GÊNIO
DIETA
SONHO E MORTE
A trajetória do cérebro de Einstein
Alimentos que evitam a perda da memória
Como a mente nos ajuda a enfrentar o fim
ANO XI No 275
TRANSGÊNERO
QUANDO A SEXUALIDADE DESAFIA OS LIMITES FÍSICOS
9 771807 156009
00275
ISSN 1807-1562
CUIDE DE VOCÊ E MUDE SEU MUNDO
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psicologia • psicanálise • neurociência
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Reconhecer e priorizar o que de fato nos faz bem, além de convenções sociais e apegos imediatos, é tarefa psiquicamente complexa. Mas é possível e transformadora ESPECIAL EFEITOS PSÍQUICOS DO DRAMA VIVIDO PELOS REFUGIADOS
sumário | dezembro 2015 CAPA | ARTE DE JOÃO SIMÕES SOBRE IMAGENS A-DIGIT/SHUTTERSTOCK E UMIBERRY/SHUTTERSTOCK
capa 20 Dá um trabalho… mas vale a pena
24 Cuide de você e ganhe o mundo
por Gláucia Leal Cuidar de si mesmo requer tempo, dedicação, planejamento, atenção e determinação. Felizmente, alguns hábitos que podem ser incorporados nos ajudam nessa tarefa
por Roy F. Baumeister Tanto a capacidade de perceber o que realmente nos faz bem quanto a de postergar o prazer parecem ser o segredo do bem-estar nas mais variadas situações. A habilidade de não nos deixar levar pelo impulso de satisfazer desejos é chave para uma vida mais plena
48 Comida boa para a memória
16 Sonhos que nos preparam para a morte por Emma Badgery Produções oníricas que surgem no fim da vida não são apenas delírios aleatórios, têm a função de nos reconfortar e fortalecer emocionalmente para enfrentar o desconhecido
34 Qual é o seu gênero por Jaqueline Gomes de Jesus As diferenças entre homens e mulheres não são “naturais” ou determinadas pela genética, mas sim criadas socialmente 4
especial - refugiados
por Dina Fine Maron Dieta mediterrânea pode retardar processos degenerativos próprios do envelhecimento e favorecer a cognição mesmo se começar a ser seguida em idade avançada. Efeitos benéficos são perceptíveis em menos de dois anos
52 O roubo do cérebro de Einstein por Brian D. Burrell Violando o protocolo hospitalar, o patologista Thomas Harvey se apoderou de tecidos cerebrais do famoso físico e controlou o acesso a eles durante décadas. Um século após a publicação do artigo sobre a teoria da relatividade, o funcionamento mental do ganhador do Nobel ainda intriga pesquisadores
40 O trauma após a fuga por Cordula von Denkowski O drama de milhares de refugiados que lutam para sobreviver a guerras e conflitos traz questionamentos sobre consequências do fenômeno para a saúde mental tanto dos migrantes quanto de quem os recebe em seu país
seções
nas bancas Descansar é terapêutico
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6 PALAVRA DO LEITOR
8 ASSOCIAÇÃO LIVRE Notas sobre atualidades, psicologia e psicanálise
11 NA REDE O que há para ver e ler na internet
12 CINEMA Uma nova amiga por Erane Paladino
magdalena tworkowska/istockphoto
CARTA DA EDITORA
É preciso trabalhar, estudar e dar conta de obrigações. Certo, ninguém duvida. Mas encontrar tempo para se refazer do cansaço não é apenas prazeroso – é fundamental para a saúde do corpo e da mente. A próxima edição especial de Mente e Cérebro trata da importância de encontrar formas saudáveis de lidar com estresse, ansiedade, sobrecarga de trabalho e preocupações que, acumuladas, podem trazer graves prejuízos para a saúde e a memória, associando-se a sintomas de ansiedade e depressão, e muitas vezes agravando esses quadros. Especialmente no fim do ano, quando muitos já estão exaustos das demandas com as quais precisaram lidar nos meses anteriores, a pausa se faz necessária. Em artigos acessíveis, embasados em pesquisas nas áreas de psicologia e neurociência, especialistas abordam temas como benefícios do contato com a natureza para a saúde mental, alterações na percepção do tempo quando estamos muito atarefados e, claro, a importância de criar “escapes” psíquicos e o efeito das férias na desaceleração do metabolismo. Em dezembro nas bancas.
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LIVRO Grande amor - Um objetivo de vida por Gláucia Leal
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colunas 14
PSICANÁLISE Efeitos iatrogênicos da psicanálise
por Christian Ingo Lenz Dunker
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LIMIAR Dia das bruxas por Sidarta Ribeiro
no site Vídeos sobre psicossomática “Ao trazer a união entre funcionamento psíquico e corporal, a psicossomática psicanalítica amplia as possibilidades de ação terapêutica”, diz a psicanalista e psicóloga Éline Batistella, uma das entrevistadas da série sobre psicossomática disponível no site de Mente e Cérebro. Ela e outros quatro professores do curso de psicossomática psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae falam sobre a importância de compreensão e valorização de processos mentais envolvidos no adoecimento físico – uma intersecção entre medicina, psicologia e psicanálise. Participam da série o psiquiatra e psicanalista Wagner Ranña, a médica Helly Aguida e os psicólogos e psicanalistas Rubens Volich e Sonia Neves. Veja em www.mentecerebro.com.br. captura de tela
NEUROCIRCUITO Novidades nas áreas de psicologia e neurociência
Acompanhe a @mentecerebro no Instagram Saiba com antecedência qual será o tema da próxima capa
www.mentecerebro.com.br NOTÍCIAS Notas sobre fatos relevantes nas áreas de psicologia, psicanálise e neurociência. AGENDA Programação de cursos, congressos e eventos.
OS ARTIGOS PUBLICADOS NESTA EDIÇÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DOS AUTORES E NÃO EXPRESSAM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DOS EDITORES.
dezembro 2015 • mentecérebro
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palavra do leitor
Escritórios regionais: Brasília – Sonia Brandão (61) 3225-0944/ 3321-4304/ 9973-4304
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ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE EDITORES DE REVISTAS
ANSIEDADE
Como lidar com angústia de um diagnóstico grave
ANO XI No 274
TARJA PRETA
Empresas divulgam informação para vender medicamento psiquiátrico
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TOCAR E SER TOCADO Sou assinante de Mente e CéreO PODER DO bro há anos e ainda fico surpreso com algumas escolhas de temas. A edição de novembro, O poder do toque, me conquistou por tratar do tato, esse sentido tão importante, talvez aquele que nos apresenta ao mundo, mas que foi deixado em segundo plano pela ciência por tanto tempo. Penso na importância do toque no início da vida, como forma de transmitir confiança e amor. E também na vida adulta, para criar e manter laços afetivos. O texto ofereceu uma explicação muito pertinente sobre o sistema de nervos que responde ao toque. Fiquei impressionado com a complexidade e quantidade de processos envolvidos em algo aparentemente tão simples como tocar e ser tocado. Alexandre Fonseca – Goiânia, GO
TOQUE
O contato físico delicad oe suave nos predispõe a gestos de gentileza e genero sidade
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PSICOSE
Técnica permite medir a atividade mental de pacientes
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Diretor editorial: Rubem Barros Editora-chefe: Gláucia Leal Subeditora: Fernanda Teixeira Ribeiro Editor de arte: João Marcelo Simões Estagiária: Jullyanna Salles (redação) Colaboradores: Denise Martins (arte), Edna Adorno, Maria Stella Valli e Ricardo Jensen (revisão), Luiz Carlos Loccoman e Karin Hetschko (tradução) Processamento de imagem: Paulo Cesar Salgado Produção gráfica: Sidney Luiz dos Santos Vendas avulsas: Cinthya Müller PUBLICIDADE E PROJETOS ESPECIAIS Gerente: Almir Lopes
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MENTE E CÉREBRO ON-LINE Visite nosso site e participe de nossas redes sociais digitais.
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Presidente: Edimilson Cardial Diretoria: Carolina Martinez, Marcio Cardial, Rita Martinez e Rubem Barros
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Os 30 anos da terapia que trata corpo e mente
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TERAPIA MORFOANALÍTICA Excelente o artigo assinado por Serge Peyrot, criador da terapia morfoanalítica, A emoção que mora no corpo (edição de novembro, 274). Ele e todos os terapeutas morfoanalistas merecem esse reconhecimento. Fe Pachioni, via Facebook EDIÇÃO DE ANIVERSÁRIO Mais um ano que essa equipe nos presenteia com trabalho de alta qualidade. Em tempos de dúviE MELHOR das na cotinuidade da impressão em papel, sou um dos que ainda preferem folhear a revista. Percebi inclusive que mudei um hábito desde algumas edições: antes iniciava a leitura pelas últimas páginas; hoje, o editorial passou a ser uma provocação sobre o conteúdo, graças a seu poder de síntese. Mas Sidarta Ribeiro (autor da coluna Limiar) não precisa ficar preocupado, pois a revista é devorada de capa a contracapa. Parabéns! Pena Filho – São Paulo, SP
capa
VIVER MAIS com tantos recursos para combater os problemas físicos causados pelo envelhecimento, ultrapassa r um século de existência já não parece uma possibilidade distante. o avanço de tecnologias que mantêm o corpo saudável evidencia o fato de que viver bem a terceira (ou quarta) idade depende da boa saúde mental. desafiar o cérebro todos os dias parece funcionar como um poderoso elixir da juventude
por Catherine Johnson
, jornalista
outubro 2015 • mentecérebro
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MENTE E CÉREBRO
PSICOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO O ato de nos alimentarmos não é somente um modo de nos mantermos vivos! É importante entendermos a representação simbólica do alimento, utilizado não só para aplacar a fome de comida, mas também a de afeto! Deisy Vaske, via Facebook EDIÇÃO ESPECIAL ANO XI
ECIAL
ESP premium
100
páginas
Personalidade influi no sucesso da dieta Bactérias do intestino mudam seu humor Ervas para curar a ansiedade
neurociência psicologia • psicanálise •
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PSICOLOGIA DA
PSICOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO
ALIMENTAÇÃO Sanduíches que atrapalham a memória Como o cérebro decodifica o sabor
Alimentos que ajudam a aprender Neurociência ajuda você a cozinhar melhor www.mentecerebro.com.br R$ 19,90 4,50 €
O EDIÇÃO ESPECIAL N 52
A estreita relação entre sono e apetite
PSICOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO 2 Fiquei encantada com o especial Psicologia da alimentação. Adorei as “dicas” da neurociência para cozinhar melhor e o artigo que explica nosso fascínio pelos alimentos calóricos. A leitura foi deliciosa! Amanda Campos – São Paulo, SP
PSICOSSOMÁTICA: VÍDEOS NO SITE A relação entre saúde mental e física é direta e clara: tudo que não se suporta na mente refletirá em seu corpo. Por isso, investir em saúde mental é o primeiro passo para saúde física! (sobre a série de vídeos sobre psicossomática disponível no site: www.mentecerebro.com.br) Susana Souza, via Facebook
CONCURSO CULTURAL: ESCREVA E GANHE UM LIVRO! Mande sua opinião sobre um dos artigos desta edição para o e-mail
[email protected] ou uma sugestão e concorra a um livro. Por limitação de espaço, tomamos a liberdade de selecionar e editar as cartas recebidas. O premiado deste mês é Alexandre Fonseca – Goiânia, GO.
TEATRO
Memórias de uma analisanda de Sigmund Freud
N
os anos 30, a escritora americana Hilda Doolittle (1886-1961) mudou-se provisoriamente para Viena a fim de fazer sessões diárias de análise com Sigmund Freud. Ela manteve um diário durante o processo, em que fez anotações sobre as conversas com o terapeuta, além de relatar sonhos e pensamentos. Esses escritos estão entre os poucos depoimentos de pacientes de Freud e oferecem uma rica visão do método psicanalítico, da perspectiva do analisando. Junto com correspondências da escritora, esse material foi base do texto de Hilda e Freud, peça escrita pelo psicanalista Antonio Quinet. Com Bel Kutner no papel de Hilda e o próprio Quinet no de Freud, a montagem se aprofunda na relação dos dois, que 8
além de analista e analisanda se tornaram grandes amigos. Hilda foi artista, bissexual, quebrou paradigmas sociais na sua época. Seu encontro com Freud, a quem ela chamava “o médico irrepreensível”, foi, segundo ela, “uma grande viagem”, conduzida por um “curador de um grande museu arqueológico”. “Hilda era uma mulher muito sensível, que buscou sua salvação na arte e na psicanálise, numa época que esta estava florescendo, enquanto o mundo se deteriorava por conta das guerras”, comenta Bel Kutner. Pesquisador das relações entre teatro e psicanálise, Quinet é autor de vários textos que apresentam ao público um pouco da história e das bases das teorias sobre o inconsciente, como a série Variações freudianas, inspiradas em
flávio colker
com texto do psicanalista antonio quinet, a montagem hilda e freud é baseada em relatos da poetisa hilda doolittle sobre seu tratamento psicanalítico e amizade com o do criador da psicanálise; já encenada em londres e buenos aires, peça estreia no rio de janeiro
associação livre Texto critica popularização dos antidepressivos Tratamento mais comum para a depressão, os antidepressivos agem alterando os níveis de neurotransmissores, substâncias químicas essenciais para a regulação das emoções, da sensação de bem-estar, do humor e do sono, entre outras funções. Popularizados nas últimas décadas, esses medicamentos são cada vez mais prescritos e usados. No entanto, quais seus efeitos de longo prazo sobre o cérebro e nossas emoções? Seriam esses remédios capazes de influenciar fenômenos complexos, como se apaixonar? A reação conta a história de uma jovem psicóloga que participa de um experimento de novos antidepressivos, coordenado por psiquiatras. Durante o processo, ela se sente atraída por outro voluntário. Seriam essas fortes emoções mero resultado de alterações químicas no cérebro? Escrito pela dramaturga britânica Lucy Prebble, o texto convida a refletir sobre os limites da medicina e os polêmicos caminhos da indústria farmacêutica. A reação. Teatro Vivo. Avenida Doutor Chucri Zaidan, 860, Morumbi, São
Paulo. Sexta, às 21h30; sábado, às 21h, e domingo, às 18h. Sexta e domingo, R$ 30; sábado, R$ 40. Informações: (11) 97420-1520. Até 20 de dezembro.
A ATRIZ BEL KUTNER interpreta a escritora americana; o psicanalista Antonio Quinet vive Freud
Hilda e Freud. Cidade das Artes – Sala Eletroacústica. Avenida das Américas,
5300, Barra, Rio de Janeiro. Sábado, às 20h, e domingo, às 19h. Informações: (21) 3325-0102. R$ 60. Até 20 de dezembro.
JOVEM PSICÓLOGA enfrenta montanha-russa de emoções quando participa de um experimento com medicamentos psiquiátricos dezembro 2015 • mentecérebro
divulgação
casos clínicos clássicos, e a peça Abram-se os histéricos, que mergulhou no universo das histéricas tratadas por Freud. Já apresentada em Londres e em Buenos Aires com atrizes convidadas, Hilda e Freud fica em cartaz no Rio de Janeiro até final de dezembro. “As pessoas vão ver um Freud em ação de uma forma inimaginável através da visão de uma paciente, e não de seus próprios relatos”, promete Quinet. Em tempo: em 2012 a editora Zahar traduziu uma obra de Hilda Doolittle – Por amor a Freud–, sobre sua experiência como analisanda e amiga do psicanalista.
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associação livre Cicatrizes do abuso na infância
sandro silveira
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HYSTERICA PASSIO: título da montagem faz referência às “massagens pélvicas” adotadas como tratamento para a histeria no final do século 19
elírio ou um relato de memórias dolorosas? Em Hysterica passio, o ator Reginaldo Nascimento interpreta o menino Hipólito, de 12 anos, que fala aos espectadores sobre os maltratos que sofreu durante a infância e seu desejo de vingar-se dos pais. Assim, o ator se reveza no papel do protagonista, de um mestre de cerimônias e do pai morto, em um cenário asséptico que lembra um hospital psiquiátrico. O texto é parte da sequência Tríptico da aflição, da dramaturga espanhola Angélica Liddell. A atriz Amália Pereira vive Thora, a mãe de Hipólito, trancafiada pelo filho em uma jaula e obrigada a ouvir seu desabafo. Referência às “massagens pélvicas” adotadas como tratamento para a histeria no final do século 19, o título da montagem faz menção à relação do protagonista com a mãe, carregada de tensão sexual.
Hysterica passio. Espaço Parlapatões. Praça Franklin Roosevelt, 158, Centro, São Paulo. Sábados e domingos, às 20h. Informações: (11) 3258-4449. R$ 40. Até 13 de dezembro.
EXPOSIÇÃO
Os sons do silêncio
mostra convida espectador a imaginar a música produzida por instrumentos e objetos impedidos de tocar
metade da fala no chão – piano surdo (2010)/divulgação
Q
ual som sai de um piano com as teclas presas? Ou de baquetas fixadas em uma barra de sabão? Imaginar a música produzida por instrumentos e outros objetos “imobilizados” ou apresentados fora de seu contexto usual é a proposta da mostra Silêncio impuro, em exposição no Rio de Janeiro. “O que existe, ou aquilo que se expande pelo VÍDEO DA ARTISTA Tatiana Blass, um piano tem suas teclas progressivamente espaço, é a imagem do som – as mais distintas NO imobilizadas ao serem cobertas por uma mistura de cera e vaselina suposições que podemos ter sobre o que poderia ser ouvido se finalmente aquilo que o impede (uma características mecânicas de uma caixinha de música amarra, uma solda) fosse revelado ou reinterpretado”, que contém a famosa melodia de Beethoven. E também explica o curador Felipe Scovino, responsável pela reu- o vídeo Metade da fala no chão – Piano surdo (2010), de nião de 16 obras dos artistas Artur Lescher, Cadu, Carla Tatiana Blass, no qual o piano é coberto por uma mistura Guagliardi, Nuno Ramos, Otavio Schipper, Tatiana Blass de cera e vaselina que vai impedindo, progressivamente, e Waltercio Caldas. que produza sons. Entre os destaques da mostra está o relevo sobre Silêncio impuro. Anita Schwartz Galeria de Arte. Rua José Roberto Macedo papel Für Elise (2006), de Cadu – uma espécie de sis- Soares, 30, Gávea, Rio de Janeiro. De segunda a sexta, das 10h às 20h; sábados, tema para a produção de uma imagem com base nas das 10h às 18h. Informações: (21) 2274-3873. Grátis. Até 6 de fevereiro de 2016. 10
o que há para ver e ler
| na rede
Em junho, a atriz americana Rachel Farrokh, de 37 anos, fez um comovente apelo em vídeo. Vítima da anorexia há dez anos, pesando 19 quilos e com risco de morte, ela precisava de dinheiro para custear um tratamento específico para o transtorno alimentar. A campanha de crowdfunding, levada adiante por seu marido e cuidador, o preparador físico Rod Edmodson, deu resultados: em poucas semanas receberam US$ 200 mil de doações, o que possibilitou que Rachel fosse tratada por uma equipe multidisciplinar em um centro na Califórnia. Com a intenção de divulgar o transtorno e incentivar pessoas que sofrem do mesmo problema, Rachel tem gravado, desde o começo do tratamento, vídeos sobre seus progressos para o canal Rachel’s Road to Recovery, no YouTube. Uma página de mesmo nome no Facebook traz postagens diárias da atriz, que atualmente está em
captura de tela
Americana relata sua luta contra a anorexia em canal no YouTube
PESANDO 19 quilos e com risco de morte, a atriz Rachel Farrokh, de 37 anos, conseguiu pagar seu tratamento com doações recebidas em uma campanha de crowdfunding
um hospital em Portugal. “O que era uma vaga esperança há alguns meses é hoje a certeza de que vou viver. Minha meta com esse processo é conscientizar e educar outros que estão lutando contra a anorexia”, diz a atriz.
cinema
UMA NOVA AMIGA 1h47min - França, 2015 Direção: François Ozon Elenco: Romain Duris, Anaïs Demoustier, Raphaël Personnaz e outros.
