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Lupi Qual o alcance - e quais os limites - da incorporate da linguagem, seu papel, sens fimdamentos teoricos, suas dimensoes epistemologicas, metodologicas e politicas nas Ciencias Socials? Se. por um lado, e notorio o interesse despertado pela linguagem e suas implicacoes nas ciencias, por outro lado. falta estabelecer um consenso sobre essas questoes. A abordagem des descortina ao lei tor as perspectivas do debate e a crfticas que import a fazer a Analise do Discurso. somente conhecer os procedimenlos basicos desse t de analise, mas tamhem evitar os jargoes, as imposi ou os dogmatismos, respeitando a pluralidade de de vista, de modo que a significalivo no processo de constioigao da realidad*
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EDITORA VOZES
DlSCURS IENCIA SOCIAIS
ISBN 85.326.3004-9
Uma vlda pelo bom livro
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VOZES
Este livro tern a intensao de oferecer aos leitores e leitoras que se queiram familiarizar com o debate sobre o papel da linguagem nas ciencias sociais uma introdugao a Analise do Discurso como perspectiva teorico-metodologica e como ferramenta de investigacao. E interessante apontar sumanamente o contexto historico e disciplinar no qual este livro foi escrito: a interface (ou lugar de encontro) da filosofia, da psicologia social, da ciencia social critica, dos estudos do discurso e da lingiiistica, da etnologia e da analise da conversasao. Com tal enfoque, este manual representa uma relevante contribuicao para uma visao critica e discursiva da psicologia social e para uma analise aprofundada da sociedade com seus problemas fundamentals sociais, politicos e economicos, permeados, muitas vezes, pela reconstrugao ideologica da realidade cotidiana com consequentes praticas de domina9ao e exclusao.
MANUAL DE ANALISE DO DISCURSO EM CIENCIAS SOCIAIS
Lupicinio Iniguez (coord.) A800MM BBAMDW DE DfrESGS *B*OOUfKOI
MANUAL DE ANALISE DO DISCURSO EM CIENCIAS SOCIAIS Dados Internacionais de Catalogacao na Publicacao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Tradu^ao de Vera Lucia Joscelyne Manual de analise do discurso em ciencias sociais / Lupicinio Iniguez (coordenador); tradu^ao de Vera Lucia Joscelyne. - Petropolis, RJ : Vozes, 2004. 2 a Edicao
ISBN 85.326.3004-9 Varios autores. Titulo original: Analises del discurso : manual para las ciencias sociales 1. Analise do discurso 2. Ciencias sociais linguagem I. Iniguez, Lupicinio. 04-1631
EDITORA VOZES
CDD-401.41
indices para catalogo sistematico: 1. Analise do discurso : Linguagem e comunicacao : Linguistica 401.41
Petropolis 2005
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© 2004, Editora Vozes Ltda. Rtia Frei Luis, 100 25689-900 Petropolis, RJ Internet: http://www.vozes.com.br Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra podera ser reproduzida ou transrmtida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletronico ou mecanico, incluindo fotocopia e gravacao) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissao escrita da Editora.
Sumario er
Pi
Prefdcio - O giro discursive (Teun A.^van Dijk)
7
In
Introducdo
15
1.
1. O "giro linguistico" (Tomas Ibanez Gracia)
19
2.
col
2. A linguagem nas ciencias sociais: fundamentos, conceitos e modelos (Lupicinio Iniguez)
50
3. tra
3. A analise do discurso nas ciencias sociais: variedades, tradi9oes e praticas (Lupicinio Iniguez) 105
4. so
4. A analise da conversa9ao e o estudo da interapao social (Charles Antaki e Felix Diaz) 161
5.
5. Psicologia discursiva: unindo teoria e metodo com um exemplo (Derek Edwards) 181
6. ex;
6. A fronteira interior — analise critica do discurso: um exemplo sobre "racismo" (Luiza Martin Rojo) 206
II
7. Praticas discursivas como estrategias de governamentalidade: a linguagem dos riscos em documentos de dominio publico (Mary Jane P. Spink e Vera Mincoff Menegon) 258
Editoragao e org. literdria: Fernando Sergio Olivetti da Rocha
ISBN 85.326.3004-9
Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luis, 100 - Petropolis, RJ - Brasil - CEP 25689-900 Caixa Postal 90023 - Tel.: (24) 2233-9000 Fax: (24) 2231-4676
Glossdrio geral
304
Prefacio 0 giro discursive Teun A. van Dijk*
livro, apresentado por importantes psicologos soNeste ciais da Universidade Autonoma de Barcelona, ofere-
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ce-se aos estudantes uma excelente introducao ao estudo do discurso. Em muitos aspectos, o "giro linguistico", iniciado na filosofia e nas ciencias socials ha varias decadas, poderia, hoje em dia, ser chamado de "giro discursivo" dado o atual^e crescente interesse no estudo das forr mas do uso da linguagem e de conversagoes e textos, que vem substituindo o estudo do sistema abstrato ou da gramatica de um idioma.
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Enquanto o estudo da gramatica independente do texto que, em um determinado momento, era proeminente, passou a se restringir quase que totalmente a uma pequena area da linguistica, vemos que nao so as demais areas dessa disciplina como tambem a maioria das outras disci7 plinas nas humanidades e nas ciencias socials se voltaram para os problemas fascinantes do texto e da conversacao em interagao, cognigao, contexto social ou cultura. As contribuigoes para este livro apresentam um retrato tanto historico quanto sistematico desse desenvolvimen-
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* Universidade Pompeu Fabra. Barcelona, Espanha. i...
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Teun A. van Dijk to tao estimulante que comegou mais ou menos na mesma epoca, e muitas vezes de forma independente, entre 1964 e 1974, na antropologia, na sociologia, na psicologia e na linguistica. Assim, para a linguistica, o giro foi de estruturas sintaticas abstratas de frases isoladas para o uso da linguagem, texto; conversagao, atos discursivos, interagoes e cognigao. Para a filosofia e muitas das ciencias sociais, como tambem e mostrado neste livro, o giro foi ainda mais radical, ou seja, na diregao da linguagem em geral. Na decada de 1960 isso significou, primordialmente, que os cientistas sociais precisaram aprender o basico das gramaticas formais, que eram entao a unica linguistica disponivel. No entanto, vemos que essas travessias de fronteiras disciplinares em varias diregoes levaram logo a um interesse generalizado na linguagem em uso, ou seja, na linguagem usada pelos seus verdadeiros usuarios em situagoes sociais reais e em formas reais de interagao, em um discurso que "ocorria naturalmente". E esse esforgo geral e transf ~disciplinar que e agora chamado de "analise do discurso" embora o termo mais geral "estudos do discurso" talvez seja . mais apropriado, ja que ele inclui nao somente a "analise" , propriamente dita, mas tambem "teorias", aplicagoes, criticas e outras dimensoes da investigagao academica. Desde o inicio, a psicologia foi uma das disciplinasmae dos estudos do discurso. Ja no comego do seculo XX, o famoso F.C. Bartlett buscava descobrir como e que as pessoas decoram historias e, no livro que escreveu pouco mais tarde, Remembering (1932), explicou que as pessoas leem, compreendem e decoram historias em tennos da narrativa e de outros esquemas de conhecimento de sua propria cultura. Muitos anos mais tarde, e apos a derrota do behaviorismo por uma critica devastadora de Chomsky sobre a visao behaviorista da linguagem e do aprendizado da linguagem segundo Skinner, foi essa ideia basica de Bartlett
Prefacio
que viria a ser uma das pedras fundamentals da revolugao cognitiva. Assim, a partir da metade da decada de 1970, um campo muito vasto e bem-sucedido do estudo cognitivo-psicologico dos processes da produgao e compreensao de textos foi desenvolvido como uma das areas do estudo transdisciplinar do discurso.
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Um dos muitos topicos abordados nesse tipo de estudos de processamento do discurso foi o papel fundamental do conhecimento: hoje sabemos que e impossivel produzif^ ou ler um texto, ou participar de uma conversa, sem uma grande quantidade de conhecimento sobre a linguagem, sobre o discurso, sobre a comunicagao, sobre o contextQ atual e, de um modo geral, ate sobre o "mundo". Grande parte desse conhecimento e compartiihado socialmente entre comunidades sociais, profissionais ou culturais diferentes para as quais ele e denominador comum para a agao, a interagao, o discurso e as praticas sociais. \ Vemos tambem, da mesma maneira, que as frases nao podem ser isoladas de seus textos e contextos, e que tambem o processamento do discurso nas mentes dos usuarios da linguagem nao pode ser isolado nem do verdadeiro uso da linguagem em contextos sociais por usuarios da linguagem em suas comunidades sociais e culturais. A linguagem, o discurso e o conhecimento sao essencialmente sociais. E esse insight fundamental que deu origem nao so a sociolinguistica, a pragmatica e a etnografia da fala, mas tambem a psicologia social do discurso, que forma o pano de fundo da apresentagao das varias perspectivas nos estudos sobre discurso oferecidas neste livro. Existem, no entanto, muitos tipos de psicologia social e, infelizmente, a maior parte deles tern dernonstrado pouco interesse explicito no estudo do discurso. Assim, a psicologia social experimental nos Estados Unidos concen-
Teun A. van Dijk
Prefacio
trou-se, inicialmente, em atitudes, preconceitos e gerenciamento da impressao, entre muitos outros topicos, em vez de estudar as maneiras pelas quais elas sao adquiridas discursivamente, expressas, usadas e reproduzidas na sociedade. Acoinpanhando a revolugao cognitiva na psicologia "individual", essa psicologia "social" tambem tern muito pouco que ver com a maneira como a mente, ou os individuos, estao relacionados com a sociedade. Na Europa, varias tradigoes de psicologia social tinham mais interesse na dimensao social da vida cotidiana propriamente dita, em temas tais como a identidade social de grupos e as relagoes grupais, por um lado, e representacoes sociais de co~ f^munidades, por outro. No entanto, embora a identidade social, as relacoes sociais e as representacoes sociais sejam em grande parte administradas pelo discurso, a maioria •dessas abordagens da psicologia social quase nao esta envolvida na analise sistematica do discursp, nem teoricatente, nem na pratica, nem metodologicamente. Isso significa que Ihes era impossivel oferecer qualquer insight sobre as maneiras como essas identidades, relacionamentos e re~ presentapoes grupais sao realmente adquiridas, utilizadas e reproduzidas na socieda'derUmalriterface vasta e complexa - a do discurso - era excluida dessas abordagens. A partir da metade da decada de 1980, a ESJ£olQgi;a social desenvolvida na Universidade estudiosos eminentes como Michael BilligfJonathan Potter, Margaret Wetherell e Derek Edwards a quem se juntaram depois Charles Antaki e outros, ofereceram uma alternativa radical quando explicitamente se concentraram no texto e especialmente na "conversagao". Ao levar o discurso a serio, eles reagiram, assim, tanto contra os psicologos ^sociais norte-americanos como contra outros europeus. Contra o experimentalismo limitado no laboratorio, eles propuseram o estudo da linguagem real usada em situ.10
apoes sociais, isto Q, o discurso ou conversagao natural, que, a seu ver, seriam dados muito mais confiaveis para estudar a sociedade e seus membros. Contra o mentalismo da psicologia cognitiva, propuseram o estudo do uso verdadeiro de termos psicologicos nas conversas cotidianas. E contra o empirismo e o realismo da maior parte de outras tradicoes da psicologia e das ciencias sociais, ofereceram uma alternativa construtivista mais ou menos radical, insirada, por exemplo, em Rom Harre: a .
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textoe da conyersacao. £ comc^riao temos acesso direto a "suits menfesTmas somente a seus discursos, e melhor que nos concentremos nesses discursos. E nao apenas como meras "expressoes" de suas mentes, mas sim por si mesmos, isto e, como formas de interacao social, com suas proprias variaveis, objetivos, interesses, problemas e estrategias para fazer sentidcx Corno tambem vemos neste livro, e por essa razao que grande parte da psicologia discursJYaJnspiraTse no^estudo .da conversac^ao na emometodologia, ouseja, no estudo dos "metodps"lmpficitos, partilhados sociahnente, que as pessoas usam na interagao, e dai tambem na conversacao, para entender, conduzir e fazer sentido de suas vidas cotidianas. De uma maneira que nos recorda a forma como esses etnometodologistas ou microssociologos rejeitaram as estrururas abstratas e preestabelecidas da sociologia parsoniana, e se concentraram nos detalhes da acao e da conversagao, os psicologos discursivos tambem rejeitaram muitas das nogoes preestabelecidas da psicologia cognitiva e social tradicional e tambem se concentraram nos detalhes do discurso. Os tipos diferentes da^giigolggia discursiva e retoriJogo um ca desenvolvidos err|^61igEborou^IrtfT ^ encontraram wr™*™™™ nm
Prefacio
Teun A. van Dijk
E interessante esbogar sumariamente esses contextos historicps e disciplinares a fim de entender o contexto no
qual este livro foi escrito: a interface (ou lugar de encontro) da fllosofla, da psicologia social, da ciencia social critica, dos esrudos de discurso e da linguistica, da etnometodologia e da analise da conversacao. Com seu interess nos giros lingiiistico e discursive, e suas contribuicoes para uma analise detalhada do discurso, os autores neste volume foram capazes de contribuir de maneira significativa para a renovacao da psicologia social na Espanha e para uma cooperagao (mais) intensa com os analistas do discurso em outras disciplinas. Como muitos dos estudantes de doutorado do programa em Barcelona (assim como em outros lugares da Espanha) sao da America Latina, e de se esperar que essa visao critica e discursiva da psicologia social venha fortalecer ainda mais essa orienta^ao tambem na America Latina. Dados os problemas fundamentals sociais, politicos e economicos naquela regiao, uma psicologia, seja ela ou nao discursiva, que nao fosse capaz de contribuir para uma analise critica da sociedade seria no minimo irrelevant^. E, e claro, o mesmo se aplica ao resto do mundo. Isso nao sigmfica que a abordagem "discursiva" e uma ; seja na psicologia ou em qualquer outra disciplir na das humanidades ou das cie~ncias sociais. Embora muitos aspectos e problemas da sociedade sejam discursivos, ou possam ser estudados por varias formas de analise do discurso, isso nao quer dizer que a sociedade e apenas discursiva, como demonstram a pobreza, a fome, as doen, a violencia contra mulheres, o racismo e muitos outros problemas sociais cruciais. No entanto, nosso pensamento, nossa interpreta?ao e nossa comunicacao sobre esses problemas sao, na maiorparte das vezes, expresses ou reproduzidos atraves do texto ou da fala e muitas vezes constituidos discursivamente. O que a maioria de nos sabemos sobre esses problemas sociais fundamentals e o que
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eco em outras universidades e em outros paises, especialmente nos departamentos de psicologia social. Na Espanha, isso ocorreu principalmente entre os psicologos sociais da Universidade Autonoma de Barcelona, tendo a frente Tomas Ibanez e Lupicinio Iniguez, que tomaram a iniciativa para produzir este livro convidando, para unirse a eles, Charles Antaki e Derek Edwards, de Loughborough; Felix Diaz e Luisa Martin Rojo, de Madri, e Mary Jane Spink e Vera Mincoff Menegon, de Sao Paulo, produzindo.assim^mamisrurainteressantissimadeabordagens. ~ No entanto, esses estudiosos nao se limitam unicamente a uma etnometodologia ou analise de conversa9ao isolada sociopoliticamente; eles se denominam explicitamente psicologos socials e linguistas "criticos". Com isso, se colocam em uma tradicao de pesquisa critica ampla, es7 pecialmente europeia, que remonta a Escola de Frankfurt, e que tern como seu representante contemporaneo mais ilustre Habermas. Essa tradigao aparece tambem no trabaIho de pensadbres tap diferentes quanta Foucault e Bourdieu na Franga e muitos outros estudiosos em outras paries, r do mundo., Da^p^cy^eresse comum no.discursaa psicologia social critica tambemestl reiacionlu3al:om a Analise Critica do Discurso, na forma em que essa surgiu nos estudos de linguistica e de discurso no flm dos anos 1970, com o famoso livro Language and Control, de Fowler, Kress, Hodge e Trew, seguido mais tarde p'ela obra de Norman Fairclough no Reino Unido, Ruth Wodak em Viena e LuiMartin Rojo em Madri, que, portanto, tambem esta repre^sentada neste volume. Esses g s t u s criticos.de discurso eslapjnteressado^essencialmente na malieira cornpoDoder. ft»iffHSiTi^'^^^ '? BiTSi I' " I'lli* "— ' ' " " -'~~''"''~'' j M C f e ^ - " =
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Teun A, van Dijk
lemos sobre eles no jornal ou em livros ou o que veinos na televisao, e com isso esse conhecimento e muitos de seus formates sao construidos discursivamente desde o comeco; e o mesrno ocorre com muitas das maneiras que usamos para falar sobre eles e agir a seu favor ou contra eles. A psicologia social critica e sua perspectiva discursiva estao em uma situa$ao ideal para contribuir para nosso entendimento desses e de muitos outros problemas sociais. Essas contribuigoes sao eficientes e significativas so quando contribuem com aiguma coisa que outras pessoas em outras disciplinas nao podem oferecer, ou seja, com uma analise muito detalhada de textos e falas, e sua relagao, por urn lado, com a situapao social e com a sociedade em geral e, por outro, com as muitas dimensoes psicologicas de (grupos de) pessoas; dimensoes tais como a maneira como elas veem, definem e vivem sua realidade cotidiana, a maneira como elas lutam com suas identidades sociais, os problemas da intera?ao e dos conflitos cotidianos emuma sociedade multicultural, as maneiras como as pessoas se envolvem na reproducao do machismo ou do racismo e uma quantidade de outros aspectos que exigem a intervengao especializada de psicologos sociais. Tanto para estudantes como para academicos de outras areas de pesquisa, as contribui96es neste livro mostram em detalhe o historico, as perspectives, os metodos e os objetivos desse tipo de psicologia social discursiva, da analise critica do discurso e dos estudos sociais criticos em geral. Barcelona, setembro de 2003
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Intro dugao
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ste livro tern como objetivo familiarizar seus leitores e leitoras com o debate sobre o papel da linguagem nas ciencias sociais e com os fundamentos teoricos que justificam esse papel. Mais especificamente, tem tambem a intenpao de oferecer-lhes uma introdugao a Analise do Discurso como perspectiva teorico-metodologica e como fer-, ramenta de investigagao. E cada vez maior o interesse que a linguagem desperta nas ciencias sociais, um interesse que se manifesta tanto em suas dimensoes epistemologicas quanto nas metodologicas e politicas. Esse e, portanto, o motivo principal para este manual, e espera-se que ele contribua para um maior conhecimento dos antecedentes e da evolufao desse interesse pela linguagem. Nao existe, porem, nenhum consenso - nem sequer majoritario - sobre o alcance e limites da incorpora9ao da linguagem as ciencias sociais. Portanto, esperamos que nossos leitores e leitoras consigam, gra?as a leitura deste manual, formar uma opiniao bem fundamentada sobre a questao. Tentaremos fazer com que isso seja possivel, identificando as principais perspectivas que fundamentam a inclusao da linguagem nas ciencias sociais; mostrando a trajetoria que pennitiu que essa inclusao abrisse o caminho para novas perspectivas teoricas e metodologicas; descrevendo algumas das principais tendencias e modalida-
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Intro dugao
Lupfdnio Iniguez
des da Analise do Discurso, seu alcance e seus limites; e, finalmente, introduzindo alguns procedimentos basicos desse tipo de analise. Esperamos estar oferecendo uma quantidade de recursos suficientes para uma apropriagao, avaliagao e critica dessas perspectivas e, por sua vez, para a propria aplicacao da Analise do Discurso. Atraves de uma exposi9ao ordenada de conteudos, de um esforgo para evitar umjargao demasiado especifico, e da apresentac. ao de inumeros exemplos, tentamos fazer com que seja possivel integrar essas propostas teorica e metodologicamente. Tentamos tambem evitar qualquer tipo de dogmatismo. Nesse sentido, a assertividade com que as varias posifoes sao apresentadas nao significa que damos menos importancia a manuten9ao de uma atitude critica nas praticas da produgao do conhecimento e da investigacao nas ciencias sociais, respeitando a pluralidade de perspectivas e de pontos de vista, afastando-nos das pretensoes de impor umas perspectivas sobre outras, dando elementos para que o alcance e os limites das propostas sejam continuamente avaliados e mantendo viva a reflexao sobre o papel das ciencias sociais na permanencia e na mudan?a da ordem social. O livro, portanto, foi organizado em sete capitulos: o primeiro, dedicado ao "giro lingiiistico"; o segundo, ao papel da linguagem nas ciencias sociais; o terceiro, as variedades, tradi9oes e praticas da analise do discurso nas ciencias sociais; o quarto, a Analise da Conversa9ao; o quinto, a Psicologia Discursiva; o sexto, a Analise critica do discurso; e o setimo, a Analise da Interanima9ao Dialogica. O primeiro capitulo tern a fun9ao de emoldurar, teorica e epistemologicamente, o papel da linguagem nas ciencias sociais. Examina a maneira como a reflexao sobre a linguagem foi adquirindo importancia a partir dos anos 1960 e o impacto que essas reilexoes tiveram na nossa
concep9ao do conhecimento, em nossos conceitos da realidade - tantofisicaquanto social - e nas estrategias metodologicas para sua analise. 0 segundo capitulo apresenta os fundamentos principals que sustentam e legitimam o papel da linguagem nas ciencias sociais. Seu argumento principal e que, embora no inicio a presen9a da linguagem nas disciplinas sociais tenha sido introduzida a partir da metodologia, mais tarde, no entanto, ela se converteu em um conjunto de novas perspectivas nas que a "linguisticidade" e o "linguistico" sao centrais. O capitulo examina o giro linguistico, a "Teoria dos atos da fala", a Pragmatica, a Etnometodologia e alguns aspectos da obra de Michel Foucault. O terceiro capitulo foi dedicado a Analise do Discurso como metodo e como perspectiva nas ciencias sociais. Apesar da arnpla lista de perspectivas e praticas na Analise do Discurso, aqui serao apresentadas apenas algumas delas: a sociolingiiistica interacional, a etnografia da comunica9ao, a analise conversacional, a analise critica do discurso e a psicologia discursiva. A parte final oferecera uma das modalidades da Analise do Discurso que podem ser seguidas para o esuido de processes sociais. Pondo em pratica a AD, poderemos ver o alcance e os limites que ela tem na compreensao dos processes sociais e da estrutura social. Com efeito, os cinco ultimos capitulos apresentam exemplos da Analise do Discurso na pratica. Assim, o capitulo quarto tem como moldura a tradi9ao da Analise da Conversa9ao e permite ver como se constroi a delicadeza nas redoes sociais e a importancia e consequencias que isso pode ter na vida cotidiana. Por sua vez, o capitulo quinto se enquadra em uina linha critica das ciencias sociais que se identifica com o titulo de "Psicologia Discursiva", perspectiva que mostrou a revolu9ao que e possivel fazer na conceitualiza9ao teorica de determinados proces-
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Lupicinio Iniguez sos psicologicos quando esses sao abordados de um ponto de vista discursivo. O sexto capitulo, enquadrado no marco da Analise Critica do Discurso, mostra como o discurso funciona como pratica de domina9ao e de exclusao. Finalmente, o setimo capitulo, no marco da Interanima9ao Dialogica, amplia a reflexao sobre dominacao, abordando a linguagem dos riscos como estrategia de governamentalidade.
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iro liriguistico" e uma expressao que esteve em moda nos anos 1970 e 1980 para designar uma certa mudanca que ocorreu na fllosofia e em varias ciencias humanas e socials, e que as estimulou a dar uma atencao major ao papel desempenhado pela linguagem, tanto nos proprios projetos dessas disciplinas quanto na formagao dos fenomenos que elas costumam estudar. Normalmente, nao se da a essa expressao nenhum outro significado alem desse que acabamos de mencionar. Um dos primeiros objetivos que podemos atribuir ao presente capitulo e precisamente o de contribuir para que se adquira uma consciencia clara do aumento progressivo da atencao que foi dada a linguagem no decorrer do seculo XX. No entanto, o "giro linguistico" teve efeitos e implicacoes que vao bem mais alem do simples aumento da enfase dada a importancia da linguagem. Ele contribuiu parg que fossem esbogados novos conceitos sobre a natureza do conhecimento, seja ele o do sentido,comum ou o cientifico, para permitir que surgissem novos significados para * Universidade Aberta da Catalunha.
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1. 0"giio linguistico"
Tomds Ibdnez Gratia
aquilo que se costuma entender pelo termo "realidade" tanto "social" ou "cultural" quanto "natural" ou "fisica" e a desenhar novas modalidades de investigate) proporcionando outro contexto teorico e outros enfoques meto dologicos.jPorem, mais que tudo, o "giro linguistico" modificou a propria concepcao da natureza da linguagem. Um segundo objetivo deste capirulo, portanto, seria ensinar a discernir quais sao as concepgoes da linguagem que sustentam as varias formulagoes oferecidas pelas ciencias humanas e socials. For outro lado, o presente capitulo pretende analisar em profundidade a natureza e as hnplicagoes do "giro linguistico", dando uma atencao especial a sua genealogia, ou seja, a dimensao historica de sua constituigao progressiva, as rupturas teoricas que tiveram que ocorrerpara que o giro linguistico pudesse construir e desenvolver seus projetos, e ao carater plural e as vezes contraditorio de que se revestiram as suas varias formulagoes. Se o "giro linguistico" realmente constitui, como indicamos neste capitulo, uma mudanga profunda das concepgoes do mundo, e das concepgoes sobre como interpretar as ciencias humanas e sociais, inclusive a propria filosofia, e importante que o leitor e a leitora entendam nao somente o alcance e a orientacao dessas mudangas mas tambem as razoes que o fizeram surgir. Podemos entao considerar que um terceiro objetivo que nos propomos a alcangar neste capitulo seria o de discernir e avaliar essas razoes. Para esse fim, no entanto, nao e suflciente apenas entender e armazenar a informagao proporcionada pelo texto que foi elaborado para este capitulo. Alem disso, e preciso por em pratica um esforgo extraordinario de reflexao pessoal que permita qualificar a natureza e a forga das suposigoes a que o "giro linguistico" teve que se sobrepor para conseguir se desenvolver. Nesse sentido, seria util refletir 20
sobre nossa propria concepgao da linguagem comparando-a com as concepgoes que sao inferidas pelo "giro linguistico". Um ultimo objetivo, portanto, consiste em perrnitir e facilitar essa reflexao. 1. A Linguistica e a filosofia como pontos de parti da Uma das marcas distintivas do seculo passado foi, sem duvida alguma, a enorme importancia que tanto a filosofia quanto as ciencias humanas e sociais em seu conjunto deram ao fenomeno da linguagem. A atengao crescente que se da ao estudo da linguagem durante todo o seculo XX teve seu estimulo inicial no cerne de uma dupla ruptura ocorrida no despertar do seculo. De um lado, a ruptura com a antiga tradigao centrada na comparagao das linguas e no estudo de sua evolugao historica. E, por outro, a ruptura com a total hegemoma que a filosofia da consciencia exerceu durante mais de dois seculos. — A primeira dessas rupturas, liderada por Ferdinand de Saussure (1857-1913), instituiu, na verdade, a linguistica moderna, dotando-a de um programa de alguns conceitos e de uma metodologia que viabilizavam o estudo rigoroso da lingua considerada "por si mesma e em si mesma". A segunda ruptura, iniciada por Gottlob Frege (18491925) e por Bertrand Russell (1872-1970), fez com que o olhar da filosofia, ate entao voltado para o mundo interior e privado das entidades mentals, se voltasse para o mundo passivel de ser objetivado e publico das produgSes discursivas. Assentavam-se, assim, as bases para uma nova forma de entender e de praticar a filosofia que, sob a denominagao de "filosofia analitica", dominaria o cenario da filosofia anglo-saxa durante mais de meio seculo. J Os sucessos alcangados pela linguistica moderna, tanto no marco da orientagao estruturalista iniciada com as 21
1. 0 "giro linguistico"
Tomds Ibdnez Gratia
outorgava a linguagem um papel especial na elabora9ao de nossa visao do mundo, mas ainda seria necessario esperar varios seculos para que essas intui9oes dessem lugar a um auteiitico "giro linguistico".
contribui?oes de Ferdinand de Saussure, quanto no marco da orientacao generativa elaborada fundamentalmente por Noam Chomsky (1928-) no final dos anos 1950, tiveram amplarepercussao em vastos setores das ciencias socials e humanas que viram na linguistica um modelo exemplar ao que podiam recorrer diretamente quando abordavam os objetos de suas proprias disciplinas. No entanto, mais alem de esse efeito mimetico extraordihario, e a filosofia analitica, em suas varias orienta9oes e devido tanto a seus fracassos como a seus exitos, que devemos atribuir a expansao do interesse pela linguagem nas varias ciencias socials e humanas. Dificilmente poderemos compreender a aten9ao dada a linguagem pelo pensamento contemporaneo se nao analisarmos o "giro linguistico" empreendido pelo pensamento posterior ao seculo XIX, observando tanto sua gestacao como a historia de seu desenvolvimento. Mas antes de abordar essa questao no proximo capitulo, talvez seja util recordar que ja no medievo encontramos alguns ingredieBles^ue_teriam podido propiciar um "giro linguistico^/favanr/a/eSre>Trata-se da famosa disputa entre os escolasticos a respeito dos "universais". Como bem se sabe, os "nominalistas" sustentam a tese da inexistencia fatica dos universais, argumentando que tudo aquilo que existe o faz de uma forma peculiar e que de nada adianta buscar referencias existenciais por tras de categorias gerais. Nao existe nem "o" campones, nem "a" arvore, nem "a" mulher, mas sim e apenas, camponeses, arvores e mulheres particulares. Um universal nada mais e do que uma abstragao cuja existencia so se materializa no amago de nossa linguagem e cuja realidade e resultado exclusivamente dos usos que fazemos da linguagem. A partir de considera9oes desse tipo, os nominalistas esbo9avam uma linha de pensamento que 22
2. Das ideias as palavras ou do "animal pensante" ao "animal falante"
Q ser humano e um "animal racional". Essa foi uma das formulas mais antigas utilizadas para expressar a distinguibilidade de nossa especie. No entanto, embora a capacidade que o ser humano tem para exercitar o pensamento, o raciocinio, a elaboracao e o manejo de ideias tenha fascinado os filosofos desde os tempos da Grecia Classica, foi, sem duvida, Rene Descartes (1596-1650) que contribuiu com maior sucesso para que o olhar filosofico focalizasse o interior de nosso mundo mental (a famosaffS exortando-nos a esquadrinhar nossas ideias para ficarmos unicamente com aquelas que fossem "claras e distintas". Dessaperspectiva, a linguagem e ceitamen--3 te importante, mas constitui apenas um instrumento para manifestar nossas ideias, uma simples roupagem com a qual essas se apresentam ao exterior e se tornam visiveis para os demais. Quando nosso discurso parece ser confuso e porque nossas ideias nao sao suficientemente claras e, inclusive, algumas vezes acontece de a linguagem dificultar a exterioriza9ao de nossas ideias em vez de ajudar-nos a comunica-las aos demais. A partir de Descartes e durante dois seculos e meio, a filosofia europeia seria uma "filosofia da consciencia" centrada no estudo da interioridade do sujeito e convencida de que, para conhecer o mundo exterior, e preciso inspecionar minuciosamente as ideias que habitam os espa905 interiores da subjetividade. No entanto, a partir do mor mento em que se aceita a dicotomia entre res cogitans e 23 —«*
Tomds Ibdnez Gracia
1. 0 "giro lingiiistico'
res extensa, e precisamente porque foi tracada essa linha divisoria, surge imediatamente a pergunta de como se relacionam entre si o "interior" e o "exterior" e p misterio da adequagao entre nossas ideias e a realidade. Durante dois seculos e meio as grandes divergencias filosoficas vao se articular ao redor dessas questoes. i Serios antagonismos se desenvolvem entre aqueles que consideram que nossas ideias se formam com base em nossas experiencias sensoriais (nada esta em nossa mente que nao tenha anteriormente passado por nossos sentidos, di<( riam, por exemplo, os empiristas) e aqueles que creem que as ideias se constituem com base nas propriedades inatas da res cogitans, ou ainda aqueles que consideram, com Emmanuel Kant (1724-1808), que as "categorias apriori de nosso entendimento" estabelecem o marco nao empirico a partir ^do qual a experiencia empirica conforma nossas ideias. Curiosamente, essas profundas divergencias filosoficas nascem precisamente porque existe um consenso previo a respeito do carater privilegiado do mundo das ideias e porque se tenta explicar a consciencia a partir da inquestionavel dicotomia entre a mente e o mundo. Se questionarmos a dicotomia "interior/exterior", o dificil problema da relac.ao entre ambos se dilui imediatamente, deixando em evidencia a vacuidade das grandes divergencias filosoficas originadas por esse problema. No entanto, nao e nada facil deixar de lado dois seculos e meio de consenso filosofico. O fato de que ja transcorreu quase um seculo desde aquele momenta em que comefaram a questionar a primazia da "filosofia da consciencia" e que, ainda hoje, temos serias dificuldades para livrar-nos de suas influencias, indica, sem duvida alguma, a magnitude da inovacao que o "giro lingiiistico" su24
pos e a originalidade de que seus promotores tiveram que se vangloriar. 3. Os comedos do "giro Linguistico"
A propria expressao "giro linguistico" sugere a imagem de um momento precisamente delimitado no qual se produziu uma mudanca brusca de algo que nao e linguistico para o espa90 propriamente linguistico. Pode ate ser que alguns dos comentarios feitos acima tenham contribuido para fomentar essa imagem. Mas a coisa nao foi bem assim. O giro linguistico nao e um fato precise e sim um fenomeno que vai se formando progressivamente e que adota varias modalidades ao longo de seu desenvolvimento. Em seu comego, o giro linguistico surge de uma preocupagao em superar a antiga logica silogistica herdada de Aristoteles (385 a.C.-322 a.C) e em inventar umanova logica formal, capaz de dar vida a essa linguagem "ideal" e "perfeita" com que sonhava Leibnitz (1646-1716). Foi Gottlob Frege (1848-1925) que empreendeu essa tarefa ao inventar "a teoria da quantifica9ao" (base da logica moderna) e ao substiruir as velhas nogoes de "sujeito" ejle "predicado" pelas no9oes de "argumento" e de "funcao". A nota^ao canonica proposta por Frege permitia transformar os enunciados linguisticos em "proposigoes" cujo valor de verdade (proposi^ao verdadeira ou falsa) podia ser estabelecido de uma maneira rigorosamente formal. Da Universidade de Cambridge, Bertrand Russell (18721970) colaborou intensamente com Frege para o desenvolvimento da nova logica, dando um impulso decisive ao giro linguistico na filosofia anglo-saxa. Para o proposito desta disciplina, o que importa nao e, certamente, a compreensao e o conhecimento detalhado do novo instrumento logico criado por Frege e Russell, e 25
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sim compreender, por urn lado, quais eram as premissas que orientavam as investigasoes "logicistas" da dupla Frege/Russell e, por outro, captar as repercussoes que esse novo instrumento logico teve para o desenvolvimento da filosofia da linguagem. Essas premissas podem ser formuladas da seguinte maneira: a) Muitos dos problemas com que se deparam tanto a filosofia, quanto a comunicacao humana em geral, ocorrem porque a linguagem cotidiana tem como base uma 16gica imperfeita, ambigua e imprecisa. b) As frases construidas nas linguas naturals se apoiam, claramente, em uma estrutura logica, mas essa estrutura logica nao aparece com claridade se nos limitarmos a contemplar exclusivamente a estrutura gramatical das frases ou se as analisarmos com a ajuda da logica aristotelica. c) A nova logica, baseada em quantiflcadores, permite que se exiba a autentica estrutura logica dos enunciados linguisticos, convertendo-os em proposi?6es dotadas de um valor de verdade. d) Se conseguirmos estabelecer a estrutura logica dos enunciados poderemos exibir a estrutura do pensamento expressado por esses enunciados e, desta maneira, aumentar o conhecimento dos processes inferenciais. e) Se a linguagem e um instrumento para representar a realidade, entao sua analise pode nos informar sobre a natureza dessa mesma realidade. Este conjunto de premissas nos indica varias coisas importantes: Em prirneiro lugar, vemos como se produz um deslocamento do estudo das "ideias", realizado por meio de um discurso mental de carater privado (introspeccao), para o 26
estudo dos enunciados linguisticos, publicos e objetiyados, a fim de evidenciar sua estrutura logica. Nao e dentro de nossa mente que temos que "olhar" para saber como pensamos, e sim devemos "olhar" para nossos discursos; nao devemos esquadrinhar nosso "interior" e, sim, devemos permanecer no "exterior" visivel a todos. As ideias foram, em uma epoca, os objetos de todo filosofar e constituiram o vinculo entre o ego cartesiano e o mundo externo a ele [...]. Nas discussoes atuais, o discurso publico substituiu o discurso mental. Um ingrediente nao questionado do discurso publico e o enunciado [...]. Quine disse que "a tradi9ao de nossos pais e uma fabrica de enunciados". Os enunciados sao um artefato cognoscitivo nessa fabrica do discurso publico. Talvez, como sugerirei a seguir, sao eles que constituem esse "sujeito cognoscitivo". De qualquer forma, eles sao os responsaveis pela representa9ao da realidade no corpo do conhecimento. Dessa maneira, parece que os enunciados substituiram as ideias [...]. A verdadeira natureza do conhecimento mudou. Nossa situa9ao atual na filosofia e uma conseqiiencia daquilo que o conhecimento chegou a ser [...]. Um Descartes jamais teria pensado que uma teoria e um sistema de enunciados, assim como Quine jamais teria reconhecido que uma teoria e um esquema de ideias do seculo XVII (I. Hacking, 191'5. Does Language matter to philosophy? Nova lorque: Cambridge University Press, p. 159-169 [Tradu9ao em espanhol: Buenos Aires, Sulamericana, 1979]).
Em segundo lugar, podemos observar como, em um determinado momento, deixa-se de considerar que sao as nossas "ideias" que se relacionam com o mundo, e passa-se a afirmar que sao nossas palavras que se correspondem com os objetos do mundo. Ja veremos como essa tese, que podemos qualificar de "realista", sera superada nos desenvolvimentos posteriores do giro linguistico, em27
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bora tenha, sem duvida, o grande merito de substituir a relacao "ideias/mundo" pela relacao "linguagem/mundo", trocando o privado pelo publico e o nao observavel pelo manifesto. r Quanto as repercussoes que o instrumento logico construido por Frege/Russel viria a ter para a filosofia da linguagem, basta assinalar aqui que, durante varias decadas, a filosofia analitica adotou a forma tecnica de uma rigorosa analise logica das proposicoes filosoficas, recorrendo a teoria da quantificacao.
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4. 0 estimulo neopositivista ao giro lingiilstico Seguindo os conselhos de Frege, o jovem Ludwig Wittgenstein (1889-1951) decidiu ir estudar com Russell em 1911 e, poucos anos mais tarde, publicou um livro, o Tratado logico-filosofico (1921), que imediatamente exercera uma influencia profunda sobre um grupo de filosofos e cientistas austriacos e alemaes preocupados em dar uma orientapao cienn'fica ao pensamento filosofico e em acabar definitivamente com as especulacoes meramente metafisicas. Esses pensadores formam um colegio filosofico - o "Circulo de Viena" - e lancam, em 1929, um manifesto programatico fortemente inspirado pela tese de Wittgenstein. Eles estao convencidos de que a linguagem comum e um pessimo instrumento para expor e discutir assuntos filosoficos, e tambem para construir uma visao cientifica da realidade. A seu ver, muitos dos falsos problemas em que se envolvem os filosofos tern origem em um uso pouco rigoroso da linguagem; grande parte das formulacoes filosoficas nao tem sentido devido ao uso de uma linguagem insuficientemente formalizada; e ate mesmo os enunciados cientificos - inadvertidamente, mas com demasiada frequencia - caem nas inumeras armadilhas da.linguagem cotidiana. .28
Portanto, o problema que seria conveniente solucionar para que pudessemos avangar na direcao de uma explicacao cientifica do mundo e para acabar com a vacuidade da filosofia herdada e, definitivamente, um probiema de lin. Para ter garantias de cientiilcidade e preciso reformar a linguagem usando todos os recursos tecnicos da nova logica e submetendo os enunciados a um exame rigoroso para avaliar sua consistencia logica, transformando-, os em 'fooposigoes". , Como bem se sabe, os positivistas logicos do Circulo de Viena postulam que so existem dois tipos de enunciados validos. —v
De um lado, teriamos os enunciados logico-matematicos (enunciados "analiticos"), que sao absolutamente corretos quando bem formulados mas que nao nos dizem nada sobre a reaiidade empirica. De outro, estariam os enunciados empiricos (enunciados "sinteticos")., que versam sobre a realidade mas que so podem ser aceitos como enunciados validos se foram veriflcados, escrupulosamente, por experiencias baseadas no "metodo cientiflco". Todos os outros enunciados, que nao sejam estritamente analiti- , cos ou sinteticos, nao tem sentido. J Em suma, os positivistas logicos acham que e preciso dizer as coisas "bem" (sem ambiguidades nem omissoes logicas) e que e preciso tambem dizer coisas que estejam "bem" (ou seja, de acordo com a realidade empirica sobre a qual estamos falando). Apos o estimulo que Ihe foi dado por Frege, Russell, Wittgenstein e os neopositivistas, a importancia da linguagem nao parou de crescer do inicio do seculo XX ate a vespera da Segunda Guerra Mundial, ocupando o lugar da filosofia neo-hegeliana que dominava a Inglaterra e compe-
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fomds Ibdnez Gratia tindo seriamente com o neokantismo e a fenomenologia enraizadds nos paises de lingua germanica. Depois da Segunda Guerra Mundial, o giro linguistico se acentuara ainda mais, diversificando suas expressoes, adotando novas modalidades e ampliando sua area de influencia ate atingir os Estados Unidos, onde viria a alcan9ar um dominio hegemonico no ambito iilosofico.
5. A expansao da filosofia analitica e o auge da centralidade da Linguagem A trajetoria propriamente europeia do Circulo de Viena durou poucos anos. Muitos dos pensadores que se tinham agrupado ao redor de Moritz Schlick (1882-1936) eram judeus e como sua situagao ficou insustentavel diante do avanco da barbaric nazista quase todos decidiram emigrar, a maioria para os Estados Unidos. Naquele pais, Rudolf Carnap (1891-1970), Carl Hempel (1905-1997), Hans Reichenbach (1891-1953), Kurt Goedel (1906-1978) e outros continuaram suas atividades em varias universidades, fazendo com que a semente neopositivista desse frutos em solo americano. Sua influencia foi tanta, que nos anos 1950 a parte essencial da obra filosofica nos Estados Unidos consistia na realizacao de exercicios logico-lingiiisticos rigorosos e minuciosos, pondo a margem toda e qualquer referenda a poderosa orienta?ao "pragmatica" que tinha dominado o cenario durante as primeiras decadas do seculo gracas as contribuifoes de Charles Pierce (1839-1914), de William James (1842-1910) e de John Dewey (1859-1952).
va a animar um nucleo poderoso de filosofia analitica e que alguns daqueles que viriam a estar entre os filosofos norte-americanos de maior prestigio, como Willard Quine (1908), Nelson Goodman (1906), Hilari Putnam (1926) ou Wilfrid Sellars (1912-1989), estavam se formando a luz da analise logica linguistica diretamente sob o magisterio dos fundadores do Circulo de Viena. No entanto, as dificuldades tecnicas e conceiruais com que se depararam os promotores do empirismo logico, aliadas as criticas de Karl Popper (1902-1992), bem assim como aquelas que seus proprios discipulos, especialmente Quine, dirigiam contra os "dogmas do empirismo", ou a dura autocritica de Wittgenstein, logo fariam com que as premissas epistemologicas do Circulo de Viena fossem abandonadas. Com efeito, foi flcando claro que a distincao "analitico/sintetica" era muito mais fragil do que se supunha, que os enunciados empiricos nao eram propriamente "resultados de observagoes", que a superagao da metafisica nao podia ser obtida com base na doutrina do Circulo de Viena e que o grande sonho de uma linguagem "ideal", valida para todas as ciencias, era inviavel. Finalmente, as premissas epistemologicas do empirismo logico desmoronaram e a unica coisa que ficou, dessa grande aventura intelectual, foi o estimulo dado a enfase; sobre a importancia da linguagem.
6. A preocupa^ao com a linguagem cotidiana
Nao ha duvida de que, nesse periodo, a inclinagao da filosofia para a analise logico-lingxiistica alcancou dimensoes impressionantes. E preciso nao esquecer que, na Inglaterra, a partir de Cambridge, Bertrand Russell continua-
Vimos que Wittgenstein, com seu Tratado logico-filosofico, acalentou o sonho de falar uma linguagem ideal que permitisse evitar as falacias a que nos leva a linguagem cotidiana. Com isso, ele estimulou o desenvolvimento de um importante ramo da filosofia analitica que continua extraordinariamente ativa nos dias atuais, embora ja nao comparta os postulados iniciais do Circulo de Viena.
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O proprio Wittgenstein se desinteressou muito rapidamente da possibilidade de construir uma linguagem ideal e orientou sua reflexao para a linguagem comum, tentando compreender as regras a que ela obedece e aos usos a que satisfaz. O livfo que reune suas reflexoes, publicado em 1952 sob o tittilo'Investigacdesfilosoficas, estimulou o esforco realizado por um grupo importante de filosofos, ligados, muitos deles, a Universidade de Oxford, para conseguir elucidar as caracteristicas da linguagem em seus usos cotidianos, Dessa maneira, Wittgenstein contribuiu tambem para o desenvolvimento de um segundo ramo da filosofia analitica que se expandiu na Inglaterra durante os anos 1950, ajudando a acentuar a importancia que envolve tanto a linguagem quanto seu estudo no conjunto das ciencias sociais. Os "fllosofos de Oxford", entre os quais se destacam, por exemplo, Gilbert Ryle (1900-1976), John Austin (19111960), Peter Strawson (1919) ouPaul Grice (1913-1988), concordavamplenamente com Bertrand Russell e com seus colegas logicistas em Cambridge com rela?ao a um repudio total a tradi9ao cartesiana, e tambem a necessidade de passar de uma "filosofia da consciencia" para uma "filosofia da linguagem". Mas os pontos de coincidencia nao iam muito mais alem desse aspecto e eram intensas suas divergencias sobre quase todo o resto. Os filosofos de Oxford, por exemplo, opunham-se rigorosamente nao s6 ao positivismo e ao cientificismo que impregnavam a corrente logicista, como tambem a pretensao do logicismo de construir uma linguagem formalmente inatacavel. Queriam estudar a linguagem nao para demonstrar suas imperfeicoes logicas e corrigi-las e sim, simplesmente, para entender seus mecanismos. Mas opunham-se, sobretudo, a pretensao de reduzir a linguagem a uma mera funcao de descricao e de representacap do mundo. , 32
Para eles, a riqueza da linguagem cotidiana ultrapassava, em muito, a fungao descritiva, e se diversificava em uma enorme variedade de usos e de funcoes tao importantes quanto a propria funcao descritivo-representacional. Nao se tern acesso, portanto, ao funcionamento jd.o pensamento humano, analisando tao-somente a estrutura logica sobre a qual se apoiam as linguas naturals e sim e necessario contemplar todos os usos da linguagem se queremos entender tanto nossa forma de pensar quanto nossa forma de agir e a maneira como nos relacionamos com as pessoas. Frege, Russell, o Wittgenstein do Tratado..., Carnap e os filosofos analiticos norte-americanos romperam com a, tradicao cartesiana, fazendo-nos perceber que a linguagem nao e um simples veiculo para expressar nossas ideias, nem uma simples roupagem para vestir nosso pensamento quando o manifestamos publicamente. Ela e a propria conr digao de nosso pensamento e, para entender esse ultimo, temos que nos concentrar nas caracteristicas da linguagem em vez de contemplar o suposto mundo interior de nossas ideias. Nosso conhecimento do mundo nao se radicaj nas ideias que dele fazemos; ele se abriga, sim, nos enunciados que a linguagem nos permite construir para representar o mundo. Os fllosofos de Oxford acentuaram ainda mais o afastamento da tradisao cartesiana, ensinando-nos que a linguagem faz muito mais do que representar o mundo porque e basicamente um instrumento para "fazer coisas!'. A linguagem nao so "faz pensamento" como tambem "faz realidades". Assim, por exemplo, John Austin mostraria que a linguagem tambem tern propriedades "performativas". Com efeito, certos enunciados constituem literalmente "atos de linguagem" a medida que sua enunciagao e inseparavel da modificacao ou da cria9ao de um estado de coisas que nao 33
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poderia surgir independentemente dessa enuncia9ao. For exemplo, o "sim, quero" pronunciado no ato nupcial proprio de certos ritos e um elemento necessario para que o Ia9o matrimonial seja instituido. Dessa maneira Austin abriu caminho para o desenvolvimento da "pragmatica", contribuindo para que o conjunto das ciencias sociais e humanas se conscientizasse de que a linguagem e urn instrumento ativo na produpao de muitos dos fenomenos que essas ciencias pretendem explorar e que, portanto, seria impossivel deixar de leva-la em considera9ao.
