Espanha, os ilhéus usaram como armas rebanhos de bois furiosos que exterminaram todo o exército (BERCÉ, 2003, p. 35-39). Quase dois séculos depois, os marinheiros sobreviventes de uma tempestade em 1770 desembarcaram numa ilha desconhecida, repleta de riquezas e bens, sem que alguém tenha se esforçado para conseguir. No centro da ilha, os marinheiros ouvem na sua língua em eco: “Portugal, Castela”. É a voz de um homem penitente, vestido pobremente com uma túnica e com uma cruz. Ao conversar com os marinheiros, o peregrino informa que esteve na África, na Ásia e na Europa antes de habitar ali (VALENSI, 1994, p. 184-185). Alguns relatos, por sua vez, apontam geograficamente a ilha. Situada próxima à ilha da Madeira, só podendo ser visualizada em certas condições de tempo. Também é descrita como um lugar de riquezas e abundância. Além disso, o rei teria dois filhos, sucessores legítimos do reino:
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Através de sucessivas abordagens, a ilha encantada constitui assim um reino utópico, afastado do mundo, já que só aparece em circunstâncias particulares; fora do tempo, pois o rei goza da imortalidade. Mundo original, arcaico, que serviu de refúgio aos primeiros portugueses; mundo da Criação, onde os homens são gigantes, onde há frutos, cavalos e bens em abundância, e onde o homem não sofre. Mundo de antes da queda: nenhum naufrágio diz ter visto ali mulheres... (VALENSI, 1994 , p. 186)
Enquanto as ilhas mitológicas são repletas de prazeres do corpo, da carne, onde há fartura de frutos saborosos e belas mulheres e onde os pecados não existem porque a ordem ali é a transgressão pelo prazer, no reino sebastiânico os prazeres da alma constituem as leis que regem a vida. Vive-se aí conforme a justiça divina, os preceitos religiosos e católicos fundamentam o cotidiano. Essas ilhas afortunadas são retomadas nos poemas do livro Mensagem de Fernando Pessoa. É numa ilha que estaria velado o corpo do Encoberto, esperando o retorno: São ilhas afortunadas São terras sem ter lugar, Onde o Rei mora esperando. Mas, se vamos despertando Cala a voz, e há só o mar. (PESSOA, 2007, p. 103)
Esses versos, ao mesmo tempo em que descrevem as ilhas, indicam a indefinição de suas coordenadas geográficas. É pelo sonho que podemos ouvir a voz que vem no som das águas. É preciso ouvir de outro modo. Num transe, talvez. Senão o que poderemos ouvir será apenas o mar. Mas uma coisa é certa: não é preciso dormir para entrar em contato com o onírico, principalmente se o lugar em que se está é uma ilha, receptáculo de belezas. E por que tais ilhas seriam afortunadas? Por velarem o corpo nevoento do rei, por serem um paraíso natural ou, ainda, por estarem de fato isoladas? Não haveria lugar mais propício para esse velamento senão numa ilha. O útero do mito é a terra, cercada pelo líquido amniótico, o oceano. Ali o rei se refaz, sacraliza-se como mártir, reconstituindo-se enquanto encanto, personifica-se com a natureza e espera, no tempo
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das origens, um retorno. A voz que fala junto com o som das ondas é o rei desfiando seu canto de saudade. O rei é o tesouro da ilha, que jaz enterrado, à espera do marujo distante que chegue com um mapa e o desenterre, fazendo com que acorde para a vida. Em outro poema, o poeta fala da última nau que partiu, levando a bordo o Rei Sebastião. E pergunta: Não voltou mais. A que ilha indescoberta aportou? Volverá da sorte incerta Que teve? Deus guarda o corpo e a forma do futuro, Mas Sua luz projecta-o, sonho escuro E breve. (PESSOA, 2007, p. 89)
A ilha indescoberta, imprecisa geograficamente porque é “próxima e remota” , guarda o corpo místico do Rei moldando o futuro, a continuidade de um sonho que foi breve, mas deve estender-se. A ilha seria o sepulcro mítico velado do novamente Esperado. E qual seria a forma do futuro. Que corpo ganhará o novamente encoberto? O corpo místico do príncipe adormecido associa-se aqui ao conto de fadas “A bela adormecida”, que não está nem morta nem viva, mas espera apenas o tempo e o cavaleiro propícios para o beijo da vida. Por que projetar o mito justamente numa ilha que, além de fechada, é indescoberta? Se utopias são espaços sem lugar real por apresentarem à sociedade seu inverso, o ideal, há que se buscar outros espaços, que não dependem de uma delimitação que nos acostumamos a fazer, sempre levando em consideração a conjuntura do real e as nervuras do irreal. Estamos imersos no espaço, não podemos fugir dele. Somos preenchidos pelos espaços que habitamos. Somos também habitados por outros espaços. E há ainda os espaços que não cabem em nós e outros em que não cabemos. Como um jogo de espelhos, somos projetados para fora de nós e aí onde estamos sem estar, nos damos conta de nosso ser. Vivemos, pois, em simultaneidades, em espaços heterogêneos, como mostra Foucault, numa conferência de 1984 intitulada
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“Outros espaços”: O espaço no qual vivemos, pelo qual somos atraídos para fora de nós mesmos, no qual decorre precisamente a erosão de nossa vida, de nosso tempo, de nossa história, esse espaço que nos corrói e nos sulca é também em si mesmo um espaço heterogêneo. (2009, p. 414)7
Não vivemos num vácuo, decerto. Os espaços em que estamos se interrelacionam, interpenetram-se até, dialogam. Os dois tipos de espaços apontados por Foucault são as utopias e as heterotopias. É desse último conceito que quero fazer emergir o sentido da poética da Encantaria. Se, como diz Foucault, “[...] não há uma única cultura no mundo que não se constitua de heterotopias” (2009, p. 416), parece-me pertinente lançar mão desse termo para entender o que na fala dos sebastianos aparece como uma região cujo itinerário é impreciso porque se situa no limite, é um entremeio, um entrelugar. O homem está na ilha, seu espaço real de habitação, e nela construiu espaços de relações, alguns mais abertos que outros. Vive, no entanto, na iminente espera de mudança, uma vez que o próprio espaço natural é movente, obrigando o ilhéu a refazer de tempos em tempos seus sítios, numa reconfiguração incessante. Desse modo, o homem habitante da ilha idealiza um situar pleno. Sua utopia consiste em conseguir fixar-se num sítio seguro. Essa inversão é utópica porque não acontecerá. Está imerso pela contradição de ser ilha. E deixaria o ilhéu de ser ilha abandonando seu espaço original? Mas é habitando a mobilidade dos seus ritos que o homem consegue congregar vários espaços em torno de seu sonho. Fora de si, habitando o outro mundo, sem sair dos seus espaços, o homem realiza-se no devir, pela poética da Encantaria. Através da palavra proferida, anuncia-se a instauração de um espaço que se fundamenta como uma construção heterotópica. Pela palavra, falada ou cantada, mas nunca dita ao vento, este habitante é habitado no instante mesmo em que sai de si e se vê num lugar em que nunca esteve, e no entanto, nunca saiu de lá: a Encantaria. O lugar fora do lugar, espaço aberto, projeção
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dissolvente dos lugares reais e irreais, a proximidade e repulsa ao mesmo tempo, sítio onde se é e não é. É esse o sentido de Encantaria, contemplação não do outro, mas do próprio ser do homem. É na Encantaria que esses moradores se encontram como morada, enquanto seu anseio maior é chegar até ela. Habitam a confluência que só pode ser marcadamente um espaço mítico e místico 8. A própria condição da ilha, fechada em si mesma, abraçada por amor ou aprisionamento do mar, imprecisa, se está ou não, se é ou não uma falha, um rebento, dá-nos a ideia do sentido de uma heterotopia. A ilha só é ilha porque é muitos espaços ao mesmo tempo: a parte da montanha que resolveu respirar, o cume, o cúmulo do desrespeito ao poder do oceano. E como se chega a ela? Apenas através de barco que é, para Foucault, o exemplo preciso da heterotopia: [...] se imaginarmos, afinal, que o barco é uma pedaço de espaço flutuante, um lugar sem lugar, que vive por si mesmo, que é fechado em si e ao mesmo tempo lançado ao infinito do mar e que, de porto em porto, de escapada em escapada para a terra, de bordel a bordel, chegue até as colônias para procurar o que elas encerram de mais precioso em seus jardins, você compreenderá por que o barco foi para a nossa civilização, do século XVI aos nossos dias, ao mesmo tempo não apenas, certamente, o maior instrumento de desenvolvimento econômico [...] mas a maior reserva de imaginação (2009 , p. 421-422)
Para dialogar com o discurso mítico de Pessoa, no Brasil do século XX, surge o discurso da Encantaria maranhense das ilhas de São Luís e Lençóis. É nelas que o corpo místico do rei repousa e ressurge metamorfoseado em touro, pássaro e com o colorido das etnias africana e indígena que constituem o povo brasileiro. Que isso quer dizer? Qual o teor da mensagem transmitida nessa celebração? Ilha, ilhéu, Encantaria, rito, ritmo. Tudo o que é, não é. Os quatro elementos primordiais promovem a abertura deste para outro mundo. Apresentam a outra margem, a partir da experiência do salto projetante. Isso é a experiência poética, que é também sagrada,
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segundo Octavio Paz (1982) 9. Não se trata, pois, de pensar essa manifestação como primitiva, no sentido de que reside neste ato as oposições profano X sagrado, culto X festa, modernidade X primitivismo. Não é a moral, a ética, a religião e a justiça que domina esse contexto. Realizar a experiência do salto, transpor a margem é subverter tudo o que regra a vida, inclusive tempo e espaço, inclusive a linguagem. Realizar a viagem, fazer o salto, alcançar a outra margem é, para Paz, desprender-se da objetividade deste mundo, desta margem, - o transcorrer limitado pelo nascer e morrer – e realizar a experiência do salto mortal para onde não há vida nem morte, “água correndo incessantemente” (PAZ, 1982, p.147) : [...] o „salto mortal‟, a experiência da „outra margem‟, subentende uma mudança de natureza – é um morrer e um nascer. Mas a „outra margem‟ está em nós mesmos. Sem que nos movimentemos, quietos, nos sentimos arrastados, movidos por um grande vento que nos deixa fora de nós. Deixanos fora e ao mesmo tempo nos empurra para dentro de nós. (PAZ, 1982, p. 148)
O que Paz apresenta como uma metáfora do sopro, talvez seja o que Foucault denomina como heterotopia e aqui está associada à ideia da Encantaria. Independente da vontade e do desejo, o homem se vê arremessado para o outro espaço onde deve encontrar-se consigo mesmo. Por isso, essa experiência é um “salto mortal”, porque não se sai dela sem que algo não tenha morrido. O sopro que vem de dentro do homem é também o sopro que lança essa frágil humanidade à infindável cachoeira do mistério. O sopro conta o inefável e empurra o homem para o inesperado. O „mundo daqui‟ é composto de contrário s relativos. É o reino das explicações, das razões e dos motivos. O grande vento sopra, rompe-se a cadeia das causas e feitos. A primeira consequência dessa catástrofe é a abolição das leis de gravidade, naturais e morais. O homem perde peso, é uma pluma. (PAZ, 1982 , p. 151) Não é à toa que nos relatos das visões sebastiânicas, o narrador deixa transparecer uma ambiguidade, medida em que não se sabe se a experiência foi boa ou ruim. Ver o outro lado é
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ser contemplado ou castigado? O vidente considera-se escolhido, mas para quê? O misto de terror e maravilhamento toma conta do vidente; repulsa e desej o lutam entre si, porque “a moral é alheia ao sagrado. Estamos num mundo que é efetivamente outro mundo” (PAZ, 1982, p. 151). E por isso o canto e o toque do tambor acalmam o caminheiro, suavizando o trânsito, mas também o transe funciona como uma anestesia. A ambigüidade está presente no sofrimento feliz daquele que, diante do cansaço, não se abate e dança a noite inteira. E o que dizer da dor quase insuportável nos dedos dos que tocam os instrumentos de percussão noite adentro? Um gozo pela dor, como mártires: isso é dar ordem do sagrado. É que os corpos não são mais somente físicos, mas pertencentes a duas dimensões: A experiência do sagrado afirma: aqui é lá; os corpos são ubíquos; o espaço não é uma extensão, ma uma qualidade; ontem é hoje, o passado regressa, o futuro já aconteceu. [...] Tudo é hoje. tudo está presente. tudo está, tudo é aqui. Tudo, porém, está em outra parte e outro tempo. Fora de si e pleno de si. (PAZ, 1982, p. 153)
Esse salto é que nos coloca diante do sobrenatural que, no caso dos sebastianos, prefiro apresentar como o obscuro ou o profundo. Isso que causa assombro é o cerne de toda experiência sagrada, segundo Paz. Quando algo produz estranhamento radical e a realidade se atordoa, paralisando-se no susto, aí se encontram o real e o irreal refletidos um no outro. Isso acontece em situações mais corriqueiras e cotidianas. Ao afirmar que “aquele que participa de uma cerimônia é como um ator que representa uma obra: está e não está ao mesmo tempo num personagem” (PAZ, 1982, p. 154), Paz não está reduzindo o rito a uma mera apresentação teatral. Mas aí se pode entrever um esboço do que seria a performance: um momento único em que as pessoas, os lugares e o tempo são e não são. Enquanto o rito se processa, na dança do boi ou no culto, a noite comum abraça a todos, os pescadores desarmam mais uma rede com a maré baixa, as crianças dormem enquanto outras brincam na areia, os jovens namoram, a areia se move e a água que circunda a ilha quebra
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incessantemente. Porque tudo é rito e tudo é vida, a dimensão para a Encantaria compreende a abertura do poético e do sagrado. Fazer parte de uma comunidade que justifica e fundamenta seu cotidiano, seja ele o mais corriqueiro possível, pela dimensão do sagrado, é uma experiência fascinante para quem está acostumado com a cultura do efêmero, do culto solitário do vazio. Ou melhor, trata-se de experimentar radicalmente o mysterium tremendum, o terror diante da manifestação que nos deixa sem fala (OTTO, 2007). Aquele que partilha uma experiência desse tipo, surpreendese: “A surpresa é assombro ante uma realidade cotidiana que de repente é revelada como nunca foi vista” (PAZ, 1982, p. 155). Não se trata de uma ameaça à vida, mas esse horror é o que nos põe diante do insondável para mostrar aí nossas fraquezas. O sagrado se manifesta pelo assombro, o horror que paralisa ou faz recuar. Na presença desse Outro, estranhamente somos conduzidos para nós mesmos, e nessa experiência, o que repele é também o que atrai: A experiência do Outro culmina na experiência da Unidade. Os dois movimentos contrários se implicam. Atirando-se para trás já se dá o salto para adiante. O precipitar-se no Outro apresenta-se como um regresso a algo de que fomos arrancados. Cessa a dualidade, estamos na outra margem. Demos o salto mortal. Reconciliamo-nos conosco. (PAZ, 1982 , p. 161)
Estamos na outra margem, na Encantaria. Estamos lá sem nunca estarmos realmente, porque ela se desloca até nós, nessa ambivalência entre ser e não ser, estar e não estar. Em transe, assustados, alterados, somos arrebatados para um estágio da consciência que passa a negar qualquer fresta de real, e o sonho passa a ser a mais pura manifestação do Outro. Essa epifania é tão verdadeira que fica gravada para sempre na memória, com riqueza de detalhes incomum para um simples sonho. Quem vive nas dobras do encanto, vê o assombro nas mínimas coisas, sente o desejo de retornar a uma origem primordial: [...] O que é esse contínuo projetar-se do homem para o que não é ele mesmo, senão Desejo? Se o homem é um ser que não é mas que está sendo, um ser que nunca acaba de ser, não é um ser de desejos tanto quanto um
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desejo de ser? (PAZ, 1982, p. 165)
Encanto, encantados, Encantaria. Na figura de um rei, dono de uma ilha, o humano nutre o Desejo de ser o que nunca fora, sem jamais ter deixado de sê-lo. O Desejado agora é o homem, com fome de si mesmo.
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3.2 A ILHA DE SÃO LUÍS: A SAUDADE SE FAZ CANTO E DANÇA
Nascida Upaon-Açu - Ilha Grande, na língua tupinambá - São Luís é circundada pela baía de São José e a baía de São Marcos. Ao norte, descansa nos braços do Atlântico. Comporta três municípios em seu espaço. Capital do Maranhão, fundada por franceses em 1612 (33 anos após o desaparecimento de Dom Sebastião), invadida por holandeses e povoada por degredados, a cidade de São Luís resiste (mas nem tanto) ao tempo. Nas praias em que desembarcaram os portugueses para expulsar os invasores franceses e tomar posse do território, casarões coloniais com fachadas revestidas de azulejos e mirantes imponentes contemplam o sobe-e-desce incessante das marés, que alteram a paisagem dos rios vertiginosamente.
Figura 5. Foto de satélite, Ilha de São Luís. Capturada do Google Earth em 26 de agosto de 2009. A leste fica a Baía de São José; a oeste, a Baía de São Marcos, onde se debruça estrategicamente a cidade de São Luís. Ao norte, o Oceano Atlântico.
No século XVIII, com a exportação do algodão e importação de escravos, a cidade erige a maioria dos seus famosos casarões. Recebeu o ilustre Pe. Antônio Vieira que, do
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púlpito da Igreja de Santo Antônio, fazia ecoar a palavra sacra entrelaçada pelos floreios barrocos de forte combate social, sobretudo a crítica à escravização indígena. As ruelas e seus paralelepípedos não devem ter ouvido poucas ofensas das bocas dos senhores da província afrontados pelos exaltados sermões do orador. Os jesuítas logo seriam expulsos, numa das ações do marquês de Pombal. Da opulência do século XVIII, com a internacionalização da economia nas fazendas de algodão, e início do século XIX, a cidade viu nascer grandes escritores, ficando conhecida pela perífrase “Atenas Brasileira”, por fomentar
as Letras
Clássicas. Um elenco de homens letrados formou-se na São Luís oitocentista: Gonçalves Dias, Aluísio Azevedo, Arthur Azevedo, Sotero dos Reis, Viriato Correia, Coelho Neto, Nina Rodrigues, Graça Aranha, Humberto de Campos, Joaquim de Sousândrade, João Francisco Lisboa, Celso de Magalhães. A cidade instigava as Letras 10, enquanto nas senzalas e nos terreiros da periferia negros e mestiços teimavam em entoar seus cantos ancestrais, convocando seus deuses perdidos nas terras da África ou transplantados para cá, e se escondendo da polícia para brincar o boi. Uma cultura, a grafocêntrica, esbanjava a riqueza da economia algodoeira, enquanto a outra, à margem, resistia com sua memória oral, produzindo um imaginário de vigor poético. Dois sistemas poéticos convivendo, lado a lado, nos mesmos espaços daquela que chegou a ser a quinta maior cidade do país em habitantes com a opulência econômica, além de ter sido uma das maiores importadoras de escravos. Uma cidade construída sobre labirintos e estrategicamente fundada numa ilha é elevada, apesar das ruínas, a Patrimônio da Humanidade pelo conjunto arquitetônico e humano. Essa São Luís transforma-se em palco onde seus habitantes celebram a morte e a ressurreição do boi, tambores ajudam no ecoar de cantos em cujos refrões ressurgem os dialetos africanos para louvar o rei Sebastião. No sebastianismo maranhense, a saudade se faz canto e dança.
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Os pandeirões, os tambores e as zabumbas de couro esquentam ao fogo enquanto as matracas e maracás convocam todos para a festa dos esperançosos. Largos e praças repletos de gente transportam brincantes e espectadores para outra dimensão. Surge a cidade encantada. Já não há ruínas, nem tristeza. A ilha já não pode significar solidão, como convém ao simbolismo de uma ilha. Os segredos da ilha são compartilhados pelo humano, que corporifica o reino sebastiânico numa performance poética. Aí a profecia sebástica ganha um sentido completamente distinto e o sebastianismo pode ser compreendido como o eixo que une uma diversidade de manifestações culturais, formando um caleidoscópio em que o poético se presentifica através de cantos, contos, toadas e doutrinas. Adquire, pois, características de uma narrativa maravilhosa, apresentada em vários gêneros orais.
Figura 6. Detalhe do centro histórico de São Luís, construída estrategicamente a centro-oeste da Ilha, em frente à Baía de São Marcos, ponto de difícil acesso devido à oscilação das marés. Na imagem pode-se perceber que a maré está baixa. Fonte: Google Earth, 26 de agosto de 2009.
O Maranhão chega ao século XX com um generalizado conhecimento do rei Sebastião, ainda que como figura mitificada. É a lenda que mais se entranhou no espírito da cultura maranhense, inspirando e influenciando cantadores de boi, compositores, poetas,
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pintores e escritores. No Tambor de Mina, em que se mistura elementos da pajelança (prática popular de cura através do rito de louvação à natureza oriunda da cultura ameríndia), o Rei Sebastião é um Gentil 11, entidade do mundo da Encantaria que baixa (incorpora) em ocasiões especiais no terreiro para, a partir das ervas, promover a cura. Durante o rito cantam-se várias doutrinas para homenageá-lo. Essas doutrinas ora mencionam o rei com sua magnitude, ora apresentam lugares encantados ou descrevem objetos ricos da realeza. Enfim, a lenda está tão arraigada aí, que une todas as manifestações culturais e religiosas populares, em virtude da narrativa do rei Sebastião. Geralmente a festa de São Sebastião é também festa para o Encantado rei Sebastião. Tudo isso acabou por influenciar a cultura letrada, sendo possível ver atualmente um número bastante grande de produções cujo discurso revela e atualiza o mito sebastiânico, num processo que se caracteriza como o retorno às vozes originárias poéticas. Compositores da música popular, romancistas e poetas têm divulgado o mundo encantado do rei Sebastião conforme o vê o maranhense. Por que a história de um derrotado e fraco se torna tão importante a ponto de ele ser reverenciado séculos depois de sua morte, num lugar tão longínquo? Se para a História o rei Sebastião é apenas um personagem cuja vida só pode ser narrada na linearidade e temporalidade do pré-exílio português, não é a fraqueza o que se exalta na figura mitificada, mas sua ousadia, condição sine qua non para a constituição do herói. Mais ainda, a morte é uma espécie de portal para entronização do rei no panteão sagrado. Morrer por morrer não torna ninguém poderoso, pelo contrário. No entanto, assumir uma causa e morrer por ela, eleva o humano à condição de mártir, projetando-o como modelo de redenção da humanidade. Quando se reverencia o encantado e mítico Sebastião, poderes intemporais (talvez fosse melhor o termo extemporais, pois o prefixo ex- sugere o sentido de fora de, que necessariamente não corresponde a uma negação) são sublimados, não os poderes terrenos,
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que o Sebastião histórico nunca demonstrou ter. Nada há de mais simbólico para o homem que a coroa, o castelo e o trono. Com esses três elementos edifica-se um reino, fortificando-o com a matéria mais resistente que há, a palavra. Se esse rei não mediu esforços para promover o sonho de grandeza, então o imaginário mitopoético suscitado por sua história poderá representar o ideal de um império. É o povo que o fez rei assim e que o alimenta de poder, injetando no reino mais vigor, a instauração do império do sonho, já que o sonho do império ficou para trás, só suscitando barbárie e vilania. A narração assume o ponto de vista daqueles considerados fracos, a voz dos vencidos ecoa, os que jamais tiveram seus rostos retratados na capa da História, e sempre fizeram o seu trabalho, menor ou maior, em nome da causa de outrem. A contrapelo, oprimidos, pobres, fracos, mas não fracassados, tomam a palavra e compõem também suas narrativas. Reivindicação justa de quem sempre foi vitimado pelo abuso dos fortes e suprimido pela História. Resistir contra a palavra que reprime e foi usada para enaltecer o repressor é “escovar a história a contrapelo”, uma maneira de ir na contramão desse discurso alienante, como denuncia Benjamin nas suas teses “ S obre o conceito da História” (1985). Se pensarmos na forma do povoamento do Brasil, fundado e instituído como colônia de exploração, onde o preconceito e a superioridade agiam impunemente com as armas da escravidão e morte, a busca de um libertador e restaurador da vida sempre esteve entre os refolhos da História. Se não há um monumento da cultura imune de barbárie, como afirma Benjamin (1985), talvez por isso o discurso sebastianista maranhense, quando aponta para o futuro, sinaliza-o com uma catástrofe restauradora, fruto da ação da natureza a partir da interferência do humano no sagrado. Num mosaico de vozes 12, verdadeira polifonia aliada a texturas sonoras e visuais, a figura do rei que há de vir não fundamenta a tristeza, mas a festa, instaurando o novo reino. Essa possibilidade de um novo espaço é entoada na palavra mítico-poética que mapeia
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caminhos e portais na confluência de mundos: a cidade em ruínas (São Luís) e a cidade que virá (o reino sebastiânico, a nova Queluz). Em todas as lendas narradas em São Luís, há sempre um olhar sobre o passado e outro que mira o futuro. O olhar que se volta para o passado é de reprovação, enquanto o olhar que contempla o futuro é de profecia. O presente é da graça e do canto. Boa parte da população acredita que a cidade de São Luís foi construída sobre labirintos, escavados por escravos, para que propiciassem a fuga, durante as invasões de piratas. Por muito tempo esses labirintos ficaram esquecidos e inspiraram a criação da lenda da serpente encantada, que aí mora, esperando o dia em que despertará e arrastará toda a ilha para o fundo. Outra lenda nasce a partir da história daquela que foi uma grande escravagista no estado, Ana Jansen. Consta que era atroz com seus escravos. Ao morrer, surgiu a lenda que Nhá Jansa, como era chamada pela escravatura, virara assombração, percorrendo as ruas da cidade nas madrugadas, com sua carruagem puxada por mulas com cabeças de fogo. Por fim, a lenda que se criou na época da construção do Porto de Itaqui, na década de 1970, quando houve algumas mortes de operários que precisavam trabalhar submersos em grandes profundidades. Para que a construção fosse adiante, seria preciso oferecer sacrifícios à Princesa Ina, filha do rei Sebastião na Encantaria, que estaria revoltada com a construção no espaço de seu palácio, no fundo do mar (MORAIS, 1979). Todas essas lendas têm uma estreita ligação com o discurso sebastiânico. O que fazer para celebrar o passado, embora ele não tenha sido de alegrias? Celebra-se com cantos, danças e cores. E não é a história a dama de honra desses festejos, mas a resistência. O próprio ritual popular do auto do boi traduz essa resistência na figura do boi, que perde a língua e por isso morre, mas depois ressuscita, para a alegria dos brincantes. Em tudo o auto se assemelha à liturgia cristã, onde se celebra vida, morte e ressurreição do Cristo, que depois vira alimento para o restauro da força do homem. Aqui o mártir é o touro, que depois de
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morto é repartido entre os convivas, mas triunfa na ciranda da vida, pela música 13. Convoca-se o povo para a festa em que o grande festejado é ele mesmo. Nos cantos, o sino da Sé simboliza o grande sinal do Reino, um anúncio para o embarque rumo a outro mundo. Atravessar a baía, observar o reflexo do farol nas águas, sonhar com a princesa ao olhar as estrelas. É a Encantaria que se pode entrever:
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[doutrina] Oh, mas o sino da Sé bateu, Oh, mas o sino do meu Reino deu sinal. Ati vai me ver se tem embarcação no porto. Ah, eu vou embarcar. Eu vim te atravessar, Baía Grande, Vim atender quem mandou me chamar. (O sino da Sé. Intérprete: Cláudio Silva. In: A lenda do Rei Sebastião, 1 CD, faixa 8, 2000) [Toada de boi] As águas do Itaqui é uma beleza às dez horas da noite lá no fundo a gente vê quando a noite silencia O farol de São Marcos alumeia. Quer dizer que as abas dos peixes relampeia. (As águas do Itaqui. Intérprete: Tácito Borralho. In: A lenda do rei Sebastião, 1 CD, faixa 9, 2000)
[doutrina do Tambor de Mina] Onde tu vais, Madalena? Pra cidade de Alexandria. Quando passar na Turquia Me chame tapindaré.
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Tapindaré é uma estrela Que brilha de noite e dia Tapindaré é uma rosa Filha do rei da Turquia. [doutrina do Tambor de Mina] Ah, chego eu pelas veias d‟água e arrastado pela fortaleza. Baiano grande. Foi ele que me trouxe Maresia é o meu cavalo. (Madalena. Intérprete: Cláudio Silva.. In: A lenda do Rei Sebastião, 1 CD, faixa 10, 2000)
A musicalidade traz o encanto. Ouve-se o som das ondas no seu marulhar, as gaivotas
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em revoada lançam seu canto e um sino repica na tarde. A voz, no canto, diz que o sino da Sé, ao bater, anuncia uma embarcação no porto que vai partir. O apito da barca soa ao longe e a melodia é acompanhada de abatas (tambores), agogô e cabaças. Pode-se ver alguém (a voz daquele que recebeu o chamado) de pé, mirando as águas, no cais do porto. O sol ao longe, derramando-se no horizonte. O performer conversa com o mar: “Eu vim te atravessar, Baía Grande”. Conseguimos produzir toda a cena e nos perguntamos: quem está chamando, e para onde vai essa embarcação? Já é noite e o fragmento de uma toada de bumba meu boi continua a mostrar que a natureza quer ser contemplada, pois há algum encanto no ar. O fundo do mar está agitado, os peixes todos estão na superfície. Algum fenômeno vai acontecer? Será que o reino do fundo mar está em festa enquanto a cidade dorme? É ali mesmo, no Boqueirão, a parte mais funda da baía de São Marcos, em cuja praia foi construído o Porto de Itaqui, que está o palácio da filha do rei Sebastião, que é vaidosa e se enfurece com a audácia humana. Será ela fazendo festa no seu reinado, à espera de um corajoso homem que venha desposá-la? A luz do farol, para onde é projetada? A torre pode erguer-se no continente ou na ilha, mas não é a terra que sua luminosidade contempla. Trata-se de uma luz que indica a terra sem projetar-se sobre ela. Sinal para o navegador, alívio na iminência do perigo. Da ponta de terra a luz se ergue para além e diz que no obscuro à sua volta existe algo. O marinheiro sabe que pode aproximar-se com cautela, caso queira aportar; e sabe também que pode seguir adiante livre do risco de topar com o imprevisível. Aliás, a palavra imprevisível revela muito do que achamos que conhecemos antes mesmo de vermos. O farol é o sinal da previsibilidade, a luz que antevê o perigo pelo navegador. Por isso o farol é uma heterotopia, na medida em que sua luz não ilumina nem ofusca algo, mas apenas indica a presença do obscuro. A cena começou ao som de um sino anunciando que é hora de partir. Agora duas “doutrinas” oferecem a viagem. A terra é pequena para os encantados. É possível embarcar rumo a Alexandria, e conhecer na Turquia a filha do rei, chamada Tapindaré, que é tão bela
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como uma rosa e brilha igual estrela. Os encantados ajudam o viajante a voltar para casa, tendo como cavalo a maresia. O mar participa levando e trazendo seres, e um dos seres guias da viagem é o caboclo Baiano Grande. As visões apontam para o ir e vir constante na ilha encantada. Quem tem passagem para a travessia? E de quem é a embarcação que se aproxima, envolta de nevoeiro, trazendo espíritos dos encantados para virem participar da festa na cidade? [relato falado] Então, eu ainda vi, ainda. Isso aí eu posso dizer a você como verdade porque eu cheguei a presenciar. Então eles me falavam que no dia 12 para 13 de dezembro, véspera para dia de Santa Luzia, que é Navi Oruali... Então, esse dia, quando chegava de onze e meia para meia-noite, o navio de Dom João aparecia. [canção de teatro popular ] Te esperava, aventureiro, pra poder te carregar. Vivente como tu és, Com a coragem que trouxestes Chegando da terra ao mar.
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De dom João sou a barca Encantada da ilusão. Carrego para o seu reino Sou farol de assombração. Os barcos que ele merece Pra sua marinha de guerra Enfrentar a situação Dos reinos que estão no fundo Aguardando dia e hora Pra mudarem sem demora As coisas cá deste mundo. [depoimento]: O navio aparecia na embocadura da baía. Ele vinha, vinha, vinha... Quando chegava bem na frente da ponta, ele parava. E então, aquelas negras, aquele negócio todinho, todos vestidos como marinheiros, com aquelas espadas na mão. Começavam aqueles cânticos e atabaques, aquele negócio... Aí você via, como se fosse um escaler descer do navio cheio de gente. Esse escaler nunca chegava à beira da praia. Em dado momento, aí, as mulheres, todas, começavam a ser possuídas pelos espíritos que tinham descido do navio, do escaler. Eles, então, lá recebiam aquela fusão de espíritos. Era espírito vindo da África, vindo da França, vindo da Espanha, de Portugal. Aquele navio ficava, mais ou menos assim, numa função, assim, de uma hora a uma e meia, duas horas... Quando você ia visualizar muito bem, aquilo ia diluindo-se e desaparecia. Isso eu vi, isso. Isso eu vi. É uma coisa que constatei e vi mesmo. (Visão da barca de Dom João. Intérprete: Jorge Itacy. In: A lenda do Rei Sebastião, 1 CD, faixa 11,
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2000)
Não importa saber que manifestação promove o discurso sebastiânico: se religiosa ou de fundo profano. Os discursos dialogam e nos transportam para lugares míticos e místicos, os ritos são portos de passagem. Seja no culto afro-maranhense ou nos relatos dos habitantes da ilha, tudo leva ao insondável. É a palavra que traz seres encantados ao presente da performance. Nesse sentido, figuras como D. João, o rei Sebastião metamorfoseado no touro ou na sua forma humana e ainda animais repletos de valor simbólico são apresentados nesse discurso que avisa o fim da tirania no reino que virá. vir á. No fundo de tudo há o mistério. A barca é farol de assombração, é pela voz dela que a ilha canta. O farol assombra, provoca o aventureiro, não se oferecendo por completo, o profundo se evidencia para, sem dia nem hora, clarificar o tempo propício em que promoverá o desencanto. E as coisas cá deste mundo hão de ser as mesmas coisas do outro, que por hora só se insinua. Mas essas essas fronteiras, essas regiões regiões limítrofes, são tênues, porque aí opera a Poesia. Fundo e superfície não se opõem quando ambos compõem a região do encanto. Suas fronteiras são desguarnecidas 14, uma vez que aí encantados e homens se dão as mãos pelo poético. É nessa borda rarefeita que ressoa a Encantaria, trazendo no canto todo o encanto, pela voz de narradores. A mitopoética mitopoética da Encantaria é possível na medida em que o narrador professa esse ligamento de mundos, apontando as heterotopias. Cantado como objeto de assombração que nunca aporta, o barco parece sintetizar esse entremeio, nem lá nem cá, do encanto. O olhar permite ver o barco que traz os espíritos dos ancestrais, na praia a recepção é feita com louvores, mas o barco permanece lá, no seu estado de entretopia. Todo o tempo, o discurso oferece o que virá, através do interstício, a dimensão que não se mede. A cidade recebe a denominação Ilha, o que sugere pensar seu sentido heterotópico. Um lugar circular, sem começo e fim, um anel fechado em si mesmo, como a condição
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humana de estar na terra, preso a ela, e ao mesmo tempo livre, para ausentar-se dela por outras vias. Nas vozes, pode-se ouvir que a Ilha guarda segredos, revelados oportunamente. A condição de lugar num entrelugar da ilha contempla todo o simbolismo do tempo que se cumpriu, mas que não tem fim, porque é o eterno-retorno. Nesse sentido, o entrelugar que é o lugar da ilha, permite que a dimensão do humano se dê na poesia vigendo os ritos. É a palavra absoluta nos corpos dos falantes-brincantes, ora fazendo galhofa do sistema opressor; ora amedrontando aqueles que muito têm a perder. A palavra instaura o novo, não através do conflito, do choro e lamento, mas pelo riso e pela dança. Não são corpos que se desfacelam, mas que promovem, por outras vias, a libertação da cidade ilhada. Será que a ilha indescoberta é São Luís, onde estaria o corpo desnudo e adormecido do rei? Embora muitos ludovicenses saibam falar desse rei e ele seja recebido com doutrinas nos terreiros do Tambor Tambor de Mina, todos apontam outro destino como sua morada. Afinal, São Luís deve ir ao fundo para que o reino r eino sebastiânico se faça concreto. Onde está esse segredo? Tudo Tudo nos diz que está escondido sob a morraria de uma pequena ilha, a alguns quilômetros dali. É para lá que vamos. vamos.
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3.3 ILHA IL HA DE LENÇÓIS: LENÇÓ IS: PASSAPORTE PARA A ENCANTARIA
Há algo de majestoso pairando sobre Lençóis 15, ilha da região das reentrâncias maranhenses, a 300 km da capital do Estado. Em meio a dunas e manguezais, cerca de cem casebres de madeira e palha escondem vários tesouros, materiais e imateriais. Os moradores, ou súditos, sabem quem é o verdadeiro dono dali e fazem questão de dizer isso a qualquer visitante: o rei Dom Sebastião. Chegar à ilha não é tão fácil. Depois de atravessar a furiosa baía de São Marcos, num ferry-boat, e percorrer quilômetros por estradas até chegar ao porto de Apicum-Açu (município de onde se parte para a maioria das ilhas), pega-se carona num barco de pesca, que ainda leva de quatro a cinco horas para chegar ao paraíso escondido, bem próximo à linha do Equador. Detalhe: para embarcar, é necessário esperar a cheia da maré, uma das mais altas da costa brasileira. O tempo definitivamente não é o dos homens ali.
Figura 7. Faixa litorânea do Estado do Maranhão. À direita, a porção branca é o Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses. Ao centro, a Ilha de São Luís. No canto superior esquerdo, o arquipélago de Maiaú, do qual faz parte a pequena Ilha de Lençóis.
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Figura 8. Faixa ocidental maranhense. A região das reentrâncias, com arquipélago de Maiaú na parte superior.
Figura 9. Baía de Lençóis e Arquipélago de Maiaú. Já é possível ver a Ilha de Lençóis, a porção branca a leste.
Figura 10. Arquipélago Arquipélago de Maiaú. A pequena pequena ilha branca do lado leste é Lençóis; a ilha acima, com uma longa extensão de areia, é a Ilha de São João, onde fica o farol.
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Figura 11. Mapa físico, detalhe, itinerário São Luís-Lençóis
Figura 12. Detalhe do Arquipélago de Maiaú com ilha de Lençóis em destaque. A cor verde representa os bancos de areia submersas nas águas, que se movimentam na direção do arquipélago, formando as dunas, com a ajuda do vento. Fonte: carta náutica número 400.
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No desembarque, desembarque, a visão das embarcações encalhadas no estuário em frente aos casebres e a exuberância da morraria ao lado (dunas, na linguagem dos moradores) de fato reforça a imagem de um lugar inóspito e mítico. Aquelas embarcações parecem parecem dar um aviso: “Cuidado, você está entrando em território da ordem do desconhecido, do velado”. Cercando a ilha, um manguezal exuberante serve de parede e proteção, ao mesmo tempo em que é berçário de milhares de aves de cor real, a guará-vermelho. Reforça também a crença de que ali é morada dos encantados, ou seja, a Encantaria, palavra dos que cultuam o tambor de mina, um misto de culto afro e pajelança segundo o qual a natureza – água, água, matas, animais, terra – terra – guarda guarda mistérios e seres de um entremundo 16. São cerca de 18 ilhas que compõem a região, todas com manguezais fecundos, num bioma espetacular. espetacular. À tardinha, as centenas de bandos de guarás-vermelhos revoam e se empoleiram no manguezal manguezal do lado norte da ilha, em frente ao ao mar furioso. Nas dunas colhese murici, um fruto f ruto pequeno, amarelo e de sabor exótico. Dezenas de cajuais crescem ao sabor do vento, no topo de algumas dunas e servem de esconderijo para as cabras, vacas e crianças que aí brincam de esconde-esconde. Ao pé da morraria, é só cavar com as mãos que a água brota puríssima, pronta para matar a sede. É isso o que fazem as mulheres pela manhã e ao entardecer. Das 10 da manhã às 16 horas, praticamente não se faz nada ao ar livre, devido à forte incidência de radiação solar com a proximidade da linha do Equador e a luminosidade da areia. Às vinte e duas horas, quando a luz pública é desligada, explodem constelações no negror do céu, cometas riscam a abóbada do equador em demasia, enquanto na praia são observados pontos avermelhados, avermelhados, sinal de que a noite de trabalho está apenas começando para os pescadores.
Pescadores de peixes e mitos. Trazer das profundezas das águas o alimento para o corpo. Pescadores de peixes. Buscar nas profundezas da memória o alimento para o espírito. Pescadores de mitos. São os homens e as mulheres de Lençóis. O peixe é pescado no estuário,
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nas águas da baía, entre as ilhas e no mar aberto. Nos espaços desertos, em meio às águas e nas praias, são construídas palhoças sobre palafitas que se chamam ranchos. Aí os homens permanecem durante dias, pescando. pescando. A maré vai e vem e a imagem dos ranchos isolados em meio a tanta água impressiona. O pescado é levado para o porto de Apicum-Açu, no continente, e vendido para atravessadores que levam o produto, sobretudo para a ilha de São Luís. Enquanto os maridos estão em alto mar, o que pode durar dias, as mulheres cuidam da casa, buscam troncos de mangue seco e fazem carvão. É delas a tarefa de buscar água ao pé das dunas. Para ter água, cavam a areia com as mãos e esperam minar. Depois, enchem suas vasilhas e caminham caminham uns 500 metros de volta volta para casa. Essa água é a única apropriada para beber e fazer comida, resultante das dunas, que funcionam como um grande filtro natural, represando a água da chuva que cai na primeira metade do ano, formando lagoas.
Figura 13. Ilha de Lençóis: povoado ao centro, manguezal e oceano no alto. No primeiro plano, as dunas que que abrigam Dom Sebastião.
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No povoado, há uma igrejinha cujo padroeiro é São Sebastião, e apesar de não haver missas periodicamente, há celebrações de leigos. As novenas para São Sebastião é famosa e atrai visitantes do continente e das outras ilhas. Faz-se torneio de futebol entre as ilhas, evento sempre muito festivo, onde jogam homens e mulheres. Além disso, há pouco mais de cinco anos, é realizada uma regata de São Luís a Lençóis (a Regata das Taroas), competição da qual participam dezenas de embarcações. Lençóis é a única ilha do arquipélago a ter uma casa de Tambor de mina. Na própria comunidade, poucos são os brincantes do rito, e embora nas noites do Tambor haja uma assembléia presente, entre elas crianças, que riem com a dança das filhas-de-santo, parece que o rito é visto de forma preconceituosa (aliás, como qualquer rito afro-brasileiro). É comum ouvir de alguns moradores frases do tipo: “Fulano é dessas coisas. Eu não sou dessas coisas. Não mexo com isso. Não sei falar dessas coisas...”. Os hab itantes das outras ilhas também demonstram ter o mesmo tipo de preconceito. Durante o rito, são entoadas doutrinas (canções) para entidades da Encantaria. Essas entidades são voduns, índios, caboclos, ou ainda reis, princesas e fidalgos. O rei Sebastião, portanto, é a entidade principal de Lençóis, e para ele são entoadas doutrinas específicas que mencionam a geografia da ilha como lugares sagrados porque foram fundados pelo próprio rei. Dois tambores (abatás) dispostos na horizontal, duas cabaças e o agogô fazem percussão para as doutrinas, que apresentam melodias variadas. Antigamente, o único instrumento usado no rito era o maracá, herdado da pajelança indígena. O fato curioso é a mistura dos ritos católico, africano e indígena, sincretismo que pode ser percebido nos nomes das entidades, nos instrumentos e nas imagens dos santos. O próprio responsável pelo terreiro é conhecido como pajé ou curador e não como pai-de-santo. As crianças são a maioria na ilha e têm o dia para brincar no topo das dunas cobertas por cajueiros, na praia e escorregando nas dunas, sentadas numa tábua que elas chamam de
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carrossel. Essa brincadeira já é tradição, pois os pais brincavam, os avós também. Isso pode ser evidenciado no nome de uma das dunas onde a criançada brinca, batizada de Saca-banco, em virtude de, com a descida, a criança não conseguir manter-se na tábua até embaixo. Há uma escola de ensino fundamental que funciona da alfabetização ao nono ano, apesar de boa parte das crianças já estudar no município recém-emancipado, Apicum-Açu, para onde os ilhéus estão migrando em busca de vida melhor. Por muito tempo a ilha despertou o interesse de muitos médicos. É que uma significativa porcentagem dos ilhéus é albina. E, por muitos anos, Lençóis foi conhecida como o lugar do planeta de maior concentração de albinos. Na década de 1980, por exemplo, uma equipe da OMS esteve na ilha, pesquisando os albinos. Alguns deles foram a São Luís e São Paulo, para exames mais detalhados da pele e retirada de amostras do sangue. Isso acabou despertando também o interesse de jornalistas que para lá se dirigiram a fim de entrevistar os albinos. As pesquisas médicas e o assédio dos jornalistas acabaram por infundir nas famílias uma repulsa seguida de reclusão. A partir desse momento, houve uma resistência para entrevistas e fotografias. Um dos patriarcas da comunidade, seu Saturnino (falecido já há muitos anos), acabou criando uma lenda que os meios de comunicação trataram de divulgar. Para se ver livre do jornalista que havia perguntado o porquê dos albinos na ilha, ele disse que todos eram filhos da lua, já que em noite de lua cheia, as mulheres se dirigiam às dunas iluminadas e passavam a genitália na areia, ficando grávidas de albinos. A verdade é que os albinos sofrem com a falta de proteção e, sofrendo com câncer de pele, acabam por isolar-se dos outros habitantes, já que vão perdendo partes da pele aos poucos. Uma prática constante dos ilhéus: os apelidos. A maioria dos moradores é conhecida não pelo nome de registro, mas pelo apelido. Às vezes, uma mesma pessoa recebe mais de um apelido, que é usado por grupos distintos (o grupo de pesca, os parentes, os amigos da infância, etc.) e o pesquisador primeiro precisa acostumar-se com essa realidade para mapear
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suas entrevistas. Na descrição dos relatos, muitas vezes, prefiro mencionar o entrevistado por seu apelido, desde que ele apareça mais na comunidade que o seu nome próprio. Qualquer morador da ilha é um exímio narrador dos eventos sobrenaturais dali. No entanto, para minha pesquisa, escolhi os entrevistados a partir dos relatos que fui coletando numa primeira conversa ou na bibliografia sobre a ilha. A maioria dos narradores é formada por idosos, os patriarcas da ilha. Quando um jovem conta algo, é sempre impulsionado pelas conversas de um membro idoso da família.
A riqueza velada: um reino sob a morraria 17. Na maioria das casas há pouca coisa, somente o suficiente para se dizer que casa é moradia. Então, onde está a riqueza desse tesouro? Alguns moradores dizem que embaixo da ilha há um outro mundo; outros dizem que está no mar; outros ainda afirmam que a riqueza se mudou para outra ilha do arquipélago depois que o rei viu sua praia invadida por gente indesejada. É o Reino de Dom Sebastião, que guarda velada a maior riqueza que um povo pode ter: a memória, capaz de tecer lembranças nos fios coloridos de matéria imaginária e recuperar retalhos da história. Os detentores desse tesouro se intitulam “Filhos do Rei Sebastião”, pertencendo, pois, a uma alta estirpe de nobreza. Sem terem nada, têm tudo; e nada lhes falta quando lhes falta tudo. A memória dotou e dota gerações com esse poder real. De pai para filho, de avô para neto, doutrinas, histórias e toadas são construídas, repassadas e atualizadas constantemente, formando uma colcha de tecidos cujos fios poéticos dão vigor à crença na volta de Dom Sebastião. Se essa gente soubesse quão grande e poderoso é o seu tesouro... Parece que o tempo em Lençóis é como a areia levada pelo vento: nunca modela uma mesma duna, a duna que amanhece é sempre outra. Assim acontece com as narrativas dos encantados: nunca é a mesma a ser proferida porque a oralidade é movente por excelência. O passado remoto é refeito pela memória, mas narrar é criar. No momento da fala, o presente nos dá o eterno, o
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vir-a-ser sendo constantemente. O tempo dos narradores não obedece outras regras que não sejam aquelas impostas pela memória. Tal qual pegadas na areia, que permanecem por algum tempo informando e demarcando percurso, assim é a voz dos narradores: um mapa movente, nunca estático, cartografando o itinerário dos encantados. São percursos que pregam peça para quem tentar segui-los. De repente, as pegadas são apagadas pelo vento ou pela água. De repente, pegadas se cruzam e confundem. Parecem dizer ao caminheiro desatento: “Para chegares no teu destino, as pegadas estão em ti”. As pegadas estão nas vozes polifônicas dos que narram, em verso e prosa, as maravilhas do Rei Sebastião. Este universo sustenta-se nas vozes dos patriarcas e matriarcas da ilha. Suas vozes misturam-se ao marulhar das ondas, à brisa do vento batendo nos coqueiros ou ao apito das embarcações, traduzindo-os. Aliás, eles nunca tomam para si a autoria das narrativas, cantos e doutrinas. Não são autores, mas performers do rei, tradutores da Encantaria, a morada mítica e mística. Como um rapsodo na Grécia arcaica, porta-voz dos poetas e das Musas, assim são os narradores de Lençóis: costuradores de contos e cantos, porta-vozes das maravilhas da Encantaria, morada do Encoberto. Por meio dos narradores o profundo vem até a superfície e revela-se na sua obscuridade. Onde está a realidade e onde ficou o encantamento? Mundos fundidos, difusão na confusão das vozes e da sonoridade da natureza. A linguagem da ilha e de seus habitantes é uma só: interpretação do desejo mais profundo, onde mora o encanto.
A ilha como Encantaria e a Encantaria nas vozes poéticas. Todos os ilhéus são unânimes: a ilha é a morada do rei. Alguns, geralmente os adeptos da brincadeira da Mina, o Tambor de Mina, dizem mais: ali fica a Encantaria, a morada sagrada dos Encantados. Não se trata apenas de um paraíso físico de beleza estonteante, mas é a própria casa sagrada, paraíso
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atemporal e metafísico. Os encantados podem ser tanto índios, caboclos e negros originários da escravidão quanto provenientes da alta linhagem: os fidalgos, reis e princesas. Mas ali todos reinam soberanamente, uma vez que, tendo ultrapassado a ideia da hierarquia terrena, agora são senhores do seu culto, e são recebidos com dança, doutrinas e tambores no mesmo espaço, o pajé ou terreiro. Embora se diga que a nenhum humano foi permitido ultrapassar o mundo físico para visitar a Encantaria, enquanto os encantados vivem nesse trânsito, a partir dos relatos dos narradores da ilha é possível apresentar o caminho para a Encantaria como acessível ao humano por outra via, a da linguagem e do sonho. Pode-se dizer que as experiências míticas e místicas de alguns com o Rei Sebastião ou qualquer outro encantado e os fenômenos metafísicos transportam a ilha a uma outra dimensão cuja concretude se dá pelo poético. Através da palavra, faz-se um mundo e fundem-se espaços, quebrando fronteiras e sabotando temporalidades. Podemos falar de uma poética da Encantaria, mas também apresentamos a Encantaria como o vigor poético, visto que o caminho para ela se realiza na pura performance, profusão de cantos, gestos e sonoridades ornados de palavra. O corpo não é somente a morada do sagrado, mas via aberta para o insondável, tradução perfeita da poesia, o acontecer do numinoso. O mistério não se revela quando questionamos o narrador sobre este mundo: Ah, aí eu não posso nem lhe dizer o quê que é Encantaria. É porque eu sei que é um mistério que eu não sei mesmo nem lhe contar. Porque aliás é... é o Brasil todo. Tem essa encantaria. Então eu não posso até dizer. O Lençol mesmo é terra dos encantados, é a ilha da assombração, porque tem a doutrina... eles dizem porque lá aparece muita visão. Pode ser por isso. Aparece muita visão. (Maria Teresa, Apicum-Açu, jan 2008)
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O rei se dá a conhecer e oferece o encanto. Quem é o Rei Sebastião, o Encoberto das areias de Lençóis? Como ele se dá a conhecer? Todos são unânimes em dizer que o rei é o dono da ilha, já que também foi seu fundador. A ilha seria uma espécie de entremundo, obra de um encantado e não apenas da natureza. As assombrações narradas pelos moradores apresentam nuances variadas sobre o mesmo tema. Boa parte das aparições acontece por meio de sonho. Nada é mais subjetivo que o sonho. Se a ilha é o entremundo, o sonho pode ser entendido como o entremeio, onde o diálogo das diferenças torna-se possível. É quando parte de mim se cala, para que o outro de mim possa falar. Lá no mais profundo do meu ser, emerge o outro de mim, na liberdade assistida por mim, que me limito a isso, porque ao corpo só resta narrar as maravilhas que viu do seu outro; o eu do corpo somente assiste a outrem na viagem. É por isso que cabe a ele dar o melhor de si para contar, talvez ansiando, um dia, ultrapassar a fronteira hermética do corpo e também visitar o entremeio. O sonho eleva o espírito a um estágio de semiconsciência que permite ao narrador, depois, relatar com detalhes a sua visão. Está, pois, instaurada uma cosmovisão, ou melhor, uma cosmogonia: O sonho é a cosmogonia de uma noite. Todas as noites o sonhador recomeça o mundo. Todo ser que sabe desprender-se das preocupações do dia, que sabe dar ao devaneio todos os poderes da solidão, devolve ao devaneio sua função cosmogônica (BACHELARD, 2001, p. 201).
De fato, os narradores não encaram o sonho como simples ausência de consciência. Sendo ponte para o mundo dos encantados, o sonho possibilitaria o entremeio, em que habitam os encantados e os humanos, momentaneamente, sem prejuízo para um e para outro. Nesse estágio, ninguém é dono de si, nem do corpo, que repousa tranquilo enquanto o espírito se liberta para poder entrar em contato com o impossível do físico. Assim, é por meio do sonho que as advertências e avisos chegam à comunidade. Então, a descrição do sonho é feita da melhor maneira possível, como se toda vez que aquilo fosse narrado, houvesse uma presentificação da mensagem do encantado. A palavra traduz, portanto, a hermenêutica do
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mito. Assim como o sonho, acontece também com o transe, um devaneio, um voo sem asas que não deixa de ser um estágio entre o físico e o extrafísico. Do mesmo modo, as visões, que acontecem a qualquer hora e pegam o vidente desprevenido, ocorrem no instante em que o habitante está entretido com um ofício ou quando se desloca de um ponto a outro da ilha, distraidamente. Nesse deslocamento, como na poesia, uma passagem se abre entre os mundos e o oculto deixa-se entrever. No entremeio, a língua não é mais dos homens, subverte-se a geografia, governam os encantados. Não aí que se encontram os poetas? Fora de si, acordados para dentro? Para ilustrar essa poética do entremeio, é importante mostrar como, no relato do velho Chico18, um dos patriarcas de Lençóis, acontece a fundação mítica da ilha. É o rei quem funda a ilha para ser seu local de descanso, depois de reinar em Portugal. Com a ameaça da guerra armada pelos reis da Espanha e da França para tomar o trono de Sebastião, o monarca foge com parte do seu reino. Chegando à costa ocidental do Maranhão, o navio ancora, o rei embarca num escaler e rema até um coroa de areia. Chegando ali, finca sua espada e surge a ilha, toda dele e de seu reino. Então, rei e reino fazem sua morada encantada no fundo das areias moventes. Esse relato de Seu Chico permite perceber a força simbólica que atua na Ilha, ela própria nascida de um encanto. Seu Chico conta que essa revelação foi feita através de um sonho, quando ainda era jovem. No sonho ele está indo para outra ilha, quando sente sede e para à beira do poço que fica ao pé da morraria. Mas eis que no instante em que se inclina para pegar a água, uma voz faz uma advertência: “A água é do rei e a empregada dele vai lavar roupa ali”. Seu Chico olha e nada vê. Pede que a figura apareça e imediatamente surge um homem ao lado do poço. O homem convida-o a entrar, porque o rei quer vê-lo. A entrada para o palácio do rei é o poço. A água cede e dá lugar a degraus que levam à sala principal do
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trono. O encontro com o rei é descrito com detalhes: Então... eu vim fazer uma viagem em Bate-Vento... Agora, por meio de sonho, sim? E aqui tinha lugar ali atrás do muro [...] tinha lugar por nome Bordado. E lá que o pessoal de Bate-Vento fazia as cacimbas para encher água para eles levar pra beber. E eu vim fazer essa viagem no Bate-Vento. Quando chega lá, aí me deu vontade de... me deu sede, né. Eu botei o ferro na canoa e fui beber água. Quando eu fui me abaixando pra meter a mão na água pra botar na boca, foi quando disseram assim pra mim: “ Cê não mete a mão aí que a empregada do rei vai lavar roupa”. Agora eu olhei, tava só eu e a barreira lá [...] Aí vai eu disse assim... Digo: “E quem tá falando pode aparecer que eu quero ver”. Disseram pra mim assim: “Espere um pouco”. Fiquei esperando. Quando eu dei fé, apareceu aquele homem na barreira do poço. Disse: “Olhe, entre que o rei quer falar com o senhor”. Aí eu: “E por onde que eu vou?” “Passe por aqui”. Nisso que eu me abaixei pra ir debaixo da barreira já fui pisando certo no degrau, no batente da janela do palácio. E o palácio é escritinho aquele ali [aponta para o prédio do colégio, uma das poucas construções de alvenaria da ilha]. Aí eu olhei e ele tava deitado numa rede, num escritório assim, uma mesa assim... aí entrei, cheguei lá aí o moço disse: “pronto, rei, tá aqui o moço”. Ai nós fomos conversar. Eu disse: “Rei, como foi pra você vir pra cá?” Disse que foi porque ele era rei em Portugal e ele queria descansar e ele queria dar lá a vaga prum sobrinho dele: “E o rei de França e de Espanha queriam que eu desse pra eles. Então eu disse que eu não podia dar pra eles. Eu queria dar pra meu sobrinho que eu queria descansar. Então eles me disseram que... aí manifestaram uma guerra”. Aí ele imaginou que ele só pra brigar com dois não dava. Ele podia perder. Aí ele ajuntou o pessoal dele, botou dentro do navio e fugiram. Que quando ele chega aqui nessa barra aqui... ele chega no lombo de terra que a maré passava, quando maresia vinha, lavava, escoava e ficava seco, ele mandou ancorar o navio. Quando ancorou o navio ele mandou botar o escaler dentro d‟água e convidou Antonio Luís pra ir com ele. Aí quando eles foram chegando lá na croinha, ela foi descobrindo, ele foi espetando com espada dele. Quando ele espetou a espada dele, se encantou... ele com navio, com tudo. Eu digo: “Rei, mas lá tem uns pajés que dizem que você não mora mais aqui...” Disse: “Não moro aqui? Eu moro aqui. Este lugar aqui quem fez foi eu. Esta croa foi crescendo e a água não foi mais lavando, foi nascendo mangue, foi fazendo a ilha. E daqui eu não saio. Agora eu, em cada Encantaria, eu boto um pra tomar conta. (Seu Chico, Lençóis, janeiro de 2009)
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Depois disso, o rei mostra um espelho ao jovem e pede que ele o mire. É através do espelho que ele vê todos os lugares que fariam parte da Encantaria. O espelho reflete todo o reino e a natureza do reino. Isso deixa o narrador extasiado, diante de tanta beleza. Em seguida, o rei conduz o visitante pelas dependências do palácio. Um quarto é o vestiário dos brincantes da Mina, cheio de roupas coloridas do rito, menos a cor preta. O outro quarto ao lado o rei não pode mostrar, porque estão descansando todos os espíritos dos pajés (curadores da Mina) que já morreram. O tempo passa, o empregado do rei aparece e se oferece para levar o visitante de volta para casa. Mas é o rei quem decide levá-lo, porque quer mostrar mais coisas do reino. E, como dois amigos, saem pelas areias, conversando. Na despedida, a areia se eleva uns dez metros, encobrindo a figura do rei. De repente, o rapaz está diante de sua casa. Seu Chico informa que acordara atordoado, ainda com sono, e ficou sete dias dormindo na areia quente, sem comer nem beber, por causa desse encontro. Vendo o filho naquele estado, a mãe pegou uma camisa do filho e foi à outra ilha, para que uma benzedeira o curasse. Assim que vê a camisa, a mulher reconhece que tudo foi obra do re i e exclama: “Se encontrou a vontade com o desejo: o rei tinha vontade ver ele, ele tinha vontade de ver o rei”. Depois, Seu Chico revela que o rei lhe pedira para não contar essas histórias, e por isso, sempre quer as conta, adoece depois. Isso explica por que ele se esquiva ao ter que falar sobre o rei e dificilmente dá entrevistas ou menciona o Rei Sebastião nas suas conversas. Parece que descer à profundidade do encanto mói o corpo, frágil demais para ter contato com o sagrado. O rei chegou a fazer uma aposta entre seu Chico e o seu empregado, aquele que sempre leva os recados do rei ao velho Chico. Ambos têm três disputas. Se o velho não ganhasse a terceira, ficaria encantado ali. Seu depoimento tem muita relevância pelo fato de o narrador ter conversado com o rei. Enquanto fala, o narrador aponta os lugares na ilha por onde passara acompanhado da figura real:
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E outra vez nós tornemos conversar. Eu morava ali assim [aponta para o lado do colégio]. Ele mandou o dito camarada num cavalo e mandou um pra mim. E mandou esse camarada vir. Agora ele foi ficar aqui, num lugar que tem aqui por nome Enseadinha. Uma casa muito grande, meu amigo, muito grande. Ele foi ficar no derradeiro quarto. Agora era toda cheia de porta. Entrava nessa aí, varava nesta aqui. E o negócio ia assim. Ele foi ficar no derradeiro quarto. Aí nós fomos. Aí eu já fui deixando ele, fui deixando ele, fui deixando ele... até quando chegou na porta, eu já tava na frente dele. Aí entrei. Que quando eu cheguei lá, que ele [o rei] me olhou... ele fez com a mão assim. Eu apeei o cavalo, não demorou o outro chegou. Ele disse [para o empregado]: “Olha, você volte, que ele tornou lhe ganhar. São três apostas que vocês têm, vocês dois. Se a derradeira você [Chico] não ganhar, você fica aqui”. Aí se alevantou, pegou uma bola grande, branca, assim... Apanhou ela no escritório e disse: “Olhe, o seu retrato tá dentro desta bola”. “É, senhor”. “Tá dentro desta bola. Volte!” Aí eu voltei. (Seu Chico, Lençóis, janeiro de 2009)
Na sua dignidade real, o rei oferece o encanto aos seus súditos, convida-os a transporem a barreira física e passarem a vigorar no reino da Encantaria. Pode ser que uns entendam isso como punição. Mas não é esse o caso do velho Chico. Sua intimidade com o rei e com as coisas da Encantaria permite que ele queira mais do que o encanto, que fecunda a morte física. O desejo do velho é grandioso: Eu falei pra ele se fosse pra me encantar né, como ele disse, que se eu não ganhasse essa outra aposta eu fico, eu quero ir com corpo e tudo, né só alma não. Ele riu. Hum, hum... [risos] (Seu Chico, Lençóis, janeiro de 2009)
Essa descida em corpo e alma ao fundo do encanto configura o despojamento do ilhéu, ao mesmo tempo em que prefigura o desejo do rei para toda a ilha. Entre a vida terrena e a vida de maravilhamento, não se pode esperar muito para decidir pela eternidade do encanto. Seu Chico entende do reino submerso muito mais do que qualquer morador dali, o que o torna apto a fazer ressalvas frente à iminência da disputa. A relação da figura do encantado com o mortal chama a atenção. Há o respeito e a reverência de ambos os lados, mas há também cumplicidade, uma certa camaradagem e amizade que não se vê nos outros relatos. Existe o
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medo do desconhecido, o assombro diante da aparição, mas há junto o desejo de entrega ao maravilhoso. Essa absoluta confiança no Encoberto tem seu preço. Falar custa caro, isso me foi dito antes da entrevista. No início pensei que eu deveria pagar pelo depoimento. Seu Chico declara que sua palavra deveria ser silenciada. Mencionar o encontro com o mistério culmina numa espécie de expiação do narrador. O fato de sempre adoecer após falar do rei, mostra o alto preço da palavra lançada ao mundo. Numa das narrativas de dona Teresa, também uma das moradoras mais antigas da Ilha, que atualmente mora no continente, o rei aparece para o seu filho e outras crianças que brincavam no campo ao lado das dunas, acompanhado de uma matilha. Esse detalhe é interessante na construção do imaginário sebastiânico, pois consta das inúmeras biografias do rei, que um dos seus passatempos quando criança era a caça; inclusive, como vimos, a pintura de Cristóvão de Morais apresenta um cão ao lado do rei, vigiando-o. O assombro das crianças vai promover o devaneio, a febre, a fraqueza: O Edmundo, quando era pequeno, foi botar arapuca, ele com mais duas crianças. Quando eles olharam, vinha uma pessoa, todo de roupa vermelha, com um cachorro... um bocado de cachorro. Tudo só numa linha né, numa fila. Que quando eles deram fé que deparou... ele tava perto da moita... aí tinha uma rês pastando. Aí saiu um dos cachorro pra acuar. Ai quando ele virou de frente né. A barba era assim tipo um profeta eu acho né que seja... ai disse: “Passe já pra cá, que você não é daí. Pode procurar seu lugar”. A í o cachorrinho veio pro lugar dele. Aí foram né... passaram. Quando passaram lá eles foram se escondendo tudinho na... porque olharam que não era gente da praia né. Foram se escondendo pra moitas, até quando ele passou com os cachorros lá pra frente. E aí foi que eles saíram, chegaram em casa tudo com medo. Aí adoeceram. [...] então o pai deles disseram que era...só podiam ser um reis, um reis porque pela veste, era assim aquele roupão, no traje mesmo como a gente olha no baralho, tem aquela roupa vermelha, né. Só que ele não tava com a coroa. Ele tava a paisana. Então meu marido disse: “Olha, vocês olharam foi o reis, porque nesse traje que ele é.” Ele era pouco descrente, mas acredita certa coisa. Ele ouvia dizer, ele acreditava. Ele era cearense. (Teresa, Apicum-Açu, janeiro de 2009).