O desejo e suas possibilidades filme adaptado de conto inglês apresenta de forma delicada possibilidades de subversão de modelos convencionais de sexualidade, afeto e família por Erane Paladino
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e a linguagem e a cultura são demanter a presença da mãe para acalmar O reducionismo terminantes na formação psíquica, o bebê, o que não convence Claire. estimulado pelas trazer ao discurso questões que, até Com o tempo e a convivência, ciências positivistas agora, não poderiam ser vistas ou ditas porém, ela e David desenvolvem uma pode ter caráter transformador. Apesar intimidade que permite a ele expor-se muitas vezes das constantes de padronizar comportapublicamente usando roupas e nome recai na tentativa mentos e se excluir diferenças tentativas de mulher – assim surge Virgínia, uma de normatizar ao longo dos séculos, a diversidade “nova amiga” para Claire. Da tensão categorias de tem aberto seu caminho, quebrando o inicial aparece uma cumplicidade com modelo cristalizado e rígido de moral certa dose de atração e erotismo que comportamento e família convencional, que acorrenta parece desvendar em Claire seu lado e discriminar o laços afetivos e a sexualidade. homossexual, encantada pela porção que possa parecer É com essa proposta que François feminina do amigo. E, a despeito do tom Ozon apresenta Uma nova amiga, uma inusitado da situação, o relacionamento estranho; essa adaptação livre do conto da escritora entre eles ganha força sexual e afetiva. dinâmica restringe inglesa Ruth Rendell. O filme inicia com Sem esbarrar num clima panfletário, os sujeitos a foco no casamento dos jovens David e a narrativa propõe de maneira natural Laura, e na relação da noiva com sua uma reflexão cuidadosa sobre o desejo sistemas que madrinha Claire, grande companheira e suas infinitas possibilidades. Vale desconsideram as de infância e adolescência. Pouco dereafirmar que estes referenciais tão subjetividades e pois, porém, Laura adoece, vítima de um arraigados nas sociedades judeo-cristãs câncer precoce e devastador, no mesmo impuseram valores, influenciando e singularidades período em que engravida e dá à luz sua marcando a cultura, a ciência, a mefilha. No hospital, Claire promete à amiga estar sempre dicina e a psiquiatria de forma especialmente intensa até ao lado de David para ajudá-lo com o bebê e no que mais há poucas décadas. A psicanalista e historiadora contemfosse necessário. Na primeira visita a David após a morte porânea Elizabeth Roudinesco alerta para a importância da amiga Claire surpreende o rapaz cuidando da filha ves- de evitar o reducionismo muitas vezes estimulado pelas tido com as roupas da falecida. O constrangimento o leva ciências positivistas, na tentativa de normatizar categorias a justificativas apoiadas em uma possível necessidade de de comportamento e discriminar o que parece estranho. 12
divulgação
Essa dinâmica restringe os sujeitos a sistemas fechados que desconsideram as subjetividades e singularidades. Um exemplo claro e didático se apresenta em 1952, na primeira edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM). A homossexualidade, neste caso, fica incluída nos distúrbios sociopáticos da personalidade, considerada um desvio sexual envolvendo comportamento patológico. Em 1968 passou a pertencer à classe dos desvios sexuais e somente a partir da terceira edição do DSM, em 1987, foi finalmente retirado do manual. O transexualismo surge na terceira edição classificado como disforia de gênero, o que foi revisto em 1994 com o diagnóstico de transtorno de gênero. Este processo de patologização da homossexualidade e do transgênero foi delineado formalmente nas primeiras discussões, no século 19, por autores como o psiquiatra Richard von Krafft-Ebing, na Alemanha. Estes entendiam essa prática associada ao desvio sexual, à degeneração e psicopatia. Sob a influência do positivismo e de ideias desenvolvimentistas, Freud escreveu em 1905 os Três ensaios sobre a sexualidade e apontou como aberrações sexuais os desvios, as inversões (ou o que chamou hermafroditismo psíquico) e o comportamento perverso. Por outro lado, sua teoria sobre desenvolvimento sexual, complexo de Édipo e castração trouxe a importância das experiências emocionais da infância como bases para a vida psíquica. Tendemos a repetir estas matrizes apoiadas nas identificações estabelecidas nessas primeiras vivências. E em nosso percurso, buscamos novas soluções para as inevitáveis marcas dos conflitos vividos. É a experiência da castração que nos possibilita o contato com nossos limites e com a incompletude. A partir desta constatação, somos impelidos à busca incessante de satisfação, em direção a
outras possibilidades, já que a expectativa de realização pelo prazer total se perdeu e ficou impossível. Este olhar pode transcender o normal e o patológico como únicas referências possíveis. O inusitado em Uma nova amiga surge, em grande parte, na atração de David/Virgínia por Claire, algo que extrapola o modelo “heteronormativo” previsto e coloca em pauta a questão de gênero, um tema contemporâneo complexo e desafiador aos pensamentos cartesianos. Na ordem do dia, a filósofa americana Judith Butler define gênero como “um modo de abraçar ou concretizar possibilidades, um processo de interpretar o corpo”. O debate sobre o tema visa desconstruir a padronização do modelo biológico e anatômico para definir sexualidade, considerando a constituição da identidade e do gênero uma orientação dinâmica atravessada pela construção da história pessoal, das relações e da cultura. François Ozon foi ousado, mas de maneira delicada conduz o espectador a pensar e refletir sobre as implicações dos desejos e escolhas feitos pela vida. Denuncia também as hipocrisias sociais, os tabus que tendem a inibir infinitas saídas psíquicas. Como uma obra inacabada, caminhamos pela vida na busca de soluções mais ou menos criativas para nossas angústias. Em nossos projetos de vida, o amor, o trabalho e os relacionamentos podem permitir a concretização de alguns sonhos, mas trazem sempre à luz as arestas da realidade. Nesta luta, cada novo desafio pode ser visto como tentativa da reinvenção de nós mesmos, numa trajetória de aprendizado. Como diz Butler, “como corpos, nós somos sempre algo mais, e algo outro, do que nós mesmos”. ERANE PALADINO é psicóloga e psicanalista, mestre em psicologia clínica, professora do Instituto Sedes Sapientiae. dezembro 2015 • mentecérebro 13
psicanálise
inconsciente a céu aberto
não imaginamos que palavras podem causar grande mal a uma pessoa, sendo a principal objeção levantada em termos de ineficácia, desperdício de tempo ou dinheiro ao se iniciar um processo analítico
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atrogênese é o efeito adverso criado por um tratamento, seja ele da ordem da imprudência, negligência ou imperícia, seja ele decorrente de consequências malfazejas que o uso de uma substância ou procedimento pode vir a acarretar para o paciente. Apesar de sua origem médica, admite-se que todo e qualquer tratamento possui eventuais efeitos desse tipo, mas ainda existe uma grande leniência nessa matéria quando consideramos a psicoterapia ou a psicanálise. Isso ocorre em parte porque não imaginamos que palavras podem causar grande mal a uma pessoa, sendo a principal objeção levantada em termos de ineficácia, desperdício de tempo ou dinheiro. Aliás, foram esses os motivos que levaram Freud a propor um período preliminar de tratamento, um tratamento de ensaio, antes de começar propriamente o processo. Ele levantava dois motivos para isso. O primeiro é poupar tempo e dinheiro aos envolvidos decorrentes do início de um tratamento sem que suas condições elementares estivessem dadas: alguma simpatia e confiança entre analista e analisante, a avaliação clínica de que os sintomas são responsivos à psicanálise e o asseguramento de que as condições para a empreitada, que exige certo empenho e dedicação, estão presentes. O segundo motivo é que o início
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de um tratamento, rapidamente interrompido, gera um efeito de descrença e de decepção, no paciente, quanto à própria possibilidade de livrar-se de seu sofrimento. Isso constitui, podemos dizer, um efeito iatrogênico da psicanálise: a criação de um estado de desesperança e acomodação aos próprios sintomas. Mas há motivos para pensar a iatrogênese, hoje, em outros termos. Prometer resultados e fazer uma elevada medida de nossa tarefa, como se ela fosse capaz de curar toda covardia, desperdício e miséria humana, é de uma imprudência tentadora. Atender
CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER
pacientes sem uma longa e periodicamente renovada análise pessoal, ademais apoiada por supervisão, é um caso banal de negligência. Encontramos combinações entre imprudência e negligência naqueles que desfazem da importância do diagnóstico, que atendem inúmeros membros de uma mesma família, que derrogam o auxílio de outros saberes e práticas ou que disseminam a crença de que sem a psicanálise o paciente não terá outros recursos para enfrentar suas dificuldades, fazendo-se assim de imprescindíveis e estimulando a dependência. Contudo, o tema mais controverso é certamente o da imperícia. Nele temos de avaliar o peso de nossas intervenções feitas por palavras e seus infinitos contextos. Nele quase não temos como distinguir o peso decisivo de um silêncio bem colocado de uma mera ausência desatenciosa. E se o paciente é a medida de todas as coisas, e de todas as palavras, não seria o caso de considerar também os limites de que mesmo uma psicanálise bem conduzida a seu termo seria iatrogência simplesmente por lançar o sujeito de volta em um mundo doente? No qual ele sofrerá ainda mais? CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER,
psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
arquivo pessoal (foto); diego schtutman/shutterstock (imagem)
Efeitos iatrogênicos da psicanálise
finitude
Sonhos que nos preparam para a morte produções oníricas que no fim da vida não são apenas delírios aleatórios: têm sentido e a função de nos reconfortar e fortalecer emocionalmente para enfrentar o desconhecido por Emma Badgery, jornalista
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bruce rolff/shutterstock
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ouco antes de morrer, muitas pessoas passam por experiências psíquicas bastante intensas, segundo registros encontrados em diversas culturas ao longo da história: veem luzes e lugares bonitos e têm a sensação de estar em companhia de pessoas conhecidas já falecidas. Apesar de frequente, o fenômeno só passou a ser investigado com mais afinco pela ciência nos últimos anos. Pesquisadores acreditam que, ao se defrontar com o próprio fim, nosso psiquismo recorra a estratégias de defesa, produzindo sensações que tornam esse momento menos assustador. Há poucos meses, um novo estudo publicado no American Journal of Hospice & Palliative Care, um dos raros a focar a perspectiva do paciente, reafirma que na maioria dos casos essas vivências trazem conforto. Segundo os cientistas do Daemen College e do Hospice Buffalo, vinculado ao Centro de Asilos e Cuidados Paliativos, que participaram do estudo, as impressões anteriores ao falecimento favorecem a sensação de paz e ajudam a mudar a perspectiva sobre a morte ou mesmo a aceitá-la com mais tranquilidade. Na opinião dos cientistas, os psicólogos, médicos, enfermeiros e outros profissionais da saúde que atendem esses pacientes não devem desvalorizar manifestações desse tipo, mas reconhe-
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finitude
No limiar da vida Ao recobrar a consciência, muitas pessoas que chegaram ao limiar da vida contam que estiveram numa espécie de viagem em direção ao além. Embora os relatos tenham detalhes específicos em cada caso, alguns elementos tendem a se repetir no discurso de homens e mulheres de diferentes idades e variadas classes socioculturais. Em geral, aqueles que “retornam à vida” falam sobre sentimentos de paz, bem-estar e leveza (às vezes, a ponto de sentir que levitam). Não raro, recordam-se da impressão de abandonar o próprio corpo e ver a si mesmos de uma perspectiva externa. Para o neurologista suíço Olaf Blanke, que coordena uma equipe de pesquisadores no Hospital Universitário de Genebra, não há dúvida de que a experiência de quase morte (EQM) e as impressões “extracorpóreas” estão fundamentadas no cérebro. Segundo ele, nessas ocasiões ocorre o que chama de “colisão de tempos” – um processo gerido pelo sistema nervoso e provocado pela falta de oxigenação cerebral, que faz com que conteúdos psíquicos surjam de forma desordenada, como uma espécie de sonho, cuja principal função é nos acalmar. O cientista enfatiza que as sensações experimentadas em situações extremas já estão armazenadas em nossa memória e apenas as acessamos nesse momento. “Para compreendermos o que acontece na EQM, é preciso entender que nosso cérebro funciona como um aparato de previsão do futuro, e não há nada de místico nisso; a todo instante ele se organiza com 18
hieronymus bosch. ascenção dos abençoados. óleo sobre tela, 1490-1516. gallerie dell’accademia, veneza
nos momentos de perigo, o aparelho psíquico mobiliza em poucos segundos enorme quantidade de lembranças em busca de uma ideia salvadora
base em hipóteses sobre o que está por vir”, afirma o neurofisiologista Detlef Linke, pesquisador da Universidade de Bonn, na Alemanha. Ele explica que, quando o aparelho psíquico é confrontado com a ideia de que estamos morrendo, todo o futuro se reduz a um único momento e, subitamente, não há mais sequência de acontecimentos a serem planejados. É como se a sequência temporal se interrompesse e a mente buscasse formas imediatas de lidar com essa informação angustiante. Quanto aos círculos de luz ou portais luminosos que aparecem
com frequência nas descrições de EQMs, Linke sugere que eles não estão associados apenas à baixa circulação sanguínea no cérebro, mas também ao mecanismo de funcionamento da mente, que se empenha em conferir sentido a tudo o que percebe. Para ele, é possível que uma claridade repentina – comum no ambiente hospitalar, por exemplo – seja interpretada como a saída de um túnel escuro. E, enquanto os sistemas de neurotransmissão fundamentais para a sensação de felicidade continuarem ativos, não é difícil que apareça a impressão de libertação do lugar escuro e o sentimento de êxtase, decorrente de outra interpretação subjetiva. Até mesmo a sensação de sair do próprio corpo pode ser explicada fisiologicamente, em sua opinião. “Somos treinados culturalmente a considerar imagens internas da perspectiva dos próprios olhos, mas os centros cerebrais trabalham rotineiramente com múltiplas abordagens e têm a capacidade de elaborar representações de si mesmo com base no olhar externo”, afirma. Quando há necessidade, o sistema nervoso recorre a esses registros. Se o fato de encontrarmos alento numa situação que poderia ser marcada apenas pelo medo e pelo desespero, passando por ela de forma mais suave e acolhedora, se deve a razões puramente biológicas ou se há algo inexplicável por trás desse processo que nos protege é um mistério. “De qualquer forma, devemos ser gratos por nosso cérebro providenciar recursos de emergência para ocasiões de profundo desamparo”, diz Linke. (Da redação)
Preparando-se para partir À medida que se aproximam da morte, muitos pacientes têm sonhos vívidos e intensos em uma ou mais das seis categorias
1. PRESENÇA RECONFORTANTE. Uma pessoa afetivamente importante (geralmente falecida, mas em alguns casos ainda viva) oferece apoio e carinho 2. RECORDAÇÕES AFLITIVAS. Alguns revivem experiências traumáticas, como guerras, abusos na infância ou situações e relacionamentos difíceis, como se o psiquismo fizesse uma tentativa derradeira de integrar essa memória
3. DE MALAS PRONTAS. Muitos se aprontam para uma viagem. Uma paciente, por exemplo, contou que embarcou num avião com o filho (vivo) e sentiu-se aliviada
5. EM COMPANHIA DOS MORTOS. Amigos e parentes falecidos desempenham papel significativo, que os pacientes relatam como predominantemente reconfortante
4. MODO DE ESPERA. Pessoas próximas falecidas parecem aguardar o paciente. Três dias antes de sua morte, uma mulher teve visões e sonho em que o marido a esperava no pé de uma escadaria
6. QUESTÕES PENDENTES. Há relatos de sonhos sobre medo de não cumprir tarefas importantes. Duas jovens mães, por exemplo, sonharam com os filhos pequenos chorando
cê-las como parte de um processo positivo. Pesquisadores acompanharam 63 pacientes admitidos no hospital durante um período de 18 meses. Os cientistas os entrevistaram diariamente, pedindo detalhes e descrições sobre possíveis sonhos e visões. A maioria relatou ter passado por experiências memoráveis (caracterizadas por sensação de realismo e com forte significado emocional) com bastante clareza, e não apenas devaneios comuns ou episódios delirantes. A análise dos dados revelou seis categorias de fenômenos oníricos. Em algumas ocasiões, por exemplo, os participantes declararam ter visto entes queridos falecidos esperando por eles (veja quadro acima). À medida que se aproximavam da morte, tendiam a sonhar mais com pessoas já falecidas do que com conhecidos vivos – e, em geral, descreviam a experiência como consoladora. A principal constatação do estudo é que sonhos e visões no fim da vida são reconfortantes. Pesquisas anteriores chegaram a conclusões similares: um levantamento feito com enfermeiros de cuidados paliativos em 2013 mostrou que 89% das pessoas entrevistadas associavam essas experiências com mortes calmas. No entanto, muitos profissionais tendem a ignorar esses fenômenos pré-morte, segundo o cardiologista Christopher W. Kerr, um dos autores do estudo. Ele afirma que grande parte dos médicos atribui, com
pouco cuidado na avaliação, esses incidentes a delírios ou efeitos colaterais da medicação. Os pesquisadores acreditam que essa atitude pode prejudicar a saúde mental de quem está em estado terminal. “Parece óbvio, mas infelizmente não é: precisamos tratar a pessoa, e não só a doença. A qualidade de vida no final ainda é importante”, defende a médica Pei C. Grant, diretora de pesquisa do Hospice Buffalo. Ela e seus colegas sugerem que famílias e profissionais conversem com o paciente e o estimulem a dizer o que pensa sobre sua situação, como se sente, e a contar seus sonhos. Eles ressaltam que, quando estimulados, na maioria das vezes os doentes se animam a compartilhar o que lhes passa pela cabeça e especialmente os sonhos. Isso permite que revejam sua vida e seus sentimentos em relação ao processo de morte, além de ajudar a entrar em contato com experiências passadas. “Muitas vezes temos medo do que está por vir e nos negamos a falar sobre o fim, como se isso pudesse evitá-lo, mas o resultado pode ser psiquicamente muito bom para todos”, diz a médica. “Basta se aproximar e ouvir. É exatamente disso que as pessoas em estado grave precisam.” Reconhecer o significado das experiências de finitude pode ajudar tanto quem se despede da vida como suas famílias a passar por essa transição tão difícil quanto inevitável.
PARA SABER MAIS Mortais. Atul Gawande. Objetiva, 2015. O homem diante da morte. Philippe Ariès. Editora Unesp, 2014 História da morte no ocidente. Philippe Ariès. Saraiva de Bolso, 2012. O livro tibetano dos mortos. Martins Fontes, 2010.
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DÁ UM TRABALHO...
MAS VALE A PENA cuidar de si mesmo não é exatamente tarefa fácil. requer tempo, dedicação, planejamento, atenção e determinação. felizmente, alguns hábitos incorporados ao dia a dia costumam ser muito úteis. por exemplo: diante de uma escolha – que diga respeito a relacionamentos, alimentação, saúde, algo que nos desagradou ou a qualquer outra coisa – é possível se perguntar: “isso me faz bem?” ou melhor: “isso me fará mal?” – e não só de forma imediata, mas de maneira um pouco mais ampla por Gláucia Leal,
jornalista, psicóloga e psicanalista, editora-chefe de Mente e Cérebro
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ense em tudo o que você fez por você mesmo desde que abriu os olhos hoje pela manhã. Se está num dia normal de trabalho ou estudo é bastante provável que tenha tomado banho, escovado os dentes, penteado os cabelos, escolhido uma roupa que lhe pareceu adequada. Talvez tenha se espreguiçado e pensado no quanto seria bom ficar até mais tarde na cama antes de levantar-se. Você pode ter praticado exercícios físicos, tomado café da manhã, repassado mentalmente os compromissos do dia e escolhido a melhor forma de chegar ao seu destino. É possível até que tenha separado objetos para carregar com você, para garantir seu próprio conforto ao longo do dia – celular, objetos de higiene pessoal, um livro, uma fruta ou outro lanche para mais tarde. Cuidados, cuidados, cuidados... Em vários níveis, aliás. Queremos ser aceitos, aprovados. Aprendemos aquilo que nos interessa, nos atemos à aparência, bem-estar físico e coisas que queremos, na tentativa de evitar o sofrimento. De alguma forma, na maior parte do tempo, procuramos atender nossas necessidades – reais ou imaginadas. O problema é que nem sempre fazemos isso de forma adequada. Pensamos a curto prazo, não buscamos ajuda e terminamos nos oferecendo menos do que gostaríamos. E isso não tem, necessariamente, a ver com capacidade intelectual, mas sim com nosso funcionamento psíquico. Não por acaso tantas pessoas adultas, inteligentes, bem-sucedidas em alguma área (e que, muitas vezes, cuidam de outras pessoas tanto profissionalmente quanto na vida pessoal) encontram enormes dificuldades para compreender do que realmente precisam e se atrapalham – seja para gerir as próprias finanças, lidar com assuntos burocráticos ou financeiros, para “levar-se” ao médico ou ao dentista, mas principalmente na hora de deixar de lado comportamentos destrutivos, evitar colocar-se em situações perigosas, terminar o que começou, priorizar o que realmente é importante... Enfim, dedicar-se ao que sabem ser realmente necessário em suas vidas. Ou que intuem ser fundamental – afinal, desconsiderar as próprias percepções
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também pode ser uma forma de “descuidar-se” das próprias necessidades. Paralelamente, muitas pessoas se tratam de forma permissiva e complacente, deixando-se levar e justificando, até para si mesmas, como se fossem crianças tentando enganar os pais ou a professora. Porém, o que parece mera indolência pode ser traduzido como abandono de si mesmo. Podemos pensar que por trás da evitação de compromissos com as próprias escolhas esteja um conflito interno: a “criança” travessa e irresponsável e o adulto repressor ou omisso são aspectos da mesma pessoa. O problema é que quanto mais intransigente ou abandonadora for a parte adulta, mais rebelde será a criança. E aí a confusão está formada. Uma solução mais saudável, que não recaia meramente na culpa e na autorrecriminação (sem que haja transformação efetiva), requer, em primeiro lugar, o acolhimento do que sentimos, de forma muitas vezes contraditória, e o desejo de responsabilizar-nos por nossas próprias escolhas.