Em suma, a linguistica de inspira?ao saussuriana apresentava essa imagem de cientificidade com que tanto sonhavam as demais ciencias sociais e humanas. Foi assim^ que, gradualmente, foi tomando corpo a convicgao de que a linguistica moderna era o modelo que todas as outras ciencias sociais e humanas deveriam tentar copiar, fosse atraves do estabelecimento de analogias entre seus proprios objetos de estudo e as estruturas lingiiisticas, fosse aplicando os metodos da linguistica para investigar esses objetos. Talvez a antropologia tenha sido a ciencia em que esse efeito mimetico se manifestou com maior nitidez. Com efeito, a preocupacao com o fenomeno da linguagem nao era nenhuma novidade em uma antropologia em que os trabaIhos de Edward Sapir (1884-1939) ou de Benjamin Whorf (1897-1941) ja tinham chamado atenfao sobre o papel que a lingua desempenha na constitui9ao de nossa visao do mundo. Mas foram os trabalhos de Claude Levi-StraussTi nascido em 1908, especialmente aqueles sobre a estrurura dos mitos, que estimularam uma grande parte da antropolo7 gia a buscar diretamente sua inspira^ao nos conceitos e nos metodos da propria linguistica estrutural"
7. 0 impacto do giro Lingulstico nas ciencias humanas e sociais Assim como o giro lingiiistico nao teve uma origem defmida, mas foi-se articulando progressivamente, e assim tambem como nao se revestiu de uma unica modalidade, mas foi adotando varias configura?6es, seu impacto tampouco ocorreu simultaneamente nas varias ciencias sociais e humanas nem as afetou com a mesma intensidade e nem adotou uma expressao uniforme. Distinguiremos, aqui, tres linfias principals de influencia: a) O impacto da linguisticYesuritural; b) O impacto da corrente analitico-logicista; c) O impacto da corrente analitica centrada na linguagem cotidiana. a) O impacto da linguistica estrutural - O sucesso obtido pelo estudo estruturalista da lingua nao demorou a atrair as demais ciencias humanas e sociais. Em poucos anos a linguistica moderna tinha conseguido se constituir em uma disciplina totalmente autonoma, com um objeto de estudo proprio, claramente delimitado, dotada de alguns conceitos claros e rigorosos, e equipada com uma metodologia eflcaz, baseada em alguns procedimentos formais que asseguravam altos niveis de objetividade.
O prestigio alcangado pelas obras de Levi-Strauss serviu como um ampliflcador para a influencia exercida pela linguistica moderna, contribuindo para o desenvolvimento de uma corrente de pensamento rigorosa que, sob a denominacao de "estruturalismo", durante mais de uma decada (de meados dos anos 1950 ate finais dos anos 1960)J percorreria as diversas ciencias sociais e humanas, com] incidencia especial no mundo de lingua francesaT A poderosa critica antiesrruturalista desenvolvida por Noam Chomsky e sua reformula9ao do programa da linguistica em termos de "linguistica generativa", longe de atenuar a fascina9ao que a linguistica exercia sobre as cien-
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cias socials e humanas, a fortaleceu ainda mais, proporcionando novas metaforas e novas analogias que alcan9ariam especial relevancia em disciplinas como a psicolinguistica, ou em orientacoes como a psicologia cognitiva. Paralelamente ao efeito mimetico produzido pelas lingiiisticas estruturais e generativas, a importancia concedida a linguagem se alimentaria tambem de alguns dos desenvolvimentos da fenomenologia, especialmente da fenomenologia heideggeriana. Segundo Martin Heidegger, (1889-1976) somos vitimas de uma traicoeira ilusao egocentrica quando acreditamos ser donos de nossos discursos e quando consideramos a linguagem como simples instrumento que se encontra a nossa disposipao para ser manipulado a nossa vontade. Na verdade, e a propria linguagem que manda em nos, causando, modelando, constrangendo e provocahdo nosso discurso, a tal ponto que bem se poderia dizer que e a linguagem que fala atraves de nos. r Considera9oes desse tipo, somadas a influencia do pensamento estruturalista e a decadencia da filosofia da consciencia, levariam parte dos pensadores da segunda metade do seculo XX a decretar "a mortedo suieito". reduzindo-o a um simples "efeito"da linguagem". Assim, por exemplo, Michel Foucault (1926-1984), em seu famosissimo texto sobre "A ordem do discurso", apontaria para as conseqiiencias do poder que emana da linguagem e que \captura seus usuarios em suas redes. b) O impacto da corrente analitico-logicista — Responsavel pelo inicio do "giro linguistico" na filosofia, essa corrente tem o merito fundamental de ter contribuido para orientar o pensamento contemporaneo na direfao da problematica da linguagem. Porem, curiosamente, e possivel tambem atribuir-lhe outro merito, que e resultado de seus proprios fracassos mais do que das vitorias que obteve. Na verdade, a malograda inten9ao de demonstrar a validade 36
dos postulados neopositivistas teve como importante consequencia a de permitir certa "liberaliza^ao" das ciencias humanas e sociais. E facil entender o motive para isso: enquanto perdurava a crenca na unicidade e na validade absoluta do "metodo cientifico" teorizado pelas varias variantes do positivismo, seria facil deslegitimar qualquer tentativa de realizar investigates nas ciencias humanas e sociais que nao se ativessem escrupulosamente as regras estabelecidas pelo credo positivista. A demonstrada indefensabilidade desse credo abriu a porta para um pluralismo metodologico e teorico que permitiu um enriquecimento extraordinario das ciencias sociais e humanas como um todo, atenuando a pressao exercida pelos fundamentalismos cientiilcos. c) O impacto da corrente analitica centrada na linguagem cotidiana — Os fllosofos de Oxford nao so contribuiram para que se desse mais enfase a aten9ao que se deve dar ao fenomeno linguistico para que seja possivel compreender o ser humano e suas produces, como tambem provocaram uma reviravolta radical no proprio conceito da linguagem, proporcionando um novo status as produ9oes linguisticas. Essa reformula9ao conceitual da natureza e das fun9oes da linguagem produziu efeitos importantes e duradouros no campo das varias ciencias sociais e humanas, estimulando-as para que modificassem drasticamente muitos de seus projetos e de sua maneira de abordar os varies objetos de seus estudos. Citarernos aqui quatro grandes linhas de influencia: Emprimeiro lugar, a profunda critica que os fllosofos de Oxford flzeram a concep9ao puramente "representacional" e "designativa" da linguagem deu lugar a uma reconsidera9ao radical da propria natureza do conhecimento, tanto cientifico como ordinario, e tambem a uma refor37
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mulacao darelagao entre conhecimento e realidade, finalizando por redefinir o proprio conceito de realidade. " O conjunto dessas reformulagoes contribuiupara o desenvolvimento de uma importante corrente de pensamento que questionou muitas das certezas consideradas indiscutiveis desde a epoca de Descartes e muito especialmente a certeza de que existiam bases solidas e firmes, e uma fundamentagao ultima, sobre as quais se assentaria o conhecimento valido. A erosao dessa certeza deixou claro a fragilidade dos esforgos para encontrar uma fundamenta<^| gao indubitavel, realizados durante seculos, e redireciopou o trabalho filosofico para outros assuntos. De certa forma, seria possivel dizer que a critica oxfordiana a concepgao "representacionalista" da linguagem se estendeu, atraves da relagao estabelecida entre conhecimento e linguagem, as concepgoes representacionalistas do proprio conhecimento e aos criterios de "a verdade" que as acompanhavam, permitindo a revitalizagao do legado pragmatista e o auge de uma filosofia neopragrnatista, estimulada, entre outros, por filosofos da categoria de Richard Rorty (1931-). Como as ciencias sociais e humanas nao sao impermeaveis as contribuigoes feitas dentro da filosofia e muito especialmente dentro da filosofia do conhecimento e da epistemologia, e facilmente compreensivel que em todas essas ciencias tenham desaparecido algumas correntes que tentavam desenvolver suas investigacoes e seus projetos em consonancia com as formulagoes nao representacionalistas do conhecimento cientifico. Em segundo lugar, e paralelamente a critica ao representacionalismo, a insistencia da escola de Oxford em considerar a linguagem em termos de "atividade" (a linguagem faz coisas em vez de apenas "representa-las") sem 38
duvida contribuiu para o desenvolvimento das correntes "construcionistas" que surgiram e se consolidaram em varias ciencias sociais e humanas. De certa maneira, e possivel dizer que as contribuigoes de John Austin com relagao ao carater "performativo" de determinadas produgoes lingiiisticas se estenderam, neste caso tambem, ao conjunto da linguagem, plasmando-se na formula pela qual "dizer e, tambem e sempre, fazer". A linguagem se instiruia assim como "constirutiva" das coisas, mais do que meramente "descritiva" delas, deixando de ser palavra acerca do mundo para passar a ser acao sobre o mundo, A linguagem nao so nos diz como e o mundo, ela tambem o institui; e nao se limita a refletir as coisas do mundo, tambem atua sobre elas, participando de sua constituicao. O auge da concepgao "ativa" da linguagem teve repercussoes importantes em disciplinas como, por exemplo, a psicologia social, onde investigadores como Kennet Gergen ou John Shotter estao, arualmente, estimulando uma poderosa corrente socioconstrucionista. ou onde Michael Billig, Ian Parker ou Johnathan Potter, entre outros, estao desenvolvendo o prolifico campo da "analise do discurso". A psicologia evolutiva ou a psicologia clinica nao ficaram alheias a esse movimento construcionista e discursivo, e o mesmo ocorreu no caso da antropologia, da historia ou da sociologia para citar apenas algumas das disciplinas que fazem parte das ciencias sociais e humanas. Poderiamos apresentar uma infinidade de exemplos para ilustrar o impacto que essa nova concepcao da linguagem teve nas formulagoes mais atuais das varias ciencias sociais e humanas, mas nos limitaremos a assinalar a profunda renovagao por que passou, por exemplo, o estudo da identidade ou do "self, pela mao de autores como Charles Taylor (1931-), entre outros. 39
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O renovado interesse pela analise daqueles procedimentos retoricos em que se apoiain as diversas producoes discursivas, inclusive o discurso cientifico, permitiu demonstrar, nao so as estrategias argumentativas proprias dos varios tipos de discurso e os efeitos poderosos que se ocultam na estrutura discursiva, como tambem os artiflcios retoricos que sao usados para criar realidades diversas. A sociologia do conhecimento cientifico, por exemplo, renovou os estudos da ciencia, recorrendo, com Bruno Latour entre outros, a analises desse tipp,'para explicar o papel, nada desdenhavel, que desempefiham os procedimentos retoricos na constitm^ao dos proprios "fatos" cientificos.
Para Taylor, nossa identidade esta fundamentalmente determinada pela linguagem que utilizamos para referir-nos a nos mesmos e para forjar nosso "autoconceito". Nao existe uma realidade subjacente, um "eu" profundo e pessoal, suscetivel de ser descrito de varias maneiras, recorrendo a vocabularies distintos e a distintas expressoes linguisticas: o que sim existe e o proprio vocabulario que utili20 para me descrever a mim mesmo e as expressoes linguisticas as quais recorro para faze-lo sao constituintes e constitutivas de minha forma de ser; elas nao explicitam ou explicam minha maneira de ser, pelo contrario, a conformam. Em outras palavras, o meu "eu" nao e independente de como o vivencio quando o interpreto linguisticamente; ao contrario, ele e resultado dessa interpretasao. Outra forma de "me dizer" a mim mesmo implica uma outra concepsao de mim mesmo, e isso e importante porque ocorre que minha conceppao de mim mesmo e constitutiva daquilo que sou. Isso tern repercussoes importantes, tanto para a conducao de investigacoes sobre a identidade, como para definir essa realidade substantiva que e a identidade. Em terceiro lugar, cabe ressaltar que, tanto quanto "acao sobre o mundo", a linguagem e tambem, e consequentemente, "a?ao sobre os demais", chegando, inclusive, a constituir um dos principals instrumentos ao que recorremos para incidir, com maior ou menor exito segundo as circunstEincias, sobre nossos semelhantes. Levar em consideracao essa propriedade da linguagem contribuiu para renovar o interesse que Aristoteles ja tinha demonstrado pela retorica, bem assim como para avivar a sensibilidade com relagao aos efeitos sociopoliticos e psicologicos que emanam das varias praticas discursivas, dando uma atengao especial, por exemplo, as constni9oes lingiiisticas "sexistas", "racistas" ou que estigmatizem de um modo geral.
Finalmente, em quarto lugar, ocorre que, se a linguagem e constitutiva de realidades e e um instrumento para atuarmos sobre o mundo, inclusive sobre nossos semelhantes, devemos esperar que ela incida tambem sobre a conforma^ao e o desenvolvimento das rela?6es sociais e das praticas sociais. Correntes amplas e interessantes da sociologia foram particularmente sensiveis a esse fato, desde a etnometodologia, com suas analises minuciosas das conversas cotidianas, ate as sociologias qualitativa e interpretativa. Em suma, no final do seculo XX e comego do seculo XXI, a diversidade e a riqueza das perspectivas nascidas tanto do enfoque sobre a linguagem quanto, e sobretudo, da nova compreensao que temos dela, sao, no minimo, impressionantes: narratividade, dialogismo, hermeneutica, constru^ao, analise conversacional, analise do discurso, analise retorica, etc. Pouco a pouco, a linguagem foi se tornando um fenomeno que nenhuma das ciencias sociais e humanas pode evitar quando empreende o tratamento de seus objetos especificos. Mas, alem disso, a linguagem aparece tambem
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como um elemento que todas as ciencias humanas e sociais tern que interrogar para estabelecer seu proprio status epistemologico e para forjar urn entendimento de si mesmas. 8. Perspectives para o amanha
Ja iniciado o seculo XXI, devemos nos perguntar se o "giro linguistico" com o qual teve come90 o seculo passado nos reservara alguma surpresa e se as primeiras decadas do novo seculo acentuarao ainda mais a centralidade da linguagem ou se, ao contrario, o "giro linguistico" conhecera um periodo de refluxo, sendo substituido pela emergencia de algum giro novo. Como nao dispomos, obviamente, de nenhuma bola de cristal ilusoria, as reflexoes a seguir devem ser consideradas apenas como conjecturas, timidas e inseguras, que poderao ser desmentidas pouco tempo depois de terem sido enunciadas. Mas, enfim, hoje sabemos que nada e seguro nem definitive. Nem mesmo o passado esta escrito para sempre, porque, como muito bem observou Dante, para escreve-lo com seguran9a tambem teriamos que conhecer todo o future. Portanto, podemos apenas arriscar-nos a manifestar algumas consideracoes, que por simples prudencia, reduziremos a duas e que indicam a possibilidade de um giro "pos-linguistico". Em primeiro lugar, os desenvolvimentos extraordinarios daquilo que alguns chamam de "a nova fisica" mostram que nossa linguagem e um instrumento muito grosseiro para abarcar toda a realidade que somos capazes de construir. Com efeito, nos, os seres humanos, formamos nossos idiomas com base em uma determinada "relacao com o mundo". Essa "relacao com o mundo" estabelece um espa9o tridimensional habitado por uma variedade de "objetos" cujas propriedades se defmem com base em nossos mecanismos sensoriais e perceptivos ampliados por 42
nossas capacidades de analise, abstra9ao e generaliza9ao. Nesse mundo, o tempo e o espaco constituem realidades divididas que correm por leitos separados. Nossos movif* mentos, gestos e agoes sobre essa realidade, que e como e porque nos somos como somos, foi forjando nossos conceitos e a estrutura logico-linguistica que os constitui. Definitivamente, nossa linguagem nasce de uma relacao com o mundo feita a medida de nosso corpo e de suas caracte,risticas e a ela retoma. Por isso temos a ilusao de que ela. descreve o mundo "tal como e"? Mas as atividades intelectivas do ser hurnano nao se conformaram em explorar o mundo estabelecido apenas atraves de seus mecanismos sensoriais/perceptivos e de suas arua9oes praticas, e se estenderam para fora do mundo e alem da "escala humana" ate o macrocosmo e ate o microcosmo. Ambitos esses onde a realidade ja nao pode ser construida com base em uma linguagem "natural" surgida de coordenadas mesocosmicas, ou seja, a escala do corpo humano. O resultado disso e que certas constni9oes intelectivas, tais como, por exemplo, a mecanica quantica e, mais precisamente, "a teoria dos campos quanticos" desenham um mundo totahnente obscuro para nossa linguagem e, portanto, para nossa arquitetura conceitual. Trata-se de um mundo onde, por exemplo, "os objetos" se convertem em "propriedades dos objetos" (um corpusculo pode se transforrnar em puro movimento) e onde as propriedades dos objetos podem se transforrnar em outros objetos (a energia pode se converter em um corpusculo). No mundo quantico encontratnos objetos que nao estao localizados com precisao em nenhum segmento espa9O-temporal definido, mas que tampouco podem ser conceirualizados como ondas porque nao ha nenhum meio em que se propaguem. Isso significa que e nosso proprio con43
Tomds Ibdnez Gratia
1. 0 "giro lingiiistico"
ceito de objeto que deixa de ter sentido para designar ou ^ pensar as entidades que projetamos no universo quantico. E, apesar disso, essas entidades existem efetivamente, na medida em que podemos operar com elas e sobre elas, e em que elas produzem efeitos praticos que nossas tecnologias utilizam cada vez mais. Encontramo-nos, assim, diante de entidades que nao se deixam "dizer" atraves de nossa linguagem e quando as estudamos temos que transcender nossas categorias lingiiisticas para poder produzir resultados cientificamente valiosos e com utilidade pratica. E mais, essas entidades se constroem como produto de expressoes matematicas complexas e sao, por assim dizer, a conclusao sobre a qual desemboca urn puro formalismo matematico.
1900), deram enfase a importancia do corpo, de nosso corpo, para o desenvolvimento de nosso pensamento, esta recuperando sua importancia. "Minnas ideias melhores", dizia Nietzsche, "surgem quando caminho". O "giro linguistico" contribuiu para o sucesso da afirmagao segundo a qual nosso "ser no mundo" descansa sobre uma dimensao hermeneutica inevitavel. A interpretacao e formativa da7 quilo que somos e nao podemos chegar a ser independentemente de nossa atividade interpretativa. Essa afirmagao. parece razoavel, mas o giro linguistico" privilegiou o papel que a linguagem desempenha na dinamica da interpretacao, enfatizando a centralidade das praticas discursivas no processo hermeneutico.
Em segundo lugar, parece que a insistencia com a qual Schopenhauer (1788-1860) e, depois dele, Nietzsche (1844-
No entanto, tambem construimos um sentido^iefaveL, tambem nosso corpo opera como gerador de significados que nao se deixam prender no interior do codigo linguistico ou, no minimo, cabe considerar que o que nosso corpo vivencia orienta algumas de nossas interpretagoes. Nao so temos que expandir o campo da hermeneutica para o espa90 das praticas "nao discursivas" como tambem contemplar a corporificacao das praticas discursivas. O redescobrimento da^qrporeidade pelo pensamento do fim do seculo pode contribuir para possibilitar um novo "naturalismo" que diminua a importancia que o seculo XX concedeu a linguagem.' Essas consideracoes/sobre 'um possivel esgotamento do "giro hngiistico'^Sevem ser consideradas como uma simples(digressao)que, paradoxalmente, pretende ser iiel ao esfor?o que o "giro linguistico" acarretou. Aqueles que captaram um dos argumentos basicos dessa parte da r disciplina sabem que, para que o "giro linguistico" pudesse surgir, foi necessario um enorme esforgo de imaginagao que rompesse com as evidencias herdadas e com, as amarras do pensamento dominante, Para criar o "giro
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A realidade subatomica parece ser outra realidade que nossa linguagem nao e capaz de descrever ou de construir. O giro lingiiistico mostrou claramente o papel que a linguagem desempenha na formagao daquilo que chamamos de "a realidade"; mas, se construimos certas realidades (por exemplo, a realidade quantica) usando procedimentos que escapam do ambito que a linguagem e capaz de abranger, parece que deveriamos abandonar a famosa expressao de Wittgenstein segundo a qual "os limites da minha linguagem sao os limites de meu mundo". Esse fato pode possibilitar a emergencia de urn neopitagorismo (a crenga na realidade fatica dos numeros, das expressoes matematicas e na qual a realidade e, em ultima instancia, numerologica), permitindo um "giro platonico" que volte a situar o mundo das "ideias" em um lugar privilegiado, arruinando o esforgo para acabar com esse privilegio que o "giro linguistico" representou.
Tomds Ibdnez Gratia
1. 0 "giro linguistico"
linguistico" foi precise pensar contra a corrente, e seus protagonistas tiveram que "esquecer" uma parte substantial das ideias que tinham nutrido e configurado seu proprio pensamento. Ja que somos "filhos do seculo XX", temos que tentar pensar contra a corrente do giro linguistico que impregnou o pensamento de nosso seculo. Essa e a condicao para nao sermos identicos aqueles que defendiam com toda a naruralidade "o mundo das ideias" no mesmo momento em que se comegava a gerar esse "giro lingiiistico" que esgotaria esse mesmo mundo das ideias. Sintese
Este capitulo nos ensina como o "giro linguistico" rompe, em seus primordios, com uma tradigao secular centrada no estudo do "mundo das ideias", mundo interior e privado, e orienta a obra filosoficapara o estudo dos enunciadosjinguisticos. Isso significa uma profunda modificagao em nossa concepcao da linguagem, pois essa deixa de ser considerada como um simples meio para traduzir ou expressar, de melhor ou pior forma, nossas ideias, para ser, considerada um instrumento para exercitar nosso pensamento e constituir nossas ideias. A linguagem e a propria condigao de nosso pensamen-, to, ao mesmo tempo em que e um meio para representar a realidade. O "giro linguistico", portanto, substitui arelagao "ideias/mundo" pela relagao "linguagem/mundo" e. afirma que para entender tanto a estrutura de nosso pensamento quanto o conhecimento que temos do mundo e preferivel olhar para a estrutura logica de nossos discursos em vez de esquadrinhar as interioridades de nossa mente. Mas este capitulo nos ensina tambem que o "giro linguistico" possibilitou, no transcurso de seu proprio"1 46
volvimento, uma segunda modificagao de nossa concept gao da linguagem. Essa deixou de ser vista como um meio^ para representar a realidade e passou a ser considerada um instrumento "para fazer coisas". Junto com suas funcoes "descritivo/representacionais" a linguagem iria adquirir, portanto, um carater "produtivo" e se apresentava como, um elemento "formativo de realidades". O capitulo tenta ilustrar quais foram as varias influencias que essas novas concepgoes sobre a natureza da linguagem tiveram sobre as concepgoes do conhecimento e da realidade, como tambem, em um piano niais especifico, sobre as orientagoes e os objetos de estudo das varias ciencias sociais e humanas.
Glossario Atos de linguagem: expressao cunhada por J.L. Austin para se referir as expressoes linguisticas que devem ser enunciadas explicitamente para que uma realidade determinada possa se configurar. Por exemplo, a expressao "sim, quero" deve ser pronunciada em determinados rituais para que o matrimonio seja estabelecido. Performatividade: propriedade que determinados enunciados lingiiisticos tern de afetar a construgao de realidades. Em determinadas concepgoes da linguagem, essa propriedade, inicialmente limitada a um tipo de expressoes linguisticas, passa a ser considerada generalizavel a linguagem como um ttJdo. Pragmatica: parte da linguistica que se dedica ao estudo dos usos da linguagem comum e leva em consideragao tanto os contextos como os efeitos, nao diretamente lingiiisticos, que envolvem praticas discursivas concretas ou que delas resultem. 47
1. 0 "giro lingiiistico"
Tomds Ibanez Gratia
Proposicdo: expressao lingiiistica convenientemente formalizada de acordo com os procedimentos da logica moderaa para que se possa estabelecer seu "valor de verdade". Representacionismo: doutrina filosofica que postula uma relagao de correspondencia entre o conhecimento e a realidade que vai mais alem da simples utilidade pratica do conhecimento para operar sobre a realidade. Nessa doutrina, sup5e-se que o conhecimento valido representa fielmente a realidade e que e possivel demonstrar a correspondencia entre conhecimento e realidade. Bibliografia AUSTIN, J.L. (1962). Como hacer cosas con palabras. Barcelona: Paidos, 1998. BRUNER, J. (1990). Actos designificado. Madri: Alianza [1991]. D'ESPAGNAT, B. (1981). En busca de lo real: la vision de unfisico. Madri: Alianza Universidad [1983].
Leituras complemeritares BRUNER, J. (1991). Actos designificado. Madri: Alianza. Escrito por um dos mais eminentes psicologos contemporaneos, esse livro e uma esplendida ilustrasao do giro linguistico no ambito da psicologia. DOMENECH, M. & TIRADO, FJ. (1998). Sociologia simetrica-Ensayos sobre ciencia, tecnologia y sociedad. Barcelona: Gedisa. Trata-se de uma recopilafao de textos germinais alem de seis desdobramentos da sociologia do conhecimento cientifico. FOUCAULT, M. (1970). El orden del discurso. Barcelona: Tusquets. Esse texto de Michel Foucault foi o discurso inaugural que fez quando foi nomeado professor no College de France. Nele pode-se apreciar a importancia das relacoes de poder para a constru9ao de nossas praticas discursivas. ORTOLIS, S. & PHARABAD, J.P. (1997). El cantico de la cudntica. Barcelona: Gedisa.
DOMENECH, M. & TIRADO, FJ. (1998). Sociologia simetrica—Ensayos sobre ciencia, tecnologia e sociedad. Barcelona: Gedisa.
Uma obra de divulgapao, muito util para conhecer os desenvolvimentos e implicacoes da fisica quantica.
FOUCAULT, M. (1970). El orden del discurso. Barcelona: Tusquets [1973].
RORTY, R. (1983). Lafilosofiay el espejo de la naturaleza. Madri: Catedra.
ORTOLIS, S. & PHARABAD, J.P. (1984). El cantico de la cudntica. Barcelona: Gedisa [1997]. RORTY, R. (1979). Lafilosofiay el espejo de la naturaleza. Madri: Catedra [1983].
Esse livro, celebrado como um grande acontecimento no momento de sua publicacao, constitui uma das analises mais incisivas sobre os efeitos que o cartesianismo teve em nossa concepgao do ser humano e do conhecimento.
RORTY, R. (1967). El giro lingiiistico. Barcelona: Paidos/ICEUAB[1990].
Como e um livro bastante denso, nao estamos sugerindo que seja lido em sua integridade, mas e recomendavel que o proprio leitor selecione alguns capitulos e reflita sobre seu conteudo.
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papel que alinguagem adquifiuiriasdcieiicias"sociais nos ultimos anos foi tao relevante e substantive que nao seria um exagero dizer que foi um papel de protagonista. O obietivo deste capitulo e examinar os fundamentos que sustentam e nutrem esse papel. No decorrer do capitulo e nossa intencao disponibilizar os elementos precisos que facilitam a identificasao das principals perspectivas que cimentaram essa relevancia. Da mesma forma, fornecermos as chaves que pennitam reconhecer as caracteristicas principals dessas perspectivas e examinar as consequencias que elas tiveram para as ciencias sociais.
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O giro linguistico, a "Teoria dos atos da fala", aLinguistica pragmatica, a Etnometodologia e alguns aspectos da obra de Michel Foucault, sao os cinco eixos representatives ao redor dos quais organizamos a exposi9ao e sua fundamenta9ao. • O giro linguistico porque fez surgir a possibilidade de a agao cientifica ser considerada como uma pratica social equivalente a qualquer outro tipo de a9§o so-
cial; e porque deu a ciencia social um ernbasamento epistemologico do tipo nao-representacionalista. • A " Teoria dos atos da fala" porque ve na "fala" uma acao equivalente a qualquer outra. Ou seja, ela e como uma "manobra" capaz de "fazer coisas". • A Linguistica pragmatica, tambem chamada de Pragmatica, porque fornece o arsenal teorico e metodo!6gico para a analise da linguagem em seu uso. • A Etnometodologia, porque ve o ser humano como um "sociologo na pratica" . Ou seja, como uma pessoa que e capaz nao so de atuar em seu contexto social, como tambem de descrever, falar e construir a realidade. A Etnometodologia sintetiza magistralmente os principios basicos que permitem inserir a linguagem como um elemento-chave na analise e na compreensao da vida e da estrutura social e, alem disso, os leva a pratica, teorica e metodologicamente. • Certos aspectos da obra de Michel Foucault, porque permitem compreender a conexao entre as praticas discursivas e a constnujao e manuten9ao da estrutura social, ao mesmo tempo em que se envolve, de uma maneira critica, em uma investigacao social cuja marca caracteristica e o questionamento constante. A seleQao desses cinco eixos nao e arbitraria, pois, como iremos detalhar, eles apresentam um fio condutor que da coerencia as inumeras praticas que, sob o titulo de "analise do discurso" ou "perspectiva discursiva", ganham cada vez mais forpa nas ciencias sociais. No entanto, esse nao e o unico fio condutor possivel. Certamente, outras perspectivas discursivas, a que apenas aludiremos, formariam um fio condutor diferente. Entretanto, podemos afirmar que poucas selecoes teriam a mesma relevancia para o processo que essas que aqui assinalamos. O argumento principal do capitulo e que, inicialmente, o papel que a linguagem teve nas ciencias sociais foi ape-
* Universidade Autonoma de Barcelona.
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2. A linguagem. nas ciencias sociais...
Lupicinio Iniguez nas auxiliar. Em urn primeiro momento, ela tinha uma fun^ao de apoio basicamente metodologico'(no sentido de oferecer ferramentas e instrumentos de analise para a investigacao de processes socials), bem assim como de complemento a atividade investigadora. No entanto, paulatinamente, o papel dado a linguagem chegou a configurar uma perspectiva especifica, presente em uma grange variedade de correntes sociologicas e psicossociais, onde a "linguisticidade" e o "linguistico" ocupam um lugar central. Atraves dos elementos e recursos que forein sendo facilitados durante o percurso que delineamos no capitulo, poderemos nos inserir no campo da investigacao social baseado na linguagem e explorar.as vertentes oferecidas no texto atraves das referencias que Ihes dao apoio. Da mesma forma, o itinerario que propomos permitira identificar a trajetoria mencionada, ou seja, a que vai do uso da linguagem como ferramenta metodologica ate a constitui930 discursiva de correntes e perspectivas..r Consideratoes preliminares
Nos ultimos anos, nas ciencias sociais e humanas vem se produzindo um movimento muito intense, poderiamos dizer que ate mesmo radical, que vamos tentar reproduzir neste capitulo. Uma das caracteristicas principals desse movimento tern que ver com as mudan?as que podemos observar no campo da metodologia e da teoria. Certas opcoes metodologicas e a enfase na linguagem que foram conectando muitos metodos pouco a pouco acabaram por se converter em novas perspectivas teoricas em si mesrnas, formando uma proposicao teorica radicalmente diferente daquela que caracterizou os periodos precedentes.
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Um dos exemplos mais evidentes desse processo e, sem duvida, o da Analise de Discurso (daqui em diante. AD). Esse e um metodo que surgiu na propria estrutura do giro linguistico, e foi profusamente utilizado. Alem disso, a AD e um rotulo comumente usado para definir uma grande quantldade de metodos empiricos que sao utilizaveis e utilizados para o estudo de uma enorme variedade de temas. A titulo de exemplo, podemos dizer que esses temas cobrem desde o estudo das interac.oes cotidianas face a face ate processos como a memoria, o pensamento e as emocoes e inclusive problemas sociais como a exclusao. social, a diferenciacao de genero e o racismo. Como metodo, a AD tem tanto semelhanpas quanto diferen9as com outros enfoques metodologicos que se enquadram na chamada "metodologia qualitativa" (Denzin & Lincoln, 1994). Como exemplo, podemos citar a analise de conteudo (Bardin, 1977), a analise narrativa (Bruner, 1990; Cabruja et al., 2000) e outras formas de analise baseadas na lingiiistica (Casmiglia & Tuson, 1999). Porem, o que vamos ressaltar neste capitulo e algo que ocorreu e ainda ocorre nas varias disciplinas sociais e humanas como a Sociologia e a Psicologia. A saber, que alem de ser uma alternativa metodologica, a reflexao teorica que deu origem a AD e que a acompanha em seu desenvolvimento esta provocando um efeito sumamente interessante. Portanto, nos dias de hpje, o que devemos destacar com relaa AD nao e sua importancia como metodo e sim o fato e a ^ s uma perspectiva a partir da qual podemos analisar os processos sociais. Como veremos no capitulo intitulado "A analise do discurso nas ciencias sociais", sob o nome de AD existem rotulos, nomes e perspectivas multiplas e muito diferentes, com principios, caracteristicas e procedimentos tambem diferentes. Tal e sua variedade que nao podemos men-
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ciona-las todas e, portanto, selecionamos algumas daquelas que sao consideradas mais representativas. Vamos examinar a AD com o unico objetivo de que, ao final, possamos dispor de um amplo panorama desse cenario peculiar que seja suficientemente atraente para estimular os leitores a se aprofundarem no assunto. Com esse fim, comecaremos pelo itinerario inicial da AD. Obviamente cada perspectiva na AD apresenta certos fundamentos e descreve certas raizes que nem sempre co-/-incidem com as descritas em outras perspectivas. Apresentaremos quatro contextos de desenvolvimento historico, que, em nossa opiniao, comega com a) "Giro lingiiisJ tico", continua com a b) Teoria dos atos da fala", prosse| gue com a c) "Pragmatica lingiiistica" e com a d) "Etno/ metodologia" e podemos conclui-la com e) A obra de Mi(chel Foucault. Aqueles que defendem uma ideia de discurso e de AD que seja diferente daquela que apresentaremos aqui diferirao, certamente, desse itinerario historico e conceitual e provavelmente darao enfase a outras tradigoes aqui omitidas e poderao ate mesmo negar algumas das relacoes que defendemos. Apesar disso, para a maioria dos estudiosos e estudiosas sera facilmente admissivel que os desenvolvimentos aqui expostos exerceram, direta ou indiretamente, uma grande influencia na constiruigao e no desenvolvimento da AD. ===»
1. 0 giro Linguistico
Como o giro linguistico foi apresentado detalhadamente no primeiro capitulo, aqui nao insistiremos muito em seus pormenores. Enfatizaremos apenas suas caracteristicas mais relevantes como uma moldura para a apresentagao do papel da linguagem nas ciencias sociais e hu54
rnanas e, mais concretamente, nas ferramentas anallticas como a AD. Um dos aspectos relevantes que merecem ser destaca^ dos esta relacionado com a natureza do giro linguistico. Como sempre ocorre quando uma formulagao bem-sucedida acaba fazendo parte da bagagem comum em um amplo espaco da ciencia,"existe uma certa simplificacao quando nos referimos a ele. Com efeito, costuma-se confundir o giro linguistico com um mero interesse pela linguagem. J, No entanto, como vimos no primeiro capitulo, o linguistico e particularmente interessante nao porque prcTponha que a linguagem e importante, nem porque sugiTa que a maior parte das acoes humanas sao iinguisticas ou, como airia Wittgenstein, porque tudo e linguagem. Naoj por tudo isso que ele se torna importante. Sua releygncia reside no fato'de que contrapoeTliriguagem cQtidiana(ou seja, o que nos dizemos quando falamos) a linguagem cientifica especializada e formal, suscitando a pergunta sobre se e ou nao necessario elaborar uma linguagem propria, capaz de explicar como e o mund'oT Esse empreendimento foi, precisamente, a antitese de\ outras perspectivas que nas ciencias sociais e humanas incorporaram o esrudo da linguagem, como, por exemplo, o positivismo. Q que se questiona e se a iinguagem- sim ou nao - explica, expoe1 ou reproduz arealidade. Assim, portanto, nao e so devido ao interesse pela linguagem, ja que o giro linguistico nunca teve tal repercussao simplesmente porque as ciencias sociais vieram a se interessar pela linguagem. O giro linguistico foi um giro no sentido de ter sido uma mudanga radical gragas ao seu questionamento se a linguagem cotidiana e suficiente para explicar o mundo e a vida real. J O famoso trabalho de Rorty (1967) que da o nome a esse movimento debate precisamente aquilo que, em um 55
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determinado momento dos anos I960, estava em pleno apogeu. Ou seja, ele questiona a etnpresa de construir uma linguagem formal que explique o mundo, uma linguagem tao distante quanto possivel da linguagem cotidiana. Apos Rorty e o giro linguistico, o que temos e uma exaltacao, se e que seja possivel dize-lo assim, uma dignificacao da linguagem cotidiana que se converte na unica linguagem possivel, com um respective rebaixamento da linguagem formal para ocupar o espa9o da cotidiana. As conseqiiencias disso para o itinerario de construgao de um enfoque critico nas ciencias sociais e humanas foram extraordinarias. Alem das que ja foram mencionadas no capitulo "O giro linguistico", sua importancia e crucial porque abre caminho para duas dimensoes fundamentais: 1) para que se converta o trabalho da ciencia em uma pratica social a mais, igual a qualquer outra; porque as pessoas que se dedicam a fazer ciencia utilizam a linguagem da mesma maneira que as nao cientistas; 2) para a fundamentagao epistemologica mais importante da ciencia social critica que e o trabalho anti-rev presentacionalista de Rorty. ^_ Com efeito, a origem basica do anti-representacionalismo de Rorty e essa ideia do giro linguistico. Seu interesse reside nao tanto no fato de que, a partir daquele momento, as ciencias humanas e sociais comecaram a se interessar pela linguagem, mas sim no fato de ter^^^^i^^fc)a operacao da construcao das; linguagcns formais comojsendo a melhor °ianeirademati' funcao alingua^emcotidiana.
de valide'z, iguaiando as praticas das pessoas que se dedi-j cam a fazer ciencia as praticas de qualquer pessoa comum que anda peia rua. A suposta superioridade, adequabilida-[ de, reprodutibilidade, capacidade heuristica, etc. das linguagens formais desaparecem e fazem com que seja possivel pensar que nao precisamos ir mais alem da maneira como as pessoas comuns interpretam, fazem e constroem arealidade1. Pensando nas ciencias humanas e sociais, de maneira geral, uma outra porta se abriu a partir do "giro linguistico". Essa porta e a condigao mais digna que se atribui a agao social. Reconhece-se que existem teorias sobre a acao 'social em campos disciplinares tradicionais, sobretudo os. sociologicos. E inegavel, entretanto, que em todas elas ha uma hierarquia dessas acoes, em que nem todas as acoes dos seres, > humanos ocupam a mesma posicao. O "giro linguistico^ trouxe a possibilidade de pensar toda acao humana no mesmo piano. Como isso e possivel? Simplesmente considerando que i nao existe operagao de fala que nao sej a tambem uma agao, } compreendida em seu sentido estritq 2. A teoria dos atos da fala
No itinerario basico que estamos percorrendo, outro elemento-chave foi a "Teoria dos atos da fala".
O impacto dessa ideia tao simples no ambito das ciencias sociais e humanas foi fundamental porque fez desaparecer, deslegitimou de maneira total, toda a pretensao da chamada linguagem cientifica, e tirou dela qualquer tipo
1 Atualmente ainda esta muito enraizada a ideia de que a linguagem cientifica dispoe de recursos que a fazem mais adequada na tentativa: de fazer o mundo que nos rodeia mais inteligivel. Essa ideia esta tao presente entre nos que com muita frequencia chegamos a cair em uma retorica^especialjzada, capaz de criar uma especie de giria que sops, cientistas entendem. O que e interessante na proposta do giro linguistico e a consideracao de que essa linguagem e precisamente uma giria, igual aquela que um grupo social cria em seu bairro, ao falar de suas. vJ4as e de seus assuntos.
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2. A linguagem nas ciencias socials.,.
Quando John L. Austin (1962) propos como objeto de analise a significacao, baseava-se nas proposigoes do giro Jingiiistico. Sua proposta e que, no processo de'significagao, o fundamental nao e nem a conexao do significante, com ° significado, nem a maneira pela qual se elabora o significado. A questao nao e nem como se reproduz o sinal, nem como se codifica, nem como se decodiilca problemas que estao presentes em todos os debates tipicos da linguistica tradicional. Segundo Austin, o importante e como se fala e, como vimos no capitulo "O giro Hnguistico", falar e uma acao equivalente a qualquer outra e, portanto, regulada da mesma maneira como estao reguladas todas as agoes dos individuos. A grande contribuigao de Austin, que abre uma possibilidade metodologica para a AD, foi afirmar que quando t'alamos nao estamos expressando um significado e sim que estamos fazendo alguma coisa. Essa sutileza, que forma parte do contexto mais ou menos geral ate mesmo da linguistica contemporanea, e a que representou, na sua epoca, um giro realmente revolucionario porque, parafraseando Austin, "quando eu digo certas coisas, a agao esta exatamente naquilo que digo". Essa contribuigao de Austin abre o caminho para a AD e, portanto, sem a "Teoria dos atos da fala", continuariamos ainda hoje presos a essa visao representacional da linguagem. Nesse sentido, podemos afirmar que o giro lingiiistico por um lado e a Teoria dog atos da fala, por outro, nos deram a possibilidade de pensar que a linguagem nao e uma janela para saber o que ocorre na cabeca, e sim uma agao em seu proprio direito2.
Austin estabeleceu a diferenga entre expressoes constatativas e expressoes realizativas. As primeiras sao aquelas que descrevem o mundo, ou as coisas que fazem parte do mundo e que, conseqiientemente, podem ser avaliadas em termos de verdade ou falsidade. As expressoes realizativas, tambem denominadas oragoes realizativas ou simplesmente realizativos, nas que Austin (1962) focalizou especialmente seus estudos, sao expressoes que, emitidas nas circunstancias apropriadas, nao se limitam a ser uma mera descrigao ou enunciagao daquilo que se faz e, sim, rigorosa e diretamente, o fazem, executam ou realizam. Em outras palavras, um realizativo e uma expressao linguistica cuja caracteristica definitoria nao e a declaragao nua ou elementar, nem tampouco a simples emissao de uma informagao, verdadeira ou falsa, sobre alguma coisa. Um realizativo faz alguma coisa no proprio falar, em sua expressao se consuma urna agao, que nao e o mero dizer algo. Como indicamos, as expressoes realizativas nao sao nem verdadeiras nem falsas, mas, como diz Austin, podem ser mais ou menos bem-sucedidas. Com efeito, como agoes, essas expressoes nao representam nada em particular, e, portanto, nao podemos determinar se elas sao ounao apropriadas para uma suposta realidade que estariam representando. No entanto, ao estarem necessariamente determinadas por certas condigoes de contexto, o que sim podemos avaliar e seu sucesso ou fracasso na realizagao daquilo que pretende:
2 Ja vimos alguns exemplos no capitulo "O giro linguistico". Mas considerando ainda um outro: "Eu te batizo". Na tradicao crista o batismo nao e unicamente derramar agua na cabe?a de alguem, da mesma forma que tampouco e suficiente que seja feito por um sacerdote. O batisrno acontece quando alguem pronuncia essa frase: "eu te batizo".
Nao e 0 ritual, nao e a pessoa que o executa, nao sao as condigoes que legitimam o ato; e a propria expressao do verbo batizar. Insistindo devido a importancia das ideias ja desenvolvidas no capitulo anterior, o importante e que a acao de falar e, ela mesma, uma acao que nao representa nada, nao se pode por no lugar de nada, nao informa nada, Ela e, no sentido estrito, o proprio ato.
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Lupidnio Iniguez Alem de pronunciar as palavras correspondentes ao realizativo, e mister, como regra geral, que muitas outras coisas andem bem e saiam bem para poder dizer que a 3930 foi executada com exito. Esperamos descobrir quais sao essas coisas examinando e classificando tipos de casos nos que algo sai mal e, como resultado disso, o ato assumir um cargo, apostar, legar, batizar, ou seja o que for — e um fracasso ou, pelo menos, e um fracasso ate certo ponto. Podemos dizer, entao, que a expressao lingiiistica nao e, na verdade, falsa e sim, em geral, malsucedida. For esse motive, chamaremos a doutrina das coisas que podem andar mal e sair-se mal, fazendo uso de tais expressoes, de a doutrina dos Infortunios (Austin, 1962: 55).
