PARTE I A VIRTUDE DA FÉ O qu e é a f é ? A v i r t u d e te o l o g a l d a f é carac teri z a- se p or uma uma e xtr xtr em ema a c o mple ple xida idade. de. N as r efle eflexõ xões es aqui qui desenvolvid as n ão s e apr e s en t a a f é à l uz da te ol og i a d og mátic a, m as s egu n do a c on c ep ç ão d a vi da in teri or. A fé neotestamentaria cons co nsti titu tuii uma uma re resp spos osta ta do home homem m à re reve vela laçã ção o de
Deus em Jesus Cristo. E uma participação na vida de Deus, e u ma experiência da vida divina em nós, que nos permite vermos a nós próprios e à realidade que nos rodeia, como c om os olhos do Senhor. Senhor. E a adesão à Pessoa Pessoa de Cristo, nosso nosso Mestre, nosso Senhor e Amigo que nos permite apoiarmo-nos nEle, Rochedo inabalável da nossa salvação, abandonandon os ao Seu Seu infi infini nito to pode poderr e ao Seu Seu inco income mens nsur uráv ável el am amor or.. Face à fraqueza humana, a fé torna-se constante recurso à inesgotável Misericórdia divina e leva a esperar tudo de Deus. (cf. G. THILS, Sainteté Chrétiene, 359)
C APÍTULO 1
CRER É PARTICIPAR NA VIDA DIVINA São Tomás de Aquino diz que a fé nos aproxima do conhecimento de Deus. Com efeito, ao participarmos na vida de Deus, começamos a ver e apreciar tudo, como se o fizéssemos com os Seus olhos — omnia quasi óculo Dei intuemur (in Boeth. de Trinitate q.3,a.l). Semelhante participação na vida divina, por meio da fé, transforma-nos em homens novos, permite-nos entender a realidade de uma maneira renovada, proporcionando-nos uma nova visão de Deus e da realidade terrena que nos rodeia ia.. Nesta realidade temporal começamos a tomar conhecimento da atuação da Causa Primeira: Deus. Descortinamos a Sua Presença e a Sua ação, tanto em nós, quanto no universo da natureza e na história. Damo-nos conta de que Ele é o Autor, o Criador Criador de tudo, e de que aquilo que conhecemos conhecemos apenas humanamente e de modo profano não é toda a realidade, mas apenas uma visão puramente exterior — a percepção das causas
segundas quais Deus Se serve.
das
A fé é uma virtude que torna possível o contato com Deus, constituindo, assim, o fundamento da vida sobrenatural; e, visto que se situa na base de toda a atividade sobrenatural, tudo se realiza por meio dela. A atividade da vida sobrenatural está, conseqüentemente, determinada pelos aspectos positivos e pelas deficiências da nossa fé. As dificuldades na vida sobrenatural derivam sempre de uma fraqueza da nossa fé. Mas esta é a virtude fundamental por nos oferecer a possibilidade de participarmos na vida divina: uma participação no pensamento de Deus, que é, por assim dizer, uma espécie de razão sobrenatural cons co nsent entida ida nas nas facu faculd ldad ades es natu natura rais is da al alma ma.. Assi Assim, m, a fé torna-nos capazes de pensarmos como Deus, tanto no que diz respeito à nossa pessoa como a tudo aquilo com que contatamos. Crer significa, portanto, sintonizar e identificar o nosso pensamento com o de Deus. A diferença entre o conhecimento natural e o conhecimento procedente da fé náo consiste numa mera diferença de grau desse conhecimento nto, mas sim de natureza. A fé le lev va à união com o pensamento de Deus, à participação interior nessa luz em que o próprio Deus conhece a Si mesmo. Nesse sentido, conduz à contemplação e é uma
introdução ao futuro conhecimento de Deus na eternidade. Uma vez que é pela fé que tem início a nossa vida em Deus e na vida de Jesus Cristo, por essa mesma fé Ele gera em nós a Sua própria vida. O objetivo final da nossa fé é o de conformarmos os nossos pensamentos com os de Jesus Cristo e de Lhe permitir, a Ele que pela fé habita em nós, servir-Se de nós, pensar em nós e em nós viver. Graças à fé pode se produzir uma total transformação da nossa maneira de ver, de pensar, de sentir e de viver o que quer que seja. A fé muda a nossa mentalidade, impele-nos a colocarmos Deus sempre em primeiro lugar, leva-nos a orientar para Ele toda a nossa vida e a interpretar o mundo à luz divina. A partir daí todos os nossos juízos, apreci apreciaçõ ações, es, desejo desejoss e expect expectat ativa ivass serão serão ilumin iluminado adoss por essa luz e desse modo se concretiza aquela comunhão de fé que só há de alcançar a sua plenitude no amor. O mundo criado à nossa volta é como que a expressão de uma voz que nos fala. Se a nossa fé é fraca, essa voz produz em nós a dispersão, afas afasta ta-n -nos os de Deus Deus e le leva va-n -nos os a ce cent ntra rarm rmoo-no noss em nós nós próprios. Mas, quan quando do a fé cres cresce ce,, dá-s dá-se e o proc proces esso so inve invers rso: o: o mund mundo o
exterior começa a falar-nos de Deus, a atrair-nos para Ele, torna-se sinal da Sua presença. Além disso, ajuda-nos a entrar em contato com Ele e transforma-se num lugar de encontro com Deus. É a fé que lhe torna capaz de ultrapassar as aparências, de distinguir a causa primeira das causas segundas e de ver que aquilo que se passa em seu redor, não é fruto do poder dos homens. A fé permite que você descubra os sinais de Deus na Criação, oferece a possibilidade de acolher os acontecimentos como expressão da vontade de Deus e de vê-los como uma passagem de Deus na sua vida.
O reconhecimento da Presença que nos ama Cada momento da nossa vida está impregnado da divina Presença, que nos ama e nos cumula dos Seus dons. Viver em fé significa saber reconhecer essa amorosa Presença sempre gratificante. Graças à fé, Cristo torna-Se, pouco a pouco, a Luz que inteiramente ilumina a vida do homem, que ilumina o mundo. Assim, Ele torna-se Presença viva e atuante na vida dos Seus discípulos e cada momento da vida é portador da Sua Presença. O tempo mesmo é a Presença
escrita com "P" maiúsculo; é a Presença de Cristo na nossa vida, é a Presença pessoal de Deus, que Se revela como Alguém que espera algo de nós. Deus Se manifesta a nós através da Sua vontade. Mas, que vontade? Sempre a do nosso bem, pois Deus é Amor. Cada instante da sua vida é um momento de encontro com esta Presença que lhe ama. Alguém disse que o tempo é como o sacramento do encontro do homem com Deus. Ora, assim compreendido, cada instante é um talento cristão já que há nele um chamamento dessa Presença. Deus dá a Sua graça em todos os momentos, sejam eles fáceis ou difíceis. São Paulo diz que nós vivemos em Deus, e n'Ele nos movemos e somos (At 17,28). E, portanto, d'Ele que recebemos, não só o dom da existência, mas também o da respiração, do alimento, da amizade — a graça de cada momento da vida. A observação de Santa Teresinha do Menino Jesus, ao afirmar que "tudo é graça", significa que tudo o que possa suceder na sua vida está ligado a uma determinada forma de graça. Deus vem ao seu encontro sob a forma de um dom, na Sua graça que você interpela e, neste sentido, "tudo é graça". Ele quer que tudo resulte para você num "capital" de
bem e até do próprio mal procura extrair algo de bom. Evidentemente que o mal não pode ser uma graça, mas na Sua onipotência e infinita misericórdia, Deus pode extrair o bem dele. As conseqüências do mal podem mesmo dar, como fruto, uma boa oportunidade de se alcançar a conversão. Então, desse modo, "tudo é graça" e tudo é um talento, porque o Senhor, sempre e em toda a parte, concede uma oportunidade a você. Como é importante que você acredite nessa Presença constante que Se manifesta dos mais diversos modos! O momento presente, qualquer que seja ele, é sempre portador do amor, como disse o Cardeal Stefan Wyszynski. A graça é uma expressão do amor, e, por isso, qualquer momento está ligado ao amor de Deus, porque está unido à Sua graça. O pecado em si nunca será uma graça, mas o momento em que foi cometido está cheio da graça de Deus. Mesmo quando se trata de um pecado grave, Cristo está junto de você e o ama. Se você lembrasse e acreditasse de verdade, que está constantemente imerso no amor misericordioso de Deus, que nunca o abandona, certamente não cairia mais. Tudo o que lhe sucede está ligado ao amor de Deus por você, e ao Seu desejo de cumulá-lo de todo o bem. Ele está bem presente na sua
vida, independentemente do que você faça. O tempo é o sacramento do seu encontro com Deus e com a Sua Misericórdia - com o Seu amor por você. E o Seu anseio é que tudo possa servir para o seu bem e que cada uma das suas faltas se converta numa "feliz culpa". Se, desta maneira, considerasse todos os momentos da sua vida, certamente nasceria em você uma prece espontânea que tenderia a tornar-se oração contínua, pois o Senhor está sempre ao seu lado e nunca deixa de amá-lo. Cada momento da sua vida está impregnado do amor dessa Presença que constantemente o envolve.
Os sinais de Deus no mundo A fé nos permite reconhecer em toda a parte os vestígios da ação divina, compreendendo que Deus está presente em nós, tanto na vida espiritual, como na mental e na física. Se você souber ver Deus em tudo o que o rodeia, a sua oração se converterá em uma prece de fé; não será apenas uma oração feita de palavras, mas também de atenção, de louvor pelo universo: uma oração de ação de graças por tudo aquilo com que Deus lhe cumula.
É pela virtude da fé que descobrimos serem apenas aparente, os protagonistas da História - conforme crêem os homens -, pois na realidade o protagonista é Deus. A presença de Deus na História diz respeito tanto aos acontecimentos políticos, às questões sociais e econômicas, como aos assuntos familiares e profissionais. Ele está presente em tudo e tudo d'Ele depende. Nas Suas mãos encontram-se, não só os destinos de cada um de nós, mas também os das nações e do mundo. Fazendonos conhecer tudo isso, a fé faz nascer em nós a paz interior, paz essa que provém da firme certeza de que Aquele que é Poder e Amor infinitos, Aquele que tudo mantém nas Suas misericordiosas mãos, tudo conduzirá até ao fim na Sua infinita sabedoria e no Seu infinito amor. A fé nos dá segurança, paz e convicção de que estamos constantemente envolvidos pelo amor de Deus. A fé constitui uma diferente visão do mundo, um outro modo de ver, principalmente, aquilo que é difícil. E é a fé que nos permite reconhecer Deus nos fenômenos da natureza, nos quais constantemente podemos descobrir sinais da Sua ação, do Seu cuidado conosco e com o mundo que nos rodeia. Um homem de grande fé, capaz de reconhecer em toda a parte a presença de Deus, foi São Francisco de Assis. Que extraordinária fé
irradia da sua atitude quando reza assim: "Louvado sejas, Senhor, pela nossa irmã lua e pelas nossas irmãs estrelas. Louvado sejas, Senhor, pelo nosso irmão vento e pelo nosso irmão ar". Alguma vez já aconteceu de, passando por um campo ou por uma floresta, sentindo-se tocado pelo vento, você reconhecer nele uma carícia de Deus? Se sim, há em você algo dessa fé de São Francisco de Assis que em tudo via a ação de Deus. "Louvado sejas, Senhor, pelo nosso irmão vento; louvado sejas, Tu, que estás nesse vento. Louvado sejas pelo ar refrescante que podemos respirar, pois Tu és o nosso alento e o nosso ar". Tudo vem do Senhor: o céu límpido, o céu nebuloso e o mau tempo também. Tudo pertence. Essa viva fé permite-nos descobrir as maravilhas divinas, seja no mundo que nos rodeia, seja na nossa vida cotidiana. Mesmo o mau tempo e a chuva são maravilhas que o Senhor realiza para nós. Na chuva que, sem dúvida, em mais de uma ocasião encharcou-lhe até os ossos, há também um dedo do Senhor e, se der conta disso, essa será a sua oração de fé. "Louvado seja, Senhor, pela nossa irmã água". Pode se experimentar a presença do Senhor sobretudo em dias de grande
calor, quando se mata a sede com água fresca. E verdade que esta é uma maneira de olhar o mundo com a qual não estamos habituados, contudo, nestas situações comuns do dia-a-dia, podemos sentir a ação de Deus que nos refresca e umidece os nossos lábios ardentes e ressequidos. Ele está presente nessa água e a consciência dessa Presença é já uma atitude de fé. Por isso São Francisco nos recorda que "a nossa irmã água" é símbolo da presença e da ação de Deus.
Os talentos Deus espera que nós procuremos ver todas as situações que vivemos e, em particular as difíceis, com os olhos da fé. Na parábola dos talentos, Jesus diz para que não nos fechemos ao conhecimento de Deus procedente da fé e adverte-nos contra a preguiça com que usamos todos os dons que Ele constantemente nos concede. Deixando a um dos seus servidores dez talentos, ao segundo cinco e ao terceiro um, o patrão confiou a eles responsabilidades e ainda lhes deu uma oportunidade para trabalhar. A palavra talento, que nos tempos de Cristo eqüivalia a um certo valor monetário, é utilizada hoje em dia como um certo "valor"
intelectual; diz-se, por exemplo, de alguém que é um músico de talento, ou um matemático talentoso, etc. O sentido da parábola dos talentos é, no entanto, muito mais profundo. O pensamento bíblico comporta, por assim dizer, uma virada de cento e oitenta graus no nosso pensamento vulgar, puramente humano. É o que acontece na parábola dos talentos. O talento é um dom, uma matéria-prima, mas ao mesmo tempo, uma oportunidade. Ao entregar-lhe um determinado talento. Cristo dá-lhe mostras de confiança, esperando que este venha render. Se Ele lhe deu determinadas capacidades, não é indiferente a Ele o uso que faço delas. Se, no entanto, não as recebesse, isso também seria um talento. Talento não é apenas algo que recebemos de Deus, mas também pode ser a carência de alguma coisa. A boa saúde, por exemplo, é um talento mas à luz da fé, a falta dela também o é. Em ambas as situações Jesus lhe faz a mesma pergunta: "Que faz com esse talento?". Com efeito, tanto podemos desperdiçar a saúde, como - e mais ainda a falta dela. Porém, tudo é dom, e todo talento também é dom. Deus está lhe concedendo dons constantemente. Se, por exemplo, você crê que não é capaz de rezar, isso também é um talento, ainda que julgue se tratar
de
uma infelicidade. O que conta é o modo como enfrenta as dificuldades que acompanham a sua oração. É bem possível que tenha enterrado esse talento dizendo consigo: "Pois bem, já que é assim, desisto de rezar mais". No entanto, bem que se poderia extrair disso o seguinte: a incapacidade de orar deveria aumentar em você a fome de Deus e, por conseguinte, constituir para você um meio de santificação. O mesmo pode suceder quando houver problemas em casa, quando existir qualquer conflito familiar: são tantos outros talentos, oportunidades que o Senhor lhe oferece. Que faz com eles? Se você desanima, se desencoraja e cruza os braços, significa que os enterra. O homem de fé não pode deixar de notar o sentido mais profundo das suas próprias provações e, de resto, a própria procura do profundo sentido dessas provas é por si mesma uma forma de render-se àquele talento. Se você já experimentou um sentimento de horror, por exemplo, ao temer o sofrimento ou a morte, tal situação também é uma oportunidade que lhe foi oferecida. Santa Teresinha do Menino Jesus uma verdadeira repulsa pelas aranhas. Ela narrou o quanto teve de se dominar uma vez para conseguir limpar as aranhas no vão da escada
(cf. "O Caderno Amarelo", da Madre Inês, 13. VIL 1897). E isso foi algo que a ajudou muito em seu caminho ao Senhor: talento confiado nas mãos dela que ela soube valorizar. Se determinadas situações lhe provocam uma certa tensão, isso quer dizer que nelas está escondido, como que encoberto pelas cinzas, um "diamante": o seu talento. O que você poderá fazer com ele? Como o utilizará? Na realidade, tudo deve servir para a sua santificação e, nesse sentido, tudo é graça. Mesmo o sofrimento que lhe esmaga, ou as várias circunstâncias adversas - eis todo um conjunto de talentos. No entanto, muitas vezes estamos como cegos, crianças pequenas a quem escapa a compreensão de inúmeras coisas. Somente um dia, quando viermos à presença de Deus, veremos e compreenderemos tudo. Conheceremos, então, todo esse oceano de dons em que estávamos imersos. Todos os talentos são preciosos, embora uns o sejam menos e outros mais. Se alguma coisa lhe saiu bem, se obteve bom resultado, sem dúvida você fez uso de um talento, todavia se apenas lhe surgem contrariedades, eis um talento ainda mais valioso. Os próprios insucessos constituem os tesouros mais inestimáveis que lhe são oferecidos na sua vida. Deus há de perguntarlhe um dia, como
o senhor da passagem bíblica, que ao regressar de uma viagem pediu contas aos seus servidores: "Como utilizaste aqueles insucessos da tua vida que te dei como oportunidades, como talentos? Tens sabido tirar proveito como talentos, dessas ocasiões, que são por vezes tantas?". A parábola dos talentos constitui um chamado bíblico à conversão. Você deve começar a olhar a sua vida de modo diferente, isto é, deve vê-la com os olhos da fé. Só então perceberá que Deus lhe cumula continuamente de dons; apenas nessa altura será capaz de compreender que toda a sua vida é um conjunto de oportunidades escondidas, em ordem a uma contínua transformação interior. Compreenderá, pois, que tudo é graça. Ao conceder-lhe graças difíceis, é como se Deus lhe forçasse a acolher o seu dom, mas você, pelo contrário, resiste não querendo aceitá-lo. No entanto, as graças difíceis são os mais preciosos talentos da sua vida, sendo por vezes abundantes já que é vontade de Deus que os faça render. Fé é participação na visão de Deus. Ora, Deus vê a sua vida de modo totalmente diferente. Se tiver fé, é como se Jesus tivesse facultado os Seus olhos, como se observasse cada dia de toda a sua vida com o Seu
olhar. Só assim você será capaz de perceber as ininterruptas oportunidades de conversão e de santificação; só então começará a compreender que o sofrimento, à luz da fé, é cruz, é algo que, se quiser aceitar, você se transformará interiormente. Quando nas suas difíceis provas reconhecer a cruz e, por isso mesmo, vir nelas uma oportunidade para a sua transformação, então essas provações hão de converterse realmente em dons para você. Se percebesse esses incontáveis talentos que Deus, sem cessar, lhe concede, você nunca ficaria triste. E, então, também talentos como, por exemplo, a falta de saúde, as situações de conflito e os insucessos, poderiam suscitar no seu coração a alegria de receber de Deus algo tão precioso. Ele manifesta, desse modo, uma extraordinária confiança em você. Confia, de fato, que não enterrará, nem rejeitará os Seus dons. Deus conta com a sua fé, pois somente à luz da fé será possível a você identificar os talentos que Ele lhe oferece. É um talento tudo aquilo que até agora aprendeu e fixou na mente, mas é também um talento a sua fraca memória e o fato de esquecer de tantas coisas. Tudo comporta uma graça e, nesse sentido, tudo é graça. Somente aquele que crê, sabe ser agradecido por tudo. Reconhecendo que todas as coisas são talentos que se deve pôr a render
para o bem, o seu rosto ficará irradiante de alegria. Esta reflexão sobre os talentos entrelaça-se diretamente com os ensinamentos de São Paulo e retoma a tese de Santo Agostinho, que disse: "Para os que amam Deus, tudo se converte em bem, mesmo o pecado." Assim sendo, até o pecado, ou seja, uma grande queda, se bem que seja uma ferida infligida a Jesus, pode também chegar a ser ocasião, onde se oculte igualmente algum talento donde seja possível tirar proveito. Bastará que creia e que progressivamente se converta àquela fé que permite a você ver com os olhos de Jesus. Ele, olhando para a sua vida, porventura cheia de insucessos, de preocupações, de conflitos, de planos falhados, de dificuldades quer na vida exterior quer na interior, jamais Se entristece. O Seu olhar é de alegria porque espera que tudo isso venha a produzir frutos, que você possa tirar proveito; e que fique cheio de alegria e de reconhecimento por tudo o que Ele lhe dá. "Hoje foram muitos os padecimentos," disse Madre Inês à Santa Teresinha do Menino Jesus quando esta já estava gravemente doente. "Sim", respondeu ela, "mas visto que os amo... Amo tudo o que o Bom Deus me dá." (cf. "O Caderno Amarelo" da Madre Inês, 14.VIII.897)
Do mesmo modo, toda a vida de Santa Bernadette é testemunho da sua gratidão a Deus por todos os dons recebidos. Marcelle Auclair tomou a liberdade de coligir os seus pensamentos numa espécie de "testamento": "Pela extrema pobreza em que viveram o paizinho e a mãezinha, pelo pão da amargura e da fadiga, pela ruína do moinho, pelas ovelhas sarnosas... Obrigada, meu Deus! Pela boca a mais para alimentar que eu já era, pelas crianças a que se acudiu e pelas ovelhas guardadas, obrigada! Dou-Te graças, meu Deus, pelo procurador, pelo comissário, pelos policiais e pelas duras palavras do padre Peyramale! Não saberei agradecer-te senão no Paraíso, Virgem Maria, pelos dias em que vieste e pelos outros em que não vieste! Pela bofetada da Sra. Pailhasson, pela troça e pelas ofensas, por aqueles que me tinham por louca ou mentirosa e pelos que me julgavam ambiciosa... Obrigada, minha Mãe! Pela ortografia que nunca cheguei a saber, pela má memória que sempre tive, pela minha ignorância e pela minha patetice,obrigada! Agradeço-te, porque se tivesse existido na terra uma rapariga mais ignorante e mais parva, Tu a terias escolhido... Pela minha mãe, que morreu longe de mim, pela dor que senti quando o meu pai, em vez de abraçar a sua pequena Bernadette, me chamou "Irmã Maria Bernarda", obrigada Jesus!
Agradeço-te por teres enchido de amargura este coração demasiado sensível! Pela Madre Josefina que disse que não sirvo para nada, obrigada! Pelo desprezo da Madre Mestra, pela sua dura voz, severidade e ironia e pelo pão da humilhação, obrigada! Graças por ter sido de tal maneira que a Madre Maria Teresa tenha podido dizer de mim: "Não há nenhuma como tu!".Obrigada por ter sido tão privilegiada na censura dos meus defeitos que as outras irmãs tenham podido dizer: "Que sorte eu não ser Bernadette!". Obrigada por ter sido Bernardette, aquela que ameaçavam de prisão, por ter te visto, Virgem Santíssima..., por ter sido essa Bernadette tão insignificante e vulgar que, ao me verem, as pessoas me diziam: "E ela é isto!", a Bernadette que as pessoas como a um animal raro! Por este pobre corpo de meter dó, por esta doença que queima como fogo, pela minha carne apodrecida, meus ossos cariados, suores e febre, pelas minhas caladas ou gritantes dores, obrigada, meu Deus! E, por esta alma que me deste, pelo deserto das securas interiores, pelas Tuas noites e pelos Teus fulgores, Teus silêncios e Teus raios, por tudo, por Ti ausente ou presente, obrigada, Jesus!" (cf. M. AUCLAIR, Bernadette, Ed. Bloud et Gay, 1957)
C APÍTULO 2
CRER É LIGARMONOS A CRISTO A fé, enquanto atitude de quem crê, não é apenas uma participação na vida divina, mas também uma ligação existencial à Pessoa de Cristo, único Senhor e único amor. O que requer, por parte do homem, uma decisão de escolha consciente e a orientação da sua vontade para Cristo, como fim último e valor supremo. A adesão a Cristo é a nossa resposta ao Seu olhar cheio de amor e ao Seu chamamento. Trata-se de uma resposta que leva sempre consigo a marca da aventura, e também a do risco. Jesus quer que você se ligue a Ele sem pôr questões acerca dos pormenores e das conseqüências da sua decisão, sem perguntas sobre o futuro. Ele quer que você, como Maria,
responda "sim", manifestando-Lhe, desse modo, um total abandono. O essencial do abandono de si próprio e da adesão a Jesus Cristo, reside justamente nesse nada saber, que é treva e que, por isso mesmo, tem necessidade da luz da fé. A adesão a Cristo constitui as primícias do amor que há de encontrar a sua realização na união da nossa vontade à Sua vontade. Desse modo se inicia a comunhão pessoal com Deus. A nossa adesão a Cristo só será possível quando se der uma ruptura com tudo aquilo que exerce domínio sobre nós. Também os Apóstolos, para seguirem Cristo, tiveram de abandonar tudo. Escolher Cristo como supremo critério pressupõe também consentirmos que seja Ele próprio a nos moldar.
"Ninguém pode servir a dois senhores" A fé, que é íntima ligação a Jesus Cristo - exclusivo Mestre, único Amor - exige que nos voltemos para Ele como o valor supremo. A adesão total a Cristo exige liberdade de coração, o que
significa rejeitar a servidão de mamón (da riqueza que nos escraviza). Diz o Evangelho: "Ninguém pode servir a dois senhores, porque, ou há de odiar um e amar o outro ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas" (Mt 6,24). Existem dois senhores: Deus e as riquezas, e não há um terceiro. Isto o diz Jesus Cristo, suprema autoridade. A relação entre Um e outro senhor é de radical oposição. O Evangelho indica claramente: "Ou odiará um, ou amará o outro". Quando se ama um senhor se tem ódio ao outro: "Dedicar-se-á a um e menosprezará o outro". Se você é fiel a um, acaba então por desprezar o outro. É uma afirmação categórica! Não podemos, portanto, nos ligar a Cristo e continuar a servir a mamón (as riquezas), sempre expostos à tentação de consentirmos numa certa transigência e de conciliarmos, assim, o que não é conciliável. "Ninguém pode servir a dois senhores". Quem são esses "senhores" (no texto grego: kyrios)? Um deles é Cristo, o nosso único e verdadeiro Mestre - Kyrios. O outro é mamón, "as riquezas", um falso kyrios, um falso mestre. Servir mamón, ou às "riquezas", eqüivale a nos deixarmos prender pela dependência e servidão de qualquer bem ma-
terial ou espiritual. Reparemos que mamón, "as riquezas", é chamado "senhor" ao qual podemos servir tal como servimos a um rei. Ou servimos e amamos verdadeiramente a Deus e, por conseguinte, odiámos mamón, "as riquezas", o nosso apego aos bens materiais ou espirituais, ou então — o que é mais difícil de declarar - amamos de fato o nosso apego a esses bens e por isso odiámos a Deus. Não podemos conciliar essas duas realidades: servir a ambas ao mesmo tempo. Evidentemente que o nosso serviço pode não ser o tempo todo. Podemos estar ao serviço de Cristo até certo ponto, somente em parte. Mas o serviço a um exclui o serviço ao outro: são incompatíveis. Se você ama os seus apegos e serve a eles, nessa mesma medida você odeia a Deus. Isto é terrível, mas é impossível explicar o que nos diz Cristo de outro modo: trata-se de uma verdade bíblica. Se serve os seus próprios apegos, quer dizer, mamón, "as riquezas", num grau de oitenta por cento, isso significa que em oitenta por cento você odeia a Deus. Será possível falar-se no aprofundamento da sua ligação a Cristo, da sua adesão a Ele, numa tal situação? Acaso você pode, então, se surpreender por estar distraído durante a Santa Missa? Por certo procura
lutar decididamente contra essas distrações, mas a causa deve ser procurada bem mais fundo: reside nos seus apegos, em mamou ou nos bens materiais. Eis porque a luta contra as distrações deve ser conduzida em dois níveis. A um nível imediato e direto, quando por exemplo você procura se concentrar no momento da Consagração. Mas trata-se apenas de um combate aos sintomas. A 'úlcera' está muito mais profunda, no próprio mamón, nas próprias "riquezas". Eis a causa mais profunda, a raiz última do mal e a fonte das suas distrações. São elas que dispersam você durante a Santa Missa, desviam você daquilo que sucede no altar durante a Consagração. As "riquezas" são o seu principal inimigo. A análise da sua oração poderá ajudá-lo a identificar que gênero de caras de mamón se apresentam na sua vida. Se você tomar consciência daquilo em que, com maior freqüência, pensa durante a oração, saberá então qual é o seu tesouro, "Porque onde está o teu tesouro y lá também está teu coração" {Mt 6,21). As suas distrações indicam o quanto de mamón e de apegos há dentro de você. Se são muitos,
então não é de estranhar que seja difícil para você se concentrar durante a oração do Rosário, ou durante a Adoração, ou durante a Santa Missa. A palavra "mestre" - na língua original, em grego, kyrios designa o soberano e senhor absoluto. A palavra douleuein — servir ao contrário, significa sujeição do escravo ao seu senhor absoluto, e uma total dependência dele. O Evangelho diz que, quer o admitamos, quer não, somos absoluta propriedade do Senhor. Somos e ficaremos sendo propriedade do Senhor Jesus. A palavra "riquezas", em hebraico "mamón” significava, na sua origem, um tesouro, dinheiro ou objetos valiosos, colocados em depósito. Não tinha então o sentido pejorativo que mais tarde adquiriu. Produziu-se, sem dúvida, com o decorrer do tempo, uma notável evolução no significado desse termo. Começaram a considerar-se que, se houvessem depositado objetos preciosos, ou seja, um tesouro, nas mãos de um banqueiro ou de uma pessoa de confiança, podiase efetivamente esperar e contar com esse tesouro. Foi a primeira etapa daquela evolução: mamón, as "riquezas" tornaram-se, em breve, um bem material
digno de confiança. A palavra mamón (riqueza) começou como que a ter maiúscula e a indicar esse falso soberano e senhor. Produziu-se, então, uma estranha alienação: o homem passa a ser possuído pela coisa Tudo aquilo em que o homem depositava a sua esperança passava a ser um deus para ele. E você? Em que coisa, ou em quem, você põe a sua esperança? Em quê confia? Quem é o seu Deus? Se firmou a sua esperança num falso deus, você experimentará a amargura da desilusão porque se trata de um senhor que, mais cedo ou mais tarde, lhe enganará. E isso será uma grande graça para você: algo começará a abalar os alicerces da sua confiança em mamón, nas "riquezas". Quais serão essas "riquezas" que prendem o seu coração? Podem, pois, ser tanto bens materiais como espirituais. Pode, por exemplo, ser a paixão pelo dinheiro, o excessivo apego aos filhos, ao trabalho, a tudo aquilo que você faz, o apego à sua tranqüilidade e mesmo à sua própria perfeição. Todas essas ligações provocam a escravização, o tornam servo. Na verdade, o homem apenas se deve apegar
a uma e única realidade: à vontade de Deus. Tudo o que exerce domínio sobre você, fecha-o a Deus e enfraquece a sua fé.
Como fazer para reconhecer o seu próprio mamón, as suas próprias "riquezas"? A tensão, o stress, a ansiedade, a agitação, a tristeza que acompanham a sua vida, são indicativos de que, de uma forma ou de outra, está servindo mamón - "riquezas" escondidas sob uma determinada capa. Há, por exemplo, pessoas que vivem num estado de permanente tensão, sinal de que há algo a que têm um enorme apego. Pelo contrário, as pessoas livres de todo o apego encontram-se cheias da paz de Deus. Essa paz divina constrói e fortalece a saúde mental, que, por sua vez, influencia o estado físico. Assim, tanto o espírito, como a mente e o corpo, participam nessa grande liberdade da pessoa. Não se conhece o rosto franzido ou tenso do homem totalmente livre de apegos, pois o stress e as doenças da civilização são algo que desconhece. Mamón, "as riquezas", destroem sistematicamente o homem, Não só bloqueiam a sua caminhada para Cristo
como impedem a sua adesão a Ele, contribuindo ainda para arruinar a sua saúde física e psíquica. Um outro claro sintoma dos seus apegos é a tristeza que você experimenta nas situações em que Deus o priva de alguma coisa. Ora, Ele estará tirando de você tudo o que o escraviza, isto é, aquilo que constitui a sua maior inimizade, aquilo que faz com que o seu coração não esteja disponível para acolher o Senhor. Somente a partir do momento em que começa a aceitar esse tipo de situações e a aceitá-las com serenidade e de bom humor é que você será cada vez mais livre. Na oração, você se coloca diante do Senhor, mostraLhe as mãos, não só vazias, mas também sujas, manchadas pelo apego de mamón, das "riquezas", e suplica-Lhe que tenha compaixão de você. A oração só pode expandir-se num clima de liberdade. E, na qualidade de discípulo de Cristo você é chamado à oração contemplativa. Todavia, para que sua prece possa algum dia tornar-se contemplação — um amoroso olhar lançado a Jesus Cristo, seu Bem-amado — é indispensável a liberdade do coração. É por esta razão que Cristo tanto luta pela libertação do
a
seu coração. E Ele o faz por meio de vários acontecimentos, através de dificuldades e tempestades, permitindo que você passe por situações difíceis e através delas permite colaborar intensamente com a graça. Em todas essas situações Cristo espera que você se esforce por purificar o coração manchado pelos apegos e pela submissão prestada a mamón, às "riquezas". Conseqüentemente todos os momentos difíceis, todas as tempestades, são para você uma graça, uma passagem do Senhor Misericordioso que o ama a ponto de desejar oferecer por você esse dom magnífico: a plena liberdade de coração. O seu coração não pode estar dividido, deve ser só para Ele. Crer é ver e compreender o sentido da vida segundo a perspectiva do Evangelho: o que mais importa é Deus. A sua vida deve estar orientada, antes de tudo, para Ele, para a procura e para a edificação do Seu Reino, acreditando que tudo o mais lhe será dado por acréscimo (cf. Mt 6,33). Deus deseja inundar cada homem com o Seu amor. No entanto, Ele apenas pode fazê-lo na medida da sua capacidade, e na medida em que consinta romper com os seus apegos,
para dar-Lhe lugar. E a fé que em nós produz esse esvaziamento onde Deus pode vir habitar.
A vontade de Deus e a nossa Fator decisivo para que um dia venha a ser possível o aprofundamento da nossa fé, até à plena união com Cristo é o nosso desejo de cumprirmos em tudo a Sua vontade e o conseqüente consentimento de que seja crucificada a vontade própria. Vivermos unidos a Cristo eqüivale a submetermos a nossa vontade à d'Ele. A vida interior desenrola-se numa contínua tensão entre a vontade de Deus e a vontade do homem. Esta tensão advém do fato de girarmos sempre em torno da nossa própria vontade, na procura de tudo o que nos é mais cômodo, ainda que saibamos que, indo no encalço dos nossos planos e desejos, perseguindo os objetivos que queremos atingir, isso não coincida com a vontade de Deus a nosso respeito. O homem resiste ao aniquilamento dos desejos próprios. Resiste, quer tendo disso plena consciência, ao recusar submeter-se à vontade de Deus, quer de forma
inconsciente, que se traduz muitas vezes num mecanismo defensivo de racionalização. Esse dispositivo permite evidenciar até que ponto nos procuramos a nós mesmos nos nossos desejos e nas nossas atividades. Em que consiste tal mecanismo defensivo de racionalização? Inconscientemente justificamos a nossa atividade como sendo baseada em motivações que aceitamos, enquanto, ao mesmo tempo rejeitamos as verdadeiras causas. Por outras palavras, poderíamos dizer que, para realizar os nossos projetos e alcançar o fim em vista, inventamos uma teoria de autojustificação que nos deixa tranqüilos. Um clássico exemplo que ilustra esse sistema de autodefesa é o da situação em que uma mãe procura defender o seu filho diante da sua nora. Quando se desencadeia o mecanismo defensivo da racionalização a mãe está absolutamente convencida de que o único motivo da sua ação é o amor. Julga que tem o direito de agir, pois, sentindo-se mãe, só deseja o bem do filho. O amor possessivo que geralmente se manifesta nesses casos permanece encoberto por esse mecanismo defensivo inconsciente e pela teoria subjetiva arquitetada para justificar o compor-tamento conseqüente. Por isso será
quase impossível convencer uma mãe que se comporta de tal maneira de que, na pessoa do seu filho, quem ela ama é, na realidade, a sua própria pessoa, pondo em perigo a família. Deveria, em vez disso, afastar-se e permanecer na sombra, deixando o esposo tranqüilo, devendo mesmo tomar mais o partido da sua nora que o do seu filho. Porque se trata, antes de mais, de um dispositivo inconsciente é que o mecanismo defensivo de racionalização é uma "muralha" tão forte e inexpugnável. Quantas vezes construímos uma teoria com o único fim de justificar algum comportamento despropositado? Dizemos, por exemplo: "Preciso de descansar, não posso ocupar-me disso"; "Tenho esse direito, prejudicaram-me, é preciso que me defenda, etc." Você pode se entregar apaixonadamente a um suposto amor, ao apostolado, a determinados interesses nobres e, no entanto, haver um egoísmo latente e inconsciente na raiz de tudo isso. É o egoísmo que faz com que a nossa vida interior decorra numa contínua tensão entre a nossa vontade e a vontade de Deus. Se a vida de fé significa a aceitação de Cristo e acolhimento da Sua
vontade importa, nesse contexto, entender bem que a procura da vontade própria é aqui o pior que pode acontecer. E ela, de fato, a fonte do mal e do pecado, causa da nossa desgraça e das nossas servidões. A união a Cristo e à Sua vontade implica que, no caso da vontade d'Ele não coincidir com a nossa, consintamos que Ele deite por terra os nossos planos, que Ele os contrarie. A vida dos santos mostra-nos freqüentemente acontecimentos reveladores de como Deus contrariou os planos humanos, a fim de que a vontade deles pudesse unir-se à Sua. Uma vez, Santa Teresa d'Ávila deslocou-se a Sevilha com a finalidade de fundar naquele lugar um novo convento. Corriam os tempos difíceis da reforma da Ordem Carmelita. Teresa fundava um diferente ramo, reformado, do Carmelo. A fundação de uma nova casa em outra localidade exigia que Santa Teresa, como superiora, estivesse presente com um grupo de irmãs. As irmãs viajavam habitualmente em carruagens com as cortinas cerradas, pois as carmelitas reformadas, ditas "descalças", sendo uma ordem de clausura, não poderiam aparecer em
público. Escondidas numa carruagem resguardada, sentiam-se em segurança e esperançadas de chegar ao seu objetivo sem que ninguém as visse, pois não queriam fazer sensação, nem ser alvo de espetáculo. Era dia de Pentecostes. As irmãs tinham partido de manhãzinha, bem cedo. Teresa decidira que, durante a viagem, fariam uma parada em uma Igreja, situada na periferia de Córdova. Ali, o Pe. Julian de Ávila deveria celebrar para elas a Santa Missa, com o objetivo de não serem notadas e de, em seguida, retomarem viagem. Todavia mente verificaram que, para chegarem à Igreja escolhida, era necessário atravessar uma ponte. Sucedeu, no entanto, que àquela hora matutina, a ponte estava fechada, tendo os guardas de vigia informado que precisavam pedir a chave ao alcaide. Mas este último, àquela hora, dormia e não toleraria que o acordassem por semelhantes motivos. Foi, entãoj necessário esperar. Entretanto, o Sol levantara-se já e começa a fazer muito calor. Em volta da carruagem, agrupou-se um grupo de curiosos. Alguns, mais curiosos ainda, tentaram olhar o interior. Finalmente, após duas horas de espera, trouxeram a
chave e abriu-se porta. Colocaram a carruagem em marcha, aconteceu que, por demasiadamente larga, não cabia na ponte.
a mas ser
As horas passavam e Teresa, que desejara chegar cedo à Missa no dia de Pentecostes e tanto procurara que as irmãs pudessem chegar sem serem vistas, foi ficando aflita. Quando por fim as partes salientes da carruagem foram serradas e as irmãs chegaram à Igreja, deu-se, de novo, algo de inesperado. Verificou-se, com efeito, que nesta Igreja, a solenidade do Pentecostes era uma festa de padroeiro e, como é usual em tais dias, havia na Igreja e no átrio uma enorme multidão. Era demais! Santa Teresa refere no seu relato, que estava mesmo disposta a não ir à Missa e o mesmo tencionavam fazer as outras irmãs. Só mais tarde, Teresa confessaria que isso teria sido uma falta grave. Felizmente, o Pe. Julian ordenou às irmãs que, apesar da multidão, participassem na Missa. Abandonam, então, o seu refúgio onde se sentiam em segurança, para empreenderem a travessia da Igreja repleta de gente.
Santa Teresa, que habitualmente tinha um estilo pitoresco, diria mais tarde que, sobre as religiosas cobertas com os seus véus e hábitos de lã grosseira, as pessoas reagiram como nas touradas, quando o público vê entrar o touro na arena. Teresa confessará, ainda, que foi um dos seus maiores dissabores. Aquela contrariedade, uma das mais penosas da sua vida, foi-lhe enviada pelo Espírito Santo, na solenidade da Sua Vinda! Mas ainda não ficariam por aí as dificuldades. Após a Santa Missa, as irmãs tiveram de novo que atravessar a Igreja, pelo meio das pessoas alvoroçadas que as acotovelavam e empurravam. Ao chegarem à saída, depararam com um calor de tal modo insuportável que não foi possível continuar a viagem. Os cavalos recusavam-se a puxar a carruagem e, por outro lado, dentro dela estava um calor de tal modo sufocante, que as religiosas passaram o resto do dia à sombra, debaixo da ponte {Fundações, Cap. XXIV). Os seus planos tinham sido reduzidos a zero. O Espírito Santo pode descer sobre o homem com uma graça que deite mesmo por terra os seus projetos. São as Suas grandes graças de despojamento. O grande amor que Ele tinha por Teresa
manifestarase no dia de Pentecostes no modo como a tratou. Ela que planejara tudo tão bem e com tanta perfeição, mas que Ele contrariou em tudo, pois aqueles planos não estavam conforme à vontade do Senhor. Contudo, neste episódio, o importante é que algo perfeitamente linear se produziu: o Espírito Santo "desceu" sobre Teresa e as demais irmãs, porque aceitaram a Sua ação; e tendo-se submetido à vontade de Deus, uniram-se mais profundamente a Cristo. O Espírito Santo, o grande Construtor da nossa fé, despojou-as muito, tornando-as mais pobres espiritualmente, mais disponíveis, pois, para acolherem o poder d'Aquele que, na liturgia da Igreja, é chamado o "Pai dos pobres".
Os demolidores da Igreja O que mais impede a nossa total entrega a Cristo é a procura de nós mesmos, a procura da nossa vontade. Buscando-nos a nós próprios, arruinamos a nossa fé, arriscando-nos mesmo a perdê-la totalmente.
Comodiano - um asceta cristão que viveu em Cartago em meados do século III — deixou dois textos que tratam esta questão, "Instructiones" e "Carmen Apologeticum" sobre os quais vale a pena refletir. Naquele tempo Cartago era, depois de Alexandria, a maior e mais esplendorosa cidade do norte de África. Os documentos de Comodiano abrangem um período de vários anos depois do término das perseguições de Décio, por volta do ano 251, período no qual os cristãos puderam sair dos seus esconderijos e, sem receio, aparecer novamente à luz do dia. A perseguição de Décio, a sétima na história da Igreja, distinguira-se das outras no seguinte: ele não se contentava em condenar à morte mas, com mais freqüência, mandava infligir torturas, querendo assim intimidar os cristãos. Durou dois anos a perseguição de Décio, de 249a 251 [d.CJ, e estendeu-se a todo o Império Romano. Cartago, tal como outras cidades onde viviam cristãos, sofreu grandes devastações. Quando finalmente, depois desses dois anos, a Igreja recuperou a liberdade, os cristãos voltaram a reunir-se como antes para celebrar a liturgia em comum. Os escritos de Comodiano dão-nos a
imagem do que foi a comunidade cristã de Cartago na seqüência das perseguições de Décio. Eram três as categorias de pessoas que a integravam e nela se destacavam: A primeira era constítuida pelos simples fiéis — fideles que nos tempos de perseguição tinham conseguido escapar de Cartago refugiando-se em lugar seguro. A segunda categoria pertenciam os lapsi, ou homens decaídos - os renegados que eram numerosos: eram os que não tinham conseguido resistir às terríveis torturas. Comodiano escreve que ele próprio era um desses renegados e que, como catecúmeno, fazia penitência e sentia grande compaixão pelos outros lapsi, os decaídos, renegados que também se tinham penitenciado. Finalmente, a terceira categoria, a dos mártires martyres — aqueles que haviam sobrevivido aos tormentos, pois Décio preferira freqüentemente não os executar, mas, em vez disso, torturá-los. Podemos tentar reconstituir a situação na comunidade de Cartago imaginando como decorriam, nesse tempo, os encontros dos cristãos e facilmente reparar nos mais ilustres, os mártires, que decerto trariam
nos seus corpos as marcas das torturas suportadas. Que comovente não seria a imagem oferecida por todos aqueles que, tendo estado dispostos a dar as suas vidas por Cristo, haviam, contudo, sobrevivido. Comodiano continua escrevendo que tais mártires, visivelmente marcados pelos sofrimentos suportados por Cristo, considerados portanto, os melhores fiéis, achavam que, devido ao martírio suportado, possuiriam direitos especiais; que as suas opiniões iriam ter particular peso, uma vez que haviam oferecido a vida por Cristo. Pensavam que podiam se considerar melhores do que os fiéis - aqueles que tinham fugido pois, eles não o tinham feito. Podiam, também, facilmente sentir-se superiores aos renegados - os lapsi que haviam sucumbido enquanto que eles, os "martyres" (testemunhas), tinham perseverado. Foi nessa situação, como sabemos através de dados históricos, que alguns anos mais tarde se produziu na comunidade de Cartago, o cisma de Felicissimus e de Novatus. Na origem das tensões então surgidas na comunidade de Cartago radicava-se a atitude dos mártires, que reivindicavam os seus direitos. E, foram justamente eles, os melhores, que semearam a confu-
são podendo até afirmar-se, sem nenhuma dúvida, que a Igreja cartaginesa foi destruída justamente pelos mártires, por aqueles que se haviam disposto a dar a vida por Cristo. Os melhores, ou pelo menos, aqueles que se julgavam tal, mas que também eram detentores dos seus planos próprios e da sua vontade própria, esses destruíam a Igreja de Cristo. E verdadeiramente impressionante! Não foram nem os renegados nem os fracos, que haviam traído a Cristo, que destruíam e demoliam a Igreja, mas sim os mártires. A situação tornou-se de tal forma dramática, que depois do primeiro cisma de dimensão relativamente pequena, aquela Igreja viu-se ameaçada por um segundo cisma muito mais grave. E, então, para que se pusesse fim ao dilaceramento existente no seio daquela Igreja provocado pelos mártires, deu-se um novo período de perseguições, o oitavo, sob o Império de Valeriano (no qual ocorreu a morte do bispo de Cartago, São Cipriano). Aqueles mártires constituem para nós uma séria advertência. Nem mesmo a sua disposição interior de dar a vida por Cristo é
prova da sua total adesão a Ele. A humildade e o desejo deles de fazer, não a sua vontade, mas acima de tudo a de Cristo, é que vão comprovar a autenticidade dessa adesão. Será que nos podemos admirar, à luz dos documentos que acima analisamos, de que Deus contrarie por vezes a nossa vontade, se sabemos que a procura dos meios para a realizar é fonte de grandes males e da nossa infelicidade? A fé é adesão a Cristo, e como tal, princípio do amor. Ora, pelo seu querer, você apenas pode aderir a Cristo na medida em que vá deixando despojar da sua vontade própria. Assim Deus, porque nos ama, deve contrariar os nossos planos, deve varrer a nossa visão das coisas como quem sopra um castelo de cartas, pois não passam de planos ou pontos de vista meramente humanos. Enfim, aquilo que irá nos mostrar, será algo bem diferente do que imaginamos, conforme o princípio segundo o qual cada um acaba por se tornar um santo bem diferente daquele que teria desejado ser.
C APÍTULO 3
CRER É APOIARMONOS EM CRISTO E A ELE NOS ABANDONARMOS TOTALMENTE A fé é participação na vida divina, adesão a Deus como único Senhor, o apoiar-se total e exclusivamente n'Ele. Baseando-nos em Cristo, e abandonando-nos totalmente a Ele, exprimimosLhe a nossa absoluta confiança. O homem orienta-se naturalmente para a procura da sua própria segurança, para a busca de apoio, o que significa que,
por natureza, é levado a confiar. E tal a sua estrutura que o leva a querer ter um sistema que lhe garanta a segurança, desejando qualquer coisa, ou alguém, com que possa contar e em quem confie. O sentimento de segurança é a mais elementar e fundamental necessidade do psiquismo humano. A sua ausência na seqüência de uma situação de risco, o desaparecimento do apoio que nos descansava, suscitam, então, a angústia. E essa angústia que se apodera de nós, que nos leva a procurar intensamente a segurança. Apoiar-se em algo ou em alguém e ter a sensação de segurança, pode ser entendido objetivamente do seguinte modo: contamos com o que possuímos, por exemplo, dinheiro, capacidades e aptidões. É também possível querer reforçar a própria segurança em sentido pessoal, quando contamos com certos conhecimentos e relações humanas que podem vir a servir à realização dos nossos projetos. O sentimento de segurança baseado nos bens materiais, prendese geralmente com a nossa orientação para o futuro. A pessoa que for de forte ressonância psíquica procura até prever o que vai acontecer no futuro,
esforçando-se mesmo por desvendá-lo nos mínimos detalhes e por não ser apanhada desprevenida. Quer, desse modo, exercer domínio sobre o porvir, alimentando assim aquela procura de apoio e de segurança. Na nossa vida, a necessidade de nos sentirmos em segurança está constantemente presente. O estudante que se prepara para passar no exame baseia a sua segurança na memória que possui, nos conhecimentos que apreendeu, ou nas suas capacidades. Pode também contar com o fator sorte, mas procurará sempre apoiar-se em alguma coisa, seja ela de tipo material ou pessoal. No entanto, todos os sistemas de segurança humanos são sempre deficientes. Não podem ser perfeitos, porque se baseiam unicamente nos nossos projetos ou cálculos. E, então, inevitável que falharão, estando assim na origem das crises. Se você confia nas próprias forças, conta com as suas capacidades, com aquilo que possui ou com as relações que mantém com as pessoas a quem está ligado, é bem certo que, mais tarde ou mais cedo, ficará desiludido.
Para que a nossa fé seja, de fato, um total apoio e abandono a Cristo, devemos reconhecer que só Ele constitui a nossa verdadeira segurança. A confiança total em Cristo, nascida da nossa fé na Sua palavra, é a única resposta adequada ao Seu insondável amor por nós.