COMO DISSE FOUCAULT Houve um tempo em que alguém cuidava de nós. Em geral a mãe (ou quem desempenhasse a função materna) nos alimentava, preocupava-se se estávamos limpos, aquecidos, confortáveis. Esse adulto tinha recursos psíquicos para pensar em nós, ainda bebês – ou melhor, pensar por nós. E graças a esses cuidados, às vezes mais, às vezes menos adequados, sobrevivemos física e emocionalmente – e nos tornamos quem somos hoje. As experiências de interação nos ensinaram a priorizar algumas coisas em detrimento de outras. Gestos, intenções e palavras deixaram as marcas em nossas existências. A equação, porém, não é simples. Mais do que determinar o que houve de “certo” ou “errado” é importante pensar que foi no encontro entre a mãe e o bebê, cada um com suas próprias características, que se instauraram registros arcaicos, espécie de matrizes a partir das quais desenvolvemos a relação conosco e com os outros na vida adulta. Por conta dessas experiências iniciais e dos sentidos que damos a elas, cuidar de si mesmo pode ser mais difícil para uns do que para outros. De forma geral, porém, não é exatamente fácil ficar atento ao que nos faz bem e buscar isso. Para a maioria das pessoas trata-se de uma
tarefa trabalhosa que, literalmente, ocupa toda a existência. Mas pode tornar-se extremamente prazerosa à medida que assumimos nossa autonomia. Para o bem e para o mal. O termo grego para cuidado de si, epimeleia heautou, presente desde a Antiguidade, envolve a ideia de tomar um tempo para voltar-se às próprias questões. É atribuída a Sócrates, por exemplo, a frase: “Deves ocupar-te contigo mesmo”. O filósofo francês Michel Foucault trata do assunto sem defender uma posição individualista; ao contrário, argumenta que a atenção que temos conosco se insere num contexto mais amplo de práticas sociais e se constitui enquanto pontos de resistência aos modos de governar que, inúmeras vezes no decorrer da história, buscaram impor aos sujeitos determinadas formas de ser. Em seu curso A hermenêutica do sujeito, Foucault apresenta a noção de cuidado de si como ponto de partida para se pensar a relação entre o sujeito e a verdade no Ocidente. No entanto, é o preceito délfico do “conhece-te a ti mesmo” (gnôthi seauton), que é reconhecido na história da filosofia ocidental como a fórmula fundadora desta questão da subjetividade em sua relação com a verdade. Na prática, ele refere-se a um conjunto de ocupações que envolvem empenho, um “trabalho” pessoal. Foucault afirma que esse tempo de dedicação não é “vazio”, mas sim repleto de atividades práticas variadas como meditação, leitura, escrita, exercícios de memorização, cuidados com o corpo e com a saúde, exercícios físicos sem excesso. Curiosamente, ele inclui nessa lista a importância de reservar espaço para conversar com amigo, confidente ou um “mestre espiritual”. Há, segundo essa concepção, a valorização do corpo, da palavra e do encontro com o outro. “A prática do cuidado de si não constitui um exercício da solidão, mas sim uma verdadeira prática social”, salienta o filósofo em História da sexualidade 3: o cuidado de si. Podemos pensar ainda que o cuidado consigo mesmo se manifesta em variados níveis, tanto em hábitos que podem parecer corriqueiros, quanto no reconhecimento de nossas emoções e no respeito aos próprios limites e nos relacionamentos que construímos. Mas se expressa, basicamente, na maneira como lidamos com o tempo e com aquilo que sentimos – e nas prioridades que estabelecemos. Uma
das expressões mais fortes de autocuidado é a preocupação (e o Cuidar do outro muitas vezes é necessáempenho persistenrio, seja por motivos pessoais (como a te) em se tornar uma chegada de um bebê ou o adoecimento pessoa mais parecida de um ente querido) ou pela própria com aquela que desejaprofissão que escolhemos (uma escolha, mos ser. Tomando uma aliás, que não se dá ao acaso certamente ideia freudiana como tem raízes na história de vida de cada referência, cuidar de si um). A experiência de dedicação pode pode ser aproximar-se ser afetiva e psiquicamente muito rica. do ideal de ego (perPorém, não são raros os casos em que meado criativamente a devoção ao outro funciona como uma por potencialidades, fuga, em especial quando surge de formarcado pela autorizama exagerada, deslocada. O fato é que ção interna para ocupar quanto mais tranquilos estamos conosco, os próprios espaços, mais estaremos verdadeiramente disposabendo-se passível de níveis, sem exigir algo em troca de nossa erros, acertos, trazendo dedicação, ou misturar os próprios sentipara si as escolhas e mentos e desejo com os alheios, fazendo suas consequências ). projeções e cobranças, ainda que não E, simultaneamente, conscientes ou expressas claramente. afastar-se do ego ideal (baseado em referenciais externos, psiquicamente limitantes).
O meu, o seu, o nosso
NEM TÃO DIFÍCIL O cuidado não está apenas no que fazemos, mas principalmente na forma como o fazemos. Um exemplo simples: estar atento à própria dieta, procurando comer alimentos saudáveis é, pelo menos em princípio, bastante benéfico. Mas, se nos tornamos obsessivos com o controle da alimentação, o que era bom pode se tornar um problema. Até mesmo porque concentrar muita energia em uma única área da vida trará carência e privação em outras. Nesse sentido, a atenção à flexibilidade é um ponto alto do cuidado consigo mesmo, já que quanto mais maleáveis somos psiquicamente, menos sofremos quando as coisas não saem como imaginamos. A questão não é se proporcionar coisas, sensações e experiências – e sim oferecer a si mesmo o que faz realmente bem. Felizmente, muitas vezes, isso não é inacessível ou tão complicado de ser feito. É possível começar pelos pequenos gestos, prestando atenção ao que parece “normal”, oferecendo-se pequenos carinhos, evitando expor-se ao que muito provavelmente trará sofrimento. E talvez valha lembrar que há cuidados que só nós podemos ter conosco. dezembro 2015 • mentecérebro 23
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CUIDE DE VOCÊ
E GANHE O MUNDO tanto a capacidade de perceber o que realmente nos faz bem quanto a de postergar o prazer parecem ser o segredo do bem-estar nas mais variadas situações. a habilidade de não nos deixar levar pelo impulso de satisfazer nossos desejos é uma chave fundamental para uma vida mais plena
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por Roy F. Baumeister
O AUTOR ROY F. BAUMEISTER é doutor em psicologia, professor do Departamento de Psicologia da Universidade do Estado da Flórida. dezembro 2015 • mentecérebro 25
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m dos principais cuidados que podemos ter conosco é nos protegermos de situações que possam ser nocivas a médio e longo prazo. Ter clareza a respeito dos limites que queremos manter – e romper – costuma ser tarefa de toda uma vida. Mas a prática mostra que vale a pena assumi-la. Num nível mais regredido, inerente à criança que fomos um dia (e sob certos aspectos continuamos a ser), ansiamos profundamente controlar a nós mesmos e o ambiente. Felizmente, perceber (e suportar) a frustração quando as coisas não ocorrem como ou quando queremos e da forma como gostaríamos traz mais benefícios que prejuízos e costuma ser libertador. Mas o que isso tem a ver com cuidar de si mesmo? Muito. O reconhecimento da importância do autocontrole por psicólogos sociais é ainda recente, mas reflete uma mudança importante de perspectiva. Há 30 anos muitos profissionais dessa área consideravam, equivocadamente, o aumento da autoestima um caminho eficiente para problemas pessoais e males sociais. Dessa perspectiva, a elevada autoestima estaria associada a sucesso na vida, portanto era razoável presumir que um reforço melhorasse a vida das pessoas. Porém, quando analisados mais de perto, os dados de inúmeros estudos revelam que autoestima, por si só, não conduz ao sucesso – e muito menos ao bem-estar e à sensação de felicidade. Principalmente se pensarmos na autoestima como uma constante preocupação em reconhecer os próprios feitos, enaltecer a si mesmo e permanecer atento a cada desejo para realizá-lo prontamente. O apreço por si mesmo é mais um efeito de atitudes internas cuidadosas do que uma 26
causa de satisfação. Ou seja, quando passamos a priorizar o que de fato nos faz bem (seja acordar mais cedo para fazer exercícios físicos, empenhar-se em preparar um trabalho que precisa ser entregue ou evitar entrar em discussões que não trarão nenhum benefício, por exemplo), costumamos nos contentar com o resultado e nos orgulhar por ter feito algo bom para nós mesmos. Para compreender melhor essa dinâmica, pesquisadores americanos que monitoraram estudantes durante períodos prolongados descobriram que tirar boas notas resulta em maior autoestima posterior, mas ter maior autoestima não produz, por si só, boletins excepcionais. O núcleo da questão parece ser discriminar o que realmente nos faz bem e investir nisso. Experimentos sobre essa capacidade começaram na década de 60 com estudos pioneiros sobre gratificação adiada, conduzidos por Walter Mischel, atualmente na Universidade Columbia. Ele empregou um procedimento que veio a ser chamado “teste do marshmallow”, no qual oferecia às crianças a opção de ganhar o doce imediatamente ou receber o dobro caso conseguissem se controlar e esperar cerca de 15 minutos pela guloseima. Mais de uma
MUSCULAÇÃO MENTAL Com outros colegas, passei mais de duas décadas desenvolvendo estudos laboratoriais sobre a habilidade de fazer boas escolhas para si mesmo. Durante esse período cheguei à conclusão de que a autorregulação, que nada mais é que o domínio sobre a própria mente, funciona mais ou menos como um músculo. O autocontrole parece se “cansar” depois de um exercício. Centenas de estudos, em muitos laboratórios em vários países, agora replicaram a constatação básica de que, depois de exercer a força de vontade, as pessoas têm menos “reservas excedentes” para completar uma segunda tarefa. Em um dos primeiros estudos, verificamos que homens e mulheres que apelaram ao próprio autocontrole para resistir a chocolates e biscoitos mais tarde demonstraram menos determinação em um exercício de difícil resolução. Os participantes do experimento desistiram mais facilmente do que pessoas que não haviam exercitado seus “músculos” de força de vontade. Outros trabalhos mostraram que tentar suprimir um pensamento proibido, como ser orientado a não pensar em um urso-branco, deixou os voluntários menos capazes de controlar reações emocionais posteriores.
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década após a publicação desses primeiros trabalhos, Mischel e seus colegas localizaram aqueles mesmos voluntários, então jovens adultos, e repetiram testes oferecendo prêmios que poderiam ser desfrutados imediatamente ou seriam melhorados caso os participantes do experimento aceitassem postergar o acesso à recompensa. Os cientistas fizeram o mesmo quando os voluntários participantes do estudo entraram na meia-idade. Os que tiveram maior sucesso em resistir à tentação quando tinham 4 anos também foram os mais bem-sucedidos como adultos. Ao reconhecer a necessidade do autocontrole para atingir o próprio bem-estar, eu e outros pesquisadores começamos a investigar os mecanismos psicológicos e biológicos subjacentes a esse processo. As descobertas indicam que o ato de optar por não expressar raiva, ou renunciar conscientemente a uma guloseima, equivale a explorar uma reserva de energia que, muitas vezes, nem sequer suspeitamos ter. No entanto, como ocorre com qualquer fonte de energia, ela se esgota com o tempo e precisa ser reabastecida. O que psicólogos aprenderam sobre alguns “autocuidados” em estudos recentes pode até oferecer novas ideias para tratar os desafios aparentemente intratáveis de dependências de drogas e álcool.
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EXERCÍCIO DE FICAR BEM: numa analogia com o corpo, o foco naquilo que nos traz mais benefício a médio e longo prazo pode ser treinado e fortalecido 28
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Usamos o termo “depleção de ego” para rotular o estado de força de vontade diminuída que se segue ao gasto de energia psíquica em autocontrole, resistindo a uma tentação ou nos forçando a tomar decisões difíceis. O termo foi escolhido como uma homenagem a Sigmund Freud, que propôs que o eu se estabelece parcialmente em uma fonte, ou “quantum”, de energia. Passados mais de 100 anos, suas teorias sobre como essa energia funcionava ainda são bastante esclarecedoras. Ele postulou, por exemplo, que a forma como essa energia mental é direcionada e empregada explica nosso funcionamento psíquico. Ela não pôde ser ignorada quando nossos experimentos constataram que o autocontrole opera como uma espécie de músculo mental cujas reservas de força podem ser depauperadas com o uso. Duas outras linhas de pesquisa ampliaram a analogia muscular. Experimentos conduzidos por Mark Muraven, da Universidade do Estado de Nova York em Albany, e seus colegas mostraram que após grande esforço a força de vontade não desaparece inteiramente. Pelo contrário, o psiquismo parece conservar energia; assim, se surgir um desafio ou uma oportunidade importante, mais autocontrole pode ser acessado. Essa lógica se assemelha ao que ocorre, no corpo, com músculos. Quando os atletas
começam a se cansar, reduzem esforços para conservar a energia restante. E, se necessário, podem mobilizar esforços concentrados, usando as reservas, por exemplo, para um sprint (uma acelerada final) até a linha de chegada. Há aqui algo importante a ser notado: músculos não apenas ficam fatigados quando usados regularmente – eles se fortalecem. Da mesma forma, a capacidade de nos oferecermos o que de fato nos faz bem também pode ficar mais poderosa com a prática. Em vários estudos, voluntários foram incumbidos de prestar atenção no modo como se comunicavam, mudando o modo como falavam, evitando palavrões, usando frases completas e dizendo claramente “sim” ou “não”, em vez de “tá” ou “hum hum”. Em outro experimento, foi solicitado aos participantes que simplesmente melhorassem sua postura, sentados ou eretos. Após a conclusão dos exercícios, avaliamos o autocontrole das pessoas por meio de testes práticos, por exemplo, flexionando um aparelho ergométrico para as mãos, pelo maior tempo possível, sem nenhuma alteração nos padrões de linguagem ou postura. Os voluntários que haviam praticado os exercícios anteriores tiveram desempenho significativamente melhor que um grupo de controle que não teve de controlar sua linguagem nem sentar-se de forma ereta.
Com base nesses estudos, ocorreu-nos que a noção vitoriana de “edificação de caráter” parece ter alguma validade científica. Exercer autocontrole regularmente de fato reforça essa capacidade. Quando realizamos esses estudos, começamos a nos perguntar se a verdadeira energia física também estava sendo consumida, ou se a noção de consumo energético era apenas uma metáfora psicológica. Uma resposta a essa pergunta veio por acaso, quando o fracasso em um experimento nos levou a uma nova e útil percepção. Aparentemente, alguns cientistas transitam de um estudo bem-sucedido a outro, mas não sou um deles. Nesse caso, Matt Gailliot, então estudante de graduação, perguntou se poderíamos ampliar a observação de que força de vontade se esgota quando alguém resiste à tentação. O caso contrário também seria verdadeiro? Ceder a um desejo de fato acabaria fortalecendo a força de vontade?
COMBUSTÍVEL PARA O CÉREBRO Tinha minhas dúvidas, mas incentivei Gailliot a investigar a questão, que chamamos informalmente “teoria Mardi Gras”, em referência à tradição cristã de ceder a impulsos pecaminosos antes de um período de autonegação durante a Quaresma. Primeiro exploramos o autocontrole das pessoas ao pedir que elas suprimissem mentalmente o pensamento proibido em um urso-branco. Em seguida, orientamos aleatoriamente alguns dos participantes a beber um delicioso milk-shake antes que fizessem um teste “mascarado” de força de vontade, que consistia em procurar uma matriz numérica para uma sequência em particular. Na realidade, a sequência não estava ali, e o objetivo era verificar quanto tempo as pessoas conseguiriam permanecer tentando antes de desistir. Elas, porém, não sabiam qual era nosso objetivo, imaginavam participar de um estudo sobre cognição. O grupo que bebeu o shake perseverou por mais tempo que a equipe que não ganhou. Essa aparente vitória para a teoria Mardi Gras, entretanto, logo foi minada por outro resultado que envolveu um grupo de controle adicional. Como na situação anterior, um deles não recebeu nenhuma bebida antes do teste e, como esperado, saiu-se mal. O outro grupo
tomou um milk-shake sem Durante décadas sabor, que continha uma muitos psicólogos mistura meio a meio de leite e creme de leite sem consideravam, açúcar em vez de sorvete. equivocadamente, o Portanto, era basicamente cultivo da autoestima um grande copo cheio de uma espessa gororoba láccomo o melhor tea sem sabor. Infelizmente caminho para para a teoria de Gailliot, resolver problemas essa turma também teve pessoais e sociais um desempenho melhor que os voluntários que não haviam recebido nenhuma recompensa. De início, Gailliot ficou um tanto decepcionado porque o experimento parecia ter sido um fracasso. No entanto, enquanto discutíamos a questão, tivemos outra ideia: se não era o prazer da satisfação que restaurava a força de vontade, poderiam ter sido as calorias? Começamos a pesquisar sobre glicose, o açúcar na corrente sanguínea que fornece energia aos tecidos do corpo, inclusive o cérebro, o centro do autocontrole. Realizamos uma longa série de estudos e acabamos fazendo duas descobertas de apoio à teoria que resistiram ao teste do tempo. Uma mostrou que, quando o nível de glicose no sangue está baixo, o autocontrole é afetado, muitas vezes substancialmente. Aliás, esse padrão dá credibilidade à queixa que se escuta frequentemente de que uma pessoa está tendo dificuldades para “funcionar” devido a um nível “baixo de açúcar no sangue”, uma conclusão que também coincide com estudos de nutricionistas. A outra descoberta significativa confirmou que uma dose de glicose ministrada pouco antes que o autocontrole comece a enfraquecer, ou vacilar, ajuda a restabelecer a força de vontade necessária para prosseguir. Esses resultados sugerem fortemente que força de vontade é, de fato, mais que uma metáfora. Além disso, se exercer autocontrole diminui essa capacidade e a energia necessária para sustentá-lo, então a energia remanescente pode ser conservada ao reduzir mais demandas de autocontrole. A conclusão parece tão simples quanto inevitável: alcançar objetivos associa-se com cuidados básicos com o corpo, como oferecer “combustível” para o funcionamento cerebral por meio de alimentação adequada. dezembro 2015 • mentecérebro 29
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O que a ciência mostra parece um contrassenso, na contramão de uma das ideias mais difundidas da sociedade de consumo, de que não devemos adiar a possibilidade de obter satisfação. E, de preferência, constantemente oferecer a nós mesmos e àqueles que amamos os mais variados produtos que se propõem trazer conforto aos sentidos. Ao contrário disso, porém, o que se vê na prática é que postergar nossos anseios traz bem mais prazer do que aplacá-los imediatamente. Já dizia o provérbio que “o melhor da festa é esperar por ela”. Não precisamos ir muito longe para pensar o quanto ter o que queremos em quantidade, com variedade e sem grande esforço pode ser desestimulante. Basta pensar em uma criança que ganha brinquedos quase que diariamente, em comparação a outra que deve esperar datas comemorativas, como Natal ou aniversário, para receber o presente que deseja. Muito provavelmente a que aguarda, sonha com o mimo tão almejado e planeja o “grande dia” terá satisfação muito maior ao receber o brinquedo, em comparação à que mal tem tempo de desejar e o objeto já se materializa diante dela. Em 2011, o criador da psicanálise, Sigmund Freud, falou com maestria sobre o funcionamento mental em relação às possibilidades de postergação ao apresentar em sua obra as noções de princípio da realidade e de princípio do prazer. Em linhas gerais, é possível dizer que o primeiro caracteriza-se pelo adiamento da gratificação e se opõe ao segundo, que leva a pessoa a buscar a satisfação e evitar o desconforto. O processo de amadurecimento saudável contempla a 30
ampliação da capacidade de conviver com frustrações, nos esforçarmos para atingir o que desejamos e adiar o recebimento de recompensas. Ao fazer isso, prevalece o princípio da realidade e nos afastamos do princípio do prazer. Esse amadurecimento psíquico favorece atitudes mais tolerantes, nos permite manter compromissos, estabelecer prioridades e, consequentemente, alcançar objetivos nas diversas áreas da vida. Desenvolver capacidade de suportar a frustração da espera ou do empenho para conseguir algo, portanto, seria uma forma de aprender a cuidar melhor de si mesmo e, em última instância, obter mais satisfação? Psicólogos e psicanalistas garantem que sim.
