Faculdade de Letras da Universidade do Porto Estética e Linguagem 2012/2013 Paula Cepeda Rodrigues 1
Uma leitura de “ O Monstro nas Escadas” de Henri Michaux 1. Henri Michaux (1899 – 1984) Escrevo para me percorrer. Pintar, compor, escrever: percorrer-me. Reside nisto a aventura de estar vivo . 2
Henri Michaux é um daqueles poetas cuja obra têm a capacidade de nos deixar totalmente desarmados. A sua obra reflete atos, fantasias, angústias, desejos e movimentos que se escondem na simplicidade das suas palavras. Considerado inclassificável dentro de qualquer movimento, a sua poesia é a de uma voz, a sua voz, a voz de um independente. A escrita é a de um caminho que percorre, que constrói e destrói constantemente, que reflete sempre experiência e é ela mesma experiência. A sua obra é antes de mais pessoal, resulta da sua necessidade de atuação, de concretização de si mesmo. É através da escrita que a sua experiência se concretiza. Encontramos o ser como o território de exploração, uma terra incógnita onde podem surgir os mais estranhos seres, acontecer os mais misteriosos acontecimentos. Apresenta-nos o homem como uma criatura precária, sem identidade, exposta ao aleatório, sem lugar assegurado no mundo, de que é exemplo a personagem Plume; como alguém ou algo que se deve preservar dos seus próprios demónios, de resistir à tentação de dormir e de ceder. Tem-se a sensação de um sentimento de privação, de uma inadequação entre o homem e o mundo, de uma divisão interior intolerável, arrisco-me a dizer necessária. Na inadequação dá-se a reação. Poder-se-á dizer que o homem em Michaux se 1 2
Aluna da d a Licenciatura em Ciências da Linguagem – Linguagem – variante linguística. Michaux 1999: Antologia 1999: Antologia Henri Michaux Michaux , p.142.
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constitui por oposição ao mundo social e por excesso, um homem em dificuldades constantes, de músculos frágeis, sujeito a todo o tipo de vertigens e metamorfoses, um homem monstro, um homem animal, um homem-homem, por vezes um homem alucinado, um homem lúcido. Todo este universo é nos descrito em rápidos cenários de todos os géneros, sente-se uma agressividade, uma provocação que convida a ultrapassar limites, os limites da perceção do real, do mundo e dos outros. Por exemplo, no seu poema Braço Partido 3 ele relata um facto, no entanto não fala apenas da dor do braço partido como também da tentativa dos outros de fugir à vivência dessa dor (“será por pudor? Por uma questão de honra? Por instinto? (Porque a vontade de escapar, associada à esperança, faz as boas
convalescenças…). Será isso inteligência?” ), e da sua tentativa entre experimentá-la e negá-la. A experiência da dor da amputação permite-lhe viver a experiência do desejo pela mulher, criando uma realidade tangível através do processo imagético em que incorre. Nenhum resumo poderá falar melhor sobre Michaux que as palavras de Pierre Bettencourt, escritor e editor de livros muito raros, nomeadamente de Michaux: “Por detrás das cort inas do seu quarto, um mundano emparedado lança-se em busca do tempo perdido. Um homem, uma obra, que tem isto em comum? Uma eclipsou o outro e nós já chegamos tarde. E no entanto existe nos nossos dias um artista em liberdade, que durante meio século se manteve em equilíbrio entre o homicídio e a loucura, sobre a linha de uma obra cortante como um cutelo, a si mesmo entregue como vítima, trazendo nos olhos a chama justiceira capaz de ajustar contas de um só golpe, a intransigência que não se compadece facilmente, a lucidez que vai agitar a noite. Este homem vivo com quem nos podemos cruzar na rua, este homicida, este doido diante do qual a nossa inconsistência poderá ser perdoada, asperamente levou a sua própria pessoa ao suplício das mais radicais experiências, sem vacilar, até ao limite das forças e da razão, esse limite cujo momento em que o ultrapassamos não sabemos muito bem onde fica, nem se depois será possível voltar ao anterior mundo do sossego. Que aliás nunca mais será sossegado, desmascarado ao ser visto do outro lado do espelho, mundo de doidos e de mortos-vivos.” 4