Deus - único apoio A fé consiste em nos firmarmos unicamente em Deus. Não podemos nos apoiar em nenhum dos Seus dons, mas apenas e exclusivamente nEle, no Seu poder infinito e no Seu infinito amor. É comovente a cena passada no átrio do templo, na qual Deus observava os fiéis que colocavam os seus donativos na caixa das esmolas. Ouvia-se o tilintar das moedas que caíam, na caixa uma após outra e Deus, - Jesus Cristo - ali sentado a um lado com os Apóstolos, observando aqueles que faziam ofertas. Ao ver uma viúva depositar duas pequenas moedas, uns magros tostões, o Senhor fez-lhes notar: "Esta pobre viúva, (...) doou mais do que todos os outros, pois (...), da sua pobreza, ofereceu tudo quanto possuía, todo o seu sustento" {Mc 12,43-44). Podemos admirar o gesto dela - doou tudo - enquanto que os ricos se limitavam a dar uma pequena parcela do supérfluo. No entanto, ver
este gesto isoladamente é demasiado pouco. Há que sublinhar que ela, ao dar tudo o que tinha, assinou a sua condenação à morte', pois ficara sem dinheiro, sem mais nada para sobreviver. Ela acabava de romper com o seu esquema material de segurança, provocando desse modo o assombro do próprio Deus, que de forma solene proclama estas palavras: "Em verdade vos digo ela deu daquilo que lhe fazia falta, tudo o que possuía, tudo o que tinha para viver." Inconcebível fé, a daquela mulher! À pessoa desprovida de tudo, sem sistemas de segurança, restam apenas duas coisas: o desespero ou o total abandono a Deus proveniente da fé. Naquela mulher existia, certamente, uma fé a toda a prova, porque deu tudo e o fez livremente. Para ela, Deus era tudo, o seu único apoio. Deus pode nos despojar dos nossos esquemas de segurança, mas também podemos ser nós próprios a darmos esse passo. Depuramo-nos, assim, de forma ativa daquilo que constitui para nós uma servidão. Foi esse o caso daquela viúva do Evangelho, porque ela mesma se despojou de tudo. Podemos falar de um abandono análogo no caso da viúva de Sarepta que encontrou Elias. A viúva tinha um
filho pequeno e naquelas terras a fome se alastrava. Todas as suas reservas de alimentos eram apenas dois punhados de farinha ressequida e um pouco de azeite. E foi em semelhante situação que Elias lhe disse: a Traze-rne, por favor, um pedaço de pão" {lRs 17,11). De nada serviram as explicações da viúva, de que aquele era o último alimento que lhe restava. Elias repetiu o seu pedido: "Traz-mo". Respondeu-lhe a mulher: "Sim, farei o que pedes e, em seguida, eu e o meu filhinho morreremos". Tratava-se efetivamente da aceitação da morte, porque depois já nada mais lhe restaria, não havia nada com que pudesse contar, nem sequer com aquele punhado de comida. Ficou, então, sem nada. Que Deus faz com tais pessoas? Diz a Bíblia que pouco depois, a quantidade da farinha começou a aumentar e que, apesar de continuarem a consumi-la, ela era cada vez mais abundante, tendo acontecido o mesmo com o azeite. A viúva e o seu filho não morreram. Deus não pode abandonar aquele que, tendo-se entregue a Ele inteiramente, se purifica por sua livre iniciativa, das riquezas, rompendo com o sistema de segurança que destrói a sua fé. Deus olha com
admiração, o milagre da fé humana e sobretudo dessa ousada fede criança que se expressa na renúncia integral a tudo. O homem que possui tal fé é capaz de dizer: "Meu Deus, se o desejas, estou mesmo disposto a morrer, porque creio que Tu me amas". E esta fé, assim tão profunda, que gera santos. Quando a Madre Teresa de Calcutá deixou o convento das irmãs do Loreto para se dedicar aos moribundos, perto do templo de Kali, na citada cidade da índia, tinha consigo uns escassos haveres pessoais e algum dinheiro. Mas, num breve trecho, tudo distribuiu aos moribundos. E depois disso? Ao cair da noite, uma só coisa lhe resta dizer: "Meu Deus, se quiseres, estou disposta a morrer". Na índia, em Calcutá, decerto que ninguém a ajudara, porque vulgarmente se olha com indiferença aos moribundos. No contexto da religião hindu e segundo a lei de karma, esse estado de coisas é considerado quase normal. Um seguidor do hinduísmo dirá que, se você morrer de fome, isso significa que o mereceu; que, se morrer à fome, em contrapartida, renascerá com uma existência melhor depois da morte.
Madre Teresa de Calcutá se deu conta de que não encontraria ninguém que desejasse ajudá-la mas, ao mesmo tempo, teve fé que Deus está sempre consigo, e a partir de então apenas n Ele se apoiará. A escola de fé e de santidade para a Madre Teresa de Calcutá foram aqueles dias e noites em que, depois de ter distribuído tudo, se deitava morta de cansaço, com a certeza de nada ter para o dia seguinte, nem para si, nem para algumas futuras postulantes, nem para a multidão de moribundos que urgia socorrer. Nada restava. E, em tal situação, numa total ausência de segurança no plano humano, nasceu a Madre Teresa de Calcutá, aquela por quem hoje o mundo tem tanta veneração e respeito. Uma mulher de fé, de um crer até à loucura, alguém que passou pela dificílima escola de aquisição da fé nas situações em que, humanamente falando, há total carência de apoios. Quando se desmorona todo o nosso sistema de segurança, restam somente o desespero ou a fé; ou um terrível desespero ou uma heróica fé. Se não há em você a loucura da fé e se não confia até ao extremo no amor louco de Deus, o seu avanço pelo caminho da fé
continuará a fazer-se a passo de tartaruga, ou andará mesmo para trás. Ao construir os seus sistemas humanos de segurança você impede o crescimento da sua fé. Esta só será aprofundada a partir do momento em que aceite que seja Deus o seu único fundamento e a sua única segurança. Com efeito, Ele tem, o direito de reclamar que Lhe entregue tudo; tudo, no sentido do total abandono. À luz da fé é bom que, de vez em quando, você sinta o chão fugir dos seus pés, pois a tal situação está vinculada uma graça. Na verdade, você não pode se apoiar em mais nada senão em Deus. Você não pode apoiar nem nos Seus dons, nem mesmo em qualquer um dos sinais da Sua presença. No Antigo Testamento, na época dos Juizes^ nos são descritos os tempos das lutas entre os filisteus e os israelitas e como, depois de uma grande derrota, a Arca da Aliança cai em mãos inimigas. Através do Primeiro Livro de Samuel, sabemos que os filisteus se mobilizaram para lutar contra Israel e se travou uma luta em que os filisteus venceram
os israelitas, tendo infligido a morte a quatro mil dos seus homens. "Quando o exército israelita voltou para o acampamento, os anciãos de Israel disseram: 'Por que permitiu hoje o Senhor, que fôssemos derrotados pelos filisteus? Vamos trazer de Silo, a Arca da Aliança, para que caminhe conosco e nos livre da mão dos nossos inimigos.' Os israelitas mandaram buscar em Silo a Arca da Aliança do Senhor Todo-Poderoso, que tem o Seu trono sobre os querubins, e trouxeramna. Acompanharam-na também, Hofni e Finéias, os dois filhos de Eli. Aconteceu que, quando a Arca da Aliança chegou ao acampamento, todos os israelitas lançaram um forte brado a ponto de fazer estremecer a terra. Quando os filisteus ouviram tal clamor, disseram: ) ai de nós'" (cf. ISam 4,2-8). Mas, efetivamente, os filisteus atacaram e derrotaram os israelitas, que se puseram em fuga para o seu acampamento. A derrota foi tremenda, pois caíram trinta mil da infantaria israelita. Também capturaram a Arca da Aliança e mataram Hofni e Finéias, os dois filhos de Eli (cf. ISam 4,10-11). Poderíamos nos colocar a seguinte questão: Por que razão os israe-
litas sofreram tão desastrosa derrota? Na verdade, tendo mandado buscar a Arca da Aliança, sinal da Presença de Deus no meio deles, ligando a essa Presença a esperança da vitória, demonstraram que desejavam apoiar-se em Deus. Como interpretar, então, o fato dos israelitas, apesar de quererem aparentemente fundar-se no Senhor, haverem sofrido tão grande derrota e terem mesmo perdido a Arca, símbolo da especial Presença de Deus? Esse texto é muito importante, já que nos permite entender de maneira mais profunda o que significa apoiarmo-nos unicamente em Deus. A Arca da Aliança não é Deus, mas apenas sinal da presença d'Ele. Os israelitas ousaram fazer uma singular manipulação deste símbolo divino. A época dos Juizes foi um período decadente na história do povo eleito. Sabemos que havia muita perversidade na vida dos israelitas e também na dos filhos do sumo sacerdote Eli, os quais "eram homens desonestos que não se preocupavam com Yahveh" (ISam 2,12). Nesse contexto, o texto bíblico mostra-nos como aqueles israelitas, que, no fundo, não faziam caso de Deus, tratavam de
manipular o símbolo da Sua Presença. Pensaram que depois de terem trazido a Arca da Aliança, a vitória estava automaticamente assegurada. Todavia, a fé consiste em nos apoiarmos em Deus, apenas n'Ele, no Seu poder e no Seu amor, não nos Seus dons, nem apenas nos símbolos da Sua Presença. Ora, esse poder e esse amor não estão sujeitos a qualquer manipulação. Ocorreu o mesmo no caso do Templo, que também era, para o povo eleito, um símbolo especial da Presença de Deus, acabando por ser destruído, pois não era ele que devia constituir o fundamento dos israelitas. Deus chamava aquele povo a apoiar-se exclusivamente n'Ele, apoio esse que não devia resultar senão da fé.
A atitude de abandono total Cristo que espera nos confiemos a Ele inteiramente, ensina-nos, com o exemplo da Sua própria vida, a atitude de abandono. Ele veio até nós sob a forma de uma criança, como um bebê que
por si só nada pode fazer e depende totalmente dos cuidados dos adultos. Portanto, desde o momento da Sua vinda ao mundo, Jesus torna-Se, por nossa causa, o despojamento extremo. E por que o Senhor Se despojou a tal ponto? Tente, de vez em quando, responder a essa pergunta. Se Jesus Cristo tivesse chegado ao mundo com todo o Seu poder, se pela força houvesse suprimido a ocupação romana e se pela força, igualmente, tivesse instaurado a justiça social, se houvesse eliminado o mal pela força, acaso seria mais fácil para você se entregar a Ele? O mais provável é que Lhe tivesse medo, porque o homem sente medo perante a violência, mesmo quando usada em nome do bem, seja ele verdadeiro ou aparente. Porém, você não deve sentir medo desse Jesus que até nós totalmente indefeso, sem poder algum. Se há na sua relação com Deus alguma parcela de receio, o mistério de Belém o recorda que não se deveria ter medo de Deus. Ele humilhou-Se tanto, despojou-Se de tal modo dos Seus atributos e apresentou-Se ao mundo de modo tão vulnerável, para permitir a você se unir e confiar n Ele
che
mais facilmente! Desse modo, manifestou o Seu amor levado até à loucura. Cristo, despojado e pobre, quer nos preceder no caminho da nossa renúncia às seguranças humanas. Para nós, o verdadeiro e autêntico despojamento é o caminho da imitação de Jesus. Quando Deus quis fazer de Abraão o nosso pai na fé, teve que desenraizá-lo. Abraão tornou-se um peregrino, que parecia avançar por entre as trevas, pois não sabia para onde se dirigia. Ao deixar a sua terra e a sua casa tornava-se um homem despojado, um homem que nada possuía à exceção de Deus. Devia, pois, pôr sempre em Deus toda a sua confiança, apelando sempre para Ele. A liberdade que advém do despojamento do nosso sistema de segurança^ conquista-se no deserto que liberta o homem. Os diferentes sistemas humanos de segurança, nos quais você se apoia, têm no Evangelho o nome de mamón, "riquezas". Você pode crer nelas e fazer os seus planos baseando-se nelas, mas elas não são o verdadeiro Deus. Ora o Senhor quer justamente defender você dessa falsa fé, e está tão empenhado por isso para que você rejeite
os seus falsos deuses. Tudo aquilo em que depositamos a nossa esperança se converte para nós num deus e, se você põe a sua esperança num falso deus, essa torna-se absurda. A pessoa que possui um falso deus, não tem fé ou então ela é muito fraca, quase insignificante. Se na sua vida há um falso deus no qual você se apoia, forçosamente você experimentará o gosto da amargura e da desilusão, porque se trata de um falso senhor, esse em que confia e em quem deposita a sua esperança. Indiscutivelmente que, mais cedo ou mais tarde, ele o desiludirá e, então, a sua confiança nesse falso deus há de cair por terra. Ao dizer que não se pode servir a dois senhores', Cristo desenvolve o Seu pensamento utilizando imagens simbólicas, com as quais nos ensina o modo como devemos confiar e chegar ao pleno abandono a Ele, o verdadeiro Senhor. No Sermão da Montanha falanos sobre os 'lírios do campo', os quais se caracterizam pela maravilhosa e efêmera beleza. Esta flor vive apenas um dia. Na Palestina, os lírios do campo são as papoulas e as anêmonas. E surpreendente que Deus tenha criado
uma flor de tão curta vida mas espantosamente bela, da qual o próprio Jesus dirá "que ultrapassa a magnificência de Salomão". Como Deus cuida dessa flor revestindo-a de tão deslumbrante beleza! Aquelas flores são, tal como você, propriedade do Senhor. Mais adiante, ao falar das aves despreocupadas, Jesus apela à conversão, exorta-nos a que nos libertemos das tensões humanas, das preocupações inúteis e das vãs inquietações (cf. Mt 6,26-34). Devemos ser como os lírios do campo e como as aves do céu, que Ele, o verdadeiro Senhor, cuida com amor. A súplica contida no Pai Nosso, "Dai-nos o pão-nosso de cada dia", é um chamamento ao aprofundamento da nossa fé, para que Deus se converta no nosso único apoio. Encontramos aí uma direta referência àquela situação em que se encontrava o povo eleito no deserto, durante a caminhada para a terra prometida. E sabido que o deserto cria situações difíceis. Por esse motivo existiam revoltas e desobediência. Mas o Senhor ardia de um amor zeloso, segundo diz a Bíblia, e compadeceuSe desse povo pecador que bradava contra Si, enviando-
lhes te o maná, que caía do céu.
diariamen-
Os períodos de deserto fazem vir à tona no homem o egoísmo, a desconfiança e o desejo de criar para si sistemas de segurança que habitualmente se ocultam no mais profundo do seu ser. Veio a tona, no povo eleito, durante o tempo em que permaneceu no deserto, a falta de confiança deles para com Deus, apesar dos milagres que aconteceram diante dos olhos deles. Tornou-se também evidente a cobiça deles, traduzida pelo desejo de acumular a maior quantidade possível de maná, ainda que Moisés, em nome do Senhor, lhes houvesse dito: "Somente podereis recolher maná para o dia de hoje". Muitos não fizeram caso de Moisés e continuaram a recolher todo o maná que podiam. Deu-se, então, a continuação do milagre, se bem que noutra dimensão: o maná recolhido para além das necessidades diárias, como medida de segurança para o dia seguinte, aquele que não deveriam acumular, apareceu no dia seguinte apodrecido e infestado de vermes (cf. Ex 16,14-21). O povo eleito não deveria assegurar-se do
amanhã de uma maneira tipicamente humana, quer dizer, mediante a acumulação de reservas, visto que Deus o conduzira ao deserto precisamente para de tudo o despojar. "Dá-nos o pão-nosso de cada dia? Dá-nos hoje, para hoje e não para amanhã, nem para todo o mês. Nós somos Sua propriedade. Tu cuidas daquilo que é Seu. O Senhor, no deserto, teve que combater o egoísmo humano, que fazia com que o povo eleito não quisesse confiar no Senhor, nem sequer perante um milagre. Teve que lutar pela fé do Seu povo. A maturidade da fé é a disponibilidade para entregar ao Senhor tudo o que Ele nos dá, é o nosso total abandono nEle. Não devemos apegar-nos a nada, nem aos dons espirituais, nem sequer à Sagrada Comunhão. Há somente uma coisa a que nos é permitido apegar e ao fazê-lo não cometemos apropriação: a vontade de Deus. Para além da vontade de Deus, tudo o mais são dons e meios que nos servem para alcançar o nosso objetivo, mas não são o fim em si. Se nos apropriamos de alguma coisa, Deus vê-se forçado a destruir esse dom que roubamos
ou, provando-nos pelo sofrimento, nos demonstrará que, de nós próprios, nada temos, que somos impotentes, e que é Ele quem tudo nos dá, tudo o que somos e possuímos. Era extraordinariamente eloqüente o gesto de fé de São Leopoldo Mandic: o seu gesto das mãos vazias. Esse gesto das mãos vazias por ele dirigido a Deus era expressão do seu desejo de não se apropriar de qualquer dos dons de Deus. Era esse gesto de uma fé extraordinária que fazia milagres no seu trabalho de confessionário. Não é apenas nos assuntos espirituais, como era o caso de São Leopoldo Mandic, que o nosso gesto de mãos vazias pode ser dirigido a Deus. Esse gesto, expressão da nossa atitude de tudo esperarmos das mãos de Deus, deve também acompanhar-nos em todos os momentos da nossa vida: na nossa atividade profissional, na educação dos filhos, no contato com os outros e na oração. O gesto das mãos vazias deveria estar também associado à sua expectativa do maior dos dons de Deus que é Ele próprio, ou seja, o amor que o penetra e em que você está mergulhado.
Abandonarmo-nos a Deus Se você quer apoiar-se em Deus, num ato de autêntica confiança n Ele, deve fazer-Lhe total oferta de si mesmo, porque pode acontecer, que confie em Deus, porém apenas na expectativa de que se realize a sua vontade: "Meu Deus, confio que faça a minha vontade". Isso ainda não é mais do que uma egoísta procura de nós mesmos. Apoiarmo-nos em Deus tem de ser decididamente um ato de abandono: "Senhor, que se faça como Tu queres, porque creio que Tu me amas e sabes melhor que ninguém o que me faz falta, a mim e àqueles a quem eu amo e, pelos quais Te suplico". Na vida interior e na nossa caminhada para Deus, a confiança deverá traduzir-se num total abandono ao Senhor. Por ocasião do Natal de 1887, Celina, a irmã de Santa Teresinha do Menino Jesus, queria proporcionar-lhe uma alegre surpresa. Fez um barquinho de papel que colocou no centro de uma linda bacia com água. Esse pequeno barco trazia dentro o Menino Jesus dormindo e a seguinte inscrição: "Abandono" (cf. "Manuscritos
Autobiográficos" — Ms.A,68r° — de Santa Teresa do Menino Jesus). Para Teresinha e Celina esta era a palavra que norteava a sua oração. A água simbolizava as ondas da vida pelas quais Deus iria conduzi-las enquanto elas deveriam se abandonar ao Seu amor. A teologia da vida espiritual afirma que a paz interior só nasce no homem quando este se abandona a Deus. Enquanto você não procurar abandonar-se ao Senhor estará inquieto e o seu coração se debaterá como a borboleta que voa ao redor da lâmpada, cheio de inquietações, de problemas e preocupações. Não há outro caminho para alcançar a paz, senão o do pleno abandono à vontade de Deus, isto é, ao Seu amor. A Santa Gertrudes, que rezava pela saúde de uma amiga, Jesus disse: "Incomodas-me, Gertrudes, ao pedires pela tua saúde, pois essa doença é uma grande graça e ela submetendo-te à Minha vontade rapidamente te santifica". A palavra abandono, escrita por Celina a Teresinha barquinho de papel, tem uma grande profundidade. Significa a renún-
pa
cia aos planos e idéias próprios; significa o abandono de tudo para uma total entrega ao Senhor. E nós, que estamos tão cheios dos nossos próprios planos e projetos, enquanto a vontade e os planos de Deus são tantas vezes diferentes? É por isso que Deus nos deve alterar os planos, e essas contrariedades que se opõem aos nossos projetos são, assim, benditas porque originadas pelo amor que sempre quer o nosso bem. Na nossa intenção de nos abandonarmos a Deus, a imagem deformada que muitas vezes fazemos d'Ele, pode ser um obstáculo muito sério. Essa deformação pode ser originada pelo fato de ver Deus mais como um juiz e, por essa razão, sentir receio d'Ele. Será possível experimentar receio de Deus, ter medo d Aquele que é o amor? Pode ser que você tenha receio de se abandonar a Ele, temendo o que Ele possa vir a fazer de você. Mas deve, no entanto, saber que esse receio consciente de Deus, fere profundamente o Seu Coração. Outra coisa é o medo instintivo, que nasce por si só, espontaneamente, na esfera psicofísica, escapando por isso mesmo ao nosso controle. Contudo, se consciente-
mente você aceita o receio de Deus na esfera espiritual (nos pensamentos, na vontade) prova, desse modo, uma grande infidelidade. Se, na verdade, sente medo de Deus, das pessoas, do mundo, é porque em você não há nem abandono, nem fé no amor de Deus, nesse amor que incessantemente o envolve. Santa Teresinha do Menino Jesus dirá sucintamente: "Há que se ser como uma criança e não se preocupar com nada" (Conselhos e lembranças; de Santa Teresinha do Menino Jesus). Nesta curta frase está contido todo um programa! Abandonar-se ao Senhor significa não se preocupar com nada, porque Ele nos ama e de tudo se ocupa. Somente quando isso acontecer, a nossa alma e o nosso coração poderão começar a ser impregnados da verdadeira Paz. Não podemos desfazernos dos perigos que geram o medo, mas é muito importante eliminar esse medo através de um ato consciente de abandono ao Senhor. Quando São Paulo suplicou a Jesus que afastasse da sua vida uma grande dificuldade, algo que contrariava os seus planos, o Senhor respondeu-lhe: "Basta-te a Minha graça, porque é na
fraqueza que a Minha força se revela totalmente" (2Cor 12,9). Santa Teresa escreverá: A confiança e a fé aperfeiçoam-se na angústia. Isto quer dizer, portanto, que o seu receio desempenha um papel relevante na economia de Deus: é necessário para provocar em você um ato de fé. A angústia é uma prova de fé e, por isso, Deus a permite para que a sua fé se aprofunde. A confiança e a fé aperfeiçoam-se no meio das angústias. O medo pode ser também um fator gerador de doenças e acaba por sê-lo, efetivamente, num bom número de pessoas; costuma até ser uma das causas das neuroses e das psicoses. Mas pode também ser o ponto de partida para um grande abandono. Tudo depende de você. A angústia é um desafio que lhe é lançado. Que fará com ela? Aceitará ser esmagado sob o seu peso? Ou optará por se abandonar Aquele que é poder e amor infinitos? Tudo depende da nossa decisão. Na esfera dos sentimentos não somos capazes de nos libertar dos estados emocionais de angústia ou, pelo menos, quase nunca. Mas a angústia pode ser um fator que conduza ao aprofundamento da nossa fé,
como igualmente, com toda e qualquer tentação.
acontece,
A Santa Margarida Maria Alacoque, grande apóstola do Coração de Jesus, disse o Senhor com grande ardor: "Deixa-Me agir". O Cristianismo é a religião da graça, uma religião que nos predispõe para que seja Cristo a agir em nós, a que nos abramos cada vez mais à Sua ação, devendo procurar ter uma tal abertura de coração que permita ao Senhor viver em nós em toda a Sua plenitude. Quando assim o for, Ele poderá fazer de você a Sua obra-prima, como o fez com Maria, que viveu na fé, na confiança e em total abandono ao Senhor. O princípio fundamental da ação divina é que Deus não quer ser um intruso. Se a porta do seu coração permanece fechada, Ele não tentará forçá-la. "Jesus fará tudo por mim", escreveu Santa Margarida Maria, "desde que eu consinta que aja em mim. Em mim amará, dese jará e suprirá abundantemente todas as minhas faltas". O abandono a Deus é a suprema forma de confiança e de apoio no Senhor. "Já não desejo mais o sofrimento nem a morte", dizia Santa Teresinha do Menin Jesus" e, no entanto, amo-os, mas apenas é o amor que
me atrai... agora só me guia o abandono, já não tenho outra bússola!... Com ardor, nada mais posso pedir do que o perfeito cumprimento da vontade do Bom Deus na minha alma, sem que a isso as criaturas possam de qualquer modo obstar." ^Manuscritos Autobiográficos" — Ms.A, 83r° — de Santa Teresinha do Menino Jesus). Teresa reconhece que precisou de bastante tempo para atingir esse grau de abandono à vontade do Senhor, mas finalmente o conseguiu. Deus ergueu-a em Seus braços e lá a colocou (cf. Manuscritos Autobiográficos; Ms.Cy3r°). O seu abandono a Deus e a aceitação da Sua vontade em todas as circunstâncias só serão completos quando você for capaz de dizer: amo tudo o que Deus me envia.
O amor zeloso de Deus O Senhor foi tomado de um amor cioso por você. Tomado de um amor cioso, quer dizer que Ele quer ser o seu único Senhor, o seu único amor. O Senhor chama-nos à conversão, que comporta sempre dois elementos: convertermo-nos "de" e convertermo-nos "a". Devemos afas-
tar-nos de tudo o que nos afasta d'Aquele que é o único Senhor e a quem exclusivamente pertencemos. Devemos desviar-nos dos elementos destruidores que nascem no mais fundo do nosso eu, isto é, do egoísmo que procura seguranças. J
Se você criou para si um sistema de segurança e se, em seguida, Deus fez com que o seu "maná" apodrecesse, não se esqueça de que Ele o fez por amor. Deus o despoja daquilo que o escraviza e que e sinal da sua falta defé no Seu amor y porque Ele é o único Senhor, o Seu Senhor e Senhor do seu "maná", isto é, do pão de cada dia, da sua existência. Tudo depende d'Ele. Reconhecendo-O ou não, Ele continuará a ser o seu único Senhor, porém um Senhor que o ama. Ele não quer que você se perca no enganoso reino de um falso deus, porque esse reino o destrói. Você é propriedade do Senhor, com tudo o que possui, com o seu corpo e alma, com o seu trabalho que também depende d'Ele, com a sua casa que é Sua propriedade e com os seus filhos que Lhe pertencem, tal como o seu tempo também Lhe pertence, esse tempo que, por vezes, Lhe regateia como um avarento.
O Evangelho diz que não se pode servir a dois senhores. "Servir", em grego, significa viver em sujeição absoluta ao seu amo como um escravo. No tempo da escravatura, um escravo não tinha tempo para si, era o amo quem dispunha totalmente do seu tempo e para sempre. A Deus devemos dar tudo, há que saber devolver-Lhe o que é d'Ele, e esse é o programa da nossa conversão. Há também que aceitar o Seu amor cioso, recebê-Lo como único Valor e único Amor. Nas palavras "amor cioso" está contida toda a profundidade do amor de Deus, porque se trata de um amor que é cioso não para Si, mas por você; zeloso de que você não se perca ao serviço dos falsos deuses. O homem que chega à união com Deus e à santidade é alguém que recebeu Cristo até às últimas conseqüências, como único amor. Há dois tipos dos que crêem: aqueles que acumulam méritos e aqueles que simplesmente procuram amar. Ora, amar não significa somente dar, mas até e em maior grau receber, acolher o amor da outra pessoa. Amar a Deus significa aceitar o Seu amor, o Seu amor ciumento, amor
zeloso e louco, que deseja protegê-lo de tudo aquilo que possa representar um risco para a sua liberdade ou para a sua fé. O Senhor arde num cioso amor por você. Esse amor é o tormento de Deus, é a ânsia que Deus sente por você, que é Seu filho, propriedade Sua. Ele lutará para possui-lo. O Seu amor zeloso será por vezes difícil, porque às vezes você escapa das Suas mãos e caminha em direção ao abismo, sem que, com freqüência, disso aperceba. Porém, de vez em quando, Deus terá que sacudi-lo, terá que lhe dar graças "difíceis", mas o fará para o salvar, para que em definitivo você se abandone a Ele, ao Seu zeloso amor.
C APÍTULO 4
CRER E RECONHECER A PRÓPRIA FRAQUEZA E ESPERAR TUDO DE DEUS À luz da fé podemos descobrir a nossa fraqueza e assim esperar tudo de Deus. Walter Kasper escreve que segundo os sinópticos "a fé é o conhecimento da própria impotência e a confiança no poder divino que atua em Jesus" (cf. "Introdução à Fé", cap.V). Aquele que crê nada espera de si mesmo, toda a sua esperança está posta em Deus. O Seu
poder será capaz de agir em nós, quando na fé reconhecermos a nossa fraqueza, tornando-nos, assim, pobres em espírito. A moral do evangelho não é apenas a dos mandamentos, mas é, em primeiro lugar, a das Bem-aventuranças. E sobretudo a moral da primeira B em-aventurança: "Benditos os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos céus' (Mt 5,3)- São felizes porque verdadeiramente entram no Reino.
"Bem-aventurados os pobres de espírito" Aquele que procura prioritariamente o Reino de Deus, ou seja, aquele que procura a santidade, há de encontrá-la, bem como todos os outros dons espirituais e temporais necessários à sua vida. "Bem-aventurados os pobres de espírito", que não estão apegados a coisa alguma, que nada possuem e tudo esperam de Deus. Bemaventurados sejam, pois nos seus corações há espaço para Deus. A estes pertence o Reino do Céu, pois Deus habita neles. E o Evangelho da alegria dos Bem-aventurados cujos corações estão inteiramente
livres Senhor.
para
o
A sua fé é proporcional à sua pobreza de espírito. A palavra "pobre", na Bíblia, nem sempre designa a indigência no sentido material. 'Pobre em espírito' era, por exemplo, o rei Davi, apesar de ocupar o lugar mais elevado na escala social. O homem pobre de coração é aquele que vive despojado de toda a segurança, que sabe que as suas forças não lhe bastam. Tal homem está disposto a receber tudo de Deus, a não lançar raízes na vida temporal. Se você se sente forte no que diz respeito às suas capacidades naturais, a sua fé não pode desenvolver-se nem aprofundar-se. Você deve, por isso, reconhecer a sua fraqueza e que há coisas das quais você não é capaz. Será uma experiência para fazer apelo à sua fé. A sua fraqueza, a sua impotência e incapacidade serão essa espécie de fenda através da qual poderá infiltrar no seu coração a graça da fé. Através das nossas feridas, Deus concede-nos a graça do aprofundamento da fé.
Charles Péguy, um grande convertido dos nossos tempos, escreveu o seguinte: "Há uma quantidade tão incrível de luzes de graça penetrando mesmo a alma má e perversa, que vemos salvo aquele que parecia perdido. Mas, jamais se viu deixar-se impregnar o que era envernizado, repassar o que era impermeável, nem se viu tornar-se brando o que era duro... Daqui provém as numerosas falhas que observamos na eficácia da graça que, enquanto alcança vitórias inesperadas nas almas dos grandes pecadores, com freqüência fica inoperante naquelas pessoas 'de bem'" {Nota conjunta sobre M. Descartes e a filosofia cartesiana - sábado, 1 de agosto 1914). Acontece assim porque a essas pessoas "de bem", a esses adultos no sentido bíblico, nada lhes falta, nunca foram feridos, são fortes e autosuficientes. Numa palavra: são adultos. "A sua pele moral invariavelmente intacta" - escreve Péguy — "tornou-se para eles rija como couro e couraça lisa impenetrável, sem beliscão. Esses não apresentam aquela abertura produzida por ferida dolorosa, nem por algum inesquecível tormento, nem sequer aquela dor jamais superada, um ponto de sutura
eter eterna name ment nte e ma mall aj ajus usta tado do,, a inqu inquiet ietaç ação ão mo mort rtal al,, uma uma secreta amargura, uma ruptu ptura inconfessável, uma uma cica icatriz nunca nca fechada. Eles nem sequer apresentam essa abertura à graça que pode ser essencialmente o peca pecado do.. Co Como mo não não estã estão o feri ferido dos, s, não não se enco encont ntra ram m vulneráveis. Já que nada lhes falta, nada recebem. Como nada lhes custa, tampouco podem receber Aquele que é Tudo. O Amor de Deus não pode curar aquele que não apresente ferimentos. O bom samaritano levantou do chão aquele homem justamente porque ele jazia por terra. Foi porque a face de Jesus tinha sido suja, que a Verônica pôde limpála. Porém, quem quem nunc nunca a ca caiu iu", ", afir afirma ma Péguy, "nun "nunca ca pode poderá rá ser ser levantado e, quem não está manchado não se tornará limpo" (ibid.) Aqueles a quem chamamos "pessoas como deve ser", os adultos, são impermeáveis à graça. Talvez na sua vida haja também algo dessa terrível ferida que não cicatriza, talvez haja um inesquecível tormento, uma dor pelo que passou, uma angústia de morte, talvez uma amargura ura dissimulada uma das muitas que o mundo proporciona - qualquer coisa que se desmoro-
nou. nou. Você Você acha cha, ent então, que tudo udo aca cabo bou, u, qua quando ndo na realidade se passa o contrário. Tudo isso deve ser para você um canal de graça. Deus permite que você sofra todas essas feridas e dificuldades para que se sinta fraco, e por meio dessa fraqueza, se abra à Graça. Qua Quando ndo o sofr sofrim imen entto dolo dolorrosam samente ente o atin atingi gir, r, lembre-se que essa dor é bendita e que na sua carapaça blindada de pessoa adulta, irrepreensível, ela o ajuda a abrir espaço para a Graça. Tudo isso constitui para você uma oportunidade de aprofundar a fé. A sua fraqueza torna possível que, pela fé, o poder de Deus habite em você. Deus, para Se aproximar de você, tem que torná-lo mais fraco, para que precise d'Ele, e para para que, pela fé e co confia nfiando ndo cada cada vez mais, procure procure n'Ele o seu apoio. Deus tem que vergá-lo porque você é demasiado grande. Ora, o ferimento obriga a vergar. Daí que cada ferimento possa ser para você uma oportunidade de se tornar cada vez mais criança no sentido bíblico. As vezes são precisas tantas feridas para nos tornarmos "crianças" e podermos enveredar pelo "pequeno caminho".
O poder de Deus e a fraqueza do homem Ao apro aproxim ximar ar-Se -Se do home homem, m, Deus Deus debil debilit itaa-o. o. Faz Faz exatamente o cont co ntrá rári rio o do que que pode poderí ríam amos os espe espera rar. r. Pa Pare rece ce-no -noss que que somos nós que nos aproximamos d'Ele e que, assim sendo, deveríamos ser cada vez mais fortes e, por nós mesmos, resolver tudo cada vez melhor. No entanto, é Ele quem se aproxima de você, e ao aproximarSe, torna-o mais fraco, quer física, psíquica ou espiritualmente. Deus faz isso para poder habitar em você todo o Seu poder, porque é a sua fraqueza que abre espaço para Ele agir. Quando você está em situação de fraqueza, náo pode confiar nem acreditar em si mesmo e é então que a você é oferecida uma oportunidade de voltar e de se apoiar n'Ele. Com muita freqüência você se defende da maior das graças, a graça da fraqueza, apesar de São Paulo ter escrito: "'Basta-te a Minha graça, pois é na fraqueza que a Minha força se revela totalmente'. Por conseguinte, prefiro gloriar-me das minhas fraquezas para que habite em mim a força de Cristo. (...) Pois quando me sinto fraco, então é
que sou forte" (2Cor 12,9-10). (2Cor 12,9-10). O seu poder e a sua força, mais tarde ou mais cedo, terão que ruir. Na realidade não há qualquer força que pertença a você, porque ela é um dom - um dom do qual você se apropria e que, por isso, lhe deve ser tirado. São Maximiliano Maria Kolbe, durante muitas das suas extraordiná dinári rias as viag viagen enss apos apostó tóli lica cas, s, sent sentia ia-s -se e perf perfeit eitam amen ente te desamparado. As vezes encontrava-se em climas muito difíceis de serem suportados por seus eus pulm pulmõ ões doen doente tess. Sofr Sofria ia muit uito o incô ncômo modo do das das viagens, sobretudo por mar, por causa da umidade que, muitas vezes, quase o impedia de respirar. Tudo isto, porém, não deteve o seu desejo de anunciar o reino da Imaculada no mundo inteiro, apesar de mais do que uma vez, ter sentido que não poderia sequer agüentar uma hora de barco. Dizia, então, à Virgem Maria: "Se não posso agüentar nem uma hora, como podere podereii dilata dilatarr o seu rei reino? no?". ". Verdad Verdadeir eiram ament ente, e, aquela aquela mesma fraqueza era toda a sua força. Se Deus quer servir-Se de você, o faz unicamente baseando-Se na sua fraqueza. Quando você procura ser
apóstolo apoiado na sua força e no seu poder, você se torna um contra-sinal. As contra-sinal. As pessoas não desejam o seu poder, a sua própria força, pois isso para elas se torna humilhante. Deus, tão pouco, necessita da sua força, para fazer de você um sinal e para Se servir de você, mas pelo contrário, precisa da sua sua fraq fraque ueza za.. Esta Esta idéi idéia a foi foi expo expost sta a de uma uma ma mane neir ira a muito eloqüente já no Antigo Tes Testa tame ment nto, o, no exem exempl plo o de Gedeã edeão o (Jz 7,17,1-8, 8,10 10). ). O adversário de Gedeão tinha um exército de 135 mil homens, enquanto Gedeão dispunha apenas de 32 mil, ou seja quatro vezes menos. No entanto, a histó história ria conhec conhece e vitóri vitórias as obtida obtidass apesa apesarr de propor proporçõe çõess desfavoráveis. Para Deus, aquela desproporção apresentava-se, contudo, ainda pequena. Ordenou que fosse reduzido o número dos guerreiros de Gedeão. Numa primeira seleção a sua quantidade foi reduzida de 32 mil para 10 mil. A tropa de Gedeão é agora treze vezes menos numerosa. Na hist histór ória ia da estr estrat atég égia ia milit militar ar desc descon onhe hece cemm-se se vitó vitóri rias as alcançadas com tanta desvantagem, mas mesmo assim, o homem poderia ter atribuído o triunfo a si próprio, atribuí-lo à sua própria genialidade. Gedeão continuava a ser demasiadamente forte, continuava em condições de contar com as suas potencialidades. Deus, submeteu-o, ainda, a nova prova tendo ordenado que ficasse unicamente com 300
guerreiros. Nessa altura, já não se sabia se a situação era trágica ou cômica. Parece totalmente ridículo defrontar-se com um inimigo que é 450 vezes mais forte. A vitória só poderia ser obtida por Deus, porque já estava fora do alcance de Gedeão. Mas Gedeão combateu com aquele punhado de homens e venceu. Aquela esmagadora desproporção fez com que nem sequer sentisse a tentação de se julgar o autor da vitória. Toda a ação foi levada até ao absurdo, como se Deus sorrindo dissesse: "Vês, Gedeão, querias vencer graças à sua habilidade e à força do seu exército. Repara, ficaste com 300 homens para enfrentar 135 mil inimigos. Que te parece?". Gedeão confiou no Senhor, e obteve um triunfo sem precedentes na história. O Senhor guarda o Seu tesouro em frágeis vasos de argila, para esse incomparávelpoder se reconheça vir de Deus e não de nós (cf. 2Cor 4,7). ,7). Deus Deus desp despo ojo jou u Gede Gedeã ão do seu pode poderr hum humano, no, tornou-o pequeno e fraco, fez algo que humanamente parecia um absurdo. Algo semelhante pode também ocorrer na sua vida. Se há em você esses 32 mil
si
q
elementos de poder humano, o Senhor os reduzirá, primeiro a 10 mil e posteriormente a 300. Então você ficará realmente muito fraco, quase desfalecido, mas graças a essa fraqueza poderá ir alcançando vitórias. Essas serão devidas, náo ao seu poder, mas ao poder de Deus.
A pobreza de Cristo A fé entendida como expressão da pobreza espiritual, encontra o seu modelo na Vida e na Pessoa de Jesus Cristo. Ser pobre significa ser dependente. Na vida de Jesus vemos três momentos nos quais a sua pobreza atinge o extremo, em que Ele — Deus — se torna totalmente dependente e Se apresenta na Sua impotência, como que atingido pelo fracasso: em Belém, no Calvário e no Santíssimo Sacramento. Se ser pobre significa estar em completa carência, Jesus totalmente dependente já em Belém. Lá já se manifestava essa extrema impotência, podendo até dizer que chegou a haver fracasso, porque Jesus não foi aceito pelos Seus, tendo de nascer em condições quase desumanas.
Cada vez que você experimenta a sua incapacidade em situações em que se sente ultrapassado, você está participando dessa total fraqueza de Jesus. O Calvário foi a segunda situação de despojamento de Jesus: e ele é de uma terrível eloqüência. Naquele lugar tão pouco podia se valer de alguma coisa, porque as Suas mãos, mãos que haviam abençoado multidões, agora estavam cravadas na Cruz, ensangüentadas. Tampouco pode servir-se dos pés, porque esses pés que haviam levado o amor e a Boa-nova a toda a parte, estão agora pregados. No Calvário, Jesus viu-se despojado de tudo. A Cruz é a expressão da loucura do amor de Deus. O despojamento a que Jesus Se viu submetido, naquele lugar chegou ao extremo. A outra expressão do despojamento de Jesus é o Santíssimo Sacramento. Também aqui se manifestam a impotência e o aniquilamento, apesar de que se trata naturalmente de uma impotência e de um fracasso aparentes, como sucedeu no Calvário. No Santíssimo Sacramento, Jesus guarda também silêncio quando nos
dirigimos a Ele. No tabernáculo permanece despojado, a tal ponto que qualquer um pode retirá-Lo e trasladá-Lo aonde queira: pode recebê-Lo mas pode também profaná-Lo. Pode, pois, fazer literalmente o que quiser. Aqui vemos o impressionante mistério do despojamento de Cristo, da Sua pobreza, da Sua "kenosis", do dom total de si mesmo ao homem. Nessas três situações: Belém, Calvário e Santíssimo Sacramento, o amor de Jesus chega à loucura, ao extremo da pobreza. Mas é precisamente graças a essa loucura e a essa pobreza que Jesus traz para você a Redenção, a fé. O silêncio de Deus, a Sua impotência e o Seu "fracasso", são um escândalo para o mundo que desejaria antes um Deus cheio de poder visível. A Cruz foi, e continua sendo, escândalo para aqueles que não crêem, mas para os que crêem, ela é o poder supremo. Também, a Sua Cruz deve ser entendida como despojamento e pobreza, que faz em você o espaço para a graça - a graça da fé.
Reconhecer que tudo é dom A fé é o reconhecimento da fraqueza própria, é o reconhecimento de que nada se possui e de que tudo é dom. E esperar
tudo, esperar todos os dons das mãos de Deus. O contrário da fé assim entendida é o orgulho. O homem orgulhoso considera todos esses dons como seus e apropria-se deles. Considera que tudo depende de si, como se na sua vida não existisse esse constante dom de Deus. Evidentemente que a fé é algo difícil. Viver na fé é nascer de novo, nascer para a pobreza de coração, para a atitude de infância espiritual. O dom deve ser sempre recebido com tal desprendimento que permita a sua restituição a qualquer momento. Trata-se de um admirável paradoxo. Somos obsequiados para que, ao aceitar os dons de Deus, estejamos prontos a devolvê-los. Estarmos sempre dispostos a entregar a Deus os dons recebidos é sinal de que não houve apropriação; é expressão da verdade de que nada nos pertence. Então, o dom que devolvemos a Deus recebêmo-lo redobrado. Tudo é graça: a sua alma e o seu corpo, o seu cônjuge, os seus filhos, o que você tem e o que faz tudo é propriedade do Senhor. Você está disposto a entregar em qualquer momento cada um desses dons?
O episódio do jovem que tristemente se afastou depois do Senhor lhe ter proposto a renúncia aos seus bens materiais, tem um epílogo. Quando o jovem foi embora, Jesus disse: "Quão dificilmente entrarão no reino de Deus os que têm riquezas" (Mc 10,23). Notemos que aquele jovem cumpria todos os mandamentos. Isso significa que não basta cumprir os mandamentos. Referindo-se a ele e a outros como ele, Jesus diz: "E mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus" (Mc 10,25). E uma afirmação tão forte, que os Apóstolos, impressionados, perguntaram: "Quem poderá salvar-se?" (Mc 10,26). Aquele jovem que parecia estar aberto a Deus era escravo das coisas temporais, escravo do seu patrimônio e da sua situação social. São Lucas falando sobre Ele, disse que era pessoa ilustre, o que significaria que ocupava algum cargo importante (cf. Lc 18,18). Tais circunstâncias têm a prerrogativa de criar obstáculo na relação entre o homem e Deus e podem revelar-se impedimentos de tamanhas proporções que muito dificultem a salvação da pessoa. O apego ao temporal,
àquilo que Deus criou, àquilo que é apenas um dom Seu, mas não é Ele próprio, pode escravizar-nos a tal ponto que, não só dificulta a nossa salvação, mas até a compromete totalmente. Numa viagem que fiz a San Giovanni Rotondo encontrei um cientista que viajou comigo para visitar o Padre Pio e pedir-lhe a bênção para a sua obra. Trazia dois volumes dessa obra que acabara de publicar e que qualificou como opus vitae, isto é, a obra da sua vida. Durante a confissão fez a apresentação da obra ao Padre Pio e pediu-lhe a bênção. A reação do Padre Pio foi aterradora, mas sobretudo cheia de assombro: "Esta é a tua opus vitae, é a obra da tua vida?" Pegou nos dois livros e voltou a perguntar: "E esta a obra da tua vida? Quer dizer" disse quase gritando — "que viveste quase sessenta anos para escrever estes dois livros e que foi esse o objetivo da tua vida? Essa é a tua opus vitae e, foi para isso que viveste? E a tua fé, onde está?" Em seguida suavizou o seu tom de voz, como se tivesse notado a inconsciência daquele homem e com a doçura de um pai, perguntou: "Decerto investiste neste
trabalho um grande esforço, não foi? Porventura passaste muitas noites em branco. E a tua saúde? Pois, claro, sofreste um enfarte. E tudo ao serviço da ambição de criar este tipo de opus vitae. Repara", continuou, "o que significam os ídolos e os apegos. Se tivesses feito o mesmo, mas para o Senhor, tudo seria diferente. Mas, te dás conta de que te apropriastes de tudo? Tudo isso, será de fato a tua opus vitae, obra tua?" O final daquela confissão foi também ao estilo do Pe. Pio. Subiu uma vez mais a voz: "Se somente vieste por esse motivo, podes ir embora!" O Padre Pio era rude, mas na sua aspereza estava refletido o seu grande amor por cada homem e por cada penitente. Ele era um homem cheio de amor, porém, o amor é algo muito forte. Esse amor do Pe. Pio fez com que a comovedora conversa, juntamente com a confissão, tivesse se transformado num momento de conversão na vida daquele cientista. Aquele homem começou realmente a pensar e a olhar o mundo de modo diferente. Abraão, nosso pai na fé, recebeu um dom admirável: um filho nascido tardiamente na sua velhice. Aquela foi a sua maior alegria, pois tinha recebido o maior tesouro para um ser humano: um
filho, um sucessor. Os pais habitualmente apropriam-se dos seus filhos, e é possível que Abraão tivesse sucumbido a essa tentação. Mas, quando Deus pediu a Abraão a vida do filho, ele imediatamente a cedeu. E, aceitou mesmo entregar da forma mais dramática aquele dom recebido. Mas, que teria acontecido se Abraão tivesse decidido não entregar o seu filho? Se ele tivesse se revoltado e considerado que a ordem de Deus era demasiado cruel? Que teria então sucedido? Isaac teria morrido. Pouco importa quais poderiam ter sido as circunstâncias da sua morte, fosse na seqüência de uma doença, ou que tivesse perecido numa luta, ou até sido devorado por algum animal selvagem. De uma ou de outra forma, seria tirado de Abraão, porque se interpunha entre ele e Deus. Isaac teria se tornado para Abraão um obstáculo ao seu total abandono a Deus na fé. A recusa de entregar o filho, teria significado que Abraão se apropriara dele. De fato, a apropriação de um dom eqüivale sempre à sua destruição, é como um golpe contra si mesmo e contra o próprio dom. Ao ceder entregar o seu filho não só o recuperou mas, ao mesmo
tempo, recebeu o dom multiplicado: a graça da santidade na qual o filho também participou. Abraão e Isaac são os primeiros santos patriarcas da Antiga Aliança.
A semeadura da desconfiança Quando analisamos o mecanismo da formação do mal no homem, damo-nos conta de que nas raízes do mal se situa a falta de simplicidade e de confiança em Deus, própria da criança. Assim foi desde a origem da humanidade, quando o primeiro casal humano foi submetido à prova da fé. No próprio início da história do homem, a sua confiança em Deus foi posta à prova. Era como se Deus perguntasse ao homem: "Confias em Mim? Tens, para Comigo, a simplicidade e a confiança próprias da criança?". O texto bíblico diz-nos claramente que o homem foi atacado por Satanás precisamente nesse ponto. Satanás não persuadiu o primeiro casal humano da prática do mal enquanto tal, não incitou-os diretamente ao pecado. O que faz é semear a desconfiança, de maneira psicologicamente perfeita, como só ele sabe fazer. Não diz:
"Sejam infiéis, desobedientes!". Não! O que ele procurou foi convencêlos de que em Deus não há amor, não há sinceridade, nem verdade. Na base do mecanismo do mal, que gerou o pecado original, está a semeadura da desconfiança, que tem grande repercussão psicológica. O homem que não confia entra em estado de insegurança. Se tenho falta de confiança em determinada pessoa, essa como que se torna numa ameaça para mim e começo a ter-lhe medo. O pecado da falta de confiança origina a insegurança e a ansiedade de que tanto se fala em psicologia e em psiquiatria e que são indicadas como algumas das principais causas do sofrimento humano. Assim, como não estamos livres do pecado, não podemos estar libertos de tudo o que deriva dele, como a inquietação, o medo e o sentimento de insegurança. Também nós somos tentados pela semente de desconfiança. Se existe, pois, falta de confiança na relação com Deus, o homem sente-se como que enjaulado e o decorrer da vida no interior dessa espécie de "jaula" de insegurança torna-se uma coisa terrível. O
pecado destrói também o homem, porque está atormentado pela angústia ligada ao próprio pecado. Considerando que uma das necessidades psicológicas fundamentais do homem é a segurança, a falta desta é, então, algo que nos atinge particularmente. Por conseguinte, estamos apenas a um passo da constatação de que merecemos a ansiedade contra a qual não lutamos. A Obra Redentora de Cristo, na qual, pela fé, somos participantes, continua ainda hoje e abrange não só o nosso pecado mas também todo o seu contexto. Assim, a ansiedade e a insegurança tornam-se igualmente objeto da Redenção. Ao morrer na Cruz, Jesus redimiu-nos da ansiedade e da insegurança, do mesmo modo que nos redimiu do pecado. Por isso, toda a sua vida deve ser orientada cada vez mais para uma maior abertura à ação salvífica de Cristo. Com efeito, da Cruz flui incessantemente a graça para que você possa ser salvo do pecado e também da angústia. Como lutar contra a angústia, que nos cerca por todos os lados? Se você se envolver em luta direta com ela, acabará em
fiasco. Só existe um caminho infalível: Abrir-se à ação redentora de Cristo, por de uma fé semelhante à de crianças, como a citada na Bíblia. Você tem que acreditar que Jesus o redimiu de tudo aquilo que o ameaça, que você é livre e deve dizer a si mesmo: "Não há nada que me possa ameaçar, porque Ele me salvou e me libertou de tudo; devo somente ter disso plena consciência". Afééa aceitação, é o processo de acolhimento da ação salvífica de Cristo. Um dia, quando São Pedro passava, por uma das portas do templo de Jerusalém, encontrou um paralítico que pedia esmola: "Não tenho ouro nem prata, disse, mas o que tenho, dou-te: Em nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e andar ( A t 3,6). Logo, o enfermo se levantou. Se bem que aquele pobre paralítico, pedinte, estava totalmente desamparado, mas tinha muita esperança. Decerto teria também muita daquela fé de criança, pois recebeu muito mais do que esperava. Você, que está paralisado pela ansiedade e pela insegurança, não pode ficar, necessariamente curado de imediato, como aquele
doente do relato bíblico. A sua cura dependerá, a priori, da intensidade da sua fé. Será preciso que tenha realmente uma confiança de criança. De fato, a sua cura pode acontecer num só instante ou pouco a pouco. Esse paralítico, que simboliza a sua situação será, neste caso, levantado cada vez mais alto, mas gradualmente, pela mão de Cristo, até que possa erguer-se com firmeza. No entanto, esse lento levantarse é também fruto da Redenção de Cristo. Crer é difícil, mas mais difícil ainda é não acreditar. Procure o mais freqüentemente possível, tomar consciência de que você não está só. De fato, Cristo, o seu Salvador, está junto de você. Procure opôr-se às angústias que o abatem, através duma interior atitude de criança impotente. Diga a Jesus: "Sei que queres purificar-me dessa espécie de lepra, e também que já me redimiste dela." Você sabe que pode ser testemunha de um milagre? Recorde o que Cristo disse: "Se tivésseis fé do tamanho de um grão de mostarda, diríeis a este sicômoro: Arranca-te e vai plantar-te no mar. Ele obedecer-vos-iá* (Lc 17,6). Você veria, então que, apesar de aos olhos do mundo a fé ser algo "desvalorizado", como
a semente de mostarda, como o mais minúsculo grão, essa fé possui verdadeiramente o poder ilimitado de Deus. Você veria que é ela que o abre à ação redentora de Cristo e que, de modo miraculoso, elimina a angústia. Então, num ápice, você se sentiria um homem livre. Você foi criado para a liberdade e para a paz, por meio da fé que abre você à Redenção realizada em Cristo, você deve permanentemente converter-se a essa mesma fé, pois ela é um processo contínuo. Esse processo atinge maior profundidade através de atos de fé, que nascem com maior freqüência diante de situações ameaçadoras. Despertando no seu intimo, atos de fé, em todas as situações, conhecerá o tranqüilo repouso da criança aconchegada nos braços de Seu Pai que o ama. O essencial do "pequeno caminho" de Santa Teresinha do Menin Jesus é a atitude de criança, livre de toda a espécie de medos graças à confiança própria da infância. Se, na origem da humanidade, o pecado surgiu como resultado da semeadura da desconfiança, então o "pequeno caminho", que sublinha a importância da
atitude de criança na confiança e no abandono a Deus, constitui o antídoto que podemos aplicar e é, por excelência, a antítese daquele acontecimento. O programa do "pequeno caminho" atinge o mal na sua própria raiz, porque a falta de confiança, essa semente de desconfiança para com Deus, é a origem de todos os seus pecados, de todas as suas angústias existenciais ou psíquicas e, indiretamente, também físicas. Se você confiar no Senhor, poderá extirpar pela raiz aquilo que o destrói. Confia no Seu amor! A prova de fé a que foram submetidos os nossos primeiros pais não foi excessivamente difícil, mas a Bíblia fala-nos também da tremenda provação a que Deus submeteu Abraão. Ele recebeu a ordem terrível de matar o seu próprio filho. Tratava-se, então, de uma situação em que teria sido fácil expôr-se à germinação da desconfiança: não confiar, mas revoltar-se. Abraão, no entanto, e apesar das trevas que o envolviam, confiou. Como é importante uma confiança assim tão plena em Deus, confiar como criança n Aquele a Quem tanto ferimos com o nosso pecado de desconfiança!
