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Comunicação oral apresentada por ocasião do ecenrramento do “Curso Marx e um olhar marxista sobre o Direito”, organizado pelo Sindicato dos Advogados de São Paulo, junto aos professores João José Sady e Lelita Benoit, de setembro a novembro de 2007.
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MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.10-11. Desta realidade vem a metáfora judaico-cristã de expulsão do homem do paraíso. 4 Dois filmes ilustram isso: “A Guerra do Fogo”, de Jean-Jacques Annaud, e “2001: uma Odisséia no Espaço”, de Stanley Kubrick. Cf. ENGELS, Fridrich. Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem. In: ANTUNES, Ricardo, (org.). Dialética do Trabalho: escritos de Marx e Engels. São Paulo: Expressão Popular, 2005, 2ª ed., pp. 12-34. 5 Cf. MARX, Karl. Trabalho Estranhado e Propriedade Privada. In: ANTUNES, Ricardo, (org.). Dialética do Trabalho: escritos de Marx e Engels. São Paulo: Expressão Popular, 2005, 2ª ed., pp. 184-186. ENGELS, Fridrich. Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem. In: ANTUNES, Ricardo, (org.). Dialética do Trabalho: escritos de Marx e Engels. São Paulo: Expressão Popular, 3
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Cf. LOSURDO, Domenico. Democracia ou Bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal. Rio de Janeiro: Editora UFRJ / Editora UNESP, 2004, pp. 45-46. 7 MARX, Karl. Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política. In: GIANNOTTI, José Arthur, (org.). Karl Marx: Manuscritos Econômico-Filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1978, 2ª ed. (Os Pensadores), P ensadores), p. 130. 8 “Os filósofos se limitaram a interpretar o o mundo diferentemente, cabe transformá-lo.”, (MARX, Karl. Teses Contra Feuerbach. In: GIANNOTTI, José Athur, cit., p. 53.
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J$ =' 4 & = ( # K A história de todas as sociedades que existiram até hoje é a história da luta de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestres e companheiros, numa palavra, opressores e oprimidos, sempre estiveram em constante oposição uns aos outros, envolvidos numa luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que terminou sempre ou com uma transformação revolucionária de toda a sociedade, ou com o declínio comum das classes em luta. !" '!" ' ! 5 , ' !" '!" /"0 & $ L , #4 4 4 & " 2 !"3 / ?AE >LL & 0 , '!" 4 ' 4 ) 5 ' !% !" 4 # 4 /0 - /'0 & H '* '!" !" ! 4 !" " ( & " & 2 & 4 3 !" 5 !" = # !" 253 5 !% )7 * M , '% " 9
São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 45. Sobre isso há longas discussões. Cf. SWEEZY, Paul et al. A Transição do Feudalismo para o Capitalismo. trad. Isabel Didonnet. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. (Pensamento Crítico, v. 18). 11 Há uma discussão interessantíssima entre “produtivistas” e “circulacionistas”. Para estes, o modo de produção feudal era fechado e estático, tendo sido dissolvido por um fator essencialmente externo, a saber, o dinheiro, acumulado ao longo dos séculos por um conjunto de fatores. Para os produtivistas, ao contrário, foram as contradições internas às relações feudais de produção as responsáveis pela transição ao capitalismo. Cf. SWEEZY, Paul, cit., “Introdução” de Rodney Hilton, pp. 9-36. 10
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Cf. NAVES, Márcio Bilharino. Direito, circulação mercantil e luta social. In: ALVES, Alaôr Caffé et al.
Direito, Sociedade e economia: leituras marxistas. Barueri/SP: Manole, 2005. p. 23-36. 13 Cf. ALVES, Alaôr Caffé. Estado e Ideologia: aparência e realidade. São Paulo: Brasiliense, B rasiliense, 1987. 14 Cf. NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e Direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo:
Boitempo, 2000. 15 KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, trad. João Baptista Machado. Coimbra: Ed. Arménio Amado, 1984, 6a ed.
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! !" 4 + ! & 4 não por acaso Contrato Social, que protege os indivíduos contra o Estado, que lhes protege a esfera privada, da sociedade civil, dos assuntos privados, dos negócios, da produção, garantindo sua reprodução. O mercado apenas se universaliza enquanto espaço de trocas com Estado.
