CAPÍTULO 1
O P r o b l e m a M e n t e- C o r p o
pens pensa, a, etc) etc) é a mente mente (ou alma, alma, ou espírito); segundo o outro, é o cérebro. De acordo com o primeiro, a mente é uma entidade imaterial onde ocorrem todos os estados estad os e processos proc essos mentais: entais: os sentimentos, memórias, idéias, e assim por por diante diante,, estar estariam iam na mente. mente. De acord acordoo com o segundo grupo de respostas, a mente não é uma coisa à parte, mas um conjunto de funções ou atividades do cérebro: perceber, imaginar, pensar, etc, seriam processos cerebrais. Ocasionalmente, os defensores da autonomia da mente negam a realidade dos corpos e, em geral, das coisas concretas: são os monistas espiritualistas ("Só existem experiências"). Hoje em dia, a maior parte dos que acreditam no status separado da mente reconhece a existência de corpos junto a mentes: são chamados dualistas psicofísicos e aparecem em várias plumagens. Unem-se sob a convicção de que a mente tem uma existência separada do cérebro. Por outro lado, os que sustentam que o mental é uma função corpórea (neural) são chamados monistas psicofísicos e, também eles, aparecem em tipos variados. Específicamente, há monistas niveladores, de um lado, e monistas emergentistas, do outro. Os primeiros negam enquanto os últimos afirmam que o cérebro difere qualitativamente de outros sistemas materiais, principalmente dos computadores. (Do mesmo modo, os niveladores negam a tese emergentista de que as funções mentais do cérebro são diferentes de suas funções de manutenção.) Porém, tanto os niveladores como os emergentistas em questão esperam conseguir compreender o mental estudando os componentes do cérebro e suas interações: isto é, ambos são reducionistas, embora de tipos diferentes. A diferença será explicada na próxim próximaa seçã seção. o.
1. O problema e as principais soluções propostas
Perceber, sentir, lembrar, imaginar, desejar, e pensar são considerados proces-sos proces-sos ou estad estados os mentai mentais. s. (Ignoraremos, por enquanto, a pers perspe pect ctiv ivaa inco incomu mum m de que que esse essess fatos não existem.) Uma vez que estados ou proc proces esso soss não não exist existem em em si mesm mesmos os,, mas somente estados de alguma entidade e processos em alguma entidade, devemos indagar quem mentaliza — isto é, qual é a coisa que percebe, sente, lembra, imagina, deseja e pensa. Esta é a questão central do chamado problema mente–corpo, isto é, a identificação do sujeito a que se referem os predicados mentalistas. É possível adotar uma posição dentre três, com relação a este problema: que é um pseudoproblema, que é um proble problema ma gen genuíno uíno poré porém m inso insolú lúve vel,l, ou que é um problema tanto genuíno quanto solúvel. A primeira atitude foi tomada pelo peloss beha behavi vior oris ista tas, s, refl reflex exol olog ogis ista tass e posit positivi ivista stass lógic lógicos os,, com com base base na crenç crençaa filosófica de que apenas o comportamento observável pode ser estudado cientificamente. Esta questão foi sepultada já há algum tempo. A segunda atitude, adotada por Hume (1739) e popularizada há um século pelo filósofo-psicólogo-sociólogo Herbert Spencer (1862) e pelo fisiólogo Emil Du Bois-Raymond (1872), é a de que não sabemos nem nunca saberemos (ignoramus et ignorabimus ) como as atividades cerebrais geram os fenômenos mentais. Esta crença não só está fora de moda como é estéril. Os que nutrem esperanças de que o prob proble lema ma ment mente–c e–corpo orpo possa ser solucionado propuseram dois grandes conjuntos de respostas. Segundo um deles, quem mentaliza (percebe, deseja, 1
O PROBLEMA MENTE-CÉREBRO Tabela 1.1. Dez 1.1. Dez pontos pont os de vista vist a sobre o pro blema mente-cor me nte-corpo po φ representa o corpo (ou o físico ) e ψ a mente (ou o mental )
Monismo psicofísico
Dualismo psicofísico
é ψ : i d e a l i s m o , p an-psiquismo, feno-
D 1
φ e ψ são independentes. Sem defensores até agora, exceto por L. Wittgenstein.
φ e ψ são algumas das muitas manifestações de uma única entidade: monismo neutro , pe r s p ec ti va do du pl o aspecto . Spinoza, James, Russell, Carnap, Schlick, Feigl.
D 2
φ e ψ são paralelos ou sincrônicos: pa p a r a l e li s m o p s i-co i- co fí si co , harmonia préesta-belecida . Leibnitz, R.H. Lotze, H,
Nada é ψ : materialismo elimi-nativo, behaviorismo . J. B. Watson, B. F.
D 3
M 1 Tudo
menalismo .
Berkeley, Fichte, Hegel, Mach, James, Whitehead, Teilhard de Chardin
M 2
M 3
Jackson, alguns gestal-tistas.
Skinner, A. Turing, R. Rorty, W. V. Quine M 4
M 5
C. D. Broad, A. J. Ayer, R. Puccetti.
ψ é físico: materialismo fi f i s i-ca i- ca li s ta r e d u t i v o. Epicuro, Lucrécio, Hobbes,
ou K. S. Lashley, J.J.C. Smart, D. Armstrong, P.K. Feyerabend
D 4
ψ é
D 5
ψ afeta, causa, dá vida, ou controla φ: animismo . Platão, Agostinho, Aquino. S.
Freud, R. Sperry, K. R. Popper, S. Toulmin
um conjunto de funções (atividades) materialismo cerebrais emer-gentes: emer-gentista . Diderot, C. Darwin, T. C. Schneirla, D. Hebb, D. Bindra
Em resumo, há dois gêneros princ principa ipais is de soluç soluçõe õess do proble problema ma mente–corpo a serem conhecidos, o monismo psicofísico e o dualismo psicofísico psicofísico. E cada um desses grupos abrange pelo menos cinco doutrinas diferentes (ver Tabela 1.1, adaptada de Bunge, 1977b). Para detalhes sobre várias dessas doutrinas, ver Armstrong (1968), Borst (1970), Cheng (1975), Feigl (1967), Globus et al. (1976), Glover (1976), Hampshire (1966), Margolis (1978), O'Connor (1969), Popper e Eccles (1977), Smythies (1965), e Vesey (1964). Passemos a um exame rápido de todas as dez doutrinas. 2. Exame preliminar perspectivas antagônicas
φ afeta ou causa (ou mesmo secreta) ψ : epifenomenalismo . T.H. Huxley, K. Vogt,
interacio-nismo . φ e ψ interagem: Descartes, W. McDou-gall, J. C. Eccles, K. R. Popper, J. Margolis
dizem que o corpóreo e o mental — seja lá o que isso for — são interdependentes. interdep endentes. Quanto à tese D 2 , do paralelismo ou sincronismo, ela faz a indagação ao invés de respondê-la, pois o que queremos saber é exatamente quais são as pecu peculia liarid ridad ades es do mental e quais os mecanismos que realizam as seqüências "paralelas" de estados fisiológicos e mentais. Dizer que os eventos mentais têm "correlatos" neurais não é lá muito informativo a não ser que se indique o que é um estado mental (em uma outra linguagem que não a comum) e se explique a natureza de sua "correlação" com seu "correlato" neural. Por essas razões, D 2 é vaga a ponto de ser confirmável por qualquer tipo de dado e de ser incapaz de sugerir quaisquer experimentos ou teorias. Portanto D 2 não é uma hipótese científica e assim a descartaremos. Do lado dualista defrontamo-nos com teses que postulam uma substância
das
Não
precisamos considerar a tese D 1 , da independência, já que tanto a introspecção quanto as neurociências nos 2
O PROBLEMA MENTE-CÉREBRO
agindo sobre outra. Entretanto, também aqui se supõe que apenas o físico seja passível de ser conhecido, enquanto o mental é deixado nas trevas ou, quando muito, aos cuidados de filósofos não científicos ou mesmo de teólogos. Nós compreendemos o que seja um neurônio, ou sistema neural, ou qualquer outra coisa, estar neste ou naquele estado: o estado de uma coisa é a lista das propriedades que ela apresenta em um dado momento. E nós compreendemos o que seja um processo ou evento neural, espe-cialmente uma alteração no estado — e portanto, de algumas de suas propriedades — de uma unidade neural (neurônio, grupo de neurônios ou todo o sistema nervoso). Conseqüentemente, nós sabemos o que significa uma unidade neural (neurônio ou grupo de neurônios) atuar sobre outra: A atua sobre B se, e apenas se, os estados de B, quando este estiver conectado a A, não forem os mesmos de B quando este não estiver conectado. Em resumo, temos uma noção geral e precisa dos estados e funções (processos) de coisas concretas, tais como neurônios e sistemas neuronais. (Ver Bunge, 1977a, b.) Mas essas noções gerais e precisas de estado e de evento, comuns a todas as ciências, não são transferíveis à mente. (Se forem, ninguém ainda mostrou como.) Especificamente, não foi demonstrado que estados de espírito, memória e idealização sejam propriedades, ou alterações de propriedades, de uma substância mental (mente, alma ou espírito). Em resumo, os conceitos de estado, evento e processo mentais não se ajustam à estrutura geral da ciência contemporânea a menos que sejam elaborados em termos neurais, isto é, respectivamente como um estado do cérebro ou um evento ou processo em um cérebro. Esta é uma das razões da incapacidade dos dualistas de irem além da etapa das formulações verbais e metafóricas. Eis porque não existe um único modelo dualista — em particular
um modelo matemático — na psicologia fisiológica. E eis porque o dualismo é a menina dos olhos dos filósofos da linguagem comum e dos psicólogos filosóficos. Em poucas palavras, o epifenomenalismo (D 3 ), o animismo (D 4 ) e o interacionismo (D 5 ) são tão imprecisos quanto o paralelismo (D 2 ) — que é o esperado das perspectivas populares, isto é, não científicas. (Lembrem-se de que o conhecimento comum é em grande parte superstição popular.) E, não sendo hipóteses precisas, dificilmente poderão ser sub-metidas a testes empíricos. Além disso, mesmo que o paralelismo e o intera-cionismo fossem formulados de modo preciso, pode ser impossível decidir entre eles com base nos dados empíricos. Na verdade, poderia parecer que cada experiência psicológica e cada experimento psicofisiológico podem ser interpretados (ou mal interpretados) tanto em termos paralelistas quanto em termos intera-cionistas, uma vez que, de acordo com ambas as doutrinas, os eventos neurais são simultâneos a seus "correlatos" mentais. Somos levados a concluir que as duas variantes mais populares do dualismo psiconeural, particularmente o paralelismo e o interacionismo, embora conceitualmente diferentes, são igualmente confusas e se equivalem empiricamente na medida em que concordam (facilmente demais) com os mesmos dados empíricos. Por essas razões — que serão examinadas mais detalha-damente nas próximas subseções — o dualismo não é cientificamente viável. Conseqüentemente, é inaceitável para uma filosofia orientada cientificamente. Ficamos então com o monismo psicofísico como a única alternativa científica e filosoficamente viável. No entanto, como mostrado na Tabela 1.1 (ou na equivalente Figura 1.2), o monismo psicofísico é toda uma classe de doutrinas, de modo que 3
O PROBLEMA MENTE-CÉREBRO
Figura 1.1 - Inibição lateral como uma pro priedade emergente do teci do nervoso. (a) Propagação de uma excitação em um fluido ou campo: a excitação se espalha. (b) No tecido nervoso, há excitação (conexividade positiva) em neurônios vizinhos e inibição (conexividade negativa) em todos os demais: ao invés de se espalhar, a excitação fica confinada ou localizada no sistema neural em questão.