As expressoes realizativas podem ser de varies tipos. Austin distinguiu os atos locucionarios (locutionary acts) os atos ilocucionarios (illocutionary acts) e os atos perlocucionarios (perlocutionary acts). Um ato locucionario ou locutivo e aquele que se realiza ao dizer meramente alguma coisa; ao emitir o som das palavras. Trata-se de um ato (que incorpora os atos foneticos, "faticos" e "reticos") que possui significado. O ato ilocucionario ou ilocutivo e aquele que se realiza ao dizer alguma coisa; e aquele que possui uma certa for9a ao fazer alguma manifestapao. Dessa forma, realizar um ato ilocucionario e diferente da simples realiza9ao do ato de expressar-se: e executar um ato ao dizer algo. For isso, para determinar que tipo de ato ilocucionario estamos realizando e necessario determinar de que maneira estamos utilizando a locupao. Nesse sentido, Austin (1962) denomina o "sistema" dos tipos diferentes de fun9ao da linguagem em tomo aos atos ilocucionarios de "doutrina das for9as ilocucionarias". For ultimo, o ato perlocucionario ou perlocutivo e o que se realiza ao dizer algo. Ou, o que e a mesma coisa, as conseqiiencias ou efeitos que sao produzidos por aquilo que foi dito; o resultado de certos efeitos pelo fato de ex60
pressar-se. Com efeito, normalmente uma expressao da origern a certas consequencias ou efeitos sobre os pensamentos, e sobre os sentimentos ou a9oes daqueles ou daquelas a quern se dirige a Iocu9ao, ou, e claro, sobre o proprio emissor da expressao. Embora nao seja imprescindivel, e possivel que, ao dizer alguma coisa, estejamos agindo com a inten9ao ou o desejo de produzir tais efeitos. E precisamente quando sao produzidas certas consequencias ou efeitos que e possivel afirmar que quern emite a expressao realizou um ato perlocucionario ou uma perlocugao, que pode ser descrito fazendo-se uma referencia indireta (ou nenhuma referencia) a realiza9ao do ato locucionario ou ilocucionario. Em suma, e usando, uma vez mais, as palavras de Austin, entre as expressoes realizativas ou realizativos, e precise estabelecer varias distin9oes que correspondem a execu9ao dos varies atos: Em primeiro lugar, distinguimos um grupo de coisas que fazemos ao dizer alguma coisa. As agrupamos expressando que realizamos um ato locucionario, ato que, aproximadamente, equivale a expressar certa oracao com um certo sentido ou referencia, o que, por sua vez, e aproximadamente equivalente ao "significado" no sentido tradicional. Em segundo lugar, dizemos que tambem realizamos atos ilocucionarios, tais como informar, ordenar, advertir, comprometer-nos, etc., isso e, atos que tern uma certa forca (convencional). Em terceiro lugar, tambem realizamos atos perlocucionarios; aqueles que produzimos ou conseguimos porque dizemos algo, tais como convencer, persuadir, dissuadir, e, inclusive, surpreender ou confundir. Aqui temos tres sentidos ou dimensoes diferentes, senao mais, da expressao "uso de uma oracao" ou "uso da linguagem" (e, por certo, tambem existem outras) (Austin, 1962:153).
Assim, portanto, a fala como 3930 coloca em pratica a ideia, derivada do giro lingiiistico, segundo a qual a lin-
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guagem nao e representativa da realidade e, sim, produz essa realidade. Austin deslinda os processes atraves dos quais essa constiruipao e realizada e, portanto, gera as condigoes que possibilitam inserir a linguagem como processo social de pleno direito e para a propria AD. 3. A Linguistica pragmatica
Linguistica pragmatica ou Pragmatica (Levinson, 1983) sao os nomes que habitualmente recebe o terceiro dos fundamentos da AD. Nos deterernos um pouco mais na Pragmatica por ela nao ter sido tratada com a mesma profundidade com que o giro linguistico e a "Teoria dos atos da fala" foram tratados no capitulo "O giro linguistico". No estudo do signiflcado, a teoria lingiiistica dominante e, em qualquer de suas modalidades, a teoria do sinal, baseadana formulagao de Ferdinand de Saussure (1915) sem grandes variacoes. A Pragmatica, no entanto, e apenas relacionada com essa teoria, e apresenta-se como uma alternativa a ela. Na teoria do sinal tradicional postula-se a existencia do par significante/significado. Segundo essa teoria, a relacao entre ambos extremes do par e totalmente arbitraria. Paralelamente, pode-se dizer que ha aqui uma postulagao implicita de que os significados mantem alguma relacao com o mundo, uma relacao que e provavelmente de representagao e em virrude da qual podernos substituir o objeto do mundo real pela palavra. Com efeito, na lingiiistica tradicional, presume-se a existencia de algum tipo de indice no interior de cada idioma que nos permite chegar do significante ao significado. Esse indice, que poderia ter o formato de um dicionario, deveria ser utilizado por cada um de nos quando quisessemos decodificar, isso e, entender aquilo que ouvimos e aquilo que nos estao dizendo. A concepcao propagada pela teoria do sinal foi o fundamento no qual se basearam e ainda se baseiam muitos es62
tudos sobre processes psicologicos e sociais. Exemplos bastante representatives disso sao o estudo do pensamento, da aprendizagem, do processo de comunicacao e, em geral, da interpretagao como processo individual e coletivo. Paralelamente a teoria do sinal encontra-se a teoria da comunicapao, que tern maior divulgagao e e comumente mais aceita. De acordo com essa teoria, o emissor difunde ou expressa uma mensagem atraves de um canal que e decodificado pelo(a) ouvinte ou receptor(a). Nao nos estenderemos mais sobre essas duas teorias ja que sao amplamente conhecidas e voltaremos nossa atencao para a Pragmatica. A questao-chave e que a Pragmatica se opoe tanto as implica9oes dessa teoria lingiiistica simples, de significante e signiflcado, como tambem a teoria da comunicagao, oferecendo um ponto de vista radicalmente distinto de ambos. Com efeito, a Pragmatica esta esrritamente interessada nos principios que regulam o uso da linguagem e, em particular, naquelas condicoes que fazem do uso de um enunciado concrete uma acao de comunicacao. No entanto, a Pragmatica nao tem uma unica concepcao aceita consensualmente. Ao contrario, podemos dizer que ha uma grande variedade de concepcoes pragmaticas. Assim, por exemplo, um dos grupos pragmaticos mais conhecidos atualmente e aquele que adota os principios da "Teoria da relevancia" (Sperber & Wilson, 1986). Essa e uma orientapao pragmatica marcadamente cognitivista que considera que o processo de comunicapao e uma tarefa da pessoa que fala - ou seja, essa "empacota" ou codifica o que quer dizer - e uma tarefa do que recebe, que "desempacota" ou decodifica o que quer escutar. Nesse trabaIho de decodifica^ao ha certas chaves, sendo que a mais importante delas e a relevancia daquilo que foi dito para o contexto, que facilita tanto o processo de enuncia9ao como 63
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o processo de recep9ao. A medida que essa visao da pragmatica concede um papel muito importante ao processo de codifica9ao e de decodificagao, e sendo esse obviamente um papel eminentemente verbal ou cognitive, Optaremos por nos referir a uma pragmatica menos interessada em discernir a natureza dos processes cognitivos de codificacao e decodificaQao e mais interessada na praxis comunicativa. Essa e a pragmatica coerente com os principios do giro lingiiistico e da "Teoria dos atos da fala" que vimos anteriormente e que podemos encontrar em autores como Grice (1975) ou Levinson (1983). Da perspectiva dessa outra concepgao da pragmatica, de tipo nao cognitivista, para chama-la de alguma coisa, nao ha nenhum significado estavel preexistente ou codificavel de maneira univoca; ao contrario, ha um processo de comunica^ao no qual a contextualizacao e que fornece a unica possibilidade real de compreensao. A Pragmatica afinna, muito enfaticamente, que devemos presumir que, quando algo e dito, ha sempre um sentido que vai mais alem do significado que acompanha as palavras. E dessa forma que podemos interpretar as 39005 da fala tanto em termos intencionais como nao intencionais. Em termos intencionais quando, por exemplo, alguem quer dizer algo mais do que esta dizendo, mas nao o diz. Esse e o caso "de ler nas entrelinhas", ou seja, quando, ao ler um texto, vamos buscando b que e que realmente algu6m estaria querendo dizer que nao esta dizendo com as palavras. Em termos nao intencionais, tanto quando, por exemplo, consideramos a maneira como foi estruturada gramaticalmente uma frase ou o tipo de conexoes contextuais que ela oferece de um ponto de vista gramatical, como quando consideramos as partes da fala que se referem a situates contextuais - dicticos, que veremos mais a frente - ja que essas sao as condi9oes necessarias para qualquer compreensao da situa9ao comunicativa. 64
Podemos afirmar, portanto, que todos os idiomas tem esse tipo de artefato e nao podemos abordar uma analise de significado se nao levarmos em considera9ao esses dispositivos. Por exemplo, se encontrassemos no chao uma nota manuscrita com a expressao "volto em 5 minutos", essa frase, se nao temos a nossa disposi9ao o cenario relacional, fisico, temporal, etc., e uma frase que carece de sentido. Quern vai voltar? Para onde vai voltar? em que dia? a que hora? Ou, no melhor dos casos, os cinco minutos ja transcorreram ou ainda falta algum tempo? Esse exemplo ilustra muito bem a importancia dos elementos envolvidos na significa9ao e na compreensao. As premissas em que se baseia a Pragmatica vao nessa dire9ao. Da mesma maneira, podemos dizer que a diferen9a entre a Pragmatica e o modelo tradicional de comunica9ao se origina do fato que, mais do que um canal, o que temos e um contexto de comunica9ao que precisamos conhecer para tornar inteligivel aquilo que estamos falando. A linguagem em uso e, portanto, o que define a Pragmatica, em oposi9ao a outras maneiras de entender a linguagem. Nao e possivel se comunicar sem dispor de uma ancoragem linguistica nesses contextos fisicos, relacionais e sociais e essa opera9ao linguistica tem que ser decodificada, porque, se nao se produz essa decodificacao, a compreensao e impossivel. Nesta apresenta9ao da Pragmatica, nos referiremos particularmente a duas questoes cruciais: a) a dixis e b) as implicaturas. a) A dixis
O termo "dixis" se refere aqueles elementos da estrutura gramatical que relacionam a linguagem com o contexto. Como assinala Levinson (1983: 47) "O termo 'dixis' se origina da palavra grega para assinalar ou indicar, sendo exemplos prototipicos ou principals o uso dos de65
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b) A dixis social refere-se a codificagao das distingoes sociais dos papeis dos participantes na conversagao. Em particular, quando indicam a relagao social entre os participantes. Sao exemplos de dixis social as formulas de tratamento "tu", "voce", ou "o senhor/a senhora", pois indicam claramente a posigao dos/das falantes e/ou a relagao entre eles/elas. Assim, quando uma pessoa jovem fala com outra mais velha e comum o uso de '(o senhor/a senhora". Os vocatives "meu bem", "querido/a", por exemplo, ditos por um dos membros de um casal, tern fungao identica.
monstrativds, os pronomes de primeira e segunda pessoa, o tempo verbal, adverbios especificos de tempo e lugar como "agora" e "aqui", e varies outros traces gramaticais ligados diretamente as circunstancias da enunciagao". Os dicticos codificam, portanto, as relacoes da linguagem e o cohtexto da enunciacao. E o fazem cumprindo diversas fungoes tais como assinalar ou indicar lugares e/ou coisas, pessoas, momentos, etc. For isso, os dicticos podem ser de tres tipos: a) pessoal, quando se referem a pessoas e indicam o papel que cada participate desempenha na interagao (falante, ouvinte). "Eu", "nos", "eles", bem assim como vocativos tais como "tio/tia" ou "macho" sao exemplos de dicticos de pessoa; b) de lugar, quando se referem a lugares localizando as pessoas ou objetos aos que se referem na conversacao. "Ponha-o aqui" e um exemplo no qual" aqui" e um dictico de lugar; c) de tempo, quando se referem aos varies momentos daquilo que se esta narrando, tomando como ponto de referenda o momento em que se da a conversagao. "Nos vemos mais tarde" e um exemplo no qual a expressao adverbial "mais tarde" opera como dictico temporal. Esses sao os dicticos descritos mais comumente. Ultimamente foram acrescentadas outras categorias (Levinson, 1983): a dixis do discurso e a-dixis social, a saber: a) A dixis do discurso refere-se a realizacao de referencias a outras partes do discurso, anteriores ou posteriores, nas que se formula o enunciado. For exemplo, quando no texto lemos o enunciado "como vimos no capitulo 1" faz-se referenda a urna parte do texto que se encontra temporal e espacialmente antes daquilo que se esta lendo. Expressoes como "defmitivamente", "portanto", "no entanto" e outras semelhantes tambem tern essa fungao dictica discursiva.
Grice (1975) elaborou a nogao de implicatura. Uma implicatura e uma inferencia que os participantes em uma situagao de comunicagao fazem a partir de um enunciado ou
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Toda indicagao contextual, e, por conseguinte, a dixis, tern um ponto de referenda. Na Pragmatica, esse ponto de referenda e denominado de centre dictico. Existe um certo consenso na aceitagao de que a dixis se organiza de maneira egocentrica (Levinson, 1983). Ou seja, por um lado, o falante; por outro, o tempo no qual ele produz seu enunciado e, finalmente, o lugar da enunciagao. Em termos da dixis do discurso, o centre e o lugar discursive no qual se encontra o falante e, na dixis social, o centre e a posigao social do falante a cuja volta giram as de seus interlocutores. Apesar disso, e para terminar, e precise observar que a dixis passa por deslocamentos interessantes come, por exemplo, quando o falante assume o papel do ouvinte, ou quando o passado e convertido pelo falante no centre dictico de um relate. E preciso que os participantes entendam esses deslocamentos porque, se isso nao ocorrer, qualquer comunicagao torna-se impossivel.
b) As impLicaturas
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de um conjunto de enunciados. Grice distingue entre o que se diz e o que se comunica: • O que se diz depende das palavras que sao enunciadas, • O que se comunica e toda a informacao transmitida pelo enunciado. Essa informafao nao e explicita, nao se extrai do significado das palavras; ao contrario, ela e implicita e e elaborada dentro da moldura das normas da cohversa?ao e do contexto de interacao. Grice tambem fez uma distingao entre implicaturas convencionais e implicaturas nao convencionais. As primeiras podem depender do significado convencional das palavras. No entanto, o mesmo nao ocorre com as segundas, que dependem das regras contextuais. Quando sao essas regras que estruturam a conversacao, falamos de implicaturas conversacionais. De alguma maneira, as implicaturas conversacionais sao uma consequencia dos enunciados. Ou seja, as ora9oes que sao ditas pelos/as falantes, e admitem uma producao de sentido que vai mais alem do significado convencional das palavras que sao pronunciadas. Em alguns cases, o significado convencional das palavras usadas determinara o que e que se quis dizer, alem de nos ajudar a identificar o que se disse; Se eu digo (com um gesto de auto-suficiencia) "E um latino; portanto e muito temperamental", eu mesmo estou me comprometendo, certamente, em virtude do significado de minhas palavras, com a ideia de que o fato de ele (a pessoa em questao) ser muito temperamental e uma consequencia (se segue) de ele ser latino. Mas, embora eu tenha dito que e latino e que e temperamental, eu nao gostaria de defender a tese de que o que eu disse (no sentido desejado) foi que o fato de que alguem seja latino significa que e muito temperamental, mesmo que certamente eu tenha indicado ou implicado isso. Nao pretendo afirmar que minha escolha da oracao mencionada seja, es-
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tritamente falando, falsa, embora o primeiro nao tenha sido uma consequencia do segundo (Grice, 1975: 515).
Assim, a frase "e um latino, portanto e muito temperamental", que Grice propoe na cita9ao, e uma implicatura convencional. No entanto, A: voce viu sua sobrinha ontem? B: ontem nao sai de casa o dia todo, e uma interacao na qual a implicatura nao vai associada as palavras utilizadas. Quando o falante B responde a pergunta de A, no sentido literal nao esta respondendo se viu ou nao sua sobrinha ontem, mas o que disse implica claramente que nao a viu. 0 contexto privilegiado das implicaturas e aquilo que Grice chamou de "Principio de cooperacao". O ponto de partida e o elemento que caracteriza esse principio sao a considera9ao de que conversar exige um desejo de colaborar com outra pessoa ou outras pessoas, ou, o que e a mesma coisa, necessita objetivos cornpartilhados. Com efeito, as conversas que mantemos nao sao uma mera seqiiencia de informacoes, descricoes ou dados desconexos e sim constituem, ate certo ponto, um esfor9o de colabora9ao ou reciprocidade no qual os/as interlocutores/as estao envolvidos. Poderiamos dizer que os/as participantes em uma conversa sao conscientes ou se fazem conscientes de que o intercambio comunicativo do qual participam esta, de alguma maneira, sustentado por um proposito ou conjunto de propositos comuns, ou, no ininimo, possui uma orienta9ao aceita mutuamente pelos/as falantes. Esse proposito ou orienta9ao pode ser definido desde o come9o da conversa atraves de recursos distintos, como, por exemplo, planejando urn possivel tema para o dialogo; ou pode ir-se transfigurando no decorrer da conversa. Apesar disso, existe tambem a possibilidade de que o tema da conversa este69
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ja totalmente especificado ou que seja tao obscuro que permita uma flexibilidade quase ilimitada por parte dos/as interlocutores/as. Essa situacao e muito comum nas conversas e intercambios que surgem em encontros fugazes e inesperados. Apesar disso, seja como for, durante a conversa, algumas das contribuigoes serao ignoradas por serem inadequadas. Defmitivamente, os/as participantes envolvidos/as em uma conversa aceitarao como preceito que rege seus intercambios o principio de cooperapao que, como indica Grice (1975: 515-516), poderia ser formulado dizendo-se: Contribua para a conversa segundo as exigencias do proposito ou da dire9ao do intercambio que voce mantenha, no momento em que ela ocorra. Se qualquer um dos falantes nao esta disposto a cumprir esse principio, ou seja, a colaborar, entao o que ocorrera e que o outro ira inferir que ele/ela quer dizer outra coisa.
Ainda, segundo Grice, o principio de cooperacao tern varias maximas: 1) Maxima de quantidade: faz referenda a quantidade de informacao que se fornega em uma conversa e se rela^ ciona com o equilibrio harmonico dessa quantidade no sentido de que, na cooperacao, contribua-se com maior ou menor quota de informacao. 2) Maxima de qualidade: refefe-se a verdade da contribuigao informativa e a credibilidade ou a confiabilidade que as contribui9oes sejam capazes de despertar e manter. 3) Maxima de relagao (relevancia): consiste em dar contribuipoes pertinentes e diretas que sejam principalmente sobre o tema central da questao e nao sobre seus aspectos superficiais. 4) Maxima de rnodo: a diferenga das anteriores, a importancia desta maxima reside nao no conteudo, e sim na 70
maneira como esse conteudo e expressado. Relaciona-se fundamentalmente com a exposi9ao clara, ordenada, concisa e precisa. Grice (1975: 516-517) expressa as maximas que definimos acima e que configuram o principio de coopera9ao da seguinte maneira: poderiamos distinguir talvez quatro categories a uma ou outra das quais pertencerao maximas ou submaximas mais especificas. Dentre todas essas, as seguintes possibilitarao resultados que estao de acordo com o Principio Cooperative. Repetindo Kant, denominarei essas categorias: Categorias de Quantidade, Qualidade, Relacao e Modo. A categoria de Quantidade tern que ver com a quantidade de informacao a proporcionar, e a ela pertencem as maximas "Fa9a com que sua contribui9ao seja tao informativa quanto necessario" (considerando os objetivos da conversa9ao) e pode ser tambem "Nao fa9a com que sua contribui9ao seja mais informativa do que necessario" [...]. A categoria da Qualidade pertence uma supermaxima: "Tente fazer com que sua contribuifao seja verdadeira" e duas maximas mais especificas: "Nao diga aquilo que acredita ser falso". "Nao diga aquilo para o qual nao tenha provas adequadas" [...]. Dentro da categoria Relacao situo uma unica maxima: "Va direto ao assunto" [...]. Finalmente, a categoria de Modo, que imagine de uma maneira que nao tern nada que ver com o que se diz (como ocorre com as categorias precedentes) e sim com a maneira como se diz o que se diz, pertence a supermaxima: "Seja claro", assim como varias maximas: "Evite ser obscuro ao expressar-se". "Evite ser ambiguo ao expressar-se". "Seja desembaracado (e evite ser desnecessariamente prolixo)". "Proceda com ordem". 71
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Uma implicatura conversacional ocorre tanto quando obedecemos a essas maximas quanto quando violamos todas ou alguma delas. Todas as implicaturas exigem avaliagao por parte dos/as interlocutores/as, no sentido de que se presume que os falantes estao respeitando o principio de cooperagao. Para que uma implicatura possa ser eonsiderada conversacional (e nao convencional) ela deve poder ser inferida. Se nao for possivel essa inferencia, embora possamos suspeitar que a implicatura esta presente ou que tenhamos alguma intuicao de sua presenga, a implicatura sempre devera ser considerada como convencional; a nao ser que a suspeita ou intuicao possa ser substituida por um argumento. For essa razao, para que um ouvinte possa inferir que esta diante de uma implicatura conversacional, devera basear-se nos seguintes dados, manipulando-os: 1) o significado convencional das palavras ditas, bem assim como a identidade das referencias implicadas; 2) o principio de cooperagao e suas maximas; 3) o contexto lingiiistico ou extralinguistico no qual as palavras foram ditas; 4) outras informagoes solidas; 5) o fato, ou suposto fato, de que os/as interlocutores/as conhecem, ou presumem que conhecem, cada um dos detaIhes relatados nos paragrafos precedentes, e que esses estao a seu alcance. Como afirma Grice (1975), a formula que perrnite detectar a presenga de uma implicatura conversacional pode ser sintetizada da seguinte maneira: Ele disse que p; nao ha nenhuma razao para supor que nao esta observando as maximas, ou, pelo menos, PC; poderia as estar cumprindo se pensasse que q; sabe (e sabe que eu sei que ele sabe) que eu percebo a necessidade da premissa de que pensa que q; nao fez nada para me
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impedir de pensar que q; portanto, tem a intengao que eu pense, ou pelo menos quer possibilitar-me a pensar, que q; e, por conseguinte, sugeriu que q (Grice, 1975: 521).
Para que sejam conversacionais, as implicaturas devem reunir certas caracteristicas que constituem ao mesmo tempo uma maneira ou procedimento atraves do qual podemos conhece-las e identifica-las. Segundo Grice (1975), para admitir que uma implicatura conversacional e realmente conversacional, e imprescindlvel aceitar que o principio de cooperagao esta sendo cumprido. Apesar disso, podemos evitar essa aceitagao. Se a evitarmos, necessariamente deveremos cancelar uma implicatura conversacional generalizada em urn caso particular. Para isso, podemos operar da seguinte maneira: a) podemos cancela~la expressamente atraves de uma clausula que de a entender, ou que determine, que o/a falante esta inclinado/a a nao acatar o principio de cooperagao; ou b) podemos cancela-la de forma contextual, se a forma verbal expressa que normalmente acompanha a implicatura conversacional for usada em um contexto tal que nao deixe qualquer duvida de que o/a falante esta prescindindo do principio de cooperagao. Da mesma forma, existem outras caracteristicas das implicaturas conversacionais que Grice detalha e formula da seguinte maneira: A medida que, para inferir que estamos diante de uma implicatura conversacional, seja preciso, alem da informagao contextual e de fundo, tao-somente o conhecimento daquilo que foi dito (ou do compromisso convencional do proferimento) e contanto que o modo da expressao nao desempenhe qualquer fungao na inferencia, nao sera possivel encontrar outra forma de dizer a mesma coisa, por carecer da implicatura em questao, a nao ser que alguma caracteristica especial da nova versao seja relevante, por si so, para a determinacao de uma implicatura (em virtude de alguma das maximas de modo). 73
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Se dermos a essa caracteristica o nome de "indesligabifi, dade" e de se esperar que toda implicatura conversacional generalizada que se realize atraves de uma Iocu9ao familiar, e nada especial, tenha um alto grau de "indesligabilidade". Falando de maneira aproximada, ja que, para inferir a presensa de uma implicatura conversacional pressupoe-se um conhecimento previo da for£a convencional da expressao cujo proferimento leva consigo a implicatura, o implicandum conversacional sera uma condicao de nao incluir a primeira especiflcacao da for9a conversacional da expressao. Embora possa nao ser totalmente impossivel que aquilo que se inicie na vida, por assim dizer, como implicatura conversacional, adquira a natureza de implicatura convencional, supor que, em um caso determinado, isso realmente sucede, exigiria uma justificativa especial. Portanto, pelo menos inicialmente, os implicata conversacionais nao sao parte do significado das expressoes a cujo uso se aderem. Ja que a verdade de um implicatum conversacional nao e uma consequencia da verdade daquilo que foi dito (o que se disse pode ser verdadeiro e o que implica pode ser falso), a implicatura nao esta inseparavelmente unida ao que se disse, e sim ao dizer aquilo que se disse ou ao "expressa-lo dessa maneira". Ja que inferir uma implicatura conversacional e inferir o 'que se supos para salvaguardar a observancia do Principio Cooperativo, e dado que podem ocorrer varias explicacoes especificas possiveis, ficando em aberto a lista dessas explicacoes, em tais casds o implicatum conversacional sera a disjuncao de tais explicacoes especificas; e se a lista flea em aberto, o implicatum tera o carater de indetermina?ao que muitos implicata reais parecem realmente possuir (Grice, 1975: 530).
Terminaremos essa parte dedicada a Pragmatica com dois exemplos: 1) Imaginemos que alguem mora em urn quinto andar sem elevador. Quando chega em casa, outra pessoa, com 74
que compartilha a moradia, pronuncia a seguinte frase: "E preciso descer com o lixo". Veremos que nao se pode fazer uma AD sem a Pragmatica. Em um certo sentido, estudar AD e estudar a Pragmatica, e fazer uma AD e fazer uma analise pragmatica. E esse exemplo, sendo, ao mesmo tempo, uma ilustracao da pragmatica, vai ajudar-nos a entender como se faz uma AD. Quando alguem disse "E preciso descer com o lixo" poderiamos pensar que se esta verificando uma constatagao de um fato. Ou seja, que ha lixo que e preciso transportar para que seja coletado. Mas, prestemos atengao no contexto: uma casa com varias pessoas (por exemplo, uma familia) tarde da noite (por exemplo dez horas da noite), final de um dia de trabalho, etc. Nessa situacao, se alguem disser "E preciso descer com o lixo", a maior parte das pessoas vai entender que, na verdade, nao se esta constatando um fato, e sim se esta solicitando, ou inclusive, se esta dando uma ordem de descer com o lixo. Nao ha maneira, a nao ser atraves dos ensinamentos da Pragmatica, de entender como ocorre isso. Ou seja, como um falante consegue que seu interlocutor entenda que Ihe estao dando uma ordem. Bern, voltemos ao exemplo "E preciso descer com o lixo". E comum que as ciencias sociais facam a seguinte critica a Pragmatica (critica semelhante a que se faz com freqiiencia a Austin, por exemplo): que (os que defendem a Pragmatica) so se preocupam com exemplos curtos, com frases pequenas e que nao podemos abordar problemas sociais a partir da Pragmatica. No entanto, o reconhecimento dos atos perlocutivos, como aqueles atos de fala que geram efeitos, nos abre urn caminho para uma analise mais global a partir da Pragmatica. 75
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Suponhamos que o enunciado desse exemplo e pronunciado em uma casa na qual ha um casal. Podemos antecipar quern vai dizer a expressao, porque sabemos que nao vai ser qualquer um dos dois, indistintamente. Que essa a?ao tern que ver com o papel desempenhado. Como analistas, quando examinamos uma expressao desse tipo, como nos ensinara a Etnometodologia, nao necessitaremos ter uma teoria sobre a desigualdade social, porque a observagao e o registro pontual desse ato 6 informative daquilo que esta ocorrendo. Com efeito, as conseqiiencias de dizer "E precise" equivalent a uma ordem, ja que alguem efetivamente leva o lixo para baixo, ou protesta porque sente que esta sendo repreendido para que o faca. ou se desculpa, ou se justifica porque j a fez a mesma coisa em varias ocasioes. E sabemos tambem que, em um contexto como esse, nao e qualquer pessoa que pode dar essa ordem. Esse ato nos informa que existe uma posipao assimetrica, na qual uma das pessoas esta em condicoes de dar uma ordem a outra. Nao informa sobre as capacidades de interpretacao ou de decodifica9ao do casal, que obviamente e um sujeito habil em seu idioma e entende todas e cada uma das palavras. Nao e isso, o que nos informa e sobre a relagao que essas duas pessoas estao tendo.
sario para que se de origem a ordem, para que alguem traga o sal para a mesa, e para que se constitua e feconstitua uma situagao de assimetria obvia entre os varies participantes da cena. De um ponto de vista convencional podenamos fazer uma antecipacao de qual e o cenario real, quais sao as posicoes assimetricas reais a partir das quais uma pessoa pode dar uma ordem como essa. Mas nao 6 imprescindivel, ou pelo menos nao o e em muitos casos. Dizer "cade o sal?", da mesma maneira que dizer "E precise", comporta a posipao de papel, a posicao de assimetria, o exercicio do poder, etc., e, como analistas, a unica coisa de que necessitamos e ser membros competentes nesse contexto para entender o que ocorre, nada mais. Nao necessitamos ter uma teoria sociologica ou psicologica, so precisamos ser membros competentes nessas circunstancias. 4. A etnometodologia
Nada impede que se de uma ordem direta como "Traga o sal" e, as vezes, isso e o que ocorre; mas isso nao e neces-
O famoso texto de Garfinkel (1967) Studies in Ethnomethodology comeca com as palavras que se seguem, que constituem uma das melhores definipoes da etnometodologia (daqui por diante, ETN) desde que essa surgiu: Os seguintes estudos buscam tratar as atividades praticas, as circunstancias praticas e o raciocinio sociologico pratico como topicos do estudo empirico e, ao dar as atividades mais banais da vida cotidiana uma atencao que normalmente so e concedida a eventos extraordinarios, procuram aprender sobre elas por seus proprios meritos. Sua recomenda?ao principal e que as atividades atraves das quais membros produzem e administram grupos de negocios cotidianos organizados sao identicas aos procedimentos desses membros para fazerem com que esses grupos "prestem conta" de suas atividades (Garfin-
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2) Sentada em volta da mesa de qualquer casa, uma familia-padrao esta almoc. ando. Um dos comensais formula a seguinte pergunta? "Cade o sal?" Como no caso anterior, essa nao e uma pergunta para saber onde se encontra o saleiro. Qualquer pessoa em uma siruasao como essa sabe que, uma vez mais, trata-se de uma ordem para que alguem traga o sal para a mesa.
kel, 1967: 1).
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Com efeito, a ETN deu enfase a analise das atividades praticas cotidianas, dando-lhes a mesma atengao que, em grande parte da sociologia oficial, foi dada aos eventos "aparentemente" mais importantes. O foco de interesse da ETN sao as pessoas em sua interacao cotidiana e as atividades que elas desenvolvem em seus contextos imediatos. For isso, essa parte da sociologia e situada no ambito das microssociologias, tambem chamadas por alguns autores de "Sociologias da Situagao" (Diaz, 2001). Na obra mencionada acima, Garfinkel explica o porque do termo etnometodologia: Uso o termo "etnometodologia" para referir-me a investigagao das propriedades racionais de expressoes indexadas e outras agoes praticas como realizacoes permanentes continuas de praticas engenhosas organizadas da vida cotidiana (Garfinkel, 1967: 11).
Com efeito, os estudos emometodologicos voltam sua atengao para as atividades diarias nas quais pessoas como nos se veern envolvidas. Essas atividades diarias sao concebidas e analisadas como metodos a que as pessoas recorrem para fazer corn que essas mesmas atividades sejam explicaveis (accountable): fazendo com que sejam visiveis, racionais e comunicaveis para todos os objetivos praticos e como organizagoes de todas as atividades comuns de cada dia. Uma das caracteristicas peculiares das agoes e circunstancias praticas, das estruturas sociais que o sentido comumproporciona e do raciocinio sociologico pratico e a reflexividade. Assim, a reflexividade e a base para o estudo dessas situacoes porque pennite localizar e examinar suas varias ocorrencias. A ETN nasceu como corrente sociologica nos anos 1960. Ao ser postulada como uma perspectiva de investigagao e nao como teoria, ela significou uma ruptura extraordinaria com os modelos sociologicos dominantes. Na 78
estrutura das correntes sociologicas, ela se afifma, entao, como uma clara alternativa contra as versoes que defendem a explicagao dos fatos sociais e se manifesta contra aquelas que defendem a compreensao como unica maneira viavel de abordar os processes sociais. Os principios basicos da ETN sao poucos e, provavelmente, o mais importante deles seja a premissa de que todos os membros da sociedade sao "sociologos/as na pratica". Ou seja, que cada pessoa, em sua agao cotidiana, descreve, fala e constroi a realidade simultaneamente. Portanto, nao existe uma realidade social independente dos individuos, cujo conhecimento so seja possivel a partir de um pensamento teorico e de uma investigacao alheia ao sentido comum. Ao contrario, o sentido comum e perfeitamente capaz nao so de construir a realidade social, como tambem de conhece-la e de explica-la. Para a ETN, a realidade social nao e nunca algo exterior aos individuos, e sim um produto incessantemente construido pela atividade de todos os membros de um grupo ou coletividade em sua agao cotidiana. 4.1. Os quatro conceitos-chave da ETN Destacaremos quatro conceitos-chave da ETN por sua relevancia especiflca para os enfoques discursivos. Esses conceitos sao a) o de competencia; b) o de reflexividade; c) o de indexabilidade\ d) o de explicabilidade (accountability). a) Competencia: a nogao de competencia de associagao (membership), ou de membro competente, desenvolvida pela ETN, refere-se nao a associagao a um grupo ou coletividade e sim ao uso que se faz ou se pode fazer da linguagem natural. Ao contrario do conceito sociologico e psicologico-social de "pertinencia" a uma sociedade, grupo ou categoria social, a nogao de associagao se refere a gestao e ao uso da linguagem. 79
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Nesse sentido, ser um membro competente significa ser uma pessoa dotada de savoir-faire, capaz de atuar com conhecimento dos procedimentos, metodos.e estrategias que permitam a adaptagao e um desenvolvimento bem-sucedido no contexto social em que vive, com capacidade para criar mecanismos de adaptacao que Ihe ajudem a influenciar o mundo circundante. Mais precisamente, ser um membro competente envolve o ingresso em um grupo ou instiruicao, nao so pelo desejo de faze-lo, mas atraves da incorporacao ao uso e a utilizagao eficaz da linguagem comum desse grupo ou dessa instituigao. Isso pressupoe que, uma vez afiliados, desaparece a necessidade de um questionamento sobre o que fazem os outros membros do grupo, ja que aceitam as rotinas inseridas nas praticas sociais e sabem o que esta implicito em suas condutas3. Nos termos da ETN, o conceito de membro competente, associagao, nao e uma pressuposicao, uma aprendizagem ou uma aculturagao dos sistemas de valores e de crencas ou das analises da intersubjetividade de um grupo social ou cultural determinado. Ha uma caracteristica dos relatos de membros que tern para eles uma relevancia tao singular e permanente que controla todas as outras caracteristicas em seu carater especifico como elementos reconhedveis e racionais das investigacoes sociologicas praticas. Essa caracteristica e a seguinte. Com relacao ao carater problematico das acoes praticas e a adequabilidade pratica de suas investigacoes, os membros partem do principio que qualquer membro, desde o comeco, deve "conhecer" o ambiente no qual ele/ela tera de funcionar para que suas praticas
3 Isso ajuda a entender como nossa cultura nao nos parece insolita, nem por que nao nos consideramos uns estranhos e estranhas com relapao a ela. No entanto, normalmente, o que demonstramos diante das condutas ou das perguntas de um/a estrangeiro/a e estranlieza.
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sirvarn como meios de fazer com que elementos especificos, localizados, desses ambientes sejam obviamente transparentes e explicaveis. Eles consideram como a coisa mais normal que os relatos dos membros, de todos os tipos, em todos seus estilos logicos, com todos seus usos, e que tenham sido coletados por quaisquer metodos, sao caracteristicas constituintes dos ambientes que eles tomam observaveis. Membros sabem, exigem, contarn com e fazem uso dessa reflexividade para produzir, realizar, reconhecer ou demonstrar adequabilidade-racional-para-todos-os-objetivos-praticos de seus procedimentos e descobertas (Garfinkel, 1967: 8).
A ETN surge por oposigao as teorias da agao vigentes no final dos anos 1960, sobretudo as teorias de Parsons. Nesse sentido, diante dapressuposi?ao de que nosso comportamento e um comportamento que segue regras, a ETN esta interessada em saber como constituimos essas normas quando estamos interagindo ou agindo. Por isso, na visao da ETN, a associacao nao e compartilhar esse contexto que nos antecede ou, pelo menos, nao e unicamente isso, e sim ter a competencia para a acao conjunta e para a intera9ao. A propria linguagem pode nos servir como exemplo. A questao nao e so saber se cada um de nos Conhece ou nao um idioma que nos faria membros competentes dessa comunidade linguistica, e sim ver se somos capazes de falar, o que e completamente diferente. Como bem sabe qualquer um que tenha tido que aprender um segundo idioma, nao basta conhecer esse idioma, ou seja, conhecer a gramatica e o vocabulario, porque isso nao da a competencia. Uma associagao e uma competencia sobretudo no uso da linguagem comum, entendida nao so como palavras, mas tambem como contexto das normas e regras que configuram a acao social. b) Indexabilidade: a enunciacao de qualquer palavra ou frase se da em um determinado contexto. Esse contexto
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faz com que cada palavra tenha urn significado especifico em cada oportunidade de enunciagao. Compreender uma palavra ou frase implica sempre uma "analise" da situacao que vai mais alem da informagao efetivamente dada em um momento concreto. Uma palavra ou uma oragao, portanto, nao expressa plenamente "o significado"; ela adquire esse significado plenamente no cenario concreto de sua producao. Esse contexto de enunciagao, alem disso, se estende a elementos que ultrapassam a situacao imediata, como podem ser os intercambios lingiiisticos previos, a relagao que os/as interlocutores/as mantem entre si ou a propria historia de cada um/a deles/as. O conceito de indexabilidade, desenvolvido na ETN por Garfinkel, implica que toda a linguagem natural e indexada na medida em que seu significado esta sempre dependente do contexto de sua propria producao. Nao ha significado possivel fora das condigoes de seu uso e do espa90 social de sua enunciagao. Cada pessoa, em sua interagao como membro competente, conhece sem problemas os usos e significados das palavras e oragoes que utiliza. A compreensao mutua, assim como a inteligibilidade daquilo que ocorre para qualquer observador potential, torna-se possivel em virtude dessa propriedade que chamamos de indexabilidade. Chegamos ao conhecimento do significado concreto e pertinente de um enunciado atraves de nosso conhecimento desse carater indexicdvel. A ETN, portanto, tem interesse em ver como utilizamos a linguagem e como, de uma maneira totalmente rotineira, somos capazes de dar sentido as palawas. Propriedades que sao exibidas por relates (por serem caracteristicas das ocasioes socialmente organizadas de seu uso) sao disponiveis a partir de estudos por especialistas em logica como propriedades de expressoes indexadas e frases indexadas. Husserl falou de expressoes cujo sentido nao pode ser definido pelo ouvinte sem que
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esse saiba ou presuma, necessariamente, algo sobre a biografia e os objetivos do usuario da expressao, as circunstancias do enunciado, o rumo previo da conversa, ou o relacionamento especifico da atual ou potencial interacao que existe entre aquele que expressou o enunciado e seu ouvinte (Garfinkel, 1967: 4).
Assim, portanto, todas as circunstancias que rodeiam uma palavra sao as portas de acesso para a a9ao de compartilhar seu sentido. Cada participante executa uma tarefa documental, como diria Garfinkel. Como em um arquivo, uma coisa leva a outra. Tomemos como exemplo a analise etnometodologica de uma entrevista. Uma entrevista e uma situa9ao de interrogagao mais ou menos pactuada, onde o/a entrevistador/a nao tem uma informa9ao que o/a entrevistado/a tem. Ambos estruturam o espago-tempo para que um diga o que o outro quer saber. Analisada etnometodologicamente, essa situagao inclui identificar todas aquelas agoes do individuo que levam a esses espagos que cada participante conhece. Entao, o que da ideia de uma situagao nao e unicamente se alguem e ou nao competente e sim, principalmente, sua indexabilidade: cada coisa que se diz, como cada coisa que se faz, nos poe em contato com algo que esta ocorrendo. Qualquer observador/a dessa situagao pode chegar por si mesmo/a a esse tipo de conclusao. Tudo o que ocorre adquire sentido pela estruturagao que se esta dando nesse momento especifico e nao unicamente pelas condigoes de partida. Ou seja, se observamos que o entrevistado responde mal, e facil ver que estamos diante de uma ruptura de uma regra ou de uma norma, nao e necessario saber as condigoes previas da entrevista, fossem elas pactuadas ou nao. c) Reflexividade (Reflexivity); a propriedade da reflexividade tem que ver, ao mesmo tempo, com a descrigao de uma situagao e com sua construgao, no sentido de que 83
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Lupicinio Iniguez descreve-la e construi-la. Da mesma maneira, a reflexividade se relaciona, simultaneamente, com a compreensao daquilo que esta acontecendo e com a explicitapao de dita compreensao. Como afirma Garfinkel (1967), areflexividade pressupoe que as atividades que empreendemos para criar e operar as situa9oes que se nos apresentam em nossa vida cotidiana sao identicas aos procedimentos que utilizamos para descrever essas mesmas situa9oes. Em uma situagao determinada, a reflexividade referese, simultaneamente, as praticas que a descrevem e a constroem, Enquanto interagimos com outras pessoas e falamos com elas, produzimos simultaneamente o significado, as norrnas e a inteligibilidade do que fazernos. Quando descrevemos um acontecimento ou uma situacao social, estamos, ao mesmo tempo, construindo essa mesma situa9ao social ou acontecimento. E atraves da 3930 de falar, e em virtude da indexabilidade que ja examinamos, que produzimos o mundo. Nao ha um antecedente, nao ha um codigo que, se seguido, configure a realidade social. O que ha e somente a propria pratica que vai instituindo esse codigo a cada momento. A reflexividade nao e a mesma coisa que reflexao ou reflexionar, no sentido de tomar consciencia de alguma coisa. Nao se refere a uma suposta capacidade que teriamos para gravar e ser consciente de nossas proprias a9oes: Anteriormente argumentamos que a possibilidade de uma compreensao mutua nao consiste em demonstrar medidas de conhecimento compartilhado da estrutura social; ao contrario, consiste totalmente no carater obrigatorio das a9oes em obediencia as expectativas da vida cotidiana como uma moralidade. 0 saber do sentido comum dos fatos da vida social para os membros daquela sociedade e um conhecimento institucionalizado do mundo real. Nao so o sentido comum retrata uma sociedade real para seus membros, mas, como uma previsao que se rea84
liza porque foi prevista, as caracteristicas da sociedade real sao produzidas pela aceita9ao motivada que as pessoas tern dessas expectativas contextuais (Garfinkel 1967:53).
Na ETN, portanto, a reflexividade nao e um conceito moral. Refere-se mais ao fato de que, quando estamos fazendo alguma coisa, estamos propriamente realizando um ato de constitui9ao e que um membro competente poderia ser capaz, alem disso, de prestar contas daquilo que esta fazendo. ;
Utilizemos como exemplo uma a9ao banal, como andar de bicicleta. Andar de bicicleta e uma 39210 que se constitui, ela propria, no ato de transportar-se sobre duas rodas. E o movimento do/a condutor/a e a propria maquina que possibilitam o transporte. Um/a ciclista pode ter a inten9ao de fazer com que todos os atos envolvidos em andar de bicicleta sejam conscientes e explicitos mas, como sabemos, isso ira faze-lo/a cair. Assim, portanto, para andar bem de bicicleta nao e necessario pensar como se anda de bicicleta, e portanto podernos dizer que ha uma especie de "conhecimento implicito", um conhecimento que nao e necessariamente consciente e que e esse que esta permitindo que andemos de bicicleta, mas que, ao mesmo tempo, pode ser explicitado. Do momento em que um/a ciclista pode se dar conta da razao pela qual se move e nao cai, e possivel afirmar que para poder manter-se de pe o que e necessario e ser "reflexive", que nao e a mesma coisa que "ser consciente de" ou "estar reflexionando sobre" e sim que na estrutura9ao da 3930 os membros que participam dela podem, a cada momento, estar cientes da a9ao que estao desenvolvendo. d) Accountability (Explicabilidade): o ultimo conceito da ETN que vamos examinar esta relacionado com os anteriores e, em particular, com a indexabilidade e com a re85
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flexividade. Alguma coisa, uma a9ao, uma situagao, e o proprio mundo, sao accountability4 porque sao acessiveis, porque podemos descreve-los, entende-los, conta-los. E isso nao e unicamente algo que pode ser feito pelos cientistas sociais e pelos/as analistas em virtude de sen proprio conhecimento: e algo que cadapessoa desenvolve e realiza em suas asoes praticas. O mundo nao preexiste como tal; ele se realiza, se institui em cada 3930 pratica e em cada intera9ao realizada pelas pessoas. Quando alguem descreve o que faz ou o que esta acontecendo, esta, ao mesmo tempo, constituindo o ato ou o evento. Quando fazemos um relate ou proporcionamos uma explicacao, estamos construindo o mundo em que vivemos. A ETN se interessa pelos relates e descri9oes, pelos accounts justamente devido a sua propriedade constitutiva da realidade. Fazer o mundo visivel e fazer minha a9ao compreensivel ao descreve-la, porque dou a entender seu sentido ao revelar os procedimentos que utilize para expressa-la (Coulon, 1987:49).
As praticas explicativas em que nos vemos envolvidos normalmente, bem assim como as explica9oes que proporcionamos, possuem um carater "reflexive" ou "personiflcado". Diz-se que alguma coisa e explicavel (accountable) quando os/as participates em uma situa9ao entendem que aquilo que "se ve e se diz" sao praticas de observasao e de explica9ao. Mas, da mesma forma, essas praticas se distinguem por seu carater inacabado, continuo e
contingente, ja que se desenvolvem e ocorrem como acontecimentos do cotidiano que essas praticas descrevem mas que, simultaneamente, organizam ao se realizarem. Os participantes e as participantes nessas situa9oes cotidianas dispoem do conhecimento, possuem a habilidade e tern o compromisso de colaborar para o cumprimento dessas praticas. Alem disso, existe uma reciprocidade no compromisso com a situa9ao: presumem e pressupoem a competencia dos/as outros/as (da qual dependem) e presumem e pressupoem sua propria competencia. Essa reciprocidade proporciona as partes as caracteristicas distintivas e particulares de uma situa9ao, embora, da mesma forma, contribua tambem com problemas, recursos e projetos. Garfinkel enfatiza a Iiga9ao que, em uma determinada situa9ao, os/as participantes fazem enrre accounts, contextos de utiliza9ao e a propria utiliza9ao. Em suma, o sentido reconhecivel, ou fato, ou carater metodico, ou impessoalidade, ou objetividade de explica9oes nao sao independentes das ocasiSes socialmente organizadas de seu uso. Suas caracteristicas racionais consistem naquilo que os membros fazem com os relates, ou fazem dos relates nas ocasioes reais socialmente organizadas de seu uso. As explicates dos membros sao reflexivamente e essencialmente ligadas, devido a suas caracteristicas racionais, as ocasioes socialmente organizadas de seu uso, porque elas sao caracteristicas das ocasioes socialmente organizadas de seu uso (Garfinkel, 1967:
4.2. Implicates da etnometodoLogia 4 Accountability e um termo ingles de dificil traducao, que significaria algo semelhante ao sentido que se da a expressao "dar conta de". Apesar disso, preferirnos manter o termo no original em ingles para que os leitores possam entender o sentido atraves da explicacao do processo a que se refere.