Parênteses: Marx diz em Sobre a Questão Judaica: “A aplicação prática do direito humano de liberdade é o direito da propriedade privada.” 16. O ser humano concreto, real, permanece egoísta, apartado de si mesmo, separado de seus pares, como uma mônoda auto-suficiente, é o homme. E o ser humano reconciliado consigo mesmo, autêntico, político, é o citoyen, mas este é abstrato, moral, “celestial”, não existe na realidade. Os direitos humanos pretendem resolver-se no plano de sua proclamação. Reparem: os problemas sociais são tratados nas faculdades de Direito juridicamente, isto é, discute-se: (I) se há direitos declarados sobre tal ou qual problema; (II) se a dogmática jurídica assentada é ou não eficiente para terminar o conflito; (III) a jurisprudência a respeito do tema; (IV) o estado da hermenêutica, as argumentações éticas possíveis. Os marxistas pensam diferente. O problema dos direitos humanos se resolve pela práxis.
? , * + Retomando, para o marxismo, os conflitos políticos que interessam (e que explicam) à História são os conflitos reais de poder, os conflitos de classe. Por quê? Novamente, a clivagem social em classes se baseia na exploração do trabalho. As classes são formadas por agentes que ocupam posições determinadas no processo de produção. Tal posição exige uma certa prática para a continuidade das relações. Não se trata de uma crítica ética. O conceito de determinação nos exime disso, embora seja possível fazê-la. Imaginemos um absurdo: um chefe de um Banco que acorda de bem com a vida e decide abaixar o preço do crédito, elevar os salários de seus empregados, pagar corretamente os impostos. O que acontece? Ou o Banco quebra ou o banqueiro humanista é afastado e encaminhado a um psiquiatra. Os sujeitos são determinados. Quem faz a história são as classes, as massas e sujeitos coletivos (alguns indivíduos podem influir decisivamente, porém em situações e momentos muito raros e especiais). A riqueza da sociedade é uma coleção imensa de mercadorias. Estas, são valores de uso: coisas com certas propriedades físicas. Coloquemos a hipótese de que todas as mercadorias trocadas são trocadas porque há uma relação de equivalência entre elas: ao 16
MARX, Karl. A Questão Judaica. In: Manuscritos Econômico-Filosóficos, trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002, pp. 32-36.
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dizer “troco um trator por dez mil sacas de soja”, quer dizer que há algo que os iguala numa certa proporção. O que é isso? Bem, aqui estamos relembroado as aulas da profa. Lelita Benoit. Por muito tempo a Economia Política Clássica perseguiu esse problema, porém incapaz de resolvê-lo concebendo o capitalismo como a “economia que sempre existiu”. Há uma mercadoria, muito disponível no mercado de trocas, entre todas as outras que, ao ser usada, produz mais valor . Esta mercadoria não é senão a força de trabalho. Trabalho é movimento e a sua medida é o tempo de seu emprego (a jornada). Eis aqui a fonte de toda riqueza, a fonte do valor. Isto se dá precisamente porque à força de trabalho é pago um preço o salário , que não corresponde ao valor que ela produz. Esse preço é dado pelo conjunto de condições necessárias à mera reprodução de tal força de trabalho. Em síntese, o trabalho não pago é a chamada mais-valia. Mas essa exploração vem escamoteada ideologicamente pelo Direito, que estrutura a exploração socialmente como um contrato, uma “troca livre entre vontades em pé de igualdade”. Portanto, quem detém o poder, quais interesses orientam o poder fundamental da sociedade, poder esse que a atravessa de ponta-a-ponta e que se concentra no Estado? Para o marxismo, são as classes dirigentes do processo produtivo, em luta com as classes trabalhadoras. Vejam que o poder não é uma coisa, mas é uma relação. E vejam também a ligação estreita, que há para o marxismo entre exploração e dominação17. O fim da dominação política, com o comunismo viria com o fim da sociedade de classes e com o fim da exploração do homem pelo homem. Nste estágio do desenvolvimento histórico, o Estado seria posto no “museu de antigüidades”, junto com a “roca de fiar” e “o machado de bronze”, nas célebres palavras de Friedrich Engels18. Bem sobre esse tema específico dos limites da relação entre dominação e exploração deixo em suspenso. É um problema complexo sobre o qual não posso me posicionar. Envolve questões como a democracia nos regimes socialistas. Espero poder discutir isso depois de defendida minha dissertação sobre Nicos Poulantzas. Retomemos o fio da meada. Os detentores do poder na sociedade capitalista são os burgueses, os dirigentes, titulares ou não da propriedade dos bens de produção e do processo produtivo, dividos em diversas frações de classe conforme as respectivas frações do capital que operam. Esse é o chamado bloco histórico. Ora, mas os governos que exercem o poder político no Estado não necessariamente são formados por detentores dos meios de produção (como o eram no Estado Feudal). Aliás, hoje há um ex-operário na presidência, não é isso mesmo? Além do direito burguês, que garante a individualização dos agentes das relações de produção como sujeitos livres e iguais, concorrentes entre si na busca por contratar força de trabalho e capital, outro princípio que caracteriza o Estado capitalista é o 17
Autores como Boaventura de Souza Santos não concordam com isso: acreditam que a emancipação não vem do fim da exploração e têm como foco os regimes do socialismo real. Cf. SANTOS, Boaventura de Souza. Reconhecer para Libertar : os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 18 ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 16ª ed. trad. de Leandro Konder. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 196.