Um cão sai do bando para latir com as vacas que pastam ao lado e o rei o adverte: “Passe já pra cá, que você não é daí! Pode procurar seu lugar!” Fica claro que o mundo do
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encantado é outro, mas nem por isso não deixam de estar conectados. O animal encantado percebe o animal físico e também quer interagir, ultrapassar uma fronteira. Mas a advertência do rei não deixa dúvida de que lugar de encantado é com encantado. É preciso saber o limite entre o mundo dos vivos e dos mais vivos ainda. Os vivos estão preparados para ver o que precisam ver? São as crianças as agraciadas com a visão, pela sua pureza genuína, o próprio reflexo da natureza que desabrocha. O que imprime uma nota de realeza na visão do encantado é o manto e a coroa. O roupão vermelho sem a coroa evidencia o despojamento da majestade. Um rei aparecer em público sem coroa é motivo de alerta, porém aqui pode significar justamente o advento de uma nova coroação, que ocorrerá com o desencantamento. Estar à paisana, como relata a narradora, sinaliza o advento do novo desejado, numa reconfiguração do reinado que há de vir. Ou seria um sinal claro da derrocada? No mundo da Encantaria, a ordem é outra e hierarquia não pressupõe haver mais dominante e dominados, a não ser que esteja em questão uma disputa entre o humano e o encantado onde este quer ser desencantado e aquele sonha em ser levado em corpo e alma pelo encanto. Assim como mencionado por dona Teresa, também as crianças associam a figura do rei Sebastião ao rei do baralho, provavelmente por ser a única referência palpável que têm de uma realeza. E não deixa de ser simbólico justamente uma criança fazer essa associação. Quer dizer: o rei do baralho, uma carta importante, com desenho espelhado, duplicado, em cima e embaixo, oferece simbolicamente o jogo duplo de encoberto-descoberto, do profundo versus superfície. Nesses distintos mundos, separados pela tênue borda do espanto, as simultaneidades revelam que os opostos não são tão antagônicos; o mundo de cima e o de baixo se superpõem, fundem-se na confluência do mundo físico com a Encantaria. E essa fusão se dá pela palavra poética entoada e proclamada nas conversas, nas festas e nos ritos.
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Figura 14. Desenho feito por um menino e dado a uma turista que havia pedido para o mesmo desenhar o rei da ilha. Janeiro de 2009.
O relato de aparições de joias pela praia é explicado pela narradora como sendo uma forma de o rei se dar a conhecer e ainda avisar que aquele lugar tem um dono: Rei Sebastião... faço como dizer... eu não sei nem quem é. Sei que é uma divindade. Mas eu não sei... é conhecido por Rei Sebastião. Ah! Quando eu nasci, eu já ouvia falar. É antigo. Ouvia falar de Rei Sebastião, da Jarina, da Mariquinha... E – E o que falavam do Rei Sebastião? MT – Que ele era dono do Lençol. E governava aquela ilha. Só tinha o que ele aceitasse, o que não aceitasse não tinha. Eu não sei contar mais. E outras coisas eu sei... das miçangas, conta, alfinete... era pedaço de varão de ouro, de brinco, cordão, de anel, essas coisas assim... botão, era tudo... tudo a gente achava. Aí essas coisas sumiram. De uns tempos, desapareceram.
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Ninguém sabe se era alguma moradia antiga, também, no tempo do dilúvio. Não se sabe da onde é. Meu pai-de-santo disse que era (risos) a mãe d'água. O senhor já ouviu falar em mãe d'água? Era a mãe d'água. Duns tempos desapareceu porque a mãe d'água afastou pra entrar Mina. Porque antigamente é curador de maracá, agora é Mina, tambor de Mina mesmo. Ele contava assim. E – Podia ser obra do Rei Sebastião? MT- Podia também ser. Podia também ser que ele fazia aquilo pra mostrar pras pessoas acreditar que existia. Só podia ser. Então eu não sei da onde nascia aquilo. (Maria Teresa, Apicum-Açu, janeiro 2008)
Na fala de dona Teresa, um mito dá lugar a outro mito, ou seja, a mãe d‟água era quem vivia na ilha, e acabou dando lugar para o rei. Essa reatualização dos mitos não significa que um foi suplantado em virtude do outro, mas houve uma fusão, uma completude. E por isso que ela explica que o rito praticado ali antigamente era a pajelança, rito indígena de cura, no qual era usado um maracá, e que depois foi substituído pela Mina. A própria forma como o rei aparece, sugere a mistura de elementos da cultura afro e ameríndia. Portanto, o mito tem o poder de reconfigurar-se, de inculturar-se e hibridizar-se, porque no local vige a essência do universal. Em outro relato, o rei surge montado no cavalo branco. Quem narra a história é a velha Nini. Uma senhora foi ajudar o filho pescador. Enquanto ele pescava com os amigos, sua mãe remendava redes no rancho, sozinha. De repente, a mulher vê a figura do encantado observando-a da porta do rancho. Ela ordena que a figura vá embora e então vê o rei. O medo não acovarda a senhora, mas incita-a a proteger-se. De que têm tanto medo os agraciados? De serem levados em corpo e alma para o reino do encantado. Não são poucos os relatos em que o próprio rei avisa que quase levou o pescador para junto de si: Vou lhe contar outra também que ainda me alembro. Ali no Valha-me Deus tinha um senhor que botava zangaria ali pra banda ali da Parida. E a mãe dele sempre vinha né pra tecer a zangaria pra ele. Ele saia pescando com os companheiros a rede, ela ficava sozinha ficava sozinha tecendo zangaria [...] e o rancho era... esse... daqueles fogão a gás né. Tava lá tecendo [...] Nisso
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que ela cata o cigarro, que ela fumava muito, e acendeu, que ela olha bem na porta [...] aquele cavalão branco [...] Ela disse que sozinha deu um medo nela [...] Ela disse com essas palavras: “Vai embora que eu não to te mexendo contigo. Não venha me espantar, não venha me meter medo. Vai embora” aí ficou, ficou. Depois ela tornou a falar. Foi saindo um homem amontado. Diz, meu senhor, diz que na mesma hora [...] diz que era o rei Sebastião que tava montado no cavalo. Ele foi saindo... que ela saiu na porta, ele foi marchando, foi embora pra banda dali do Gino. (Dona Nini, Lençóis, janeiro de 2008)
A corte sebastiânica está submersa nas areias de Lençóis. Em meio às belezas naturais surgem sinais do reinado. O mundo da Encantaria envia mensagens aos mortais, advertindoos, aconselhando-os, convidando-os a ultrapassar a tênue, mas invisível fronteira entre o mundo físico e a Encantaria. Seu Simião, o velho pescador e genro de dona Nini, é categórico: “Eu já vi ele”. Sentado num tamborete, na sala da casa de madeira, o velho conta, com uma voz quase imperceptível, como foi que ele e sua mulher viram o rei. Em noites de luar, geralmente no verão, em setembro, costuma-se avistar a figura do rei: Ele é um homem... um homem enorme, alto. Ele vem branco, ele é branco, já avistei ele num cavalo... ele passa num cavalo, vem montado, Lá perto do grupo, onde eu tô, do colégio. Eu já vi... um cavalo, um luar bonito... ele gosta de passar, passear mais é verão, no mês de luar, é setembro. Quando tão brincando também a Mina. Ele gosta de passear muito. Outro dia ele passou bem perto de minha casa, minhas filhas viram aqui. Um homem num cavalo, rei Sebastião. (Simião, Lençóis, janeiro de 2008)
O rei vem reverenciar os súditos de sua corte. A época preferida é entre agosto e setembro, ou quando a corte brinca. Coincidentemente, a batalha onde o rei pereceu deu-se em agosto, e por volta de setembro daquele terrível ano de 1579 o reino de Portugal chorava, incrédulo, a morte do seu jovem rei. As datas de aparição da figura do encantado na ilha parecem insinuar que, ao virar mito, a história mantém com ele uma estreita ligação dialógica. Assim, os sinais apontam que o rei que perece na batalha é o mesmo que está vivo e oculto na ilha. A seriedade com que o narrador afirma “eu vi ele”, repetidamente, confirma essa abertura
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para o numinoso. Não basta ver, é preciso contar o que viu: O rei é uma pessoa que... posso dizer assim... eu já vi ele. Vi ele ali no colégio, já vi diversas vezes. Eu tô lá vigiando o colégio e já vi ele vindo num cavalo. Tá vendo? E eu vou contar... to contando o que meu sogro contava. Contava que...ele morreu com 114 anos, meu sogro. Ele disse pra mim: “meu filho, aqui nessa ilha, aqui nessa praia dos Lençóis [...]” (Simião, Lençóis, janeiro de 2008)
E de repente, o narrador une o que viu com o que lhe contaram. Quase sempre um relato dá origem a outro, vai sendo tecida uma rede que forma o discurso sebastiânico, tecido todo de memória e voz. A narrativa a seguir, mostra como o rei interage com seus súditos, reforçando o sobreaviso dado ao Seu Chico, para que não conte o que viu: O Saturnino Oliveira contava que chegou aqui um homem, chegou num barquinho vendendo farinha. Não vendeu um paneiro. Aí ele disse assim: “Se eu achasse uma pessoa de coragem, eu vendia a farinha todinha agora, nesse momento”. Quando ele vai dando com o olho, um homem subiu, ficou na borda do barco, a embarcação, canoa velha, e disse assim: “Você vende a produção?” “Vendo toda a farinha.” “Quanto é o paneiro?” “Dois mil reis o paneiro”. O homem disse: “Eu compro todinho”. “Onde eu vou botar a farinha”. “Jogue tudo dentro d'água”. O vendedor jogou a farinha toda dentro d'água. Eles estavam em três: o dono, o marinheiro e o cozinheiro... tavam no barco. O homem disse: “Quem vai buscar o dinheiro? Quem vai buscar o dinheiro de vocês?” O dono disse assim: “Eu não vou.” O outro disse: “Eu também não vou”. Aí cozinheiro da embarcação disse: “Então eu vou. Rumbora”. O homem disse assim: “Então fecha o olho, fecha o olho”. Fechou e eles desceram. Quando chegou lá no Agrado, é lá que é o Reino dele, aí ele caiu na morraria. Desceu. Ele chegou lá no fundo, olhou, tudo muito lindo, no fundo, lá na maré. Tudo quanto é, no fundo do mar, tudo quanto é. Ouvia tanta zoada, ouvia movimento de gente, mas não via ninguém. Quando ele entregou o dinheiro pro cara, mandou fechar o olho. Ele fechou e subiu. Aí o homem disse assim: “Olha, o que você viu aqui, você não conta pra ninguém, nada. Se você
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contar um dia, você morre. No dia que você contar, você morre.” Ele subiu. Aí passou um ano, passou dois, passou três anos e ele não contou. Cinco anos depois, ele contou lá no Outeiro, uma praia do Maranhão. Contou no Outeiro. Foi contar e morrer. (Simião, Lençóis, janeiro de 2008)
A mesma palavra que liberta o discurso também é causa de aniquilamento do falante e agora percebemos que o temor pelas visões tem sua razão de ser. Certas coisas não devem ser relatadas. Certas experiências devem ser guardadas apenas para si, não cabem na palavra. Se a palavra não dá conta de revelar o profundo, ela deve ser silenciada. É no silêncio do dizer que está o fundo, com toda a sua riqueza, e se guarda de toda curiosidade da linguagem. A morte do narrador se justifica por ter ele ofertado o que fora oferecido somente a si: a contemplação do mundo do fundo. Presente ganho não se dá a outrem. A morada do rei, por sua vez, é assunto controverso. Para uns, o palácio dele fica submerso nas dunas da ilha de Lençóis, bem em frente ao povoado. Para outros, ele mudou-se para a ilha de São João, em frente a Lençóis, onde fica o morro Três Irmãos. Outros dizem que ele não mora mais no arquipélago, mas em Alcântara, próximo a São Luís, apesar de recorrer sempre à praia dos Lençóis. Em todo caso, ninguém se nega a concordar que ele é o dono do lugar e que talvez o aumento da população tenha indignado o rei, que além de sair dali ainda promove o aumento das dunas, como forma de expulsar os habitantes indesejados. Em todos os relatos até aqui apresentados, a presença do numinoso desencadeia uma série de reações que vai do frio seguido de arrepio ao pavor que produz a febre e a fraqueza corporal. O terrível acompanha o vidente e fica claro nas narrativas. O ilhéu experimenta o medo atemorizante. No entanto, ao invés de ser considerada uma experiência negativa, o encontro com o Outro é recebido com uma dádiva, uma graça benevolente. É, no mínino, um paradoxo imaginar isso. É que no reino do desconhecido não há nossa moral, portanto desaparece o niilismo. O sagrado não pode ser nem bom nem mau porque não é humano e, assim, nossas reações frente ao terrível não devem ser medidas com a régua do racional.
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Porque o caráter irracional estará sempre no cerne da experiência com o inefável é que nos impossibilitamos pensá-lo nos moldes do que achamos ser ética e justo. Aquilo que está fora de nós e longe de nosso alcance, prova que não somos capazes de tudo, uma vez que nossa essência demasiada humana nos impõe limites. Qualquer experiência com o “totalmente Outro” será sempre gestada pelo assombro.
Transfigurações e abrasileiramento do encoberto. Se, na Europa, todos os conchavos para casar o rei foram malogrados e Sebastião morrera sem herdeiros, no Brasil ele se casa com a Iara e com ela tem filhas princesas que, assim como o pai, ocultam-se e revelam-se aos mortais. Sebastião passa por um processo de abrasileiramento, miscigena-se, acultura-se, ajustando-se perfeitamente às crenças e costumes locais. Ironicamente, o rei que defendia a cristandade com um fervor religioso tal qual seu santo homônimo, e doa a vida em nome de uma causa cristã, aqui tem de render-se ao sincretismo religioso, a mistura do rito católico com a pajelança ameríndia e ritos animista-fetichistas africanos. O resultado disso é que, em suas manifestações, troca seu manto real por uma tanga de penas, sua coroa por um cocar e o seu cetro por um maracá. Em outras ocasiões, chega mesmo a mudar a cor da pele, manifestando-se negro. Também seu castelo assume características locais; mesmo revestido de azulejos azuis, o seu trono é a rede, onde recebe seus súditos, balançando-se ao sabor da brisa quente19. Do fundo da terra, ouvem-se sons de tambores, que fazem a areia rachar-se. É festa no reinado encoberto, e o ritmo, ao invés da marselhesa, é indígena e afro: E eu sei que já vi ele, em sonho, eu já vi. Ele é branco, bem branco com os olho azul, com as roupas de penas. Eu já vi ele em sonho mesmo. Ele é mesmo morador daqui da ilha. Só que ele não mora mesmo aqui dentro da ilha. Ele mora num morro mais alto que tem ali que chamam Três Irmãos. Ele se mudou pra lá, mas sempre ele recorre à praia. E – A ilha é dele... TELMA - É, a ilha é dele.
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E – aqui é encantado... TELMA – ele é encantado aqui. Assim, às vezes, em sonho, tem as cantigas dele... do Rei Sebastião... quando nós dança tambor, aí nós canta pra ele. E- Como é a doutrina dele? TELMA – Ah, é de pajé mesmo... (Telma, Lençóis, janeiro de 2008)
O rei casa-se com a sereia e tem filhos encantados numa terra em que não se morre, apenas fica-se velho. Não há morte para os encantados. O rei tem pelo menos quatro filhas. Os nomes desses seres são apresentados de diversas formas, entre eles, os mais são citados são Jarina, Dina ou Diana, Flora e Dulcelina. Elas brincam com os peixes, cantam melodias para o pai e se metamorfoseiam em animais para fazer um convite especial aos pescadores: Quem terá coragem para promover o desencanto? Quem entre os humanos quererá casar-se com uma sereia? A princesa Jarina, metamorfoseada numa cobra, é o ser que mais se enamora dos pescadores, segundo o relato de Dona Rosa:
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Essa foi uma cobra. Tinha um rapaz, ele já tava assim um coroa, tá entendendo? Quando foi de noite, [...] ela veio contar pra ele, pra ele dizer pra ela se ele tinha coragem de desencantar ela. Porque se ele desencantasse ela, o Maranhão ia ao fundo. Lençóis ia ser São Luís e São Luís ia ser Lençóis. Aí ele foi. Ela marcou um encontro com ele, aonde era, aonde não era pra ele ir e ele foi. Que quando ele chegou lá, que ele olha, bota rolo de jiboia. Era um rolo de jiboia. Ele botou a faca na ponta da vara, pra ele achochar ela. Porque se ele tirasse ao menos uma escama dela, ela desencantava e casava com ele. Maranhão ia ao fundo. Quando ele ia fazendo a menção pra jogar a faca nela, ela se virava pra ele com um sorriso de rir, e ele pensava que ela fosse engolir ele. Acho que ele pensou. Aí ele não teve a coragem de desencantar ela. E ela andava atrás de um rapaz que tivesse coragem. Mas só que ele ficou com medo e não teve coragem. Quando chegou em casa, ele era tarrafeador, quando chega em casa, conta pra mulher dele. Até hoje ele tá debaixo da terra, que ela pediu que não era pra ele contar. Deu uma febre nele... que febre foi essa que enterrou ele. (Dona Rosa, Ilha de Porto do Meio, janeiro de 2009)
Embora os relatos apresentem a descrição do rei com um humano, ora com traços europeus, ora com traços mestiços, seu desvelamento acontece pela metamorfose. Ele assume
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a condição zoomórfica. A maioria dos relatos apresenta o rei na forma de um touro, negro ou azul, com estrela prateada na testa, galopando as areias em noite de lua cheia. A ilha é mais conhecida como a terra do touro encantado (MORAIS, 1979; FERRETI, 2000; BRAGA, 2001; GODOY, 2005). Todos os relatos demonstram o interesse do touro em ser visto e também ferido na testa, onde está cravada a estrela, a fim de que o sangue seja derramado sobre a areia e promova o desencanto. A fala do velho Macieira, um dos moradores mais antigos da ilha, que atualmente mora no continente, apresenta o touro: O touro eu nunca vi, porque eu não fui assim uma pessoa amedrontada. Não gosto de mentir, gosto de falar a verdade né. Então um dia, um primo meu chamado Joca, que era irmão da Nini, ele saiu de casa, foi tarrafear, lá tinha uma morraria grande, que hoje já desapareceu. Então, aquela morraria era alta, bonita, noite de lua. Aí ele ia aqui com os cachorros dele, ele gostava de ter muito cachorro, aí uns três a quatro. Quando ele olhou pra riba da morraria, lá está um boi grande, né, aquele touro grande olhando pra fora. Ai ele disse: “Ah, aquilo que é o boi do rei Sebastião”. Aí ele botou os cachorros em cima. Ai cachorro foi lá, acuou, e tal, ali. Aí quando ele foi se aproximando perto, o boi meteu o galope pra baixo da morraria. Ai quando foi chegando perto que a maré encheu lá [...] entrou entre a maresia e foi embora. Os cachorro ficou só lá. Quando foi de manhã, eles foram lá, né. Chegaram lá só viram o rastro dos cachorros, onde eles faziam o rodeio atrás dele, né. Aí desapareceu. Aí o rapaz veio embora. Passou uns três dias com aquele frio no corpo. Só pode ter sido o boi que, talvez, num olhar magnetizou ele. né? Rapaz! (Macieira, Cururupu, janeiro de 2008)
Ter presenciado uma cena dessas gera desconforto físico, o que para Macieira, teria sido o magnetismo do olhar do encantado. Não basta ter visto, é preciso retornar ao local da visão, se possível com testemunhas, para buscar vestígios. Se forem encontrados rastros, pegadas, marcas, é sinal de que não foi assombração e sim obra do medo. Não é o caso do que acontece nos relatos, pois as únicas marcas impressas na areia são dos cães e do próprio vidente. Quando questionado sobre a morte do touro por algum corajoso, Macieira responde, mostrando que o protagonista dessas histórias não pode morrer: Senhor, se matasse o touro, não sei o que aconteceria, porque acho que ia ter qualquer coisa. Porque de uma vez que ele é dono lá, ele não podia morrer. Isso é como quem faz uma novela. Tem o autor da novela. Então aquele
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autor não pode morrer na novela. Se morrer, a novela acaba [rindo]. Era como ele. Então ele não pode morrer, todo tempo ele é vivo ali. Agora outra... pelo que eu sei, diz que ele já tá mais pra aquela morraria do farol. O senhor foi lá? Diz que pra lá que ele tá. (Macieira, Cururupu, janeiro de 2008)
No relato de Dona Rosa, o boi reluz, como o brinquedo da dança dramática popular, o Bumba meu boi. A narradora já não mora em Lençóis, mas em outra ilha do arquipélago. O relato dela, portanto, acontece nessa ilha, o que dá a entender que também quem presencia as visões leva consigo, para qualquer lugar, a continuidade das manifestações. No narrador se encontra um desejo inconsciente de continuar a ser visitado pelas aparições: A gente foi buscar água, eu mais minhas colegas, porque um tempo desse a água fica ruim aqui. A gente foi, né... umas cinco horas da tarde nós trevessemos pra lá, pro outro lado. Aí as meninas disseram assim: “Rosa, tu fica aí cavando o poço?” eu disse: “Fico”. “Que nós vamos panhar uns guajiru”. Que tem muito guajiru, umas frutinhas. Nisso, que eu to abaixada, cavando o poço, elas foram embora, apanhar os guajiru delas.. Que quando eu vou me erguendo.. quando eu olho... eu olhei aquele boi.. Tá vendo? Boi de Rei Sebastião. Era ele, tá vendo? Ele de frente pro mar e costa pro lado daqui. Só que ele tá igual a um boi de brincar, tá entendendo? Isso, sabe por que? Nós cavemo o poço foi no reino dele”. Ai também nós enchemos nossas vasilhas...era muita água né... enchemos nossas vasilhas e viemos se embora. (Dona Rosa, Ilha de Porto do Meio, janeiro de 2009)
Já no relato de dona Nini, o touro se manifesta apenas em noite de lua-cheia. Mas nesse caso, o rei não é o touro, pois surge montado nele. O cavalo branco também não é o rei, e surge quase sempre sozinho, galopando pela praia: E – A senhora tem 89 anos... E quais são as histórias que a senhora tem na lembrança sobre o rei Sebastião? NINI – É do touro... Ainda não lhe contaram? É o touro que aparecia... que era o touro de Rei Sebastião. Tinha... certas pessoas, quando era noite, olhava. A [...] era alvinha, né. Ele era bem pretinho. Papai sempre contava. Papai viu. E passava... Muita gente ainda alcançou... em noite de luar. E – Noite de lua cheia... NINI – É, ele se mostrava ali pra torre né... ele passando e um homem amontado em cima.
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E – E quem era o homem que ia montado no touro? NINI – diz que era o rei Sebastião (...) que era o rei Sebastião. E contanto que muitas pessoas viram e contavam. Esse Zé Mário também sabe. Ainda mais que ele é dessas coisas. E contanto... E também tinha um cavalo, não sei se já lhe contaram. Tinha um cavalo que tinha noite que aparecia. Ainda passou aí na curva da casa de meu sobrinho, né, e eles viram tudinho. Passou (...) aquilo chega tava espelhando. Aqui já se viu muita coisa, meu senhor, já. Por isso que eles dizem que a praia é encantada. (Dona Nini, 89 anos, Lençóis, janeiro de 2008) Nota-se nestas descrições que a memória
dos velhos é repassada de geração a geração,
constituindo o legado cultural da ilha. Aquilo que os pais contaram está sendo transmitido como verdade, assegurada pelas frases: “Papai sempre contava. Papai viu”, ou ainda: “E contanto que muitas pessoas viram e contavam”. É quase sempre alguém que disse e o narrador apenas relata sua versão, quando este não é o próprio contemplado pela visão. O relato do falecido José Mário, ex-pajé da ilha, apresenta uma descrição diferente, a partir do que viram seus avós. O rei não mostra a cabeça, e aparece embaixo de uma árvore: E – E o que o senhor tem para dizer sobre o Rei Sebastião? Porque dizem que esse lugar é encantado? JOSÉ MÁRIO – [...] Diz que Rei Sebastião está encantado aqui na praia dos Lençóis. Que quando eu nasci já achei o anúncio... do Rei Sebastião aqui na praia... que ele aparecia virado um touro negro. E eu não alcancei assim, que eu nunca vi... um touro negro. Eu nunca vi ele virado em touro negro. E – Quem são eles que contam? JM – Eram meus avós, o meu avô, minha avó, tio irmão do meu avô. Eles contavam que eles viam ele aí no campo, na ilha aí. Debaixo de um pé de árvore, duma tal de almesqueira que tinha, né. Ele aparecia, mas ninguém via a cabeça dele, era só o corpo que via. Dizendo eles, né? Era pretinho, bem pretinho mesmo. [...] porque ele não mostrava a cabeça, era só o corpo. Eu não alcancei ele não. Aparecia diz que mulher, homem assim também. Se saía pra apanhar murici no campo, os homens e as mulheres viam as mulheres também a apanhar murici. Quando mudavam a vista, desaparecia tudo. Não viam mais. Eram quase cinco mulher, elas apareciam na frente deles, conversando e apanhando também. Ninguém via. Apareciam joias de ouro, tudo, aparecia aí. [...] era santinho, roseta de mulher, brinco de ouro mesmo, as joias viu. Aí depois recolheram, que aí não mostrou mais. Não aparecia mais. (Zé Mário, 71 anos, pajé/curador da ilha, janeiro de 2008)
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No relato do velho pajé, o rei é negro e lhe falta a cabeça. Junto do rei, surgiam vultos de homens e mulheres, fazendo o mesmo que os mortais, colhendo frutos. Essa transmutação do rei evoca a miscigenação do povo brasileiro, nação multicolorida. Não ficou fora nenhum elemento formador da cultura brasileira: índio, europeu e negro se mesclam nas transmutações do rei. Um rei sem cabeça, negro, parece suscitar a lembrança do reino perdido na guerra ao mesmo tempo em que sugere a perda da liberdade pelos africanos escravizados e deportados ao Brasil. Onde ficou a cabeça real? Como coroar um rei sem cabeça? Sem uma cabeça para governar, o que há de fazer o corpo? Embora unidos por um eixo, os relatos sempre se diversificam nas descrições. Aqui, o touro não mostra a cabeça, mas apenas o corpo. Se o touro se apresenta para uns com uma estrela prateada na testa, o possível alvo para o desencantamento, parece que o relato de um corpo sem cabeça evidencia a dificuldade de que tal desencanto possa ocorrer de fato. Esse jogo de ocultação, semi-ocultação e revelação sugere uma disputa de espaço entre homens e encantados. Tudo pode e não pode ser, é e não é, pode e não pode acontecer. Homens e mulheres encantados convivem lado a lado com os ilhéus, presentes são deixados na praia, obra do outro mundo. São sinais da Encantaria que por hora só pode ser vigorada pela palavra dos narradores. O pescador e novo pajé da ilha, Seu Maneco, tem muitas histórias para contar e cantar, já que também compõe toadas para a brincadeira do boi da ilha. Em seu relato, observam-se as várias formas de apresentação do rei: Às vezes ele aparece uma pessoa, viu? E às vezes ele se transforma num pássaro. Às vezes ele se transforma num negão. E às vezes ele se transforma num touro também. Isso tudo ele [se] transforma. E a gente sempre olha. (Maneco, Lençóis, janeiro de 2009)
Embora esse relato termine com a frase “E a gente sempre olha”, e antes o narrador tenha dito que não se vê mais essas visões, é preciso perceber nessa frase o passado e o
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presente sendo intercalados pela palavra. O verbo no presente quer dizer passado, e o passado é re-atualizado na circularidade do dizer. É comum essa subversão do tempo, quando tudo é presentificado. A estratégia de trazer o passado e narrar como se estivesse vendo a cena no momento da fala, dá poder ao narrador e instiga o olhar do espectador. Se o que passou ocorre novamente no tempo presente, significa que aqueles que viram, estão também ali, vivos, pela memória do relato. É a memória que conduz o olhar do narrador e prende a atenção do espectador. Na fala de Maneco, as metamorfoses do rei estão carregadas de um simbolismo que indica a potência poética na construção do imaginário mítico. O rei branco veste-se de índio e fica negro para mostrar que o seu reino é multiétnico. Ao transformar-se num pássaro, elemento que une céu e terra, indica o poder de habitar simultaneamente dois mundos. Ao surgir num touro negro 20 que galopa pelas dunas ou que vem do mar, sugere a força do mito, a presença do ausente. Essa presença do ausente, aliás, é constante. Onde dois ou mais estiverem, quase sempre a conversa acaba enveredando para as visões. Isto me ficou muito claro apenas nas duas últimas viagens à ilha, mais especificamente em duas ocasiões. Na primeira ocasião, eu voltava ao continente depois de duas ou três tentativas frustradas, problemas com o barco impediram que saíssemos no horário marcado. Quando, enfim, embarcamos, no meio da baía o motor do barco deu problema e tivemos que prosseguir a viagem com o barco rebocado por outro. Uma hora depois, com um sol escaldante da tarde, o barco encalha num banco de areia. A embarcação estava lotada de pessoas do continente que voltavam de uma festa na ilha, e, a certa altura, alguém perguntou: “Será que alguém aqui está trazendo al guma coisa escondida da ilha?” Percebi o poder do mito ali, na fala de um não-morador, diante da série de ocorrências que impediam o prosseguimento da viagem. Na segunda ocasião, eu também voltava para o continente e pegara carona num barco fretado por uma família de turistas.
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Muitos moradores estavam conosco. Pude registrar cerca de oito narrativas a respeito das assombrações da ilha. Eu havia recebido diversas reprimendas dos moradores quando informei que aquela era minha última viagem à ilha, pois meu trabalho estava finalizado. De fato, tive problemas para retornar de uma viagem à sede do município de Cururupu, ao qual pertence a ilha, de modo que no meu retorno à ilha, os ilhéus diziam que tudo o que acontecera comigo foi por ter dito que não regressaria mais à ilha do rei Sebastião. Debaixo daquele céu, por cima daquela terra, o mito alimenta a alma.
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3.5 MITOPOÉTICA DOS ELEMENTOS PRIMORDIAIS
Ao deparar-se com a exuberante natureza em contraste com um estilo de vida tão simples dos narradores do rei, qualquer visitante percebe que a riqueza deles, para além da natureza, consiste no poder do mito. Uma ilha de cem casebres de palha e madeira, espremida entre estuário, manguezais e dunas de um branco penetrante, mantém a riqueza da memória assegurada nas vozes dos velhos. Quem irá ouvi-los? E será mesmo que esses relatos e cantos dizem respeito somente a eles? Seriam apenas um grupo de fanáticos louvando um morto? Há aí uma força que os impele a explicar e gerir seu cotidiano pelas mãos invisíveis do obscuro. É preciso pensar sobre essa experiência como uma experiência pré-religiosa. É preciso, na verdade, des-pensar. Ai da vida se fosse só o concreto, o pesado, o brutalmente perceptível. Somos aquilo que também sonhamos, somos o que não tocamos, o que não enxergamos mas se faz presença. É nesse sentido que, em sua poética do devaneio, Bachelard expõe uma fisiologia da imaginação que obedeceria à lei dos quatro elementos: Se as coisas colocam em ordem nossas ideias, as matérias elementares colocam em ordem nossos sonhos. As matérias elementares recebem e conservam e exaltam os nossos sonhos (BACHELARD, 2002, p. 140).
As visões dos moradores de Lençóis integram as quatro matérias primordiais: terra, água, ar e fogo. Esses elementos espelham o mundo mítico onde moram os encantados, o mundo denominado Encantaria. Nenhum humano foi lá. Portanto, aqueles que recebem os encantados nos pajés (misto de culto afro-indígena-católico) apenas dizem ser aí a morada dos encantados, os únicos humanos que lá habitam. A geografia deste mundo só é perceptível pela revelação da natureza. Os elementos primordiais que se unem na constituição da ilha física, anunciam de algum modo que a ilha é encantada. As assombrações, por exemplo, unem tais elementos em torno do sagrado e do encoberto.
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Se fizermos uma divisão dos relatos dessas visões por referência espacial, perceberemos que os elementos fazem ressoar uma série de pequenos mitos em torno do encoberto. É como se cada elemento primordial representasse uma espécie de útero do Sagrado, portal da Encantaria ou ainda mensageiro. Cada grão de areia, cada centelha de fogo, cada partícula de ar e cada gota de água traz em si o nume, cooperando para o pasmo essencial que revela o mundo sagrado. E tudo é delírio, tudo é devaneio, tudo parece amolecer com o escaldante sol e com o ir e vir incessante das águas. Parece que o calor que deixa o corpo dormente é termômetro do devaneio, suscita a presença da majestade. De dia, o devaneio revela o que estava encoberto; de noite projeto o profundo. E então, os quatro elementos se duplicam ao espelharem o Outro, o insondável. É sempre assim que o nefando se manifesta, quando molemente o corpo do homem se torna casca frágil da criatura. Quando o homem deixa sua razão e se joga plenamente no obscuro desejo do Outro. A ilha é o mito parindo outros mitos. Nesse refazer-se contínuo é que a mínima matéria deixa de ser essencialmente natural para se configurar na composição de algo que não se pode nomear, nem capturar. Terra, água, céu e fogo são mais que forças da natureza nesse instante, uma vez que passam a ser uma cartografia do imaginário que realiza o encontro impossível do humano com o Encoberto.
Visões da terra: os guardiões do reino submerso. A morraria é feita de areia movente, morada do rei. Ele se oculta e se revela sob as dunas, que nunca são as mesmas a cada dia. A ilha é um lugar que exige do morador estado de constante vigilância, pois a natureza opera proezas. Cabe ao homem a tarefa de salvar e salvaguardar na ilha o espaço limítrofe entre o que é do homem e o que é manifestação do sagrado. O que fazer com os mortos num lugar em que não há espaço para eles? Constituída quase totalmente de areia que modela dunas moventes, a ilha parece um monstro faminto, prestes a engolir tudo. A vegetação do mangue e
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das dunas vai sendo suprimida, enquanto o canal do estuário se reduz paulatinamente. Enquanto isso, os ilhéus ficam atentos, e quando a duna aparece pela janela é hora de construir a casa em outro lugar mais protegido. É preciso vigilância, portanto, que tudo é movente como o tempo. Justamente por causa dessa mobilidade, a ilha não pode receber seus mortos. Morto é um elemento que não pode ser descoberto, o humano não suportaria, e por isso aí não há lugar para ele. Na ilha apenas os anjinhos, os recém-nascidos, são enterrados. É outra ilha à frente desta, chamada Bate-Vento, que recebe os mortos de Lençóis. Paradoxalmente, os narradores da ilha não têm permissão para repousar nela. Deles, a ilha guarda apenas o umbigo e a memória. No entanto, morto e vivo, novo e velho têm a mesma natureza, fazem parte do mesmo círculo de antíteses, a mesmidade da natureza. Em Lençóis, o lugar onde as crianças são enterradas chama-se o “Cajueiro dos anjos”. Entre as raízes fortes de uma velha árvore que se esparrama do topo de uma duna são depositados os recém-nascidos mortos. As árvores são fortaleza para os ilhéus. São elas que formam uma barreira natural do lado norte da ilha, facilitando a habitação no lado sul. As raízes dessas árvores abrigam os ilhéus, na vida e na morte. Não é à toa que boa parte dos relatos de visões acontece justamente em meio às árvores. E, se as árvores só permitem receber os corpos dos infantes, a memória não permite que os antepassados caiam no esquecimento, trazendo constantemente à luz das narrativas as vozes sagradas dos velhos. Por conseguinte, se os mortos devem repousar em paz, não podendo ser descobertos, o único encoberto que pode se revelar na ilha é da ordem dos encantados. Porque tudo na ilha é caminho duplo, é possível ver as pegadas de vivos e de encantados. É sob a morraria que se encontra o reino de Dom Sebastião, aguardando o anúncio para a batalha final. Tudo debaixo daquele céu é da ordem do sagrado:
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TELMA – É. Lá embaixo. Boi vem beber água. Aqui nós estamos em cima da terra. Mas em cima da areia é uma cidade. Hum hum, Oh, vê como acontece mesmo e dá tudo certo. Ele ainda trouxe essa cantiga assim ó . Ó, tava agorinha na cabeça... Ó, tem essa: [Canta] Oh, cidade do Lençol é uma cidade muito bonita. Ai, tem vaso de guerra E tem caixa de guerra. Mas isto é feito por obra da natureza. Tá vendo como é... E – Essa cidade não é aqui em cima, é lá embaixo... TELMA – Não...é lá embaixo. Dá tudo certo. (Telma Maria, entrevista feita em janeiro de 2008)
Sob a morraria, protegido dos mortais pelos imortais, há um outro mundo. Uma cidade transferida de além-mar que veio repousar na ilha indescoberta. Se as casas da ilha não ostentam o mínimo de conforto, apresentando uma aparência frágil, a cidade submersa contém todo um aparato, visando ser sede de um império vindouro. Um exército real aguarda o momento em que tudo será revelado. Em cima e embaixo, tudo um. Só os predestinados podem vislumbrar o mundo do Encoberto. São muitos os relatos da presença do profundo 21. As assombrações. É pelo assombro que a Encantaria se modela e se dá a conhecer. Sobre a areia, sob a luz do luar, dois seres encantados surgem para avisar que o lugar tem dono: o touro negro com uma estrela prateada na testa e o cavalo branco, com arreios de ouro e prata. Aquele galopa pelas dunas, enquanto este cavalga na praia. Ambos trazem a figura do Encoberto ou podem ser o próprio, metamorfoseado: [...] Vou lhe contar. 12 horas da noite, noite de escuro, já passou aqui, anteontem à noite. Eu vi a pisada, era um cavalo passando, um cavalo branco, passando aqui na minha porta. Mas só que eu não tenho medo. Cavalo... tudo aparece. Olha, aqui, quando a gente ia pra serra, tinha um fogo do canal. Agora já se acabou, quase a gente não vê mais. Mas tinha tudo isso que a gente não podia passar no caminho.
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E – E esse cavalo branco... TELMA – É, ele sempre passa aqui... E – É o rei Sebastião? TELMA- Não, sempre passa. É 12 horas da noite. E – Esse cavalo é dele? TELMA – É... (Telma Maria, Lençóis, janeiro de 2008)
É preciso cuidado com o que é do rei. Por isso, além das histórias de assombrações do passado, quando a ilha ainda era povoada pelas primeiras famílias, não é incomum ouvir narrativas atuais, nas quais alguma advertência é dada a algum forasteiro ou aos habitantes. Essa reatualização não permite que o mito seja destruído e acaba por colocar todas as eventualidades na configuração do maravilhoso. Uma história contada por um morador mais jovem demonstra esse cuidado pela terra. Ribamar, o pescador que costuma compor canções com o seu pandeiro enquanto caminha pelas dunas da ilha, foi mensageiro do rei. No relato, o compositor conta detalhes do seu sonho: Sim, eu amanheci contando prum rapaz por nome Romerito [..] Eu disse: “Rapaz, Romerito, tu não sabe que essa noite eu sonhei com dois homens. Me falaram que era pra quem fez aquele rancho ali tirar daquela posição porque tava empatando na hora que eles vinham no passeio deles. E – Eles quem? Só pode ser os donos da ilha... O rei Sebastião... Eu acredito que só podia ser ele. No meu sonho, eu tava sentado lá no rancho tocando pandeiro. Sempre eu gosto de tá fazendo música por lá. Aí... naquilo, eu tava tocando pandeiro, não demorou... quando eu olho, depara bem perto de mim um carro, um jipezinho. Saltam duas pessoas: um alto, barbudo assim como eu to, buchudo... O outro, da mesma altura, do mesmo sentido também. Saltaram e perguntaram pra mim: “Você não sabe me dizer quem fez esse trabalho aqui?” Aí eu digo: “Senhor, foram dois rapazes daqui, que trabalham aqui, que convivem aqui em Lençóis. E aí eles fizeram o rancho aqui na beira da praia. Porque já é dois anos que acontece uma regata das taroas, lá de São Luís, que vem pra cá. E aí o primeiro ano não tinha o rancho. Agora este outro ano a gente já fez pra receber o pessoal na hora de chegar”. Ele disse: “Olha, você avisa quem fez que é pra tirar esse rancho daqui imediatamente. Com isso aí, eles vão ganhar só um exemplo. E se eles não tirar, ainda vai acontecer coisa pior”.
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Fiquei calado, já não disse mais nada. Naquilo eu me espanto. Quando foi de manhã eu amanheci contando pro rapaz. Só que eles dois que fizeram o rancho não estavam aqui, já tinham viajado pra Cururupu, Apicum-Açu. Foram passar o Natal pra lá e o primeiro do ano. Quando foi na volta deles já, no primeiro do ano pra vir embora, aconteceu um acidente de carro com eles dois lá na viagem. Quer dizer que eu entendi, foi aquilo que passaram pra mim. E eu to espalhando pro pessoal. Muita gente diz que é mentira. Então vai ficar como mentira. Só que eu tô avisando o que aconteceu e vou avisar ao rapaz na hora que ele chegar. Agora se ele não acreditar, ele não tira o rancho. (José Ribamar, Lençóis, janeiro de 2008)
Através do sonho, o rei dá o recado. Fizeram o rancho no lugar onde o cavalo dele passa. Não pediram permissão. Por isso o castigo. Rapidamente a história é transmitida na ilha, e da ilha navega até o continente, espalhando-se. Os construtores da palhoça tiveram que construí-la em outro lugar. As advertências e ameaças certamente tem um fundo ecológico. Proteger a ilha, livrando-a da ação predatória, cuidando para que tudo continue como está, no ritmo próprio da natureza, parece ser a dinâmica de alguns relatos. Se tudo ali tem dono, não se pode chegar nem partir sem permissão. Nem se pode levar nada, sequer areia, sem os sobreavisos: Teve até um senhor ali do Turiaçu. Aí ele veio pra cá. Chegou aqui, ele veio vender banana. Quando chegou ali no morro, ele começou querendo esculhambar o rei, né. Quando ele saiu daqui pra lá, ele já foi louco da cabeça. Aí ele ficou doido. Ele foi amarrado na embarcação dele pra levar pra fora. Porque antigamente, meus avós contavam que ninguém levava areia daqui. Não podia sair, né. Pra outro lugar não se garrava areia daqui nem água daqui se não pedisse licença... porque a embarcação não conseguia viajar. (Maneco, Lençóis, janeiro de 2009)
O mesmo relato, numa outra versão, contada por Telma 22: Antigamente, a ilha... achava... olha... achavam relógio, achavam cordão desses ouro antigo. Essa Neusa [dona Nini], ela ainda tem uns que foi achado antigamente. Se chegava um barco aqui, se levasse a terra do morro sem avisar a filha do rei Sebastião, o barco não saía . [...] Antigamente era assim que se eles levassem a terra do barco e escondessem... aí eles diziam: “Mas por que que este barco não sai do porto?”. Aí eles diziam: “Ah será que vocês não tem coisa aí da praia do rei Sebastião... O barco ia meia-viagem e voltava. Aí, eles diziam: “Gente, mas o que é que este barco não quer sair?” O que era? Era a terra que estava
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dentro do barco sem eles pedir pra Dulcelina, filha dele. Aí o barco nunca saía. (Telma, Lençóis, janeiro de 2008)
Não se pode, pois, construir nada ali sem permissão; sem permissão também não se pode destruir, certos caminhos jamais devem ser modificados.
Visões do fogo: fulgurações do numinoso. Uma chama faiscante voa de uma ilha a outra; arde, mas não queima, pousando numa árvore ao lado da morraria. O fogo é o princípio absoluto. O cosmo, a explosão original, as estrelas, bolas de fogo reluzentes há bilhões de anos. Ele dá a conhecer a potência daquilo que tudo é, inclusive o humano: construçãodestruição, alfa-ômega, princípio-fim: o duplo oposto. O fogo tira das trevas, orienta um caminho, apontando luz ao mundo. Mensageiro dos deuses e encantados, é ele quem anuncia um novo tempo e pede vigilância. Fogo gera medo e pânico. Sempre foi assim. O homem mostra-se frágil diante do fogo. Em combustão, a natureza perece rapidamente. O fogo também purifica, ilumina, revigora. Não foi ao dominar o fogo que os homens primitivos asseguraram uma nova ordem entre natureza e humanidade? Ao fazer fogo, o homem viu-se poderoso, soberano entre os outros animais. Estava fechado o círculo quadrangular: terra-ar-água-fogo. O segredo do fogo permitiu ao homem, mais do que cozinhar o alimento, produzir um rito. A luz veio ao mundo e a mente humana se iluminou e se aqueceu com esta descoberta. Por isso o fogo assume o centro de todos os credos e ritos. Numa tênue chama, esconde-se o sagrado. Numa ardente chama transparente, o inaparente se oferece. A própria linguagem humana utiliza-se do fogo como metáfora para explicar muitas sensações. A palavra tem a densidade do fogo, queima e purifica, constrói e destrói, ilumina e se apaga; também os sentimentos são assim metaforizados. Qual o sentido do fogo fantástico à mitopoética dos narradores da ilha? Não se trata de um fogo destrutivo, visto que não gera combustão. Igual à sarça ardente do livro hebreu,
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pousa numa árvore e depois desaparece, fazendo ecoar do fundo o som de um tambor. Os dois relatos a seguir, distantes temporalmente cerca de 30 anos, apresentam a visão:
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Aparecia um fogo, aparecia um negócio assim que metia com fogo...uma visão...assim, um fogo no ar. E esse fogo botava a gente pra correr. Eu vi, esse fogo eu vi. Até em Bate-Vento aparecia. O fogo vinha voando. Quando vinha voando, começava a sair aquelas faíscas, do fogo. [...] A gente ficava com medo de se assombrar e corria. Depois aparecia em outro lugar. Vinha de Bate-Vento, atravessava para o Lençol e no Lençol ficava numa árvore grande chamada “Árvore Grande”. Isso eu cheguei a ver. (Cecílio, morador e comerciante de Lençóis, 1979, CD A lenda do Rei Sebastião, faixa 3). No tempo de meu pai, tinha uma árvore que chamavam “Árvore Grande”. A árvore mais alta que existia no Lençol. Ele ia tarrafear, quando olhava, a árvore tava em fogo. Tava em fogo, assim, não demorava o Tambor de Mina começava (Maria Teresa, ex-moradora de Lençóis, 2008).
O fogo não surge na árvore, mas nela repousa. No entanto, não é um repouso tranquilo, sua chama crepita, faíscas tremulam e tudo ali fulgura. O único ser paralisado é o homem, diante do terror que a visão desperta. O aspecto matriarcal da árvore parece assinalar a familiaridade do encanto, à semelhança de uma árvore genealógica cujas raízes e galhos se ramificam para mapear no tempo pessoas de uma família. A árvore matriarcal sinaliza os encantados, cuja genealogia fulgura na noite circular da ilha. Prefiguração da profundidade do encanto. Árvore cosmogônica. O fogo flutuante, a árvore presa à terra e as ondas sonoras do tambor: tudo se une para mostrar os invisíveis. A natureza mostra o numinoso no espaço sagrado da palavra. Só não vê quem não quer. Diante do numinoso, o homem ignorante se cala, não compreende o que foi dito. A narradora prossegue o relato explicando as visões numa fala que culmina em riso: “Então eu quero dizer que eles andam é no tempo, aí mesmo, como a gente, que é invisí vel, a gente não vê né?”. A presença na ausência, o que é aparente esconde a maior grandeza, o inaparente. Tudo vem a ser pela palavra, pela qual o mito atesta a existência e a tessitura do velado.
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Há 30 anos, os moradores de Lençóis já afirmavam que esse fogo não mais era visto, e apontavam como causa o crescimento da população. A pró pria “Árvore Grande” não existe mais. Não porque fora incinerada pelo fogo mítico, mas pela fúria lenta, gradual da água, do ar e da areia. No entanto, ficou o aviso, que a memória insiste em mostrar:
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[...] é o seguinte: vinha pequeno, igual a um vaga-lume. A pessoa pensava que fosse um vaga-lume, depois, quando chegava perto, crescia. Crescia e voava... e começava a sair aquela faísca de fogo. Depois, de uns tempos pra cá, a habitação cresceu, então desapareceu o fogo e a morraria da Árvore Grande desapareceu também (O fogo. Intérprete: Cecílio. In: A lenda do rei Sebastião, 1 CD, faixa 3, 2000).
A chama está sempre associada aos ânimos exaltados, seja pela paixão, seja pelo ódio. No seu fulgor, ilumina e queima, transforma em cinzas para ser luz. Mas um fogo que não tem comburente só pode ser matéria do insondável. É o espírito infundindo poder na chama flutuante. Fogo que é sopro de outra realidade, que promove um desejo de selar o que está disperso, de unir as fissuras para fundir lá e cá, desfazendo limites. Manifestação da graça cindindo entremeios. Eis a natureza mítica do fogo. A natureza constrói, a palavra edifica, o mito eleva. Tentar mapear na ilha os espaços míticos é olvidar a voz do encantado. Tudo que é, não é. A cartografia está no rito da palavra edificante, no momento da performance do velho, no seu olhar perdido, no grão da sua voz, gesto que sai de si e se une ao ouvinte. Era assim que os rapsodos prendiam a audiência. O hipnotismo, que levava à catarse, apontado muitas vezes como cegueira, era o encanto das Musas. É assim que a voz dos velhos faz o mundo da Encantaria apresentar-se ao ouvinte. Mas se não soubermos ouvir...
Visões da água: poço como portal para a Encantaria. As águas trazem o duplo sentido do aprisionamento-libertação. Cercam a ilha ao mesmo tempo em que são percurso aos navegantes. Somente pelas águas se chega à terra firme. É da essência da água ser paradoxal,
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ímpeto e calmaria, lucidez e obscuridade. Quando calma, exige do nauta paciência que os ventos são imprevisíveis; quando revolta, ela exige respeito. No seu espelho translúcido vislumbra-se o limiar, é nele que o céu desaba, sem no entanto ofendê-la. Paradoxal é o espelho da água, a ponto de projetar o fundo e também o alto. Três mundos em perfeita homogeneidade. Que quererá ensinar a água ao navegador? Essa translucidez, maleabilidade e ímpeto evocam o quê? Não é a água salgada do mar quem se obstina a desvendar os segredos da ilha? O eterno quebrar de ondas ritmadas insiste em dizer do tempo, dos instantes, do que vai e vem. Mas não é a água furiosa em torno da ilha a responsável por oferecer o encanto, e sim a água doce e potável, que se esconde no fundo dos lençóis. Enquanto em cima a areia não consegue ficar quieta e é levada ao vento, embaixo, na frieza do fundo, descansa e se purifica a água benfazeja, querendo matar a sede dos ilhéus. Ela salva o habitante, saciando-o, enquanto mostra o reino do encoberto, com toda a generosidade que só ela sabe ter. Ao cavar a terra para buscar água, a mulher se depara com o encantado, que surge da profundidade. É pelas mãos da narradora que eclode o sagrado. A água que brota para saciar a sede também faz brotar o encanto. Ambos vêm do fundo: [...] Essas dunas ali onde é o poço, onde eu encho água, tudo é encantado. Tem a tamborada no fundo... nós aqui tamo em cima da terra, mas aqui em cima dessa terra tem o boi que vem beber água, galo canta, passa carro, passa tudo. E – Lá embaixo... TELMA – Lá embaixo. (Telma Maria, janeiro de 2008)
Assim embaixo como em cima. E a água é o véu transparente que revela inaparências. Vindo do fundo para matar a sede de quem a procura, a água oferece outra bebida.Também no relato a seguir, a assombração acontece no momento em que a mulher vai buscar água. Enquanto mina a água, o boi encantado reluz na praia:
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Eu cheguei lá mais minhas colegas. Aí o poço tava entupido. Elas disse: “Rosa, tu fica aí pra cavar o poço?” Eu disse: “Eu fico”. Elas vai panhar os guajiru. Aí elas subiram na morraria, foram panhar e eu fiquei. Nisso que eu tinha terminado de cavar o poço... tu sabe né... a gente só arranha, dá logo água... aí eu cavei o poço, pra mim escoar o poço... quando eu vou me alevantando, que eu fui me erguendo, que eu olho pra cima do muro... aquele boi, ele de frente pro mar e costa pro lado daqui, da terra, tá entendendo? Agora muito lindo, chega tava espelhando... Quando eu me firmei pra ele, ele sumiu. (Rosa Maria, janeiro de 2009, ilha de Porto do Meio)
Portal para o palácio do rei, o poço ao pé das morrarias é uma heterotopia. Espelha o mundo de fora, revela o mundo do fundo. Essa translucidez da água mostra o lado obscuro, reflete não a luz, mas o inacessível. Esse entrelugar revela mais: é para lá que o sedento se dirige, ávido por matar sua sede. E é lá que os predestinados são convidados a mergulhar de corpo e alma nas águas do profundo mistério. Sempre ela, a água, a promover o encontro de mundos tão distantes. O poço é a borda rarefeita onde realidade e imaginação se fundem, para introduzir a voz do numinoso. Quem tiver sede, que venha buscar a água da vida, que traz à memória o legado mítico de uma comunidade. Promessa de saciedade eterna?