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A ETN sugere consequencias muito interessantes para a pratica da analise sociologica e para a considera9ao da linguagem nessa pratica. 87
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4.2.1. 0 manifesto e o oculto
Por mais esclarecedoras que sejam as propostas criticas nas ciencias sociais, na maior parte delas permanece uma dicotomia sistematica: a diferen9a entre o oculto e o manifesto. Ou seja, parece que sempre ha um caminho atraves do qual a analise de um processo nos permitira chegar a alguma coisa que nao se ve, que esta oculta, que e precisamente o que importa realmente. A partir da ETN e desse conjunto de argumentos, a proposta e que nao ha nada oculto, no ha nada que esteja atras. Ao contrario, o que ha e so e exclusivamente aquilo que esta quando se esta dizendo ou fazendo alguma coisa. Nao ha uma norma ou normas que estejam em outro lugar e que precisam ser descobertas. A norma nao e um codigo escrito ou uma chave cuja existencia podemos induzir atraves da observacao do comportamento das pessoas. A norma e a agao. Nesse sentido, a ideia de buscar o oculto e irrelevante. A ETN nao esta interessada na busca que deseja encontrar o que esta por tras, seja o pensamento das pessoas, seja a acao do individuo ou, ate mesmo, uma estrutura social reificada hipotetica como algo alheio a acao dos individuos. Nao seria possivel identificar a estrutura social atraves da analise dos relates das pessoas ou da observacao de seus comportamentos porque essa estrutura nao esta por tras, nao esta nem mais alem, nem mais proxima, nem em qualquer outro lugar, e sim esta na propria acao. Isso e a ETN. Parafraseando Garfinkel, podemos dizer que o mundo nao sera "sempre assim", e sim que se realiza em nossas praticas. Portanto, nao existe nada disso que chamamos de normas e que supostamente fariam que nosso comportamento fosse de uma maneira determinada. Ao contrario, quando fazemos alguma coisa, estamos fazendo normas. Nao e 88
preciso, portanto, buscar qual e a norma que existe por tras, regulando nosso comportamento. O convite da ETN e que basta saber como sao feitas as coisas; ou seja, que o fazer e uma forma de dizer. Que o fazer e dizer. 4.2.2. A$ao social e estrutura social
A contribuicao da ETN para a analise da estrutura social e que a 3930 individual, pequena, restrita, cotidiana, irrelevante e insignificante esta efetivamente estruturada, tal e qual nos inforrnarn os estudos classicos sociologicos, pela moldura social na qual se desenvolvem. Mas a inova9ao da ETN e que essa mesma estrutura atua, se executa, poe-se em evidencia, literalmente se constroi, em cada acao. Portanto, quando atribuimos a ETN um certo desinteresse pela estrutura social quando focaliza seu estudo em pequenos extratos de conversas ou em pequenos episodios de atividade social, estamos sendo extremamente injustos. O interesse da ETN por coisas tao pouco interessantes como a cortesia, o intercambio banal ou uma a9ao espontanea, sao somente o interesse por uma pepa minuscula no edificio da estrutura social ja que, toda a a9ao, ate mesmo a mais insignificante, contribui para a constru9ao social. Mas embora sua contribui9ao seja infinitesimal, o que esta claro e que, se essa acao desaparecesse, nao haveria atualiza9ao da estrutura social em nenhum momento. 4.2.3. A ETN e a linguagem Jnstitudonat
Muitas vezes pensamos que, por falar da 3930 cotidiana, a ETN nao esta habilitada para analisar os processos que ocorrem no interior das organiza9oes e institui9oes. No entanto, o enfoque etnometodologico tern outro ponto de vista. Com efeito, a unica diferen9a entre as 39068 que sao executadas nas institui9oes e as proprias institui9oes resi89
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Lupidnio Iniguez de} afmal de contas, no fato de que essas agoes adquirem uma natureza propria do cenario que defmem. Por esse motivo, muitos veem na ETN a unica saida para anaiisar esses contextos, ou seja, a analise da interpelacao espontanea. Uma pessoa interessada nos ambitos institucionais tern apenas que assumir que esse e um cenario normative, de interagao peculiar, onde a cotidianidade tambem tern seu lugar^ onde a fala as vezes esta marcada por um jargao linguistico especifico, como ocorre, por exemplo, com os jargoes profissionais. Em poucas palavras, uma analise de praticas institucionais nao e incompativel com a perspectiva emometodologica nem com o interesse por algo que va mais alem da cotidianidade. Com efeito, muitos esrudos etnometodologicos focalizaram as instituigoes e, em particular, as organizagoes empresariais. Qual poderia ser a diferenca? Do ponto de vista da sociologia estrutural, todos nos ja ouvimos dizer que devemos separar as normas explicitas do funcionamento informal, que na realizagao de uma organizagao informal e que no desenvolvimento de uma organizacao social e mais importante a organizagao informal que a formal. Pois bem, apenas atraves da analise das conversas cotidianas a ETN langa muito mais luz sobre como se estrutura uma organizagao a partir das interacoes concretas dos individuos que a conformam. Alem disso, com essa reflexao, oferece uma analise muito mais rica do que qualquer analise estrutural das normas explicitas da organizagao, embora essas normas estejam escritas na entrada da organizacao que se esta analisando. 5. 0 enfoque discursive de Michel Foucault: discursos e praticas discursivas
O trabalho de Michel Foucault ultrapassa qualquer intengao de encapsulacao em uma moldura diseiplinar e/ou 90
tematica concreta. Sua obra e, sem duvida, uma das mais influentes do passado seculo XX. Qualquer um dos temas que forarn objeto de seu interesse tiveram como consequencia uma mudanga radical, mudanga tanto na propria definigao do campo, como na abordagem, nas estrategias e nas formas de conceirualiza9ao. Tudo isso pode ser dito de pelo menos tres de seus interesses: o discurso, o poder e as relacoes poder/saber e a producao de subjetividade. Nenhum deles e hoje analisado e pensado da mesma maneira que o era antes das propostas de Foucault. Aqui nos concentraremos em apenas um deles, o discurso, para oferecer sua definigao e caracteristicas e para aproveitar o empenho metodologico e investigador de Foucault ja que ele elaborou ferramentas conceituais e metodologicas extremamente uteis para completar o panorama da AD. Nesse sentido, ressaltaremos a problematizacao, uma das mais importantes caracteristicas que, segundo Foucault, deve acompanhar essas ferramentas, embora ela nao se restrinja ao discurso e a AD, fazendo parte de qualquer outra tarefa que leve a producao de conhecimento. 5.1. A concepc^ao de discurso Para Foucault, o discurso e algo mais que a fala, algo mais que um conjunto de enunciados. O discurso e uma pratica, e como no caso de qualquer outra pratica social e possivel defmir as condigoes de sua produgao. Diz Foucault: Se renunciara, portanto, a ver no discurso um fenomeno de expressao, a traducao verbal de uma sintese efetuada por outra parte; ao contrario, se buscara nele um campo de regularidade para varias posigoes de subjetividade. O discurso assim concebido nao e a manifestagao, majestosamente desenvolvida, de um sujeito que pensa, que conhece e que o diz: e, ao contrario, um conjunto onde e possivel determinar a dispersao do sujeito e sua descontinuidade consigo mesmo. E um espago de exteriori-
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Lupicinio Iniguez_ dade onde se desenvolve uma rede de ambitos distintos" (Foucault, 1969:90).
Todo discurso tern um contexto de producao. Esse contexto e a forma?ao discursiva. Foucault a concebe como um conjunto de relates que articulam um discurso, cuja propriedade definitoria e a de atuar como regulamentacoes da ordem do discurso atraves da organizaQao de estrategias, permitindo a colocacao em circulacao de determinados enunciados em detrimento de outros, paradefmir ou caracterizar um determinado objeto, etc. Nas palavras de Foucault, uma "formacao discursiva" e: um conjunto complexo de relacoes que funcionam como regras: prescreve o que deveria ter sido posto na rela9ao, em uma pratica discursiva, para que essa se refira a tal ou qual objeto, para que ponha em jogo tal ou qual enunciado, para que utilize tal ou qual conjunto, para que organize tal ou qual estrategia. Definir, em sua individualidade singular, um sistema de formacao, portanto, e caracterizar um discurso ou um grupo de enunciados pela regularidade de uma pratica (Foucault, 1969:122-123).
Portanto, os discursos sao praticas sociais. E verdade que, a partir de Foucault (1969), nao se falara mais tanto de discursos e mais de praticas discursivas. For praticas discursivas Foucault compreende regras anonimas, constituidas no processo historico, ou seja, determinadas no tempo e delimitadas no espaco, que, em uma epoca concreta e em grupos ou comunidades especificas e concretas, vao definindo as condigoes que possibilitam qualquer enunciacao. Em nenhum momento Foucault nega que os discursos estejam formados por sinais. Apesar disso, nega que os discursos so se sirvam dos sinais para mostrar ou revelar coisas. Os discursos fazem algo mais que utilizar sinais, e isso os torna irredutiveis a lingua e a palavra (Foucault, 1969). Esse sair da prisao dos sinais, esse tratar de desco92
brir o que ha alem da utilizacao de sinais e precisamente uma das tarefas que Foucault realiza em seu trabalho arqueologico. Com maior precisao, a tarefa que deve ser proposta com o discurso e que consiste, simultaneamente, do problema a ser resolvido e da estrategia a adotar, deveria consistir em tratar os discursos como praticas que formam sistematicamente os objetos de quefalam (Foucault 1966) e nao mais considerar os discursos como conjuntos de sinais ou elementos sigm'ficativos que sao a representacao de uma realidade. Esse tipo de conceitualizacao do discurso da um sentido diferente a sua analise. Com efeito, a Analise do Discurso da perspective foucaultiana tambem e uma pratica. E uma pratica que permite desmascarar e identificar outras praticas discursivas. E e tambem, e sobrerudo, umamaneira de transforma-las: As positividades que tentei estabelecer nao devem ser compreendidas como um conjunto de determinasoes que se impuseram do exterior ao pensamento dos individuos, ou que o habitavam no interior como que por antecipa9ao; ao contrario, constituem o conjunto das condicoes segundo as quais exercemos uma pratica, segundo as quais essa pratica d£ lugar a uns enunciados parcial ou totatmente novos, segundo as quais, enfim, pode ser modificada. Trata-se menos dos Hmites colocados a iniciativa dos sujeitos que do campo em que se articula (sem constituir seu centro), das regras que utiliza (sem que as tenha inventado ou formulado), das rela^oes que Ihe servem de apoio (sem que ela seja seu resultado ultimo ou seu ponto de convergencia). Trata-se de fazer aparecer as praticas discursivas em sua complexidade e na sua espessura, mostrar que falar e fazer alguma coisa, alguma coisa diferente de expressar o que se pensa, traduzir o que se sabe, distinto de por em jogo as estruturas de uma lingua; mostrar que agregar um enunciado a uma serie preexistente de enunciados e fazer um gesto complicado e custoso, que implica algumas condicoes (e nao somen-
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Lupidnio Iniguez te uma situa9ao, um contexto, uns motives) e que comporta algumas regras (diferentes das regras logicas e linguisticas de construcao); mostrar que uma mudan^a, na ordem do discurso, nao pressupoe "ideias novas", um pouco de invetHpao e de criatividade, uma mentalidade distinta, e sim algumas transforma9oes em uma pratica, eventualmente nas praticas que dela se aproximam e em sua articula9ao comum. Nao neguei, longe disso, a possibilidade de mudar o discurso: apenas tirei dele o direito exclusive e instantaneo a soberania do sujeito (Foucault, 1969: 350-351).
xam claro que falar nao so e algo mais como tambem e algo diferente de exteriorizar um pensamento ou descrever uma realidade: falar e fazer algo, e criar aquilo de que se fala, quando se fala. 5.2. Problematizagao
A problematiza9ao e urn termo que sintetiza o convite que Michel Foucault faz para darmos a produ9ao do conhecimento e do saber um carater transformador e libertador. A problematiza9ao refere-se a totalidade de praticas discursivas e nao discursivas que introduz alguma coisa no jogo do verdadeiro e do falso e o constitui como um objeto de pensamento. Porem, mais que tudo, e um metodo e um processo de pensamento. A problematiza9ao poe em diivida tudo aquilo que se presume ser evidente ou bom, questiona o que esta configurado como inquestionavel, duvida daquilo que e indubitavel. Foucault levou esse metodo ao extreme ao problematizar o conceito e o exercicio do poder, a sexualidade e a Iiberta9ao sexual.
O discurso e uma pratica articulada com outras praticas tambem emolduradas na ordem da capacidade discursiva. Discursos relacionados com outros discursos que se retroalimentam, que se interpelam, que se interrogam; discursos aos quais surpreender, descobrir e saquear; discursos produtores e solapadores de outros discursos; discursos que se transformam, mas aos que tambem e posslvel transformar. Embora, isso sim, a transforma9ao do discurso seja uma transformacao na ordem do discurso, o que nao deve ser interpretado como novidade ou criatividade atraves de novas contribuicoes ou revisao do existente, e sim como as transformacoes que se produzem na pratica discursiva. Transforma9oes nos discursos, mudancas do discurso, mas sempre compreendidos como mudanpas e transforma9oes nas praticas, nunca como a transforma9ao promovida por um sujeito que decide, prescreve, executa e orienta a ordem do discurso. Com efeito, os discursos nao emanam do interior de sujeitos, nem tampouco sao uma inocula9ao ideologica que determine o pensamento desses mesmos sujeitos. Os discursos articulam o conjunto de condicoes que pemiitem as praticas: constituent cenarios que passam a facilitar ou a dificultar as possibilidades, que fazem surgir regras e mantern redoes. Defmitivamente, as praticas discursivas dei-
A aplica9ao pratica da problematiza9ao mostra em que sentido e possivel orientar e influenciar uma pratica de produgao de conhecimento social, incluindo, especificamente, a AD. Em prirneiro lugar, ela deve ser levada em conta na abordagem e no planejamento da pratica investigadora, sobretudo o convite a problematiza9ao. E, em segundo
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Problematizar nao e somente - seria demasiado facil conseguir que o nao problematico se torne problematico, e algo ainda muito mais importante do que isso, porque problematizar e tambem, e principalmente, conseguir entender como e por que alguma coisa adquiriu um status de evidencia inquestionavel, como e que algo conseguiu se instalar, se instaurar, como a-problematico. Na problematizagao o fundamental e desvendar o processo atraves do qual alguma coisa se constituiu como obvia, evidente e certa (Ibanez, 1996: 54).
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2. A linguagem nas ciencias sociais...
lugar, ela constitui uma forma altemativa do estudo das praticas sociais atraves de uma AD, no sentido de expandir seu campo de agao para mais alem de um conhecimento daquele mundo ou daqueles mundos que a linguagem constroij e dos efeitos provocados por qualquer pratica discursiva. Um campo no qual o relevante e a diregao que queremos induzir na transformagao que toda a agao discursiva e toda a agao de analise discursiva terao que provocar necessariamente. Para terminar, daremos enfase a manutengao de uma certa posicao e uma certa inclinagao a que nos convidava Foucault:
O papel da linguagem nas ciencias sociais foi reconhecido inicialmente quando se percebeu que leva-la em consideracao poderia ter um grande interesse metodologico para o desenvolvimento da ciencia e do pensamento sociais. Naquele momento, aproveitaram-se das experiencias acumuladas da linguistica e dos estudos da comunica930 para completar, e as vezes substituir, o arsenal de tecnicas e procedimentos metodologicos disponiveis. Surge assim o uso de metodos como a Analise de Conteudo (sobre o qual apenas mencionarnos sua existencia) e as varias modalidades da Analise do Discurso que serao desenvolvidas no proximo capitulo.
A curiosidade e um vicio que foi estigmatizado seguidamente pelo cristianisrao, pela filosofia e ate mesmo por uma certa concep?ao da ciencia. Curiosidade, futilidade. No entanto, eu gosto da palavra curiosidade; ela me sugere uma coisa totalmente diferente: evoca o "cuidado", evoca a solicitude que se tern com aquilo que existe e poderia existir, um sentido agugado do real, mas que nunca se imobiliza nele, uma disposicao para encontrar o que ha de estranho e singular a nossa volta, uma certa obstinagao em desfazer-nos de nossas familiaridades e mirar de outra maneira as mesmas coisas, um certo ardor para captar o que sucede e o que passa, uma desenvoltura diante das hierarquias tradicionais entre o importante e o essencial (Foucault, 1994: 222).
Neste capitulo examinamos alguns dos rundamentos que servem de base ao papel que a linguagem tern atualmente nas ciencias sociais. A "capacidade linguistica" e uma caracteristica da comunicagao humana, sem duvida a mais genuina, mas foi nossa intencao mostrar aqui que essa caracteristica nao e somente uma caracteristica dos seres humanos como individuos singulares, mas tairibem dos processos sociais.
O argumento que desenvolvemos no capitulo foi que aquilo que teve inicio sendo, presumivelmente, um metodo, ou seja, uma aplicagao dos conhecimentos sobre a linguagem a investiga^ao de processos sociais, acabou se convertendo em um conjunto de perspectivas genuinas, que ajudaram a transformar nossa concep9ao dos proprios processos sociais e da maneira de aborda-los. Em primeiro lugar, aludimos ao giro linguistico, tema amplamente desenvolvido no capitulo com o mesmo nome, e sintetizamos suas consequencias para esse processo. A consequencia principal do giro linguistico nesse terreno foi dar a linguagem cotidiana a mesma competencia da linguagem formal por ter capacidade suficiente para explicar a realidade, justamente por haver negado qualquer pretensao de representatividade e de ter enfatizado o carater construtivo de toda a ac.ao linguistica. Outra consequencia essencial foi a de permitir a considera9ao de toda agao social em igualdade de condigoes com qualquer outra ao confirmar que toda enunciagao e uma agao em sentido pleno. Em segundo lugar, nos referimos a "Teoria dos atos da fala". Suas consequencias principals se originampelo fato
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de que essa teoria detalhou a maneira como a fala e uma apao de pleno direito. Nesse sentido ela operacionaliza na pratica o anti-representacionalismo para confirmar o carater constitutive de cada ato de fala. Uma de suas principals consequencias foi, de um lado, possibilitar a conceitualiza9ao da linguagem como algo mais que uma janela de acesso a atividade mental; e, de outro, analisarpormenorizadamente as agoes de fala como elementos constitutivos da interacao. Ou seja, essa teoria permite inserir a linguagem no proprio interior dos processes sociais que interessaram e interessam as ciencias sociais. Em terceiro lugar, fizemos uma apresentacao de alguns dos elementos principals da Pragmatica. A principal consequencia da Pragmatica foi deixar claro que o significado e a criacao de sentido proprio da atividade humana nao e unicamente um processo resultante da constituicao de cada sinal linguistico, e sim da interacao e do contexto no qual a linguagem se desenvolve. Transmitir um signiflcado e compreende-lo e, do ponto de vista da Pragmatica, algo mais que utilizar palavras. Em quarto lugar, aludimos a ETN. Essa corrente sociologica interessada nos processos microssociais veio completar as contribuicoes anteriormente assinaladas detaIhando os processos basicos segundo os quais nos construimos o mundo atraves da a?ao. Finalmente, introduzimos as contribuicoes de Foucault tanto para os processos de investigagao como diretamente para a concepcao do discurso e da ADF. Apos Foucault, pode-se considerar estabelecido que o discurso e uma pratica social e, o que e ainda mais interessante, que como pratica social incorpora elementos constitutivos que nao sao puramente linguisticos ja que esses sao os elementos que, condicionados por um contexto historico particu98
lar e um inventario de regras socialmente elaboradas, constituem os objetos sobre os quais falam. Como enfatizamos no inicio, seria possivel identiflcar outros fundamentos para explicitar o papel da linguagem nas ciencias sociais. No entanto, os que aqui assinalamos estao indubitavelmente presentes, totalmente ou em parte, em muitas das correntes que sob o rotulo de "discursivas" estao atualmente em atividade nas ciencias sociais. No proximo capitulo veremos uma modalidade de cada uma delas e, alem disso, as ilustraremos com exemplos de estudos especificos. Glossario Para os verbetes "atos de linguagem", "performatividade", "pragmatica" e "proposi^ao", ver o glossario do capitulo 1. Accountability: propriedade das apoes que as fazem visivelmente racionais e acessiveis ou descritiveis. "Fazer o mundo visivel e fazer minha acao compreensivel ao descreve-la, porque dou a entender seu sentido ao revelar os procedimentos que emprego para expressa-la" (Coulon, 1987:49). Ato ilocuciondrio (ilocutivo): ato que se realiza ao dizer alguma coisa. Ato locuciondrio (locutivo): 3930 da fala que produz significado. Ato perlocuciondrio (perlocutivo): ato de fala que produz efeitos ou consequencias. Competencies, conceito-chave da etnometodologia que se refere a idoneidade de uma pessoa membro de um grupo no uso e gestao da linguagem. Capacidade de atuar, dispor de conhecimentos, metodos e estrategias para
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adaptar-se e se desenvolver no contexto social em que se vive. Dictico: assinalador. Marca as pessoas que falam (eu, tu), os objetos do ambiente (este, esse...), o lugar do qual se fala ou de onde se fala (aqui, ali...) e o tempo em que acontece a acao ou o tempo a que se refere a narragao (hoje, amanha...). Dixis: elemento gramatical que codifica a relacao entre o idioma e o contexto de uso. "O termo 'dixis' se origina da palavra grega para assinalar ou indicar, sendo exemplos prototipicos ou principais o uso dos demonstratives, os pronomes de primeira e segunda pessoa, o tempo verbal, adverbios especificos de tempo e lugar como "agora" e "aqui", e varies outros tra?os gramaticais ligados diretamente as circunstancias daenunciasao [...]. A dixis se ocupa de como os idiomas codificam ou transformam em gramatica elementos do contexto ou de evento da fala, tratando tambem de como a interpretagao dos enunciados depende da analise do contexto da comunicagao" (Levinson, 1983: 47). Dixis do discurso: expressoes de um enunciado para referir-se a alguma parte anterior ou posterior do mesmo enunciado. Dixis social: aspectos da linguagem que codificam as identidades socials dos participantes ou a relacao social existente entre eles. Etnometodologia: corrente da sociologia que estuda as acoes cotidianas e os fenomenos, problemas, resultados e metodos que essas agoes abrangem. "A emometodologia tem como objeto de estudo empirico as atividades praticas, as circunstancias de cada dia, o raciocinio sociologico que normalmente desenvolvemos nos assuntos ordinaries" (Wolff, 1979: 111). 100
Implicatura: significado adicional comunicado pelo falante e inferido pelo ouvinte. Indexicabilidade: conceito-chave da emometodologia que se refere a propriedade da linguagem segundo a qual o significado dessa e sempre dependente do contexto de sua propria produgao. Reflexividade (Reflexivity): propriedade das acoes segundo a qual as praticas descrevem e constroem ao mesmo tempo. "As descricoes do social se convertem, no momento de expressa-las, em partes constitutivas daquilo que descrevem" (Coulon, 1987: 44). Teoria dos atos da fala: teoria desenvolvida por John Austin que considera que falar nao serve unicamente para descrever o mundo, mas tambem para fazer coisas. Leituras recomendadas
AUSTIN, J.L. (1962). Como hacer cosas conpalabras. Barcelona: Paidos [1998]. Austin deu uma serie de conferencias na Universidade de Harvard em 1995 que foram posteriormente publicadas em 1962. Nessas conferencias ele esbogou a teoria dos atos da fala. Trata-se, portanto, de um texto basico. COULON, A. (1987). La etnometodologia. Madri: Catedra. [1988]. E uma excelente introdu9ao a etnometodologia que tem a vantagem de ser um porta-voz fiel das ideias de Garflnkel e de ser tambem conciso e ameno. No texto de Colon sao detalhadas, com inusitada claridade, tanto as caracteristicas da etnometodologia quanto suas origens, precursores, praticas investigativas e, ate mesmo, as criticas inais comuns que recebeu. 101 .. .-2*.->.. jj
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ESCANDELL VIDA, M.V. (1996). Introduction a la pragmatica. Barcelona: Ariel.
BRUNER, J. (1990). Actos de significado. Madri- Alianza [1991]. ;
Um excelente manual de pragmatica linguistica. FOUCAULT, M. (1966). Laspalabrasy las cosas. Madri: Siglo XXL E um livro seminal para entendermos a historia conceitual em que se baseia nossa visao do mundo, da sociedade e dos seres humanos na epoca contemporanea. Alem disso, destaca-se por deixar claro, de uma forrria magistral, o papel que as ciencias humanas tiveram na historia. Como foi dito na apresentagao da edi?ao espanhola "o rigor, a originalidade e a inspiragao de M. Foucault nos trazem um olhar radicalmente novo sobre o passado da cultura ocidental e uma concep9ao mais lucida da confusao de seu presente". — (1969). La arqueologia del saber. Madri: Siglo XXI [1978]. Esse texto se apresenta como uma "caixa de ferramentas" para usar o termo que o proprio autor cunhou para referir-se a sua proposta metodologica. E um texto crucial para entender o papel do discurso nas ciencias sociais. RORTY, R. (org.) (1967). The Linguistic Turn. Chicago: UCP. Ern 1967, Rorty recopilou um conjunto de ensaios que debatiam a linguagem e a filosofia da linguagem a partir de multiplas perspectivas e posicoes. E urn texto de maxima importancia. Em castelhano, so a Introdufao esta disponivel em RORTY, R. (org.) (1967). El giro linguistico. Barcelona: Paidos/ICE-UAB [1990].
CABRUJA, T. et al. (2000), Como construirnos el mundo: relativismo, espacios de relacion y narratividade. AnaliJis,25,p.61-94[s.n.t.]. CASAMIGLIA, H. & TUSON, A. (1999). Las cosas del decir — Manual de analisis del discurso. Barcelona: Ariel. COULON, A. (1987). La etnometodologia. Madri: Catedra[1988]. DENZIN, N.K. & LINCOLN, Y.S. (1994). Handbook of Qualitative Research. Londres: Sage. DIAZ, F. (comp.) (2001). Sociologias de la situation. Madri: La Piqueta.
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ste capitulo esta dedicado a Analise do Disturso corho Emetodo e como perspectiva nas ciencias sociais. Ao longo de suas paginas apresentaremos a Analise do Discurso como um meio de colocar em pratica o papel da linguagem como eixo de compreensao e estudo dos processos sociais. Atraves das varias sessoes que o configuram, mostraremos e justificaremos por que a Analise do Discurso constitui uma das areas que melhor representa a inclusao da linguagem na compreensao desses processos. No entanto, e precise, ja neste preambulo, advertir que Discurso e Analise do Discurso nao sao termos univocos, e sim que ambos tem inumeros sentidos diferentes em cada uma de suas variedades, tradi9oes e praticas. O capitulo foi estruturado em cinco partes. Na primeira, apresentamos as varias orientacoes e tradiQoes da Analise do Discurso, com o objetivo de mostrar a variedade de posi?6es que compartilham esse cenario e para que se possa chegar a identificar varias modalidades da Analise do Discurso e as caracteristicas basicas de cada uma delas. A * Universidade Autonoma de Barcelona.
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vidade e a produgao de efeitos, a materializa9ao do corpus, e um detalhe de ferrarnentas especificas de analise como a identifica9ao de "atos de fala", implicaturas, estruturas retoricas, repertorios interpretativos e polaridades. A intencao nessa parte e proporcionar uma introdu9ao documentada e fundamentada a pratica da analise do discurso.
selecao foi feita considerando-se apenas as modalidades que estabeleceram umdialogo interdisciplinar (a sociolinguistica interacional, a etnografia da comunicacao, a analise conversational, a analise critica do discurso e a psicologia discursiva). Com isso, a inten9ao era deixar claro, identificar e mostrar como a interdisciplinaridade da sentido e identidade a Analise do Discurso. Na segunda parte, apresentamos e examinamos varias concep9oes de discurso, reafirmando, assim, a caracteristica plural presente nas varias praticas. Como o reconhecimento da diversidade nao deve excluir uma escolha, oferecemos uma defini9ao aproximada de "discurso" e de "analise do discurso" que, alem de adotar as premissas principals que sao utilizadas nessa disciplina, sustenta os fundamentos descritos no capitulo anterior. A premissa que serve de base a essa defmi9ao aproximada e a importancia de delimitar os componentes basicos que uma defmicao deve incorporar, nao com o fim de identificar uma essencia ou estabelecer uma distin9ao entre o discursive e o nao discursivo e sim como uma forma de deixar claro, discursivamente, que um discurso constroi aquilo sobre o qual fala. Da mesma forma e em conformidade com o que foi dito antes, trata-se tambem de poder optar e defender, com a necessaria argumenta9ao, uma concepgao de discurso especifica, extraida de um ample repertorio. Com esse mesmo interesse em manter aberta e tornar visivel a maior quantidade possivel de concep9oes, mas explicitando claramente nossas preferencias, detalhamos, na terceira parte, a praxis da Analise do Discurso, seguindo duas tradi9oes particulars: a anglo-saxa e a francesa. Da mesma forma, abordamos a explica9ao sobre o que se pode fazer com um texto na pratica: a definicao do processo social que vamos analisar, a selecao do material relevante para a analise seguindo os criterios de representati-
Essa diversidade de contribuigoes gerou atribui9oes e filia9oes disciplinares heterogeneas, que se traduziram em praticas muito variadas. Essas, por sua vez, tiveram como resultado concep9oes tambem diferentes - muito diferentes umas das outras - embora provavelmente com um denominador comum: a consideragao da analise do idioma em seu uso, seja esse falado ou escrito.
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Na quarta e ultima parte, debateremos a viabilidade da Analise do Discurso como uma perspectiva nova e frutifera das ciencias socials. Nesse sentido, oferecemos uma reflexao sobre as implicates da pratica analitica discursiva, sobre a importancia da consideragao do contexto social em que se constroi o discurso e, finalmente, sobre o papel do discurso na constru9ao, manuten9ao e mudan9a da estrurura social. Todos esses aspectos deverao ter como resultado o conhecimento e a identificacao do alcance e dos limites da Analise do Discurso como pratica.
Consideracoes preliminares Originalmente a expressao "analise do discurso" designava uma area da linguistica. No entanto, apesar de sua origem, a AD nao e um patrimonio exclusive da linguistica eja contou com as contribui9oes de outras disciplinas academicas. Com efeito, a antropologia, a sociologia, a psicologia, a comunicagao, a filosofia, etc. todas fizeram suas contribui9oes e desenvolveram metodos especificos de analise (Van Dijk, 1985).
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Lupicinio Iniguez Assim, por exemplo, Stubbs (1983: 11), um dos mais importantes especialistas linguisticos em AD, afirma que: A Analise do Discurso e um termo muito ambiguo. Vou utiliza-lo neste livro para referir-me principalmente a analise linguistica do discurso, falado ou escrito, que se produz de modo natural e e coerente. Em linhas gerais, refere-se a intengao de estudar a organizacao da linguagem alem da oracao ou da frase e, por conseguinte, de estudar unidades linguisticas maiores, como a conversa930 ou o texto escrito. Disso se deduz que a Analise do Discurso tambem se relaciona com o uso da linguagem em contextos socials e, concretamente, com a interagao ou dialogo entre os falantes. Brown & Yule (1983: 12), outros dois pioneiros da AD no interior da linguistica, afirmam nesse mesmo sentido: [...] nosso interesse primordial e o objetivo tradicional da linguistica descritiva: oferecer uma explicagao de como as formas linguisticas sao usadas na comunicacao. Ao que acrescentam (1983: 19): A analise do discurso e, por necessidade, a analise do idioma em seu uso. Como tal, nao se pode limitar a descri?ao de formas linguisticas independentemente dos propositos e das funsoes as quais essas formas estao destinadas. Na primeira parte deste capitulo apresentaremos algumas abordagens a AD e as diferentes definicoes de "discurso" que sao utilizadas nas varias orientagoes e tradigoes. Mais a frente apresentaremos uma modalidade especifica da AD com o objetivo de incorporar aspectos de varias dessas tradigoes e concepgoes a fim de proporcionar uma forma de aproximagao a realidade social, tal como pretendem as ciencias sociais.
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1. As varias orientates e tradigoes da Analise do Discurso Existem muitas razoes diferentes para que o discurso tenha se convertido em um objeto de analise, de estudo e de debate nas ciencias sociais. Entre elas, podemos destacar tres que, por sua vez, respondem a razoes de ordem diferente. Primeiramente, existem razoes de tipo teorico e epistemologico. Como ja foi arnplamente discutido no capitulo "O giro lingiiistico", nao ha duvida de que os debates no interior do giro linguistico exerceram uma enorme influencia sobre o conjunto das ciencias sociais e humanas. Em segundo lugar, a transformagao da linguistica desde sua enfase inicial no estudo da linguagem como propriedade dos seres humanos ate sua orientagao para a analise do uso da linguagem nos varios contextos relacionais e de comunicacao tambem influiu enormemente sobre as outras ciencias humanas e sociais que enfrentam os mesmos processes a partir de oticas distintas. Por ultimo, a relevancia que os meios de comunicacao adquiriram em nosso tempo e, em particular, as novas tecnologias de comunicacao, colocam em evidencia a centralidade desses processes na constituicao, manutencao e desenvolvimento de nossas sociedades. Historicamente, as origens desse processo podem remontar a decada de sessenta do seculo XX. Na Franca, por exemplo, na segunda metade dos anos sessenta, cornega-se a esbocar uma tradicao sob esse rotulo, fortemente influenciada pelo estruturalismo, pelo marxismo e pela psicanalise (Pecheu, 1969; Maingueneau, 1987). Damesma forma, no ambito anglo-saxao, inicia-se nessa epoca a "Etnografia da comunicacao" (Gumperz & Hymes, 1972; Hymes, 1974).
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Como vimos nos capitulos anteriores, apartir dos anos 1970, as concepcoes pragmaticas e interacionistas vao adquirindo uma importancia maior, que acabara por estabelecer a ideia de que a palavra e uma forma de acao, acentuando assim a dimensao interativa da comunicacao verbal. No entanto, e durante a decada de 1980, quando proliferam defmitivamente os trabalhos que se autodenominam de "analise do discurso", que, em sua diversidade, esses trabalhos representam formas de AD dificeis de definir, ja que se inserem em varias disciplines, desde a lingiiistica ate a psicologia, a sociologia, a antropologia, a historia, etc. (Schiffrin, 1994). Schiffrin afirma que existem varias tradicoes basicas na AD: a Teoria dos Atos da Fala, a Sociolinguistica Interacional, a Etnografia da Comunicacao, a Pragmatica, a Analise Conversacional e a Analise da Variacao. Obviamente, essas tradicoes nao sao as unicas, e e possivel que a lista pudesse ser ampliada com a inclusao de duas outras que tern, hoje, uma projecao incontestavel: a Analise Critica do Discurso e a Psicologia Discursiva. Nesta apresentagao vamos deixar de lado a "Teoria dos atos da fala" e a Pragmatica por ja terem sido examinadas no capitulo "A linguagem nas ciencias sociais" como parte da base teorica e metodologica da AD. Por isso, neste exame das tradigoes da AD nao as mencionaremos, embora sem esquecer de sua importancia. Faremos o mesmo com a Analise da Varia?ao que, embora tendo como tema central o aspecto interessante da variacao e da mudanpa linguistica, de todas as tradifoes e a unica que se desenvolveu unicamente no interior da linguistica, quase sem nenhum contato com outras areas das ciencias sociais, exceto, talvez, com alguma modalidade da Sociolinguistica. 110
As tradic-oes'que iremos descrever brevemente sao: a) a Sociolinguistica Interacional; b) a Etnografia da Cpmunicagao; c) a Analise Conversacional; d) a Analise Critica do Discurso (daqui em diante, ACD); f) a Psicologia Discursiva. 1.1. A sociolingliistica interacional Essa tradi9ao de AD se origina da antropologia, da sociologia e da linguistica. O motive para essa triplice "maternidade" esta em seu interesse pela cultura, pela sociedade e pela linguagem. A microssociologia de Goffman teve uma grande influencia nessa perspectiva por ter situado a linguagem nas circunstancias concretas da vida cotidiana. No entanto, Gumperz (1982) talvez seja seu representante mais proeminente. Examinando detalhadamente as contribuic.6es dos dois autores acima e possivel identificar, como faz Schiffrin (1994) com grande perspicacia, a simbiose entre a perspectiva microssociologica de Goffinan e as propostas da Sociolinguistica de Gumperz. Especialmente relevante e a enfase que ambos autores dao a linguagem e ao contexto em toda sua obra. Tanto para Goffinan como para Gumperz, a linguagem desempenha um papel central, nao so como mero meio de comunicayao, mas tambem pela influencia que exerce na construcao de significados, em relagao ao contexto em que e utilizada, e pelas aberturas e fechamentos que sua utilizapao possibilita. Com efeito, ambos autores partem do principio que o contexto e a dimensao determinante na constru9ao de significados e reconhecem a natureza dependente (indexada) da linguagem. Assim, Gumperz sublinha como o ato de compreender as intenfoes de um falante ou a "simples" interpreta9ao de uma informa9ao ou de uma comunica9ao sao inseparaveis do contexto ern que foram produzidas. De outra perspec111
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tiva, mas insistindo na mesma consideracao contextual, Goffman observa como as interasoes e as institui^oes descrevem uma moldura contextual que propicia interpreta9oes e gera significados. A obra de Gumperz tern como foco a maneira como as interpreta?6es do contexto sao cruciais para a comunica9ao da informafao e para que a outra pessoa possa compreender a intencao e/ou a estrategia discursiva do falante; a obra de Goffman tern como foco a maneira como a organiza?ao da vida social (em instituipoes, intera96es, e assim por diante) fornece contextos atraves dos quais tanto o sentido da conduta do self quanta da comunicacao com o outro torna-se compreensivel (tanto para os co-presentes na inter^ao como para analistas externos). O trabalho de ambos estudiosos tambem da uma visao da.linguagem como sendo indexada a urn mundo social: para Gumperz, a linguagem e" um indice para os entendimentos do pano de fundo cultural que fornecem um conhecimento oculto - mas ainda assim essencial; para Gof&nan, a linguagem e apenas um de um numero de recursos simbolicos que fornecem um indice para as identidades e relacionamentos sociais que estao sendo construidos continuamente durante a interacao. Finalmente, ambos estudiosos permitem que a linguagem tenha urn papel mais ativo na criacao de um mundo do que talvez aquele que e sugerido pelo termo "indice"; a ideia que "dicas" da contextualizacao podem alterar nao so o significado de uma mensagem mas a propria moldura de participacao da conversa — de tal maneira que tanto intencoes diferentes como selves e "outros" diferentes podem ser exibidos atraves de mudan9as sutis na maneira em que essa moldura fornece um caminho para a comunica^ao self-outro - e basicamente semelhante nos dois estudiosos (Schiffrin, 1994: 105-106). O tema preferido nessa tradicao foi a analise de situa9oes de intera?ao marcadas por uma situacao assimetrica dos/as participantes. Ou seja, situagoes nas quais os/as agentes sociais narelagao sao membros de culturas distin-
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tas, de grupos socioculturais diferentes, de status diferente, etc. e dos quais pode-se esperar sistemas de valores e crencas opostas ou distantes que compreendem fonnas de a?ao e de interagao tarnbem diferentes. 1.2. A etnografia da comunicagao
A etnografia da comunica9ao e uma abordagem ao discurso que se baseia na antropologia e na linguistica. A inten9ao da etnografia da comunica9ao e tao ampla quanto a da propria antropologia, mas seu principal foco de interesse e a competencia comunicativa. O que esse tipo de etnografia busca e compreender como o conhecimento social, psicologico, cultural e linguistico governa o uso apropriado da linguagem (Schiffrin 1994). A etnografia da comunica9ao entende que a competencia linguistica e apenas mais uma parte dos recursos que e necessario mobilizar para a comunicagao, e a chamam de "competencia comunicativa". Hymes (1974) foi quem deu maior estimulo aessacorrente e quem introduziu o conceito de "competencia comunicativa". Com efeito, esse conceito origina-se do conceito formulado por Chomsky em sua gramatica generativa para designar a aptidao que os falantes de um idioma tern para produzir e compreender um numero ilimitado de frases que ate entao eram ineditas para eles/as. A essa ideia, Hymes acrescentou um aspecto pragmatico; ou seja, a aptidao para administrar, em um contexto particular, as regras que permitem que uma pessoa interprete o significado do enunciado. Mais recentemente, tornou-se comum a denomina9ao "antropologia linguistica" (Duranti, 1997) que se define como o estudo da linguagem como recurso da cultura e da fala como pratica cultural. Mais concretamente, a "antro-
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pologia linguistica" pode ser caracterizada como uma area fundamentalmente interdisciplinar que: baseia-se e se desenvolve sobre metodos que pertencem a outras disciplinas, especialmente a antropologia e a linguistica, com o fun geral de proporcionar uma compreensao dos varies aspectos da linguagem em seu papel de moldura de praticas culturais, isto e, como um sistema de comunica9ao que permite as representa9oes interpsicologicas (entre individuos) e intrapsicologicas (no mesmo individuo) da ordem social, e que contribui para que as pessoas utilizem essas representacoes para realizar atos sociais constituintes. [...] Os/as antropologos/as linguisticos/as trabalham, sobre uma base etnografica, na producao de relates das estruturas linguisticas tal*como aparecem na intimidade de grupos humanos em um tempo e espaco determinados (Duranti, 1997:21).
Em um nivel teorico, a principal contribui9ao da antropologia linguistica foi ter considerado a linguagem como um conjunto de estrategias simbolicas que sao constitutivas da sociedade e que possibilitam a representacao de mundos possiveis e reais a seus membros. No piano metodologico, sua contribui9ao foi a etnografia, ja que, como forma de observapao participante, permite dar atencao aos elementos contextuais, historicos e culturais que sustentam as intera9oes sociais significativas._,. As vantagens que esse enfoque traz sao obvias, nao so pelos tratamentos que possibilita como tambem pela pluralidade tematica e a perspectiva inovadora que abre para os antropologos e antropologas linguisticos. Com efeito, como indica Duranti (1997), o enfoque da etnografia da comunica9ao permite estudar temas como as politicas da representa9ao, a conforma9ao da autoridade, a legitima9ao do poder, a mudan9a social, as bases culturais do racismo e do conflito etnico, o processo de socializapao, a 114
constni9ao social do sujeito, as emocoes, a rela9ao entre a a9ao ritual e as formas de controle social, o dominio especifico do conhecimento e da cogni9ao, as politicas de consumo estetico, o contato cultural etc. 1.3. A analise da conversagao A origem da analise da conversa9ao (a partir daqui, AC) esta nos enfoques da Sociologia da Situa9ao (Diaz, 2001) e mais especificamente na etnometodologia (Garfinkel, 1967). Como vimos no capitulo "A linguagem nas ciencias sociais", a etnometodologia se interessa pelos metodos que os/as participantes em uma situa9ao social de intera930 utilizam para interpretar e atuar no interior dos mundos sociais que eles/as mesmos/as constroem em suas praticas. A caracteristica distintiva dessa perspectiva, com rela930 as outras modalidades da AD, e que as categorias da analise devem ser, na medida do possivel, as mesmas que os participantes utilizam no momento de compreender a intera9ao. Nesse sentido, o importante para a AC e descobrir como a sociedade esta organizada e como funciona a partir das proprias a$oes das pessoas que nela interagem. A AC aborda a linguagem de uma maneira radicalmente diferente de outras perspectivas. Assim, por exemplo, em outras abordagens linguisticas e sociologicas a linguagem e considerada como portadora de significados e ideias no sentido de que os/as falantes a codificam ou empacotam no interior das palavras, sem levar em considera9ao outros aspectos da expressao tais como a entona930, etc. Nesse sentido a AC oferece a vantagem de lidar com os relates das pessoas em seu contexto, aceitando pienainente a importancia da mdexa9ao, tal como foi explicada no capitulo anterior (Antaki, 1994). A forma drastica do projeto de analise conversacional e muito clara. E unicamente atraves dos proprios meios
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dos participantes se organizarem - argumenta a analise conversational - que encontraremos bases solidas para nossas afirmagoes analiticas. Aprimeira vista, isso parece eliminar inumeras coisas com as quais os cientistas socials se sentem confortaveis. A mudanga de orientacao dos/as analistas para os/as participantes parece questionar a habilidade dos/as cientistas sociais como habeis leitores da mente comum e como experimentadores/as profissionais de suas proprias teorias sobre ela (Antaki, 1994: 187).
A AC estuda a ordem, a desordem e a organizagao da agao social cotidiana, captando o que dizem, contain ou fazem as pessoas e, definitivamente, tudo aquilo tal e qual e produzido pelos/as participantes em conversagoes. Nesse sentido, a tarefa do analista da conversacao e identificar, descrever e estudar a ordem que se produz nas conversagoes. No entanto, e importante assinalar que a AC examina a linguagem em uso e nao as pre-concepgoes ou esquemas previos definidos pelos/as analistas. De forma sintetica, as principals premissas da AC podem ser assim resumidas: 1) A ordem e uma organizagao produzida. 2) A ordem e produzida pelas partes interessadas in situ. 3) As partes se orientam para aquela ordem elas proprias; isto 6, essa ordem nao 6 a concepgao de urn analista, nem o resultado do uso de algumas concepgoes teoricas pre-formadas ou pre-formuladas a respeito daquilo que a agao deve/tem que/deveria ser, ou baseada em afirmagoes que generalizam ou resumem sobre aquilo que a agao geralrnente/frequentemente/muitas vezes e. 4) A ordem e repetivel e recorrente. 5) A descoberta, descrigao e analise daquela ordem produzida e a tarefa do analista. 6) Questoes sobre a frequencia, a amplitude ou o numero de vezes em que fenomenos especificos ocorrem devem ser abandonados se a intengao e descobrir, descrever e analisar as estruturas, a maquinaria, as praticas or116
ganizadas, os procedimentos formais, as maneiras pelas quais a ordem e produzida. 7) Estruturas de acao social, uma vez reconhecidas como tal, podem ser descritas e analisadas em termos formais, ou seja, estruturais, organizacionais, logicos, sem conteudo ou tema, consistentes e abstratos (Psathas 1995: 2-3).
Ao estudar a linguagem na pratica observam-se certas regularidades. A mais conhecida e a chamada turn-taking (tomara vez): emsituagoes diferentes, extraordinariamente cotidianas, os/as interlocutores/as facilmente manipulam sua conversa para que cada pessoa tenha sua "vez" de intervengao bem definida, cedendo o lugar a outra que se destaca no momento apropriado e continua a conversa. For exemplo: A: "Oi, tudo bem?" B: "Tudo otimo, e contigo?" A: "Foi bom te ver". A analise minuciosa desse tipo de regularidades permite conhecer a interagao social e como ela e organizada, mantida e administrada. O que as pessoas dizem e considerado nao como uma manifestagao direta de um conceito simples ou nao ambiguo, e sim como um instmmento que pode movimentar a conversa e realizar certas tarefas sociais tanto ocultas como obvias. For exemplo, a frase "a porta esta aberta?" pode ser uma pergunta ingenua, mas tambem pode ser uma indireta para que o/a interpelado/a feche a porta. Essas caracteristicas, alem de outros aspectos complementares como o alcance da AC na analise social, podem ser vistas claramente no exemplo que Charles Antaki e Felix Diaz apresentam no proximo capitulo. 117
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1.4, A Analise Critica do Discurso Para sermos justos, seria preciso dizer que a Analise Critica do Discurso (daqui por diante, ACD) nao e exatamente uma modalidade da AD e sim uma perspectiva diferente. Essa diferenga da-se sobretudo na maneira em que as duas confrontam a teoria e a analise. Com efeito, como afirmam Rojo & Whitaker (1998), a ACD constitui uma estrategia para abordar os discursos segundo a qual a teoria nao pre-configura nem determina a maneira de enfocar as analises, nem delimita o campo da indagafao e da exploracao. Ao contrario, a teoria e utilizada como uma caixa de ferramentas que permite formar e abrir novas visoes e novos enfoques e onde o/a analista se converte em artifice gra9as a seu envolvimento com aquilo que estuda. Obviamente, essas novas visoes, essas novas formas de indagar, essas novas formas de focalizar os objetos de estudo pressupoem uma mudan9a de perspectiva na interrogasao, e pressupoem tambem prescindir da ideia de que tudo e dado, e, defmitivamente, a adocao de umapostura que problematize as questoes, permitindo assim abrir novas perspectivas de estudo e fazendo surgir novos objetos de investiga?ao. A ACD deu enfase ao estudo daquelas acoes sociais que pomos em pratica atraves do discurso, como o abuso do poder, o controle social, a dominagao, as desigualdades sociais ou a marginalizagao e exclusao sociais. Aqueles que adotam uma perspectiva critica tern a inten9ao de deixar bem claro o papel-chave desempenhado pelo discurso nos processes atraves dos quais sao exercidas a exclusao e a dominacao, assim tambem como a resistencia que os sujeitos oferecem contra ambas. E mais, os investigadores na ACD nao so consideram o discurso como uma pratica social, mas tambem acham que sua propria tarefa - revelar como atua o discurso nesses processes - constitui uma forma de oposicao e de 118
social com a qual tenta-se despertar uma atitude critica nos falantes, especialmente naqueles que se deparam, mais frequentemente, com essas formas discursivas de domina?ao. Trata-se, portanto, de incrementar a "consciencia critica" dos sujeitos com relatjao ao uso linguistico e, alem disso, de Ihes proporcionar um metodo do tipo "faca-o voce mesmo", com o qual enfrentar a produ9ao e a interpreta9ao dos discursos (Martin Rojo & Whittaker, 1998: 10).