3 Michaux 1999: O retiro pelo risco, pp110-111. 4 Prefácio de Pierre Bettencourt em Michaux 1999: O retiro pelo risco.
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A sua criatividade verbal é um exercício visionário em que as palavras, desligadas de seu uso comum, se empregam para transmitir mais um impulso que um significado. Uma imaginação poética intensamente fortalecida pela observação da realidade, numa insaciável curiosidade por conhecer a zona sombria e misteriosa do ser humano. Não há uma filiação literária, tudo na sua obra é vibração, universo peculiar e indefinível, catarse que revela paragens inóspitas do espírito e do mundo. Henri Michaux ensina-nos a procurar-nos a nós mesmo e a criarmos a nossa experiência própria do mundo, convida a assumir o risco de viver, através da exploração da mente e do espírito do homem, assumindo a hibridização de seres, encarando o humor sarcástico, a angústia, a solidão, a experiência da dimensionalidade de diferentes espaço, a violência como ato banal e simultaneamente propulsor dramático de transformação da matéria e do espírito que encara essa mesma matéria. Analisar um curto texto, um texto poema, sem a forma convencional de poema, é aqui um exercício de pensamento consciente de estar a incorrer num curto caminho de muros altos. Conhecer Michaux, conhecer a dimensão de um único texto implica conhecer muitos dos seus textos, na medida em que estes constituem experiência (conforme o autor advoga em várias partes da sua obra) e neste sentido um único texto apresenta-se assim como fragmento da experiência. Paradoxalmente ou talvez não cada texto é também em si mesmo independente, uma coletânea de textos que ora são uma narrativa no seu conjunto (Plume), uma descrição de viagem a um país imaginário ( O Pais da Magia), uma coletânea de sonhos, de experiências do corpo e de encontros furtivos em diálogo com desenhos, a outra escrita da qual o autor também se serve. Trata-se portanto de ter em consideração não a obra literária em si mas antes este pequeno texto literário O Monstro nas escadas . A análise aqui proposta pretende portanto não tão discutir
o lugar do texto na obra literária do autor mas antes constituir-se como um esmiuçar dos sentidos internos que atravessam o texto, como este se manifestam e para que outros sentidos apontam.
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2. O Monstro nas Escadas de Henri Michaux
Escrito em prosa, este poema descreve um encontro do narrador, que neste caso dada a natureza peculiar do autor coincide com ele mesmo, com um monstro que sobe umas escadas. Ao contrário de uma narrativa convencional o único evento descrito é o facto de encontrar o monstro ( “Encontrei um monstro nas escadas” ), o texto desenvolve-se numa tentativa de descrever a visão do monstro e
o que ela suscita naquele que o olha. Trata-se de uma tentativa no sentido em que o autor hesita, como se no monstro houve-se mais de indistinto que de simples forma, veja-se por exemplo alguns dos mecanismos de modalização epistémica utilizados: Uso do verbo “parecer” e da expressão “provavelmente” ;
Uso frase interrogativas. Ex: “ Boquinhas de sombra, de sombra ou de?” ; Uso da refutação/retificação de proposição anterior, através do conetor adversativo “mas” reforçada com a expressão “talvez” : Ex.: “