Presença modeladora e etérea do ar. São as rajadas de vento, abundantes nessa região, que movem a areia e modelam as dunas, como bem entendem, confundindo visitantes e moradores e reconfigurando constantemente a topografia da ilha. Para ser forte e navegar, todo barco sabe que, embora conte com um motor possante, nada substitui a força dos ventos. São os ventos que governam os caminhos, conduzem nas destinações. Para chegar a uma ilha, os ventos são imprescindíveis no soprar das velas. O sopro que revela errâncias. E essa invisibilidade que tudo abrange, que tudo abarca, da qual ninguém escapa, sem a qual ninguém sobrevive? Vento é mistério revelando-se. É o invisível dizendo que aquilo que não se vê, nem se toca, nem se alcança, pode ser indispensável. Essa mística do vento revela muito mais quando o soprar produz ruído, conduz o som, evoca sons. É pelo ar que ecoa a música do rito e da festa que venera e celebra o encanto. O ar penetra em nós, nos envolve, enche nossos pulmões de vida e de forma
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absurdamente assustadora sai dos pulmões, dando nome ao nume: eis a voz. Inspiramos o ar ao mesmo tempo em que nos inspiramos. Porque o elemento ar é presença que não se vê, aquilo que é vital e inaparente, associamos a ele o sopro divino, espírito criador, que sopra onde quer, está em tudo e em todos e abraça toda a existência com sua plenitude. O ar é o véu transparente que nos permite ver através dele e por causa dele. Quando nossos pulmões se enchem de ar, portanto, realizam a plenitude do que denominamos estar “cheios do espírito”. Isso é tão natural mas também é tão sagrado, sublime: fomos cheios daquilo que não tocamos, não vemos nem ouvimos, mas é presença que se doa gratuitamente. O ar pode ser brisa, tempestade ou impetuosidade, mas nunca se mostra na sua essência. Pura doação humilde. Por isso, o ar é, dos quatro elementos, aquele que mais nos oferece a viagem do imaginário. Não é inspirados que os poetas ficam no ato da criação? Cheios de um ar especial, um sopro que traz o além, que infunde poder que vira palavra, dança, música e gesto. O pneuma, hálito da vida, é força que sai do corpo e segue a direção do outro. O espírito é sopro, ar, vento. O corpo é a caixa de ressonância e o vento, o sopro que conduz a vida. A presença do invisível não tem um símbolo mais fecundo do que o ar, que sai do corpo do homem, ou do corpo do instrumento, e faz vibrar o couro, a língua, as cordas vocais, anunciando o numinoso. Através da palavra cantada, o encantado é convocado para a festa comum entre seus filhos, no terreiro. E essa palavra ganha força com os tambores, o maracá, a cabaça e o agogô, instrumentos de percussão, extensão da mão do tocador, no êxtase do rito. Porém, há um outro tambor que evoca medo e pavor. Não é aquele tocado nas noites de função da Mina ou do auto do boi. É um som que vem do fundo da terra, quando a areia se abre para que os moradores da ilha escutem a festa no reino do encoberto, causando-lhes assombro. A terra dá estrondos no morro do Camorim, o som da tamborada no fundo da areia. O próprio rei surge para alguns com seu maracá na mão, e os sons dos arreios do cavalo são ritmados com o maracá:
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E – E o Rei Sebastião mora onde? JM – Sebastião mora aí, eu não sei... diz que ele se mudou daqui, mas outros dizem que ele mora aí mesmo. Isso aí eu não sei contar, se ele ainda mora aqui. Ele morava aí porque a gente via bater tambor, desses tambor que tão aí. Eles batiam no fundo aí do encanto. E- do rio...do mar. JM – daqui mesmo da terra, né, a gente escutava. E – das dunas... JM – Das dunas, era, batia noite e dia. E – E ninguém sabia o que era... JM – Era, ninguém sabia se era... Não, até outros diziam: “olha o tambor do fundo. Isso é o rei Sebastião que tá brincando”. Eu ouvi também bater tambor. Eu nem pensava que eu também fosse da mesma religião dele, né. Eu toco tambor aí também. (José Mário, 71 anos, janeiro de 2008, Lençóis)
No fundo do encanto, o som do tambor revela o pulsar da terra. Ouve-se o ruído primitivo do útero materno, nossa primeira e última morada. O coração da terra estronda, anunciando que ela está prenhe de mistério. “O tambor do fundo” é sagrado, é a própria terra em oração que acorda o humano do sono que o impede de sentir a presença do inefável. A terra só pode cantar o sagrado, o ecoar da vida, aquilo que os homens não foram capazes de alcançar de tão limitados. Os predestinados, como o pajé José Mário, abrem os olhos e enxergam sua humanidade, espelhada no encanto, reconhecem algo semelhante aos dois mundos: o tambor. Quando o pajé percebe que ambos, encantado e humano, têm algo em comum, une natureza e cultura, vida e culto, física e metafísica, superfície e profundidade. Na mensura do real o assombro projeta o indiscernível, na fundura está o inexprimível. Deste modo, o mito é evocado, tanto através de sonoridades provocadas pelo humano, quanto as provocadas pelo mítico. Vozes ecoam dos dois mundos onde homens e encantados falam a mesma língua. No limiar da voz e dos sons, dois mundos se harmonizam, pois tudo é música, gesto e fala. Se a memória procura recursos favoráveis à manutenção do legado
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cultural, é pela música que os sebastianos mantêm viva a presença do rei. O encoberto é reverenciado com cantos, que evocam os relatos, e aí se revela sua força. Todo o vigor sebastiânico se expressa pelas múltiplas sonoridades evocadas dos ritmos e cantos do rito da Mina e do auto do Bumba meu boi. Essa musicalidade faz da ilha o local propício para o ecoar poético. A Poesia quer ser falada, quer ser cantada, quer ser soprada generosamente sobre os ouvintes atentos, no rito da vida. O mito quer ser louvado, dançado, instituído. E os sebastianos sabem promover o conto e o canto. Da construção dos pandeirões, maracás e tambores, até a confecção das toadas, tudo é obra do ilhéu.
Corpo e voz do mito: sequencias performáticas. Se a fala é o triunfo do ar sobre o corpo, o canto é a manifestação da intimidade com o sagrado. Por isso, e todo culto, o ponto principal, o clímax, está no canto, por ele a humana criatura celebra a vida, elevando-se ao majestoso. Quem canta e quem escuta o canto experimenta a sensação de elevação, algo se agitando no seu interior, corpo vibrando no insondável. No reino da palavra em performance as falas dos narradores são sempre intercaladas ao canto e vice-versa. Assim, um canto remete a uma história e uma história leva a um canto. Nesse momento, o corpo assume o próprio relato, os dedos fazem o ritmo, as mãos apontam para outros espaços, a cabeça mexe-se, o olhar se transporta para outras paragens. A palavra corporifica o encoberto, no sopro pulsante dos gestos. É o ar feito palavra que impulsiona o corpo no instante da performance e faz a narrativa ganhar vigor. Eis, pois, instaurado o verdadeiro sentido do ar da graça. Tudo é motivo para o mito. A voz do rei velado se sobrepõe às vozes dos narradores, podendo soar no rolo do mar, no som do tambor misterioso ouvido bem ao fundo da morraria ou ainda no galope assombroso do cavalo branco do rei Sebastião. As sequências performáticas a seguir pretendem ilustrar como a voz, esse sopro de vida e doação de mundo, toma conta do corpo para concretizar o poético. Qualquer experiência narrada, da ordem do vivido ou do imaginário, só se torna de fato bem contada se
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o narrador souber dar voz ao corpo, ou seja, se souber soprar o vento do mito. O espectador pode ser preenchido pelo pulsar vocal, mas é o corpo o elemento visível que auxiliará a voz no anúncio23. Os gregos sabiam disso muito bem, pois usavam todos os artifícios do corpo para dar conta de seu legado cultural. Assim como apresentei o texto transcrito das narrativas, agora apresento a imagem e as letras das canções com o intuito de suscitar na performance a obra da voz corporificada, fazendo-se presença, insinuando-se ao outro. E, por isso, cabe muito bem destacá-la aqui, como reverberação do elemento ar. O sopro invisível fazendo-se visível, palpável: eis o efeito da performance. É por isso que a tese não poderia ser apenas texto, ela convoca a imagem e o som no seu vigor, porque a palavra, falada ou escrita, não dá conta do dito sem um corpo. As imagens das sequências foram capturadas a partir dos frames da imagem em movimento. Com o recurso do vídeo digital, é possível escolher o quadro e capturá-lo como uma fotografia. Nesse sentido, justifico o uso das imagens justamente aqui, ao final da breve exposição do jogo poético dos quatro elementos. Eu poderia fazer um capítulo apenas com uma leitura performática, e aí usaria as imagens capturadas das entrevistas para o documentário. Mas não foi meu objetivo isolar a performance da tese, e dar mais valor à ela do que os sebastianos e seu imaginário. Assim como apresentei o texto transcrito das narrativas, agora apresento a imagem e as letras das canções com o intuito de suscitar na performance a obra da voz corporificada, fazendo-se presença, insinuando-se ao outro. E por isso, cabe muito bem destacá-la aqui, como integrante do elemento ar. O sopro invisível fazendo-se visível, palpável: eis o efeito da performance. É por isso que a tese não poderia ser apenas texto, ela convoca a imagem e o som no seu vigorar, porque a palavra, falada ou escrita, não dá conta do dito sem um corpo. As imagens das sequências foram capturadas a partir dos frames da imagem em movimento. Com o recurso do vídeo digital, é possível escolher o quadro e capturá-lo como uma fotografia.
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Sequência performática 1. Quando dona Teresa narra um relato, logo lhe vem à mente uma doutrina e vice-versa, um gênero tecendo outro pelos fios da memória. A palavra então é corporificada. A mão, por exemplo, segue o ritmo do canto. Às vezes, antes mesmo de proferir o canto, quando ele ainda está brotando, a mão já faz o ritmo, prenunciando-o.
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[TERESA CANTA] Rei Sebastião Ele é guerreiro militar Ele é pai do terreiro. Desceu na guma É guerreiro imperial. (doutrina para o rei Sebastião, janeiro de 2009)
Figura 15. O olhar longe, voltase para a luz, enquanto canta. Está completamente envolvida pelo canto.
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Figura 16. A mão paira sobre a mesa-
altar e começa a marcar o ritmo. Ar que se faz corpo.
Figura 17. As batidas fortes dos dedos sobre a mesa lembram o toque dos tambores.
Figura 18. Ao narrar, os braços
acompanham o rumo da história e dão o tom da grandeza do evento narrado.
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Figura 19. Apontar lugares, sinalizar algo importante que será dito, fazer advertência. As mãos também falam.
Figura 20. Não há tensão na entrevista, pelo contrário, a narradora ri e o relato assume o tom de conversa. Ela conta mais uma vez com o poder da memória para ser porta-voz do numinoso.
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Sequência performática 2.
A música faz lembrar os entes queridos. Quando a velha Nini começa a cantar, auxiliada pela filha, que está ao lado da rede, lembra-se do primo, o velho José Mário, que morrera há poucos meses e era o pajé do terreiro. Sua voz embarga e ela chora. Mas logo assume a palavra para contar sobre as visões e cantar doutrinas. Embora cansada, doente e debilitada, tudo é enigma na voz da idosa. A voz rouca, já gasta, canta a doutrina suavemente. Parece mais um canto de lamento. Por que o boi haveria de correr? Seria Mangunça um vaqueiro do lado de cá, ou um encantado do lado de lá? Na voz da velha Nini, o canto de mistério ecoa.
Figura 21. Nini começa a cantar e seu semblante evoca uma saudade.
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[Canta] Ê Mangunça tem um boi malhado (bis) Corra boi, corra boi, Corra meu touro brabo Malhado.
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Figura 22. A mão gesticula ao narrar as visões da ilha, seguindo a cadência da voz mansa e cansada.
Figura 23. Não basta contar apenas, é preciso mostrar precisamente o lugar onde o fato se deu.O braço se ergue e aponta os lugares onde aconteceram as visões.
Figura 24. As dunas se aproximam do povoado. O dedo indica firmemente que o rei está querendo tomar de volta a ilha. O que ela conta é sério.
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Sequência performática 3. Filha de santo, a albina Telma afirma ter conversado com o rei em sonho. Sua fala firme dá conta de citar os fenômenos do passado e do presente, obra dos encantados. A pisada e o relinchar do cavalo branco, o rei vestindo traje indígena, o barulho vindo do fundo, a terra se rachando... tudo é narrado com ênfase no gestual, intercalando ao relato as doutrinas que são entoadas no terreiro há muito tempo. A palavra cantada e falada é costurada com os gestos, que capturam o espectador e o transportam para um outro reino.
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[Telma canta] Rei Sebastião quando baixa a coroa Que faz a carne da gente tremer Rei Sebastião, Rei Sebastião Entra em luta pra ganhar e vencer.
Figura 25. A narradora aponta com energia, ao falar das visões. Sua voz firme é realçada com o olhar penetrante no ouvinte e os gestos rápidos que promovem uma persuasão. Estamos capturados pelo poder da voz.
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Figura 26. Telma descreve como o rei aparece, com um cocar ao invés de coroa, e uma tanga vermelha. Um rei índio ou índio rei?
Figura 27. A descrição da grandiosidade do palácio real é visível nesse quadro. As mãos espalmadas abrindo-se, o olhar alto, a boca evoca deslumbramento. Como não perceber a grandeza do mito?
Figura 28. Os dedos enumeram a riqueza doada pelo rei. Na praia, muitos moradores já acharam jóias. Ao desviar o olhar do espectador e voltar-se o olhar às suas próprias mãos, a narradora também desloca a atenção do espectador projetando seu relato nos dedos que contam.
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Sequência performática 4.
Maneco transita entre dois universos distintos: o espaço sagrado da Mina e o espaço da brincadeira do boi. Em ambas a sua função está ligada ao canto. No rito, são as doutrinas, entoadas de frente para os tocadores, que indicam a louvação aos caboclos, orixás e encantados. Aí Maneco é o pajé, nome dado ao chefe do terreiro, o curador. Ninguém, porém, assume autoria das doutrinas, uma vez que o canto é de posse do encantado. Já na brincadeira do boi, o performer atua criando toadas, às vezes de improviso. Há toadas específicas para cada ato da brincadeira, como uma ópera de rua. O puxador, ou amo do boi, deve conduzir vaqueiros, índios e tocadores durante o espetáculo. As toadas permanecem na memória do performer, que vai incorporando a elas outros versos. Assim, as composições daqueles que já morreram, continuam a vigorar na boca do performer , seja pela melodia, seja pelo uso de partes da letra. [Maneco canta]
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No dia 5 de março Convidei meus companheiros Pra nós dar o primeiro ensaio. Convidei, avisei Do meu lado eu não caio Vou brincar com o boi na frente E São João me defender. Encostado na fogueira Vou fazer meu guarnecer. Vou discriminar em versos Sei que vou fazer sucesso E sei que minha memória dá Este boizinho já tá em revista e jornal Já tá em revista e jornal Rolando pela cidade.
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Figura 29. Maneco, o novo pajé é também amo do boi. E tem prazer em falar sobre o auto e cantar suas todas. A camisa que veste é o traje do amo do boi, no auto.
Figura 30. Enquanto fala sobre o auto, intercala sua fala com composições suas. Aqui ele está compenetrado convocando a memória para auxiliá-lo na demonstração de seus versos.
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Figura 31. De repente, quando o assunto é desviado para o rei Sebastião, sua aparência muda, olha para o chão, sério. E evoca a memória.
Figura 32. Ao falar do som da tamborada no fundo, sua mão aponta para baixo, indicando a origem do encanto.
Figura 33. Sua mão também dá indicação para onde o rei se mudou. Apontar é uma característica dos narradores, pois está em jogo a verdade da fala.
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Sequência performática 5.
Ribamar compõe seus bregas inspirado pelas belezas da ilha. Para compor, ele costuma caminhar sozinho pelas dunas e pelas matas. Munido de pandeiro ou de qualquer objeto que produza som, o compositor tem prazer em mostrar as circunvoluções dos ritmos que seus dedos são capazes de produzir. Suas letras falam da terra, dos encantados, de animais que agem como humanos, dos turistas, das aves, etc.
[Ribamar canta] Lá na ilha dos Lençóis veja o que me aconteceu Meia-noite na beira da praia Jarina me apareceu. (bis) A filha do rei Dom Sebastião montada no seu cavalo com a sua espada na mão. (Lambada da Jarina, Ribamar, janeiro de 2009)
Figura 34. O cenário não podia ser mais simbólico. Redes de pesca ao fundo indica o ofício do narrador. Mas nesse momento ela faz outra pescaria: a memória traz a poesia, na voz e nos dedos do performer. Ao espectador só resta deixar-se também cair nessa rede de encantos.
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Figura 35. Os dedos ágeis promovem o ritmo no instrumento de improviso. O apetrecho deixou de ser mera coisa, para tornar-se parte da performance artística.
Figura 36. Até a argola de arame, presa à bacia, torna-se indispensável às sonoridades obtidas.
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Sequência performática 6.
O jovem Dunga tinha 12 anos quando viu um auto de bumba meu boi e decidiu: seria amo de boi. Com a criançada da ilha, improvisava um boi e instrumentos e saía com a brincadeira. Os adultos se comoveram e decidiram ressuscitar a brincadeira. O jovem é o amo do boi, o dono, e compõe as toadas, fazendo referência às belezas da ilha, ao rei Sebastião e, sobretudo, à paixão pela brincadeira. Com o maracá e o apito, Dunga conduz os bailantes e tocadores, entoando toadas com voz aveludada. As duas toadas a seguir foram escolhidas pela temática relacionada ao mistério que envolve a Encantaria e os encantados. [Dunga canta] Lençóis é terra de assombração (bis) Trago ela no peito Dentro do meu coração Tá arquivada na memória Deste menino cristão. Sempre meu coração chora Mas está é minha missão. Cantar para a brincadeira Do glorioso São João. Eu domino com seu gado Aqui neste meu torrão Mas no céu sou dominado Por Jesus e São João Eles dois é quem me ajudam E eu sou agradecido. Canto para todos santos Pra não ficarem aborrecidos. Eu hoje estou cantando Já comecei a guarnição. Cantei pra senhor São Pedro E o glorioso Sebastião. Meu nome é Carlos Alberto Sou dono desta canção /:Se quiser eu canto outra Pra animar meu batalhão:/ (bis) (Toada, Cururupu, Dunga, janeiro de 2009)
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Figura 37. Rosto sereno, voz suave, aveludada, pra dentro. O rapaz olha para a câmera e se prepara para entoar.
Figura 38. Dunga toca maracá, após ter cantado a primeira parte à capela.
Figura 39. Dunga sopra o apito, avisando que a toada acabou.
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OFERECIMENTO (DUNGA) A porta da igreja está aberta Eu vou fazer minha obrigação Eu vou oferecer esta reza Para o rei Sebastião.
Sequência performática 7. [
Figura 40. O olhar do narrador encara o ouvinte, impõe respeito. Não é qualquer história o que ele tem a dizer. É preciso seriedade.
Figura 41. Indica a referência do lugar onde sua família morava, antigamente. Isso é importante para situar o ouvinte no relato.
Toda a sequência faz parte do documentário]
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Figura 42. O rei chega no escaler, finca a espada na coroa de areia e a ilha surge. O gesto do narrador faz o espectador perceber a força do encoberto.
Figura 43. Ao receber o convite para visitar o rei, Seu Chico desce no poço e surge justamente na janela do palácio.
Figura 44. Às vezes a narrativa é interrompida para explicações. A mão coçando a fronte indica retomada no relato.
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Figura 45. Braços erguidos indicam a areia levantando para formar um muro e esconder o rei.
Figura 46. O dedo indicador atesta que a visão trouxe mal estar. Não há como não perceber nesse gesto a advertência.
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3.5 A QUADRATURA DO CÍRCULO: TEMPO QUE SE CUMPRE E SE RENOVA
Circular como a ilha é sua mitopoética. Os quatro elementos primordiais compõem esferas superpostas, integram-se, fundem-se na harmonia dos opostos, como indica o fragmento de Heráclito: “a morte da terra é tornar -se água e a morte da água tornar-se ar e a do ar, fogo, e vice-versa” (fragmento LIII). Está armado o combate anterior ao homem neste mundo: Há, por conseguinte, um fogo, uma água, um ar e uma terra terrestres mas também uma terra, uma água, um fogo, um ar aéreos ou celestes. Há um combate entre a terra e o céu, em que está em jogo o aprisionamento ou a liberação de todos os elementos. A ilha é a fronteira ou o lugar deste combate. É por isso que é tão importante saber de que lado vai pender; se será capaz de derramar no céu seu fogo, sua terra e suas águas e de se tornar ela própria solar (DELEUZE, 2001, p. 226).
O único imutável, por sua natureza soberana, é o sol. Na esfera do espaço moram todos os seres míticos e elementais: sereias e mãe s d‟água, touro azul e negro na terra, pássaros encantados na floresta e no céu. Na esfera do tempo, princípio e fim se fundem, circularmente a vida é posta aos ilhéus. Os elementos responsáveis pela transmutação são o fogo e a água. O movimento sugerido pela visão do fogo testifica a profecia segundo a qual tudo deverá ser destruído para que o novo seja instaurado. O fogo anuncia: será a água a geradora do cataclismo que dividirá o tempo da espera, do tempo do cumprimento da promessa. O cataclismo abalará São Luís, ao mesmo tempo em que Lençóis revelará o reino do Encoberto emergido. O fogo transforma, lacra o círculo, unindo as fissuras do tempo, reduzindo os espaços a cinza, quebrando os limites, para que fulgure o numinoso. A água revolta-se, a terra abala-se, o fogo alastra-se, a fumaça sobe aos céus, levada pelo vento, como oferenda aos deuses, um incenso inebriante de oblação. Terra e céu se irmanam, desejo antigo de serem um só. O tempo agora é do numinoso. A ilha já não é mais. A ilha é outra. Cumpriu-se a profecia.
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Observa-se que há nessa poética uma dialética da concentricidade. Círculos dentro de outros fundamentam a poética dos sebastianos, demolindo a ideia linear do tempo e dos horizontes. A linha do tempo e do horizonte da narrativa imaginária é circular, concêntrica, em constante mutação, não dicotômica. Vejamos como se constitui essa dialética: a) O caráter circular da ilha, porção de terra limitada por água. A ilha é o limite, a falta de algo, uma presença que incomoda o oceano. E qual é a dialética desse círculo? Entregar-se ao mar, num diálogo ou num embate. Nesse caso, essa disputa pode até ser da ordem da confabulação, afinal, os opostos se atraem, um não vive sem o outro, um está no outro e precisa incessantemente do outro para poder ser. É justamente nessa fissura entre o que é terra e o que é mar que se dá o assombro. O espanto traz ao humano o inefável, tal como revela a Teogonia de Hesíodo, que apresenta o Espanto (Thaúmas), filho do mar e pai da Tempestade e de Iris, a mensageira divina. Ele faz o corpo do humano se eriçar, o sangue ferver, a cabeça ficar tonta, enquanto os olhos fitam o invisível, que é oriundo desse enlace entre terra e mar. A ilha como lugar de assombração é entoada na canção:
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[TERESA CANTA ] Praia de Lençóis é ilha da assombração município de Cururupu do Estado do Maranhão. Eu tenho pena de deixar o meu torrão da princesa encantada filha de Rei Sebastião. (canção para Lençóis, janeiro de 2009)
Na narrativa do velho Macieira, assombração é coisa do rito da Mina. Seu relato demonstra uma tentativa de distanciamento do discurso sobre os encantados e os assombros, limitando-se a contar como eles, os pajés e curadores, faziam seus relatos: [...] Do que eu sei é eles que se atoam como o Zé Mário, que se assombram, é assombração, esse negócio de pajé. Eu finalmente não digo assim que eu saiba porque eu nunca senti esse remorso, né. Porque eles tem um tal de encantado, uma encantada, é fulana de tal, Jarina, não sei quem mais,
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Princesa Flora, tem uma porção de lenda lá que eles contam, que às vezes eu fico só escutando eles falar. E- Mas o senhor acredita que Lençóis é terra do rei? M- Eu acho que sim, né. Porque ele chama muita gente de fora [ri]. (Manoel Macieira, Cururupu, janeiro de 2008)
Parece haver no depoimento uma contradição, pois ao mesmo tempo em que o velho fala do encanto com um certo distanciamento, finaliza seu relato quase acreditando que a ilha é posse do rei encantado que, segundo o narrador, é o responsável por trazer pessoas de fora, referindo-se a turistas e, sobretudo, jornalistas e pesquisadores. Desse modo, até quem tem um discurso de desaprovação às histórias de assombração envolvendo a ilha, acaba por contribuir à sua maneira com o discurso legitimador. Circular como a ilha, é o discurso sobre ela, inicia e termina no assombro, limite para a palavra, não há como escapar da narrativa. b) O caráter circular do povoado, o aglomerado de casas em meio às dunas, sem definição precisa de ruas. Embora a disposição das casas não se dê de forma circular, como uma aldeia indígena, é possível perceber esse caráter acentuado na obrigação que os ilhéus têm de ficar juntos. Essa obrigação é mais natural do que social, uma vez que o único espaço onde as areias não penetram facilmente é ali, na parte ocidental. Nem sempre, porém, o povoado esteve aí, assim como nem sempre a vegetação a nordeste foi escassa. Ainda assim, não há segurança: Por isso que eles dizem que Lençol é encantado... Olha agora como tá entupindo... as morrarias... o senhor ainda não viu como tá? Que não era assim, meu senhor. Aí tinha um campo grande, ali também tinha outro campo grande... agora tá enterrando tudinho. Diz que é quando ele não quer que os morador... papai é que dizia... isso é dizer de gente velho... papai dizia que quando ele tira pra fazer assim essas morrarias é porque ele não quer mais que o pessoal mora na praia. Agora mesmo... Ó... o senhor não tá vendo esse morro bem aí no pé dessa casa nossa? Vem entupir... vem entupir. Agora pro verão...vai deixar mais de cavar, de sair terra porque é o inverno... mas o verão nós vamos sair... temos que sair. (Dona Nini, Lençóis, janeiro de 2009)
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O povoado oscila, ondula-se, movimento contínuo. Vive-se na expectativa. Se a floresta de mangue e os cajueiros do topo das dunas a nordeste se extinguirem, a presença humana ali será inviável. A natureza dita as regras; o homem olvida-as. Se o círculo natural for quebrado, o homem perde todo seu espaço na ilha e já não pode habitá-la. No entanto, alguma vez ela foi habitação plena para ele? c) O caráter circular da conversa dos moradores; tudo é feito em grupo, mas principalmente a conversa, onde as narrativas se tecem. No trabalho, nos ritos e no lazer, o círculo predomina. Pescador dificilmente está sozinho. São demais os perigos nestas águas, e ainda tem os mistérios. Meu pai cansou de dizer. Ninguém levava daqui. Trazia peixe... E aqui se você fosse viajar, navegar a vela, se você levasse alguma coisa que achasse aqui, levasse um alguidar de barro ou uma cuia de barro, você botava aqui dentro da embarcação, se você não deixasse aqui o barco num...o barco se fosse a motor, o motor pregava ou não navegava [...] e era assim que era...era muito difícil mesmo. Já vi muita coisa aqui. Já vi. (Simião, Lençóis, janeiro de 2008)
É na conversa que os mais velhos presentificam as visões, o passado, lançando mão do auxílio da memória. Enquanto isso, os mais novos silenciam, para absorver a palavra originária. Assim, estará salvo o mistério da ilha. Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça a voz do encanto na boca dos mais velhos. Enquanto as meninas tratam os peixes, as mulheres cozinham no fogareiro, os homens consertam as redes, as crianças brincam, a palavra circula, ávida por ser eternizada na memória de um ouvido atento. d) O caráter circular da dança no pajé, ao som do tambor, onde o Rei Sebastião incorpora como entidade. Embora o espaço do rito seja retangular e a disposição dos brincantes se dê de frente para os abatazeiros (tocadores de tambor), a ideia da circularidade é a tônica do ritual para os encantados. De forma contagiante, os integrantes cantam e dançam girando alucinadamente, mas nem por isso parecem ficar tontos. Numa ciranda sobre si
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mesmo, como um pião, o integrante incorpora o encantado que se apresenta no canto. Em volta da casa, dentro e fora, a comunidade curiosa assiste tudo e interage: as crianças riem, os adultos cochicham, os jovens olham curiosos e ficam sentados na areia, em frente ao terreiro, conversando ou namorando; alguns se revezam nos instrumentos de percussão. O rei Sebastião reina absoluto, amparado por caboclos, orixás e voduns. Suas doutrinas são entoadas depois das doutrinas para caboclos. A circularidade dessa liturgia coloca lado a lado elementos de terras bem diferentes: reis europeus, forças africanas e entidades ameríndias. Girando, as filhas-de-santo trazem os encantados para o terreiro, a fim de que, pela musicalidade e dança, lhes sejam prestadas homenagens:
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Êh, no balanço eu vim Êh, no balanço eu vou. /:A minha madrinha É a virgem da Conceição O meu padrinho é o rei Sebastião:/ (Doutrina para o rei Sebastião, Lençóis, janeiro de 2009)
e) O caráter circular do bumba meu boi, brincado em junho na comunidade, onde, em volta do boi, cantam-se toadas. São círculos entre círculos. Primeiro porque é feito um fogo na rua onde serão afinados os pandeirões e tambores. Em volta do fogo, o círculo de tocadores espera o fogo esticar o couro dos instrumentos. Cabe ao amo convocar a plateia para o início da brincadeira. Esse momento é chamado de guarnicê, guarnecer, preparação para o início: Oh, chega povo, chega povo Que este homem deu valor. Ele saiu lá do Rio E a festa começou. (bis) (Maneco, Lençóis, janeiro de 2009) Nós tamo gravando, Nós tamo gravando Aqui na terra do rei Sebastião Aqui na terra é do rei Sebastião (bis) (Maneco, Lençóis, janeiro de 2009)
No improviso, o amo canta, dando início ao auto. Depois de formada a grande roda de
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brincantes, o boi gira no meio. Em volta dessas rodas ficam os espectadores, no enlace do espetáculo de rua. E por fim, a musicalidade, ondulada, circundando o espetáculo, trazendo o encantamento da festa, promovendo o êxtase coletivo entre plateia e brincantes. Em forma de ciranda, o mundo é festa, o boi é o símbolo da morte e da ressurreição. É por isso que o couro do boi é trocado na segunda parte do auto, para simbolizar que o boi tornou a viver, e seu giro agora é místico. Festeja-se não a morte, mas a vida e seu poder diante da morte. Esse louvor à vida pode ser notado sobretudo no respeito que os cantadores têm com as toadas uns dos outros. Embora nenhum tenha estudado música, a ilha se nutre de canções, inclusive criadas para relatar um fato, uma anedota, um acontecimento. Os cantadores sabem o valor da tradição, pois repassam constantemente as toadas uns dos outros, inclusive daqueles que não estão mais vivos. O valor dessa circularidade promovida pela toada do boi é tão forte que, antes de morrer, um cantador repassa suas composições ao filho ou a outra pessoa de confiança. Enquanto os tambores subirem ao céus e descerem ao fundo para dar ritmo à voz, a morte não atinge o humano. f) O caráter circular do homem, ele mesmo uma ilha, ansiando um tempo propício. O habitante da ilha entende mais do que o habitante do continente o que é ser prisioneiro, porque ele vive duplamente encarcerado: alma prisioneira do corpo, corpo prisioneiro da terra; e não há liberdade sem prejuízo para um lado. Mesmo que o ilhéu abandone a ilha e passe a morar em terra firme, ainda assim, os rumores da ilha ecoarão lá no fundo do ser. A saudade do barco, o perigo da travessia, o sentimento de estar num útero provocarão no ilhéu um estado de abandono. A sensação de que falta proteção vai estar sempre presente, prova de que ilha sabe ser aconchego, um castelo sempre disposto a proteger seu rei. Um dia, o homem de Lençóis será rei. Mas, por enquanto, o ilhéu se divide entre dois mundos. Do lado mítico, faz corte ao rei encoberto; do lado físico, é súdito dos donos do barco, dos comerciantes que compram o pescado para revender na capital. Seus relatos podem
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ser encarados como um apelo à escuta atenta. Mas quem está disposto a ouvi-los?! Qualquer visitante, saberá que os súditos do rei Encoberto vivem num paraíso, mas não tem regalias. A explicação para o sonho com um novo império talvez surja desse desejo de ser dono de seu próprio nariz, de sua própria vida. A canção abaixo dialoga perfeitamente com esse anseio. Ele foi composta por um rapaz do continente que visitou várias vezes a ilha e se fez amigo dos pescadores. Depois de tentar organizar uma biblioteca e não obter êxito, Guerreiro, como era conhecido, nunca mais voltou à ilha, nem deu notícias. Mas ficou na memória da comunidade, que lembra com respeito dele e canta sua canção, adotada por eles: Canção do Guerreiro [título dado pelos ilhéus] Lá onde reina Dom Sebastião, ê, ô. (bis) Quem tem dinheiro, barco, rede Não é rei, também não é São. Pode até não ser dono das águas Mas do pescador é patrão. Lá onde reina Dom Sebastião, ê, ô (bis) No inverno e verão água brota na areia. O que tem aqui hoje tem acolá. Amélia cedinho vai encher o pote E Manel Luis leva para pescar. Mãe Preta tem filho que nasce albino Os filhos da Lua do seu litoral O sol quando nasce na morraria Parece uma coisa sobrenatural. Trabalho, cachaça, ê, ô, e baseadão. Trabalho, dinheiro, ê, ô, quem manda é o patrão. (Ilha de Lençóis, janeiro de 2010)
Para transcrever essa canção, contei com a ajuda de muitos moradores, que recitavam a parte que sabiam. Foi um trabalho de costura da memória a muitas vozes. Ainda há pelo menos duas estrofes que não puderam ser reconstruídas e cujos versos celebram os compositores da ilha. O olhar do outro sobre o habitante revela todo o sentimento oculto no mito sebastiânico: os súditos do rei servem a um patrão que não é rei nem santo, mas se diz
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dono de tudo ali, até das águas. De fato, quem tem barco, tem a travessia garantida, tem o peixe e tem o lucro da pesca. Quem tem barco, tem chance de ser seu próprio rei e de ter seus súditos. “O sol que nasce na morraria parece uma coisa sobrenatural”, diz a can ção. Mas a noite que cai sobre a ilha é também profunda, fantasmagórica, tentadora. Soberanos ali são o dia e a noite, sol e lua, que orientam os destinos dos ilhéus. Não existe coincidência quando o que está em jogo é da ordem do imaginário: não é significativo que esta seja uma canção do guerreiro? Guerreiro é o rapaz que compôs a canção e é o pescador, o ilhéu, que precisa se defender da opressão secular. Os pescadores de peixes e de mitos são guerreiros diários, numa batalha injusta, pior do que aquela Alcácer Quibir, porque lhes tira o direito de serem livres em seu próprio reino. Repetidas vezes, anos a fio, os ilhéus cantam uma doutrina que menciona a profecia do desencanto. É a doutrina mais difundida sobre o rei Sebastião. À semelhança de uma mantra, repetem-na incessantemente os entrevistados do passado e do presente: Rei, ê rei, rei Sebastião. Rei, ê rei, rei Sebastião. Quem desencantar Lençol põe abaixo o Maranhão (Dona Nini, Lençóis, janeiro de 2009).
A profecia diz que quando Lençóis desencantar, o Maranhão submergirá. Haverá uma inversão, portanto. O que está em cima vai abaixo; o que está embaixo, sobe. Onde havia luz, haverá escuridão; onde havia o escuro, surgirá a luz. Por que isso acontecerá? Realidade e encanto se fundem, um mundo está sendo denunciado constantemente, precisa ser restaurado. Tudo na ilha pode ser sinal desse devir. Só não vê quem não quer. São muitos os que, com vista limpa, não enxergam, sobretudo os mais jovens, herdeiros que são desse tesouro. Mas o anúncio é claro, em canto e em narrativa. Tudo leva a um devir. O tempo em que não haverá dois lados: dominante e dominados. Esse momento se apresenta em vários relatos. O fim da
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ilha pela catástrofe anunciada parece não amedrontar os cantadores. Um mito engolindo outro. As figuras míticas são deglutidas: personagens históricas, a ilha, a cidade endeusada, os mitos do passado (escravidão, genocídio, desigualdade...) darão lugar à cidade mitopoética do Encoberto, espaço sagrado da liberdade. Essa São Luís que virá é a Queluz, reino mítico do novamente Desejado: Oh, cidade do Lençol é uma cidade muito bonita. Ai, tem vaso de guerra E tem caixa de guerra. Mas isto é feito por obra da natureza. (Telma Maria, Lençóis, janeiro de 2008)
Tudo na cidade submersa é obra da natureza. Os narradores da Ilha oferecem os seus segredos nos ritos, nas festas e sobretudo no seu cotidiano de pesca. A ilha se veste de cores e sonoridades. Sagrado e profano estão irmanados na espera do rei. Há solidão quando se tem deuses regendo o tempo, sempre sagrado? A condição insular do humano se faz presença aqui ao mesmo tempo em que aponta para a libertação. O discurso poético de pessoas tão simples e à margem da cidade parece dizer-nos que não somos ilha, solitariamente isolados. É preciso romper as amarras e grilhões que sufocam o homem. Não é um grilhão o medo diante do irracional, como se a racionalidade fosse o único suporte do entendimento? O convite está lançado. Para que ecloda o novo reino, divinamente humano, o ilhéu é convocado a destruir os portos seguros que o faz ilha para que se realize humanamente. g) O caráter circular da serpente, signo do tempo. Uma serpente enorme, formada de estrelas, enlaça o céu de Lençóis. É a Hidra, visível no hemisfério celeste sul do planeta. A ilha de Lençóis está a apenas um grau do equador, a linha imaginária que divide o planeta em duas bandas passa perto da ilha. Portanto, não é incorreto dizer que ali é o meio do mundo, área limítrofe, ponto cego onde a visão se turva para mostrar o oposto. Não era assim que se pensava na época das grandes navegações? Quando as naus atravessavam essa linha, os
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marinheiros promoviam a festa do contrário, travestindo-se de mulher e bebendo em homenagem ao mundo de ponta-cabeça que acabaram de cruzar. Na terra do contrário, quem tem visão nem sempre vê. A constelação da serpente contorna a noite. Enquanto isso, os ilhéus contam que outra serpente, um jiboia, pode aparecer a qualquer momento para fazer um pacto com alguém verdadeiramente corajoso. A dialética do círculo adquire maior força na lenda da serpente encantada da ilha, com seu molho de chaves na boca, num sono profundo. Que abrirão essas chaves das quais a cobra é guardiã? Que representaria a cobra nessa circularidade mitopoética? Um ser temido e admirado, símbolo da sabedoria e da astúcia, a serpente é o ser mais ligado à terra. É pela terra que ela desliza, é pelas rochas que ela esconde, furando a terra a serpente se transporta. Seu esconderijo é a terra. Segundo um relato, as chaves devem ser retiradas de sua boca, mas sem que tal ato a desperte. Ferir a cauda da serpente também promoverá o desencantamento da ilha. Tudo aponta para o futuro, proximidade dos acontecimentos, previsão. Portanto, para se pensar no sentido que a serpente ocupa no mito sebástico, impõe que liguemos esse animal ao tempo e ao espaço, numa representação precisa do que viria a ser ponte para a heterotopia e cronotopia. Além de ser ela própria uma símbolo da ilha anelada, fechada em si mesma, prenhe de mistério, também se liga ao profundo e à superfície, mensageira dos encantados, une passado, presente e futuro, anunciando o grande dia: Eu vou contar da serpente, da cobra, né. Quando o sujeito queria tomar banho, quando chegava lá na cova do morro, que olhava, tava aquele rolo, grande. Esticava, era uma serpente, com uma cambada de chaves na boca. Aí ficava com medo e vinha embora. Então muitos diziam: se o sujeito desse, que matasse ela, o Lençol desencantava e o Maranhão ia ao fundo. (A serpente. Intérprete: Saturnino. In: A lenda do rei Sebastião. 1 CD, faixa 5, 2000, gravação feita em 1979) Aqui também sei que vinha uma cobra de primeiro. É tudo isso, eu vou contar isso tudinho? Uma cobra, ela vinha dum lugar chamado Gino (...) Um senhor chamado Joca, era meu tio, disse que era só furar na cauda dela, só furar com o punhal que ela desencantava a praia e São Luís... Lençóis virava cidade e São Luís ia pro fundo. Assim que ela dizia: São Luís no
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fundo e a ilha desencantava. (Simião, Lençóis, janeiro de 2008)
Os dois relatos acima estão distantes cerca de trinta anos, e são coerentes quanto ao discurso catastrófico. É preciso que o sangue da serpente regue a areia para haver o desocultamento do rei e do reino. As chaves darão ao aventureiro a possibilidade de abrir de fato as portas de ambos os mundos para que tudo se torne um só e passe a vigorar uma nova lei para homens e encantados. A serpente sagrada deve ser martirizada e, assim, rechaçar a barreira cruel do tempo. Nada mais simbólico que o lugar em que isso deve ocorrer seja uma ilha composta praticamente de areia movente, que, de tão frágil, pode ser engolida a qualquer momento pelo oceano, a exemplo de suas irmãs que jazem no fundo. A serpente também é reverenciada nas doutrinas do culto da Mina:
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Quando eu vi a cobra grande me laçar Eu tava na beira da praia Não me laça, cobra, não me laça, cobra. Eu já vou pra lá. (Doutrina , Lençóis, gravada no rito da Mina, janeiro de 2009)
Sinuosamente, audaz e sedutora, a cobra vem do mar para lançar o bote: um convite tentador. Esse “lá” seria a Encantaria? O mar traz o encanto, mais uma vez. Laçar ou enlaçar é unir o que está disperso, cindir o que se rompeu, o tempo que não se mede. Esse é o desejo da serpente: levar pro outro mundo o vivente ou trazer o outro para este mesmo. No relato seguinte, a cobra é uma metamorfose do rei que deve lutar na última batalha e derramar seu sangue para ressurgir. É o único relato que menciona a cobra como uma das metamorfoses do rei: Aí eles sempre contavam que ele se transformava numa cobra e precisava de uma pessoa de coragem para ver se furava a cobra, pra ela desencantar aqui. Aí só que nunca achou uma pessoa de coragem pra querer desencantar essas coisas. Aí quando chegava ela se apresentava pra aquela pessoa e eles não tinham coragem de cortar a cobra. E – Como era essa cobra?
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M – Era jiboia. Só que quando ela aparecia, as vezes ela dava um assovio estranho ou dava uns berros. Aí nego ficava com medo e não cortava ela... E – E se cortasse, o que acontecia? M – Diz que desencantava aqui. Agora eu não sei se é certo ou se não. Na minha geração já não enxerguei esse tipo de coisa assim. Agora só no tempo dos mais antigos. E – E o que ia desencantar aqui? M – Diz que ia abaixo o Maranhão, né, e aqui ficava Maranhão. Ficava cidade. Diz que era. (Maneco, Lençóis, janeiro de 2009)
Um enlace sedutor: o discurso da serpente prende o espectador diante dos avisos. Os silvos estranhos amedrontam, mas a narrativa sobre ela fascina. Ambiguidade pura, afinal, a serpente é o ser dos disfarces, das trocas constantes de pele, do renascer perpétuo. Portanto, um rei que se oculta e se mostra com muitos disfarces é auxiliado pela serpente, a mensageira, que serpenteia a ilha para ser oblação. Se a árvore sugere o obscuro e a revelação num sentido vertical, a serpente o faz horizontalmente, ou melhor, circularmente. Princípio e fim se anulam diante do anel do eterno. Por isso a imagem da serpente adormecida que, em devaneio, procura um corajoso para feri-la ao invés de beijá-la surge cheia de revelação. Sendo ela um ser rastejante, entende mais da terra que qualquer outro ser e pode revelar os segredos escondidos no fundo quente e alucinante da ilha. A serpente é ouroboros24 o círculo mais largo de todos, que enlaça tudo e do qual ninguém escapa. Pelo círculo da serpente que morde sua própria cauda, cumpre-se a profecia cantada pelos velhos. Não existe começo nem fim, mas uma totalidade, um movimento infinito que devora o tempo cronológico. Natureza se refaz num círculo. Os dois mundos comungam o mesmo: tudo é espera, tudo é desejo, tudo é anseio. Do lado de cá, os ilhéus vaticinam a promessa do desencanto através dos relatos e doutrinas. Do lado de lá, o desejo de
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que esse dia chegue logo.
Figura 47. Ouroboros. Manuscrito alquímico, Theodoros Pelecanos, 1478, Bibliothèque Nationale, Paris.
Como afirmar que esse réptil anula princípio e fim e depois dizer que ele anuncia uma catástrofe? Inúmeros avisos apontam para uma catástrofe necessária que tem por epicentro a ilha dos sebastianos. O veneno da serpente é morte e também vida para os males. Ser ambíguo que congrega a vida e a morte numa gota: Tudo irá adquirir vida se buscarmos na imagem da serpente que morde a cauda o símbolo da eternidade viva, de uma eternidade que é causa de si, causa material de si. É preciso então entender a mordida ao mesmo tempo ativa e mortal numa dialética da vida e da morte (BACHELARD, 2003, p. 214)
A natureza revelará aquilo que vem ocultando há tempos. A catástrofe anunciada na doutrina “quem desencantar Lençol põe abaixo o Maranhão”, parece ser um desafio, de tão
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repetida por todos ali. Um desafio, um chamado, uma convocação. Ferir o touro negro ou arrancar uma escama da cobra é dar lugar para o cataclismo e tombamento da história dos poderosos para instauração do reino da graça que emergirá das profundas e fulgentes águas. Portanto, a dialética da morte e da vida está fundamentada nessa nova etapa do reino que virá a partir da destruição do vigente. A serpente é a bela adormecida, à espera do príncipe para despertá-la, e com ela, acordar todo um reino. O veneno é, pois, o antídoto para os males do mundo. Então, louvar e contar os feitos de um rei que funda seu império sob areias moventes e exige constante vigilância, não significa louvar a sua história, os fatos realmente sucedidos, mas aqueles apropriados pela memória, numa reminiscência, e pelo desejo, num anseio. O que fez o rei durante seu reinado pouco importa aos narradores da ilha. Sua importância surge a partir da guerra. Também é renegada sua derrota, uma vez que a crença está em que o rei ou foge da batalha para assegurar a preservação do reino, ou, de forma maravilhosa, se encanta nas areias para surgir numa ilha. Nada ali está alheio às mudanças, uma vez que a própria ilha teima em não baixar guarda diante das investidas do mar. E areia avança sobre o manguezal e o destrói, e as casas são destruídas e reconstruídas em outros lugares, e os velhos morrem levando consigo as histórias, e nascem crianças. O tempo girando, círculo perpétuo.
, Sebastião, sebastianos. O assombro que faz tremer. O tremendo peso do Sebastós Outro deixa o humano sob o aspecto febril. D iante do “totalmente Outro” (OTTO, 2007) o impulso é recuar. O mistério não permite contemplação total, mas exige do vidente um despojamento. É preciso sentir com outros sentidos. O arrepio que gela promove a passagem e o tenebroso se revela com toda sua majestade. O pressentimento do misterioso paralisa.
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Mais do que uma crença no Sebastião que um dia fora rei, os ilhéus de Lençóis ensinam um retorno ao poder do encanto, ao delírio diante do inexplicável. O que não se explica deve ser experimentado por outras vias. O fantasmagórico que circunda a ilha e que a fundou é sebastós, poder misterioso e tremendo do inescrutável. Sebastós, palavra grega que significa “augusto”, grandioso. Humano algum ousaria ser chamado de sebastós. E o rei Sebastião, que poderia ter recebido o nome de João ou Manuel, vai receber este sinal do inefável. Sebastós, designação numinosa de algo que nasceu para ser venerado, aquilo que promove o pasmo. O pavor e o assombro que arrepiam são da ordem do sebastós. Impulso primitivo. Foi por isso que designei os ilhéus com o termo “sebastianos”: porque sabem ter o pasmo essencial para recriar o mundo e mundificar o que não pode ser tocado. São sebastianos porque veem no Outro sua própria majestade. Porque acreditam e comungam disso com o único cetro que têm: a palavra. Fala e canto a serviço do tremendum. Esse imaginário é que fez a ilha de Lençóis surgir, banhada pelo mítico, circundada pelo assombro, iluminada por fora pelo majestoso sol e escondida por dentro pelo véu do mistério. Se tive medo alguma vez em que aí estive, foi desse poder narrativo borbulhando; foi dessa gente que, não tendo nada, têm tudo para ser seu próprio rei. Majestade é o que não falta aos sebastianos. Onde há mistério e assombro, há poesia. Escutemos. Coloquemo-nos em estado de escuta. A palavra quer ser ouvida na sua gestação de mundo: mito. Escutemos e auscultemos as vozes originárias. Temos essa necessidade com urgência. A música da criação é poesia em generoso processo de doação. Ouçamos as vozes da memória no rito onde a palavra sagrada confirma seu vigor. Como filhos pródigos, voltemos à casa originária da palavra, geradora da vida e humildemente habitemos nela, poeticamente. Busquemos o canto sacro e a palavra dos narradores do sagrado e coloquemos nosso corpo à disposição da poética. Corporificação da existência. Pela poética o ser se faz morada.
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Com as vozes dos brincantes do boi, dos narradores das ilhas e louvadores do rei mergulhemos, também nós, homens das Letras, nesses espaços mitopoéticos. Peregrinando por essas cartografias imaginárias encontraremos o caminho ao lar que, em virtude da racionalização do pensamento, um dia deixamos: o mais profundo do nosso ser. Para chegar à casa poética, um barco nos espera na grande travessia. A poesia-ilha nos acolherá com o encanto de sempre. Afinal, que é o homem senão natureza? Que é o mito senão mensagem? Que é a palavra, senão revelação? Vozes sábias estilhaçam o tempo, arruínam o espaço e se unem: Heráclito e os velhos de Lençóis dizem o mesmo.
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NOTAS 1
KAVÁFIS, Konstantinos. Poemas. Tradução de José Paulo Paes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. p.119. s/d.
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Tradução de Caio Meira, http://www.caiomeira.kit.net, visitado em 08 de junho de 2009.
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O "jogo fônico" Il/ilê do francês não é possível ser percebido na tradução. Acrescentando o e à palavra Il, o pronome ele, o poeta construiu a palavra île (ilha), sugerindo o feminino de ele. Nesse caso, deve-se entender que ele é ao mesmo tempo ilha e ela. 4
Tradução de Luiz B.L. Orlandi.
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No belo poema de Augusto dos Anjos, intitulado “A ilha de Cipango”, o poeta apresenta os erros históricos sobre a localização da ilha e a descreve como uma miragem, lugar de sofrimento e tristeza. 6
É neste sentido que Deleuze afirma ser a literatura uma tentativa de compreensão dos mitos, uma vez que o homem deixou de sonhá-los e reproduzi-los. 7
Conferência proferida no Cercle d´Études Architecturales, em 14 de março de 1967 e publicado em Architecture, Movement, Continuité, 5, 1984. As citações tomam o texto traduzido por Inês Autran Dourado Barbosa (2009). Mas há uma portuguesa de Pedro Moura, que vale à pena ser analisada. Retirado de: http://www.virose.pt/vector/periferia/foucault_pt.html, em 21 de agosto de 2009. 8
Ao apresentar o conceito de heterotopia, Foucault justifica que ainda não ultrapassamos as dicotomias, as antíteses quando nos referimos ao espaço em que habitamos. Isso ocorre porque ainda não concebemos o espaço sem que o sagrado aí se manifeste: “[...] talvez nossa vida ainda seja c omandada por um certo número de oposições nas quais não se pode tocar, as quais a instituição e a prática ainda não ousaram atacar [...]. Todos [esses espaços] são ainda movidos por uma secreta sacralização.” (op.cit., 413) Será que o homem algum dia dará conta do situar-se no mundo sem a interferência do sacro? A meu ver, ainda descrente ou mesmo sem religião, o homem sempre necessitará erigir altares para os deuses que ele for capaz de criar, porque é da natureza humana ocupar-se com algo além da esfera do tangível. Não é por isso que é a pedra o mineral escolhido pelos homens primitivos para chegar até o supremo? Na dureza de uma rocha jaz o poder que o homem sempre anseia, fortaleza. Portanto, o espaço e as coisas que o constituem são e serão pontes para aquilo que não tem lugar nem tempo, que tanto admiramos. 9
Octavio Paz é quem conduz esta reflexão no artigo “A outra margem” (in: O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, tradução Olga Savary), onde questiona o termo mentalidade primitiva, argumentando que em qualquer época e em qualquer sociedade o homem vivencia o sagrado da mesma forma como o concebiam as sociedades primitivas. É aí que reside também o pensamento de que poesia e o sagrado abismam-se numa fronteira, em que cada qual deve ser compreendido por si mesmo. Sua reflexão aponta a experiência do sagrado como experiência do Outro, do deixar ser tomado pelo assombro, ideia apresentada pelo filósofo alemão Rudolf Otto na obra O Sagrado: os aspectos irracionais da noção do divino e sua relação com o racional (1917). É nesta obra que o autor cunha o termo “numinoso” para designar o inefável, aquilo que não está nos limites do racional nem pode ser medido pela moral ou ética, como a tradição concebeu a noção de santo ou sagrado. É aí também que o filósofo constrói um pensamento sobre a experiência do sagrado como manifestação do tremendum, aquilo que faz tremer, e o mistério terrível, assombroso, justamente porque é o desconhecido que se torna presença. Otto analisa o Numinoso a partir das categorias Mysterium tremendum (arrepiante, o que faz tremer), majestas (arrebatador, o que avassala) e mysterium (O totalmente outro), categorias que estariam no cerne de qualquer experiência humana do Sagrado. Jaa Torrano, nas análises de Teogonia de Hesíodo (2007) se baseia nestas categorias e apresenta seu estudo como um discurso sobre o Numinoso, como o faz Octavio Paz em dois artigos de O arco e a lira. 10
A primeira tradução de Homero feita no Brasil, por exemplo, foi obra do maranhense Manuel Odorico Mendes (1799-1864), que também traduziu Virgílio. Um notável estudioso da Antiguidade Clássica. Também famosos são os estudos de gramática, de Sotero dos Reis, na década de 1860. 11
Gentil é uma entidade cultuada nos terreiros da mina, mas não pode ser confundido com caboclos, voduns ou orixás. Foram humanos que se encantaram. São geralmente entidades europeias, oriundas da alta nobreza, que foram incorporadas, através do sincretismo, ao rito afro-maranhense. No caso do rei Sebastião, acredita-se que
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ele não morreu, mas desapareceu, por motivo de um encantamento, e tornou-se um invisível. Alguns gentis são O rei Luís XVI da França, D. Henrique, Dom Manoel, etc. O rei Sebastião é sincretizado na figura de Xapanã, aquele que cura feridas, e ainda é associado a São Sebastião ( FERRETI, 2000, p. 102). 12
Todas as doutrinas e relatos desse item, fazem parte do CD “A lenda do rei Sebastião”(2000), um trabalho de remasterização a partir de um curta-metragem produzido em 1979, por Paulo Baiano e Roberto Machado. Na mixagem, foram inseridos samplers que fazem da sonoplastia um recurso para a encenação do canto ao ouvinte. É, pois, uma performance induzida, à semelhança da rádio-novela. Portanto, os encantos de São Luís são descritos a partir da minha audição do CD. Tenho que pagar tributo a este trabalho, pois foi a partir do documentário e do CD que tomei conhecimento da lenda maranhense do Encoberto. Em 2001, eu acabara de chegar ao Rio, para iniciar meus estudos de pós-graduação, quando ganhei o documentário e o CD. Eu não queria estudar a literatura canônica, fazer análises de obras com base em teoria da literatura. Fiquei absolutamente encantado com as narrativas e com essa história e me embrenhei nas bibliotecas do Rio p ara saber mais sobre o sebastianismo. Na biblioteca da Funarte descobri até uma gravação de ponto de tambor de Mina que fala sobre o rei, feita pela equipe de Mário de Andrade, resultado da expedição pelo interior do país, na década de 40, registrando ritos, danças e outras manifestações populares. Decidi que meu mestrado e doutorado seriam sobre isso. Pesquisaria, pois, a presença do sebastianismo nas duas ilhas maranhenses e como a literatura e a cultura escrita tinham sido influenciadas por esse discurso lendário. No dossiê anexo a essa tese, há uma entrevista que fiz com os produtores do documentário. Sobretudo me interessei por saber o contexto da produção e a construção da narratividade no CD. 13
O bumba meu boi é um espetáculo de rua, um auto que abrange música, teatro e dança. É a manifestação de maior abrangência no Brasil, encenada de norte a sul do país. No Maranhão, porém, adquire requintes de suntuosidade, com seus mais de duzentos grupos apenas na capital do estado. O auto é realizado no mês de junho, em homenagem a São João, seu padroeiro. Mas a brincadeira é organizada durante todo o ano, especificamente no “ciclo do boi”, que corresponde a quatro momentos: ensaios, batismo do boi, apresentações públicas e o auto da morte do boi. Ao som de diversos instrumentos (cada grupo usa instrumentos específicos, e isso é conhecido como sotaque do boi) índios, vaqueiros, amo e os personagens principais, Pai Francisco e Mãe Catirina, o boizinho baila na roda. 14
E aqui devo agradecer ao professor Alberto Pucheu, por ter sinalizado para mim a importância do sentido que assume o termo “profundo” nessa poética da Encantaria. Para não utilizar o termo sobrenatural, ele me orientou a perceber o jogo entre fundo e superfície, regiões que se tocam. A abertura e união entre eles se dá pela poesia. O termo “fronteiras desguarnecidas” é de Pucheu, inclusive dá título a uma coletânea de poemas publicados em 1997 e reeditados em 2007 pela Azougue Editorial. 15
Embora não se saiba ao certo quando esse arquipélago foi definitivamente povoado, há registros de que a região ocidental maranhense começou a ser povoada por colonos na primeira metade do século XVII, a partir de entradas que visaram o aprisionamento de índios e uma tentativa de ligar o Maranhão a Belém por terra. Aí se desenvolveu a criação de bovinos e caprinos, e mais tarde o cultivo da cana e produção de açúcar, aguardente e fabricação da farinha, trabalho dos escravos oriundos da Costa do Ouro e de Daomé. Municípios dessa região, como Guimarães e Cururupu, já existiam como fazendas ou vilas em 1758 e 1835, respectivamente, conforme relatam duas importantes fontes. A primeira fonte trata-se da obra Relação sumária das coisas do Maranhão , do Capitão Simão Estácio da Silveira, publicada em Lisboa, no ano de 1624, na tentativa de provocar interesse nos pobres do reino sobre as riquezas do Maranhão ainda pouco povoado. Seu relato descreve a região de Lençóis, as baías e arquipélagos assim como a contenda dos índios tupinambá contra os brancos. Do Maranhão atè o Parà corre a cofta a Loefte, quarta a Noroefte, de maneira, que de dous grãos da parte do Sul, em que eftà a ponta da barra do Maranhaõ da parte do Ponente, chamada o Cumà, correndo cento & vinte legoas, que hà até o Separarà, que He a ponta da barra do Parà, da parte de Lefte, Fe vem à achar juftamente na linha equinocial. Toda efta cofta He boniffima, forrada de belliſſimas Ilhas, & ribeiras, & freſſ quiffimos arvoredos, cujos madeiros fobem ao Ceo, & faõ infinitos. Efta Provincia habitavaõ os Tupinambàs, em muitas aldeãs, que os Portugueses atraveffavão, hindo, & vindo do Maranhão ao Parà. Atè q no anno de feifcentos & dezoito (ou eFcandalizados de noffa vizinhãça ou monidos de sua fereza) ordenarão em hua mefma noite, matar todos os brancos, que entre eles andavão efpalhados por differentes lugares & os q eftavão em hu prefidio no cumà, & de effeito o puzerão ẽ execução, pondo logo ao Parà hũ muy apertado cerco, do qual fahyo o capitão Manoel Soares d‟Almeida a pedir focorro ao Brazil [...] (ANAIS
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DA BIBLIOTECA NACIONAL, 1974, p. 117, vol. 94). O segundo documento é a obra Corografia Brazilica ou Relação Histórico-geografica do Reino do Brazil , de Manuel Ayres de Casal, publicada em 1817, primeiro livro impresso no Brasil pela Imprensa Régia: Nesta paragem (a Villa de Vianna) a costa inclina contra o septentrião, e fórma uma enseaada de tres leguas com pouco seio. Segue-se depois de cinco a Bahia de Cumá com tres ou pouco menos fundo, e uma de largura, aberta a Leste. Nella desagua o rio Piracunan. Depois de sete leguas encontra-se a Bahia chamada Cabêllo da Velha, que tem seis milhas de largura com outras tantas de fundo, onde desemboca o rio Cururupú: sua entrada he por entre duas ilhêtas rodeadas de baixos perigozos. Junto da praia, que medêia entre estas bahia, estam cinco ilhas em fileira povoadas de mato: a maior tem legua e meia de comprimento. Depois de igual distancia, bordada por outras tantas ilhas, está a embocadura do rio Turynâna, que vem de longe, e offerece bom surgidoiro a navios pequenos. Defronte está a Ilha de S. Joam, que hé a mais occidental das mencionadas, com tres leguas de comprimento do nordeste ao sudoeste, raza, povoada de mato, passaros, e quadupedes bravios; e separada do continente por um canal profundo, com uma legua de largo. Na ponta do nordeste ha um bom surgidoiro. [...] Vem-se tambem as mesmas aves do campo, dos bosques, e das lagôas. Os formozos guarás, que sam numerozissimos na proximidade do mar, onde habitam, quando se pouzam em bando sobre alguma arvore secca, ou despida de folhas, esta fica vistozissima (AYRES DE CASAL, 1817, p. 260-263). A descrição de Ayres de Casal permite supor que a região continental onde hoje fica o município de Apicum Açu, porto fluvial na baía de Turinana que leva a essas ilhas, já era povoada. A forma como o autor relata a beleza das guarás (aves vermelhas) pousadas nas árvores e sua numerosidade indicam o espetáculo que acontece até hoje, ao entardecer, na região da floresta dos guarás, como a região das reentrâncias maranhenses é conhecida. Ainda no governo de D. Diogo Martin Afonso de Sousa (1798-1804) o governador alerta para necessidade da construção de um farol na ilha de São João (hoje Maiaú), em frente à ilha de Lençóis, que só foi inaugurado em 1884: Em 1799 o Governador da Capitania do Maranhão D. Diogo de Souza, em visita a Ilha de São João, participou à Metrópole que seria útil e conveniente povoá-la, e fazer nela um estabelecimento de reparos de navios, tendo em vista que essa ilha era muito procurada pelos que navegavam para o Pará. Em 1864 partiu para ilha de São João o vapor de guerra Beberibe, conduzindo o Chefe da Estação Naval João Maria Wandenkolk, o Engenheiro Militar Villela e Nogueira, e o Prático Joaquim Duarte de Souza Aguiar. Tal comissão foi incumbida de escolher, nessa ilha, um lugar apropriado para a construção de um farol. Esse farol seria de incontestável utilização e traria grandes vantagens à navegação costeira entre o Maranhão e o Pará, indicando aos navegantes os parcéis que se estendem ao longo da ilha, os quais tinham ocasionado vários naufrágios, que só os práticos da costa, habilitados, os sabiam desviar. Em 1884 foi inaugurado o Farol de São João [...] (CAPITANIA DOS PORTOS DO MARANHÃO, http://www.mar.mil.br/ cpma/includes/farois.htm, visitado em 21 de junho de 2009). 16
Até 2008, a comunidade contava com um gerador de energia que funcionava das 19 às 22 horas. Alguns comerciantes tinham seu próprio gerador. Agora, com a implantação de uma central de energia híbrida solar e eólica (projeto da Universidade Federal do Maranhão - UFMA - e do Ministério das Minas e Energia) os moradores têm energia 24 horas, o que obviamente já está mudando a rotina dos pescadores. A TV já substitui as conversas nas ruas às noites. Durante o dia, os jovens ouvem suas músicas nos DVDs. 17
Morraria é como os ilhéus denominam as dunas.