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A inglória tarefa de vigiar o próprio prazer
Um terceiro resultado, porém, não se sustentou. Constatamos que níveis de glicose no sangue caem durante uma tarefa que exige autocontrole. Uma conclusão dessas seria consistente com a ideia de que exercer força de vontade consome glicose. Não conseguimos, porém, replicar o padrão confiavelmente em testes posteriores. No entanto, alguns estudos de outros laboratórios mostraram que o cérebro usa mais glicose quando exerce maior esforço.
RESERVAS DE DETERMINAÇÃO Como ocorre com muitas teorias científicas, nosso modelo muscular de autocontrole evoluiu à medida que outros pesquisadores se envolveram nesses estudos. Alguns buscaram reproduzir o que tínhamos feito; outros queriam desmantelar ou contestar nosso trabalho. Novas descobertas e os debates que geraram ajudaram a expandir nosso entendimento de autocontrole. Uma questão polêmica tem sido saber se o cérebro realmente fica sem “combustível” para exercer a força de vontade. Como nós, muitos pesquisadores confirmaram que a capacidade de escolher o que nos faz bem é prejudicada quando a glicose sanguínea está baixa, estado fisiológico que afeta tanto o cérebro como o restante do organismo. Outros, porém, argumentaram que o corpo humano tem extensas reservas de glicose que podem ser usadas se uma quantidade destinada à força de vontade foi consumida. Para agravar o ceticismo sobre nossa noção de depleção, ou redução de energia, o consumo de glicose pelo cérebro oscila pouco. Na pré-história, pessoas podem ter enfrentado uma ameaça real, com queda em seus níveis de glicose, mas em sociedades industriais poucos devem preocupar-se, especialmente os bem alimentados estudantes universitários que mostraram sinais de depleção do ego, ou autorregulação prejudicada em nossos experimentos. Todos esses argumentos são válidos, mas é possível que o exercício de autocontrole não leve necessariamente à depauperação de glicose e que, quando o corpo sente que a glicose disponível está acabando, faz ajustes para enviar o açúcar para onde ele é mais necessário. Nesse caso ainda estaría-
mos corretos ao acreditar Autocontrole não é que a força de vontade é apenas uma virtude um recurso precioso que precisa ser conservado. A puritana; trata-se de noção simplista de que deuma característica pleção de ego significa que psicológica que o cérebro gasta todo o seu permite sucesso no estoque de combustível não se sustenta, mas paretrabalho, valoriza ce provável que a vontade conquistas e ajuda a de conservar um recurso superar dificuldades parcialmente esgotado é poderosa e generalizada. Outra crítica sugere que qualquer déficit de força de vontade pode ser superado ao simplesmente colocar pessoas com reservas decrescentes em circunstâncias que as levem a recorrer a uma determinação adicional. Estudos mostraram que designar pessoas para uma posição de poder e liderança, ou até remunerá-las para que se esforcem mais, faz com que elas continuem demonstrando um bom autocontrole mesmo em situações em que sua energia deveria estar depauperada pelo exercício anterior de força de vontade. Essa pesquisa levanta a possibilidade de a força de vontade ser algo inteiramente psicológico. Nenhum recurso fica de fato esgotado, mas as pessoas perdem a motivação para trabalhar arduamente. Pode significar também que, quando a força de vontade diminui, você ainda será capaz de exercer o autocontrole eficaz se isso for fundamental. Em uma crítica ao nosso ponto de vista, as pesquisadoras Veronika Job e Carol Dweck, ambas então na Universidade Stanford, propuseram que a força de vontade é ilimitada e que uma pessoa com suficiente motivação pode simplesmente continuar “em frente”. Para essas cientistas, a ideia de depleção de ego é uma ilusão baseada em uma crença falsa. Nossa teoria de alocação de energia não discorda por inteiro da opinião de que pessoas podem recorrer a recursos de reserva durante algum tempo. Se sua força de vontade estiver ligeiramente enfraquecida, seu corpo pode procurar manter o que resta, mas você ainda pode usar essa reserva e ter um bom desempenho na tarefa de cuidar de si mesmo. Atletas cansados conservam sua energia para os dezembro 2015 • mentecérebro 31
capa momentos cruciais e decisivos. Pessoas com ego depauperado fazem a mesma coisa com a própria determinação. Em nossos estudos constatamos que pessoas que acreditam em força de vontade ilimitada acessam reservas para aumentar seus níveis de glicose sanguínea quando na realidade o açúcar deveria ter sido esgotado. A história, porém, fica um pouco mais complexa quando examinada mais de perto. Um teste crucial ocorreu quando pessoas depauperadas continuaram exercendo autocontrole, até que uma séria fadiga não podia mais ser ignorada. Pesquisadores como as doutoras em psicologia Kathleen Vohs, da Universidade de Minnesota, e Sarah Ainsworth, da Universidade do Estrado da Flórida, mostraram que incentivos financeiros ou responsabilidades de liderança capacitam pessoas a manter o autocontrole mesmo quando sua força de vontade sofre prejuízos. Esses diversos estudos deram início a uma extenuante série de exercícios mostrando que a depleção piorava e o autocontrole começava a diminuir. Mais importante: aqueles que haviam sido levados a acreditar em força de vontade ilimitada de fato tiveram um desempenho pior que outros. Essa convicção havia sido útil no início, mas no longo prazo falhou – foi um “tiro que saiu pela culatra”. Parece que autocontrole pode ser mantido,
mas não indefinidamente. Afinal, não se recebe uma infusão de glicose porque se acredita que força de vontade é ilimitada, ou por uma promoção a um cargo administrativo. Fica-se simplesmente mais disposto a gastar suas reservas. Mas atinge-se um limite. A ilusão de autocontrole ilimitado é o mesmo que acreditar que uma conta bancária tem fundos infinitos. No início, você pode gastar livremente, mas em última análise corre seriamente o risco de ficar sem dinheiro. E ter isso em mente pode ser fundamental para nossa qualidade de vida.
UM DIA DE CADA VEZ Estudos recentes revelaram áreas recém-descobertas em que o autocontrole desempenha papel fundamental. Algumas dessas constatações derrubam ideias prevalentes sobre várias formas de dependência. Uma noção amplamente difundida sugere que desejos por drogas variadas, além de álcool e cigarros, assumem o controle da vida de um dependente e que abandonar essa dependência é impossível sem complexos tratamentos médicos ou, pelo menos, um firme comprometimento com um programa do tipo “12 passos”. O ex-diretor do Instituto Nacional de Abuso de Drogas Alan I. Leshner, atualmente CEO da Associação Americana para o Avanço da Ciência, sustenta que dependência é uma “doença cerebral”. Segundo ele, um usuário pode tragar
Em nossa cultura costumamos gastar mais atenção, em geral, com a própria aparência, talvez porque tenhamos grande preocupação com a aceitação alheia. Mas existem cuidados ainda mais necessários:
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DEIXAR-SE ESTAR Cuidar-se pode ser traduzido na capacidade de encontrar ou inventar “tempos de respiro” em que não seja preciso produzir ou apresentar resultados, apenas se deixar estar, prestar atenção à própria respiração e ficar em silêncio por algum tempo.
BUSCAR BOA COMPANHIA Outro cuidado fundamental é reservar lugar em nossas vidas para estar com pessoas que nos fazem bem. Ou, o outro lado dessa moeda, nos afastarmos daquelas que, por um motivo ou outro, despertam o pior em nós.
kiianova/shutterstock
O que faz a diferença
ou injetar uma substância voluntariamente, mas, em algum momento, um interruptor no cérebro é acionado. O abuso de substâncias torna-se involuntário e a compulsão persiste mesmo quando a pessoa deseja sinceramente parar. Força de vontade e decisão consciente desaparecem quando a dependência se estabelece. Novas descobertas indicam, porém, que quaisquer alterações que ocorram no cérebro de dependentes não levam a uma perda de controle sobre suas ações; muitas vezes, essas pessoas têm o poder de escolher se cedem ou resistem a um desejo compulsivo. Mais especificamente, uma dependência não produz mudanças em uma área cerebral essencial para o autocontrole e o comando de movimentos – o córtex motor – onde são iniciadas ações, como escovar os dentes ou estender a mão para um cachimbo de crack. À medida que a dependência aumenta, a decisão de pegar o cachimbo não se torna subitamente involuntária. Em vez disso, a dependência causa uma lenta e insidiosa mudança no desejo. O dependente consegue resistir por algum tempo, mas em dado momento cede, talvez mais cedo que tarde, e precisa frustrar o desejo reiteradamente. O desejo, porém, nem sempre é irresistível. Em um estudo realizado pelo doutor em psicologia Wilhelm Hofmann, atualmente na Universidade de Colônia, na Alemanha, e seus colegas, pessoas foram
contatadas aleatoriamente O abuso de ao longo de uma semana e substâncias tornasolicitadas a relatar quaisse involuntário e a quer desejos que lhes viessem à mente. Os anseios compulsão persiste por cigarros ou bebidas mesmo quando alcoólicas foram classificaa pessoa deseja dos como mais fracos que quaisquer outros. sinceramente parar; Essa e outras descobera decisão consciente tas indicam que o dependesaparece quando a dente experimenta um fluxo intermitente de um dedependência sejo moderado após outro. se estabelece A natureza frequentemente recorrente dessas vontades é o que torna o abandono da dependência um desafio, mas a pessoa não é dominada pela mítica dificuldade intransponível de resistir a um desejo incontrolável. Essa nova percepção sobre a natureza da dependência fornece mais uma evidência da extensão com que o autocontrole pode influenciar nosso comportamento de inúmeras maneiras, e como ele talvez possa até nos levar a persistir na adesão de hábitos autodestrutivos. Isso mostra, mais uma vez, que nossa capacidade de controlar nossas emoções e desejos nos permite gerenciar o infindável desafio de nos adaptarmos ao mundo que nos cerca. Para o bem ou para o mal.
LEMBRAR QUE EXISTE CORPO Como felizes proprietários desse sofisticado aparato, é fundamental ter atenção à saúde, à alimentação e praticar exercícios físicos com regularidade.
PENSAR NO “EU DO FUTURO” Uma forma inteligente de lidar com a ansiedade é fazer coisas para alegrar nosso próprio “eu de daqui a pouco”. Preparar com antecedência um prato saudável para quando chegarmos em casa cansados ou evitar expor-nos em uma situação que posteriormente trará problemas, por exemplo.
PEDIR AJUDA Muitas vezes é difícil cuidar de nos mesmos, principalmente em situações de maior fragilidade emocional, ligadas a perdas e mudanças em nossas vidas. Nesses momentos, não há nada de errado em buscar ajuda psicológica; pelo contrário, trata-se de um sinal de saúde emocional.
PARA SABER MAIS Uses of self-restraint to facilitate and restrain addictive behavior. Roy F. Baumeister e Andrew J. Vonasch, em Addictive Behaviors(em impressão). Armadilhas da autoestima. Jennifer Crocker e Jessica J. Carnevale. Mente e Cérebro nº 254, págs. 22-29, março de 2014. Willpower: rediscovering the greatest human strength. Roy F. Baumeister e John Tierney. Penguin Press, 2011. The strength model of self-control. Roy F. Baumeister et al., em Current Directions in Psychological Science, vol. 16, no 6, págs. 351-355; dezembro de 2007.
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diversidade
Qual é o seu gênero? as diferenças entre homens e mulheres não são “naturais” ou determinadas pela genética, mas sim criadas socialmente; a desconstrução de modelos estabelecidos nos permite desnaturalizar desigualdades, reconhecer e discutir identidades antes ignoradas ou desprezadas, como a de transgêneros por Jaqueline Gomes de Jesus
A AUTORA JAQUELINE GOMES DE JESUS é psicóloga, doutora em psicologia social e do trabalho pela Universidade de Brasília (UnB), pós-doutora pela Escola Superior de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV). 34
stock illustrations ltd/alamy/latinstock
H
á algumas décadas, o psicólogo social Gordon Allport formulou um paradoxo fundamental sobre a diversidade: “Todos somos iguais, porém diferentes e únicos”. Atualmente, muito se fala sobre singularidades e, na maioria das vezes, diversidade parece mais um termo sobre o qual todo mundo tem algo a dizer. No entanto, a maioria das pessoas encontra incríveis dificuldades para valorizá-la no dia a dia. E, quando tratamos da dimensão do gênero, essa constatação é acentuada em todos os sentidos. Crescemos sendo ensinados que “homens são assim e mulheres são assado”, porque “é da sua natureza”. Entretanto, a grande diferença que percebemos entre pessoas do sexo feminino e masculino é construída socialmente. Lembre-se da sua formação pessoal: desde criança você foi ensinado(a) a agir de certa forma e a cultivar determinada aparência, de acordo com o gênero que lhe foi designado. Se havia ultrassonografia quando sua mãe
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MAMÃES FAMOSAS: nascidos com o sexo feminino, Chaz Bono, filho da cantora Cher, e Thammy Miranda, da brasileira Gretchen, passaram por cirurgias para mudar o corpo. John, de 9 anos, filho de Angelina Jolie e Brad Pitt, prefere ser tratado como menino.
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helga esteb/shutterstock (chaz bono e john); divulgação/globo (thammy miranda)
diversidade
engravidou, esse processo começou antes mesmo de você nascer. Se não, a determinação aconteceu no parto. Como as influências sociais não são totalmente visíveis, costuma parecer que as diferenças entre homens e mulheres são “naturais”, estabelecidas pela genética, quando na verdade boa parte delas é determinada pelo convívio social, e até mesmo as conformações hereditárias relacionadas aos gêneros resultam de um processo evolutivo pautado por condições sociais ao longo do tempo. Para a ciência biológica, o que determina o sexo de um organismo é, por exemplo, características anatômicas, níveis hormonais e tamanho dos gametas (células reprodutivas: espermatozoides, logo indivíduo macho; óvulos, indivíduo fêmea). No entanto, entre os seres humanos tais fatores, por si sós, não definem os comportamentos lidos como masculinos ou femininos, os quais, aliás, mudam conforme a cultura da qual falamos. Mulheres de países nórdicos têm características que, para nossa cultura, são consideradas masculinas. Ser masculino no Brasil é diferente de ser masculino no Japão, ou mesmo na Argentina. Há culturas para as quais não é o órgão genital que define o sexo. Ser homem ou mulher (ou homem e mulher, ou nem homem nem mulher) é questão de gênero. O que importa nesse campo é a autopercepção e a forma como a pessoa se ex-
pressa socialmente, a sua identidade de gênero. Nesse sentido, o gênero é uma expressão da vida que, para ser compreendida, necessariamente abarca diferentes campos do saber. Entretanto, nem todas as áreas do conhecimento científico a têm apreciado, analisado e aplicado na sua complexidade.
“ISSO É HOMEM OU MULHER?” As ciências psi (psicologia, psicanálise, neurociência etc.) têm produzido saberes sobre gênero aquém de suas possibilidades, apesar de se constituírem como campos de referência com olhar privilegiado para as interações e expectativas de interações entre as pessoas. Raramente nos indagamos sobre a natureza das questões de gênero e sua interferência em nosso cotidiano. Perguntas como “o que é gênero?”, “o que/quem é um(a)/ homem/mulher?” ou “ela/ele/isso é um(a)/ mulher/homem?” são difíceis de responder, fora do senso comum, quando se levam em conta os indivíduos e seus diferentes comportamentos. As ciências, por vezes, reproduzem noções superficiais acerca dos processos identitários estruturantes de identidades de gênero. Sua abordagem geralmente é orientada pelos estereótipos caracterizados por três paradigmas: 1) polarização de gênero (mulheres e homens teriam papéis mutuamente excludentes); 2) androcentrismo (a experiência masculina seria o padrão neutro ou norma); 3) essencialismo
biologicista (comportamentos sociais seriam consequências naturais e inevitáveis de naturezas biológicas intrínsecas). Leituras feministas da realidade têm criticado o reducionismo biológico, buscando ressaltar as semelhanças entre homens e mulheres e identificar os determinantes históricos e culturais das suas diferenças. Gênero não é apenas uma variável independente em um modelo experimental; trata-se de um eixo estruturante das relações sociais, que abrange crenças e ações individuais, porém com impacto substancial nos sistemas sociais. Com a maior visibilidade e as conquistas de grupos sociais historicamente discriminados, os modelos idealizados de mulher e de homem têm sido desconstruídos, o que nos permite desnaturalizar as diferenças entre os gêneros, além de reconhecer, discutir e estudar identidades de gênero antes ignoradas ou desprezadas, como as identidades trans (aqui utilizo uma abreviação de “transgênero”, palavra que se refere à pessoa que não se identifica com o gênero que lhe foi atribuído socialmente).
O CORPO AQUÉM DO SEXO Levando em conta que gênero se refere a uma construção social, um conjunto de concepções preestabelecidas acerca de como se identifica um homem ou uma mulher, podemos pensar que identidade de gênero seja a atitude individual em face dos construtos sociais de gênero. É importante esclarecer que sexualidade, ou orientação sexual, se refere à atração afetivo-sexual por alguém de algum(ns) gênero(s). Não há uma norma de orientação em função do gênero das pessoas. Assim, é errôneo pensar que o esperado, para qualquer homem ou mulher, seja ser heterossexual. O mesmo se pode dizer da identidade de gênero, pois não corresponde à realidade pensar que toda pessoa se reconhece com o gênero que lhe é atribuído. Todos nós vivenciamos, em diferentes momentos, inversões temporárias de papéis determinados para o gênero de cada um – em algum momento a maioria das pessoas se fantasia, brinca, interpreta. A história oferece vários exemplos de que os limites não são fixos e predeterminados. No Brasil, podemos pensar no caso de Maria Quitéria, heroína da Guerra da Independência
que se vestiu de homem Não há uma norma para poder lutar contra de orientação sexual o domínio português. Ao contrário da crença em função do gênero comum, adotada por algudas pessoas; assim, é mas vertentes científicas, um equívoco pensar entende-se que a vivência de um gênero (social, culque o esperado, para tural), de maneira discorqualquer homem dante da que se esperaria ou mulher, seja ser de alguém de determinado sexo (biológico), em dada heterossexual cultura, é uma questão de identidade, não um transtorno. Esse é, mais expressamente, o caso das pessoas trans (como travestis e homens e mulheres transexuais).
TRANSGENER(AL)IDADES O que é ser uma pessoa trans ou transgênero? Em primeiro lugar, é importante destacar que, em termos de gênero, os seres humanos podem ser enquadrados como transgênero ou “cisgênero”. Há os cisgênero (ou de “cis”), aqueles que não são trans e, portanto, se identificam, em maior ou menor grau, com o gênero que lhes foi atribuído socialmente. Vale ressaltar que existem, ainda, as pessoas que não se identificam com nenhum gênero, são as “não binárias”. Historicamente, a população trans é estigmatizada, marginalizada e perseguida devido à crença na sua anormalidade, decorrente do estereótipo de que o gênero atribuído a alguém seja aquele com o qual o indivíduo deveria se identificar e, portanto, espera-se que se comporte de acordo com o que se julga ser o “adequado”, condizente com estse ou aquele gênero. Entretanto, a variedade de experiências humanas sobre como se identificar a partir de seu corpo demonstra que essa ideia é falaciosa, especialmente com relação às pessoas trans, que revelam a possibilidade de haver homens com vagina e mulheres com pênis. No Brasil, o espaço reservado aos trans é o da exclusão extrema, sem acesso a direitos civis básicos, sequer ao reconhecimento de sua identidade, do seu nome. São cidadãs e cidadãos que ainda têm de lutar para terem garantidos os seus direitos fundamentais, tais como o direito à vida. Violências físicas, psicológicas e simbólicas são constantes. De acordo com a organização dezembro 2015 • mentecérebro 37
diversidade internacional Transgender Europe, o Brasil é o país no qual mais se matam pessoas trans no mundo, especialmente as travestis e as mulheres transexuais. Nosso país é responsável por 39,8% dos assassinatos de pessoas trans registrados no mundo entre 2008 e 2011 e, no mesmo período, por 50,5% desses crimes na América Latina. Tais violações repetem o padrão de crimes de ódio motivados por preconceito contra alguma característica da pessoa agredida que a identifique como parte de um grupo discriminado, socialmente desprotegido, e caracterizados pela forma hedionda como são executados, com facadas, alvejamento sem aviso, apedrejamento. Ademais, as identidades trans são tidas, pelas vertentes hegemônicas em saúde mental, representadas pela Classificação internacional de doenças (CID), da Organização Mundial da Saúde, e pelo Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM), publicado pela Associação Psiquiátrica Americana, como transtornos de identidade ou expressões de disforia (ansiedade, insatisfação) de gênero. Entretanto, em virtude do movimento social da população trans, cada vez mais organizado, e do pioneirismo de alguns pesquisadores no campo de gênero, vem ganhando espaço no cenário nacional e internacional uma campanha em prol da despatologização das identidades trans (uma referência nesse debate foi a iniciativa da Alta Autoridade de Saúde francesa, que desde 2009 não mais considera a transexualidade como transtorno mental).