Mas talvez não fosse nada disso, e aquele… ) ; Uso de adjetivos e expressões de dúvida. Ex.: « não distinta», “ “ não tinha um corpo verdadeiro”; “Confusa humidade”; “ Hesitava -se” ; Uso de comentários introduzidos no texto através de parentização. Ex.: “(Embora me tivesse dado a impressão de que ele se abalançava….)”. O título funciona neste texto como seu hipertema e contém dois elementos fundamentais, a referência a «monstro» propriamente dito e a «escadas». Ou seja um
elemento
da
nossa
imaginação
coletiva
com
fortes
conotações,
tendencialmente negativas – o monstro; e as escadas – objeto de interior talvez de uma casa, tendo em conta que vários textos do autor se referem a situações e encontros passados num espaço interior, com diferentes conotações colocadas em funcionamento no texto. As escadas parecem servir como obstáculo para o mostro, e simultaneamente como algo que “não o conduziriam a lado nenhum” , ou seja umas escadas que ao contrário das “Escadas de Jacob” não conduzem para Bethel, como se o autor negasse a possibilidade de qualquer progresso moral ou místico, 4
reduzindo desta forma o monstro ainda mais à sua dimensão de um nada informe, de um ser imundo. Procedendo desta forma o autor inverte a polaridade da conotação do termo «escada» no texto, não sendo mais acesso a um outro lugar, mas apenas obstáculo. Como se este monstro fosse um “ser emigrado doutro mundo” a quem falta egoísmo para se ascender ao céu, unção para se afundar no lodo5. É interessante notar que o autor não atribui um nome a este monstro, mantendo-o sem identidade e neste sentido mais próximo da asserção original do termo, um ser de ainigma. Corrado Bologna (1997:315) refere-se a «monstro» como enigma na asserção de ainigma presente na Poética de Aristóteles: “o enigma aparece-lhe [a Aristóteles] como sendo em substância muito semelhante à metáfora, uma espécie de callida iunctura que aproxima o significado «excedentário», e, portanto «perverso»
de um significado «impróprio» e, portanto «impuro». E é, com efeito, esta ponte lançada para além do «normal» processo de significação, a modalidade expressiva do
monstro e do prodígio”. No seu artigo sobre monstro, Corrado Bologna, apresenta uma evolução semântica do termo «monstro» a partir de uma perspetiva hermenêutica, conciliando vários estudos de diferentes autores sobre o tema que revelam os sentidos polissémicos da palavra. Citando o ensaio de Emile Benveniste (1969) sobre a esfera semântica da monstruosidade, Bologna (1997:321) refere que “ monstrum sofreu uma evolução semântica no sentido da especialização, perdendo a conotação originária, que já nas etimologias dos antigos o ligava à ação de mostrar a dedo, de indicar: ao verbo mostrare, por conseguinte, que com mostrum ( de monestrum ) está ligado a moneo , o que significa portanto como ensinar uma conduta, perscrever a via a
seguir” . O monstrum cuja anomalia constituía uma advertência ( moneo, ‘advertir’), transmigrara-se para a esfera da metáfora, para dentro, desaparecendo como entidade do enigma, sobrevivendo nos umbrais do inconsciente humano. Corrado Bologna refere-se, principalmente, ao desaparecimento do monstro mitológico cuja asserção significativa incorporava toda uma cosmologia filosófica, toda uma forma de categorizar o real. Refere-se também à forma como o ser do enigma que desafia a razão, híbrido entre o humano e a animalidade, se reduz apenas à 5
Referência ao poema Como eu não possuo de Mário Sá Carneiro.