precisamos examiná-las separadamente. O idealismo (M 1 ) pode ser descartado sem maiores dificuldades por ser incompatível com as ciências, todas elas ocupadas com a elaboração de hipóteses ou com a manipulação de entidades concretas, muitas das quais não observáveis (e portanto, transfenomenais), como átomos, campos e sociedades. Além do mais, espera-se que a Ciência adote a abordagem científica, que inclui a objetividade. Em suma, qualquer redução ao mental é incompatível com Ciência. Já o monismo neutro (M 2 ) tem ainda que ser formulado de modo claro e em concordância com as ciências naturais. (Nem mesmo Russel, 1921, talvez o filósofo mais lúcido de todos os tempos, conseguiu explicar claramente o monismo neutro, ao qual foi favorável uma vez, ou dissipar a suspeita de que se trata de uma forma de obscurantismo, já que lança mão de uma "substância neutra" que deve continuar desconhecida exceto por suas manifestações — materiais e mentais.) E o emergentismo (Ostwald, 1902), que apresenta uma certa
precisão, não é suficientemente exato e se recusa explicar a maravilhosa variedade qualitativa do mundo. (Além do mais, baseia-se na errônea reificação da energia, que é uma propriedade de todas as coisas e não uma coisa.) Podemos, assim, descartar M 2 e voltar nossa atenção para o materialismo. Com relação ao problema mentecorpo, distinguimos três variedades principais de materialismo, a saber: eliminativo, redutivo (nivelador) e emergentista. O materialismo eliminativo (M 3 ) sustenta que não existe essa coisa mental: que tudo é material no sentido estrito de "físico". Uma versão desta doutrina é a tese epicurista, elaborada por Lucrécio, de que a mente é um enxame de delicados corpúsculos. (Para um ressuscitamento contemporâneo, ver Culbertson, 1976.) Uma versão mais refinada do materialismo eliminativo é o behaviorismo, que se recusa a lidar com estados e eventos mentais — alegando que não existem — e não investiga o sistema nervoso mas considera os animais como uma caixa preta que obedece à física aristotélica. Ao se 4
O PROBLEMA MENTE-CÉREBRO
recusar a encarar os fatos da mentalidade, o materialismo eliminativo torna-se um alvo perfeito para dualistas, como Popper e Eccles (1977). Pelo mesmo motivo não oferece soluções ao problema mente– corpo, alegando que o problema inexiste. Podemos, portanto, eliminar o materialismo eliminativo ou M 3 . Ficamos então com o materialismo redutivo (M 4 ) e com o materialismo emergentista (M 5 ). Ambos sustentam que todos os estados (ou eventos ou processos) mentais são estados (ou eventos ou processos) do sistema nervoso central (ou de uma parte dele). Assim, ambos reconhecem a existência do mental enquanto negam que o mesmo seja uma entidade separada. Essas doutrinas diferem em relação à natureza do sistema nervoso central — ou SNC, para abreviar — e conseqüentemente quanto à maneira adequada de explicar as funções mentais como processos do SNC. De acordo com o materialismo redutivo ou fisicalismo (M 4 ), o SNC é uma entidade física que difere de outros sistemas físicos apenas quanto à complexidade. (Alguns alegam que o cérebro é um computador.) Conseqüentemente, a explicação do mental deve exigir apenas conceitos e teorias físicos no sentido restrito ou técnico de "físico". No jargão filosófico: o materialismo redutivo envolve tanto a redução ontológica (isto é, nivelamento) quanto a redução epistemológica — isto é, a transformação da psicologia em um ramo da física. Eu rejeito a ontologia fisicalista, por não se ajustar à variedade qualitativa da realidade e à epistemologia que a acompanha, por ser excessivamente ingênua e quixotesca. O materialismo emergentista (M 5 ) sustenta que o SNC, longe de ser uma entidade física — principalmente uma máquina — é um biossistema, isto é, uma coisa complexa dotada de propriedades e leis peculiares às coisas vivas e, além de tudo, muito peculiares, isto é, não
compartilhadas por todos os biossistemas. ( Exemplo 1: A atividade espontânea ou auto-iniciada, notória nas células nervosas, é raramente encontrada. Exemplo 2: A inibição lateral, típica do tecido nervoso, parece não ocorrer nos sistemas físicos, onde qualquer perturbação se propaga: Figura 1.1. As funções mentais seriam funções do SNC e, longe de serem processos puramente físicos, seriam emergentes em relação ao nível físico.) A alegada emergência do mental é dupla: as propriedades mentais de um SNC não são apresentadas por seus componentes celulares mas são propriedades do sistema e, ademais, não resultantes; e emergiram em algum ponto no tempo no curso de um longo processo evolucionário biótico. (Existe a evolução pré-biótica, por exemplo a molecular, mas que não obedece exatamente as mesmas leis.) Conseqüentemente, embora a física e a química sejam necessárias para explicar as funções do SNC, são insuficientes. Também não basta a biologia geral: precisamos conhecer as propriedades e leis emergentes específicas do SNC, não aquelas que ele compartilha com outros subsistemas do animal, tais como os sistemas cardiovascular e digestivo. O materialismo emergentista rejeita ontológico o reducionismo ou achatamento da variedade qualitativa: é, na verdade, ontologicamente pluralista com relação a propriedades e leis. Mas adota o reducionismo epistemológico — embora moderadamente, pois, ao mesmo tempo que sustenta que o mental pode ser explicado em termos científicos e que a física e a química são necessárias para essa explicação, também alega que novos conceitos, princípios e teorias referindose especificamente ao SNC — embora obviamente compatíveis com a física, química e biologia geral — são necessários para explicar o mental de uma maneira científica. Daí a regra: Junte as várias abordagens ao problema e 5
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Figura 1.2 - Esquema dos principais pontos de vista sobre o problema mente -corpo. Círculo tracejado: mente; formato de cérebro: cérebro.