Para a ACD, o discurso e sobretudo uma pratica social, ja que nao e contemplado como uma 'representa9ao' ou reflexo dos processos sociais; ao contrario, seu carater constitutive e que e ressaltado. De acordo com isso, a ACD e considerada uma "pratica tridimensional" (Martin Rojo & Whittaker, 1998), no sentido de que a pratica analitica opera, simultaneamente, emtres dimensoes: a) o discurso enquanto texto (o resultado oral ou escrito de uma produ9ao discursiva); b) o discurso como pratica discursiva engastada em uma situa9ao social concreta; c) o discurso como um exemplo de pratica social que nao so expressa ou reflete identidades, praticas e redoes, como tambem as constitui e configura. A ACD presume, tambem, que o discurso nao so esta detenninado pelas instituigoes e estrutura sociais, mas que e parte constitutiva delas. Ou seja, que o discurso constroi o social (Fairclough & Wodak, 1997). Ja que, no capitulo 6, Luisa Martin Rojo nos da um exemplo da ACD segundo as caracteristicas descritas acima, nao daremos aqui mais detalhes de outros aspectos desse tipo de analise. 1.5. A psicologia discursiva Embora tenha o nome de "psicologia" essa tradi9ao pode ser justificadamente considerada um movimento in-
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terdisciplinar. Ja que, no capitulo 5, Derek Edwards apresenta as caracteristicas principals dessa perspectiva e ilustra, com um exemplo, seu alcance no estudo de processes psicossociais, nao a apresentaremos detalhadamente neste capitulo. Do ponto de vista da psicologia discursiva, a fala e construida por atores e atrizes socials, razao pela qual a 3930 que se desenvolve na fala (e obviamente, tambem na escritura) passa a ser considerada a medula que^articula essa perspectiva. Com efeito, e na atencao a construgao do conhecimento no discurso que a psicologia discursiva focaliza seu interesse. Por isso, os psicologos e as psicologas discursivos/as tentam procurar explicar como se produz o conhecimento, como a realidade e o proprio processo de conhecer torna-se "legivel" e, finalmente, como se constr6i a interpreta9ao da "realidade". Nesse sentido, o que e curioso, tanto para os/as analistas como para os/as participantes em uma relacao nao e a configuragao e articulacao das redoes e sim a maneira como as intera9oes discursivas que instauram as relacoes criam e adquirem sentido. E o fazem, nao por ser expressao de estados subjerivos dos/ as falantes, e sim por sua construcao de uma situa9ao (e em uma situagao) que e onde se constroi o significado, o sentido e sua interpreta9ao, na medida em que o que se compoe e uma acao social. Adotando a tradigao etnometodologica e os principios da AC, a posifao metodoI6gica da psicologia discursiva enfatiza o exame das redoes e das crengas na fala, tal e qual essa e usada pelos participantes em uma interagao social qualquer. O foco da psicologia discursiva £ a orientafao a acao da fala e da escrita. Tanto para os participantes como para os analistas, a questao primordial sao as acoes sociais, ou o trabalho interacional, que esta sendo realizado no discurso. Mas, ao inve"s de concentrar-se nas preocupa9oes norrnais da analise social interacional, tais como re-
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lacionamentos sociais e intergrupais sao administrados (atraves da maneira como as pessoas se dirigem umas as outras, acomoda^ao da maneira de falar, etc.) ou como "os atos da fala" podem ser identificados, o interesse principal (neste livro) e epistemologico. Estamos preocupados com a natureza do conhecimento, da cognicao e da realidade: com a maneira como os eventos sao descritos ou explicados, como relatorios faetuais sao construidos, como estados cognitivos sao atribuidos. Esses sao defmidos como topicos discursivos, coisas que as pessoas selecionam como topicos ou para os quais se orientam, ou sugerem em seu discurso. E em vez de ver essas constni9oes discursivas como expressoes dos estados cognitivos subjacentes dos falantes, elas sao examinadas no contexto de sua ocorrencia como constni9oes situadas e ocasionais, cuja natureza exata faz sentido, tanto para os participantes como para os analistas, em termos das a?oes sociais que aquelas descrigoes realizam (Edwards & Potter, 1992: 2-3).
Uma das principals contribui9oes da psicologia discursiva foi o desenvolvimento de investiga9oes sobre os aspectos construtivos da linguagem na interagao social. Segundo Potter & Wetherell (1987), a AD nao consiste unicamente na analise das fm^oes da linguagem, mas sim em revela-las atraves da analise de sua variabilidade. Ou seja, das perspectivas cambiantes e variadas de seu mundo que os proprios participantes em uma rela9ao nos proporcionam em sua intera9ao e intercambios linguisticos. A orienta9ao do discurso para fun9oes especiflcas e um indicador de seu carater construtivo. O termo constru?ao e apropriado por tres razoes. Em primeiro lugar, ele guia o analista para o lugar.onde o discurso se fabrica a partir de recursos linguisticos preexistentes com caracteristicas proprias. Em segundo lugar, nos lembra que entre os muitos recursos linguisticos disponiveis, alguns foram utilizados e outros nao. Em terceiro lugar, a nocao de construcao enfatiza, uma vez
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Lupicinio Iniguez mais, que o discurso esta orientado para a acao: ele tern consequencias praticas. Em um sentido profiindo, portanto, pode-se dizer que o discurso "constroi" nossa realidade vivida (Wheterell & Potter, 1996: 66). 2. A no^ao de discurso
O breve exame que fizemos acima de algumas tradi9oes da AD demonstra, sem qualquer duvida, que "discurso" e urn conceito extraordinariamente polissemico. Como esperamos tenha ficado claro, existem tantas defini9oes de discurso quantos sao seus autores, autoras e tradicoes de analise. Por isso, aqui nos limitaremos a examinar algumas das nocoes de discurso que sao mais comumente utilizadas nas ciencias sociais, sem deixar de levar em considera9ao as tradi^oes teoricas ou disciplinares que Ihes sao caracteristicas. Nao abordaremos nocoes que ultrapassem esses limites e, em particular, nos referiremos as no9oes de discurso que se apoiam, primordialmente, em tres1 tradipoes: 1) A tradi^ao lingiiistica e, mais geralmente, a tradifao da filosofia linguistica associada a Escola de Oxford; 2) A tradicao que tem sua origem na obra de Michel Foucault; 3) A tradi9ao da pragmatica franeesa e da analise de discurso francesa (Maingueneau, 1987; 1991). 1 Poderiamos fazer referenda tambem a "Escola Espanhola de AD". Se nao a incorporamos a triade que apresentamos nao e porque ela nao seja suficientemente interessante, e sim porque esta distante das tradicoes expostas no capitulo "A linguagem nas ciencias sociais". Essa distancia se explica pela enfase que a escola da as orientacoes psicanaliticas e marxistas, como tambem por possuir urn carater decididamente semantico, distante das conceppoes pragmaticas que defendemos aqui.
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Essa simplifica9ao obedece unicamente ao interesse que temos de fornecer uma interpreta9ao equivalente aos termos na discussao. Mesmo nesses casos, nao apresentaremos uma revisao exaustiva e apenas examinaremos rapidamente as no9oes mais comuns. Dependendo da no9ao de discurso que se utilize, a concep9ao de AD adquirira significados bastante diferentes. Por isso, pretender estabelecer uma no9ao com uma certa precisao e uma tarefa muito pertinente, a nao ser que queiramos adotaruma defini^ao pronta, de conveniencia ou auto-referente, como por exemplo definir o discurso como aquilo que estudam seus analistas, ou conceitos semelhantes. Sem pretender uma classifica9ao completa, a tipologia sintetica que oferecemos a seguir resume algumas das concep9oes mais comuns de discurso, pelo menos como se expressam nas ciencias humanas e sociais: a) Discurso como enunciado ou conjunto de enunciados efetivamente falados por um/a falante. b) Discurso como conjunto de enunciados que constroem um objeto. c) Discurso como conjuntos de enunciados falados em um contexto de intera9ao - nesta concep9ao ressalta-se o poder de 3930 do discurso sobre outra ou outras pessoas, o tipo de contexto (sujeito que fala, momento e espa9o, historia, etc.). d) Discurso como conjunto de enunciados em um contexto conversacional (e, portanto, normative). e) Discurso como conjunto de restates que explicam a produ9ao de um conjunto de enunciados a partir de uma posi9ao social ou ideologica especifica. f) Discurso como conjunto de enunciados em que e possivel definir as condi9oes de sua produ9ao. 123
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A ultima concepgao surgiu na escola francesa de Analise do Discurso (Maingueneau, 1991)e deve muito a obra de Foucault. Ao referir-se as condigoes de produgao dos enunciados, essa nogao permite a distinc. ao entre enunciado e discurso de uma maneira mais nitida que as demais. Assim, a definicao de "enunciado" e conceitualizada como a sucessao de frases emitidas entre dois brancos semanticos; e a defmigao de "discurso" se concebe como o enunciado considerado do ponto de vista do mecanismo discursivo que o condiciona. Com efeito, nessa nogao, o enunciado e concebido como resultado, ou seja, como algo que possui memoria, pois leva consigo a marca de suas proprias condigoes de produgao. Essa possibilidade de distingao faz com que essa ultima concepgao de discurso seja a mais apropriada, pelo menos temporariamente. Contudo, as diferentes nocoes da classificacao exposta nao sao, verdadeiramente, a manifestacao de concepgoes incompativeis. Mais do que incompatibilidade, o resultado de sua analise mostra que unias nogoes podem ser superpostas a outras. Uma possivel diregao de superposigao e a dos diversos niveis de analise, que iriam desde o mais puramente interindividual ate o mais claramente estrutural. Na verdade, reproduzem a sequencia que vai desde a defmigao simples em termos de fala, ate as conseqiiencias da teoria dos atos da fala, passando pela tradigao etnometodologica, a mais apropriada da Analise Conversational, ou as mais comuns em uma tradigao pos-estruturalista. Da rnesma forma, devemos considerar que essas varias nogoes tampouco sao exclusivas, ja que freqiientemente achamos elementos de varias delas em conceitualizagoes ou em praticas de AD. Na verdade, elas reunem em sua totalidade, ou em parte, aspectos presentes em algu124
mas delas, como, por exemplo, as posigoes apresentadas no capitulo anterior. • 2.1. Tentativa de defim'gao de AnaLise do Discurso
Como mostramos, existem varias defmicoes da Analise do Discurso. Por isso, nenhuma delas deveria ter a pretensao de se estabelecer como a deflnitiva ou concludente. Cada uma delas satisfaz as proprias preocupagoes dos/as distintos/as autores/as e enfatiza aspectos diferentes. Enquanto que na orientagao linguistica sao citadas definigoes orientadas linguisticamente, como por exemplo as estabelecidas por Levinson (1983) ou Stubbs (1983), nas ciencias sociais sao citadas definigoes orientadas para o psicossocial (Potter & Wetherell, 1987). O que vamos propor aqui e seguir um caminho que se situe entre os interesses e as demandas das varias orientagoes. Seguindo Iniguez e Antaki, optaremos pela seguinte definigao: Um discurso e um conjunto de praticas linguisticas que mantem e promovem certas relagoes sociais. A analise consiste em estudar como essas praticas atuam no presente, mantendo e promovendo essas relacoes: e trazera luz o poder da linguagem como uma pratica constituinte e reguladora (Iniguez & Antaki, 1994: 63). 3. A pratica da AnaLise do Discurso
Os fundamentos expostos no capitulo "A linguagem nas ciencias sociais" servem de base para as praticas de AD que vamos desenvolver neste capitulo. Esses.fundamentos podem ser agrupados em duas categorias diferentes das quais surgem tradigoes de trabalho tambem distintas que} talvez corn uma certa ousadia, vamos tentar conectar aqui. 125
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A primeira categoria agrupa, por urn lado, o giro lingiiistico, a "Teoria dos atos da fala" e a Pragmatica, que podem serrelacionados com a filosofia linguistica associada a Escola de Oxford na Gra-Bretanha e ao pragmatismo norte-americano; e, por outro lado, a ETN, que tradicionalmente e vinculada a fenomenologia e ao interacionismo simbolico. A segunda categoria relaciona-se com o trabalho desenvolvido na Europa Continental, vinculado a uma tradigao com maior orienta9ao politica e sociologica e, particularmente, a obra de Michel Foucault.
3.1. A tradigao angLo-saxa da Analise do Discurso A concepcao2 de que a linguagem pode afetar a realidade social - nas palavras de Austin, a ideia de que se pode "fazer coisas com palavras" - e o antecedente que mais influenciou a primeira tradicao. A influencia sobre a AD se exerceu principalmente atraves da maneira como a Pragmatica e a ETN adotaram essa concepfao. O que ha de mais importante nessa influencia e o fato de que essas concepgoes pressupoem o fortalecirnento de uma visao da linguagem e da pratica linguistica como capacidade de fazer alguma coisa. Alem disso, elas defendem a ideia de que o/a analista pode observar a intera9ao e fazer interpretafoes justamente sobre aquilo que a linguagem esta fazendo. Essas perspectivas significam abandonar duas imagens comuns, ou seja, a visao da linguagem como uma serie estatica de descri9oes e do/a analista como mero/a coletor/a de dados neutros. Da mesma maneira, essa concep9ao da linguagem afirma que a atividade investigadora iguala-se a qualquer ou2 O leitor pode encontrar uma exposi9ao mais detalhada dessa questao no capitulo 2, "A linguagem nas ciencias sociais". 126
tro tipo de atividade'social, seja ela realizada na mais cotidiana das situa9oes, ou dentro da formalidade da ciencia. Tudo isso representa uma nova forma de entender a atividade cientifica e o papel do investigador, o que constitui um novo ponto de partida para as ciencias sociais. No entanto, como podemos facilmente deduzir, o processo de interpreta9ao nao consiste em uma mera compreensao hermeneutica ou em uma pura captagao do sentido. Para entender em que consiste a interpreta9ao e precise, antes de qualquer outra coisa, analisar o papel da linguagem. Michael Billig abordou essa questao especificamente em uma das obras de maior influencia dos ultimos anos, o seu Arguing and Thinking (Billig, 1987). Nela ele afirma, entre outras questoes, que a argumenta9ao e a retorica sao a pr6pria essencia da linguagem. Da perspectiva de Billig, qualquer mensagem e ambigua, e todas exigem um esforgo interpretative do/a investigador/a. Nesse sentido, o papel do investigador nao consiste em seguir diregoes de analise que conduzam a um objetivo predeterminado e sim interagir com os argumentos inerentes aquilo que dizem as pessoas e, usando toda a gama de ferramentas analiticas a seu dispor, trazer a luz tudo aquilo que nao esta explicitado. O investigador e, em um certo sentido, um professional cetico, encarregado de escrutar a realidade social atraves da interroga9ao da linguagem que as pessoas usam. No entanto, a obra que mais fielmente sintetiza as premissas que apresentaremos a seguir e o livro Discourse and Social Psychology: Beyond attitudes and behaviour escrito em 1987 por Jonathan Potter e Margaret Wetherell. A influencia que esse trabalho exerceu e continua a exercer nas concep9oes e praticas atuais da AD nas ciencias sociais e extraordinaria. 127
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O autor e a autora adotam a tradigao da linguistica, mas insistem em considerar a palavra como uma forma de agao, captando os ensinamentos da Etnometodologia e da Analise Conversacional. O principle basico em que se baseia sua proposta e que a linguagem pode ser compreendida por seu uso: nao e bom tratar as palavras ou frases como manifestacoes em branco de algum significado semantico neutro; ao contrario, deveriamos ver como a linguagem e usada por falantes em conversas cotidianas e tambem olhar mais acima do nivel da palavra ou da frase. 3.2. A tradigao francesa da AnaLise do Discurso
Na segunda tradigao, desenvolvida fundamentalmente na Franca (Maingueneau, 1987; 1991), estao mais presentes as contribuicoes de Foucault (que ja vimos no capirulo "A linguagem nas ciencias sociais"), os trabalhos da escola russa (Bakhtin, 1982) e a "teoria da enunciagao", uma forma de pragmatica desenvolvida sobretudo na Franga. A mudanga de uma concepcao que considera a linguagem como uma janela dos significados para uma outra que a ve como conjunto de instrumentos que podem regulamentar as relagoes sociais implica, obviamente, um desenvolvimento complexo que apenas esbogamos aqui. No entanto, ele nos serve como base para comegar a descrever como devemos proceder para realizar uma AD. Para qualquer pratica de AD sao necessarias tres operagoes: a diferenciacao texto-discurso, a distingao locutor/aenunciador/a e a operacionalizagao do corpus. 3.2.1. Texto Tendo defmido o que e o discurso, o primeiro problema com que nos deparamos e saber que tipo de textos o 128
configuram. A diferenga fundamental reside na consideracao do texto como conjunto de enunciados transcritos, seja qual for sua origem, ou em uma especificagao maior daquilo que sao autenticamente textos. Ou, formulado como uma pergunta, "qualquer texto constitui um discurso?" Evidentemente, nem todos os textos podem ser considerados discursos. Para que um texto seja efetivamente um discurso e necessario que cumpra certas condigoes. Assim, constituirao um texto aqueles enunciados que tiverem sido produzidos no marco de instituigoes que restrinjam fortemente apropria enunciagao. Ou seja, enunciados a partir de posigoes determinadas, inscritos em um contexto interdiscursivo especifico e reveladores de condigoes historicas, sociais, intelectuais, etc. Nao sao todos os conjuntos de enunciados que cumprem essas condigoes: so o fazem aqueles que possuem valor para uma coletividade, que envolvem crengas e convicgoes compartilhadas. Ou seja, os textos que claramente incluem um posicionamento em uma estrutura discursiva. Nas palavras de Foucault (1969: 198), o texto nao e considerado em si mesmo, e sini como parte de uma instituigao reconhecida que "define para uma area social, economica, geografica ou linguistica dadas as condigoes de exercicio da fungao enunciativa". A relagao com um lugar de enunciagao permite identificar aquilo que esse mesmo autor definiu como formagao discursiva: um feixe complexo de relagoes que funcionam como regras: prescreve o que deveria ter sido relacionado, em uma pratica discursiva, para que esta se refira a tal ou qual objeto, para que ponha em jogo tal ou qual enunciado, para que utilize tal ou qual conjunto, para que organize tal ou qual estrategia. Definir em sua individualidade singular um sistema de formagao e, portanto, caracterizar um discurso ou um grupo de enunciados pela regularidade de uma pratica (Foucault, 1969: 122-123). 129
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3.2.2. Sujeito (enunciador) Outra das conseqiiencias que se origina do ponto de vista que estamos mostrando e aquela relacionada com o tipo de sujeito que constroi. Efetivamente, a origem do emmciado, quem enuncia, nao e considerada necessariamente como uma forma de subjetividade e sim como um lugar. Nesse lugar de enuncia9ao, os/as enunciadores/as sao substituiveis e intercambiaveis. Uma vez mais, nas palavras de Michel Foucault (1969), descrever uma formulae enquanto enunciado nao consiste em analisar as relates entre o autor e aquilo que diz (ou quis dizer, ou disse sem querer); e sim em determinar qual e a posi
930 todo aquele dispositive que delimite o exercicio da ftui9ao enunciativa, o status do enunciador e dos/as destinatarios/as, os tipos de conteudos que podem ser ditos, as circunstancias de enuncia9ao legitimas para tal posicionamento. Como se conclui atraves daquela a que chamamos de "Escola Espanhola" (Ibanez, 1979; 1985), a compreensao desse aspecto facilita enormemente a realiza9ao de analises dos processes sociais de construe da intersubjetividade, do poder, da ordem social e da transforma9ao social.
3.2.3. Materializa$ao do texto: o corpus
Os lugares de enunciacao pressupoem institui9oes especiflcas de produgao e de difusao do discurso. No entanto, nao devemos entender por "instituisao" unicamente estrururas formais como a Igreja, a justica, a educa9ao ou outras semelhantes. Trata-se de considerar como institui-
Coino enfatizou a Escola Francesa, qualquer tipo de produ9ao discursiva pode constituir um corpus, embora os aspectos que sao mais enfatizados pelas distintas praticas de analise variem. Em principio, considerando-se a base da transmissao, qualquer enunciado grafico ou transcrito pode se constituir em corpus, tenha ou nao sido produzido graficamente. Essas produces podem ser mais ou menos dependentes do contexto. Ou seja, os enunciados poderiam ter sido dirigidos a um sujeito presente na situacao da enuncia9ao ou a outros sujeitos localizados em outros contextos. Por ultimo, os enunciados podem estar mais ou menos imersos em uma estrutura; por exemplo, um discurso muito formalizado, muito padronizado, pode pressupor uma estrutura institucional especifica, na qual se produz uma forte restri9ao tematica, uma grande estabilidade de formulas, etc. De forma sucinta, podemos dizer que o corpus corno materializa9ao do texto admite urna grande diversidade de formulas. Assim, sao possiveis conversa9oes transcritas, intera9oes institucionais transcritas, entrevistas transcritas. Ou seja, enunciados totalmente orais ou textos previamente escritos como artigos, documentos, informes, comunicados, estudos, formularios, etc.
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O sujeito assume o status de enunciador que define a o discursiva na qual se encontra. Isso nao significa, no entanto, que cada formacao discursiva so tenha um lugar de enunciacao. Com efeito, distintos conjuntos de enunciados que se referem a um mesmo posicionamento podem se distribuir por uma multiplicidade de generos de discurso. A heterogeneidade de generos de uma formagao discursiva contribui para definir sua identidade. Com efeito, faz-se uma distincao entre o locutor - o emissor material - e o enunciador - o autor textual. O. enunciador e, logicamente, diferente do locutor, ja que esse e uma realidade empirica e o enunciador uma constni9ao textual. O enunciador 6 o autor logico e responsavel pelo texto, mas tambem foi construido por ele, e ambos aspectos sao inseparaveis.
3. A analise do diseurso nas ciencias socials....
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3.3. Como fazer uma Analise do Diseurso? Para realizar uma AD que ponha em pratica as pautas da versao anglo-saxa, e precise percorrer as seguintes etapas: a) defmigao do processo que se quer analisar; b) selegao do material relevante para a analise; c) analise propriamente dita. Vejamo-las em detalhe: 3.3.1. Definigao do processo que se vai anah'sar
Qualquer investigador ou investigadora precisa formular, em primeira instancia e como tarefa previa, uma pergunta que Ihe permita estabelecer o foco da analise. Como e facil de compreender, toda investigacao esta fortemente condicionada pelas perguntas que formularmos e, com isso, podemos afirmar que, para realizar uma boa investigagao, e preciso que tenhamos formulado uma boa pergunta. Que fenomeno social estamos tentando elucidar, compreender ou esclarecer? Que relagoes socials queremos explicar? Essas poderiam ser algumas das perguntas passiveis de serem formuladas. Para a realizagao de uma AD, o estabelecimento do foco da analise implica perguntar que relagoes sociais mantidas e divulgadas atraves da linguagem estamos querendo explicar. As possibilidades, obviamente, sao quase infinitas. Como observamos, a linguagem e de tal forma parte constitutiva de nossa vida, de nossas relacoes e de nossa cultura que se torna dificil, para nao dizer impossivel, imaginar alguma relagao social que se produza fora da linguagem. Tomemos como exemplo ilustrativo desse fenomeno dois casos aparentemente remotos: de urn lado, uma siruagao fortemente ritualizada, como uma cerimonia religiosa; de outro, uma interacao cotidiana de qualquer grupo de amigos, por exemplo, um bando de adolescentes. No pri132
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meiro caso, nos vemos diante de um diseurso formalizado e protocolizado; no segundo, os intercarnbios evoluem seinuma estrutura aparente ou seguindo a espontaneidade das relagoes do grupo. Embora paregam extremas, as diferengas entre ambos sao, no entanto, so aparentes. Na verdade, o diseurso dos/as jovens tern que seguir certas regras, embora essas nao estejam totalmente explicitadas ou estabelecidas; e elas podem ser tao complexas e prescritivas quanto as dadas na Igreja. E mais, as pessoas na rua, como esse grupo de jovens que imaginamos, enfrentam dificuldades maiores para aprender essas regras ja que, ao contrario daqueles que participam de uma missa ou de qualquer outra cerimonia religiosa, para eles pode nao existir um aprendizado formal3. Segundo as premissas amplamente assinaladas anteriormente, o ponto de partida da AD tern como base a premissa de que a relagao social que o/a analista examina nao esta somente intermediada pela linguagem, e sim tambem controlada por ela. Em suma, a relagao social e, simultaneamente, constituinte e constitutiva. Essa fungao de controle nao parece, a priori, tao obvia, mas e possivel ve-la claramente se nos detivermos para examinar as leis e as regras explicitas. As leis afetam nosso comportamento, o codificam e o prescrevem. Quando especificam o que esta proibido, deiinem, como complemento, o que estapermitido. Emtodas as organizagoes exis3 Uma situacao de interagao extrema nesse sentido e o que acontece nos chats da Internet. Embora ainda nao tenhamos muitos trabalhos emptricos sobre essas novas formas de comunicacao, podemos dizer que se trata de um espago social onde, aparentemente, existe um vazio normative. No entanto, qualquer participante habitual dessas conversas responderia com inumeros exemplos das conseqiiencias produzidas pela ruptura de normas de varias indoles (de cortesia, de participacao, etc.).
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te um "livro de normas e procedimentos". O exercito, por exemplo, tern um codigo proprio que se aplica aos militares e esses tern que obedece-lo custe o que custar; a Igreja, igualmente, tern suas proprias normas, leis e mandamentos que limitam e regulamentam a vida e o comportamento de todos aqueles que se identificam com seu dogma e crencas e que, inclusive, exercem influencia sobre os que dizem explicitamente nao serem crentes ou adeptos; a universidade tern seus proprios estatutos e normas de procedimento que, embora muitas vezes nao sejam conhecidos pela comunidade universitaria, estao incorporados a organiza9ao de suas proprias vidas academicas e as vezes ate das nao academicas. Esses "codigos" existem literalmente como especificapoes formais, pela "forca da lei" definindo e construindo as identidades e comportamentos de todos/as os/as que caem sob sua jurisdicao.
"deve-se tratar todos/as os/as alunos/as de maneira identica", etc. Todas essas regras, as que sao explicitas e as que nao o sao, sao consrruidas e mantidas pelo discurso. No exemplo de uma instiruic.ao como a universidade, tanto os/as alunos como o corpo docente utiliza esse discurso. Mas na construcao dessas regras tambem desempenha um papel importante o discurso implicito que mantem suas proprias identidades sociais como alunos/as e professores/as - por exemplo, o discurso da universidade, da sociedade que permite e privilegia essa educacao, o pensamento rational, o respeito as pessoas mais velhas e mais qualificadas, etc. Esse aspecto nos leva a uma questao-chave: nao existe nenhum discurso que seja independente dos demais, um discurso nunca existe por si mesmo sem estar ancorado em algum outro. Em quase todas as correntes discursivas aceita-se a ideia de que cada discurso esta relacionado com outros. Esse fenomeno e conhecido pelo termo "intertextualidade" e e uma caracteristica importante do material com que se realiza uma AD.
Talvez ainda mais poderosos que os codigos formais sejam os codigos informais, os nao escritos, aqueles que estao inseridos em nossa vida social. Com efeito, alem das regras formais existem outros discursos menos explicitos, mas nao por isso menos constrangedores e orientadores de nossas vidas. Qualquer estudante pode nos dizer quais sao as regras de sua faculdade, e seria perfeitamente capaz de elaborar uma boa lista de conven?oes nao escritas que dirigem, regulamentam e determinam seu comportamento. Essas normas nao costumam ter forca formalmente legal, mas atuam como se a tivessem ao explicitarem regras do tipo: "nao te aproximes dos/as professores/as fora da faculdade", "nunca entre em contato com o/a professor/a em sua propria casa", "os/as alunos/as devem sempre agir como inferiores aos/as professores/as", etc. E, e claro, o professorado tern um numero semelhante de regras que limitam seu proprio comportamento, embora de forma certamente menos rigida: "nunca flertar com os/as alunos/as",
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3.3.2. Selegoo do material reievante para a analise A busca de um material reievante para a analise comec. a assim que o/a analista escolheu a relagao social que pretende analisar, considerando que se encontrara diante de uma multiplicidade de discursos que se enrrecruzam, aquilo que definimos como intertextualidade. Para ilustrar esse passo, usaremos o exemplo da identidade. A primeira coisa que temos que fazer sao perguntas sobre o problema que e objeto de nossa analise. Qual e o problema que vamos investigar? Poderiamos levar em consideragao as tensoes que passam por qualquer sentido de identidade: a autonomia diante da dependen135
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cia. Por um lado, como individuos singulares, buscamos manter uma ideia basica de autonomia; por outro, constatamos a dependencia que temos de outras pessoas. Com outras palavras, se por um lado devemos ser diferentes, dignos, independentes, por outro somos iguais aos demais, semelhantes a eles em quase tudo e dependentes deles/delas. Como manter essa contradigao? Como as praticas sociais mant^m e propagam as enormes diferencas que estao a base da relagao social?
como se estivesse no "papel" no sentido de que o que e importante sobre essa pessoa em concrete que participa de uma interagao nao sao suas qualidades pessoais e sim o fato de que e membro de um grupo ou coletivo.
Normalmente "representatividade" e um conceito interpretado em um sentido estatistico. Ou seja, refere-se aos/ as componentes de uma amostra que foram extraidos de uma populacao segundo um determinado procedimento e que, por isso, a "representam" no sentido de que aquilo que se descreve ou se conhece para a amostra e generalizavel para o conjunto da populacao. Na AD, "representativo" nao significa que o/a participante e estatisticamente representativo/a da populacao considerada, ou que esteja proximo a media em idade, status socioeconomico, etc. Ao contrario, significa que o/a participante esta atuando
Imaginemos uma situagao pratica. Devido a conflituosidade atribuida a distintos contextos sociais (trabalho, escola, ocio, etc.), a presenca de grupos de pessoas procedentes de culturas e comunidades muito diferentes, proliferam, em algumas ocasioes, as comissoes e os grupos encarregados de assessorar instituigoes; em outras, aquelas dedicadas a propor solu?6es para varios problemas; existem tambem algumas encarregadas de servir de mediadoras entre grupos em conflito, etc. A casuistica e muito variada. Quando se trata, por exernplo, de questoes relativas a escolarizagao infantil, pode ocorrer que a comissao esteja composta por pessoas que representam as instituicoes educativas, colegios ou escolas concretos,'grupos e associagoes de emigrantes, etc. Presumivelmente, essas pessoas atuam nessa comissao com o mandate dos grupos ou instituicoes que representam, com independencia da posigao pessoal que cada uma delas tenha sobre a questao objeto de debate. Cada pessoa pode ter suas proprias preferencias ou gostos, suas proprias inclinacoes, seus varios habitos, etc., mas nao participant da comissao por isso e sim na qualidade de representante de algum grupo. Portanto, suas caracteristicas individuais nao sao importantes nem relevantes. Cada pessoa especifica participa da comissao como procuradora ou delegada do grupo ou coletivo que representa e o investigador ou investigadora deve considera-la como tal. Poderia ocorrer que uma pessoa fizesse parte da comissao, por exemplo, por pertencer a uma instituicao educativa e que sua condicao grupal ou cultural fosse a de um grupo concrete de emigrantes. Pois bem, o que importaria seria o fato de essa pessoa "estar no papel"
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Definidos esses extremos, ja podemos buscar o material que exemplificara os discursos que se relacionam com a construcao da identidade. Esses materials podem ser muito variados: de textos e documentos tecnicos ou profissionais que falain sobre identidade, as biografias e autobiografias, as hist6rias de vida, etc., ate as transcricoes de conversas informais entre varias pessoas em ambientes cotidianos (entrevistas, discussoes de grupo, etc.). A regra de ouro consiste em saber que o texto deve, de certa maneira, deixar claro a construgao, a experiencia e o relato da identidade perse. 1) Que significa dizer que os/as representantes sejam "representatives" de grupos?
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de representante de uma instituicao, nao o fato de pertencer a um grupo etnico especifico. 2) Os efeitos discursivos O segundo criterio que nos permite identificar se o texto e ou nao um discurso e o fato de que, para que seja um discurso, o texto deve ter efeitos discursivos. Neste contexto, por "efeitos" nao devemos entender os "resultados" ou as "conseqiiencias" do discurso-sobre o/a ouvinte ou o/a falante; como por exemplo repercussoes psicologicas como a persuasao, ou o desencadeamento de um determinado estado emocional. Os textos podem ter efeitos independentes da percep9ao que uma audiencia pode ter de uma mensagem: podem estar isentos, inclusive da propria inten9ao de quem fala. Sao esses ultimos efeitos os que interessam ao analista, ja que ele se encontra diante de deriva9oes discursivas no sentido de que sao veiculados certos significados, certos sentidos, certos olhares, certas ordens do mundo ou de uma parcela do mundo, etc. Tomemos como exemplo os efeitos de usar imagens de mulheres nuas em anuncios. Uma fotografia de um corpo de mulher utilizada como omamentafao de um carro pode provocar um grande numero de reacoes no/a leitor/a: indiferensa, excitacao, pesar, atracao [...]. Essas rea?6es serao importantes para a compreensao da correspondencia entre a imagem e a.rela9ao social? Em um certo sentido, seja qual for a rea9ao de cada pessoa a imagem, ela e irrelevante se considerarmos o fato deque essa representacao necessariamente - logicamente, se preferirmos — associa uma certa visao da sexualidade a um produto e a todo um conjunto de imagens que se identificam com o poder, com a masculinidade e com a agressividade. A equacao da mulher como objeto sexual (indicado por sua nudez) e o carro como objeto de consumo masculine (indicado pelo fato de que a imagem aparece em um anuncio que supostamente ajudaria a vender o modelo mostrado) e o que 6 importante para o/a 138
analista, e isso nao depende da rea9ao particular a ele (Iniguez & Antaki, 1994: 66-67).
Portanto, os "efeitos discursivos" sao aqueles que operam em um nivel superior ao individual. Ao ler os textos, devemos buscar os efeitos que o material gera por si mesmo, que nao e outro senao aquele que o/a leitor/a e capaz de captar. O trabalho analitico consiste em examinar cuidadosamente os textos, buscando todas as possiveis leituras, e identificar os efeitos majs conectados com a rela9ao social que queremos elucidar. Nao ha duvida de que outras leituras tambem sao possiveis, ja que todo texto e ambiguo e difuso, mas o que a analise deve fazer e identificar os efeitos principals, ou os mais importantes em fun9ao da pergunta que o/a analista se faz.
3.3.3. A anatise propriamente dita Os recursos tecnicos que a AD mobiliza sao extraordinariamente variados e provem das tradi9oes que mencionamos no capirulo "A linguagem nas ciencias sociais", bem assim como dos desenvolvimentos das varias escolas a que nos referimos no mesmo capitulo. No entanto, agora iremos mostrar uma pequena gama desses metodos para que seja possivel apreciar o procedimento a seguir e o alcance da AD como instrumento de investiga9ao. Um principio que e preciso observar sem exce9oes e que, independentemente da ferramenta que seja utilizada, essa deve ser usada na totalidade do corpus. A prepara9ao do corpus e necessariamente muito trabalhosa no caso de uma AD. Assim, por exemplo, quando os materials sao documentais, e essencial realizar sua cataloga9ao sistematica e sua colocacao em um formato manipulavel (como fotocopia ou arquivo informatizado). Quando os materials tern fontes verbais, como entrevistas, reunioes de grupo ou conversas cotidianas, deve ser transcrito com o maior de139
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talhe possivel para que qualquer interacao sutil, incidencia ou circunstancia possa ser identificada. Nesse sentido, a transcricao deve incluir, alem das palavras emitidas, as interrupgoes, as respiragoes, as pausas, etc. Ha uma grande diferenca entre essas varias versoes, por exemplo : "Nao da para acreditar". "Pois...hum...eu...eunao...hum...naodaparaacreditar". "Nao da para acreditar!" "Nao! ...Nao da para acreditar!" O uso das ferramentas informaticas, tanto para o registro dos materials como para sua catalogagao e transcrigao, e sumamente util. Como ja haviamos mencionado, sao inumeros os procedimentos analiticos que podem ser utilizados. Com efeito, analistas diferentes podem legitimamente optar por niveis diferentes de analise e pelo uso de procedimentos tambem diferentes. 1) Atos de fala Uma das maiores contribute, oes para a AD e a nogao de "atos de fala" como ja vimos. Para a "Teoriados atos da fala", as expressoes sao produtoras de efeitos que as transcendem. Ou seja, sao capazes de "fazer coisas". Por exemplo: - "Amanha, sem falta, eu trago" (promessa). - "E eu os declare marido e mulh6r" (sancao). Esses exemplos ilustram simplesmente como os atos de fala aparecem constantemente em nossa conversa cotidiana e como geram efeitos socialmente significativos. Na pratica, e facil reconhecer que muitas coisas como "comprometer-se", "jurar", "desculpar-se" so podem se realizar atraves do uso de alguma formula lingiiistica.
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2) Pragmdtica
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O uso da pragmatica e comum no tipo de AD que estamos mostrando. No capitulo "A linguagem nas ciencias sociais", seus principios e procedimentos ja foram especificados. Muitos/as analistas do discurso se concentram nas conversas cotidianas e as analisam de um ponto de vista pragmatico; ou seja, buscando os significados exatamente como sao assinalados pela informagao contextual que os/as falantes assumem em publico. Vejamos o que ocorre atraves de um exemplo: Pergunta: "Voce comprou o jornal?" Resposta: "Olha na minha bolsa". A resposta "Olha na minha bolsa" nao diz diretamente que sim, comprou o jornal, mas, no sentido que vimos no capitulo "A linguagem nas ciencias sociais", implica que sim. Podemos afirmar que o/a falante confia na capacidade do/a ouvinte de interpretar as consequencias daquilo que disse. Esse nivel de analise pragmatica e perfeitamente adequado para identificar efeitos de implicagao, mas tambem serve para identificar o tipo de conhecimento que o/a falante presume ser compartilhado pela audiencia e, separadamente, para reconhecer o efeito que certas expressoes tem em funcao de sua forma linguistica. Vejamos alguns exemplos disso:
4 Ver as indicates contidas no apendice do capitulo 4, "A Analise da Conversagao e dos processes socials" (pagina 179).
a) Nossas afeigoes por alguem sao polissemicas. Por um lado, requer estar a par das preferencias e sentimentos positives ou negativos que - por exemplo - os/as professores/as possam ter com relacao a seus alunos/as. Mas, alem disso, e precise saber que o favoritismo e a discriminacao nao sao adequados porque, em tal relacao, o que e precise potencializar e um comportamento neutro e equilibrado com relapao a todos/as eles/elas.
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b) No seguinte exemplo, vemos tres maneiras distintas de responder a mesma pergunta:
(i) A: Que tal foi o filme?
B: Interessante!
(ii) A: Que tal foi o filme? B: 6timo! (iii) A: Que tal foi o filme? B: Uma droga!
Qualificar um filme dessas tres maneiras distintas implica dar uma resposta completamente diferente. Em (i) "interessante" poderia ser facilmente interpretado como se o filme nao tivesse sido bom, ou ate tivesse sido ruim. Em (ii), no entanto, a resposta implica que realmente foi bom e que o falante gostou realmente. Em (iii) podemos facilmente compreender que ele/a nao gostou do filme e que, provavelmente, o filme nao e bom, isso dito de uma maneira mais contundente do que em (i). Os tres casos implicam um conhecimento compartilhado por parte dos falantes. c) Tambem se requer um conhecimento da estrutura gramatical e das formas linguisticas como fica claro, por exemplo, nesses casos: (i) Bern, cala essa boca de uma vez por todas! (ii) Bern, voce vai ou nao vai calar a boca de uma vez por todas? (iii) Quando e que voce vai calar a boca? 142
Embora suas formas gramaticais sejam completamente distintas, as tres expressoes, no final, significam a mesma coisa. 3) Retorica A estrutura argumentativa e formal de um texto tambem pode ser levada em consideracao. Billig (1987), por exemplo, defende o uso das possibilidades analiticas da retorica e, em particular, a identificagao de tipos argumentativos, figuras retoricas, seqiiencias taticas de temas e todas as formas estilisticas que ajudem a persuasao. A proposta de Billig e especialmente util para analisar a credibilidade e a legitimidade que um texto transmite. Alem disso, permite identificar linhas de coerencia de um argumento que possam ficar ocultas sob uma fachada aparentemente desconexa. 4) Repertories interpretativos "Repertorio interpretativo" e um conceito introduzido por Potter & Wetherell (1987). Esses autores constatavam que um tema de conversacao pode variar em funcao das demandas locais da situacao de interagao. Os repertories podem ser vistos como elementos essenciais que os falantes utilizam para construir versSes das agoes, processes cognitivos e outros fenomenos. Qualquer repertorio determinado esta constituido por uma gama restrita de termos usados de uma forma estilistica e com uma gramatica especifica. Normalmente esses termos produzem uma ou mais metaforas-chave, e a presenca de um repertorio muitas vezes esta assinalada por certos tropos ou figuras do discurso (Wetherell & Potter, 1996: 66).
A utilidade dos repertories baseia-se no fato de que permitem ver como os/as falantes confrontam as conversacoes e como definem pianos atraves da colocagao estrategica de temas. 143
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Lupicinio Iniguez 5) Polaridades e desconstruqaq . Todo texto apresenta polaridades de forma implicita ou explicita. Parker (1988) sugere que busquemos os jogos de oposicoes no desenvolvimento de uma narrativa particular. No exemplo dado anteriormente sobre a identidade, algumas polaridades poderiam ser "singular/multipla", "consciente/inconsciente" ou "dependencia/independencia".
3.4. A legitimidade da Analise do Discurso Como podemos observar, qualquer que seja o recurso utilizado, todos os procedimentos de analise sao claramente interpretativos. Para muitas pessoas que trabalham nas ciencias sociais e humanas isso representa um problema insuperavel que invalida a AD. Consideremos entao, para terminar esse capitulo, a questao da validade da AD. A visao da linguagem fundamentada na filosofia e na lingiiistica e a vantagem principal da AD, sobretudo devido a centralidade que a linguagem ocupa em nossa vida social. Nas ciencias sociais, ao contrario de outras abordagens mais restritivas, a AD nao considera a linguagem como uma simples marca de um grupo social (como ocorre as vezes na sociolingiiistica) ou como um recurso para conhecer a percep9ao individual, embora ambos processes possam realmente ocorrer e fazer com que seja interessante elucida-los. A AD tampouco estabelece a linguagem como uma janela que permita ver ou ter acesso as ideias que as pessoas tern na mente, como o faz, por exemplo, a psicologia; e muito menos considera a linguagem como um conjunto de simbolos cuja distribuicao estatistica em uma popula^ao, como um traco peculiar, seja, por si mesma, significativa.
dade. Ela defende o uso dinamico da linguagem e e sensi- vel a seus efeitos, nao no sentido de uma rea9ao mental ou de um efeito psicologico, e sim como um efeito da propria forma linguistica. Para a AD, a linguagem nao esta "na cabega" e sim no mundo. De acordo com as premissas do giro linguistico, analisadas no capitulo "O giro linguistico", a linguagem e vista mais como uma forma de construsao que como uma descri9ao de nos mesmos/as e de nosso mundo. A AD entende que o mundo em que vivemos e um mundo onde a fala tern efeitos; ou seja, onde nao e a mesma coisa referir-se a alguem como "soldado", "guerrilheiro/a" "terrorista" ou "defensor/a da liberdade"; ou denominar um grupo como "etnico" ou como "rapa"; ou uma organizafao como "terrorista" ou "revolucionaria". A legitimidade da AD como metodo se origina precisamente dessa visao da linguagem, ja que, em sua a9ao investigadora, a unica coisa que ela faz e utilizar as mesmas ferramentas que sao utilizadas em qualquer contexto de social. Portanto, o/a analista deve estabelecer uma reativa com os/as leitores/as de seu trabalho e tentar mostrar como realizou sua leitura do texto. Dessa forma, a AD se converte em um exercicio mais de negocia9ao do que de exposi9ao, no sentido de estar sempre aberta ao debate e a discussao das interpreta9oes realizadas. O/a analista de discurso deve assegurar-se de que o/a leitor/a compreenda o que esta sucedendo: por que e necessario escolher textos; como esses textos devem ser lidos; por que essa leitura e preferivel aquela outra; e o que e que, no mundo exterao aos textos, ajuda a dar um sentido aos discursos que cont^m. Achamos que esse desafio e estimulante (Iniguez & Antaki, 1994: 73).
Segundo a AD a linguagem e simultaneamente um indicador da realidade social e uma forma de criar essa reali144
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Lupicinio Iniguez 4. A Analise do Discurso como perspective nas ciencias humanas e sociais
Ate aqui oferecemos uma visao do discurso e da AD. Essa visao nao procura substituir outras e sim, como j a dissemos, apresentar um conjunto de perspectivas e posipoes que bebem de fontes especificas mas que nao esgotam todo o conjunto de visoes complementares. 4.1. A AnaLise do Discurso como pratica Como vimos na parte final da subdivisao anterior, uma das consequencias mais importantes da visao da AD que estamos mostrando e a do papel do/a analista. Como dizem Michael & Condor (1990: 389-390): A ideia que queremos sublinhar e que existem inumeros contextos que sao apropriados a uma determinada pe^a de discurso, e a maneira como damos sentido a uma fun9ao discursiva e um reflexo do contexto ou da configura9ao de contextos ja pressupostos analiticamente (e politicamente).