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aparência da anomalia natural nas suas múltiplas manifestações metafóricas, resistindo no universo da ficção da literatura e da arte em geral como a manifestação das tensões, riscos e experiência do estranho pelo próprio homem. Se por um lado podemos concordar com o desaparecimento do monstrum, não podemos deixar de considerar como aquilo a que chamamos de «monstro» evoluí no tempo, e como os diferentes atributos das coisas « monstra» influencia a categorização de diferentes entidades como monstros. Stephen T. Asma (2009) no estudo diacrónico “On Monsters – an unnatural history of o ur worst fears” apresenta-nos uma história da evolução dos monstros na cultura ocidental desde a Antiguidade até ao momento presente. Tal como Corrado Bologna reconhece o caráter ambíguo do termo «monstro» referindo-se a ele como “flexible, multiuse concept” (Asma, 2009:7). Mas a sua historiografia do «monstro» não se
circunscreve ao estudo etimológico do termo e das entidades “monstras”, antes
procura explicitar a relação do monstro e suas instanciações com o homem na sua dimensão afetiva, psicológica e imagética: “The monster, of course, is a product of imagination, but the imagination is a driving force behind our entire perception of the world. If we find monsters in our world, it is sometimes because they are really there and sometimes because we have brought them with
us.” (Asma, 2009: 14)
O «monstro» reflete a relação afetiva do homem com o desconhecido no limite do entendimento, do reconhecimento da forma e do comportamento humano ou animal. Para entender o «monstro» não podemos circunscrevermos à língua, teremos que considerar a interação entre imagem, psique, linguagem e experiência do mundo, e é exatamente esta dimensão do monstro que está em causa na obra de Henri Michaux. Ao contrário da proliferação e especialização dos monstros, da sua transmigração para a esfera do metafórico, arrisco-me dizer que em Michaux o monstro aproxima-se desse ser originário, no sentido aristotélico o portador do enigma, o desafiador da razão humana, aquele que aponta o dedo, incomodando, fazendo “um mal atroz só de olhar para ele”, constituindo uma “visão incómoda” , como tudo aquilo que se desconhece ou não se reconhece causa. O monstro nas escadas é um ser de coxas formidáveis, “ duas coxas pesadas sobre patas paltigradas” , paltigradas como as dos homens, não tem um “corpo 6
verdadeiro” exceto no que há nele de zonas moles e de confusa humidade , provavelmente hermafrodita, infeliz, abatido, bestial, desmesurado, infecto , repugnante, com lagos no lugar dos olhos, no entanto capaz de tentar o sexo
sonhador de um “homem desocupado”. Como podemos observar há uma predominância de características que nos fornecem pistas sobre o tipo de fisicalidade proposta. Todo ele é constituído por partes moles, tal como outros seres descritos na obra de Michaux, de que é exemplo as lagartas do Pais da Magia . Estes seres que atravessam a obra do autor estão construídos na função de realizar o segredo, têm um carácter extremamente sexual sendo assim agentes para o conhecimento, lugares da experiência do outro. São objetos de desejo carnal, desejo primordial, eternas serpentes. Mas o que significa ser mole? Ter partes moles? É nestes seres que se mergulha? A sua viscosidade (“ humidade” ) é seiva criadora de vida, são fluídos constantes, bolsas de fluídos, de esperma, sangue e leite materno. São os seres hermafroditas, o ser ambivalente, carne, massa envolvente sensível e caótica. Fruto monstruoso da força criadora. Múltiplos possíveis. Não ter ossos é não ter estrutura, é estar constantemente em movimento. São imagens do interior do corpo, daquilo que é na realidade o nosso intestino, o estômago, os órgãos genitais, colocando-os a funcionar por analogias, neste caso trata-se de uma massa indefinida com imensos olhos como lagos. Uma viagem pelo interior orgânico significa descobrir de que é feita a matéria. Estes seres são o lugar da ambivalência de uma feminilidade monstruosa, da força de algo simultaneamente repugnante e sedutor, sentimo-nos atraídos por elas, como pelas fotografias de corpos desfeitos por bombas, nada tem mais impacto nas entranhas que uma imagem de um homem atrofiado, de um rosto desfeito pelo ácido. Não é o rosto desfeito que atrai, mas antes o desejo de ver a carne transformada num sepulcro da beleza, o desejo de conhecer a morte. O horror é a face da verdade. O horror é a manifestação mais poderosa da sociedade em que vivemos. É um prelúdio do fim. Está demasiado contido na estilização pelo que só resta a implosão. Os seres em Henri Michaux são aqueles que aparecem na implosão, transformações a partir de dentro que transportam realidades tangíveis, sinais da violência, do tempo e da morte. Serão estes seres o que resulta de uma miscelânea de carne? Como marionetas de carne na mesa de um talho sob a pena de um poeta? Não se trata 7