reduza se possível, mas não se atrapalhe no processo: a integração é mais exeqüível e tão valiosa quanto a redução. (Ver Bunge, 1980a.) O materialismo redutivo, ou fisicalismo, sustenta que o cérebro não passa de um agregado de células, de tal forma que conhecer as últimas não só é necessário mas também suficiente para o conhecimento do primeiro e, portanto, para a explicação do mental. Essa tese reducionista é falsa. De fato, afirmar que o cérebro é composto por um conjunto de células não implica que o mesmo seja nada mais do que este conjunto, não mais do que dizer que uma sociedade humana composta por um bando de humanos significa que a mesma seja nada mais que seus membros; e isto é assim pelas razões que se seguem. Primeiro, uma coisa não é
um conjunto; especificamente, um sistema não é idêntico ao conjunto de seus componentes. Segundo, um cérebro é um sistema e, conseqüentemente, algo dotado de uma estrutura e de um ambiente, não apenas uma composição. E a estrutura do cérebro inclui as conexões entre seus neurônios. O resultado é um sistema com propriedades emergentes — tais como ser capaz de perceber, sentir, lembrar, imaginar, desejar, pensar, e outras — que faltam a seus componentes celulares. Certamente que se pode (tentar) entender todas essas propriedades globais em termos de neurônios e de suas interações. Isto é, pode-se (tentar) "reduzir" as propriedades molares do cérebro às propriedades de seus microcomponentes e de suas ligações. 6
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Porém uma explicação dessa natureza — que ainda está para ser feita — não segue uma redução ontológica, isto é, o achatamento da variedade qualitativa. A visão explicada ainda é visão, a imaginação explicada ainda é imaginação e a consciência explicada ainda continua consciência. Portanto, o reducionismo ontológico (ou nivelamento) é tão indefensável na questão da mente quanto o é na questão da matéria. (Ver Bunge, 1977b, c, 1979a. Em resumo, o materialismo redutivo — ou fisicalismo — é indefensável porque não consegue explicar a especificidade do mental. (Incidentalmente, não consegue nem mesmo explicar as propriedades emergentes dos biossistemas.) Especificamente, não permite distinguir o homem de seu primo mais próximo, o chimpanzé, tão semelhante ao nível celular e tão diferente em níveis superiores. Portanto descartaremos M4. Isso nos deixa com o materialismo emergentista (M5). Porém antes de aceitá-lo, façamos uma análise mais detalhada do dualismo psicofísico, principalmente por ser muitas vezes acatado ou rejeitado com bases puramente ideológicas.
pelos antigos cristãos. Não há incompatibilidade lógica entre o materialismo e a credo cristão. Como escreveu Locke (1690, Bk. IV, Cap 3, S. 6): "Todos os grandes objetivos da moralidade e da religião estão suficientemente a salvo, sem provas filosóficas da imaterialidade da alma; uma vez que é evidente que nosso criador... pode e irá nos restaurar para a mesma sensibilidade em um outro mundo." Além disso, Priestly (1977, apud Brown, 1962), o erudito teólogo e químico, escreveu que o materialismo "dá muita importância à doutrina da ressurreição dos mortos" (p. 271). Correto, "o que denominamos mente, ou princípio da percepção e do pensamento, não é uma substância diferente do corpo, mas o resultado da organização corpórea" (p. 265). Em conseqüência, o mental cessa com a morte, que é a decomposição; mas "tudo que é decomposto pode ser recomposto pelo Ser que o compôs pela primeira vez" (p. 272). Em resumo, nem as Escrituras nem os argumentos sustentam o ponto de vista de que o dualismo psicofísico é parte e parcela da religião Cristã. A verdade histórica é que doutrina Cristã da alma foi retardatária e, além do mais, foi emprestada do filósofo pagão Plotino e do filósofo judeu Filo. (ii) O dualismo explica a
3. A favor do dualismo
sobrevivência
Numerosas razões foram oferecidas em apoio ao dualismo psicofísico, além do argumento ad baculum de que tem sido a postura oficial do Ocidente durante milênios. Seguem-se alguns argumentos e nossas objeções a eles. (i) O dualismo faz parte da religião, principalmente do cristianismo. Correto, a crença na existência de entidades desencarnadas (almas, espíritos, fantasmas, demônios, divindades, etc) é central em todas as religiões contemporâneas. Mas a crença na imaterialidade da mente humana é estranha ao judaísmo e não era sustentada
pessoal
e
a
PES.
Certamente que sim, e esta é a razão pela qual tem sido defendida pelos que creem na sobrevivência após a morte ou nos paranormais, como os pensadores não religiosos Ducasse (1951), Price (1952), Beloff (1962), Broad (1962) e Smythies (1965a, b). De acordo com eles, as mentes sobrevivem aos cérebros, e a mente dos mortos habita um tipo de mundo onírico feito de imagens mentais. Esta é uma versão espiritualista do epifenomenalismo, uma vez que supõe que os cérebros segregam entidades mentais do mesmo modo que os transmissores de rádio geram ondas 7
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radiofônicas. Os senões dessa doutrina são: (a) não há a menor evidência a seu favor — a menos que se leve em conta casos de sessões espíritas ou contos da carochinha; (b) reificação de processos como o da imaginação — na verdade, separa as imagens daquilo que produz a imaginação; (c) inconsistência com os princípios básicos da ciência moderna, conforme reconhecido pelo próprio Broad (1962). (Para uma defesa do dualismo de um ponto de vista hilomórfico que considera todas as forças e leis naturais como entidades mentais, ver Polten, 1973.) (iii) O dualismo está entranhado na linguagem cotidiana . De fato, no linguajar do dia-a-dia usamos expressões como "Tenha em mente que...", "Isso não sai da minha mente" e "Está gravado na mente". Até os cientistas usam expressões recendendo a dualismo, tais como "as bases físicas da mente" e "o controle físico da mente". Em resumo, não há dúvidas de que o inglês e outros idiomas comuns trazem o dualismo em seu bojo. Pior para o dualismo, pois isso apenas mostra que é uma doutrina vulgar e obsoleta. Por outro lado, as teorias científicas envolvem conceitos e declarações de cunho técnico, que exigem expressões que ultrapassam, e freqüentemente contrariam, a linguagem cotidiana. (Pensem em qualquer modelo matemático da Psicobiologia.) A linguagem cotidiana é a voz do bom senso que, por sua vez, é "apenas um sistema de mitos aceitos por uma comunidade" (Agassi, 1977, p. 77). (iv) O dualismo explica tudo da maneira mais simples possível . Correto, o dualismo explica não só a vida mental do homem mas tudo no mundo, seja em termos de espíritos interiores (animismo imanente) seja em termos de alguns seres espirituais fora deste mundo (animismo transcendente). Além disso, explica tudo de modo simples e familiar, e portanto inteligível. Assim, o dualista pode alegar que eu percebo (ou imagino ou penso
em) X porque tenho X na mente (dualismo nativista) ou porque minha mente deixa X entrar (dualismo empiricista) ou porque minha mente cria X (dualismo idealista). Todos os problemas relacionados ao mental são assim solucionados de um só golpe, rotulando; não há necessidade de qualquer pesquisa. Entretanto, é óbvio que essas virtudes domésticas do dualismo tornam-no inadequado para a Ciência, que não conhece panacéia e não considera a simplicidade como sinal de verdade (Bunge, 1963). O dualismo explica tudo muito facilmente. A Ciência nunca explica o bastante e raramente o faz com facilidade. (v) A mente deve ser imaterial porque a conhecemos diferentemente do modo pelo qual conhecemos a matéria: o conhecimento da primeira é privado, o da segunda é público . Em primeiro lugar,
nosso conhecimento de objetos de um determinado tipo — por exemplo, estados mentais — não os transforma em entidades: esses objetos podem ser propriedades ou estados de coisas concretas. Em segundo lugar, diferenças no modo de conhecer não garantem diferenças radicais no modo de ser. Portanto, nosso modo de conhecer os átomos é muito diferente do modo de conhecer corpos perceptíveis, ainda que ambos sejam coisas concretas. Em terceiro lugar, embora tenhamos experiência direta dos eventos mentais, também é verdade que temos experiência direta de (outros) eventos em nosso corpo mesmo sem o auxílio dos sentidos externos. Em quarto lugar, não é verdade que todos os eventos mentais são experienciados: tudo indica que não temos consciência da maioria deles. (O trabalho mental rotineiro não exige consciência a menos que surjam dificuldades.) Por outro lado, um observador especializado equipado com instrumentos adequados pode detectar alguns dos eventos mentais que escapam ao mecanismo de auto-observação. Em 8
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quinto lugar, a mente não é tão privativa quanto às vezes se crê, e isso porque o cérebro nunca está totalmente isolado. Na verdade, o cérebro é acessível não só por dentro mas também por fora, e de várias maneiras: cirurgia, estimulação elétrica, drogas, e simples comportamento — de uma palavra carinhosa a um murro no nariz. Os estados mentais e as alterações desses estados (eventos) são tão privativos, ou públicos, quanto o cérebro mentalizando. Na realidade, nosso acesso a esses eventos é mais facilitado que nosso acesso a eventos no núcleo atômico ou no centro de nosso planeta. Tanto assim que os últimos são acessíveis apenas a cientistas altamente especializados enquanto os estados e eventos mentais podem ser adivinhado por não cientistas dotados de alguma perspicácia psicológica. Além disso, pessoas comuns e outros animais podem exibir empatia, por exemplo, sentir alegria ou sofrimento quando vêm alguém mostrando sinais de alegria ou sofrimento. Em resumo, não existe uma cortina-de-ferro entre o privado e o público: apenas uma cortina (filosófica) de fumaça (Quine, 1953). (vi) Os predicados fenomenológicos
"doce") pertencem ao conhecimento (e à linguagem) comum, os predicados científicos não são fenomenológicos. Afirmar que a distância entre eles nunca diminuirá equivale a fazer a acusação e condenar a psicologia fisiológica sem ouvir sua defesa. Na verdade, um dos objetivos dessa disciplina é explicar fenômenos em termos profundos (não fenomenológicos) — do mesmo modo que a física e a química explicam as propriedades superficiais em termos de propriedades atômicas e moleculares. Não há motivos para negar a possibilidade de que um dia a neurofisiologia teórica possa surgir com definições como esta: O organismo b sente prazer do tipo K = df . O sistema subcortical s do organismo b, sob estimulação de eventos que ocorreram em c (um outro sistema neural, ou órgão do sentido, ou mesmo um eletrodo implantado em s) apresenta um padrão de atividade elétrica do tipo p. Negar essa possibilidade é puro obscurantismo. (vii) Enquanto os neurônios disparam digitalmente, nós somos capazes de ter experiências contínuas, por exemplo, somos capazes de perceber uma superfície verde sem interrupções.
são irredutíveis aos predicados físicos, portanto a mente deve ser substancialmente diferente do cérebro.