Se porventura lhe sucedeu alguma vez que alguém a quem muito amava, tenha perdido a confiança em você, então você sabe bem como é doloroso. E, não se tratando de uma mera situação de amizade humana lesada pela desconfiança, mas de idêntica situação ligada ao amor infinito de Deus, podemos imaginar como deve ser grande a dor infligida, pela nossa desconfiança, Aquele que é o Amor. Se você diz: "Tenho medo de tudo entregar a Deus", esteja certo de que O estás ferindo como com uma bofetada, pois é como se Lhe dissesse: "Não confio em Ti, não sei o que pretendes fazer comigo." Se uma criança dissesse semelhante coisa a sua mãe lhe causaria grande mágoa. Qual não será, pois, a dor de Deus, quando o homem O flagela com semelhante falta de confiança?! A desconfiança é, em certo sentido, pior do que o pecado, pois ela é a raiz e a própria causa do pecado. Se você não quer confiar, se o seu inimigo conseguiu semear no seu coração a desconfiança, as conseqüências vão surgir: ansiedade e sensação de insegurança e ainda o sofrimento delas resultante. Serão as conseqüên-
cias desse mal a mostrar-lhe o quanto você se afastou de Deus. O sofrimento, a angústia e a insegurança serão para você um incessante apelo à conversão. Deverá carregar o fardo da angústia até que se converta, até que seja como um pequenino que com simplicidade se entrega nos braços do Seu amado Pai. "É preciso aplicar o tratamento ao doente demoradamente", diz L. Szondi, "até que aprenda a orar". Não consiste, porém, no mero recitar de uma prece, antes de uma profunda atitude de oração, oração da criança confiante que se abandona plenamente nos braços de Seu Pai.
A pobreza de coração enquanto atitude de infância Crer, como já referimos, é reconhecer a própria fraqueza esperando receber tudo das mãos de Deus e equivale, portanto, a ter atitude de criança. A criança reconhece, de fato, que carece de tudo e que não é capaz de nada. Está cheia de expectativas e acredita que há de receber tudo quanto necessita. "Se não vos tornardes como crianças não entra-
reis no Reino dos Céus" {Mt 18,3). A conversão à atitude de criança, é condição indispensável para entrar no Reino de Deus. E preciso que algum dia você se torne criança, ou seja, confiante, humilde, esperando tudo do Senhor. Se isso não acontecer aqui, terá que se realizar no Purgatório. O estado de infância espiritual é absolutamente indispensável, não apenas para a santificação, mas também para a salvação. Aquele que é criança na perspectiva bíblica espera tudo de Deus, literalmente tudo. A dimensão de infância da nossa fé eqüivale a que não nos apoiemos em cálculos vulgares, humanos, mas que, em vez disso, esperemos algo a que a criança chamaria surpresa, ou seja a espera de um milagre. Na medida em que você for criança será também jovem de espírito. Uma pessoa pode ser já velha aos vinte anos. Mas, pode também ter oitenta anos e graças ao espírito de infância, permanecer jovem. Deus é sempre jovem e a Igreja, instituída por Cristo, também o é, e por isso é que precisa de pessoas de espírito jovem; daí que precise que haja em você, aquela criança capaz de crer em tudo.
O "velho", habituado a calcular tudo, a fazer o permanente balanço do positivo e do negativo, limita as possibilidades da ação de Deus, porque põe entraves ao Seu amor e à Sua misericórdia. Calcular e contabilizar continuamente - se isto pode ou não ser bem sucedido, se aquilo terá ou não hipóteses de êxito - são características próprias da velhice. A criança quer a lua e está certa que a terá. Ora, na realidade Deus quer dar a você bem mais do que a lua. Quer dar-lhe o Seu Reino, mas, se você não tem atitude de criança, é como se Lhe amarrasse as mãos. Crianças são também os "violentos" do Evangelho, de quem Jesus diz que arrebatam o Reino dos Céus (cf. Mt 11,12). Quando a criança quer entrar em casa o faz a todo o custo, desfechando na porta socos e pontapés até que esta seja aberta. Jesus disse: "Batei e abrir-se-vos-ã" (Lc 11,9). Se soubéssemos bater insistentemente às portas que encontramos cerradas - fechadas para que batamos como as crianças então estas haveriam de se abrir. Deus precisa da sua fede criança para poder operar milagres, em você e através de você, pois para Deus não há impossíveis. "Tudo é possível para
quem crê" {Mc 9,23). Tudo é possível para aquele que é como a criança que Jesus aponta no Evangelho. O Evangelho mostra-nos duas anunciações: a anunciação a Zacarias e a anunciação à Virgem Maria. Zacarias mostrou ser velho, tanto em idade, como em espírito, um homem que atava as mãos a Deus por não ser capaz de acreditar na possibilidade do milagre. Para que chegasse a crer, teve que ser atingido por outro milagre, doloroso para ele: o da privação da fala. Tal velhice espiritual do homem, incapaz de crer em milagres, é para Deus algo terrível. O homem a quem falta a atitude de criança reduz, de certo modo e antecipadamente, a nada a eficácia das suas orações, uma vez que há nele algo da atitude de Zacarias. Aquele ancião irrepreensível, "justo diante de Deus", não possuía descendentes e suplicava um filho. Rezava, mas a verdade é que, ao mesmo tempo, não acreditava sinceramente que Deus quisesse atendêlo. Quando o Anjo lhe anunciou: "O seu pedido foi atendido, Isabel sua mulher dará à luz um filho" {Lc 1,13), ele reagiu como se não quisesse receber o filho: não acreditou no milagre. Expôs um argumento
contrário ao seu próprio pedido: "Sou velho e a minha mulher já de avançada idade" {Lc 1,18). Homem "velho" que perdera a fé no seu Deus! Também nós parecemos freqüentemente com Zacarias. Certo prior, conta A. Pronzato, que reunira os seus paroquianos para, numa cerimônia especial, pedir a Deus a chuva, observou-lhes pertinentemente: "Vieram para pedir chuva. Mas, onde estão os vossos guarda-chuvas?" A segunda anunciação é a Anunciação à Virgem Maria, que demonstrou de tal modo ser "criança" a ponto de estar disposta a aceitar tudo. Maria está numa tal disponibilidade, que Deus por Ela pode fazer maravilhas. Ela aceitou tudo, em tudo acreditou, porque a sua atitude para com Deus estava repassada daquele espírito de infância, que é o verdadeiro poder. Você já pensou alguma vez que o mundo é governado pelas crianças e não pelos velhos? Sim. Os pequeninos governam o mundo, porque aquele que em seu espírito é criança "tem poder sobre Deus" isto é,
n
Deus não lhe pode resistir; não pode resistir a um olhar de criança cheio de verdadeira fé. Quando Pedro caminhava sobre as águas, em direção a Jesus, deixou, a certa altura, de ser "criança". Pôs-se a fazer cálculos em termos vulgares: "Avancei até aqui porque a superfície da água estava calma, mas vejo que se aproxima uma onda... serei capaz de continuar a avançar?". Chegaram a lógica e os cálculos humanos e extinguiu-se a fé. Nesse mesmo instante, e porque deixou de ser "criança", Pedro começou a afundar. Reagiu como um velho e, posteriormente, durante largo tempo ainda, continuará "velho" e, precisamente por isso, negará Jesus. Pode-se dizer que você peca porque é "velho", porque a velhice espiritual bloqueia a sua abertura à graça e ata as mãos de Deus. Deus é jovem e quer, como por encanto, conceder-lhe a lua. Se, à Santa Teresinha do Menino Jesus, Deus deu aquela neve no dia da sua tomada de hábito, que foi essa neve senão a sonhada lua? Deus ama essa atitude de quem não estabelece limites. Ora, tal é a
atitude da criança. A criança desconhece os limites do possível, é perseverante até à loucura, aberta a tudo o que é novo - a criança sabe acreditar. Deus é sempre jovem e não acaba de surpreender o homem. A experiência de Deus é a de uma realidade surpreendente e o homem que tenha aquela atitude de infância bíblica, é sempre capaz de se extasiar. Tal homem, ao observar o universo, consegue se maravilhar com tudo o que o rodeia. Mas no momento em que você deixar de ser criança diante do Senhor, sobrevirá a crise na sua vida interior, você começará a retroceder e deixará de crer e de amar. Apenas dois tipos de pessoas acreditam em milagres: os santos e as crianças. Mas, na realidade, trata-se de uma e mesma categoria de pessoas, já que os santos são, espiritualmente, crianças. O próprio Deus Sefez criança em Jesus E isso aconteceu não apenas em Belém, mas também na Cruz, onde estava totalmente indefeso e em tudo dependente dos homens. Esse Deus feito Menino deseja que a nossa fragilidade e a nossa fraqueza nos impulsionem a que em tudo nos abandonemos a Ele e
que elas nos conduzam a uma ilimitada confiança na Sua Misericórdia. A parábola do filho pródigo deveria chamar-se, de preferência, parábola do pai misericordioso. O filho mais velho, uma das três personagens do drama, não desperta a nossa simpatia: é ciumento e impertinente para com o seu pai. Á nossa simpatia dirige-se para o filho pródigo regressado a casa, tanto mais que é o nosso "gênero". Quase de imediato nos identificamos com ele. Mas, será que se trata realmente de um tipo de pessoa autenticamente bíblica? O Evangelho mostra que o seu regresso foi calculado. Voltou na esperança de que com seu pai viveria melhor, pois bem sabia que ele pagava aos seus empregados mais do que aquilo que ele recebia do patrão. "Levantarme-ei e irei ter com meu pai, e dir-lhe-ei: (...) já não sou digno de ser chamado seu filho, trata-me como a um dos seus trabalhadores" (Lc 15,18). A parábola do filho pródigo parece inacabada. Nela se delineia a continuação do drama do filho pródigo - o drama da sua atitude de mercenário. Ele quer ser para seu pai alguém com quem se pode combinar o salário, como os trabalhadores da vinha que
ajustam com o patrão em trabalhar por um denário (cf. Mt 20,1-16).
seu
Portanto, se o regresso do filho pródigo não é feito em atitude de criança, mas na de mercenário, decerto voltará a partir, uma e outra vez, não se sabe quantas. O filho que tem alma de mercenário é incapaz de se maravilhar com o amor. O filho pródigo não se deu conta da ferida feita a seu pai, não notou a dor dele, só foi capaz de ver a sua própria desgraça e empenhou-se em encontrar uma saída para ela. Na parábola dos trabalhadores da vinha, aqueles que se admiraram com a bondade do patrão foram os que trabalharam a última hora sem contrato e não aqueles que, logo na primeira hora, ajustaram por uma quantia certa. Somente a criança como a citada na Bíblia é capaz de se maravilhar, porque a admiração supõe contraste. A criança sabe que é um pequeno "nada" e que é constantemente cumulada de algo grande. Esse enorme contraste, entre o seu próprio "eu" e o dom recebido, geram a sua admiração.
O homem só chega a ser cristão quando se torna "criança", quando começa a maravilhar-se com a loucura do amor de Deus, seu Pai. Encontramos aqui um novo aspecto da infância cristã: uma certa identidade entre a criança e o pecador arrependido. Em que consiste a contrição? Trata-se do arrependimento, do pesar sentido diante da Cruz quando, consciente da miséria própria e da sua condição de pecador, você contempla a Cruz e as chagas abertas de Jesus; quando, em espírito, você procura beijar essas feridas que você mesmo provocou, isso ê a contrição. No filho pródigo faltava esta contrição. Será somente a partir do momento em que, contrito, beije as chagas de Jesus, no Seu amor, que você se volta para Deus em atitude de "criança" e, somente um tal regresso tem sentido. Não torne nunca a Deus como mercenário, senão de novo O voltará a trair. Vemos verdadeiro arrependimento na pecadora do Evangelho durante o seu encontro com Jesus na casa do fariseu Simão. A sua simplicidade, a sua espontaneidade e a sua autêntica contrição, testemunham a atitude da criança citada por Jesus. Para manifestar a Jesus o arrependimento, aproximou-se d'Ele e, sem fazer caso de
s
respeitos humanos, ungiu-O com perfume, banhou-Lhe os pés com as suas lágrimas e secou-lhos com os seus cabelos (cf. Lc 7,36). Eis a simplicidade, a espontaneidade e a contrição dos pecadores que possuem essa atitude de infância referida no Evangelho. Aqueles que verdadeiramente amam a Deus são os pecadores arrependidos, aos quais muito perdoou, e os santos, porque uns e outros têm natureza de "criança" sabem maravilhar-se diante do amor de Deus e da loucura do Seu amor por eles. Não os mercenários, mas as "crianças", náo aqueles que acumulam méritos e se esforçam por fazer contratos com Deus, mas aqueles que crêem na Sua Misericórdia. Porque, na realidade, só a criança crê verdadeiramente.
PARTE II O DINAMISMO DA FÉ A fé entendida como expressão da nossa relação com Deus é um fenômeno dinâmico, é um processo sujeito a contínuas transformações. Esse processo realiza-se em nós por iniciativa de Deus e resulta da resposta do homem, contendo em si a plena confiança. O Senhor destrói a nossa estabilidade e y servindo-se das situações difíceis, põe em causa a nossa anterior confiança para proceder à sua dinamização através deste despojamento. As situações difíceis, sejam internas ou externas, sendo um apelo à nossa conversão, deveriam tornar mais dinâmica a nossa adesão a Cristo, deveriam conduzirnos a apoiarmo-nos nEle, a confiarmos e a
esperarmos das mãos d'Ele.
tudo
Se a nossa fé não cresce, pode se tornar um talento enterrado, embora Deus não queira permitir isso. Ele não quer que a nossa fé seja inerte. E por isso que, na esperança de que ela se aprofunde e se dinamize, Deus permite as situações difíceis que nos obrigam a optar constantemente. O dinamismo da fé torna-se efetivo em conseqüência das provas que polarizam as atitudes humanas, que conduzem quer à crise de fé quer à sua decisiva intensificação. A nossa fé está sempre em mudança. Do mesmo modo que há um ano atrás a sua fé tinha outra intensidade, também daqui a um ano ela já será diferente. Surge assim uma questão muito importante: Estará a sua fé a aumentar ou a diminuir? A realidade é que nós não somos ainda tão crédulos e tão cristãos quanto havemos de vir a ser. Do mesmo modo, não podemos dizer que vivemos já o Evangelho, mas que tendemos a
vivê-lo sempre cada vez mais.
CAPÍTULO l
A CONVERSÃO COMO DIMENSÃO DA FÉ A dimensão estável e fundamental da fé é a conversão. E ela que faz com que a nossa fé não permaneça estática e que possa sofrer um constante processo de aprofundamento. A conversão, enquanto dimensão da fé, não é um ato único mas antes um processo, que eqüivale a uma mudança do pensamento e a uma manifesta mudança de atitudes. No processo da conversão a pessoa afasta-se do mal e voltase para Deus. Afastar-se do mal não significa apenas o afastamento do pecado, mas também o afastamento daquilo que está na sua própria
origem: próprio.
o
amor
As repreensões que Jesus dirigia aos Apóstolos visavam quase sempre a falta de fé que neles via. O Senhor criticava-lhes freqüentemente, o fato de não crerem, ou de crerem demasiadamente pouco. Podemos ver nisso um específico paradoxo bíblico: Jesus reprova a falta de fé precisamente àqueles que O haviam seguido, que tinham acreditado n'Ele e retoma essa repreensão em diversas ocasiões. A Sua atitude de pôr em dúvida a fé dos Apóstolos tinha como objetivo a sua conversão. Você também é convidado a questionar a sua fé, para que possa concluir que ela deve crescer continuamente; que na sua forma atual deixará em breve de te servir, segundo o princípio que diz que o alcançado hoje já não será suficiente amanhã.
Felix culpa A nossa fé deve desenvolver-se num contínuo processo de conversão Cristo ressuscitou e isso quer dizer que não há derrotas definitivas na nossa vida, que não há nenhuma vida desperdiçada e que não há mal que sempre dure'. Depois de cada falta, após cada
fracasso ou cada pecado. Deus oferece-nos um plano de Redenção melhor do que se não tivéssemos pecado. É aquilo que dizia o texto da antiga Liturgia do Ofertório: "O Deus, que maravilhosamente criaste a dignidade da natureza humana e que de forma ainda mais maravilhosa a regeneraste." Deus não permitiria a existência do mal se dele não pudesse retirar o bem. O nosso pecado pode ser a "falta feliz" de que nos fala a liturgia de Sábado de Aleluia. Deus nos propõe continuamente uma maravilhosa reparação daquilo que o pecado destruiu. Tudo pode se tornar ainda mais belo do que se não tivéssemos pecado. Deus pode fazer cada uma das nossas faltas, uma "felix culpa"— culpa feliz — falta essa que, à luz da fé, nos irá despertar e mostrar como nos ama Aquele que morreu e ressuscitou por nós; falta que nos vai mostrar, à luz da fé, a paciência, a ternura e a alegria com que o Senhor perdoa as nossas faltas. Todos os seus pecados se deveriam tornar culpas felizes. "Você não entrará no Céu enquanto todas as suas faltas não se transformarem em culpas felizes" (Touis Evely, "O caminho da alegria"). Uma "falta
feliz" é, com efeito, a descoberta na fé, da ternura, da delicadeza, do amor e da alegria com que Jesus abre os braços para acolhê-lo. É uma descoberta, na fé, da loucura de Deus: Deus que tanto o ama e tanto deseja perdoá-lo. Se à sua volta você vê predominar o mal e o pecado é porque a sua fé é unilateral. Não percebe que esses pecados são uma ocasião para a Misericórdia divina Se derramar — e isso é o mais importante. Pense que, se todos os homens fizessem das suas faltas "culpas felizes" que oceano de Misericórdia poderia inundar o mundo! Como este haveria de mudar! Mas, ao contrário, você se desencoraja e se fecha em si mesmo considerando que Jesus já não pode amá-lo porque você é mau. Essa é uma deformação do Seu rosto e uma deformação da sua fé; é uma ferida feita ao Seu Amor. O Pe. Huvelin, confessor de Carlos de Foucauld, revelou certa vez que Deus lhe concedera a graça de sentir dentro de si um ardente desejo de conceder a absolvição. Nesse desejo que Deus inspirara ao Pe. Huvelin exprimia-se justamente aquela constante e
insaciável vontade que o Senhor tem de nos dar continuamente o Seu perdão. É por essa razão que você deve combater a tristeza. Se você se afastou de Deus, não importa em que medida, poda sempre regressar. Depois de cada queda, lembre-se de que Ele o espera, que você Lhe proporciona alegria quando regressa e pede perdão, pois permite a Ele amá-lo, por meio do perdão. Alguém disse que a queda é uma ruptura do laço que nos liga a Deus, é como se cortássemos a corda que simboliza esse laço. No entanto, quando você pede perdão a Jesus e se volta para Ele, essa corda é novamente apertada. Fica um nó, é certo, mas a corda tornou-se mais curta e você mais próximo do Senhor. A sua falta torna-se uma "culpa feliz™.
As conseqüências do mal O extraordinário amor de Deus para com os pecadores e a pedagogia que usa conosco estão bem evidenciados na parábola do filho pródigo. Ele pode permitir a sua queda, se a sua fé é inexpressiva e morna. Deus não quer o mal, mas pode consentir nas suas conseqüências, pois
estas trazem-nos a graça, trazem consigo o apelo à conversão. Vêmo-lo claramente no exemplo do filho pródigo» Nesta parábola de Jesus Cristo, encontramos o pai que ama e os dois filhos que não amam. Vemos de forma nítida que o filho mais velho não ama seu pai, pois a sua atitude impertinente para com ele e o ciúme que mostra ter do irmão sobressaem no final da parábola. O filho mais novo também não tem amor a seu pai já que o deixou, não por algum tempo, mas definitivamente. Se bem que podendo ter-se oposto à partida do filho, o pai não o fez. Permitiu-lhe que tomasse o seu quinhão e partisse, pois não se pode obrigar alguém a amar. Sabemos quais foram as conseqüências da partida do filho, sabemos que foi caindo cada vez mais baixo e que a sua vida se foi tornando mais e mais penosa. No nosso comentário podemos procurar fazer valer certos elementos que não estão diretamente na parábola. Podemos, por exemplo, supor que o pai tenha tomado conhecimento do que se passava com o filho mais novo pelos seus servidores, sabendo assim
que ele quase morria de fome, que estava sem abrigo e que andava completamente perdido. Suponhamos que, querendo poupar o filho de tal sorte e de tal humilhação, o pai tenha decidido enviar um servidor seu, às claras ou em segredo, com uma bolsa de dinheiro, o que lhe permitiria levar uma vida normal, ou ainda o regresso à vida desregrada. Seria este tipo de ajuda que o pai poderia proporcionar repetidas vezes, capaz de provocar o regresso do filho? Tudo parece indicar que não. Quer isto dizer que, ao amar o filho, o pai não deveria protegêlo das conseqüências do mal que o próprio filho desencandeara. Pelo contrário, o seu coração paternal devia arcar com o sofrimento infligido pelo filho. Em resultado do mal cometido por aquele filho pródigo, duas pessoas são "crucificadas": o pai, que sofre por causa da decadência e da queda do filho e o próprio filho que deve suportar as conseqüências das suas próprias quedas. No entanto o pai, com o amor que lhe dedica, deve esperar, mesmo que isso comporte algum risco; esperar que o mal atin ja o seu limite e que as suas conseqüências comecem a se fazer sentir.
São precisamente elas que, agindo sobre o amor próprio do filho, o incitarão ao regresso. Sabemos que a um dado momento a medida atingiu o limite máximo e que a degradação do filho se traduziu, não apenas por uma queda moral das mais fundas, mas também pela sua degradação física. Na verdade, o filho teria aceitado, inclusive, comer as bolotas destinadas à alimentação dos porcos que, segundo a crença dos habitantes da Palestina, eram animais impuros. Aquela referência simboliza, portanto, o grau de baixeza da queda. Nessa altura, as conseqüências do mal começaram a fazer efeito. O filho já se encontrava numa tal miséria que uma idéia friamente calculada lhe veio ao espírito: valia mais voltar à casa paterna, pois lá servidores e operários eram melhor tratados do que na casa do seu atual patrão. Na verdade, não foi o amor ao pai que impeliu o filho pródigo a regressar à casa paterna, mas foi um vulgar e interesseiro amor próprio, o cálculo frio de que essa idéia seria a melhor, não para seu pai y mas para si mesmo. Só quando vê o pai correr ao seu encontro, quando vê
as suas lágrimas de alegria, quando se encontra nos seus braços, quando mais tarde é vestido com a mais bela túnica, quando no dedo lhe é metido um anel e quando vê que o pai prepara um festim para celebrar o seu regresso surge então a oportunidade para que descubra o amor do pai. Eis por que as conseqüências do mal poderão estar associadas à graça. Deus pode consentir que assim seja, para que as conseqüências do mal nos levem à conversão. Por vezes, só a queda e o sofrimento dela decorrentes são susceptíveis de produzir no homem a comoção e de o incitarem à conversão. Pelos seus efeitos, o mal torna-se então uma " falta feliz”.
Não se pode conhecer Cristo sem conhecer o homem Para que o nosso pecado se possa converter numa "falta feliz' é preciso primeiro reconhecer que o cometemos. São João transmite-nos no seu Evangelho a promessa de Cristo de que o Paráclito, o Espírito Santo, pela Sua vinda, convencerá o mundo do pecado (cf. Jo 16,8).
Uma das operações do Espírito Santo, que desce sobre o mundo, é, portanto, fazer-nos tomar consciência do nosso pecado. Trata-se uma graça preliminar e fundamental na vida interior que nos é concedida pelo Espírito Santo, para que possamos reconhecer os nossos pecados, a nossa condição de pecadores. Não basta, no entanto, recebermos esta primeira graça do Espírito Santo. Se nos limitássemos a conhecer a realidade do pecado em nós, esta nos poderia destruir. Deste modo, a nossa vida seria um contínuo abatimento sob o peso do nosso mal, seria inquietação, stress e tristeza. Devemos permanecer abertos aos outros dons do Espírito, à descoberta, por meio da fé, do amor de Deus por nós. Na homília proferida na Praça da Vitória, em Varsóvia, o Papa João Paulo II pronunciou estas memoráveis palavras: “Sem Cristo não é possível compreender, até ao fim, o homem" (Varsóvia, 2,VI.79). Isso significa que, se você não notar de que Cristo entrou na sua vida, a imagem que tem de si próprio estará incompleta e, por isso mesmo, falseada. Se o Espírito Santo lhe mostra que é pecador e se você não descobre Cristo que o ama, você pode vir a cair no
abatimento. Para o homem, determinadas relações são de tal modo importantes que fazem parte da sua essência. Uma delas é a relação de amor. Sem Cristo n ão podemos conhecer a nós mesmos, já que sem Cristo não reconheceremos que somos amados e que fomos salvos e eleitos. Esta eleição, este amor, constituem uma parte essencial do nosso "eu" a que não nos podemos opor. Há ainda uma segunda vertente nesta verdade: não podemos cer Cristo sem conhecer o homem. Nã Não o pode podemo moss compreender quem é Deus, nem tão pouco crer na Sua grandeza e no Seu amor para conosco se não não nos nos desc escobrir brirm mos a nós nós pró próprio prioss. Se Cris Cristto o amasse por ser digno de ser amado nada haveria de particular nisso. Mesmo o homem descrente é capaz de amar aquele que é amável. O amor de Cristo, enquanto "ágape" de Deus, é um amor que desce das alturas e ama o que é indigno de ser amado, a fim de torná-lo digno. Quanto mais você reconhecer a sua condi ndição de pecador e a confe nfessar, tanto mais descobrirá Cristo e mais plenamente acreditará ríEle. Tal é o paradoxo da fé. Não se pode
conhecer Cristo sem conhecer o homem. E por isso que se pode dizer que somente os santos conheceram verdadeiramente a Cristo, porque se conheceram a si mesmos até ao mais íntimo do seu ser e deram-se conta da imensidão da sua condição de pecado. A descoberta dessa realidade permitiu-lhes deparar com a loucura de Deus que expressaram, várias veze vezes, s, em or oraç ação ão,, dest deste e mo modo do:: "Enl "Enlou ouqu quec eces este te,, me meu u Deus, se a mim, tão grande pecador, me tens tão grande amor!". Chega assim aquele característ terístico ico moment momento o de deslumbramento que acompanha toda a vivência autenticamente religiosa. O homem que fez a descoberta da sua condição de pecador e que acreditou no Amor começa a compreender que Deus enlouqueceu verdadeiramente de amor por ele.
Como reconhecer o mal que existe em nós O co comb mbat ate e da fé7 ente entend ndid ido o co como mo proc proces esso so de conversão, comporta em si a luta contra a agitação, a inquie inquieta tação ção,, o stress e sobr sobret etud udo o co cont ntra ra a tris triste teza za.. A tristeza é uma evidente manifestação do amor próprio que corta pela lass raíze ízes a fé e o abandono. no. Não se trata
somente daquela tristeza que que nos nos inva invade de no des desenr enrola larr das das difi dificculda uldade dess temporais, quando somos privados, parcial ou totalmente, de algo, mas, mais ainda, se trata da melancolia que nos aflige em face das dificuldades espirituais; quando caímos, quando cometemos alguma infidelidade. A tristeza exerce um efeito paralisante sobre a nossa fé. Depois de uma queda não devemos ficar abatidos, pois causamos maior dor a Deus do q ue propriamente quando pecamos. Além pecamos. Além disso, dizem os santos, que depois de termos caído devemos esperar receber ainda maiores graças do que antes da queda. A luta pela aceitação dos fracassos e insucessos da nossa vida deveria abarcar todas as situações, mesmo as mais insignificantes. Quando São Maximiliano Maria Kolbe jogava dama com os seus confrades preferia per erde der. r. Era Era o seu seu "agir "agir contra contra,, a sua maneira de se desligar do amorpróprio a fim de poder voltar inteiramente para o Senhor. Para não se entristecer com as suas imperfeições procure olhá-las à luz da fé na certeza de que Cristo o aceita tal como você é. Pode ir ao Seu encontro com todas as suas imperfeições e todas as suas fraquezas.
Ele reparará o que você fez de mal e suprirá todas as suas imperfeições. Diante de nós coloca-se um problema de extraordinária importância: devemos por um lado odiar o mal que há em nós mesmos e, por outro lado, temos que nos aceitar como somos. De fato, você não pode amar am ar a sua sua próp própri ria a impe imperf rfei eiçã ção o enqu enquan anto to tal, tal, a únic única a coisa que pode amar am ar nela nela são são as suas suas co cons nseq eqüê üênc ncia ias. s. Essa Essass serv servir irão ão unicamente para que você seja mais humilde, mais confiante e mais fiel. O fato de comete me terr peca pecado doss não não deve deveri ria a surp surpre reen endê dê-lo -lo.. Seria Seria ma mais is conveniente que, com espírito de humildade, se admirasse antes quando não os cometa. Se você se surpreende ou desanima com as suas quedas, isso prova que, em lugar de se deixar levar nos braços de Jesus, você colocou a sua confiança nas suas próprias forças. Na verdade, "num único ato de amor, mesmo não sentido, tudo é reparado", afirma Santa Teresinha do Menino Jesus {Carta à Celina 20.X. 1888). "Não nos devemos, pois de modo algum, desencorajar com co m as falt faltas as próp própri rias as,, já que que as cria crianç nças as ca caem em co com m freq freqüê üênc ncia ia send sendo o em embo bora ra dema demasi siad ado o pequ pequen enas as para para
muito se magoarem" {Caderno Amarelo, da Madre Inês 6.VIII.1897). Santa Teresinha do Menino Jesus gostava muito de confiar a Jesus as suas faltas e infidelidades. Dizia ela que desse modo procurava atrair a Sua misericórdia, dado que Ele veio para os pecadores e não para os justos. Como isto é importante para nós, que nos entristecemos com as nossas quedas! "Que importa, meu Jesus, se caio a cada instante, vejo nisso a minha fraqueza e para mim é grande ganho... Vedes assim do que sou capaz e logo sereis tenta ntado a levar-me -me nos Vossos braços..." {Carta à Celina, 26.IV.1889). À medida que nos aproximamos do fim último, que é Deus, Ele parece estar cada vez mais longe. E normal e está certo. Vendo a distância que a separava de Deus, Teresinha, de modo algum, se entristecia: "Oh! Como sou feliz por ver-me imperfeita e por tanto precisar da Misericórdia do bom Deus na hora da morte!" {Caderno Amarelo, da Madre Inês 29.VII.1S97). Se você se sente fraco e pecador, então tem especial direito a estar
nos braços de Jesus, pois Ele é o Bom Pastor que procura as Suas ovelhas perdidas, fracas e desvalidas, as que não conseguem acompanhar o andamento do rebanho. Permita a Jesus que o tome nos Seus braços, consente que o ame, creia no Seu amor. Para ter direito a estar nos Seus braços importa que haja em você uma atitude de humildade, deve reconhecer e crer que é fraco e pecador. Mas, simultaneamente, tem que acreditar no Seu amor; deve acreditar que Jesus o toma nos Seus braços precisamente porque você é pecador, fraco e, que por si próprio, p róprio, de nada é capaz. Será então a fé a gerar em você a gratidão pelo amor incessante que o Senhor lhe dedica - a você que é fraco, pecador e impotente - tanto na vida temporal como na espiritual.
O Sacramento da Conversão Cada vez que você se aproxima com sincero arrepe arrependi ndimen mento to do Sacram Sacrament ento o da Reconc Reconcili iliaçã ação, o, ao qual podem demos cham hamar também bém de "Sacramento nto da Conversão", é ofer ferecida uma uma grande nde oportunid nidade para que a sua fé aumente. Acontece com freqüência na
nossa vida que o Sacramento da Reconciliação não desempenhe o papel que deveria ter, devido à rotina, ao hábito e à falta de preparação e de disposição interior. Talvez você não se dê conta de que, tal como a Eucaristia, este sacramento é também um canal particular de graça e de encontro com Jesus Cristo. É possível, também, que você nem sequer se lembre de rezar pelo seu confessor ou diretor espiritual, para que ele possa ser para você um instrumento de Deus, cada vez mais perfeito e como auxílio eficaz no desenrolar da sua conversão. O exame de consciência deve constituir um profundo olhar dirigido ao seu interior, a fim de observar para onde se orienta a sua vida, o que é que para você tem maior valor e quem épara você Jesus E é sobretudo disto que devemos confessar a nós mesmos: Quem é Jesus Cristo para você? Qual é a sua principal opção? Você está certo de que, verdadeiramente, O escolheu com radicalidade? E por aqui que deve começar a confissão dos nossos pecados, porque é isto o mais importante. Se você não fez ainda a sua opção por Jesus Cristo, pode ter a certeza de que todos os seus outros pecados não são
mais do que a conseqüência e o resultado do seu pecado fundamental. Os pecados podem ser de vários tipos: os pecados cometidos e os de omissão. E estes últimos são, em geral, os piores. Entre eles encontra-se aquele que consiste em deixar Jesus, O abandonar, não Lhe conceder senão uma pequena parcela do seu coração. E esse é o seu maior mal, precisamente ser acomodado e ter falta de radicalidade, essa realidade de que Jesus ainda não é para você o valor máximo, que Ele não é tudo para você, o que eqüivale dizer que a sua fé continua frouxa. ' Entre as cinco condições necessárias para uma boa Confissão, a mais importante é o ato de contrição. Como você se prepara para a confissão? A preparação direta para o seu encontro com Cristo deve consistir em primeiro lugar no arrependimento, porque é o que melhor pode abrir você ao canal de graças que é o "Sacramento da Conversão". Pode acontecer que não dê o devido apreço ao tempo que antecede o Sacramento da Reconciliação, mas você tem que saber que esse é um tempo precioso. Deveria dedicá-lo, prioritariamente, a suscitar atos de arrependimento. A contrição deve ser a sua atitude diante da Cruz, a
dor por ter ferido o Senhor com o seu pecado, o desejo de pedir perdão a Deus e de reparar o mal cometido. O seu arrependimento deve ser cada vez mais profundo, pois dele dependerá a eficácia do Sacramento da Reconciliação. Você não pode se converter enquanto não estiver plena e sinceramente arrependido. Existem dois tipos de religiosidade: uma delas poderia ser qualificada como "egocêntrica" e a outra "teocêntrica". No primeiro caso, o homem centra a atenção em si próprio; não toma Deus em consideração mas somente a sua própria situação. Vai à confissão com a idéia de se purificar por lhe pesar o seu pecado e para estar de "bem" com Deus. Para tal homem, a confissão pode funcionar como uma "aspirina" específica para a dor de consciência, uma pílula que o apazigua e lhe restitui o bem-estar moral. E, portanto, uma atitude de quem está permanentemente centrado em si próprio. Uma tal pessoa, ao receber a absolvição, retira-se do confessionário sem tristeza, mas também sem alegria, pois há de continuar concentrada no mal que acaba de descarregar da sua consciência.
Quando analisamos a pessoa e o comportamento de Judas de ter traído Jesus, encontramos muitos elementos da confissão. Há o exame de consciência, pois Judas reflete no que fez e toma consciência do mal Vjue praticou. Há também o arrependimento, porque Judas arrependeu-se do que fez. Quer mesmo mudar de atitude, o que significa que também tem propósito de emenda. Há também a confissão dos pecados, quando Judas afirma diante dos sumos sacerdotes: "Pequei ao entregar sangue inocente" (Mt 27,4)- Há mesmo a reparação do mal feito, pois ele atira aos sumos sacerdotes as trinta moedas de prata que deles recebera: não quer o preço do sangue. Em verdade, todas as condições para uma confissão aparecem no comportamento e na atitude de Judas. Apenas uma faltou, a mais importante: a fé na Misericórdia de Jesus (Louis Evely, "O Caminho da Alegria"). Precisamente por isso a "confissão" de Judas é tão triste, tão trágica e acaba no desespero e no suicídio. A nossa confissão deve ser do tipo da de São Pedro que acreditou na misericórdia de Cristo e se centrou, não tanto no seu
pecado, mas no perdão. O homem de religiosidade "teocêntrica' não se fixa tanto nos seus pecados mas, pelo contrário, toma-os como ponto de partida para, através da fé, fazer a descoberta da Misericórdia de Deus. Ao aproximar-se do confessionário, pensa, sobretudo, que feriu Jesus e deseja renovar a amizade que voluntariamente lesou. Quer, pelo arrependimento e pela contrição, dar a Cristo a possibilidade de ser perdoado e sabe que, dessa maneira, Lhe proporciona grande alegria. "Crucificaste Cristo" - dizia o Santo Cura d'Ars - "mas quando vos ides confessar, ides libertá-Lo da Cruz." Se você feriu a Cristo, as Suas chagas estão sangrando; se quer que elas sarem, você deve procurar receber o Sacramento da Reconciliação. Deve ir por causa d'Ele, não para obter a sua tranqüilidade interior, mas para proporcionar a Jesus a alegria de formar em você o homem novo através das graças do sacramento. Algumas pessoas lastimam-se depois da confissão por não conseguirem corrigir-se. Talvez você também pense que a confissão existe para que se torne melhor e, se assim não acontece,
considere que as suas confissões não têm sentido. Talvez pense ainda que, deve procurar ser melhor mas não se corrige, mais vale não se confessar, visto que não vê qualquer progresso. Porém, quando há em você grande desejo de maior perfeição e se empenha muito em progredir, significa que o seu objetivo não é tanto Deus e a Sua Misericórdia, mas, principalmente, a sua própria perfeição. Mostra, com efeito, que a sua fé é deficiente e que se confessa é para depois poder se sentir tão "bom" que Deus já não lhe fará falta, Deus que é Misericórdia. De fato, toma a iniciativa de se dirigir a Deus pedindo o Seu perdão, para não mais voltar a precisar desse perdão; a fim de prescindir comodamente d'Ele, se bem que Deus sempre deseje continuamente perdoar-lo e perdoar-lo com alegria. Quão pouco acreditamos nessa ânsia incontida de Deus de nos perdoar incessantemente! Como é raro encontrar, entre as pessoas que vemos retirarem-se dos confessionários, uma cara que reflita alegria! E, no entanto, depois da confissão o mundo deveria ser outro, mais cheio de luz, resplandecente de fé na Misericórdia do Senhor.
No Evangelho, todas as "confissões" terminam com uma festa: "No caso de Zaqueu, faz-se o Mestre convidado para jantar em sua casa. O publicano Mateus convida todos os seus companheiros, todos os pecadores daquele meio e lhes oferece uma mesa farta. Para o filho pródigo, o pai preparou um vitelo gordo e música" (Louis Evely, O Caminho da Alegria). No Evangelho, o perdão vem sempre associado a uma manifestação de alegria. A conversão vem determinada pelo arrependimento. No Sacramento da Reconciliação encontramo-nos com Cristo desejoso de nos perdoar e de curar as feridas produzidas pelo nosso pecado. Mas, se não Lhe expõe as suas feridas, Ele não pode curá-las. Se o seu arrependimento não tiver limites, a Misericórdia do Senhor também não os possuirá. Examine como são as suas confissões. O arrependimento é ato de humildade. A humildade deve aumentar continuamente em você e, por essa razão, o seu arrependimento não deve também parar de crescer. Mas o arrependimento e a contrição nunca serão suficientes. Quanto mais pecador e pior que os outros você
sc sinta, tanto maior abertura terá para as graças e para a fé. O Sacramento da Reconciliação deve ser um sacramento esperado porque é um particular momento do nosso encontro com Cristo. O Amor quer ser esperado e quando o não é, fica ferido.
Os santos patronos do "Sacramento da Conversão" Um dos patronos do "Sacramento da conversão" é Zaqueu. Quando o mencionamos, esta insólita figura nos vem também à mente, devido ao forte contraste, a pessoa do jovem rico. Para este homem ainda jovem, pessoa "de bem", era sem dúvida difícil ter uma verdadeira contrição. Uma vez que se tratava de alguém que cumpria os Dez Mandamentos, poderia porventura ter motivo para se sentir arrependido de alguma coisa? Contudo, Jesus disse que, para uma pessoa como ele, seria muito difícil entrar no Reino do Céu. O jovem rico não viu, em si mesmo, o maior dos males, isto é, o seu enorme apego às riquezas e cargos, acrescido do fato de que não fizera ainda a opção radical por
Deus. Como cumpria os mandamentos parecia-lhe que estaria "bem visto" diante de Deus. O que lhe aconteceu, mais tarde, não sabemos, mas depois da sua partida, a visível dor de Jesus mostra bem a má condição espiritual daquele jovem. A par deste jovem "irrepreensível", mostra-nos o Evangelho um exemplo singularmente oposto, o de um patife e vigarista chamado Zaqueu. E lícito empregar a seu respeito tais adjetivos já que Zaqueu, chefe de publicanos, ou antes, dos colaboracionistas e ladrões, se tornara digno de lástima, tanto a seus próprios olhos como aos dos demais. E, quando aquele grande pecador encontrou o olhar misericordioso de Jesus, estremeceu de comoção e teve uma reação extraordinária: "Senhor, eis que eu vou dar metade dos meus bens aos pobres e se defraudei a alguém, restituo-lhe o quádruplo" (Lc 19,8). Qual de nós seria capaz de entregar aos pobres metade dos seus bens e de compensar até ao quádruplo os prejuízos causados a alguém? Há nele a loucura da generosidade de um grande pecador arrependido que descobriu ser amado. Zaqueu ficou, verdadeiramente,
louco surpresa e de alegria.
de
Ao jovem "irrepreensível", foi Jesus a aconselhar que se separasse de todas as suas riquezas, enquanto que a Zaqueu nada disse. Foi, pois, ele mesmo que tornou aquela iniciativa sem que a isso tivesse sido pressionado. Assim nos apresentam um homem "como deve ser", que não soube corresponder ao olhar afetuoso de Jesus e que tristemente se afastou, enquanto um chefe de ladrões se demonstrou tão sensível ao amor de Deus. No idioma polaco, os candelabros laterais colocados em numerosas igrejas, têm o nome de 'zaqueus'. E muito profundo o seu simbolismo já que nos recorda aquele acontecimento singular no qual Jesus, lugar de ir tomar a sua refeição em casa de alguém honrado, como por exemplo o jovem "irrepreensível", se dirige ao chefe dos ladrões: "Zaqueu, desce depressa, pois preciso de ficar em sua casa" (Lc 19,5). Naquele tempo, aceitar um convite de alguém para sua casa significava estreitar com ele laços de relação espiritual. Não era apenas uma
simples visita, uma refeição ou uma recepção. Não se tratava somente de comer, porém de entrar numa particular relação de intimidade com alguém. Jesus elegera Zaqueu, porque tinha intenção de estabelecer com ele uma singular comunhão pessoal. Ao entrar na casa daquele que era, provavelmente, o maior ladrão de Jerico, consagrou-a com Sua Presença. A casa de Zaqueu tornava-se assim uma espécie de templo e de santuário. Talvez tenhamos, por vezes, vontade de dizer a Jesus: "Senhor Jesus; que mau gosto mostra ter, ao escolheres para Seu santuário, a casa e o coração de um ladrão." Mas assim é Deus: louco no Seu amor pelo homem. Deus visitou Zaqueu para levar à sua casa a salvação: à sua casa significava também ao próprio Zaqueu, à sua família e ainda a todos aqueles que nela entravam e se sentavam à sua mesa, portanto, publicanos e pecadores do seu gênero. Jesus veio para estabelecer comunhão com eles, para aí, nesse templo por Si consagrado, os acolher. O coração de Zaqueu tornou-se santuário de Deus por ser um coração verdadeiramente contrito. Somente de um coração verdadeiramente arrependido Deus pode fazer o Seu santuário.
a
Um outro patrono do Sacramento da Reconciliação é o "bom ladrão". A sua "confissão" foi feita sobre a Cruz. Ele mesmo reconhece as suas faltas quando diz: "Quanto a nós fez-se justiça pois recebemos castigo que as nossas ações mereciam" {Lc 23,41). O que naqueles momentos se passou na alma daquele ladrão permanecerá para sempre em segredo. Não podemos entrever o extraordinário milagre da graça senão pelos seus efeitos. Aquele homem estava, indubitavelmente, muito arrependido. Um bandido, desprezado pela opinião pública, certamente se considerava pior do que os demais. A crucificação era, de fato, não só uma condenação à morte física, como também significava para o condenado a privação de todos os seus direitos. Entre tormentos e aos olhos de todos, o ladrão morria aceitando a sua sorte. Através da sua constatação: "Recebemos o castigo que as nossas ações mereciam", parecia querer dizer: "Sim, mereço-o, é justo que assim seja". Naquele momento tomou plena consciência da sua completa condição de pecador e foi tomado de um profundo arrependimento. Foi essa atitude de
contrição e de profunda humildade que tornou o seu coração receptivo a acolher de Deus o dom da fé. E como teria que ser grande a sua fé, já que havia sido capaz de reconhecer o Rei naquele Jesus a seu lado, moribundo, espancado, coberto de escarros e ultrajado: "Jesus, lembrate de mim quando estiveres no seu Reino" {Lc23,42). A nossa conversão torna-se difícil porque nos nossos corações há muito pouca contrição e sendo ela pouca, forçosamente, a nossa fé é superficial.
A conversão à radicalidade O processo da sua conversão deveria conduzi-lo à radicalidade bíblica, à radicalidade da fé a que Deus nos chama com as palavras do Apocalipse de São João: " Oxalá fosses frio ou quente! Mas como és morno e não és frio nem quente y vomitar-te-ei da minha boca" (Ap 3,15-16). Para nos ensinar e melhor nos fazer compreender a importância da radicalidade da fé, São João da Cruz serve-se da imagem de dois
pássaros atados (cf A Subida do Monte Car me lo, 111,4). Um deles está atado por um fio grosso e o segundo por um fino. De fato, a situação deles é praticamente igual, já que nenhuma das aves pode voar. Esse estado de coisas apenas sofrerá alguma alteração, quando se quebrarem todas as ataduras. O contrario de radicalidade é o ser conformista nos desejos, nas atitudes, na oração. Deus é maximalista, quer lhe dar tudo, mas você deseja sempre demasiadamente pouco e pouco pede. Não procura o mais importante, aquilo que lhe poderá conduzir à realização da finalidade da sua vida: que Cristo possa viver e reinar em você, plenamente. Acaso você se dá conta do modo como amarra as mãos de Deus quando Lhe pede tão pouco e quando se contenta com esse pouco? Na nossa vida tudo deve estar subordinado a um objetivo único: que Cristo cresça em nós e, em nós, atinja a Sua plenitude. Tudo servir a este objetivo. É por isso que Deus exige de nós também a radicalidade nas nossas súplicas. Se pedimos "demasiadamente pouco" podemos não ser atendidos. Se, depois de ter atendido
dev
uma súplica relativa à saúde, ao trabalho, à habitação, Deus já nos parecesse desnecessário e, se o atendimento dessa súplica viesse a ser mais obstáculo que incentivo a seguir o Senhor até ao fim, como poderia Ele atender tal oração? Deus está "louco", quer dar-lhe tudo, quer darlhe o Reino, mas você, ao desejar tão pouco, nada mais faz do que O impedir. "Procurai primeiro" - quer dizer, antes de tudo o mais "o Reino de Deus e a Sua Justiça e tudo o mais vos será dado por acréscimo" (cf. Mt 6,33). Alguém disse que se você não procura em primeiro lugar o Reino de Deus, mesmo o resto, ou seja todas as outras coisas, lhe serão tiradas. Cada problema que enfrenta, cada dificuldade, não é mais do que um apelo de Deus a que deseje mais, infinitamente mais. É ainda convite a que sobre todas as coisas busque o Seu Reino, porque então todo o resto lhe será dado por acréscimo. É o chamamento de Deus para que se converta, para que tenha fé. Escrevendo sobre a radicalidade de Santa Teresinha do Menino Jesus, referia sua irmã Maria: "Estás possuída por Deus" {Carta de Maria, 17.IX.1896). Possuída no sentido de que está
desejosa de tudo entregar ao Senhor. Procure, a exemplo de Teresinha, querer mais, sempre mais, de modo a que a radicalidade bíblica invada a sua vontade, para que você também seja "possuído" por Deus e possas então dizer, seguindo as pisadas de Santa Teresinha: "Escolho tudo o que Vós quereis." (ManuscritosAutobiográficos, Ms.A,10v°). Quando morreu, na noite de 30 de setembro de 1897, disse: "Nunca pensei que fosse possível sofrer tanto...nunca, nunca! Não encontro outra explicação disso a não ser meu ardente desejo de salvar almas" (Caderno Amarelo, data cit.). Santa Teresinha sofreu por você também também, para que, à sua semelhança, sejas "possuído" por Deus, a fim de que, como ela, viva da radicalidade bíblica. Santo Ambrósio acentua que Deus não olha tanto ao que Lhe oferecemos como àquilo que guardamos para nós, pois Deus é um Deus ciumento. Ele que o amou até ao extremo quer que você se abra completamente ao Seu dom, para tudo lhe poder dar. O encontro de Jesus com o jovem rico, relatado três vezes nos
Evangelhos - por Mateus, Marcos e Lucas - foi, efetivamente, um encontro pouco vulgar. " Tendo-Se Jesus posto a caminho alguém veio correndo ao Seu encontro e tendo-se ajoelhado fez o seguinte pedido: 'Bom Mestre, que devo fazer para alcançar a vida eterna? —Se queres receber a vida eterna', diz Jesus, 'cumpre os mandamentos. Não matarás, não cometerás adultério, não roubards, não levantards falso testemunho, honra seu pai e sua mãe e ama o seu próximo como a ti mesmo'. O homem retorquiu: 'Mestre, tudo isso tenho guardado desde a minha juventude'. Jesus fitou-o com amor e respondeu-lhe: 'Uma coisa te falta, vai vende o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terds um tesouro no Céu, depois vem e segue-Me \ Mas, ao ouvir tais palavras ensombrou-se-lhe o rosto e retirouse pesaroso, pois tinha grande fortuna". (cf. Mt 19,16-22, Mc 10,17-22, Lc 18,18-30) Na seqüência desta cena, São Lucas transmite-nos algo ao mesmo tempo insólito e surpreendente: ao vê-lo, Jesus diz: "Como é difícil aos que têm riquezas entrar no Reino de Deus” (Lc 18,24). Os discípulos estavam perfeitamente desconcertados com tais palavras. Também
por certo nos surpreendemos, pois, com efeito, o jovem rico, cumpria todos os mandamentos. Mesmo assim Jesus disse-lhe: "Como é difícil a quem possui riquezas entrar no Reino de Deus!" O texto é impressionante. Repete Jesus aos Apóstolos: "Meus filhos" — em tom indulgente cheio de compreensão de quem sabe como aquilo devia ser difícil para eles - "Meus filhos, como se torna difícil aos que possuem riquezas, entrar no Reino dos Céus! E mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus". Estavam eles cada vez mais assombrados e diziam entre si: "Então quem poderá salvar-se?" (Mc 10,24-26). Podemos compreender que não basta cumprir os mandamentos da lei de Deus, mas que também nós nos empenhemos em responder a Cristo que nos chama à loucura de fé, isto é, à radicalidade bíblica. Para isso requere-se uma conversão contínua a uma tal radicalidade. Ao comentar este texto, Santa Teresa d Ávila dirá que ao jovem faltou uma partícula de loucura (Mor.111,1,5 segs.). Como refere São Lucas, deveria se tratar de alguém que ocupava
provavelmente algum cargo de prestígio. Seria, pois necessário a ele que renunciasse a um bom número de coisas, em boa verdade, a tudo. Na sua situação, semelhante gesto implicava resignar-se a que os demais o julgassem fora si. Para ele não era assim tão fácil deixar tudo. No entanto, Jesus diz: "Só aquele que tiver deixado tudo é que entrará no Reino do Céu". Não basta amar o próximo como a si mesmo. O certo é que aquele jovem há muito cumpria os mandamentos. Todos nós somos chamados à loucura de fé. Sem essa dose de loucura não podemos seguir o Senhor até ao fim. Mais tarde ou mais cedo, você deverá deixar tudo, desligar-se de tudo. O momento mais difícil, será no final, quando tiver que deixar tudo, na hora da morte. Renunciar a tudo, nesse momento, significará um sofrimento terrível. Porém, o Senhor deseja poupá-lo de tal sofrimento. E de Sua vontade que desde já você deixe toda a sua "riqueza", não necessariamente em sentido literal mas no sentido do desapego dela. Poderia surpeendernos que o Senhor exiga tanto de nós, mas essa divina exigência tem
como objetivo a nossa liberdade e o nosso bem. A loucura bíblica consiste em darmos a Deus tudo o que nos pertence e Ele dános em troca tudo o que é Seu. Nós damos o nosso miserável todo, enquanto Ele nos dá o Seu maravilhoso todo, o Seu divino todo. E uma atitude que devemos aprender com a Virgem Maria, pois é Ela o nosso modelo. Ela que deu verdadeiramente tudo a Deus e O seguiu até às últimas conseqüências. Ela, a Mãe do nosso abandono, Mãe da nossa radicalidade.