É necessário reavaliar políticas públicas com base em uma agenda social inclusiva, que combata a violência em todos os seus aspectos: simbólicos, emocionais, verbais, físicos e institucionais
TRANSFOBIA Uma visão despatologizada sobre as pessoas trans implica que suas demandas nos serviços de saúde sejam atendidas a partir do princípio da integralidade, reconhecendo-se que seus problemas não decorrem de sua identidade de gênero em si, mas, isso sim, do modo discriminatório como a sociedade as vê e trata. Tem sido utilizado o termo “transfobia” para se referir a preconceitos e discriminações sofri38
dos pelas pessoas trans, de forma geral. Muito ainda tem de ser enfrentado para chegar a um mínimo de respeito à identidade de gênero das pessoas, para além dos estigmas. Frequentemente esquecemos que as pessoas vivenciam múltiplos aspectos de sua humanidade, para além dos relacionados a gênero. O sexismo, como preconceito decorrente da ideia de que o sexo (biológico) determina comportamentos e status social, prejudica não apenas a população trans, mas todo e qualquer ser humano que não se enquadre no modelo-padrão de masculinidade ou feminilidade. Entre estes, podemos destacar as mulheres masculinas; as histerectomizadas (que tiveram o útero extirpado) e/ou mastectomizadas (que passaram por retirada das mamas); os homens femininos; os orquiectomizados (que tiveram os testículos extirpados) e/ou “emasculados” (termo por si só representativo da visão sexista sobre os corpos, que se refere à retirada da genitália externa masculina), por motivos de saúde, como o câncer. Até mesmo práticas sexuais são tornadas invisíveis ou estigmatizadas por essa visão reducionista, a exemplo da penetração de um homem por uma mulher, ato considerado como uma “inversão” nos tradicionais comportamentos sexuais relacionados aos papéis de gênero, entretanto comuns entre casais heterossexuais.
CORAGEM DE SER Entre os seres humanos de um mesmo grupo há grande diversidade: pessoas negras não são todas iguais, assim como não são os brancos, as mulheres, os homens, os indígenas, os trans, os cis e tantas outras. Qualquer um, independentemente de gênero, pode ter diferentes cores, etnias, classes, origens geográficas, religiões, idades, orientações sexuais, uma rica história de vida, entre outras características. A partir das críticas do feminismo negro ao movimento feminista tradicional, desde os anos 70, a percepção sobre quem são as mulheres se ampliou, deixou de apenas se remeter à mulher branca, abastada, casada com filhos e passou a acatar a humanidade e a feminilidade de mulheres outrora invisíveis: negras, indígenas, pobres, com deficiência, idosas, lésbicas, bissexuais, solteiras e mesmo as mulheres trans. Ao desconsiderarmos a intersecção entre raça e
institucionais; que garanta direitos reprodutivos (o que inclui o direito das mulheres cis ao aborto legal seguro; dos homens trans à gestação e ao parto; e ao fim da esterilização forçada de mulheres trans). Tratar de gênero, no campo das ciências psi, é ampliar a extensão das questões associadas às distintas vivências de gênero. É, igualmente, assumir um posicionamento crítico e profundamente empático, que reforça o caráter indispensável de solidariedade com e entre todas as pessoas, no afã de superar o sexismo e o machismo, que fazem sofrer e limitam o potencial humano de homens e de mulheres (todas as mulheres) que se constituem como o grupo social mais desprivilegiado, alvo continuado de opressões. O filósofo Friedrich Nietzsche apresenta palavras sábias pertinentes ao tema: “Quando o homem atribuía um sexo a todas as coisas, não via nisso um jogo, mas acreditava ampliar seu entendimento: só muito mais tarde descobriu, e nem mesmo inteiramente ainda hoje, a enormidade desse erro. De igual modo o homem atribuiu a tudo o que existe uma relação moral, jogando sobre os ombros do mundo o manto de uma significação ética. Um dia, tudo isso não terá nem mais nem menos valor do que possui hoje a crença no sexo masculino ou feminino do sol”. Leia mais sobre este assunto na pág. 12
divulgação (candy mel); jaguar ps/shutterstock (laverne cox); helga esteb/shutterstock (jamie clayton)
gênero, são menosprezadas as particularidades e privilegiados os modelos idealizados. Os preceitos do feminismo negro são reiterados, na atualidade, pelo transfeminismo, novíssima linha de pensamento e ação feminista que valoriza as experiências de vida e lutas das pessoas trans, seu conhecimento acumulado no enfrentamento das discriminações, reconhecendo que as opressões têm uma natureza simultaneamente operacional e interligada, de modo que preconceitos e discriminações de gênero dialogam com os de raça, orientação sexual, idade, origem, entre outros. Não temos explicações científicas suficientes para nos esclarecer por que os seres humanos se identificam, ou não, com determinado gênero, em consonância ou não com a expectativa de sua cultura, mas sabemos que isso ocorre, e como ocorre. Mas precisamos, como pesquisadores e profissionais que lidam com pessoas, apoiá-las em suas diversas formas de ser no mundo, ajudando-as a fortalecer suas escolhas conscientes, a defender o poder de decisão sobre o seu corpo e, desse modo, estimular a coragem de as pessoas serem quem são, em uma sociedade que preza a conformidade. Considerando a diversidade de gênero, é necessário reavaliar até mesmo as políticas públicas com base em uma agenda social inclusiva que combata a violência em todos os seus aspectos: simbólicos, emocio, verbais, físicos e
A BRASILEIRA Candy Mel, primeira garota propaganda trans da Avon; Laverne Cox ficou conhecida pela atuação no seriado Orange is the new black e foi capa da revista Time; Jamie Clayton, namorada de Keanu Reeves na vida real, vive papel de uma trans lésbica em Sense8.
PARA SABER MAIS Transfeminismo: teorias e práticas. Jaqueline Gomes de Jesus. Metanoia, 2015. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual Berenice Bento. Garamond, 2006. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Judith Butler. Civilização Brasileira. 2003. Gênero, subjetividade e trabalho. Tânia Mara G. Fonseca. Vozes, 2000.
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especial – refugiados
O trauma após a fuga nos últimos meses, o mundo acompanhou atônito o dramático aumento do deslocamento forçado de milhões de pessoas que abandonam suas casas e seus países – ou o que restou deles – na tentativa de sobreviver a guerras e conflitos. sem precedentes na nossa história recente, o fenômeno nos leva a pensar nos efeitos psíquicos dessa migração por Cordula von Denkowski
A AUTORA CORDULA VON DENKOWSKI é doutora em psicologia, professora de desenvolvimento psicológico da Universidade de Hannover. Atualmente é membro da Fundação Alemã de Pesquisa, que financia a criação de uma rede científica de refugiados. 40
yannis behrakis/reuters/latinstock
O
que Abdi e Amira, da Somália, aprenderam desde crianças a chamar de pátria não existe mais. O movimento extremista islâmico paramilitar Al-Shabaab-Miliz ocupou e destruiu as vilas onde cada um vivia com suas famílias. Os dois se conheceram durante a fuga rumo ao exílio e agora estão juntos na Alemanha. A odisseia durou três anos e nesse período passaram por diversos países da África até chegar à costa que liga o continente africano ao europeu. Na travessia, arriscaram a vida entrando numa embarcação precária para passar pelo mar Mediterrâneo e chegar à Itália, onde o casal se instalou em um campo de refugiados repleto de pessoas exaustas e sem muita esperança.
Os dois prosseguiram a viagem rumo à Alemanha, onde deram entrada a solicitações de asilo, mas tiveram o primeiro pedido negado. Como eles já tinham se registrado como refugiados na Itália, as autoridades de imigração alemã entenderam que não poderiam emitir uma nova solicitação de asilo. Autoridades alemãs ameaçaram deportá-los para a Itália, embora se saiba que lá não haja abrigos decentes nem plano específico voltado para a recepção de refugiados. Grávida e traumatizada com tudo que passou, Amira teve muito medo. Uma comunidade cristã de Berlim se comoveu com a situação do casal e lhes ofereceu alojamento temporário na igreja, até que se esgotassem os seis meses do prazo
para a transferência para a Itália. Embora isso não lhes desse ainda o direito de permanência na Alemanha, o abrigo temporário permitia que os somalis novamente solicitassem asilo ao governo alemão. Durante o período na igreja, Amira e Abdi aprenderam um pouco de alemão. Ele se colocou à disposição para tarefas voluntárias na comunidade. Na verdade, ele mal podia esperar para encontrar um trabalho de verdade. Assim que o processo de solicitação de asilo foi aceito e encaminhado para análise num distrito do estado de Brandemburgo, Amira e Abdi precisaram se mudar para um abrigo de refugiados isolado e superlotado que anteriormente havia sido alvo de diversos ataques de grupos extremistas de direita. dezembro 2015 • mentecérebro
janossy gergely/shutterstock
O processo de integração com a cultura alemã não seria financiado enquanto a decisão da solicitação de asilo não fosse definida, muito menos um tratamento psicológico para Amira, cujo medo e ansiedade desde a mudança para o abrigo se acentuaram. Já Abdi não poderia procurar emprego durante os três meses da proibição de trabalho para solicitantes de asilo. Diante da dificuldade do casal, a comunidade cristã de Berlim se cotizou novamente para levá-los de volta para o quarto na igreja. Porém, os esforços foram em vão: o comitê que poderia aprovar essa decisão vetou a proposta. A história de Abdi e Amira não é uma exceção, e muitos refugiados têm mesmo destino muito parecido. E, para os europeus, não há um consenso sobre como lidar com a demanda de milhões de pessoas que procuram a proteção em seus países. As perguntas permanecem: quantos e quem serão os refugiados que seriam acolhidos? O que será dessas pessoas na sociedade? As respostas para essas perguntas são ainda tão controversas como foram na década de 90, quando surgiram os primeiros pedidos de asilo após a integração da Alemanha. A maioria daqueles que conseguem chegar aos países da Europa permanecerá por muito tempo lá, talvez a vida inteira. No entanto, a pergunta central não está em se os europeus querem ou não integrar esses seres humanos à sociedade, mas sim de que modo farão isso. Um ponto fundamental a ser considerado é que muitos refugiados terão de trabalhar os traumas pelos quais passaram antes e durante a fuga – e também após a chegada à Europa. 42
Em 2011, pesquisadores alemães concluíram que praticamente metade dos refugiados que vivenciaram guerras e exílios não conseguiu superar o transtorno do estresse pós-traumático (TEPT) do ocorrido (veja quadro na pág. 44). Os efeitos do trauma aparecem, em alguns casos, já no primeiro mês após o pedido de asilo ou, às vezes, bem mais tarde, depois de alguns anos vivendo em outra nação. Aqueles que apresentam o transtorno muitas vezes têm angústias e comportamentos que acabam por excluí-los da vida social.
CONSEQUÊNCIAS DA TRAGÉDIA Todos entendem que é difícil para pessoas que foram torturadas ou sofreram violência sexual apagar de suas mentes tudo o que ocorreu. Para que o evento seja considerado traumático por quem o vivenciou, não se trata apenas do modo e da intensidade de como ele ocorreu, mas sim se a pessoa sente a sua vida ameaçada ou sem esperança a partir desse evento. Dada a violência da situação, é muito comum que pessoas que passaram por esse trauma não tenham condição para lidar sozinhas com seus efeitos. Inúmeros fatores devem ser considerados nesse caso, por exemplo, história de vida, estrutura psíquica, características de personalidade e se a pessoa pode recorrer ao apoio social e de entes queridos, capazes de ampará-la afetivamente. A experiência do trauma está diretamente ligada aos sentimentos de medo, desamparo e desespero. Nessas ocasiões, o corpo reage de forma extrema: os músculos são paralisa-
dos, os batimentos cardíacos e a circulação sanguínea caem drasticamente a taxas mínimas. Pode ainda haver outras percepções sensoriais, como dores que não correspondem propriamente ao corpo; também há relatos tanto a respeito da impressão de ser observado ou perseguido quanto de ser olhado com indiferença. Especialistas comparam o efeito do trauma, em alguns casos, à experiência da dissociação da realidade. Esse mecanismo leva o paciente a um sofrimento tão profundo, capaz de fragilizá-lo a tal ponto, que muitas vezes pode ser mortal. As emoções negativas e os estímulos sensoriais “excessivos” não são processados pelo aparelho psíquico e, consequentemente, não se integram às memórias autobiográficas. Desarticuladas, essas emoções podem permanecer dissociadas do evento traumático, surgindo como sensações angustiantes e somatizações, muitas vezes graves. Mais tarde essas vivências passam a funcionar como gatilhos que podem ser ativados por odores, sons e imagens. Quando esses “ganchos sensoriais” são acionados, aparece a sensação de que não são apenas memórias (flashbacks), mas sim de que a situação tão amedrontadora que foi vivida volta a acontecer. Por isso, pessoas que passaram por essa vivência não conseguem controlar a maré de dor e medo que sentem de forma involuntária. Paradoxalmente, a capacidade de alterar essas memórias pode reduzir as chances de os refugiados terem o pedido de asilo aprovado. Isso porque, durante a audiência de solicitação, a credibilidade do requerente é um dos pontos avaliados: ele precisa detalhar de forma coerente, sem contradições, a sua história de fuga. Em 2014, pesquisadores da Universidade de Londres submeteram um grupo de refugiados a um teste de memória autobiográfica padronizado. O estudo comprovou que eles se lembram de circunstâncias duradouras e gerais, de onde e com quem viviam, por exemplo, mas a maioria não consegue se recordar de eventos específicos com detalhes. Graças às pesquisas na área da psicologia, descobriu-se também que os procedimentos de asilo podem agravar ou mesmo provocar traumas nos refugiados; contudo, essa condição não costuma ser considerada. Existe
um consenso de que há falhas nas entrevistas individuais de pedido de asilo, pois não é dada a devida importância às conclusões das pesquisas – ou a análise psicológica não está disponível em tempo hábil para a concessão do pedido. Os próprios funcionários que tomam a decisão da cessão do asilo e realizam a entrevista raramente reconhecem o transtorno de estresse pós-traumático. Essas são constatações de uma equipe de psicólogos liderados por Frank Neuner, da Universidade de Konstanz, na Alemanha, ainda em 2006, com a participação de 76 refugiados. Os cientistas notaram que de 40% a 70% dos voluntários apresentavam algum tipo de distúrbio. Entretanto, os 16 funcionários supostamente treinados pelo Escritório Central de Migração e Refugiados que participaram das entrevistas identificaram algum tipo de distúrbio em apenas 10% dos casos.
A DOR QUE PERSISTE A despeito do grande volume de pessoas que procuram asilo em países europeus, após quase uma década, a história não mudou muito. Abandonados à própria sorte, aqueles que migram deixando para trás escombros da própria vida precisam de um tempo para processar a experiência antes de conseguir provar que merecem a proteção do Estado. No entanto, não é oferecido tratamento psicológico pós-trauma antes que o paciente esteja emocionalmente estabilizado. Nesse sentido, o mero status de residente já poderia ajudá-los, como aponta um estudo da Universidade de Düsseldorf realizado em 2012. Os psicólogos Christian Gerlach e Reinhard Pietrowsky acompanharam dois grupos de pacientes refugiados, todos Quase a metade dos com sinais de transtorno do estresse pós-traumático. refugiados apresenta Os do primeiro grupo totranstorno do estresse maram o que podemos pós-traumático chamar de “chá de cadeira” das autoridades, que não (TEPT), com sintoma diziam se eles poderiam de perda de memória; ou não residir no local, por isso, muitos enquanto os do segundo conquistaram o direito de não conseguem residir como asilado. Os ser aprovados nas pesquisadores percebeaudiências de ram que esses últimos não apenas tinham menos pedido de asilo dezembro 2015 • mentecérebro 43
especial – refugiados
Marcas da tragédia Como resultado de experiências traumatizantes, um em cada dois refugiados apresenta o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Na população em geral, apenas dois em cada 100 habitantes apresentam e transtorno.
Os rastros do sofrimento 40%-50%
Guerras e exílio
50%
Estupro
25%
Agressão física
10% Acidentes 10% Doenças graves
Fatores negativos agravam sintomas • Demora na concessão do pedido de asilo • Medo de ser deportado • Discriminação • Hostilidade dos nativos • Isolamento social • Perda de laços afetivos
Fatores positivos ajudam a atenuar sintomas • Aceitação • Recepção calorosa de boas-vindas • Participação social • Acompanhamento psicológico • Moradia própria • Permissão para trabalhar • Seguridade social
Ataques contra os refugiados incentivados pelos extremistas de direita 175
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O caminho para uma vida comum Muitos refugiados sofrem os efeitos dos traumas por toda a vida. Frequentemente, convivem com o medo, a depressão ou o TEPT e precisam de acompanhamento psicológico. No entanto, a terapia, tão necessária, só será eficiente se levar em conta as diferenças culturais presentes em cada grupo. Um ponto importante pode ser considerar os refugiados como sobreviventes de desastres, que se esforçam para recuperar suas vidas. É indispensável que sejam criadas condições favoráveis de segurança para que os problemas emocionais enfrentados por essas pessoas não se agravem. 44
medo como também os sintomas de TEPT se tornaram mais suavizados. Para os que sobrevivem às agruras e aos riscos de longas jornadas e privações, a fuga acaba em algum momento. Contudo, em que medida o trauma continuará a fazer parte da vida dos refugiados dependerá da ajuda psicológica da qual poderão desfrutar. O psicanalista Hans Keilson foi um dos primeiros a defender a ideia de que traumas não devem ser tratados como eventos isolados, mas como um processo. Judeu, ele teve a sua licença médica cassada durante o nazismo, o que o levou a se refugiar na vizinha Holanda, em 1936. Nesse país, ele tratou de crianças órfãs que receberam o asilo de famílias holandesas. No acompanhamento psicológico dessas crianças até a idade adulta, ele observou que as consequências do trauma permaneceram muito tempo após o fim da perseguição nazista e do fim da Segunda Guerra Mundial, mas notou também que a maior parte daqueles que foram amorosamente acolhidos e amparados socialmente conseguiam se manter emocionalmente estáveis e produtivos na vida adulta, integrados socialmente e, embora reconhecessem as dores do passado, não as sufocavam nem eram atormentados por elas. São raras as pesquisas que abordam essa integração dos refugiados nos países que os acolheram num período tão longo. Há um estudo norueguês que também aborda o tema com esse viés. Foram entrevistados 61 refugiados vietnamitas, por duas vezes, no início dos anos 80. As mesmas pessoas voltaram a ser ouvidas de três em três anos, fechando o ciclo em 2005. Foi registrado que aspectos psicológicos dos refugiados marcados pelo trauma melhoraram nesse período. No entanto, seria preciso mais de 20 anos do ocorrido para que tivessem seu nível psicológico igualado ao da população em geral. Ou seja, o psiquismo tende a curar-se – mas é trabalhoso e leva tempo. Os principais problemas psicológicos são encontrados nos três primeiros anos de asilo, entretanto, quanto mais dificuldades de adaptação cultural o refugiado encontrar, mais tempo deve demorar para processar o trauma. Mesmo depois de duas décadas vivendo como asilado, ainda são encontrados resquícios da vivência traumática.