Um exemplo padrão é a diferença entre a luz (ou algum outro estímulo físico) e a percepção da luz (por exemplo, enxergar azul). Certamente que há uma grande diferença entre os dois processos, e também entre os predicados usados para descrevê-los. Contudo, isso não estabelece a existência de uma entidade mental separada. Serve apenas para mostrar a diferença qualitativa entre processos físicos e biológicos, principalmente quando os últimos acontecem no sistema nervoso. Quanto aos predicados propriamente ditos, a diferença é a que se segue. Enquanto os predicados fenomenológicos (por exemplo, "azul", "morno", "macio",
Esta é a conhecida "objeção granular", levantada por Sellars (1963) e aperfeiçoada por Meehl (1966). Não dá mais trabalho do que analisar uma mesa sólida e lisa como um sistema de átomos ligados compactamente. Na verdade, os eventos mentais não ocorrem em neurônios isoladamente ou mesmo em grupos de algumas dezenas deles, e provavelmente são alterações de estado de sistemas neurais compostos de milhares ou milhões ou mesmo bilhões de neurônios. Os físicos sabem que quando grandes quantidades de eventos se somam, o resultado é um processo quase contínuo que pode ser concebido 9
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como contínuo no espaço e no tempo. (Ver alguns modelos de campo teóricos da atividade neural em McGregor e Lewis, 1977.) Afinal, o olho humano não percebe qualquer descontinuidade em imagens projetadas de um filme, que é uma seqüência de quadros descontínuos. Logo, o argumento da estrutura granular não se mantem. (viii) Deve haver uma mente dando
explicação nenhuma. Se nos lembrarmos que os cérebros não são máquinas mas biossistemas extremamente complexos empenhados em um número muito grande de tarefas, e que os cérebros podem projetar máquinas mas o contrário não é verdadeiro, então podemos dispensar o fantasma (alma, espírito, mente) que dá vida à máquina. (Aliás, freqüentemente se esquece que o modelo computacional da mente, com sua dicotomia entre hardware e software e sua sugestão de que as operações de computadores são "incorporações da mente", é inspirado pelo dualismo e não pelo materialismo. O maquinismo do século dezoito, uma versão do materialismo vulgar, transformou-se numa sutil versão do dualismo psicofísico.) (ix) Há farta evidência do poder da
vida à maquinaria cerebral, pois as máquinas não têm mente. Os cérebros
são freqüentemente igualados aos computadores só porque esses são projetados para imitar (daí substituir) certas funções cerebrais, tais como memorizar dados e executar computações rotineiras. A analogia tem algum valor heurístico — mais para a engenharia computacional do que para a ciência do cérebro. As diferenças entre cérebros e computadores são pelo menos tão óbvias quanto as analogias. Em primeiro lugar, os neurônios podem disparar espontaneamente (e podem ser excitados apenas se estiverem ativos antes que a excitação chegue até eles.) Por outro lado, peças de computador não devem exibir qualquer atividade espontânea. Em segundo lugar, as conexões interneurônios podem ser plásticas (variáveis), enquanto as conexões entre as peças de um computador, uma vez estabelecidas pelo programa, são fixas. Em terceiro lugar, enquanto os computadores ficam ociosos sem os programadores, o cérebro é auto programado. Em quarto lugar, os computadores não estão vivos; assim, embora possam imitar alguns aspectos da idealização não a desenvolvem. Em quinto lugar, os computadores são projetados (com algum objetivo), enquanto os cérebros não. Resumindo, a analogia cérebro–computador tem sido excessivamente valorizada. Pior ainda, tem feito alguns psicólogos se desesperarem por nunca serem capazes de compreender a mente a menos que a aceitem sem discussão — o que não é
mente sobre a matéria -- por exemplo, movimento voluntário e planejamento.
(Para não falar da psicocinesia invocada por Eccles (1951) e outros dualistas interacionistas.) Certamente nem todas as ações no sistema nervoso são do tipo de baixo para cima: algumas, principalmente no cérebro de primatas, são do tipo de cima para baixo. Entretanto, nenhum desses tipos de ação exige que se pressuponha uma mente independente, quanto mais uma consciência pairando acima do cérebro (como, por exemplo, pressupõe Sperry). Todas essas "interações mente−corpo" podem ser explicadas, pelo menos em princípio, em termos de interações entre sistemas neurais. Minha ação de datilografar esta sentença pode ser explicada como resultado da ação de certos processos de idealização em meu córtex, no centro motor do mesmo. (Ver Hebb, 1966, e Bindra, 1976.) O mesmo ocorre com sua ação de virar a página para continuar ou de fechar o livro com desagrado. De um ponto de vista monista, as supostas interações mente-corpo são interações entre sistemas neurais ou entre eles e outros subsistemas do mesmo corpo (por 10
O PROBLEMA MENTE-CÉREBRO
exemplo, os sistemas endócrino ou cardiovascular). Estritamente falando, então, não existe nem "causação inferior" (ação de baixo para cima) nem "causação superior" (ação de cima para baixo): todas as ações causais (e não causais) no sistema nervoso são "horizontais", no sentido de que ocorrem entre sistemas neurais, não entre eles e alguma entidade "desencarnada" superior. A vantagem epistemológica desta hipótese ontológica é óbvia: resgata essas interações das garras do obscurantismo e as sujeita à investigação científica. (x) O dualismo se ajusta ao
Chega de razões para apoiar o dualismo psicofísico e de minhas objeções a elas. Até agora o resultado é 0 a favor e 10 contra o dualismo. Examinemos agora algumas razões para rejeitar esse ponto de vista. 4. Contra o dualismo
As principais objeções contra o dualismo são as que se seguem. (i) O dualismo é impreciso. Em primeiro lugar, não consegue dar uma caracterização precisa da noção de mente. Quando muito, os dualistas oferecem exemplos de estados mentais (por exemplo, o bom humor) ou de eventos mentais (por exemplo, a percepção). Mas eles não dizem quem está nesses estados ou sofre essas alterações — a menos, é óbvio, que eles digam que esses são estados ou alterações da mente, a qual, por sua vez, é circularmente definida como qualquer coisa que pode estar nestes estados ou passar por estas modificações. Em segundo lugar, o dualismo não elucida a noção de correlação que ocorre na expressão comum "os estados (ou eventos) mentais têm correlatos neurais" (paralelos ou interagindo com eles). Como o dualismo, em qualquer de suas duas versões — paralelismo ou interacionismo — é impreciso, dificilmente pode ser submetido a testes empíricos. O dualismo nos diz que é mental tudo que possamos fazer através da introspecção ou da retrospectiva, e que tudo que é mental tem algum "correlato neural". Portanto, o dualismo rotula, ao invés de explicar, e permanece sempre do lado seguro da imprecisão. Resumindo, o dualismo é uma não hipótese (Bindra, 1970). (ii) O dualismo desvincula das coisas as propriedades e eventos . Falar de atividades mentais, tais como perceber e decidir, como sendo paralelas ou interagindo com eventos cerebrais, mas sendo radicalmente diferentes dos
emergentismo e à hipótese da realidade estruturada em níveis. Correto, mas
compatibilidade não garante dedutibilidade. O dualismo psicofísico é o modo mais barato de garantir a emergência e os níveis, mas não é o único. Em outras palavras, o pluralismo de substâncias (principalmente o dualismo) não é necessário para resistir ao achatamento da variedade qualitativa praticado tanto pelo mecanicismo quanto pelo espiritualismo. Poder-se-ía adotar o pluralismo de propriedades (não somente o dualismo), como fez Spinoza. De acordo com esse ponto de vista, (a) existem apenas coisas (objetos concretos ou materiais) mas nem todas as coisas são físicas: algumas são químicas, outras são biológicas (algumas dessas, em particular, podem sentir, pensar, etc), e assim por diante; (b) os eventos mentais certamente emergem de eventos biológicos não mentais (tais como divisão celular), mas são eventos em determinados biossistemas, principalmente no sistema nervoso. (Para detalhes sobre este sistema de ontologia, ver Bunge, 1977a e 1979a.) Esse tipo de pluralismo — principalmente o materialismo emergentista — tira o combustível dos dualistas psicofísicos ansiosos por preservar a variedade do mundo e as qualidades distintivas do mental. 11
O PROBLEMA MENTE-CÉREBRO
mesmos, é o mesmo que falar de combinações químicas paralelas aos átomos ou moléculas combinantes, ou de eventos sociais paralelos às ações de seus agentes. A ciência moderna iniciou-se ao rejeitar a idéia platônica de formas (propriedades) ou eventos autônomos como sendo relíquias do animismo. A Ciência interpreta as propriedades como sendo propriedades possuídas por alguma coisa. Essa interpretação reflete-se na formalização do conceito de propriedade como uma função cujo domínio inclui (por exemplo, como um fator cartesiano) o conjunto de coisas que possuem a propriedade em questão. (Por exemplo, a idade é conceitualizada como uma função que percorre o conjunto de todas as coisas concretas, ou talvez apenas organismos, no conjunto de números positivos reais.) Do mesmo modo que a condutividade elétrica é representada como uma função do conjunto de corpos e a pressão sanguínea como uma função do conjunto de sistemas cardiovasculares, a acuidade visual é conceitualizada como uma função do conjunto de sistemas visuais, e a capacidade de falar como uma função dos sistemas de fala. Retire as coisas que ocorrem como membros do domínio da função e a própria função deixará de existir — tanto matemática quanto ontologicamente. (No caso mais simples possível, uma propriedade ou faculdade psíquica ou mental é conceitualizada como uma função do produto cartesiano do conjunto de todos os sistemas nervosos centrais plásticos pelo conjunto de todos os instantes de tempo. Sem sistema nervoso não há um conceito preciso de função mental.) (iii) O dualismo viola a conservação de energia. Se a mente imaterial pudesse mover a matéria, estaria criando energia; e se a matéria agisse sobre a mente imaterial, a energia se dissiparia. Em qualquer dos casos, a energia — uma propriedade de todas as coisas concretas e apenas delas — não seria conservada. E assim ruiriam a Física, Química, Biologia