O temor de reconhecer que toda pratica cientifica sofre a influencia das condipoes sociais em que ocorre - ou seja, que esta determinada pelo contexto social, politico e ideologico no qual se desenvolve - ja nao existe mais. Aqui, uma questao de particular relevancia e a que se refere a como reconciliar um compromisso politico com os afazeres profissionais de cientistas sociais. Essa preocupa?ao era dificil de canalizar na moldura da ideologia cientifica* moderna em que muitos/as cientistas sociais se formaram. Os agitados anos sessenta e setenta do seculo XX anteciparam aquilo que, no final, se conhece como "pos-modemidade" e que, ao contrario do que muitos/as pensam, abriu caminho para a constituifao de ciencias sociais de orientafao critica. Essas perspectivas 146
criticas estao preocupadas em orientar suas praticas cientificas em uma diregao emancipacionista. Como interpretar a AD de modo que ela possa contribuir para essa empresa? A resposta para isso encontra-se, basicamente, nas propostas de Foucault. Todo discurso e uma pratica social. De acordo com essas propostas, diremos que nao estaremos falando tanto de discursos e mais de praticas discursivas que, como ja observamos, sao regras anonimas, historicas, determinadas temporal e esgacialmente. Essas regras defmiram, em uma epoca determinada, para comunidades concretas, as condi9oes de qualquer enuncia?ao daquilo que pode ser dito. Nessa mesma direcao, diremos tambem que a AD e uma pratica e e uma pratica que nao so desmascara ou identifica outras praticas discursivas, como tambem - e sobretudo - abre todo urn caminho para sua transforma9ao. 4.2. 0 contexto Todo enunciado colocado em um discurso do idioma por parte de um sujeito e histonco e esta historicamente condicionado. Por essa razao, a AD deve considerar sua analise a partir dessa perspectiva. Nesse sentido a enuncia9ao, sua pratica, e o contexto imediato do enunciado. Como se propoe na AD feita por aquela que poderiamos chamar de "tradi9ao espanhola" (Ibanez, 1991), a analise da enuncia9ao nos permite relacionar as estruturas da linguagem com as estruturas sociais. Ou seja, possibilitar a compreensao do social a partir da analise e da interpreta9ao do discurso. Essa proposta nem sempre e compreensivel quando se pratica uma AD inspirada na linguistica, na pragmatica e na sociologia da situa9ao como estamos explicando aqui. Resta sempre a questao de qual seria o papel que a analise
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estritamente linguistica deve desempenhar na AD. Embora muitos/as analistas da tradigao linguistica veem nesta analise a forma de captar o social, outros/as muitos/as consideram que a analise linguistica nao e um procedimento suficiente para essa tarefa. 4.3. Sobre o discurso e a estrutura social Trata-se portanto de conectar teoricamente e de alguma maneira as praticas da AD com o estudo da estrutura social. Esse seria o objetivo principal de uma AD como pratica analitica pertinente socialmente, Nesse sentido, para fundamentar uma proposta dessa indole, e precise desenvolver um marco no qual a estrutura social e o discurso flquem conectados de tal forma que os aspectos discursivos, lingiiisticos e de significado se relacionem com os processos de construgao e de rnanutengao da estrutura social. Isso faz com que seja necessario especificar nao somente a nogao de discurso com que estamos trabalhando, algo que ja explicitamos anteriormente, mas tambem a nogao de estrutura que estamos utilizando. Sem negar as outras inumeras concepgoes, podemos distinguir pelo menos quatro tradicoes na conceitualizacao de "estrutura social" (Porpora, 1989). A saber, a estrutura social: • como modelos de conduta agrupados atraves do tempo (proveniente de Homans); • como sistemas de redoes humanas entre posigoes sociais (de ascendencia marxista); • como regularidades que govemam a conduta social (proveniente da sociologia estrutural); • como regras coletivas que estruturam o comportamento (relacionada com a etnometodologia, o interacionismo simbolico, etc.).
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Essa ultima e, a priori, a que parece mais adequada para enquadrar os tres topicos com que estamos lidando agora: estrutura, pratica social e discurso. E facil acrescentar a essa concepcao certas contribuigoes de Giddens e de Foucault, bem assim como algunias derivacoes extraidas da obra de Wittgenstein. A proposta inicial poderia ser mais ou menos a que se segue. Giddens (1984) distingue entre estrutura, sistema e estruturagao. A estrutura se refere as regras e/ou conjuntos de relacoes de transformapao organizadas como propriedades dos sistemas sociais. Sistema se refere as relagoes, reproduzidas entre atores/as ou coletivos, organizadas como praticas sociais regulares. Estruturagao se refere as condigoes que regem a continuidade ou transmutagao de estruturas e a reprodugao dos sistemas sociais. Para incorporar o discurso nesse esquema temos que recorrer a obra de Fairclough (1989; 1992), que contribuiu muito para esclarecer essa questao ao analisar a conexao entre discurso e as variaveis macrossociais. Com efeito, em primeiro lugar e uma questao de admitir totalmente a distingao entre linguagem e discurso. 0 discurso e a linguagem enquanto pratica social determinada por estruturas sociais (as regras e/ou conjuntos de relagoes de transformacao organizadas como propriedades dos sistemas sociais). Ao aceitar essa premissa, estamos aceitando tambem que a estrutura social determina, dessa forma, as condicoes de produpao do discurso. Ora, o discurso esta determinado por ordens de discurso socialmente construidas. Por ordens de discurso entendemos os conjuntos de convengoes associados as instituicoes sociais (assim, as ordens de discurso estao ideologicamente formadas por relagoes de poder nas instituigoes sociais e na sociedade como um todo). 149
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Em virtude da dualidade da estrutura, no sentido de Giddens, o discurso afeta as estruturas sociais e, ao mesmo tempo, esta detenninado por elas. Por conseguinte, o discurso contribui tanto para a manutencao como para a mudan9a social. Se isso e verdade, uma AD das praticas discursivas nos informa tanto sobre a construcao e reconstrucao da estrutura social como sobre a configuracao dos sujeitos. Essa descric. ao das conexoes entre discurso e estrutura social necessita varias observa9oes para ter validade como proposta. a) Em primeiro lugar, que o discurso e linguagem como prdtica social determinada por estruturas sociais significa que: • a linguagem e uma parte da sociedade e nao algo externo a ela; • e um processo social; • e um processo condicionado social e historicamente, no mesmo sentido que isso ocorre com outras partes ou processes nao linguisticos. Com efeito, nao ha uma relagao externa "entre" linguagem e sociedade, e sim uma relapao intema e de dualidade estrutural. A linguagem e uma parte da sociedade; os fenomenos linguisticos sao fenomenos sociais e os fenomenos sociais sao (em grande parte) fenomenos linguisticos.
ou seja, a soma de referencias presentes e extraidas de microssituacoes. Essa posifao e claramente discutivel, mas suas consequencias para uma considera9ao da linguagem nas ciencias sociais sao obvias. Sua importincia reside no fato de que ela permite diferenciar os/as analistas do discurso dos/das analistas da linguagem e da intera9ao imediata, alem de permitir nossa conexao com posicionamentos construtivistas, pelo menos com um construtivismo social comprometido. A pertinencia social dos estudos sociais baseados na AD nao e algo que possa ser deduzido automaticamente. Para isso e precise refletir, como estamos fazendo, sobre as praticas em que os/as varios/as analistas se veem envolvidos. Na verdade, se um profissional se visse envolvido, por exemplo, em uma situa9ao enormemente problernatica ou de conilito social, as perguntas que ele deveria formular a partir de uma posi9ao como a que acabarnos de precisar seriam: • que posi9ao ocupamos e como podemos intervirnela? mais que qual e o melhor procedimento para estudar esse processo?; • como contra-arrestar o discurso do poder? mais que o procedimento analitico foi o correto?
b) A segunda observapao e mais direta. Defender que a estrutura social sao regras e conjuntos de relacoes nao significa compartilhar a hipotese do situacionismo metodologico (as explica9oes descritivas adequadas dos fenomenos sociais em grande escala podem ser extraidas da analise da pratica social em siruacoes concretas). Com efeito, como deixou claro, entre outros, Knorr-Cetina (1988), a essa hipotese podemos opor uma outra: que a ordem macrossocial e, antes de tudo, uma ordem de representa9ao,
Se, para voltar ao que ja foi dito, a analise de um discurso particular nao vai ser nada mais que um exercicio academico, o tema perde o interesse, tornando-se uma discussao bizantina. Mesmo que tenha predominado a aceitacao da oposi9ao entre falar e fazer que se contrapoe ao falar com o fazer ou pratica real nao deve implicar a renuncia a fala como forma privilegiada de transforma9ao social. Nesse contexto, como vimos argumentando, a AD por si mesma constitui simultaneamente uma ferramenta para
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a compreensao e para a transforroacao. E preciso tambem ressaltar que a AD como praxis social nao pode ser outra coisa senao um ato de comunicacao. A atividade cientifica, e a AD, como exercfcio contemplative, como atividade iniciatoria priva a ciencia social de urn meio privilegiado para a acao. Como diz Michel Foucault (1969: 350-351): Temo que o senhor esteja cometendo um erro duplo: a proposito das praticas discursivas que tratei de definir e a proposito da parte que o senhor mesmo reserva a liberdade humana. As positividades que eu tentei estabelecer nao devem ser compreendidas como um conjunto de determinacoes que se impuseram do exterior sobre o pensamento dos individuos, ou que o habitam no interior e como que a priori; elas constituent, sim, o conjunto das condifoes segundo as quais exerceraos uma pratica, segundo as quais essa pratica da lugar a alguns enunciados parcial ou totalmente novos, segundo as quais, enfim, pode ser modificada, Trata-se menos dos limites colocados a iniciativa dos sujeitos que do campo em que se articula (sem constituir seu centra), das regras que utiliza (sem que as tenha inventado nem formulado), das relacoes que Ihe servem de apoio (sem que ela seja seu resultado ultimo nem seu ponto de convergencia). Trata-se de fazer aparecer as praticas discursivas em sua complexidade e em sua densidade; mostrar que falar e fazer algo, algo diferente do que-expressar o que se pensa, traduzir o que se sabe, diferente de por em jogo as estruturas de uma lingua; mostrar que agregar um enunciado a uma serie preexistente de enunciados e fazer um gesto complicado e custoso, que implica algumas condi9oes (e nao somente uma situa9ao, um contexto, alguns motivos) e que comporta algumas regras (diferentes das regras logicas e lingiiisticas de construcao); mostrar que uma mudanca, na ordem do discurso, nao pressupoe "ideias novas", um pouco de inven9ao e de criatividade, uma mentalidade distinta, e sim algumas transfor152
rha9oes em uma pratica, eventualmente nas praticas proximas e em sua articula9ao comum. Eu nao neguei, longe disso, a possibilidade de mudar o discurso: so Ihe tirei o direito exclusive e instantaneo a soberania do sujeito. 5. Sintese
Neste capitulo apresentamos a Analise do Discurso como uma forma de levar a pratica a importancia da linguagem na compreensao e nos estudos dos processes sociais. Discurso e Analise do Discurso nao sao, no entanto, termos univocos e sim cheios de sentidos diferentes em cada uma de suas variedades, tradicoes e praticas. Portanto, em primeiro lugar, tentamos reproduzir essa variedade de posi9oes fazendo um rapido exame daquelas orienta^oes e tradi9oes da Analise do Discurso que tern um carater transdisciplinar mais evidente, tais como a sociolingiiistica interacional, a etnografia da comunicagao, a analise conversacional, a analise critica do discurso e a psicologia discursiva. Em segundo lugar, mostramos varias defiru^oes de "discurso" que repetem essa caracteristica plural presente nas varias praticas. Visto que o reconhecimento da diversidade nao deve excluir a defesa de uma posicao, oferecemos uma defini9ao tentativa de "discurso" e de "analise do discurso" que e coerente com os fundamentos descritos no capitulo 2. Com essa mesma preocupacao de manter em aberto e de tomar visivel a maior quantidade possivel de concepgoes, embora explicitando claramente nossas preferencias, detalhamos, em terceiro lugar, a praxis da Analise do Discurso. Essa foi apresentada segundo duas tradigoes especificas, a anglo-saxa e a francesa. Explicamos entao o que e possivel fazer com um texto na pratica: a defini9ao do processo social que vamos analisar, a selecao do mate-
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rial-relevante para a analise segundo os criterios de representatividade e produgao de efeitos, a materializacao do corpus e um detalhe de ferramentas especificas de analise como a identificagao dos "atos de fala", implicaturas, estruturas retoricas, repertories interpretativos e polaridades. Em quarto lugar, debatemos a viabilidade da Analise do Discurso como uma perspectiva nova e frutifera nas ciencias sociais. Nesse sentido, oferecemos uma reflexao sobre as implicagoes da pratica analitica discursiva, sobre a importancia da consideracao do contexto social em que se constroi o discurso e, finalmente, sobre o papel do discurso na construcao, manutencao e mudanca da estrutura social. GLossario Analise Conversational: metodo de analise que poe em pratica os principios da etnometodologia. Estuda a ordem e a organizagao da acao social cotidiana atraves da analise rigorosa das conversacoes. Analise Critica do Discurso: modalidade da AD que, atraves do uso de procedimentos e tecnicas de varias tradic.oes, estuda as acoes sociais que sao postas em pratica atraves do discurso e que implicam abuso de poder, afirmagao do controle social, dominacao, desigualdade social, marginalizacao e exclusao sociais. Analise do Discurso: estudo das praticas linguisticas para esclarecer as relapoes sociais estimuladas e mantidas pelo discurso. Corpus: qualquer conjunto de enunciados em um meio material. Pode se tratar de transcri9oes de enunciados orais, reprodugoes de elementos graficos e textos previamente escritos. Discurso: conjunto de praticas linguisticas que mantem e estimulam relagoes sociais.
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Enunciador: lugar a partir do qual o enunciado e produzido - autor textual. Pode ou nao coincidir com o locutor - o emissor material de um enunciado. Etnografla da comunicaqao: tradigao da AD proveniente da antropologia e da lingiiistica cujo objeto de analise e a "competencia comunicativa". Ou seja, o conhecimento social, psicologico, cultural e linguistico que rege o uso apropriado da linguagem. Psicologia discursiva: perspectiva nascida no contexto da psicologia e que se apoia na etnometodologia e na AC. Enfatiza o exame das relacoes e das crencas na fala exatamente como essa e usada pelos participantes em uma interacao social. Sociologia interacional: tradigao da AD proveniente da antropologia, da sociologia e da lingiiistica que tern como objeto de analise a interagao caracterizada por uma relagao assimetrica dos participantes. Texto: conjunto de enunciados produzidos em contextos sociais a partir de posicoes de enunciacao. Bibliografia ANTAKI, C. (1994). Explaining and Arguing. Londres: Sage. BAKHTIN, M. (1982). Estetica de la creation verbal Madri: Siglo XXI. BILLIG, M. (1987). Arguing and Thinking: A Rhetorical Approach to Social Psychology. Cambridge: Cambridge University Press. BROWN, G. & YULE, G. (1983). Andlisis del discurso. Madri: Visor [1993]. DIAZ, F. (comp.) (2001). Sociologias de lasituacion. Madri: La Piqueta.
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Lupicinio Iniguez
tativos. In: GORDO, A. & LINAZA, J. (orgs.). Psicologias, discursos y poder (PDF). Madri: Visor.
Leituras recomendadas BILLIG, M. (1987). Arguing and Thinking: A Rethorical Approach to Social Psychology, Cambridge: Cambridge University Press. Nesse liwo o leitor encontrara nao so uma maneira de aplicar analiticamente a retorica mas tambem uma proposta para a re-conceitualizagao de processes psicossociais e sociologicos a partir de uma perspectiva retorica. CASAMIGLIA, H. & TUSON, A. (1999). Las cosas deldecir - Manual de Andlisis del Discurso. Barcelona: Ariel. Essas autoras oferecem nesse manual urn amplo inventario de recursos analiticos para a pratica da analise do discurso. EDWARDS, D. & POTTER, J. (1992). Discoursive Psychology. Londres: Sage. Um livro que nos permite aprotundar-nos na perspectiva da "Psicologia Discursiva". MARTIN ROJO, L. & WHITTAKER, R. (1998). Poder-decir o el poder de los discursos. Madri: Arrecife/ Uam. Livro altamente recomendavel para um panorama de trabalhos na orienta9ao critica da.-analise do discurso. POTTER, J. & WETHERELL, M. (1987). Discourse and Social Psychology: Beyond attitudes and behaviour. Londres: Sage. Poucas vezes uma obra conseguiu produzir no interior de uma disciplina um impacto tao grande como o que foi produzido por esse livro no seio da psicologia social. E uma obra imprescindivel para todos aqueles e aquelas que queiram fazer valer o papel da linguagem nas ciencias sociais.
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SACKS, H. (1992). Lectures on conversation. Cambridge Mass.: Blackwell. Sacks e o principal promoter da Analise Conversacional. Entre suas multiplas peculiaridades. esta o fato de haver sido um professor magnifico. Embora nao seja possivel dizer que, em vida, tivesse escrito uma obra de magnitude, seus alunos colecionaram suas classes e essas foram publicadas em 1992 por^Gail Jefferson com uma introdugao de E.A. Schegloff. E um texto muito extenso e altamente especializado, mas e tambem uma referenda basica para qualquer pessoa que busque uma introdugao a AC. Nao existem traducoes em castelhano, mas existem dois artigos seus muito interessantes na recopilagao de Felix Diaz (2000). Sociologias de la situation. Madri: La Piqueta. SCHIFFRIN, D. (1994). Approaches to Discourse. Oxford: Blackwell. Esse texto e um dos melhores manuals disponiveis sobre o discurso e sobre a Analise do Discurso. Embora esteja claramente orientado para um publico especializado em linguistica, qualquer cientista social pode tirar dele um proveito extraordinario. VAN DDK, T. (org.) (2000). Estudios del discurso. 2 vol. Barcelona/Buenos Aires: Gedisa. Trata-se de uma recopilacao essencial para conhecer as varias orientacoes da Analise do Discurso, sens varies metodos e campos de aplicagao. Uma obra de referenda basica. VAYREDA, A. (1995). Una aproximacion al Analisis del discurso desde la teoria de la enunciacion. Revista de Psicologia Aplicada, vol. 5, n. 1/2 [s.n.t.]. Nesse trabalho o leitor encontrara uma sintese da escola francesa da AD, a que apenas aludimos neste manual, aplicada a um estudo especifico dos discursos sobre o aborto.
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WETHERELL, M. & POTTER, J, (1992). Mapping the language of racism. Londres: Harvester Wheat Sheaf, O melhor exemplo de como aplicar a AD. A partir do conceito de repertorio interpretative, os autores analisam o discurso no caso do racismo e das condi9oes de exclusao da populagao maori, na Nova Zelandia.
sociologos e outros cientistas sociais semPpresicologos, tiveram um enorme fascinio pelas relacoes interpessoais. Nao faltam pesquisas academicas sobre o assunto e o estudioso as encontrara em muitas disciplinas, sob muitos titulos e com uma variedade de abordagens teoricas. O que normalmente falta na pesquisa cientifica social e um exame de como, exatamente, alguem demonstra seu "relacionamento" com outras pessoas - ou como esse relacionamento muda de um momento para outro. A psicologiaj por exemplo, envolve-se com frequencia em pesquisas que exigem que as pessoas preencham questionarios sobre seus relacionamentos, e os pesquisadores acreditam que as pessoas serao capazes de se lembrar das coisas, de resumi-las de forma adequada e de serem razoavelmente sinceras em suas respostas. * Loughborought University. ** Universidade de Castela, La Mancha.
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4. A analise da conversacao...
Existem inumeras razoes bastante conhecidas para que duvidemos de metodos de investigacao como questionarios e testes, pelo menos como registros precisos daquilo que realmente ocorreu no fenomeno original. Aqui nao e o lugar para dar inicio a uma discussao comparativa (veja o material no capitulo 3). Ha, e claro, muitos metodos alternatives a nossa disposicao e, de um modo geral, este livro fornece ao leitor uma variedade estimulante dos produtos em oferta. Neste capitulo, escolhemos concentrar-nos "no lugar onde esta a a^ao". Ou seja, nao comecaremos com teorias sobre o que deveria ser importante nas relacoes pessoais das pessoas e sim com aquilo que elas fazem umas com as outras, obviamente ate o ponto em que pudermos captar o que ocorre. Um bom lugar para comepar a procurar e na linguagem, j a que existe um bom motivo para afirmar que ela e o meio principal e primordial que as pessoas tern para se fazerem conhecer pelos outros. Quando falamos em "linguagem" nao queremos dizer linguagem-no-abstrato, ou exemplos que nos mesmos inventamos. Queremos dizer a linguagem em uso, quando as pessoas estao realizando suas tarefas cotidianas e vivendo suas vidas. Desde a decada de I960, a facilidade de acesso aos gravadores, e o fato de que gravacoes podem ser escutadas varias vezes, fizeram com que psicologos e outros cientistas pudessem pela primeira vez estudar atentamente o que as pessoas fazem. No entanto, o maior progresso surgiu com o trabalho pioneiro de um sociologo norte-americano, Harvey Sacks, que, junto com colaboradores, descobriu aquilo que hoje ja se transformou em uma disciplina madura e estabelecida em seu proprio direito: a Analise Conversacional. Basicamente, a Analise Conversacional (AC) pode ser realizada de duas maneiras. Uma delas, a mais basica, e expandir nosso conhecimento sobre como as conversas "ope-
ram" - o que e que as pessoas fazem com sua fala para serem entendidas umas pelas outras, e para produzir "a vida cotidiana" como a conhecemos. Quanto mais pudermos fazer isso, mais seremos capazes de chegar ao outro uso da AC, que e aplicar todo esse conhecimento a algum dado especifico e ver o que ele nos diz. Ambas tecnicas sao igualmente validas. A escolha depende da pergunta feita pela pesquisa. Se voce for urn/a pesquisador/a "basico" pode se sentir atraido/a pela tarefa mais basica de destrinchar uma conversa para ver como funciona e o que faz. For outro lado, se voce ja tern interesse em um determinado fenomeno - tao amplo quanto "interagao familiar" ou tao restrito quanto, digamos, "a nianeira como medicos transmitem o diagnostico a seus pacientes" - nesse caso voce pode coletar dados especificos aquele fenomeno e, a seguir, aplicar-lhes a AC. Nos dois casos, o pesquisador vai querer trabalhar com uma transcripao de boa qualidade daquilo que foi realmente dito originalmente. E, a medida que as tecnicas vao se desenvolvendo e a tecnologia vai ficando mais facil de manipular, e provavel que queiramos ter tambem um gravador de videos alem de um gravador de som, para que possamos ter uma impressao mais completa daquilo que realmente aconteceu. E claro, qualquer registro sera sempre parcial, mas vendo e ouvindo o video e as grava96es poderemos pelo menos nos aproximar daquilo que ocorreu naquele momento. A analise relatada neste capitulo esta a meio caminho entre uma exploragao "pura" de como alguma coisa e feita e um interesse mais "aplicado". Isso ocorre porque ambos autores ha muito tempo tern um interesse investigative em um tipo de interacao especifico (a entrevista sobre assistencia na saude) e descobrimos que a AC identifi-
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4. A analise da conversagao.
cou algumas complexidades ocultas nessa area. Basicamente, achamos que a AC revela a "humanidade" ate na entrevista mais rigida e e por isso que podemos fazer com que os dados a seguir falem sobre a questao de "relacoes interpessoais". 1. Analise No que se segue, construiremos uma serie de passagens de um grande corpus1 e come9aremos a buscar padroes na maneira em que os falantes usam as palavras e as implicapoes que isso tern. Comecemos com um exemplo. A primeira coisa que podera vir a mente do leitor e que o texto e complicado devido a alguns simbolos que normalmente nao encontramos em registros escritos de conversas, nem mesmo em publicac/oes especializadas. Esses simbolos sao utilizados para tehtar capturar o som das palavras quando elas foram faladas originalmente. E claro, a representa^ao nao e perfeita, mas, uma vez mais, e melhor que a memoria de alguem, que certamente tera falhas, ou ate as anotacoes feitas na hora da conversa. A explicacao para os simbolos esta no Apendice 1. MFE esta respondendo a uma pergunta sobre o efeito de um certo remedio. Observe como FE a seguir faz sua pergunta nas linhas 4 a 8.
{1} MF Unidades de texto 153-163 [15.3]2 1 MFE: Normal, pero por lo demta 2 (2.0) 3 MFE: perfecto todo 4 -» FE: y eso es facilde:: de::mh de notar la relation? 5 -> (.2) 6 ->• >(o sea=se-) se nota mu:cho no? el cambio: 7 -» (1.0) 8 —> FE: [cuando llegan esos cuatro o cinco dtias de tratamtiento? 9 MFE: Leh:: 10 MFE: hombre tsi, si ehm yo pues por ejemplo me lo van a 11 dar hoy i,no? pues 12 bueno, pues a partir de manana por la tarde ya empiezo . 2 Neste capitulo, como na maioria dos textos de AC, damos tirulos aos trechos de dados para identificar de onde vieram, se por acaso outro pesquisador desejar ter acesso a eles. Nesse caso, o trecho 1 vem de uma entrevista com MF e pode ser localizado nas se9oes 153-163 da fita transcrita e na posicao 15.3 do mostrador do gravador. Mais tarde o leitor vera trechos com a etlqueta "Holt"; esses sao originarios de um corpus coletado e transcrito por outras pessoas, que tern suas proprias conve^oes de etiquetagem. Observe, alias, que, na medida do possivel, as transcricoes normalmente sao anonimas (com o uso de pseudonimos, etc.) a nao ser no caso de transcri9oes feitas de dados publicos, tais como transmissoes radiofonicas.
1 Os dados sao de entrevistas realizadas pelo segundo autor para um projeto de pesquisa financiado pela Comunidad Autonoma de Maori. Gostariamos de agradecer aos fimcionarios do Service de Oncologia Medicano hospital "La Paz" em Madri, e os entrevistados (todos eles pacientes do Service) por sua colaboracao na coleta dos dados.
3 NT - por razoes obvias o dialogo nao pode ser traduzido no proprio texto. MFE: Normal, mas tudoperfeito demais. FE: e isso efacil de...de...hwn de notar, a relagao? ou seja, se nota muito a mudanqa quando chegam esses quatro ou cinco dias de tratamento? MFE: ei, cara, sim, sim, eu, pois, por exemplo, vao me dar hoje, nao? Pois muito bem, pois a partir de amanhd a tarde jd comedo,
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4. A analise da conversagao.,. Charles Antaki e Felix Diaz
Depois de ter lido a transcribe e familiarizado com as converges da transcri9ao, observe especialmente as linhas com setas. FE faz uma pergunta aparentemente simples na linha 4. O que e que voce acha sobre a demora pequena, mas perceptivel, antes de ele voltar a falar na linha 6? ou a demora maior (um segundo complete) antes de ele completar a pergunta reiterada na linha 8? A principio, essas podem parecer questoes triviais, mas sao importantes para a significacao de suas palavras (e, em uma escala mais ampla, para a atitude que ele esta comunicando a seu ouvinte). Agora podemos pedir ajuda ao conhecimento sobre a AC que temos. 2. Historico
que fazem e deixar claro que o atual falante acabou de falar e que, portanto, e a vez de alguma outra pessoa. Fazer uma pergunta significa que alguem tern que responder. A segunda coisa que a AC descobriu e que a forma como as pessoas respondem na segunda parte de "pares adjacentes" e essencial para o significado daquilo que dizem. Um atraso de uns poucos decimos de segundo ao responder a um convite, por exemplo, diz ao mundo que provavelmente voce nao vai aceitar. Compare essas duas maneiras que um falante pode usar para responder a um convite: {2} Holt: 1988 Sem data. Lado 2: Chamada 1 (dados originais em ingles) 1.
Duas das coisas fundamentals descobertas pela AC sao, em primeiro lugar que, quando as pessoas falam, elas se organizam de tal maneira que, normalmente, so uma pessoa fala de cada vez. Isso, e claro, e uma questao de simples observacao. Quando falam, as pessoas raramente sao interrompidas ou causam uma superposicao de falas. A questao, entao, e saber o que ocorre quando ha silencio. Como e que sabemos que e nossa vez de falar, ou se a pessoa que estava falando por ultimo ainda "esta com a palavra"? Parte da resposta e que o ultimo falante pode ter utilizado alguma deixa ou indicagao bem clara de que e a vez de outra pessoa. Ha muitas maneiras de fazer isso, mas a que nos interessa no momento e aquilo que chamam de "pares adjacentes" (um termo inventado no final da decada de 1960 pelo ftmdador da AC, Harvey Sacks). Isso e simplesmente umpar de enunciados que "vao juntos" como uma pergunta e sua resposta, uma chamada e sua resposta, uma saudacao e outra sauda£ao em retorno. Esses sao elementos bastante comuns de nossa linguagem e uma das coisas ,
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2.
Les: [.hhhhhh So we wondered if you'd like to meet us.hh Am: Yes certainly.
{3}Holt: Outubro 1988: Lado 1: Chamada 11 (dados originais em ingles) 1.
2. 3.
Skip: [Uh:m (.) would Sunday be alrirght h.h.
(0.2) Joy: eh Ye:s (as far as I:kno:w?
Observe que ha uma diferenca formal entre as respostas nos dialogos 2 e 3. No primeiro caso a resposta e rdpida e enfatica. No segundo, e precedida por uma pausa minima e por um pequeno som, "eh". Por menores que sejam esses elementos sinalizam que no exemplo 3 a resposta nao e a 4 NT - Les: Nos estavamos querendo saber se voce gostaria de encontrar conosco. Arn: Logico, Skip: Domingo esta bem? Joy: hm ta, pelo que sei no momento.
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4. A analise da conversagao...
que seria de se esperar ou a normal (a resposta "esperada" no jargao da AC, embora isso nao queira dizer preferencia psicologica). Nao temos nenhum problema em ouvir a resposta de Am no trecho 2 como sendo um consentimento ou aceitacao sem qualiflcagoes, enquanto que na resposta de Joy, no trecho 3, ouvimos que ha pelo menos alguma qualifica?ao na aceitacao, se nao uma rejeigao total. A vantagem de um sistema como esse, onde uma pausa pode significar que o respondente nao vai dar a resposta preferida, e que a comunicacao pode ser implicita em vez de explicita. Uma vantagem e que quern faz a questao ou o convite pode agir rapidamente se ele ou ela ouve uma pausa, e consertar a situagao mudando a pergunta ou o convite, e talvez ate mesmo, como no caso abaixo, imaginando uma resposta negativa: {4} Holt:88U:l:8:7. (Dados originals em ingles) 1. Gordon:.tch Are you gonna drive in. Cz I n-1 know there wz 2. some rumour about it, 3. (0.5) 4. Gordon: .hhhh Or not. 5. (0.5) 6. Dana: No but I'll be downtown (0.2) at nine forty five5.
aceita£ao, uma aquiescencia e assim por diante), portanto parece que Dana esta se preparando para dar uma resposta negativa. Gordon deixa que o silencio continue por meio segundo antes de continuar com uma altemativa (.hhh Or not) que interpreta o silencio e imagina a priori o que Dana ira dizer. Dana ainda deixa outro meio segundo antes de responder, confirmando que, na verdade, sua resposta e a resposta negativa que nao era a esperada. 3. 0 que e que isso nos diz sobre nossos proprios dados?
Ha uma grande possibilidade de que aquilo que nos vimos acontecer no trecho 1 seja algo muito semelhante ao que esta acontecendo acima. Isto e, que FE tenha perguntado algo que espera uma resposta e quando ha um silencio (mesmo o mais breve dos silencios) e uma indicagao de que a resposta esperada nao vem. Certamente a pergunta de FE no trecho 1 nao e um convite (que espera uma aceitapao) nem e um pedido (que espera uma aquiescencia) mas, apesar disso, e uma pergunta e uma pergunta espera algum tipo de resposta. Muitas vezes, e claro, a resposta nao vira rapida e enfaticamente, como no caso abaixo: (5}BR Text Units 172-197: [16.9]
Gordon trata o silencio de Dana na linha 3 como uma indicasao de que o que vira nao sera a resposta esperada. Sabemos que a conversa humana esta organizada de maneira tal que a resposta esperada - a resposta rapida, enfatica - normalmente e positiva (um consentimento, uma
1.
FE: >Pero en general tienes una red de apoyo parece ser, £no?=
2.
BR: =>Si no no
5 NT: Gordon: Voce vai levar o carro? Houve um boato a esse respeito. Gordon: Ou nao. Dana: Nao, mas eu estarei no centra as nove e quarenta e cinco.
6 NT - FE: Mas, em geral, voce tern uma rede de apoio, nao e isso? BR: Sim, nao, nao extraordinaria, nao chega a esse nivel, ou seja, eu tenho uma rede respeitavel.
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4. A analise da conversagao... Charles Antaki e Felix Diaz
Pode ocorrer que a resposta preferida poderia ate imbricar-se com sua pergunta, como no caso a seguir: {6} MR Text units 50-60:[6.6] 1 FE (tsk) > o sea ya- ya estaban
si si no notya -<(y)=ya 4 daban por hecho que tenia un tumor . Mas vimos que a resposta nao foi dada com tanta rapidez como no trecho 1. Houve um atraso. Vejamos outra vez: {7, repeti^ao parcial do trecho 1}
4. FE: y eso es facil de::de:: mh de notar la relacion? 5. (.2) 6.-* >(o sea=se-) se nota mu:cho no? el cambio: 7. 8.
(1.0) FE: Icuando Ihegan esos cuatro o cinco dTias de
9.
tratamtiento? MFErLeh::8.
don permitiu no exemplo 3 acima (onde o silencio durou meio segundo), mas entra de uma maneira razoavelmente imediata em apenas .2 de um segundo. Mais com demora suficiente para que a falta de resposta sej a notada, e para autorizar FE a oferecer uma alternativa. Com efeito, ele muda a orientacao da pergunta para fazer com que agora sej a inais facil responde-la de forma contraria, isto e, "nao muito". Mesmo havendo uma pausa, e uma pausa longa dessa vez (1 segundo), FE uma vez mais entra, embora dessa vez ao mesmo tempo que MF, que comeca a dizer algo (com um som como (eh::' que sabemos e sinal de uma resposta nao preferida). Uma vez mais, FE interpreta o silencio como sendo resultado de algum problema que MF esta tendo com a pergunta. Pode ser que a expectativa de FE fosse que MF entendesse que o que se queria era uma comparacao entre como ele se sentia antes e depois de tomar o remedio. Ao redesenhar a pergunta, ele a toma muito mais explicita. Isso ajudaria MF a ver que tipo de resposta era desejada. E, na verdade, MF agora responde positivamente. {7a contumacao de 7}
10. MFE hombreTsi, si, ehm yo pues por ejemplo me 11.
A pergunta sim/nao de FE espera uma resposta de MF, e, dada a expectativa geral de que as respostas serao positivas, a pergunta esta destinada a ser respondida facilmente por um "sim". Mas esse sim nao vem imediatamente. FE nao pennite que o silencio dure tanto tempo quanto Gor7 NT - FE: Ou seja, ja estavam falando de um possivel tumor ou algo parecido. MR: Sim, Sim, Nao, Nao, ja davam coino certo que eu tivesse um tumor. 8 FE: e nao e facil perceber a relacao? Isto e, a mudanca e muito perceptivel? Quando chegam esses quatro ou cinco dias de tratamento? MFE: eh.
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lo van a dar hoy £,no? Pues bueno, pues a partir de manana por la tarde ya empiezo .
4. Construindo mais casos
Vejamos se nos e possivel obter mais exernplos do mesmo corpus. Talvez possamos esbosar um padrao. Se conseguinnos, talvez possamos ter algo a dizer a respeito de 9 MFE: Cara, sim, sim, eh, eu, pois, por exemplo, vao me dar hoje. Nao. Pois bem, pois a partir de amanha a tarde ja cornego.
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4. A analise da cohversagao...
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{9} BR Text units 85-103 [9.4]
como FE lida com seus respondentes (pelo menos em alguns aspectos) e teremos uma fonte de evidencia segura em que basear nossas propostas - isto e, aquilo que realmente aconteceu (oupelo menos segundo o que foi captado pela transcricao).
1. FE:
Puede venir de-de las verteb°ra::s?
2.
(.4)
3. FE: O sea de:: de la °( tienes?
{8} AJ Text Units 25-35:[3.2] 1, FE: mh (.2)::: en el momento de la operation (.) 2. le habian:: (.2) diagnosticado ya>cual era=el
4. 5. FE:
(-2) o:
6. BR: 7. FE:
eh lode::
)de-que:: Qosea que
fde la ade lnopatia:= Lo es independiente J
Observe que FE "tropec.a" quando profere sua expansao na linha 3; ele a desenha para que nao saia com fluidez. Isso da mais tempo para que BR possa responder, digamos, sem nenhuma sugestao, para mostrar que ele sabe o que Ihe estao solicitando. Mas BR nao o faz. FE deixa uma outra pausa de 0.2 segundos antes de lancar uma terceira tentativa a questao (linha 5) um o:: prolongado. E nesse momenta, na terceira tentativa, que BR entra com a resposta. Curiosamente, nao e uma resposta direta a questao, e sim uma pergunta em si mesma, checando ao que e que FE esta se referindo. Isso tambem diz algo sobre a diflculdade inicial da pergunta feita antes, na linha 1. Portanto temos as duas partes exibindo sensapao de que alguma coisa estranha esta acontecendo.
Uma vez mais FE perguntou alguma coisa a seu interlocutor, portanto temos novamente um par de adjacencia de pergunta-resposta. Dessa vez, o respondente responde de imediato, mas podemos ver que sua resposta imbrica-se com uma pequena pausa. FE deixou 0.2 de segundo antes de tentar uma alternativa - talvez, por via das duvidas, se AJ nao respondesse. Considere mais esse trecho (9). Aqui FE faz uma pergunta sim/nao na linha 1, obviamente prevendo uma resposta com sim ou com nao. A resposta nao vem com rapidez (ha uma pausa de 0.4 de segundo naJinha 2. Ele continua (linha 3) mas o faz de tal forma que deixa claro que esta expandindo ou esclarecendo sua pergunta.
O mesmo padrao flea visivel no ultimo dos trechos que veremos. Observe uma vez mais que FE diz alguma coisa (na linha 2) que exige uma resposta. E colocado como uma afirmasao. (Solo no has venido nunca.) Mas ouve-se como se estivesse exigindo pelo menos uma confirmacao. Essa nao vem imediatamente - linhas 4 e 5 novamente mostram o padrao de FE que deixa um espafo para o interlocutor
10 FE: hum e no momento da opera?ao ja tinham diagnosticado qual era o problema? ou se AJ: Sim, bem, bem, claro antes ja tinha estado, antes de estar ali, claro.
11 NT-FE: Pode vir das vertebras? Isto e, da... de que, isto e, o que voce tern? BR: eh, o de [da ade] nopatia: FE: [ou e independente].
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4. A analise da conversagao...
responder, mas que entra de uma maneira razoavelmente rapida quando esse nao responde. {10}BR text units 172-197: [16.9] 1. BR: Estoy©.4) muy protegido, muy apoyado, muy arropado, muy: -(6) 2. 3.
FE:
Solo no has venido nunca. (.2)
4. FE: 0 si= 5. BR: =>Bueno, (a'ra) aPor algun
fuera 12
Na linha 5, FE modifica a altemativa (de nunca para si) em uma tentativa de dar a BR uma altemativa a qual possa ser dada uma resposta rapida. BR entra rapidamente, na verdade tao rapidamente que e possivel ate que ele nao esteja realmente respondendo a essa nova altemativa (ele mal teria tido tempo de ouvi-la) e,na sua resposta, nas linhas 5 e 6, da o tipo de relate qualificado que e tipico de respostas nao preferidas.
12 NT - BR: Estou: muito protegido, com muito apoio, muito agasalhado, muito. FE: Sozinho voce nao veio nunca. Ou sim BR: Bern, e possivel, que circunstancialmente tenha vindo alguma so foi FE: hum BR: Pois, nao sei por que. Nao sei. Por algum motivo, mas FE: Sim, pelo que fosse.
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5. "Delkadeza"?
Agora que temos urn padrao da organizagao seqiiencial desses pares adjacentes, podemos come9ar a fazer novas perguntas sobre eles como grupo. Ha alguma coisa, talvez, na natureza da pergunta que FE faz todas as vezes que provoca essa falta de uma resposta rapida por parte de seus interlocutores? Comecando com exemplo 1, FE perguntou sobre: se foram notados os efeitos de um remedio; a diagnose do problema do paciente; se o paciente tinha quaisquer conflitos com o pessoal medico; a possivel localizasao do problema medico nas vertebras; e se o paciente ja tinha ido ao hospital sozinho. A principio, nao parece haver nada especifica e obviamente sensivel acerca de todas essas perguntas, consideradas como um todo. No entanto, elas ocasionam um "problema" na maneira como sao captadas pelo respondente. E e urn problema que faz FE agir muito rapidamente para neutralizar. E ai que temos a evidencia de que isso e "delicado". Nao no conteudo das perguntas, porque nao sabemos (e nao podemos saber, apenas adivinhar) se elas sao "realmente" constrangedoras ou especialmente sensiveis e assim por diante. Mas podemos ver que, a partir do momento que ele entra rapidamente com alternativas e esclarecimentos, FE as estd tratando como se fossem trazer problemas para seus respondentes. 6. Comentarios a guisa de conclusao
O objetivo deste capitiilo foi demonstrar o que a Analise Conversacional (AC) pode oferecer como um instrumento para a pesquisa da linguagem e processes sociais. A AC traz a tona qualquer coisa que uma pessoa pode fazer em interasao com outras, e aqui usamos um caso especifico para demonstrar como um falante pode exibir "delicadeza" em sua fala. Como o capitulo associado sobre Psicologia Discursiva (que e parente proxima da AC) a abordagem
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4. A analise da conversagao...
Charles Antaki e Felix Diaz
neste capitulo se concentrou na maneira como as pessoas na verdade elaboram sua fala em uma conversa real. A caracteristica especifica em que nos concentramos foi o "par de adjacencia", o forte relacionamento que a voz de uma pessoa em uma conversa tem com aquilo que vem a seguir. Comec.amos nos perguntando o que e que a AC poderia nos dizer sobre um fenomeno tao amplo e aparentemente "macro" quanto as redoes socials. Esperamos que o que fizemos conseguiu mostrar que o "macro" pode ser analisado atraves do "micro" e que talvez nao haja essa distincao. Tivemos algumas coisas a dizer sobre o relacionamento de FE com seus interlocutores, baseado em um tipo de evidencia muito solida, ou seja, a evidencia de uma transcrigao dos intercambios entre eles. Isso e um tipo de prova bastante diferente daquela que encontrariamos em evidencias como (por exemplo) um questionario sobre as atitudes de FE ou uma entrevista que depende de sua memoria ou de suas proprias teorias e reflexoes (que seriam apenas uma outra fonte de dados a serem analisados). E claro, o que fizemos mal chegou a arranhar a superflcie. Apesar disso, vimos que ha um significado social ate mesmo em uma caracteristica da fala aparentemente tao insignificante como um atraso de dois decimos de um segundo em uma resposta. Isso pode sinalizar o nao aparecimento de uma resposta esperada e, em nossos trechos, parece ter feito corn que FE agisse para evitar algumas de suas implicates possiveis - que sua pergunta era inadequada, inoportuna, ininteligivel, e assim por diante. Em outras palavras, vimos o cuidado que ele dedicou a "delicadeza" - para usar uma palavra ampla - em seus intercambios com as pessoas, e talvez, portanto, a humanidade da situa9ao em que ele e seus interlocutores se encontravam.
Par de adjacencia: uma das estruturas basicas da linguagem em uso - um enunciado (por exemplo, uma pergunta) prediz fortemente que um certo tipo de enunciado sera produzido como resposta (por exemplo, respostas). Preferencia: enunciados que sao a segunda parte de um par de adjacencia podem ser de dois tipos: o tipo breve, rapido, sem marcas (que tendem a ser concordancia, consentimento, etc.) e o tipo "nao preferido" que sao assinalados com pausas, evasivas, alguma falta de fluencia e o fornecimento de um relate (e tendem a ser recusas, discordancia, etc.). Transcrigao: a reproducao de fala gravada tao fielmente quanto possivel. AC desenvolveu uma notacao especial para captar as caracteristicas da conversa que a ortografia comum ignora (por exemplo, entona9ao, volume, imbricagao) porque essas podem ser (e muitas vezes realmente sao) significantes para a compreensao daquilo que o falante esta fazendo. Leituras recomendadas
Analise Conversational: o estudo da linguagem em uso como as pessoas agem nos intercambios orais.
A maior parte das fontes basicas, e grande parte do trabalho de pesquisa sobre a AC ja publicado, sao em ingles (embora o trabalho seja feito internacionalmente, com contribuicoes substanciais dos Estados Unidos, Gra-Bretanha, Paises Baixos, Japao, Finlandia, Canada e muitos outros paises, inclusive a Espanha). Em ingles, as introdugoes longas a AC mais acessiveis sao os seguintes livros: HUTCHBY, W. & WOOFFITT, R. (1998). Conversation Analysis. Cambridge, RU: Polity Press. NOFSINGER, R.E. (1991). Everyday Conversation. Newbury Park: Sage. TEN HAVE, P. (1998). Doing Conversation Analysis. Londres: Sage.
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Glossario
4. A analise da conversacao... Charles Antaki e Felix Diaz
E possivel tambem encontrar alguns capitulos sobre o assunto em manuals de metodologia, especialmente aqueles que se concentram em metodos qualitativos. Entre os mais recomendaveis estao: HERITAGE, J. (1997). Conversation analysis and institutional talk: Analysing data. In: SILVERMAN, A.D. (org.). Qualitative Research: Theory, Method and Practice. Londres: Sage. O caminho mais direto possivel para a AC encontra-se nos escritos do proprio Sacks. A referenda classica e a transcricao de suas palestras dos anos 1960 e 1970, publicadas postumamente. SACKS, H. (1992). Lectures on conversation. Vol. I e II. Oxford: Basil Blackwell [Organizadas por G. Jefferson]. Parte desse material esta disponivel agora, pela primeira vez, em castelhano, no livro organizado por Diaz, abaixo. Ambos os textos listados sao relevantes para aquilo que fizemos neste capitulo e sua leirura Ihes dara uma visao inestimavel do pensamento e metodo de trabalho • de Sacks. SACKS, H. "Sobre muestreo y subjetividad" e "La maquina de hacer inferencias". In: DIAZ, F. (org.) (2000). Sociologias de la Situacion. Madri: La Piqueta. Em catalao, o seguinte livro, embora nao na mesma tradicao da Analise Conversacional que os anteriores, pode ser um ponto de comparacao bastante util. TUSON, A. (1995). L'andlisi de la conversa. Barcelona: Empuries.
Em castelhano, o seguinte livro podera ser util coino urn pano de fundo mais geral para a Analise Conversacional: COULON, A. (1988). La etnometodologia. Madri: Catedra. Bibliografia ATKINSON, J.M. & HERITAGE, I (orgs.) (1984). Structures and Social Action: Studies in Conversation Analysis. Cambridge: Cambridge University Press.