CAPÍTULO 2
A "VIRTUDE" DO HUMOR A SERVIÇO DA FÉ Deus é infinitamente misericordioso. A Davi desculpou o adultério e o assassínio cometidos, perdoou ao publicano que era traidor e ganancioso, e ao ladrão crucificado concedeu também o Seu perdão. Há, porém, uma coisa que impede Deus de derramar sobre você a Sua misericórdia e que Ele não suporta: é a sua intocável seriedade, é o fato de você se considerar alguém de grande importância. Pode-se então dizer que condiciona Deus como que a cruzar os braços' porque com esse seu sentimento de importância, torna-se a Seus olhos, ridículo e absurdo. "Aquele que mora nos Céus ri-se" (SI 2,4). Quando
você se vê à luz da fé, acaba descobrindo como todas as suas pretensões de absoluta seriedade e de ser considerado aos olhos dos outros são verdadeiramente ridículas, A convicção da importância própria contrapõe-se fortemente a "virtude" do humor. Acontece que esta é muito necessária, para que em nós cresça a fé enquanto percepção do mundo na sua correta dimensão e nas suas justas proporções. O bom humor é o modo de ver a realidade pelo seu lado absurdo e incoerente. Temos mesmo um santo patrono do humor: Santo Thomas More. Há também abundante literatura acerca deste assunto de autores como: G.K. Chesterton, CS. Lewis, B. Marshal, F. Sheed e ainda outros. Escreveram sobre o valor religioso do cômico, sobre o humor enquanto comportamento religioso a serviço da fé e sobre a "teologia" do humor.
O jansenismo - uma ameaça para a fé No século XVII apareceu o jansenismo, heresia muito perigosa para a fé. O teólogo de Lovaina, Cornélio Jansen, ensinava
então que o pecado original causava a completa corrupção da natureza humana tornando-se esta presa da concupiscência. Segundo ele, Deus apenas predestinava a Sua graça aos eleitos e destinaria os outros à condenação eterna. Esta visão pessimista da natureza humana associava-se à afirmação de que Cristo não morrera por todos os homens sem exceção, mas somente por alguns eleitos. O jansenismo impunha, entre outras coisas, normas de rigidez insuperáveis, e uma delas referia-se à Sagrada Comunhão. Para poder recebê-la era necessária uma disposição que o cristão comum, em geral, não possuía. Exigia-se total ausência de pecados mortais e veniais e um amor a Deus absolutamente puro. A Sagrada Comunhão tornava-se, desse modo, uma recompensa pela virtude e não um alimento para reforçar a fé e o amor. Nas Igrejas influenciadas pelo jansenismo meçou a reinar a tristeza, o medo, o terror. O homem começou a ter medo de Deus e só muito raramente ousava aproximar-se da Sagrada Comunhão.
A abadia cistercense de Port-Royal tornou-se o centro do jansenismo. Uma das monjas compôs o "Rosário ao Santíssimo Sacramento” que exemplifica bem a atmosfera que reinava no convento. Naquele "Rosário" vinham salientados todos os atributos que separavam Deus do homem. Deus era apresentado, não como um Pai cheio de Amor e de Misericórdia, mas como um Senhor absoluto, inacessível, severo e implacável. Segundo as idéias jansenistas, o cristão tinha de ser um pecador em permanente penitência pelos seus pecados e, por causa disso, não podia permitir-se estar alegre. Pelo contrário, na sua vida deveria predominar a tristeza motivada pela lembrança dos pecados cometidos. A superiora do pensionato feminino de PortRoyal, a irmã de Blaise Pascal, havia incluído no regulamento das suas pupilas a proibição de rir. Mesmo um simples sorriso era mal visto. O jansenismo foi repetidas vezes condenado pela Santa Sé, mas Santa Teresinha de Lisieux sentiu ainda os seus efeitos na obrigatoriedade que tinha de solicitar uma autorização especial à superiora para receber com mais freqüência a Sagrada Comunhão. Outra conseqüência do jansenismo é o terror a Deus, tão freqüente na vida dos cristãos
contemporâneos, pois era visto em Deus apenas um juiz a exercer a Justiça. Ora, ao contrário, a fé cristã exprime-se mais plenamente na jubilosa descoberta do amor pessoal de Deus, no qual podemos nos apoiar e abandonar. A fé assim vivida suprime também a atitude do fatalismo dramático, perante o próprio mal, aquele mal que o nosso arrependimento pode transformar em "falta feliz". A alegria cristã proveniente da fé é como um reflexo do amor de Deus. Esta fé o leva a sorrir para Deus, a viver no alegre gozo do Seu amor, enquanto o induz também a olhar a sua seriedade com uma certa ironia e numa perspectiva de humor. A "virtude" do humor lhe permite combater o veneno da tristeza que Satanás se esforça por infiltrar na sua alma. Além disso, desviando a atenção de si mesmo, lhe permite viver na alegria que brota da fé.
O humor como "exorcismo" A "virtude" do humor, essa capacidade de ver o mundo sob o ângulo do absurdo, é um recurso que no contexto religioso pode ter valor de "exorcismo". Quando você se depara com uma vaga de
tentações, ou quando se vê atormentado por um turbilhão de pensamentos obsecantes, não lute com o diabo, pois ele é mais forte que você. Procure antes zombar dele, menosprezá-lo. Faça uso desse exorcismo que é o sentido religioso do humor. Zombando do diabo, você repele o seu ataque do modo mais eficaz. A zombaria é o golpe mais certeiro que você pode infligir a Satanás, pois ele, que é de uma seriedade mortal, tem horror da zombaria; logo será compelido a afastar-se. O sentido cristão do humor o ajudará também nos seus confrontos com o outro adversário, que é o seu próprio "eu". Também este um ídolo mortalmente sério e intocável. Um soberano absoluto. Não é permitido atingi-lo ou escarnecê-lo, nem sequer suporta ser ofendido ou criticado. Na luta contra o nosso "eu", o humor tornase, não só um método religioso, mas também um ato de fé, quando, ao olhar para si mesmo, procura ver o seu "eu" em verdade, dizendo: na realidade sou um pequeno "nada". Porque faço, então, de mim o centro do mundo, porque razão considero que os meus assuntos são os mais importantes, porque suporto tão mal os meus fracassos e as minhas
dificuldades, revestindo-me de uma seriedade mortal? Bastaria apenas olhar tudo isso com uma pitada de indulgência, para ver que todas essas coisas que me preocupam, me assustam e me atormentam são absolutamente ridículas, face à única realidade importante, que é Deus. O humor cristão é um processo eficaz para destronar o ídolo do seu "eu". Quando você se der conta da comicidade de situações nas quais o seu "eu" se instala no trono, pelo menos por um certo tempo esse tipo de situações surgirão ridicularizadas e serão inofensivas a você. A sua vaidade e o seu orgulho serão desmascarados e aquilo que em você é pretensão de grandeza, ou ainda, aquilo que o ameaça e angustia, parecerá ridículo e despido de qualquer máscara. Eis o motivo pelo qual o recurso religioso ao humor desempenha igualmente um importante papel na conservação do equilíbrio mental do homem.
Cinza e pó O humor é um recurso terapêutico de valor religioso, graças ao qual você será capaz de dizer para si mesmo: "Que absurdo!
Preocupandome desmedidamente com coisas de nada, não só estarei acumulando, com esse procedimento, inúmeros desgostos, mas ainda, arruinando a minha própria saúde. No fim das contas, tudo isso não é mais que poeira e lixo; em conclusão, não se possui qualquer valor". Procure ver a sua vida à luz da fé, procure fazer humor consigo mesmo. Pode não ser fácil, pois a "virtude" do humor exige, por vezes, autêntico heroísmo. Mas, essa tática permitirá a você ver mais facilmente, nas suas justas proporções, essas duas realidades: Deus e você. Por meio desse reconhecimento você é purificado do egoísmo e a sua fé sairá fortalecida. Terá também oportunidade de ver claramente que Deus é o que é, verdadeiramente, importante na sua vida. Não faça, portanto, de você o centro do mundo. Repare que você não é mais do que um pequeno grão de areia como escrevia Santa Teresinha - um i( nada y pequeno com o qual não vale a pena ocupar-se excessivamente, nem importunarse ou inquietar-se. "Reza, minha irmã" — exortava a Santa — "para que o grãozinho
de areia se possa tornar um átomo, unicamente sensível, ao olhar de Jesus". ( cf. Carta à Inês, julho-agosto 1889) O sentido cristão do humor liberta você de si próprio. Permite reequacionar à luz da fé todos os seus valores, e o capacita, ainda, para reconhecer que tudo o que se passa ao seu redor é, simplesmente de bem pouca importância; tudo, à exceção de Deus. Permitirá a você desmascarar os valores ilusórios: o seu trabalho, os seus projetos e as suas dificuldades, a política e tudo o que se passa no meio em que você vive. Tudo isso em comparação com Deus, supremo valor, é em conclusão, cinza e pó. É nesse espírito que começa a liturgia de Quartafeira de Cinzas, em cada Quaresma, quando o padre impõe as cinzas sobre as cabeças dos fiéis dizendo: "Lembra-se de que é pó e em pó há de se tornar". Pó, portanto, algo ridiculamente insignificante. Não só você é pó, mas também é pó tudo aquilo a que está preso, tudo aquilo que muito acalenta, bem como o que o assusta. Graças à "virtude" do humor, você poderá se abrir mais amplamente a Deus, criando em
você mais espaço para Ele, porque estará então mais apto a ver todo o resto nas suas devidas proporções: pó e cinza. Será, então, possível a você ver tudo na perspectiva do absurdo. A conversão de São Francisco de Assis pode também ser vista neste plano. Quando, para seguir o chamamento de Deus, deitou tudo aos pés do pai, sentiu-se repentinamente livre e foi como se o mundo inteiro se tivesse, de certa forma, virado às avessas. "Quem viu o mundo inteiro suspenso pelo fio da misericórdia de Deus, viu a verdade. Quem teve a visão da cidade natal de cabeça para baixo, viu-a à luz adequada. A pessoa que viu a hierarquia completamente virada de cabeça para baixo, esboçará sempre um ligeiro sorriso diante das suas prerrogativas". (G.K. Chesterton, São Francisco de Assis, cap. 5) O mundo de Francisco de Assis - o seu país e a sua pátria eram em suma, Assis, pequena cidade feudal rodeada por um fosso, contornada de muralhas, flanqueadas por torres nos seus ângulos. A sociedade de
Assis, naquele tempo, estava estruturada como uma rígida pirâmide, composta de vários grupos sociais subordinados uns aos outros e que se tomavam muito a sério: os notáveis da cidade, a nobreza, a burguesia e os camponeses. E, num ápice, aos olhos de Francisco todo esse mundo se inverteu por completo, apresentando-se-lhe como algo ridiculamente insignificante. Bastou um gesto para que a importante Assis, esse mundo respeitável de gente notável, de senhores, de nobres, estremecesse e se desmoronasse definitivamente. Tudo aquilo, encarado por Francisco na perspectiva do absurdo, tornava-se, por assim dizer, cinza e pó. Em face de Deus, as forças humanas mostravam-se pequenas e insignificantes até à gargalhada. Francisco compreendera que a realidade importante e digna de respeito para a qual valia a pena viver era uma só: Deus e a Sua vontade. Da vontade de Deus jamais se pode rir, só se pode amá-la. E preciso, com toda a confiança, como criança, ater-se àquilo que é verdadeiramente importante. Na base da maioria dos pecados reside a inabalável convicção da própria importância e uma seriedade imutável. Você cai
no pecado porque se sente imensamente importante. "A rejeição desta importância, segundo o humor cristão" - escreve W. Kasper - "torna-nos aptos a viver uma existência serena e verdadeiramente humana." (cf "Introdução à Fé" y cap. 7). O humor póe a descoberto o ridículo das nossas pretensões à importância. Ao contrário, a falta de sentido de humor e a irritação que com freqüência a acompanham, são das acusações mais sérias atualmente dirigidas aos cristãos. Os fariseus eram também pessoas com um mortal sentido da sua importância. De tal forma estavam convictos da sua respeitabilidade e importância, e tão agarrados à própria visão do mundo e de Deus, que reagiam com agressividade diante das críticas. O farisaísmo é o contrário da simplicidade que se caracteriza pela liberdade decorrente da vida e da visão de si próprio segundo a verdade. O farisaísmo é também uma negação da atitude de infância proposta no Evangelho, que reconhece a própria fraqueza e que, graças a isso, permanece livre da convicção da própria importância. Devemos ter presente que o pecado contra o Espírito Santo consiste, entre
outras coisas, em não haver por parte do homem, nem a vontade de reconhecer a verdade sobre si mesmo, nem a de querer reconhecer a fraqueza própria. O sentido de humor sobrenatural, permitindo-nos ver a realidade humana e a divina nas suas justas proporções, possibilitanos atingir um maior distanciamento, um acrescido desprendimento, e abre caminho para uma liberdade maior. O distanciamento em relação aos acontecimentos e a nós próprios, obtido graças ao sentido de humor, permite-nos assim viver mais segundo o Evangelho. Esse distanciamento permite-nos reordenar os valores de modo a que a nossa vida e os nossos assuntos deixem de ser o mais importante. Permite ainda evitar a agitação, as preocupações exageradas, a absorção excessiva pelo trabalho, para escutar o chamamento de Cristo: "Uma só coisa é necessária" (cf. Lc 10,42). Graças à "virtude" do humor as derrotas e os fracassos não chegam a adquirir a dimensão de catástrofes. A fé sustentada pelo humor pode te levar aos cumes do desapego e da liberdade bíblica, expressas no princípio paulino de que é preciso usar as coisas deste
mundo como se não as usássemos: "Os que têm mulher vivam como se não a tivessem; os que choram como se não chorassem; os que se alegram, como se não se alegrassem; os que compram, como se não possuíssem; os que usam deste mundo, como se dele não se usassem" (ICor 7,29-31). São João da Cruz também o encoraja: "Procede de tal sorte que as coisas temporais não representem coisa alguma para ti e tu nada para elas" ("Avisos e Máximas — Ditos de Amor '92). Dizia Santa Teresinha do Menino Jesus, falando de si própria, que era um grãozinho de areia - um ínfimo "nada". Exprimia dessa forma a sua "atitude de criança", atitude na qual não havia o mais leve vestígio daquela gravidade mortal que está na base de tantos dos nossos pecados. Com efeito, a maior parte dos pecados que cometemos contra os nossos semelhantes advém precisamente do fato de, com a mínima coisa, nos sentirmos ofendidos, melindrados, e ainda por sermos extremamente sensíveis e susceptíveis no que nos diz respeito. E imprescindível a todos os sensíveis, hiper-sensíveis e susceptíveis, o sentido libertador do humor que os libertarão de si mesmos. Para a pessoa
hiper-sensível em tudo o que lhe diz respeito, até o pormenor mais insignificante, pode converter-se num drama de enormes proporções. Se, ao contrário, pro-curássemos reagir a todos estes conflitos, desavenças e mal-entendidos com um pouco de humor, se deixássemos que se rissem um pouco de nós, quanto haveria de crescer a nossa humildade, a nossa fé e o nosso amor! A luz da fé, com efeito só de uma realidade verdadeiramente importante não nos é lícito gracejar: de Deus. Procure observar-se a si mesmo, e a tudo quanto o rodeia, com menor seriedade e mais à luz da fé. Você verá, então, como tantas vezes o que vive é digno de riso e de dó. Tente encarar-se com um sorriso e ria de si próprio. Procure imitar Deus que, na verdade, deve ter um extraordinário sentido de humor. Basta pensar que Ele o escolheu como colaborador na grande obra que realiza. Não é, pois, esta a mais eloqüente expressão do Seu extraordinário sentido de humor?
O santo patrono do humor Nos santos, a "virtude" do humor atingia por vezes tão elevado grau de heroísmo que brilhava, mesmo em momentos de forte
sofrimento ou em face da morte. Thomas More, humano como era, mesmo na sua santidade, decerto conheceu como nós as angústias que nascem subitamente na esfera psicofísica e das quais ninguém está livre, e nem mesmo o nosso Salvador esteve. Esse santo temia certamente as atrocidades e as torturas que lhe anunciavam, se bem que, mais tarde, em lugar de ser torturado acabasse por ser decapitado. Antes de subir ao cadafalso, aproximou-se dele o filho banhado em lágrimas a pedir-lhe que o abençoasse. A atmosfera era densa, dificilmente suportável e para aliviar a tensão tornava-se necessário o recurso religioso ao humor. Thomas More então ao oficial que presidia à execução com ar grave: "Ajude-me, senhor Tenente, a subir, pois, se cair ficarei desamarrado". Que dito cheio de humor em face da sua própria morte! O rei Henrique VIII proibira-o de falar, porque sabia do impacto que alguém capaz de conservar o sentido de humor, mesmo perante a morte iminente, tinha nas pessoas. Um homem com autêntico sentido de humor religioso é até temido pelo diabo; imagina, então,
dis
por Henrique VIII! Sem qualquer discurso, o condenado ajoelhou-se e depois de breve oração dirigiu-se ao carrasco dizendo-lhe serenamente: "Coragem, bom homem, não tenhas medo de cumprir o seu dever. Como tenho o pescoço curto toma atenção para não golpeares mal e perderes, assim, a sua reputação" (W. Roper, A vida de Sir Thomas). Estas foram as derradeiras palavras de Thomas More. Soubera gracejar consigo mesmo, soubera ver-se a si próprio e à sua situação, mesmo perante a morte, sob o ângulo do absurdo. E que, com efeito, aos olhos de Deus, única realidade pela qual vale a pena viver, a nossa morte não tem importância. Era mesmo preciso ter uma alma de criança e agarrar com muita força a mão do Pai para ser capaz de brincar mesmo com a própria morte! Fê-lo um homem que para obter o sentido de humor, decerto rezara, freqüentemente, assim: "Peço-Te que me concedas uma alma que não conheça o aborrecimento, nem as murmurações, nem os suspiros, nem os l a m en t os e n ã o p e r m i t as q u e g i r e d e ma s i ad o em torno desse algo que sempre quer imperar, que se chama "eu".
Senhor, concede-me o dom do sentido de hu m o r . D á - me a gr aç a de m e c on he c er p o r e n tr e r i s os , p a ra q u e s a b o re i e n e s t a v i da u m pouco de felicidade e possa part ilhá-la c om os outros. Amém."
CAPÍTULO 3
AS PROVAS DE FÉ Para se fortalecer, a fé deve ser posta à prova, deve passar pela peneira das provas, pelo crisol das experiências e das tempestades. A fé superficial, fundada unicamente na educação, nos sentimentos e em certos hábitos, cede perante as dificuldades. Deus quer que através das provações o homem seja despojado de tudo aquilo que, para a fé, é apenas um suporte, isto é, de tudo aquilo que não é a adesão autêntica a Cristo, que não é o apoiar-se e abandonar-se exclusivamente a Ele. A fé autêntica é a fé privada de todos os suportes naturais, tal como a compreensão, os sentimentos, as experiências sensitivas ou imaginativas: crer é alicerçar-se unicamente em Deus e na Sua palavra. Deus não aceita que você se apóie na força das suas práticas,
nem nos seus sentimentos, ou nas suas experiências. Ele permite, portanto, que a sua fé seja submetida a provas, cuja diversidade depende da variedade de coisas em que esta se apóia para além de Deus. Se você alicerça a sua fé na compreensão natural, será preciso que um dia desapareçam todas as luzes do seu entendimento e, a um certo momento, aquilo em que acreditava começará a já não ter qualquer sentido. Se acaso você baseia a sua fé em certas pessoas, leigos ou sacerdotes, no comportamento deles, virá o momento em que isso deverá vacilar ou mesmo desabar. Se você a fundamenta nos sentidos, na satisfação e nas experiências de alegria que nascem da oração ou de outras práticas religiosas não poderá, então, surpreender-se quando chegar o tempo em que experimente a secura e a rejeição dessas práticas. Você deve passar por estas dolorosas purificações para chegar à fé pura, autêntica e, com o tempo, à verdadeira contemplação.
A espera de Deus
Colocando o homem perante situações difíceis, Deus como que o provoca a despertar em si atos de fé. Tais situações, que nos levam a tomar consciência da nossa fraqueza, podem fazer crescer a nossa sede de Deus. Porém, Deus não quer se apresentar a nós como um intruso. O Amor quer ser esperado e, quando não o é, torna-se um amor desprezado. Neste sentido a fé é uma expectativa. O grau de intensidade dessa expectativa do Senhor testemunha a nossa fé no Seu poder e no Seu amor. A nossa expectativa de Deus jamais seria suficiente. A intensidade da sua expectativa d'Aquele que deseja vir até você e que quer ser acolhido, deve crescer continuamente. E um processo que se realiza não só graças ao seu esforço de esperar o seu Senhor, mas é sobretudo resultado da Sua Graça, pois é a graça que aumenta e que aprofunda a sua ânsia de Deus. Deus tem os Seus métodos para animar a expectativa da Sua vinda e das Suas novas graças. Esses meios divinos podem dividir-se em duas categorias específicas: para despertar nos nossos corações o desejo da Sua vinda, Deus pode, por exemplo, suscitar alguma inquietação
estimulante ou uma necessidade muito forte. Nesses casos, a fé expressa-se pelo desejo de Deus e o seu desenvolvimento manifesta-se num contínuo aumento da expectativa e da fome de Deus. Outras vezes, pelo contrário, pode Ele permitir ou fazer mesmo, com que você passe por difíceis provas de nas quais se sentirá incapaz de enfrentar ou de resolver os seus problemas. Poderão ser problemas de natureza moral, como por exemplo, os pecados que você continua a cometer, ou ainda problemas familiares, como o seu casamento à beira da ruína, um filho caído no álcool, ou que porventura não tenha se casado na Igreja, ou que tenha perdido a fé. Pode também tratar-se de problemas de saúde, quando ela começa faltar, a você ou a algum daqueles que lhe são queridos, quando você experimenta a sua incapacidade para resolver determinada situação e a desorientação que isso provoca, naturalmente o predispõem muito mais a ansiar e a esperar a Sua vinda. É uma oportunidade que lhe é oferecida para desenvolver e para aprofundar a sua fé. A todos esses problemas ou dificuldades que Deus provoca, ou permite que surjam
na sua vida, podemos chamar "provas de fé" e a sua finalidade é a de suscitar em você um desejo ardente de Deus. Considerando todas essas coisas à luz da fé, você conhecerá a chamada espiritualidade dos acontecimentos a lhe dizer que cada um deles é uma passagem de Deus e que determinadas passagens Suas destinam-se a despertar em você o desejo da Sua Presença, da Sua ajuda e da Sua intervenção salvífica. Quanto mais doente você se sentir, mais necessidade terá do médico. Quanto mais desnorteado e esmagado por toda a espécie de dificuldades, mais crescerá em você o desejo da vinda d'Aquele que pode ajuda-lo, que envolve na graça da Redenção todos os seus problemas e o salva. Basta que creia que Ele quer dar tudo aquilo de que você necessita, basta que creia no Seu Poder e no Seu infinito Amor. Deus, ao querer que você alcance toda a profundidade da fé, pode submeter-lo a provas muito difíceis, pode lhe retirar muitas coisas e lhe despojar totalmente. E que Deus pode querer o seu total desenraizamento para que, carecido das seguranças humanas, só d'Ele você possa esperar a ajuda salvadora.
A fé de Abraão O santo patrono da nossa expectativa de Deus é o nosso pai na fé: Abraão. Qual foi a atuação de Deus para suscitar em Abraão a atitude de expectativa? Foi a de desenraizá-lo. O primeiro chamamento divino na revelação bíblica apresentou-se do seguinte modo: "Deixa a sua terra, a sua família e a casa de seu pai e parte para o país que te (Gn 12,1). E Abraão, enraizado em Harã, perto de Ur dos Caldeus, fez como o Senhor lhe havia dito. E, após ter deixado a terra de seu pai, depois de se ter despojado de tudo aquilo que poderia constituir a sua segurança, precisou ter mais atenção à escuta da palavra de Deus. Desse modo, havia de crescer a sua fé, quando Abraão começou, progressivamente, a apoiar-se na vontade de Deus e a interrogar-se acerca do que Deus esperava dele. Nasce, assim, na história da humanidade, um fenômeno novo: o acontecimento da fé cristã. Apareceu este na seqüência do chamamento pessoal de Deus e como resultado do
indi
despojamento existencial do homem. A fé de Abraão e o seu abandono a Deus nasceram do fundamento do seu desenraizamento e da sua perplexidade, fazendo amadurecer o homem de fé. O nosso nascimento para a fé, tampouco será um processo fácil. A realização desse nascimento será o resultado de contínuas provações e dificuldades que podem chegar a situações de risco e de falta de apoio, resultantes do despojamento. Deus é o Deus da promessa e da bênção. Abraão recebeu a promessa de um país, de uma descendência e de uma particular bênção de Deus. No entanto, não era uma promessa clara, pois estava como que encoberta por uma certa escuridão. Diz Deus: "Parte (...) para o país que te vou indicar", mas Abraão não viu esse país, porque não existia nenhum país disponível à espera da sua chegada. Abraão não sabia como se cumpriria a promessa de Deus, mas entregou tudo nas mãos do Senhor. Precisamente nisto consiste a grandeza da fé de Abraão. A questão da sua descendência é também pouco clara e mesmo um pouco vaga, pois Abraão era já de idade avançada. Do ponto de vista humano, tudo parece irreal. Abraão teve que acreditar em
algo que, encarado humanamente, se manifestava impossível. Quanto mais uma promessa divina for desprovida de realismo, tanto mais Deus há de esperar e exigir de nós, e tanto maior será o mérito da nossa resposta confiante. A promessa feita a Abraão era tão pouco provável que este deve ter confiado em Deus como o Senhor do impossível, do improvável. Seria para ele um longo processo de crescimento contínuo na fé. Ao chegar à terra prometida, Abraão não obterá de imediato a sua posse, permanecerá sempre um estrangeiro. O passo mais forte para o aprofundamento da sua fé deverá se produzir, enfim, em condições dramáticas, quando Deus lhe. pede o sacrifício do filho, ou seja, de alguém muito querido e que, do ponto de vista humano, deveria constituir o seu maior tesouro e o seu maior valor. Era uma situação incontestavelmente difícil. Abraão deveria estar suspenso na expectativa de que Deus fosse resolver, de uma ou de outra maneira, a situação provocada por aquela terrível ordem. Tinha, então, de se decidir a mostrar que a
sua confiança era sem limites. As exigências colocadas por Deus à fé de Abraão, que atingiam profundamente os seus sentimentos paternais, para com o seu único e querido filho, feriam o seu maior amor, atingiram também fortemente os próprios fundamentos da sua fé de entã então. o. Co Com m efei efeito to,, Abra Abraão ão tinh tinha a ac acre redit ditad ado o que, que, daquele filho, viria a nascer numerosa descendência, o que fazia supor que o que Deus lhe estava a pedir parecesse ainda mais absurdo: aquele de quem haveria de nascer a numerosa descendência prometida deveria agora perecer. Deus eus fazi fazia a-lhe -lhe uma uma exig exigên ênci cia a tão gra grande nde por porque que lhe queria oferecer um dom extraordinário: queria elevar ao mais alto alto grau grau o seu ab an d on o. A prova a que foi submetida a fé de Abraão, não era um teste, Deus sabia como ele reagiria, destinava-se antes a suscitar nele a confiança no meio da escuri escuridão dão,, e a fazê-lo a v an ç a r para Si n a s u a pere gri n ação de fé. As situ situaç açõe õess ma mais is difí difíce ceis is são são assi assim m part partic icul ular arme ment nte e privilegiadas, pois reclamam da nossa parte decisões amadurecidas. Ora, a fé d ese nv ol ve se através através das decisões decisões pelas quais o homem se submete a Deus na "obediência da fé" (cf Dei Verbum 5).
O me mesm smo o ac acon onte tece cerá rá tamb também ém na sua sua vida vida,, pois pois Deus, porque o ama, quererá por vezes colocá-lo em situações difíceis. Ele permitirá, ou causa usará, que você se sinta nta muito mal em cer erttas situações, q ue nelas se sinta em grande dificuldade, que não as possa solucionar e tudo isso para que comece a ansiar pela Sua vinda, e para que A deseje. E um meio de impedi-lo que fique em marasmo espiritual. As provas de fé que porventura venha a enfrentar serão assim um meio de forçá-lo a uma posição definida: ou você não responde às expectativas de Deus e a sua fé começará a retroceder ou, à semelhança de Abraão, tomará a decisão de segui-Lo nas trevas do abandono. Assim, a sua fé há de crescer e com ela cresc escer erá á também a sua sede de Crist isto e da Sua Redenção, tal como a ânsia da Sua Graça. E o Espírito Santo poderá descer ao seu coração, proporcionalmente à intensidade da sua sede d'Ele.
As provas de fé na vida da Virgem Maria A Igreja inicia o ano civil com um dia dedicado à Mãe de Deus.
Vem nos apresentar, no dia de Ano Novo, a figura daquela que nos "precede na peregrinação da fé" {Lumen Gentium 58). Dia após dia, na vida vida de Mari Maria, a, cump cumpri riaa-se se a bênç bênção ão pron pronun unci ciad ada a por por Isabel: "Bendita Aqu Aquel ela a que que ac acre redi dito tou" u" (Lc (Lc 1,45). A Igreja vê nela o exemplo mais perfeito da nossa fé. A Virgem Maria vai adiante de nós, precede-nos "na peregrinação da fé", como se antecipasse os nossos passos e a nossa caminhada; mas Ela está constantemente junto de nós. No pensamento conciliar, a Mãe de Deus nos é apresentada como aquela que ocupa na Igreja o lugar mais elevado mas, simultaneamente, o mais próximo de nós. Neste sentido, se poderia dizer que chegamos a prejudicar a Mãe de Deus se nos limitamos a falar dos Seus méritos e a enaltecê-la, pois estamos, desse modo, a criar um distanciamento entre ela e nós. Fala-se demasiadamente nas suas glórias e extremamente pouco no fato de que Ela é o nosso caminho no contexto de uma vida centrada em Cristo, No caminho da fé a ser percorrido, Maria é o nosso caminho, no sentido de que nos precede e nos indica o itinerário. Tudo o que nós experimentamos, neste
caminho, ela já o viveu, razão pela qual a resposta aos nossos problemas, encontramos olhando para a sua vida. Quando nos limitamos a exaltar Maria e a falar dos méritos da Mãe de Deus fazemos do mesmo modo que os hagiógrafos procederam com os santos. Alguém disse que os santos sofreram mais com os hagiógrafos fos do que que co com m os seus seus pers perseg egui uido dore ress, pois pois aquel queles es eliminaram da vida deles todo o traço humano, tornando-os, tantas vezes, figuras piegas e sem sem vida. vida. Nã Não o bast basta, a, port portan anto to,, pres presta tarr home homena nagem gem à Virgem Maria, venerá-la e colocar-lhe uma coroa sobre a cabeça. Isso são, por assim dizer, "meios ricos", meios que ela nunca utilizou durante a s ua vida. Amar a Virgem Maria significa imitá-la, segui-la, pois ela é aquela que nos precede, é para nós o modelo da d a fé. Se vemos que Deus reduz a nada os nossos projetos e nos conduz por um caminho diferente daquele que tínhamos imaginado, lembremo-nos que está agindo conosco como o fez na vida da Mãe de Deus. Também bém ela imaginar nara de manei neira dife iferente nte o seu caminho de santidade e a sua missão. Aquela que renunciara a ser mãe foi chamada a
uma uma mater erni nida dade de ext extraor ordi diná nárria e tal tal cha chamame ment nto o deitava por terra todos os seus projetos. Ao pronunciar o seu "sim" no momento da Anunciação, Maria não vislumbraria plenamente toda a extensão do seu consentimento. Mas isso não veio diminuir em nada o valor da sua aceitação, que toda a vida havia de confirmar num ininterrupto "Sim" im". Deus amou de tal modo a Virgem Maria que propositadamente escolheu um modo tão duro de a tratar. Sabemos que é assim que trata os Seus Seus am amig igos os,, por por ser ser ess esse o mel elho horr méto étodo para para moldar o homem à imagem de seu Filho. Vejamos como é que Deus modelou a fé de Maria, que tipo de "furacões" irromperam na vida dela e que difíceis provas foram as suas. A prin princí cípi pio o, pouc pouco o depo depois is do seu "fiat", depois de ter recebido o anúncio do Anjo de que havia de conceber e de dar à luz o Filho de Deus, deuse conta de que José nada sabia. Foi a primeira tragédia daquelas duas pessoas. Maria e José, não sabendo como fazer, devem ter sofrido muito. Devia ser perturbador para José tomar conhecimento de que Maria estava grávida e também para ela, logicamente, devia ser um tormento.
Naturalmente que Deus poderia facilmente explicar a José o que se estava a passar. Naqueles dias, a Virgem Maria punha-se, constantemente a seguinte questão: "Que devo fazer?" Decerto foi um período difícil e cheio de escuridão. A fé não anula a obscuridade mas, pelo contrário, pressupõe-na. Nesta realidade se oculta o sentido profundo da fé. A Mãe de Deus, vive vivendo ndo na fé, fé, pass passav ava, a, simu simult ltan anea eame ment nte, e, por por dens densas as trevas. Era, portanto, submetida a provas de fé, muitas vezes, excepcionalmente difíceis. Uma delas foi o nascimento de Jesus em Belém. Naturalmente que para qualquer mãe prestes a dar à luz, o momento e o local do nascimento são da maior importância. A mulher que está para ser mãe quer dar à luz num bom local em condições dignas e isso é um direito fundamental. Maria não poderia ter tido o mesmo desejo também? No entanto, isso não lhe foi concedido. Uma vez que Jesus deveria nascer em Belém, não teria sido mais simples prevenir José? Com efeito, já que uma vez tinha recebido indicações durante o sono, não poderia recebêlas novamente: "Vai para Belém pois lá há de nascer o
Menino"? Em vez disso, Deus decide de maneira diferente. O Menino nasceria, de fato, em Belém, mas em resultado de circunstâncias particulares originadas pelo recenseamento geral da população. Seria justamente causa dessa situação que Jesus havia de nascer em circunstâncias em que era total a ausência de segurança humana. Por causa da multidão dos que chegaram, será impossível a eles encontrar qualquer lugar. Que fácil teria sido, então, ceder à tentação da incerteza e da angústia! Foi, precisamente, naquele difícil contexto de prova de fé que o Menino veio a nascer. O Anjo apareceu à Virgem Maria apenas no momento da Anunciação e depois não voltou a haver qualquer outra informação, mensagem ou anúncio. No momento do nascimento de Jesus, os Anjos apareceram aos pastores que cuidavam dos rebanhos e não a Maria. Pouco depois, com a chegada dos Magos, houve um novo "abalo de terra": a perseguição de Herodes. Uma prova de fé muito dura, que poderia ter levantado a seguinte objeção: "Por que razão se
cala Deus? Por que não intervém para defender o Seu Filho? Por que parece impotente perante a tirania de Herodes?". Enfim, ei-los obrigados a fugir para terras desconhecidas onde não tinham qualquer apoio humano. Maria passou por outra penosa prova de fé quando Jesus, aos anos de idade, se demorou no Templo sem prevenir os pais. Diz-nos o Evangelho que quando o encontraram não foram capazes de compreender o que lhes dizia, mas que Maria guardava todas aquelas coisas no coração. E os momentos de trevas continuaram presentes na vida dela. Por que Jesus não quer explicar-lhe nada? A razão está no fato de que ela, a Mãe de Deus y tinha que aprender a interpretar de modo correto os acontecimentos; devia aprender a "espiritualidade dos acontecimentos". Deus nada Lhe simplificou na sua vida. Tudo deveria continuar a ser extremamente difícil! O "Sim" da Anunciação parece tão cheio de alegria e de facilidade em comparação com o último "Sim", aquele que foi pronunciado aos pés da Cruz. Normalmente a pessoa de vida espiritual
do
muito avançada, quando se trata de oferecer-se e de se sacrificar a si própria, declara-se pronta a fazê-lo. E bem mais difícil aceitarmos o sofrimento dos que nos são mais chegados e daqueles a quem mais amamos. A Virgem Maria, pelo contrário, firme aos pés da Cruz, pronunciou um "Sim" que tem como que um duplo valor: - "Que assim se faça em nós – n’LEle e em mim. Se o meu Filho querido deve sofrer e ser torturado, que assim seja". Este consentimento foi o supremo sacrifício. O "fiat" de Maria aos pés da Cruz fez dela a Mãe da Igreja, a Mãe de todos nós. A maternidade espiritual da Virgem Maria tem a sua origem neste "Sim", que foi de todos o mais difícil. Se você se sente completamente destroçado ou particularmente esmagado por qualquer acontecimento, pensa em como estás tão próximo daquela cuja vida foi tão difícil. Deus amou Maria de forma particular e excepcional e, contudo, a sua vida foi cumulada de tanto sofrimento! É precisamente assim que Deus trata todos os Seus amigos.
Quando Deus quer que não Lhe exijamos demonstrações da Sua ternura, trata-se, na verdade, de uma Sua particular forma de amor e de confiança que Lhe permite agir livremente. Imaginemos um casal ideal, numa situação em que o marido se encontra muito ocupado por determinado trabalho. Sua mulher, que o ama muito, não o quer incomodar e procura por sua própria iniciativa encontrar todo o material necessário de que ele precise, ajudando-o desse modo como pode. Só pensa nele. E esse é o amor ideal: quando o ser humano renuncia a si próprio para cuidar de outra pessoa, quando apagando-se, não deseja sequer a mínima atenção para si. Sendo este tipo de amor extremamente difícil de pôr em prática, era o amor que Cristo exigia de Sua mãe. Há um relato bíblico que nos fala daquele encontro entre Jesus, Maria e alguns dos Seus familiares mais chegados. Vêm dizer-Lhe: "A Sua mãe e os Seus irmãos estão lã fora e querem falar-Te" (Mt 12,47). Jesus tratou, naquele momento, Sua mãe do modo como trataria unicamente alguém extremamente querido e digno da máxima confian-
ça. Pareceu, contudo, recusar o encontro: "Quem é minha mãe e quem são os meus irmãos?" {Mt 12,48). Aparentemente, Cristo parece ter sido muito seco para com Sua Mãe, porém tratava-se justamente uma das suas provas de fé, prova do seu total abandono a Deus. Para Maria aquela dureza era como que expressão da maior confiança que Seu Filho depositava nela. Sabia que Cristo contava consigo e que não precisava de se sentir na obrigação de lhe manifestar atenções. Maria nunca foi obstáculo à missão apostólica de Jesus, provando-Lhe, assim, o seu total e desinteressado amor. Se, por vezes, Jesus parecer sim duro para com você, isso quer dizer que muito o ama, que confia que não O desiludirá e não O abandonará. Cristo sujeitava continuamente Sua mãe a provas ligadas ao despojamento e ela continuamente respondia "Sim", assemelhando-se, desse modo, cada vez mais ao divino exemplo: seu Filho. Poderemos dizer que uma vida assim é muito difícil? Sim e não. Essa ambivalência deriva do fato de que, para a pessoa que ama a Deus e que vive em comunhão com Ele, os despojamentos podem se em alegria e felicidade, pois são ocasião de
a
declarar a Deus o próprio amor e de Lhe manifestar a própria fidelidade. Se, porventura, você passa por momentos penosos e difíceis nos quais Deus parece calar-Se, recorde que esse silêncio de Deus não é senão uma forma diferente da Sua palavra e que a Sua ausência é apenas outra forma da Sua presença que incessantemente o envolve. Quer o silêncio, quer a ausência de Jesus são sempre apenas aparentes. Com efeito, à Santa Teresa d'Ávila Jesus disse o seguinte: "Nas ocasiões em que mais te parecia estares só, era quando Eu estava mais perto de ti". E precisamente quando você se sente muito só, quando tudo parece demasiadamente difícil ou quando experimenta alguma forma de despojamento, que o Senhor está mais próximo de você. Se Ele não lhe dá sinais da Sua presença é porque deseja que confie, sempre, mais n'Ele. Certamente que, permanecendo aparentemente silencioso e ausente fesus se expõe a um grande risco. Muitos O abandonam em tais ocasiões. Certa vez, aconteceu que uma enorme multidão dos que O escutavam resolveram deixá-Lo porque lhes parecia que Jesus
dema demasi siad ado. o. Afas Afasta tarr-se se de Jesu Jesuss na seqü seqüên ênci cia a de uma uma prova de fé é um fenômeno que se repe epete freqüe qüentemente. Alguma umas pessoas, confiando em Deus Deus,, saem saem dess dessas as prov provas as fort fortal alec ecid idas as,, enqu enquan anto to outras, pelo contrário, se afastam. A atitude da Virgem Maria, face a provas de fé tão difíceis, é para nós como que um espinho na consciência. Na vida dela, todas as provas de fé contribuíram para um abandono a Deus mais profundo. Apesar de ter passado através de tantas provações, Maria jamais desiludiu Deus. Nela não houve divergência entre o modelo e a realização. O ideal de Deus realizou-se na vida dela em toda a plenitude, de tal forma que Mari Maria a se torn tornou ou obra obra-p -pri rima ma de Deus Deus,, a ma mais is perf perfei eita ta encarnação dos Seus desígnio ioss. Nós, ao contr ntrário, estabelecem emo os constantemente um divórcio entre a fé e a vida, entre o que dizemos e o que fazemos, entre o ideal e a sua realização. Na seqüência das provas de fé, retrocedemos ou nos afastamos mesmo. E neste contexto que podemos dizer que a Virgem Maria é, para nós, um 'espinho' na nossa consciência. Mari Maria, a, mo mode delo lo do aban abando dono no,, pode pode ser ser cham chamad ada a Nossa Senhora da
Aceitação, ou Mãe do Abandono, porque dizia sempre a Deus: "Que em mim se cumpra a Sua palavra". O acontecimento mais importante da hist histór ória ia do mund mundo o cump cumpri riuu-se se nas nas trev trevas as da noit noite e em Getsêmani: esse acontecimento foi o "Sim" pronunciado por Cristo ao Pai. Também na sua vida, os acontecimentos mais importantes se dão quando você escolhe o caminho da aceitação, como a Virgem Maria. No caso dela, a acei eittação abrangeu toda a sua vida ida e da mesma maneira tem que suceder na sua vida. As anunciações contínuas de que se compõe a sua vida devem ser compreendidas por você como apelos da graça de Deus e como provas de fé. O tempo é um valor inestimável pois é presença de Deus. O momento presente constitui para você um chamamento e uma prova para a sua fé, enquanto que para Deus é expectativa: "Me dirá sim?" O e sse nci al do C ri s t i a n i s m o está em dizer c on t i n u a m e n te a Deus: "S e j a feita a Sua vontade."A Mãe de Deus repetia sem cessar estas palavras. Se poderá amar mais?
A Virgem Maria foi sempre cheia de graça e contudo nela a graça não cessava de crescer. A sua fidelidade e o seu abandono fizeram desta alma excepcional um receptáculo que, embora estando já repleto de graça, tinha capacidade para receber sempre mais. Não é porventura um paradoxo? Deus amplia liava, incessantem eme ente, o coração dela e cada nova prova de fé e cada um dos seus "sim" contribuíam para o seu crescimento em graça. A vida da Mãe de Deus, ainda que fosse simples e comum, foi santificada por esse contínuo "fiat". Se exis existte algum lguma a dist distâ ância ncia entr ntre nós nós e Maria ria é sempre por nossa culpa, pois somos nós que a tornamos distante e inacessível. E essa dist distân ânci cia a é denu denunc ncia iado dora ra da noss nossa a medio ediocr crid idad ade, e, da nossa frivolidade, de sermos conformistas e de termos receio de nos abrirmos sem reservas à graça de Deus. E muito mais cômodo para nós dizer: "Ela foi concebida Imaculada, foi a Mãe de Deus, era diferente... Não estou à altura de imitá-la". Pensando deste modo buscamos pretextos e erguemos barreiras a Deus, que nos convida insistentemente a seguirmos as Suas pegadas.
Poderíamos querer perguntar qual a razão pela qual Jesus tanto que sigamos o exemplo de Maria e que nos dirijamos a Ele percor orrrendo endo o ca cam minho inho ma marria iano no.. Enc Encontr ntramo moss uma uma das das respostas a esta questão na radicalidade da Mãe de Deus - a radicalidade da entrega de si mesma a Deus - que Lhe permite entregar-Se a nós. O amor que Jesus dedicou a Maria foi extraordinário e excepcional. Amou-a mais do que a qualquer outra criatura precisamente porque ela soube dar-Lhe tudo. Tendo escolhido a virgindade, Maria veio a realizá-la não apenas no sent sentido ido da co cons nser erva vaçã ção o da pure pureza za em ca cast stid idad ade, e, ma mass ainda no sentido do dom total de si mesma a Deus por amor e nisso consiste a realização da sua virgindade citada na Bíblia: uma virgindade que se exprime na firme vontade de viver em castidade para poder dar-se totalmente a Deus e viver assim exclusivamente para Ele. Aquela que desde o primeiro momento da sua existência se uniu u niu com todas as forças da sua vontade e do seu amor ao Verbo Eterno, realizou na sua vida o mais alto ideal da virgindade. Maria, tendo-se oferecido a Deus, de modo perfeito e
sem limites, torna-se primeiro Esposa e, logo, Mãe do Verbo. Deus dá-Se à alma na medida em que esta se dá a Ele. Se considerarmos a dimensão do dom total que Maria fez de si mesma ao Verbo, não podemos, sequer, imaginar com que intensidade o Verbo a Ela Se entregou! Maria é o exemplo para aquelas almas que Jesus ama pela entrega total de si mesma. Se Jesus deseja tanto que nós também percorramos o caminho de Maria é porque quer que a nossa realização çã o espi espiri ritu tual al ac acon onte teça ça,, mo mode dela land ndo o a noss nossa a al alma ma por por aquele tipo de alma que Ele ama devido ao dom total de si. O Seu ardente desejo é o de encontrar almas que se assemelhem à Virgem Maria, no desejo de segui-Lo até às últimas conseqüências, permitindo-Lhe assim que derrame sobre elas as torrentes infinitas do Seu Amor e das Suas graças. O desejo ardente dessas almas é para Jesus "fome" que está sempre por saciar. Ele chama você a empreender o caminho de Maria para lhe revelar a imensidade do Seu desejo de você. Se quiser seguir o exemplo da Virgem Maria, Maria, se você se ass e me lh ar
cada vez mais a ela, permitirá a Jesus, na medida do seu abandono, amá-Lo com o mesmo amor com que a amou. A Virgem Maria, apresent sentad ada a co como mo mo mode delo lo da al alma ma entr entreg egue ue a Deus Deus sem sem reservas, exorta-O a realizar o ideal do radicalidade da fé.
As tempestades da vida Tempos pos par particul icula armente privi ivilegi egiados dos para o crescimento da fé são os das tempestades que, por vezes, se abatem sobre a nossa vida. A tempestade no mar, descrita no Evangelho, E vangelho, simboliza de certa maneira a nossa situação quando nos momentos difíceis de provas de fé, variando o temporal de intensidade, temos a impressão que Jesus nos abandonou, nou, que que Se ause ausent ntou ou.. Po Pode dem m ser ser dive divers rsas as as noss nossas as tempestades: de tentações, de escrúpulos, de inquietações com o trabalho, tempestades que que envo envolv lvem em a saúd saúde e ou o trab trabal alho ho prof profis issi sion onal al,, ou ligadas a conflitos no matrimônio... Em face face de uma uma tem empe pest sta ade há duas uas atit atitu udes des possíveis: a angústia, como foi o caso dos Apóstolos atemorizados; e a calma, simbolizada
na pessoa de Jesus adormecido na barca. Numa situação que humanamente se apresenta trágica, em que a barca batida pelas ondas está a ponto de afundar, Jesus dorme. O Senhor devia estar verdadeiramente fatigado, mas seria mesmo só cansaço? Se bem que na barca estivesse Jesus a dormir, aos Apóstolos afigurava-se que tudo estava perdido, pelo que, tomados de forte tensão, de angústia e de pânico, decidem acordá-Lo. Eis que durante a tempestade se evidenciam duas atitudes: por um lado os rostos dos Apóstolos aterrorizados de medo e, por outro lado, a calma estampada no rosto de Jesus adormecido. A atitude de Cristo deve lhes ter parecido de tal modo estranha que até suscitou protestos: "Mestre, não te importa que pereçamos?" {Mc 4,38). Cada tempestade tem o seu sentido, pois é uma passagem de Deus que nos traz uma grande graça e, em particular, a do abandono. Em cada situação de tempestade você deve imediatamente dirigir o seu olhar interior para o rosto sereno de Jesus. Poderíamos falar aqui de "teologia5 do sono de Deus. Durante as nossas tempestades Deus parece
Na revelação bíblica, Deus não se manifesta apenas por palavras, mas também por gestos. Na verdade, como está carregada de sentido aquela atitude do sono de Jesus precisamente num momento dramático e de perigo iminente! Evidentemente que isto não significa que, face a uma situação de perigo, se deva ficar na passividade. O quietismo é contrário aos ensinamentos da Igreja. Jesus não faz qualquer repreensão aos Apóstolos pelo fato de terem querido salvar o barco, reprova-lhes antes a falta de fé que os levou a sucumbirem à tentação do medo e até do pânico. Por meio da Sua atitude e do Seu repouso, em que dormia profundamente, quisera Jesus dizer-lhes: "Eu estou convosco, acalmai-vos, porque à barca em que Eu estou, nada pode suceder". A atitude de fé é, ao mesmo tempo, uma oração de fé. Esta é uma oração que se exprime pela calma em face do perigo, pela paz na esfera espiritual, já que no âmbito psicofísico não podemos exercer uma direta influência. E normal que nesta última sejamos freqüentemente sacudidos pelas inquietações, mas isso não tem importância. O que é importante é que o medo que nasce na esfera emocional, psíquica,
não contagie a nossa esfera espiritual, que esse medo não provoque qualquer alteração na nossa atitude, nos nossos atos, pensamentos ou desejos. Só a fé na presença de Jesus junto de nós pode fazer com que permaneçamos tranqüilos, apesar dos vários estados emocionais que possamos atravessar. A Sua presença é, com efeito, a presença de um Amor e de um Poder infinitos. Quando as tempestades, exteriores ou interiores, se arremessarem também contra a sua vida dirija o seu olhar para o rosto sereno de Jesus. Se assim fizer, compreenderá que você não está só e que com a Sua presença, o Senhor quer lhe dizer: "Esta tempestade há de passar, com certeza, vai passar". Nos momentos de tempestade, ou quando a nossa fé for posta à prova, não devemos esquecer a contínua presença, junto de nós, daquela que é a Mãe do nosso abandono. Peçamos-Lhe que nos ensine a viver num abandono como foi o Seu, para que, deixando de confiar em nós próprios, nas coisas ou nas pessoas, possamos sempre ver junto de nós a presença de seu Filho, Aquele que é a nossa
única segurança. Pecamos à Virgem Maria que, seguindo o seu exemplo, nos abandonemos totalmente a Deus: "Mãe do Grande Abandono, entrego-me a ti, sem reservas".