meramente de um jogo literário, monstros ou não, eles são homem e animal, lugar de indiscernibilidade. Onde começa o homem e onde acaba o animal? Trata-se de uma indiferenciação, lugar último do desejo e da projeção das pulsões de uma vivência pela carne, na carne. Neste texto é o monstro que vive, movimentando-se sem um destino definido, cruzando o caminho do “narrador”, seduzindo e causando repulsa, em silêncio e indefinição. Um dos aspetos interessantes deste texto pretende-se com o diálogo que estabelece com outros textos do autor. Michaux identifica o duplo na sua obra 6 como aquele que se alimenta de tudo o que é excluído da sua vida. O duplo alimenta-se dos restos, do que se quer esquecer, dos materiais considerados inúteis. Sendo assim, ele cresce desmesuradamente dos escombros, e conhece a sua origem melhor que aquele que se julga seguro das suas escolhas, um caminhante que conhece ele e apenas ele o seu próprio caminho. Na zona das coisas rejeitadas guardam-se os segredos. Todo o segredo é uma bola de contenção edificante, uma força em estado bruto, capaz de destruir a aparência. Toda a destruição resulta em criação, trata-se de um jogo de forças entre o que se quer ver e o que se mostra, o duplo em última instância é o que se mostra. Inimigo? Monstro? Sem dúvida, o monstro que revela as origens, os impulsos primários, as fantasias reprimidas, a verdade. Monstro ou inimigo são só palavras que revelam o quanto pode abalar as estruturas puramente racionais, que dependem mais do consenso que da liberdade. E é para este abalo experimentado pela escrita que Henri Michaux nos transporta. Numa sociedade sem valores edificantes que se sustenta sobre estruturas condicionalistas apenas para sobreviver, como é o sistema capitalista, revela-se o quão diluído e esgotado se encontra o homem de hoje, um homem que não enfrenta os seus monstros. A liberdade não é um estado permanente é uma forma de jogar um jogo, o da vida ou o da arte, realmente não há diferença. Hoje em dia não se joga realmente, praticase a arte do subterfúgio, a sociedade entrega-se ao tédio, e o medo alojado no seu interior tende a criar a implosão necessária para restabelecer o equilíbrio. Inevitáveis atos de violência, momentos de verdade a que todos nos entregamos com prazer, quase sempre numa entrega clandestina, silenciosa, feita mais de pensamentos e negações. Michaux constrói na sua obra o espaço para a 6
Veja-se a este respeito Michaux, 1999: O Retiro pelo Risco – Vida Dúplice.
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experiência do prazer, não o puramente diletante, mas aquele que é o sinal para nossa humanidade, o prazer como “ afeção de uma pessoa ou de um sujeito, o único meio para uma pessoa “se encontrar” no processo do desejo que a transborda.» 7 Encontrar o duplo que cresce dos escombros significa encontrar as metamorfoses possíveis dos corpos. A nossa monstruosidade não é apenas aquela que reside nos nossos segredos privados ou recalcamentos, utilizando termos da psicologia, mas também aquela sobre a qual se constrói o “corpo social”. Trata -se de encontrar as singularidades que não podem ser consideradas apenas pessoais. A viscosidade, os corpos moles, a ausência de ossos, a indiferenciação da matéria são características que apontam para a construção de um “Corpo sem Órgãos” 8, isto é, procurar os corpos que se fragmentam, se diluem, sem interior, constituídos apenas por vísceras, etc. É uma busca pelos seus planos de imanência. Tal como os seres de Michaux encontramos no nosso dia-a-dia - quando não fechamos os olhos - corpos desmembrados, queimados, brutalizados, violados, ocupados, doentes, que se revelam na sua totalidade. São coisas, hospedeiros, espaços vazios para serem ocupados, espaços de pl enitude. E fazem perguntas, muitas perguntas… perguntas incómodas…perguntas silenciosas com os seus “ pequeníssimos lagos ou
seriam pálpebras, imensas pálpebras?” . Espaço de manifestação da morte, receio primordial da raça humana, o resultado destes corpos/seres é de uma beleza indescritível, de uma perturbante atração, lugar singular da sexualidade. É impossível
ser-lhes
indiferente,
eles
revelam
a
impossibilidade
da
incorruptibilidade dos corpos, a experiência óbvia da matéria como lugar de transformação. Não se trata de uma experiência moral ou política, é essencialmente ontológica e social. Neste sentido o texto acaba com um convite e com uma dúvida, serão olhos que o olham? Serão lagos que o convidam a mergulhar numa escada sem ascensão? Serão portas mitológicas que convidam o leitor/escritor a sair do seu espaço de conforto para entrar no espaço de indefinição onde se constituí a verdadeira experiência? Ou serão o abismo que espreita e nos devolve o olhar?