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burocratismo.
Aqui começo a utilizar Nicos Poulantzas. Como eu havia lhes dito, no Estado Feudal a divisão social em classes ficava inscrita e expressa no próprio Estado. O exército e os cargos do Estado eram objetos de títulos de propriedade: a chamada “venalidade dos cargos”19. A monopolização da força no Estado capitalista com as revoluções burguesas que derrotaram tais classes nobiliárquicas consagraram o burocratismo como parte da estrutura do Estado Moderno: todos têm direito formal de acesso às funções do Estado, que podem ser repartidas por mérito ou por eleições. Temos o governo das leis e não o governo dos homens, do arbítrio. O Estado busca o “bem comum”, independentemente de quem o governe, a Constituição estabelece os objetivos fundamentais da República em conformidade com o fundo ético dos Direitos Humanos. Os funcionários do Estado cumprem função legalmente estabelecida: princípio da legalidade (Direito Administrativo). Ora, a massa de sujeitos tornados indivíduos, separados, egoístas, livres e iguais para contratar e concorrerem entre si, tal massa é tomada abstratamente e congrega-se no Estado, na comunidade política, na condição de cidadãos, despidos de suas determinações de classe. Poulantzas chama isso de efeito de representação de unidade: a unidade do povo-nação, que não comporta divisões de classes. Todos têm igual direito de acesso às funções do Estado, ao menos formalmente. A política aparece para a sociedade como um conflito entre frações arbitrárias, desconexas das classes sociais. Aparece estranhada, como um meio que grupos encontram para satisfazer interesses seus: corrupção é a marca negativa e honestidade, competência e eficiência as marcas positivas da gramática política burguesa, tão falada na mídia. Busca-se, com dificuldade, diferenciar os honestos dos corruptos, os modernos dos atrasados, os eficientes dos incompetentes. A tarefa dos marxistas é desvendar e denunciar os interesses de longo alcance do bloco histórico em cada medida política do governo, ainda que se apresente em nome do bem comum, da inclusão social, da cidadania etc. O que leva o bloco no poder a governar conforme os interesses do bloco histórico? Essa é uma pergunta capital para nos aproximarmos da Hegemonia. Louis Althusser, num livro chamado Aparelhos Ideológicos de Estado, se ocupa dos mecanismos, das estruturas, das funções estatais responsáveis pela reprodução social: pela reprodução das condições políticas e sociais para que se dêem as relações de produção. O Estado está dividido, grosso modo, em Aparelhos Repressivos e Aparelhos Ideológicos. Um aparelho é uma instituição: uma estrutura material ligada ao todo do Estado, conectada a sua legislação, a seus princípios e que possui uma lógica específica
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Cf. BOITO JR., Armando. Os Tipos de Estado e os Problemas da Análise poulantziana do Estado absolutista. Revista Crítica Marxista. São Paulo, n. 7, p. 67-88, 1998.