A inquietação proveniente da falta de fé Nem sempre as provas de fé têm como resultado a sua consolidação e dinamização. Se, na verdade, você resiste ao despojamento que estas implicam, dá-se um retrocesso no seu abandono a Deus. Defrontandose com as dificuldades, a sua fé, começará a vacilar e a sua vida passará a ser dominada pela inquietação, pela agitação e pelo stress. Esses sintomas denotam a imaturidade da sua fé ou mesmo a ausência dela e, sem dúvida, negações da própria existência de uma vida de fé. Cada vez que, perante alguma prova de fé - seja de um perigo ou de uma dificuldade — você se deixa dominar pela agitação, pela inquietação ou pela tensão, você fere o amor de Cristo. Fere-lo porque parece querer tomar nas próprias mãos as situações de
dificuldade para as resolver sozinho. Por outras palavras, conta consigo mesmo, e em você não há espaço para a fé. A fé, de fato, consiste em confiar no Amor e no Poder infinitos de Deus. A partir do momento em que você cede à agitação, ao stress e à inquietação, é como se pusesse Jesus de como se Lhe dissesse: "Agora não posso contar Contigo, devo ser eu a resolver esta situação". Existem manifestamente no homem duas esferas que é preciso saber distinguir: a psicofísica e a espiritual. Perante qualquer situação difícil ou perigosa, a agitação, a inquietação e o stress invadem inicialmente a esfera psicofísica, a dos seus sentimentos. Enquanto este tipo de tensão, conducente à agitação ou à inquietude, permanecer na esfera psicofísica você não fere Jesus. Somente quando permite que essa inquietação e agitação provocadas por uma situação psicologicamente insuportável, invadam as suas faculdades espirituais — os pensamentos e a vontade — então sim, pode-se falar em infidelidade e falta de fé. Neste caso não se trata de eliminar o medo, a inquietude e o nervosismo da esfera psicofísica, pois muitas vezes isso é impossível. O que se trata
lad
é de evitar, na sua atitude, o pânico na esfera espiritual, que é aquela que determina e forma as atitudes, de modo a que aí reine a paz decorrente da fé. Não é fácil conservar a paz. Sabemos que também os santos se viram freqüentemente confrontados com as dificuldades. São Maximiliano Maria Kolbe, por exemplo, padecia de uma úlcera no estômago, o que nos leva naturalmente a pensar que a tensão nervosa não lhe foi desconhecida. Houve na sua vida períodos em que foi necessário impôr-se a calma em face do perigo, tendo então muito que lutar pela sua fé. A virtude da coragem não consiste na total ausência de medo ou da inquietação na esfera psicofísica, mas antes em não ceder a esses sentimentos, crendo que nunca estamos sós, que junto de nós está sempre Aquele que nos ama e de quem tudo depende. As graças difíceis das provas de fé, freqüentemente associadas ao sofrimento, têm de ser aceitas por nós na consciência da proximidade de Cristo e na fé de que Ele há de sair vitorioso, que depois de Sexta-feira Santa virá o Domingo da Ressurreição. Devemos ter uma fé inabalável na presença junto de
nós - particularmente nos momentos das provações e de sofrimento d Aquele que é Paz, Poder, Alegria e Ressurreição. O dinamismo da fé e da nossa luta contra as tentações da inquietação, da agitação, do stress, exprimem-se na vivência do momento presente santificando-o como momento de graça. "Entrega-te inteiramente nas mãos da misericordiosa providência, por outras palavras, entrega-te à Imaculada e fica tranqüilo", escreve São Maximiliano a um dos seus confrades (K.Strzelecka, Maximiliano Maria Kolbe). Vive como se se tratasse do seu último dia. O amanhã é incerto, o passado já não pertence, só é seu o dia de hoje. Deus não quer que olhe para trás, pois quase sempre cede às tentações. "Quem, depois de deitar a mão ao arado, olha para trás, não é apto para o Reino de Deus" (Lc 9,62). Deus não quer que se inquiete com o futuro. No Sermão da Montanha, Jesus diz claramente: "A cada dia hasta o seu cuidado" (Mt 6,34). Se você se volta para o passado ou para o futuro e não vive a graça do momento, desperdiça os dons que Ele deseja lhe conceder precisamente nesse momento.
l
Para melhor compreendermos este conceito podemos servir-nos de uma imagem fictícia, semelhante a uma parábola: Imagine estar numa estação que está no meio de um pequeno caminho de ferro e que à sua frente passa um interminável comboio com uma enorme quantidade de pequenos vagões, que você deve encher com pacotes que lhe estão próximos. Porém, pode acontecer que você fixe o olhar nos vagõezinhos que se afastaram e se dê conta sobressaltado que deixou passar muitos sem carregar. Logo você se apressa a fixar os olhos nos que vão chegando e, é horrorizado que vê a enorme quantidade que falta para encher. Nesse preciso instante, distraído com os que passaram e com os que chegam, passa diante de você mais um vagão que se afasta sem ser carregado. As inquietações, do passado ou do futuro, que o atormentam são também uma prova a que é submetida a sua fé. Deus espera que você coloque tudo em Suas mãos e se entregue mais a Ele até o abandono total.
A paz procedente da fé
Se as provas a que é submetida a sua fé fortalecem a sua adesão a Cristo e o seu desejo de se apoiar n'Ele, você verá como na sua vida surgirá a verdadeira paz. As palavras: "a paz esteja convosco", em hebraico "shalom", exprimem uma saudação muito íntima. É uma saudação para desejar aquela paz que emana da comunhão íntima com Deus. Assim era compreendida no Antigo Testamento. Era, também, dessa forma que Cristo saudava os Seus discípulos - "Shalom". Durante a Ultima Ceia disse-lhes: "Deixo-vos a minha paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá? (Jo 14,27). O mundo também quer nos dar a paz, mas a paz humana. Existem, com efeito, duas espécies de paz, bem como dois tipos de alegria: a paz e a alegria humanas, caracterizadas pela caducidade e pela precariedade, e a paz e a alegria de Cristo, que nascem em nós como algo duradouro, enraizado na fé. Que coisas são a paz e a alegria humanas? Correspondem a algo que recebemos das pessoas. A nossa paz humana é como que uma esmola mendigada junto do próximo, porque, na rea-
lidade, procurando nós esse tipo de paz e de alegria é como se buscássemos uma esmola. Esta bagatela de estima humana, este "retalho" de elogio, de aplauso ou de olhar complacente, não são mais do que ninharias. E nós queremos construir a nossa paz sobre isto! Pode até acontecer que alguém consiga alcançar o sucesso e a consideração dos outros, que obtenha essas vulgares insignificâncias humanas que o enchem de satisfação. Mas essa é a paz humana, a paz mendigada que o mundo pode dar. Como é precária! Basta um pequeno incidente, sermos, por exemplo, alvo de alguma indelicadeza, de alguma maldade, ou de um olhar de desconfiança, para que essa serenidade se desvaneça e a alegria se esfume. A paz abandona-nos porque perdemos essas ninharias que mendigamos. Quando vem a faltar essa paz humana aparece o seu oposto: o medo gerador de doenças e de neuroses. O medo e a angústia derivam da nossa procura da tranqüilidade humana e é conseqüência da perda dessas nesgas de serenidade mendigada que perdemos. Outras vezes pode a angústia ser originada pelo receio de se perder a estima de alguém, pela falta de um complacente olhar, por perdermos
essa migalha de aceitação que conseguimos pelas nossas realizações, ou ainda pelo medo de perder um sorriso de alguém. Expomo-nos, assim, à mercê dos caprichos e dos humores dos nossos semelhantes, à mercê daquilo que o mundo nos possa proporcionar. A outra paz, a paz de Cristo, flui da Sua presença. E um dom Seu. "Dou-vos a Minha paz", diz-nos Jesus. E Ele que é a nossa paz, concedida pela fé (cf. Ef 2,14). Acolher a paz de Cristo por meio da fé, significa acolher a Sua pessoa, significa abrir-Lhe, de par em par, as portas do nosso coração. Aquela inquietação, aquela tristeza são sempre más, porque constantemente derivam do amor próprio. Porém, a paz e a alegria nem sempre vêm de Cristo e nem toda a paz, nem toda a alegria são boas. Se a minha alegria advém do fato de ter sido bem sucedido em alguma coisa, trata-se, então, de uma alegria humana, muito instável, em suma, uma autêntica ninharia! Se corremos atrás desse tipo de paz e de alegria, encontramo-nos sempre diante de uma espécie de castelo de cartas'
que ao mais leve sopro se desmorona, pois Deus não consentirá que a paz humana, a tranqüilidade que o mundo proporciona, seja algo duradouro na nossa vida. A verdadeira paz é fruto da vida interior, fruto da fé fortalecida pelas provas, uma serenidade que não obtemos à partida, mas na meta. Ela não é tanto resultado de conquista nossa, mas antes uma questão de escolha. Não poderá haver paz na sua vida enquanto nela existirem apegos, ídolos e servidões a lhe prender. Enquanto entre Deus e você se interpuser algo ou alguém, você não poderá se unir plenamente a Ele, no sentido da fé, não haverá em você paz. Só se pode lastimar que os seus sofrimentos daí decorrentes sejam em vão. A paz de Cristo deriva do processo de contínua eleição da Sua pessoa. O mais importante é a sua escolha principal, a sua opção fundamental. Cristo é para você verdadeiramente o valor supremo? Na Cruz Ele salvou você e, ressuscitando, deu-lhe a possibilidade de conquistar a verdadeira paz e a verdadeira alegria. Graças à Morte e à Ressurreição de Cristo essa serenidade e esse júbilo duradouros ficam, por assim
dizer, ao alcance da sua mão. Mas, a você compete, no entanto, escolher, porque para colher verdadeiro proveito dos frutos da Cruz e da Ressurreição você deve optar por Cristo e pela Sua paz. Esse há de ser o processo da sua aceitação de Cristo. De qualquer modo, você não pode escolher a paz e a alegria se primeiro não escolher Cristo, dado que é Ele próprio que o ajuda a fazer essa escolha, libertando-o de tudo o que o prende e escraviza. E Ele que deita por terra os seus ídolos. Se você consentir, essa será a sua opção e a sua afirmação pela paz, pela alegria e pela liberdade: é a sua opção pela fé. Se na sua vida surgem as neuroses, talvez cada vez mais persistentes, isso significa que em você continua a não haver suficiente vida interior, que a escolha por Cristo é ainda demasiado débil; significa que você ainda não escolheu verdadeiramente o seu Divino Amigo, que a fé geradora de paz continua ainda a ser pouca. Procure aprender a aceitação que é contínua escolha de Cristo. Ao aceitar a Sua vontade escolhe, e aceite, o Seu amor.
Porém, na base de tal escolha deve situar-se qualquer coisa que definitivamente resulta ser essencial: a fé no Amor. Que espera Jesus de mim, que quer Ele? O Seu desejo é que você, ao amar a Sua vontade, queira o seu próprio bem. Cristo de nada necessita para Si. Se alguma coisa quer de você é sempre para seu bem. Ele quer amálo e quer que aceite o Seu desejo, quer dizer, o Seu amor. Você é como uma criancinha que não se apercebe daquilo que é verdadeiramente bom para si. A criança de tenra idade deve ser levada a aprender a comer, a vestir-se, porque a criança não sabe amar a si própria. São os pais que a amam e cuidam dela. A criança não é capaz de querer o bem próprio e de tomar conta de sL Conosco acontece o mesmo, não sabemos o que é verdadeiramente bom para nós, não sabemos amar-nos a nós próprios. Somente amando a vontade de Cristo, amando o Seu amor por nós e a Sua solicitude para conosco poderemos amar-nos pura e desinteressadamente. Cristo é alguém que espera de você alguma coisa, Ele é, antes de tudo, uma vontade que se manifesta. Crer e amar Cristo significa amar
o que Ele quer para nós, é amar a Sua vontade. E deste modo que devemos fazer a nossa opção por Ele: amando o que Ele ama. Escolher Cristo nas situações de prova a que é submetida a nossa fé confirma o nosso amor à Sua vontade: essa é a única coisa que nos dará a paz e a verdadeira alegria, que nada nem ninguém nos poderá tirar.
CAPÍTULO 4
O DESERTO Na simbologia bíblica, o deserto é uma etapa no caminho para Deus que todos os que são chamados à fé devem atravessar. Fê-lo Abraão, quando foi necessário abandonar Harã para encontrar a Terra Prometida. Analogamente, a história de Moisés inicia-se no deserto, quando Deus Se lhe revela na sarça ardente e aí, no silêncio do deserto, o chama à particular missão de libertar o povo eleito. E também no deserto que Elias se refugia quando, por meio da fuga, procura salvar a vida. Deus fê-lo caminhar durante 40 dias e 40 noites para finalmente Se lhe revelar numa delicada brisa e confiar-lhe, em pleno deserto, uma missão especial. Deus não Se manifesta a Elias no meio do barulho, nem de um furacão, do fogo ou de um tremor de terra, mas no silêncio da natureza e no recolhimento do coração. Não Se revela num momen-
to de excitação, mas na quietude, quando Elias, livre das preocupações e do temor, fica face a face com Ele. Pela boca do profeta Oséias, Deus fala de Israel como da Sua BemAmada, que por amor quer conduzir ao deserto: "Por isso, a atrairei, conduzi-la-ei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração" (Os 2,16). Deus conduz o homem ao deserto por amor, porque o deserto é um dom Seu. O deserto realiza aquilo que pedia Santo Agostinho quando orava: "Senhor faz que Te conheça a Ti e que me conheças a mim".
O simbolismo do deserto O deserto, enquanto lugar geográfico e enquanto símbolo da situação do homem, não deve necessariamente aparecer de repente em toda a sua amplitude, ou na sua forma, ou nas suas características. O deserto geográfico aparece gradualmente. A quantidade de árvores vai diminuindo cada vez mais, deixando pouco a pouco, maior lugar à areia e às dunas. No início, pode se encontrar, de vez em quando, um oásis. Acontece o mesmo com o deserto humano: pode manifestar-se
plenamente com um completo despojamento, com uma tempestade de tentações e com a particular presença de Deus misericordioso. Mas pode também aparecer gradualmente, apenas com alguns dos seus elementos. O deserto entendido como prova de fé, isto é, entendido como chamamento a uma vida de fé, pode, por exemplo, identificar-se com qualquer tipo de situação difícil como, por exemplo, as dificuldades decorrentes das nossas relações com os outros, uma doença, o sentimento de solidão que o deprime e outros. O "deserto", por excelência, são os difíceis estados espirituais de aridez e secura, quando Deus parece tê-lo abandonado, quando você não sente a Sua presença e seja mais difícil para você crer nela. O deserto pode ser "imposto" por Deus a uma pessoa ou mesmo a uma comunidade inteira, quando Ele para lá os conduz. Todavia, o deserto também pode ser fruto de uma escolha. Pode acontecer que seja você mesmo a desejar uma situação de deserto para buscar o silêncio, o despojamento e a presença do Senhor. Aí encontrará então o seu adversário, embora, sobretudo venha a encontrar
Deus. Você poderá entrar no mais fundo de si e descobrir a verdade sobre si mesmo, porém, ao mesmo tempo, descobrirá o que é mais importante, a verdade sobre Deus. Do mesmo modo Jesus, antes de iniciar a Sua vida pública, andou no deserto. Ele parece querer lhe dizer: "Repara, você não está só. Eu estive aqui antes. Durante quarenta dias padeci fome e também para Mim foi muito duro. Você nunca está só. Procure acreditar no Meu amor." O deserto pode dizer respeito a uma pessoa ou pode também envolver toda uma nação e ter assim caráter social. Uma só coisa é certa: uma vez que lá entrar, você sairá modificado. Seguro é também que um dia você terá de entrar nele. Virá o tempo em que por meio de acontecimentos exteriores ou interiores, Deus lhe colocará numa situação difícil, quem sabe talvez até de extrema dificuldade, na qual você deverá fazer uma opção. Então, será necessário que se recorde que se trata de uma graça: a graça do deserto. E, se neste momento você se encontra neste tipo de deserto, deve agradecê-lo a Deus. Dê-Lhe graças pelas dificuldades, por estar doente ou pela sua solidão,
se você se sente incompreendido, quem sabe por estar vivendo um pesadelo em casa ou no trabalho, ou ainda por ter dificuldades consigo mesmo. Todas situações são elementos do deserto. Procure ver que em tudo isso Deus está presente e o ama.
Oxalá fosse ou frio ou quente O deserto é um local de prova, um local onde se radicalizam atiudes. Para mais facilmente compreendermos, vejamos a história de quatro estudantes, grandes amigos, que planearam uma viagem ao deserto líbio. Projetam atravessá-lo de "jeep". A história desenrola-se como num filme. E a primeira vez que se encontram no deserto e, em breve, irão se perder não sabendo que direção tomar. De repente o "jeep" sofre danos, transformando-se assim a aventura num drama. Não sabem mais o que fazer e a única alternativa é esperar um eventual socorro. Como se sabe, o deserto é atemorizador e apavorante, especialmente quando se perde a orientação. Durante o dia o calor é insuportável e à noite o frio é glacial. Os mantimentos e
a água daqueles companheiros vão se gastando rapidamente e a tensão entre eles começa a aumentar continuamente. A uma dada altura foi necessário repartir a restante água pelas quatro pessoas. Ela é já tão escassa que o olhar de todos se concentra nas mãos daquele que se prepara para a verter. E a desgraça acontece. Provavelmente por causa da crescente tensão e do olhar dos outros, a mão começa a tremer e parte da água derrama-se na areia. Subitamente a tensão nervosa dos quatro transforma-se em agressividade descontrolada e começam a acusá-lo: "Como pode entornar a água? Por sua causa morreremos!". E, imediatamente, começou uma espécie de avalanche. As emoções tomaram a dianteira. A restante água acabou derramada pelo chão enquanto os corpos dos quatro amigos envolvidos em luta rolavam pela areia. Quando finalmente voltaram a si, já um deles não se podia erguer. Tinha sido estrangulado. Uma cena de horror! Quando mais tarde um helicóptero os descobre e recolhe, três vivos e o corpo sem vida do quarto, isso não teve grande importância. O importante foi que entre eles algo de verdadeiramente horrível acontecera. Já não eram
os mesmos. No deserto líbio fora cometido um crime entre amigos que, pouco antes, se encontravam prontos a dar a vida uns pelos outros. A situação do deserto traz à tona aquilo que no homem se encontra mais profundamente escondido. Revela resíduos de paixões humanas e do mal, que não se manifestam plenamente senão em situações limite. Eis porque o deserto mostra como na verdade é o homem. É no deserto que o homem se dá conta de que coisas é capaz, da sua fraqueza, da sua condição de pecador, da sua dureza de coração. Aí o homem encontra-se face a face com a aterradora verdade daquilo que é sem a ajuda de Deus, A nudez do deserto despoja também o homem, põe a descoberto a sua miséria e revela a sua nudez, porque aí se dissipam as ilusões e não existem esconderijos possíveis. Normalmente o homem vive de uma maneira muito superficial, como se vivesse apenas à flor da pele. Só as situações difíceis, as situações de deserto, o constrangem a tomar decisões, revelando, ao mesmo tempo, as camadas mais profundas do bem ou do mal. O deserto, porém, não só revela a verdade sobre você, mas o transforma interiormente, polarizando as suas atitudes. O dom do deserto permite-lhe vencer a tibieza, porque o obriga a fazer opções. Ao optar, perceberá de que coisas você é capaz, pois conhecerá mais de perto as duas realidades mais importantes: a realidade do inconcebível Amor e da infinita Misericórdia de Deus e a realidade da sua condição de pecador e da sua impotência. Enquanto você for um cristão tíbio, para quem a vida corre sem problemas e tudo vai bem, a sua situação, vista à luz da fé, é dramática, porque pensa ser aquele que
soluciona tudo e Deus deixa, assim, de ser necessário: está, desse modo, numa condição de ateísmo prático. A razão suprema pela qual um homem, um povo ou uma comunidade inteira são introduzidas no deserto ressalta claramente nestas palavras do Apocalipse: "Conheço as suas obras e sei que não és frio , nem quente. Oxalá fosses frio ou quente! Mas, corno és morno e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca" {Ap 3 ,1516). Para Deus o estado de tibieza humana é inaceitável, é algo abominável que não suporta em você. Por esse motivo, mais tarde ou mais cedo, deverá introduzir-lo no deserto. A situação do deserto polariza as nossas atitudes, faz com que o homem não possa permanecer na tibieza, mas que se torne quente ou frio. Também Moisés, esse grande santo da Antiga Aliança, se santificou no deserto. Muitos dos que estiveram com Moisés no deserto tornaram-se criminosos, desordeiros e adoradores de falsos ídolos. À luz da fé, seria preferível que você blasfemasse do que permanecer na tibieza. Ao blasfemar, vê, ao menos, claramente o seu mal. A blasfêmia volta para você como um eco e você tem então uma oportunidade de reconhecer como é grande o mal que há em você e será então mais fácil se converter. Os padres da Igreja afirmam que Deus conduz ao deserto para que o homem tenha fé ou se torne blasfemo. Ou a fé ou a blasfêmia, mas nunca a tibieza. Assim era também no deserto bíblico. Muitos blasfemavam contra Deus, mas muitos outros se santificavam. O dom do deserto não permite que se persista num estado de ateísmo prático.
A situação de deserto permite compreender como todo e qualquer juízo negativo a respeito de outra pessoa é absolutamente destituído de sentido. Será de grande proveito para você combater a tendência de julgar os outros. Que você pode, com efeito, saber a respeito de alguém que surge no seu caminho e em quem julga ver tanto mal? E a situação existencial deste alguém que conta. Porventura, pode estar vivendo um período de provas, pode encontrar-se na etapa do deserto. Eis uma razão pela qual é preciso acabar com a tendência para julgar os outros. O deserto é um lugar privilegiado para Satanás já que ali o homem está em estado de fraqueza e sucumbe mais facilmente às tentações. O diabo explora essa situação. O deserto acentua as possibilidades de revolta. Ao fazer a travessia do deserto, o povo eleito esteve sujeito a particulares tentações e a revoltas que levaram à infidelidade para com Deus, como no caso do bezerro de ouro. No deserto o homem muda, torna-se diferente, porque ali se produz uma evidente radicalização de atitudes. Muda, portanto, para melhor ou para pior. Pode tornar-se um criminoso, embora possa também tornar-se um santo.
O deserto - lugar de despojamento
A simbologia bíblica do deserto está ligada, por excelência, à vocação do povo eleito que devia sair do Egito e entrar na Terra Prometida. A distância entre o Egito e Canaã é de cerca de 400 quilômetros. Essa distância podia ser vencida, mesmo por uma caravana de milhares de homens, em cerca de duas ou três semanas. No entanto, a caminhada do povo eleito durou quarenta anos. Deus, ao chamar o Seu povo ao deserto, quer em certo sentido, levá-lo a desistir da sua presunção de autosuficiência; quer levá-lo a se submeter a uma vida dura, a se submeter a um processo de despojamento que resulta ser indispensável no caminho da fé e do total abandono a Deus. O deserto é, em primeiro lugar, símbolo do despojamento. O homem é confrontado não só com a imensidão do céu e com a vastíssima extensão de areia, mas também é confrontado consigo mesmo. No deserto tudo se reduz aos elementos essenciais e indispensáveis: o espaço, o céu, a terra, a areia, Deus e o próprio homem. Entrar no deserto significa despojar-se das coisas fundamentais, conhecer a fome e a sede, tanto físicas como espirituais. O despojamento, que vem gerar a fome e a sede, faz com que entre essas sensações de caráter físico e aquelas que surgem na esfera espiritual exista uma estreita ligação. São estas dificuldades que fazem vir à tona tudo o que no homem normalmente permanecia oculto em zonas muito profundas. O deserto é o local e o tempo propícios à libertação dos apegos e dos próprios esquemas de segurança. O homem que caminha pelo deserto nada tem. Dado que não possui o que quer que seja que possa constituir uma
segurança, a sua situação existencial é precária: falta-lhe tudo. Aqueles que fazem a travessia do deserto aprendem por experiência própria a contentar-se com o que Deus lhes dá e a tudo esperar d'Ele. Experimentam a necessidade de se apoiarem exclusivamente em Deus, porque Deus deseja ser tudo para aquele que peregrina pelo deserto. O povo eleito, viajando pelo deserto, tendo recebido o maná do céu, não pôde, porém, acumulá-lo e fazer provisões para o dia seguinte. Dia após dia deve confiar que o maná cairá de novo. Tem de acreditar que Deus cuida dele continuamente. O deserto é, portanto, o lugar onde nasce a fé e esta se aprofunda na medida do nosso despojamento. Deus pode invadir mais o homem se o seu despojamento for crescente, se ele desejar progressivamente responder ao apelo do seu Senhor e abrir-se a esse amor que sente. Quanto mais o homem aceitar ser despojado do seu "eu" e das suas seguranças mais Deus poderá descer a ele e tornar-Se o seu único apoio. A medida que as misteriosas relações entre Deus e o homem se vão aprofundando. Deus reclama um despojamento sempre maior, que é insistente apelo a um dom de si próprio cada vez maior. Daquele que O ama, Deus espera que queira ultrapassar as suas possibilidades puramente humanas, que consinta em ser totalmente despojado do que é e do que possui, para se tornar sinal Seu e para que Deus seja nele uma presença viva no mundo. O deserto é local de nascimento de uma fé cada vez mais dinâmica, que transforma a vida do homem. Deus espera que no deserto o homem tíbio, de fé débil, se torne ardente na sua fé e na submissão ao seu Senhor. Foi
graças ao despojamento do povo ocorrido no deserto que Deus pôde concluir a Aliança; aí se consumaram as núpcias entre Israel e Deus, pelas quais o Senhor Se tornou um dom para o Seu povo e o povo fez, por seu lado, um voto de fidelidade a Ele.
O deserto - experiência do amor de Deus O despojamento a que o homem é submetido no deserto permite-lhe, não só conhecer a verdade sobre si próprio, mas também a verdade a respeito de Deus que é Amor. Permite-lhe experimentar a Sua particular Presença e Poder, mas, acima de tudo, permite-lhe conhecer a Sua divina Misericórdia. Deus, com efeito, responde com amor e com paternal solicitude ao pecado e à fraqueza do homem. Ao povo que se revolta e peca, Deus responde com o milagre do maná e da água de que tanto careciam nesse momento. Apesar da maldade humana se manifestar mais vincadamente no deserto, Deus encontra-se aí presente de forma singular. O povo eleito era conduzido por Ele. Deus era visível e, ao mesmo tempo, mantinha-Se velado por trás da nuvem e do fogo. A nuvem, que indicava a presença de Deus, ao mesmo tempo ocultava-O a seus olhos. Foi para os israelitas, simultaneamente, um tempo de claridade e de trevas, que simbolizavam tanto a presença como a inacessibilidade de Deus.
Deus tinha conduzido ao deserto uma multidão desorganizada, mas aqueles que o atravessaram tornaram-se homens novos constituindo já uma nação ligada a Deus por uma Aliança. A finalidade do deserto é de formar o homem, fortalecer a sua fé, eliminar a sua mediocridade, formar verdadeiros discípulos de Cristo. Ao entrar na Terra Prometida, o povo eleito constituía uma pequena comunidade enriquecida pela experiência do deserto. Eles experimentaram a ação de Deus, quer por entre os horrores, quer por entre os fulgores e conheceram, simultaneamente, a sua própria fraqueza e pecaminosidade. Experimentaram, de forma evidente, a sua própria miséria e em resultado disso conheceram muito fortemente a misericórdia de Deus. No deserto é que você vai se dar conta de que Ele realmente nunca o abandona. E verdade que no deserto Deus Se oculta, mas, na realidade, Ele está, particularmente perto de você. Nunca como nessas ocasiões se encontra tão próximo. Somente espera que Lhe demonstre a sua fé, espera que Lhe estenda os seus braços confiantemente. Foi na sua própria fragilidade que o povo eleito descobriu o verdadeiro mistério de Deus. Se experimentar a fraqueza própria, significa que Deus o chama, que o convida a se lançar nos braços da Sua misericórdia. O deserto existe para que você tenha oportunidade de se voltar para Aquele que é a própria misericórdia.
A experiência de deserto o ajudará a sentir a necessidade de Deus e a reconhecer a sua completa dependência d'Ele. Serão os momentos cm que passa por difíceis horas de obscuridade, de desânimo e de ten-t ações, que lhe proporcionarão maior consciência da sua incapacidade e da sua impotência. Quando tiver descoberto a verdade sobre você mesmo e suplicar a Deus que o perdoe, reencontrará, como o filho pródigo, a grande ternura do Pai e a Sua extrema alegria pelo seu regresso. Você poderá olhar para os Seus olhos repletos de amor. Perdoando, Deus edifica ao mesmo tempo em você a humildade. O deserto não é uma pátria, mas somente um percurso, um caminho que conduz ao conhecimento do Amor misericordioso de Deus. Todos aqueles que procuram Deus devem passar por ele, pois a experiência do deserto está estreitamente ligada ao aprofundamento da nossa fé na Sua misericórdia. No deserto realiza-se a formação do homem, segundo o princípio de que somente o que é difícil e oferece resistência, forma o homem. O seu amor a Deus, que então nasce, deve se tornar definitivamente comunhão com Ele: "Amar a Deus", diria São João da Cruz, "é por Ele despojar-se de tudo aquilo que não é Deus" (Subida do Monte Carmelo, 11,5-7). Por fim, o deserto não constitui somente o berço da sua fé, mas torna-se a pátria da contemplação. No deserto da sua vida você encontrará sempre a Virgem Maria. Ela estará junto de você olhando-o com maternal solicitude. Aquela que é Medianeira de Todas as
Graças, Medianeira da Misericórdia, intercederá por você e esperará com emoção que, a seu exemplo, pronuncie o seu próprio "fiat", que também diga o seu "sim" e que veja Deus em todas as situações. O povo eleito não tinha a Virgem Maria. Mas você tem e por isso não caminhará só. Ela, que viveu tantos momentos difíceis, caminhará à sua frente, será a sua luz a lhe mostrar o caminho para o seu Filho. Os períodos de escuridão do seu deserto serão iluminados pela Sua presença.
CAPÍTULO 5
OS MEIOS RICOS E OS MEIOS POBRES NA IGREJA Segundo Jacques Maritain, os recursos de que a Igreja dispõe para fins espirituais podem se dividir em meios ricos - rich temporal means — e em meios pobres — humble temporal means — (cf. J. Maritain "On the Philosophy of History", 1957). Podemos chamar ricos aos meios que podem ser observados e formulados estatisticamente. Enquanto meios tipicamente deste mundo "requerem, por sua própria natureza, um resultado palpável" (Ibidem). Fazem parte de tais meios, por exemplo, as organizações, as reuniões, as procissões, a arquitetura e a decoração das igrejas, os meios audiovisuais e de comunicação social, etc. Um traço característico dos meios ricos é a influência que exercem sobre o amor próprio, através dos seus efeitos e resultados visíveis. Daí procede a perigosa tendência de
nos apropriarmos dos resultados, o que vem a gerar uma atitude de triunfalismo. Para aquele autor, um outro tipo de meios são os meios pobres. Estes são caracterizados pela marca da cruz e exprimem uma das mais profundas verdades bíblicas: "Se o grão de trigo, caído na terra, não morrer, fica só; se morrer, produzirá muito fruto" (Jo 12,24). Nestes meios podemos observar o paradoxo singular do dinamismo da fé: quanto mais pobres, isto é, despojados de tudo, insignificantes e menos visíveis são estes meios, tanto maior a sua eficácia. Ao contrário dos ricos, os meios pobres não se ligam a um sucesso palpável e, assim, não contêm em si a menor necessidade de um triunfo temporal.
Jesus pobre Estamos habituados a contar, na nossa vida e na vida da Igreja, com os meios ricos. Muito nos agradaria ver o triunfo e a vitória de Cristo, a manifestação da Sua força e do Seu poder! Mas, pelo contrário, Ele se esconde: é pobre em Belém, mais pobre ainda no Calvário pobre, da forma mais extrema, na Eucaristia. Levando tão longe a Sua pobreza e o Seu aniquilamento, sublinha a importância dos meios pobres. Na Sua ação salvífica, Jesus escolhe, acima de tudo, os meios pobres e humildes. Nenhum sinal de poder acompanha o Seu nascimento. Jesus vem até nós sob a aparência de uma criancinha inteiramente à mercê daqueles que a rodeiam. Depende deles completamente,
é incapaz de oferecer resistência a alguém, não pode nem defender-Se, nem impor a Sua vontade. Dá-Se a conhecer primeiramente na Sua pobreza, humildade e fraqueza. Assim Se manifestou no momento do Seu nascimento e assim será na Sua Paixão. Mostra a você como deve ser despojado, que deve morrer para si mesmo, que deve escolher os meios mais eficazes: os meios pobres. Isso não significa que Jesus não tenha Se servido dos meios ricos. A entrada triunfal em Jerusalém foi um meio rico, foi o triunfo de Cristo. Jesus quis demonstrar que, se o quisesse, podia fazer com que as multidões Lhe rendessem a maior homenagem, que estendessem os mantos no caminho à Sua passagem, quis deixar claro que a Ele tudo é possível. Mas trata-se do Domingo de Ramos e, é precisamente após esta entrada triunfal em Jerusalém, que Jesus pronuncia essas palavras que irão chocar um grande número de pessoas: "Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo caído na terra, não morrer, fica só; mas se morrer, produzirá muito fruto" (Jo 12,24). Fê-lo para que os Apóstolos não caíssem na vertigem do Seu triunfo — como por vezes acontece — para que não se enganassem. Na vida de Jesus houve milagres, houve o Tabor, mas existiram, sobretudo, os meios pobres. Quando da Sua prisão, vemos ainda uma vez, o Seu recurso aos meios ricos. Quando os soldados chegaram ao Horto das Oliveiras, para prendê-Lo, às Suas palavras, caíram por terra mostrando-lhes desse modo Jesus, a Sua força e o Seu poder (cf. Jo 18,6). Mas, em seguida, permitirá que riam d'Ele, que Lhe cuspam e gritem junto à Cruz: "Ah! Tu que destróis o Templo e em três dias o edificasy salva-te
a ti mesmo, desce da Cruz! (...) A outros salvou, a Si mesmo não Se pode salvar!" {Mc 15,29-31). Jesus aceita tudo isso com uma paz divina, servindo-Se justamente desses recursos pobres para a salvação do mundo.
A eficácia dos meios pobres O sofrimento aceito por amor a Deus, os joelhos doloridos durante a oração, as renúncias que fazemos e que ninguém conhece, a anulação da vontade própria, a vida em recolhimento, no silêncio e na contemplação, são meios pobres. São meios invisíveis, dos quais quase nada se sabe, pois não podem ser recolhidos em estatísticas sociológicas; mas são estes meios pobres que, vistos à luz da fé, se revelam determinantes dos destinos do mundo. Os meios ricos são aqueles que, como tal, surgem aos olhos do mundo, mas que à luz da fé são considerados de outro modo. "Pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens" - diz São Paulo -"e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens' (ICor 1,25). O que é pobre aos olhos dos homens é rico aos olhos de Deus. Os meios mais ricos são, pois, os meios pobres, porque são os mais eficazes, constituindo uma manifestação da verdadeira sabedoria, a sabedoria divina. A utilização dos meios ricos apenas poderá se revelar eficaz quando assente nos meios pobres: numa vida interior profunda, na vida de oração, de mortificação do próprio "eu" e de total abandono a Deus. A eficácia dos meios pobres flui da presença de Cristo na alma, de acordo com o princípio de que Deus Se dá à alma, na medida em que esta se entrega a Ele.
"A obra da vida ativa" - diz São Tomás de Aquino "nasce da plenitude da vida contemplativa" (Summa Theologica, 2,2,188). A eficácia dos meios ricos no apostolado organizado, deriva da riqueza dos meios pobres e não o contrário. Os meios ricos podem sofrer restrições devido a fatores externos, como por exemplo, a falta de tempo, de forças físicas, de capacidade organizativa ou perseguições à Igreja. Os meios pobres permanecem inexpugnáveis aos fatores externos, não podem ser arrebatados à Igreja. A falta deles é injustificável, pois, para que existam, são suficientes o amor e a boa vontade. Os meios ricos também são úteis à Igreja e não seria justo excluí-los. Deus não quer nada que seja unilateral e quer, por isso, que haja, entre outras coisas, imprensa católica, assim como as mais diversas formas de apostolado visível. São Maximiliano Kolbe é, em certo sentido, o patrono dos meios ricos. Sonhava com eles e conseguiu que um milhão de exemplares do periódico "Cavaleiro da Imaculada 'se difundisse pelo mundo. Ele mesmo distribuía nas ruas das cidades japonesas o que chamava de "balas", isto é, exemplares da "medalha milagrosa". Sonhava ter uma emissora radiofônica, poder utilizar aviões e barcos a serviço da Imaculada. Não devemos desvalorizar os meios ricos, pois estes também terão de ser aproveitados para o serviço do Senhor. Devemos, no entanto, lembrar-nos de que a sua eficácia resulta da presença dos meios pobres. São Maximiliano foi um homem de sucesso, pois conseguiu ser bem sucedido em muitíssimas coisas.
Fundou, perto de Varsóvia, um Centro de Apostolado Mariano {Niepokalanow) - A Cidade da Imaculada - que se tornou motivo de admiração para toda a Igreja. Fundou ainda centros parecidos em outros continentes. Aquele incontestável êxito era contudo obtido graças aos meios pobres, o que o próprio São Maximiliano testemunhava: "Quando todos os meios fracassaram" - confessou ele "quando se reconheceu que eu estava perdido e os superiores constataram que eu para nada servia, então a Imaculada tomou nas suas mãos este instrumento que já só servia para pôr de lado" (M. Winowska, "O Louco da Imaculada"). Foi Maria, a quem ele inteiramente se entregou, que tomou conta daquele pequeno "nada" para o utilizar na proclamação da glória de Deus e na conquista das almas. A eficácia do apostolado de São Maximiliano e do seu trabalho a serviço da Imaculada começou a manifestar-se nele e quando, tendo caído gravemente doente, os seus confrades e superiores concluíram que devido à sua tuberculose aguda deixara de estar apto para o trabalho; quando todos deixaram de contar com ele e ele se viu totalmente despojado, à imagem do grão de trigo que morre para dar fruto. Este é o paradoxo de Deus. Um homem que, na perspectiva humana, não serve para nada, torna-se instrumento mais eficaz nas mãos do Senhor, porque é Ele, quem vive e age nessa pessoa; é Deus quem nela alcança o sucesso. Crer é reconhecer o próprio nada e tudo esperar de Deus. Ora, o experimentar da própria incapacidade junto com a atitude de esperar tudo da intervenção de Deus é o meio pobre por excelência. Você é capaz de reconhecer o valor dos
meios pobres na sua vida? Decerto Deus não lhe poupa tais ocasiões. Qual de nós não conhece momentos de sofrimento, ou de especiais dificuldades, períodos de deserto espiritual? Qual de nós não terá que lutar consigo mesmo ou com as condições externas nas quais lhe cabe viver? São coisas que não se podem ver, classificar ou avaliar. Estão de tal modo escondidas que jamais se encontrará qualquer dado estatístico sobre elas. Quem poderá, de fato, saber que um dia, num momento crucial da sua vida, você disse a Deus: "Sim, quero. Quero tudo o que esperas de mim". Quem pode saber que um dia quando o fardo era demasiado pesado, você disse a Deus - talvez por entre lágrimas - que O amas e que O queres amar? Quem pode saber quantas vezes venceu a si mesmo, se privou de algo, dobrando a sua vontade? Estes são os meios pobres, os mais importantes para você, para a Igreja e para o mundo, os que atraem o poder do Senhor. Quantas vezes Deus lhe deu oportunidade de utilizá-los? Talvez tenha desperdiçado tais ocasiões e recusado aceitar esses dons inestimáveis de Deus. Talvez tenha mesmo experimentado um certo ressentimento se revoltando, enquanto Ele procurava, inclusivamente, lhe dar quase à força, e implorava que deu não rejeitasse tudo isso, que tanta importância tem na obra da salvação do mundo! Aquele a quem chamaram o "Mendigo Divino" conhece melhor do que ninguém o valor dos meios pobres. Portanto, você não deve esquecer como é importante que suporte, com alegria, todas as humilhações, que tente sorrir na tristeza e que, não obstante as experiências que atravesse, tente olhar o mundo com
serenidade, na fé em que o amor efetivamente triunfará. Não há nada que Deus receba com ligeireza, nem os joelhos que lhe doem quando reza, nem as pernas cansadas quando tem de ficar, muito tempo, de pé na Igreja. Ele conhece todos os meios pobres que foram colocados à sua disposição e que você, no segredo do coração, decide acolher ou rejeitar. Ao mesmo tempo é aí, nas profundezas do seu coração, que se decide o destino daqueles que lhe são mais queridos e o seu próprio destino. Os meios pobres, que por si mesmos são ineficazes para alcançar qualquer objetivo, atuam no plano da fé; são um sinal da atuação do próprio Deus. Você diz que reza por alguém que não crê, que reza fervorosamente pela conversão ou pela saúde de alguém. No entanto, tudo depende do que é a sua oração. Por vezes, poderia ser suficiente o seu "sim" dito com alegria: um meio simples, pobre e modesto, mas que pode realmente fazer milagres. Quando você sofrer, quando o Senhor lhe propor uma parte naquilo que há de mais precioso para a salvação das almas, pensa em João Paulo II, na sua coroa de espinhos' que eram as críticas agressivas; no seu grande cansaço, sobretudo durante as suas inúmeras viagens pelo mundo. Pensa em São Maximiliano, esse santo que obteve tantos sucessos, mas a preço dos "meios pobres". Chegava freqüentemente a ficar abafado com a falta de ar, principalmente durante as viagens em que — como escrevia nas suas cartas — não podendo quase respirar, ficava completamente exausto. Aquele a quem chamaram de "louco da Imaculada" era louco na utilização dos meios pobres.
Se você não compreendeu bem o valor dos meios pobres, significa que ainda não compreendeu verdadeiramente em que consiste, na sua mais profunda essência, o Cristianismo. Se, de fato, não compreende o valor e o sentido dos meios pobres, não pode compreender a Cruz que está no centro da Igreja. E do alto da Cruz que Cristo atrai tudo para Si, do alto dessa Cruz junto à qual se encontrava Sua mãe que nunca retirou o seu "Sim", nem mesmo diante dos pavorosos sofrimentos do seu Salvador. E da Cruz que flui incessantemente a graça divina da Redenção e da santificação do mundo. O Salvador o atrai, não pela Sua entrada triunfal em Jerusalém, mas pela Cruz e é do alto da Cruz que o convida para segui-Lo, para que o ame, como Ele amou "Até ao fim". A Virgem Maria é a padroeira dos meios pobres. Olhando a sua vida do ponto de vista humano, não vemos nenhuma grande obra. Na sua vida não aparecem quaisquer meios ricos, mas sim a pobreza, o silêncio, a vida oculta, a humildade, a obediência, a oração, a contemplação, o abandono a Deus. A sua vida, marcada pela simplicidade e pela utilização dos meios pobres, era uma vida oculta em Deus. Ela o convida também, a este modelo de vida. Quer que viva da fé; que no seu coração prevaleça - como em Nazaré - o desejo de utilizar os meios pobres. Ela quer que compreenda a verdade encerrada na constatação de São João da Cruz, de que "uma migalha de puro amor" - meio pobre - "vale mais aos olhos de Deus e à alma e dá mais proveito à Igreja do que todas as outras obras juntas" (cf. Cântico Espiritual, XXIX,2).
A vitória pela fé A cena da luta contra os amalecitas é um clássico texto bíblico que mostra à luz da fé o valor e o sentido dos meios pobres. Durante a sua travessia do deserto, quando estavam a caminho da Terra Prometida, os israelitas tiveram de lutar contra os amalecitas, um povo que dominava as pistas do deserto (cf. Ex 17,8-13). Moisés, como homem de Deus que era, sabia qual o modo de assegurar a vitória ao seu exército. Se tivesse sido um estrategista, raciocinando unicamente à maneira humana, para fazê-los combater valorosamente, segundo as regras da estratégia, teria se colocado a frente dos seus guerreiros tentando arrastá-los pelo exemplo, ciente de que o olhar deles lhe estava dirigido. Moisés, ao contrário, procedeu de forma aparentemente absurda do ponto de vista humano e da estratégia militar. Retirou-se e, tendo deixado o exército sob a chefia do seu adjunto Josué, subiu ao cimo de uma colina para orar. Moisés, homem de Deus, homem de oração, sabia bem quem é que decide a sorte do mundo e dos destinos das nações. Assim se explicam os seus braços erguidos no cume da colina, voltados para o alto num gesto de fé. Entre ele e o vale onde o combate se desenrolava estabelecera-se uma estreita ligação. Quando os seus braços se abaixavam devido ao cansaço, o exército recuava. Moisés sabia a razão: Deus queria que continuasse a esforçar-se levantando constantemente os braços para Ele. Quando estes se lhe entorpeceram completamente, Aarão e Hur que o tinham acompanhado, ampararam-no. Durante todo aquele dia o gesto das mãos erguidas para o Senhor acompanhou os israelitas em luta e quando a noite caiu, a vitória lhes
pertencia. No entanto, não foi Josué que venceu, nem o seu exército combatendo no vale, mas foi Moisés lá no alto, foi a fé dele que venceu. Se semelhante cena se repetisse nos nossos dias, toda a atenção dos jornalistas, as câmeras de televisão, os focos dos projetores haveriam de concentrar-se no local onde Josué chefiava o combate. Pareceria que era ali que tudo se decidia. Qual de nós perderia tempo em olhar na direção daquele lugar perdido, onde um homem solitário rezava? Contudo, é precisamente o homem solitário que alcança a vitória, porque é Deus quem nele triunfa. Aquelas mãos de Moisés estendidas para o alto são como um símbolo mostrando que é Deus quem tudo decide. "Tu estás presente, Senhor, Tu governas. De Ti tudo depende. Para o homem, as possibilidades de sucesso podem ser ridiculamente escassas, mas para Ti, ó Deus, não existem impossíveis". O gesto dos braços erguidos, cansados pelo esforço, é um gesto de fé, um pobre meio que exprime a loucura de fé no infinito poder e no infinito amor do Senhor.
A maternidade espiritual A maternidade espiritual torna-se efetiva graças aos meios pobres, uma vez que se realiza por meio da participação na Morte de Cristo: "Se o grão não morrer, fica só" e, na Sua Ressurreição: "Se morrer, dará fruto em abundância". A participação na Morte de Cristo cumpre-
se, primeiramente, pela aceitação do sofrimento (que infringe a morte ao egoísmo), enquanto a participação na Ressurreição é o nascimento em nós do homem novo, formado à imagem de Cristo que é o Amor. O apostolado é dar Cristo, presente na alma daquele que se consagra ao apostolado: é cooperar para que Cristo nasça nas almas. Segundo São Paulo, o apostolado é uma maternidade espiritual: *Fui eu que vos gerei em Cristo Jesus pelo Evangelho" (1Cor 4,15). Graças à fé, o nosso apostolado entendido como maternidade espiritual tornase uma participação na maternidade espiritual da Igreja. Geramos almas para Cristo por meio da fé , que se exprime de modo mais pleno na utilização dos meios pobres. A maternidade espiritual realiza-se graças à palavra viva que é fruto do contato contemplativo com Deus, graças à oração de pleno abandono e ainda, muito particularmente, pelo sacrifício e pelo sofrimento. Na vida de Santa Teresinha do Menino Jesus houve dois grandes pecadores que tiveram um papel de particular importância. Um deles surgiu na sua vida quando ela tinha catorze anos. Foi Pranzini, culpado pelo assassinato de três pessoas e que, apesar de ter sido condenado à morte, não manifestava o mais leve arrependimento. Todavia, Teresinha não podia aceitar a idéia de que ele viesse a morrer sem se reconciliar com Deus e decidiu durante um mês e meio oferecer todas as suas orações e sofrimentos por intenção de Pranzini. E Deus deu à Teresinha um sinal: no derradeiro momento antes da execução, aquele grande pecador arrebatou o crucifixo e por três vezes beijou as chagas do Salvador. Quando Teresinha ficou sabendo, disse emocionada à
Celina: "Ele é o meu primeiro filho". Aquela que já aos catorze anos tinha tão clara noção da maternidade espiritual, escreveria mais tarde: "Somente o sofrimento pode gerar almas para Jesus" (cf. Carta à Celina, 8. VIL 1891). Pranzini era o protótipo de todos os pecadores pelos quais Teresinha desejava especialmente rezar e por quem queria oferecer o seu sofrimento. Ela entendia que só a oração poderia não ser o suficiente, pois para salvar as almas era necessário colocar no prato da balança também o próprio sofrimento, o maior dom para oferecer a Deus. A outra figura de grande pecador foi um personagem que, segundo confessou Teresinha, se revelou caso ainda mais dramático: o padre Hyacinthe Loyson. Este nome não figura na autobiografia, nem na correspondência de Teresinha, nem sequer na "História de uma Alma". Só por duas vezes, nas cartas a Celina, se refere a um certo "lírio fanado e maculado" e de "um grande culpado" (Carta à Celina, 26.IV.1895). É a partir das atas do processo de beatificação e de canonização que se soube o seu desejo de salvar aquela alma, Hyacinthe Loyson, carmelita descalço, superior do convento de Paris, era um excelente orador, extremamente inteligente. As suas conferências emocionavam os seus ouvintes por toda a França; até o Papa o felicitara pelos seus sucessos. A uma dada altura, no entanto, aquele eminente sacerdote, de grande pregador que era, tornou-se apóstata e o pior: apóstata militante. Começou a percorrer as dioceses da França e,
apesar dos numerosos protestos, proclamava que a Igreja tinha abandonado o verdadeiro Evangelho. Continuou a combater a Igreja durante quarenta e três anos. No convento de Lisieux aquela luta aparecia como algo pavoroso, a ponto de ninguém ousar pronunciar o seu nome. Pura e simplesmente não se falava dele, o que explica o motivo de seu nome não figurar nos escritos de Santa Teresinha que, entretanto, durante nove anos consecutivos ofereceu orações e sofrimentos por sua intenção. No caso de Pranzini, bastara um mês e meio, porém neste foram nove anos e parecia que isso não teria sido suficiente. O Pe. Loyson acabou sendo excomungado. Mais tarde escreveu uma carta aberta na qual acusava a Igreja e o Carmelo, carta essa que suscitou veementes protestos e grande indignação. Mesmo assim, Teresinha não perderia a esperança. Confessou a Celina, com o coração a latejar de ardor, que a conversão do Pe. Loyson era o seu maior desejo. "Querida Celina", escreve numa carta, "sei que a sua culpa é grande e que ultrapassa provavelmente a de qualquer outro pecador, mas não é verdade que Jesus pode vir a fazer uma vez algo que ainda não tenha feito? E, se não fosse esse o Seu desejo, acaso teria colocado no coração destas suas pobres pequenas esposas um anseio que não tencionasse realizar?" (Carta à Celina, 8. VIL 1891). Foi tese sua, que sempre defendeu, que se Jesus dá determinado desejo, é p a r a poder satisfazê-lo. "De certeza absoluta" - escreve — "que Ele deseja muito mais do que nós recolher no redil essa pobre ovelha desgarrada e virá decerto o dia em que lhe abrirá os olhos..." (Ibid.).