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Não foi fácil entrevistar Seu Chico. Na minha primeira visita, em 2008, não fui bem recebido. Foram duas tentativas fracassadas. Logo que cheguei à ilha pedi para um rapaz me levar até a casa do Seu Chico. O encontrei fechando a casa. Passou por mim e não me deu atenção, apesar de me apresentar como pesquisador. Seguiu caminho e me deixou falando sozinho. A única coisa que falou é que não gostava de dar entrevistas pois sempre adoecia. Na segunda tentativa, tentei explicar o motivo da pesquisa. Ele agiu do mesmo modo, enquanto se encaminhava para o barco que tomaria para o continente. Argumentou que estava de partida e não podia falar. Voltei ao Rio um pouco frustrado, pois sabia que ele era uma das pessoas que mais tinha histórias sobre o rei. Em janeiro de 2009, quando me encontrava na ilha, decidi que só iria procurá-lo depois das demais entrevistas e
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filmagens. Quando o procurei, apresentei-me e relembrei a primeira visita. Não me convidou para entrar e sentar. Fiquei em pé na porta de entrada. Expliquei-lhe a importância dele para minha pesquisa e ele argumentou que não gosta de dar entrevistas porque o que ele diz não é bem aceito na região. Disse-lhe que tudo o que ele tinha para contar era fundamental para meu estudo e gostaria muito de ouvi-lo. Então ele me mostrou um quadro com uma reprodução de pintura do rei Sebastião. Disse-me que viesse no domingo de manhã. E falou: “Minhas palavras são caras”. 19
Se o português tinha a força e a religião como elementos de aglutinação social, como analisa Gilberto Freyre em Casa-grande & Senzala (1933), havia no colonizador também uma propensão a assumir a cultura dos povos a ele submetidos, relações de caráter “deseuropeizante”. O mito sebastiânico configurado em solo brasileiro, nesse sentido, representa essa fusão cultural onde o rei, ao abrasileirar-se estaria deseuropeizando-se e assim destituindo-se do trono, do fardo pesado da nostalgia lusa, do punitivo olho terceiro do catolicismo, para ressurgir e instituir uma nova configuração de reino. Não é irônico notar que o rei branco passa a ser louvado no terreiro por negros e mestiços descendentes de escravos que o invocam como aquele que cura feridas, que é promessa de salvação, que é esperado para restaurar o império?! A lógica de Freyre (que aponta o negro também como colonizador na medida em que submete-se ao europeu construindo um esquema paralelo de manutenção da tradição no intuito de sobreviver) parece estar bem representada no mito do rei que flerta com a Iara e que, ao som do tambor, metamorfoseia-se para assegurar a manutenção do seu encantamento. Essa noção de um rei bom e salvífico sendo louvado por seus súditos parece dialogar perfeitamente com o discurso do bom senhor e dos seus escravos submissos, tão criticado pelos estudiosos da obra de Freyre. Mas observe que nessa junção de culturas o rei só se mantém como promessa por causa do rito do negro, e quando ele incorpora, é nas ervas do índio que procura alívio para a cura das doenças. Quem é mais forte? Quem se submete a quem? 20
O touro é presença do sagrado em muitas culturas. Símbolo da força, do poder do mito, o touro de Lençóis associa-se com o mito grego do Minotauro, sendo visto saindo das ondas do mar e querendo ser ferido para promover o desencanto necessário. O rei Sebastião é o minotauro da ilha, fecundando-a de pavor e mistério. 21
Sempre que me referir ao mítico e místico, vou preferir usar os termos fundo, profundo e profundidade ao invés de sobrenatural, uma vez que este evoca o que está sobre a natureza, acima dela. Não cabe pois utilizá-lo para nomear o que surge das profundezas, o que está no fundo da ilha, no fundo do humano e no fundo do imaginário. 22
É importante dar minha impressão sobre esses relatos. Chegar e partir são ações que independem do viajante naquela região. Ali é a natureza que domina e resta ao homem entrar no jogo do oceano. De todas as vezes que estive em Lençóis, em julho de 2009, na volta para o Rio, aconteceu algo que me fez pensar nessa fala dos ilhéus. No dia marcado para viajar, o barco deu problema e adiamos da madrugada para a manhã. De manhã, novamente outro problema e só partimos à tarde. O barco estava lotado de gente por ocasião de uma festa na ilha. Quando estávamos em plena baía de Lençóis, outro problema com o motor, e o barco teve que ser amarrado a outro e puxado. Mais uma vez, quando estávamos próximos ao continente, o barco simplesmente encalhou e tivemos de esperar a maré encher. Foi quando ouvi um dos tripulantes perguntar se alguém estava levando alguma coisa da ilha. A dificuldade de navegação naquela região, portanto, só reforça o mito. Da mesma forma, construir algo ali depende da permissão do encantado. Foi assim quando os professores escolheram a ilha para a implantação do projeto de energia híbrida. O rei aprovou a obra dando consentimento para que a construção fosse iniciada, segundo me disseram os professores e alguns moradores. 23
Nesse sentido, justifico o uso das imagens justamente no espaço do elemento ar. Eu poderia fazer um capítulo apenas com uma leitura performática, e aí usaria as imagens capturadas das entrevistas para o documentário. Mas não foi meu objetivo isolar a performance da tese, e dar mais valor à ela do que os sebastianos e seu imaginário. Assim como apresentei o texto transcrito das narrativas, agora apresento a imagem e as letras das canções com o intuito de suscitar na performance a obra da voz corporificada, fazendo-se presença, insinuandose ao outro. E por isso, cabe muito bem destacá-la aqui, no espaço do elemento ar. O sopro invisível fazendo-se visível, palpável: eis o efeito da performance. É por isso que a tese não poderia ser apenas texto, ela convoca a imagem e o som no seu vigorar, porque a palavra, falada ou escrita, não dá conta do dito sem um corpo. As imagens das sequências foram capturadas a partir dos frames da imagem em movimento. Com o recurso do vídeo digital, é possível escolher o quadro e capturá-lo como uma fotografia. 24
O tudo um. Do grego: oura = cauda + boros = que morde. Presente em muitas mitologias, a serpente assume uma ligação com a astúcia e o tempo. Para os greco-romanos, antes de ser associada a Urano ou Cronos, o tempo
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(filho de Saturno, o Céu), a serpente também era associada ao Oceano, que circunda o mundo. Mas é na Idade Média que ela assume um sentido de regeneração, ressurreição, de tempo retornando, o eterno-retorno. Seria o Aion grego, o tempo do Lógos, que não tem limite, nem divisa, nem fronteiras? Reinado da criança, como disse Heráclito, o sempre sendo: “O tempo do Lógos, aión, distancia -se então dos outros dois termos com que os antigos gregos pensaram o tempo. Aión não chrónos (χρόνος) nem kairós (καιρός). É o eterno: o sem começo, sem fim, sem ponto e sem sequência, ou em uma só palavra: sem determinação (COSTA, Alexandre. Thánatos: da possibilidade de um conceito de morte a partir do lógos heraclítico. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999, p. 45).
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ROTA IV DAS VOZES PARA AS LETRAS: PRESENÇA DO SEBASTIANISMO MARANHENSE NA CULTURA LETRADA
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4. QUANDO A LITERATURA VAI BEBER NAS FONTES DO ORAL
Embora os estudos acerca do apego do maranhense à figura do Rei Sebastião se concentrem sobretudo nas áreas de Antropologia, História e Ciências Sociais, nas Letras e Artes o fenômeno tem sido fartamente apresentado, material ainda carente de estudos sob o foco do poético 1. É assim que a poética oral tão diversificada acaba por influenciar e iluminar as Letras. A literatura vai beber nessa vastidão de sonoridades e se engrandece, assim como a música popular, o teatro e as artes visuais. Nos poemas, contos, letras de músicas e romances, podem ser percebidas as vozes do mito sebastiânico dando vigor ao poético. O discurso sebastianista ecoa nas Letras e já não há o erudito e o popular, nem o sagrado e o profano; já não se percebe quem é originário, nem há oposição entre oral e escrito. Há a força poética instaurando o mito, sempre novo, todo palavra e gênese do mundo. O mito vivifica-se no oral assim, como vigora no escrito com o mesmo apelo. Os exemplos seguintes pretendem apenas apresentar um panorama dessa apropriação do imaginário sebastiânico das ilhas maranhenses para a construção do poético nas artes. Não se pode afirmar com precisão como foi que a Ilha de Lençóis passou a ser apontada como o lugar mítico da morada do Encoberto. Nem se pode dizer que a história começou por lá e foi repassada até chegar à capital, ou se foi na capital que alguém apontou a praia da pequena ilha como encantaria. Se é para Lençóis que se dirigem representantes do culto afro-maranhense a fim de captar a esfera espiritual do lugar, é de Lençóis que emana a fonte mítica mais expressiva da literatura maranhense. O mito abrasileira-se e se faz propício em diversos momentos e ocasiões, ultrapassando a fronteira da religião, na qual se originou. É apelo sempre renovado, promessa sempre garantida, vaticínio sempre lançado aos quatro cantos, em prosa, verso, fala e canto. No Maranhão, até os tambores dão conta do mito
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sebastiânico. E quando o mar avança, e o vento cessa, e a brisa corre, e os sobrados ruem, há sempre uma boca a evocar lembranças de el-rei Sebastião.
4.1 A visão do Rei Sebastião como presságio de morte no romance Cai s da Sagr ação Na narrativa de Cais da Sagração 2 (1981), Josué Montello apresenta as visões do Rei Sebastião pelas memórias do velho Mestre Severino, barqueiro experiente, mas velho e doente. O mito sebastiânico justifica toda a angústia do velho pescador que ainda na juventude cometeu um delito que permeia a narrativa regressiva. É a visão do Rei encantado que permite ao leitor constatar o fim do velho. A visão assume a função primordial de sinalizar o lado sobrenatural e mítico do homem do mar. Logo na apresentação do romance, Montello justifica a existência do personagem Severino contando como ouviu o relato das visões do rei. É a introdução do romance, portanto, e já não se sabe mais o que é ficção e o que é fato. O próprio autor assina com uma abreviatura J.M. Percebe-se nesse caso a polifonia apresentando o mito sebastiânico. De um barqueiro ainda moço, Mestre Lucas, ouvi o relato da aparição sobrenatural do rei D. Sebastião na praia dos Lençóis. Estou a vê-lo diante de mim, no burburinho do Desterro [...] Não gesticula, não levanta a voz tranqüila, tem um ar sonolento, e à medida que ele fala, vejo surgir um navio iluminado na noite de luar. De seu convés salta um cavaleiro no seu cavalo e dá volta na orla da praia, a reluzir na claridade lívida o ouro e a prata da armadura, para tornar ao navio no mesmo galope antes que termine a madrugada. (MONTELLO, 1981, p.20-21)
O narrador-autor-personagem ainda afirma que o relato o impressionou de tal maneira que logo escreveu, à moda do romanceiro português, os seguintes versos: Os barqueiros que o avistam, Navegando em alto mar Ou correndo pela praia Seu corcel a cavalgar, Sabem que a chama da vida De um deles vai-se apagar. Por isso ninguém quer vê-lo, De noite, pelo luar,
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E a verdade é que ele passa, Passa e some-se no mar, Quando não vai a cavalo No seu doido galopar. (MONTELLO, 1981, p. 21)
Este poema, inspirado no relato do Mestre Lucas, na verdade, é o grande mote do romance, uma vez que nos relatos orais não há qualquer menção ao presságio da morte que a visão do rei traria. O mito sebastiânico sustenta toda a trama do romance através desse presságio. Somente na metade da narrativa é que a alusão à lenda aparece outra vez, num diálogo de um passageiro do barco de Mestre Severino: O Clementino deixou-se ficar uns momentos de boca entreaberta, apanhou por fim o livro, tornou a sobraçá-lo, pôs-se a afagar a ponta do queixo. E vendo a noite cair devagar: - Me diga uma coisa, Mestre Severino. Nestes 42 anos em cima do mar, o senhor chegou a ver o tal navio encantado de D. Sebastião? Mestre Severino negou com a cabeça. - Nunca? - Nunca. - Muito me admira. Me criei ouvindo falar nesse navio. Que ele aparece na praia dos Lençóis, nas noites de sexta-feira. Há quem diga que o rei sai do navio e dá uma volta na praia, montado num cavalo, e depois volta ao navio, que torna a desaparecer. E o senhor, nestes 42 anos sempre passou por lá, nunca viu nada? É estranho. Muito estranho. (MONTELLO, 1981, p. 180)
O silêncio de Mestre Severino não denota desconhecimento. Pelo contrário, ele traz consigo uma advertência do médico para que não fizesse essa viagem a São Luís, por causa da doença. Em casa, a velha Lourença teme pelo neto do mestre, que ela criara como filho, e que fora obrigado a ir com o avô à capital, para ajudá-lo com o barco. Numa conversa com a vizinha, Lourença demonstra preocupação, e faz referência à lua cheia de agosto: “ - O que me tira o sossego, Comadre, não é a viagem de noite, na lua de agosto, é só a doença de Mestre Severino. Se ele andasse bom de saúde , era uma coisa [...]” (MONTELLO, 1981, p. 186). Segundo os moradores de Lençóis, no mês de agosto, geralmente na lua-cheia, é possível avistar o Rei Sebastião pela praia e dunas. Nesse caso, tanto o romance quanto os relatos orais coincidem com o mês da morte do Rei Sebastião no deserto de Marrocos.
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É noite, e o Bonança, o velho barco de Mestre Severino, logo vai passar pela ilha de Lençóis. Noite de lua, o velho fala para o neto: “De madrugada vamos passar pela praia dos Lençóis. Aí eu afasto mais o barco para o mar alto. E amanhã, depois do meio-dia, como favor de Deus, estamos vendo São Luís.” ( MONTELLO, 1981, p. 190). Todos dormem, somente o velho com seus pensamentos sendo despertos com as crises de dor no peito. Na madrugada, a visão: E ei-lo que começa a ver à sua direita o navio encantado de D. Sebastião, com a sua inconfundível luz de muitas cores. Por trás do navio, a praia se espreguiça, toda branca de luar – a faixa de areia rente às águas, a rocha escarpada que as vagas lavam com seu banho de espuma, as dunas alcantiladas fechando o horizonte. Mestre Severino esquece o vento, as velas e o leme. Sabe que está entre a vida e a morte, na fronteira do sobrenatural, e não tem medo. O navio se aproxima da praia, singrando em silêncio. Em volta, uma calma estranha. Mesmo as ondas que levantam à frente da quilha da proa, querendo saltar sobre o Bonança, sobem sem rumor e sem rumor se desfazem, e o barco prossegue na sua rota, bem perto agora do navio encantado, tão perto que Mestre Severino vê no convés um cavalo e um cavaleiro. - É o rei! – exclama, de cabelos eriçados, imóvel, os olhos exorbitados. E ele vê realmente D. Sebastião no seu cavalo branco. Antes que o espanto do velho se atenue, o ginete salta do convés para a praia, num único impulso, e agora lá vai, lepte, lepte, no mesmo galope garboso, pela faixa de areia limpa que parece não ter fim. A luz do luar bate nos seus arreios de ouro e prata, cintilando à maneira de um halo. Cavalo e cavaleiro se completam na configuração de um centauro. E já vão longe, muito longe, quase apagados na distância. Antes que desapareçam, o cavaleiro torce a rédea, e o cavalo começa a voltar, sempre a faiscar ouro e prata, e no mesmo galope. (MONTELLO, 1981, p. 195).
O relato da visão se estende por três páginas. Sabendo que vai morrer, o Mestre fixa o prazo de um ano para ensinar a seu neto os segredos do mar. A beleza da descrição maravilhosa do mito é a potência de toda a narrativa. O autor vai buscar no mito a força que celebra a vida e anuncia a morte no ciclo que se abre e se fecha. A partir desse relato também nós, leitores, acompanhamos o desfecho do romance com a imagem do navio iluminado diante de nossos olhos, tal qual o Mestre Severino, esperando o desfecho de sua vida. As vozes originárias e poéticas, através do mito, trazem o vigor para a literatura,
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engrandecendo-a. O escritor vai buscar na fonte primária a iluminação para gerar mundos ficcionais. E recria, refaz, realimenta as vozes do mito pela palavra escrita. Enquanto isso, lá na ilha de Lençóis, os moradores continuam tendo suas visões à noite e relantado-as em canto e prosa durante o dia, quase alheios ao mundo grafocêntrico.
4.2 A visão do navio dos mortos em O dono do mar. O dono do mar (SARNEY, 1995) é uma história de pescadores maranhenses que vivem no limiar entre o real e o sobrenatural, entre a vida social e a vida natural. A vida do capitão Cristório é apresentada à maneira de uma saga ou uma lenda, onde o humano vive suas paixões com a força da natureza, quase primitivamente. Recheado de causos e narrativas próprias das conversas de pescador, a história do capitão é costurada com inúmeras outras narrativas que constroem um painel do homem simples e misterioso do Maranhão. As referências à sabedoria oral, reinado da memória, são inúmeras, desde as trovas populares, passando pelas rezas, até as lendas de assombração, formando uma espécie de rapsódia. Sobre a lenda sebastiânica, o romance apresenta dois momentos dignos de nota. Cristório e Jerumenho (pai e filho) e Querente, companheiro de Cristório 3, estão em alto-mar, entardece e o Chita Verde navega com o vento forte de uma tempestade que se aproxima. De repente, ao longe aparece uma canoa de casco e pano brancos. Aparecia e sumia. Pai e filho seguem a canoa e viram-na inchar, crescer e transformar-se num barco e logo após num navio com inúmeras velas. Uma canoa sem ninguém no comando, que brilhava como estrela. Na fala de Cristório é possível perceber o encanto que a visão proporciona: [...] Cristório ficou então meditando. Era o mesmo mistério e assombração. Rumou no prumo da aproximação e quis ver bem. O cavername e as tábuas eram brancas como a luz do sol e não se podiam ver. - Quem é? – gritou.
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- É o encanto das brancuras, que eu já vi muitas vezes. É a canoa da pureza – respondeu Querente. - Deus seja louvado. De repente, todos começaram a ficar azuis e um vento azul-claro invadiu a canoa, e Chita Verde, firme, corajosa e dura, galopava nas ondas, querendo abordar a outra canoa. Mestre Cristório sentiu que a sua não lhe atendia os desejos. - Que é isso Chita Verde? Pára de ter vontade só tua! Não adiantava, a canoa era toda força e decisão. Jogava de um lado e do outro, caminho de baloiço, e tinha uma direção certa de perseguir a embarcação branca. Ao chegar bem perto, abriu-se um buraco no mar e um bando de gaivotas pretas apareceu voando em círculo e descia do céu para mergulhar num baile de asas, enquanto a canoa branca desaparecia, afundando para os abismos eternos. (SARNEY, 1995, p. 158)
A descrição fantástica da perseguição do barco de Cristório à barca branca e a fala de Querente demonstram o poder do sobrenatural para o homem do mar. É preciso respeitar aquilo que não se consegue definir, entender. Diante da visão sobrenatural, até o barco do mestre ganha vida para perseguir o “encanto das brancuras”. Quando tudo volta ao normal, é hora da pesca. A noite cai e o barco aproa num banco de terra no meio das águas, na maré baixa. Era lugar ideal para a pesca. E é ali que aparece a Cristório sua filha morta ainda criança para lhe dizer que precisa sair o quanto antes dali, pois o Navio dos Mortos vai passar ali pela madrugada e pode rebocá-los. A maré subia. E um cardume de sardinhas rodeia o barco. No momento em que pai e filho jogam as redes para a pesca, Querente se transfigura como se estivesse possuído. Nesse instante Querente se levantou. De seus olhos saíram dois feixes de luz e se pôde ver como prateado era o lombo do tapete de sardinhas que cobria o mar. [...] - Quem ousa entrar nestas águas que são minhas, águas do Maranhão, que são de Portugal, onde minha alma repousa e meu corpo não morre? – perguntou Querente em transe. Ele estava irreconhecível, mas logo fez-se gente e deitou-se no fundo da canoa, acordado como se dormisse. Aí as sardinhas não eram mais sardinhas, eram uma luz, como estrelinhas de São João, que clareavam a croa toda do Gurapiranga, coberta por elas, como um manto grande que cegava e fervia o mar todo de fogos. No fim da noite,
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longe entre a escuridão e a luz das sardinhas, no fundo negro e estufado, viram uma tocha de fogo amarela. E Cristório não duvidou: - É o Navio dos Mortos. Jerumenho, levanta o pano. Acorda, Querente! Vamos navegar de volta. [...] Era uma nau grande. Negra e roxa, e navegava envolvida em espumas. Tinha um castelo na proa e outro atrás. Brilhava como um sol e era escura como a noite. As velas, muitas velas, pareciam asas que batiam invisíveis para fazêla caminhar. Ouvia-se o movimento das pessoas que eram nada. “Vamos às bombas!” “Puxa a escota de barravento da cevadeira!”
E as luzes, indecisas, fogo de azeite, piscavam por todos os buracos daquelas tábuas que rangiam como gemidos. “Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo Meus tetos negros do fim do mundo?”
E a outra voz soturna, grossa, rouca, respondia, agarrada à roda: “El-Rei D. João Segundo!” Era um mar de visões. Luzes e vozes. “E roda nas trevas do fim do mundo.
Manda a vontade que me ata ao leme, De El- Rei, D. João Segundo!” (SARNEY, 1995 p. 165-167) [grifos do autor]
A polifonia de vozes aqui enaltece a narrativa, fundindo versões do mito. O poema “O monstrengo”, do livro Mensagem, de Fernando Pessoa, dialoga perfeitamente com a visão do Navio dos Mortos. A lenda da barca, o relato ficcional do romance e o poema de Fernando Pessoa, intercalados, constituem a poética do mito sebastiânico. De repente, Portugal é aqui, espaço onde o rei é velado; e aqui é Portugal, espaço onde o rei é outra vez desejado, no eterno sonho do Quinto Império, reforçando uma visão labiríntica da saudade. A lenda da barca não se trata de pura ficção do romance, mas é relatada tanto em São Luís quanto na Ilha de Lençóis, sobretudo pelos integrantes do Tambor de Mina. A barca de D. João aparece em alto-mar trazendo espíritos dos encantados e dos antepassados africanos escravizados. Aí se ouvem gemidos, danças, tambores e cânticos. É o que canta o senhor José
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Mário, numa doutrina de Lençóis: Já chegou João, Já chegou João Ele veio foi na barquinha Do Rei Sebastião. Ah, ele veio foi na barquinha do Rei Sebastião. ( José Mário, Ilha de Lençóis, gravação de janeiro, 2008)
O capítulo 21 é repleto de referências históricas que remontam à época das grandes navegações, quando Portugal mantinha pleno domínio dos novos mares. Depois de ser libertado da prisão, acusado de ter matado dois pescadores, Cristório chama Querente e Aquimundo para a pesca. Aquimundo é um dos muitos personagens simbólicos da trama, figura mitológica em toda sua grandeza. É um velho e, segundo o autor, personifica o Tempo. Ele detém o poder de relatar histórias antigas, como guardião da memória, que parece aguçarse ainda mais nos velhos. Em alto mar, os dois personagens relatam seus desejos de embarcarem numa dessas visões de navios seculares. Cristório os chama à realidade, mas a conversa apenas prepara mais uma visão. Dessa vez é o navio Vitória, de Fernando Magalhães, que morreu na ilha Mactan, Filipinas. E outro navio de fogo, de velas negras, lança os gemidos da escravidão ao som dos chicotes. O desfile de navios é descrito por Aquimundo e por ali passam Colombo, a esquadra de Francis Drake, Vasco da Gama, entre outros navegadores, corsários e piratas. A procissão dos navios fantasmas passava diante do Chita Verde e Aquimundo e Querente, em êxtase, incorporam-se a uma das tripulações, desaparecendo no mar. Enquanto isso, Cristório esta no fundo da canoa, dormindo. E dorme por uma semana, acordando à noite. [...] Ao largo um navio se movia, calmo e triste. É o de Dom Sebastião que sempre aparece nas costas do Maranhão. O Rei encantou-se na praia dos Lençóis e de lá sai nas sextas-feiras de lua, deixa a praia brilhando de pedras preciosas e embarca, na figura de um touro, para navegar e aparecer. Este, Cristório conhece. Ouve sua voz: Quem importa o areal e a morte e a desventura
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Se com Deus me guardei? E mais: E roda nas trevas do fim do mundo, Manda a vontade que ata ao leme, De El-Rei D. João Segundo. Nas noites de janeiro, todos os terreiros de mina do Maranhão lembram a lenda do Rei: Vem São Sebastião, vem São Sebastião, Rei guerreiro, no fundo do mar, Meu São Sebastião, Se desencantar Lençóis, acaba o Maranhão. Cristório volta a dormir. Sonha com os mortos [...] (SARNEY, 1995, p. 221222)
Dias depois, Chita Verde, o barco amigo do Capitão Cristório, surge em labaredas de fogo, deixando os pescadores assombrados, porque aquilo não foi obra humana. O barco decidiu que era hora de morrer, ou melhor, de virar mais um desses navios eternos. Mais uma vez, o diálogo mítico entre a narrativa, o poema de Pessoa e a doutrina cantada no tambor de mina, unem as vozes da oralidade e da escrita em face do poético. O poema Primeiro - Rei Sebastião assinala as ilhas afortunadas onde o rei está velado. Lençóis, portanto, assume nos relatos a condição desse entremundo, o Aqui-mundo, senhor do Tempo, que se encanta nas águas do Maranhão junto com o Querente, aquele que tem a sina de querer outra vida, que já se foi. Foi instaurado um mundo mítico com o auxílio da memória oral e da escrita. O cenário não poderia ser mais propício para a gênese: o mar, as ilhas, o barco. A viagem. Está-se sempre em viagem por mares nunca/sempre dantes navegados. Se no passado era o mediterrâneo, com suas ilhas fantásticas que levavam o barco de Ulisses pelas aventuras aqui são os barcos de Severino e Cristório que navegam pelo complexo golfão maranhense, e vão mais longe porque conseguem atravessar com facilidade o horizonte onde se descortina o profundo encanto, para que paixão, sonho, fantasia, realidade e história se entrelacem no
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limiar do discurso, este que é sempre sendo para a poesia, instauradora de mundos superpostos e nem por isso conflitantes.
4.3 O prenúncio do reino da justiça em Ferreira Gullar Na década de 1960, provavelmente em 1965 ou 1966, Ferreira Gullar fez um poema para ser musicado e participar do festival da canção, da TV Record. O poema, no entanto, não foi musicado nem inscrito, permanecendo inédito porque, segundo o autor, além de não ser propriamente um poema, mas letra de canção, abordava uma temática fora do comum aos textos do autor. Em 2001, o texto foi publicado num livro infantojuvenil pela Global sob o título de O rei que mora no mar 4. O texto foi, portanto, feito logo após a participação de Gullar no CPC da UNE, quando já havia sido formado o grupo Opinião e, com ele, o Teatro Opinião; antes, pois, de sua obra mais famosa, o Poema Sujo, escrita no exílio. Acompanhado de ilustrações de Rogério Borges cujas colagens sugerem a leitura de um touro metamorfoseado, o poema narra a versão da lenda sebastiânica com um enfoque bastante social. Nas primeiras estrofes, o poema conta a história da lenda do touro que aparece na praia dos Lençóis, fala da moradia e diz o que acontecerá caso o touro seja ferido. Na versão de Gullar, não é na morraria a morada do rei, mas no fundo do mar. Diz a lenda que na praia Dos Lençóis no Maranhão Há um touro encantado E que esse touro é Dom Sebastião. Dizem que, se a noite é feia, Qualquer um pode escutar O touro a correr na areia Até se perder no mar Onde vive num palácio Feito de seda e de ouro. Mas todo encanto se acaba Se alguém enfrentar o touro. E se alguém matar o touro
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O ouro se torna pão: Nunca mais haverá fome Nas terras do Maranhão. E voltará a ser rei O rei Dom Sebastião. (FERREIRA GULLAR, 2001, p. 4-9)
O desencantamento acontece com morte, mas ela é que gera a vida, quando ouro se torna pão. O reino de Dom Sebastião é, segundo o poema, o instaurador da justiça, aí simbolizada no pão que mata a fome. Que adianta riqueza, se há fome no mundo? Metamorfoseado no touro, o rei quer ser ferido, pois seu sangue outra vez derramado nas areias é que vai fazer a equidade acontecer. Surge como aquele que doa a vida para que os menos favorecidos tenham suas vidas enaltecidas. O touro quer ser ferido e por isso faz questão de galopar nas noites feias. Não é à toa que morte e ressurreição andam de mãos dadas nesse discurso. Na brincadeira do bumba meu boi, o animal - morto para que a vida surgisse no ventre da mãe Catirina, com desejo de comer a língua do animal - ressuscita no fim da brincadeira e tudo vira festa. Assim, o touro negro do rei precisa morrer para que o reino submerso surja das profundezas, instaurando um novo tempo de paz e abundância, quando Sebastião voltará a ser rei, mas agora com outra soberania, com outra fome que é matar a fome do povo, com outros desejos que são promover a paz absoluta. Não foi para isso que o povo velou seu corpo submerso nas areias e o acalentou de esperanças? Além de contar o relato dos pescadores, Gullar também faz uma interpretação social da lenda, num jogo duplo de encanto-desencanto muito propício para o mundo da Encantaria e para o mundo terreno: Isso é que diz a lenda. Mas eu digo muito mais: Se o povo matar o touro, A encantação se desfaz. Mas não é o rei, é o povo Que afinal se desencanta.
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Não é o rei, é o povo Que se liberta e levanta Como seu próprio senhor: Que o povo é o rei encantado No touro que ele inventou. (FERREIRA GULLAR, 2001, p. 10-13)
Tudo é dialética para o olhar do poeta. O rei existe por causa do povo, e é o povo que se desencanta caso o touro seja morto. A lenda do rei está contida no desejo de estar liberto o povo. Desencanto aqui tem duas conotações: quebrar o encanto num primeiro sentido seria fazer emergir o velado, desvelar, deixar o que está oculto ser visto para sempre. Promover o desencanto então consiste em tornar visível o reino que foi escondido. Num segundo momento, o desencanto pode ser visto como aquilo que perdeu a graça, em virtude de um descontentamento com uma situação, com atitudes, com os rumos da história. Estar desencantado da vida pressupõe duas soluções: continuar na mesmice ou levantar e dar um basta. Na afirmação “o povo é o rei” jaz todo o alicerce do poder da palavra dessa comunidade. Paradoxo ou não, o tempo da graça virá quando o povo perceber que a força está nele, que o reinado é dele. Perde-se uma graça para alcançar outra que é perene. Essa metamorfose do rei no touro agora assume uma nova configuração, de cunho triplo. O rei é o touro e o touro é o povo que inventa para se reinventar, enquanto não consegue ser senhor de sua história, enquanto é incapaz de sozinho, apesar de coletivo, enfrentar o touro bravo do desmando, da falta de liberdade, que constrói seres à margem da história, que não dá direito a se ter história, porque ela foi feita para enaltecer tiranos. O povo será rei quando abrir os olhos para seu poder. A figura sebastiânica torna-se, então, um qualificativo, e o que era da ordem do velado, se desvela, ganha corpo, alma e casa: o homem simples que viveu toda uma vida olhando para fora quando lá dentro de si mesmo estava todo o reino do encoberto, esperando a hora de ser revelado. Uma coroa, um castelo, um trono. Os três elementos simbólicos imprescindíveis para
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instaurar um reino, nos versos de Gullar se hibridizam na figura do touro inventado pelo povo, que é o próprio rei, portanto. Mas é preciso que o povo tome consciência desse poder para promover uma mudança. Por enquanto, o poder do povo está velado nele mesmo, homem de areia, que precisa deixar de ser moldada ao prazer dos ventos impetuosos de uma história negligente. Provisoriamente, o povo-rei-touro está no labirinto que outros construíram para que de lá nunca saísse. Minotauro.
4.4 Releitura do encanto na poesia de Augusto Cassas Uma função de poeta-profeta, assim se autodenomina o poeta maranhense, Augusto Cassas 5. Suas poesias apresentam a paisagem, o homem, os ritos locais para trazer a urgência universal, que consiste no apego do humano a diferentes doutrinas para justificar seus medos pós-modernos. No caldeirão das religiões, o poeta desmonta as verdades instituídas para proclamar o ano da graça: onde tudo é denúncia, riso e poesia. Na obra Em nome do Filho: Advento de Aquário (2003), Cassas reúne as pedras e as bendiz. Além de parodiar orações, litanias, salmos e trechos bíblicos, o poeta também busca unir todo o imaginário popular (paródia da cantiga de roda, provérbios, trava-línguas e doutrinas do rito afro) numa convocação de denúncia. Porque todo profeta denuncia algo, o tom dos poemas é ora alegre e suave, ri com os inocentes e não deles. O advento do Aquário é o tempo propício para a restauração das ruínas. A introdução do livro já apresenta uma profecia, cujo conteúdo faz um alerta ao leitor: vai-se falar sobre ruínas. A linguagem é das pedras aos homens. Disse o Senhor: “Vai a São Luís do maranhão, „Cidade Patrimônio da Humanidade‟, e afixa-lhes nas consciências a seguinte mensagem: Vossos prédios históricos vãos desmoronar, a arquitetura dos ossos vai tombar e virar pó, caso não olheis as minhas crianças com mais amor. Vosso desprezo pela inocência alevantou a mira ira. Cuidai da infância, realizai trabalhos do sol, ou não sereis salvos. Essa é a chaga que dá origem a todas as vossas ruínas. O tempo é urgente. Apressai-vos.” Anjo das Ruínas (CASSAS, 2003, p. 31)
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O “maranhão” do poeta é escrito em minúscula. Cadê a propriedade que a inicial maiúscula representaria? Que é da importância de um lugar onde a opulência já reinou? Ruínas, tudo está desmoronando. O patrimônio que deve ser preservado e restaurado é a humanidade. É o desprezo pela infância que o poeta combate nesse alusão ao apocalipse. Num texto polifônico, as litanias, orações, cantigas e doutrinas apresentam a mesma metáfora das pedras em ruínas. É nesse sentido que a re-leitura da doutrina mais famosa do Maranhão é reinterpretada. MINA DOS ENCANTADOS ê ê ê rei Sebastião cadê o touro encantado brilhando na escuridão ê ê ê rei Sebastião quem desencantar os sobrados será o rei do maranhão! (CASSAS, 2003 , p. 42)
A releitura da doutrina para o Rei Sebastião, cantada no Tambor de Mina, apresenta o outro encanto. É preciso desencantar os sobrados, os casarões coloniais, tombados como Patrimônio Histórico. Que encanto esconderão? E onde estaria o touro encantando que não se desencanta logo para restaurar São Luís? É preciso quebrar tantas pedras. Há tantos corações petrificados, cabeças de pedra governam. As verdadeiras ruínas são de carne e osso, mas osso do que carne, a perambular pelo silêncio das pedras de cantaria das ruas, dos becos e largos, dos muros. A cidade espia a inocência com olhos de desdém e não quer saber de expiar suas dores, herança de um tempo de opulência construído sobre as costas da escravidão. O sebastianismo se justifica plenamente nessa obra-denúncia e profecia na medida em que a figura do rei é convocada para explicar o por que de tudo ainda estar em ruínas. Quando acontecerá a instauração do Quinto Império? Será São Luís a nova Queluz? Todas as vozes se unem para denunciar a ruína do homem e proclamar o vir-a- ser: “Quem desencantar Lençol,
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vai abaixo o Maranhão”. Com um humor neobarroco, destilando sarcasmo e denúncia, o poema “Salmo mordido no rabo”, no livro Deus Mix (2001), Cassas apresenta uma releitura da lenda da serpente encantada. Enquanto na lenda oral a serpente vence o desafio quando é despertada, sucumbindo o Maranhão, aqui ela morre entalada no próprio rabo. O alimento da serpente é negro como o rancor, o açaí, fruto amazônico. SALMO MORDIDO NO RABO A sucuri é a serpente tropical dos campos do senhor igual ao buriti o ano integral destila o sabor adepta do açaí os frutos são negros da cor do rancor e morre entalada no rabo enrolado do próprio motor. (CASSAS, 2003, p. 97)
Não chega a ser irônico associar o termo “negro” ao rancor sabendo que a ilha é composta por mestiços, descendentes legítimos dos africanos de Daomé, atual Benin? Não seria mais um termo daqueles que evidenciam o preconceito racial disfarçado num discurso vigente, tais como humor negro, vida negra, a coisa aqui tá preta? Uma boa dose de ironia sim, em se tratando de um poema para ser bebido, Cassas serve na taça do poema o humor, vaticinando a esperança, não destilando preconceito. O açaí, fruto negro, a bebida preferida da serpente, sinaliza a vitória de uma gente que um dia foi escrava, que teve seu tempo banido em virtude de um projeto de construção de uma nação cujas bases se assentavam na transformação do homem como máquina gratuita. Os frutos negros da cor do rancor vão triunfar sobre o tempo, que um dia se dilacera em si mesmo. O tempo se cumpre e o ciclo se
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fecha, a cobra se engasgando com o próprio rabo.
4.5 O profundo mistério das ilhas em Bandeira Tribuzi Apontado como o responsável por apresentar o Modernismo ao Maranhão, na década de 1940 , quando os poetas ludovicenses ainda louvavam a precisão dos versos parnasianos ou as imagens etéreas do Simbolismo, Bandeira Tribuzi 6 fez de sua poesia um verdadeiro tributo aos becos, aos mirantes, aos sobrados e ladeiras que compõem a cidade de São Luís. E é um poema seu que virou o hino oficial da cidade secular. Não é uma poesia que se deslumbra com as belezas oitocentistas em ruínas, mas que desvia o olhar para outros espaços, promove o deslocamento de consciências e conduz para a única certeza: a cidade vive na iminente espera do seu fim. Em seu Romanceiro da cidade de São Luís (1979), o poeta faz louvação, ao mesmo tempo em que prenuncia a destruição. A ilha só sobrevive na sua Poesia circundante de águas e sonhos: O SIGNO Cerca da águas e sonhos de glória, de maresia, a ilha é sobretudo circundada de Poesia. Cada ilha só não naufraga se o horizonte a desafia e embarca em naus de velas pandas de Poesia. Cada ilha só sobrevive e afirma sua rebeldia se sabe alçar a pura asa da Poesia. Esta imortal ilha maior, Ilha Grande como se dizia, há de viver enquanto for sua a Poesia. Não há passado passado (todo o futuro o proclama) se foi passado na chama
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da Liberdade. (TRIBUZI, 1979 , p. 203-204)
Como a ilha pode sobreviver ao seu próprio naufrágio? Como poderá ser imortal? Nesse velho embate entre ilha e mar, o horizonte é que diz o destino. Para que o barco leve a verdade da existência da ilha, ele precisa dos ventos batendo nas velas ou necessita de asas. É a Poesia vento e asa para a salvação da ilha. Assinalada com o crisma poético, a ilha ganha status de eternidade. Mas será que o passado precisa ser lembrado? O poeta afirma que o futuro traz o passado ao presente se ele foi iluminado pela Liberdade. Pela Poesia toda ilha pode ser encantada e proclamar sua rebeldia, na briga por ser o que é, um círculo desafiante. Viver na expectativa, abraçada pelos rios das baías, recolhida e quase velada: eis a sina da Ilha Grande. Desde os tempos de sua inabitação, ela já desejava notícias de além. Na sua quietude aparente, jazia um anseio, cujo cerne era o mistério, um sinal, signo: PRÉ-HISTÓRIA Na solidão do chão sem tempo há uma ilha de expectativa, entre dois rios, como braços, suavemente recolhida. Verdes copas e o vento nelas e os cachos das frutas nativas e as alvas coxas de suas praias ao sol do trópico estendidas. Vizinho o mar com sua espuma, seu horizonte imaculado, com sua raiva e sua ânsia, com seu verde pulmão salgado, misturando sua maresia com o acre cheiro do mato. Vizinho o mar com seu mistério e o além por ser desvendado. O mar de onde, por milênios, tudo que vem é rumor longo, surdo ou cavo, manso ou severo, cantochão grave, som redondo contra pedras, conchas, areias, interminável apelo em som do horizonte que não revela
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o mistério profundo e abscôndito. (TRIBUZI, 1979 , p. 199)
Mas, por que o título do poema é “Pré-história” quando fala do devir? Ao empreender uma arqueologia da Ilha, o poeta estaria pensando na pré-história dela, quando tudo se configurava na espera, e toda ela era um paraíso de frutos, ventos e virgindade. Enquanto mira o mar, seu vizinho, que traz na sua fúria os segredos de além, a ilha solitária espera por quem? A ilha queria ser desvendada ou desvendar o além, oferecido pelo mar, no seu cantochão redondo e linear. Qual seria a antífona das profundezas do mar e o que responde o horizonte no seu salmo responsorial? Nessa arqueologia, o poeta já apresenta o destino da ilha, pois antes mesmo de ser história, ela sonha com o mistério, na sua “solidão do chão sem tempo” acalentada pela encantatória melodia das profundezas. A ilha viverá sempre na sua préhistória até que aconteça o seu ressurgimento e os segredos do além lhe forem revelados. Até que ela reconheça que o mistério, o abscôndito está nela. Instaurado estará um novo tempo. Início da história da ilha. Num outro poema, cada pedaço da cidade oitocentista surge, relembrando um passado de imponência e soberba. Nessa edificação que aponta o céu com o orgulho de ser província ligada diretamente à metrópole, há dois tipos de almas a povoá-la. Uma é a alma do negócio, que alimenta o lucro, a escravidão, o riso de uns em detrimento do choro de outros. PEDRA DE ALMA De pedras e azulejos, mirantes e becos, sobrados e torres faz-se uma cidade: ainda mais de alma. Lucros e interesses, negócios, comércios, embarques e rendas fazem a cidade. Sobretudo a alma.
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Glórias e infortúnios, vitórias e dor, aleluia e réquiem narram a cidade. Mas, e sua alma? (TRIBUZI, 1979, p. 202-203)
Aleluia e réquiem para a cidade, vida e morte para a cidade de pedras. A liturgia da paixão e morte é apresentada pelo poeta na construção de narrativa paradoxal da fundação e destruição da cidade. Mas onde fica a alma da cidade, a verdadeira, aquela que se edifica com o humano? Se a cidade foi erigida e mantida com o suor da desgraça alheia, ela pagará caro com seu tombamento. Tudo ruirá, para que sucumbam as desgraças de uma maioria e as glórias de uma minoria. Pedras tombarão, torres e mirantes, glórias e desgraças morrem com a cidade se o destino a faz um lugar e nada. Restará no tempo a pedra de sua alma. al ma. (TRIBUZI, 1979, p. 203)
O que pode restar senão a pedra angular para e edificação de uma nova ilha? No entanto, não é uma nova São Luís que surgirá, para que triunfe o reino dos que não tiveram voz. Não haverá restauração da História, do Patrimônio material e imaterial, do espaço geográfico. A mitopoética mapeia outros locais para o advento desse reino do devir. E Tribuzi embarca rumo ao imaginário de Lençóis. O longo poema a seguir é o único que menciona a pequena ilha na obra do poeta, publicado no livro l ivro Safra (1960). Safra (1960). Nele percebe-se o quanto do mito sebastiânico está impresso no poeta, que, vivendo toda a infância e parte da juventude em Portugal, certamente sabia muito do Sebastião histórico e lendário. Quando se refere ao simbolismo da ilha, morada do encantado, o poeta a apresenta como sua futura esposa, num discurso semelhante ao do romanceiro português medieval trovadoresco. O príncipe chora de
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amores, e espera, na espuma branca da praia, sua amada. A balada assume, em forma e fundo, a consistência de um cantar de amigo: BALADA DA PRAIA DOS LENÇÓIS
Alva praia dos Lençóis, silêncio da madrugada, espuma de mar e lenda e atitude inesperada, corpo de mulher despida: despida e desejada! Em clara manhã te vejo de súbito embandeirada de sol e de velas brancas e sinfonia das águas, roçada por asas tontas de gaivotas desvairadas. Praia de súbito medo, misteriosa e sagrada! face de cigana antiga, palma da mão desvendada, som de ventos incontidos rugindo à noite assustada! Alva praia longa e densa ferida de agoiro e medo, lençol onde a noiva espera o noivado do segredo, em noites densas e longas feitas de sal e mistério. Em ti os rostos se fecham e os olhos, pássaros tontos, fogem das ondas noturnas onde o segredo jaz torvo: sinal das ondas raivando, troar soturno de touro! Ai do olhar incontido que se demora surpreso na estrela que entre pontas guarda poderes de inferno e cintila sobre as ondas seu duro poder supremo! (TRIBUZI, 1979, p. 108-109)
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O feminino ronda a ilha, prenhe de mistério. Na madrugada silenciosa surge o vulto. Um corpo nu de mulher. De manhã, ela se rende aos encantos e carinhos das asas das gaivotas, das velas brancas e do canto das águas. Seria essa mulher a própria ilha? Essa atitude inesperada e o súbito medo mostram o espaço do obscuro que envolve a ilha e sua praia. E o poeta a compara com uma cigana de face envelhecida e mão desvendada. Nela se encontra o segredo. Agouro e medo são as palavras que circundam o poema. De repente, o lençol de areia cobre cob re a ilha, mulher misteriosa, a noiva que guarda e aguarda o “noivado do segredo”. Na noite negra ele surge, metamorfoseado, o touro -rei, com a estrela entre os chifres. Ela esconde poderes supremos e o poeta adverte os olhos desatentos. O brilho da estrela cega o desavisado: Ó touro Sebastião refugiado do mar, mágico da morte isento dono da praia exemplar, amargo senhor imerso na forma a desencantar. desencantar. Touro sagrado na testa por alva estrela sagrada? Que madrugada suprema te tocará a intocada carne ferida sem toque de morte de fria espada? Ó rei desaparecido na derrota imerecida, claro senhor protegido das frias fadas da vida, que morte, sem ter morrido, vos matou naquele dia? (TRIBUZI, 1979, p. 109-110)
Nesse ponto o poema faz a ligação entre as duas terras, tão distantes e unidas pelo mesmo signo do desejado outra vez. Aqui o rei assume a forma de touro para, esperando enquanto está imerso, um dia desencantar. O poeta refere-se ao rei como aquele que conseguiu, por magia, isentar-se da morte, para cumprir o amargo sonho da espera. Lança a
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pergunta que não cala: quando a espada tocará a carne do touro, na testa sagrada, para promover o novo tempo? Essa ferida que deve acontecer não traz a morte, mas sinaliza uma nova vida. Ao invocar o rei, o poeta quer saber que morte o matou na batalha sem que o tenha matado. Que morte fora capaz de ser aniquilada, já que ele jaz metamorfoseado aí, no fundo da ilha? Que magia foi esta capaz de neutralizar a morte, pois o rei morreu sem morrer. Se a África representou o poder da morte, a ilha de Lençóis é o poder da vida reconfigurando-se. Se lá a derrota veio desabar sobre um povo que não a merecia, aqui tudo é vitória que se anuncia. E se lá o rei era o fraco, aqui ele é tão forte que não pode mais morrer: Sei que, sendo ainda rei, o és de reino diverso, tão amplo como teu sonho que não chegou a ser reino, touro do mar sem limite no encantamento sem termo! Sem termo até quando claro poder de carne sagrada de virgem, pelo destino a desencantar fadada, beijar a estrela, entre cornos, de encantamento marcada. Mas, onde tal virgindade em carne de virgem alva que o destino acumulasse de tais poderes na alma que, beijando-s, despertasse o príncipe rei da praia? Pois se pretensa donzela sem a pureza bastante tentar romper o mistério do touro senhor infante será convertida em pedra de contorno degradante. (TRIBUZI, 1979, p. 110)
Tribuzi não apresenta o mito pelo mito, mas confronta-o com a História, colocando os dois Sebastiões frente a frente. O Sebastião histórico era rei com um rei na barriga, sonhos de
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grandeza que culminaram na derrocada e perda do império. Na loucura pela guerra, nem tivera tempo de desposar uma donzela, apesar de todos os esforços empreendidos pela família e pelos conselheiros do reino. Um rei sem esposa é um grande perigo para si e para o reino. O Sebastião mítico ganhou a grandeza do mar como território. Tal amplidão pode ser comparada com os sonhos de grandeza. Além disso, o rei não é mais fraco, está metamorfoseado no animal símbolo da fecundidade, da força em estado bruto. E ficará assim, até que uma virgem, escolhida para tamanha honra, beije a estrela, sinal do encantamento. É preciso, pois, desvirginar o rei-touro. Se o rei histórico não desposou mulher, é preciso que uma mulher promova o ressurgimento, para que o reino de fato vigore, soberano. O poder de semear é do macho, mas de gerar, criar, fazer rebentar a vida é da fêmea. E, paradoxalmente, paradoxalmente, o rei está em estado de espera, livre da morte e morto para a vida, até que seja desposado, justamente aquilo que ele negou enquanto foi rei terreno. Mas que donzela terá coragem e pureza sem igual para despertar o rei-príncipe sem que seja ela própria vertida em pedra, ante tamanha pretensão? Há virgem tão pura, casta e santa para desvelar o mistério? Que olhar, ainda o de velho, marinheiro às águas feito e dado, como se fora delas o filho perfeito, ousou demorar na estrela seu duro olhar verdadeiro? Qual, que não fosse ferido por invisível espada e, pelo gesto incontido, tão rudemente pagara que à beira do mar perdido se achara e ninguém o achara. Seu corpo que mal olhara jamais olhado seria. Incógnito se afundara na obscura maresia e para sempre se fora com a maré que partia. Ninguém sabe qual a hora
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do touro desencantar. desencantar. Apenas se ouve que chora nos vastos campos do mar e chama a virgem senhora que será para o amar. (TRIBUZI, 1979, p. 110-111)
E o poeta volta-se à praia encantada, aos pescadores atemorizados diante da visão do touro no mar, o príncipe ferido pela espada invisível e vagando perdido na praia. O mesmo corpo não visto na batalha também na ilha não se vislumbra, diluído em maresia, o encanto dos encantos. Nenhum marinheiro, por mais experiente que seja, é capaz de mirar a estrela do encanto, porque não poderá feri-la. Enquanto isso, o rei chora, no seu vagar sem fim, como o apaixonado que se enamora de sua donzela que está próxima, mas não pode tocá-lo nem beijá-lo com o ósculo ósculo santo. Virgem Virgem senhora. senhora. Alva senhora. Ilha. Ilha. Ela: Talvez nem Ela conheça o mistério a que se prende: mas por ser tão preciosa bem o destino a defende até quando escute o choro que por por Ela touro geme. geme. Tempo será quando um dia flutuando sobre as águas sua carne nua e fria de menina bem fadada irá ser oferecida com os poderes que guarda. Tocada a carne do touro no prodígio de seus dedos tombarão, ao ser beijados, os poderosos segredos com sonoro som amargo de vento, mar e mistério: e o touro virá das águas claro príncipe supremo! (TRIBUZI, 1979, p. 108-112)
Haverá o desencantamento quando o casal apaixonado se unir numa só carne. E que dia afinal é esse? Quando ela desmoronar para fazer emergir o novo reino? É a cópula nupcial da ilha-terra e do rei-oceano que fará de fato Sebastião o rei desejado.
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4.6 A corte que fantasmeia no romanceiro de Stella Leonardos. Descendente de família maranhense por parte de pai, a carioca Stella Leonardos 7 é autora de uma obra fascinante que integra os romanceiros brasileiros, herança da tradição Bequimão (1979), constituído de redondilha maior e ibérica popular. O seu Romanceiro do Bequimão (1979), menor, além de refrões e trovas populares, apresenta a história de Manuel Beckman, senhor de engenho no Maranhão setecentista, que lidera uma revolta de cunho nativista contra a política pombalina e sua Companhia Companhia do Comércio do Maranhão. Maranhão. O romanceiro é composto de múltiplas vozes, na diversidade da herança popular. popular. Nele falam a ilha, as ruas, os sobrados, as carrancas da fonte, as pedras, as praias, além, é claro, dos personagens históricos. Tudo dá conta da saga de Bequimão. No transcurso da narrativa poética vão desfilando os personagens históricos e míticos, numa urdidura tão bem tecida pela autora, reflexo de sua paixão pelo estudo das línguas neolatinas e pelo folclore. Embora para a História a figura de Manuel Beckman não seja propriamente a de um herói, existindo inúmeras controvérsias acerca do verdadeiro objetivo da revolta, o Bequimão de Stella é apresentado como uma figura respeitada, conhecida e de forte influência em São Luís, um homem envolto de mistério e cheio de sonhos, numa São Luís repleta de intrigas, cobiças e maranhas. Portanto, a poeta constrói seu romanceiro sobre a figura mítica de Beckman, considerado considerado protomártir da independênc i ndependência. ia. O fato é que a revolta durou um ano, de 1684 a 1685, culminando, mais tarde, na expulsão dos jesuítas do Brasil e na extinção da Companhia de Comércio. Bequimão, como era chamado no Maranhão o líder da revolta, entra para a história como um mártir, pagando com morte da forca sua insubordinação contra a coroa na luta pelos interesses dos senhores de engenho maranhenses. maranhenses. No romanceiro, Bequimão Bequimão é colocado frente a frente com o rei Sebastião, Sebastião, já encantado na praia dos Lençóis ou em Alcântara. O que os une? A iminência da morte, a loucura da luta,
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os brios fortes em nome de uma causa. Ambos transformam-se em mito e suas vozes são ouvidas e repassadas de geração a geração nas terras do Maranhão. Símbolos de liberdade e sonho, os dois personagens históricos se fundem na voz poética de Stella para protestar contra uma política que em nada interessava e privilegiava os colonos. Cada poema do romanceiro é acompanhado de fragmentos da História ou de citação de estudo da cultura oral e do folclore. Assim, a História oficial e oficiosa e a história cotidiana são confrontadas com a poesia, misturando-se a ela, numa apresentação literária do mártir. O mito sebastiânico é inserido de diversos modos ao longo do livro. Primeiramente, a cidade de Alcântara, que fica do outro lado da baía de São Marcos, opulenta no século XIX por causa do algodão, serve de espaço mítico onde o rei Sebastião constrói seus castelos na areia e vagueia como um touro negro estrelado. Alcântara é, pois, o lugar do fantasma de elrei à procura de um porto, fugido da batalha de Alcácer Quibir: DAS LENDÁRIAS CERCANIAS DE ALCÂNTARA Quantas vezes mãos de luas vezes luas se espalmaram contemplando a soledade sob as palmeiras das praias? Quantas vezes mãos de palmas vezes palmas beira-mares desvendaram passos lusos de notívaga saudade e olhos vagueantes relumes de incansáveis visionários? desde os solos imemóreos, quem sabe o porquê del-rei da nãomorte e a semprevolta além terras e além mares - el-rei da voz almo solo? – Quem sabe porque revive, se encastela em certas plagas, constrói castelos de areia, se nutre do sal dos ventos e o salso pranto das vagas? Das noites avulta um corpo de cavaleiro centauro? ou del-rei, o morto-vivo
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à busca do eterno porto, alma do Alcácer Quibir de inconsolável batalha? Vem o mítico e se instaura. Nas cercanias de Alcântara - cerco de medo e de assombro – há lenda cercando a praia. Águas de bruxo acalanto? Lençóis de duendes insones? Das águas se eleva à noite o coro que o mar esconde. - Canta a cidade submersa, surdina contando às ondas ondas de um reino encantado. pelas dunas jaz a corte toda de branco Desperta, aduna sonhos fantásticos. Eis de pronto invade a noite um galope nebuloso e inquieta a praia assombrada. Vagueia o touro fantasma? Negritáureo. Passietéreo. Das lusíadas arenas tocadas de mal assombro surge assombreando as areias. Tocado na testa negra de um estrelado mistério. (STELLA LEONARDOS, 1979, p. 41-42)
O poema é acompanhado da seguinte citação de Câmara Cascudo, inscrita no alto da página: “a ideia sebastianista deve ter emigrado logo, com os homens da Estremadura, Alentejo, o norte de Portugal, fontes da colonização” (Apud STELLA LEONARDOS). Isso comprova a intencionalidade da poeta ao associar as duas figuras históricas, apresentando Bequimão como o novo Sebastião. Um misto de saudade e apelo visionário compõe o poema. As cercanias de Alcântara de fato abrigaram os colonos portugueses que aí se instalaram na primeira metade do século XVII, resultado da campanha em Portugal para fomentar o interesse pelo povoamento dessas terras. As fazendas onde se plantava cana, tabaco e algodão ficavam na zona litorânea da província. Certamente muito se ouviu falar aí dos infortúnios do rei Sebastião e do seu retorno para livrar metrópole e colônias do jugo espanhol.
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Duas saudades, portanto, aparecem no poema: a saudade do rei desaparecido e a saudade da terr a portuguesa. A “nãomorte” e a “semprevolta” fazem das terras e mares de cá os espaços favoráveis para o morto-vivo vagar. A cidade submersa canta nas noites de Alcântara, anunciando o reino encantado, enquanto o galope do touro negro percorre a praia, etéreo o touro, puro mistério estrelado. Também o Bequimão de Stella tem um confronto com o diabo, num diálogo que lembra o Fausto ou a tentação de Cristo no deserto. A poeta se serve de outra citação de Câmara Cascudo para explicar a presença do diabo na narrativa, fruto das estórias orais oriundas da Península Ibérica. E o título do poema traduz o outro lado da moeda na história de Bequimão, aquilo que a História omitiu e que as fontes orais dão conta de disseminar. A figura do diabo surge logo após uma conversa de Bequimão com seu afilhado e futuro traidor, Lázaro de Mello. É este quem fala da lenda do rei encantado: DO QUE A HISTÓRIA NÃO CONTA MAS SE ACREDITA É noite. Na silha de couro lavrado e tachas brunidas, Manuel Bequimão. Os olhos se incendem das velas que brilham. Vê sonhos acesos ali, no salão? A luz alumia-lhe o corpo leonino forjado na ação, o rosto de tônus - ah fogo interior! – contida paixão. Por fora, repouso. Por dentro, tensão. O olhar humildado - quiçá devoção? – no mocho está Lázaro. de Mello. Melífluo, perfil fugidio ao lume das velas, curvado e amarelo
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- um pobre terção. Senhor Bequimão, ouvistes falar do touro encantado do passo fantasma e estrela na testa, mais negro que as trevas da mor negridão? pervaga na praia das noites que espantam e é Dom Sebastião. Ninguém chega perto nem ousa tocá-lo. Um toque bem certo e rompe-se o encanto. Se fosse liberto por vós – por que não? – seríeis decerto o rei dos brasis além Maranhão. Quem mais que nós bravo, quem mais que vós forte, capaz de arrostar a vida ou a morte, Senhor Bequimão? Tirada da cisma responde a voz grave: - Meu caro afilhado, é pura abusão. Não fora crendice, já o sabe Tomaz meu árdego irmão: não quero que viva nem reine jamais aqui nestas bandas el-rei Sebastião. Há terras bastantes nas Áfricas e Índias: que o touro as povoe do espírito antigo e a corte ilusão. Aqui destes lados de gente bravia despertam brasis que sonham ser livres do jugo do reino, de todos os reinos, e que hão de ser livres por certo. Verão. [...] (STELLA LEONARDOS, 1979, p. 43-45)
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Bequimão não aceita a lenda do touro encantado e seu reino no Maranhão. Reino nenhum deve imperar nestas bandas, que a liberdade é o sonho desta terra. Na fala do afilhado de Bequimão, acontece a primeira tentação. Que outro corajoso nas terras do Maranhão poderia desencantar Dom Sebastião, além de Bequimão? E Lázaro, sorrateiramente tentando inculcar a ambição do querer, informa que o padrinho pode ser não somente rei da província, mas dos brasis, caso promova esse desencanto. Negando qualquer reino, o herói vislumbra a imagem do touro: [...] De súbito o pêndulo do velho relógio não mais pulsação. Arrasta-se o tempo. E rangem cadeias, E a sombra de um touro negreja e estertora no branco murão. (STELLA LEONARDOS, 1979, p. 45)
Enquanto o afilhado traidor de sorriso amarelo vai embora, Bequimão é visitado pelo diabo, Pero Botelho, coxo, zombeteiro, cheirando a enxofre, que deseja um pacto. O diabo é reconhecido por Bequimão que, impávido, o desafia. Mas os dois têm algo em comum: nenhum quer a imagem do rei Sebastião vagando por ali. E é nisso que o diabo se fia para persuadir o líder da revolta: [...] Erecto na silha de couro lavrado e tachas brunidas, um vero varão. O olhar não vacila, a voz não se altera: - Meu nome não nego. Mas tu: por que escondes o teu, charlatão? Por que teu disfarce, esse ar folgazão? Me tomas por tolo? Debaixo do gorro teus chifres ignoro? e a pata de bode
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na bota, rabão? O diabo gargalha. E riscam coriscos o céu de alcatrão, vidraças se quebram, cristais se espedaçam, se espalha em arestas ferina intenção. - Por todos os bodes e cães de meu reino, reinol de maus bofes! Não sou nenhum truão. Meu nome e meu traje me vêm da vox populi. Mas vamos aos fatos que aos dois nos importam, Manuel Bequimão. Que fique na praia das noites que espantam o touro encantado do passo fantasma e estrela na testa, mais negro que as trevas da mor negridão. tampouco desejo que ganhe estes mundos de crença e crendices el-rei Sebastião. Quem sabe no fundo não sois meu aliado, por baixo do sim, por cima do não? Façamos um pacto. Sereis no porvir o rei, Bequimão. -Um pacto? Bofé! Sou homem de fé, convicto cristão. - Não é o que mussitam alguns jesuítas. - Têm outra política. - Será? Não sei não. Não é o que murmuram alguns mamelucos. - Têm outra ambição. - Não é o que acreditam os outros colonos. - Lhes falta visão. Agora me deixa! Prefiro vencer-te, a ti e a teus dechos.