e Economia. Se tivermos que escolher entre essas ciências duras ( hard ) e a superstição primitiva, optaremos pelas primeiras. Se fosse retrucado que, afinal de contas, o cérebro é apenas um processador de informação e que o processamento de informação exige pouca ou nenhuma energia, a resposta adequada seria: Tolice! Em primeiro lugar, todos os sinais de informação são levados em algum processo que transporta energia — por exemplo, uma onda em propagação ou uma reação eletrolítica. (O fato de que a teoria da informação não leva em conta a base física da informação e, principalmente, nem a energética do fluxo de informação, não anula essa base.) Em segundo lugar, acontece que o cérebro humano é o sistema mais caro do corpo: embora seu peso seja apenas 2 porcento do total, seu suprimento sangüíneo é 15 porcento e o consumo de oxigênio é 20 porcento do total. Em resumo, parece que as funções mentais consomem mais energia do que qualquer outra função do corpo. (iv) O dualismo recusa-se a tomar conhecimento das raízes celulares e moleculares das capacidades e dos distúrbios mentais. Existe pouca dúvida
de que a propensão para adquirir certas capacidades mentais, bem como certos distúrbios mentais, é herdada — isto é, transmitida por moléculas de ADN. (Isso não prova que o ADN em si seja talentoso ou psicótico, mas apenas que essas propriedades mentais estão ancoradas à nossa constituição bioquímica gênica.) Também não há dúvida de que nossa proficiência mental é muito sensível a alterações metabólicas e hormonais. Tudo isso é consistente com a tese de que o mental é uma função do sistema nervoso central, e não com a tese de que a mente é uma entidade independente. Em outras palavras, a Neuroquímica e a Psicofarmacologia favorecem o materialismo e não o dualismo 12
O PROBLEMA MENTE-CÉREBRO
(v) O dualismo é consistente com o criacionismo, não com evolucionismo . De fato, ao considerar a mente sobrenatural e imutável em lugar de natural e em evolução, o dualismo colide com a biologia evolutiva e impede qualquer pesquisa sobre os antecedentes pré-humanos das faculdades mentais. Apenas o materialismo concorda com estudos sobre o desenvolvimento e a evolução dos animais. Certamente, alguns dualistas não adotam a tese do caráter sobrenatural da mente e, além disso, elogiam, da boca para fora, a biologia evolutiva e mesmo a evolução das faculdades mentais. Contudo, uma tal aceitação do evolucionismo não é consistente: um evolucionista consistente, como Darwin (em Gruber e Barret, 1974), não precisa postular mentes imateriais, postulando, ao invés, que as funções mentais, por mais requintadas, são atividades neurofisiológicas. Por outro lado, aqueles que — como Popper e Eccles (1977) — adotam a figura platônica do piloto (a alma) e do navio (o corpo), são forçados a imaginar dois mecanismos evolutivos diferentes — um para o piloto que controla ou "dá vida", outro para o navio. E isso é inconsistente com a teoria da evolução, que é estritamente naturalista. (Afinal, a teoria é adequadamente denominada "teoria da seleção natural ".) (vi) O dualismo não consegue
terapia comportamental, conforme o caso: em cada caso, eles tentarão agir sobre o cérebro para trazê-lo ao normal ou, pelo menos, minimizar os efeitos observáveis e encobertos daquilo que iniciou o distúrbio cerebral. (Algumas vezes os psiquiatras têm que chegar até o nível molecular: isso acontece quando o distúrbio é celular e não sistêmico. Assim, uma deficiência do aminoácido triptofano, comum entre pessoas que se alimentam exclusivamente de milho, tanto produz psicoses como a pelagra. Ambos os sintomas desaparecem com a administração do ácido nicotínico, não com o interrogatório sobre as experiências infantis.) O dualista que concorda em experimentar tratamentos não mágicos, ou se compraz em tomar café ou vinho, está sendo inconsistente, pois cada um desses estimulantes modifica alguma função cerebral, alterando a física e a química de seu cérebro. (vii) O dualismo é limitado, na melhor das hipóteses, obstrutivo, na pior delas. Uma vez que o dualismo tem uma
explicação pronta para cada evento mental e, além do mais, uma explicação imune à argumentação neurofisiológica, não encoraja a pesquisa psicológica. Principalmente, o dualismo desencoraja uma ligação estreita entre psicologia e neurofisiologia, psiquiatria e neurologia, e entre psicologia humana e animal; e repudia campos inteiros de pesquisa, tais como psicologia fisiológica, Psicofarmacologia e psicologia evolucionista. Pode tolerar apenas a psicologia pura, do tipo mentalista tradicional — ou quando muito o behaviorismo, que se mantém silencioso quanto à mente, não incomodando verdadeiramente o dualista. (Pelo contrário, ao negar o mental, o behaviorismo facilita o trabalho do dualismo.) Por outro lado, o dualismo encoraja a crença no oculto, tal como na psicocinesia, telepatia e precognição.
explicar a doença mental senão como possessão demoníaca ou como fuga do corpo pela mente. Se a mente fosse uma
entidade imaterial autônoma, seria imune à lesões cerebrais, ação de drogas, e análogos: deveria ser saudável ou doente desde o início, ou então suscetível apenas à ação dos maus espíritos. Portanto, o dualista consistente, quando confrontado com a doença mental, deve recorrer exclusivamente ao exorcismo, preces ou logoterapia (por exemplo, a psicanálise). Por outro lado, os monistas psiconeurais sentem-se livres para empregar a cirurgia, a terapia farmacológica ou a 13
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(Para uma boa escolha, ver Ludwig, 1978.) (viii) O dualismo se recusa a
constituem um sistema hipotéticodedutivo com seu vocabulário técnico próprio e suas próprias suposições técnicas sistematizadas e testáveis. Ambas as versões do dualismo são opiniões vulgares que podem ser enunciadas em umas poucas palavras comuns e imprecisas. Nenhuma delas contém qualquer enunciado de lei. Principalmente, nenhuma delas nos diz quais são as relações legítimas entre eventos corpóreos e mentais, as quais permitam que o mental seja sincronizado com o físico ou com ele interaja. Eis porque o dualismo não é uma teoria científica: é apenas uma parte de um arcaico, não, de um pré-histórico pacote ideológico. (x) O dualismo é inconsistente com a Ontologia da Ciência . Em todas as ciências, desde a Física, passando pela Biologia, até a Sociologia, as propriedades são possuídas por entidades concretas (particularmente pelos sistemas) e os eventos são alterações em determinadas propriedades. (Estamos, é claro, escrevendo a respeito de propriedades e alterações das mesmas, não de propriedades de objetos abstratos.) Não é o caso da filosofia dualista da mente, que permanece desvinculada da Biologia e da Neurociência, e exige que seja aberta uma exceção para propriedades e eventos mentais. Enquanto as teorias científicas precisam de um único espaço para estados, para representar os estado e seus referenciais, o dualista necessitaria dois espaços separados para estados caso tentasse formular suas idéias imprecisas em termos matemáticos. Na verdade, ele precisaria de um espaço para estados para colocar os estados cerebrais e outro para colocar os estados mentais — e quem sabe até um terceiro espaço para os estados da ilusória "ligação com o cérebro", que Descartes pensou ser a glândula pineal, a qual Eccles (1977) vem procurando inutilmente. O monismo psiconeural, por outro lado, ajusta-se à
responder às seis indagações da ciência da mente. Todas as ciências tentam
responder de modo inteligível e testável, a perguntas de pelo menos seis tipos, principalmente aquelas que começam por o que (ou como), onde, de onde, para onde, e por que. Eu as denomino seis indagações da Ciência . Por exemplo, a Química deve descobrir, dentre outras coisas, o que combina com quê, e onde e quando (sob quais condições) essa combinação ocorre. Ao fazê-lo, ela também explica a origem dos compostos (de onde), sua dissociação ( para onde), e o mecanismo da combinação ( por que). Da mesma forma, a Psicologia deve descobrir, dentre outras coisas, o que sente (ou percebe, pensa, deseja, comporta-se, etc), onde e quando (sob quais circunstâncias) ocorreu o sentir (ou o perceber, o pensar, o desejar, o comportar-se, etc). Deve também explicar a origem (ontogenia e filogenia) e a perda dessa faculdade, isto é, seu de onde e para onde, bem como seus mecanismos neurais (isto é, seu por que). Responder que não existe algo como o sentir (pensar, desejar, etc) significa renegar a maior parte senão toda a Psicologia. Responder que existe mas que não nos importa o que executa o sentir (ou o perceber, o comportar-se, etc), e portanto o porque ocorre, significa despojar a ciência e desistir de toda a esperança de compreendermos a nós próprios. E responder que o que executa o sentir (o perceber, o pensar, o desejar, etc) é a mente, não é resposta absolutamente. (Definir a mente como aquilo que sente, pensa, etc é, na verdade, comprazer-se na circularidade.) Portanto o dualismo, ao se negar a encarar as seis indagações da ciência, não é científico. (ix) O dualismo não é uma teoria científica, mas sim um princípio ideológico. De fato, nem o dualismo
paralelista nem o dualismo interacionista 14
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abordagem de espaço para estados adotada pela Ciência, pois nega a existência de estados mentais que não sejam propriedades cerebrais, e nega a existência de propriedades cerebrais que sejam totalmente independentes das demais. Isto é, afirma que um único espaço para estados, especificamente o do cérebro, é necessário para explicar tanto os eventos, estados e propriedades mentais como os puramente corpóreos (Bunge, 1977b). O dualismo psiconeural é incompatível com essa abordagem e, de um modo geral, com a ontologia da ciência moderna. Resumindo, marcamos outros 10 pontos contra o dualismo. O resultado final é 20 a zero.