Quando nos debruçamos sobre a fé de Santa Teresinha podemos constatar que esta traduzia uma certeza: Ela sabia que Hyacinthe Loyson havia de se converter. "Não nos cansemos de rezar, a confiança opera milagres... além disso, não são os nossos méritos que oferecemos ao nosso Pai que está nos Céus, mas os do nosso Esposo que são os 'nossos', a fim de que este nosso irmão, filho da Santíssima Virgem, regresse vencido a refugiar-se sob o manto da mais misericordiosa das Mães..." {Carta à Celina, 8VIL1891). Era tal o desejo que Teresinha tinha de salvar a alma daquele padre, que quis oferecer a sua última comunhão por sua intenção. Se bem que tivesse morrido com a consciência de que o Pe. Loyson não se convertera, essa realidade não impediu que a sua fé permanecesse inabalável. Aquele padre veio a morrer quinze anos depois da morte de Teresinha, com a idade de oitenta e cinco anos. Jesus amava de tal maneira Teresinha que daquela vez não se sentira na obrigação de lhe dar qualquer sinal. Sabia, o Senhor, que ela não deixaria de acreditar naquela conversão. Em 1912, n o dia da morte do Pe. Loyson, não havia à sua cabeceira qualquer padre católico e , por isso, não conseguiu confessar-se, N o entanto, sabemos que antes da sua morte recebeu o manuscrito da "História de uma Alma" e que de um só fôlego leu esses escritos de Santa Teresinha, que qualificou como "loucos e impressionantes". Durante a sua penosa agonia, as pessoas presentes ouviram estas suas últimas palavras: "Meu doce Jesus." O último ato de amor dirigido a Jesus permite supor que se salvou graças às orações e aos sofrimentos
de Teresinha. Ele também foi para Teresinha um filho espiritual. "Só o sofrimento pode gerar almas para Cristo". Com esta afirmação mostra-nos Teresinha em que consiste a maternidade espiritual. A mãe é a pessoa que gera a vida e depois a sustenta. O homem receia o sofrimento, embora não possa evitá-lo, do mesmo modo que não consegue obviar ao peso da vida cotidiana. No entanto, os nossos sofrimentos e penas podem ser infrutíferos. Somente quando os aceitamos e os unimos à Cruz de Jesus nos é permitido penetrar no extraordinário mistério da maternidade espiritual. Em virtude da nossa participação no sacerdócio real dos fiéis, a maternidade espiritual, assim entendida, constitui a nossa vocação. Somos chamados a conquistar e a gerar almas para Jesus, Pense em quantas dificuldades há na sua vida: talvez a falta de saúde, um conflito familiar, as crianças rebeldes, ou qualquer outro pesado fardo espiritual que o oprima. Pode se tratar mesmo de coisas pequeninas mas que, sendo aceitas e oferecidas a Deus, lhe permitem participar na maternidade espiritual da Igreja, que gera almas para Cristo. Nada há mais importante. Também podemos realizá-lo pelo apostolado da palavra e da oração, mas o sofrimento é, sem dúvida, o meio mais eficaz. É a forma mais fecunda de apostolado, porque nela reside um maior despoja mento (meio pobre), o mínimo de nós mesmos e o máximo de Cristo — no sofrimento intensifica-se, ao máximo, a ação da Cruz.
O testemunho de João Paulo II
No dia 25 de maio de 1985, na Praça de São Pedro em Roma, o Papa João Paulo II impôs o barrete cardinalício ao arcebispo Andrzej Maria Deskur. Foi um consistório bastante singular, que suscitou a comoção e a surpresa geral. Que motivo levaria o Papa a nomear cardeal um homem paralisado? A dignidade cardinalícia não é, com efeito, nem um título nem uma recompensa do trabalho desenvolvido pelo bispo. Os cardeais, sendo os primeiros conselheiros do Papa e os seus colaboradores diretos, desenvolvem funções muito importantes na Igreja. Por qual razão terá sido nomeado cardeal um homem assim marcado pelo sofrimento, incapacitado de trabalhar? O mistério dessa nomeação foi discretamente revelado por João Paulo II, quando na tarde do consistório, esclareceria o enigma dessa nomeação aos peregrinos da Polônia, a quem referiu a respeito do Cardeal Deskur: "Unem-nos laços particulares desde o tempo de estudantes, depois na passagem pelo Seminário Maior, nos anos sacerdotais, em inúmeros encontros em Roma e, de modo muito particular, no último encontro antes do conclave. Nessa ocasião a Providência divina provou o Monsenhor Deskur com a grave invalidez da qual ainda sofre. Dentre todos os cardeais nomeados atualmente, apenas ele se apresenta como um inválido em cadeira de rodas, introduzindo assim naquele colégio um sinal particular, o sinal do sofrimento que se chama sacrifício. Não conhecemos os desígnios de Deus nem os Seus mistérios divinos, mas pessoalmente me é difícil resistir à convicção de que este sacrifício do arcebispo Andrzej, hoje cardeal, está estreitamente ligado ao conclave que se desenrolou em meados de outubro de 1978". O Santo Padre vê, assim, no sofrimento do arcebispo Andrzej Deskur, como que o
preço dele, cardeal Wojtyla, ter podido tornar-se vigário de Cristo. Sabemos, de resto, que imediatamente depois da sua eleição, o Papa dirigiu os seus primeiros passos para a Clínica Gemelli, onde se encontrava então, gravemente doente, o arcebispo Andrzej Maria Deskur, aquele a quem o Papa, na sua convicção, tanto devia e a quem tinha sido dada a melhor parte - ajudá-lo pelo sofrimento - uma parte difícil, mas seguramente a mais eficaz, como aliás todos os meios pobres. Elevando o arcebispo à dignidade cardinalícia é como se, indiretamente, João Paulo II quisesse sublinhar o valor dos meios pobres. O cardeal Deskur tinha sido anteriormente presidente da Comissão Pontifícia para os meios de comunicação social. Ocupava-se, portanto, da difusão e do funcionamento dos meios ricos na Igreja, trabalhando muitíssimo nesse campo. Deu grande contribuição à preparação de documentos eclesiásticos que deviam traçar a orientação da atividade dos meios de comunicação católicos. No entanto, o Santo Padre quase não se referiu aos seus méritos, ao grande contributo que deu ao desenvolvimento daqueles meios de transmissão. Tem-se a impressão de que ele queria, com isso, sublinhar o valor dos meios pobres, o valor do estigma do sofrimento de que foi vítima e que ele introduziu no Colégio dos cardeais. Na tarde de primeiro de junho, o cardeal Andrzej Maria Deskur tomou posse da sua Igreja titular, San Cesareo in Palatio, a mesma que o cardeal Wojtyla recebera em 1967. Na grandeza do sofrimento, o cardeal celebrava a Santa Missa sentado. No lugar do trono
cardinalício, a ladear um altar, mais baixo do que o habitual foi colocado uma cadeira de rodas. A sua mão paralisada mal conseguia suster a cruz. Que particular paradoxo: o presidente da comissão pontifícia para os meios ricos, assinalado com o estigma dos meios pobres! É também no contexto da doutrina dos meios pobres que devem ser entendidas as palavras de João Paulo II relativamente ao atentado contra a sua vida. Chama ele, a esse acontecimento, uma graça particular. A 14 de outubro de 1981, durante a audiência geral na praça de São Pedro, dirigindo-se aos milhares de peregrinos, pronunciou estas significativas palavras: "Nos últimos meses, Deus permitiu que eu experimentasse o sofrimento, permitiu que me encontrasse em perigo de morte. Ao mesmo tempo, deu-me a possibilidade de compreender clara e profundamente que se trata de uma graça particular que, a mim enquanto homem, Ele concedeu. Ao mesmo tempo, em virtude do meu ministério de sucessor de Pedro, trata-se de uma graça simultaneamente concedida a toda a Igreja. Cristo concedeu-me a graça de, pelo sofrimento e pela ameaça caída sobre a minha vida e sobre a minha saúde, dar testemunho do Seu amor. Considero-o realmente um dom particular e por ele dou, de modo muito especial, graças ao Espírito Santo e à Virgem Imaculada". Por acaso seria possível a João Paulo II exercer com tal eficácia a missão de pastor da Igreja, atrair as multidões, sem os meios pobres, sem o sofrimento com o que foi marcada a sua vida? De novo o Papa, em 4 de novembro de 1981, seu dia onomástico, se referiu aos
dramáticos dias do atentado: "O acontecimento de 13 de maio deu-me muito que ponderar. Vi com maior clareza, a minha vida humana e cristã à luz do Evangelho, à luz das palavras que falam do grão, que para poder dar fruto, primeiro deve morrer".
PARTE III A ATUALIZAÇÃO DA FÉ A fé deve impregnar toda a nossa vida. Se assim suceder, quem crê, com toda a sua humanidade e com todo o seu cotidiano, entra em relação com Deus. A atualização da fé dá-se nos sacramentos, de modo particular nos sacramentos da iniciação cristã. Graças à fé podemos ver neles a ação salvífica de Cristo e acolhê-la. O primeiro sacramento de iniciação cristã é o Batismo. Nele recebemos, com a vida sobrenatural, o dom da fé. Mediante a sua incorporação em Cristo realiza-se, naquele que recebe o batismo, a sua consagração fundamental — o oferecimento da pessoa humana a Deus e o seu chamamento à santidade. O Crisma, segundo sacramento de iniciação cristã, amplifica o dinamismo da fé, confere ao crismado a força extraordinária do Espírito Santo e compromete-o a propagar e a defender a fé.
Na Eucaristia, o sacramento da culminação da fé e terceiro sacramento de iniciação, podemos unir-nos de modo particular a Cristo Crucificado e Ressuscitado. O ponto mais alto da vida de fé é a participação no Sacrifício Redentor de Cristo, no qual, na Oferenda de Cristo a Deus Pai, nós próprios nos oferecemos também. Da Eucaristia, durante a qual juntos oferecemos o sacrifício e juntos nos unimos a Cristo, surge a comunidade da fé. A fé realiza-se, de modo muito especial, na oração, que ê um diálogo do homem com o Pai, por Jesus Cristo, no Espírito Santo, diálogo esse inaugurado e desenvolvido por meio da fé. A fé desenvolve-se também graças àquela espécie de diálogo com Deus que é a escuta da palavra de Deus quando o homem, voluntariamente, se entrega a Deus que Se revela submetendo-Lhe razão e vontade na obediência da fé. E também necessário que a fé se exprima em atos de amor, sem os quais morre. Sendo um contínuo processo de conversão, a fé é abertura incessante ao amor de Deus e um permanente acolhimento deste amor para levá-lo aos outros.
CAPÍTULO 1
O BATISMO O batismo, tal como os outros sacramentos, é uma suprema forma de realização da fé. E ainda o fundamento e o início deste processo, "o princípio e o pórtico, pois tende à obtenção da plenitude de vida em Cristo" (Unitatis Redintegratio, 22). No pensamento Conciliar, tanto o Sacramento do Batismo como os outros sacramentos são chamados Sacramentos da fé, porque todos a requerem, pressupõem-na, exprimem-na e, ao mesmo tempo, asseguram o seu crescimento. Precedendo O batismo e sendo, ao mesmo tempo, a via para este, a fé cria a disposição que permite recebê-lo. No batismo morremos para o pecado. Esta é uma morte autêntica, pois é a destruição, no homem, daquilo que é mal por resgatar, para lhe permitir renascer como filho de Deus, tornando-se assim uma nova criatura — participante da natureza divina e chamado à santidade. É também pelo batismo que o homem é consagrado a Deus, tornando-se Seu verdadeiro adorador e filho adotivo. Referindo-se ao batismo, o Concilio revela-nos verdades que ultrapassam o pensamento e a imaginação humanos. Diz-nos que naquele Sacramento se dá a nossa configuração e enxertia em Cristo Crucificado e Glorioso.
Revela-nos que o homem recebe o dom da fé pelo batismo e, a partir desse momento, começa a participar no Sacerdócio Real de Cristo, tornando-se desse modo, coparticipante no Seu ministério sacerdotal, profético e real. Finalmente, o homem é incorporado no Corpo Místico de Cristo, embora ainda não o seja de um modo perfeito.
A imersão na Ressurreição de Cristo
Morte
e
na
Devido à pouca fé dos cristãos, o batismo continua a ser, para eles, um sacramento por descobrir. É necessária uma fé profunda para compreender estas palavras de São Paulo: "Vós estais mortos e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus" (Colò3)- A expressão paulina, "vós estais mortos", encerra a mesma idéia expressa pelo apóstolo na Carta aos Romanos, quando, detendo-se no significado do batismo que nos introduz na vida de Cristo, escreve: "Ignorais que todos nós batizados em Jesus Cristo é na Sua morte que fomos batizados?" (Rom 6,3). E em virtude da Sua morte que, pelo batismo, entramos na Vida Nova. Este primeiro sacramento da Igreja é o prelúdio da nossa "vida escondida com Cristo em Deus". O batismo é a fonte da fé, pois inaugura em nós a vida sobrenatural que é uma vida de fé, de esperança e de caridade. A partir daquele momento somos, com Cristo, sepultados para o pecado, para o mal moral, para tudo o que não provém d'Ele. Trata-se de uma morte autêntica, pois todo o apego ao mundo e aos valores alheios a Deus,
deve morrer em nós, para que possamos transitar à vida nova, iniciada pela Ressurreição de Cristo. O fenômeno do 'duplo nascimento' surge em todos os sistemas religiosos. O homem nasce não só física, mas também espiritualmente. A gênese no sentido espiritual toma a forma de uma espécie de iniciação. Em algumas religiões não cristãs, esta desenvolveu-se a ponto de chegar a formas extremamente dramáticas, baseadas no simbolismo da morte e de um novo nascimento. O dramatismo desses ritos deriva da utilização da iconografia mais atemorizante da morte e, por outro lado, o simbolismo mais esplendoroso da nova vida a receber. Muitas das representações desses ritos apelam a símbolos e a imagens particularmente impressionantes como, por exemplo, o enterro do 'iniciado', a sua passagem através de uma abertura circundada de fachos incandescentes, o ser devorado por um monstro mítico ou o ser enterrado junto de cadáveres. Tudo isto é calculado para provocar uma violenta comoção, um choque, cujo impacto é susceptível de causar uma profunda impressão na imaginação humana. Com efeito, nestes sistemas não cristãos, a iniciação faz apelo exclusivamente ao plano imaginário uma vez que pode se referir somente a esta. No Cristianismo, a iniciação - entendida como renascimento para a vida sobrenatural — realiza-se por meio de três Sacramentos: Batismo, Crisma e Eucaristia. O simbolismo e os sinais sacramentais, neles, apelam à fé e não à imaginação. A referência à imaginação seria, aliás, Inútil no caso dos sacramentos, porque o significado dos sinais sacramentais ultrapassa todo o pensamento humano e toda a imaginação.
Graças ao batismo, uma espécie de novo organismo sobrenatural é incorporado à natureza humana. Na vida levada até então, uma nova é enxertada. Se algum cientista obtivesse êxito no transplante da vida animal em qualquer coisa que antes tivesse uma vida vegetal, por exemplo, numa planta, o mundo acolheria com o maior assombro aquele acontecimento. As testemunhas de tal experiência certamente se espantariam ao se deparar com uma planta a ver, a ouvir, a sentir e a reagir à voz. Sem dúvida, tal acontecimento apareceria como o maior milagre do gênero humano. No entanto, a presença operada pelo Sacramento do Batismo ultrapassa de maneira inimaginável semelhante transplante fictício de um novo tipo de vida. Se observarmos os sinais sacramentais, por exemplo, a pequena quantidade de água derramada na cabeça do recém-nascido, ou do catecúmeno adulto, a unção do Santo Crisma, a vela e a veste branca, vemos que estes não estão à altura de nos indicar a realidade que então se realiza; sem a fé o homem é incapaz de compreendê-la e de abarcá-la. Só uma fé viva nos permite entrever, no batismo, a ação salvífica de Cristo e de aceitá-la. O batismo nos proporciona a participação nessa vida absolutamente nova que Cristo inaugurou na história do homem com a Sua Ressurreição. A novidade dessa vida consiste na libertação da herança do pecado e da sua "escravidão"; é a santificação na verdade. E a descoberta da nossa vocação à união com Deus e a vivermos com Cristo, n’Ele. Todas as vocações humanas encontram a sua origem nesta novidade, pois, em última análise, toda a vocação, quer se trate do estado
sacerdotal ou da vida religiosa, da paternidade ou da maternidade, tende à plena realização do Sacramento do Batismo. Como a semente lançada à terra deve morrer para dar frutos de vida nova, também nós, pelo batismo, começamos a morrer com Cristo para partilharmos com Ele os frutos da Sua Ressurreição. No batismo realiza-se a consagração principal — a oferenda do homem a Deus, como Sua propriedade. Esta consagração fundamental pode se realizar por meio das graças decorrentes da Redenção de Cristo e, ao mesmo tempo, exprime a nossa própria resposta à Redenção. Devemos constantemente voltar às graças do Sacramento do Batismo, a fim de que pela fidelidade àquelas graças extraordinárias e particulares possamos alcançar, ao menos em parte, o estado de pureza de alma recebido no momento da iniciação batismal. Na verdade, mediante a nossa imersão na Morte e na Ressurreição de Jesus, que tem lugar no batismo, alcançamos um estado de pureza que, em seguida, freqüentemente desperdiçamos. As graças do batismo nos são dadas para sempre, mas nós as desperdiçamos habitualmente, logo que cedemos ao mal. Mas, quando desejarmos caminhar para a santidade, poderemos recuperar novamente aquele particular estado de pureza, perdido devido à nossa infidelidade às graças batismais, passando, então, por sucessivas etapas de purificação. Todo o nosso caminho de santificação não é mais do que a reaproximação ao estado de alma recebido no momento do batismo.
O progresso na vida interior consiste no desejo, cada vez mais forte, de deixar atuar as graças do batismo, graças essas que nos tornam semelhantes a Cristo por meio de uma vida vivida no espírito das Bemaventuranças. "Quem perder a vida por Minha causa, há de ganhá-la" (Mt 16,25). Este "perder a vida" tem já o seu início no Sacramento do Batismo e deve se realizar no desenrolar de toda a nossa existência. Devemos perder a nossa vida por causa de Cristo, esforçando-nos por seguir, sempre mais e mais, o Seu exemplo de forma cada vez mais plena no caminho concreto da nossa vida, em conformidade com a Sua vontade e com os Seus desígnios a nosso respeito. Temos de ser "sepultados" com Cristo; devemos, então, passar pela nossa morte. Eis por que a nossa "vida escondida, com Cristo, em Deus", ou seja, a nossa santidade, apenas pode se realizar na proporção da nossa morte em relação a tudo aquilo que nos separa de Deus. Ao perdermos a nossa vida por Cristo realizamos a nossa vocação de nos encontrarmos a nós próprios n Ele que é "toda a plenitude" (cf. Col 2,9). O "dom da fé", concedido no Sacramento do Batismo (Gravissimum Educationis, 2) deve conduzir a um aumento progressivo da nossa ligação a Cristo. O batismo se apresenta a nós, não somente como algo já realizado, mas também como tarefa que somente terá o seu pleno cumprimento no momento da nossa união a Cristo, quando, à semelhança de São Paulo, pudermos dizer "Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gal 2,20).
A incorporação no Corpo de Cristo
A conseqüência salvífica essencial do santo batismo é a incorporação daquele que é batizado na comunhão eclesial. A fé que nasce do batismo provoca a saída do isolamento do próprio "eu" e a entrada na comunhão com Jesus e com todos aqueles que constituem uma parcela do Seu Corpo Místico. A Igreja torna-se, assim, o lugar da sua fé que é, por sua vez, um fragmento da fé da Igreja, fora da qual não teria qualquer condição para se desenvolver. Nos termos das formulações do Concilio são os sacramentos da iniciação cristã que edificam o Corpo Místico de Cristo, no qual somos incorporados pelo batismo e em seguida fortalecidos pelo Crisma e pela Eucaristia. É, no entanto, impossível perceber nossa pertença ao Corpo Místico de Cristo e viver essa pertença sem uma fé viva. Muito freqüentemente, as pessoas que rodeiam aquele que se vai batizar estão como cegas, olham mas não vêem, nem compreendem. Inconscientes perante o acontecimento extraordinário que se vai produzir, estão bem mais interessados no comportamento da criança, se ai chorar ou se ficará sossegadinha. Se, ao invés, tivessem fé, ficariam profundamente impressionados com a grandiosidade do acontecimento que se opera no momento em que a água escorre pela fronte do batizando e no qual se pronunciam as seguintes palavras: "Eu te batizo cm nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo". Somente uma fé viva permite penetrar os simples sinais sacramentais e chegar à compreensão da inconcebível realidade que se consuma aquele momento.
A falta de fé pode conduzir a uma compreensão mágica dos efeitos do Sacramento do Batismo ou a entendê-lo apenas como uma atividade eclesiástica puramente exterior. A sua fé pessoal, cuja fonte é o batismo, não é algo que possa construir ou aprofundar unicamente mediante um diálogo íntimo com Jesus, porque a fé tem uma dimensão de comunhão, necessária para o seu nascimento e desenvolvimento. O Sacramento do Batismo é um fato importantíssimo para toda a comunidade paroquial. A comunidade mais próxima dos que crêem tem a obrigação de acompanhar, pela oração e pela sua atitude de fé, aquele que recebe o seu primeiro sacramento da Igreja. Na verdade, por meio deste, Deus inunda de graças excepcionais, não só o recém-batizado, mas também toda a comunidade que, ao acolhê-lo, recebe no seu seio um novo membro santificado. É, deste modo, importante que todos nós recebamos esse grande dom de Deus, em profunda fé e gratidão. Pelo Sacramento do Batismo você entra na Comunhão dos Santos. Como fonte inesgotável de vida, a graça de Cristo penetra todos os que pertencem ao seu Corpo Místico e também em todos atua o mesmo Espírito Santo. Nenhum de nós recebe as Suas graças apenas para si mesmo, mas também para os outros; propaga-as pela palavra, pelo pensamento e pelas obras de amor. O crescimento em graça, mediante uma maior fidelidade a Deus, intensifica a nossa irradiação específica sobre os outros, e isso é concretizado, não só na palavra falada ou escrita e no bom exemplo, mas também independentemente da ação direta e da distância física.
Romano Guardini diria que "a oração dos outros lhe pertence também", como de resto lhe pertencem também as suas ações, o seu crescimento espiritual e a sua pureza de coração. Você já refletiu alguma vez na comunhão do sofrimento, no fato de que as graças decorrentes do sofrimento de alguém serem canalizadas também para outros? Quando, unindo-se aos sofrimentos de Cristo, você oferece a Deus em benefício dos outros, as suas experiências dolorosas, essas se tornam, então, para eles uma força viva, benéfica e redentora. Vencendo, assim, todos os obstáculos e distâncias, a sua ajuda chega até onde nada mais pode ajudar (cf. R. Guardini, II semi delia Chiesa). Ninguém é uma ilha solitária. Enquanto Corpo Místico de Cristo formamos um sistema de vasos comunicantes. Cada um dos seus atos, bons ou maus, tem uma dimensão social e produz uma certa pressão sobrenatural que age internamente nos outros, para o bem ou para o mal. Compreendida à luz da fé, a oração situa-se no contexto do sistema dos vasos comunicantes. Como tal, a oração em si nunca é um ato solitário. Enquanto membro do organismo místico da Igreja, você também pode enriquecê-la ou empobrecê-la com a sua oração de fé. Esta realidade determina o caráter eclesial da oração e define a sua responsabilidade para com a Igreja e para com os outros. Não se trata da simples recitação de orações, mas da oração autêntica que, enquanto expressão da realização da fé, chega até Deus. Para poder chegar a atuar nos outros, a oração, não precisa de ser nominativa nem de ter necessariamente uma índole concreta de intercessão. Basta que em você cresçam a fé, a esperança e a caridade e que por meio
delas se intensifique a sua vida de oração para que, simultaneamente, a Igreja, os outros, ou seja todo o Corpo Místico de Jesus, possam experimentar os seus efeitos benéficos e salvíficos. No âmbito do Corpo Místico de Cristo assim compreendido, surgem laços recíprocos que variam na sua proximidade e na sua profundidade. O princípio físico dos vasos comunicantes pode ilustrar mais de perto o mistério dos laços recíprocos estabelecidos no contexto do Corpo Místico de Cristo. E, por exemplo, um sistema de vasos comunicantes a família na sua qualidade de igreja doméstica. Geralmente, quando Deus quer agir sobre um determinado grupo de pessoas, serve-Se, de modo especial, de um deles para usá-lo como veículo de graças para os outros. Tomemos o exemplo de uma família de quatro pessoas, das quais três se encontram fechadas à vida da graça, semelhantes a provetas hermeticamente fechadas. Se, porém, a primeira procura converter-se a Deus torna-se para os seus familiares um canal de graça. Ao seu alcance estão duas possibilidades de ação. Continuemos a nos servir da imagem dos vasos comunicantes: a pessoa pode retirar as rolhas das "provetas" pela parte superior, do mesmo modo que se retiram as rolhas das garrafas com um saca-rolhas. Se, porém, aquela rolha é tecido vivo da personalidade humana, tal extração feita pelo alto estará sempre associada ao sofrimento, a feridas dolorosas e, em certa medida, destruidor as, bem como a um constrangimento limitador da liberdade do outro. Isso Deus não quer, porque deseja que a decisão do homem a favor da fé e de uma experiência mais plena do amor seja tomada em liberdade.
Mas, voltemos à imagem do sistema de vasos comunicantes. Deus prefere que aquelas rolhas sejam retiradas pela parte inferior, em resultado de um aumento singular da pressão da graça no interior da proveta, da sua proveta. Antes de começar a converter os outros, se esforce por se converter, pois o mais importante é a intensidade da sua fé, da sua adesão a Cristo. "Pouco importa o que fazes", disse João Paulo II, "o importante é o que tu és". Quanto mais o bem reinar em você, mais fiel será à graça e tanto mais a incidência da sua ação sobre os outros se revelará eficaz. Se, porventura, a mulher quer converter o marido que, por exemplo, bebe e se embriaga, deve principiar por si própria. Para começar, é ela quem se deve converter. Somente quando a graça crescer nela e a sua conversão se tornar mais profunda, aquela força do bem crescente, vinda de baixo, provocará a conversão do casal. A reforma do mundo e a transformação dos outros começa em nós. E em você que deve crescer a vida de Cristo a tal ponto que as graças e o bem recebidos provoquem a conversão dos outros. Pode, por outro lado, suceder também que esta forma de conversão dos outros resulte ineficaz, o que será um forte indício de que a "pressão" da sua "proveta" tem de se tornar ainda mais forte. Será, desse modo, Deus a exigir de você uma vida interior mais intensa e talvez em absoluto, o dom total de si mesmo, uma orientação radical da sua vida para a santidade. Tais são as conseqüências da sua pertença ao Corpo Místico de Cristo, as conseqüências da extraordinária verdade de que, mediante o batismo, você se tornou membro do Cristo total, do Seu Corpo Místico.
Escreve G. K. Chesterton que na história da Igreja a fé cristã conheceu, no mínimo, cinco vezes uma morte aparente (cf. The Everlasting Man). Um desses períodos dramáticos de "morte lenta da Igreja" foi o tempo de São Francisco de Assis. Desta imagem particularmente lúgubre da Igreja do século XII dão testemunho as inúmeras bulas do Papa Inocêncio III que condenavam os abusos mais escandalosos como a usura, a corrupção, a gula, a embriaguez, a libertinagem. Tendo como pano de fundo aquela enorme dissolução de costumes, surgem na Europa grandes heresias fanáticas e agressivas. Dentre estas conta-se o movimento dos Albigenses e dos Valdenses que quase destruíram o Cristianismo. Outro golpe infligido à Igreja foi igualmente o aumento dos pregadores itinerantes, que sistematicamente criticavam os eclesiásticos, freqüentemente tomados pela ganância das riquezas, e aos quais se contrapunham propagando modelos de pobreza contados na Bíblia. Pelo contrário, Francisco nunca criticava ninguém. A sua opinião era a de que, se o mal reinava ao seu redor, devia em primeiro lugar converter-se a ele próprio e não os outros. Se um tal luxo e uma tal libertinagem reinavam à sua volta, era ele quem deveria tornar-se radicalmente pobre e puro, assumindo a responsabilidade de tudo. Os santos distinguem-se dos propagadores de heresias no pormenor destes últimos quererem converter os outros em vez de começarem por si próprios, enquanto os santos dirigem o gume de toda a crítica contra a sua própria pessoa. Para que o mundo se torne melhor esforçam-se por se converter a si mesmos. Quanto mais Francisco se dava conta da corrupção e dos escândalos que o rodeavam, mais desejava assemelhar-se a Cristo, puro,
humilde e pobre. Se o mundo era assim tão perverso, o culpado era Francisco, e assim sendo era ele próprio quem deveria converter-se radicalmente - e a história deu-lhe razão. De fato, quando Francisco se converteu, quando se tornou tão "transparente" ao Senhor que o rosto de Cristo podia refletir-Se nele, a Europa começou a levantar-se da sua queda. Realizou-se, desse modo, o sonho no qual Inocêncio III vira uma figura semelhante a Francisco a amparar as paredes periclitantes da Basílica de Latrão, também chamada a "mãe e a primeira de todas as Igrejas" - símbolo de toda a Igreja - e assim salvá-la. Com a força da santidade de Francisco, Cristo levantou a Sua Igreja da "morte" da fé. A sua santidade enriqueceu o mundo, não tanto pelo fato de ter sido ele um homem que realizou o espírito do Evangelho de modo invulgar e heróico, mas antes porque, segundo o princípio dos vasos comunicantes, a sua santidade influenciou realmente outras pessoas que ele nunca chegou a conhecer. A luz da fé lhe permite descobrir que, pelo batismo, você pertence ao Corpo de Cristo e foi inserido no sistema de vasos comunicantes desse Corpo, que tanto precisa de convertidos e de santos, e em especial precisa da sua conversão e da sua santidade. Graças à luz da fé você toma consciência de que a transformação dos outros deve principiar sempre pela sua. Cada parcela de bem que realiza incide nos outros; a sua fidelidade é força para aqueles que você ama. A Sagrada Comunhão que recebe não fortalece apenas a você, mas é também alimento para o seu marido, esposa, filhos, irmãos e amigos, para a paróquia, para a Igreja ou para o mundo inteiro. Começa, portanto, por você próprio,
pela sua abertura a Cristo. Deus quer que se santifique e que, através da sua santificação, sejam santificados o meio em que vive, os seus queridos, a Igreja e o mundo.
O sacerdócio dos fiéis O sacerdócio universal dos fiéis procedente do batismo exprime-se, de modo mais pleno, no Sacrifício Eucarístico. Ao celebrar a Santa Missa, o sacerdote não só representa Cristo, mas também os fiéis que, com ele e por seu intermédio, apresentam o sacrifício de Cristo, oferecendo-se, igualmente, eles próprios a Deus. O Concilio Vaticano II confirma explicitamente que em virtude do santo batismo, os fiéis obtêm a participação no sacerdócio régio de Cristo (Lumen Gentium, 26). "Pela regeneração e pela unção do Espírito Santo, os batizados são consagrados para serem edifício espiritual e sacerdócio santo, de modo que ofereçam, em toda a sua atuação cristã, sacrifícios espirituais, (...) ofereçam-se todos os discípulos de Cristo como hóstia viva, santa, agradável a Deus" (Lumen Gentium, 10). Durante a Santa Missa realiza-se uma particular assimilação do batizado a Jesus Cristo, porque não é somente alguém que coopera no sacrifício, mas ele próprio se torna dom propiciatório. O sacerdócio universal dos fiéis prende-se ao chamamento a uma total entrega a Deus e à vocação para a santidade. A sua participação na Santa Missa, celebrada no contexto do sacerdócio universal dos fiéis, torna-se verdadeiramente eficaz, quando você se entrega realmente a Cristo e por Ele se entrega sem reservas ao Pai; quando nada quer conservar para si e consente em ser
despojado como Cristo. Deus, cioso do Seu amor, deseja que você se faça dom total para Ele. O sacerdócio dos fiéis deve conduzi-lo a uma configuração sempre maior com Cristo. Deve, como Ele, tornar-te dom total para o Pai, sem nada reter para si próprio, porque só assim poderá Ele Se dar plenamente a você e preenchê-lo com a Sua presença. A presença sempre crescente de Cristo em você deve ser transmitida aos outros. Pelo batismo fosse chamado à "contemplata aliis tradere" — a transmitir aos outros aquilo que está vivendo. De fato, em virtude do batismo, você se torna participante no ministério profético de Cristo. Você é, portanto, chamado a exercer funções apostólicas e evangelizadoras. Na sua primeira carta, São Pedro liga o sacerdócio dos fiéis ao dever do apostolado e da evangelização: "Vós sois sacerdócio real (...) a fim de proclamardes por toda a parte o amor d Aquele que vos chamou das trevas para a Sua luz admirável (cf. I P 1,9). Na homilia pronunciada em 29 de janeiro de 1979, no México, o Santo Padre, o Papa João Paulo II disse: "Em virtude do Sacramento do Batismo e da Confirmação, todos os fiéis são levados a confessar publicamente a fé que receberam de Deus por intermédio da Igreja. Importa, pois, propagá-la e defendê-la como verdadeiras testemunhas de Cristo, porque chamados à evangelização - dever fundamental de todos os membros do povo de Deus". Lembre, porém, que a eficácia da sua ação apostólica decorre de uma profunda vida interior, da vida de oração e do seu pleno abandono a Cristo Sacerdote, a exemplo da Virgem Maria cujo abandono, virginal e total a Deus, se tornou a fonte da sua maternidade espiritual em
favor das almas. Gerando-o para a fé, o batismo chamate, também a você, ao mesmo tipo de maternidade.
CAPÍTULO 2
O CRISMA O Sacramento da Confirmação, ou Crisma, está estreitamente vinculado ao Batismo e à Eucaristia por ser, também como estes, um sacramento de iniciação cristã. Se o batismo incorpora o batizado na Igreja, o Crisma realiza uma inserção ainda mais perfeita no Corpo Místico de Cristo. "Pelo Sacramento da Confirmação, os fiéis, vinculam-se mais perfeitamente à Igreja e recebem um especial vigor do Espírito Santo: ficam assim mais seriamente comprometidos a difundir e a defender a fé, por palavras e obras, como testemunhas verdadeiras de Cristo" (Lumen Gentium y 11). A confirmação, tal como o Batismo e a Eucaristia, é um sacramento que determina e aprofunda o processo sempre crescente de configuração, do crente com Cristo. Mediante o Crisma recebemos a graça do Pentecostes - a plenitude do Espírito Santo. A Igreja compara, nos textos litúrgicos, as graças deste sacramento àquelas graças extraordinárias de que foram participantes os Apóstolos no dia de Pentecostes. O Crisma é a "descida" solene do Espírito Santo sobre os batizados para conduzir à maturidade aquilo que, de uma
vez por todas, teve já o seu cumprimento no Sacramento do Batismo. Fruto particular deste sacramento é o dom de uma fé amadurecida, concedida pelo Espírito Santo através das graças do despojamento.
O despojamento - condição para alcançar a plenitude O aprofundamento da nossa fé realiza-se por meio da renúncia aos sistemas de segurança que possuímos e de tudo aquilo que suscita em nós uma sensação de força, de poder e de importância própria. Despojarmo-nos significa criar em nós espaço para a fé que exige a humildade. E uma graça inestimável esta, em que Deus, despojando-o das suas forças e do seu poder, o aproxima mais d'Ele e, pondo-o em verdade, faz com que precises, cada vez mais, d'Ele. Disse São João da Cruz que Deus dedica maior amor a uma alma quando a despoja, pois desse modo o homem pode, então, ter acesso à plenitude da fé. Se você não encontra apoio em qualquer sistema de segurança, Deus pode atraí-lo de modo a que se apóie exclusivamente n Ele, verdadeiro rochedo da sua salvação. A graça do despojamento ê um dom particular do Espírito Santo que despoja o homem antes de descer sobre ele. Mas freqüentemente não compreendemos a atuação do Espírito Santo. Sabemos que Ele é Poder, Consolação, Amor do Pai e do Filho, todavia esquecemos quase sempre que é Ele o principal construtor da nossa santidade. E, pois, Ele que realiza todo o processo indispensável para percorrermos o caminho de união com Deus, caminho que compreende, quer elementos atrativos, quer elementos purificadores, ou seja, elementos do nosso despojamento. O nosso despojamento é executado pelo Espírito Santo, é Ele quem nos torna
pobres porque Ele é, como dizemos na seqüência da Missa do dia de Pentecostes, o Pai dos pobres, é, pois, Ele quem prodigaliza os dons. Pode porventura dizer-se que o Espírito Santo prodigaliza os Seus dons para nos tornar mais ricos? Decerto que não, pois isso estaria em desacordo com o Evangelho que define a riqueza como uma "maldição". O Seu dom consiste em nos despojar e em nos empobrecer ainda mais para nos tornar abertos ao Seu Poder e ao Seu Amor. Só então Ele próprio Se tornará um dom para nós, uma vez que pode então descer nesse vazio do nosso despojamento e enchê-lo com o Seu infinito Poder e com o Seu infinito Amor. Um dos aspectos mais importantes deste despojamento por meio do qual o Espírito Santo nos prepara para a Sua "descida" é o despojamento da imagem falsa que temos de nós próprios, libertando-nos, desse modo, da mentira. São João, no seu Evangelho, transmite-nos a promessa de Cristo, de que o Consolador o Espírito Santo - pela Sua vinda há de convencer o mundo do pecado (cf. Jo 16,8). Portanto, uma das funções do Espírito Santo ao descer em nós no Sacramento do Crisma é a de convencer-nos do nosso pecado, o que eqüivale a dizer: concede-nos o dom da humildade. Tratase de uma graça fundamental do Espírito Santo, através da qual podemos descobrir quem somos realmente, reconhecermos que somos pecadores, homens de pouca fé. Se você se sente seguro de si, se até agora não descobriu a sua condição de pecador e se, pelos seus
próprios meios, se desenvencilha de tudo, significa então que, na realidade, não precisa do Espírito Santo. A atitude de presunção e de falta de humildade fecham a porta do seu coração à Sua vinda. Se você não se sente pecador, não pode desejar a intervenção salvífica do Espírito Santo na sua vida e, por conseguinte, não consegue receber as graças inerentes ao Sacramento do Crisma. A humildade e a fé são dons fundamentais do Espírito Santo que nos abrem à Sua descida cada vez mais intensa e a receber o dom que Ele faz de Si próprio.
A eficácia do Sacramento do Crisma As graças próprias de cada sacramento não agem automaticamente. O Crisma não apaga os defeitos do caráter, não elimina as faltas originadas pelo seu temperamento nem substitui o seu esforço pessoal. Depois de ter recebido este sacramento é possível que continue miserável, receoso e morno na sua fé; escravo, como habitualmente, das atenções humanas. O poder do Espírito Santo concedido no Sacramento da Confirmação, a princípio apenas lhe é proposto para que, mediante a fé, você possa recebê-lo em perfeita liberdade. De fato, esta graça pode se deparar da sua parte com uma recusa ou com o desinteresse. É com grande delicadeza que o Espírito Santo desce ao coração do homem, sem se impor; vem para aquele que no silêncio espera a Sua vinda. Ele só vem quando perseverante na espera, você se põe à escuta de cada uma das Suas palavras no desejo de que Ele atue na sua vida. Não virá a você senão na
medida da fome que nasce no seu coração, fome da Sua presença e da Sua ação. O avanço para a maturidade da fé não é um movimento regular, projetado em linha reta; está, em geral, assinalada por inúmeros altos e baixos. Para atingir a maturidade da fé é preciso primeiro experimentar as conseqüências dos erros motivados pela sua imaturidade. Antes de qualquer coisa é necessário que você se torne humilde, pois só a partir desse momento a fé poderá crescer em você. O crescimento na humildade, que é também a verdade, lhe permite ter uma abertura cada vez mais ampla às graças do Crisma, para que nelas cresça completamente. Depois do Crisma você pode julgar que algo na sua vida religiosa teve o seu epílogo, que uma etapa já está vencida quando na realidade você está apenas no limiar do seu caminho para a plenitude da fé. Trata-se de um sacramento que requer a sua cooperação, e que inaugurou, de fato na sua vida algo extremamente importante: um novo processo da sua colaboração com o Espírito Santo que veio e que espera o seu coração inteiramente aberto à Sua descida, mediante o crescimento na humildade e na fé. Imediatamente, antes da recepção do Sacramento do Crisma, no decurso da renovação das promessas do batismo, a Igreja se dirige a você com a seguinte pergunta: "Crês no Espírito Santo, Senhor que dá a Vida, que hoje vais receber no Sacramento do Crisma, do mesmo modo que O receberam os Apóstolos no dia do Pentecostes?". Para poder hoje responder mais uma vez a esta questão, você deve se colocar na presença de Deus em verdade.
Apreciando a sua vida, com espírito de humildade, isto é em verdade, você não deveria pôr em questão a sua fé? Como deve ser pequena a sua fé se não vive das graças decorrentes do Batismo e do Crisma! Contudo, você recebeu a plenitude do dom do Espírito Santo, e o que é que mudou na sua vida? Se você recebeu o batismo enquanto criança, não podia ter consciência da grande transformação que se produziu em você, nem da realidade desse seu 'segundo nascimento'. As promessas batismais foram feitas em seu nome pelos pais e pelos padrinhos mas, mais tarde, quando durante o crisma, você as renovou, poderá dizer que as pronunciou plenamente consciente de estar fazendo a sua opção por Cristo para Lhe pertencer completamente? Esforçando-se por perseverar na verdade, você deve se questionar freqüentemente: que fiz dos dons do Espírito Santo, que fiz do próprio Espírito Santo que recebi como um dom indizível? Para a pessoa que o recebe, a validade do sacramento não eqüivale à sua eficácia. Se bem que o sacramento permaneça válido, a pessoa, no entanto, pode não acolher as graças a ele inerentes, ou pior ainda, pode se tornar culpada por o ter recebido indignamente. Ao falar da Eucaristia, São Paulo advertia: "Todo aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente será réu do Corpo e do Sangue do Senhor" (ICor 11,27). As graças dos sacramentos são infundidas unicamente naqueles que não lhes opõem resistência. O Espírito Santo precisa da sua abertura e da sua disponibilidade interior. Ele está à porta e bate, mas não entrará se não for convidado. Você é livre, portanto, para se fechar a Ele,
mas pode também se decidir pela fé, pela humildade e abrir-Lhe, de par em par, as portas do seu coração. O Sacramento do Crisma recebido em pecado mortal ou sem fé é válido, mas estéril. No entanto, se surge na pessoa a disposição necessária, Ele pode ressurgir. Se você recebeu este sacramento com pouca fé, sem se dar conta do extraordinário acontecimento - a descida do Espírito Santo — você pode agora reparar esse estado de coisas por meio de uma melhor disposição interior. As graças deste sacramento devem reviver e crescer em você ao longo de toda a sua vida - até que chegue à plenitude da união com Cristo no Espírito Santo.
O dom do Espírito concedido aos Apóstolos Durante a Última Ceia, disse Jesus aos Apóstolos: "Ainda tenho muitas coisas para vos dizer, mas não as podeis suportar agora. Quando vier o Espírito da Verdade, Ele guiar-vos-á para a verdade total" {Jo 16,12-13). Na véspera da Morte de Cristo, os Apóstolos ainda não estavam aptos a receber todo o Seu ensinamento, porque o Espírito Santo não tinha ainda descido sobre eles. Porque é que o Espírito Santo não veio sobre eles logo ao princípio, quando encontraram Jesus e O seguiram? Se assim tivesse sido, eles poderiam ter compreendido o ensinamento de Cristo na Sua totalidade. Em vez disso, durante todo aquele tempo, eles compreendiam bem pouco do que Jesus lhes dizia. A razão é que o Espírito não podia descer sobre eles num primeiro momento, pois não
possuíam a disposição necessária para acolhê-Lo, não estavam ainda suficientemente despojados. Ainda não havia neles a autêntica humildade, nem tinham uma fé autêntica — aquela fé que eqüivale a sentir-se impotente e a tudo esperar de Deus. E indispensável que quem crê fique despojado dos seus sistemas de segurança. Na vida dos Apóstolos, o traçado deste processo pode ser visto nitidamente. O processo de despojamento conduz ou à revolta, e em seguida ao abandono de Deus, ou à dinamização da fé e a um reforçar da confiança n'Ele. O jovem rico que perguntou com tanto fervor a Jesus o que havia de fazer para ganhar a vida eterna, recusou-se, por fim, a seguir o Senhor. Ele não queria abandonar tudo: rejeitou o despojamento. Eis porque Jesus pensando nele declara: "E mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus" {Mc 10,25), ao que se seguiu o espanto dos Apóstolos e a reação de Pedro: "Aqui estamos nós que deixamos tudo e Te seguimos" (Mc 10,28). Na alma de Pedro poderia ter despontado um sentimento de superioridade e de satisfação: - Aquele não seguiu o Senhor, mas, quanto a nós, de fato, deixamos tudo. E é inegável que, de fato, Pedro deixou a família e a profissão, tendo acontecido o mesmo com Tiago e João. Sabemos pelo Evangelho que deixaram seu pai Zebedeu, que provavelmente seria proprietário de uma empresa de pesca, pois tinha alguns pescadores ao seu serviço, e era, decerto, um homem abastado. Também eles tinham deixado a família, o ofício e a sua segurança: deixaram tudo para seguir Jesus. Mas, tal como acontece
freqüentemente, o homem num primeiro rasgo de espontaneidade está pronto para entregar tudo ao Senhor, tendo tendência a voltar a se apropriar de tudo. Também os Apóstolos, como por exemplo, João e Tiago, que tinham abandonado tudo por Cristo, sentiramse, mais tarde, demasiado seguros de si. Tinham construído a sua própria visão do reino de Israel e sonhavam fazer carreira. Além disso, parece provável que tenham até chegado a ter um certo ciúme de Pedro por ele ter sido distinguido dos outros. Foi a mãe dos dois, decerto com o conhecimento deles, que pediu que pudessem vir a sentar-se um à direita e outro à esquerda de Cristo. Deste modo se vê como é possível deixar tudo para, em seguida, voltar a apropriar-se de tudo. Nos seus desejos, de fato, aqueles dois Apóstolos já tinham se apropriado dos primeiros lugares no reino de Jesus. Em espírito, eram já verdadeiros fariseus, apesar de não o serem, nem de nome, nem de fato. O farisaísmo deles mostra-se evidente, por exemplo, naquela situação em que Jesus, a caminho de Jerusalém, quer atravessar uma aldeia samaritana, mas os habitantes não O acolhem por causa da aversão que tinham aos judeus. Então, Tiago e João, chamados "filhos do trovão" exclamaram: "Senhor queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma?" (Lc 9,54). E já um traço nítido de farisaísmo o fato de eles, sentindo-se os melhores, pretenderem o castigo para os piores. Pode acontecer que alguém deixe tudo para seguir o Senhor e se sinta depois superior, e melhor do que os
outros, mas isso eqüivale a deixar-se penetrar pelo veneno do farisaísmo, Foi o que sucedeu no caso dos Apóstolos. Vemos, de resto, que enquanto foram presas do espírito farisaico, enquanto continuaram a apropriar-se dos dons recebidos, o Espírito Santo esteve impedido de descer sobre eles. Poderia se pensar que tudo teria sido bem mais simples se, logo ao princípio, o Consolador — Aquele que santifica e que endireita as veredas da alma humana, Aquele que é luz - tivesse imediatamente descido e esclarecido os ensinamentos de Jesus. Porém, o Espírito Santo não descerá ao homem rico de espírito, do qual Jesus dirá: "Ai de vos os ricos" (Lc 6,24). O Espírito não poderá descer àquele que se sente seguro de si, que é espiritualmente rico, porque tal pessoa é refratária ao Seu poder, ao poder do Pai dos pobres. Observamos claramente, na vida dos Apóstolos, as etapas da sua reaproximação de Deus. De início surgiu na vida deles a "primavera da Galiléia", um período cheio de alegria e de sonhos. Só mais tarde algumas nuvens sombrias começaram a se evidenciar no horizonte, quando no início dos conflitos com os fariseus suscitaram o receio e o medo - seriam aqueles os primeiros fulgores de purificações e as primeiras provas de fé na vida dos Apóstolos. Foi então que Tome, testemunha das recentes tentativas de apedrejarem e de prenderem Jesus, diria visivelmente desencorajado e quase em desespero: "Vamos nós também, para morrermos com Ele" (Jo 11,16). Aqueles, já não eram os Apóstolos triunfantes da primavera da Galiléia! Agora começavam verdadeiramente a ter medo, pois existiam conflitos abertos com a elite da nação, com o poder representado, naquele tempo, pelos fariseus e saduceus.
O despojamento mais completo e a prova mais dura de fé virão inesperadamente com a Paixão de Cristo. Sexta-feira Santa, dia da Paixão de Jesus, graças à qual é consumada a Redenção do mundo, foi para os Apóstolos a noite total da purificação. Para eles, ali, tudo se desmoronou, tudo caiu por terra. O Reino já não existia, Jesus parecia-lhes um derrotado, nada mais restava, nada mais havia a esperar, nenhuma esperança, somente sobrava o desespero. Se bem que o Evangelho não se refira explicitamente, a João, de pé junto à Cruz, não teria sido estranho esse sentimento de desespero. Também ele sentiria naturalmente que tudo se despedaçara. Alguém afirmou: "Se não passaste pelo teste do desespero, pode dizer-se que nada sabes". Para os Apóstolos, este teste teve lugar na Sexta-Feira Santa. Foi então que eles, fariseus de espírito, foram completamente despojados. Depois da Ressurreição, aquela "noite" viu-se iluminada pelo resplendor de Cristo ressuscitado, quando puderam ver que Ele vivia, que estava no meio deles. Porém, tratava-se de uma outra forma de presença, que já não dava plena segurança nem estabilidade. Já não era a anterior humanidade de Cristo. Agora ela é distinta, gloriosa e como se não fosse deste mundo. Viram-no passar através de portas fechadas, de tal forma que chegaram a duvidar de que tratasse verdadeiramente do seu Mestre. Não chegara ainda o termo das provações às quais os Apóstolos foram submetidos, não terminou ali a noite da sua purificação. Os dez dias decorridos entre a Ascensão e a descida do Espírito Santo também foram
para os Apóstolos uma prova de fé e de um despojamento contínuo. Eis como Garrigou-Lagrange descreve essa situação: "Nos meses precedentes, a intimidade deles com Jesus crescia diariamente. Ele tornara-se a vida deles, e agora decide deixá-los para sempre, aqui embaixo, privados da Sua presença visível e da Sua palavra que os sustentava. Como deviam sentir-se sós e isolados... Os Apóstolos, na tarde da Ascensão, devem ler experimentado uma fortíssima impressão de solidão bem como uma impressão de deserto e de morte..." (Les trois ages de la vie intérieure, t.II). Fora-lhes arrebatada a presença humana de Jesus que até então tinha sido o seu principal apoio. Careciam agora de todo e qualquer suporte. A jovem Igreja que nasce no Cenáculo, e que persevera em oração, está assim completamente despojada. Ensina a Teologia da vida interior que no decurso da "segunda noite", aliás a mais penosa, surge a Virgem Maria que, com a Sua presença, a alumia. Foi o que aconteceu naquele Cenáculo. Os Apóstolos não se encontravam ali sozinhos, a Virgem Maria estava com eles, Aquela que nunca tinha caído em desânimo e cuja fé nunca vacilara. Permanece constantemente com eles, como exemplo de fé e de perseverança na oração, modelo de espera da vinda do Espírito Santo. Os Apóstolos, totalmente pobres, despojados já de tudo, sem qualquer sinal visível da humanidade de Jesus, esperam com Ela. E é então que o Espírito Santo, que como diz a liturgia é o Pai dos Pobres, desce sobre eles quando estavam assim despojados e no mais completo vazio. Nessa altura invade-os o Seu Poder e fortalecendo-os dessa maneira são enviados a conquistar o mundo para Cristo.