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Pactuar com demônios! Não eu, Bequimão. (STELLA LEONARDOS, 1979, p. 49-50)
Nem o diabo quer a presença do rei Sebastião sobrepujando corações saudosos nas terras maranhenses. “Por baixo do sim, por cima do não ” o diabo tenta convencer Bequimão de que ambos têm interesses comuns. Em troca da aliança, Bequimão será rei. E tenta persuadi-lo contra os jesuítas, que não vêem Bequimão com bons olhos, já que ele trama a expulsão deles. No entanto, o herói prefere vencer o diabo a pactuar com ele que, explodindo de raiva, lança sua maldição. O afilhado de Bequimão retorna, “curvo e amarelo”, frágil delator, e enquanto o relógio toca, o touro ressurge na cabeça do líder: [...] E súbito o pêndulo do velho relógio desata a cantiga. Sonai, carrilhão! Resgata-se o tempo perdido do sonho. Renasce da aurora a clave oração. mas perto desponta a sombra do touro. Um touro sofrido negreja de encontro ao branco murão. e a sombra persiste. e põe arrepios na pele do dia. De que ar predição? (STELLA LEONARDOS, 1979, p. 51-52).
O touro passa a ser assombração para Bequimão. O fantasma do reino perdido de Portugal que ora representa servidão, desmando e soberba no estanco da Companhia de Comércio do Maranhão. Quem é na verdade Pero Botelho, o diabo? Todos os diabos estão aí, anunciando os infortúnios. Um jogo de espelhos é construído por Stella Leonardos ao falar do touro encantado na praia de Lençóis. Dois poemas com a mesma estrutura e com o mesmo conteúdo são
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dispostos. Parece que a autora quer mostrar duas faces do mito, o direito e o avesso do discurso. Assim o poema “Balada do touro encantado” é o avesso do poema “Do e ncantado touro da balada”, o título pode ser lido de trás p ara frente também. Lidos sem muita preocupação simbólica, parece que um texto é uma versão do outro apenas. Mas por que textos tão idênticos foram publicados? Por que não se preteriu um em razão de outro? E o primeiro poema recebe a seguinte citação: “A Cidade de São Luís do Maranhão submergir-seá totalmente, e diante da praia dos Lençóis emergirá a Cidade Encantada, onde o rei espera o momento de sua libertação” (Erasmo Dias, Apud STELLA LEONARDOS ). Na poesia de Stella, as vozes tecem telas de encanto. São mãos de donzelas tecelãs que fiam o canto mítico: BALADA DO TOURO ENCANTANDO Enquanto as rocas vão fiando duas vozes tecem telas. Enquanto se fia canto vão tecendo mãos donzelas: Pela praia dos Lençóis das adunadas areias divagam vagos reinóis da corte que fantasmeia. À frente da estranha grei - reinando sobre os espectros – erra o espírito del-rei Dom Sebastião, vago cetro. Sexta-feira vindo escura el-rei se transforma em touro. Na pele, uma noite pura. Na testa, uma estrela de ouro. Não havendo no céu prata nem de estrela nem de lua o coro das açafatas se alça do mar e flutua. Canta a cidade embruxada. Segundo a lenda. Que diz: se el-rei for desembruxado adeus luzes de São Luís! Ah cidade irreal submersa no seio oculto das águas!
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De ti quanta mágoa emerge, saudade água-mãe de mágoa! Enquanto as rocas vão fiando dois fios de vozes belas, as horas sonham, nos cantos, idos reis, irreais donzelas. (STELLA LEONARDOS, 1979, p. 57-58)
A imagem é praticamente a mesma: com a ajuda da roca, mãos tecem telas e cantam a lenda do touro, cantam a corte de fantasma que vagueia pela praia, os espectros do exército de el-rei. Na noite de sexta-feira surge o touro, enquanto o coro das açafatas emerge do mar. Stella utiliza palavras arcaicas, próprias de uma português medieval, palavras que estão há muito em desuso, mas que cabem perfeitamente na estrutura do romanceiro, palavras que têm força, expressividade. Açafatas, por exemplo, eram jovens fidalgas que carregavam um cesto (açafate) com jóias e roupas da família real. Essa imagem de moças vindo do mar, trazendo jóias e roupas dialoga muito bem com os relatos dos ilhéus para quem a praia doa joias. No poema duplo, feitiço é bruxaria lançada sobre o rei, portanto o desencanto seria um desembruxar 8. Trata-se de uma paráfrase dos versos mais conhecidos da lenda, cantados na Mina: “Quem desencantar Lençol, põe abaixo o Maranhão”. E o canto assume a dor da saudade, “água-mãe de mágoa”. Na primeira versão, são horas que sonham o que já foi, donzelas e reis. Na segunda versão, ao lado das donzelas que tecem, está a mãe, ouvindo-as. Não é o mesmo poema, portanto, mas o mesmo discurso em “novos tons da mesma tela”. As estrofes seguintes, que parecem cópia da primeira versão, querem incitar no leitor a profecia do desencanto. Os versos perguntam: Quem? Quem vencerá o reino fantasma? Quem é capaz de enfrentar o touro-rei? Quem trará o ouro e a prata que flutua nas águas? Quem verá a cidade de São Luís sucumbir?
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DO ENCANTADO TOURO DA BALADA Duas donzelas que cantam. E na roca, ao lado delas, a mãe ouvindo de um canto novos tons da mesma tela. Pela Praia dos Lençóis das adunadas areias quem há de vencer reinóis da corte que fantasmeia? À frente da estranha grei - reinado de tanto espectro – quem há de enfrentar el-rei Dom Sebastião vago cetro? Quem há de livrar o touro das sextas-feiras escuras ferindo-o na estrela de ouro, salvando- da noite agrura? Quem há de trazer a prata das estrelas e da lua ao coro das açafatas de ai saudade que flutua? Quem há de ver a cidade de São Luís morrer nas luzes e sumir no mar? Quem há-de ver na del-rei claros lúzios? Quem vaga na praia, treme. Quem voga no mar se agita. Nas dunas, touro de tênebras. Nas águas, almas aflitas. Enquanto as filhas vão fiando, temor na mãe junto delas. E horas que tremem de espanto, invisíveis às donzelas. (STELLA LEONARDOS, 1979, p. 105-106)
Por enquanto, tudo é medo, mistério e encanto, na terra e na água. E a mãe das tecelãs é surpreendida com o temor do que as filhas cantam, sem perceber que o tempo transcorre, também amedrontado. No final do livro, após narrar a morte do líder Bequimão, Stella encerra o romanceiro dando conta dos mistérios da Ilha de Lençóis, de onde não se pode nada levar sem permissão de el-rei. Antes do poema, as epígrafes trazem as advertências: “Sou El -Rei o
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Encoberto passeando a galope na beira do mar” (Manuel Caetano Bandeira de Mello, apud STELLA LEONARDOS) e “Na praia dos Lençóis é pro ibido pelos pescadores levar-se qualquer recordação local” (Informações de Erasmo Dias, apud STELLA LEONARDOS). E o título dá as orientações geográficas da ilha encantada. O poema segue elencando a riqueza velada que deve ali permanecer: ATÉ HOJE, NA PRAIA ENTRE CURURUPU E TURIAÇU - Passante que vens à praia: cuidado nesses teus passos, cuidado em nada levar. - Não leves nada da areia nem leves nada do mar. - Nada que corre ou que nada, conchas leves, algas secas, alguma estrela do mar. - Que os peixes e caranguejos dia e noite montam guarda. - Que as conchas são contas soltas e têm ouvidos que guardam. - Que as algas soltam cabelos que algo refletem nas vagas. - Que as estrelas são pertences del-rei do reino que aguarda. - Que tudo a ele pertence del-rei do reino que aguarda. - Que tudo a ele pertence nos quatro cantos dos ares nos quatro cantos das águas. - Passante que vens à praia: cuidado nesses teus passos, cuidado em nada levar! - Que tudo é posse intocável del-rei da corte encantada sobre a praia e sob o mar. (STELLA LEONARDOS, 1979, p. 159-160)
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A corte encantada é a natureza velada, quase intocada, protegida pelo difícil acesso. O singelo poema dá o alerta: tudo sobre a praia e sob o mar é posse intocável da corte encantada e assim deve ser. A natureza é a guardiã do tesouro e monta guarda. O exército de peixes e caranguejos, as conchas são sentinelas, as algas escondem o mistério. É preciso proteger a outra vida que ali aguarda o momento de desabrochar. Impossível não perceber nesse discurso um alerta para o cuidado com a natureza, um sentimento ecológico (ou ecosófico, para usar o termo de Guattari), numa percepção de pertença e respeito. Quanto a Bequimão, será que virou também um Sebastião e se encantou nas pedras da outra ilha, a São Luís? No baluarte em sua memória, assentado no local do seu enforcamento, a pedra triangular aponta para cima, e lembra ao visitante de que ali alguém morreu por uma causa. Restam a memória e as lendas. Tudo vira mito.
4.7 O encantado galope à beira-mar no poema de Bandeira de Mello O maranhense Manoel Caetano, natural de Caxias, terra de Gonçalves Dias, é poeta do pós-guerra, colega de Josué Montello. O longo poema a seguir foi idealizado, segundo depoimento do autor, a partir do lançamento do livro Ideologia de Cordel (1976), de Ivan Cavalcanti Proença, em que estavam presentes alguns repentistas nordestinos que apresentaram um tipo de poema popular chamado Galope à beira-mar que, segundo cita na abertura do livro, seria uma variação do martelo agalopado, compondo-se de estrofe de dez versos de onze sílabas devendo finalizar com a palavra mar. Criado pelo violeiro cearense José Pretinho (BANDEIRA DE MELLO, 1978, p. 54-55). Nesse caso, o forma e o conteúdo dialogam perfeitamente na canção em que o cavalo do rei fantasma galopa à beira-mar. O poeta indica como pensou na lenda para compor o texto: A lenda de Dom Sebastião, a galope em seu cavalo jaezado, em noite de lua cheia, na praia da Ilha dos Lençóis, era corrente entre os pescadores
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maranhenses, pelo menos até certo tempo atrás. Os céticos diziam que se tratava de ilusão de ótica, produzida pela espuma das ondas ao luar a correr empinadas, a lembrar o prateado do cavalo a galope, com seu real cavaleiro (BANDEIRA DE MELLO, 1978, 54)
O poeta também indica outra fonte que serviu de base para a produção da canção: um poema de Josué Montello, de 1972, publicado no suplemento literário do Jornal do Commercio, no qual relata o passeio noturno do rei pela Ilha de Lençóis. Portanto, o Galope de versos funde-se ao galope do cavalo encantado do rei na bela canção do poeta maranhense. Mas também é a memória que galopa ao passado. O cenário é, como se vê, uma praia, e o poeta vislumbra o mar enquanto faz uma viagem aos tempos de outrora para deter-se em cada fase de sua vida. O velho de agora contempla o menino de outrora:
UMA CANÇÃO À BEIRA-MAR (à maneira de Galope) I Aqui nesta praia a gente divaga o céu nos recobre o mar nos convida e a vida o azul o verde da vaga da o verde o azul e a vida Toda alma é uma ilha de corpo cercada onde ir tanta luz (se o corpo não nada?) senão para em uma outra luz navegar? que se avista em transe a alma imagina e eu cumpro entretanto trajeto da sina cantando Galope na beira do mar (BANDEIRA DE MELLO, 1978, p. 57)
“Toda alma é uma ilha de corpo cercada”. O poeta divaga pela praia e faz um regresso ao passado, à infância, para relembrar sua sina. Tudo é convite à viagem. O sonho com uma ilha ou a ilha como metáfora para a alma indicam que o único limitado no humano é o corpo. O corpo-oceano jaz em torno da ilha-alma e a desafia. Enquanto estiver nessa prisão do corpo, a ilha só pode sonhar com asas.
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II Ainda é o menino que olha estas ondas levado por Ela que ao mundo me trouxe do abismo onde dormem as almas profundas ainda me fala menino que fosse Ó praias antigas areias salgadas ó ventos passados voando no tempo ó vagas passadas na areia a dançar As vozes que escuto as vozes felizes Submerso nas minhas maternas raízes com Ela passeio na beira do mar III Na mão que me leva circula meu sangue na voz que me fala a voz das origens na luz de seus olhos a alma se expande até mim chegando que causa vertigens desejos de volta ao seio materno embora nós dois estejamos felizes desejos de à fonte do sangue voltar Mas pela mão dEla não perco o caminho é seio é abrigo é ventre é ninho enquanto caminho na beira do mar (BANDEIRA DE MELLO, 1978, p. 5758)
E o poeta se vê outra vez menino, ali mesmo, passeando com sua mãe, no tempo das origens. O sangue original pulsa na mão que o guia. A areia, a água, o tempo; tudo retorna para a primeira vez, onde nunca se estava inseguro, pois o barco-mãe era imortal e inquebrável. Na quarta estrofe, o som do galope dos cavalos imortalizados na canção do sertanejo é ouvido através de uma concha do mar. Quem nunca quis escutar o mar dentro de uma concha? Dentro de uma concha acontecem todas as origens. Dela emana o vento, o barulho, o tropel, o passado. A metalinguagem assume o discurso, pois o poeta evoca e homenageia os repentistas que inventara m a métrica intitulada “galope à beira-mar”: IV Apanho na praia ao alcance do ouvido das próximas ondas a jogada concha escuto do oceano o distante ruído dos verdes cavalos me chega o remanso aqueles cavalos que o sertanejo cantador vaqueiro exclamara: Eu vejo cavalos de onda em tropel galopar!
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E assim inventara o corrido estilo a que se apegou valoroso pugilo cantando Galope na beira do mar V “ Pretinho” (o pr imeiro) e Dimas batista são tantos os nomes que não faço lista em qualquer estilo merecem lembrança Dos ritmos nasce o oculto meandro tanto nos romances que canta Leandro quanto Aderaldo os valentes amansa Leonardo Cascudo souberam exaltar (e quantos) as rudes cantigas das plagas do Norte entre elas os bardos das vagas que seguem a galope na beira do mar VI As lindes contemplo da celeste abobada a pequena esfera fechada pela água o olhar estendido abarca-lhe o módulo o olhar a aprisiona num voo de afago por onde a vista o possa alcançar e vê que esta Terra sendo tão pequena ao espírito ávido de luz ela acena com este passeio na beira do mar (BANDEIRA DE MELLO, 1978, p. 58-59)
Nesse caminhar, o poeta avista um navio. A referência agora é para o romanceiro ibérico, com o romance da Nau Catarineta 9 , ainda muito difundido pelo interior do país, nas festas populares. Neste instante, o poeta vê um jovem que tem uma história ligada ao oceano. É o jovem guerreiro que saiu da história para virar encantamento. Para se livrar da prisão em Alcácer, o jovem rei viera se ocultar nestas paragens, no reino das serias. E o poeta volta a ser jovem, também ele, quando viveu os gozos e as descobertas. Não existe morte para quem tem coragem e fome de autoconhecimento. O canto do jovem, enquanto peregrinou, foi uma luta em prol do humano, contra suas dores, seus temores, suas fomes. E a conclusão a que chegara é que ninguém é capaz de compreender profundamente os seres humanos. O profundo do humano não é atingível ao próprio humano, como o oceano. Duas fomes atormentaram o poeta: a do corpo e a da alma. A apenas uma fome é que há alimento.
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VII De longe eu descubro o navio em viagem Não vá se perder outra nau catarina das vagas dos ventos sorvida em voragem Não vá se perder em salgada neblina O golfo a enseada a baía o porto o molhe o cais para sua abordagem tomara Deus nosso o navio chegar Pensando em outro tempo um jovem defronto de quem a história não sei se vos conto que tivera início na beira do mar. VIII Também esse jovem em outro tempo embarcara O oceano nativo verdeazulcinzento deixara onde via-se (se a noite era clara) El-Rei a cavalo preso ao encantamento porém de alma livre do corpo do cárcere que não perecera na areia de Alcácer ao pé desta água viera se ocultar no reino onde mora onde canta a sereia o peixe que mata que a vista encandeia sem que haja perigo na beira do mar. IX Varei o oceano até à Grande Cidade cantei as mulheres de olhos de aljôfar As ondas do tempo me embalam eu ouço quando nos prazeres da livre idade Não temo viagem mar alto nem pélago Cheguei (vi venci) dos prazeres ao âmago Não existe perigo que eu tema enfrentar Apenas a fome de ser eu conheço Por isso os abismos minha asa atravessa e chego cantando na beira do mar X Cantei do Nordeste a fome esquelética Das Sociedades cantei o eclipse Cantei com os negros as Vozes da África Cantei contra a Bomba do Apocalipse Da fome do corpo senti a agonia Apenas a da alma haverá o que a sacia? e a leva sozinha consigo a cantar? Ninguém chega ao fundo dos seres humanos Ninguém que navegue nesses oceanos Ninguém que conheça a extensão desse mar (BANDEIRA DE MELLO, 1978, p. 59-60)
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Por fim, a velhice. O tempo presente é de lembrança. Lembrança só sabe ser viagem. Absortos, os olhos miram a sedução do mar, o ir e vir das águas. E seguro de uma luta que tem tudo para ser a derradeira, o poeta não vacila: quer retornar ao oceano, escapando da foice da morte, tal como o fez o rei Sebastião, que galopa aí, livre do tempo, dos fins e dos espaços. O poeta vê-se na figura de el-rei, galopando eternamente à beira mar. XI Agora já velho me embriago me engolfo no que os olhos veem deixando-me absorto o porto a baía a enseada o golfo o golfo a enseada a baía o porto Aqui nesta praia de água tão límpidas por onde eu estendo meus olhos de bêbedo se a morte acaso o poeta buscar escapo-lhe à foice e volto decerto ao oceano nativo sou El-Rei o Encoberto passeando a galope na beira do mar. (BANDEIRA DE MELLO, 1978, p. 60)
4.8 Visagens viventes no conto de Nagib Jorge Neto. Nagib Jorge Neto nasceu em Pedreiras, no interior do Maranhão, em 1937, e estudou na capital, fazendo parte do círculo de amizades de escritores como Bandeira Tribuzi e Nauro Machado, por exemplo. Em São Luís, trabalhou como jornalista no Jornal do Povo até que o jornal foi fechado, numa das primeiras ações do regime militar, em 1964. Orientado por amigos, segue para Recife onde passa a trabalhar na sucursal do Jornal do Brasil . Em Pernambuco vive até hoje. Exímio contista, seus textos apresentam uma influência do cordel e do romanceiro popular, ainda que escreva em prosa. A temática apresenta humor, os causos nordestinos e as referências às histórias de cavalaria medievais. É comum a presença de personagens como reis, cavaleiros e princesas na sua obra, resultado da influência da literatura oral levada de um lugar a outro por cantadores e feirantes, sobretudo cearenses. O livro O cordeiro zomba do lobo (1979) apresenta dez contos de forte tom alegórico. Já o título, retirado do conto de abertura, aponta para uma leitura nada ingênua da obra, quando o autor
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reconta a fábula do lobo e do cordeiro, com marcada voz de combate á tirania e à barbárie. Mas é sobretudo o conto “A fumaça dos combates” 10 que aqui será apresentado, visto que apresenta uma linguagem repleta de referências à luta social e armada na América Latina do século XX. Nós também tivemos e temos nossa batalha de Alcácer Quibir. Lutamos não sabemos por que e por quem. Lutamos somente, por opção ou forçados, que a vida é luta. Na voz de um velho combatente, uma guerra é contada e, em meio à narração, outras guerras e heróis vão sendo inseridos, em inúmeras referências históricas. Narrado em terceira pessoa, o protagonista é um ex-combatente de uma guerra do Sul. Aonde a guerra levava? O personagem velho se questiona sobre o motivo da guerra, ao mesmo tempo em que conta envaidecido que sua arma abateu muitos inimigos em lutas inúmeras. Ao rememorar os combates, o velho vai nomeando os heróis com quem convivera e narrando sua coragem em companhia de uma arma inusitada, um facão que “[...] cortava o ar com a rapidez de um pássaro voando” (JORGE NETO, 1979, p. 48) Nos campos alagadiços e pantanosos de um impreciso Sul, as batalhas eram travadas e o guerreiro conduzia o cavalo de modo a não apear em hora incerta, tal qual uma onça pintada. O velho guerreiro se mostra um exímio contador dos seus feitos a ouvintes atentos e maravilhados diante de tanta audácia e coragem que não deixaram sequer uma marca no corpo do combatente: “ Não tenho marcas de guerra” ( JORGE NETO, 1979, p. 47). Mas não é isso o que o final do conto dirá. Pela narração do velho, o passado vem ao presente, e ele nutre um prazer em contar as artimanhas no enfrentamento do perigo. E o perigo não era só o humano. Os pântanos lamacentos, habitados por feras, animais selvagens e pestes, estavam repletos de armadilhas: Nas distantes paragens do Sul, o frio era de atravessar a alma, as águas era geladas e cheias de remanços [sic], os lamaçais e pântanos liguentos e traiçoeiros, e assim os exércitos tinham de penar nos avanços, retardados
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também por animais selvagens e pragas que transmitiam doenças e traziam a morte. Avante, então, era muito mais que uma ordem, era uma formidável e dolorosa luta, na qual muitos tombaram estraçalhados por feras, afogados em águas pesadas, de forte correnteza, ou tragados por pântanos que matavam de maneira lenta e com muita agonia. (JORGE NETO, 1979, p. 48)
Sua recordação de guerra era uma inusitada arma. Enquanto os guerreiros empunhavam suas armas contra o roubo e a injustiça, o guerreiro narrador empunhava o seu facão, elevado à categoria de espada: A sua arma formidável, infalível, diferente das conhecidas, fora batizada com o nome de um herói, de fama em todo o país, no mundo inteiro. Lá pelo Sul, muito longe, aquele homem enorme, forte, de grande coragem, tinha levado seu exército a vencer batalhas terríveis, ao fim das quais os campos ficavam repletos de morto e ele erguia triunfante um facão igual àquele que agora era uma recordação de guerra. (JORGE NETO, 1979, p. 49)
As referências onomásticas que surgem ao longo do texto assumem um valor simbólico à medida que parecem apontar uma mensagem no interdito, evocando a própria condição do autor, um ser expatriado pelo regime militar. Assim, o facão do herói tem nome e se chama Siqueira Campos, um dos líderes da revolta tenentista do Forte de Copacabana de 1922 que mais tarde vai se aliar a Carlos Prestes, na Coluna Prestes. Ao mencionar outro bravo guerreiro, o velho conta que o General Zapata viera convocar este combatente para fazer parte do seu exército. Zapata, o líder da Revolução mexicana de 1910, é apresentado como um morto-vivo, uma assombração que vaga pelo mundo convocando guerreiros. O velho contador de histórias sugere que Carlos Prestes fora sondado pela visagem de Zapata: [...] um certo General Zapata, que tinha um cavalo branco, mais branco que flor de algodão, e vivia, mesmo depois de morto, galopando nas tardinhas e nas noites dos campos, voando, às vezes, junto com o vento e assustando os ricos em toda parte. [...] General Zapata tinha até mesmo parte com generais e soldados em todo o mundo e com seu cavalo, galopando ou esquipando, percorria muitas terras atrás de homens para os exércitos, homens que conversavam com sua visagem. O Capitão Prestes, segundo supunha, havia visto sua visagem na travessia de uma aguada e aí montou na garupa do seu cavalo, que voou junto com o vento. (JORGE NETO, 1979, 49-52)
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Em outra passagem, o narrador compara Carlos Prestes, o grade líder da revolução tenentista e grande combatente comunista, a Lampião, mas em grau superior: “Esse Capitão Prestes era muito valente, era chefe dos revoltosos, maior do que Lampião” (JORGE NETO, 1979, p. 52). Zapata seria, pois, uma espécie de cavaleiro da esperança, assim como Prestes o foi nomeado. Ao dizer que Zapata, sendo general e tendo um pouco sangue de índio não morre direito, e não vai ao céu nem ao inferno, o velho narrador explicaria o vagar eterno do herói e o aproximaria à figura de um cavaleiro sebastiânico. Além dos heróis, o velho também dava conta dos perversos, guerreiros infames, malfeitores que, em emboscada, se aproveitavam para roubar em plena guerra, como os ladrões de garimpeiros nos garimpos do Brasil. Mas por que o velho combatente não se lembra dos nomes desses malfeitores enquanto não tira os heróis de sua memória? O seu preferido, Siqueira Campos, é apresentado à semelhança de um cavaleiro antigo, com a espada reluzente. É aqui que surge a figura da visagem do Rei Sebastião, comparada ao herói do ex-combatente: De todos os heróis que guardava na memória, Siqueira Campos era o que empunhava uma arma de boa têmpera, branca e curvada na extremidade. Quando ela brilhava, à luz do Sol ou sob a claridade da Lua, lembrava (e bem comparando) o Rei dom Sebastião, empunhando sua espada na praia dos lençóis, no mar do Maranhão, e fazendo voltar para além do oceano os inimigos que vinham montados nas nuvens e nos ventos (JORGE NETO, 1979, p. 53).
As duas figuras heroicas fundem-se metaforicamente na figura do rei que, montando um cavalo de estrelas prateadas e empunhando uma espada tão reluzente que cega os desavisados e insistentes, cavalga nas noites da praia. Nesse ponto, na descrição que faz da visão do rei está implícita a figura do combatente Siqueira Campos: Dom Sebastião cavalgava pelas brancas areias, velava por grandes lençóis para cobrir os nus e os deserdados, e não deixava que guerreiros amaldiçoados, ciganos e velhacos, armados por um rei ambicioso, tirassem o vento da bonança que soprava por todas as paragens do mundo e levavam em suas asas os mantos que serviam para proteger contra a noite e o frio. Dom Sebastião montava um cavalo todo enfeitado, com estrelas de prata na
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testa, no peito e na garupa, estrelas que se misturavam ao brilho de sua espada e cegavam certos viventes que teimavam em falar com ele, conversar como se fosse uma visagem teimosa, uma visagem vivente como a do General Zapata. Ninguém conseguia chegar muito perto e o rei ficava vagando pela costa, enxotando os velhacos, e por vezes alcançava as paragens do Sul e fechava o corpo de alguns heróis, como aquele da arma curvada (JORGE NETO, 1979, p. 53).
Nesse caso, o rei não se contentava em vigiar os domínios do seu novo reino na praia dos Lençóis, mas galopava no vento até o Sul para fechar o corpo de alguns heróis, como o fizera com Siqueira Campos. A descrição encerra e segue um diálogo do velho combatente com um ouvinte. Pelo diálogo é possível perceber essa fusão entre os heróis. De quem a narração fala especificamente: do rei Sebastião ou de Siqueira Campos? - Ele tinha o corpo fechado. Era guardado por sete caboclos, todos com flechas. - E não guerreou no estrangeiro? - Nunca. Mas todo o estrangeiro conheceu de sua fama. Está na história, nos livros bem grandes, como o capitão, como o General Zapata. (JORGE NETO, 1979, p. 53)
As experiências do velho que guerreara um dia no Sul só aumentavam sua fama diante de uma assistência que habitava uma terra cuja natureza era mais forte que o mais valente sertanejo. Em terra de arruaceiros e cangaceiros vindos do sertão, poucos se aventuravam na luta, apesar das brigas de rua, dos conflitos familiares, das picuinhas nas festas, tudo guerra tola. Mesmo a revolta dos balaios, sucumbida pelo duque de Caxias, não passara por aquelas bandas dos rios Mearim e Corda, de modo que os heróis daquela gente eram os medievalescos, apresentados nos cordéis e nas cantorias. Somente agora, no meio do conto, é que o nome do velho aparece, seguido por sua descrição: [...] os olhos de Ferreira Lima pareciam enevoados, injetados de sangue nos cantos, e ele crispava a fronte para ver com clareza os pássaros que desviavam a atenção das gentes. O heróis parecia ter dificuldade de enxergar quando o sol estava muito forte e a força da claridade fazia ele tropeçar nas ruas ou no caminho das plantações. Apesar do tempo, não abandonava seu facão afiado, com uma curvatura lembrando um rabo de galo, tipo que firmava a crença de ser mais eficaz que os facões longos, retos [...] (JORGE
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NETO, 1979, p. 56)
Uma pergunta de um ouvinte elucida o título do conto: “Essa fumaça nos olhos é marca de guerra?” (p. 57). O ol ho direito de Ferreira Lima tinha uma marca esbranquiçada da guerra. Um testemunho claro nos olhos e límpido na voz. Por isso que o herói andava aos tropeços e passou a ser vítima indefesa das crianças que o chamavam de “Olho -de-fumaça”, ao que o mesmo tentava revidar, com um desejo de desembainhar o facão para atacá-las. É assim, o campo de batalha outra vez se forma, agora entre um velho quase cego e um bando de meninos. Sem poder usar o facão, sem cavalo, sem guerreiros, o herói está só, atormentado pelo fascínio da batalha numa guerra tão ingênua, cotidiana. Com exceção dos autores José Sarney e Augusto Cassas, cujas obras são da década de 1990 e 2000, os outros textos analisados foram publicados em plena ditadura militar, ou seja, entre os anos de 1964 e 1985. Tais obras parecem sugerir subliminarmente uma mensagem poderosa de justiça e liberdade, ainda que não assumam claramente um tom subversivo e de combate. Quando não se pode e não se quer falar abertamente, a alegoria passa a ser um recurso eficaz para não-dizer dizendo. É no mínimo curioso perceber que num mesmo período a figura do rei Sebastião seja mencionada sucessivas vezes na literatura de um estado. Consciente ou inconscientemente, a presença sebastiânica na literatura maranhense desse período não pode passar despercebida. Dos autores apresentados, pelo menos Ferreira Gullar, Bandeira Tribuzi e Nagib Neto, sofreram com a censura e ou com o exílio. Cada um tem um Rei Sebastião que melhor lhe convenha, que a guerra está aí, em pequenas doses, camuflada ou abertamente insolente. A guerra está fora e dentro de nós. E é por isso que a figura do rei Sebastião não pode ser entendida como uma ideologia, mas como um símbolo de libertação, ancorado nas vozes populares. Poetas e escritores perceberam a força emanada desse mito que não se limita a um tempo nem a um espaço. O rei Sebastião é maior que o Dom Sebastião.
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4.9 Faces do mito em outras poéticas
Se tudo dá conta do mito (ou o mito dá conta de tudo), a manifestação mais representativa do estado também se nutre desse encanto. O auto do bumba meu boi, apresentado em junho, em louvor a São João, também louva o rei-touro, nas letras das toadas dos grupos de boi. Embora o auto tenha partes fixas que constituem canto, drama e dança, as letras variam a cada ano e apresentam temas diversos, de cunho social ou em homenagem às riquezas da cultura popular. Uma das toadas mais populares, considerada o hino não oficial do Maranhão, menciona a praia de Lençóis e seu encanto: MARANHÃO, MEU TESOURO, MEU TORRÃO Maranhão, meu tesouro, meu torrão Fiz esta toada ora ti Maranhão (bis) Terra do babaçu que a natureza cultiva Esta palmeira nativa que me dá inquietação Na praia de Lençóis Tem um touro encantado E o reinado do Rei Sebastião Sereia canta na crôa, na mata o Guriatã Terra da pirunga doce E tem a gostosa pitomba antã. E todo ano a grande festa da juçara No mês de outubro no Maracanã. No Mês de junho tem o bumba meu boi que é festejado e, louvor a São João O amo canta e balança o maracá A matraca e pandeiro é quem faz tremer o chão. Essa herança foi deixada por nossos avós Hoje cultivada por nós Pra compor tua história Maranhão. (Maranhão, meu tesouro meu torrão. Intérprete: Humberto de Maracanã. In: Bumba boi de Maracanã: Estrela brasileira, 1 CD, faixa 20, 2006)
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A associação rei/touro é bem-vinda numa manifestação em que a personagem principal é o touro, que baila, perde a língua, morre e ressuscita, para a continuidade da brincadeira. Celebra-se uma liturgia da paixão, morte e ressurreição do boi. E assim acontece com o rei Sebastião, o novo Messias esperado. Ao colocar o mito sebastiânico entre as riquezas da terra, o compositor certamente demonstra a importância dessa perpetuação para a cultura, e enfatiza que tudo é herança dos antepassados. Aí entra em jogo a outra história do Maranhão, aquela que é construída de resistência, pelos que até bem pouco tempo não tinham voz, nem podiam rufar seus tambores clamando a seus deuses. Na toada seguinte, do boi “Encanto da Ilha”, cujo sotaque é de orquestra, as principais lendas dialogam. Enquanto São Luís jaz abraçada pela serpente que se escondeu na Fonte do Ribeirão, em Lençóis, o touro negro coroado e o navio de Dom Sebastião surgem para anunciar o futuro catastrófico. No refrão, as antigas donas das águas, Iara e Sereia (rainhas da água doce e da água salgada, respectivamente), cantam os mistérios das ilhas e convocam as vozes da natureza. A voz do intérprete faz um apelo à pedra de Itacolomi para que esta interceda junto ao rei Sebastião a fim de que ele desista do desencantamento da ilha de Lençóis. Há uma inversão no discurso da doutrina mais conhecida e difundida segundo a qual uma cidade deve ser destruída em detrimento de outra. São Luís deve permanecer de pé, segundo a letra. Mas isso interessa a quem? LENDAS DO MARANHAO Ê Maranhão, Ê Maranhão Tem segredos tuas lendas, terra de assombração uma serpente de espuma prateada abraçou a ilha, se escondeu no ribeirão Nos Lençóis touro negro coroado Um navio iluminado surgiu no boqueirão. IARA VEM CANTAR IARA VEM CANTAR MÃE D'ÁGUA LÁ NA FONTE
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SEREIA NAS ONDAS DO MAR. Com a voz da cascata eu falei na cachoeira me banhei a brisa traz o perfume fagulha reluz ao luar tesouro bordado na areia segredos desse meu Mará Itacolomi diz pro Rei Sebastião não desencantar Lençóis pra não ir abaixo o Maranhão. (Lendas do Maranhão. Intérprete: Augustinho Gugu. In: Boi de Orquestra Encanto da Ilha, 1 CD, faixa 5, 2003)
Já a letra da música carnavalesca a seguir foi composta para o bloco tradicional “Na onda do bicho”. Numa alusão ao nome do bloco, a gíria em “Esse touro é o bicho” e “ Esse rei é o bicho” atualiza com irreverência o mito do touro encantado. “O bicho” tem triplo significado na letra: o símbolo do grupo, por isso o rei representa o bloco; o rei metamorfoseado no animal, literalmente; o bicho como ser misterioso, fantástico e assombrado. Nos três casos, bicho seria um qualificativo que designa o fascínio evocado pela figura sebastiânica. No início da música, o refrão é composto pela repetição da palavra “dom”, invocando o soberano e sugerindo uma espécie de onomatopeia dos tambores do carnaval. Mais uma vez é projetada a catástrofe: “Ferindo a testa do touro/ vem abaixo o Maranhão”. A letra é simples, como deve ser uma música de bloco tradicional de rua, mas sintetiza o mito e sua promessa: DOM SEBASTIÃO Dom, dom, dom, dom dom, dom, dom, dom, Dom Sebastião (bis) É o touro encantado lá dos Lençóis touro negro de luz e assombração. Ferindo a testa do touro vem abaixo o Maranhão.
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Esse touro é o bicho é o bicho, é bicho Esse rei é o bicho é o bicho, é o bicho o touro negro é o bicho é o bicho é o bicho. (Dom Sebastião/Nhá Jança. Intérprete: Inácio Pinheiro. In: Na onda do bicho, compositor Zé Pereira Godão, companhia Barrica, 1 CD, faixa 5, s/d)
Saindo das fronteiras do Maranhão e alcançando o território brasileiro, o mito sebastiânico já foi temática do carnaval mais famoso do país, o carioca, pelo menos três vezes. Em 1996, a Estação Primeira de Mangueira levou para a Sapucaí o enredo “ Os tambores da Mangueira na terra da Encantaria”, samba de Chiquinho Campo Grande e Marcondes. Ao explicar o enredo, o carnavalesco Oswaldo Jardim sugere que se perceba o que será mostrado na avenida como uma história contada por um narrador maranhense: Os tambores da Mangueira na terra da Encantaria nada mais é do que o próprio maranhense contando a sua história, ou seja, a Mangueira vai ser o palco dessa historinha que o maranhense vai propor à gente. A gente vai sentar na Praia dos Lençóis, vai fazer uma roda em volta desse contador de histórias, e ele, da sua rede de algodão, vai falar pra gente como ele pensa que é o Maranhão. [...] Vai chegar um momento em que a gente vai pedir todas as coisas que a gente deseja. E no final, a mangueira traz pra gente, quase que vestido de verde e rosa [...] a figura desse touro encantado que mora na Praia dos Lençóis, que é a lenda mais forte do local. Ou seja, é o momento de esperança onde o touro negro vai ser desencantado pela Mangueira, com certeza, vai ser singrado com esse punhal e, vestido de verde e rosa, vai cair na folia e se embalar numa grande poesia [...] (Depoimento do carnavalesco Oswaldo Jardim, compacto das escolas de samba, Rede Globo, 1996)
Portanto, o contador da história é um pescador da Ilha de Lençóis que generosamente apresenta as visões aos visitantes. A letra inicia sugerindo que o espectador se deite numa rede e adormeça para sonhar com as crenças e mistérios do Maranhão. Em seguida, apresenta o universo lendário, com a corte do rei Sebastião no fundo do mar, a carruagem de Ana Jansen, o fantasma da malvada escravocrata do século XIX, e a serpente adormecida na Fonte do Ribeirão, na capital. A letra faz referência à princesa Iná, filha do rei Sebastião, que tem
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seu castelo na baía de São Marcos, segundo a lenda. A aparição do touro negro encantado na Praia dos Lençóis acontece em noite de lua cheia. Mas no samba, o toque de tambor é feito pela Mangueira, que convida o touro a vestir e as cores da escola e, na barca da poesia, navegar até o Rio de Janeiro para encantar a avenida. Este é o desencantamento proposto pelo carnavalesco, como se a Mangueira libertasse o rei do seu encanto para reinar festivo no carnaval: No revoar da inspiração O poeta conseguiu Contar em verso e prosa O amor pela cultura Lendas e mistérios Do nordeste do Brasil Deite numa rede de algodão E adormeça nas crenças do Maranhão No fundo do mar Tem um castelo que é do rei sebastião Tem mandinga tem segredo Meu amor eu tenho medo De brincar com assombração. Ana se fez donana Na carruagem tem uma mula-sem-cabeça Por incrível que pareça Uma serpente circundando o ribeirão A manguda vai chegar Bumba meu boi e cazumbás É festa de são joão. Agô Iná Iná agô ! Oh! doce mãe sereia No seu lampejo que ilumine todos nós Lá na praia dos lençois É noite de lua cheia. Os tambores da Mangueira Na terra da encantaria Encantaram o touro negro Que num toque de magia Se vestiu de verde e rosa Embarcou na poesia. (Mangueira, samba-enredo, 1996)
Sob a coordenação do carnavalesco maranhense Joãosinho Trinta, a Acadêmicos do Grande Rio, apresentou, em 2002, o enredo “Os papagaios amarelos nas terras encantadas do
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Maranhão”. Composto por Alailson Cruz e Agenor Neto, o samba une a história oficial da fundação de São Luís pelos franceses ao mito sebastiânico difundido no litoral maranhense. Do primeiro contato dos índios com os franceses, passando pela invasão holandesa e, mais tardes, as revoltas nativistas, a letra culmina nas manifestações populares e nas lendas. O refrão assume a voz de um turista que, imerso na fantástica história de mistério, pede para ver o touro negro coroado de Dom Sebastião: Na França, ficou o rei menino!!! No Brasil se viu chegar, p'ra conquistar! Oh!! Merci beaucoup au revoir O índio nada entendeu De "Papagaios Amarelos" foi chamar Tem miçanga tem (hê, hê), tem espelho tem Para índio um presente, p'ros franceses um harém De além mar que vem (hê, hê), Portugal meu bem Expulsando o francês, e o bravo holandês também No balaio tem revolução, a balaiada!! Negro Cosme quer seu povo feliz O Imperador das liberdades bem-te-vis
Me leva que eu quero ver (eu quero ver!) Touro negro coroado Ele é Dom Sebastião Que no mar fez o seu reino Num palácio iluminado Hê, povo hê, povo hê Hê Maranhão, povo encantado Nhá Jançá é assombração No alto do Divino eu vou Com caretas p'ro pato, pato pelado Do poeta uma voz ecoou (uooo!) Minha terra se ouve cantar (o sábia!) Grande Rio é samba, é amor Bumba meu boi tua estrela vai brilhar (Grande Rio, samba-enredo, 2002)
Por fim, em 2008, a Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel apresentou o enredo “O Quinto Império: de Portugal ao Brasil, uma utopia na História” , que fazia parte das comemorações do bicentenário da chegada da família imperial ao Brasil. Aclamado com um dos melhores do ano, o samba se fundamenta no sonho de Portugal como
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terra abençoada e apresenta o Brasil como a terra propícia para a fundação do Quinto Império sebastiânico. Ou seja, a narrativa conta como o sonho de grandeza é transplantado para as terras brasileiras. Um sonho duplo configurado tanto na fuga da família real, quanto na propagação do mito sebastiânico por estas terras: Portugal Bendito seja... Abençoado pelo Criador Uma utopia, um destino, um sonho místico de grandes realezas Sonhar... Com glórias um rei desejar E o sol volta a brilhar Com a esperança no olhar Mas desapareceu como um grão de areia no deserto E encantado renasceu Em cada ser, em cada coração Para afastar a cobiça na busca do ideal O Quinto Império Universal.
Deixe o meu samba te levar E a minha estrela te guiar À Praia dos Lençóis, nas crenças do Maranhão Tem um castelo que é do Rei Sebastião . No Rio de Janeiro aportaram caravelas Trazendo a Família Real Progresso em cores combinadas Debret retratava a transformação Nas terras tropicais do meu Brasil A herança, a dor... O mito ressurgiu Eis o guerreiro sebastiano O mais ufano dos lusitanos em verde e branco Que traz no peito uma estrela a brilhar De Norte a Sul desta nação Faz a manifestação popular.
Minha Mocidade guerreira Traz a igualdade justiça e paz. Hoje o Quinto Império é brasileiro amor Canta Mocidade canta! (Padre Miguel, samba-enredo, 2002)
O primeiro refrão faz o convite ao espectador: deixe que o samba seja seu guia e o conduza até a Praia dos Lençóis. É de lá que se inicia o percurso pela história que liga as duas terras. O mito sebastiânico e o sonho do Quinto Império fundamentam o enredo. O império português foi um sonho utópico? A letra dá conta de contar como o mito do império se
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construiu no Brasil a partir de duas fugas: a de D. João VI e a do encantado rei Sebastião. O Brasil é, pois, o destino do sonho português histórico e mítico. Sem dúvida, a Encantaria do rei Sebastião no Maranhão é fonte de riqueza para nossas manifestações artísticas, mas não para a alienação ideológica. Enquanto escrevo esse texto e encerro a tese, sei de muitos outros trabalhos em gestação cujo cerne é o mito sebastiânico narrado no Maranhão. Pinturas, xilogravuras, romances, poemas, canções, filmes, peças teatrais, reportagens: aí o touro se encanta, e a serpente dorme, e o tambor misterioso rufa e vive o rei Sebastião... Enquanto isso, lá na Ilha de Lençóis, o pescador pesca o peixe para matar sua fome e pesca mitos para saciar a fome dos outros.
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NOTAS 1
Acho importante citar o trabalho de jornalista e grande estudioso da cultura popular maranhense, Jomar Moraes. Em 1979 ele compilou artigos do jornal do estado, além de coletar pessoalmente material oral sobre as lendas maranhenses e publicou em 1980 a obra O rei touro e outras lendas maranhenses, obra premiada em concurso literário local. Jomar Moares apresenta brevemente um histórico do sebastianismo e anexa depoimentos de senhoras que recebem o rei Sebastião no culto afro-maranhense. O autor também elenca, sem no entanto analisá-los, fragmentos de textos de autores como Josué Montello, Bandeira Tribuzi, Stella Leonardos, Manoel Caetano Bandeira de Mello e Nagib Jorge Neto. Essa iniciativa já demonstrava o interesse em organizar o material oral e escrito em torno da figura do rei Sebastião. É interessante observar que parte do material literário sobre o rei é produzido relativamente ao mesmo tempo, na década de 1970. 2
Romance de 1971, que deu a Montello o prêmio de Intelectual do Ano pela União Brasileira de Escritores, e o prêmio de Ficção 1972 pela Fundação Cultural de Brasília. Mestre Severino, um pescador maranhense de 76 anos, passou parte de sua vida na cadeia (dos 41 aos 63 anos) por ter matado sua esposa, Vanju. Lourença é a antiga mulher que, não podendo ser a amada de Severino, aceita ser sua serviçal e passa a cuidar da filha do pescador com a esposa morta, enquanto Severino está preso. Agora, já velho e livre, ele relembra sua vida e a decisão de matar a mulher, ex-prostituta, por acreditar que ela o estaria traindo. Enquanto reconstrói seu passado, Severino sabe que está muito doente, mas insiste em fazer do neto um pescador, antes de morrer. 3
O pescador Querente, amigo de Cristório, é apresentado na tábua de personagens como sendo encarnação de Diogo de Seixas, soldado lançado ao mar da nau de São Tomé, nas costas da Terra dos Fumos, em 1589. 4
O poeta nãos abe ao certo, mas a letra da canção foi publicada anteriormente em revista, provavelmente o Pasquim. Perguntado quando foi que o poeta teve o primeiro contato com a lenda, Gullar responde: “ Quando menino, já ouvia falar da história desse touro que vivia na praia dos Lençóis. Mais tarde, li numa revista do Maranhão a lenda. No fundo do mar, morava Dom Sebastião, num palácio e, nas noites de luar, ele se encantava num touro e corria pelas areias da praia. Dizia-se que, se alguém matasse o touro, Dom Sebastião voltaria a ser o rei que sumira nas águas do mar. Voltaria a reinar. Dizia-se também que aquele touro era responsável por desvirginar as mocinhas que apareciam grávidas e queriam ocultar quem fora o verdadeiro autor da proeza ou para fazer de conta que não transara com ninguém: se estava grávida sem ter transado só poderia ser porque o touro encantado a emprenhara”. Ao ser questionado sobre a diversidade de textos das décadas de 60 e 70 que abordam a lenda maranhense, o poeta diz: “ Os escritores maranhenses se interessam pela lenda do touro porque ela é realmente impressionante, cheia de fantasia e força poética. Deve ser isso ”. 5
Poeta maranhense, autor de mais de 13 livros, entre eles Liturgia da Paixão, Ópera barroca : Guia Erótico Poético e Serpentário Lírico da Cidade de São Luís do Maranhão, O Shopping de Deus e a Alma do negócio e Deus Mix: Salmos Energéticos de Açaí c/ Guaraná e Cassis, todos publicados pela Imago. 6
Nasceu em São Luís, no dia 2 de fevereiro de 1927, filho de português com brasileira. Ainda criança, foi a Portugal, só regressando ao Maranhão em 1946. Em Portugal estudou nas cidades de Aveiro, Coimbra e Porto. Em São Luís, passa a integrar o grupo dos chamados “futuristas”, apelido pejorativo aos poetas que desprezavam a rima e os versos simétricos parnasianos. Bandeira Tribuzi traz ao Maranhão o modernismo de Fernando Pessoa, Garcia Lorca, Sá Carneiro, entre outros e dissemina a nova poesia na capital. Fez parte do seu grupo de amigos, por exemplo, o poeta Ferreira Gullar. Publicou as obras Alguma existência (1947), Rosa da Esperança (1950), Guerra e paz (1950), Safra (1960), Sonetos (1962), Pele & osso (1970). As seguintes obras, foram publicadas postumamente: Canções no Exílio, Viola de amor , Romanceiro da cidade de São Luís, Íntimo comício e outro poemas, todos publicados em Poesias completas (1979). Sobre ele, Josué Montello disse, no prefácio das Poesias Completas: “Líder de sua geração, quer pela cultura, quer pela autoridade da obra que lhe assegurava renome nacional, Bandeira Tribuzi recebeu, na virada do meio século, a maior homenagem que o Maranhão já prestou a um poeta vivo. Políticos, professores, jornalistas, escritores, gente do povo, identificados pelo sentimento da admiração a um puro homem de letras, reuniram-se à sua volta, para lhe testemunhar o seu apreço”. Um ano após essa homenagem, o poeta faleceu. 7
Stella Leonardos nasceu em 1923, no Rio de Janeiro. Poeta, Tradutora e teatróloga. Fez parte da terceira geração da poesia modernista. Formada em Letras Neolatinas pela UFRJ. Autora de inúmeras obras em prosa e verso, teatro, literatura infantil e textos traduzidos do catalão, espanhol, francês, inglês, italiano e provençal. Amante da tradição oral e popular, Stella publicou vários outros romanceiros, em que faz releitura dos textos de
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tradição oral da península ibérica que o Brasil herdou. Através dos romanceiros, a autora elabora um projeto que pretende dar conta de apresentar com a narrativa épica a História do Brasil. Sua poesia lírica, por sua vez, apresenta-a como uma poeta do novo trovadorismo. 8
Mas é também no culto da Mina que disseminou uma versão de que o rei Sebastião de fato não morrera na batalha, mas fora embruxado pela bruxa Zoraina. Para que não houvesse vencedor nem vencido, o rei conseguiu que a bruxa também fosse encantada (FERRETTI, 2000, p. 152-153). 9
Narrativa em versos que conta as agruras de marinheiros portugueses perdidos em alto mar e sendo tentados pelo diabo. 10
O depoimento a seguir foi-me enviado pelo autor através de e-mail, quando perguntei de onde veio a referência do mito sebastiânico que ele apresenta no conto: “ A lenda do Rei Dom Sebastião cavalgando na Praia dos Lençóis vem da minha fase de repórter no Jornal do Povo, entre 60/63. Quando retomei meu projeto literário, em 1972, Ariano Suassuna era defensor da monarquia e inseriu a versão, com certo tom de verdade, no seu segundo romance - O Rei Degolado. Na época fiz uma crítica ao livro e veio a lembrança do aspecto de mistério, lendário, que de certa forma questionava a defesa da monarquia. E também porque era um dado que enriquecia a história”. Veja um trecho da crítica de Nagib ao texto de Suassuna: “O Rei Dom Sebastião cavalga pelos sertões, messiânico e real, e se insere na sua paisagem, visível para o povo como uma serra, ou uma pedra, e próximo das massas sofredoras. Quaderna não sabe que além do seu mundo, na Praia dos Lençóis, no Maranhão, o Rei Dom Sebastião cavalga, mas há um brilho tão intenso nas suas roupas, nas suas armas, nos arreios do seu cavalo, que o povo fica cego, não consegue chegar perto da visagem. O reino, portanto, aí é uma tradição, fruto da narrativa oral, e não uma ideologia ” [texto cedido pelo autor, provavelmente publicado no Recife em 1971].
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CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIAGEM OU POSSESSÕES DA ILHA
Mesmo sem naus e sem rumos, Mesmo sem vagas e areias, Há sempre um copo de mar Para um homem navegar (Jorge de Lima, Fundação da Ilha, Invenção de Orfeu.) Toda alma é uma ilha de corpo cercada onde ir tanta luz (se o corpo não nada?) senão para em outra luz navegar[...] (Manoel Caetano Bandeira de Mello, Canção à beira-mar)
Depois dessa viagem tão custosa, o que resta? O que resta do que sou? O que resta do que não sou? O que resta da terra que eu tinha e o que resta da ilha que imaginei descobrir? O que restam dos barcos que me deram travessia, “pedaços flutuantes de espaços”? O que restam das águas em que naveguei? E por que o medo de afogar-me, se era justamente o fundo que eu buscava? O que resta do céu que me cobriu, do sol que me aqueceu e ofuscou minha visão? Da chuva que caiu? Das areias que sopraram em mim? O que restam das minhas certezas e o que resta do que eu sabia? O que resta da ideia que eu tinha dos lugares, dos espaços, dos sítios, depois que me disseram que o espaço fora do espaço é tão real quanto? Foi preciso padecer tanto com as borrascas da indecisão para, já quase no fim da travessia, ver que o farol da ilha, mesmo apagado, joga sobre os navegantes o seu olhar sobranceiro. O tempo todo busquei o nada. O tempo todo me revesti de ausências. O tempo todo celebrei a liturgia do vazio e entoei a litania das ausências. E só pude perceber isso quase no fim. Quase no fim, a cegueira me abre os olhos e me aponta o perigo da lucidez. Então compreendo que não era a luz o que eu procurava; era o obscuro, o tenebroso, o profundo, aquilo que é soberano. O tempo todo não houve o tempo. Ouvi, mas não compreendi logo.
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Seria o Logos? Ouvi isto de mim mesmo: “Pra que lucidez, se ela te ofusca? Quando tu não souberes mais de nada, aí sim, é hora de te lançares ao desconhecido”. Mas não era eu a me dizer. Por que precisei padecer tanto, angustiado com a falta de segurança, se era justamente a falta a minha fortaleza? O furo, a ilha, o oceano, o rei Sebastião encoberto, a Encantaria, o homem da ilha, o tempo, a história, os espaços híbridos existentes e inexistentes e, por fim, a linguagem e a voz diáfana. Tudo o que foi tema para meu estudo se configurava na ordem do vazio, na potência do negativo. Do começo ao fim, fui domado por uma força que me impedia de querer aquilo que eu queria, de buscar aquilo que buscava. E quando forçava o dizer, em completa e precipitada teimosia humana, vinha à tona a minha fraqueza diante do indizível. Então percebia que era imprescindível percorrer as bordas rarefeitas do pensamento. Essa busca pelo corpo como expressão e caixa de ressonância da voz não passou de uma tentativa de ser coerente com o efêmero, o instante, o instável. E é por isso que todo este trabalho é da ordem da estância, da potência como vontade de poder e não como prepotência. O furo, a falta, sou eu, nisso tudo, sou eu a falta de mim. O outro de mim é mais forte e me ajudou a chegar à ilha dos sebastianos, ainda que eu não tenha sequer vislumbrado a Encantaria. O outro de mim me conduziu, destemido, pelos horizontes e fendas do profundo. Mas eu nunca estive lá, nunca deixei o eu, cercado de mim, egocêntrico. Nunca quis saltar para o abismo, para chegar ao obscuro. Nunca reparei direito nas cartografias que se abriram diante de mim. Não. Jamais. Talvez. O negativo me direcionando. Ao invés da voz, o silêncio. Ao invés do corpo, o outro do corpo espelhado. Ao invés da ilha, a outra ilha velada. Ao invés do rei histórico, o outro rei encantado. Ao invés do pescadores, súditos deslumbrados. Ao invés de areia, castelos enterrados. Ao invés de sobrenatural, o fundo, fundo, fundo. A profundidade. Tudo mito, tudo origem num ovo cósmico.
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Comecei esta tese falando da tríade Vida, Destino e Morte. Percorri o embate dessas três palavras ao falar do rei, do sonho do rei, e do sonho do homem. Eu tinha claro que ao falar dos sebastianos, concluiria mencionando a catástrofe anunciada, o cataclismo que tudo destrói e reconstrói. E não pude perceber que a morte aí era o meu mote, não a vida. Era a morte o impulso projetante de toda uma construção de imaginários, alimento para a vida e para o destino. A morte alimenta-se do vivo mesmo. O destino culmina nela. Ela é a fortaleza que arrasa e edifica, porque lança para um espaço que não se configura, que não queremos configurar, nem podemos. Era a morte o meu esteio. Velando os vivos, ela os orienta a modelarem seus espaços e se encherem de nada, porque nada levarão quando estiverem sob o domínio dela. E é o nada que gera, uma vez que o todo não cabe nada mais, tão cheio de si. Qual é o sentido, pois, disso tudo? Da ilha, do homem na ilha, da Encantaria, do rei Sebastião tupiniquim? Só consigo dizer que o sentido é a dor dilacerante da saudade do tempo em que éramos deuses, imortais. É saudade de quando podíamos viver para sempre. É por isso que ninguém morre no país da saudade. Ela infunde no homem o desejo, e faz dele um aventureiro errante. O humano, uma alma circundada de corpo por todos os lados. Ilha de si mesmo. continente e conteúdo. Um espírito preso, louco para abandonar-se na liberdade dos espaços e tempos. E, por isso, não se contenta com os limites da sua vida, mas procura incessantemente lançar-se aos imaginários de uma vida excelsa. Depois de uma viagem, o que resta? Para guardar a aventura de modo mais físico, o espírito romântico pode decidir-se a organizar um diário com as anotações, bilhetes de viagem, postais, coisinhas recolhidas ao acaso durante o percurso. Há ainda quem revele as fotografias e se põe a organizar, cronologicamente ou na ordem da emoção, o seu álbum de viagem. Outros dispõem pela casa os souvenires de pouco ou nenhum valor material, mas de inestimável apreço.
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Seja como for, o viajante quer com isso que a viagem se materialize ao seu redor, ganhando um status de coisa. Ler um relato de viagem, olhar uma foto de um lugar visitado, contemplar uma lembrancinha, de certa maneira, significa trazer o espírito da viagem para dentro de si, de sua casa. A viagem é o viajante. Esta tese tornou-se, pois, meu diário de bordo, carta de viagem, álbum de retratos. Ela é composta de momentos, fragmentos de percurso, e estrutura-se não como um tratado, à semelhança do que faziam os viajantes antigos, mas como um caderno de impressões, cheio de recorte e colagem, como devem ser pensados os livros de viagem. Nesse emaranhado imagético-textual soam inúmeras vozes, ecoam os cânticos, rufam tambores, crepita o fogo, enquanto elevam-se as centelhas na noite negra do acontecer poético. Na aventura da vida, um barco nos espera para a grande travessia.
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DOSSIÊ SEBÁSTICO
I. II.
Heterotopias das ilhas sebastiânicas Breve biografia dos sebastianos
III.
Transcrição das entrevistas realizadas em 2008
IV.
Transcrição das filmagens realizadas em 2009
V. VI.
Transcrição dos cantos, toadas e doutrinas dos sebastianos Influências das narrativas de Lençóis na música e outras mídias
VII.
Roteiro do documentário Sebastianos: os narradores da ilha de Lençóis
VIII.
Entrevista com os produtores do documentário e CD “A lenda do rei Sebastião”, de 1978.
IX. X. XI.
Texto original do livro infantojuvenil O rei que virou lenda Ata de fundação do memorial Rei Sebastião Fotos da construção do memorial
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I. HETEROTOPIAS DAS ILHAS SEBASTIÂNICAS
São Luís:
1 e 2. Baías. A ilha de São Luís fica entre duas grandes baías, a leste fica a baía de São José (2), a oeste, a baía de São Marcos (1). Nesta última se encontra o porto de Itaqui (4). O palácio da princesa Ina, está nessa baía. Do outro lado dela fica a cidade de Alcântara, que é mencionada num dos relatos como uma das moradas do rei Sebastião atualmente.
3. O mar 4. O porto 5. O farol de São Marcos 6. Cidade secular de sobrados: fundada sobre labirintos, repleta de casarões revestidos de azulejos, a cidade de São Luís acolhe em suas ruas e largos os brincantes do Tambor de Crioula, do Bumba meu boi e outras manifestações. Parece que as ruínas avisam aos viajantes que o passado de glórias ruiu. Os batuques de tambores e pandeirões são ouvidos nas noites, e parecem avisar que a cidade da alegria é outra.