Apendice 1 - Converges da nota^ao Nenhum registro impresso do som pode ser mais do que uma versao imperfeita daquilo que os ouvintes realmente vivenciam. Apesar disso, a Analise Conversacional tenta representar graflcamente a linguagem comum escrita de tal maneira que possa sugerir mais completamente o que os sons teriam sido, com a ressalva de que o resultado possa ser razoavelmente legivel e nao exija nada mais do que simbolos encontrados nas fontes da maioria dos processadores de textos (ou no menu "simbolos"). A lista abaixo inclui a maioria das caracteristicas desenvolvidas por Gail Jefferson trabalhando com Harvey Sacks e outros na fundagao da AC. Para o sistema mais complete, veja Atkinson & Heritage, 1984, p. ix-xvi). (0.3) (2 segs) exemplos de pausas marcadas exatamente no relogio .hh,hh respectivamente a inspira9ao e a expiracao do falante hehh, hahh silabas do riso com algum esforgo para captar 'cor' pal(h)avra (h) denota *riso' no meio da palavra (suspiro) uma descrigao em parenteses indica um som que nao e propriamente fala pa um travessao indica um corte agudo de uma palavra ou som anterior 179
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Charles Aritaki e Felix Diaz
pailavra dois pontos indicam que o falante prolongou a letra ou som anterior. Quanta mais dois pontos, maior o prolongamento. (palavra) material entre parenteses representa a suposicao do transcritor em uma parte da gravacao que nao esta clara. corre= o sinal de 'igual' assinala material associado que vai continuar setas indicam o come?o de uma mudanga na entona9ao para cima ou para baixo ? indica urh torn que se eleva . indica um fim 'natural' , indica uma pausa igual a de uma virgula sob sublinhado indica enfase MAIUSCULAS letras maiusculas indicam uma fala claramente mais alta que as circundantes. °macio° Sinais de grau indicam falas claramente mais suaves que as circundantes. Sinais de grau duplos indicam uma suavidade ainda maior. >rapido< 'Maior que' e 'Menor que' indicam que a fala que eles abrangem foi produzida de uma maneira mais rapida ou mais lenta do que a fala circundante. imbriTcagao [imbricafao parenteses quadrados entre linhas adjacentes de fala concorrente indicam o comeco de fala imbricada. —> seta lateral indica ponto de interesse especial no trecho, a que se referiram no texto. [...] indica que algum material nao foi incluido no trecho. 180
s
? ob]etivb"delle capitulo'e coMeci•> f -_.-..-. dar ao* leTtoTTim - .,. - , . -.
Omento basico sobre o que e Psicologia Discursiva,
suas origens especificas e perspectiva teorica, seus temas principals de investiga?ao e como ela aborda a analise empirica da conversa?ao e do texto. Sucintamente, a PD 6 o estudo de como conceitos psicologicos do senso comum sao usados no discurso cotidiano. Nas conversas e textos do senso comum, os temas psicologicos (percep96es, memorias, entendimentos, emofoes, etc.) sao tratados relacionando-os as descri^oes de eventos e de acoes no mundo extemo. A PD e a analise de como esses tipos de conceitos sao utilizados nas agoes sociais e no trabalho retorico que o discurso desempenha. O capitulo faz um esboco dos principios metodologicos mais importantes da PD, e apresenta uma analise que ilustra como palavras emocionais sao utilizadas em dois trechos curtos de conversa durante aconselhamento. Finalizamos com um breve glossario dos termos usados na PD.
* Universidade de Loughborough.
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Derek Edwards 5. Psicologia discursiva... 1; Origens da Psicologia Discursive
A Psicologia Discursiva e o estudo de como as questoese conceitos psicologicos sao usados.na conversacao e no texto. O foco principal e sobre o discurso cotidiano, sobretudo ideias do "senso comum" ou da "psicologia popular" acerca de estados mentais e de caracteristicas pessoais que usamos em nossas vidas cotidianas. Usamo-las quando falamos com outras pessoas, quando lemos romances e jornais, quando contamos historias, ou mesmo trabalhando em ambientes institucionais - enfim, em qualquer lugar onde nos envolvamos em conversa e com textos. A PD tambem pode ser aplicada a usos especializados de termos psicologicos, inclusive os vocabularies, teorias e praticas da psicologia academica. Ate certo ponto, a psicologia oficial nao e unicamente uma abordagem rival, mas tambem um topico potencial para a investigacao. Este capitulo, no entanto, concentra-se no discurso cotidiano. Comecamos examinando a PD em relacao a outros tipos de psicologia e a outras abordagens ao discurso. Uma das diferencas entre a PD e outros tipos de psicologia e o fato de que ela estuda o discurso cotidiano. A psicologia experimental oficial geralmente parte do principio de que a "psicologia popular" e errada, inexata, ilogica, inconsistente e, de varias maneiras, uma reflexao inferior sobre a verdadeira natureza dos estados psicologicos. O objetivo da psicologia e substituir o senso comum por um vocabulario melhor, uma melhor teoria que se origine de um estudo cientifico cuidadoso sobre o funcionamento verdadeiro das mentes e das pessoas. Ao contrario, a PD nao faz esse tipo de juizo sobre a adequabilidade ou a precisao dos conceitos que as pessoas usam em suas vidas cotidianas. Pelo contrario, acreditamos que esses conceitos tern sua realidade propria, suas proprias maneiras de funcionar, simplesmente porque sao os meios reais e empirica182
mente disponiveis atraves dos quais as pessoas explicam a si mesmas. Registramos e analisamos como as pessoas usam realmente as descricoes psicologicas como parte de suas vidas. Para alguns contrastes entre "abordagens cognitivas" discursivas e oficiais a psicologia, veja Edwards (1997), Edwards & Potter (1992), Edwards et al (1992) e Harre&Gillett(1994). Com rela9ao a outras abordagens ao discurso, a PD depende principalmente da Analise Conversacional ("AC": veja capitulo 4 deste volume), da retorica e da filosofia conceitual. Darei maiores detalhes em cada um desses topicos. A AC nos da o melhor modelo para examinar o que as pessoas dizem de uma maneira empiricamente rigorosa, assim como no desempenho das 39068 sociais. Essa e uma caracteristica essencial tanto da AC como da PD. Em termos psicologicos, isso significa que nao podemos considerar as coisas que as pessoas dizem simplesmente como expressoes de seus pensamentos, atitudes, cognisoes, memorias, crengas etc. Ao conrrario, examinamos o que as pessoas dizem como acoes de desempenho de varios tipos no contexto em que as coisas sao ditas, especialmente no contexto da conversa circundante. Se estivernios examinando materiais de entrevista, por exemplo, em vez de tratar os dados como uma colepao de "Visoes" oferecidas pelo/a entrevistado/a, que e muitas vezes o objetivo do/a entrevistador/a, examinamos a entrevista como uma intera9ao social na qual rudo que e dito, pelas duas partes, e examinado no contexto de sua producao, por aquilo que faz. O que e feito pode incluir aQoes tais como: rejeitar um convite; responder a uma critica; construir a identidade do falante como uma testemunha confiavel e racional; produzir uma versao de eventos que e factual, que resiste ser negligenciada por ser supostamente o resultado do preconceito ou envolvimento emocional do relator. Veja Edwards 183
5. Psicologia discursiva..1.
Derek Edwards
cologia podem ser encontrados nos varies escritos de Jeff Coulter (1990) e Rom Harre (Smith et aL, 1995).
& Potter (1992) e Potter (1996) sobre como "relates factuais" sao elaborados. Um bom exemplo de como analisar dados de entrevistas como interacao social pode ser encontrado em Widdicombe & Wooffitt (1995). A retorica e importante parcialmente porque a PD estuda tanto o texto escrito quanto as conversas gravadas. Ou seja, quando as pessoas fornecem descri9oes, relatos, opinioes ou afirmacoes sobre o mundo, elas geralmente estao respondendo a contrapropostas que podem ser potenciais ou nao faladas ou que podem realmente estar presentes nas conversas circundantes. A natureza retorica do discurso nao e apenas uma observa9ao da natureza da conversa e do texto, e sim tambem um principio metodologico. Durante a analise de discurso, e muitas vezes produtivo perguntar: "Que possivel contraversao esta sendo abordada aqui?" 0 colaborador mais significative a abordagem retorica ao discurso e a psicologia e Michael Billig (1987; 1991). A analise conceitual e a filosofia da linguagem associada com Ludwig Wittgenstein, Gilbert Ryle e John Austin. Sua contribuicao para a PD e a enfase que da a maneira como descobrimos o significado das palavras, nao atraves de um exame das coisas a que elas se referem, mas sim examinando como sao usadas. A fim de entender termos da psicologia cotidiana como "cren9a",""compreensao", "saber", etc., a melhor maneira de proceder nao e comecar por investigar o que "crengas" (etc.) realmente sao, e sim averiguar as formas de uso da palavra "crenca" como parte do discurso cotidiano. Filosofos conceituais produziram importantes insights sobre os usos de termos psicologicos imaginando os cenarios em que eles estao sendo usados adequadamente. Psicologos discursivos fazem o mesmo, mas, de um modo geral, baseiam suas analises em materiais empiricos. Tratamentos uteis de analise conceitual e de psi-
Normalmente a PD focaliza as descri9oes de pessoas e eventos em conversas ou textos e as inferencias sobre ambos. Nossa preocupa9ao principal e com a rela9ao entre descri9oes factuais ou relates e as caracteristicas psicologicas das pessoas envolvidas, tanto das pessoas descritas quanto das pessoas que estao fazendo as descri9oes. O interesse nas "descri9oes factuais" tem como base o fato de que, ao produzi-las, os participantes geralmente lidam com as caracteristicas psicologicas do senso comum das pessoas descritas - seus motivos, desejos, cre^as e assim por diante. Falantes tambem normalmente se referem a suas proprias caracteristicas psicologicas, sobre como souberam o que realmente aconteceu ou por que creem ou acham que foi assim. Operam contra a possibilidade de que seu relate possa nao ser aceito ou tratado como crivel e que possa ate ser negligenciado por ter side considerado fruto de fatores psicologicos, tais como preconceito, investimento emocional, desentendimento, memoria fraca, etc. Da mesma maneira, os falantes normalmente fazem uso desses mesmos tipos de categoria psicologica com o objetivo de contrapor ou solapar o status factual de um relato alternative. Essa rela9ao intima entre descri9oes factuais ou historias e os estados psicologicos de atores e de falantes e um
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A Psicologia Discursiva, portanto, tern como objetivo estudar como temas psicologicos de varies tipos sao conceitualizados na conversacao e no texto e administrados interativamente. Outras afirmacoes sobre as funda9oes teoricas e metodologicas da PD podem ser encontradas em Edwards (1997) e Potter (1997; 1997a). 2. PsicoLogia Discursiva: conteudos principals
Derek Edwards
5. Psicologia discursiva...
tema importante e muito frequente do discurso cotidiano. Ela participa da PD como maneiras de falar do senso comum dos participantes ou como os meios que eles usam para construir ou solapar o status factual de urna versao de eventos, ao mesmo tempo em que se preocupam com os tipos de pessoa que devemos achar que eles sao, ou com o estado de espirito que devemos achar que eles tern. Essas relacoes entre describees factuais e estados psicologicos ficarao mais claras na proxima se?ao deste capitulo, quando analisarmos alguns exemplos especificos. For enquanto, podemos observar como essas relacoes sao importantes, nao so nas conversas cotldianas mas tambem em locais especializados, tais como tribunals, interrogatories policiais, jornalismo investigative, salas de aula e situa9oes de terapia, onde questoes de "o que realmente aconteceu" e "por que" sao representadas em termos de realidade e imaginacao, fato e erro, verdade e preconceito. A PD desenvolveu tres tipos principals de investigacao, embora normalmente esses sejam combinados na pesquisa, nos livros e artigos publicados. 1) Topicos comuns da psicologia sao transformados em (ou redescobertos como) praticas de discurso. Por exemplo, a psicologia cognitiva de "memoria" passa a ser a anaUse de como as pessoas falam sobre eventos passados. A psicologia social de "atribuifao causal" passa a ser o estudo de como causas e explica9oes sao produzidas em relates de eventos cotidianos. A psicologia da emocao se transforma no estudo de como usamos termos emocionais, ou como os toraamos relevantes, etc., no discurso cotidiano. Essa forma de desenvolver a PD produziu novos tipos de analises e de descobertas, e tambem perspectivas criticas sobre a psicologia oflcial. Exemplos desse tipo de trabalho incluem: Edwards et al. (1992) sobre memoria e recordacoes; Edwards & Potter (1993) sobre atribui?ao cau186
sal; Billig (1987) e Potter & Wetherell (1987) sobre atitudes e psicologia social; Edwards (1997; 1999) e Harre & Gillett (1994) sobre emocoes. De um modo geral, re-trabalhar dessa forma conceitos padroes da psicologia tern como resultado um conjunto muito diferente de limites ao redor dos fenomenos relevantes, tais como uma forte conexao entre as areas tradicionalmente separadas da "memoria" e "atribuicao causal" e a introdugao de topicos novos tais como "a construcao de fatos" (Edwards & Potter, 1992; Potter, 1996). 2) A PD tambem estuda o discurso psicologico do senso comum em si mesmo, sem nenhuma referenda especifica a psicologia academica. Examinamos como as pessoas usam termos como "zangado", "ciumento", "conhecer", "crer", "sentir" e assim por diante - um grupo enorme de palavras em qualquer idioma. Estamos interessados em saber como essas palavras sao usadas, com que fun9ao as usamos e como elas sao usadas ern alternacao ou contraste com ourras palavras, na construcao de relates de pessoas e de suas 39068. Um exemplo que focaliza palavras emocionais sera apresentado na proxima 86930 deste capitulo. 3) E comum que as pessoas presumam que a unica preocupacao da PD sao conversas abertas sobre estados mentals, mas isso nao e verdade. Examinamos tambem como os "negocios psicologicos" do senso comum sao manejados e adminisrrados mais indiretamente, sem o uso de palavras obviamente psicologicas como "zangado" ou "conhecer" ou "preconceito". Por exemplo, a intencionalidade, responsabilidade, subjetividade, preconceito, honestidade, motiva9ao etc. de uma pessoa pode ser manejada (sugerida, construida, neutralizada) atraves da maneira como suas a?oes e circunstancias sao descritas. Uma vez mais, estamos examinando o relacionamento no discurso entre a mente e a realidade, entre os estados mentais "in187
5. Psicologia discursiva...
Derek Edwards
ternos" ou caracteristicas pessoais e o mundo "externo". E importante enfatizar que essas nogoes de mundos "interno" e "externo" fazem parte da PD como modos de falar dos participates, dispomveis atraves de analise conceitual e empirica, e nao como a propria teoria psicologica da PD; nao estamos argumentando a favor, nem endossando, nem examinando qualquer nogao do tipo "funcionamento interno da mente". Exemplos desse tipo de analise incluem estudos sobre como o preconceito e negado (Edwards, 2003) e como a intengao ironica ou o investimento emocional podem ser transmitidos falando de maneira "extrema" (Edwards, 2000). Esse tipo de analise e caracteristica da maior parte dos trabalhos da Psicologia Discursiva, assim como dos estudos da etnometodologia e da AC sobre como relatorios factuais sao reunidos e solapados (Lynch & Bogen, 1996; Pollner, 1987; Potter, 1996; Wooffitt, 1992). Na PD, nao pretendemos estabelecer qualquer distingao clara entre teoria, metodos e descobertas. Descobertas sao produzidas pelo metodo e elas formam a teoria e sao por ela formadas. Descobertas importantes podem tornarse parte da teoria e do metodo. Por exemplo, no momento em que fica claro que a conversa "factual" e organizada de forma a construir e administrar o "interesse" do falante (Edwards & Potter, 1993), podemos comecar a usar essas descobertas para construir uma compreensao teorica geral do discurso e comegar a usar as mesmas ideias analiticas para descobrir novos fenomenos, tais como as maneiras como as pessoas contain historias umas sobre as outras na terapia familiar. Nao consideramos esse relacionamento intimo entre teoria, descobertas e metodo como uma confissao condenatoria de impropriedade cientifica. Ao contrario, achamos que e uma caracteristica de novos campos de estudo e de como geralmente eles se desenvolvem. 188
Uma das origens historicas da PD foram os estudos sociais da ciencia, um campo ou pesquisa que minou a claridade dessas diferengas em qualquer tipo de ciencia (ex.: Latour, 1987). Na PD, o principle retorico, por exemplo, sao todas essas tres coisas: descoberta empirica, teoria e metodo. E uma afirmagao empirica de que as pessoas falam retoricamente de maneiras destinadas a contrapor versoes alterna, tivas e a se defender de tais ataques. E tambem uma abordagem teorica ao discurso que contrasta com outras abordagens tais como as da psicologia cognitiva e da teoria de cogni?ao social, em que a linguagem e tratada como "se nao fizesse nada", como se fosse apenas a expressao dos estados mentais dos falantes, uma especie de janela da mente. Isso e muito diferente da abordagem da PD em que estados mentais participam como topicos e negocios da linguagem e nao como sua fonte ou causa. Terceiro, como ja observamos, a retorica tambem e metodo, uma ferramenta analitica. Para qualquer trecho de conversa ou de texto, normalmente e produtivo indagar o que e que ele foi destinado a negar ou a contrapor. 3. Metodos Os metodos de analise da PD comegam com a coleta de um conjunto de materials textuais ou conversacionais, preferivelmente que "ocorreram naturalmente". Materiais "que ocorreram naturalmente" sao aqueles que ocorrem sem qualquer relagao com o fato de que estamos fazendo alguma pesquisa. A preferencia por esse tipo de materiais em vez de, digamos, conversa coletada nas entrevistas da pesquisa, baseia-se na ideia de que a conversa desernpenha acoes situadas (Potter, 1997b). Entrevistas de pesquisas podem ser analisadas, e grande parte da psicologia discursiva ate o momento concentrou-se em dados de entre189
5. Psicologia discursiva...
Derek Edwards vistas. Mas estamos normalmente interessados em acoes da vida cotidiana, e nao em 39068 relacionadas com a participacao em nossa pesquisa! O melhor metodo para a transcrigao de gravaQoes de conversas sao as normas inventadas por Gail Jefferson para a AC (veja o capitulo sobre AC). Uma vez mais, isso ocorre porque queremos analisar como a conversa desempenha a9oes sociais. As conven9oes normais do texto escrito nao foram elaboradas com esse objetivo e nossa familiaridade com elas obscurece o fato de que podem tanto impor quanto eliminar muita coisa quando utilizadas na transcri9ao de conversas. Analise • Nao pergunte que estado de espirito a conversa/texto expressam, nem que situa9ao do mundo eles refletem, e sim que 3930 esta sendo realizada quando coisas estao sendo ditas daquela maneira, • Examine os interesses dos participantes: suas categorias, seus conceitos, as coisas de que estao tratando. Examine como usam conceitos psicologicos ou "se orientam" com rela9ao a interesses psicologicos. A PD come9a trabalhando de uma forma indutiva, nao testando hipoteses. E em nenhum momento estamos procurando evidencia para processes psicologicos subjacentes. • Se por acaso voce, como analista, quiser introduzir alguma questao nos dados, tente "tematiza-la" primeiro. Ou seja, tente ver ate que ponto essa questao e algo que os proprios participantes (em seu discurso) manipulam ou tratam de alguma maneira. Se nao estiver no discurso como um interesse dos participantes, pergunte-se por que razao voce a esta introduzindo! • Nos nos concentramos em redoes sujeito-objeto (rela9oes mente-mundo). Examine como as descri9oes das pessoas e de seus estados mentais estao ligadas
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as descri9oes de a9oes, eventos e objetos no mundo externo ou ate sugeridas por eles. • Examine como o atual falante/escritor se dedica, de forma reflexiva, a suas proprias questoes sujeito-objeto: suas razoes para saber das coisas, como eles lidam com a possibilidade de que nao creiam neles, ou de serem considerados preconceituosos, ou envolvidos emocionalmente, etc. • Para qualquer conteudo da conversa, pergunte como e dito e nao por que e dito. Pergunte "o que e que ele faz e como o faz?" Perguntas do tipo "Por que?" sao analiticamente perigosas quando dependem de premissas pre-analiticas sobre a mente, a linguagem e os ambientes sociais. Seria melhor se a maior parte das perguntas "por que?" fossem transformadas em perguntas "como?" Portanto, em vez de perguntar "por que X disse isso?" podemos perguntar "o X falou aquilo de alguma maneira que leva em considera9ao seus possiveis motives ou razoes para dizer o que disse?" A pergunta "como?" se conecta com perguntas adicionais que podemos fazer. • Analise retoricamente. Pergunte: "o que esta sendo negado, contrariado, sonegado, etc. quando a pessoa fala dessa maneira?" • Analise semioticamente. Isso significa perguntar "o que e que nao esta sendo dito aqui, que poderia ter sido dito usando palavras ou expressoes rigorosamente semelhantes?" O principio e que a linguagem e um "sistema de diferen9as" de tal forma que todas as palavras, todos os detalhes tern significados porque existem alternativas. A sele9ao de uma palavra ou expressao especifica e essencial, e podemos chegar a ela analiticamente se imaginarmos alternativas plausiveis, e tambem examinando os dados para ver que descri9oes alternativas podem estar realmente em jogo.
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5. Psicologia discursiva...
Derek Edwards
• Analise sequencialmente. Para qualquer trecho de conversa, examine a fala imediatamente anterior e imediatamente posterior, ou os turnos da conversa, para ver com o que e, exatamente, que o conteudo do turno atual esta lidando e o que e que ele/ela esta tornando relevante. Esse e o principio mais importante da AC e e um ingrediente essencial na PD pelas mesmas razoes. O que estamos analisando nao e uma cole9ao de pensamentos de falantes^expressos empalavras, como citacoes retiradas de uma entrevista, e sim uma seqiiencia de acoes sendo realizadas de uma maneira seqiiencialmente relevante. • Quando voce encontrar padroes que se repetem na maneira como as coisas sao ditas e feitas, procure as "excecoes" que sao exemplos que nao parecem se encaixar na analise que voce esta desenvolvendo e veja se e a analise que precisa ser mudada, ou o fenomeno redefinido. Uma vez mais, isso e um principio importante na AC, desenvolvido principalmente por Emanuel Schegloff. 4. Um exemplo: emocoes, roteiros e dlsposigoes
A seguinte analise ilustra alguns - mas obviamente nao todos - interesses e principles da PD. Examinamos dois trechos curtos extraidos de sessoes de aconselhamento em relacionamentos, nas quais os casais vem ver um "conselheiro" para ajuda-los a resolver suas dificuldades. O foco e sobre como categorias emocionais sao usadas em relates de narrativa, como sao usados retoricamente e de forma performatica em uma seqiiencia de intera?ao. No trecho 1 Mary, cujo marido, Jeff, tambem estapresente, comecou a dizer ao terapeuta por que eles procuraram aconselhamento, e ela chegou no ponto em que (segundo sua historia) decidiu contar a seu marido um caso 192
que havia terminado recentemente com um outro homem. A palavra "you" na linha 2 refere-se ao Jeff. As convenpoes da transcricao sao as mesmas usadas na Analise Conversacional. Trecho 1 1 Mary
U::m (l.O)and then::, (.) obviously
2
you went through you'r a:ngry stage,
3
didn't you?
4
C)
5
Ve::ry upset obviously, .hh an:d uh, (0.6)
6 7
•
we: started arguing a lot, an:d (0.6) just drifted awa:y
Esse e um trecho curto, que escolhemos para mostrar a importancia de pequenos detalhes. Mary nos da uma descrigao dos sentimentos de seu marido, Jeff, quando ele ouve sobre o caso dela. Ele estava "angry" (zangado) (linha 2) e "very upset" (muito transtornado) (linha 5). Observe primeiramente que essas descricoes caracterizam a reacao de Jeff como sendo de raiva em vez de, digamos, como tendo chegado a um iuizo condenatorio das a?6es e do carater de sua esposa. Portanto, ela caracteriza a rea930 dele como sendo emocional era vez de cognitiva, e um tipo especifico de emofao. Assim, e uma descri9ao apenas, em vez de um grupo de possiveis descri9oes que poderiam ter sido usadas. E ela estabelece varias possibilidades que nao teriam sido sugeridas no caso de um "juizo" 1 NT - Mary: Hum e entao, obviamente, voce passou por sua fase zangada, nao foi? Muito transtornado, obviamente, e ah, comecamos a discutir muito e fomos nos distanciando um do outro.
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um periodo limitado. Observe tambem como a descri9ao se encaixa em uma seqiiencia narrativa. A proxima coisa que Mary diz em sua narrativa (e, por implica9ao, portanto, nao somente aquilo que da continuidade a frase anterior, mas que da continuidade a partir das reagoes de Jeff), e como "we started arguing a lot, and just drifted away" (linhas 6-7) (come9amos a discutir muito e apenas fomos nos distanciando um do outro). Portanto seus problemas agora sao comuns, discussoes, e uma especie de "apenas fomos nos distanciando" que da a impressao de ser nao-agenciado, e cuja culpanao pode ser atribuida aninguem. A "fase" de Jeff ja esta no tempo passado ("you went through your angry staee. didn't vou?") (voce passou por sua fase zangada, 0 (
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dele ja devia ter passado. A dire9ao geral do relate de Mary, produzida atraves de seus detalhes especificos, e desviar nosso entendimento dos problemas do relacionamento, evitando que focalizemos seu caso extraconjugal e fazendo com que nos voltemos para as dificuldades
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e concentrar-nos em um trecho bem pequeno, o que ele contem, o que ele faz, no contexto de uma seqiiencia interacional maior. A expressao "sua fase zangada", portanto, e retorica e performatica. Ou seja, nao e apenas descritiva de Jeff (como um objeto no mundo), nem meramente uma expressao da compreensao mental que Mary tem dele (suas ideias expressas em palavras). Ao contrario, fiinciona para definir o problema que eles tem, como sendo localizado em Jeff e, ao mesmo tempo, evita que Mary o culpe abertamente. Realmente, o termo "sua" fase zangada, ao lado na no9ao normativa de "fase" e a expressao "obvia-
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curso emocional). Uma rea9ao emocional pode ser irracional, por exemplo, o que evitaria que flzessemos inferencias sobre Mary e nos concentrassemos mais no estado de espirito de Jeff. Da mesma forma, uma visao, opiniao ou juizo podem (normativamente) ser mais duradouros que uma reacao emocional tal como a raiva, e ha menos expectativa de que ela se modifique. Essas sao possibilidades conceituais e retoricas nesse momento da analise. Seu significado ira depender daquilo que Mary e Jeff vao dizer a seguir, porque e a significancia que elas tem para eles que estamos tentando descobrir. O detaihe especifico "your angry stage" (sua fase zangada) e interessante. Ele comepa a explorar a no9ao de raiva como um estado temporario que tem suas ocasioes e dura9oes adequadas. E uma descri9ao que sugere uma especie de "roteiro" (uma seqiiencia esperada e rotineira de eventos - veja o glossario) para as rea9oes emocionais. Por exemplo, embora reconhecendo que a raiva de Jeff e apropriada naquele lugar, a ideia de uma "fase" zangada desenvolve a sugestao de que nao deveriamos esperar que ela dure por um tempo despropositadamente longo. Portanto Mary cria um espa90 retorico aqui para algo que ela realmente continua a desenvolver (nao ha espa9o suficiente para incluir toda a transcri9ao aqui), que e a no9ao de que as rea9oes de Jeff estao come9aniio a se transfonnar no "problema" que eles tem em seu relacionamento. A dura9ao de sua rea9ao emocional esta come9ando a ser o tema no qual o aconselhamento deve se concentrar - os sentimentos inadequados de Jeff e nao a infldelidade de Mary. Em contraste, para Jeff, sao as 39068 de sua esposa e os sentimentos que ela ainda tem pelo outro homem que sao os problemas do relacionamento. Uma vez mais, nao me e possivel apresentar todos os dados aqui para demonstrar como eles abordam tudo isso. O que estamos fazendo
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Derek. Edwards
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Jimmy is extremely jealous. Ex- extremely
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jealous person. Has ailways 4been, from
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the da:y we met. Y'know? An* at that point
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in time, there was an episo:de, with (a) a
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hand to Jimmy according to Jimmy I was
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a:lwavs a:lwavs ' doin' it an' .hhh .v'know ... / aggravating him. He was a jealous person I: aggravated the situation, .h And he walked out that ti:me, to me it was (.) totally
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ritdiculous the way he (0.81 goes o:n. (0.4^)
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through this probilem that he ha:s. (U21
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And [(he) ( )]
{
17 Conselheiro: [Is that ] the time that you left.
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18 19 Connie:
((Aparentemente para o J.)) He left the:n that was- [nearljy two vears ago.
20 Jimmy: i
21 Connie:
[°Yeh.°] He walked out then. Just (.) literally walked out2.
1
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Connie define o "ciume" de Jimmy nao apenas como uma reacao pela qual ele possa passar em ocasioes especificas, mas como uma caracteristica permanente dele, algo
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Trecho 2 At that poi:nt, (0.6) Jimmy ha-(.) my-
0.4) Right? And this (o.4) got all out of
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1 Connie:
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emocionais persistentes que seu marido esta tendo de lidar com essa infidelidade. Os pontos basicos de PD a serem observados aqui sao: 1) "Raiva" e "transtorno", como quaisquer outros rotulos psicologicos, sao descri9oes selecionadas entre um grupo de alternativas potentials. For exemplo, elas constroem as rea9oes como sendo reacoes, e como sendo reacoes emocionais. em vez de, digamos, serem consideradas uma conclusao ou uma opiniao a que alguem chegou; 2) Descricoes de estados psicologicos nao sao apenas observagoes soltas que as pessoas fazem, e sim versoes localizadas, retoricas, performaticas que estao conectadas a outros detaIhes dos relates narratives. O trecho 2 e de um outro casal (Connie e Jimmy) e seu conselheiro. Ele nos da uma vaga ideia da flexibilidade do discurso psicologico. Estados emocionais tais como "raiva" nao sao necessariamente descritos nos termos que Mary utiliza, como fases normativas pelas quais podemos passar em rea9ao a eventos. No trecho 2 Connie esta contando ao conselheiro um evento no qual ela e seu marido tiveram uma briga seria, que fez com que finalmente ele a deixasse "walking out" (saisse de casa).
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bloke, (.) in a pub, y'know? And me: having a few drinks and messin'. (0.8) That was it.
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2 NT - Naquela altura, Jimmy ti, meu Jimmy e extremamente ciumento. Uma pessoa extremamente ciumenta, Sempre foi, desde o dia em que nos conhecemos. Sabe? E naquela altura, houve uma historia, com um cara, em um pub, sabe? E eu tomei uns copos e perdi as estribeiras. Foi isso. Certo? E isso foi a gota d'agua; segundo o Jimmy eu estava sempre fazendo isso, voce sabe, sempre irritando ele. Ele e uma pessoa ciumenta, eu piorei a situacao. E ele saiu de casa daquela vez, para mim foi totalmente ridiculo a maneira como ele fica falando, por causa desse problema que ele tern. E ele Conselheiro: Foi essa a vez que voce saiu de casa. Connie : Ele saiu de casa naquela vez — quase dois anos atras. Jimmy: E Connie. Ele saiu de casa. Simplesmente, literalmente, saiu de casa.
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que "he has always been from the day we met" (ele sempre foi desde o dia em que nos conhecemos) (linhas 3-4). Segundo sua esposa, Jimmy possui uma predisposigao enraizada, parte de sua personalidade (nao apenas ciumento, mas uma pessoa ciumenta) que e tanto excessiva quanto permanente. Datando-a "from the day we met" (do dia em que nos conhecemos), ela coloca essa predisposigao antes de quaisquer dificuldades conjugais que eles estao tendo agora. Colocando-a dentro de Jimmy, como uma predisposigao de longo prazo da parte dele, desvia a atencao de qualquer possibilidade de que o ciume dele possa ter sido causado pelo comportamento dela, razao pela qual ele presumivelrnente estaria enciumado. Portanto, ao rotular Jimmy como uma (tpessoa profundamente ciumenta", Connie tambem fornece uma explicacao para o fato de que a versao de Jimmy dos eventos relatives a "historia" com o cara no pub e diferente da dela - o ciume dele fez com que ele tivesse uma reacao exagerada. Com efeito, Jimmy realmente continua e produz uma versao diferente daqueles eventos (veja Edwards, 1995, para a versao de Jimmy, e para uma analise mais aprofundada desse trecho e de outros trechos relacionados). Embora eu nao esteja incluindo a versao de Jimmy aqui, vestigios dela estao visiveis na fala de Connie. Nas linhas 9-12 Connie refere-se a historia "according to Jimmy" (segundo o Jimmy). A historia dela e especificamente destinada a desmentir isso. Segundo Jimmy, Connie tern o habito de flertar com outros homens, especialmente quando esta em um pub tomando uns copos. Em seu relate, o seu ciume e verdadeiro, mas tern duas qualidades importantes: 1) e uma reagao compreensivel diante do comportamento coquete de sua esposa; 2) ja que seu ciume e excessive, e uma parte previsivel de sua personalidade, entao Connie deveria prever que iria acontecer, levar isso em consideragao, e evitar que acontecesse. Portanto ela e culpada nos dois casos.
Observe a colocagao seqiiencial especifica da descrigao que Connie faz de Jimmy no trecho 2. Connie comega a se envolver em sua propria historia (linha 1) "At that point Jimmy ha" (Naquela altura o Jimmy) e interrompe para inserir essa descrigao dele como "an extremely jealous person" (uma pessoa extremamente ciumenta). Essa descrigao, inserida no comego de sua narrativa, serve como uma especie de moldura explanatoria para aquilo que vira a seguir, para como devemos entender o que ocorreu naquela noite. Uma vez mais, o argumento basico da PD aqui e que a descrigao de Connie, "extremely jealous person" nao e meramente uma reflexao daquilo que Jimmy realmente e, nem mesmo daquilo que ela pensa, ou ja notou que ele e, que pode ou nao ser verdadeiro. Seja qual for sua base na realidade, ou na mente de Connie, aqui essa descrigao funciona discursivamente para estabelecer uma sensagao especifica e contenciosa dos eventos, de como e por que o casal teve uma briga naquela noite, e para, retoricamente, ja minar os esforgos de Jimmy para reivindicar que sua reagao foi provocada pelo mau comportamento dela. Uma das maneiras de lidar com estados psicologicos e caracteristicas pessoais no discurso e falar sobre aquilo que as pessoas fazem regular ou repetidamente. Chamei esse tipo de descrigao de "uma formulagao de roteiro" (Edwards, 1995; veja o glossario). E parte de um raciocinio cotidiano, de senso comum. Podemos dizer que alguem possui uma atitude, crenga, predisposigao ou carater especificos porque essa pessoa regularmente age de determinadas maneiras. E a fungao de relates narratives sobre aquela pessoa mostrar que ela age daquela maneira. Nao explorei muito isso aqui, mas vestigios disso podem ser vistos nos dois trechos. A descrigao que Mary faz da "fase zangada" de Jeff depende de uma especie de roteiro emocional, segundo o qual podemos esperar que as pessoas ajam
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e reajam.de certas maneiras em certas circunstancias. O quadro que Connie faz de Jimmy como uma "pessoa ciumenta" depende de uma serie de observagoes que ela pode fazer sobre o jeito dele agir e reagir regularmente; a natureza de "roteiro" de sua reagao e, ao mesmo tempo, evidencia e produto de sua tendencia ou predisposi9ao a ter ataques de ciume violentos e a nao entender o comportamento dela. O argumento da PD neste caso e que essas sao, como tudo o mais, formas de falar e formas de fazer coisas com as palavras. Nao queremos dizer com isso que o mundo esteja realmente "escrito em um roteiro" dessa maneira, mas sim que a natureza "escrita em um roteiro" das acoes de uma pessoa depende da maneira como essas apoes sao descritas e narradas e o mesmo ocorre com as implicagoes psicologicas construidas a partir daquelas descri9oes. A PD e o estudo de como as pessoas constroem, montam, solapam (etc.) relates que descrevem e invocam estados e caracteristicas psicologicas. Comentarios finais O que a PD faz e um exame minucioso de conversas e de texto, buscando descobrir como as coisas psicologicas sao desenvolvidas e manipuladas como parte das acoes que o discurso realiza. Os dados que examinamos incluem conversacoes cotidianas, conversas em ambientes institucionais e textos escritos. Em alguns ambientes institucionais tais como escolas e terapia, ha uma preocupa9ao oficial clara com as questoes da "mente", com a maneira como as pessoas sentenvpensam, conhecem e compreendem. Mas as questoes psicologicas estao entremeadas em todos os tipos de discurso e interacao social devido a relevancia geral de intenQoes, motivos, ideias, pianos, memorias, etc. para a explicagao da vida. 200
Alem do trabalho que se auto-intitula PD, tambem encontramos temas psicologicos em um grupo muito amplo de abordagens que incluem a Analise Conversacional (AC), a emometodologia e a Analise Discursiva Critica, mesmo quando esses estudos estao interessados em questoes sociologicas mais do que psicologicas. Exemplos incluem o estudo classico de Pollner (1987) sobre como as "disjuncoes da realidade" sao resolvidas nos tribunais de transito; a analise feita por Weider dos motivos e entendimentos em relates sobre a obediencia a regras por um grupo de narcotraficantes; o estudo de analise conversacional feito por Heritage (1984) sobre como a expressao "Oh" e usada para assinalar a recepcao de novas informacoes; e os estudos de Lynch & Bogen (1996) sobre os'usos da "niemoria" e do "esquecimento" pelo Presidente Reagan e por Oliver North nas audiencias de testemunhas do caso Ira-Contras. As maneiras atraves das quais o discurso categoriza e atribui estados mentais, inclina9oes, carater, sentimentos, cren935, motivagoes, etc., sao parte do tecido da transparencia publica. O projeto da Psicologia Discursiva e estudar como isso funciona, ao lado de pesquisas relacionadas que abordam o discurso como uma area de agao social. Glossario Analise conceitual. a analise filosoflca dos significados da palavra, segundo seus usos localmente adequados. Veja Coulter (1990). Categorias dos participantes: conceitos usados, sugeridos ou tornados relevantes pelos participantes. Sao elementos de peda9os reais de discurso e interagao social, nao algo que os participantes supostamente levam em suas mentes. Construqao defato: as maneiras pelas quais as descri9oes podem ser produzidas como reflexes objetivos do mun-
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do exterrio. Ha uma variedade de artificios para fazer isso: veja Potter (1996). Veja tambem "participa?ao e interesse" neste glossario. Expressao ativa (active voicing): ocorre quando um falante fala como se estivesse citando as palavras verdadeiras de uma outra pessoa, ou suas proprias palavras ou pensamentos anteriores, as vezes assumindo uma qualidade de voz especial para mostrar como as palavras foram ditas. Veja Wooffitt( 1992). Formulacdo de roteiro: a descricao das acoes das pessoas como se elas seguissem padroes rotineiros ou repetitivos. Isso se relaciona corn a atribuigao de "predisposi96es". Veja Edwards (1995; 1997). Normative: relacionado a normas. Essas sao a9oes ou eventos que sao tratados pelos participantes como sendo es~ perados, normais, ou que deveriam ter ocorrido. Participacao e interesse (stake and interest): esses sao os possiveis motives ou ganhos que um falante tem para reivindicar uma determinada versao dos fatos como sendo a verdadeira. Mostrar a participagao ou interesse do/ a falante pode solapar o status factual daquilo que ele/ ela diz. Por outro lado, estabelecer urna versao dos eventos como sendo factual pode exigir que o falante negue, ou contradiga que ele/ela tem uma participagao ou um interesse naquela versao. Veja Edwards & Potter (1992), e Potter (1996).
Relativismo metodologico: a PD adota uma posi?ao neutra sobre a verdade ouprecisao daquilo que os participantes dizem. Deixamos que essas questoes sejam tratadas pelos proprios pacientes em seu discurso, que e exatamente o que a analise tem a intencao de revelar. Veja Edwards (1997). Retorica: discurso que e elaborado e construido de forma a levar em consideracao versoes ou pontos de vista alternatives ou opostos. Veja Billig (1987). Roteiro: uma sequencia de acao reconhecida, rotineira. Na psicologia cognitiva, presume-se que as pessoas possuem conhecimento dos eventos sociais rotineiros que os ajudam a reconhecer situagoes e eventos familiares. A PD focaliza as "formula9oes de roteiros". Bibliografia
Predisposigdo (disposition): o estado de espirito oupersonalidade de uma pessoa que, no raciocinio do senso comum, faz com que ela aja de uma certa maneira. O termo vem da filosofia linguistica de Gilbert Ryle. Na PD as predisposicoes sao relacionadas com "formulagoes de roteiro". Veja Edwards (1995; 1997).
BILLIG, M. (1987). Arguing and thinking: A rhetorical approach to social psychology. Cambridge: Cambridge University Press. — (1991). Ideology and opinions. Londres: Sage. COULTER, J. (1990). Mind in action. Oxford: Polity. EDWARDS, D. (1995). Two to tango: Script formulations, dispositions, and rhetorical symmetry in relationship troubles talk. Research on language and Social Interaction, 28, p. 319-350 [s.n.t.]. — (1997). Discourse and cognition. Londres: Sage. — (1999). Emotion discourse. Culture & Psychology, 5, p. 271-291 [s.n.t.]. -— (2000). Extreme case formulations: Softeners, investment and doing nonliteral. Research on Language and Social Interaction, 33, p. 347-373 [s.n.t.].
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6. A frdnteira interior... descrever suas atividades e formas de vida contribuem para criar uma imagem quase sempre negativa dessas pessoas, atribuindo-lhes, em alguns casos, o papel de vitima. For sua vez, essas imagens podem serutilizadas parajustificar as atuais politicas de imigracao e as condigoes de marginalidade em que vivem essas pessoas e, de qualquer forma, contribuem para fomentar uma experiencia negativa e conflitante da diversidade.
Departamento de Lingiiistica, Universidade Autonoma de Madri.
Entre os objetivos deste capitulo temos, em primeiro lugar, nosso interesse em mostrar como, atraves de recursos linguisticos e das estrategias discursivas, incorpora-se ao discurso a presenpa do falante (enunciador), de seus pontos de vista, de suas atitudes e valores e de seus objetivos na enunciagao/interagao. Assim, nos, os falantes, construimos no discurso uma representacao especifica dos acontecimentos, das relagoes sociais e de nos mesmos. Dessa forma queremos estimular a reflexao sobre as possiveis implicagoes sociais desse processo de construgao discursiva. Com esse fim, selecionamos discursos socialmente relevantes (nesse caso de jornais e de parlamentares) sobre a imigracao, e a partir deles nos perguntaremos ate que ponto eles podem contribuir para a continuidade das diferengas sociais e do funcionamento de estruturas e mecanismos de exclusao e de dominagao. A concepcao do discurso que apresentamos e caracteristica das correntes de analise com que nos ocupamos aqui, chamada de analise critica do discurso (daqui em diante ACD). Para explica-la, examinamos quais sao seus objetivos, seu metodo e as tecnicas de analise. Dessa forma prop ore ionamos ao leitor os recursos e ferramentas de analise e um modelo para a reflexao, com os quais sera possivel realizar uma leitura critica de discursos proprios e alheios. Em ultimo lugar, trata-se de explorar se esta analise nao so contribuiria para que, com maior freqiiencia, os
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capiElo^apreseritanibs nao^so osprincipios'basiNesie cos de uma das mais dinamicas perspectivas atuais da analise do discurso, a analise critica do discurso (ACD), como tambem algumas das tecnicas de analise desenvolvidas nessa area. Nessa perspectiva, os discursos e ate a propria tarefa do analista sao considerados situados socialmente e Ihes atribuimos um papel na (re)construgao e reprodugao recursiva e recorrente das estruturas e da organizagao social. Dessa forma, podemos dizer que os discursos e tambem as analises que deles fazemos sao considerados praticas sociais. For isso, nessa apresentagao teorica e na pratica de analise que oferecemos. selecionamos discursos socialmente relevantes e relacionados com conflitos sociais. Trata-se de discursos autorizados sobre imigragao, produzidos pelos meios de comunicagao e nos debates parlamentares e que exercem uma clara influencia sobre nossa linguagem cotidiana. Os usos e as formas que neles aparecem para se referirem aos imigrantes e para
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Luiza Martin Rojo
discursos e representagoes das pessoas de origem estrangeira viessem a tona, como tambem para estimular representa?oes distintas dessas pessoas e do fenomeno migratorio, podendo, assim, criar obstaculos para a interiorizacao de discursos dominantes. Com isso, assumimos um dos objetivos mais freqiientes desse tipo de analise: conscientizar os falantes da importancia das praticas discursivas, incrementando, assim, aquilo que foi chamado de "a consciencia critica do uso linguistico". 1. 0 discurso, um novo campo do saber O interesse atual pelo discurso fica claro tanto na aten930 que a ele dedicam as disclplinas tradicionais - tais como a filosofia, a sociologia, a psicologia e, nao sem alguma controversia, a linguistica - como no surgimento e enraizamento de novos campos interdisciplinares do saber que se especializam em seu estudo - como a Analise do Discurso. Neste capitulo explicamos que a atencao que hoje se dedica ao discurso e resultado de dois movimentos consecutivos e relacionados com o pensamento ocidental do ultimo quarto do seculo XX: o giro linguistico e o aumento da reflexividade social. Para os quais, alias, a atencao ao discurso tambem veio contribuir. Com o giro linguistico, inicia-se um processo pelo qual a linguagem torna-se o referente principal e determinante de todo o ambito mental, representative e de conhecimento. Se o primeiro giro linguistico, o chamado giro logicista, da inicio ao processo, e o giro pragmatista (um giro contra o giro: veja o capitulo 1 de Tomas Ibanez) que passa a ser mais relevante para nossa exposicao ja que, com ele, o interesse pela linguagem ja nao pode se dissociar de sua compreensao progressiva enquanto/?ratfca (presente tanto nos conceitos de uso linguistico como de discur208
so); ou seja, como uma atividade que se realiza na sociedade e esta socialmente regulada; um modo de 39210, que nos permite atuar sobre nos mesmos, sobre os demais e sobre o mundo ao redor. Os desenvolvimentos posteriores, que poderiamos entender como uma terceira etapa do giro linguistico - o giro discursive -, deixou claro o potencial extraordinario dessa pratica. Assim, os estudos da intera9ao (por exemplo, na sociolinguistica interacional, na antropologia linguistica) mostraram como, atraves das praticas discursivas, se realizam outras praticas sociais. Assim, para fazer uma reclama9ao, para ensinar, para julgar a um reu, e precise que os atores sociais produzam discursos. Essa visao e dominante na tradi^ao da linguistica sistemica funcional e na antropologia linguistica, que deram enfase especial ao estudo dos '^asos do(s) codigo(s) linguistico(s) no desenvolvimento da vida social" e permitiram a compreensao da linguagem como parte integrante "de uma atividade e de uma forma de vida", isto e, como uma forma de trabalho humano (Duranti, 1988). O estudo volta-se, entao, para o exame do processo comunicativo em situacjlo1. Enquanto que os desenvolvimentos da analise do discurso deram enfase ao fato de que a linguagem, ao gerar representa9oes de outras praticas sociais, ao mesmo tempo constitui essas praticas. Como resultado da enfase no potencial discursive, a pratica da analise tambem se modificou. Como j a observava Foucault, o objetivo e, entao, explorar o poder gerador do discurso como uma prati-
1 "Estamos tao acostumados com a comunicasao atraves da linguagem, na conversa9ao, que temos a impressao de que o que e essencial nela e que o outro capte o sentido de minhas palavras — o que e uma atividade mental; como se ela as introduzisse em sua mente. E se, entao, ele faz algo mais com elas, nao consideramos que isso seja parte do objetivo imediato da linguagem" (Wittgenstein, 1958: 363; veja tambem Wittgenstein, 1974: 193).