(ii) esses estados, eventos e processos emergem dos estados, eventos e processos dos componentes celulares do cérebro. (iii) as famosas relações psicofísicas (ou psicossomáticas) são interações entre diferentes subsistemas do cérebro, ou entre alguns deles e outros componentes do organismo. A primeira cláusula é a tese do monismo psiconeural do tipo materialista. A segunda cláusula é a tese da emergência: afirma que os fatos mentais são tanto organísmicos ou biológicos quanto molares, isto é, envolvem conjuntos de células interligadas. A terceira cláusula é uma versão monista do mito dualista da variedade interacionista. Ao se aceitar as teses acima, pode-se falar de fenômenos mentais sem sair do plano biológico: o vocabulário mentalista cunhado originalmente pela religião e pela filosofia dualista começa, ou esperase que comece, a ter um sentido neurofisiológico. (Equivale dizer: a Psicologia torna-se uma neurociência.) Especificamente, agora é possível falar de seqüências paralelas de eventos — por exemplo, processos no sistema visual e no sistema motor, ou no sistema da fala e no sistema cardiovascular. Há também um sólido sentido científico em falar de interações psicossomáticas, porque agora elas são elaboradas como ações recíprocas entre diferentes subsistemas de um único organismo, como o córtex cerebral e o sistema nervoso autônomo. Por exemplo, ao invés de dizer que o amor pode colorir nosso raciocínio, podemos dizer que o hemisfério cerebral direito pode afetar o esquerdo, e que os hormônios sexuais podem agir sobre os sistemas neurais que executam o pensamento. Em resumo, embora possa parecer irônico, o modo de falar dualista, que encapsula nossa experiência introspectiva não digerida e que no
Examinamos dez razões invocadas a favor do dualismo psicofísico e outras dez contra ele. Vimos que cada uma das dez primeiras volta-se contra ele, e que cada uma das dez últimas se manteve. (Para mais objeções, ver Feigl, 1958; Doty, 1965; Quinton, 1965; Armstrong, 1968; Wade Savage, 1976; e Zangwill, 1976.) A conclusão geral é que o dualismo psicofísico não é uma opção científica viável — nem uma doutrina que possa ser adotada pela Ciência ou por uma filosofia orientada para a Ciência. Devemos, portanto, dar uma chance ao monismo psiconeural, principalmente porque o dualismo teve a melhor propaganda nos últimos dois milênios. 5. O emergentista
monismo
psiconeural
O monismo psiconeural emergentista, ou M na Tabela 1.1, resume-se nas seguintes teses (Bunge, 1977b; Bunge e Llinás, 1978): (i)
todos os estados, eventos e processos mentais são estados, ou eventos e processos nos cérebros dos vertebrados superiores. 15
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contexto do dualismo psiconeural é apenas metafórico e vago, torna-se literal, preciso e testável quando no contexto do materialismo emergentista. Este resgata o que há para ser resgatado do naufrágio do dualismo. O materialismo emergentista apresenta muitas características atraentes, as mais importantes das quais são (a) ajustar-se às ciências naturais ao postular que os fatos mentais, ao invés de serem atributos de uma substância imaterial, são estados, eventos ou processos ocorrendo em organismos concretos, fazendo com que (b) os fatos mentais possam ser pesquisados pelos procedimentos normais da ciência — uma característica que transforma a psicologia em ciência natural ao invés de ciência sobrenatural. O materialismo emergentista representa, então, uma esplêndida promessa, além de já ter realizado ótimos serviços ao ser a força filosófica motivadora por trás da psicologia fisiológica, da Psicofarmacologia e da Neurologia. Apresenta, contudo, uma grande desvantagem, especificamente o fato de ainda ser imaturo. De fato, o materialismo emergentista não é uma teoria propriamente dita, isto é, um sistema hipotético-dedutivo contendo hipóteses detalhadas e formuladas com precisão, para explicar uma ampla gama de fatos psiconeurais. É, ao invés, uma hipótese programática — do ponto de vista científico e filosófico — em busca de teorias científicas que a incorporem. Tanto assim, que o materialismo emergentista pode ser resumido em uma única frase, a saber: os estados mentais constituem um subconjunto (embora bem distinto) dos estados cerebrais (que, por sua vez, são um subconjunto do espaço dos estados do animal como um todo). O que é necessário para implementar o programa do materialismo emergentista, isto é, para transformá-lo em uma atividade científica amadurecida? Obviamente não são necessários mais dados indigeridos,
sejam eles puramente neurofisiológicos ou puramente comportamentais — nem mais dissertações de natureza ideológica. O que efetivamente precisamos são dois conjuntos de teorias, diferentes porém complementares: (i) teorias extremamente gerais (não apenas hipótese ou programas desarticulados) sobre o mental concebido como um conjunto de funções do cérebro. (ii) teorias específicas que expliquem o funcionamento dos vários subsistemas do cérebro. As teorias gerais da atividade psiconeural pertenceriam à intersecção da Ontologia com a Psicologia, enquanto as teorias específicas do psiconeural seriam propriedade exclusiva da psicologia fisiológica. E todas elas deveriam ser enunciadas em termos precisos, isto é, deveriam estar na forma matemática. Pode-se argumentar que a exortação precedente para intensificar o trabalho teórico nas áreas da psicofilosofia e da psicofisiologia não é pertinente porque não há nenhuma carência de teorias em qualquer das áreas. Vejamos. Certamente muito já foi escrito sobre a famosa teoria da identidade. Entretanto, nenhuma das "teorias" do psiconeural concordantes com a hipótese materialista é uma teoria propriamente dita, isto é, um sistema hipotéticodedutivo, para não dizer um sistema matemático. Ao invés, são hipóteses isoladas e desarticuladas. E são verbais e freqüentemente verborrágicas. (Esta pode ser uma das razões pelas quais a maioria dos psicólogos matemáticos não foram atraídos pelo materialismo. Uma outra razão é que é mais fácil engalfinhar-se com o comportamento do que explicar todo o processo, do qual o comportamento é apenas a ponta do iceberg.) Em outras palavras, ainda não temos uma teoria materialista geral da mente. (Veja, entretanto, os capítulos 16
O PROBLEMA MENTE-CÉREBRO
seguintes.) Tudo que temos é uma hipótese que atua com uma qualidade programática ou heurística, ao invés de sistematizar a vasta quantidade de dados e de produzir predições específicas que possam ser investigadas no laboratório ou na clínica. No que se refere às teorias específicas na psicologia fisiológica, a situação é diferente. Muitas foram propostas, principalmente no último quarto de século. (Ver Hebb, 1949; Milner, 1970; Thompson, 1975; e Bindra, 1976.) No entanto, (a) elas não são em número suficiente, (b) aquelas que estão intimamente ligadas à experimentação são principalmente verbais, e (c) aquelas que são matemáticas estão freqüentemente apartadas da experimentação. (Além do mais, a maioria das teorias da psicologia matemática são (a) teorias neobehavioristas da aprendizagem que não levam o cérebro em conta, ou (b) teorias especulativas da informação, que consideram o cérebro mais como um computador do que como um biossistema. Ambas deixam de lado os níveis químico e biológico.) Chega de desvantagens do materialismo emergentista em sua infância. Por muitas e maiores que possam ser, a filosofia materialista emergentista da mente parece ser o que temos de melhor, pelas seguintes razões.