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O DIREITO DE FICAR Uma pergunta tem intrigado muitos psicólogos e psicanalistas: como as experiências negativas afetam a saúde mental durante o exílio? É preciso considerar que, mesmo após chegar a outro país, aqueles que foram forçados a migrar em razão das guerras enfrentam aspectos muito estressantes. As acomodações nas quais são obrigados a ficar durante meses são lotadas, o processo burocrático para conseguir o pedido de asilo é exaustivo, com uma centena de audiências, e há hostilidade dos nativos. Particularmente, a angústia diante do risco de serem deportados após tanto investimento emocional durante a fuga e o desespero ao constatarem a falta de perspectivas trazem o medo da morte e o desamparo, que reforçam o trauma. As ofertas de ajuda não caminharão na direção correta se os refugiados forem vistos como vítimas passivas, miseráveis ou até mesmo doentes mentais. Mais útil que reconhecê-los como sobreviventes de guerra e perseguição é o país que os acolheu lhes oferecer condições para reconquistarem suas vidas com seu próprio esforço. O problema é que políticas restritivas de imigração coíbem a integração. É o que diz um estudo australiano de 2011 sobre o assunto. Sob a coordenação do psiquiatra Zachary Steel, pesquisadores da Universidade de New South Wales compararam dois grupos de refugiados do Afeganistão e do Irã. Os integrantes de um deles receberam autorização de permanência ilimitada na Austrália e com isso garantiram o direito de frequentar cursos gratuitos de idiomas. O outro grupo, que teve de esperar dois anos para obter as mesmas facilidades, apresentou fortes sintomas de depressão, pânico e ansiedade; as pessoas se retraíram socialmente e quase não aprenderam inglês. O cenário foi bem diferente com o grupo que conquistou o visto de permanência na Austrália: adquiriram bons conhecimentos da língua inglesa, engajaram-se socialmente e também apresentaram bons índices de saúde mental e corporal. Integração não é uma via de mão única. Para que esse processo seja conduzido com sucesso é preciso respeito e vontade de mudança da sociedade e das instituições. Do ponto de vista psíquico, é fundamental abrir-se à possibilidade de aproximação do outro, do
“diferente” (veja quadro nesta pág.) Embora haja muita resistência a essa ideia, felizmente também existem muitos que a consideram. Exemplo disso é que o crescente número de pessoas que fizeram o pedido de asilo na Alemanha tem atraído uma onda de voluntários e pessoas dispostas a ajudar. Por outro lado, parte da população alemã é expressamente contra a entrada desses estrangeiros. Em casos extremos, a ojeriza pode culminar em atos de violência contra os refugiados e em atos de vandalismo e violência contra os alojamentos. Só em 2014 a Alemanha registrou 175 ataques de grupos de extrema direita contra os refugiados, três vezes mais do que no ano anterior. Esses ataques não causam apenas dores físicas aos migrantes, mas também sofrimento emocional, piorando ainda mais os sintomas de depressão e ansiedade. Atitudes agressivas contra os refugiados não são fenômeno isolado. O sociólogo alemão Wilhelm Heitmeyer e seu grupo de pesquisadores do Instituto Interdisciplinar de Conflitos e Violência, da Universidade de Bielefeld, chamam essa aversão de “síndrome da inimizade como foco em grupos”, que afetaria indivíduos contrários a determinado contingente. Segundo Heitmeyer, entre os “sintomas” estão os pensamentos negativos contra certo grupo (como os refugiados), tendência a subjugar minorias (em geral) e justificativa de atitudes extremas, como vio-
EM ABRIGOS SUPERLOTADOS, os refugiados se sentem presos, impotentes e desvalorizados, o que tende a aumentar a incidência de estresse, depressão e ansiedade
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especial – refugiados
Se a migração de grandes grupos promove novas configurações sob o aspecto geopolítico e social, pela óptica do psiquismo as transformações também não são poucas. É compreensível que os refugiados sofram enorme angústia, dada a forte carga traumática que enfrentam, tangenciada pelo desamparo, resultante das perdas em vários níveis e das incertezas sobre o que há de vir. Na jornada rumo ao desconhecido deixa-se para trás não só um país em destroços, mas parte da própria história. Não é de estranhar, portanto, que a dor psíquica se expresse das mais variadas formas. Mas é preciso pensar também naqueles que veem os migrantes chegarem a seu país. Buscando fugir das restrições que trazem os juízos de valor e da superficialidade maniqueísta do “certo” e do “errado”, parece mais lógico pensar no que é possível. E, nesse sentido, a psicanálise traz uma contribuição preciosa: é na diversidade que nos constituímos, mas passamos a vida nos rebelando contra ela. A diferença atrai, mas em geral o que prevalece é o incômodo que causa – a ponto de, em muitos casos, suscitar o ódio. No processo de constituição psíquica, o sentimento aparece como elemento primordial. Na etimologia grega, odeum significa “pequeno teatro” destinado a apresentações de música e declamação de poesias. Num primeiro momento, essa ligação pode parecer disparatada, mas convém considerar que no lugar onde são dramatizadas as emoções mediadas pela arte, a presença do ódio é recorrente. Na origem latina, odium refere-se a repugnância, aversão, evocando a ideia de repulsa e horror,
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O desafio psíquico da tolerância
acompanhada da certeza de que aquilo que provoca esse sentimento deve ser evitado. Freud afirma que o ódio é mais antigo que o amor e fala da rejeição primordial do mundo externo repleto de estímulos que incomodam o Eu: nas origens das relações está a expressão da repulsa primitiva. Certamente conviver não é fácil, ainda mais se a proximidade se impõe pela necessidade e não pelo desejo. Pior ainda quando no rastro das filas de homens, mulheres e crianças que procuram lugar para viver está a violência e a tragédia. Psiquicamente, a saída mais saudável (tanto para os que chegam, quanto para os que estão) é o exercício da tolerância à diferença, que favorece o amadurecimento psíquico e, como uma espécie de brinde, melhora a capacidade cognitiva. Ou seja: a diferença incomoda, mas pode fazer muito bem. (Por Gláucia Leal, editora-chefe)
lência física e até desejo de morte dos “inimigos”. O discurso é repleto de reprovação, em geral amparada em argumentos superficiais. Dizem, por exemplo, que quando os postos de trabalho diminuem, os estrangeiros devem ser mandados de volta para a sua terra natal. No estudo Condições na Alemanha, conduzido anualmente entre 2002 e 2011, os pesquisadores procuraram acontecimentos e causas que induzissem a esse sentimento de repulsa. Dados de um estudo recente mostram que tanto a xenofobia como o menosprezo aos refugiados e outras minorias estão amplamente presentes em todas as classes sociais. Pesquisadores da Universidade de Bielefeld observaram uma tendência que tem crescido na sociedade europeia ao longo dos 46
anos: deixar de lado o questionamento da igualdade do ser humano e começar a julgar o valor econômico que esse indivíduo representa. Outra pesquisa, denominada Estudo do meio, realizada pela Fundação Friedrich Ebert, comprovou essa tendência. Essa forma de pensar sugere certa fragilidade de convicções e valores. Segundo o estudo, “o grande consenso referente ao ideal democrático e o privilégio de direitos fundamentais está em ruína”. Um levantamento recente na Alemanha mostrou que mais da metade das pessoas se mostrava intolerantes e fazia declarações pejorativas sobre os requeriam asilo. Na Alemanha, o rápido crescimento do contingente de refugiados nos últimos meses fez com que muitas das instalações de recepção
inicial dos refugiados, bem como dormitórios de municípios, ficassem rapidamente lotadas. Com isso, cada vez mais refugiados foram levados para alojamentos de emergência, como ginásios de esporte e vilas de contêineres. Sintetizando 14 estudos sobre o tema, os psicólogos Matt Porter e Nick Haslam, da Universidade New School, de Nova York, destacaram que a saúde psicológica dos asilados que viviam em campos de refugiados era pior do que a daqueles que foram realocados em outros tipos de habitações particulares. Esse clima de incertezas e desamparo nos alojamentos superlotados só faz aumentar os riscos de os asilados desenvolverem transtorno de estresse pós-traumático ou depressão.
MAIS PERTO, MAIS PARECIDOS Por outro lado, é compreensível que um contingente de milhões de pessoas chegando a um país, em poucos meses, provoque o medo e a insegurança na população local. Não raro, a presença maciça de estrangeiros deflagra fantasias assustadoras e pode impulsionar gesto de preconceito e ódio. A chave para diminuir as barreiras – e o sofrimento dos dois lados – parece ser a aproximação cuidadosa entre as pessoas. Justamente por isso o uso de acomodações em massa para os refugiados é tão questionável. A intolerância aos refugiados, por exemplo, está bem difundida em todas as classes sociais, entretanto se acentua particularmente em lugares onde existem poucas oportunidades para o contato direto entre as pessoas. Já em 1954, o psicólogo americano Gordon Allport defendia a tese de que, sob condições controladas, o encontro entre grupos sociais diferentes pode ajudar a reduzir a intolerância e a hostilidade. Isso ocorre quando as pessoas se encontram em condições semelhantes, seguindo o mesmo objetivo, ou então quando o contato é feito com o suporte de um profissional (como, por exemplo, o psicólogo) e/ou de uma instituição legal. Em 2006, ou seja, meio século depois do trabalho feito por Allport, os psicólogos sociais Thomas Pettigrew e Linda Tropp revisaram dados de 515 estudos e confirmaram o efeito constatado pelo colega americano. Há evidências de que, mesmo que nem todas as condições citadas por ele fossem cumpridas, o
encontro de diferentes grupos sociais afeta de forma favorável a avaliação mútua das partes. Essas informações levam a pensar que a acomodação de refugiados de forma descentralizada, em áreas residenciais menores, deve contribuir para a redução da intolerância da população local e, consequentemente, para a promoção de contatos mais positivos entre os grupos. O ideal é que os refugiados não sejam tratados como massas anônimas, mas sim como indivíduos com sua própria história, características e competências. Possivelmente, uma única família ou uma pequena comunidade não parecem tão ameaçadoras para a vizinhança quanto um alojamento gigante de refugiados. Entretanto, em muitas cidades europeias, mesmo em países como a Alemanha, que têm recebido os estrangeiros, não existem programas de habitação social e são raros os moradores dispostos a alugar quartos ou imóveis a preços acessíveis. De uma perspectiva psicológica, os esforços de integração dos refugiados devem observar três níveis. Inicialmente, é preciso levar em conta o estado psicológico do refugiado, por meio de atendimento e acompanhamento psicoterapêutico que considere as diferenças culturais. E isso requer o envolvimento de terapeutas e intérpretes, bem como uma legislação simples de reembolso dos custos pelo governo. No âmbito da política, mudanças legislativas e investimentos precisam ser alinhados para prover segurança e outras necessidades básicas para que os refugiados possam superar o trauma. Também é indispensável o esforço legislativo para oferecer condições de trabalho sem restrições. Dessa forma, cria-se a perspectiva para que esses migrantes saiam da condição de vítimas e levem uma vida independente. Já que o aprendizado da língua do país que acolhe é um fator determinante para a integração, os solicitantes de asilo devem contemplar cursos de idioma gratuitos. Por último, mas não menos importante, está a questão social: os refugiados precisam de uma recepção calorosa de boas-vindas capaz de reduzir o distanciamento e a sensação de desvalorização, discriminação e violência e gerar colaboração mútua entre moradores do país e aqueles que chegam sonhando com uma nova vida.
PARA SABER MAIS Transfeminismo: teorias e práticas. Jaqueline Gomes de Jesus. Metanoia, 2015. A reinvenção do corpo. Berenice Bento. Garamond, 2006. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Judith Butler. Civilização Brasileira. 2003. Gênero, subjetividade e trabalho. Tânia Mara G. Fonseca. Vozes, 2000.
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alimentação
Comida boa para a memória dieta mediterrânea pode retardar processos degenerativos próprios do envelhecimento e favorecer a cognição mesmo se começar a ser seguida em idade avançada. em muitos casos, os efeitos benéficos sobre o cérebro são perceptíveis em menos de dois anos após ser adotada por Dina Fine Maron
M
uitos vegetais, frutas e grãos inteiros (e não super-refinados), além de peixe, frango e vinho tinto, ingeridos de forma moderada podem ajudar a afastar um dos maiores medos associados ao envelhecimento: a perda de memória. Essa abordagem nutricional, difundida como dieta do Mediterrâneo, parece produzir benefícios cerebrais, mesmo se passar a ser adotada em idade mais avançada – às vezes, com melhoria cognitiva perceptível em menos de dois anos. “Não se espera que alguém se torne um Super-homem ou uma Mulher Maravilha da terceira idade, mas esse estilo de alimentação favorece a capacidade de apreensão e retenção de informações”, observa Miguel A. Martínez González, chefe do departamento de medicina preventiva da Universidade de DINA FINE MARON é jornalista especializada em temas de medici-
na e saúde, editora da Scientific American nos Estados Unidos.
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Navarra, em Barcelona. “É possível preservar habilidades cognitivas ou até melhorá-las ligeiramente, mas não há mágica.” No entanto, pequenos benefícios podem ser significativos no seu dia a dia.
AZEITE E NOZES Durante muito tempo cientistas acreditaram que não era possível melhorar a memória mudando a alimentação. Mas começam a surgir evidências mostrando o contrário. Há cerca de dez anos, Nikolas Scarmeas, da Universidade Columbia, e seus colegas coletaram dados sobre hábitos alimentares e condições de saúde de cerca de 2 mil nova-iorquinos na faixa etária dos 70 anos ao longo de quatro anos, em média. Em 2006, os pesquisadores relataram que seguir a dieta mediterrânea à risca, além do efeito já constatado de reduzir o risco de doenças cardiovasculares, inibia a perda de capacidade cognitiva e diminuía a probabilidade de incidência da doença de Alzheimer.
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No entanto, como os padrões alimentares observados não foram bem controlados, como deveria ser feito em testes clínicos, as dúvidas continuaram. Ainda havia a possibilidade de os aparentes benefícios ao cérebro serem puramente casuais, ou devidos a alguma outra característica comum dos adeptos fiéis da dieta mediterrânea nos Estados Unidos por hábitos adquiridos na educação ou por opção pessoal de vida. Depois de sete anos, os pesquisadores apontaram algumas respostas. Em 2013, Martínez González e seus colegas publicaram seus resultados num estudo referencial Predimed (acrônimo para prevenção com dieta mediterrânea), que incluía quase 7.500 pessoas na Espanha. Os pesquisadores distribuíram aleatoriamente os participantes em dois grupos de teste. Num grupo, os participantes seguiam a alimentação mediterrânea e recebiam a complementação de um mix de nozes. O outro grupo também seguia a dieta, mas recebia uma dose
adicional de azeite de oliva extravirgem. Pesquisadores perceberam que fornecer uma porção extra de nozes e de azeite sem nenhum custo aos participantes garantiria que algumas gorduras saudáveis fossem ingeridas em quantidades suficientemente grandes para produzir efeito nos resultados do estudo. O grupo de controle, que serviu como padrão de comparação para resultados dos grupos de teste, recebeu instruções gerais sobre perda de peso. Membros desse grupo tiveram orientação sobre ingestão de legumes, carne e laticínios com alto teor de gordura, compatíveis com a dieta, mas foram desencorajados a usar azeite de oliva para cozinhar e a consumir nozes. Como se esperava, os resultados mostraram que as opções de dieta mediterrânea experimental não levaram a resultados cardiovasculares significativamente melhores. Mas quando os cientistas testaram a cognição de um subconjunto de membros do estudo com uma bateria de testes padrão bem conhecidos, descobriram que pesdezembro 2015 • mentecérebro 49
alimentação
soas dos dois grupos da dieta mediterrânea apresentaram melhor desempenho que o das instruções sobre perda de peso. Por mais surpreendentes que esses resultados possam parecer, ainda não são conclusivos. Pesquisadores não coletaram nenhuma informação cognitiva no início do estudo. Por isso, existe a possibilidade de algum fator – além da dieta – ter interferido nos resultados dos dois grupos de teste e no grupo de controle. Martínez González tentou silenciar as críticas com um novo estudo que a equipe publicou em julho no Jama Internal Medicine. Partindo de um grupo de mais de 300 pessoas que também participaram do Predimed, mas num local específico e com mais recursos financeiros, os pesquisadores mediram níveis básicos de cognição e os compararam com resultados do mesmo grupo quatro anos depois. A média da idade dos participantes no início do estudo era de 67 anos. Segundo Martínez González, as novas descobertas são consistentes com seus estudos anteriores. O primeiro passo Esses resultados também não são definitivos, poré reduzir muito o que esse subestudo foi consumo de carne relativamente pequeno. vermelha; também No entanto, ele ressalta, é a primeira vez que cientisé preciso mostrar tas observaram melhorias às pessoas como nas funções cognitivas comprar os alimentos, em testes aleatórios da dieta mediterrânea. cozinhá-los e preparáEm países ou grupos los para manter todos sociais onde os padrões os nutrientes”, alimentares e estilo de vida são significativamente difeafirma cientista 50
rentes dos de adultos na Espanha, as pessoas também podem se beneficiar dessa abordagem? Essa questão ainda precisa ser investigada. A dieta normal dos participantes do grupo de controle ainda estava mais próxima de uma dieta mediterrânea que para a maioria dos que vivem nos Estados Unidos, portanto eles já tinham na bagagem anos de alimentação relativamente saudável, o que poderia ter contribuído para sua saúde geral. Mas para Martínez González a dieta pode beneficiar mais os americanos, pois eles têm muito mais margem para melhorias. No entanto, segundo a especialista em nutrição Martha Morris, da Universidade Rush, somente um teste aleatório nos Estados Unidos poderá responder a essa questão – o que ela espera fazer nos próximos anos. Provar que determinado tipo de culinária pode afetar a saúde cerebral é uma coisa. Induzir populações a ingerir mais frutas, legumes, peixe e azeite de oliva é outra. Dois grandes obstáculos são custo e hábitos enraizados. No caso do Predimed, os participantes receberam uma dose extra de óleo de oliva extravirgem, que é caro, e instruções sobre como preparar as refeições. Não basta apenas mostrar os diversos alimentos, diz Martínez González. “É preciso mostrar-lhes como comprá-los, cozinhá-los e prepará-los para manter todos os nutrientes de acordo com a dieta mediterrânea tradicional.” O primeiro passo nessa direção, sugere ele, seria fazer com que as pessoas reduzissem muito o consumo de carne vermelha substituindo-a por carne de frango. Mas muitas outras medidas ainda serão necessárias antes de adotarem a dieta mediterrânea. Seguir à risca a dieta proposta pelo Predimed pode não ser a única forma de obter benefícios cognitivos dos alimentos. Em feve-
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reiro, Martha Morris e seus colegas publicaram um estudo on-line recomendando uma dieta alternativa perfeitamente consistente com a mediterrânea, porém mais barata. A dieta Mind, proposta por sua pesquisadora, enfatiza o consumo de grãos e vegetais verdes com folhas. Sua composição inclui duas porções de legumes por dia, duas porções de frutas vermelhas por semana e, em vez da ingestão quase diária de peixe na dieta mediterrânea, ele é consumido somente uma vez por semana. A cientista descobriu seguir a dieta Mind durante 4,5 anos em média, mesmo moderamanete, aparentemente reduz o risco de Alzheimer em comparação a seguir a dieta mediterrânea e outros regimes alimentares. Morris e seus colegas obtiveram esse resultado contando o número de casos de diagnóstico clínico de Alzheimer de cada grupo durante o período do estudo. No caso das dietas de comparação era preciso segui-las rigorosamente para obter o mesmo benefício cognitivo. Além disso, a dieta Mind pode ser um pouco mais acessível para o bolso do cidadão comum. “De forma mais ampla, essas descobertas sugerem que alimentar-se melhor pode fazer a diferença para a memória”, observa Francine Grodstein, professora da Brigham e Hospital de Mulheres, em Boston, e da Faculdade de Medicina da Universidade Harvard, que estuda envelhecimento saudável e não participou desse trabalho.
SONO, GENÉTICA E EXERCÍCIO No entanto, ainda não está claro por que alguns alimentos estimulam o funcionamento do cérebro. Talvez os benefícios cardiovasculares apregoados por essas
dietas, que promovem uma boa circulação do fluxo sanguíneo e de oxigênio para o cérebro, sejam fundamentais. Mas outros fatores também podem contribuir. Obviamente, questões como quando essas mudanças alimentares precisam ocorrer e qual o papel da dieta em relação a outros fatores como atividades físicas, padrões de sono e genética também permanecem sem resposta. Há motivos para ter esperança. Um estudo piloto publicado em junho na Lancet mostrou que mudar de hábitos alimentares em épocas mais tardias da vida pode retardar o curso do declínio cognitivo. Pesquisadores escandinavos dividiram um grupo de 1.260 pessoas na Finlândia em dois subgrupos: um deles recebeu alimentação padrão e orientação sobre a dieta e o outro seguiu um programa específico de exercício e recebeu uma dieta mediterrânea modificada – durante todo o estudo a pressão sanguínea e outros indicadores de saúde foram monitorados e, quando necessário, foram tratados. No final, participantes do grupo de teste saíram-se significativamente melhor em testes cognitivos padrão. “Percebemos claramente que a intervenção pode proteger ou pelo menos retardar deficiências cognitivas”, observa Miia Kivipelto, líder do estudo e diretora de pesquisa e educação da clínica geriátrica do Instituto Karolinska, na Suécia. “Surpreendentemente essas mudanças foram visíveis em apenas dois anos e o melhor é que não são necessários superpoderes, apenas condição cultural e econômica de alimentar-se bem”. Para muita gente, porém, esses pré-requisitos estão ainda muito distantes.