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Deleuze &Guattari, 1997: 18. Deleuze &Guattari, 1997. No artigo Como criar para si um Corpo sem Órgãos, os autores, definem o CsO como uma prática, um conjunto de práticas, e não com uma noção nem um conceito, estabelecendo claramente um diálogo com a obra de Antonin Artaud. 8
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Bibliografia Michaux, H . 1987. O Pais da Magia, Lisboa, Hiena. - 1993 Poteaux d’Angle, Mayenne, Editions Gallimard. - 1997 As minhas propriedades, Lisboa, Fenda. - 1998 Equador , Lisboa, Fenda. - 1999 Um Bárbaro na Ásia, Lisboa, Fenda. - 1999 O retiro pelo risco, Lisboa, Fenda. - 1999 Ideogramas na China, Lisboa, Cotovia. - 1999 Antologia Henri Michaux , Lisboa, Relógio de Água. Asma, S.T. 2009. On Monsters – an unnatural history of our worst fears. Oxford University Press. Bologna, C. 1997. “Monstro” In Ruggiero Romano (dir). Enciclopédia Einaudi V.36. Vida/Morte – Tradições – Gerações. Lisboa: Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 315-339. Deleuze,G.; Guattari, F. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. 2ª Parte, V1, 3 e 4, Rio de Janeiro, Editora Trinta e Quatro, 1997. Michaux, H. 1999. O Monstro nas Escadas. In Antologia Henri Michaux, Lisboa, Relógio de Água. pg.174.
Anexo
O MONSTRO NAS ESCADAS Encontrei um monstro nas escadas. O ar penoso que tinha a subi-las faziame um mal atroz só de olhar para ele. Tinha, porém, umas coxas formidáveis. Aliás, por assim dizer, todo ele eram coxas. Duas coxas pesadas sobre patas plantígradas. A parte de cima não me pareceu muito distinta. Boquinhas de sombra, de sombra ou de... ? Aquela criatura não tinha de modo nenhum um corpo verdadeiro, a não ser o que nele há de zonas moles e de confusa humidade, tenta- dores para qualquer sexo sonhador de homem desocupado. Mas talvez não fosse nada disso, e aquele grande monstro, provavelmente hermafrodita, subia infeliz, abatido e bestial, umas escadas que certamente não o conduziriam a lado nenhum. (Embora me tivesse dado a impressão de que ele se abalançava a mais do que alguns degraus). Era uma visão incómoda. Não seria com certeza bom sinal encontrar semelhante monstro. Percebia-se imediatamente que era imundo. Em quê? Hesitava-se. Parecia transportar na sua massa indefinida lagos, pequeníssimos lagos, ou seriam pálpebras, imensas pálpebras? Michaux, H. 1999 Antologia Henri Michaux , Lisboa, Relógio de Água. pp. 174 10