correlações ou interações misteriosas entre cérebros e mentes. (iii) Diferente do dualismo, o materialismo é consistente com con-ceitos genéricos de estado e de evento, que podem ser
recolhidos de qualquer ciência. Por outro lado, de acordo com o dualismo, os estados mentais seriam os únicos estados que não seriam estados de alguma coisa, e os eventos mentais seriam os únicos eventos que não seriam alterações no estado de alguma coisa — o que aconteceria porque o dualismo concorda mais com a teologia do que com a ciência.) (iv) Diferente do dualismo, o materialismo emergentista fomenta a interação entre a Psicologia e as demais ciências,
especificamente a Neurociência e isto exatamente por considerar os eventos mentais como eventos biológicos especiais. (v) Ao contrário do dualismo, que postula uma mente imutável, o materialismo emergentista está de acordo com a desenvolvimento Neurofisiologia,
psicologia e com
do a
que mostram a maturação gradual do cérebro e do comportamento. (vi) Ao contrário do dualismo, que cava um abismo intransponível entre homens e animais, o materialismo emergentista concorda com a biologia evolutiva, a qual — ao mostrar o desenvolvimento gradual do comportamento e das capacidades mentais ao longo de certas linhagens — refuta a superstição de que apenas o Homem tenha sido dotado de uma mente. (vii) Diferente do materialismo redutivo, que ignora as propriedades e leis que emergem do sistema nervoso e de suas
(i) Por evitar a misteriosa substância mental (ou mente in-dependente) sem negar os fatos mentais, o materialismo emergentista é muito compatível com a mais abordagem científica do que o dualismo ou o materialismo eliminativo e redutivo. (ii) O materialismo emergentista é destituído da imprecisão que caracteriza o dualismo e seu discurso sobre entidades e processos mentais que não podem ser estabelecidos e sobre 17
O PROBLEMA MENTE-CÉREBRO
funções, e mantém esperanças quixotescas de que algum dia a física as explicará, o materialismo emergentista admite a qualidade emergente do mental e sugere que seja abordado com auxílio de todas as ciências porque o cérebro é um sistema que apresenta múltiplos níveis.
em espíritos de humanos e de animais, que os habitam enquanto vivem e vagam desencarnados após a morte. Há ainda alguma evidência, principalmente de locais funerários, de que a idéia de alma desencarnada era sustentada pelo homem primitivo muito antes da revolução Neolítica. Essa crença estava fortemente entrincheirada nas religiões que predominaram no alvorecer da civilização, cerca de 5000 anos atrás. Na verdade, a religião e a crença em uma alma imaterial (possivelmente eterna) andavam de mãos dadas. Em resumo, o dualismo psicofísico parece ser a mais antiga filosofia da mente de que se tem registro. O monismo psicofísico veio muito mais tarde, juntamente com as primeiras tentativas científicas. Foi concebido pelos filósofos-cientistas jônios, especificamente por Epicuro e pelo pai da medicina, Hipócrates. Esses pensadores rejeitavam o sobrenaturalismo e adotavam uma perspectiva estritamente materialista do mundo, a qual não tinha o que fazer com espíritos desencarnados. No entanto, enquanto a escola hipocrática lançava sólidas raízes entre os médicos, o materialismo por algum tempo sofreu ataques de Platão e, exceto por Lucrécio, não deixou seguidores conhecidos, entre os letrados. Certo, a tradição hipocrática foi cultivada por Galeno e seus discípulos, mas despojada de seus esteios filosóficos. E o epicurismo chegou a ser uma forte escola durante a época do Império Romano, mas não chegou a atrair nenhum pensador de destaque. O materialismo, abertamente diferente da religião e da filosofia idealista, feneceu tão logo nasceu. O mais brilhante, vigoroso e influente rival do monismo psicofísico e, em geral, do antigo materialismo e da visão atomística do mundo, foi Platão. Foi seu o primeiro sistema filosófico coerente que cultuava o dualismo psicofísico. Nos diálogos Cratylus (399-
Nenhum dos rivais do materialismo emergentista pode se orgulhar de tanto apoio importante, direto ou indireto, científico ou filosófico. E nenhum deles promete tantos frutos experimentais e teóricos. (O dualismo é particularmente árido.) Portanto, vale a pena tentar implementar o programa do dualismo emergentista, isto é, tentar elaborar teorias com vários graus de generalidade, de forma matemática e concordantes com os fatos conhecidos, que concebam a mente como um subconjunto distinto do conjunto dos processos cerebrais. Proporemos uma teoria geral dessa espécie nos capítulos subseqüentes, mas antes de fazê-lo, pode ser adequado ter uma rápida visão da longa história do problema mente–corpo. 6. Breve histórico
Nenhum outro problema conceitual teve tantas raízes quanto o problema mente-corpo, e nenhum deu tanto trabalho aos filósofos, cientistas e leigos igualmente. Por essas razões e para melhor apreciar a magnitude e as ramificações do problema, é necessário ter pelo menos uma visão rápida de sua história. Tudo começou há pelo menos vinte mil anos atrás. É certo que nada se sabe com certeza a respeito da filosofia da mente do homem primitivo. No entanto, conhecemos algo acerca das crenças dos primitivos contemporâneos, tais como os aborígenes australianos, os índios da Amazônia e os esquimós. Eles acreditam 18
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400) e Phaedo (64-68), Platão faz seu professor, Sócrates, expor e refinar a obscura doutrina órfica de que (a) o homem compõe-se de corpo e alma, (b) a alma é imaterial e eterna, (c) a alma dá vida ao corpo, (d) a alma é superior ao corpo, (e) a alma está aprisionada no corpo e sai dele por ocasião da morte, e (f) a alma pode conhecer a verdade absoluta e desfrutar da beleza absoluta somente após essa saída. Essa doutrina foi adotada e obscurecida consideravelmente pelos neoplatônicos, e tornada oficial pelos cristãos bem depois de Paulo. Exceto por heresias ocasionais, dominou o Cristianismo por quinze séculos. O discípulo de Platão, Aristóteles, foi um desses hereges, embora não muito declarado. Ele ensinava que o homem é um animal e a alma, a "forma" do organismo. Porisso que a questão se corpo e alma são uma coisa só é "tão sem sentido quanto perguntar se o lacre e a forma dada a ele pelo selo são uma coisa só" ( De anima, Bk. II, Cap. 1, 412b). Esta acanhada versão do monismo psicofísico foi adotada por Averroes e pelos averroístas latinos mas jamais se tornou popular por onde quer que alcançasse os braços de Roma ou do Islame. (Por outro lado, Tomás Aquino, na Cristianização de Aristóteles, pregava a origem divina, a imaterialidade e imortalidade da alma humana individual.) Um outro ataque veio de Descartes, no começo da era moderna. Em seu Paixões da Alma (1649), ele expôs uma versão original do dualismo interacionista. Ao mesmo tempo em que sustentava a dualidade mente −corpo, ele negava que a alma racional dava vida ao corpo e afirmava, ao invés, que o corpo era uma máquina. Ele pensava que até mesmo o pensar e o perceber eram mecânicos — embora não o pensamento e a consciência. Essa doutrina exerceu um efeito liberador sobre a Biologia e a psicologia animal, pois permitia aos cientistas pesquisar os animais, até os
humanos, como se fossem relógios — exceto, é claro, no que se referisse a suas almas racionais. Ensinava dessa forma, contrário ao dogma cristão, que o corpo humano não era sagrado e podia ser dissecado e estudado do mesmo modo que qualquer outro sistema físico. Por outro lado, Descartes aceitou a idéia oficial de que a alma racional era imaterial, autônoma e imortal, portanto acessível à Filosofia e à Teologia mas não à Ciência. (Mesmo assim, em seus Traité du monde e Traité de l'homme, publicados postumamente em 1662 e que exerceram forte influência sobre os filósofos materialistas franceses, Descartes muitas vezes aproximou-se do materialismo. Por causa disso foi denominado "o filósofo de máscara".) Por estabelecer um compromisso entre ciência e fé e por apelar ao bom senso, o interacionismo cartesiano tornou-se popular entre cientistas e filósofos, e ainda representa o principal ponto de vista do Ocidente. Por exemplo, uma versão do mesmo é exposta pelo filósofo agnóstico, Sir Karl Popper, e pelo neurofisiólogo católico, Sir John Eccles, em seu livro conjunto The Self and Its Brain (1977). Apesar de adotado por todos os bien-pensant , pensadores o interacionismo cartesiano enfrentou opositores muito mais eminentes do que poderia nos fazer pensar as histórias populares da filosofia. Para começar, há Hobbes (1651), que considerava o pensamento um movimento de partículas do cérebro. Depois vem Spinoza (1677), que criticou o dualismo e identificou a substância expandida à substância pensante e observou que, sendo uma e a mesma, jamais poderiam interagir. E Locke, embora não fosse um materialista, afirmou que "Deus pode, se lhe for do agrado, sobrepor à matéria a qualidade de pensar" (1960, Bk. IV, Cap. 3, seção. 6). Também Hume (1739), embora igualmente afastado do materialismo, rejeitou o dualismo cartesiano e 19