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de funcionamento, um conjunto de valores coagulados e de práticas reiteradas que enquadram e regulam a sociedade em diversos campos. As classes sociais têm, em verdade, diferentes possibilidades reais de acesso a essas estruturas, a tais aparelhos de Estado. Isto tem de ser bem acentuado, para que não sejamos capturados pela armadilha da “democracia burguesa”. A presença de setores intermediários, intelectualizados ajuda na legitimação de tais estruturas. Nos aparelhos repressivos predominam práticas repressivas, ligadas ao uso da força: são os legítimos operadores do elemento força física na sociedade: forças armadas (Exército, Marinha, Aeronáutica, Polícias), os Serviços de Inteligência, as Prisões, os Sanatórios. Obviamente, não prescindem de práticas ideológicas, mas a função que cumprem esses aparelhos na sociedade é fundamentalmente repressiva. E nos aparelhos ideológicos de Estado, predominam as práticas ideológicas: são exemplos as Igrejas, as Escolas, as Universidades, os Clubes, os meios de comunicação de massas, as editoras, os jornais, as revistas, os sindicatos, alguns partidos políticos, fundações, Ongs, enfim, instituições de todo tipo. Estas estruturas exercem funções essencialmente ideológicas, intelectuais mas não menos violentas, que garantem a subordinação geral da sociedade moldando-a às relações sociais de produção. A unidade do conjunto dos Aparelhos Ideológicos de Estado não é imediatamente visível. Isto é, o poder possui dois momentos articulados e dinâmicos: a força e o consenso. Quanto mais consenso e menos necessidade de coação física, mais forte é o poder. O recurso à força se dá em casos extremos, casos em que as relações fundamentais estão verdadeiramente ameaçadas. Há um teórico da guerra, um alemão chamado Clausewitz, que tratava a guerra como “a política por outros meios”20. Também Florestan Fernandes fala do momento de radicalização da luta de classes como passagem “da guerra civil oculta” para a “guerra civil aberta”21. São momentos, portanto, o conseno e a força, de um mesmo poder. Na realidade, diz Althusser: “constantemente tecem-se sutis combinações tácitas ou explícitas entre o jogo do aparelho (repressivo) do Estado e o jogo dos Aparelhos Ideológicos do Estado”, (p. 70). A unidade dos Aparelhos Ideológicos de Estado é dada por este funcionamento predominantemente ideológico, vez que a ideologia de classe, a despeito de suas incongruências e contradições, está de fato sempre unificada sob a ideologia da classe dominante. A classe ou condomínio que detêm o poder do Estado são igualmente dominantes nos Aparelhos Ideológicos. Novamente Altusser: /, & 20
Há na biografia de Trotsky, organizador do Exército Vermelho, escrita por Isaac Deutscher a seguinte citação de Clausewitz: “A guerra é um instrumento a política; deve necessariamente ter seu caráter, medir com sua escala: a direção da guerra em suas linhas mestras é portanto a própria política, que toma a espada em lugar da pena, mas não deixa por isso de pensar segundo as leis que lhe são próprias.”. DEUTSCHER, Isaac. Trotsky: o profeta armado, 1979-1921. Trad. de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 485. 21 SAMPAIO, Plínio de Arruda e SAMPAIO JÚNIOR, Plínio de Arruda. Clássicos sobre a Revolução Brasileira: textos de Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2002, p. 140.
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1 O !" ! Bem, aqui entramos no cerne dessa exposição. A questão da Hegemonia. Trata-se de um termo militar que indica “a direção suprema do exército, o comando, a direção, a condução”. Há dois momentos articulados da hegemonia: (I) a capacidade de articular alianças, (estratégia política); e (II) a forma de exercício do poder no Estado burguês, “questão cultural”. A Hegemonia é composta de algo que perpassou toda essa exposição mas que se guardou para esse momento: a ideologia. Gramsci traça o quadro das relações de força, das relações de poder, para então tratar de como nelas se inserem as ideologias e como se constrói a Hegemonia. 1) Estrutura objetiva, independente da vontade dos homens: agrupamentos sociais existentes, as posições que os agentes ocupam na produção, o número de empresas e empregados, as cidades, as populações urbanas. 2) Relações de força políticas: homogeneidade, auto-consciência e o nível de organização de cada grupo social. Aqui se inserem as ideologias e sua eficiência diante da realidade concreta. 3) Relação de forças militares: decisivas em última instância. Primeiro, a estrutura objetiva. Imaginem o ABC paulista, com o parque produtivo automobilístico, as metalúrgicas. Um dado objetivo. Imaginem, em 1988, havia lá por volta de 200 mil operários e tantas multinacionais, inseridos numa grande metrópole nacional. Bem, nas relações de produção formam-se sujeitos sociais contraditórios. A Hegemonia que os congrega não é a ideologia pura do patrão. Tais operários sofrem a influência da autoridade, da técnica, da posição social dos dirigentes do processo produtivo. Reconhecem tal poder e a ele se submetem voluntariamente. Crêem que o melhor caminho para si é aquele comungado pelo setor dominante. Contudo, possuem também desconfianças; sofrem decepções, privações; percebem que a fábrica poderia ser gerida de outro modo; podem inclusive se sentirem lesados, percebendo que o salário que lhes é pago não cobre os riscos que correm, as privações que sofrem, o esforço que depreendem. E tais grupos sociais se enfrentam ideologicamente, num primeiro momento, de modo espontâneo. 22
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado. Trad. de Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003, 9ª ed., p. 71.