6. Labirintos no subsolo da cidade: 6. O sino 6. O terreiro, espaço do encantado (dentro) 6. A rua, espaço do boi (fora)
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Ilha de Lençóis e entorno:
1. Farol de São João: fica na Ilha mais ao norte do arquipélago de Maiaú. O primeiro farol foi construído em 1880. 2. Morro Três Irmãos: Fica na Ilha de São João, consiste nas dunas mais altas da ilha e ficam em frente ao oceano. 3. Morraria, dunas. Onde o touro do rei aparece trotando nas noites. 4. Pé da morraria, o poço: o poço é cavado com as mãos, onde mina água pura, que abastece o povoado. É a entrada para o palácio do rei, segundo Seu Chico. 5. Lago do Cabaço: Fica em frente ao estuário, ao lado da morraria. Era uma das lagoas temporárias, que já foi remodelada pelas dunas e pelas águas do estuário. Segundo alguns moradores, era aí que ficava o palácio do rei. 6. Árvore Grande: Era a maior árvore que existia na ilha. Segundo os moradores, aparecia um fogo flutuante no espaço, vindo de Bate-Vento e pousava na copa da árvore que nunca queimava. 7. Cemitério dos anjos: a leste da ilha, num dos cajueiros das dunas. É nas raízes do cajueiro que são enterrados os corpos dos bebês, para que a areia não desenterre. Os adultos são enterrados na ilha de Bate-vento, que fica em frente. 8. O Estrondo: barreira de areia que cai na floresta de mangue e fica ao sul da ilha. Dizem os moradores que aparecem rachaduras na barreira e que delas saem os sons de tambores, como os tambores do rito da Mina. 9. Morro do Camorim. Antiga duna, a mais alta de Lençóis, que era considerada a primeira
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morada do rei. Já não existe. 10. Morro do Agrado. Onde se ouve o som da tamborada no fundo da areia. 9. Ponta do Gino: fica ao sul da ilha. De onde vem a cobra, filha do rei. 10. Povoado: fica ao norte da Ilha de Lençóis, na frente do estuário, protegido pela floresta de mangue e por cajueiros esparramados nas dunas a leste. 11. Pancada do mar (praia): Vai de leste a sul, circundando a ilha. O touro também aparece vindo do mar. Dona Rosa relatou que a carruagem do rei passava por essa praia. 12. O fundo do mar: moradas das sereias, filhas do rei Sebastião. 13. A floresta de mangue.
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II. BREVE BIOGRAFIA DOS SEBASTIANOS DONA TERESA: Maria Teresa Araújo tem 76 anos. Nasceu em Lençóis, mas atualmente mora no continente, no município de Apicum Açu, onde fica o porto. Foi por muitos anos a parteira da ilha. É curadora, pajoa, e foi ela a responsável por introduzir no rito da Mina na ilha de Lençóis os tambores, influenciada pelos terreiros de São Luís. É irmã de José Mário, que foi pajé de Lençóis até novembro de 2008, quando faleceu. Dona Teresa sabe ler e escreve um pouco, mas as doutrinas que canta não lhe foram repassadas por escrito, e sim pela prática do culto, que é por excelência oral. Além de narrar episódios em que o filho teve uma visão do rei encantado, ela também conta algumas narrativas de visões sobrenaturais na ilha. Entre um relato e outro, ela lembra-se de uma doutrina e canta, intercalando palavra falada ao canto. É como se o relato despertasse, por mnemônica, o canto, e vice-versa. Embora conte muitas histórias, ela mesma nunca se encontrou com o rei Sebastião. PAJÉ JOSÉ MÁRIO (ZÉ LIMÃO): José Mário nasceu e morou em Lençóis até sua morte, em novembro de 2008. Foi entrevistado em janeiro de 2008, já bastante debilitado pelo derrame. Tinha 71 anos e era o pajé da Mina. Irmão de dona Teresa Araújo e pai adotivo de Picha, com quem morava. Muito respeitado pela comunidade, Zé limão, como era chamado, também ajudava o neto, Dunga, na realização da brincadeira do Bumba meu boi, patrocinando com seu salário algumas despesas. Boa parte das narrativas que ele contou, foram-lhe repassadas pelos avós, ainda na infância. Segundo ele, os avós contavam o que tinham visto. DONA NEUSA (NINI): Neusa Paes de Oliveira Miranda, ou dona Nini, tem 90 anos e é albina. Por causa da osteoporose, não anda mais e fica numa rede todo o dia. Prima do José Mário, mas não faz parte do Tambor de mina. Apesar disso, canta muitas doutrinas e tem relatos das visões que lhe contaram. Filha de Saturnino Oliveira, que foi entrevistado para o curta-metragem de Paulo Baiano e Roberto Machado, em 1979. SEU SIMIÃO: Simião Maximino tem em torno de 55 anos, é casado com Irailde, a filha de Dona Nini, e um dos filhos é albino. De fala mansa e muito calmo, Simião relata histórias que ouviu falar, mas também conta como o rei apareceu para ele e sua mulher. TELMA (TETÉ): Telma Maria Silva tem 36 anos, é a albina mais famosa da ilha, alvo de muitas reportagens e da curiosidade dos turistas. Não sendo casada, ela se mantém abastecendo a casa de algumas famílias com a água do poço ao pé da morraria, além de lavar roupa. Não sabe ler nem escrever. É filha-de-santo no Tambor de mina e se apresenta como filha do rei Sebastião. Sua mãe, Germana, era albina e morreu corroída pelo câncer de pele. ROSIMARIS (DONA ROSA): Rosimaris dos Santos tem 48 anos, mora numa ilha mais ao norte, chamada Porto do Meio. Mas se considera filha de Lençóis pois foi ainda criança para lá onde permaneceu até seu casamento. Nos seus relatos, ela fala das assombrações que já presenciou, como carruagens passando pela praia e o seu encontro com o touro negro. Algumas visões aconteceram não em Lençóis, mas em Porto do Meio. Essa informação é importante porque significa que a geografia dos mitos acompanha o narrador, confirmando o seu caráter móvel no tempo e no espaço. MANECO: É filho de Manoel Macieira, o albino mais idoso de Lençóis que mora em Cururupu. Trabalha na pesca e construindo casas na ilha. Maneco é o sucessor de José Mário no Tambor de mina, e se prepara, com sua mulher, para assumir o ofício. Além disso, ele é amo do boi e compõe toadas para o auto.
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RIBAMAR (CHENGO): José Ribamar Rabelo, 48 anos. Além da pesca, Ribamar é o compositor da ilha. Suas canções falam das belezas naturais de Lençóis e das aparições do rei Sebastião. Além de cantar suas composições, Ribamar relata um sonho fantástico, que serviu como aviso para a comunidade em 2008. Um exemplo que como o encantado participa e influencia a vida dos ilhéus. PICHA, ROSA E DUNGA: Pai, mãe e filho. Picha é filho adotivo de José Mário. É casado com Rosa. Dunga é o filho mais velho deles. Os dois filhos mais novos, Robert e Ronald, são albinos. São eles os responsáveis atualmente pela brincadeira do boi, nos festejos juninos. Há mais de 20 anos não havia o auto do boi na ilha. Certa vez, quando tinha 12 anos, Dunga assistiu a uma apresentação e decidiu que queria montar um boi em lençóis. Vendo a obstinação do menino, os adultos lembraram da brincadeira e reavivaram o auto, que sai todo ano. Rosa borda o couro de veludo do boi com miçangas, canutilhos, lantejoulas, Picha e os homens fazem os instrumentos de percussão (pandeirões e tambores) e Dunga compõe toadas e é o amo do boi (o puxador de toadas). Um fato interessante, que demonstra a forte presença do rei Sebastião nas decisões da comunidade, aconteceu em 2007. Dunga estava triste e dizia que ia se converter à igreja evangélica e não ia mais botar o boi para brincar. O avô (pajé) perguntou por que ele ia desprezar o dom dado por Deus. O rapaz disse que os pais não queriam mais ajudá-lo pois não tinham condições de arcar com as despesas das fantasias dos brincantes. O avô então propôs que o menino fizesse três toadas para os encantados: duas para Jandiúna, o caboclo dele, e uma para o rei Sebastião. O rapaz disse que faria até mais. E assim, o velho começou a contribuir com o grupo. Por isso, todas as vezes que o grupo termina o ciclo de festas, é preciso que o encerramento se dê sobre as dunas, cantando para o rei Sebastião, cumprindo, assim, a promessa. JOSÉ NILSON (NANGO): Tem 25 anos, casado, dois filhos. Nango é filho de Maneco e trabalha no barco da família. Além da pesca, faz fretes e é guia de turismo. Afilhado do falecido, José Mário. Seu depoimento mostra como o mito se estende nas conversas cotidianas e como os visitantes da ilha são influenciados por elas. FRANCISCO (SEU CHICO): Francisco Sales Rabelo tem 78 anos e mora sozinho, numa das menores casas da ilha. Mas é patriarca de uma família numerosa. Foi muito difícil entrevistá-lo e só depois descobri a razão. Em 2008, assim que cheguei em Lençóis o procurei. Ele não parou para me receber, foi ríspido. Ainda tentei duas aproximações, sem resultado. Na última vez, o segui até a embarcação que ele tomaria para o continente e, sem parar, ele me informou que não gosta de falar essas coisas, pois adoecia depois. E assim deixei-o. Agora, em 2009, o abordei novamente e somente na terceira tentativa, consegui convencê-lo a dar seu depoimento. Primeiro, disse que não era jornalista, mas pesquisador e tudo o que ele tinha para me dizer era muito importante para mim. Depois, disse a ele que ele era um das figuras que mais sabiam sobre o rei Sebastião e que deveria falar sobre isso. Então ele me disse que não tinha mais interesse em falar porque as pessoas nunca acreditavam nele e depois, todas as vezes que ele falava sobre o rei, ele acabava adoecendo muito. Então eu disse que tinha um retrato (pintura) do rei e queria mostrar para ele. Ele me falou que tinha também um retrato que lhe fora dado por um pesquisador há cinco anos. Marcamos a entrevista para o dia seguinte. Realmente o relato de Seu Chico impressiona pela beleza da descrição e as informações que ele tem a respeito de como a ilha foi fundada e como foi que se deu a fuga do rei Sebastião de Portugal para Lençóis.
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III. TRANSCRIÇÕES DAS ENTREVISTAS FEITAS EM 2008 Realizadas entre os dias 09 a 14 de janeiro de 2008, nas cidades de Apicum-Açu, Ilha de Lençóis e Cururupu – Maranhão. Estes relatos fazem parte da primeira visita a Lençóis e foram gravadas apenas em áudio.
ENTREVISTADA: MARIA TERESA ARAÚJO , APICUM-AÇU, 75 ANOS Entrevista 1 - código T11 tema: Quem é o rei. E – Município de Apicum-Açu, dia 11 de janeiro. Eu converso com a dona Maria Teresa Araújo, que é irmã do seu José Mário, de Lençóis. Eu começo perguntando pra senhora quem é o Rei Sebastião? M T – Rei Sebastião... faço como dizer... eu não sei nem quem é. Sei que é uma divindade. Mas eu não sei... é conhecido por Rei Sebastião. Ah! Quando eu nasci, eu já ouvia falar. É antigo. Ouvia falar de Rei Sebastião, da Jarina, da Mariquinha... E – E o que falavam do Rei Sebastião? MT – Que ele era dono do Lençol. E governava aquela ilha. Só tinha o que ele aceitasse, o que não aceitasse não tinha. Eu não sei contar mais. E outras coisas eu sei... das miçangas, conta, alfinete... era pedaço de varão de ouro, de brinco, cordão, de anel, essas coisas assim... botão, era tudo... tudo a gente achava. Aí essas coisas sumiram. De uns tempos, desapareceram. Ninguém sabe se era alguma moradia antiga, também, no tempo do dilúvio. Não se sabe da onde é. Meu pai de santo disse que era (risos) a mãe d'água. O senhor já ouviu falar em mãe d'água? Era a mãe d'água. Duns tempos desapareceu porque a mãe d'água afastou pra entrar Mina. Porque antigamente é curador de maracá, agora é Mina, tambor de Mina mesmo. Ele contava assim. E – Podia ser obra do Rei Sebastião? MT- Podia também ser. Podia também ser que ele fazia aquilo pra mostrar pras pessoas acreditar que existia. Só podia ser. Então eu não sei da onde nascia aquilo. E- E o que era que as pessoas achavam? MT – Achava... achava muita coisa. Era pente, era pires, esses piresinho. Era cabeça de cachimbo (risos). Achava tudo, toda besteira que ele quisesse amostrar: santo, cuia, umas cuinhas pequenas. Tudo achava. E – E se levassem... MT – Levasse... que fosse viajar, a canoa não rompia a viagem. Tinha que voltar e deixar no lugar que achou. E se tivesse lá mesmo, trabalhando, era oito dia, não dormia... diz que não dormia noite e dia. Eles mandando levar: “Vai deixar o que trouxe, do lugar que tu trouxe. Vai deixar!” E enquanto não ia, a pessoa não [sossegava]... tinha que levar. Assim que era. Eu via os antigos contar.
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Entrevista 2 - código T12 MARIA TERESA ARAÚJO tema: visão de Edmundo E- Eu queria que a senhora contasse aquela história do Edmundo, quando era pequeno. Do que apareceu pra ele. Como foi? MT - Ah, ele foi botar arapuca. Ele mais uns três meninos. Foi botar arapuca nessa tarde, quando eles olharam - porque daqui de onde eles estavam era campo, faz um capão de mato. Eles estavam mesmo fora do capão. E pra cá era morraria, alta. - Quando eles olharam, vinha aquela pessoa descendo a morraria... E aqui no campinho havia uns gados, uns bois. Aí ele viu e disse: “Olha, lá vem...” - E tem uma mulher que chama Mariquita. - “La vem Mariquita”. Com uma porção de cachorro (...) Aí vieram e quantos desceram a morraria. Aí um dos cachorros saiu e foi latir pras vacas. Só que era invisível, as vacas não [viram] ... aí ele olhou e disse: “Sai daí, aí não te pertence. Passa pro teu lugar.” Aí o cachorro ve io, né, ficou (...) E voltou, ficou no lugar dele. O rei que disse pros cachorros. Eram dezesseis cachorros. Aí o cachorro veio pro lugar dele. Que ele olhou quem era... ergueu assim um pouco o rosto, a barba, olha, a barba grande, assim como um profeta, uma coisa. Aí ele disse: “será que é um bicho?” (risos) “é um bicho”. E vieram [os meninos] aqui, deitados, pra dentro do capão que era pra quem era não ver, com medo. Aí amedrontou. Ele com uma veste grande comprida do ombro ao pé, vermelha, bem vermelha assim, quase vermelho escuro. Então ele chegou em casa contando. O pai dele disse: “Rapaz, tu viu foi um rei, meu filho”. Que é assim que é traje de rei, pelo que ele contou. Manga comprida assim... Aí ele disse: “É, papai?” ele disse: “é”. Porque eu digo: “Ah, é mesmo, que no baralho, a gente vê os reis tudo com aquele roupão vermelho mesmo.” Ah, mas ele adoeceu, todos eles. Esse meu filho se assombrou que via tanta coisa assim no resguardo, na doença. Aí careceu trabalhar, eu trabalhei mesmo pra ele, ele ficou bom.
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Entrevista 3 - código T13 MARIA TERESA ARAÚJO tema: O que é, onde fica a Encantaria?/Visão da árvore grande que arde em fogo/o som do tambor misterioso nas dunas E – Queria que a senhora me dissesse onde é que fica a Encantaria? O que que é a Encantaria? MT- Ah, aí eu não posso nem lhe dizer o que que é Encantaria. É porque eu sei que é um mistério que eu não sei mesmo nem lhe contar. Porque aliás é... é o Brasil todo. Tem essa encantaria. Então eu não posso até dizer. E – Algumas pessoas dizem que a Encantaria é em Lençóis. Que lençóis é encantado. É terra dos encantados. Por que é que dizem isso? MT – O Lençol mesmo é terra dos encantados, é a ilha da assombração, porque tem a doutrina... eles dizem porque lá aparece muita visão. Pode ser por isso. Aparece muita visão. Ó, um neto meu chegou agora de lá. Disse: “Nós fomos botar camarão pra Serra Pelada. - eles chamam Serra Pelada porque tem a serra de ouro...Lá eles chamam a serra porque é uma mina de camarão, ó, todo tempo camarão dando, né. Então botaram Serra Pelada porque é como mina de ouro. - Ele disse: “Vovó, nós tava botando camarão, e o tambor de Mina tava tocando no Camorim, justamente que nós tava falando no morro do Camorim. Ele tava que era uma beleza. Aí eu disse: rapaz, vamos embora... Rapaz deixa pra lá, vamos botar nosso camarão”. Eu digo: “Ah meu filho, não faz mal a ninguém”. No tempo de meu pai tinha uma árvore que chamavam “árvore grande”. A árvore mais alta que existia no Lençol. Ele ia tarrafear, quando olhava, a árvore tava em fogo. Tava em fogo, assim, não demorava o Tambor de Mina começava. Tambor de Mina tão bonito... Aí, no começo ele não ia. Do meio pro fim ele já não tinha medo. Ele ia. (...) Passava perto, tudo normal... ele ficava pra cá (...) ia tarrafear. Mas era antigo esse tambor de Mina. Era não, é. Tem tempo que aparece esse tambor que é uma beleza. E aí, nós teimava muito. Então eu quero dizer que eles andam é no tempo aí mesmo, como a gente, que é invisível, a gente não vê né? (risos)
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Entrevista 4 código T1 (Maria Teresa e o filho, Edmundo) ED- (canta) Jarina é flor é flor do mar Jarina é flor dos orixás. Jarina mora na praia dos Lençóis do Maranhão. Desce morro a cavalo é filha do Rei Sebastião. E- Quem é o autor? Quem é o cantor? ED- Pinduca. ED- (Canta) Preto crioulo Preto crioulo bem estimado. Ele é preto velho, meu pai, do seu reinado E- bonito né? cura quebrante e mau-olhado ele é preto velho, meu pai, do seu reinado. E- Quem é que ensina essas músicas? MT – É ele mesmo, ele mesmo que ensina. Os invisíveis. ED- Rapaz, a história que eles fazem é comprida... E- As músicas não são suas, né, são deles... MT – É deles porque eles vêm e ensinam pra gente né. E a gente faz a toada e arrumação deles e canta. (risos) É importante, né. É uma energia que a gente tem. Sei lá.
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Entrevista 5 (DIA 14) MARIA TERESA ARAÚJO Tema: o touro negro. Meu boi urrou (toada de boi, Maria Teresa Araújo) MT (canta) Meu boi urrou, tornou urrar. Como é tão bonito meus vaqueiro campear. Este touro é maroto quando ele se vê solto joga areia no lombo não dá caminho pra outro. MT – Aí, vai. Ê boi, ê boi!!! É bonito... É uma brincadeira, o senhor nunca viu? (...) Eu vou ajudar um bocado porque... sabe, eu moro aqui, mas eu preciso da minha praia. Sou muito invocada. Eu mudei por falta de... Ah, eu amo aquele lugar. Eu fui a primeirinha que me apareceu a Mina lá. Depois de mim foi meu irmão... E- A senhora viu o rei Sebastião alguma vez? MT – Não, eu nunca vi.. Se vi, mas não sei quem é. Nunca vi. Ele não aparece assim. E- Diz que ele aparece na forma de um touro... MT – De um touro, um touro negro. Foi o touro que lhe contei que aparecia né, no pingo de meio-dia, ele aparecia num morro de areia, bem preto . Chega meio-dia tava reluzindo. Ninguém ia lá. Com uma mulher, que, justamente, é Santa Bárbara, Maria Bárbara, com um rolo de corda a tira-colo e aqui o laço da corda pra botar na madeira dele. E ele lá, brincando com ela. Diz que piscava até quando piscava e aí, não via mais. Ele era o touro negro do Rei Sebastião. E – O touro é o rei? MT – Uns dizem que é; outros, dizem que não é. Agora eu vou cantar uma, falando no touro: (canta) Quem quiser dar neste touro Lá na praia do Lençol Este touro é malcriado Ele é do Rei Sebastião. MT – É bonita, né... E – É, é sua? MT – Não, é de uma dona de São Luís. Ela se deu muito comigo. Ele veio aqui no Lençóis –
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eu ainda morava no Lençóis – e ela fez... E – Quem é? MT – Uma dona de São Luís, já há muitos anos. O nome dela era Antônia. Eu não sei se ela ainda é viva. É bonita essa.
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Entrevista 6 - (dia 12) JOSÉ RIBAMAR RABELO, 47 ANOS, MORADOR DE LENÇÓIS, AUTOR DE MÚSICAS SOBRE AS LENDAS E BELEZAS DA ILHA DE LENÇÓIS. Tema: O sonho de Ribamar. Sonhos e fatos explicados pela ordem do mítico. RB. Sim, eu amanheci contando prum rapaz por nome Romerito - que a gente convive só numa casa - Eu disse: “Rapaz, Romerito, tu não sabe que essa noite eu sonhei com dois homens. Me falaram que era pra quem fez aquele rancho ali tirar daquela posição porque tava empatando na hora que eles vinham no passeio deles. E – Eles quem? RB – Só pode ser os donos da ilha... O rei Sebastião... Eu acredito que só podia ser ele. No meu sonho, eu tava sentado lá no rancho tocando pandeiro. Sempre eu gosto de tá fazendo música por lá. Aí... naquilo, eu tava tocando pandeiro, não demorou... quando eu olho, depara bem perto de mim um carro, um jipezinho. Saltam duas pessoas: um alto, barbudo assim como eu to, buchudo... O outro, da mesma altura, do mesmo sentido também. Saltaram e perguntaram pra mim: “Você não sabe me dizer quem fez esse trabalho aqui?” Aí eu digo: “Senhor, foram dois rapazes daqui, que trabalham aqui, que convivem aqui em Lençóis. E aí eles fizeram o rancho aqui na beira da praia. Porque já é dois anos que acontece uma regata das taroas, lá de São Luís, que vem pra cá. E aí o primeiro ano não tinha o rancho. Agora este outro ano a gente já fez pra receber o pessoal na hora de chegar”. Ele disse: “Olha, você avisa quem fez que é pra tirar esse rancho daqui imediatamente. Com isso aí, eles vão ganhar só um exemplo. E se eles não tirar, ainda vai acontecer coisa pior”. Fiquei calado, já não disse mais nada. Naquilo eu me espanto. Quando foi de manhã eu amanheci contando pro rapaz. Só que eles dois que fizeram o rancho não estavam aqui, já tinham viajado pra Cururupu, Apicum-Açu. Foram passar o natal pra lá e o primeiro do ano. Quando foi na volta deles já, no primeiro do ano pra vir embora, aconteceu um acidente de carro com eles dois lá na viagem. Quer dizer que eu entendi, foi aquilo que passaram pra mim. E eu to espalhando pro pessoal. Muita gente diz que é mentira... então vai ficar como mentira. Só que eu to avisando o que aconteceu e vou avisar ao rapaz na hora que ele chegar. Agora se ele não acreditar, ele não tira o rancho. E – Como é seu nome completo? RB – Meu nome é José Ribamar Rabelo. E – Quantos anos? RB – 47 E – E o que você faz aqui? Qual sua profissão? RB – Minha profissão é pescar, pescar de redinha, pra peixe, pra camarão, arrastar camarão também.
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Entrevista 7 (dia 11) TEMA – Quem é o rei. Entrevistada – Telma Maria Silva, 36 anos, albina, natural de Lençóis. Código de áudio - telma1 E – Telma, você tem quantos anos? TELMA – 33 E – Qual o seu nome completo? TELMA – Telma Maria Silva. E – Eu queria que você contasse pra mim o que você sabe sobre o Rei Dom Sebastião? Por que esse lugar é do Rei Sebastião? Quem é o Rei Sebastião? TELMA – Ele... ele. Quando...quando... os mais que contam, os que já morreram mesmo, que já nasceram... Eu ainda não era gente, mas nesse tempo eu já tava menina, crescendo e entendi. Aí, muitas coisas eu não sei porque eu ainda não era gente nesse tempo. Isso era os mais antigos. E eu sei que já vi ele, em sonho, eu já vi. Ele é branco, bem branco com os olho azul, com as roupas de penas. Eu já vi ele em sonho mesmo. Ele é mesmo morador daqui da ilha. Só que ele não mora mesmo aqui dentro da ilha. Ele mora num morro mais alto que tem ali que chamam Três Irmãos. Ele se mudou pra lá, mas sempre ele recorre à praia. E – A ilha é dele... TELMA - É, a ilha é dele. E – aqui é encantado... TELMA – ele é encantado aqui . E- E ele aparece como? TELMA - Assim, às vezes em sonho, que tem as cantiga dele... do Rei Sebastião... quando nós dança tambor, aí nós canta pra ele. E- Como é a doutrina dele? TELMA – Ah, é de pajé mesmo... E- Pois cante aí uma... TELMA – Ah,meu Deus (risos) E – O que você souber... TELMA – Ah, eu sei como é. Eu sei as cantigas dele.
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Entrevista 8 (continuação) Tema: A cidade encantada e a catástrofe, o povo albino, fenômenos sobrenaturais nas dunas. Entrevistada – Telma Maria Silva, código de áudio - telma2 (Telma canta ) Sebastião quando baixa a coroa e faz as carnes da gente tremer Rei Sebastião, Rei Sebastião Entra em luta pra ganhar e vencer. E – Quem é que ensina essas doutrinas? TELMA – Ele mesmo... Não... ele mesmo que dá. E- Não são suas... TELMA - Não, ele mesmo que traz em sonho, a gente dormindo. Aí vem, aí...quem é das coisas, enxerga. Eu enxergo. Eu não tenho medo. A primeira vez que eu vi ele, ele perguntou se eu tinha medo. Eu disse que não. Dia de domingo, sábado, pode ir lá. O nome do lugar é Colher. Se o senhor disser: “Eu quero pra dar 10 estrondos” , ainda dá né? Estronda, aí, cava a vala que se a gente for deitar dentro, deita. Helicóptero já vem pra sentar lá, mas não consegue. Rapaz, não sei o que é... mas de ter (coisas estranhas) (...) Essas dunas ali onde é o poço onde eu encho água, tudo é encantado. Tem a tamborada no fundo... nós aqui tamo em cima da terra, mas aqui em cima dessa terra tem o boi que vem beber água, galo canta, passa carro, passa tudo. E – Lá embaixo... TELMA – Lá embaixo. E – Na morada do rei... TELMA – É. Lá embaixo. Boi vem beber água. Aqui nós estamos em cima da terra. Mas em cima da areia é uma cidade. Hum hum, Oh, vê como acontece mesmo e dá tudo certo. Ele ainda trouxe essa cantiga assim ó . Ó, tava agorinha na cabeça... Ó, tem essa: (Canta) Oh, cidade do Lençol é uma cidade muito bonita. Ai, tem vaso de guerra E tem caixa de guerra. Mas isto é feito por obra da natureza. Tá vendo como é... E – Essa cidade não é aqui em cima, é lá embaixo... TELMA – Não, é lá embaixo. Dá tudo certo.
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E – E será que um dia essa cidade vai vir pra cá pra cima? TELMA – hum, hum... E – Que que você acha? TELMA – Pra mim vai... diz que Lençol vai ao fundo e Maranhão fica cidade . É verdade. E – E quando é que isso vai acontecer? TELMA – Agora eu não sei quando é, mas vai...Que aqui fica São Luís. Aí aqui vai ao fundo e aí vai virar uma cidade. E – E é a cidade do Rei Sebastião... TELMA - É...mas o senhor acha? Não acontece. Não sei. Nós somos tudo mesmo filho dele... Agora, como vem uns que dizem... Ah... nós somos filhos do Rei Sebastião porque nós somos nascido e enterrado, o umbigo é enterrado aqui. E – Então vocês se consideram filhos do Rei Sebastião... TELMA – do Rei Sebastião... E – E não tem nada a ver com Filhos da Lua, como dizem por aí.. TELMA - Não, é... Essa reportagem do repórter, eles falaram muita besteira. Por isso que eu disse que nunca mais eu tiro o meu retrato. Mas lua não faz filho, ela não cicica pra fazer filho louro. Não, nunca vi lua fazer filho. Porque é um mistério mesmo ó, Picha não tem aqueles dois? Ele é moreno, a mulher... a esposa dele é morena. Não tem dois brancos? Puxou para (...) Pois é, o pai dela é da minha cor. Ó, o irmão...esse Ednaldo é irmão do marido dela, que mora em Apicum-Açu. E – E é albino... TELMA – Albino, também, é branco também. E – Muitas pessoas aqui são albinas... TELMA – Muito. E já morreu muito albino, muito mesmo. E ainda tem.
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Entrevista 9 (cont.) temas – a filha do rei, o cavalo branco e as jóias do reino. entrevistada – Telma código de áudio - telma3 E – Como era antigamente aqui na ilha? TELMA – Antigamente, a ilha... achava... olha... achavam relógio, achavam cordão desses ouro antigo. Essa Neusa, ela ainda tem uns que foi achado antigamente. Se chegava um barco aqui, se levasse a terra do morro sem avisar a filha do rei Sebastião, o barco não saía. E – Quem é a filha do Rei Sebastião? TELMA – É Dulcelina e... é Dulcelina e... Tem as filhas dele. Oh, meu Deus... eu to com o nome da outra filha aqui. É Dulcelina... tem a filha dele, a outra... são duas. (...) Antigamente era assim que se eles levassem a terra do barco e escondessem... aí eles diziam: “Mas por que que este barco não sai do porto?”. Aí eles diziam: “Ah será que vocês não tem coisa aí da praia do rei Sebastião... O barco ia meia-vi agem e voltava. Aí, eles diziam: “Gente, mas o que é que este barco não quer sair?” O que era? Era a terra que estava dentro do barco sem eles pedir pra Dulcelina, filha dele. Aí o barco nunca saía. Aqui a gente achava arame, não podia trazer do morro, vela, uma porção de coisa. Não podia trazer. Mas as crianças daqui traziam. Aquela panha grande, bordada... Vou lhe contar. 12 horas da noite, noite de escuro, já passou aqui, anteontem a noite. Eu vi a pisada, era uma cavalo passando, um cavalo branco, passando aqui na minha porta. Mas só que eu não tenho medo. Cavalo, tudo aparece. Olha, aqui, quando a gente ia pra serra, tinha um fogo do canal. Agora já se acabou, quase a gente não vê mais. Mas tinha tudo isso que a gente não podia passar no caminho. E – E esse cavalo branco... TELMA – É, ele sempre passa aqui... E – É o rei Sebastião? TELMA- Não, sempre passa. É 12 horas da noite. E – Esse cavalo é dele? TELMA – É...
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Entrevista 10 Dona Nini, 89 anos, morada de Lençóis, albina Tema: touro negro, cavalo e tesouro da ilha. E – Seu nome é dona Nini... o apelido. NINI – O apelido. E – Seu nome completo... NINI – Neusa Paes de Oliveira Miranda. E – A senhora tem 89 anos... E quais são as histórias que a senhora tem na lembrança sobre o rei Sebastião? NINI – É do touro... Ainda não lhe contaram? É o touro que aparecia... que era o touro de Rei Sebastião. Tinha... certas pessoas, quando era noite, olhava. A [...] era alvinha, né. Ele era bem pretinho. Papai sempre contava. Papai viu . E passava... Muita gente ainda alcançou... em noite de luar. E – Noite de lua cheia... NINI – É, ele se mostrava ali pra torre né... ele passando e um homem amontado em cima. E – E quem era o homem que ia montado no touro? NINI – diz que era o rei Sebastião (...) que era o rei Sebastião. E contanto que muitas pessoas viram e contavam. Esse Zé Mário também sabe. Ainda mais que ele é dessas coisas. E contanto... E também tinha um cavalo, não sei se já lhe contaram. Tinha um cavalo que tinha noite que aparecia . Ainda passou aí na curva da casa de meu sobrinho, né, e eles viram tudinho. Passou (...) aquilo chega tava espelhando. Aqui já se viu muita coisa, meu senhor, já. Por isso que eles dizem digo que a praia é encantada. E – A praia de Lençóis... NINI – De Lençóis. De primeira... eu escutava tudinho papai contar. De primeira, vinha certos navios né, ancorado ali, lá atrás do morro. Levavam qualquer coisa que achavam. Levavam. Ah! Levava... quando ele... parece que pressentia, a embarcação não viajava. Tinha que vir deixar aqui na praia. Tinha que vir deixar na praia. E – E que coisas eram essas? NINI - Às vezes a terra, achavam até ouro... achavam até ouro. Mas não levavam, porque não viajavam. Quando vinham deixar, aí conseguiam viajar. Mas enquanto isso, não deixavam não.
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Entrevista 11 (cont.) Dona Nini tema: encontro da mulher com o rei. NINI – Vou lhe contar outra também que ainda me alembro. Ali no Valha-me Deus tinha um senhor que botava zangaria ali pra banda ali da Parida. E a mãe dele sempre vinha né pra tecer a zangaria pra ele. Aí ele saia pescando com os companheiros a rede, ela ficava sozinha ficava sozinha tecendo zangaria (...) e o rancho era... esse... daqueles fogão a gás né. Ai tava lá tecendo (...) E – Zangaria é o que? NINI - A rede de pescar. E – Ah, rede de pesca. NINI - Tava tecendo, nisso que ela cata o cigarro, que ela fumava muito, e acendeu, que ela olha bem na porta (...) aquele cavalão branco (...) Ai ela disse que sozinha deu um medo nela (...) Aí ela disse com essas palavra s: “Vai embora que eu não to te mexendo contigo. Não venha me espantar, não venha me meter medo. Vai embora” aí ficou, ficou. Depois ela tornou a falar. Ai foi saindo, um homem amontado. Diz, meu senhor, diz que na mesma hora (...) diz que era o rei Sebastião que tava montado no cavalo. E aí ele foi saindo... que ela saiu na porta, ele foi marchando, foi embora pra banda dali da... do Gino, que chama né. E – do que? NINI – do Gino. Pra banda da ponta do Gino. Foi embora. Essa velha via muita coisa e.. mas não tinha medo. Eu digo: “Ah, se fosse macumba... E – E...o rei Sebastião mora onde? NINI - Seu... como é... E – Cláudio. NINI – Seu Cláudio, diz que mora aqui no Lençol. Assim eles dizem, os pajés, que ele mora aqui no Lençois né. E – Mas ele mora é nas dunas ou é no fundo do mar? NINI – Acho que é nas dunas, não sei aonde. Só sei dizer que esta terra aqui é encantada . E – E um dia vai desencantar ou não? Ela vai desencantar um dia? NINI – Não, eu digo que não, né. Eu digo que não. Com o tanto que eles falam. O Zé limão sabe tudo, o Zé Mário sabe tudinho. O senhor ainda não foi no pajé dele? E – Vou lá.
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Entrevista 12 Simião Maximiano (idade?) tema: o rei compra a farinha do barqueiro. Código: simião1 E – queria queria que o senhor falasse um pouquinho a respeito da... o que você sabe sobre a história do rei Sebastião. Dizem que Lençóis é uma cidade encantada, encantada, que é morada do rei, e eu queria saber como que é esse rei? Quem é esse rei? SIMIÃO – SIMIÃO – O O rei é uma pessoa que... posso dizer assim... eu já vi ele. Vi ele ali no colégio, já vi diversas vezes. Eu to lá vigiando o colégio e já vi ele vindo num cavalo . Ta vendo? E eu vou contar... to contando o que meu sogro contava. Contava que...ele morreu com 114 anos, meu sogro. Ele disse pra mim: “meu filho, aqui nessa ilha, aqui nessa praia dos Lençóis...” O Saturnino Oliveira, que é o nome dele. Contava que chegou aqui um homem, chegou vendendo farinha aqui. Não vendeu um paneiro. Aí ele (...) aí ele disse assim...o que tava vendendo a farinha num barquinho. .. disse assim : “se eu achasse uma pessoa de coragem, eu vendia a farinha todinha agora, nesse momento”. Aí ele vai dando com o olho, sobe um homem, um homem subiu e disse assim, ficou na borda do barco, a embarcação embarcação (...) canoa velha... Disse: “você vende a produção?”, produção?”, “vendo toda a farinha”. “quanto é o paneiro?” (...) “dois mil reis o paneiro”. Ele disse: “eu compro todinho”. “onde eu vou botar a farinha”. Ai disse: “jogue tudo dentro d'água”. Aí ele jogou a farinha toda dentro d'água. Eles estavam em três: o dono, o marinheiro e o cozinheiro... tavam no barco. Ele disse: “quem vai buscar o dinheiro? Quem vai buscar o dinheiro de vocês?” ai o dono disse assim: “eu não vou”, o outro disse: “eu também não vou”. Ai cozinheiro cozinheiro (...) a embarcação, disse: “então eu vou. Rumbora”. Aí ele disse assim: “então fecha o olho, fecha o olho”. Fechou e eles desceram. Quando chegou lá no Agrado, que chama Agrado, Agrado, é lá que é o Reino dele, aí ele caiu. E – O O Agrado é onde? SIMIÂO – SIMIÂO – é é ali atrás... E- na morraria. SIMIÃO – SIMIÃO – Na Na morraria. Desceu aí ele chegou lá no fundo, ele olhou, tudo muito lindo no fundo lá na maré. Tudo quanto, é no fundo do mar, tudo quanto é, ouvia tanta zoada, ouvia movimento de gente, mas não via ninguém, não via ninguém. Que ele entregou o dinheiro pro cara. Ele mandou fechar o olho, ele fechou e subiu. Ai ele disse assim: “Olha, o que você viu aqui, você não conta pra ninguém, nada. Se você contar um dia você morre, se você contar, no dia que você contar você morre. Ele subiu. Aí passou um ano, passou dois, passou três anos e ele não contou. Cinco anos ele contou lá no Outeiro, uma praia do Maranhão. Contou no Outeiro aí foi contar e morrer (...)
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Entrevista 13 (cont.) A cobra encantada e o des-encanto Simião código - simiao3 E – Dizem Dizem que aqui é terra dos encantados. Que é a encantaria. O que é a Encantaria? SIMIÃO – Encantaria é o rei Sebastião que mostra aí, passa no cavalo, tem a filha do rei Sebastião, a Jarina... Minha mulher mulher no colégio colégio já viu (...) Ela é uma mulher muito bonita. Aqui também sei que vinha uma cobra de primeiro. É tudo isso, eu vou contar isso tudinho? Uma cobra, ela vinha dum lugar lugar chamado Gino (...) Um senhor chamado chamado Joca, era meu tio, disse que era só furar na cauda dela, só furar com o punhal que ela desencantava a praia e São Luís... Lençóis virava cidade e São Luís ia pro fundo. Assim que ela dizia: São Luís no fundo e a ilha desencantava. E- Aí o reino de Dom Sebastião subia pra cá... SIMIÂO – SIMIÂO – é, é, subia. E ele já tá passando próximo mesmo. O rei já ta passando próximo. Ali tem um morro grande, o senhor viu o morro grande que tem? Tem uma casinha, uma casinha de palha, você não viu? Aquela, numa noite dessa ele veio em sonho prum rapaz aí. Um rapaz aí viu ele num sonho, ele contando pra ele. Quem fez aquela casa . Ele disse: “foi eu que fiz” Dizendo no sonho...ele. “E pra que você fez essa casa?” “Foi um rapaz que mandou eu fazer”. Uma regata que teve aqui nos Lençóis, ele fez a casa né. Disse: “Você fez a casa, se não tirar aquela casa...” Quem fez foi o Lailso n e um outro chamado Platini, que fez aquela casa lá. Disse: “Se você não tirar aquela casa de lá, vaia acontecer um mal pra ele” e por esses dias mesmo ele pegou um acidente de carro. Ta no Cururupu. Pegou acidente... os dois que fizeram a casa pegaram um acidente. E- Ah eu soube...O pessoal a tarde tava me falando do acidente. SIMIÃO – SIMIÃO – é é daqui de Lençóis... construiu. Que ele disse que era, rapaz que disse que lá é lugar do carro dele passar. passar. Ele veio num carro preto e branco. O rei Sebastião que disse . Veio num carro preto e branco. Ele disse que é pra tirar a casa que ali é o caminho dele passar no carro dele. E – No No passado, dizem que encontravam muita coisa na praia. SIMIÃO – Na Na praia... e ninguém levava daqui. Meu pai cansou de dizer. Ninguém levava daqui. Trazia peixe.. E aqui se você fosse viajar, navegar a vela, se você levasse alguma coisa que achasse aqui, levasse um alguidar de barro ou uma cuia de barro, você botava aqui dentro da embarcação, se você não deixasse aqui o barco num...o barco se fosse a motor, o motor pregava ou não navegava (...) e era assim que era...era muito difícil mesmo. Já vi muita coisa aqui. Já vi. E – Você Você disse que já viu... SIMIÃO – SIMIÃO – já já vi. E – e e como é que ele é?
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SIMIAO – SIMIAO – Ele é um homem... um homem enorme, alto. Ele vem branco, ele é branco, já avistei ele num cavalo ... ele passa num cavalo, vem montado, Lá perto do grupo, onde eu to, do colégio. Eu já vi... um cavalo, uma luar bonito... ele gosta de passar, passear mais é verão, no mês de luar, é setembro. Quando tão brincando também a Mina. Ele gosta de passear muito. Outro dia ele passou bem perto de minha casa, minhas filhas viram aqui. Um homem num cavalo, rei Sebastião.
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Entrevista 14 (cont.) Simião código: simião4 E- Tem uma história do tambor... SIMIÃO – SIMIÃO – Do Do tambor? E – É, É, do tambor que toca lá por lado da morraria... mor raria... SIMIÃO – SIMIÃO – Ele Ele é... ali no Camorim que chamam né... E- No Camorim? Simião – Simião – No No Camorim. É o morro do Camorim. Ele ronca lá, bate... e aí no Agrado, Agrado, quando a gente quando vem do camarão, a gente vê a batuta lá no fundo, batendo. Mas não vê ninguém não... E -Quando vende o camarão? Simião – Simião – O O camarão, a gente vem da pescaria do camarão, a gente vê o tambor batendo no fundo. Ninguém vê não. É o rei Sebastião que dizem, é rei Sebastião. Aqui veio um pajé do Maranhão, Sebastião do Coroado, veio aqui, ele disse que aqui... ele mostrou o rei Sebastião mas ninguém vê. E – A A morada do Rei Sebastião é aqui embaixo da terra ou é no fundo do mar? Simião – Simião – Não, Não, é embaixo da terra. Que ali que é a morada dele, aonde ele tá... (...) porque ali no Lençol... ali que é a morada dele porque ali que é a cidade que dizem.. dizendo eles, que é cidade por cima e por baixo. Por baixo é a cidade né. Porque os que já viram lá, já viram, o povo de primeiro já viu um bocado bocado de navio (...) [aqui um homem] homem] lá de Bate-Vento Bate-Vento disse que viu muito navio. Ele chamou um compadre dele chamado (...) eles todinho trabalham num barco pequeno pequeno chamado (...) o barco barco era pequeno, pequeno, era a vela. C hamou: “Ei compadre, vem ver (...) que tá ali no Lençol, no Agrado. Quando ele veio olhar, não viu mais nada. Só viu (...) Então é ali que é negócio. E – E E os navios eram grandes? Simião – Simião – Eram, Eram, só navios grandes. E – E E eles estavam aonde. Simião – Simião – Tavam Tavam encostado assim na areia, no Agrado. Porque naquele lugar você pode chegar lá e cavar, e lá d'água. Pode riscar com a mão que dá água que é uma beleza lá. E- é do lado de lá, da parte de lá do morro. Dá água que é uma maravilha lá. Então ali que o Rei Sebastião... já vimos umas diversas pessoa trazer... já vi umas duas vezes lá gente correr com medo. Um homem. Aí quando ele parece num cavalo, é muita coisa...
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Entrevista 15 José Mário (pajé da ilha), 71 anos. código – código – josé josé mario E- Eu vou falar com o seu José Mário que tem...quantos anos? anos? JM – JM – 71 71 E – 71 71 anos e mora em Lençóis. Você nasceu e se criou aqui em Lençóis... JM – JM – Nasci Nasci e me criei aqui em Lençóis. E – E E o que o senhor tem para dizer sobre o Rei Sebastião? Porque dizem que esse lugar é encantado né. JM – JM – É... É... ele dizem que é, né. Eles dizem porque... diz que Rei Sebastião está encantado aqui na praia dos Lençóis. Que quando eu nasci já achei o anúncio né, do Rei Sebastião aqui na praia... que ele aparecia virado um touro negro. E eu não alcancei assim, que eu nunca vi né... né... um touro negro. Eu nunca vi ele virado em touro negro. E – Quem Quem são eles que contam? JM – JM – Eram Eram meus avós, o meu avô, minha avó, tio irmão do meu avô. Eles contavam que eles viam ele aí no campo, na ilha aí. Debaixo de um pé de árvore, duma tal de almesqueira que tinha, né. Ele aparecia, mas ninguém via a cabeça dele, era só o corpo que via . Dizendo eles, né? Era pretinho, bem pretinho mesmo. [...] porque ele não mostrava a cabeça, era só o corpo. Eu não alcancei ele não. Aparecia diz que mulher, homem assim também. Se saía pra apanhar murici no campo, os homens e as mulheres viam as mulheres também a apanhar murici. Quando mudavam a vista, desaparecia tudo. Não viam mais. Eram quase cinco mulher, elas apareciam na frente deles, conversando e apanhando também. Ninguém via. Aparecia jóias de ouro, tudo, aparecia aí. [...] era santinho, roseta de mulher, brinco de ouro mesmo, as jóias viu. Aí depois recolheram, que aí não mostrou mais. Não aparecia mais. E – Por Por que será que depois não aparecia mais? JM – JM – Eles Eles dizem que é porque foram chegando muita gente e ele não se dava com certa gente e aí ele recolheu. Por que eles achavam muito aí na praia, feito já, as jóias feitas mesmo. Eu ainda achei um santozinho, assim, pequenozinho. Meu pai... minha mãe vendeu pra minha tia, irmã do meu pai. E ela morreu, mas ficou com a filha, com a Nini. Eu não sei se ela vendeu esse santo. Era bonito o santo. E- tudo jóia do rei Sebastião... JM – JM – Humm, Humm, era de ouro, tudo de ouro assim como a gente achava tava perfeito, viu? Não mudava nada, não empretava, era limpinho mesmo. E – E E o Rei Sebastião mora onde? JM – JM – Sebastião mora aí, eu não sei... diz que ele se mudou daqui, mas outros dizem que ele mora aí mesmo. Isso aí eu não sei contar, se ele ainda mora aqui. Ele morava aí
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porque a gente via bater tambor, desses tambor que tão aí. Eles batiam no fundo aí do encanto. E- do rio...do mar. JM – JM – daqui daqui mesmo da terra, né, a gente escutava. E – das das dunas... JM – JM – Das Das dunas, era, batia noite e dia. E – E E ninguém sabia o que era... JM – JM – Era, Era, ninguém sabia se era... Não, até outros diziam: “olha o tambor do fundo. Isso é o rei Sebastião que tá brincando”. Eu ouvi também bater tambor. Eu nem pensava que eu também fosse da mesma religião dele, né. Eu toco tambor aí também. E – O O senhor também toca tambor... JM – JM – Toco. Toco.
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Entrevista 15 NOME: DEUSELINE (Moradora do Porto de Apicum-Açu, dona de um restaurante e dormitórios) Data: 08 de janeiro de 2008 D – O O que eu ouço falar é que lá em Lençóis existem muitas lendas. Às vezes aparecem uns cavalos nas dunas e uns bois muito coloridos, muito preciosos... E – Quem Quem contou isso pra senhora? D – alguns alguns moradores de lá. A gente conversando, eles me falaram isso. Eu não tenho certeza porque eu nunca nunca vi, né. São coisas que que a gente conversando, conversando, eles eles me falaram. Quase a maioria maioria do pessoal de lá são albinos e dizem que os casais negros também têm filhos albinos. Lá os casais negros nunca têm filhos iguais, negros. E – As As pessoas todas sabem que se chegarem lá terão filhos albinos? D – É, É, muita gente já falou sobre isso.
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Entrevista 16 ENTREVISTADO: Nilson Carlos – idade 24 anos, afilhado do José Mário. Ilha de Lençóis (enquanto conta, ele conserta a rede de pesca) E. teu nome... N – Nilson Carlos E – Tua idade... N – 24 anos. E - SIM, conta sua história... N – Sim, a gente falava pra eles (homens que estavam em Lençóis construindo um sistema de energia eólica) e eles não acreditavam. Quando foi essa noite, Seu Branco, 1 hora da madrugada, escutou. O tamborzão estava medonho no fundo da terra, cantando cantiga de Pajé. Aí ele se admirou. Que ele não acreditava, né. Ai ele se admirou dessa história que aconteceu. O meu padrinho, Zé Mário, que é pajé, ele sempre falava que tinha essa coisa. Minha mãe já escutou. Eu posso até lhe levar lá atrás do morro que tem as rachaduras lá, que rachavam quando davam aqueles estrondos de primeiro. Agora não acontece mais isso porque a população aumentou aí, a galera anda em cima das dunas... E – Quem foi que viu? N – Foi Seu Branco, da construção, que ouviu bater tambor essa noite. Ai ele veio e contou pra minha mãe aqui, meu pai. Minha mãe falou pra ele: “Ó, não falei que acontecia essas coisas?”. Ele ficou impressionado. Não deixou ele dormir não, que ele disse. Queria sair fora para escutar o tamborzão que tava rolando aí, cantiga de pajé, era tudo que tava acontecendo e tava incomodando mesmo ele. Ele falou. Passa um monte de coisa. Meu avô já viu esses cavalos passarem aí, umas e outras vezes. Passa correndo. Agora já falaram que o rei se mudou daqui. Não acontece mais essas coisas. Mora ali pro farol, no morro três irmãos, um morro alto que tem. Ele mora lá agora. E – Por que o rei saiu daqui? N – Eles contam que foi porque a população aumentou. Aí ele foi embora. De primeiro acontecia muita coisa aqui. E – E você acredita nisso? N – Rapaz, eu nunca olhei (rindo) mas eu acredito. Porque o seu Branco não era daqui. Ele falava que não acreditava mas quando foi essa noite ele escutou e não fez foi olhar né. Mas ele escutou e não deixou ele dormir mesmo. pode até procurar ele que ele lhe contar certinho mesmo.
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E – O que era que aparecia, que os pais de vocês contavam? N – Era cavalo. A minha irmã, ela tá em Bate Vento (ilha em frente) ela olhou um touro saindo do fundo, da beira (da duna) e entrando na água, lá na praia. Olhou um touro grande, brancão mesmo, espelhando dentro da água, caiu lá fora. Ela tava pescando. Eles falaram que é o rei Sebastião que anda aí, de noite. Ele que é o dono do lugar, né. A morraria faz e desfaz. Num ano tá de um jeito, no outro ano já tá de outro jeito, encantado aí.
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Entrevista 17 ENTREVISTADO: MANOEL OLIVEIRA, MACIEIRA (MACICA) – 74 ANOS - ALBINO 11 janeiro de 2008, Cururupu E- O senhor tem quantos anos? M – To com 74. E -O senhor está a quanto tempo fora de Lençóis? M - Cinco anos. E- Mas o senhor é nascido e criado... M- Sou nascido e criado lá na praia dos Lençóis, na ilha. E – O que o senhor poderia falar sobre o rei Sebastião? Quem é o rei Sebastião? M - O rei Sebastião é um encantado, invisível, lá pros que são da linha... de umbanda, né... é que conhece essas coisas, né... porque minha mãe era. Eles diziam que eu era também, mas sobre essa parte eu não entendo. Eu não nasci pra ser curador, pajé, essas coisas, como eles dizem né... E – Eles dizem que o rei está encantado lá... M – Lá nas dunas de Lençóis. E – Que a ilha é dele. M – É dele... é morada dele. É possível e diz que ele trabalha lá. E eles vê. Eles contam, porque...acho que sim, porque é uma terra que todo mundo que é desse negócio de Encantaria, né, se apresentam lá. Brincam lá por aquela morraria. Eu assisti muito aquela (...) uns daqui, aquele...nome dele...Sebastiãozinho do Coroado, né, foi diversas vezes... Dona Isabel lá de Belém... E outro, o Juraci... E assim diversos. Vem da Bahia, vem de todo lado. E- Conte aí alguma história de coisas que os moradores falam, que o senhor sabe, desde a sua infância, que aparecia por lá. M- Uma vez eles contavam que aparecia uma onça, lá nos terreiros de Mina deles, por lá. Então, um dia uma senhora brincando, por nome Constança, aí essa onça se apresentou lá no terreiro e tal. O pessoal saíram correndo. E no momento, quando eles botaram em cima pra pegar a onça e agarrar e tal, ela desapareceu. Ta vendo? E aí, mas sempre aparecia em qualquer terreiro que eles brincavam né. Assim de quinta e sexta-feira, saía essa onça. E- Mas, que eu saiba, lá é chamada terra do rei Sebastião não só pela Mina, porque todo mundo diz que é terra do rei Sebastião, independentemente de ter Mina ou não. M- Sim, é. E – conte a história do touro. M- O touro eu nunca vi, porque eu não fui assim uma pessoa amedrontada. Não gosto de mentir, gosto de falar a verdade né. Então um dia, um primo meu chamado Joca, que era irmão da Nini. Ele saiu de casa, foi tarrafear, lá tinha uma morraria grande, que hoje já desapareceu. Então, aquela morraria era alta, bonita, noite de lua. Aí ele ia aqui com os cachorros dele, ele gostava de ter muito cachorro, aí uns três a quatro. Quando ele olhou pra riba da morraria, lá está um boi grande, né, aquele touro grande olhando pra fora. Ai ele disse: “Ah, aquilo que é o boi do rei Sebastião”. Aí ele botou os cachor ros em cima. Ai cachorro foi lá, acuou, e tal, ali. Aí quando ele foi se aproximando perto, o boi meteu o galope pra baixo da
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morraria. Ai quando foi chegando perto que a maré encheu lá [...] entrou entre a maresia e foi embora. Os cachorro ficou só lá. Quando foi de manhã, eles foram lá, né. Chegaram lá só viram o rastro dos cachorros, onde eles faziam o rodeio atrás dele, né. Aí desapareceu. Aí o rapaz veio embora. Passou uns três dias com aquele frio no corpo. Só pode ter sido o boi que, talvez, num olhar magnetizou ele. né? Rapaz! E- Seu Macieira, de acordo com os moradores, o que acontecia se matassem o touro? M- Senhor, se matasse o touro, não sei o que aconteceria, né, porque acho que ia ter qualquer coisa. Né. Porque de uma vez que ele é dono lá, ele não podia morrer. Isso é como quem faz uma novela. Tem o autor da novela, né. Então aquele autor não pode morrer na novela. Se morrer a novela acaba [rindo]. Era como ele né. Então ele não pode morrer, todo tempo ele é vivo ali. Agora outra... pelo que eu sei, diz que ele já tá mais pra aquela morraria do farol. O senhor foi lá? Diz que pra lá que ele tá. Porque diz que ele mudava dali que ele não gostava da ilha ter muito morador. Aquilo incomodava muito ele. então ele queria viver numa parte como uma pessoa qualquer né, assim nua reserva, sem zuada. E ali aumentou já muita gente, porque naquele tempo que ele aparecia absolutamente, né, não tinha muita gente não. Era pouquinho. Por isso que os mais, como o velho Saturnino [...], dona Amada e finado Raimundo Silva, que era o Sapiranga chamavam, finado Raimundo Pagode, era só esses aí quase que habitavam lá, esses homens que sabiam contar, viram ele, né, quase presentemente, montado no cavalo. E – Como era a aparência do rei Sebastião? M – Senhor, a aparência dele, eles contam que ele vinha naquela vestimenta assim quase como vestimenta de índio, né, com aquele penacho na cabeça, aquela tanga, né, amontado naquele cavalo, com uma espada na mão. Eles contavam essas besteiras né. [...] E – e o senhor acredita? M – Até no momento dá pra acreditar né. Eu nunca vi, as vezes digo pra eles: “eh, rap az, isso é besteira. Isso é negócio de lenda que vocês contam, né”. Mas como eles diz que eles vê, então eu acredito, porque eu vendo uma coisa também... E- Você tem alguma história de alguém que se assombrou com uma alguma visão? M- Não, não tenho... Não, do que eu sei é eles que se atoam como o Zé Mário, que se assombram, é assombração, esse negócio de pajé. Eu finalmente não digo assim que eu saiba porque eu nunca senti esse remorso, né. Porque eles tem um tal de encantado, uma encantada, é fulana de tal, Jarina, não sei quem mais, Princesa Flora, tem uma porção de lenda lá que eles contam, que as vezes eu fico só escutando eles falar. E- Mas o senhor acredita que Lençóis e terra do rei? M- Eu acho que sim, né. Porque ele chama muita gente de fora [ri]. E- O que essa gente de fora vem fazer aqui? M- Contar essas coisas, essas lendas. Que se passou lá naqueles tempos mais atrás né, nessa
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antiguidade. E eu também fui morador lá há tempo. Hoje to aqui já cinco anos. Mas nesse tempo que morei lá, eu nunca vi, não vi nada. Seu eu visse eu dizia, contava. E meu pai, uma vez também, ele saiu de casa, tinha umas canoas, ele sempre foi dono de zangaria, né. Zangaria é rede de lavado, né, que chamam. Aí ele saiu de casa, chegou lá nas canoa, ele botou água fora, quando ele olhou assim, senhor, aquele cachorrão medonho. Ele pensava que era um cachorro que o finado Romário tinha, que chamavam Prezado, né. Aí ele arrumou as tábuas da canoa e saltou. Quando ele saltou, ele ficou assim meio assombrado, foi lá no cachorro, que ele olhou, cachorro grande. Aí ele só se admirou porque ele tinha assim duas listras branca assim na costa. Aí disse que ainda deu vontade de bater nele, sentado, olhando assim pra fora, na maré. Também ele não bateu. Foi embora pra casa. Quando chegou lá... ele dizendo pra uma dona que era mineira chamada Faustina . Ela disse: “Olha, esse cachorro era do rei Sebastião, e você não tinha que tocar nele. Não lhe deu vontade de você bater no cachorro?” Aí ele disse: “Me deu vontade, mas aqu ilo, no momento, aquilo a modo que me disse: „não bata nele! Se bater nele, tu cai‟”. O motivo que ele não bateu. Mas ele levou três dias com febre, assombrado daquilo. Era meu pai, se chamava Antonio Boron Dias. Ele contava muita coisa que ele viu, num sabe? E outra vez ele foi pra costa tarrafear, só também, porque ele andava muito de noite. E naquele tempo, Lençol era rico de peixe, a costa era circulada dessas tainhas. Se pegava muita de tarrafa [..] Então, quando ele chegou lá [...] quando ele varou um campo, lá viu um guaxinim, vinha de lá, assim, meu turvo, deu um luar limpo e tem noite que tá assim meu turvo, aquelas nuvens. Aí ele arriou o cofo de banda com a tarrafa e ficou esperando o Guaxinim ali. Era uma Guaxinim grande, que assombrava a gente. Ah, meu irmão, quando o Guaxinim veio, que ele olhou aquele guaxininzão com aquele couro vermelho. Aí ele saiu em cima, pega aqui, pega acolá, pega aqui, pega acolá. E certo que ele não pegou. O Guaxinim pulou dentro do matagal [...] Levou cinco dias de febre. O bicho assombrou ele, foi preciso uma outra mulher benzer ele. O bicho era encantado, era do rei Sebastião, tinha saído lá da vila de lá do rei Sebastião. E outra que ele me contava naquele tempo. O pessoal, como agora, sempre vão lá vender qualquer tipo de coisa. E foi um pessoal daí da Cachoeirinha vender farinha. Chegaram lá na beirada, tem aquela morraria logo na encosta?! E naquele tempo a morraria era altona, dava uns trezentos metros de altura [...] Quando eles estão se arrumando pra saltar e oferecer a mercadoria lá pro pessoal né, lá vem um homem, chapéu na cabeça. Chegou: “Que tem aí,mestre, pra vender?” Disse: “Temos farinha”. “Farinha?”. “É”. Disse: “Eu compro. Quanto é a farinha?” “É tanto” “Tá bom, pode descarregar” “Quem é os carregador?” Disse: “Não, não tem problema. Agarre os paneiros, vá jogando aí dentro d‟água” “Dentro d‟água? Ah, aí a farinha não presta.” Ele disse: “Presta que aí já tem que est eja aparando. Vocês acha que tá dentro d ‟água, mas não tá dentro d‟água. Vocês estão jogando em cima da carruagem dele.” Aí eles começaram a botar. Botaram, quando chegou [o fim]: “Rumbora buscar o dinheiro.” “Rumbora.” Aí ele disse: “Só vai um comigo” Quando chegou aqui que ele saltou do barco, o rei disse pra ele: “Ó, fecha o olho. Só vai abrir quando eu disser “abra o olho”, aí você abre.”