Amar a Igreja Pelo Crisma você se une mais intimamente à Igreja. Ao receber este sacramento estabelece-se um estreito vínculo pessoal entre você e o bispo que o ministra e que, na qualidade de dispenseiro do Sacramento do Crisma, participa na maternidade sobrenatural da Igreja. Tornando-se para você um canal particular da graça e dos dons do Espírito Saiu o, o bispo "gera-o" para a plenitude da vida cristã. Os textos litúrgicos falam de uma marca espiritual que fica impressa na alma do crismado uma marca que exprime a íntima e perfeita ligação com Cristo e com a Igreja. O estabelecimento de um vínculo espiritual entre o crismado e o bispo compromete-os no amor à Igreja. Você deve amai a I g r e j a como Cristo que "Se entregou por ela” (Ef 5,25). Amar como Cristo é amar até ao dar da própria vida. A Igreja é nossa Mãe. Se dela não temos uma visão sobrenatural isso é devido à atual secularização generalizada. No Credo nós professamos: "Creio na Igreja universal". O sentido desta declaração d e v e refletir a atitude de entrega confiante à Igreja, porque entregandose à Igreja, você se entrega a Cristo, dado que a Igreja é o Seu Corpo Místico. Daniel-Rops, no seu livro "Noturnos", tece a descrição de um painel de mosaicos do século IV d.C, que se encontra no Museu Bardo, em Tunis, (mosaicos...): "Que um cristão não pode olhar sem emoção. Desajeitadamente, como se reproduzisse no desenho das
suas pedras um qualquer 'graffiti' traçado por mão furtiva, representa este o pórtico e a co-lunata de uma daquelas basílicas constantinianas edificadas um pouco por toda a parte no Ocidente mediterrânico, quando a revolução da Cruz começou a instalar, nos escombros cercanos do Império, a soberania da Boa-nova. E uma breve inscrição a elevar aquela humilde imagem à dignidade de um símbolo, deixa à nossa meditação estas duas inesgotáveis palavras: Ecclesia Mater. Século IV! O tempo das grande lutas não chegara ao seu termo. O mundo não optara ainda definitivamente entre o Panteão de múltiplo prestígio e a revelação do Deus vivo. Constantino havia já reconhecido o imenso fato histórico que representava o surgimento do Cristianismo e o seu desenvolvimento no universo de Roma. Mas os retrocessos eram sempre possíveis, como o foi por exemplo, o de Juliano, o Apóstata. Não era ainda totalmente seguro afirmar-se por Cristo... Existia no Império uma angústia crescente, um feixe de confusos temores e de incertezas, de que a anarquia política, a inquietação religiosa e o perigo bárbaro, eram sinais. E nessa atmosfera de problemas e de riscos, naquele mundo sob ameaça, naquela Cristandade de dor na qual o sangue dos mártires estava ainda fresco na areia dos anfiteatros, que é preciso ouvir pronunciar, na doçura apaziguadora de uma oração, aquelas palavras consoladoras. Será preciso muita imaginação para as compreender tal como as compreendia aquele longínquo irmão nosso em Cristo, que com a ajuda de pequenas pedras as traçou no cimento úmido? Estando o mundo cheio de incerteza, estando a história como que opaca não se ousava perscrutar demasiadamente longe o horizonte da Promessa. Porém, havia um local onde os próprios perigos tinham um sentido, onde tudo era ordenado numa grande esperança, onde se pressentia o porquê' e o como'. Havia também um lugar onde as piores
explosões de injustiça e de raiva cessavam, onde a fraternidade humana existia para além das barreiras de raças e de classes, onde o amor era mais forte do que a morte'. Esse lugar privilegiado, do qual as colunas e as paredes da Basílica de Tabarkha são apenas a imagem visível, aquele lugar do qual o apóstolo dissera que havia de ser para sempre "a casa do Deus vivo", era a Igreja, a Mãe-Igreja, Ecclesia Mater. Vários séculos decorreram, épocas e impérios, as circunstâncias parecem ter se transformado. No entanto, através da sucessão de acontecimentos e incertezas humanas, houve uma realidade que sobreviveu a todas as vicissitudes da história e que para os milhões de homens do nosso tempo aparece exatamente como aos fiéis dos tempos heróicos nos atributos eternos da maternidade. (...) O mais ignorante dos cristãos sabe ainda que, de forma confusa, a palavra "filho da Igreja" com a qual ele se auto-define, exprime uma pertença de aspecto diverso daquela proporcionada pela formação humana e pelos partidos, uma adesão bem diferente daquela que se consente aos filósofos ou aos sistemas. E o nome que chamamos à pessoa que a nossos olhos mortais personifica e representa a Igreja - Papa (Papá) - acaso não exprimirá o eco dos mesmos sentimentos de filial afeição e de absoluta confiança exprimidos pela inscrição de África, há mil e seiscentos anos: Mãe-Igreja? Igreja-Mãe, ignorada, caluniada, traída até por aqueles que devem aos seus ensinamentos a dignidade de homens que reivindicam contra ela; é nas horas de inquietação e de ameaça que o seu papel, como nos primeiros tempos da nossa era, aparece mais em evidência. Tinham-na dado por morta, ou abolida, relegada juntamente com as mais velhas indumentárias do passado; as componentes do mundo pareciam não lhe deixar qualquer espaço. Mas basta que a humanidade sinta estremecer o destino pelas suas bases, para que logo se note que ela continua lá no
seu lugar 'a cidade situada sobre a montanha e que se vê de todo o lado'. Basta que uma guerra estoure para se ver reconhecido o seu poder, não procurando senão cada uma das partes opostas colher para seu proveito um irrevogável prestígio. Basta que a civilização seja ameaçada, que o homem descubra nele, e diante dele, abismos que por si só cavou e o mesmo grito de súplica irromperá dos seus lábios como na noite da tempestade: 'Salva-nos, que perecemos!'. Apesar de tudo a Mãe continua a estar sempre presente para acolher o filho pródigo, para colocar ternamente aos ombros a ovelha negra do rebanho (...) Ela vive na convicção de que em nenhum coração humano há traição tão grande que a palavra "perdão" não possa aí encontrar o seu lugar. E, voltando-se para aqueles que durante muitos anos fingiram não a conhecer, olha-os com infinita piedade e murmura: 'Que importa que vos tivésseis afastado de mim se eu estava sempre perto de vós?'. E eis que precisamente, como nos tempos primitivos em que a Cruz conquistava o mundo, a Igreja, a Mãe-Igreja, do fundo da sua maternidade, oferece aos homens do século XX o que os do século IV já lhe pediam. (...) Em face de um mundo que duvida de tudo, a começar de si próprio, que já não sabe qual o sentido de uma vida que se lhe escapa e lhe foge, só ela dá a impressão de saber com exatidão para onde vai e, segura de si, de possuir para além de todas as intenções sociais e políticas que lhe são atribuídas, a certeza de uma verdade sagrada. Em face de um universo fustigado pela violência na qual o homem parece obcecado pela fatalidade lógica da própria vontade de destruição, o que ela lhe repete é uma simples mas necessária lição, aquela lição de amor que ela própria
recolheu nas encostas das colinas da Galiléia e que o sangue de Deus selou no Calvário".
Pelo Crisma ficou estreitamente vinculado à Igreja. Enriquecido com as graças que dele dimanam, interrogase então a respeito do seu amor por ela, se a ama como Cristo a amou. Você se interessa pela sua vida e a sente como "a sua Igreja"? O desejo de se unir cada vez mais a Jesus, fará crescer também a consciência de ser filho da Igreja. Se procurar Jesus, irá encontrá-Lo plenamente no Seu Corpo Místico. Ao amá-Lo começará também a amar a Igreja, como Ele o fez, até ao fim, até doar a própria vida.
O compromisso do apostolado O amor a Cristo, intensificando-se graças à fé, faz nascer o desejo de dar testemunho d'Ele. Analogamente, a sua vocação para a santidade e o seu amor à Igreja vinculamse fortemente com o chamado à ação apostólica. Recordando a obrigação que cada cristão tem de dar testemunho de Cristo, o Papa João Paulo II dizia que somente um amor firmado à Igreja pode sustentar aquele fervor de dar testemunho e que não se pode separar a fidelidade a Cristo da fidelidade à Igreja. "Os cristãos, inseridos pelo batismo no Corpo Místico de Cristo -sublinha o Concilio — e fortificados pelo poder do Espírito Santo no crisma, são incumbidos pelo próprio Deus da ação apostólica. (...) O apostolado exercese na fé, na esperança e na caridade que o Espírito Santo infunde nos corações de todos os membros da Igreja. Já o mandamento do amor, que é o maior preceito do Senhor,
estimula todos os fiéis a procurarem a glória de Deus e a vida eterna para todos os homens" (Apostolicum Actuositatem)”. Daí que tudo o que você fizer deve contribuir para edificar e difundir o Reino de Deus. Você recebeu um tesouro e um extraordinário dom que não pode guardá-lo só para si. Se procedesse assim, isso seria enterrar o tesouro. Pelo contrário, a sua missão consiste em transmitir esse tesouro inestimável aos outros, em partilhá-lo com eles. Você deve dar testemunho de tudo o que lhe foi concedido como dom, das descobertas que fez, do que ama e de tudo aquilo que o Espírito Santo realiza em você. Quanto mais dócil for ao Espírito Santo, tanto mais Ele reproduzirá em você a imagem de Cristo e, tornando mais profundo no seu coração o amor à Igreja, fará com que seja fiel à vocação de apostolado. Certa vez, João Paulo II interpelou do seguinte modo a França: "Es fiel à graça do seu batismo?" A mesma questão é também dirigida a você: "Você é fiel à graça do santo batismo? Você é fiel às graças do crisma? Desenvolve-se em você o sentido de responsabilidade pelo rosto e pela vitalidade da sua Igreja, da sua diocese, da sua paróquia?" O rito do Crisma está diretamente ligado a formas concretas de testemunhar Cristo, testemunho que deve sempre fluir da fé e do amor. Você deve, com efeito, testemunhar Aquele que morreu e ressuscitou por você e por todos aqueles a quem leva o Seu testemunho. O seu apostolado deve exprimir-se numa atitude de serviço aos outros, sempre fortalecida pelo Espírito Santo. Além disso,
você tem de Lhe suplicar a graça da fortaleza tão necessária para defender a fé e para empreender o labor do apostolado. Enquanto não descobrir o Espírito Santo e não se der conta que é Ele que continuamente o purifica e o renova, que é Ele que forma em você a atitude filial para com Deus Pai, rezando em você com palavras de criança, "Abba-Pai", o Crisma permanecerá para você um sacramento desconhecido, Se realmente vier a descobrilo, Ele há de cumulá-lo com a paz de Cristo, aquela Paz que o mundo não lhe pode dar. E, antes de tudo, há de guiar o seu coração para os pobres, fazendo-o correr em sua ajuda, não só com socorro material, mas também espiritual, anunciando-lhes a Boa-nova da salvação e do amor de Deus que você mesmo há de experimentar cada vez mais. Durante a primeira peregrinação à sua pátria, na vigília da solenidade do Pentecostes, João Paulo II exclamou: "Que o Seu Espírito desça! Que venha a nós o Seu Espírito e que renove a face da terra. Desta terra!" Com os olhos do corpo você não pode ver o Espírito Santo embora Ele esteja presente. Somente por meio da fé lhe será possível divisar e acolher a Sua ação salvífica. Se ao invés, você não tem fé, se não procura escutá-Lo, mas até sufoca e abafa a Sua voz, habitualmente tênue, "você entristece o Espírito Santo" (cf. Ef 4,30). Tal atitude é causa
do Seu tormento — kénosis — do Seu aniquilamento no contato com você. Ele, que é o Espírito de Jesus, Amor do Pai e do Filho - Amor que lhe é dirigido - recorda-lhe constantemente as palavras de Jesus, falando até por vezes com a violência do furacão, posto que mais freqüentemente com a doçura da brisa sussurrante. E tão fácil abafar a Sua voz C desperdiçar esse dom inefável que lhe foi concedido no Sacramento do Crisma! A f é , essa condição indispensável para a ação do Espírito Santo na alma do crismado, é um autêntico encontro entre duas pessoas. O Espírito Santo deseja continuamente aprofundar esse encontro, e justamente desse modo, conduzir a alma a uma união com Cristo cada vez maior, à contemplação e à santidade, e sempre ao serviço da Igreja amada.
CAPÍTULO 3
A EUCARISTIA Entre a fé e os sacramentos existe uma estreita relação. Na "Constituição Sobre a Sagrada Liturgia", o Concilio Vaticano II sublinha que os sacramentos não só pressupõem a fé naqueles que os recebem, mas, mais ainda, alimentam-na, fortalecem-na e exprimem-na (n° 59). A fé é sempre a condição preliminar que garante a eficácia dos sacramentos, cujo poder se fundamenta sempre na força da fé. A teologia dogmática sublinha que o sacramento, se bem que atue por força intrínseca, "ex opera operato", nos casos em que falta a fé, permanece estéril. Se bem que recebam com freqüência sacramentos, um grande número de cristãos não desenvolve espiritualmente devido à sua reduzida Falta-lhes um verdadeiro empenho na participação obra salvífica da Morte e Ressurreição de Cristo, que realiza precisamente através dos sacramentos.
A expectativa da Eucaristia
os se fé. na se
Talvez você estranhe por que a Eucaristia ou o Sacramento da Reconciliação continuem a não lhe transformar, a não lhe trazer resultados visíveis. Pois importa dizer que a graça, para poder atuar, requer abertura e disponibilidade interior. Repare como a Igreja, na sua sabedoria, se esforça no ano litúrgico por nos preparar para o acolhimento das graças do Natal. A esse objetivo dedica as semanas do A d v e n t o , durante as quais reza incessantemente para que Jesus venha e desça à terra. "Que os céus, das alturas derramem o seu orvalho" (Is 45,8), canta ela nas suas orações litúrgicas. A Igreja pretende que cresça em nós a fome de Jesus, a fome da Sua vinda. Quer que, no quadro do ano litúrgico, Jesus nasça de novo no decurso das celebrações do Natal e que venha até nós na medida em que dentro de nós cresça a fome e o desejo pela Sua vinda. As graças do Natal atuam no nosso coração na medida em que estamos preparados e abertos para recebê-las, ou seja, na medida da nossa fé. Se não vivermos o Advento, não podemos viver verdadeiramente o Natal. Se você não vive o Advento e se não espera Jesus, não se surpreenda que, de certa forma, o Natal se escape sem deixar em você qualquer rasto na alma. Tal como a vinda de Jesus no Natal é precedida pela espera do Advento, a Sua vinda na Eucaristia deve igualmente ser antecedida pela espera. Jesus desce sempre de novo ao altar para lá voltar a nascer. Esse nascimento sobre o altar deveria também ser precedido por um "advento" - o advento eucarístico. Este advento eucarístico é, antes de mais, uma atitude de fé, fé no amor de Jesus que o espera. Como é importante que creia
que Jesus deseja vir ao seu coração, que é Ele que deseja a celebração da Eucaristia, que Ele anseia o momento da comunhão para Se dar plenamente a você, na maior fonte de graças: o Santíssimo Sacramento. Uma das necessidades psíquicas fundamentais da pessoa humana é a necessidade de aceitação e de amor. Todavia, não procure encontrar essa compreensão junto dos homens, porque rapidamente conhecerá a decepção e a amargura. Pelo contrário, a fé diz a você que, verdadeiramente, necessita apenas de um tipo de aceitação - a aceitação de Cristo, Aquele que o acolhe sempre. Disse João Paulo II: "Na Sagrada Comunhão, não és tanto tu que aceitas Jesus mas é antes Ele que te acolhe. Ele te recebe tal como és. Recebe-te, quer dizer, te aceita e te ama". O filósofo pagão sincretista Celso, escreveu por volta do ano 178 d.C, uma obra transbordante de ódio e de sarcasmo na qual ridiculariza os dogmas cristãos da Encarnação e da Redenção, troçando ainda da Santa Missa. Na sua idéia, os cristãos são loucos pelo fato de crerem que Deus Se tenha tornado num deles e que Se lhes entrega no Pão Eucarístico. Segundo ele é pura e simples loucura. Esta opi ni ão de Celso deveria ser apresentada ao inverso: não são os cristãos que são loucos pelo fato de acreditarem que Cristo Se lhes dá sob as Sagradas Espécies, mas é Deus quem enlouqueceu no Seu amor pelo homem: a Eucaristia é a manifestação da loucura de Cristo, do Seu amor louco pelo homem, do Seu louco amor para contigo. E com esta fé que você deve se preparar para a vinda de Cristo na Eucaristia.
São Francisco de Sales esforçava-se por se preparar para a Santa Missa ao longo de todo o dia, mesmo desenvolvendo as suas tarefas cotidianas. Em qualquer momento, se lhe perguntavam o que estava fazendo, respondia que estava se preparando para o Sacrifício Eucarístico. É deveras importante que cresça em você a fé no amor de Cristo e a fé na Sua sede de Se encontrar com você na Eucaristia. Quando verdadeiramente acreditar no quanto Jesus o ama e o anseia, descobrirá que, se você retarda a Sua chegada, Deus no Seu amor louco por você, experimenta aquilo que em psicologia se designa por "tormento da espera". Quando você acreditar que Jesus o ama e que Ele o espera então, como resultado dessa fé, há de nascer em você o anseio ardente da Sua vinda, o desejo, a fome e a sede da Eucaristia. O tormento que acompanha a espera de uma pessoa querida é tanto maior quanto mais o amor é desprezado. Uma mãe que espera o encontro com um filho que não quer regressar sofre na medida da intensidade do amor que lhe tem. Mas, quando se trata do amor infinito de Deus, de um Amor que você não está sequer à altura de imaginar, pense no tormento que experimenta quando Ele o aguarda em vão! A fé no Seu desejo de encontrá-lo protege você da rotina que é uma das maiores ameaças à sua fé. Só quando acreditar plenamente no amor infinito de Deus, quando descobrir o tormento que padece ao esperá-lo na Mesa Eucarística, é que não poderá mais viver sem a Eucaristia. Quando existir em você a fome da Eucaristia e o
desejo ardente do encontro com o Senhor, a rotina não poderá instalar-se.
Eucaristia - o culminar da fé Segundo São Tomás de Aquino, o Sacrifício Eucarístico só é eficaz para aqueles que, por meio da fé e do amor, se associam à Paixão de Cristo. Quanto mais fé e amor houver em você, mais a Eucaristia se torna eficaz na sua vida. A fé é participação na vida de Deus e realiza-se de modo particular nos sacramentos, que são os sacramentos da fé. Pela Eucaristia você participa com a comunidade dos que crêem na Morte e na Ressurreição de Cristo, e com a mesma comunidade se submerge no mistério insondável da Sua Morte e Ressurreição. "A liturgia reúne-nos todos na celebração explícita da nossa fé, de modo particular no momento da Eucaristia. Em parte alguma a fé da Igreja é tão completa como nesse instante. Em nenhum outro caso ela alcança um nível tão alto de consciência da união a Cristo Morto e Ressuscitado, cujo regresso à Igreja espera. Em parte alguma podemos participar de modo tão intenso na fé da nossa comunidade como nesse instante em que rezamos juntos, em que juntos nos oferecemos e em que juntos comungamos no amor de Deus que reside em Cristo Jesus" (J. COLOMB, Le devenir de la Foi, IV). Em virtude do sacerdócio universal e real somos chamados a unir-mo-nos a Cristo que Se sacrifica, e a darmo-nos totalmente como Ele o fez. Na Eucaristia, Cristo o submerge no mistério da Sua Morte,
concretizando assim a sua transformação e conversão: a morte do homem “Velho". Graças à ação do sacramento e ao poder da Paixão salvífica de Jesus podem também realizar-se em você a Ressurreição e um novo nascimento. A imersão na Ressurreição de Cristo inicia o processo de nascimento do homem novo, formado à Sua imagem. Se crer significa unir-se à Pessoa de Cristo, a Eucaristia é o momento no qual o nosso acolhimento de Cristo e a nossa ligação a Ele encontram a sua expressão mais plena. A Eucaristia é, pois, o ponto culminante da fé. Durante a Eucaristia, Cristo torna-Se o dom oferecido ao Pai por nós. Em virtude do sacerdócio universal e real dos fiéis somos também chamados a fazer oblação total de nós mesmos a Deus, juntamente com a oferenda que Cristo faz de Si. A união a Cristo significa entrar em comunhão com o dom que Ele faz de Si próprio e assim entregar a própria vida para colocá-la ao serviço da Igreja e dos irmãos. O objetivo da Eucaristia é a conversão. Você deve se afastar da sua vontade, de modo a que esta, diminuindo sempre mais, possa criar espaço para o serviço do próximo. Se você se aproxima da Sagrada Comunhão, faz para se converter, para permitir a Cristo que reine no seu coração de uma vez por todas, para que a Sua vontade se torne para você o valor supremo. Cada comunhão deveria reforçar a sua união à vontade de Cristo. Eis porque você não deve se surpreender que Jesus venha contrariar os seus planos. A Eucaristia deve prepará-lo para isso, deve contribuir para dar a morte ao seu egoísmo a fim de que Cristo possa crescer em você.
Dado que a fé se exprime na confiança e no abandono que depositamos em Cristo, a Eucaristia deve ser o momento em que lhe confia todos os seus trabalhos, as suas preocupações e as suas inquietações. A Eucaristia há de, então, lhe dar a paz nascida da fé na força redentora do Sacrifício de Jesus, da fé em que Ele também o salvou da angústia, da incerteza e do stress, isto é, de tudo aquilo que destrói a sua vida, não só a espiritual, mas também a mental e a física. Por meio da fé você poderá receber os frutos da Redenção. Se crer é reconhecer a própria impotência e a condição de pecador para pôr toda a esperança em Deus, a Eucaristia, o sacramento da fé por excelência, requer de você uma atitude de criança impotente e pecador a, como alguém que não deseja nada mais do que a cura do seu mal. Procura participar na Santa Missa com a atitude do leproso do Evangelho e suplica a Jesus que o purifique da lepra do egoísmo, da lepra do orgulho e da preocupação sobre si mesmo, da agitação, da inquietação e da tristeza, da lepra da procura exagerada dos bens materiais porque tudo isso entrava o crescimento de Cristo em você. Graças à fé, durante a Santa Missa você pode fazer a descoberta de si próprio, da sua condição de pecador e da sua necessidade de Redenção. Com o aprofundamento da sua fé poderá se ver sempre mais em verdade, porque descortinará a lepra do pecado que há em você. Reconhecerá, então, como é indigno de se aproximar da Eucaristia, mas ao mesmo tempo se dará conta de quanto precisa na sua vida da Sua ação salvífica.
O crescimento na fé lhe permitirá descobrir, durante o Sacrifício Eucarístico, a presença real de Jesus e que se realiza a atualização do Seu Sacrifício Redentor. Descobre quem Ele é e o que se desenrola sobre o altar. Para evitar que a recepção cotidiana da Comunhão provoque a rotina que destrói a sua fé, procura participar em cada Santa Missa como se fosse a primeira ou a última vez na vida. Pense na profunda vivência que deve ter sido para um sacerdote a celebração da sua primeira Missa, da sua Missa Nova. Sem dúvida que, quando tomou nas suas mãos o Corpo de Cristo, estas lhe tremeram pois, para ele, nesse momento, a hóstia foi (e é) Alguém. Eis a fé ainda não corroída pela rotina. Pense na primeira comunhão de um convertido que, depois de se ter preparado e de ter recebido o batismo, recebe pela primeira vez a Eucaristia. Talvez os seu lábios também tremam ao receberem pela primeira vez o Corpo do Senhor, porque na sua fé bem viva, crê que naquele momento Deus, de fato, repousa nos seus lábios, entra em seu coração, encontrando-se em face de um insondável mistério, pleno de temor e de majestade mysterium tremendum.
A "kénosis" de Cristo A fé permite a você tomar consciência de que as suas mãos e os seus lábios quando recebem Jesus, estão sempre sujos, sempre, mesmo quando em estado de graça, porque permanece sempre a sua condição de
pecador e as mãos e os lábios de um pecador são sempre indignos e, nesse sentido, conspurcados. Realmente recebe Cristo com os mesmos lábios que por vezes são capazes de matar com palavras, porque o que você diz, às vezes, em lugar de abençoar, fere, tornando-se fonte de mal e de desgraça. Lábios pecadores que entram em contato com a suprema santidade - Deus. Você chega, deste modo, ao conhecimento de um mistério que em teologia se denomina "kénosis", um termo grego que significa 'aniquilamento'. A Eucaristia é kénosis, isto é, o aniquilamento de Deus feito Homem, porque Ele, a suprema Santidade, encontra-Se com a sua culpa e com a sua indignidade. Isto não quer dizer que deva deixar de receber a Eucaristia, porque é recebendo-a que você pode se tornar sempre mais digno. Jesus o espera com amor e quer vir ao seu encontro para transformá-lo e santificá-lo a fim de que você se torne cada vez mais digno da Sua vinda. O Apóstolo São João escreve: "Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos e a verdade não esta em nós" (Jo 1,8). Somos todos pecadores e todos indignos de receber Jesus. Fique, pois, consciente do fato de que os seus lábios estão sujos e espere que seja a Eucaristia que os limpe, e limpe ainda a sua alma e o seu coração da lepra do pecado e do egoísmo. Jesus deseja tanto que tal suceda que está disposto a pagar por isso o preço do Seu aniquilamento, da Sua kénosis. É a fé que vai lhe dar luz para poder ver até que ponto a Eucaristia significa o aniquilamento de Cristo. Ele despoja-Se e aniquila-Se, além do mais pelo fato de
ocultar a Sua Majestade e a Sua Humanidade sob a aparência de um fragmento de matéria - o pão e o vinho. Ele priva-Se da homenagem e do respeito que Lhe são devidos e, por isso, quando com mãos e com lábios manchados pelo pecado, com coração de pecador, você se aproximas d'Ele, aumenta a Sua "kénosis". São Luís Maria Grignion de Monfort aconselha que convidemos sempre a Santíssima Virgem a participar conosco na Eucaristia. A presença oculta da Virgem Imaculada junto de nós, de modo especial na Eucaristia, resta um grande mistério, é a solução para o problema da "kénosis" de Cristo. Algumas pessoas dificilmente reconhecem a necessidade e a importância de um caminho mariano para Cristo, porque não vêem a necessidade de Maria se interpor entre nós e Cristo, com a idéia de que a imagem do Salvador ficaria obscurecida. Porém, quando graças à luz da fé você se der conta da santidade de Deus e da sua indignidade e condição de pecador reconhecerá que a situação é diametralmente oposta. Quando você suplica à Virgem Maria que desempenhe o Seu papel de intermediária entre você e Cristo você se aproxima ainda mais d'Ele, porque convidando-a a interpôr-se entre a sua pessoa e a de Cristo atenuas-Lhe a Sua "kénosis" o Seu aniquilamento, Pois só as mãos de Maria não estão, nem nunca estiveram impuras, eram e são sempre imaculadas - as únicas mãos e os únicos lábios humanos que são puros e imaculados, dignos de receber o Corpo de Cristo. Se você quer evitar o aniquilamento a Cristo e quiser prestar homenagem à "kénosis" do Deus-Homem, peça à Maria que seja Ela a recebê-Lo em você. Essa é
uma atitude com que exprime simultaneamente, que reconhece a sua própria pecaminosidade e que crê que Ele o ama loucamente, ao desejar cumulá-lo com os frutos da Redenção, mesmo a preço de um inconcebível aniquilamento por você.
CAPÍTULO 4
A ESCUTA DA PALAVRA DE DEUS Da mesma maneira que há uma relação direta entre os sacramentos e a fé, ela também se verifica entre a fé e
a palavra divina. A leitura da Sagrada Escritura não só pressupõe a fé, mas estimula-nos à colaboração ativa, à conversão e à realização dos seus ensinamentos na vida cotidiana, que deve converter-se numa vivência em fé. Esta é, na verdade, uma resposta à palavra de Deus, uma atenta escuta da palavra para vivê-la em cada dia.
A relação "coisificada" e a relação personalizada" com a palavra de Deus A nossa relação com o texto escrito pode ser de dois tipos: coisificada, quando aquele se torna num objeto de estudo ou num auxiliar de aprofundamento de um assunto que nos interessa ou para a solução de algum problema; e, personalizada, quando o texto se torna para nós, segundo a definição de Gabriel Mareei, um mistério. Se ao ler a Sagrada Escritura você tem em vista o aprofundamento dos seus conhecimentos religiosos, isso significa que tem para com ela um relacionamento de caráter coisificado. Numa relação deste tipo a Sagrada Escritura fica simplesmente reduzida a uma "coisa". Porém, trata-se de uma relação insuficiente, mesmo se necessária. Para a Igreja, a palavra de Deus constitui a fonte fundamental do conhecimento objetivo de Deus, e daí que a leitura eclesial da Sagrada Escritura seja e deva ser também objetiva. Todavia, a Sagrada Escritura é um texto inspirado e revelado, razão pela qual, a nossa relação com ela deve ser prioritariamente “personalizada”. A Sagrada Escritura,
com efeito, não é "uma coisa" mas é "Alguém". É verdade que Cristo está presente no meio de nós de modo mais completo, na Eucaristia, mas está também presente e vive, se bem que de modo diferente, na Sagrada Escritura. Folheando as páginas da Bíblia você se encontra com Cristo vivo e real, por meio do dom da fé, da fé que Ele próprio lhe concedeu. A Igreja nos fala de duas mesas. Na mesa da palavra os fiéis recebem, pela fé, a revelação da palavra de Deus, enquanto que na mesa eucarística, celebrando o "Sacramento da fé", que é a Eucaristia, os fiéis alimentam-se do Corpo e do Sangue do Senhor. Assim, é justa a afirmação de que é necessário aproximarmo-nos da Sagrada Escritura como mesa do Senhor. Portanto, quando tomar nas mãos a Sagrada Escritura você deve fazê-lo com respeito, com veneração e com profunda fé. Há de ser um gesto diferente daquele que você faz para pegar em qualquer outro livro religioso, pois a Sagrada Escritura é um livro cheio da presença de Deus.
A presença de Deus na Sua palavra A presença de qualquer pessoa estabelece em torno de si como que um raio de ação, fato que não se verifica no caso dos objetos inanimados. O encontro com alguém é encontro com uma presença e, comporta a entrada num círculo de influência que pode ser, para nós, desejado ou incômodo. A Sagrada Escritura é "alguém", é a presença de Deus. Tomando-a nas mãos você entra no raio de ação
da Sua presença. Ela torna-se para você um "mistério", a verdade que o envolve e na qual está mergulhado. Na Sagrada Escritura você encontra o seu Senhor, razão pela qual o contato com o texto revelado assume um significado particular: o de um encontro com Deus que o ama e que deseja i agir em você por meio da Sua graça. Através desse contato, Deus pretende conduzi-lo à finalidade mais importante: a conversão interior. Você não deve, portanto, ler a Sagrada Escritura apenas para satisfazer a curiosidade, ou para resolver algum dos problemas que o inquietam, apesar de, por vezes, isso se tornar necessário. Deveria aproveitar dessa forma de intimidade com o Senhor na esperança de que Ele lhe conceda a t graça da conversão. Quando você entra numa relação pessoal com Cristo, presente no texto inspirado, esse texto o penetra até ao fundo e você começa assim a verdadeira escuta da palavra de Deus, começa a aprofundar o conhecimento do pensamento e dos desejos de Jesus, começa a conhecê-Lo cada vez melhor. Disse São Jerônimo que "co desconhecimento da Sagrada Escritura é o desconhecimento de Cristo". Uma escuta receptiva da palavra de Deus repercute-se nas suas escolhas e nas suas decisões, porque desejará que sejam de acordo ao Seu ensinamento e aos Seus desejos. A leitura da Sagrada Escritura é o fator fundamental que determina o seu crescimento na fé e, por ela, também a sua participação na vida de Deus. Graças a ela você começa a ver-se a si próprio e à realidade que o rodeia, como se o fizesse com os olhos de
Deus. Servindo-Se da palavra, Deus se revela a nós para nos conduzir pelo conhecimento ao Amor. Revela-Se para criar entre Ele e nós uma relação de amor, a fim de que, tendo fé na Sua palavra, possamos aderir e abandonarnos a Ele. Se você se identificar, com espírito de fé, aos pensamentos e aos desejos de Jesus, com o tempo verá que eles também são os seus. Permanecendo freqüentemente no ambiente da presença de Jesus, da Sua "Presença" com "EP" maiúsculo, você se torna cada vez mais semelhante a Ele, conforme: o provérbio: "Dizme com quem andas, dizer-te-ei quem és". Colocando-se à escuta da palavra de Deus, bebendo avidamente o seu conteúdo, você começa a ficar impregnado dele e a assimilar tudo aquilo que constituía e constitui a vida de Cristo. O contato com Cristo presente na palavra de Deus fará com que você se torne progressivamente um com Ele. Cada palavra e cada gesto de Jesus, imortalizados no Novo Testamento, são expressão do mistério da Sua presença. A sua tarefa consiste em aprender a escutá-la e a permitir que o envolva porque Se trata de uma presença inefável que exige uma particular abertura de tal forma que, com o tempo, possa significar a sua total transformação, qualquer coisa que possa ser descrita como transformação em Cristo. Desse modo se cumprirá o objetivo da sua vida: que Cristo possa crescer em você e que, crescendo, chegue à Sua plenitude.
O papel da palavra de Deus na oração
A presença de Cristo na palavra divina tenderá a abraçar a sua vida interior e a sua oração. Deixar-se invadir por esta presença na leitura e na escuta da palavra de Deus fará com que os textos que medite deitem profundas raízes no seu coração. Mais tarde, as passagens lidas virão à sua memória durante a oração que começará assim a ser uma oração alicerçada na Bíblia e hão de aparecer também nos momentos de tomada de alguma decisão. Acaso já se perguntou sobre o papel que ocupa a Sagrada Escritura na sua oração? Quando falava, Cristo utilizava com freqüência um gênero literário específico, a parábola, isto é, um símbolo desenvolvido capaz de atrair e envolver o ouvinte. É, pois, graças a isso que, ao ler a parábola do Bom Pastor, você pode se identificar verdadeiramente com uma daquelas ovelhas guiadas pelo Bom Pastor. Pode ainda identificarse com essa ovelha perdida que Cristo Bom Pastor tanto ama e que, por isso mesmo, não cessa de procurar. Ao encontrá-la, alegremente a envolve nos Seus braços. O simbolismo das parábolas de Cristo introduz-nos na órbita da Sua ação. Ele o ensina de um modo extremamente simples e acessível o que é o amor e o que é a fé no amor. Mas caso aconteça de ter tido uma queda grave e que se sinta envolvido por densas trevas é possível que se recorde da parábola do filho pródigo que lhe permite crer uma vez mais que Deus o ama e que nunca deixou de amá-lo. Aquela parábola ensina-o a adotar a atitude do filho arrependido que aceita, cheio de assombro e de gratidão, a alegria do pai que perdoa. Do mesmo modo, quando surgirem, na sua vida as tormentas, você pode se lembrar da tempestade no lago de Tiberíades durante a
qual Jesus dormia tranqüilamente na barca dos Apóstolos sacudida pela tormenta. Também presentemente, nas suas tempestades, Jesus "dorme" na barca do seu coração, mas está presente e, estando Ele presente, nada de mal lhe pode suceder. Tudo o que acontece pode ajudá-lo a viver na sua oração a palavra de Deus que lhe permitirá recuperar a paz interior. A leitura da Sagrada Escritura há de formar em você uma imagem de Deus cada vez mais verdadeira e evitará que lhe suceda esse fenômeno tão freqüente da deformação do Seu rosto. Talvez você tenha medo d'Ele, talvez creia de modo insuficiente no Seu Amor porque você próprio também O ama pouco. Mas o seu amor por Ele deve crescer cada vez mais e por toda a sua vida. A Sagrada Escritura meditada na oração o fará conhecer o incessante amor de Deus por você, porque Ele é Amor. O encontro com Cristo presente na palavra de Deus também o ajudará a descobrir Deus no mundo que lhe rodeia. Ensinará você a interpretar os numerosos símbolos através dos quais é possível descobrir a Sua presença não só na natureza, mas também nos fenômenos da civilização e da cultura. Para São João Maria Vianney, por exemplo, as ovelhas faziam-no pensar no amor do Bom Pastor. Ao vêlas, sentia crescer em si a consciência do grande amor de Jesus para com ele - pastor da sua paróquia e para aqueles que o Bom Pastor confiara à sua solicitude e ao seu amor de pastor. O murmúrio de um riacho na montanha recordava-lhe as palavras da Sagrada Escritura sobre a "água viva" que brota para a vida eterna (cf./fl
7,37-39). Alguém contava como, à noitinha, lhe agradava ver acesas as luzes da rua, das casas e dos carros que passavam, pois levavam-no a pensar na Sagrada Escritura e em particular no texto de São João que se refere a Jesus como a luz do mundo. Cada luz se tornava, assim, para ele, símbolo de Cristo recordando-lhe Aquele que "vindo ao mundo a todo homem ilumina" (Jo 1,9). Se você deseja que também a sua oração seja apoiada na Sagrada Escritura deve ser como Maria de Betânia. Em Betânia, na casa de Maria, Marta e Lázaro, Jesus encontrava abrigo e repouso. Quando se aproximaram os últimos tempos da Sua vida, sabendo que os fariseus O seguiam, refugiou-Se em Betânia. Precisamente ali, algum tempo antes, quando Jesus os visitara, Maria tinha sentado aos Seus pés escutando atentamente todas as Suas palavras; comportara-se como se estivesse diante do tabernáculo. Quando Marta atarefada pedira a Jesus para fazer notar a sua irmã que não a deixasse sozinha com o serviço doméstico recebeu a seguinte resposta: "Maria escolheu a melhor parte que lhe não será tirada (Lc 10,42). Essa melhor parte ê estar junto a Cristo, é sentar-se a Seus pés e escutar com fé as Suas palavras, que nos chegam por meio da Sagrada Escritura. Maria, que escutava e contemplava Jesus - o Verbo feito Homem devia ser a Sua grande alegria. Nós, pelo contrário, quase sempre atarefados e presos a tantos cuidados, consideramos que não temos tempo para ler a Sagrada Escritura. Mas para Maria o mais importante era a Sua presença, a presença do Mestre na sua casa. E ela sabia
que o lugar mais apropriado para estar era aos pés do seu Senhor. Socorrendo-nos do pensamento de Jean Guitton (em A Virgem Maria) seria apropriado chamar a Mãe de Deus "Virgem Meditante" -Virgo Meditans. O conteúdo do Magnificat testemunha bem o quanto ela estava penetrada pela Bíblia. E um exemplo da oração fundamentada na palavra de Deus que para ela era "alimento" e fonte de oração. Durante trinta anos a Virgem Maria "absorveu", por assim dizer, a presença divina de seu Filho. E este o motivo pelo qual a sua imagem é a reprodução mais perfeita da Face de Cristo e nisto consiste a sua grandeza. Se Jesus dedicou trinta anos da Sua vida à Maria, mostra o quanto Lhe importava criar aquela obra-prima, a reprodução mais perfeita da Sua Imagem. Ela absorvia continuamente os Seus pensamentos, os Seus desejos e a Sua vontade, tornando-se, desse modo, sempre cada vez mais uma só com o seu Filho. Nas páginas da Bíblia você encontra a presença de Jesus. Portanto você também, como a Virgem Maria, devia deixar-se impregnar dos Seus pensamentos e dos Seus desejos para os poder viver no cotidiano. Deveria querer imitar totalmente e até o fim a Virgem Maria na sua disponibilidade e abertura à grande obra de Cristo que consiste em moldar cada um de nós à Sua semelhança. A Bíblia tem de se tornar para você um espaço de encontro com Aquele que o amou até ao limite e que
deseja formar também em você o Seu Rosto, como o fez com a Sua amada Mãe.
CAPÍTULO 5
A ORAÇÃO COMO ATUALIZAÇÃO DA FÉ A fé e a oração não constituem duas realidades separadas, ou simplesmente dependentes uma da outra, nem tampouco coexistentes. A oração e a realidade da fé estão sempre muito estreitamente ligadas. A oração constitui o encontro entre Deus e o homem na fé e é, finalmente, uma forma de realização da fé. Se a fé é aderir e abandonar-se a Cristo; a oração é entregar-se e consagrar-se a Ele, para, uma vez mais, ser acolhido e transformado. Se crer significa reconhecer a fraqueza própria e esperar tudo de Deus, a prece exprime o chamado existencial da pobreza espiritual e do vazio interior do homem que suplica ao Espírito Santo a graça de enchê-lo com a Sua presença e com o Seu poder. À medida que a fé se desenvolve, a oração torna-se mais pura e mais ardente. Enquanto atualização da fé é marcada pelo dinamismo da conversão, também a oração - como a Eucaristia e a palavra de Deus - conduzem o homem à transformação e à conversão.
O exemplo de Cristo
Quando lemos o Evangelho, em breve reparamos que a Boa-nova nos desconcerta. O conteúdo do Evangelho difere de tal forma das nossas tendências naturais que nos parece ser um contínuo paradoxo. O Evangelho produz uma reviravolta nos nossos conceitos humanos. Era precisamente o que Cristo também fazia. A humanidade esperava-O há milhares de anos. Tudo se orientava para esse acontecimento da História do mundo que era a vinda do Messias, Aquele que havia de cumprir a obra da Redenção. Quando finalmente após tão longo período de expectativa, Jesus vem, revela-Se apenas aos pastores e aos três Reis Magos. Depois, vive isolado durante trinta anos, abstendo-Se da ação, ou pelo menos não age do modo esperado para o Messias. Aos olhos do mundo, todos aqueles anos parecem desperdiçados. Se alguém é desejado durante milênios espera-se também que dê o máximo de si. Mas, pelo contrário, enquanto as multidões esperam, Cristo "desperdiça" trinta anos em Nazaré. Quando, por fim, termina aquele período de tempo, que na perspectiva do ativismo humano poderia parecer desperdício, Cristo aparece nas margens do Jordão para ser exaltado pelo próprio Espírito Santo e novamente o Seu comportamento nos desconcerta: Jesus retira-se e dirige-se para o deserto. Também não somos capazes de compreender isso. Quase nos agradaria agarrá-Lo pela mão e dizer-Lhe como certa vez o fez também o Apóstolo Pedro: "Senhor que fazes? Vais de novo rezar quando tanta gente te aguarda? Mas, já rezas te durante tantos anos!" No entanto, Aquele que mais tarde diria "A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos" (Lc 10,2),
naquele momento deixa a messe e dirige-se ao deserto para rezar ininterruptamente durante quarenta dias. Não nos surpreende tudo isto? O evangelista Marcos escreve: "De manhã, muito cedo, levantou-Se e saiu; retirou-Se para um lugar solitário e ali Se pôs em oração" (Mc 1,35). Reparemos neste pormenor particular: "de manhã muito cedo". Significa que era ainda de madrugada. Para rezar, Cristo privava-Se do sono. Muito admirados, nós quase teríamos vontade de exclamar: "Senhor, por que é que tens de rezar de noite, esqueces a saúde?" O dia de trabalho apostólico de Jesus devia ser extenuante. À tardinha ainda socorria gente da cidade e dos arredores trazendo os doentes e os endemoninhados. Seria difícil dizer a hora que terminaria o Seu labor de cada dia. Talvez por volta da meia-noite, uma vez que as multidões não O deixavam de livre vontade. Depois de um dia assim tão fatigante, Jesus privava-Se ainda do sono, desse sono já bastante reduzido. Quando falamos de como Jesus era constantemente assediado pelas multidões devemos também precisar que esse fato estava sempre relacionado com o Seu isolamento na oração. Aí se esconde uma indicação extremamente importante também para você: se quer que os seus contatos com os outros sejam frutuosos, primeiro precisa aprender a estar em solidão, tem que aprender a valorizar os momentos de deserto na sua vida. Estes momentos de deserto desempenharam um grande papel na vida dos santos. Basta pensar na grande necessidade de solidão no deserto de São João Batista, ou
como foi decisivo na vida de Santo Inácio o período de Manresa, ou ainda na vida de São Bento, o tempo de eremitério em Subiaco. Porém, o homem moderno contaminado pelo ativismo, tem a impressão de que deve dar sempre mais. Mas dar o quê? Pode-se pensar que Cristo, vivendo em tão estreita comunhão com o Pai, já não tivesse precisão de rezar. No entanto, Ele assim fazia, mesmo à custa do próprio sono. E sempre será do mesmo modo. Para se ser assediado pelos homens será sempre necessário um prévio encontro com Deus na solidão. Mas, se você não se isola para se recolher e orar, e, outrossim, se o faz para fugir das pessoas, para se esconder no mundo dos seus afazeres pessoais, então conhecerá outro tipo de assédio: o do egoísmo. Também este poderá ser para você um deserto, todavia não há de ser um deserto vivificante como no caso de Jesus e dos santos; não será o deserto da vida, mas o da destruição" (cf. A. PRONZATO, Ho voglia di pregare).
A prioridade da oração Aqui nasce, e se coloca, uma pergunta fundamental: que espaço você concede à oração na sua vida cotidiana? Que lugar ocupa na lista das suas tarefas cotidianas mais importantes? Coloca-a à frente ou atrás de quê? Tem o primeiro lugar ou, em vez disso, situa-se na periferia das suas ocupações diárias? Como se passa o seu dia no que respeita ao recolhimento e como faz o seu exame de consciência, esse olhar sobre si próprio na presença de
Deus? A resposta a este tipo de questão trará à tona aquelas coisas que na sua vida parecem ser mais importantes do que Deus. E aí você pode imediatamente justificar que com a avalanche das suas obrigações é tremendamente difícil encontrar tempo para rezar. O cardeal Lercaro, arcebispo de Bolonha, durante um encontro com sacerdotes, falava com o fervor e o ardor que lhe eram próprios a respeito da necessidade de uma meditação diária de meia hora. Depois da conferência, durante a discussão, um dos jovens padres levantou-se e disse: "Sem dúvida, Eminência, que em teoria tudo é claro e simples: é preciso fazer meditação..., mas quando? Porque o meu dia desenrola-se assim: levanto-me às 6h30min, às 7 horas celebro a Missa, depois as confissões, a catequese, o almoço, depois as atividade com os rapazes do oratório, visita aos doentes, o trabalho na secretaria paroquial e os encontros de caráter pastoral. A tardinha tenho as ocupações com os jovens que se prolongam mais ou menos até à meia-noite. Com um dia assim tão cheio, onde posso encontrar o tempo para uma meia-hora de meditação, se mal tenho tempo de ler o breviário?" "Tens razão", responde o cardeal, "efetivamente não te sobra tempo para uma meia-hora de meditação. As suas obrigações 'sufocam-te' a ponto de nem sequer poderes tirar tempo para a oração. Dado que não podes fazê-lo, então é preciso que dediques não meia-hora, mas hora e meia à meditação" (cf. A. Pronzato, Ho voglia de pregare, 113). Obviamente que o cardeal não formulou esta resposta com o intuito de fazer uma observação brilhante
e paradoxal, mas quis mostrar que a tragédia do nosso ativismo cristão consiste no fato de que as nossas atividades realmente nos sufocam. Aquele jovem e zeloso sacerdote que tanto se sacrificava por Deus e pelas almas, tinha necessidade de um antídoto ainda mais poderoso. Esforçando-se por ver à luz da fé, você compreenderá que, quanto mais assoberbado pelas suas ocupações se veja, tanto mais tempo deve dedicar à oração. Caso contrário, fica vazio, apenas tendo a impressão de dar alguma coisa aos outros embora isso não passe de uma ilusão. Ninguém pode dar aquilo que não possui. Aquele jovem padre que discutira com o cardeal Lercaro se poderia dizer: "Que importa que dediques tanto tempo aos trabalhos pastorais, aos jovens do oratório, que visites os doentes e que confesses e que tenhas colóquios pastorais se tudo isso é como querer encher de água um passador". Em face de um sacerdote agitado, extenuado e num permanente corropio a recolher água num passador sem se dar conta de quem é que, na realidade, tudo decide, seria demasiado forte dizer que ele não tem fé, mas evidentemente que a sua fé é tíbia. Pela sua atitude é como se dissesse: "Sou eu, homem, que faço a história pelo menos no "meu terreno", ou seja, nas atividades paroquiais ou noutro lugar. Sou eu quem decide quem vai acreditar em Deus, é exclusivamente do meu trabalho que depende a salvação dos outros." No entanto, tudo depende de Deus, é Ele quem decide, é Ele quem dá as forças necessárias para agir. Se o convida a colaborar no Seu trabalho, não o faz porque considere você insubstituível. Quantas vezes Deus já
mostrou que pode resolver tudo sem nós. Se observou isso na sua vida recebeu uma grande graça. Nós somos necessários a Deus somente na medida em que Ele o determine. Somos, por vezes, testemunhas de que Ele pode salvar os homens sem que tenham recebido qualquer catequese. À Igreja e ao confessionário vêm, de fato, pessoas que nunca escutaram uma única lição de catecismo, mas não obstante nas suas almas a semente de Deus germinou. Deus não necessita da ingerência humana mas, apesar disso, quer que participemos na obra da salvação do mundo. Se, no entanto, nós julgamos que tudo depende de nós e do nosso trabalho estamos recolhendo água com um passador. Quando nos encontramos sobrecarregados pelo trabalho é fácil esquecer que, sobretudo, é preciso ir ao encontro d Aquele de quem realmente tudo depende, que tem em Suas mãos os destinos do mundo e de cada um de nós. A luz da fé, a ocupação mais importante do nosso dia, é a oração. Entre todas as atividades que levamos a cabo é esta que deve ocupar o primeiro lugar. O contato com Deus determina o valor e o sentido do nosso trabalho. A sua eficácia depende de algo passado na retaguarda, por exemplo, os seus joelhos doloridos por ter permanecido em oração demoradamente. "O importante não é aquilo que faz" - disse João Paulo II - "mas aquilo que é". O importante é que seja, como o Papa, um homem de fé e de oração. Se o cristão, enquanto discípulo de Cristo, cessa de ser um homem de oração, torna-se inútil para o mundo, porque se torna como sal insípido, bom para ser pisado pelos homens (cf. Mt 5, 13).
O problema da oração é, na nossa vocação cristã, uma questão fundamental. Rezando, não só prestamos homenagem a Cristo, mas adoramo-O em nome do mundo que não sabe, não pode ou não quer rezar. Uma coisa é certa: se não rezamos ninguém precisará de nós. O mundo não necessita de corações e de almas vazias. Quando perguntamos qual é a relação existente entre a oração e a ação, importa sublinhar a prioridade da oração e do sacrifício em relação à ação. Às crianças que catequizamos, em casa ou na escola, damos-lhes Deus na medida em que O tenhamos previamente pedido de joelhos. O problema da relação entre a oração e a ação pode reduzir-se a esta constatação: todo o autêntico agir nasce da oração e da vida contemplativa. Pois tudo o que é grande neste mundo provém do sacrifício e da oração.