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A Hegemonia não é, como disse, a ideologia pura do patrão recitada e aceita pelo trabalhador, senão uma amálgama, uma mistura, um mosaico das pretensões de ambos, em que fica preservado o núcleo essencial dos interesses do grupo dominante. O patrão pode inclusive admitir um entendimento e um discurso de crescimento econômico, de desenvolvimento, de garantia dos direitos dos trabalhadores, de necessidade de saúde pública, de educação de qualidade (sempre a rainha de todas as soluções). Reclama freqüentemente da falta de instrução que têm os operários (e põe-se em posição de crítica ao governo do momento). Como também pode ser menos “culturalmente elevado” e, assim, possuir uma visão de mundo mais rude, mais dura com os trabalhadores, rebaixando-os. Pode se valer de preconceitos para justificar a dureza com que trata certos trabalhadores ou trabalhadoras. Geralmente naturaliza que as mulheres são menos preparadas, que os negros são instáveis, se envolvem em brigas. Que o operários depois do trabalho tomam cachaça e se rendem a religiões alienadoras. Vejam, há uma grande possibilidade de variação nas visões de mundo dos agentes da direção capitalistas. Geralmente os mais elevados postos, os mais importantes, são culturalmente mais elevados, mais sofisticados. Pensem em Abílio Diniz, Antônio Ermínio de Moraes. Do mesmo modo, os trabalhos menos importantes, menos lucrativos, ou mais “sujos”, requerem agentes sociais mais rudes, mais duros, mais ásperos. Imaginem o chefe dos motoboys tendo que impor “aos cachorros-locos”, como são chamados, um tempo exíguo para fazer uma entrega? Pode ser, e geralmente ocorre isso, o chefe é um ex-operário, um ex-motoboy, que ascendeu na vida. Tal como o policial é advindo das classes trabalhadoras. Tais cargos, assim me parece, impõem uma pressão psicológica muito grande em seus agentes, que acabam sublimando tais pressões: as pessoas precisam de justificativas cotidianamente para o que fazem. Precisam de recompensas, de sentirem-se úteis, cumprindo com um papel, tendo uma correção moral (ainda que seja uma moral injusta vista de outro ângulo). Precisam acreditar no que fazem e gozar das recompensas, por mais desacreditadas que estejam. O consumismo ao lado da exclusão faz com que as pessoas aceitem trabalhos duríssimos, trabalhos injustos consigo próprias. Os operários, por sua vez, reclamam melhores salários, condições mais seguras e saudáveis de trabalho, menos exploração, mais recursos para consumir, o reconhecimento de seu “papel social”. O resultado pode variar conforme a homogeneidade, a autoconsciência e organização de tais grupos. Bem como conforme as condições sociais em que estão vivendo (em meio a uma crise econômica ou um “boom” de crescimento). Podem inclusive fazer uma greve na data-base para garantir tais pretensões. Mas o essencial fica preservado. Embora mude o conteúdo da relação (maior ou menor salário por mais ou menos força de trabalho empregada em tais ou quais condições), a forma de relação permanece a mesma: o contrato de trabalho assalariado (mais ou menos justo), através do qual é extraída a mais-valia. Esses grupos podem tomar consciência de que suas reivindicações, pretensões e interesses são solidários a toda uma categoria ampla de pessoas, em posição social semelhante. Neste estágio, lutam por modificar a legislação e participar da administração, de conselhos gestores, de comissões de negociação. 11
Vejamos o que Gramsci diz sobre esses momentos de tomada de consciência de interesses. A citação é longa, porém ataca o objeto central desta comunicação: O momento seguinte é a relação de forças políticas, ou seja, a avaliação do grau de homogeneidade, de autoconsciência e de organização alcançado pelos vários grupos sociais. Este momento, por sua vez, pode ser analisado e diferenciado em vários graus, que correspondem aos diversos momentos da consciência política coletiva, tal como se manifestaram na história até agora. O primeiro e mais elementar é o econômicocorporativo: um comerciante sente que deve ser solidário com outro comerciante, um fabricante com outro fabricante, etc., mas o comerciante não se sente ainda solidário com o fabricante; isto