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ridicularizou a noção de uma alma insubstancial e eterna. Mas. evidentemente, os principais ataques vieram de materialistas declarados, tais como o filósofo Thomas Hobbes (1665) e o químico-teólogo Joseph Priestly (1977). Ainda mais militantes e muito mais influentes foram os materialistas franceses, que se inspiraram nos trabalhos póstumos de Descartes, principalmente no Traité de l'homme. Esses filósofos muito conhecidos, geralmente negligenciados pelos filósofos anglo-saxões, foram La Mettrie — famoso por L'homme machine (1745) — Helvetius (1759), Diderot (1769), d'Holbach (1770), e Cabanis (1802). Desde então o materialismo tornouse popular, não tanto entre os cautelosos filósofos acadêmicos quanto entre os cientistas e público erudito (vejam Gregory, 1977). O filósofo da religião Feuerbach (1841), os biólogos Karl Vogt (1857), Jacob Moleschott (1852) e Ludwig Büchner (1855), e os cientistas sociais e ativistas políticos Karl Marx (1859) e Friedrich Engels (1877-8), foram todos influentes materialistas. Assim como Charles Darwin, na intimidade de seus M e N Notebooks (apud Gruber e Barret, 1974). Aí ele afirmou várias vezes sua convicção de que "a mente é [uma] função de [o] corpo" — e apresentou bons motivos para isso. Além disso, Darwin fundou a psicologia comparada e evolutiva com seus livros The Descent of Man (1871) e
Os estudos sobre a evolução mental são tão poucos que não existe um Journal of Evolutionary Psychology. Certamente ocorreram importantes progressos no estudo da evolução da anatomia do sistema nervoso, mas apenas excepcionalmente em conexão com a evolução do comportamento e da mentalização. A Psicologia e mesmo a Neurociência ainda estão por experimentar a revolução darwiniana. Aqui, mais uma vez, evidencia-se o apego ao mito pré-histórico. Le mort saisit le vif . De um modo geral, o materialismo permaneceu até recentemente uma filosofia extra-oficial. A maior parte dos neurofisiólogos, psicólogos e filósofos tem sido indiferente (ou quem sabe seja apenas cautela) ou dualista — como Sherrington, Freud e Popper. Alguns reconheceram o problema mas consideraram-no insolúvel. Outros não conseguiram reconhecê-lo, provavelmente por não terem utilidade para o sistema nervoso: este é o caso dos behavioristas e dos psicanalistas. (Os extremos se tocam!) E alguns filósofos — por exemplo, Putnam (1960) — declararam que o problema mente–corpo era na realidade um pseudoproblema. Para alguns, reduz-se a uma escolha de palavras — mentalista ou neurofisiológico ou talvez mesmo computadorístico. Essas atitudes prevaleceram até cerca de 1960. Em 1956, o psicólogo Ulian T. Place resgatou o monismo psiconeural do esquecimento acadêmico com um artigo muito influente sobre a consciência como um estado do cérebro. Ele imediatamente comandou o assentimento entusiástico de uma vigorosa falange de filósofos, especificamente Herbert Feigl (1958), Jack Smart (1959) e David Armstrong (1968), cada um dos quais defendia alguma versão da famosa "teoria da identidade" — a qual, à época, era não mais que uma hipótese programática. Desde então, o monismo psicofísico tem
The Expression of Emotions in Animals and Men (1872).
No entanto, a maioria dos antigos evolucionistas não aceitou a abordagem biológica do problema da evolução da mente, elaborada por Darwin. Principalmente George Romanes, que escreveu muito sobre o desenvolvimento e a evolução da mente, apegou-se à doutrina cristã da alma. Mesmo agora, a maioria dos psicólogos acredita apenas da boca para fora na biologia evolutiva. 20
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sido uma doutrina respeitável e muito discutida. (Até então era defendida apenas por alguns poucos cientistas e pelos materialistas dialéticos.) Havia, entretanto, uma considerável diversidade entre os teóricos da identidade. Assim, enquanto Smart, Armstrong e seus numerosos seguidores são materialistas ferrenhos e, além disso, fisicalistas (reducionistas), Feigl parece ter oscilado entre a identidade estrita e o monismo neutro. (O último foi defendido por seu professor, Moritz Schlick, 1925, fundador do Círculo de Viena, com o nome de "designação dupla". Entretanto, nunca ficou claro o que era designado; Feigl, comunicação pessoal, 1977.) Feigl defende que, não obstante quanto possam diferir os conceitos da Psicologia dos da Neurofisiologia, ambas têm os mesmos referenciais. Além disso, ele acreditava que uma simples reflexão crítica sobre os significados dos termos "físico" e "mental" acabaria solucionando o problema mente-corpo (Feigl, 1960). Entretanto, não é verdade que a Neurofisiologia e a Psicologia referem-se às mesmas entidades: a primeira trata de sistemas neurais, a segunda, de animais inteiros (Hebb, 1959a). E grandes questões, como o problema mente–corpo, não são solucionadas pela análise semântica, mas pela elaboração de sistemas hipotético-dedutivos (teorias). Não haverá uma teoria da identidade a menos que alguém a elabore, e esta é uma tarefa para cientistas e não para filósofos — isto é, se quisermos que a teoria seja científica. De qualquer modo, a conhecida teoria da identidade foi objeto de vigorosa discussão filosófica nas últimas duas décadas. Este desenvolvimento filosófico aconteceu também na Ciência. Em primeiro lugar, ocorreu durante esse período um rápido declínio de dois poderosos inimigos da abordagem neurofisiológica ao mental, especificamente, a psicanálise — que finalmente começou a ser encarada como
uma pseudociência — e o behaviorismo, o qual um número cada vez maior de pessoas começou a considerar limitado, superficial e até mesmo aborrecido. O vácuo deixado por essas duas doutrinas mutuamente complementares foi preenchido pela psicologia fisiológica. Nem bem os psicólogos mudaram seus pressupostos ontológicos relativos ao mental e já começaram a fazer numerosas descobertas espantosas, tais como o efeito da privação sensorial sobre a idealização, o acoplamento da visão ao sistema motor, a existência de centros de prazer e de sofrimento, os efeitos da ablação cortical sobre a fala e o pensamento, e os efeitos mentais de alterações nas concentrações de um grande número de substâncias químicas. Enquanto os psicólogos cavavam o túnel de um lado, os neurofisiólogos tentaram chegar à mente do outro. Foi demonstrado o efeito da visão sobre a própria organização do córtex visual durante o desenvolvimento; foi descoberta a organização em colunas dos neurônios do córtex sensorial; descobriuse que se podia considerar pacientes acalosos ( split-brain) como tendo duas mentes; que o comportamento podia ser sujeitado ao controle pelo rádio e, é claro, ao controle pela manipulação cirúrgica ou química — e assim por diante. Durante o mesmo período, terapeutas comportamentais começaram a curar fobias e outros distúrbios mentais, e os psicofarmacólogos e os psicoendocrinologistas começaram a atacar as psicoses e outros distúrbios neurológicos. Por fim, mas não por último, uma ofensiva internacional foi lançada pelo Programa de Pesquisa das Neurociências ( Neurosciences Research Program) e pela Organização Internacional de Pesquisa do Cérebro Brain Research ( International Organization), que publica o periódico Neuroscience. O problema mente–corpo atingiu a maturidade científica e o 21
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monismo psicofísico age como a força filosófica motivadora de sua pesquisa. É certo que o dualismo psicofísico, embora em declínio, ainda tem maior divulgação. (Os parapsicólogos, astrólogos, fanáticos por discos voadores também conseguem maior cobertura da imprensa do que aqueles que os desmascaram: vejam as queixas de The Skeptical Inquirer .) O dualismo desfruta do apoio de eminentes neurocientistas, como do finado Wilder Penfield (1975), de Sir John Eccles (1977), e (um tanto timidamente) de Roger Sperry (1969), bem como de importantes filósofos, como Sir Karl Popper (1972, 1977), William Kneale (1962) e Stephen Toulmin (1971). Entretanto, existem batalhadores famosos do outro lado do muro também, e, na verdade, em números cada vez maiores. Por exemplo, os neurocientistas Colin Blakemore (1977), Theodore H. Bullock (1958), Robert W. Doty (1965), Gerald M. Edelman (1978), C. Judson Herrick (1949), Vernon Mountcastle (1975), S. Ramón y Cajal (1923), T.
Shallice (1972) e John Z. Young (1971, 1978); os psicólogos Dalbir Bindra (1976), Kenneth Craik (1943), J. A. Gray (1972b), Donald Hebb (1949), Harry Jerison (1973), U. T. Place (1956), Jean Piaget (1968), N. S. Sutherland (1970). T. C. Schneirla (1949), W. R. Uttal (1978) e O. L. Zangwill (1976); e os filósofos David Armstrong (1968), W. V. Quine (1960), Richard Rorty (1965) e J. J. C. Smart (1963). Para cada autoridade que apóia o dualismo psicofísico há pelo menos uma outra — geralmente mais jovem — apoiando a Psicobiologia. Contudo, cientistas e filósofos não devem se deixar dominar por autoridade: eles devem examinar a validade dos pontos de vista em questão e de seu suporte empírico, bem como a sua compatibilidade com outras teorias científicas e mesmo com o ponto de vista da comunidade científica. E devem ainda ponderar a fertilidade ou aridez das várias teorias da mente, isto é, se sugerem mais experimentos e teorias ou se meramente dão conforto à superstição arraigada.
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