Formas de oração O problema da oração é um problema fulcral para todo o cristão. Você ê cristão na medida em que é capaz de rezar. A oração e posteriormente as suas etapas específicas, marcam, ou definem, a sua proximidade ou o seu afastamento de Deus. As distintas etapas do seu caminho para Deus estão determinadas pelos graus da sua oração. Em cada um desses níveis surge uma nova forma e um distinto modo de orar, porque a oração é sempre expressão dos laços que o unem a Deus. É preciso aprender sempre de novo a rezar. A oração é constantemente uma tarefa a realizar. O modo
como rezamos hoje, amanhã já não será o bastante. Devemos ir sempre mais além procurando desenvolver a nossa oração. Quando se fala de prece vem quase sempre à idéia a oração da palavra. Nesta forma de oração deveremos pôr, antes de mais, a tônica nos atos pelos quais nos humilhamos diante de Deus, exprimindo-Lhe a nossa gratidão ou pedindo-Lhe a santidade. Ao fazermos oração verbal devemos nos lembrar de rezar por aquilo que Deus quer de nós. A prece não pode ser um atropelo de palavras. Jesus adverte-nos claramente a que não rezemos como os pagãos que “ pensam que, por muito falarem, serão atendidos” (Mt 6,7). A fé tem uma influência determinante sobre a intensidade e o conteúdo da oração. Se a fé transforma a nossa mentalidade e nos faz colocar Deus em primeiro lugar, então à medida que a nossa fé se desenvolva, a nossa oração será cada vez mais simples, cada vez mais submetida à ação do Espírito Santo (cf. Rom 8,26-27) e sempre mais centrada nas tarefas do Reino: "Procurai primeiro o Seu reino e a Sua justiça e tudo o mais se vos dará por acréscimo" (Mt 6,33). A palavra "primeiro" toma neste contexto um significado fundamental. Trata-se de colocar Deus em primeiro lugar e de que, sem renunciar ao seu esforço pessoal, deixe o cuidado de si mesmo e dos resultados da sua ação Aquele cuja vontade ê cumulálo de um amor sem limites. Realizará, então, na sua oração, o apelo de Jesus dirigido à Santa Catarina de Sena: "Pensa tu em Mim que Eu pensarei em ti."
Para além da oração verbal, que pode adotar a forma de súplica, de ação de graças ou de adoração, existe ainda outra forma mais simples de contato com Deus. O Senhor quer que simplifiquemos cada vez mais a nossa oração. Se um dos princípios bíblicos é que 'rezemos sem cessar', para que isso possa vir a realizarse, a nossa oração deve tornar-se mais simples, porque se a fazemos de uma maneira complicada não estaremos nunca em condições de rezar durante longo tempo. Na nossa vida interior virá no tempo em que nos será mais fácil pensar em Deus do que rezar a Ele. Tratase do momento de passagem à oração mental a que podemos igualmente chamar memória da presença de Deus. E uma oração mais simples do que a oração da palavra, exige muito menos esforço. Basta que dirija a mente para Jesus para que compreenda que Aquele que o ama está perto de você. Do mesmo modo, quando você se prepara para a Sagrada Comunhão basta que nas horas que a precedem oriente a sua vontade e o seu pensamento, cheios de amor, para a Eucaristia. A oração mental pode também ser uma expressão de fé que consista em conformar os próprios pensamentos com os de Jesus ou de Maria. Pensamentos esses que deveriam ser repletos de serenidade e de alegria. Verdadeiramente, a Virgem Maria é a "Causa da nossa alegria". Por conseguinte, se o nosso modo de meditar é repassado de um otimismo entendido no sentido sobrenatural é como se sintonizássemos os nossos pensamentos com os da própria Virgem Maria. Apesar da oração mental ser qualquer coisa de muito simples, para que se torne, na nossa vida, um fenômeno freqüente, requer vigilância e solicitude. Procure, pois, recordar-se e pensar sim-
plesmente no fato de que Jesus o ama, que Ele ama aqueles que você ama e com quem se preocupa. Uma tal oração feita com fé lhe dará a paz interior. O Senhor pode querer simplificar a nossa oração ainda mais, pode querer que guardemos um silêncio absoluto. Conforme rezamos por meio de pensamentos e de palavras, podemos também orar por meio do silêncio. Certas pessoas, no entanto, não aprovam esta forma de oração. Para muitos apresenta-se a dúvida de que talvez se trate de um desperdício de tempo, pois durante semelhante oração, nada parece suceder. Não obstante, permanecer em silêncio diante do Santíssimo Sacramento, ou na presença da Santíssima Virgem, é uma forma de oração bastante avançada. Carlos de Foucauld escreveu que "rezar é olhar Jesus, amando-O". Este tipo de oração pode adquirir a forma da chamada oração de simplicidade ou do simples olhar. Se você está junto de uma pessoa a quem sente que deve entreter, procurando para isso temas de conversa, significa que em maior ou menor grau se trata de uma pessoa estranha. Diante de alguém que nos é chegado podemos perfeitamente guardar silêncio sem que isso se torne embaraçoso. Trata-se de fato de um silêncio tão eloqüente na sua simplicidade que é um critério de proximidade entre duas pessoas. Jesus deseja que também diante d'Ele saibamos guardar silêncio, que simplesmente O contemplemos para estar com Ele sem palavras inúteis. Pode acontecer que a oração de silêncio nos torne demasiado difícil. Nessa altura podemos adotar uma outra forma de oração: a oração do gesto. Podemos rezar com um simples sorriso, mesmo que à primeira vista nos
pareça algo estranho. Deus quer verdadeiramente que o nosso contato com Ele seja extremamente simples, como o de uma criança com seu pai ou com sua mãe. Quando se ama alguém é tão fácil estreitar uma relação com um sorriso e dizer, por meio dele, tanta coisa! Então, por que não sorrir a Deus e à Virgem Maria? C) sorriso, esse gesto simbólico com o qual podemos exprimir a alguém a nossa proximidade, a gratidão, o amor e a alegria, é uma espécie de símbolo que pode significar uma enormidade de coisas. De fato, o sorriso pode, em cada momento, ter um significado diferente. Você não tem, pois, de se esforçar para exprimir tudo por palavras. Deus sabe que Lhe sorri e sabe porque o faz. O seu sorriso diante de Deus e a alegria proveniente da fé são uma oração por excelência. Santa Teresinha de Lisieux mostra-nos ainda uma outra forma comovente de oração do gesto simbólico. Cerca de duas semanas antes da sua morte, estando já gravemente doente, ofereceram-lhe uma bela rosa do jardim do convento. Ela começou a tirar-lhe as pétalas uma por uma e com elas foi cobrindo o seu crucifixo cheia de piedade e de amor. Depois começou a limpar delicadamente as chagas das mãos e dos pés transpassados de Jesus. Com aquele seu gesto simbólico, confidenciou ela, desejar aliviar os sofrimentos do Senhor crucificado, enxugar-lhe as lágrimas dos olhos (cf. Caderno Amarelo da Madre Inês 14.IX. 1897). "Noutra altura", relata Celina, "vendo-a tocar docemente a coroa de espinhos e os cravos do seu Jesus com a ponta dos dedos, disse-lhe: ‘Que fazes?’ Então, com um ar um pouco surpreendido da minha admiração, confessou: 'ArrancoLhe os cravos e tiro-Lhe a Sua coroa de espinhos'"
(Conselhos e Lembranças, 88). Nada poderia substituir semelhante gesto. Aquela oração exprimia o seu desejo de aliviar os sofrimentos de Jesus crucificado. Era a expressão de um particular amor para com Aquele que, crucificado pelos pecados, era o Esposo da sua alma. São Leopoldo Mandic de Pádua, grande confessor do seu tempo que passava diariamente horas a fio no confessionário, orava com o gesto das mãos vazias. Quando confessava tinha, sob os olhos, as mãos vazias, pousadas nos joelhos, querendo com aquele gesto dizer a Jesus: "Vê bem, Senhor, que não estou à altura de ajudar esta pessoa aqui ajoelhada. Nada lhe posso dar, enche as minhas mãos com a Sua graça." Obviamente que se tivesse resolvido repetir constantemente aquelas palavras a Jesus, teria acabado por renunciar ao esforço. Além disso, lhe seria impossível elevar ao Senhor uma súplica oral e simultaneamente escutar as confissões. Você pode também rezar, em diversas ocasiões, com esta atitude do pobre de coração, pondo as mãos nessa posição, com a consciência de que é um gesto de permanente súplica a Jesus, para que encha com a Sua graça as suas mãos vazias e se converta num instrumento da Sua ação.
A oração do homem pobre Existe uma estreita ligação entre a fé e a oração, bem como entre humildade e oração. Alguém disse que se aprende melhor a rezar precisamente a partir do momento em que se descobre que não se é capaz de o fazê-lo. E exatamente o contrário do que nos possa
parecer. Na verdade, quando é muito difícil rezar e quando você quer e não consegues fazer oração, você está a receber de Deus uma oportunidade excepcional para aprender. O segredo da oração consiste na fome de Deus. Fome que nasce em nós muito mais profundamente que ao nível dos nossos sentimentos e das palavras. Uma pessoa cuja memória e imaginação estão assaltadas por um sem número de pensamentos e de imagens inúteis e até nocivas pode, por vezes, sob essa pressão, rezar muito melhor com o seu coração atormentado, do que aquele cuja mente se deleita com claras noções e fáceis atos de amor. Trata-se de experiências que nos fazem nascer no coração a chamada oração do homem pobre. Na oração deveríamos mantermo-nos como pobres, e sem nada, e se não soubermos rezar, será o próprio Espírito Santo a descer à nossa pobre alma para rezar em nós com "gemidos inefáveis" (Rom 8,26). Você pode vir a experimentar diversas dificuldades durante a oração, mas não se esqueça de que elas são precisamente que farão da sua prece a oração de um homem pobre. Deveria, pois, dar graças por experimentálas. Estas dificuldades podem ser de diferentes tipos e uma delas pode, por exemplo, ser o cansaço. Santa Teresinha do Menino Jesus escreveu: "Devia estar desolada por adormecer (desde há sete anos) durante as minhas orações e as minhas ações de graças mas não, não me sinto desolada. Penso que as criancinhas agradam aos seus pais tanto quando dormem como quando estão acordadas. (...) O Senhor vê a nossa fragilidade. Ele recorda-Se de que nós não passamos de pó" {Manuscritos Autobiográficos). Portanto, o cansaço pode se tornar essa matéria por meio da qual Deus modela em você a oração
do homem pobre, do homem pobre de espírito. Talvez você possa também tirar proveito de situações similares que converterão a sua oração na oração dum pobre. Se a oração irrompe em você facilmente é também um dom de Deus que não pode ser desprezado. No entanto, o desenvolvimento apropriado da oração realizase num processo que comporta, por um lado, o esforço que empreendemos para ir ao encontro de Deus, que é uma expressão do seu anseio de Deus, anseio este que por sua vez, é a própria essência da oração — epor outro lado, o desejo de entrar em contato com Ele, de se abrir a Ele e de permitir que Ele, Deus, o Espírito Santo, reze em você. E este desejo que, na oração, é o fator essencial; que importância podem, pois, ter os resultados? Importante é que você deseje, que tenha grande vontade de rezar. Quanto maior for a ânsia de Deus, tanto melhor. Então, por meio da oração você deve empreender a sua própria caminhada para Deus e é preciso que ame este modo de se aproximar d'Ele. Deus aceitará todos os seus desejos mesmo que a você pareçam sem grande valor. Ele ama as oferendas pobres não querendo as flores mais belas, mas preferindo as florinhas silvestres, as mais pequenininhas, as insignificantes, porque não alimentam o nosso orgulho. Alguém disse que, entre todos os presentes, Deus prefere os pobres, aqueles que, no homem, não fomentam o orgulho. E também disto que se trata na oração. Deus acolhe todos os seus dons mesmo que tenham menos valor do que um punhado de areia. A sua oração pode não ser mais preciosa do que esse punhado de areia e, no entanto, ter um valor inestimável só porque Ele, o Senhor, o Pai que o ama, a acolhe. Ele a acolhe com enorme alegria, tal como uma mãe recebe
uma simples florzinha do seu filho, porque não é o presente em si que conta, mas o gesto. Durante a oração pode acontecer também que lhe pareça nada ter para oferecer ao Senhor. Se não tem nada para Lhe oferecer, oferece-Lhe o seu "nada", a sua total impotência. Ofereça sempre tudo ao Senhor, se ponha à Sua disposição assim como és: pequeno, fraco e pobre de espírito. A oração assim feita será a melhor porque estará de acordo com a primeira Bemaventurança. A oração do homem pobre é a oração de um homem que se encontra vazio, vazio no sentido de que clama pela vinda do Senhor, pela descida do Espírito Santo. Quando Deus vê uma alma assim, despojada das suas próprias forças, então desce a ela com o Seu poder. Bem-aventurados os pobres de espírito, bem-aventurados aqueles que rezam com a oração do homem pobre.
O Rosário da Virgem Maria No primeiro dia do ano, na solenidade da Santíssima Virgem Maria, na basílica de São Pedro em Roma, João Paulo II rezava nestes termos: "Salve, ó Maria, tu que acreditaste, salve. De ti o evangelista diz: 'Maria conservava e meditava todas estas coisas no coração'. Tu és a memória da Igreja e a Igreja aprende de ti, ó Maria, que ser Mãe significa ser uma memória viva, quer dizer, guardar e meditar no coração os acontecimentos gozosos, dolorosos e gloriosos. Os acontecimentos de seu Filho e os seus, Maria guardava-os na memória, conservava-os e meditava-os no seu coração. Ela era memória na Igreja
primitiva e permaneceu memória por todos os séculos da história da Igreja". Segundo as palavras do Santo Padre, Maria é a memória da Igreja. Na sua vida houve a Anunciação, a Apresentação de Jesus no Templo, o reencontro de Jesus quando era um adolescente de doze anos. Se o Evangelho diz que ela guardava e meditava tudo no seu coração, isso significa que Ela rezava com aqueles acontecimentos. Era como se rezasse o seu rosário, sem desfiar as contas, mas voltando em memória a tudo o que tinha sido importante na vida do Filho e na sua própria vida. Não era possível que Maria alguma vez pudesse esquecer o primeiro de todos aqueles acontecimentos tão importantes na sua vida, a Anunciação. Ela revivia quer os acontecimentos jubilosos, quer os outros ligados à Paixão e à Ressurreição de seu Filho. Era essa a sua oração. Se você reza o Rosário, reza com a oração de Maria, você se torna como que imagem da Mãe de Deus, porque a imita no guardar e no meditar os mistérios do Filho e da Mãe. Ela é a Memória da Igreja, a memória de cada um de nós que guarda aqueles acontecimentos. Cada um daqueles acontecimentos deve ser para nós algo vivo. Ao meditá-los você entra em contato com esses mistérios que, assim, se convertem em canal de graça para você. Amar o Rosário significa amar o Evangelho, significa também amar Maria e todas as coisas que ela conservava e meditava no seu coração, as coisas que formavam o conteúdo da sua vida.
O homem de oração contínua
Um homem excepcional de oração foi Guy de Larigaudie. Parecia que Deus nada lhe tinha recusado: grande explorador de continentes, foi o primeiro a percorrer, em automóvel, o trajeto França-Indochina; foi dirigente de um movimento francês para a juventude. Era alguém que, por amar a Deus de todo o coração, pode, amar plenamente o próximo e o mundo. Por baixo de uma fotografia sua havia uma eloqüente inscrição: "Santidade sorridente". A sua religiosidade caracterizava-se antes de mais por uma oração, cheia de fé, de afirmação pelo mundo criado por Deus, e de admiração pela sua beleza. É que, se se ama Deus ama-se também o mundo. Entre as suas anotações encontramos esta: "E preciso amar tudo: o desabrochar espontâneo da orquídea na selva, a beleza de um corcel, o gesto da criança, a finura de humor ou um sorriso de mulher. E preciso, ao passar, admirar toda a beleza, descobri-la mesmo que manchada pela lama e elevá-la até Deus" (Etoile au grand largé). Naturalmente que tudo isto não significa que na sua vida não tivessem existido lutas e sacrifícios, que a sua fé não tenha sido submetida a provas de fé que não tenha tido que tomar decisões corajosas, porque a santidade não é fácil. "Sentir dentro de si toda a lama, toda a luxúria e a efervescência dos instintos humanos e, todavia manter-se acima deles sem se enterrar, como se caminhasse na superfície de um pântano enxuto, deixando-se, ao mesmo tempo, envolver por transportes de um regozijo de todo o ser, pois que o pé não penetra. Permanecer no amor de Deus como na pureza da manhã; sobre a vastidão do pântano sem que o corpo resvale no lodaçal" (ibidem).
"Era seguramente uma mestiça. Tinha uns ombros magníficos e aquele tipo de beleza selvagem de sangues misturados, de lábios carnudos e olhos imensos. Era bela, de uma beleza selvagem. Na realidade só havia uma coisa a fazer. Mas não a fiz", confessa G. de Lariguaudie. "Montei a cavalo e num desenfreado galope afasteime sem sequer me voltar, chorando de desespero e de raiva. Creio que no dia do julgamento final, se nada mais tiver a apresentar, poderei oferecer a Deus como que num ramalhete, todos esses amplexos que por Seu amor não quis conhecer" (ibidem). A pureza é possível se for construída sob o alicerce da oração. "Ela é possível, bela e enriquecedora quando se apóia numa base positiva: o amor de Deus, vivo, total, o único capaz de preencher a enorme necessidade de amor que invade o coração do homem", diz G. de Larigaudie (ibidem). Guy de Larigaudie amava o risco, a dança e o canto. Era um excelente nadador e esquiador. Colhia todas as alegrias da vida mas, no decurso de tudo aquilo que experimentava e que vivia, fluía o ritmo do seu diálogo ininterrupto com Deus impregnado de fé. "Aquelas belas estrangeiras não podiam compreender", confessa ele, "que mesmo ao som das músicas de dança mais envolventes, o meu coração pudesse pulsar na cadência de uma oração bem mais forte do que o encanto e do que os atrativos delas" (ibidem). Na sua oração pela beleza, pedia: "Meu Deus, fazei que as nossas irmãs sejam harmoniosas de corpo, sorridentes e que se vistam com gosto. Faz com que sejam sãs e que a sua alma seja transparente. Que elas sejam a pureza e a graça das
nossas vidas rudes. Que elas sejam conosco, simples, maternais, sem falsidade nem coqueterias. Fazei que nenhum mal se infiltre entre nós e que, rapazes e moças, sejamos uma fonte recíproca, não de pecado, mas de enriquecimento. De Taiti a Hollywood", continua ele, "nas praias de coral ou nas pontes dos paquetes, tive nos meus braços, ao ritmo de uma dança, as mais belas mulheres do mundo. Não pretendi colher qualquer dessas flores oferecidas ou apaixonantes de conquistar. Renunciava não por razoes humanas; foi única e exclusivamente por amor a Deus que, reprimindo o meu corpo, manifestei indiferença" (ibidem). Falando sobre a Eucaristia dizia: "A Comunhão diária foi para mim, em cada manhã, o banho de água viva que fortalece e distende os músculos, a refeição substancial antes do início da etapa, o olhar de ternura que dá audácia e confiança. (...) Passeei pelo mundo como num jardim circundado de muros; lancei-me em busca de aventura nos cinco continentes (...), e, no entanto, os muros do jardim não fizeram mais do que recuar e eu permaneci sempre encarcerado. Mas há de chegar o dia em que poderei cantar o meu cântico de amor e de alegria. Todas as barreiras cairão por terra e eu possuirei o Infinito" (ibidem). Como era a oração de fé deste santo dos nossos tempos? "Ao assistir à peça teatral mais insípida, ao filme mais pungente, é possível rezar desfiando dentro de si, ao ritmo das imagens ou da música, orações maquinais. Umas pelos atores, pelo realizador ou pelos figurantes, outras pelo público que se diverte ou se aborrece, pelo vizinho da esquerda ou pela vizinha da direita. O tempo
assim passado não terá sido inútil" (ibidem). Ele encontra para si, na oração, a força nos momentos difíceis que exigem de forma particular a fidelidade ao Senhor. "Há horas pesadas, nas quais a tentação do mal vos agarra com tanta força, tão irresistivelmente, por todo o corpo que nada mais se pode do que sussurrar maquinalmente e quase já sem o crer: 'Senhor, apesar de tudo, amo-vos, mas peço-vos: tende piedade de mim'. Há certas tardes, nas quais sentado ao fundo de uma igreja incapaz de rezar (...) não se pode mais do que repetir aquela pobre frase, à qual nos agarramos qual náufrago à tábua de salvação: 'Meu Deus, mesmo assim, amo-vos!'" (ibidem). "Ceifando a golpes de chicote a cabeça das cenouras bravias, mascando um talo de erva, fazendo a barba pela manhã, podemos repetir sem cessar a Deus, muito simplesmente, que O amamos muito (...), contar a si próprio, por entre um canto, toda a sua vida passada e os sonhos para os dias vindouros e desse modo falar ao seu Deus, a cantar. E, falar-lhe ainda a dançar de alegria em pleno Sol, na praia ou deslizando nos esquis pela neve. Ter sempre junto de si Deus, como um companheiro a quem nos confiamos. (...) De tal modo me acostumei à presença de Deus em mim", continua G. de Lariguaudie, "que no fundo do meu coração há sempre uma oração que me aflora aos lábios. Esta oração, quase inconsciente, não termina nunca, nem mesmo na sonolência do rodar de um comboio sobre os carris ou no roncar de uma hélice, nem mesmo nos momentos de exaltação do corpo ou da alma, mesmo na agitação da cidade ou na tensão de espírito de uma ocupação absorvente. Existem, no fundo de mim mesmo, umas águas infinitamente calmas e transparentes que não podem ser atingidas nem pelas sombras nem
pelos remoinhos da superfície. (...) Toda a minha vida não foi mais do que uma longa procura de Deus. Por todo o lado, a toda a hora, em toda a parte do mundo, busquei as Suas pegadas e a Sua presença. A morte, para mim, será unicamente o maravilhoso desprender do grilhão que me acorrenta" (ibidem). A morte marcará para ele o fim dessa maravilhosa e embriagante aventura, a chegada à plenitude a que desde sempre aspirou.
CAPÍTULO 6
O AMOR ENQUANTO ATUALIZAÇÃO DA FÉ Num momento precedente à Sua Ascenção, Cristo assegurou-nos que estaria conosco todos os dias até ao fim dos tempos {Mt 28,20). E está, não só na Igreja, não apenas na Eucaristia que atualiza a Sua obra salvífica, mas também está presente no nosso próximo, com o qual Ele Se quis identificar: "Todas as vezes que fizerdes algo a um destes pequeninos a Mim o fizestes" {Mt 25,40). Graças à presença do próximo na nossa vida, o cotidiano converte-se num desafio à nossa fé, pois é ela que nos
permite olhar o mundo, com os olhos de Cristo, e descortinar a presença de Deus oculta na outra pessoa. A fé "atua pelo amor" (Gal 5,6) e no amor encontra a sua plena vida e convida à convivência, à "comunhão" com Deus e com os irmãos. Deus revela-nos o Seu amor "ágape" — que nós recebemos pela fé, para em seguida o transbordarmos aos outros. Dizia João Paulo II que, no amor, o abandono de nós próprios a Deus adquire o seu justo caráter e a dimensão de dom recíproco.
Ágape Há duas espécies fundamentais de laços entre os homens e, conseqüentemente, dois conceitos de amor. O primeiro conceito, que remonta à Antigüidade, transmitido por Platão, definiu o amor com a palavra "Eros". O segundo conceito, tal como o apresenta o Cristianismo, é o amor definido ainda em grego pela palavra "ágape". Existem, pois, “Eros” e “ágape” dois tipos de amor que estão na base de dois gêneros de laços diferentes que possam sobrevir entre os homens. "Eros", em Platão é o afeto que deseja o que é digno de ser amado. Trata-se de um amor emocional. Se alguém ou alguma coisa corresponde às suas expectativas, por exemplo, pelo seu aspecto belo e estético, se sente prazer na companhia de alguém ou em qualquer coisa, ou se lhe agrada possuir determinada coisa, tudo isso procede unicamente dos seus sentimentos puramente naturais e é o 'eros' platônico. Ama algo que lhe proporciona satisfação, que o faz sentir-se bem. Esse amor é egocêntrico porque sempre se trata de você, do seu prazer.
Este amor, apesar das suas falhas e das suas limitações, apesar do seu caráter interesseiro e da sua fugacidade, não deve ser condenado nem destruído. Pertence à ordem natural das coisas procedentes de Deus embora tenha sido manchado pelo pecado original. E necessário purificá-lo e transformá-lo em amor sobrenatural, aquele amor tão essencialmente ligado à vida da graça e que, segundo o próprio Evangelho e o pensamento de São Paulo, constitui o reflexo da caridade do próprio Deus. E o que indica o célebre texto de São Paulo na sua Carta aos Coríntios: "O amor é paciente, é serviçal... (...) não procura o seu interesse, não se irrita não guarda rancor... (...) tudo desculpa, tudo crê, tudo espera (ICor 13,4-7). Um tal amor, na língua original grega, designa-se pelo termo "ágape". Segundo o conceito cristão, Deus é "ágape"— Ele é o amor que desce até ao homem e ama o que não merece ser amado. E um amor espontâneo que se dá porque é amor. "Agape" é o amor desinteressado que invade o homem. Por vezes pode parecer-nos que é preciso agradar a Deus, que o Seu amor deve ser merecido. No entanto Ele o ama porque você é o Seu filho e não pelo seu valor. "Agape" é um amor criador, um Amor que ama, não porque você seja digno de ser amado, mas unicamente para que o venha a ser. "Ágape" deseja criar em você o bem, um bem cada vez maior. Aquele que recebe de Deus graças excepcionais fica maravilhado porque o Senhor lhas quis conceder. Mas isso só acontece porque o amor-ágape desce sobre os indignos, inclina-se sobre todos nós que somos indignos e temos necessidade deste amor criador que produz o bem. Deus é caridade e o Seu drama consiste em não poder derramar plenamente o Seu amor,
em não poder inundar a alma humana que Ele ama desmedidamente. E Deus procura sempre corações abertos em que possa, sem medida, derramar esse Seu infinito amor. Para uma mãe que ama o seu filho, por mais feio que este seja, será sempre o mais bonito porque é seu filho. Pouco importa quantos defeitos você tenha, é possível até que sejam muitos e que até você se sinta esmagado sob esse peso a ponto de não agüentar mais. Mesmo assim, Deus quer envolver-se no Seu Amor, quer criá-lo dentro de você, quer descer para fazer de você, pecador e indigno, uma obra-prima do Seu Amor. O amor-ágape que das alturas, de Deus, desce até você e que você recebe pela fé, não pode ficar encerrado em você. O amor, sendo um bem, deve transbordar, tem de se transmitir. "Ágape" é Cristo que vive em você e que, por você e em você, quer amar os outros. O homem dotado do amor- ágape, da caridade desinteressada, começa ele próprio a amar ou, mais precisamente, é Cristo presente nele que começa a amar os outros. "Ágape" é um amor, não emocional, mas proveniente da ardorosa vontade de levar o bem aos outros. Assim, os laços inter-humanos criados por Ele são tão fortes que perduram para além da morte. Pouco importa como possa ser esse outro, feio ou bonito, amável ou simpático, cheio de defeitos e de pecados ou sem eles. O que importa é que o Amor quer amá-lo, para que se possa ir tornando melhor. Este amor "ágape" cresce em você, como resultado da descida de Cristo ao seu coração, e manifesta-se com freqüência em pequenos pormenores como num simples gesto ou num olhar. E muito
importante que você reparta esse amor com o calor do seu olhar, na aceitação, no apreço e no acolhimento constante e afetuoso do seu próximo.
O papel dos sentimentos "Ágape" não é só um amor criativo, é também um amor que instaura a comunhão, cria comunidade entre as pessoas. O contato entre pessoas é, normalmente, uma questão de sentimento. São três as variantes principais nas relações emocionais interpessoais. A primeira exprime-se nas relações que são norteadas por afetos positivos, por exemplo, quando alguém próximo se harmoniza com você, lhe agrada e, por esse motivo, você quer estar na sua companhia. Trata-se de um gênero de sentimentos positivos que podemos experimentar, quer nos contatos com Deus, quer com as pessoas. Assim sucede, quando, por exemplo, você se sente bem com Deus. Acontece, por vezes, alguém experimentar literalmente uma alegria esfuziante no contato com Deus, podendo isso perdurar algumas horas, alguns dias ou até meses. A alma pode ser inundada por sentimentos positivos. Na segunda variante, os sentimentos positivos podem desaparecer, criando-se uma espécie de vazio emocional, quando você nada sente, quando nada o atrai para tal pessoa. Isto pode suceder de repente ou como resultado de um processo que se vai intensificando com o tempo. Do ponto de vista da psicologia pode se falar de uma certa desintegração emocional. Existe, por fim, uma terceira variante, a mais difícil, onde surgem as emoções negativas. O sentimento de aversão pode manifestar-se tanto na relação com outra pessoa como nos contatos
com as coisas de Deus. E algo que aparece freqüentemente durante os períodos de purificação. Pode acontecer que você sinta rejeição por estar na Igreja, pela confissão ou pela Comunhão, você pode se confrontar com dificuldades no contato com Deus na oração. De igual modo os sentimentos negativos podem aparecer nas relações com os outros. A certa altura alguém chegado e amigo começa simplesmente a lhe causar irritação e se torna repulsivo para você. Os laços humanos baseados nos afetos positivos são laços naturais. Este gênero de sentimentos e de ligações podem formar-se em qualquer grupo humano, mesmo num bando de delinqüentes. Pode tratar-se, por exemplo, de um grupo que se une solidariamente para lograr os seus fins. Encontramos, freqüentemente, pessoas que mantêm entre si um entendimento perfeito, ao nível dos laços naturais; a razão da sua harmonia está na comunidade de interesses. Contudo, os sentimentos positivos naturais são muito instáveis. Podem, por exemplo, aparecer no início do matrimônio e depois dissiparem-se. Que se passa quando se desvanecem por completo? Surge a crise motivada por um vazio emocional crescente, difícil de suportar. Na relação com Deus manifesta-se numa certa aridez: não sinto nada no contato com Deus, não há nada que me atraia à oração, nem à confissão, nem à Eucaristia. O mesmo tipo de crise se desencadeia, quando se desvanecem os afetos que você dedicava a outra pessoa, quando de repente algo deixa de atraí-lo naquele que antes lhe era muito chegado. Nasce então uma certo vazio emocional no relacionamento com os amigos e os conhecidos.
Finalmente, na terceira situação, a mais difícil, aparece o afastamento emocional para as coisas de Deus, ou o afastamento em relação a alguém. Nesse caso, por vezes, é necessário heroísmo para se vencer a si próprio. Mas é justamente então, quando deixam de existir as ligações naturais ou quando, de certo modo, se quebram ou afrouxam, que aparece a oportunidade para se estabelecerem ou aprofundarem os laços sobrenaturais. No matrimônio pode dar-se a situação em que os esposos se harmonizam perfeitamente, que se assemelham a duas metades de um todo que, juntando-se, aderem completamente. Do ponto de vista da fé isso não é o ideal. Trata-se, com efeito, apenas de uma harmonia de sentimentos positivos, puramente natural. Não é ainda aquele amor cristão elaborado, o amor ágape. O mesmo sucede também na família, com os filhos. Não é indispensável que estejam numa concordância perfeita uns com os outros, que não haja problemas entre eles. E mais necessário que procurem amar-se apesar dos seus defeitos e das suas disparidades e não que estejam idealmente de acordo e estejam sempre de harmonia entre si.
A crise dos laços naturais Não há comunidade, quer se trate da conjugal, quer simplesmente da comunidade de amigos ou de qualquer outro grupo, que tenha grandes hipóteses de sobreviver se se basear exclusivamente num vínculo natural: mais tarde ou mais cedo acabará por se desintegrar ou, então, há de passar a um superior nível de existência. Do ponto de vista da fé podemos até dizer que, quando na nossa
vida se manifestam crises dessa natureza é sempre um bem. E bom quando subitamente uma pessoa se nos torna menos simpática, menos agradável, já que disso decorre uma extraordinária oportunidade. E que, justamente, nessa altura, o chamado de Cristo para colocar em prática o Evangelho, torna-se de particular atualidade. O mesmo sucedendo na relação com Deus, no caso concreto das purificações, por vezes até violentas, quando você não se sente nada unido a Ele, quando parece não O amar de iodo, quando sente que alguma coisa o afasta para longe de Deus mas, apesar de tudo, você se esforça por Lhe continuar fiel. Como é, então, valiosa, a Reconciliação sempre que não sente vontade de a fazer, quão preciosa a Eucaristia quando a ela nada o atrai mas, mesmo assim, você vai porque sabe que Ele, Cristo o ama, está lá e espera por você! A sua oblação aumenta na medida em que os laços naturais falhem porque o seu esforço é maior. Ainda bem que entre nós se desencadeiam crises; que surjam, por vezes, no matrimônio os mal-entendidos; que as crianças, desentendidas, às vezes, briguem, pois é, desse modo, que se abre uma ruptura, uma fenda que há de tornar viável o nascimento e a fundamentação do vínculo e do amor sobrenatural. Amor este que é obra de Cristo e cujo crescimento garante a sua mesma perenidade. Somente um tal amor é forte, forte em Cristo, em Deus. O matrimônio assim firmado em Deus é aquele que, tendo passado por essa espécie de desagregação, acabou por se saber reintegrar a um nível superior. Abençoado aquele que, na sua relação com Deus, tenha experimentado tais momentos difíceis, sem O atraiçoar e permanecendo sempre fiel, pois foi então que verdadeiramente o seu amor lançou raízes.
Em tudo isso há uma grande esperança, sobretudo para os que se afligem ao ver como a vida é, por vezes, tão dura. O nosso próximo, esse outro, muitas vezes não é fácil, parece por vezes fazer tudo para que nos afastemos dele, para nos repelir. Mas, é precisamente então que, para nós, esse próximo constitui uma graça especial, já que traz consigo o chamamento à superação dos laços naturais e para se elevar aos laços sobrenaturais: ao ágape. Do ponto de vista da fé, as pessoas que menos nos agradam são, até as mais preciosas, para nós, porque criam melhores oportunidades para uma polarização das nossas atitudes, permitindo-nos ver que amar não eqüivale a gostar.
Permitir que Cristo ame em nós A especificidade do amor cristão é o cristocentrismo, no duplo sentido da palavra. Em primeiro lugar, Cristo é o único e o supremo modelo do amor. Você deve amar como Ele. "Dou-vos um mandamento novo: "Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei' (Jo 13,34). Toda via, para que você possa amar como Cristo, deves primeiro, pela fé, descobrir o Seu Rosto desvendado na palavra revelada. O conhecimento teórico da pessoa de Cristo não basta. Será, com efeito, o crescimento da fé a fazer aumentar em você o amor porque se fortalecerão os vínculos existenciais com o ideal personificado do amor que é Jesus Cristo. Por meio da fé, que lhe permite se por à escuta do Verbo revelado e assim O conhecer e se ligar a Ele, conhecerá Aquele que é o modelo perfeito do amor e desejará amar
como Ele amou: até às últimas conseqüências. Pela fé, você irá assimilando o Seu pensamento e os Seus desejos, aprenderá a pensar como Ele, a desejar o que Ele deseja e a amar como Ele ama. Em segundo lugar o amor cristão é o amor de Cristo em nós. Ele é o nosso Caminho, a nossa Verdade e a nossa Vida. Ele pensa, reza, vive em nós e em nós ama com o Seu amor. Do seu grau de fé, dessa fé que lhe permite participar na vida de Deus, depende o nível do seu amor. A imitação de Cristo não consiste na imitação superficial das Suas ações exteriores, mas na adesão a Ele, pela fé, de maneira que a Sua vontade se torne também a nossa e que a Sua vida, em nós, possa transparecer continuamente na nossa maneira de viver. Abandonar-se a Cristo mediante a fé é acolher o Seu amor que desce até nós, é permitir-Lhe que nos ame e que possa, em nós e por meio de nós, amar os outros com o Seu amor. A fé possibilita a união a Cristo, permite o abandono e a entrega a Ele, para que essa mesma fé se venha a fundir, como num todo, na confiança e no amor. Com efeito, a fé que penetra a totalidade da existência cristã contém em si, a esperança e o amor como duas formas da sua realização. Amar alguém por quem sentimos aversão não é coisa fácil. Por isso devemos abrir-nos a Cristo e, perante a onda esmagadora de sentimentos negativos, sentirmonos qual criança desamparada e impotente. Em nós tem que aparecer a atitude de infância, de criança impotente perante tudo o que diz respeito a Deus e aos homens, ao nosso ambiente e à realidade que nos rodeia. Só este tipo de atitude exprime uma fé total na intervenção de Jesus,
no fato de que será Ele que virá e, por nosso intermédio, amará mesmo aqueles que não nos são simpáticos. Somente uma tal atitude nos permite que passemos ao amor-ágape. Realmente, nas situações em que nascem e crescem as emoções negativas, ou cm que pelo menos desaparecem os sentimentos positivos, só Cristo c capaz de amar em nós. Pela nossa vontade e graças a Ele, deveríamos atingir a liberdade em relação às sensibilidades ou, no mínimo, tendermos a uma tal libertação. A presença de Cristo em nós traz-nos a conversão, liberta-nos, cumula-nos de graças e, desse modo, dá-nos também a liberdade. Mas essa presença realiza-se apenas na medida em que somos humildes, isto é, na medida em que formos pequenos e desamparados porque só assim estaremos em condições de acolher, pela fé, o amor de Jesus. Encaradas nessa perspectiva, as dificuldades que surgem na nossa vida no relacionamento com os outros tornam-se oportunidade para nos abrirmos às graças e ao amor de Jesus que, reparando quanto somos impotentes face às nossas emoções e vendo que tudo esperamos d'Ele, se inclina até nós como ágape de Deus. Descendo ao seu coração, Cristo quer amar, quer dar-Se aos outros e desejar o seu bem, quer amar cada vez mais e desejar-lhe o maior bem possível, o que à luz da fé significa desejar a sua santidade. Se ama alguém preocupando-se exclusivamente com o seu bem-estar material e temporal, você deve cair na conta de que realmente lhe falta o amor autêntico. Não basta o cuidado das coisas terrenas da instrução, da saúde e da existência material. Só chegará a amar verdadeiramente quando
você próprio desejar a santidade e também quiser comunicar esse desejo aos outros.
Não se pode amar o homem sem amar a Deus A verdade que é Cristo em nós a amar o nosso próximo, leva-nos a concluir que não se pode amar o homem sem a Deus amar. Por você mesmo é, de fato, incapaz de amar. É Cristo que ama em você. Se ama Cristo e se disponibiliza para Ele, abrindo o coração à descida do divino ágape, permite-Lhe que o ame e que ame os outros por meio de você. O que o permite amar o próximo é a sua abertura à vinda de (Insto, concretizada quer nos sacramentos quer na oração. Na medida cm que acolher Cristo e se deixar envolver por Ele é que O poderá transmitir aos outros. Amar o próximo é dar-lhe Cristo. Mas, não se pode partilhar o que não se possui. Quanto mais ama a Deus, e nesse amor O acolhe permitindo-Lhe viver e agir em você, tanto maior será a sua capacidade de amar os outros. Amar significa dar-se e transmitir o bem aos outros. Não basta, no entanto, prodigalizar bens materiais. A luz da fé os bens espirituais são os mais importantes. Se não o transmite aos que lhe são queridos praticas um verdadeiro "roubo" espiritual, causas um "prejuízo" espiritual. E que, na verdade, os outros têm direito a esses bens. Aqueles que vivem ao seu redor têm direito a que, crescendo você na graça santificante e na aspiração à santidade, se converta para eles num canal puro da graça.
O seu crescimento em santidade torna-se, à luz da fé, o dom mais precioso para os que lhe são próximos. Você deve pôr em questão o seu amor, deve se ver em verdade e se perguntar se ama verdadeiramente. Decerto que está plenamente convicto de que ama o seu filho porque não só lhe assegura os bens materiais como, mas também reza por ele. Todavia, o valor e a eficácia da sua oração não dependem dos sentimentos, mas sim do grau de graça santificante, da intensidade da sua fé e do seu amor a Deus. Se não existe, em você, vida interior nem crescimento da fé e do amor de Deus, você se torna para os que o rodeiam um "ladrão" em sentido espiritual. Uma mãe que seja uma cristã "tíbia" e não tenha aderido ainda, pela Fé, Cristo, deveria tomar consciência de que, pelo fato de não amar verdadeiramente Cristo, não pode amar completamente o seu filho. Se, na realidade, não recebe a Sagrada Comunhão, priva de graças também o seu filho que para ela é um tesouro. Inconscientemente, rouba a essa criança as graças que desceriam sobre ela por meio das suas comunhões. E que de fato, em virtude do sistema de vasos comunicantes, isto é, da nossa íntima união no Corpo Místico de Cristo, cada participação na Eucaristia, cada recepção do Sacramento da Reconciliação, a recepção dos outros sacramentos e cada oração são sempre simultaneamente um bem partilhado com os outros. Você ama o seu marido, o seu filho, a sua filha, os seus pais, as pessoas mais chegadas ou mais afastadas, na medida em que você mesmo se converta a Deus, aspira santidade e consinta em 'não ser já você a viver, mas Cristo a viver em você'. Ele, que é o único Amor e o único Bem, deseja nos amar sem limites e procura incessantemente almas
nas quais possa transbordar a imensidade do Seu amor. Não se pode amar o homem sem amar a Deus. Na realidade, só os santos amam verdadeiramente os outros homens, porque se abriram totalmente a Cristo e, neles, Cristo pode plenamente viver e amar.
A auto-realização em Cristo A psicologia fala do "eu" ideal e do "eu" real. Cada um de nós tem uma certa visão de como quereria ser e do tipo de imagem e parecença com alguém que quereria ver realizada em si. Esses desejos refletem o "eu" ideal. O "eu" real, por outro lado, pode ser por vezes tão desagradável que alguns se ressentem consigo mesmos ou se irritam contra o seu "eu" real. Essa não é uma atitude correta. Demonstra, sem dúvida, que o homem não quer ser como é, que tem o seu "eu" que idealizou e que prefere ser alguém diferente daquilo que é. Se, pela fé, você se abrir a Cristo, Ele torna-Se o seu "caminho", a sua "verdade" e a sua "vida" (cf. Jo 14,6). Será, então, Ele mesmo a lhe mostrar o Seu "eu" ideal e ao mesmo tempo a realizá-lo. Será, assim, o próprio Cristo a dar cumprimento à sua auto-realização. No homem crente, a imagem do "eu" ideal aperfeiçoa-se sempre mais com a intensificação da vida interior, com o aprofundar da própria identificação com Cristo. O conhecimento sempre mais perfeito de Cristo e a adesão a Ele geram em nós o desejo de nos identificarmos com Ele. Deste modo, Ele se torna no nosso ideal pessoal,
o nosso "eu" ideal. O crescimento na fé e a graça fazem sobressair mais o seu "eu" ideal, pois Cristo lhe confere uma, sempre maior, luz sobrenatural e Se revela a você cada vez mais plenamente. Assim como estamos predestinados a ser a conformes à imagem do Seu Filho' (Rom 8,29), só Cristo pode ser o nosso verdadeiro ideal pessoal. Deste modo, à medida em que a imagem do seu "eu" pessoal se aproxima da imagem de Cristo, você se aproxima da verdade. Cristo torna-Se o seu caminho e verdade. E Ele próprio que fortalece a sua vontade para que possa formar o seu "eu" real a exemplo do seu "eu" ideal. (lada um de nós somente encontra a sua realização quando ama. Mi o me posso realizar senão graças àqueles que amo. Tal é a economia divina e assim é também a minha estrutura mental. Nenhum de nós se pode realizar sem referência a outra pessoa. Sem essa referência você nunca poderá ser plenamente você. Por vezes, na nossa relação com outrem, tudo corre pelo melhor e não vemos então nenhuma necessidade de heroísmo. Porém, o nosso próximo é capaz de nos colocar numa tal situação que, sem o heroísmo, apenas restaria negação do amor. Durante a II Guerra Mundial muitas pessoas se viram subitamente colocadas diante do apelo ao amor heróico: ou agride ou é vencido; ou abate ou é abatido. Tratavamse de situações excepcionais mas pode igualmente acontecer, em situações menos dramáticas, que Deus nos convide, também a nós, a um amor de alto preço. Seremos, então, convencidos de que não somos capazes de amar e será para nós nessa altura mais fácil compreender o sentido profundo das palavras de Cristo:
"Eu sou a videira, vós os ramos; quem está em Mim e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem Mim nada podeis fazer" (Jo 15,5), sem Cristo nada podemos fazer. Cristo é a nossa vida. Sem Ele somos como sarmentos cortados da videira que logo secam. O homem não pode realizar-se sem Cristo. A auto-realização de cada um de nós tem o seu cumprimento na medida em que nos abrimos a Cristo, na medida em que deixamos que Ele ame em nós, que viva em nós. Se você se abrisse totalmente a Cristo poderias também dizer como São Paulo: "Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim" (Gal 2,20). E Cristo tem mesmo este desejo extraordinário: quer amar cada um de nós com especial amor, quer ter tantos rostos quantos os homens sobre a terra. A Igreja ensina-nos que não há amor sem a Cruz: para poder amar o próximo, o meu "eu" tem de ser crucificado. Mas sem a graça, nunca serei capaz de o aceitar; só a graça me poderá tornar capaz disso. Ora, a ação da graça é tal que é o próprio Cristo que penetra o meu "quero", essa expressão humana da vontade: "quero amar, quero optar pelo bem". É Deus, com efeito, que produz em nós o "querer e o agir segundo o Seu beneplácito" (Fil 2,13). A nossa vontade, graças à qual podemos eleger o bem e o amor, é fraca. A vontade do homem é demasiado fraca para escolher o que lhe é difícil, o que exige a superação do seu egoísmo. Se alguém ainda não o experimentou, certamente chegará o dia em que se convencerá de que, na verdade, não sabe amar, que não
sabe morrer para si próprio. Ora, cada um de nós só é plenamente homem pelo amor. O amor é um ato da vontade, é o nosso desejo de dar aos outros o bem. Como sabemos, cada um de nós pode querer determinada coisa, por exemplo, num grau de cinco, setenta ou de cem por cento. Se o nosso desejo é o de realizarmos o amor a "dez por cento", isso é excessivamente pouco para estabelecer a harmonia entre as pessoas, para que possa cumprir-se o processo de integração das pessoas; é demasiado pouco para amar como Jesus amou. Porém, o meu "quero" pode ser, cada vez mais, fortalecido pela graça de Cristo de tal modo que eu comece a querer pôr em prática o mandamento de Cristo: "Assim como Eu vos amei, vós também vos deveis amar uns aos outros" (Jo 13,34); já não a "cinco por cento" mas a sessenta por cento ou mesmo mais. Deste modo se manifesta a vida de Cristo em nós. A descoberta de Cristo nos outros não diminui absolutamente em nada o valor do próximo. Ao amar Cristo amo ao mesmo tempo esse outro. E graças a Cristo que o outro me começa a fascinar porque se torna cada vez melhor e cada vez mais belo. Associando-se à vontade desse homem, Cristo faz com que ele deseje sempre cada vez mais o bem, que haja nele mais e mais o bem. E embora a graça acolhida pelo homem se torne um bem seu, é simultaneamente o bem de Cristo. Cristo insere-Se na nossa vida de modo tão perfeito que é Ele que, pelo meu amor, ama o meu próximo e eu amo no Seu amor. Trata-se de um fenômeno que não produz nem divisão, nem alienação, mas, pelo contrário, graças à presença de Cristo em mim, me faz amar e crescer no amor.
Se Cristo se torna o meu "eu" ideal, é a minha autorealização que se efetiva. Inversamente, quando peco, quando digo "não" a Cristo, despojo-me do meu "eu" e torno-me progressivamente menos eu próprio. O meu pecado e o meu coração fechado a Cristo alienam-me. Se me fecho a Cristo torno-me triste, deprimido, mau e, no entanto, não é assim que eu desejaria ser, esse não é o meu "eu" ideal. Cristo é que é o meu "eu" ideal: o seu, o meu, o de cada um de nós - eis porque Ele adota tantos rostos. Ao mesmo tempo, é Ele quem realiza este "eu" ideal em cada um de nós. E esta realidade maravilhosa é uma confirmação das palavras de Cristo: "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida". A nossa auto-realização encontra a sua concretização mediante a vida em verdade e pela resposta ao chamamento de Deus ao amor. Sem uma vida vivida em verdade não se pode sequer falar de amor no sentido sobrenatural. Esse amor, de fato, é o amor do próprio Cristo em nós. E Ele vive em nós, na medida em que, vendo-nos na verdade, isto é, reconhecendo a nossa fraqueza, nós O invocamos, na medida em que queiramos que seja Ele a nossa vida. Por si o homem tem uma inaptidão para o bem espiritual. Se bem que a Igreja não diga que a natureza humana esteja corrompida, pelo menos deveríamos estar conscientes de que por nós próprios somos incapazes do bem sobrenatural, não sabemos amar. Sós não somos capazes de responder ao apelo de Deus, para nós tão difícil, sobretudo no que se refere ao amor ao próximo que, por vezes, chega a exigir autêntico heroísmo. Durante o Seu diálogo com o jovem rico, Jesus disse: "Porque me chamas bom? Ninguém é
bom senão só Deus" (Mc 10,18). Todo o bem que há em nós vem de Deus. "Que tens tu que não hajas recebido?" (ICor 4,7). Devemos retornar constantemente a estas palavras, porque não se pode falar de auto-realização em Cristo se não se vive em verdade. Falando de Si próprio, Cristo diz: "Para isto nasci e para isto vim ao mundo, a fim de dar testemunho da Verdade" (Jo 18,37). Deus é particularmente sensível no que diz respeito à verdade. Se quisermos fazer antropomorfismo poderemos dizer que este é o Seu "ponto fraco". Se você deve se tornar semelhante a Cristo não pode haver em você mentira. Cristo identifica-Se com a verdade e é intransigente no tocante à falsidade e à soberba, no que toca à apropriação daquilo que Ele realiza em nós. Quanto mais nos atribuímos as graças de Deus, tanto maior é a nossa asneira. Para defender-nos desse erro Deus vê-Se obrigado a limitar as Suas graças. O fundamento da nossa auto-realização é a humildade. Se ela é tão importante é porque Deus está disposto a dar tudo àquele que não se apropria de nada. Se você vive na verdade e se reconhece que sem Cristo você nada pode é como se Lhe suplicasse: "Vem e vive em mim". E é só então que Cristo vem. Para não atribuir a si próprio a ação de Cristo, procure repetir muitas vezes no seu íntimo: "E graças a Ti, Senhor Jesus, que posso ser eu mesmo, é graças a Ti que o meu cônjuge é tão fascinante, é graças a Ti que as pessoas que encontro são tão boas". Essa será uma expressão de humildade. Tudo o que me atrai no outro
homem pertence a Cristo e simultaneamente a essa pessoa. Se pensarmos que alguém que nos fascina, devido ao bem sobrenatural que emana, é digno de admiração, seria ceder à ilusão. Cada um de nós há de convencer-se um dia, do quanto é fraco e pecador. No entanto, Cristo quer justamente fazer de nós, de você, uma obra-prima que há de atrair os outros. Assim o tornará cada vez mais você mesmo e simultaneamente Cristo crescerá cada vez mais em você. Cada um dos santos realizou a imagem de Cristo em si de uma maneira diferente. E extraordinário que tenhamos uma tão grande variedade de santos. Por exemplo, Santa Edwiges, rainha da Polônia, era um modelo de elegância. Fascinava não só pelo seu delicado gosto estético, mas também pelo seu nível intelectual e espiritual. E temos também São Bento José Labre que morreu como indigente e mendigo. E São Camillo de Lellis foi, desde jovem, um jogador de cartas, um "brigão", levava uma vida, sem dúvida, pior do que a dos soldados expulsos da legião estrangeira. Mas, um dia, quando se tornara já num alcoólico inveterado, viu um frade e, de repente, alumiou-se nele uma fagulha de esperança: também eu poderei ser diferente. Quando mais tarde perdeu tudo no jogo e ficou reduzido à mendicidade, cobriu o rosto com um pano, sentiu reviver nele o desejo de romper com tudo aquilo, compreendeu que o que fazia era degradante, que não estava a ser ele próprio e que não passava de uma caricatura de homem. Começou a sonhar tornar-se um homem normal. Decidiu converter-se. Foi então que Cristo consumou a sua auto-realização fazendo dele, não só uma pessoa normal, mas ainda uma obra-prima porque o conduziu à santidade.