é, sentese a unidade homogênea do grupo profissional e o dever de organizá-la, mas não ainda a unidade do grupo social mais amplo. Um segundo momento é aquele em que se atinge a consciência da solidariedade de interesses entre todos os membros do grupo social, mas ainda no campo meramente econômico. Já se põe neste momento a questão do Estado, mas apenas no terreno da obtenção de uma igualdade político-jurídica com os grupos dominantes, já que se reinvindica o direito de participar da legislação e da administração e mesmo de modificá-las, mas nos quadros fundamentais existentes. Um terceiro momento é aquele em que se adquire a consciência de que os próprios interesses corporativos, em seu desenvolvimento atual e futuro, superam o círculo corporativo, de grupo meramente econômico, e podem e devem tornar-se os interesses de outros grupos subordinados. Esta é a fase mais estritamente política, que assinala a passagem nítida da estrutura para a esfera das superestruturas complexas; é a fase em que as ideologias geradas anteriormente se transformam em “partido”, entram em confrontação e lutam até que uma delas, ou pelo menos uma única combinação delas, tenda a prevalecer, a se impor, a se irradiar por toda a área social, determinando, além da unicidade dos fins econômicos e políticos, também a unidade intelectual e moral, pondo todas as questões em torno das quais ferve a luta não no plano corporativo, mas num plano “universal”, criando assim a hegemonia de um grupo social fundamental sobe uma série de grupos subordinados. [...]23.
Com o processo conflituoso das relações sociais de produção, nos conflitos mais ou menos organizados de interesses, neste longo e penoso percurso de aprendizados, nas lutas, enfim, as classes tomam consciência política propriamente, consciência de sua condição de classe e da necessidade de enfrentamento de uma série de poderes para conquistar uma nova sociabilidade, que já a conhecem em gérme. Neste momento, “as ideologias geradas anteriormente se tornam partido”, nos dizeres de Gramsci. Isto é, se tornam vontades racionalizadas e unificadas num agente político, um organismo intelectual autônomo, voltado à luta pelo poder político, pela Hegemonia da sociedade, 23
GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere . V. 3. Maquiavel, notas sobre o Estado e a política. Trad. Carlos Nelson Coutinho et ali. Rio de Janeiro: Civilização Brasileiras, 2000, pp. 40-41.
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enfim, pela subordinação dos interesses antagônicos aos seus interesses e objetivos políticos. A Hegemonia é um equilíbrio instável de compromissos: pode haver e freqüentemente há sacríficios do grupo dirigente que não tocam no essencial de seus interesses. Eis o primeiro elemento da hegemonia: a capacidade de liderar alianças, de realizar através do Estado essa combinação tensa, instável, conflituosa de compromissos que, no essencial, garantem a reprodução da dominação de classe, a reprodução do modo de produção capitalista num certo modelo econômico. Para tratar do segundo elemento da Hegemonia, a questão direção cultural, voltemos rapidamente à concepção de ser humano como ser prático-relacional. Todo ser humano é um intelectual. Todo trabalho, toda atividade humana, das artes à operação de máquinas, exige uma atividade intelectual em diferentes graus. Todo homem é um intelectual, todo homem produz conhecimento em suas relações, e, portanto, todo homem é portador de uma visão de mundo 24. Com isso, Gramsci amplia o conceito de intelectual, desmistificando ideologias elitistas e fazendo uma aproximação da realidade. O verdadeiro filósofo, para Gramsci, é o político, que detém e age com o conhecimento por isso “filosofia da práxis”. Os intelectuais orgânicos são aqueles ligados às classes fundamentais. Produzem conhecimentos: servem diretamente às classes e suas lutas e ideologias dentro dos aparelhos de Estado, em toda a sociedade. Esses conhecimentos possuem uma gradação que vai da mais desarticulada logicamente até a mais coerente e sofisticada, da mais mágica e bizarra — nos termos de Gramsci — à mais atual, articulada e sofisticada. Gramsci as classifica em: (I) folclore; (II) senso-comum; (III) bom-senso; e (IV), por