A tolerância à glicose mede a velocidade com a qual uma taxa elevada de glicemia volta ao normal. Os pacientes com índice particularmente alto correm o risco de se tornarem diabéticos. A reação das células à insulina é medida pela sensibilidade a esse hormônio: quanto mais baixo o valor da reação, maior a quantidade de insulina necessária para baixar a glicemia.
PARA SABER MAIS Psicologia da Alimentação. Mente e Cérebro Especial, no 52, 2015.
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personagem
O roubo do cérebro de Einstein violando o protocolo hospitalar, o patologista thomas harvey se apoderou de tecidos cerebrais do famoso físico e controlou o acesso a eles durante décadas. um século após a publicação do artigo sobre a teoria da relatividade, em 2 de dezembro de 1915, o funcionamento mental do ganhador do nobel ainda intriga pesquisadores por Brian D. Burrell
O AUTOR BRIAN D. Burrell é professor de matemática na Universidade de Massachusetts em Amherst. Ele explorou a tradição neurocientífica de estudar cérebros de intelectuais famosos em Postcards from the Brain Museum (Broadway, 2005). Seu livro mais recente, em coautoria com Allan H. Ropper, neurologista da Universidade Harvard, é Reaching down the habbit hole (St. Martin’s Press, 2014, sem edição em português). dezembro 2015 • mentecérebro 53
personagem
E
m 18 de abril de 1955, Albert Einstein morreu aos 76 anos, no Hospital de Princeton, em decorrência do rompimento de um aneurisma de aorta. Em poucas horas, o patologista de plantão, Thomas Harvey, agindo por iniciativa própria, removeu o cérebro do famoso físico sem a permissão da família. Em seguida, preservou o órgão, contra a vontade expressa de Einstein, que pedira para ser cremado. Mais tarde, Harvey conseguiu uma anuência retroativa do filho do cientista, Hans Albert, com a estipulação de que o cérebro fosse usado somente para fins científicos. Mas, como o próprio Harvey não tinha o conhecimento necessário para analisar o órgão, começou a procurar especialistas que pudessem ajudá-lo – e levou 30 anos para que encontrasse uma pessoa capacitada. Essa busca mudou o curso da vida do patologista e reservou ao seu precioso espécime um destino que é ao mesmo tempo estranho, triste e repleto de complicações éticas. Einstein não foi o primeiro pensador mundialmente reconhecido a ter o cérebro escrutinizado em nome da ciência. O passado está pontilhado de exemplos similares. Eu me vi atraído para a curiosa história desses estudos de “cérebros de elite” há uns 15 anos, quando escutei meus alunos de cálculo reclamando que os “Einsteins” do mundo têm vantagem neuroanatômica sobre meros mortais. Achei essa ideia consternadora, já que o cérebro da maioria das pessoas está plenamente equipado para aprender cálculo de nível universitário, mas isso me levou a investigar a literatura científica para descobrir exatamente o que a pesquisa cerebral havia revelado sobre a fonte da habilidade matemática, em particular, e do intelecto excepcional, em geral. Ao fazer isso, descobri que, apesar dos entusiasmados esforços ao longo dos últimos 200 anos para
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discernir a anatomia do talento ou da genialidade, cientistas não estão muito mais perto da resposta agora do que estavam no século 19. O caso do cérebro de Einstein talvez seja o exemplo mais notável disso. Desde que escrevi este artigo, surgiram meia dúzia de relatos sobre o cérebro do físico, cada um destacando uma característica anatômica diferente como a possível fonte de seu brilhantismo. Nenhum deles, no entanto, revelou uma base anatômica convincente e digna de crédito para a extraordinária aptidão do físico. Em vez disso, eles simplesmente aumentam a pilha de estudos cerebrais falhos que, coletivamente, geraram o que já foi denominado “neuromitologia” da genialidade.
O FANTASMA NA MÁQUINA A longa e diversificada tradição de estudar o cérebro de pessoas superdotadas começou 100 anos antes da morte de Einstein, com o falecimento do matemático alemão Carl Friedrich Gauss, em 1855. Seus colegas da Universidade de Göttingen supervisionaram a autópsia e removeram o cérebro. Depois disso, um deles, um anatomista chamado Rudolph Wagner, preservou o órgão inteiro em uma solução de álcool e mais tarde convenceu o filho de Gauss a lhe permitir que ficasse com o órgão para pesquisas. Wagner pretendia reforçar sua crença na filosofia dualista de René Descartes de que a mente e o cérebro são bastante distintos.
No final do século 19, quanCientistas têm do a ciência começou a procurado há tempos usurpar o papel da religião, as raízes anatômicas doar o cérebro tornou-se decididamente uma coisa da genialidade moderna e elegante de fano cérebro de zer. Mas o entusiasmo que pensadores, como culminou na fundação das sociedades cerebrais dimio matemático Carl nuiu rapidamente diante Friedrich Gauss da ausência de quaisquer conclusões fundamentadas. No início do século 20, os órgãos doados tinham se amontoado, mas a maioria não foi estudada, ou foi simplesmente negligenciada. Não se sabe o que, exatamente, alimentou a obsessão de Harvey com o cérebro de Einstein. Ele estava ciente dos precedentes históricos, das muitas coletas de cérebros ilustres, e talvez tenha simplesmente sido dominado pela curiosidade. Mas a atmosfera política da década de 50 também pode tê-lo motivado. Harvey sabia que nos anos 20 a busca pela anatomia da inteligência tinha avançado para o nível celular. Cientistas soviéticos, que haviam acumulado um panteão de cérebros FOTOGRAFIAS mostram célebres, inclusive o de Vladimir Lenin e o de a vista lateral direita (à Josef Stalin, criaram um programa de pesquisa esquerda) e a frontal (à cérebro de secreto para mapear as camadas corticais dos direita) do Albert Einstein antes da hemisférios cerebrais com base em padrões dissecação scientific american e st. martin’s press são afiliadas
Em sete anos, Wagner publicou dois estudos detalhados sobre a anatomia comparativa de cérebros de primatas. Seu conjunto de dados incluía medições de 964 cérebros de pessoas de varias áreas, entre elas, o poeta inglês George Gordon Byron (mais conhecido como Lorde Byron), e o naturalista francês Georges Cuvier. Wagner, porém, não encontrou nada para dissipar sua visão dualista da mente. Nem o peso dos cérebros, nem seus padrões de circunvolução superficiais pareciam corresponder a habilidades intelectuais extraordinárias. O cérebro de Cuvier era enorme, tal qual o de um trabalhador braçal que o pesquisador estudou. O de Gauss tinha um intrincado padrão de sulcos na superfície, assim como o de uma lavadeira. Portanto, tudo indicava que a diferença crucial entre um gênio e uma pessoa comum e mediana estava, necessariamente, abaixo da superfície – ou até totalmente além – da anatomia do cérebro. Talvez, como Wagner esperava, a genialidade derivasse do elemento divino, uma espécie de “fantasma na máquina”. Descontentes com os achados de Wagner, materialistas científicos da época deram um passo audacioso ao fundar sociedades para doações de cérebro, na esperança de identificar as bases físicas do talento excepcional. Ser integrante dessas entidades dependia da promessa de legar o próprio corpo a colegas-membros.
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personagem neuronais, uma especialidade conhecida como citoarquitetura, ou citoarquitetônica. O acesso aos espécimes era controlado, e os soviéticos sempre pareciam prestes a anunciar uma grande descoberta, embora nunca o fizessem. Foi nesse clima de competitividade e paranoia da Guerra Fria que Harvey decidiu se apropriar do cérebro de Einstein.
Espaço, tempo e relatividade
pavel b/shutterstock
Todo mundo sabe o que é gravidade. Até um bebê de 6 meses provavelmente vai se surpreender se um brinquedo não cair como esperado. Durante muito tempo os cientistas chegaram a pensar na gravidade como uma atração para o centro da Terra e, mais tarde, de forma mais generalizada, como força de atração entre duas massas. Então, há 100 anos veio Albert Einstein e revelou em sua teoria da relatividade geral que a gravidade não é uma força, mas um subproduto de um universo curvo. Em outras palavras: o que costumamos pensar sobre o tema em nossa experiência cotidiana está errado. O artigo “Die Feldgleichungen der Gravitation” (As equações do campo da gravitação), em 2 de dezembro de 1915, a princípio teve pouca notoriedade além do mundo acadêmico. Porém, poucos anos depois, durante uma expedição para ver um eclipse solar, foi feita uma observação que impulsionaria a teoria para a fama: como Einstein previu, a luz das estrelas parecia se curvar à medida que o sol passava. O físico Arthur Eddington, que liderava o estudo de campo, foi o primeiro a confirmar a curvatura. De repente, o espaço e o tempo já não eram mero cenário para a ação do Cosmos. Em vez disso, o tempo-espaço tinha sua própria geometria, ditando movimento de corpos celestes e mantendo nossos pés no chão. A revolução da gravidade moldou boa parte do século 20: influenciou a filosofia, a arte, a política e a cultura. A fama de Einstein, de sua genialidade e de seu trabalho marcaram a transformação da opinião pública a respeito da ciência, inaugurando um período de avanços tecnológicos que ainda estamos vivendo. (Da redação)
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FATIADO E PICADO De acordo com todos os relatos, Harvey era um homem excêntrico, mas escrupuloso. Uma vez que adquirira sua “sacrossanta relíquia”, a abordou tão metodicamente como qualquer investigador de uma cena criminal. Fotografou a superfície cortical de todos os ângulos e inseriu nela uma barra de escala para medições a partir das imagens. Depois, levou o cérebro ao laboratório de patologia da Universidade da Pensilvânia e o confiou a uma técnica talentosa, Marta Keller. Seguindo instruções precisas de Harvey, ela empregou as melhores práticas de preparação de tecidos neurológicos disponíveis na época. Passou os oito meses seguintes dissecando porções do córtex, inserindo 240 pedaços numerados dele em blocos de um material plástico transparente chamado celoidina e preparando 12 conjuntos de lâminas de microscópio com fatias finíssimas de tecido tratadas com corante. Harvey enviou conjuntos de lâminas a vários de seus pares e nenhum deles encontrou nada de anormal nas amostras, mas todos notaram algo estranho quanto ao obsessivo controle de Harvey sobre o cérebro. “Em geral, patologistas têm a liberdade de remover, preservar e estudar órgãos, mas todos os tecidos removidos para retenção, conforme autorizado por meio de permissão por escrito, ficam sob a custódia do hospital e nunca são considerados propriedade pessoal do patologista encarregado”, explica Umberto De Girolami, neuropatologista do Hospital Brig ham and Women’s, em Boston. Contestando o protocolo e as exigências de seu empregador, Harvey recusou-se a abrir mão de seu precioso espécime e acabou sendo demitido em 1960. Ele arrumou seus pertences e partiu para o Centro-Oeste, levando consigo dois frascos. Um continha os pedacinhos do tamanho de cubos de açúcar inseridos em celoidina, que Marta Keller tinha preparado cuidadosamente; o outro
da Universidade McMaster, Nenhum estudo foi em Ontário, no Canadá. Ancapaz de identificar derson chamoua a atenção de forma conclusiva para a elevada densidade de células no córtex pré-frontal existência de de Einstein. Witelson, que características físicas se concentrou na atípica de superioridade da ausência do opérculo parietal, parte de uma fissura capacidade mental que divide o lobo parietal, alegou que Einstein tinha uma região cortical expandida associada a habilidades visuoespaciais e matemáticas. Na década seguinte foram publicados muitos estudos interessantes sobre anomalias anatômicas no cérebro de músicos profissionais e no de motoristas de táxi de Londres, mas nada sobre Einstein. Em 2007, mais ou menos na época da morte de Harvey, o neuro-oftalmologista Frederick E. Lepore, da Escola de Medicina Robert Wood Johnson, agora integrante da Universidade Rutgers, em Nova Jersey, descobriu uma coleção até então desconhecida de Harvey, com fotografias padronizadas do cérebro de Einstein. Ele as compartilhou com a paleoantropóloga Dean Falk, da Universidade Estadual da Flórida, que trabalha principalmente em evolução cerebral. Ela notou alguns aspectos estranhos na topografia do cérebro, inclusive um nódulo ou “calombo” no córtex, conhecido como o sinal ômega, que havia sido previamente associado ao talento musical. “É interessante contemplar que as habilidades extraordinárias
ferdinand schmutzer
encerrava as porções não dissecadas do cérebro de Einstein. Ele guardou os frascos em um cooler de cerveja, junto com os conjuntos restantes de lâminas e fotografias padronizadas. Harvey sofreu vários reveses depois de ser despedido do hospital. Seu casamento desmoronou e ele perdeu sua licença médica. Em seguida, empregou-se em uma fábrica de processamento de plásticos. Mudou-se com frequência e, em dado momento, tornou-se vizinho e companheiro de bebedeiras do escritor William S. Burroughs. Mas nunca perdeu o interesse no cérebro e, três décadas depois de tê-lo removido do corpo de Einstein, Harvey finalmente encontrou uma neurocientista para estudá-lo. Ou melhor, ela o encontrou. Em 1985, Marian C. Diamond, da Universidade da Califórnia em Berkeley, solicitou quatro dos blocos de tecidos guardados por Harvey. Ela estava interessada em estudar as células gliais de Einstein. Os chamados gliócitos agem como um sistema de apoio para neurônios. Em um trabalho anterior com camundongos, a neurocientista havia constatado que a exposição a um ambiente sensorialmente enriquecido produzia uma proporção maior de células gliais para neurônios que um ambiente não estimulante. Ela suspeitava que Einstein pudesse ter tido uma proporção alta desse tipo de célula em porções de seu córtex associadas a funções neuronais superiores, como a criação de imagens mentais, a memória e a atenção. Quando examinou o material enviado por Harvey, ela encontrou exatamente o que procurava em um dos quatro blocos de tecidos e concluiu que a proporção mais elevada de células gliais que observou indicava que Einstein usava esse tecido mais intensamente. Mas no posterior frenesi da mídia em torno de seu estudo, os jornalistas deram a impressão de que essa abundância de gliócitos não era o produto de seu raciocínio, ou capacidade mental profunda, mas sua causa. Não demorou muito para que os próprios cientistas começassem a procurar explicações anatômicas para a proeza intelectual de Einstein. Esta foi atribuída a outros aspectos distintos de seu cérebro por estudos conduzidos na década de 90 pelo neurocientista Britt Anderson, então na Universidade do Alabama em Birmingham, e pela psicóloga Sandra Witelson,
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personagem
COLEÇÃO DE ESBOÇOS, imagens e lâminas de tecido encontra-se no Museu Nacional de Saúde e Medicina, em Maryland: apesar dos esforções de Harvey, a explicação física da origem da genialidade permanece um mistérios 58
de Einstein podem, até certo ponto, ter sido associadas à incomum anatomia macroscópica, visível a olho nu, de seu córtex cerebral”, escreveu a pesquisadora. No mais recente dos estudos do cérebro de Einstein, publicado on-line em 2013, Falk e Weiwei Men, da Universidade Normal do Leste da China, em Xangai, alegaram ter encontrado outra explicação anatômica para o prodigioso poder de raciocínio do físico: além de sua singular e única estrutura cortical e citoarquitetônica, Einstein tinha “pronunciados caminhos de comunicação entre pelo menos algumas partes de seus dois hemisférios cerebrais”, afirmaram eles. Os cientistas basearam sua conjectura em medições da seção transversal do corpo caloso (corpus callosum), o feixe de fibras que conecta os hemisférios esquerdo e direito, do cérebro do físico, em comparação com um grupo controle. Por mais persuasivas que essas explicações para as extraordinárias realizações de Einstein possam ser, pelo menos à primeira vista, todas elas apresentam defeitos metodológicos semelhantes. O psicólogo Terence Hines, da Universidade Pace, tem sido seu crítico mais persistente. Ele observa que, entre outros “pecados científicos”, os responsáveis por esses estudos têm se mostrado propensos a favorecer constatações que apoiam suas preconcepções, minimizando aspectos do cérebro de Einstein que estão dentro dos limites normais ou até são deficientes. Amostras comparativas mal escolhidas confundiram ainda mais as coisas. Anderson, por exemplo, só mediu o cérebro de Einstein tomando como base outros cinco exemplares em seu estudo; isso dificilmente seria suficiente para captar a gama de variação humana e gerar conclusões estatisticamente significativas.
TRABALHO ÁRDUO O mais preocupante de tudo talvez seja a falácia lógica que assombra quase toda alegação de ter sido identificado o substrato anatômico da genialidade: quando se parte do pressuposto de que gênios são diferentes de todas as outras pessoas, o fator responsável por isso seria, logicamente, qualquer anomalia anatômica encontrada ao acaso. E, se alguém fizer um número suficiente de medições do
cérebro de alguém, com certeza encontrará alguma coisa que o diferencia. Hoje, cerca de 60 anos após a fatídica decisão de Harvey, o cérebro de Einstein está espalhado por vários locais. O patologista devolveu a maior parte, 170 das 240 peças originais incrustadas em celoidina, juntamente com o cerebelo e o tronco cerebral, ao Hospital de Princeton pouco antes de morrer, há uma década. Esse material agora está sob os cuidados do patologista Elliot Krauss, do centro médico de Princeton, que exerce a antiga função de Harvey e cuida atentamente das amostras. A coleção pessoal de Harvey, de cerca de 500 lâminas, assim como suas fotografias, foram para o Museu Nacional de Saúde e Medicina, em Silver Spring, no estado de Maryland. Outras lâminas e diversas amostras isoladas estão distribuídas entre uma dezena de museus e pesquisadores universitários. Mas a especulação sobre a fonte do brilhantismo de Einstein persiste. A ciência, e a neurociência em particular, estariam em situação melhor se o cérebro de Einstein tivesse sido cremado junto com seu corpo? Isso agora é irrelevante e até discutível, mas a questão merece alguma consideração. Em 1906, mais de um século antes de Weiwei Men e Dean Falk fazerem sua pesquisa, o anatomista americano Edward Anthony Spitzka julgou ter encontrado a resposta para a acuidade mental na área da seção transversal do corpo caloso. Em seu relato, sugeriu que gênios “eram capazes de grandes esforços de intelecto, como se fizessem isso sem nenhum grande esforço”. Autores de estudos posteriores de cérebros de elite, inclusive os focados em Einstein, reiteraram sua sugestão de que a genialidade é puramente um truque da natureza. Mas ninguém ainda demonstrou que isso é verdadeiro. A descoberta de substratos de talento, ou a ausência deles, no cérebro tem implicações práticas e éticas preocupantes. Para um aluno que lamenta não ter nascido com um cérebro matemático, eu gostaria de salientar que Einstein talvez também não tivesse um. Nós não sabemos – e isso também não importa. Por trás das grandes realizações de um Gauss ou um Einstein reside, em todos os casos, uma vida dedicada à contemplação, estudo, curiosidade, colaboração e, talvez acima de tudo, muita dedicação e trabalho duro.
PARA SABER MAIS The corpus callosum of Albert Einstein’s brain: Another clue to his high intelligence? Weiwei Men et al. emBrain. Publicado on-line em 24 de setembro de 2013. The cerebral cortex of Albert Einstein: A description and preliminary analysis of unpublished photographs.Dean Falk, Frederick E. Lepore e Adrianne Noe em Brain, vol. 136, nº 4, págs. 1304–1327; 1º de abril de 2013. A ciência da genialidade. Christian Hoppe e Jelena Stojanovic; Mente e Cérebro; edição nº 189, outubro de 2008. The exceptional brain of Albert Einstein. Sandra F. Witelson et al. em Lancet, vol. 353, nº 9170, págs. 2149–2153; 19 de junho de 1999. Alterations in cortical thickness and neuronal density in the frontal cortex of Albert Einstein. Britt Anderson e Thomas Harvey em Neuroscience Letters, vol. 210, nº 3, págs. 161–164; 7 de junho de 1996. On the brain of a scientist: Albert Einstein. Marian C. Diamond et al. em Experimental Neurology, vol. 88, nº 1, págs. 198–204; abril de 1985.