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“Tá bom”. Aí fechou o olho e saiu com ele. quando chegou lá que ele disse “abre o olho”, ele abriu, meu irmão, tava dentro do palácio, coisa mais linda que nunca tinha visto na vida. Aí ele entrou lá pra dentro, conferiu aqui o dinheiro e entregou pra ele. “Agora eu vou lhe deixar até onde eu lhe recebi. Feche o olho novamente” Aí ele fechou. Saíram na carruagem. Quando chegou lá, aí ele disse: “Ó, não conta nada pra ninguém do que tu viu aqui, senão com oito dias tu já era”. Aí saíram, vieram embora. Depois de tempo foi que a história saiu. Logo naqueles tempos o cara não contava porque não podia, né. Se contasse, ele morria. Aí também ele não contou. Essa lenda sempre tinha antigamente. Eles contavam, sabe.
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IV. ENTREVISTAS PARA FILMAGEM FEITAS EM JANEIRO DE 2009 Este conjunto de entrevistas integra a segunda visita à Ilha, em janeiro de 2009. São transcrições das filmagens realizadas para o doc.
ENTREVISTA 1 - Teresa ( fita 1) 07 DE JANEIRO de 2009 – APICUM-AÇU [TERESA CANTA] [CANTA] Rei Sebastião Ele é guerreiro militar Ele é pai do terreiro. Desceu na guma É guerreiro imperial. [TERESA CANTA ] Praia de Lençóis é ilha da assombração município de Cururupu do Estado do Maranhão. Eu tenho pena de deixar o meu torrão da princesa encantada filha de Rei Sebastião. Tenho pena de deixar o meu torrão da princesa encantada filha do Rei Sebastião. [TERESA CANTA ] Arrasta as correntes, Sebastião Por cima do Morro dos Três Irmãos Rei Sebastião, Rei Sebastião Arrasta as correntes, Sebastião Por cima do Morro dos Três Irmãos. E -Quem ensina essas doutrinas para a Senhora? TERESA – São os Invisíveis, né. Os invisíveis que ensina, os orixás. E – Quem são os invisíveis? TERESA – Tem muitos, né, porque tem D. João. Tem Rei Sebastião. Tem Ogum. Ogum é este [apontando para a imagem de São Jorge]. E tem diversos. E- E quem é o Rei Sebastião, Dona Teresa?
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TERESA – Ele governa pelas duas partes, porque ele governa na Mina, no Tambor de Mina, ele é Odé, dá-se o nome de Odé, da divindade. E no candomblé ele dá o nome de Oxóssi. E – E a praia dos Lençóis é encantada? TERESA – (1) Dizendo eles que é. Desde que me entendi eu já achei essa lenda de que Lençóis é a Encantaria. Justamente como eles chamam a Ilha da Assombração porque é a ilha dos invisíveis. Então pode crer que é porque ela é reconhecida em todo o mapa do Brasil. Vem muita gente de fora. Não é de agora, é de muito tempo. Desde que me entendi que vem este povo. E- E o que acontece em Lençóis para dizerem que é a Encantaria? TERESA- (2) O que acontece é quem tem vez que algumas pessoas vê, não é todo mundo, porque tudo mundo também não tem a competência. Porque um é crente, o outro não é, uns se desfazem e xingam e... quer dizer que tiram para a mangoça, né. Então pra todo mundo eles não se aparecem, mas pra quem dizer que tem essa [ciência] eles se aparecem. E- Fale aí uma história do rei aparecendo para alguém lá. TERESA- O rei Sebastião...ele apareceu... tudo já estão falecidos... este Zé Mário, ele ainda não usava dança Mina, essas coisas, ele olhou. De noite ele veio do camarão, foi estender a puçá na beira, num lugar que chamavam Lago do Cabaço, ficava aqui no alto da beira, eles olharam o boi. Era ele né, aquele boi muito grande. Os pequenos com medo segurando na roupa dele: “Menino, isso não é bicho nenhum, isso é um boi. É um boi”. Aí foi em cima e os pequenos com medo. Depois desapareceu. Porque dizem que se aparece também em boi, né. Então eles disseram que era ele. Certa gente já viu. Eu que nunca vi assim porque não saio de noite. E a historia do Edmilson quando era pequeno... viu... como foi? TERESA – Qual Edmilso? E – Do Edmundo... seu filho... TERESA – quando ele era pequeno? E – sim, que ele viu a assombração do Rei Sebastião com os cachorros aparecendo.. conte aí como foi. TERESA – (3) O Edmundo, quando ele era pequeno, ele foi botar arapuca, ele com mais duas criança. Quando foi, depois que eles olharam... vinha uma pessoa, todo de roupa vermelha, com um cachorro... um bocado de cachorro. Tudo só numa linha né, numa fila. Que quando eles deram fé que deparou... ele tava perto da moita... aí tinha uma rês pastando. Aí saiu um dos cachorro pra acuar. Ai quando ele virou de frente né. A barba era assim tipo um profeta eu acho né que seja... ai disse: “Passe já pra cá, que você não é daí. Pode procurar seu lugar”. Aí o cachorrinho veio pro lugar dele. Aí foram né... passaram. Quando passaram lá eles foram se escondendo tudinho na... porque olharam que não era gente da praia né. Foram se escondendo pra moitas, até quando ele passou com os cachorros lá pra frente. E aí foi que eles saíram, chegaram em casa tudo com medo. Aí adoeceram. Esse meu filho falava era muito de noite. Ele via tanta coisa. Eu trabalhei, ele ficou bom. Febre... e esse que tava ali, que é meu filho de criação, deram uma palmada nele, de manhã cedo. Ele chorou. Ele dormia na sala: “mamãe, a
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senhora f oi me bater, mamãe, na minha rede”. Eu digo: “não senhor”. “foi sim”... O Edmundo tava ainda variando. Eu disse: “Ah, eu já sei quem foi. Era eles... (4) então o pai deles disseram que era...só podiam ser um reis, um reis porque pela veste, era assim aquele roupão, no traje mesmo como a gente olha no baralho, tem aquela roupa vermelha, né. Só que ele não tava com a coroa. Ele tava a paisana. Então meu marido disse: “Olha, vocês olharam foi o reis, porque nesse traje que ele é.” Ele era pouco descrente, mas acredita certa coisa. Ele ouvia dizer, ele acreditava. Ele era cearense. [parte com áudio ruim e que não vai ser usado] [TERESA CANTA ] Quem bateu na sua porta Foi o Rei Sebastião (bis) Entra, meu pai, com sua espada na mão. (bis) [TERESA CANTA ] Joguei no meio de sessenta espada Nenhuma ofenderam a mim Filha de rei Sebastião É bom, não é ruim. [TERESA CANTA ] Barão, barão, barão de baré Sou filha do rei de Mina Barão de baré. E- O que aparecia lá em Lençóis antigamente? TERESA – Aparecia muita coisa. Era santo, era cachimbo, era pente, era cuia desenhadinha legal... E aparecia muita coisa. Aparecia conta, alfinete, colchete pressão. Tudo tudo tudo aparecia... ouro... muita coisa. E – E a história do cavalo branco TERESA – (5) O cavalo branco...o cavalo branco sempre tem gente que vê... ele sozinho passando, correndo... E – Ele aparece quando? TERESA- [nesse momento ela começa a batucar na mesa. É a memória trazendo-lhe uma doutrina que menciona o cavalo] (6) Eu acho que não tempo marcado quando eles querem aparecer. [canta fazendo o ritmo com os dedos na mesa] Eu vim correndo Em meu cavalo Eu vim correndo Meu galope a beira mar. (bis)
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Mina megê Mina mandeu sarava Eu vim correndo Meu galope a beira-mar. (bis) - Está é bonita, né! E – É bonita. Onde é a morada do Rei Sebastião lá em Lençóis? TERESA- (7) Senhor, rei Sebastião morava numa árvore muito grande, muito alta. Esta árvore está no meio do anseão. Quando eu me entendi, era a árvore mais alta que existia. E o nome dele mesmo era árvore grande. E depois que essa árvore grande caiu modificou muita coisa [...] Meu pai cansou de sair tantas horas da noite para ir tarrafear, lá nessa árvore grande a gente olhava tava pegando fogo e o tambor de mina tocando bonito. Aí ele levanta e chamava: “Ei Doca...”chamava a minha mãe, o apelido dela era Doca... “ê Doca”. Ela dizia: “Oi”. “Olha, vem olhar a árvore grande como tá debaixo de fogo”. Aí eles olhavam né. E olha como tá a festa pra lá, o Tambor de Mina tá comendo, tá tocando de agouro. Tinha vez que ele não ia, receava e não. Tinha vez que ele ia. Quando chegava lá perto, não olhava mais nada, só a árvore mesmo lá. E depois ele perdeu o medo. Essa árvore, desde que derribou, ninguém viu nada...o Tambor de Mina assim com a claridade [...]
E – E o rei mora onde agora? TERESA – (8) Eu não sei onde ele mora agora porque os mineiros de fora, não é nem os de lá, dizem que o rei Sebastião não existe mais lá, já se mudou porque duna porque vira... eu digo: “Meu Deus, mas sem dúvida ele não vai desprezar o que é dele, né. Se ele não mora mais lá, mas ele só pode ter alguma coisa lá, algum palácio. Mas eu acredito que ele mora é lá mesmo. Que o senhor acha, que ele pode ter-se mudado [ri]
E – Vocês então são filhos dos rei Sebastião? TERESA (9) – O povo é que diz que a gente é filho do Rei Sebastião porque traz a sina, como se diz, esse dom. é um dom né, que Deus deu de ser mineiro e tudo. Mas a gente é filho de Deus e filho do pai que fez a gente. Agora no dom, é filho do rei Sebastião [trecho que não será usado...] Este dom quando me apareceu, que veio ali, declaradamente, eu era mãe de dez filhos. Então, eu não sabia de nada dessas coisas, eu não era parturiente, eu não era nada. Com este dom, este força que este dom me deu, justamente eu enxerguei qualquer coisa. Eu tinha doente no quarto só de tratar de doente, eu tive o saber de ser parturiente, faço parto até hoje. [...] Então eu não acredito que a gente faz porque quer. Não, ninguém se faz porque quer. Agora tem o tempo de qualquer dom aparecer na pessoa. Tem o tempo. Ou novo, ou já de certas idades, ou mesmo desde criança... porque ninguém nasce sabendo né... Ninguém nasce sabendo. [CANTA] Rei Sebastião Ele é guerreiro militar O Xapanã Ele é pai do terreiro. Desceu na guma É guerreiro imperial.
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Rei, rei, rei Sebastião Quem desencantar Lençol Vai abaixo o Maranhão (bis) Quem quiser dar neste touro Vai na praia do Lençol Este touro é malcriado Ele é do rei Sebastião. (bis)
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ENTREVISTA 2 COM DONA NEUSA (NINI) (fita 1) 9 de janeiro de 2009 – dez horas da manhã (1)[CANTA] Rei Sebastião Ele é guerreiro militar Ele é pai do terreiro. Desceu na guma É guerreiro imperial. (chora ao lembrar do primo, Zé Mário, recém-falecido, sua filha a ajuda) E- Agora cante a do touro. NINI – Mangunça tem um touro? E- Isso... NINI (Canta) (2) Ê Mangunça tem um boi malhado (bis) Corra boi, corra boi, corra meu touro brabo Malhado. E – A senhora sabe do cavalo branco? Como é que o cavalo branco passa aí? (3) NINI – O cavalo branco passa na frente aí da casa da minha sobrinha... [sua filha completa: “Mas é em noite de luar]. Com os arreios tudinho e o Dom João, o rei Dom João, amontado nele, o quepe na cabeça, preto, a roupa é alvinha, o cinturão branco chega tá espelhando, o cinto chega tá espelhando. Agora os arreios dele é bonito. Chega...quem vê... tá espelhando. Eu contei de uma senhora que tava de salga ali na Ponta do Gino? Eu vou contar essa: A mãe de um mocinho lá do Valha-me Deus...ele salgava na Ponta do Gino, tinha um rancho, uma choupana. Ele tava pra zangaria... que a gente chama... e ela tava sozinha, com o cachorro pretinho. Era de noite. Ela tecendo a zangaria, né, tecendo... quando ela viu aquele assopro bem na porta do rancho. Não sei se Irailde ainda ouviu dizer... Que ela olhou...olhou assim...uma cavalo branquinho, alvinho, né... aquela crina alvinha...os arreios chega tava espelhando...o homem amontado em cima. Aí ela disse: “Ah, mal, mal! vá pra lá. Eu não to bulindo com você. To aqui tecendo minha zangaria, não to bulindo com vocês. Não venha me meter medo que eu sou abençoada de Deus, Jesus... Aí... teve...teve... ela olhando né...mas disse que não ficou com medo. Mas ela disse que ia dizer pro filho dela que quando ele saísse pra zangaria levasse ela... era noite de luar, que ela não ficar lá. O rancho tava todo iluminado dos faroizinhos que se usava de primeiro. E aí... tá bom... Ela: “Mal! Mal! vá embora. Vá embora que eu sou de Jesus. Não sou de negócio de espírito, não sou de negócio de pajelança, não uso isso comigo. Aí disse que teve...teve. ela pegou a rezar. Aí disse que saiu do pé da porta do rancho... saiu e foi embora pela beira da costa, chega foi galopando, ó. E o homem em cima... o D. João em cima. Aí quando o filho dela chegou ela disse: “Meu filho, eu não vou mais ficar aqui. N ão vou mais ficar aqui porque chegou um cavaleiro aqui na porta do rancho e me meteu medo... hem, hem. E me meteu medo...
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NINI - Ela trazia um maço de vara de tinteira... E - Quem trazia? (4) NINI – A minha tia e comadre, a Vicença... Aí ela... a cachorrinha atrás com ela, né... Toda a valença dela foi essa cachorrinha... Senão Rei Sebastião tinha levado ela. Tá bom... aí quando ela subindo, e a morraria ali rachando todinha... rachando todinha. Ela: “ô meu Deus, Jesus”. Aí, tá bom... ela foi... foi subi ndo... A cachorrinha mais atrás. Que quando ela olhou aquele...aquele homem só de tanga vermelha, cabelo preto bem alvo, bem alvo... Era o rei Sebastião. Ela era dessas coisas. E aí ele disse... diz que ele disse bem pra ela... ela contava, meu filho, pra quem queria: “Foi tua valença, esta cachorra, senão tu ia desaparecer”. Aí disse que deu aquele frio nela, com aquele tremor no corpo dela, pra ela subir com este maço de madeira... ah, deu fogo. Aí ela subiu. Quando, que ela olhou pra banda... assim da morraria, né, cadê? Já tinha ido embora. Veio só dizer pra ela. Aí ela chegou, disse pro marido dela. Ele disse: “É, tu anda só, pino do meio-dia por aí por esses matos, tá aí. Isso vai,s e tu não deixar disso, acabando te levando... te levando que ninguém s abe”. Mas disse que bonito, senhor... bem alvo, cabelo pretinho, bel alvo e só de tanga vermelha. Assim que os pajés dizem que ele anda. Só de tanga. E – E a senhora já viu ele? NINI – Não, já vi só por sonho. Por sonho eu já vi ele. (5) NINI - ...Tem mistério. Olha, seu Cláudio, um tempo...tinha ali o pai do Sibá... tinha uma quantidade de gado, né... tinha fazenda de gado. Aí, meu senhor, quando eles vinham com os gados tudinho, apareceu uma canca d‟água de água doce e virou lago que... os gado ia se atolando tudinho... se atolando tudinho. Apareceu tanto toco de massaranduba seco que não sabe daonde saiu daquele meio... não sabe da onde saiu. Por isso que eles dizem que Lençol é encantado... Olha agora como tá entupindo... as morrarias... o senhor ainda não viu como tá? Que não era assim, meu senhor. Aí tinha um campo grande, ali também tinha outro campo grande... agora tá enterrando tudinho. Diz que é quando ele não quer que os morador... papai é que dizia... isso é dizer de gente velho... papai dizia que quando ele tira pra fazer assim essas morrarias é porque ele não quer mais que o pessoal mora na praia. Agora mesmo... Ó... o senhor não tá vendo esse morro bem aí no pé dessa casa nossa? Vem entupir... vem entupir. Agora pro verão vai deixar mais de cavar, de sair terra porque é o inverno... mas o verão nós vamos sair... temos que sair. Agora... pé de coqueiro aí, pé de limão que bota é muito, senhor... é um [...] é perigoso pra nós. Ela já tem um terreno no Apicum-Açu que já tão construindo. E – Pode cantar... NINI – Deixa ver... eu já cantei daquela vez que o senhor veio, né?! Rainha Rosa também ainda não cantei... deixa eu cantar primeiro Rainha Rosa. [Canta] Rainha Rosa O que veio fazer Vem me trazer força Ô me coroar. Rainha Rosa Estrela do dia
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Rainha Rosa Estrela do mar. Rainha Rosa... [fala] eu to ficando com minha voz assim cansada porque eu sofro de... E – E uma do rei Sebastião... a senhora sabe? NINI – deixa ver se eu... [canta] Ondina, Ondina ô Diná, dinô Rainha Dina É mimosa flor. Quando eu não te vejo, Dina Aqui no salão /:Me dá logo ânsia, Dina No meu coração.:/ (6)[Canta] Rei, rei, rei Sebastião Quem desencantar Lençol Vai abaixo o Maranhão (bis)
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ENTREVISTA 3 COM TELMA (fita 1) DIA 10 DE JANEIRO DE 2009, 10 DA MANHÃ TELMA: Ah, essa assim [CANTA] Rei Sebastião quando baixa as coroa Que faz a carne da gente tremer Rei Sebastião, Rei Sebastião Entra em luta pra ganhar e vencer. E – Quem é o rei Sebastião, Telma? TELMA – Ele é moreno, branco, coroa, penacho no pé, aqui ó [mostra a cintura]. Os olhos azul. E – E quando é que ele aparece? TELMA – Ah só... por que ele não...ele só recorre aqui ó... mas ele não mora mesmo dentro da ilha. Ele mora nos Três Irmãos. Mas é que ele comanda aqui, ó. Aí ele se mudou pra cá pro outro lado... lá que ele mora. E – Por que ele saiu daqui? Telma – ah, já muito tempo... o palácio dele era lá no morro mais alto que tinha... que chamam Camorim agora, né... aí bandalhou... era o palácio dele. Aí bandalhou e ele se mudou. Ele e as duas filhas dele: Jarina e Dulcelina... ele se mudou pro outro lado. E – E o cavalo branco... fala do cavalo branco que passa por aí. Telma – Ah, o cavalo branco passa é doze horas, mas é noite de escuro. Não passa assim todas as noites não. Ele passa em noite de escuro, rinchando aí mesmo. mas é doze horas, doze horas da noite. Aí só que a gente não fica com medo. Eu não fico... eu enfrento... até uma visagem com o pau. E- Como que é esse cavalo? Telma – é branco, mesmo que um São Jorge... ele passa meia-noite rinchando aí. Porque só doze horas, a noite de escuro, né todas as noites não. E – Você já viu alguma vez o rei Sebastião? Telma – Já... sou cansada... E – Como? Telma – Ele mesmo assim de vista... bem ele me olhando e eu olhando pra ele. Porque vou te dizer: quem dá essa sorte... outras pessoas não olham. Eu enxergo o meu guia, trabalha comigo, eu enxergo ele de vista. A é poça de tambor, quando nós vamos pro terreiro que vai abrir a Mina, eles vem me dar toque, vem jogar pedra em cima da minha casa, sabe que eu to arrumando a roupa deles pra... pra sair... aí é pedra, eles me dão um abalo no meu corpo... tudo.
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E – E a lenda do touro negro... ele aparece no touro montado ou ele é o próprio touro? Telma – é o próprio touro... né montado não... é o próprio mesmo na ilha né.sempre ele... agora Lençol não é como ele era antigamente... que se achava prata, se achava ouro... a velha Nini, ela tem ouro achado, ouro aqui na beira... Tem uma dona que mora em Apicum Açu que tem [...] nessa beira... até hoje eles tem esses ouro... Lençol, antigamente, [ parte está truncada] o barco chegava mas não saía porque porque ele [...] a terra. Aí barco ia e vinha, ia e vinha... porque, porque a terra tava dentro do barco... eles não pediam. Assim que ele era. Lençol já foi muito grande... agora ele já tá, já ta mais...
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ENTREVISTA 4 DONA ROSA, Ilha de Porto do Meio (1 hora e meia de barco a motor) 10 horas da manhã E – Pode dizer seu nome... ROSA – Rosimaris dos Santos E – Idade, data de nascimento... ROSA – Minha data de nascimento é que eu não sei. Eu sei que eu to com 48 anos. E - E o que a senhora sabe da praia dos Lençóis? O que aconteceu? ROSA – Eu sei que quando eu... fui me aproximando a minha mocidade... aí quando era noite de luar a gente saía pra brincar né... negócio de pegador... aí elas...eu mais minhas colegas saia... aí que quando a gente olhava, pela aquela zuada, a gente olhava, tava aquela zuada... a gente olhava era aquelas carruagem muito linda, linda mesmo, noite de luar...que era dia né. Aí elas diziam: “Rosa, rumbora, Rosa. Que lá vem uma...” Eles vinham da pancada, da pancada que vinha, pro lado do lato mar. Aí tá certo. Aí nós corria. Aí nisso que a gente corria, aí elas dizia: “Me espera”. Tá vendo? Aí quem era, vinha, passava ligeiro, né. Aí entrava pra dentro de Lençóis, mesmo. vinha da pancada pra Lençóis. Tá vendo? Aí a gente olhava, a gente aquelas coisas lindas, né. Era negócio de Louça, colar... isso tudo a gente achava... fita... no meu tempo, né? A gente achava isso tudo. aí... tudo bem... aí passava...passava. aí chegou uns mineiros de Belém, aparecia por lá, ninguém sabia. Aí eles chegaram com um monte de saco de bombom pra dar pras criança... e saiam pras crianças não ir atrás. Que quando a gente...depois que eles saiam, que a gente ia lá, a gente achava aquelas vala grande...era fita de tudo enquanto era cor. Ta vendo? A gente: “Mas o que é isso?” A gente olhava vela acendida, aquelas vela grande, naqueles jarro: “mas o que é isso gente? O que diabo que esses pessoal vieram fazer pra cá? Vieram... será que vieram acabar com Lençóis?” diz que era só negócio de curador. Ta vendo? “mas será que vieram pra acabar com Lençóis?”E vieram acabar com Lençóis mesmo como tá se acabando. E – Agora me diga uma coisa: a senhora tem uma história de alguma aparição pra senhora, do touro? ROSA – Olhei... mas foi nessa pancada aqui. E – Conte aí... ROSA – A gente foi buscar água, eu mais minhas colegas, porque um tempo desse a água fica ruim aqui. A gente foi, né... umas cinco horas da tarde nós trevessemos pra lá, pro outro lado. Aí as meninas disseram assim: “Rosa, tu fica aí cavando o poço?” eu disse: “Fico”. “Ta vendo? Que nós vamos panhar uns guajiru”. Que tem muito guajiru, umas frutinha. Ta vendo? Aí nisso que eu to abaixada cavando o poço elas foram embora apanhar os guajiru delas.. que quando eu vou me erguendo.. quando eu olho... eu olhei aquele boi.. ta vendo? Boi de Rei Sebastião. Era ele, ta vendo? Ele de frente pro mar e costa pro lado daqui. Só que ele tá igual a um boi de brincar, ta entendendo?
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E – Conte de novo... ROSA - eu cheguei lá mais minhas colegas. Aí o poço tava entupido. Elas disse: “rosa, tu fica aí pra cavar o poço?” Eu disse: “Eu fico”. Elas vai panhar os guajiru. Aí elas subiram na morraria, foram panhar e eu fiquei. Nisso que eu tinha terminado de cavar o poço... tu sabe né... a gente só arranha, dá logo água... aí eu cavei o poço, pra mim escoar o poço... quando eu vou me alevantando, que eu fui me erguendo, que eu olho pra cima do muro,t a vendo, quando eu olho, aquele boi, ele de frente pro mar e costa pro lado daqui, da terra, tá entendendo? Agora muito lindo, chega tava espelhando... que quando eu me firmei pra ele, ele sumiu. Ta vendo, aí eles disseram. Aí quando as pequena chegou, eu contei pras pequena né. Aí ela disse: “Rosa, tu é doida. Uma hora pode a terra tremer contigo e tu sumir com tudo”eu disse: “Ave Maria, não diz isso, pequena”. Ela disse: “É verdade. Ta vendo. Isso sabe por que, nós cavemo o poço foi no reino dele”. Ai também, nós enchemos nossas vasilhas. ..era muita água né... enchemos nossas vasilhas e viemos se embora. Quando nós cheguemos aí no porto pra nós pegar a canoa, tava rebentando era muita maresia ali. Eu disse: “ eu não vou lá. Vocês vão pegar o casco, que eu não vou”. E – A senhora contou pra eles a história do encontro da Jarina, a filha do Rei? ROSA – A essa foi uma cobra... essa cobra.. tinha um rapaz... um velho... ele já tava assim um coroa, ta entendendo? Quando foi de noite, porque são quatro filhas que ele tinha: uma é Jarina, a outra é Dina, a outra é Flora e a outra é Diana. São quatro filha que ele tem. [...] é uma sereia mesmo. ai ele garrou, quando foi de noite, ele veio contar pra ela, pra ele dizer pra ela se ele tinha coragem de desencantar ela, porque se ele desencantasse ela o Maranhão ia ao fundo, Lençóis ia ser São Luís e São Luís ia ser Lençóis. Tá vendo? Aí ele foi. Ela marcou um encontro com ele, aonde era, aonde não era pra ele ir e ele foi. Que quando ele chegou lá [...] quando chegou lá, que ele olha, bota rolo de jibóia. Hum?... era um rolo de jibóia... ele garrou, botou a faca na ponta da vara, pra ele achochar ela. Porque se ele tirasse ao menos uma escama dela, ela desencantava e casava com ele. Maranhão ia ao fundo. Ta vendo? Aí tudo bem... ai... que quando ele ia fazendo a menção pra jogar a faca nela, ela se virava pra ele com um sorriso de rir, e ele pensava que ela fosse engolir ele né. Acho que ele pensou... ta vendo? Aí ele não teve a coragem... ele não teve a coragem de desencantar ela. E ela andava atrás de um rapaz que tivesse coragem , ta vendo. Mas só que ele ficou com medo e não teve coragem. Quando chegou em casa... ele era tarrafeador... ai quando ele chega em casa, ele pam, conta pra mulher dele. Que até hoje ele tá debaixo da terra. Que ela pediu que não era pra ele contar. deu uma febre nele... que febre foi essa que enterrou ele. Tu não conhece, mas teu pai conhece. Era aquele finado Joca, que era homem de Mundica. Tu ainda conheceu a velha né. Foi esse. E – E a senhora acredita nessas coisas? ROSA – Eu acredito... eu acredito porque tinha. E – Um dia o Maranhão vai afundar e aqui vai virar São Luís? ROSA – Num afunda agora, o senhor sabe por quê? Porque ele já se mudou. Ele mora em Alcântara. O senhor sabe por que? Olha... ali na costa do farol ali tem um muro dos Três Irmãos e lá neste muro...todo muro abaixa, mas ele não. E lá, só lá que os curador vão brincar pajé [...] e ele se mudou daí porque era muita zoada ali do farol, aí ele se mudou pra
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Alcântara. Lá é que o reino dele agora. Ele frequenta aqui, e o cavaleiro dele passa aqui. Passa porque eu já olhei com meus olhos. Eu tava tirando um bebê, um netinho meu da mama, quase eu dou de cara com ele. Quando ele passou, eu acho que não me olhou. Ainda tinha aquele maracazinho que tem em cavalo que corre de galope, que eles botam pra... vinha sacudindo... e eu com o pequeno no braço. Fui buscar na casa de minha filha. Quando eu cheguei bem de canto do cercado, era meu cercado de outro vizinho meu né. Que quando vi aquilo, vinha... chega vinha taranram taranram... batendo né. Eu disse: “Vige Maria, que diacho é isso heim?” ai eu disse: “Ei Sibá, que é meu marido, abre a porta aí pra mim”. aí ele disse: “O que é?” que quando eu disse, ele deu de peitada na travessa do cercado de Colega, um vizinho meu. Ele deu de peito na bicha assim e voltou pra atrás. Chega vinha tremendo mesmo, desceu nesse rumo aqui ó, caiu na maré aí, quase pisa um velho que tava fazendo cocô bem aí na beira. Isso eu acredito... acredito porque eu já olhei eu aqui tem muita gente que tem esse problemas com bichos d ‟água. E eu digo porque na minha família tem. E – Quem é o rei Sebastião” ROSA – É um encantado. Ele morava ali no Largo do Cabaço, em Lençóis. Lá que era o reino dele.
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ENTREVISTA 5 SEU CHICO, Ilha de Lençóis DIA 17 DE JANEIRO, 9 HORAS DA MANHÃ E- Seu nome completo... CHICO - Francisco Sales Rabelo. E- O senhor é filho de Lençóis? CHICO - Filho...nascido e criado... e morro em Lençóis. E - Quais são as histórias que o senhor tem pra contar do Rei Sebastião? CHICO - Meu amigo... eu morava numa ponta... não tem uma ponta lá acolá? Eu morava lá. Meu pai morava lá e eu morava lá. Então... eu vim fazer uma viagem em BateVento... agora, por meio de sonho, sim? (1) E aqui tinha lugar ali atrás do muro [...] tinha lugar por nome Bordado. E lá que o pessoal de Bate-Vento fazia as cacimbas para encher água para eles levar pra beber. E eu vim fazer essa viagem no Bate-Vento. Quando chega lá, aí me deu vontade de... me deu sede, né. Eu botei o férreo na canoa e fui beber água. Quando eu fui me abaixando pra meter a mão na água pra botar na boca, foi quando disseram assim pra mim: “ Cê não mete a mão aí que a empregada do rei vai lavar roupa”. Agora eu olhei, tava só eu e a barreira lá [...] Aí vai eu disse assim... Digo: “E quem tá falando pode aparecer que eu quero ver”. Disseram pra mim assim: “Espere um pouco”. Fiquei esperando. Quando eu dei fé, apareceu aquele homem na barreira do poço. Disse: “Olhe, entre que o rei quer falar com o senhor”. Aí eu: “E por onde que eu vou?” “Passe por aqui”. Nisso que eu me abaixei pra ir debaixo da barreira já fui pisando certo no degrau, no batente da janela do palácio. E o palácio é escritinho aquele ali [aponta para o prédio do colégio, única casa feita de alvenaria na ilha]. Aí eu olhei e ele tava deitado numa rede, num escritório assim, uma mesa assim... aí entrei, cheguei lá aí o moço disse: “pronto, rei, ta aqui o moço”. Ai nós fomos conversar. Eu disse: “Rei, como foi pra você vir pra cá?” Disse que foi porque ele era rei em Portugal e ele queria descansar e ele queria dar lá a vaga prum sobrinho dele: “E o rei de França e de Espanha queriam que eu desse pra eles. Então eu disse que eu não podia dar pra eles. Eu queria dar pra meu sobrinho que eu queria descansar. Então eles me disseram que... aí manifestaram uma guerra”. Ai ele imaginou que ele só pra brigar com dois não dava. Ele podia perder. Aí ele ajuntou o pessoal dele, botou dentro do navio e fugiram. Que quando ele chega aqui nessa barra aqui... ele chega no lombo de terra que a maré passava, quando maresia vinha, lavava, escoava e ficava seco, ele mandou ancorar o navio. Quando ancorou o navio ele mandou botar o escaler dentro d‟água e convidou Antonio Luís pra ir com ele. Aí quando eles foram
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chegando lá na croinha, ela foi descobrindo, ele foi espetando com espada dele. Quando ele espetou a espada dele, se encantou... ele com navio, com tudo. Eu digo: “Rei, mas lá tem uns pajés que dizem que você não mora mais aqui...” Disse: “Não moro aqui? Eu moro aqui. Este lugar aqui quem fez foi eu. Esta croa foi crescendo e a água não foi mais lavando, foi nascendo mangue, foi fazendo a ilha. E daqui eu não saio. Agora eu, em cada Encantaria, eu boto um pra tomar conta. No Manuel Luís é o Antonio Luís”. Aí ele se alevantou, pegou um espelho assim e: “Mire aqui!” Eu mirei. Senhor, era uma coisa muito linda... Disse: “Olhe, eu vim ontem de lá. Agora eu passo um mês em uma, passo um mês em outro, mas o lugar meu é aqui. Aí tivemos conversando e ele disse: “Você quer ver o casal de filho meu?”. “Quero” Ai ele chamou e disse: “Ó, aqui eu to bem porque na hora que eu chamo meus filhos eles me atende m. E lá vocês não tão bem que pode ter uma guerra e leva o filho de vocês tudo. sim. E vou lhe dizer mais uma: que encantado ano morre. Fica velho, mas não morre”. Sim senhor... Disse: “Tá certo.” Aí ele disse pra mim... disse... [aponta para o colégio] assim mesmo como era aquela... agora aquela sala era dessa banda daqui do sul, né. Ele era pintado do jeito da pintura do palácio dele, mas mudaram a pintura... aí ele disse: “Você quer ver, vamo aqui.” aí ele foi e abriu o quarto né...abriu o quarto que eu olhei, senhor, roupa de brincadeira desse pessoal que brinca pajé...tinha muita, tinha muito...só menos preta que num tinha. Tinha de toda cor, menos preta que não tinha. Disse: “Tem outro quarto pegado, agora esse aqui. Agora esse aqui eu num abro pra você ver porque aqui moram os espíritos dos que morrem lá que são pajé... quando morrem o espírito vem pra cá. E os que não são, não vem...” (2) Aí tivemos conversando... e o moço veio: “Rei, quem vai levar o moço?” Disse: “Não, quem vai levar ele é eu”. Aí fomos andar muito. Andemo muito. Aqui, viemos por aqui [aponta o norte da ilha], tudo no fundo aí, me amostrou um boi, o touro azul, me amostrou. Tem o casal. Tem o boi e a novilha azul. Me amostrou... aí fumo.. que quando nós chega lá na ponta a terra levantou assim uns dez metros pra riba. Eu saí, eu subi e ele ficou bem na porta. Aí eu gritando pro povo né. Isso era umas quatro horas da madrugada. Eu gritando pro povo que era pra vim ver ele [...] Aí eu amanheci atordoado, com sono. Meu amigo, levei sete dias dormindo na areia quente. Não comia, num bebia. Aí minha mãe, tinha uma senhora no Bate-Vento por nome Constança, e era pajoa, né. aí ela pegou uma camisa minha e foi lá. Ela foi chegando na porta, ela foi olhando e disse: “Ah” (ela se tratava por minha Angélica...) “Ah, minha Angélica, se encontrou a vontade com o desejo. O rei tinha vontade de ver ele, ele tinha vontade ver o rei. Leva este
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banho pra ele”. Nem pegou na ... trouxinha. Ai ela veio, ai me banhei...fez o banho, me banhei, pronto, fiquei bom. E assim foi. Lá nessa croa é o palácio da princesa da Luz. Ele me levou lá... E – Como é? CHICO – Princesa da Luz, é... mas muito bonito... a parede é só no azulejo... aham... aí passou e ele me mostrou tudo. Aí ela chegava... ela muito bonita... ela dizia: “Você sabe com quem tá conversando?” “Não, não sei...” “É a princesa da luz”. Aí nós saímos de novo... E – Onde é que fica o palácio dela? Da Princesa da Luz? CHICO – só por meio... dos caboclos, né.... quando eles tão brincando aí ela abaixa e pode falar com ela. Mas muito bonita... E – Como é...o que vai acontecer ao senhor depois que o senhor contar a história? CHICO – Me dói a cabeça... E – Por quê? CHICO – (3) Não sei que mistério, porque ele me pediu que eu não contasse pra ninguém né. E eu conto. É... eu conto e aí me adoece. É... ele disse: “Ó, não con te pra ninguém essa história aqui que eu vou acabar com esse...” porque o pessoal vem encher água é com muito barulho e ele não gosta desse negócio de barulho. Ele vai acabar. Acabou mesmo. e lá arranhava e ta aí água doce... E outra vez nos tornemos conversar, né... ele... eu morava ali assim [aponta para o lado do colégio]. Ele mandou um... o dito camarada num cavalo e mandou um pra mim. e mandou esse camarada vir. Agora ele foi ficar aqui... num lugar que tem aqui por nome Enseadinha... Uma casa muito grande, meu amigo, muito grande. Ele foi ficar no derradeiro quarto. Agora era toda cheia de porta. Entrava nessa aí, varava nesta aqui. E o negócio ia assim. Ele foi ficar no derradeiro quarto. Aí nós fumo. Aí eu já fui deixando ele, fui deixando ele, fui deixando ele... inté quando chegou na porta, eu já tava na frente dele. Aí entrei... que quando eu cheguei lá, que ele me olhou... ele fez com a mão assim. Eu apeei o cavalo, não demorou o outro chegou. Ele disse: “Olha, você volte, que ele tornou lhe ganh ar. São três apostas que vocês têm, vocês dois. Se a derradeira você não ganhar, você fica aqui”. Aí se alevantou, pegou uma bola grande, branca, assim...apanhou ela no escritório, pegou,,, disse: “Olhe, o seu retrato tá dentro desta bola”. “É, senhor”. “Tá dentro desta bola. Volte!” Aí eu voltei. Tá... aí foi a conversa... isso aí...pra cá não tem água...é só estrada...mata de terra firme... a água é só por riba. E – Seu Chico, como que é o rei... o jeito do rei? Chico – É no jeito... você não viu ontem o retrato dele? Nesse jeito mesmo... é... que ele é. Nesse jeito mesmo. E – E o senhor acha que aqui vai desencantar um dia?
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CHICO – aqui ele... não... (4) se desencantar aqui, Maranhão vai ao fundo... é.... isto aqui já bandalhou muito, meu amigo. Já bandalhou. Isso era muito grande. Isto era mata, tinha mata. Já bandalhou muito, a maré já vem bem aí. E – e o senhor acredita que vai desencantar? CHICO – Eu penso que não. (5) Pode talvez não desbandalhar tudo, mas desencantar... porque já teve o tempo que era pra desencantar. Mas eles não tinham coragem. Porque quando tem uma coisa, vem por meio de sonho, né... Então aqui tinha um tio da minha mulher que ele sonhou... uma noite...ele tomava conta do gado... e ele sonhou que era pra ele ir num campo que fica aqui pra Ponta do Gino, um campo grande... que era para ele ir no campo grande e ajuntasse o gado todinho e botasse no caminho do mato... o caminho do mato fazia um muro daqui e daqui e subia...era o caminho. Que quando ele passasse com o gado lá, tinha lá uma cobra, que era pra ele fazer um pouquinho de sangue nela. Ai... amanheceu... quando foi umas três horas ele foi. E chegou, ajuntou o gado todinho, botou no caminho do mato, o gado não queria passar, ele cortou uma vara, surrava o gado, assim eles subiram... que ele vai passando... ele disse: “rapaz a cobra podia ter um meio metro, mas era muito grossa, vermelhinha, né”. Aí ele não teve a coragem de fazer o sangue nela. Então ele corta uma galho de mato e deu uma surra nessa cobra... que ele. Diz ele que a cobra não se bulia. Ele surrava e nada. Ai ele disse “Não, ele vai embora... botou o mato fora. Quando ele subiu, a cobra deu um urro que quase derruba ele. Inté na beira da cova se escutava. Ele levou uma semana que não comia nem bebia, com febre. Se não fosse essa dona que falou com minha mãe, ele tinha morrido. É porque se ele fizesse o sangue.... se fazer o sangue, o sangue cai na terra e desencanta. Mas nessa hora ele não teve a coragem. Outra vez eu botei rede aqui...essa aí... a do rei já passou [referindo-se às narrativas sobre o rei]. Vou lhe contar mais essa. Eu botei rede aqui numa ponta aqui que chama Ponta do Gino, né...ponta do Camorim. Noite de lua bonita... lua cheia. E fui despescar a rede e não deu nenhum peixe. E quando eu chego bem na subida... que sobe pra cá... eu ouvi aquele barulho de peixe... aí eu disse... eu disse: “Ah, isso é a sardinhada. E o peixe tá em riba da sardinha. Eu vou dizer pra esse filho meu, Rosa, vir pescar aqui que o peixe tá aqui. Que quando eu vi aquele peixe correr por debaixo... aquela sardinha pulou na frente e o peixe correu por debaixo da croa, topou na terra, se alevantou um homem. E a peixinha também quando topou, se alevantou uma menina, dessa alturinha assim, alvinha. Aí ela passou por detrás das minha costas e subiu praquele morro ali que chamam morro do Estrondo. Subiu pra lá. E ele veio e disse: “Você tá gostando da brincadeira?”. Eu digo: “Não, eu to pensando que é um cardume de peixe na sardinhada”. Ele disse: “Não, é nós que tamos brincando”. Ele disse: “Você não quer que eu lhe acompanhe até na sua casa?”. Eu morava lá pra frente daqueles coqueiros. Lá eu tinha uma casa boa. Ai eu disse”Quero”. Disse; “Você não tem medo?”. Eu disse‟”Não, senhor, tenho medo não”. “Você sabe com quem você tá falando?”. Eu digo: “Não, não sei”. E ele: “você não vê falar lá... os pajés não cantam um Caboclo Roxo?”. Disse: “Cantam.”. “pois é ele”. Aí nós viemos, meu amigo... assim como tá nós conversando. Fomos conversando.. quando nós chega na casa, eu chamei a mulher pra vir abrir a porta da cozinha e a casa era ... tinha o quintal e tinha o portão. E ele ficou bem no portão. Que ela veio abrir a porta da cozinha, ele voltou, e ela olhou e disse: “Ah, rapaz, aí vai um homem, um homem assim escuro...”Eu digo: “Ah, isso é gente que vai despescar rede”. Depois eu contei pra ela que era ele... caboclo roxo. Como o rei foi um sonho e com esse nós andemo junto. Assim como nós tamo aqui. Ah... ele pegou rir.
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E – como que é... que você falou? CHICO – (6) Eu falei pra ele se fosse pra me encantar né, como ele disse, que se eu não ganhasse essa outra aposta eu fico, eu quero pra ir com corpo e tudo, né só alma não. Ele riu. Hum hum... O nome da filha dele é Jarina e da moça é Ondina. Mas é bem alva, ela com o cabelo amarelo, crespo, em riba dos ombros. Sim senhor...
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ENTREVISTA 6 MANECO, Ilha de Lençóis DIA 13 DE JANEIRO, 10h30, 2009 Temas: brincadeira do boi, composição de toadas, fundação mítica da ilha, metamorfoses do rei Sebastião, histórias dos avós.
E- como acontece a brincadeira do boi? M – A brincadeira do boi acontece tá com quatro anos. O primeiro ano foi... essa brincadeira só quem brincava era as crianças. Aí, depois, o pequeno convidou a turma dele, só do mesmo tamanho, né. A fizeram um boi, dumas palhas, que eles fazem um cofo, que a gente trabalha em negócio de pescaria. E enfiaram uma vara na frente, fizeram amadeira, amarraram um pano atrás, fizeram, pra dizer assim, o rabo do boi né, vamos dizer assim. E aí continuou. Quando foi no outro ano, ele garrou, fez um de isopor. E eu sempre participando da brincadeira junto com eles. Só que eu não cantava nada, né. Nessa época eu não cantava. Aí quando foi no próximo ano, nós ganhamos um boi. Boizinho pequeno mesmo, um professor dou o boi aqui pras crianças. Aí eu entrei dentro da brincadeira. Ai foi justamente como fiz essa primeira toada que vou cantar pro senhor ver aqui. Que dizer assim. [canta] Aê comunidade Presta sentido E veja o que eu vou contar. No primeiro ano nós começamos com um cofo No tivemos um boi, mas foi feito de isopor. Já este ano nós tivemos mais cuidado Ganhemos um boi de verdade Para este povo olhar. Essa foi a primeira toada que eu fiz pro boizinho dele. Ai depois eu fiz outras toadas... que canta assim... [canta] Tarde da noite Quando eu vi relampear Não se compara com as estrelas Mas é o brilho dos nossos bons peitoral Esses enfeito nós mandamos compra Na capital São Luis Pra ela vem de Brasília Porque é federal Quando eu cheguei na fogueira Aviso os meus componentes Com que todos fiquem cientes Que estou seguindo em frente Quem quiser me conhecer Agora estou presente.
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Mas é isto vaqueirada Que eu tenho pra dizer Quando eu sopro meu apito É hora, vou guarnicê. Que o guarnicê e a hora que a turma leva pra cima, né. Aít em outra que fiz assim, que diz assim: [canta] Corre, vaqueiro, vai buscar o boi Que este povo de esperar já está cansado Primeiro passa a mão pelo pêlo dele Aduma ele, bota o Fama no cercado. Essa é uma de buscar o boi, pra trazer o boi pra dentro do [terreiro]. Tem outra que diz assim: [canta] Meio dia, meu boi descansa Lá na sombra do pomar Mesmo ele estando preso É melhor não descuidar /: Ele quebrou o cercado E mandei os vaqueiros pegar Foi achar ele pastando Na avenida beira-mar:/ Que a avenida beira-mar é aqui [aponta a praia] e a gente vai descendo. E – Quais são as partes do boi? Como se divide a brincadeira? M – Varias partes, pra cada apresentação, a gente tem de fazer uma toada. Primeira toada que a gente canta logo é a reunida. [canta] E vamo reunir Nós vamo guarnicer. Essa é a hora de fazer couro gemer. Essa é a hora de fazer couro gemer. Quer dizer que essa daí é a reunida do boi. Que a gente chega na fogueira e vai fazendo essas coisas todinha assim. Eu tenho muita toada. Só que, como to lhe dizendo, o senhor me pegou desagarrado, né. Mas tem outras toadas que diz assim. Tem uma toada muito bonita aqui que eu to pelejando pra ver se eu me concentro com ela, pra poder cantar. Aqui: [canta] No dia 5 de março Convidei meus companheiros Pra nós dar o primeiro ensaio. Convidei, avisei Do meu lado eu não caio
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Vou brincar com o boi na frente E São João me defender. Encostado na fogueira Vou fazer meu guarnecer. Vou discriminar em versos Sei que vou fazer sucesso E sei que minha memória dá Este boizinho já tem revista e jornal Já tem revista e jornal Rolando pela cidade. Tem uma que diz assim... Isso é um “urrou”. Na hora da mudança do couro, que é pra ele urrar, pra poder a gente botar ele pra rodar. [canta] /:Urrou meu boi Meu novilho de primeira:/ /:Ele urra saudando Entre mulher e menina Entre os 14 país Da América Latina:/ [ ri ] Pois é, ele bem curtinha, só que pra ele urrar mesmo, pra dizer que o boi tá vivo, né. Em cada uma coisa dessa, a gente vai representando... E – Agora me diga uma coisa. Essa praia dos Lençóis é praia dos encantados, do rei Sebastião por quê? M – Olha, aqui, assim conta meus avós, que essa praia foi fundada, eu não sei nem qual a época porque não tô lembrado. Disse que era no tempo duma guerra que teve, já muitos anos, né. Então, o rei Sebastião fugiu da África pra cá. Quando chegou aqui nesse lugar, o navio afundou, né. Aí o navio afundou, gerou essa praia. Contando os mais antigos, né. Gera essa praia aqui. Só que antigamente, meus avós contam, sempre contavam essas historias pra gente, e a gente sempre repassa pra outras pessoas, né... que antigamente aqui tinha muitas coisas. O que eu conheci mesmo aqui foi só o Tambor de Mina no fundo da areia. Esse aí eu conheci ainda. Era aí tarde da noite, a gente se acordava pela tamborada no fundo da areia. Aí, depois, eles achavam coisas de ouro e viam muitas visão a noite, né.. que ele passava. Tinha um cavalo... diz que passava aqui toda [...] isso eu nunca vi até hoje. Pode ser que eu ainda enxergue ainda, mas nunca olhei. Mas eles contavam que tinha esse cavalo aqui que sempre passava aqui. E aí ele ficou permanecendo aqui direto na praia. Aí, de certos tempos, as geração... porque quando essa praia gerou aqui, era só as três famílias que veio pra cá. Era três irmãos e três irmãs. Os três irmãos vieram de Itacolomi, que era família de meu avô. E as três irmãs vieram de Turirana, aqui um lugar atrás de Apicum-Açu, que veio com os pais delas, que vieram morar pra cá. Aí eles fizeram as duas casinhas deles, e foram morando. E ali eles foram
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trabalhando, eles foram crescendo, foram gerando e cada qual casa com uma delas, né. Aí casaram, foram surgindo essa família. Daí foi chegando os de fora e foi aumentando. Ai era uma praia que tinha muita fartura de peixe. Não era explorada por ninguém. Tinha muito peixe, camarão. E sempre a notícia ia correndo. Aí o povo vieram se mudando, vieram melhorando e vieram se mudando pra cá, até hoje em dia. Aí quando foi a geração foi aumentando, quer dizer que essas coisas de antigamente foram desaparecendo. Porque aqui, eu ainda conheci muito...que era o Morro do Camorim. Ele era muito alto, a gente era moleque nessa época, não conseguia subir nele. Só de alto que ele era. Era o primeiro morro daqui da frente. Aí uns certos tempos, apareceu uns estrondos embaixo dele, do morro, quer dizer que ele desapareceu. Com pouco tempo ele desapareceu. Hoje em dia ele não existe mais, tá só a beira da pancada mesmo. aí não sei pra onde foi que ele foi. Aí muitos curador diz que ele [o rei] se mudou daqui pra outra parte. Agora ninguém sabe pra onde ele foi, pra onde ele não foi. Mas sempre as vezes ele visita aqui. E – Como é que ele visita aqui? De que forma? M – Porque as vezes ele sempre visita assim nos curador. Ele vem no tambor, só que... a gente chama, ele vem. Ai a gente conversa com ele e ele conta outras histórias mais melhor né. E – E essas visões que as pessoas têm aqui pela praia, pelas dunas... Como é que ele aparece? Que visões são essas? M – As vezes ele aparece um pessoa, viu? E as vezes ele se transforma num pássaro. Às vezes ele se transforma num negão. E às vezes ele se transforma num touro também. Isso tudo ele [se] transforma. E a gente sempre olha. Teve até um senhor ali do Turiaçu. Aí ele veio pra cá. Chegou aqui, ele veio vender banana. Quando chegou ali no morro ele começou querendo esculhambar o rei, né. Quando ele saiu daqui pra lá, ele já foi louco da cabeça. Aí ele ficou doido. Ele foi amarrado na embarcação dele pra levar pra fora. Por que antigamente, meus avós contavam que ninguém levava areia daqui. Não podia sair, né. Pra outro lugar não se garrava areia daqui nem água daqui sem não pedir licença. Se não pedisse licença... porque a embarcação não conseguia viajar. Mas isso já tá uns anos atrás. Eles foram a primeira geração [os avós]. Eles sabiam contam muita coisa e tinha muita história que eles contava, mesmo aqui né. Aí eles sempre contavam que ele se transformava numa cobra e precisava de uma pessoa de coragem para ver se furava a cobra, pra ela desencantar aqui. Aí só que nunca achou uma pessoa de coragem pra querer desencantar essas coisas. Aí quando chegava ela se apresentava pra aquela pessoa e eles não tinham coragem de cortar a cobra. E – Como era essa cobra? M – Era jibóia. Só que quando ela aparecia, as vezes ela dava um assovio estranho ou dava uns berros. Aí nego ficava com medo e não cortava ela... E – E se cortasse, o que acontecia? M – Diz que desencantava aqui. Agora eu não sei se é certo ou se não. Na minha geração já não enxerguei esse tipo de coisa assim. Agora só no tempo dos mais antigos.
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E – E o que ia desencantar aqui? M – Diz que ia abaixo o Maranhão, né, e aqui ficava Maranhão. Ficava cidade. Diz que era. E – E o senhor uma toada que você faz homenagem ao rei Sebastião ou ao touro? M – Tenho. E – E o senhor pode lembrar? M – agora no momento eu acho que não... [ele se lembra de doutrinas do tambor] [canta] Rei, rei, rei Sebastião /:Quem desencantar Lençol Vai abaixo o Maranhão:/ Pois é, aí o tambor completa e o povo ajuda a gente. Mas essa aqui eu quero que o senhor grave na hora do tambor. Porque aí, tá com toda força, e ele chega. E ele pode cantar muito mais né. É... E tem outras que diz assim: [canta] Arrasta as correntes, Sebastião Em cima do morro dos Três Irmãos. /:O meu pai é rei, ah, o meu pai é rei:/ Eh, arrasta as correntes, Sebastião Por cima do morro dos Três Irmãos. E – Onde fica o morro dos Três Irmãos? M – Aqui no farol. Só que ele bandalhou também. Quando esse aqui desapareceu, ele lá desapareceu também. Aí fugiu os dois de vista. Que daqui, quando a gente subia em cima dele, olhava o outro lá no farol, por cima do mangue. Era muito lindo. Essa praia aqui era muito bonita, era grande. Isto aqui já é o finzinho da praia. Essa praia era muito enorme pra cá. Ali na beira da costa, que a gente passa, muito pra lá daqueles cata-ventos, pra lá é que era a casa dos meus avós. Tinha uns pés de coco lá até na beira da água. Tinha a primeira embarcação que naufragou lá, era o Anatólio. Foi no tempo que veio um pessoal daí do Ceará. Muitos também foram casando por aqui e foram ficando, como tem o Passamina, que uma família, é o marido da Maria Teresa, você não passou lá? Pois é, era o marido dela. Ele era de Fortaleza. Ele veio nessa época desse navio que se quebrou aqui na Ponta da Estrela e aí botaram o nome dele de Anatólio porque o nome dele era Anatólio, do navio. E aí ficou o nome. E daí pra cá veio se quebrando um e outro. De vez em quando fica um. Quando não é navio é alguma embarcação. [A lenda da farinha] M – Os rapazes vinham de Boa Esperança. É outro lugarzinho que tem pra cá. Então eles vieram vender farinha pra cá. Pro Saturnino. Ele comprava sempre farinha aqui pra vender pro povo daqui da praia. O comerciante que tinha aqui era só ele. Quando foi na travessia dali do Valha-me Deus [uma ilha] pra cá, o vento se acabou. Não ventou mais nada. Ali ficou. Era barco a vela, nesse tempo não tinha motor, e o pano
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ficou jogando, ficou jogando e eles botaram o ferro pra não descer pra fora [pro mar alto]. Quando foi no outro dia, começou a rajar um ventozinho. Eles disseram: “Rapaziada, vamos puxar o pano e vamos entrar pra Lençol” . Quando eles puxaram o pano, foram arrancar o ferro. Arrancaram o ferro, na hora, o ferro não saiu. E agora, a canoa só tinha um ferro. Ele disse: “Rapaz, tá russo!”. E ficou com o barco na água. O vento foi arejando, foi arejando. E eles começaram a tá forcejando, forcejando, a maré crescendo e nada do ferro arrancar. Quando eles olham pra trás, vinha um cavaleiro, correndo em cima do mar. Chegou e disse: “O que é que vocês tão fazendo aí?”. Ele [o barqueiro] disse: “Nós tamo pelejando pra ver se nós tira o ferro do barco que tá engatado”. Ele disse: “Olha, o ferro de vocês tá engatado no quintal da casa dele [o rei]”. “No quintal da sua casa?”. “É!”... Disse [o rei]: “Que que vocês têm aí pra vender?”. Disse [o barqueiro]: “Nós só temos farinha”. [o rei] Procurou a quantia da farinha. Fizeram o valor. Ele disse: “Agora, vai com ele, buscar o dinheiro e desengatar o ferro”. Diz que um montou na costa do cavalo e ele disse: “Fecha o olho”. Ele fechou o olho, o cavalo desapareceu. Quando chegou lá na casa dele, era uma cidade muito linda, um castelo muito grande. Ele garrou e disse: “Olha onde tá o ferro de vocês engatado”. Tava pregado na argola de cimento. Garrou, desengatou, ele pagou. Ele disse: “Agora fecha os olhos de novo”. Ele fechou, ele [o rei] levou ele lá, fez o pagamento. Foi como eles conseguiram vir embora pra cá. Se não fosse assim não saíam, de jeito nenhum. Era perigoso, antigamente aqui era russo. Era meio brabo. E tinha muitas histórias que eles contavam, só que às vezes é muita coisa, a gente não sabe de tudo, e vai se esquecendo. [canta] /:Vou deixar uma lembrança A todos meus conterrâneos No lugar onde eu nasci.:/ Foi aqui que eu me criei Por isto sou educado. Aonde existe ordem O chefe é respeitado.
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ENTREVISTA 7 ROSA E PICHA, Ilha de Lençóis DIA DE JANEIRO, 10h30, 2009 Entrevistador – Qual teu nome, Picha, completo? PICHA – Meu nome é José Domingos Oliveira Entrevistador – Quantos anos? PICHA – 38. E – E o seu nome, Rosa? ROSA – Maria de Fátima Azevedo. E – Quanto anos você tem? ROSA – 35. E – Como foi que começou a brincadeira do boi? ROSA – O Carlos Alberto, ele surgiu (começou) a brincadeira com um cofo. Aí, a partir desse momento ele foi deu continuidade e achou esse amigo que foi a Juliana e o Léo que comprou este boi e doou pra ele. E – Como era a brincadeira que ele fazia? ROSA – A brincadeira, ele pegava um cofo (balaio), pegava as toalhas daqui de casa, enrolava, torcia, fazia o rabo do boi, colocava, e pegava dois pedaços de pau e fazia aqui a madeira (o chifre). Aí ele saía na rua com a criançada. Os comerciantes pegavam, chamavam ele e perguntavam se ele não queria ganhar suquinho. Aí ele ia. No momento ele não tinha as toadas direito, aí ele cantava reggae, ele cantava brega (risos). Com isso ele foi dando continuidade na brincadeira dele. No ano de 2005 foi que ele ganhou este boi do Leo mais a Juliana, do Rio de Janeiro. Aí desde este ano, a gente já botou três anos, não vamos botar este ano porque...por motivo de morte, mas para o ano nós continuamos com a brincadeira. E – Que história você contou pro Danilo (turista) sobre as toadas que ele (o filho deles) deveria fazer pro rei Sebastião? ROSA – Foi no ano de 2007 que ele falou pro Zé Mário (avô e pajé na época) que ele ia terminar com a brincadeira. Aí ele perguntou por que e ele ficou tímido e não falou pra ele. Aí ele disse: “Não, vô, eu vou terminar a brincadeira porque eu quero entrar na crença”. A aí ele (o avô) disse: “Mas por que tu vai terminar com tua brincadeira, meu filho, que tu desde pequenininho com esse dom que Deus te deu?”. Aí ele disse: “Ah, é porque a mamãe não quer mais continuar com a brincadeira. Ela disse que ela não vai mais botar a brincadeira, não vai mais me ajudar”. PICHA – E ele depende de nós, né, de nós dois, porque, sabe, ele é jovem....
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ROSA – Aí, eu garrei e disse pro velho que eu não tinha mais condição de botar o boi porque as despesas cada vez mais caras né, mais brincantes chegando...
PICHA – E nós já tava sentindo que ele já tava doente, né... ROSA – Aí ele disse que era pra ele... se ele tirava duas todas pro caboclo dele e uma pra rei Sebastião. Aí ele disse que tirava até mais de duas. Ele garrou, tirou, e ele começou a achar graça do jeito dele. Aí ele que era pra ele continuar com a brincadeira que ele dar tudo pra organizar lá o brinquedo. E com isso ele botou de novo. E – Aí depois que ele apresenta o boi, ele tem que dançar na morraria? Como que é? ROSA – Não, toda vez que finaliza a brincadeira, ele vai finalizar ... finaliza 24 de junho, aí ele vai finalizar em cima do morro, com os brincantes. E – Por quê? ROSA – Essa é uma promessa que o velho fez e ele tem que cumprir. PICHA – Todo ano. E – E o fato de ir pro morro, cumprir a promessa, essa promessa é pro rei Sebastião? ROSA – Pra rei Sebastião e João de Una.
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V. TRANSCRIÇÃO DAS LETRAS DAS TOADAS, CANÇÕES E DOUTRINAS CANÇÃO: composição com autoria com temática que valoriza o mito e o lugar. DOUTRINA: composição dos encantados, segundo aqueles que “brincam” a Mina. Os cantores nunca tomam para si a autoria destas composições. São apenas transmissores do mundo da Encantaria. TOADA: composição própria do auto do bumba meu boi. Enaltece a nobreza do boi, aqui ora tornado rei, ora montaria para o rei. CANÇÃO 1. Eu fui em Lençóis (José de Ribamar) Eu fui em Lençóis tomei banho na praia e gostei de lá. Depois saí, chamei Lailso fui olhar os guarás. (bis) Cheguei no manguezal foi muito legal ver as garças voar olhei os taiquiri e também os tassorá. Às cinco e meia da tarde os guarás vem chegar e vem chegando os turistas com a máquina pra filmar pra sair na revista no rádio e na televisão a Ilha dos Lençóis grandeza do meu Maranhão.