fim e no topo, a filosofia. Folclore: combina num mosaico não coerente superstições, ditos populares, elementos religiosos, mágicos, bizarros com elementos reais, do passado, transmitidos tradicionalmente. Senso-comum: é ainda incoerente, embora num menor nível de incoerência, mas trata de problemas atuais, presentes, envolvendo uma gama maior, portanto, de elementos da realidade atual e concreta. Aqui se inserem privilegiadamente os ditos populares, as máximas populares, que expressam valores muito universais, possivelmente compatilhados por todas as classes. O Senso-comum é o verdadeiro alvo, o campo de batalha, o grande front da da disputa de hegemonia. Bom-senso: é o senso-comum “adubado e organizado pela filosofia”. Possui um maior grau de coerência lógica e sofisticação. Filosofia: é o nível superior do pensamento, em que o rigor lógico impera. Vale lembrar que a lógica de um pensamento não faz dele correto ou incorreto, eficiente ou ineficiente politicamente. Não é do que se trata aqui. Mas essa lógica, esse rigor, essa coerência organizam o sentido das outras formas de conhecimento. 24
LUIS, Alessandro Octaviani. Hegemonia e Direito: uma reconstrução do conceito de Gramsci. 2004. 131p. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) FFLCH, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. Mimeo.
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Assim, nas massas há sentimentos, percepções, valores, visões de mundo contraditórias, que podem impulsioná-las para sentidos políticos diferentes, opostos inclusive. Mas sempre, tais visões de mundo são orientadas por um senso eminentemente prático que detém todo ser humano, que o guia em sua sobrevivência, em sua melhor vivência. A direção cultural é a manipulação, a organização de tais sentimentos, percepções, valores e compreensões populares para se fazer crer que o caminho emanado da ordem através de suas estruturas políticas, intelectuais é o melhor caminho a ser adotado por todos. Uma amálgama entre imposição e vontade. Uma comunhão de um certo núcleo de valores pertencentes a uma classe, que tem a capacidade de aparentar ser a portadora do “universal”. Esta é a chamada “questão cultural” como um elemento essencial da hegemonia. Portanto, não há inocentes, neutralidade, nem tampouco o “acaso”. Todo o conhecimento, para Gramsci, se relaciona com essa lógica política profunda. A direção cultural hegemônica é mais do que um apelo emocional, um conjunto de promessas de governantes e patrões ao proletariado: trata-se de uma compreensão coletiva do momento histórico. A disputa de hegemonia se dá privilegiadamente nos aparelhos privados de hegemonia (os aparelhos ideológicos de Estado). Gramsci cita as editoras, as revistas científicas, os jornais, as revistas de todo tipo, “até os boletins paroquiais”. Incluamos aqui os meios de comunicação de massas, as Escolas, as Universidades, as Igrejas, que falam diariamente às massas. A classe dominante tem acesso e é hegemônica no conjunto desses aparelhos privados, no conjunto da sociedade civil, que proclama seus valores como os universais. De tal sorte que em certas formações sociais, em certos períodos, as classes dominantes dispensam a existência de partidos políticos representantes seus diretos. Na Ditadura Militar implantada em 1964 os partidos eram quase que decorativos. Vejam, mesmo em momentos de normalidade “democrática”: as classes dominantes recrutam quadros em todas as classes sociais (cooptação). Portanto, para concluir, uma crise revolucionária ocorre quando há conflitos que se tornam insuportáveis dentro do acordo de compromissos da Hegemonia, bem como quando não há saídas práticas para as massas dentro dos parâmetros de uma ordem social vigente num certo tempo e espaço. Não há revolução sem crise de hegemonia: não só os de baixo não agüentam mais, senão também os de cima não mais conseguem governar, dirigir as massas. Então, uma mudança se impõem: ou uma ruptura revolucionária ou uma tranformação da ordem para a sua continuidade sobre outras bases mais seguras. Foi o caso do Golpe Militar de 1964 no Brasil, o Golpe de 1973 no Chile, como também, do outro lado, a Revolução Cubana.
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