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BIOTECNOLOGIA
Os “minicérebros” cultivados em laboratório
de “self- organization of pol arized cerebellar tissue in 3d culture of human pluripotent stem cells,” de keiko muguruma et al., em cell reports, vol. 10, no 4; 3 de fevereiro de (células de purkinje)
cientistas descobriram como estimular células-tronco humanas a formar estruturas tridimensionais capazes de simular a atividade de circuitos cerebrais Comum a muitas histórias de ficção científica, o cérebro numa cuba pode estar um passo mais próximo de se tornar realidade. Pesquisadores da Universidade Stanford e do Centro RIKEN de Biologia do Desenvolvimento, no Japão, descobriram como estimular células-tronco humanas a formar estruturas neurais tridimensionais capazes de representar como seria a atividade de determinados circuitos de um cérebro adulto.
Os cientistas do RIKEN aplicaram uma variedade de fatores de crescimento químico e transformaram as células estaminais embrionárias humanas em neurônios que se auto-organizaram em padrões únicos para o cerebelo, região do sistema nervoso envolvida com o movimento. A equipe de Stanford trabalhou com células-tronco pluripotentes induzidas e derivadas de células da pele e
as estimulou quimicamente para que se tornassem neurônios que espontaneamente se conectassem com circuitos tridimensionais, bem parecidos com os encontrados no córtex – a matéria cinzenta e enrugada do cérebro, base da atenção e memória nos humanos. “Há anos, células-tronco embrionárias de ratos são usadas para gerar teratomas, tecidos com a aparência de órgãos”, conta o neurocientista David Panchision, do Instituto Nacional de Saúde, que apoiou a pesquisa de Stanford. “Mas a forma como um cérebro em desenvolvimento precisa funcionar não é organizada nem sistemática.” Por outro lado, não só as estruturas neurais estudadas pela
CÉLULAS DE PURKINJE são um tipo de neurônio encontrado apenas no cerebelo. No experimento conduzido por cientistas do Japão, estruturas estaminais embrionárias conseguiram se transformar em Purkinjes maduras 60
neurocircuito
RELACIONAMENTO
equipe de Stanford se agregaram por conta própria como um tecido similar ao do córtex como os neurônios enviaram sinais entre si em padrões coordenados, assim como aconteceria num cérebro. E o tecido cerebelar gerado pelos cientistas japoneses se comportou de maneira semelhante. Então, o que poderia ser feito com uma parte funcional de cérebro cultivada em laboratório? De acordo com Panchision, esses minicérebros vivos, apelidados de “organoides” pelos cientistas, poderão um dia ser usados para simular de forma segura testes de novos medicamentos psiquiátricos. “Podem servir para experimentos detalhados e mecanicistas. Mas é importante saber que as diferenças entre células humanas e de roedores é significante, principalmente se pretendemos estudar como drogas agem em caminhos específicos do cérebro.”
shutterstock (cérebros e casal)
O que buscamos num parceiro? Autenticidade, afirma estudo Em nossa cultura, somos influenciados o tempo todo por ideias sobre como ser e agir para atrair um bom parceiro amoroso. Tanto a mídia como o senso comum propagam padrões estéticos e comportamentais que homens e (principalmente) mulheres devem seguir. Um artigo publicado no Personality and Social Psychology Bulletin, porém, sugere que pessoas consideradas verdadeiramente atraentes não são aquelas alinhadas aos padrões, pelo contrário: a autenticidade parece ser elemento decisivo para o charme. Pelo menos de acordo com o estudo, homens e mulheres heterossexuais e bissexuais tendem a preferir pessoas incomuns (com opiniões, escolhas e roupas fora da norma) tanto ao selecionar parceiros em perfis de namoro online, como ao descrever o par ideal ou imaginar encontros com pessoas que tinham acabado de conhecer. Participantes de ambos os sexos demonstraram maior interesse em pessoas que consideravam autênticas. Pesquisas anteriores explicam em parte esse interesse: tendemos a associar a coragem de sair dos padrões a status e a poder. No entanto, as conclusões são limitadas e as expectativas de acordo com
o sexo ainda precisam ser analisadas, reconhecem os autores. “Estereótipos de gênero – de que homens preferem as submissas e tradicionais, por exemplo – não se desfazem rapidamente”, diz o psicólogo social Matthew Hornsey, da Universidade de Queensland, na Austrália. “Fico intrigado com a quantidade de mulheres que se sentem mais livres sem alguém do gênero masculino por perto. Nessas ocasiões, elas se mostram mais relaxadas, francas e divertidas. Penso sobre as questões que ainda as levam a se comportar assim”, diz.
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livro | resenha GRANDE AMOR – UM OBJETIVO DE VIDA Lama Michel Rinpoche e Bel César Editora Gaia, 2015 384 págs. R$ 49,90
A psicóloga e o monge falam de amor sob a óptica da tradição budista, mãe e filho abordam o funcionamento/= mental, paixão, raiva, culpa e felicidade de forma densa e acessível por Gláucia Leal
E
m qualquer de suas manifestações amor é assunto complexo. Cantado e enaltecido em prosa e verso nas mais variadas épocas e culturas, parece um daqueles conceitos que podem ser pensados da mesma forma que o de tempo, nas palavras de Santo Agostinho: “Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Se ninguém me perguntar, eu sei o que é; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei”, escreveu o filósofo no século 4, no livro XI, das Confissões. “Hoje em dia há muitos nomes para o amor. Mas o amor verdadeiro não tem nome”, escreve Lama Ganchen Rinpoche no prefácio de Grande amor – um objetivo de vida. “A maioria das pessoas não conhece a filosofia mais profunda sobre os aspectos da mente, mas é capaz de entender o que é amor”, observa o mestre tibetano, com titulação equivalente ao Ph.D. em medicina e filosofia, entre outras formações, e autor de várias obras. No livro, a psicóloga clínica Bel César e o Lama Michel Rinpoche apresentam um diálogo bom de ser acompanhado, repleto de informações densas (profundas no melhor estilo filosófico ao qual se refere Lama Ganchen), mas transmitidas de forma agradável e acessível – afinal, falam sobre um tema comum a todos.
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A psicóloga clínica Bel César especializou-se no acompanhamento de pacientes que sofrem de estresse pós-traumático (TEPT), trabalhando com experiência somática, e no atendimento de pessoas que enfrentam o luto da própria morte eminente e de entes queridos. Lama Michel, com formação em filosofia budista tibetana, participa frequentemente de congressos e eventos sobre aspectos do funcionamento mental, como o Conference on Integrative Psychiatry, na Holanda. Em Grande amor, mãe e filho encontram-se. Divido em 67 temas – que podem ser lidos em sequência ou separadamente – o livro traz informações sobre funcionamento mental, paixão, formas de sofrimento, egoísmo, manejo da raiva e da culpa, meditação, empatia e compaixão, superação, felicidade, entre outros tantos. O texto vai muito além das classificações de tipos de amor ou suas características: propõe uma contextualização ampla de aspectos e mecanismos psíquicos em relação ao amor, sob a óptica da filosofia budista. Veja a seguir alguns trechos da obra. GLÁUCIA LEAL é jornalista, psicóloga e psicanalista. Editora-chefe de
Mente e Cérebro.
arquivo pessoal do autor
“Amar é desejar felicidade. Desejar a própria felicidade é amar a si mesmo. (...) A felicidade que desejamos para o outro é um reflexo do que desejamos para nós. Se desejarmos equilíbrio e harmonia, vamos desejar que o outro encontre esse mesmo bem-estar. Se felicidade para nós é ter prazeres e poder, vamos amar o outro desejando o mesmo para ele. Em outras palavras, é preciso ter clareza sobre o que nos faz bem e o que nos faz mal e determinação de abandonar o que nos faz mal e cultivar o que nos faz bem. Isso é amar a si mesmo. Sem a clareza do que é felicidade, teremos dificuldade de entender o amor. Acredito que todo ser humano, por natureza, tem amor-próprio, pois ninguém deseja sofrer. A dificuldade está em saber como ser feliz.” – Lama Michel Rinpoche “O impulso de ir em direção ao momento seguinte é maior do que o tempo necessário para a experiência a ser interiorizada. Sem interiorizar, não temos memória. Sem memória, não aprendemos com a experiência. Sem aprendizado, não damos valor ao vivido. Sem valor, nos sentimos vazios e carentes. E assim caímos no ciclo de sair em busca de algo que nos falta em vez de nos sentirmos preenchidos pelas vivências positivas já vividas. Primeiro dizemos que amamos, mas, assim que o outro nos frustra, desistimos de amá-lo. Há um desencantamento tão rápido que os relacionamentos terminam mesmo antes de começar.” – Bel César
“Em nossa cultura, a ideia de amar a si mesmo está fortemente associada a algo egoísta, feio e impróprio. Por mais que dissermos que amar a nós mesmos é a base para desenvolvermos amor pelos outros, na prática ainda permanece a sensação de que estaremos privilegiando a nós mesmos em detrimento dos outros. A mensagem subliminar de que, para amar os outros, temos que nos colocar em segundo plano está fortemente arraigada. Isso causa uma constante sensação de inadequação cada vez que temos de reconhecer nossas necessidades físicas e psíquicas. Mas, por outro lado, só poderemos nos amar se cuidarmos de nós mesmos.” – Bel César “Quantas pessoas colaboraram para o nosso bem-estar? De quantas pessoas depende o fato de estarmos juntos agora? De muitas e muitas. Não há ninguém que não tenha nada a ver conosco, estamos todos interligados. Devemos então nos lembrar disso e sentir gratidão. Mas veja como funciona a nossa mente: gostamos de quem nos faz o bem, não gostamos de quem nos faz o mal. Mas quantos são os seres que nos fazem o bem e quantos são os que nos fazem o mal? O nosso bem-estar depende de quantos seres? E de quantos dependem o nosso desconforto e inquietação? O mal que nos atinge depende principalmente de nós mesmos e o bem, de muitos outros seres além de nós.” –Lama Michel Rinpoche dezembro 2015 • mentecérebro 63
livros | lançamentos AUTISMO
Diagnóstico e tratamento O novo livro de Temple Grandin, O cérebro autista, trata da importância de levar em conta aspectos de diagnóstico e tratamento da síndrome que vão além das diretrizes vigentes no Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM, hoje em sua quinta edição). Psicóloga, doutora em zootecnia e atualmente professora da Universidade do Colorado, a autora principal (que escreve junto com o jornalista Richard Panek) é autista e ficou conhecida por inventar, há alguns anos, a “máquina do abraço”. O objetivo era proporcionar pressão física confortável, como se a pessoa estivesse sendo de fato abraçada, causando bem-estar em adultos e crianças com a síndrome. O livro tem como foco as novidades do universo científico sobre a compreensão do espectro autista, avanços da pesquisa neurocientífica e genética, além da discussão sobre aspectos sociais relacionados ao quadro.
O cérebro autista. Temple Grandin e Richard Panek. Record, 2015. 252 págs. R$ 35,00
CRÔNICAS
SAÚDE MENTAL
SOFRIMENTO PSÍQUICO
PSICANÁLISE
Casos clínicos e ficção
Alimentação como tratamento
Psicanálise e psiquiatria
Prática clínica
A narratividade é apenas uma das conexões entre a literatura e a psicanálise. Em Crônica dos afetos, o psiquiatra e psicanalista Celso Gutfreind evidencia essa relação com crônicas sobre o cotidiano do analista e do paciente. Romanceando a prática clínica, o autor transforma histórias reais em ficção. Divide a obra em seis partes e aborda temas como técnica psicanalítica, narcisismo, poesia e interações precoces. Em linguagem acessível, faz referência a conceitos e reflexões de teóricos como Freud e Winnicott.
Dieta saudável e estilo de vida ativo podem ser grandes aliados do combate a doenças do cérebro e transtornos mentais. O neurologista David Perlmutter apresenta, em Amigos da mente, pesquisas e casos sobre a relação entre o sistema nervoso e o microbioma – formado pelos diversos micro-organismos que ocupam o corpo. Para o autor, a dieta pode ajudar de forma importante no tratamento de Alzheimer, autismo e TDAH, por exemplo. Em linguagem acessível, a obra traz informações relevantes sobre a importância do equilíbrio físico para a saúde mental.
Divergências sobre a nomeação de doenças e transtornos, o diagnóstico e sobretudo o tratamento muitas vezes causam uma relação conflitante entre psicanálise e psiquiatria. Sofrimentos psíquicos, da psicanalista Júlia Catani, apresenta reflexões embasadas em estudos clínicos e teóricos da psicanálise e da psiquiatria, aproximando-se das duas perspectivas para analisar a natureza do sofrimento e suas diferentes nomeações.
Amigos da mente. David Perlmutter e Kristin Loberg. Paralela, 2015. 344 págs. R$ 39,90
Sofrimentos psíquicos. Júlia Catani. Zagodoni, 2015. 224 págs. R$ 46,00
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O osso de uma análise. Jacques-Alain Miller. Zahar, 2015. 144 págs. R$ 42,90
imagens: divulgação
Crônica dos afetos – A psicanálise no cotidiano. Celso Gutfreind. Artmed, 2016. 208 págs. R$ 54,00
O processo analítico não é estático cheio de obstáculos, se desdobra com as necessidades do paciente e das habilidades do psicanalista. Em O osso de uma análise, Jacques-Alain Miller fala sobre as dificuldades decorrentes da estrutura de conceitos lacanianos e apresenta propostas para lidar com a teoria. Responsável pela edição de muitas obras de Lacan, de quem era genro, o autor compõe o texto com reflexões e uma nova perspectiva sobre os fundamentos lacanianos.
CLÍNICA
Diálogos entre o corpo e a mente A manifestação de doenças e problemas físicos decorrentes de complicações psíquicas é cada vez mais comum. Nessas situações, psicanálise e medicina podem ser aliadas para a recuperação de um paciente. Entretanto, os dois campos enfrentam ideias opostas. A medicina foca a patologia. Já a psicanálise considera a especificidade de cada indivíduo e o contexto em que ocorrem os sintomas para encontrar o tratamento correto. Resultado do Projeto de Atendimento e Pesquisa em Psicossomática, desenvolvido no Instituto Sedes Sapientiae, Psicanálise e psicossomática traz uma coletânea de casos clínicos em que o diálogo entre as duas áreas foi determinante para o desenvolvimento do tratamento, além de possibilitar o aprofundamento e a elaboração da experiência clínica.
Psicanálise e psicossomática. Ana Maria Soares, Cristiana Rodrigues Rua, Rubens Marcelo Volich, Maria Elisa Pessoa Labaki (orgs.). Escuta, 2015. 312 págs. R$ 75,00
Psicanálise com bom humor E se Sigmund Freud, o criador da psicanálise, tivesse um filho impertinente chamado Jean-Martin, que vivesse às turras com a irmã, Anna, e volta e meia colocasse em xeque as teorias do pai, num misto de desafio e tentativa de obter aprovação e amor da figura paterna? Tudo isso com bom humor, boa dose de sarcasmo e toque ácido. Em As TRAUMÁTICAS aventuras do filho do Freud – Onde está meu falo?, o cartunista Pacha Urbano retorna à vida de um garoto que carrega as marcas de uma forma revolucionária de compreender o mundo (já que as coisas não são simplesmente como as vemos, mas guardam também representações que se desdobram em sentidos inusitados), na qual sexualidade, fantasia, conteúdos oníricos e simbólicos, desejo e pulsão fazem parte do cotidiano. A cada página algo desse universo inusitado pode vir à tona, feito o Inconsciente, que quando menos esperamos se manifesta em sonhos, atos falhos – e, claro, nos chistes. O filho do Freud, porém, é mais que um chiste. Talvez esteja mais uma tentativa sutil de elaboração de feridas narcísicas ou, quem sabe, um jeito de todos nós – psicólogos, psicanalistas, analistas e analisandos – nos vingarmos um pouquinho do “grande pai”, nos permitindo rir dessa representação idealizada do saber. O primeiro volume foi lançado em 2012 e desde então as aventuras (ora fantásticas, ora traumáticas) de Jean-Martin con-
quistaram muitos interessados. Em seu novo livro – “não recomendado para menores de 16 anos” –, o autor, que já publicou tirinhas nas edições mensais de Mente e Cérebro entre 2014 e 2015, conta com a participação de vários outros artistas na seção “Pelo olhar do outro”. E, mais uma vez, convida o leitor a se divertir com a psicanálise. (Por Gláucia Leal)
As TRAUMÁTICAS aventuras do filho do Freud – Onde está o meu falo? Pacha Urbano. Editora Zás, 2015. 128 págs. R$ 39,90
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limiar
neurociências
Dia das bruxas
P
erto da Terra um asteroide com aparência de crânio humano tangencia nossa órbita como um presságio de Halloween. Na Alemanha os refugiados sírios enfrentam frio e quase 300 ataques neo nazistas no último trimestre. No Brasil o latifundiário Norberto Mânica, mandante da chacina de Unaí, é condenado a 98 anos de prisão, mas por ser réu primário responderá em liberdade. Na Rússia o Estado persegue jornalistas, comunistas, ativistas, artistas e gays. No poder desde 1999, Vladimir Putin alcança 89% de aprovação. Em Angola Luaty Beirão e 16 companheiros continuam presos ilegalmente há meses, sob acusação de tramar golpe de Estado. Seu delito foi organizar manifestações pacíficas contra o regime de José Eduardo Santos, no poder desde 1979. A prova do crime é um livro. No Brasil o governo federal corta 25% das verbas para pesquisa científica. Projetos aprovados pelo CNPq e pela Capes ficam sem pagamento nem explicação. Antológica evasão de cérebros se anuncia. Nos EUA o ex-cartola deportado José Maria Marin paga US$ 15 milhões de fiança para aguardar julgamento na luxuosa Trump Tower, símbolo fálico do magnata candidato a presidente que declarou a intenção de deportar 11 milhões de imigrantes ilegais. No Brasil as prisões explodem em decapitações e torturas cada vez mais 66
bárbaras, inferno de superlotação propiciada pela curiosa lei de drogas que deixa intocado o senador Zezé Perrella, com seu helicóptero entupido de cocaína, mas prende e arrebenta qualquer preto, mulato ou pardo que leve consigo um baseado. Na China uma mãe é moída viva por uma escada rolante, com tempo apenas para lançar seu bebê longe das engrenagens letais. Acidentes similares se repetem a cada ano, mas os shoppings chineses continuam lotados. No Brasil o deputado e pastor evangélico Eduardo Cunha segue negando que afirmou que negou que afirmou que as contas secretas na Suíça não são dele. Abusa de cinismo e segredos inconfessáveis para chantagear congressistas, governantes e ex-governantes com a constatação inescapável: estão todos na mesma panela. Em Portugal o ex-primeiro ministro José Sócrates aguarda julgamento por fraude fiscal e lavagem de dinheiro. Se diz perseguido como Luaty Beirão. Na China o Estado elimina a cada ano milhares de pessoas, mais do que todo o resto do planeta. Vans equipadas como unidades móveis da morte circulam pelo país. Órgãos dos prisioneiros executados são reaproveitados em transplantes. Na Guatemala as eleições para substituir o ex-presidente Otto Molina, flagrado em fraude aduaneira, dão 67% dos votos ao comediante evangélico Jimmy Morales. Seu bor-
SIDARTA RIBEIRO
dão: “Nem corrupto nem ladrão”. No Brasil o deputado comediante Cunha usa seus 15 minutos de fama para atacar direitos das mulheres, homossexuais e indígenas. Apoiado na bancada BBB (boi, bala e bíblia), repete no rádio o bordão: “O povo merece respeito!”. No Reino Unido anuncia-se aumento de 1oC na temperatura média da Terra. Estima-se que mais 3 graus submergiriam 760 milhões de lares. No Brasil falta água na cidade de São Paulo, mas os parques aquáticos de Barretos são um negócio da China. Em Mariana a enxurrada de dejetos de mineração engoliu uma imprecisão de vidas. A contaminação da empresa Samarco desceu o rio Doce por dias, intoxicando terra e água até o mar. Na Síria a terceira guerra mundial continua a ferver no caldeirão da bruxa, com pelo menos 12 bandeiras matando em nome da paz. As maiores potências nucleares metem a colher diretamente. A Rússia acaba de chegar para animar o sabá. Os tambores rufam: bataclan, bataclan... Armageddon é uma região da Síria na fronteira com Israel, país que estoca centenas de armas atômicas jamais declaradas. Hell-o-win? Salve-se quem puder: as bruxas estão soltas. SIDARTA RIBEIRO, neurobiólogo, diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e professor titular da UFRN.
andrei verner (foto); imagen: streaddesign/shutterstock
o deputado e pastor evangélico eduardo cunha abusa de cinismo e segredos inconfessáveis para chantagear congressistas, governantes e ex-governantes com a constatação inescapável: estão todos na mesma panela
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