CANÇÃO 2. Lambada da Jarina (José de Ribamar) Lá na ilha dos Lençóis veja o que me aconteceu Meia-noite na beira da praia Jarina me apareceu. (bis) A filha do rei Dom Sebastião montada no seu cavalo com a sua espada na mão.
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CANÇÃO 3. Melô do caju (José de Ribamar) Ê, meu Lençóis, Ilha bonita do meu Maranhão! (bis) Ele é rico de pescada É rico de camarão Da parte do marisco tem o caranguejo também tem o sururu Da parte da fruta tem o murici e também tem o caju. Tem muito quiriri também tem o guajiru. É a praia mais bonita do litoral de Cururupu. No inverno tem as lagoas que tomam banho de montão tem as dunas de areia que é do Rei Sebastião Lá fora vem a sereia que vive no anseão.
CANÇÃO 4. Jarina flor (cantada por Edmundo) Jarina é flor é flor do mar Jarina é flor dos orixás. Jarina mora na praia dos Lençóis do Maranhão. Desce morro a cavalo é filha do Rei Sebastião. (Pinduca e Reginaldo, disco “O criador da lambada”)
CANÇÃO 5. Eu to zangado (Maria Teresa Araújo) Eu to zangado, hum eu to zangado. Eu to zangado, hum eu to zangado com o governador. Seu Natalino não soube governar deixou minha canoa
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lá no meu do canal. (bis) Mas é por isso que eu gosto de viver só. (bis) Deixou minha canoa lá no porto do Lençol. (bis)
CANÇÃO 6. Ilha da assombração (Maria Teresa Araújo) Praia de Lençóis é ilha da assombração município de Cururupu do Estado do Maranhão. Eu tenho pena de deixar o meu torrão da princesa encantada filha de Rei Sebastião. Tenho pena de deixar o meu torrão da princesa encantada filha do Rei Sebastião.
CANÇÃO 8. Filha de Rei Sebastião ( Maria Teresa Araújo) Joguei no meio de 60 espadas nenhuma ofendeu a mim. Filha do Rei Sebastião é bom, não é ruim. MT – Né bonita? E- É linda. Quem é a autora? MT – Ah, já é morta. Era uma tia minha que cantava ela. Chamava Vicença. Era nascida e criada lá, era irmã de meu pai.
TOADA 1. Touro malcriado (Antônia, cantada por Maria Teresa) Quem quiser dar neste touro Lá na praia do Lençol Este touro é malcriado Ele é do Rei Sebastião.
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TOADA2. Meu boi urrou (Maria Teresa Araújo) Meu boi urrou, tornou urrar. Como é tão bonito meus vaqueiros campear. Este touro é maroto quando ele se vê solto joga areia no lombo não dá caminho pra outro.
DOUTRINA 1. Rei Sebastião (doutrina cantada por Maria Teresa) Hei, hei, Rei Sebastião (bis) Quem desencantar Lençol Vai abaixo o Maranhão. Hei, hei, hei, meu São Raimundo (bis) Quem desencantar Lençol Maranhão vai ao fundo. (bis)
DOUTRINA 2. Guerreiro (doutrina cantada por Teresa) Rei Sebastião ele é guerreiro militar. Oh, Xapanã ele é pai do terreiro desceu na guma é guerreiro imperiá.
DOUTRINA 3. E dá no boi, vaqueiro (doutrina cantada por Teresa) Sebastião arrasta as correntes oi que faz a terra tremer e dá no boi, vaqueiro e dá no boi, vaqueiro e dá no boi, vaqueiro e dá no boi, vaqueiro.
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DOUTRINA 4. Quem bateu na sua porta (Vicença, tia de Maria Teresa Araújo) Quem bateu na sua porta foi o Rei Sebastião. (bis) Entra, meu pai, com sua espada na mão.
DOUTRINA 5. Barquinha do rei (doutrina cantada por José Mário) Já chegou João, Já chegou João Ele veio foi na barquinha Do Rei Sebastião. Ah, ele veio foi na barquinha do Rei Sebastião.
DOUTRINA 6. Sebastião, arrasta as correntes (doutrina José Mário) Sebastião, arrasta as correntes e faz as carnes da gente tremer Quem tiver sua vista aberta entra agora que eu quero ver. Sebastião, arrasta as correntes e faz as carnes da gente tremer. e dá no bom vaqueiro e dá no bom rapaz. Sebastião, arrasta as correntes e faz as carnes da gente tremer. Rei Sebastião, Rei Sebastião Entrou em luta pra ganhar e vencer.
DOUTRINA 7. Em cima do meu trono (José Mário) Em cima do meu trono eu governo, eu só Olha o Rei Sebastião Da praia do Lençol. Em cima daquele morro Eu vi o raiar do sol agora vejo alumiar Na praia do Lençol.
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DOUTRINA 8. Doutrina para o Rei (cantada por Telma) Sebastião quando baixa a coroa e faz as carnes da gente tremer Rei Sebastião, Rei Sebastião Entra em luta pra ganhar e vencer.
DOUTRINA 9. Olha o Rei Sebastião (Telma) Olha o Rei Sebastião Ele é guerreiro militar É Xapanã, ele é pai do terreiro. Desceu na guma É guerreiro imperiá. (bis)
DOUTRINA 10. Cidade dos Lençóis (Telma) Oh, cidade do Lençol é uma cidade muito bonita. Ai, Tem vaso de guerra E tem caixa de guerra. Mas isto é feito por obra da natureza.
DOUTRINA 11. Êh, no balanço eu vim Êh, no balanço eu vou. A minha madrinha /:É a virgem da Conceição O meu padrinho é o rei Sebastião:/
DOUTRINA 12. Quando eu vi a cobra grande me laçar Eu tava na beira da praia Não me laça, cobra, não me laça, cobra. Eu já vou pra lá.
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TOADA BOI DE LENÇÓIS (Dunga) Cheguei perto da fogueira Soprei meu apito O povo acharam bonito Correram logo pra ver. Chamei minha turma Todos com prazer Vou reunir meu brinquedo E deixa a notícia correr.
TOADA TERRA DE ASSOMBRAÇÃO (Dunga) Lençóis é terra de assombração (bis) Trago ela no peito Dentro do meu coração Tá arquivada na memória Deste menino cristão. Sempre meu coração chora Mas está é minha missão. Cantar para a brincadeira Do glorioso São João. Eu domino com seu gado Aqui neste meu torrão Mas no céu sou dominado Por Jesus e São João Eles dois é quem me ajudam E eu sou agradecido. Canto para todos santos Pra não ficarem aborrecidos. Eu hoje estou cantando Já comecei a guarnição. Cantei pra senhor São Pedro E o glorioso Sebastião. Meu nome é Carlos Alberto Sou dono desta canção /:Se quiser eu canto outra Pra animar meu batalhão:/ (bis)
TOADA OFERECIMENTO (DUNGA) A porta da igreja está aberta Eu vou fazer minha obrigação Eu vou oferecer esta reza Para o rei Sebastião.
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VI. INFLUÊNCIAS DAS NARRATIVAS DE LENÇÓIS NA MÚSICA E OUTRAS MÍDIAS Música: MARANHÃO, MEU TESOURO, MEU TORRÃO (Humberto de Maracanã) Maranhão, meu tesouro, meu torrão Fiz esta toada ora ti Maranhão (bis) Terra do babaçu que a natureza cultiva Esta palmeira nativa que me dá inquietação Na praia de Lençóis Tem um touro encantado E o reinado do Rei Sebastião Sereia canta na crôa, na mata o Guriatã Terra da pirunga doce E tem a gostosa pitomba antã. E todo ano a grande festa da juçara No mês de outubro no Maracanã. No Mês de junho tem o bumba meu boi que é festejado e, louvor a São João O amo canta e balança o maracá A matraca e pandeiro é quem faz tremer o chão. Essa herança foi deixada por nossos avós Hoje cultivada por nós Pra compor tua história Maranhão.
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Música: TOC TOC (César Nascimento, cd quero Fogo, faixa 7, 2007) Toc, toc, toc... tô quebrando caranguejo na ilha... Tac, tac, tac... vou batendo matraca na ilha do amor. Cacuriá, tem Dona Teté tem lelê de São Simão pra dançar tem fogueira, tem, pra louvar São João e tem pedra solta no reggae de salão. (ê Mará) Tem punga de coreira no tambor de crioula tem manguda, cazumbá e fofão. A lua teve filhos por sobre os lençóis pequeninas luas encantadas à espera do rei Sebastião. (ê Maranhão)
Música: NA ILHA (César Nascimento, CD Quero Fogo, faixa 5, 2007) Na ilha, ô na ilha tem segredo até demais. O segredo da cavalacanga do bobó e do cuxá da serpente que arrudeia a ilha querendo o rabo pegá se chegar nessa corrida a ilha vai afundar. Cada ladeira que desço vou desembocar no mar cada pedra da ladeira uma história pra contar como a carruagem encantada que de longe ouvi passar.
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Música: Os filhos da lua na Praia dos Lençóis (CD Maranhão: carnaval de todas as tribos, Bloco Tradicional Vinagreira Show, Léo Lima, intérprete Daffé) Vinagreira chegou para contar a Praia dos Lençóis Os mistérios segredos de lá Pra encantar todos nós. Povo albino se esconde do sol pesca à noite para não se queimar pele fina, branca como areia conta lendas à luz do luar Rei menino é o Dom Sebastião Tem palácio no fundo do mar Touro negro que vem na lua cheia assombrando na areia o povo de lá. Sou da história da noite, eu sou Sou filho da Lua Sou feito de lenda e amor Tesouro da terra minha e sua.
Música: DOM SEBASTIÃO (Cd Na onda do bicho, compositor Zé Pereira Godão, companhia Barrica) Dom, dom, dom, dom dom, dom, dom, dom, Dom Sebastião (bis) É o touro encantado lá dos Lençóis touro negro de luz e assombração. Ferindo a testa do touro vem abaixo o Maranhão. Esse touro é o bicho é o bicho, é bicho Esse rei é o bicho é o bicho, é o bicho o touro negro é o bicho é o bicho é o bicho.
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Música: A serpente (outra lenda) CD petshopmundocão Zeca Baleiro, Ramiro Musotto e Celso Borges Texto do encarte: diz a lenda que ao redor da ilha de são luís vive uma serpente sempre a crescer. um dia a sua cauda alcançará a sua cabeça, e num abraço, ela destruirá e afundará a cidade nas profundezas do oceano... céu azul rio anil dorme a serpente levanta miss serpente põe tua lente de contato mira dos mirantes os piratas não param de chegar vem vem ver como é que é vem sacudir a ilha grande vem dançar vem dançar alhadef te espera na casa de nagô eu quero ver eu quero ver a serpente acordar eu quero ver eu quero ver a serpente acordar pra nunca mais a cidade dormir pra nunca mais a cidade dormir acorda mademoiselle serpente desfila na rua da inveja dessa gente vem que o touro encantado já te espera acordado ouve o coro do meu batalhão pesado acorda milady vem ver são joão vem cá vem dançar com teu cazumbá desperta do sono derrama veneno faz tua fuzarca o teu carnaval alhadef te espera na casa de nagô
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Música: Filhos da Lua (CD Som do Mará, 2006) Vou cantar evocar os tambores do além os filhos da lua na luz da escuridão albinos, gerreiros, irmãos filhos do Rei Sebastião. Ô mana, ô mana, Ô ... Pro santo iluminar cada vez que lhe pedir cada vez que lhe falar a fé pra quem sabe chegar a procissão, a pé, pagar promessa.
Música: LENDAS DO MARANHAO (Augustinho Gugu, CD Boi de Orquestra Encanto da Ilha, 2003) Ê Maranhão, Ê Maranhão Tem segredos tuas lendas, terra de assombração uma serpente de espuma prateada abraçou a ilha, se escondeu no ribeirão Nos Lençóis touro negro coroado Um navio iluminado surgiu no boqueirão. IARA VEM CANTAR IARA VEM CANTAR MÃE D'ÁGUA LÁ NA FONTE SEREIA NAS ONDAS DO MAR. Com a voz da cascata eu falei na cachoeira me banhei a brisa traz o perfume fagulha reluz ao luar tesouro bordado na areia segredos desse meu Mará Itacolomi diz pro Rei Sebastião não desencantar Lençóis pra não ir abaixo o Maranhão.
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Samba-enredo: Estação Primeira de Mangueira - 1996 Enredo: OS TAMBORES DA MANGUEIRA NA TERRA DA ENCANTARIA Autores:Chiquinho Campo Grande e Marcondes
No revoar da inspiração O poeta conseguiu Contar em verso e prosa O amor pela cultura Lendas e mistérios Do nordeste do brasil Deite numa rede de algodão E adormeça nas crenças do maranhão No fundo do mar Tem um castelo que é do rei sebastião Tem mandinga tem segredo Meu amor eu tenho medo De brincar com assombração. Ana se fez donana Na carruagem tem uma mula-sem-cabeça Por incrível que pareça Uma serpente circundando o ribeirão A manguda vai chegar Bumba meu boi e cazumbás É festa de são joão. Agô iná iná agô ! Oh! doce mãe sereia No seu lampejo que ilumine todos nós Lá na praia dos lençois É noite de lua cheia. Os tambores da mangueira Na terra da encantaria Encantaram o touro negro Que num toque de magia. Se vestiu de verde e rosa Embarcou na poesia
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Samba-enredo: Acadêmicos do Grande Rio - 2002 Enredo: OS PAPAGAIOS AMARELOS NAS TERRAS ENCANTADAS Carnavalesco: Joãosinho Trinta Compositores : Alailson Cruz e Agenor Neto Na França, ficou o rei menino!!! No Brasil se viu chegar, p'ra conquistar! Oh!! Merci beaucoup au revoir O índio nada entendeu De "Papagaios Amarelos" foi chamar Tem miçanga tem (hê, hê), tem espelho tem Para índio um presente, p'ros franceses um harém De além mar que vem (hê, hê), Portugal meu bem Expulsando o francês, e o bravo holandês também No balaio tem revolução, a balaiada!! Negro Cosme quer seu povo feliz O Imperador das liberdades bem-te-vis
Me leva que eu quero ver (eu quero ver!) | Touro negro coroado | Ele é Dom Sebastião | bis Que no mar fez o seu reino | Num palácio iluminado | Hê, povo hê, povo hê Hê Maranhão, povo encantado Nhá Jançá é assombração No alto do Divino eu vou Com caretas p'ro pato, pato pelado Do poeta uma voz ecoou (uooo!) | Minha terra se ouve cantar (o sábia!) | Grande Rio é samba, é amor |Refrão Bumba meu boi tua estrela vai brilhar | | Na França ficou o rei !!!.
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Samba-enredo: Mocidade Independente e Padre Miguel – 2008 Título: “O QUINTO IMPÉRIO: DE PORTUGAL AO BRASIL, UMA UTOPIA NA HISTÓRIA” Autores: Marquinho Marino – Gustavo Henrique – Igor Leal Intérprete: Bruno Ribas
Portugal Bendito seja... Abençoado pelo Criador Uma utopia, um destino, um sonho místico de grandes realezas Sonhar... Com glórias um rei desejar E o sol volta a brilhar Com a esperança no olhar Mas desapareceu como um grão de areia no deserto E encantado renasceu Em cada ser, em cada coração Para afastar a cobiça na busca do ideal O Quinto Império Universal.
Deixe o meu samba te levar E a minha estrela te guiar À Praia dos Lençóis, nas crenças do Maranhão Tem um castelo que é do Rei Sebastião . No Rio de Janeiro aportaram caravelas Trazendo a Família Real Progresso em cores combinadas Debret retratava a transformação Nas terras tropicais do meu Brasil A herança, a dor... O mito ressurgiu Eis o guerreiro sebastiano O mais ufano dos lusitanos em verde e branco Que traz no peito uma estrela a brilhar De Norte a Sul desta nação Faz a manifestação popular.
Minha Mocidade guerreira Traz a igualdade justiça e paz. Hoje o Quinto Império é brasileiro amor Canta Mocidade canta!
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VII. ROTEIRO DO DOCUMENTÁRIO “SEBASTIANOS”
CENA 1. Close nas rugas da areia na duna. O vento leva a areia e sopra sua canção. CRÉDITO (letreiro branco sobre fundo preto) A ilha de Lençóis, no Maranhão, está envolta numa esfera de mistério. Ela guarda um grande tesouro. Sob as dunas brancas, jaz velado o reino de Dom Sebastião, monarca português que desapareceu na batalha de Alcácer Quibir, no Marrocos, em 1578. Os narradores de Lençóis consideram-se filhos dele e mantêm vivo o mito do retorno do Encoberto.
CENA 2. MÚSICA: “Dom Sebastião”, DO CD MENSAGEM, APENSA INTRODUÇÃO INSTRUMENTAL. SEQUENCIA DE IMAGENS COM PINTURA DO REI SEBASTIÃO, DOCUMENTOS QUE MOSTRAM O BRASÃO REAL E GRAVURAS DA BATALHA DE ALCÁCER QUIBIR. FOTO DA ILHA, DO GOOGLE MAPS. MÚSICA “A ÚLTIMA NAU”, DO CD MENSAGEM, NA VOZ DE ZÉ RAMALHO.
SEQUENCIA DE TOMADAS: CENA 3. PROA DO BARCO COM MANGUE AO FUNDO CENA 4. PROA DO BARCO COM DUNAS AO FUNDO CENA 5. BARCOS NO ESTUÁRIO COM CASAS DA ILHA CENA 6. DETALHE DAS DUNAS. SOBRE UM CLOSE DAS DUNAS É QUE SERÁ PROJETADO O TÍTULO DO FILME, COMO SE FOSSE AREIA SE DISSOLVENDO:
“SEBASTIANOS: OS NARRADORES DA ILH A DE LENÇÓIS” Um filme de Cláudio Rodrigues CENA 7. Um passeio pelas dunas. Da esquerda para a direita até perfil de um casebre.
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CENA 8. MANECO, O PAJÉ DA ILHA, NA SUA CASA.
CRÉDITO: Maneco, pajé da ilha. MANECO Olha, aqui, assim conta meus avós, que essa praia foi fundada, eu não sei nem qual a época porque não tô lembrado. Disse que era no tempo duma guerra que teve, já muitos anos, né. Então, o rei Sebastião fugiu da África pra cá. Quando chegou aqui nesse lugar, o navio afundou, né. Aí o navio afundou, gerou essa praia. Contando os mais antigos, né. Gera essa praia aqui. Às vezes ele aparece uma pessoa, viu? E às vezes ele se transforma num pássaro. Às vezes ele se transforma num negão. E às vezes ele se transforma num touro também. Isso tudo ele [se] transforma. E a gente sempre olha. CENA 9. VISTA DA DUNA COM PRAIA À FRENTE E PASSEIO PELAS CASAS DA ILHA EM FRENTE AO ESTUÁRIO. CENA 10. Casebre do velho Chico. Ele sai da casa e caminha ao lado da casa. CENA 11. Chico sentado à porta da casa. Câmera está fora da casa. Legenda sobre essa imagem.
CRÉDITO: SEU CHICO, patriarca de Lençóis. CENA 12. ENTREVISTA CHICO E aqui tinha lugar ali atrás do muro [...] tinha lugar por nome Bordado. E lá que o pessoal de Bate-Vento fazia as cacimbas para encher água para eles levar pra beber. E eu vim fazer essa viagem no Bate-Vento. Quando chega lá, aí me deu vontade de... me deu sede, né. Eu botei o férreo na canoa e fui beber água. Quando eu fui me abaixando pra meter a mão na água pra botar na boca, foi quando disseram assim pra mim: “ Cê não mete a mão aí que a empregada do rei vai lavar roupa”. Agora eu olhei, tava só eu e a barreira lá [...] CENA 13. (interrompendo a fala do Chico) Roupa no varal tremulando ao vento, dunas ao fundo.
353 CENA 14. Telma tira água do poço ao pé da duna. CENA 15. Close no rosto de Chico, que continua o relato. CHICO Aí vai eu disse assim... Digo: “E quem tá falando pode aparecer que eu quero ver”. Disseram pra mim assim: “Espere um pouco”. Fiquei esperando. Quando eu dei fé, apareceu aquele homem na barreira do poço. Disse: “Olhe, entre que o rei quer falar com o senhor”. Aí eu: “E por onde que eu vou?” “Passe por aqui”. Nisso que eu me abaixei pra ir debaixo da barreira já fui pisando certo no degrau, no batente da janela do palácio. E o palácio é escritinho aquele ali [aponta para o prédio do colégio, única casa feita de alvenaria na ilha]. Aí eu olhei e ele tava deitado numa rede, num escritório assim, uma mesa assim... aí entrei, cheguei lá aí o moço disse: “pronto, rei, ta aqui o moço”. Ai nós fomos conversar. Eu disse: “Rei, como foi pra você vir pra cá?” Disse que foi porque ele era rei em Portugal e ele queria descansar e ele queria dar lá a vaga prum sobrinho dele: “E o rei de França e de Espanha queriam que eu desse pra eles. Então eu disse que eu não podia dar pra eles. Eu queria dar pra meu sobrinho que eu queria descansar. Então eles me disseram que... aí manifestaram uma guerra”. Ai ele imaginou que ele só pra brigar com dois não dava. Ele podia perder. Aí ele ajuntou o pessoal dele, botou dentro do navio e fugiram. Que quando ele chega aqui nessa barra aqui... ele chega no lombo de terra que a maré passava, quando maresia vinha, lavava, escoava e ficava seco, ele mandou ancorar o navio. Quando ancorou o navio ele mandou botar o escaler dentro d’água e convidou Antonio Luís pra ir com ele. Aí quando eles foram chegando lá na croinha, ela foi descobrindo, ele foi espetando com espada dele. Quando ele espetou a espada dele, se encantou... ele com navio, com tudo. CENA 16. Seu Chico olhando as dunas ao longe. Cena 17. Dedos de uma mão batem numa mesa de altar com santos ao fundo. A câmera segue até o rosto de Dona Teresa cantando. “Quem bateu na sua porta Foi o rei Sebastião
354 Entra meu pai com sua espada na mão”
CRÉDITO: Dona Teresa, pajoa CENA 18. ENTREVISTA TERESA O Edmundo, quando ele era pequeno, ele foi botar arapuca, ele com mais duas criança. Quando foi, depois que eles olharam... vinha uma pessoa, todo de roupa vermelha, com um cachorro... um bocado de cachorro. Tudo só numa linha né, numa fila. Que quando eles deram fé que deparou... ele tava perto da moita... aí tinha uma rês pastando. Aí saiu um dos cachorro pra acuar. Ai quando ele virou de frente né. A barba era assim tipo um profeta eu acho né que seja... ai disse: “Passe já pra cá, que você não é daí. Pode procurar seu lugar”. Aí o cachorrinho veio pro lugar dele. Aí foram né... passaram. Quando passaram lá eles foram se escondendo tudinho na... porque olharam que não era gente da praia né. Foram se escondendo pra moitas, até quando ele passou com os cachorros lá pra frente. E aí foi que eles saíram, chegaram em casa tudo com medo. Aí adoeceram. TERESA Então o pai deles disseram que era...só podiam ser um reis, um reis porque pela veste, era assim aquele roupão, no traje mesmo como a gente olha no baralho, tem aquela roupa vermelha, né. Só que ele não tava com a coroa. Ele tava a paisana. Então meu marido disse: “Olha, vocês olharam foi o reis, porque nesse traje que ele é.” Cena 19. O povoado vista de cima das dunas. Aproximação até mostrar as turbinas. Barulho de vento. Cena 20. Ribamar toca numa bacia e canta: “Lá na ilha dos Lençóis, veja o que me aconteceu...” A câmera mostra as mãos batendo na bacia e vai subindo até aparecer o rosto.
CRÉDITO: Ribamar, cantor e compositor Cena 21: Imagem de casebre do outro lado da rua vista pela porta vazada de uma casa. Silêncio. Cena 22. Cerca e coqueiros. Silêncio. Cena 23. Velha Nini numa rede. A imagem se aproxima. Crédito: Dona Nini, matriarca de Lençóis. Cena 24. ENTREVISTA
355
NINI – A minha tia e comadre, a Vicença... Aí ela... a cachorrinha atrás com ela, né... Toda a valença dela foi essa cachorrinha... Senão Rei Sebastião tinha levado ela. Tá bom... aí quando ela subindo, e a morraria ali rachando todinha... rachando todinha. Ela: “ô meu Deus, Jesus”. Aí, tá bom... ela foi... foi subindo... A cachorrinha mais atrás. Que quando ela olhou aquele...aquele homem só de tanga vermelha, cabelo preto bem alvo, bem alvo... Era o rei Sebastião. Ela era dessas coisas. E aí ele disse... diz que ele disse bem pra ela... ela contava, meu filho, pra quem queria: “Foi tua valença, esta cachorra, senão tu ia desaparecer”. Aí disse que deu aquele frio nela, com aquele tremor no corpo dela, pra ela subir com este maço de madeira... ah, deu fogo. Aí ela subiu. Quando, que ela olhou pra banda... assim da morraria, né, cadê? Já tinha ido embora. Veio só dizer pra ela. Cena 25. Nini canta: “ rei, rei, rei Sebastião/quem desencantar lençol/vai abaixo o maranhão. Cena 25. Dona nini canta: “Rei, ê rei, rei Sebastião. Quem desencantar Lençol Vai abaixo o Maranhão ”
Cena 28. Mulher e homem numa canoa, remam. Silêncio. Cena 29. Detalhes do boi e do bordado. (Voz de Dunga em off, cantando toada “ E lá vai meu batalhão...”) Cena 30. ENTREVISTA. Rosa e Picha, boizinho na mesa, contam como começou a brincadeira. ROSA O Carlos Alberto, ele surgiu (começou) a brincadeira com um cofo. Aí, a partir desse momento ele foi deu continuidade. ROSA A brincadeira, ele pegava um cofo (balaio), pegava as toalhas daqui de casa, enrolava, torcia, fazia o rabo do boi, colocava, e pegava dois pedaços de pau e fazia aqui a madeira (o chifre). Aí ele saía na rua com a criançada. Os comerciantes pegavam, chamavam ele e perguntavam se ele não queria ganhar suquinho. Aí ele ia. No momento ele não tinha as toadas direito, aí ele cantava reggae, ele cantava brega (risos). Com isso ele foi dando continuidade na brincadeira dele.
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CENA 31. Dunga fogueira...”
canta
e
toca
maracá:
“Cheguei
perto
da
CRÉDITO: Dunga, amo e dono do boi. CENA 32. ROSA CONTINUA O RELATO. ROSA Foi no ano de 2007 que ele falou pro Zé Mário que ele ia terminar com a brincadeira. Aí ele perguntou por que e ele ficou tímido e não falou pra ele. Aí ele disse: “Não, vô, eu vou terminar a brincadeira porque eu quero entrar na crença”. A aí ele disse: “Mas por que tu vai terminar com tua brincadeira, meu filho, que tu desde pequenininho com esse dom que Deus te deu?”. Aí ele disse: “Ah, é porque a mamãe não quer mais continuar com a brincadeira. Ela disse que ela não vai mais botar a brincadeira, não vai mais me ajudar”. PICHA E ele depende de nós, né, de nós dois, porque, sabe, ele é jovem.... ROSA Aí, eu garrei e disse pro velho que eu não tinha mais condição de botar o boi porque as despesas cada vez mais caras né, mais brincantes chegando... PICHA E nós já tava sentindo que ele já tava doente, né... ROSA Aí ele disse que era pra ele... se ele tirava duas todas pro caboclo dele e uma pra rei Sebastião. Aí ele disse que tirava até mais de duas. Ele garrou, tirou, e ele começou a achar graça do jeito dele. Aí ele que era pra ele continuar com a brincadeira que ele dar tudo pra organizar lá o brinquedo. E com isso ele botou de novo. CENA 33. Dunga canta “A porta da igreja está aberta...” CENA 34. ROSA CONTINUA O RELATO. ROSA Não, toda vez que finaliza a brincadeira, ele vai finalizar ... finaliza 24 de junho, aí ele vai finalizar em cima do morro, com os brincantes. PESQUISADOR
357 Por quê? ROSA Essa é uma promessa que o velho fez e ele tem que cumprir. ROSA Pra rei Sebastião e João de Una. CENA 35. Fogueira na noite. Silêncio. CENA 36. Fogueira com tambores esquentando, sequencia de batidas nos tambores. Tambor visto por dentro, couro iluminado pelo fogo. CENA 37. Bumba meu boi. Maneco e povo reunido na noite. Canta “nós tamo gravano... aqui na terra do rei Sebastião”. Boizinho baila.
CRÉDITO: BUMBA MEU BOI CENA 38. Cena do boi, gravada em 2010. CENA 39. Lua em close. CENA 40. Bandeirolas do terreiro de Mina.
CRÉDITO: TAMBOR DE MINA CENA 41.(imagens em sépia) Maneco canta no terreiro: “Quem bateu na sua porta foi o rei Sebastião Ah, entra, meu pai, com sua espada na mão” Legenda: Tambor de mina
CENA 42. Terreiro de mina. Dona Helena canta: “Eu tava em cima do morro, eu vi o sol brilhar. Viva o rei Sebastião Em cima dos três irmãos”
...mas a cena que mostra é outra dela, diferente do áudio. CENA 43. Coqueiros no amanhecer vermelho. Música: “Encoberto”, intérprete: Gilberto Gil. CENA 44. Farol visto de longe, distanciamento da imagem. CENA 45. Mangue e dunas
358 CENA 46. Farol perto e close CENA 47. Igrejinha da ilha CENA 48. Cruz do alto da igrejinha CENA 49. Imagens de São Sebastião no altar. CENA 50. Canoa na praia vista da porta da igrejinha. Distanciamento. CENA 51. Crianças (de costas) correm para as dunas (música em off de Ribamar: “Ê meu lençóis...” CENA 52. Crianças (de frente) sobem as dunas. CENA 53. Meninos sentados nas dunas, passam cera nas tábuas. CENA 54. Meninos escorregam na duna. CENA 55. Meninos descem dunas, na beira da praia, barco atracado. Um barco entra na baía. CENA 56. Meninos voltam para casa, dunas, câmera lenta. CENA 57. Barco atracado no estuário, crianças correm por um fio de areia e ficam próximas ao barco CENA 58. Sentadas na areia, na praia, crianças cantam: “Lá na ilha de Lençóis, tem o rei Sebastião Que é um touro encantado Do meu coração”
CENA 59. Ondas fortes na praia, barco ao fundo. Música: “Calma”, intérprete: Ná Ozzetti. CENA CENA CENA CENA
60. 61. 62. 63.
Ponta da duna, mãos remando, câmera no barco. Dunas vistas do mar. Homem de canoa remando, pôr-do-sol ao fundo. Pôr-do-sol sobre nuvens.
Sobem os créditos. Frase sobre fundo preto
“O mytho é o nada que é tudo” (Fernando Pessoa) FIM
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VIII. ENTREVISTA COM OS PRODUTORES DO CD A LENDA DO REI SEBASTIÃO : REGISTROS SONOROS DO MARANHÃO (Entrevista realizada no mês de agosto de 2003) PERGUNTA 1: O cd inicia e se encerra com a frase “Os deuses continuam os mesmos, vindo diretamente de lá”. Qual a intenção disso, vocês querem reforç ar algo?
BAIANO: Acho esta frase uma síntese de toda a dinâmica das lendas e mitos populares do Maranhão: “os deuses continuam os mesmos, vindo, diretamente de lá”. Ou seja, existe um mundo da magia, do encantamento, um mundo imutável, que paira, sobre tudo e todos. Seus deuses, de alma humana, estão constantemente fazendo este caminho, esta passagem, e se comunicando conosco. Por isso, achei que a frase deveria abrir e fechar o cd. É como se fosse dito: pare tudo, relaxe, abra teus canais espirituais, porque durante os próximos quarenta minutos, você estará em contato direto com os deuses e encantados. É isso. ROBERTO: Essa edição foi proposta pelo Baiano, como nós moramos em cidades distantes, trocávamos informações pelo telefone. Algumas vezes nos encontrávamos e trabalhávamos juntos no estúdio que ele tem em Santa Teresa, no Rio. Outras vezes ele me mandava um CD-R pelo correio para que eu ouvisse o material editado. Eu gostei quando ouvi a frase sendo repetida no final e também a música de abertura, uma canção do Boi de Pindaré, interpretada pelo grupo Laborarte. Para mim essa edição dá uma sensação de circularidade. Como se tudo fosse começar novamente. Funciona muito bem se o ouvinte for da primeira à última faixa num só gole. Mas, se você ouvir com atenção a maneira como a música foi editada na última faixa vai ver que é um pouco diferente de como ela foi editada na primeira faixa. É uma sutileza importante por sua ambigüidade, porque, ao mesmo tempo em que propõe o círculo vital, mostra que o círculo não se fecha e que pode continuar girando. O mais surpreendente disso é que sem saber Baiano mostra que o fim do círculo não é igual ao início do círculo. Por isso, o movimento não um círculo propriamente, mas uma espiral. Talvez esteja aí a sutil resposta à sua pergunta abaixo sobre o domínio do tempo. Porque o tempo é uma espiral dinâmica que parece igual e se transforma a todo o momento, ora subindo, ora descendo. Mas, quem sabe o Baiano só queria mesmo era informar ao ouvinte que o disco acabou. PERGU NTA 2: Em algumas faixas, sobretudo nos relatos (que eu chamo de contos), você s produ ziram uma sonoplastia in serindo sons para i lustr ar o enr edo: os sons do sino, do mar, api to/bu zina do navi o e chaves. Esses recursos são total mente digitais ou f oram gr avados a parti r dos objetos, àmaneira dos recur sos sonor os nas anti gas novelas de rádio? O que são os “samplers”?
BAIANO: Estes recursos foram retirados de diversos suportes, principalmente de discos de efeitos especiais. Mas, na sua origem, são sons acústicos, naturais que alguém, algum dia, captou num gravador, e editou para um cd. [sobre o conceito de sampler]: Ih, isso é meio complicado. Um sampler é quando você pega algum som e edita de forma que você possa usá-lo em outro contexto. Por exemplo: pegar um mugido de boi e transformar na batida de surdo numa bateria eletrônica. Deu pra entender?
360 ROBERTO: Os apitos de navio foram gravados com apitos de madeira desses que se vendem lá em São Luís, e que o pessoal do Laborarte usava na apresentação do espetáculo espetáculo “O Cavaleiro do Destino”. PERGU PE RGU NTA 2: Supondo qu e os depoi depoimentos mentos e mús músi cas registr ados er am u m n úmero bastante bastant e si si gni gn i f i cati vo, como com o vocês pen pen saram a mont m ontagem agem do cd e que cr i té r i os uti ut i l i zaram ar am para par a ef ef etuar tu ar a escolh escolh a dos cantos e contos?
BAIANO: O critério foi cinematográfico, ou seja: não queríamos apenas registrar a manifestação da cultura popular, isto muita gente já faz. Queríamos montar um filme sem imagens, um roteiro, um enredo que capturasse a atenção e o sentimento do ouvinte e o fizesse viajar pelas lendas e histórias. Uma coisa que me impressiona muito nestes relatos é que eles são quase sempre na primeira pessoa, ou seja: todos os que contam, viram o que contam, estiveram lá, conheceram o Rei Sebastião, a barca. Isto dá uma espécie de “veracidade fantástica” aos testemunhos. Por isso, eu quis que o ouvinte embarcasse no clima, acreditasse pelo menos um pouquinho no que estava ouvindo. ROBERTO: Acho que ao ouvirmos as fitas a gente foi descobrindo várias narrativas diferentes. Embora o CD se chame c hame “A Lenda do Rei Sebastião”, poderia se chamar A Lenda da Cobra Grande, da Barca de Dom João e etc. No início do projeto eu estava com as fitas na minha casa, em São Paulo, e fui ouvi-las, preocupado com a qualidade dos registros, uma vez que estavam há 20 anos guardadas de forma inadequada, dentro de uma caixa de papelão. Como foram gravadas gravadas de acordo com com a dinâmica própria da produção de um filme, muitos dos registros tinham esse caráter comum de necessitarem da imagem para se realizarem como ideias completas. Isso pode explicar porque na edição do CD usamos efeitos sonoros tanto nas narrativas, quanto nas canções. E você tem razão ao se referir à novela de rádio, pois queríamos que o ouvinte criasse imagens mentais ao ouvir cada faixa do CD. De fato queríamos que eles criassem as imagens mentais que guardávamos de referência desde a época das filmagens no Maranhão (1979). Eu não sei de você viu o filme mas ele, sem dúvida, foi a primeira referência para o CD. Os personagens personagens que aparecem no filme estão lá no CD, todos eles, O Laborarte, Jorge Itacy, Dona Amada, Seu Cerejo, professor Nascimento, os pescadores de Lençóis, Mãe Dudu, Tácito Borralho. Dos personagens do CD, apenas Cláudio Silva Sil va não aparece no filme, mas ele é personagem de um outro curta-metragem que rodamos ao mesmo tempo lá em São Luis, chamado Nova Estrela, que trata de uma viagem de barco do porto de Raposa para a capital. Algumas histórias e músicas que temos guardadas nas fitas originais foram deixadas fora do cd. Eu costumava dizer na época da edição do CD que nós estávamos fazendo um trabalho de interferência sobre os registros originais e que o trabalho não seria um “delírio de arquivística” exatamente porque a nossa intenção era contar uma “história”, muito mais do que oferecer ao ouvinte um painel da cultura popular com um recorte específico. Embora o Cd seja as duas coisas ao mesmo tempo porque ele encanta e informa. Por isso, o critério principal, creio, foi aquele que nos fez juntar as peças de modo a formar uma narrativa. Muito do nosso trabalho também se apoiou no trabalho do dramaturgo Tácito Borralho, de São Luís, na época diretor do grupo de teatro Laborarte, que já desenvolvia um olhar próprio sobre a cultura popular do Maranhão. Nós pegamos muita carona no olhar dele e isso nos ajudou a compor uma imagem ao mesmo tempo poética e intelectual do que vimos lá.
361 PE RGU RG U N TA 4: F azer azer u ma edi ção (seja de ima i magens gens ou de son sons) s) én a verdade verd ade i n terf ter f eri r n a per per f or man ce da voz e da imagem i magem e n a recepç recepção pelo ou vin vi n te ou observador observa dor.. No N o caso do cd, cd , na n a con di ção de editor edit ores es e produ pr odu tor es, es, vocês el el abor ar am uma um a per per f orman or mance ce àmedida que constr constr uír am uma um a nar r ativa ati va fazendo fazendo com que qu e as par tes dial di al ogassem. ogassem. Com C om essa essa in i n terf ter f erên cia, ci a, o que qu e vocês esper esperavam avam que qu e o ouvi ou vin n te captasse?
BAIANO: Acho que já está respondido acima. Queríamos que o cd captasse o encantamento. Tem outra coisa: as músicas são simplesmente maravilhosas, então quisemos também trazer isto à tona, mostrar as melodias e harmonias, explicitar os ritmos. Mesmo que, para isso fizéssemos interferências. Para mim, a faixa síntese deste conceito é a 17, “Três Navios”, uma canção sensacional onde, sobre a voz de dona amada, gravada há duas décadas na porta de uma tapera na Ilha dos Lençóis, colocamos a guitarra do Rodrigo Campello e os teclados, fazendo som de cordas. É como se disséssemos: Dona Amada é uma tremenda cantora, se morasse no Rio, ou em Paris, ou em Viena, Viena, certamente estaria cantando com uma orquestra sinfônica ao fundo. Num outro contexto, colocamos o Rodrigo Campello dedilhando o violão, fazendo fundo para Mãe Dudu explicar como é que o Rei Sebastião baixava no seu terreiro. É cinema, trilha sonora, criando climas e explicitando as intenções e mistérios do que está sendo dito. ROBERTO: ROBERTO: Eu acho que eu fiz o papel de produtor. Baiano e eu fizemos fi zemos juntos o papel de editores, mas além disso, Baiano fez o papel de compositor e arranjador e a qualidade do trabalho se deve principalmente ao talento dele em pensar “cinemusicantropologicamente”. Acho que toda a edição e arranjos buscavam no ouvinte a possibilidade dele formar imagens enquanto ouvia. Algumas pessoas receberam o CD e uma fita VHS com o filme (que tem 14 minutos) algumas pessoas diziam que era melhor ver o filme e depois ouvir o cd pois entravam no contexto, outras preferiam ouvir o cd, fazer suas próprias viagens e, só então assistir ao vídeo e amplificar a potencialidade daquilo que haviam imaginado. Eu acredito que em arte a gente pode prever certos efeitos e com isso controlar e encaminhar o sentimento do público, mas as melhores surpresas são aquelas que rompem de maneira inesperada i nesperada as nossas previsões. PERGU NTA 5: Para a nar r ativi dade da lenda, na montagem montagem dos efeitos efeitos sonoros, sonoros, vocês usaram usara m como com o supor te as im agens do cur ta?
BAIANO: Não, apenas as fitas magnéticas de som, gravadas em 1979 num gravador Nagra III. PE RGU N TA 6: Realmente Realm ente um u m dos d os momentos moment os que mai s emoci emoci onam on am n a audi au diç ção éa f aixa ai xa 17, qu ando an do a voz de Dona Don a Amada Am ada éacompan hada ha da do viol vi olã ão e teclados teclado s, acres acr escent centados ados n a masteri m asteri zação. Os r ecur sos midi mi di áti cos nã n ão subver su bvertem tem e domi dom i n am o tempo? Q u e valor i sso tem par a o r esgate esgate e apres apr esentaç entação da memóri a e identi i denti dade cultural de um “povo”?
BAIANO: Ih, que pergunta complicada. complicada. Bem, vou tentar responder, responder, por partes. No caso do nosso cd, os recursos midiáticos subvertem e dominam o tempo, e esta é um dos conceitos estéticos básicos que queremos desenvolver, em todo o disco. Ao colocar,
362 vinte anos depois, violão e teclados sobre a voz de Dona Amada [...] nós quisemos dizer que a arte, a música, e a emoção espiritual que elas provocam em nós, transcendem o tempo, o espaço, as classes sociais. Talvez o fato de colocarmos instrumentos “contemporâneos” explicite esta emoção, amplie o seu alcance para um público maior, não necessariamente acostumado a ouvir este tipo de música. Mas, novamente falando de estética, há também a possibilidade do choque, da fricção entre duas realidades musicais tão distantes e distintas, reunidas numa mesma canção. Estou me fazendo entender? Que valor isso tem para o resgate e apresentação da memória e identidade de um “povo”? Acho que o valor e a importância estão no fato de fazer as pessoas, de diferentes culturas, hábitos e classes sociais, se emocionarem com esta arte, esta memória, esta cultura, se identificarem, se reconhecerem, novamente vencendo o tempo e a distância. Existem aí diversos papéis para a mídia: em primeiro lugar, lugar, o registro. E aí tenho uma história para contar: eu e Roberto tínhamos um projeto para desenvolver com um dos participantes do disco, o Jorge Itacy Babalaô: gravar TUDO O QUE PUDÉSSEMOS PUDÉSSEM OS sobre o Tambor de Mina, suas histórias, seus cantos. Isto porque Jorge, muito velho e doente, era um dos últimos repositórios de uma língua, lí ngua, o Nagô-Tapá, Nagô-Tapá, que desapareceu na própria África e, mesmo aqui, já estava sendo “abrasileirada” pelas filhas de santo do seu terreiro da Madre de Deus (por exemplo: “Ê mane forotá” virou “Eu mandei forotar”). Não deu tempo: Jorge faleceu meses atrás, seu enterro parou São Luís, e ele levou para o Reino de Queluz todo o seu conhecimento. Então, tem que captar tudo, gravar, filmar, para que as próximas gerações tenham acesso a este material – mas sem esquecer que este é o retrato de uma cultura em movimento, o AGORA de uma arte dinâmica que, certamente, e estará diferente daqui a algum tempo. Agora, feito isso, não tem que ter medo de mexer, de usar, transformar. A cultura, venha de onde vier, é vida, é para ser vivida, cantada, dançada, curtida, gozada, cada um de nós se apropria deste material de alguma forma, para seu próprio benefício e crescimento individual, e é assim que ela se mantém, significante. ROBERTO: Acho que os termos subversão e dominação não se encaixam bem neste contexto. Eu prefiro falar em apropriação e deslocamento. Uma vez que os registros sempre serão registros e jamais irão substituir a experiência pessoal, vivida pelo observador no campo que fez o registro, sobre qualquer suporte, do que presenciou. A câmera, o filme, o gravador, a fita magnética estavam lá na ilha de Lençóis, em nossas mãos, operadas e posicionadas segundo critérios nossos, nossos filtros culturais. E, embora aquela paisagem e aquela pessoa estivessem impregnadas de uma beleza original e de uma expressividade inequívoca, elas ainda assim estava sendo filtradas por nós, os observadores/registradores. Houve apropriação com consentimento explícito. Dona Amada sentou-se à porta da tapera e cantou para a câmera e para o microfone, e para nós. No momento em que editamos o filme e depois o Cd fizemos o deslocamento, porque não era mais aquele momento vivido. O que fizemos foi deslocar o contexto do passado, aprisionando-o num novo contexto estético e subjetivo. No filme a cena dela vem dentro de um contexto de conflitos entre imagens de outras cenas (um conceito Eisensteiniano). No CD, os instrumentos adicionados deram a Dona Amada um novo significado, deslocando o registro do passado e da realidade rural para um tempo diverso e atual. Que valor isso tem para o resgate da memória e identidade cultural de um povo? Acho que esta resposta você mesmo está dando com seu trabalho de pesquisa. Nele você faz um outro tipo de apropriação e deslocamento, trazendo para o contexto da racionalidade antropológica o trabalho artístico do CD. Se apropria dos sentidos que o CD provocou
363 em você e os desloca para o terreno da análise. É como se quando olhamos sobre a produção cultural, seja ela em que corte corte for, estivéssemos estivéssemos fazendo o jogo dos espelhos espelhos e colocando o nosso espelho para refletir o espelho do outro, multiplicando as imagens que se sobrepõe umas às outras de forma abismal. PE RGU RG U N TA 7: 7 : Vocês consider con sider am toda tod a essa essa produ pr oduç ção do i ma magi gi n ár i o de uma u ma comu ni dade algo poé ti co? De D e que modo a mí m ídia di a pode aju dar a quebrar qu ebrar as distân distân cias ci as entr nt r e l i teratu r a es escri ta e oral or al,, hi stór tór i a e reli rel i giã gi ão?
BAIANO: [primeiro] Leia isso: “Onde tu vais Madalena/ Pra cidade de Alexandria / Quando passar na Turquia/ Me chame Tapindaré/ Tapindaré é uma estrela/ Que brilha de noite e de dia/ Tapindaré é uma jóia/ Filha do rei da Turquia.” Poesia, poesia, poesia pura. [segundo] Sei lá. Acho que a mídia pode assumir o papel de intermediação, ao registrar estas manifestações e apresentá-las a um público novo, urbano, que não tem a menor ideia de que estas coisas existem. ROBERTO: [primeiro] É poesia pura. E pessoalmente eu sinto que as pessoas com quem convivemos no período de 2 meses em que estivemos filmando em São Luís, são pessoas muito integradas integradas com contextos poéticos: músicos, músicos, atores, pais e mães de santo. A comunidade comunidad e que conhecemos então era a comunidade comunida de na qual estas pessoas viviam. Através dos olhos e do espírito lírico delas é que conhecemos o Maranhão. [segundo] Acho que a mídia é um suporte. Todo o encantamento do CD nós reproduzimos em 2001 no show de lançamento do disco com duas apresentações na sala Funarte, no Rio, e uma no MAM-SP. No palco adaptamos as músicas e as histórias e mantivemos a força poética do enredo que balizou a construção do CD. Acho que fomos felizes nos dois projetos. Eu precisaria refletir um pouco mais para responder assim de bate-pronto se a mídia quebras as distâncias as quais você se refere, mas eu tenho uma “pensata” sobre este trabalho todo que tem a ver com mídias e suportes. Nós partimos de um filme, depois um cd de músicas e histórias, depois um show. Um único material seminal pôde ser desenvolvido em diferentes suportes e formas artísticas. Esse desdobramento é inerente ao show business urbano internacional (só faltou o livro). Pegando carona na resposta do baiano, a gente trouxe as manifestações para um público urbano, urbano como nós mesmos, os produtores. PERGU NTA 8: Na últim lt im a faix f aixa, a, na cena cena do depoimento do profess professor Nascim Nascim ento de M . F i l h o, vocês optaram optar am por po r cons con servar a descr descrii ção in i n tr odutóri odu tóri a do tak e (Câmer (Câmera1D a1Dom om Sebasti Sebasti ão, entr evi evi sta 1, cena 1, 1 , take1). tak e1). De D e cer cer to modo m odo i sso traz tr az o ouvi ou vin n te par a os basti basti dores dor es da gr avação na n a medi da em qu e mo mostr stra a o car áter docu mental men tal . O qu e ess essa a voz repr esenta esenta par a vocês?
BAIANO: Novamente, trata-se de um truque narrativo. Depois de fazer o ouvinte viajar pelas lendas, na última música desnudamos o processo, ou seja: mostramos pra ele que aquilo tudo faz parte de uma dinâmica de filmagem, de um documentário realizado no Maranhão anos atrás. Também é uma forma de fechar o círculo, o ciclo. Acabamos o disco exatamente onde o filme começou, na primeira tomada, da primeira cena. Acredito que são estes pequenos detalhes narrativos que diferenciam um trabalho mais, digamos, envolvente – como espero que seja o nosso – de um simples registro documental.
364 ROBERTO: ROBERTO: Representa também a caracterização daquele depoimento, especificamente, como um dado de estudo de análise dos mitos e lendas. Porque tudo antes parecia fenomenal, fora da realidade, uma coisa de sonhos e devaneios de efeito da diamba. Mas para toda essa mitologia existe um sentido que aquilo que explica porque sonhamos, porque precisamos dos mitos. Porque eles nos ajudam a perceber e a enfrentar a dramática condição humana. Eles dão sentido àquilo que não tem sentido. Por isso, o professor aparece no final explicando o caráter messiânico da lenda. Porque os mitos fazem parte da construção de ideais.
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IX. O REI QUE VIROU LENDA [livro [livro infantojuvenil] Publicado em 2009 pela editora Girafinha, São Paulo. No original foram suprimidos suprimidos alguns versos. versos.
Aos pescadores da da Ilha de Lençóis, no Maranhão, Maranhão, que esperam a volta do Rei Sebastião. Cláudio Rodrigues
Um rei na barriga
Há muito tempo, lá pras bandas de além-mar, Um rei morreu, deixando esposa a chorar. Sua rainha estava grávida e por lei O seu filhinho haveria de ser rei. Se o menino não nascesse... que horror... O reino em outras mãos cairia, um terror! O povo todo começou a desejar. Com muita fé pedia pro neném chegar. chegar. “O Desejado”, assim chamavam o menino, menino , Era o futuro deste povo, seu destino. Enfim, a corte corte ansiosa ansiosa estremeceu estremeceu De alegria quando o bebê nasceu. Sinos tocaram: blém, blém, blém, o nosso bem. Som de tambores, bum bum bum, ouviu-se além. O reino agora não podia sucumbir. E teve festa sete dias por ali.
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O rei-menino
Sebastião foi o seu nome de batismo. Nome de santo, santo, cavaleiro destemido. destemido. Sua mamãe era espanhola e regressou À sua terra, mas o filho ela deixou. Mas como pode um rei-menino governar? Sua avó e o seu tio estavam lá. A avó-rainha era só dedicação Seu neto não podia ter preocupação. preocupação . Ele crescia sem desejos de herdeiro. Sua vontade era ser forte guerreiro. Sonhava estar guerreando nas batalhas. Era esgrimista dedicado nas suas aulas. Sebastião amava a caça com falcões. E se embrenhava nas campinas com aldeões. Ele pensava: “No meu reino haverá Muitos guerreiros, sempre prontos pra atacar'”. “Não temerei nenhum temerei nenhum monarca enfurecido, Pois sou o rei mais corajoso e decidido”.
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Preparando a guerra
E o menino jovenzinho se tornou. Na festa da coroação ele falou: “Meu povo, agora que de fato sou o rei Nosso inimigo pra bem longe afastarei”. Tempos atrás, mouros entraram pouco a pouco E o rei agora só pensava em dar o troco. O rei juntou seu sonho ao sonho de outro moço, Um muçulmano destronado em Marrocos. Os dois reizinhos seus exércitos montaram E ao deserto do Saara então marcharam. Não esperavam de Ahmed o poderio. Sultão esperto preparou tudo em sigilo.
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A batalha dos três reis
No grande dia, lá do alto, o falcão Era os olhos do valente Bastião. Tropas marcharam com pesada artilharia. Vinte mil homens com os reis jovens havia. Setenta mil bravos guerreiros muçulmanos Pôs o sultão, já suspeitando dos seus planos. Mas o deserto é traiçoeiro, faz miragem, Engana o trouxa, faz o forte ver visagem. Os reis caíram na cilada do areal. Rapidamente esgotaram o arsenal. Uma loucura era a luta, perceberam Mas, já bem tarde. Muitos homens pereceram. Outros fugiram, sem pensar no rei amado Que, corajoso, não se deu por derrotado. Fez-se silêncio, tudo então escureceu. O sol fechou a sua cara e se escondeu. Uma cortina de areia envolveu Mortos e vivos. O deserto então venceu.
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A ilha encantada
- Cadê o rei? Onde ficou nossa vitória? Todos queriam escutar aquela história. O rei jamais foi encontrado, e o povo aflito Passou a crer que ele estava escondido. Faz muito tempo, e essa lenda só cresceu. Pegou o rumo do oceano e aqui desceu. Pois numa ilha, no nordeste do Brasil Os pescadores juram que o rei surgiu... Numa barquinha encantada ele aportou E fez seu reino no areal que encontrou. Em noite clara de luar... assombração. Um fogo surge em Lençóis, no Maranhão Na morraria há um mundo encantado. Lá tem castelo e tesouros enterrados. Nada dali ninguém se atreva a levar Pois a canoa em alto-mar vai atracar.
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O reino do encoberto
O rei se mostra como um touro reluzente. Galopa as dunas, deixa jóias de presente. Ele adora ver a dança dos golfinhos Vigia o mar montando um cavalo-marinho. Tira a coroa, põe o seu lindo penacho. Feito criança toma banho no riacho. Voa com as garças, se confunde com a guará Brinca nas árvores tocando maracá. Namora a Iara e chora com seu belo canto Olha as estrelas e entoa um acalanto. Ordena ao vento que modele a areia. Bate tambor para saudar a lua-cheia. Em sonho diz: “eu sou o dono desta il ha. Meu filho, dê valor a esta maravilha!” Uma serpente com a cauda enrolada Abraça a ilha e não quer ser perturbada. Se bem na testa alguém ferir o touro negro Todo o encanto se desfaz e emerge o reino. Das profundezas da areia brota a vida E as trombetas anunciam a folia. Bumba meu boi entra urrando no terreiro E sua alegria ecoará no mundo inteiro.
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X. ATA DA FUNDAÇÃO DO MEMORIAL REI SEBASTIÃO Aos 14 dias do mês de janeiro de 2010, às 18h00, no pátio externo do colégio da Ilha de Lençóis, povoado de Cururupu, no Maranhão, o professor Claudio Rodrigues, doutorando em Poética pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, fundador do memorial Rei Sebastião reuniu-se com representantes e lideranças de diversos segmentos do povoado. O objetivo da reunião foi informar à comunidade sobre a importância da casa da memória. O presidente da sessão, o professor Cláudio Rodrigues apresentou-se e fez um balanço dos anos de pesquisa de sua tese na ilha. Em seguida apresentou o resultado do trabalho: a tese e um livro infantil. Explicou a importância das lendas em torno da figura do rei Sebastião para a cultura brasileira. Em seguida, falou de como decidiu fundar o memorial, segundo o qual a Ilha precisa guardar sua memória para as futuras gerações. A casa será composta de cinco cômodos, a saber: sala de leitura, sala de exposição, sala de multimídia, varanda da pesquisa e sobrado. O fundador explicou que o sobrado deve destinar-se a sala de reuniões para os organizadores das manifestações culturais e religiosas da ilha, além de poder servir como sala de aula para as turmas de alfabetização de adultos. Além disso, o sobrado poderá hospedar pesquisadores ou outras pessoas que por ventura estejam a trabalho na ilha, não sendo espaço para moradia nem para hospedagem comum. Também foi apresentada a bandeira de Lençóis seguida de explicação das etapas para que ela fosse elaborada. Em seguida, abriu-se espaço para os presentes se manifestarem e escolherem os responsáveis pela manutenção e organização da casa. Mário falou que os livros não podem ser emprestados de qualquer jeito, mas que precisa de uma educação para que os adultos não deixem as crianças riscarem ou molharem. Cláudio explicou que o empréstimo é a parte mais difícil do trabalho, mas é necessária, porque os livros precisam ser lidos; mas anotar e conferir os danos devem ser práticas constantes. Abriu-se a discussão para escolha de quatro responsáveis. Cláudio apontou o nome de Rosa que, segundo ele, por dar aulas de alfabetização na sua casa, pode usar o espaço do sobrado para as aulas e colaborar na manutenção do espaço. Falou-se ainda da possibilidade de se organizar os papeis para inscrever o memorial como ponto de cultura a fim de que futuramente a casa tenha seu próprio custeio de manutenção e possa, inclusive, ter verba para organizar o boi, a quadrilha e o festejo do padroeiro. Por fim, a comunidade foi apontando possíveis colaboradores, que manterão a casa aberta e organizada. Assim, foram escolhidos, além de Rosa, os seguintes nomes: Lailson, Nango e Ziza. Os três se comprometem a colaborar para auxiliar a comunidade na manutenção da casa, de forma voluntaria, sem cobrar nada nem do fundador da casa nem da comunidade. Foram entregues os convites para a inauguração. Concluiu-se falando da possibilidade de fazer um churrasco para a comunidade. Os presentes decidiram organizar um grupo para pedir contribuição para comprar a carne e organizar as cozinheiras. Encerrada a reunião, eu, Claudicélio Rodrigues da Silva (Claudio), que presidi a sessão, lavrei esta ata que vai assinada pelos presentes, a começar por mim: Fundador do memorial: ________________________________________________ Claudicélio Rodrigues da Silva
Responsáveis voluntários: __________________________________________________ Maria de Fátima Azevedo (Rosa)
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__________________________________________________ Nilson Carlos Rabelo Araújo (Nango) __________________________________________________ Sebastião Bastos (Ziza) __________________________________________________ Lailson James Silva de Araújo _____________________________________________________
Presidente da Associação de moradores e representante do comércio __________________________________________________ Mário Oliveira
Representantes organizadores do carnaval e da quadrilha: __________________________________________________ Erinaldo de Jesus Silva __________________________________________________ Maria de Fátima Torres Silva Responsáveis pelas festividades do padroeiro __________________________________________________ José Ramos da Silva Responsáveis pelo culto do Tambor de Mina: __________________________________________________ Manoel Carlos Azevedo (Maneco) __________________________________________________ Maria José Rabelo Araújo (Nem) Agente colaborador da RESEX: __________________________________________________ Joel Oliveira Outros participantes: __________________________________________________ Irailde Miranda Oliveira __________________________________________________ Simião Silva Torres __________________________________________________ Josenildo Costa Barros __________________________________________________ Maria Nilda Rabelo __________________________________________________ José Maria Oliveira (Balum)
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XI. FOTOS DA CONSTRUÇÃO DO MEMORIAL
A casa em construção.
Crianças fazem desenhos que serão base para pintura dos painéis.
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Voluntários trazem raiz de mangue para a árvore dos mitos.
Telma e crianças estalam palha de palmeira, para o telhado.
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Meninos pintam painel das lendas.
Maneco, o carpinteiro, monta as estantes.
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Jovens finalizam a placa.
Dona Nê faz arranjo para oratório
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O memorial
A placa e as janelas do sobrado.
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Dona Amada, a antiga pajoa, é homenageada com a sala de leitura.
Bastião recepciona as crianças.
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A boneca Bastiana também alegra a criançada.
Estante dos livros juvenis
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Estante do acervo sebastiânico.
Exposição de fotos com os narradores. Ao centro, a reprodução da pintura do rei.
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Téo, o guia, apresenta o canto dedicado ao bumba meu boi.
Wilame, guia mirim, mostra o canto dedicado ao culto do Tambor de Mina.
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Téo apresenta o painel com pinturas das lendas.
Wilame apresenta o canto do oratório do padroeiro da ilha.
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Téo explica o estandarte feito por uma criança com o mapa da ilha.
Detalhe da árvore dos mitos.
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Frutos da árvore dos mitos: as obras literárias sobre o rei e a ilha.
Os peixes e os narradores.
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Jovens olham a carta náutica da região.
O povoado na parte noroeste da ilha.