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ca que nao so designa os objetos a que se refere, mas tambem os constitui2 (vlsao hoje dominante em todas as abordagens discursivas, da linguistica textual, passando pela escola francesa de AD ate os desenvolvimentos criticos de sinal ou estrutura diferentes). A atengao sobre o poder gerador do discurso nos remete, igualmente, ao segundo movimento a que nos referiamos no primeiro paragrafo desta introducao, ou seja, a reflexividade; e, nesse caso, a reflexividade social. E evidente que as atuais "guerras linguisticas" (Cameron, 1995; LakofF, 2000), das quais participam tanto os movimentos sociais como as instiruigoes, atraves de campanhas a favor de usos linguisticos menos sexistas ou menos racistas, ou com a cria9ao de Observatories da comunica9&o (como o Observatorio Europeu do Racismo, da Xenofobia e do Anti-semitismo3), mostram como vivemos em sociedades que "monitorizam" de uma forma cada vez mais reflexiva suas praticas discursivas. Esse monitoramento chega a tal ponto que os analistas do discurso declaram como um de seus objetivos a vontade de incrementar e canalizar essa reflexividade social, desenvolvendo ferramentas de analise que permitam aos falantes, seguindo um metodo do tipo "faca-o voce mesmo", analisar os discursos proprios e alheios e seus efeitos (essa finalidade
da analise e muito relevante^na corrente sobre a qual falamos neste capitulo, conhecida como "analise critica do discurso", ACD)4. For ultimo, cabe assinalar que, como mostra o presente volume, o interesse pelo discurso, compartilhado por varias disciplinas, deu lugar a uma proliferacao de abordagens diferentes e nem sempre facilmente conciliaveis. Todas elas contribuiram para gerar novos conhecimentos sobre o discurso. Conhecimentos que nao se referem unicamente aos aspectos formais do discurso, como sua estrutura e textura, ou como os tipos e generos, mas tambem aos recursos e estrategias atraves das quais sao construldas representagoes dos acontecimentos e da ordem social. E, em ultimo caso, conhecimentos sobre quais sao os efeitos sociais e politicos dos discursos e qual e o valor que socialmente se Ihes atribui (ordem social dos discursos). (Dentro da perspectiva da ACD, que examinamos aqui, da-se especial relevancia a esse ultimo aspecto). Para cobrir todos esses campos a interdisciplinaridade tomou-se um requisite obrigatorio5. Esse processo, atraves do qual o discurso se constituiu em objeto de um campo de saber, teve como corolario a defini9ao e tipiflcagao do discurso como tal objeto, a determina9ao dos objetivos da analise e a defmigao dos pro-
2 Nas palavras de Foucault "tache que consiste a en pas - a en plus trailer les discours comme des ensembles de signes (d1 elements significants renvoyants a des contenues ou a des representations) mais comme des practiques qui forment systematiquement les objects dont ils parlent. Certes, les discours sont fais des signes; mais ce qu'ils font, c'est plus que d'utiliser ces signes pour designer des choses. C'est plus, que les rend irreductibles a la langue et a la parole. C'est plus qu'il faut faire apparaltre e qu'il faut decrire" (L 'archeologie du savoir, p. 66-67).
4 Veja a afirma^ao de Fowler, Hodge, Trew e Kress, no prologo de seu livro inaugural Lenguaje y control: "acreditamos que o aparato (de analise de discurso apresentado no livro) e suflcientemente simples e coerente para ser aplicado por nao linguistas em uma linguistica critica de textos do tipo 'faca-o voce mesmo' que seja de seu interesse profissional ou pessoal" (1979: 5).
3 Para conhecer as atividades desse centre dependente da Uniao Europeia, visite o portal http://www.eumc.eu.int
5 Sobre a vinculacao entre o desenvolvimento desse campo, o giro linguistico e a reflexividade, e sobre as diferen^as entre as varias correntes da analise, pode-se consultar L. Martin Rojo (2001). "New developments in Discourse Analysis: discourse as social practice". Folia Linguistica.
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• O discurso como pratica textual. A contribuicao da linguistica estrutural norte-americana e, mais tarde, da lingiiistica de texto, foram essenciais para o desenvolvimento dessa concepgao do discurso como unidade linguis-
tica, superior a ora^ao, coesa e dotada de coerencia, construida a partir de determinados materiais linguisticos. Dar aten9ao a essas dimensoes do discurso pressupoe explicar as regras de produgao textual, a forma como o texto e tecido e como adquire sua textura: isto e, um estudo da organizapao darnformac.ao, da coerencia e da coesao textuais. No entanto, sua compreensao como pratica pressupoe tambem a existencia de um agente que nao so produz o texto, mas que tambem adota uma atitude favoravel ou desfavoravel com relacao aquele que o enuncia, e isso, por sua vez, pressupoe recuperar e desenvolver o estudo daquilo que se denominou modalidade ("e verdade que o Iraque tem armas de destruicao ern massa" em vez de "poderia ser Verdade que o Iraque tem armas de destruicao em massa"). • O discurso como pratica discursiva. A visao do discurso como pratica textual pode ser associada a um dos postulados centrais da linguistica contemporanea, em particular a linguistica funcional e a pragmatica: todo discurso se enquadra em uma situa9ao, em um tempo e espa9o determinados e, por esse motivo, o termo discurso nos refere tambem uma pratica discursiva que permite a realiza9ao de outras praticas sociais (julgar, classificar, informar). Essa compreensao do discurso explica a rela9ao que existe entre o texto e seu contexto. Pois, embora o discurso se adapte e se submeta a regula9ao da a?ao social e aos imperatives de um tempo e de um espa90 social determinados, simultaneamente, ele nao so estrutura a a9ao social e Ihe da significado, como produz e reproduz-mas tambem modifica - aqueles contextos sociais nos quais surge, assim como os atores sociais e suas redoes. Nesse caso, nos movimentamos no nivel meso, e isso nos faz dirigir a analise ao estudo da regula9ao da produ930 e da recep9ao do discurso dentro da situa9ao comunicativa, por exemplo, nos varies contextos institucionais:
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cedimentos e das tarefas do analista. A partir deste momento, nos concentraremos nesses aspectos, embora apenas do ponto de vista de uma das multiplas correntes que coexistem nesse campo. 2. A analise critica do discurso
Essa e uma das correntes mais ativas da Analise do Discurso que, como veremos a seguir, distingue-se sobretudo pela maneira como concebe a tarefa do analista e por levar em considera9ao as implica9oes da propria analise. Precisamente, o desejo de intervir na ordem discursiva pelo menos expandindo a consciencia critica dos falantes e de proporcionar-lhes ferramentas para a analise de discursos proprios e alheios 6 o que mais distingue essa corrente. A corrente adota uma visao tridimensional do discurso proposta qriginalmente por Fairclough e posteriormente desenvolvida e fundamentada (Martin Rojo, 2001)pratica social pratica discursiva pratica textual
Fonte: N. Fairclough (1992). Discourse and Social Change. Cambridge: Polity Press.
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Por essa razao, nao e possivel encontrar duas intera9oes identicas emummesmo contexto. Dessaposi9ao teorica, a passagem para o terceiro nivel e inevitavel; se continuarmos com o exemplo anterior, a assimetria nesses servi9os publicos nao so se explica pelp contexto institucional imediato, como tambem pelas estruturas e pela ordem social e pelo fato de que os recursos economicos, simbolicos e linguisticos sao administrados em fun9ao dessas mesmas estruturas e da ordem social.
entre as estruturas e as relates socials que, se por um lado configuram o discurso, por outro sao por ele influenciadas, consolidadas ou questionadas. Trata-se, portanto, de uma pratica social, com origeni e efeitos sociais, e com uma dimensao reprodutiva e outra construtiva, Se retornarmos o exemplo anterior da interacao nos servigos publicos, comprovaremos que quando o provedor do servi9o - geralmente um profissional que pertence a comunidade receptora que conhece o procedimento e o sisterna e que tem a capacidade de impedir o acesso de outros as prenogativas e aos servi9os - aumenta a assimetria nas relacoes com seu interlocutor, esta, alem disso, construindo uma representacao determinada da condicao de cidadania, da relagao entre o cidadao e as institui9oes, do trabalho do estado, das redoes interetnicas, entre outras. Como, por exemplo, um professor que, com sua maneira de dirigir-se a um aluno de origem estrangeira, corrigindo, por exemplo, sua pronuncia equatoriana, reproduz uma ideologia na qual a "integra9ao" se compreende como um processo de pura assimilacao, na qual os que se incorporam terao de mudar ate o ponto de nao mais se diferenciarem. A analise nesse caso deve ocupar-se da regulapao social da produpao, recepgao e circulagao dos discursos em funcao do contexto sociopolitico, o que pressupoe considerar quais sao as implicacoes sociais e politicas das ideologias e das representa9oes dos acontecimentos e dos atores sociais que emanam do discurso6. As varias dimensoes do discurso, como pratica social, como pratica discursiva e como pratica textual, nao podem,
• O discurso como pratica social. A partir da escola francesa de analise do discurso e, mais tarde, da chamada linguistica critica, foi dada uma enfase especial a terceira dimensao que hoje e incorporada a defmi9ao de discurso. Nesse caso, aponta-se para a rela9ao dialetica que existe
6 Van Dijk (1997) adota um conceito de discurso tambem tridimensional entendido como: a) uso lingiiistico; b) comunicacao de crencas (cogni9ao); c) inte^ao em uma situacao social. E atraves de (b) e (c) que o discurso e uma pratica social, com implicacoes sociais, concretamente atraves do desenvolvimento da cognicao social.
nos tribunals, em consultas medicas, nas salas de aula, etc. Nesse caso, o estudo tem como objetivo a sele9ao dos elementos linguisticos ou discursivos, como o registro, o dialeto social, o genero; e dos componentes comunicativos em t\in9ao da situa9ao comunicativa e de como essa se regula socialmente. Voltamo-nos tambem para a analise das dinamicas e da negocia9ao conversacional que os falantes realizam e procuramos descobrir em que medida eles produzem, reproduzem ou modiflcam esse contexto. Assim, por exemplo, como demonstrou a sociolinguistica interacional, as intera9oes nos senses sociais sao essencialmente assimetricas (pense, por exemplo, em uma consulta medica). Essa assimetria e ainda maior quando os que demandam os servi9os desconhecem o idioma veicular, os procedimentos norniais, os usos cotidianos, etc. No entanto, durante a intera9ao, essa assimetria pode aumentar ou diminuir, dependendo do uso emblematico que os interlocutores fazem dos recursos linguisticos (por exemplo, diminuira se o medico deixar que o paciente fale e se mostrar solidario).
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portanto, dissociar-se: os elementos linguisticos que aparecem em um discurso concrete, as palavras que o integram, o estilo ou o idioma a que pertencem, as vozes que neles sao evocadas, tudo isso contribuira para a realiza?ao de uma tarefa determinada, para atuar em sociedade e, ao mesmo tempo, para criarumarepresentacao especifica- e nao qualquer outra - dos acontecimentos. E essa representacao, por sua vez, reforcara ou questioriara, fara com que se tornem naturais ou pora em questao certas visoes dos acontecimentos e da ordem social e nao quaisquer outras, certas ideologias e nao outras, que poderao beneficiar ou prejudicar os interesses dos varies grupos, classes socials e generos. Os objetivos que a ACD estabelece para si mesma se originam dessa concepgao tridimensional do discurso. Tra-. ta-se de saber como e realizada essa construcao discursiva dos acontecimentos, das relapoes sociais e do proprio sujeito, a partir da analise dos aspectos lingiiisticos e do processo comunicativo em um tempo e lugar determinados. Paralelamente, trata-se de revelarquais sao as implicagoes sociais desse processo de construsao. Assim, os ja numerosos trabalhos de ACD estudaram o papel do discurso na transmissao persuasiva e na legitimacao de ideologias, valores e doutrinas - ideologias ou fragmentos de ideologias sexistas ou racistas; doutrinas a respeito daquilo que e "normal" ou "essential" no momento de defuiirum grupo social: assim aparecem e reaparecem afirmacoes enraizadas e prestigiadas que sao citadas e reelaboradas constantemente, do tipo "a essencia do feminino e a maternidade". Com isso empreendeu-se o estudo do papel desempenhado pelos discursos na manutengao e fortalecimento da ordem social, ou seja, na sobrevivencia do status quo — impedindo, por exemplo, que circulem ou sejam ouvidos em determinados contextos os discursos dissonantes da
maioria. Dessa forma, impede-se o acesso aos meios de comunicacao tanto dos grupos mmoritarios ou dissidentes como dos imigrantes, ou se impoem restrigoes discursivas para o acesso a determinados circulos e praticas sociais, como, por exemplo, quando a mera apresentagao de uma solicitacao exige, obrigatoriamente, o uso de determinados recursos linguisticos. Dessa perspectiva, estuda-se tambem o papel do discurso na sobrevivencia das desigualdades sociais - consolidando ou aumentando tais desigualdades - e na implementagao de estruturas e mecanismos de dominagao (procedimentos de exclusao social atraves do discurso). E, fmalmente, e talvez como uma elaboragao sofisticada dos anteriores, trata-se de anuir a construcao da identidade e de determinados modelos de subjetiva9ao ("eu" unitario, sem fissuras) atraves dos discursos (sujeitos divididos que se sabem excluidos ou que se autodisciplinam; ou individuos que sao apresentados como nao-sujeitos, privados de toda agenda, de toda vontade e poder de decisao). E, pior, vivemos em sociedades reflexivas, nas que os falantes observam e atuam com base em suas proprias praticas discursivas, e o fazem guiados pela certeza de que a produpao das ciencias sociais tambem foi baseada nessas praticas. Assim e que os falantes nao s6 controlam, de forma reflexiva, o que dizem e fazem, mas essa tarefa e tambem parte intrinseca daquilo que fazem e dizem. O fato de que os analistas do discurso sao politizados e tempresente a reflexividade social aumenta seu interesse pelos efeitos da investigacao e abre caminho para as tentativas de intervir nas praticas discursivas ou modifica-las, devido a esses efeitos. Isso e precisamente o que e propriamente caracteristico da ACD, o desejo de intervir na ordem social e discursiva, aumentando a reflexividade dos falantes, sua cons-
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Luiza Martin Rojo ciencia das repercussoes do uso linguistico, e dando-lhes as ferramentas necessarias para analisar e modificar seus usos, criando, alem disso, atraves das analises, a possibilidade de que surjam visoes e representagoes alternativas dos acontecimentos. E o mesmo se da comrelagao aos desenvolvimentos teoricos, ja que a considera^ao dos efeitos que os discursos possam ter contribui para uma compreensao especifica da relagao entre discurso, poder, saber e o desenvolvimento de urn conjunto de objetivos e ferramentas de analise7. A partir desses objetivos esbo
7 Para uma introducao sobre os fundamentos teoricos dessa corrente, veja o esplendido livro de Chouliaraki, L. & Fairclough, N. (1999). Discourse in Late Modernity -Rethinking Critical Discourse Analysis. Edinburgh, Edinburgh University Press. E para os aspectos aqui considerados, veja tambem L. Martin Rojo (2001). "New developments in Discourse Analysis: discourse as social practice". Folia Lingitistica.
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Com relagao a analise dessa constni9ao discursiva das e das representa9oes sociais, os analistas ate o momento concentraram-se na: a) Constni9ao de representagoes dos atores sociais: para seu estudo sao analisados, antes de tudo, as formas de designagao, os atributos e a9oes que Ihe sao atribuidos; assim como aprodu9ao de dinamicas de oposicao e polarizagao entre os grupos sociais ("nos" ante "eles"). b) A representa9ao dos processes e, em particular, a quern se atribui a responsabilidade por eles e sobre quern sao projetadas suas consequencias (por exemplo denominar um processo de "crise" em vez de "guerra"; ou "guerra" em vez de "invasao"). Para o estudo desses aspectos tern especial relevancia a maneira como sao administrados os papeis semanticos, especialmente a que participantes se atribui a responsabilidade sobre as 39068, positivas e negativas ou a agenda (por exemplo: "Os EUA causam milhares de vitimas"). c) A recontextualizagao das praticas sociais em termos de outras praticas (por exemplo a representagao da guerra seguindo os principios e restri9oes da praticajornalistica, com limitagoes de acesso ao campo de batalha e dependendo das partes militares). d) A argumenta9ao posta emjogo para persuadir a popula9ao da veracidade ou da pertinencia de uma determinada representa9ao e para justificar 39068 e comportamentos (por exemplo, invocando a razao de estado). e) A projegao das atitudes dos falantes para com o enunciado, incluindo nao somente seus pontos de vista, mas tambem se eles expressam sua posi9ao de forma moderada ou intensa. f) A Legitima9ao e deslegitimagao das representa9oes discursivas dos acontecimentos, dos atores sociais, das relagoes sociais e do proprio discurso (por exemplo, deslegitimando a consideragao de uma guerra como injusta, apresentando essa posigao como oportunista). 219
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Como assinala Ruth Wodak (2000), cada uma dessas acoes discursivas e acompanhada por distintas estrategias discursivas (compreendendo estrategia como um piano de agao, mais ou menos intentional, que e adotado com um fim) . O inventario, se seguirmos o esquema interior, incluiria: D
a) Estrategias de referenda e nominacao (por meio de recursos de categorizacao, inclusive metaforas e metonimias); b) Estrategias predicativas (atraves da atribuicao estereotipada e valorativa de caracteristicas positivas e negativas, de foraia explicita ou implicita); c) Estrategias de argumentacao e fontes de topoi que justifiquem as arribuicoes realizadas; d) A perspectiva ou enquadramento e as representa9oes discursivas (por meio do envolvimento do falante no discurso); e) Estrategias de intensifica9ao e atenuacao; f) Estrategias de Iegitima9ao das agoes e dos proprios discursos. 3) Para o estudo da ordem do discurso e precise ter em mente que o poder e a autoridade de quem produz os discursos se projetam sobre os demais e provocam a desigualdade entre os interlocutores9. Assim, e possivel des8 Para uma exposi9ao mais detalhada, podem consultar R. Wodak (2000). "<,A sociolinguistica necesita una teoria social? Nuevas perspectivas en el Analisis Critico del Discurso. In: Discursoy Sociedade 2, p. 123-147. Embora sem considerar as estrategias de legitimagao, sao incluidas referencias sobre essas ultimas mais a frente. 9 Sobre esse conceito da ordem social do discurso, podem consultar L. Martin Rojo (1997). "El orden social de los discursos". Discurso, 21/22, p. 1-37. Ou entao voltar a origem desse conceito em Foucault, M. (1971). L'ordreduDiscourse, Paris: Gallimard. 220
cobrir uma "ordem .social dos discursos" que se baseia, por conseguinte, em um principio de desigualdade. Isso explica por que, ao lado de discursos autorizados, encontramos discursos desautorizados\ diante de discursos legitimados, discursos deslegitimados; diante de discursos dominantes ou majoritdrios, discursos minoritarios. Mas, alem disso, e como consequencia do poder gerador de saber que os discursos tern, os conflitos de interesse entre os varies grupos sociais se projetam tambem sobre a ordem discursiva. Os varios grupos competem entre si para intervir na produ9ao, recepcao e circulacao dos discursos, com o fim de molda-los para que sirvam a seus proprios interesses. Essa competi9ao converte a area discursiva em um ambito de luta (sites of struggle) para controlar, ou ate mesmo apropriar-se desse capital simbolico, ja que, como observamos anteriormente, as praticas discursivas contribuem para esrrururar, exercer e reificar as rela9oes de domina9ao e subordina9ao entre grupos e classes sociais e entre os generos. A regulapao da produ9ao, recep9ao e circula9ao dos discursos estabelece, por conseguinte, que tipo de discursos podem ser produzidos em que contextos; quais as caracteristicas que fazem com que eles sejam apropriados; e quais os desqualificam ou os impedem de circular. Essa regula9ao articula-se sobre os seguintes eixos: A) A produ9ao dos discursos e controlada todas as vezes que os grupos que tern a autoridade necessaria para isso conseguem impor o uso de determinados idiomas, dialetos, registros e usos retoricos e linguisticos, aos quais nem todos os grupos sociais tern acesso. Como observa Bourdieu, em sua descri9ao do mercado linguistico, o fato de que, em determinados contextos, sejam exigidos determinados usos, restringe e dificulta o acesso desses grupos e individuos a contextos socialmente relevantes como, por exemplo, a escola, os meios de comunica9ao, o dialo221
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go com as instituicoes, etc. Um exemplo claro disso e o Regulamento para a aplica^ao da Lei de Asilo. 1) A solicitac.ao sera formalizada atraves do preenchimento e assinatura do formulario correspondente pelo solicitante que devera expor de forma detalhada os fatos, dados e alegacoes em que fundamenta sua pretensao. Junto com a solicita9ao devera incluir uma fotocopia de seu passaporte ou documento de viagem e esse tera que ser entregue se a solicitacao for admitida para expedi^ao, assim como quantos documentos de identidade pessoal ou de outra indole que Ihe pare9am pertinentes em apoio a solicita9ao. Se o solicitante nao trouxer nenhum tipo de documentacao pessoal devera justificar a causa dessa omissao. Esse preenchimento, que e realizado no comissariado e em um idioma que Ihe e estranho, cria problemas como se observa no fragmento 2. 2) Nao utilizar o formulario oficial para expressar os motivos da petigao ja que o espaco e insuficiente e embora seja possivel acrescentar mais folhas, o primeiro impulso do solicitante e se limitar ao espa?o previsto e abreviar excessivamente (Diez de Aguilar, 1995:562).
lenciados. E, se por acaso isso nao ocorre, as reacoes sao imediatas, como vemos no exemplo a seguir: 3) Permitam-me que Ihes diga mais coisas sobre aqueles que favorecem ou nao um clima propicio a xenofobia. Incomoda-me muitissimo que uma pessoa na ilegalidade desrespeite a legislacao de meu pais, porque isso ja e o fim. Aqui se pode estar falando de falta de liberdade e, ao mesmo tempo, um imigrante ilegal, que esta ilegalmente na Espanha, pode aparecer em qualquer meio de comunica?ao exigindo que se mude a Lei de Imigra9ao ou que se modifique qualquer lei, alem de desrespeita-la (Didrio das Sessoes do Parlamento 9/12/1995; Intervencao do Ministro Socialista Jose Luis Corcuera). C) O controle do poder dos discursos ocorre atraves da neutralizacao do mesmo, seja deslegitimando a fonte que os produziu (questionando sua autoridade e legitimidade, por exemplo), seja deslegitimando as representagoes e ideologias que sao transmitidas atraves deles (questionando sua veracidade e objetividade, por exemplo), seja deslegitimando a forma e a adequabilidade dos discursos (apresentando-os como vulgares e inapropriados).
B) A circulacao dos discursos e controlada todas as vezes que alguns grupos sociais tenham meios para permitir ou para limitar a circulagao de determinados discursos. Assim, se observarmos o que ocorre nos meios de comunica?ao ou em outros contextos socialmente relevantes, como o Congresso, comprovaremos que neles sao reproduzidos os discursos que sejam dominantes, autorizados ou legitimados. Isso permite que esses discursos estejam na origem de outros atos enunciativos que os retomam e transformam (intertextualidade). Enquanto isso, os discursos que se distanciam dos discursos hegemonicos sao si-
3. A pratica da analise A partir deste momento, poremos em pratica a tecnica e as ferramentas de analise introduzidas. Para isso, examinaremos alguns discursos sobre a imigra9ao, cuja analise foi realizada em detalhe no decorrer dos ultimos oito anos. Foi precisamente esse trabalho previo que nos permitiu identificar as duas posi9oes fundamentais que articulam a maioria dos discursos sobre imigra9ao produzidos hoje na Espanha. Essas posi9oes se reproduzem com frequencia nos meios de comunicacao, nas assembleias municipals e estatais, nos discursos produzidos pe-
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las ONGs e pelos movimentos sociais, mas tambem nos discursos cotidianos10. • Assim, alguns setores de nossa sociedade parecem considerar a imigragao como um "problema" de ambito policial e juridico, que, portanto, exigiria solugoes policiais, leis restritivas e politicas de controle. Tampouco poderia ser tratado de forma independente, sendo determinado pelos tratados protecionistas da UE. Nesse caso, os discursos se concentram no fenomeno da chegada e de como controla-la. • Outra posigao, ainda incipiente, situa o fenomeno em uma moldura sociopolitica, ou seja, na moldura da politica e da coexistencia interna que exigem o desafio da implementagao de politicas sociais e educativas integradoras. Nesse caso, os discursos voltam-se mais para a convivencia e para as politicas de integragao.
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Dadas as tres dimensoes do discurso (social, discursiva e textual) a que nos referimos acima, a opgao por uma ou por outra das posicoes costuma implicar a selegao correlativa de detenninados recursos lingiiisticos e estrategias discursivas extraidas do repertorio que os falantes tern a sua disposicao (seja no lexico, em particular nas formas de designagao, na gestao dos papeis semanticos e nas construgoes semanticas e sintaticas). Como nao nos e possivel examinar todos esses elementos ern-detalhe, pois isso ocu-
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10 Identifiquei esses dois tipos de discurso em Martin Rojo (2000a) e Martin Rojo (2000b). Outros trabalhos que apresentam uma diferen^a semelhante sao, no Parlamento, M. Ribas BisBall (2000). Discurs parlamentari i representacions socials. Tese de doutorado. Universidade de Barcelona. E, no prelo, M. Rodrigo Alsina e M, Martinez Nicolas (1997). "Minories etniques i premsa europea d'elit". Analisi 20. No entanto, e preciso assinalar que nos dois ultimos anos os discursos sobre imigracao estao mudando muito. Pode-se consultar Banon (2001) para ver as configuracoes dominantes atualmente.
paria muito mais espago do que o que temos a nosso dispor, nos concentraremos apenas ern alguns deles: aqueles que denominamos de a) estrategias de referencia e nomeagao; b) estrategias predicativas; c) estrategias de argumentagao; d) estrategias de legitimagao das agoes e dos proprios discursos.
3,1. Estrategias de referenda e nomeagao: palavras que unem e palavras que separam Nos, os seres humanos, organizamos a percepgao do mundo que nos rodeia por meio de categorias. E todos nos podemos ser classificados segundo uma ou outra dessas categorias por meio de nomes. Assim, por exemplo, alguem pode ser ao mesmo tempo taxista, turolense (nascido em Teruel), atleta e doador de sangue. Apesar disso, nem o significado denotativo, nem as conotagoes - associagoes de ideias - que trazem consigo um ou outro desses nomes, uma ou outra dessas classes, sao iguais. Com efeito, quando estudamos os nomes com que sao designados os imigrantes nos discursos produzidos no parlamento e nos meios de comunicagao, observamos que deles emana uma linha de demarcagao que separa um "nos" (o endogrupo ou grupo de dentro) de "eles" (o exogrupo ou grupo de fora). No entanto, embora essa separagao ou fronteira aparega de forma insistente, os termos que contribuem para evoca-la possuem conotagoes distintas. Ao mesmo tempo, embora com menor intensidade, comega a difundir-se o uso de terrnos que a questionam, potencializando a percepgao das semelhangas11. 11 Uma obra essencial para estudar a forma de representa9ao dos atores sociais no discurso e o artigo de T. van Leeuwen (1996) "The representation of social actors". ln\ Caldas-Coulthard, R. & Coulthard, M. Texts and Practices. Readings in Critical Discourse Analysis. Londres, Routledge.
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3.1.1. Formas de designa^oo do "eles" Formas que separam * O nome "imigrante"-Essa fonna de designa^ao que comecou a ser utilizada no inicio da decada de 1990 e que hoj e se generalizou e cristalizou nao categoriza as pessoas em virtude de sua ocupacao (trabalhador), nem de sua origem etnica ou geografica (magrebino), nem de sua condi9ao humana (pessoa) nem de sua situa9ao socioeconomica (pessoa sem meios economicos), nem de sua condi9ao politica (refugiado, cidadao), nem tampouco por ter abandonado seu lugar de origem (emigrante), e sim o faz em funcao do fato de essa pessoa ter vindo - ou ter tentado - instalar-se em "nosso" pais. Certamente, como mostrou Jose Porto les (1997), se compararmos os dois termos emigrante/imigrante comprovaremos que implicam a adofao de pontos de vista diferentes a respeito de pessoas que se deslocam ("nos" somos emigrantes, os "outros" sao imigrantes)12. Enquanto que o primeiro permite identificar-se e solidarizar-se com aquele que emigra, o segundo apresenta a pessoa como alguem que irrompe em um territorio que nao so e alheio a ele, como tambem e o nosso. Alem disso, tanto nos meios de comunica9ao como na fala cotidiana, o uso desse termo para designar a todos aqueles que se deslocam para ir a Uniao Europeia (o que mostra que ja ha uma consciencia europeia) ja se generalizou: "Imigrantes romenos chegam as costas italianas". Alem disso, o termo costuma ser combinado com adjetivos que aumentam suas conota96es negativas, tais como "ilegal" (assim, enquanto que se presume que o emigrante seja trabalhador e honrado, o mesmo nao ocorre com o imigrante).
12 Para as conota9oes desses termos, consultem J. Portoles (1997). "Nombres, adjetivos y xenofobia". Discurso, 21/22, p. 133-151.
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• O nome "estrangeiro" tarnbem empregado com frequencia marca a fronteira, a separa?ao e a diferen9a entre "nos" e "eles" a partir do momento em que se aponta para a origem diferente. O mesmo papel e desempenhado pelos gentilicos que, alera do mais, especificam a origem estranha. Alem disso, se observarmos os usos cotidianos e os dos meios de comunica9ao, veremos que tanto "imigrante" quanto "estrangeiro" sao utilizados hoje de forma restritiva para referir-se, quase sempre, a pessoas sem meios economicos e provenientes de paises pobres. Formas que unem Entre as formas de designa9ap que dimumem a separa930 entre "nos" e "eles" estao: • O nome "pessoa" com o qual se apaga a fronteira entre o endogrupo e o exogrupo. E, realmente, sua presen9a desempenha um papel essencial na argumenta9ao nos discursos politicos que exigem uma politica mais solidaria, de apoio e de direitos, e nao de controles policiais e expulsoes: (4) Senhor Ministro, estamos diante de uma situa?ao-limite, insustentavel e indigna. Limite porque na semana passada houve sete mortos e 18 desaparecidos nas aguas do Estreito, dado que totaliza ja 200 mortos em nove anos por naufragios de embarca9oes. Por trds desses dados existem rostos, ha nomes e sobrenomes, embora nunca vamos chegar a conhece-los na Espanha, mas nao estamos falando de pessoas sem rosto e sim de pessoas que morreram por tentar, simplesmente, chegar a outro pais. Uma situa9ao insustentavel pelas proprias condi9oes de vida dos acampamentos de Calamocarro e Granja, de Ceuta e Melilla, nos quais estao amontoados, em condi9oes deploraveis, vivendo simplesmente como animais, e uma situa9ao indigna pelas proprias condi9oes de vida e de trabalho dos que conseguem chegar, enfrentando mil dificuldades e arriscando sua vida, a Peninsu-
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Luiza Martin Rojo la. For conseguinte, queremos declarar que nao estamos dispostos a conviver com essa realidade, que nos rebela• mos diante dela [...] (Meyer Pleite, porta-voz de IU-IC, 24-09-1997).
• For ultimo, o nome "cidadao" e nao so inclusive como tambem integrador, ja que confere as pessoas que passaram a viver na Espanha a condifao de cidadaos e, portanto, merecedores dos mesmos direitos. No entanto, na linha predominante, que e a de assinalar as diferencas, come9aram a usar o sintagma "novos cidadaos" para se referir aqueles que, apesar de terem os papeis de residencia regulamentados, ou ate mesmo a nacionalidade, continuam sendo vistos como diferentes ou como cidadaos sem plenos direitos. Nesse caso o adjetivo "novo" e o que uma vez mais acentua a diferen9a. 4.2. Estrategias predicativas e as imagens simplificadoras de "eles"
Nesta segao estudamos a atribui9ao estereotipada e valorativa de tra9os positives e negatives, atraves da imputa9ao de atributos (adjetivos) e de a9oes (descri9ao das e atribui9ao de papeis semanticos). 4.2. 1. Co-apari$des textuais
mais se enfatiza no momento-de designar o exogrupo e a origem etnica ou geografica. O uso do gentilico (seja como adjetivo: "um imigrante marroquino"; ou como nome: "um marroquino") indica que, de todas as caracteristicas que possui uma pessoa, a mais importante e o fato de ela ter uma origem determinada (no exemplo, o fato de ser marroquino ou alemao). Dessa forma, o termo destaca a imagem estereotipica que se tenha desse grupo. Essas imagens costumam ser simplificadoras e dependem de um conjunto de caracteristicas que supostamente definiriam a categoria e seriam atribuidas a todos os membros do grupo. Assim, por exemplo, se existe uma imagem estereotipica dos marroquinos, segundo a qual a todos eles, sem distin930, sao atribuidas algumas caracteristicas deterrninadas, o uso do gentilico trara a tona os preconceitos que ele inclua, que serao acrescentados as conota9oes ja negativas do termo "imigrante". O uso dos gentilicos contribui ainda mais para criar uma imagem negativa, quando evoca preconceitos etnicos. Considerem as diferen9as, assinaladas por Portoles (1997), que podem ser observadas no seguinte exemplo: (5) a. E um alemao. Temos que expulsa-lo da Espanha. b. E um bombeiro alemao. Temos que expulsa-lo da Espanha. c. 6 um bombeiro. Temos que expulsa-lo da Espanha.
. Se observarmos quais sao os termos que com maior frequencia acompanham as designa9oes anteriores, se ira configurando, com a maior nitidez, qual e a representa9ao dominante desse coletivo. Nesse caso, nos limitaremos a simultaneidade dentro de um mesmo sintagma (denominada co-apari9ao ou "coloca9ao"). a) Lugar de origem: africanos: o estudo das colocacoes textuais nos discursos parlamentares, da imprensa e da fala cotidiana mostra como uma das caracteristicas que
Mesmo que nos tres exemplos estivessemos referindo-nos a mesma pessoa, seria bem mais facil encontrar alguem que concordasse com (5 a), teriamos muita dificuldade em encontrar alguem que concordasse com (5 b) e mais diflculdade ainda no caso de (5 c). Com efeito, o estudo dos discursos produzidos pelos meios de comunica9ao, dos discursos politicos e dos de uso cotidiano, mostra que os gentilicos praticamente so sao utilizados no caso de cidadaos de origem africana, ma-
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grebinos e subsaariarios: "imigrante subsaariano", "pessoas argelinas", "pessoas subsaarianas" (em espanhol, vemos um uso muito estranho do termo pessoas, que raramente e utilizado seguido de um adjetivo). Esse fato deixa claro como existe uma imagem estereotipada do "imigrante" na Espanha. Magrebinos e subsaarianos (designasao que foi cunhada recentemente e para referir-se a questoes migratorias) parecem encarnar o prot6tipo do imigrante, imagem que simplesmente nao corresponde as estatisticas ja que o numero de pessoas de origem europeia e latino-americana que vem para a Espanha e muito maior que os de origem africana. Como ja foi observado inumeras vezes pelo coletivo IOE, na Espanha ha uma tendencia a exagerar o numero dos estrangeiros nap europeus, ao mesmo tempo em que se minimiza o dos europeus, que, alias, no caso dos cidadaos de paises da UE, nao sao considerados, nem legal nem popularmente, imigrantes. b) Situaqao policial ejuridica: ilegais: Em consonancia com o tratamento ainda predominante da imigragao como sendo um "problema" policial-judicial, temos observado que os meios de comunica?ao e os discursos parlamentares focalizam, quase que de forma exclusiva, as pessoas que ainda nao regularizaram sua situagao, as quais se costuma chamar de "ilegais". As criticas ao uso desse termo sao cada vez mais frequentes na Espanha, tanto pelo deslocamento semantico que envolve (so as 39068 podem ser "ilegais", nao as pessoas), como por sua contribuipao para a criminalizacao dos imigrantes. Apesar disso, nao foram impostos uses alternatives - tais como *'sem documentos" ou "nao regularizados" - nem a imprensa, nem ao Parlamento espanhol. Segundo Ribas (2000) isso nao ocorre no Parlamento da Catalunha; e mesmo no ambito espanhol, alguns meios de comunicapao ja comecam a substituir o termo "ilegais" pelo termo "irregulares" ou "sem documentos".
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Em alguns casos, documentamos o uso do termo "ilegais" (osjlegais) ate mesmo como substantive, recategorizagao que aumenta as conotacoes negativas do termo (o individuo riao aparece como "ilegal" por ser "imigrante" e sim em todas as dimensoes de sua pessoa). c) Quantificaqao: uma multiddo: a quantificacao e um aspecto relevante na apresentacao dos imigrantes. Nesse sentido, encontramos frequentemente uma quantifica930 generica e ate mesmo ambigua e hiperbolica, que produz um efeito de multidao: "podemos ter entre 550.000 a 600.000 imigrantes legais". Para esse compute hiperbolico contribuem tambem as metaforas de uso comum e que exageram o numero de pessoas que chegam a nbsso pais, ao associar sua presen^a a catastrofes naturais e a massas de agua incontrolaveis como "grande onda", "aluvioes", "mare", "inunda9ao humana". Cria-se assimum nucleo figurativo que revela e estrutura a compreensao e a representacao global do fenomeno em termos de como flui a agua e evocando, ao mesmo tempo, uma imagem de ameaca, diante da qual sera precise se defender, tanto pelas dimensoes do fenomeno quanta pela falta de controle e o caos que evocam (trata-se de urn mecanismo de objetifica930 que intervem na constni9ao de uma representa9ao). Muitas vezes, na imprensa e no Parlamento, os imigrantes sao "numeralizados", ou seja, em noticias e discursos passam a nao ser nada mais que numeros, nesse caso quotas: "S6 a provincia de Almeria reclama de 7.000 a 10.000..." Esses exemplos mostram uma tendencia a despersonaliza9ao e a abstra9ao, frequente sobretudo nos discursos govemamentais, que assim apresentam 39068 que afetam miIhares de pessoas como procedimentos administrativos ou burocraticos, e, portanto, assepticos, e de acordo com a legislacao, sem a implica9ao de violencia.
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For tudo o que vimos acima, podemos concluir que a selegao/categorizagao lexica e as colocagoes textuais mostram que, especialmente nos discursos goveraamentais, mas em menor medida tambem nos dos parlamentares e nos meios de comunicagao, focaliza-se a atengao em apenas alguns aspectos dos imigrantes - tais como sua condigao de estrangeiros e de diferentes - e se os apresenta como um numero elevado de africanos, principalmente, nao integrados e nao regularizados ("ilegais"). Essa tendencia se documenta tambem com relativa freqiiencia nos discursos cotidianos, sobre os quais, obviamente, os discursos autorizados e legitimados exercem uma influencia extraordinaria, convertendo-se, portanto, em um discurso hegemonico. Em contrapartida, nao se costuma dar atengao aos motives economicos e politicos que obrigaram essas pessoas a emigrar. For outro lado, homogeneiza-se o coletivo e se simplifica e fere sua imagem. Dessa maneira e mais dificil que as pessoas do pais de acolhida se identifiquem com elas. Ao contrario, produz-se um distanciamento entre "eles" e "nos" que facilmente pode transformar-se em repudio. 4.2.2. Representagao dos atores socials atraves de suas agoes
Existem outros procedimentos lingiiisticos que tambem podem contribuir para criar unia imagem negativa ou positiva dos atores sociais: a atribuigao de determinadas agoes e a descrigao que delas se faz. Nesse caso, foram assinaladas pelos analistas criticos tanto a selegao lexica para descrever as agoes como a gestao diferente da agencia, no momento de atribuir a responsabilidade sobre essas acoes: por exemplo, destacam a maneira como uma pessoa ou um grupo de pessoas realizaram determinadas agoes e nao destacam ou ate esquecem de mencionar sua participagao em outras. 232
Com respeito a gestao dos papeis semanticos e, concretamente, a agencia, e precise assinalar que, senipre que temos um processo, teremos varios pafticipantes desempenhando um papel ein sua realizacao. Se-o processo consiste em uma agao realizada por um participante e que afeta outro/a participante, aquele/a que realiza deliberadamente a agao e, portanto, e responsavel por ela, e o/a AGENTE, e o/a outro/a participante que e afetado/a ou modificado/a pela agao e o/a PACIENTE. Quando falamos, podemos ressaltar a responsabilidade de um/a participante pela agao (indicando, assim, que ele/ela e o/a agente da agao) ou, ao contrario, atenuar, ou ate mesmo ignorar essa responsabilidade. A questao tern relevancia especial na construgao discursiva da imagem, ja que as agoes podem ser consideradas socialmente negativas ("matar", "roubar", "golpear", etc.) ou positivas ("trabalhar", "integrar"). De maneira que, se, no caso de se tratar de uma agao considerada negativa, indicamos com clareza quern e o/a agente dessa agao, isso repercutira negativamente sobre a imagem que se tern desse/a participante (por exemplo, "o exercito aliado assassina mulheres e criangas indefesas") enquanto que, se atenuarmos essa responsabilidade ("alguns atribuiram o assassinato de mulheres e de criangas indefesas ao exercito aliado") ou a eliminamos por completo ("unia nova matanga de mulheres e criangas indefesas foi perpetrada ontem na regiao X"), a imagem desse/a participante nao se ressentira da mesma maneira13. O estudo da apresentagao que os meios de comwiicagao fazem dos imigrantes nos mostrou que, com freqiien13 Pensemos em uma fotografia de uma prisao e comprovemos como o discurso permite que se focalize o olhar. Qual seria sua descricao daquilo que esta ocorrendo?: A policia (AGENTE) deteve os imigrantes (PACIENTE), Os imigrantes (PACIENTES) foram detidos, Detidos os imigrantes (PACIENTE) ou Deten?ao de imigrantes (PACIENTE) na costa.
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cia, enfatiza-se sua responsabilidade nas agoes'negativas, assinalando a origem etnica diferente, como se isso se tratasse de urn detalhe relevante ou ate mesmo explicativo daquela atuagao. Nesse caso, encontramos estruturas sintaticas ativas, nas quais'os imigrantes desempenham o papel de agente: "Magrebino assalta..."; "Bando deperuanos roubava..." Nesta segao estudamos como se constroi uma representacao dos imigrantes a partir das acoes que Ihes sao atribuidas na interagao e do papel que a eles se atribui. Dividimos essa segao em duas partes, a fun de observar se essa estrategia discursiva e utilizada de maneira diferente nas representagoes do exogrupo e do endogrupo. No que se refere a populacao de origem estrangeira, destacam-se as seguintes tendencias: 1) Em primeiro lugar, a tendencia de apresentar os "imigrantes" como agentes de processes avaliados negativamente, seja de acoes violentas e reprovaveis, que os criminalizaria, seja de acoes que se apresentam como ameagas a comunidade, tais como sua mudanga para a peninsula. Certamente, este ultimo caso e o mais freqiiente. Quando, na Espanha, fala-se de imigragao, os discursos costumam focalizar aquelas pessoas que acabam de chegar. Nesse caso se confere aos imigrantes o papel de agentes de verbos de movimento, especialmente de "chegar", "irromper", "vir" e sobretudo "sair" que, uma vez mais, evocam a diferenga entre nosso territorio e o territorio "deles". Isso reduz a questao da imigragao ao ambito de chegada, o que favorece uma visao policial e juridica, associada ao controle das "chegadas" e afasta-se a questao de medidas de integragao e de convivencia, Essa tendencia a assinalar a responsabilidade dos imigrantes em atos violentos, atraves de expressoes como "resistir", "causar lesoes com navalha em policiais", "cau-
So lendo o texto da reportagem descobriremos que a pessoa que evitou o rapto (agao positiva) era da mesma nacionalidade dos seqiiestradores, ou seja, marroquino. Portanto, fica claro que a origem etnica pode ser esquecida no caso das acoes positivas e enfatizadas no caso das agoes negativas, o que contribui muito eficazmente para reforcar a imagem negativa "deles". A isso podemos acrescentar o fato de que sao raras as vezes em que se menciona as condigoes de vida dos imigrantes, sua marginalizagao e exploragao, enquanto que, pelo contrario, sao ressaltadas sua vinculagao com delitos, com violencia ou transgressoes da lei. As vezes essa associagao e feita de maneira sutil, como nas seguintes manchetes, onde nao encontramos estruturas sintaticas transitivas que atribuam aos colombianos o papel de agente, mas que, apesar disso, os associam ao delito: "Uma ordem da Policia coloca sob suspeita 157.000 imigrantes da Colombia e do Equador" (El Pais, 25/10/ 2001); "Detidos 5 colombianos em Lanzarote apos o assassinate de um marroquino" (El Mundo, 02/12/2002); "De-
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sar lesoes em si proprio" e frequentemente reforgada nos discursos dos representantes do governo e instituicoes, como o diretor geral da Policia nas suas visitas ao Parlamento espanhol. 0 uso dessas expressoes contribui para criar uma imagem dos imigrantes como pessoas "violentas" e "agressivas" e, por conseguinte, os faz responsaveis ultimos pelas agoes repressivas que se fariam necessarias para neutraliza-los. A indicacao da agencia costuma vir acompanhada da precisao da origem etnica (cujos valores ja comentamos) como vemos no exemplo a seguir: (6) Tres marroquinos tentaram sequestrar a camareira de um bar para abusar dela. Um companheiro da jovem conseguiu reter os individuos at6 que a polioia de Cartagena os prendesse (La Verdad de Murcia, 6/9/1995).
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sarticulado um bando colombiano especializado no roubo de chales" (El Mundo, 30/01/2002). Nestes casos, a sele^ao lexica reforca a apresenta9ao dessas acoes como violentas. O mesmo ocorre, por exemplo, na primeira convoca9ao ao Parlamento do Ministro do Interior Mayor Oreja, devido a polemica expulsao de 103 imigrantes. Em seu discurso, o ministro descreve as a9oes dos imigrantes com termos negatives que evocam a violencia, tais como "desordem publica", "incendio", "violento", "destmi9ao", "altera9ao da ordem publica", "atitude amea9adora", "armados com pedras, paus e garrafas", "maxima gravidade", etc. Ou seja, o estilo lexico do texto refor93 a opiniao do ministro de que os imigrantes eram violentos e pressupunham uma amea9a para outras pessoas, nesse caso, NOS, na tentativa de justificar a agao do governor (7) O Ministro do Interior, diante desses graves aconte. cimentos que punham em grave risco a ordem publica e pressupunham uma grave altera9ao da seguran9a dos cidadaos, tinha a obrigacao inevitavel de proceder, em nossa opiniao, a expulsao ou devolusao dos imigrantes ilegais (Diario de Sesiones del Parlamento, 29/07/1996; p. 848; convoca9ao ao Parlamento do Ministro conservador Jaime Mayor Oreja).
Tambem sao minoritarios, no Parlamento e nos meios de comunica9ao, os discursos em que se atribui a esse coletivo o papel de agente de a96es que ressaltam sua determina9ao e vontade de escapar de uma situa9ao de pobreza, e seu valor ao "ultrapassar mil dificuldades" e "arriscar sua vida" (esse e o caso de Meyer Pleite, porta-voz da IU e Iniciativa pela Catalunha). 2) A segunda tendencia que observamos e a utiliza9ao da forma passiva. O tratamento da agencia nao costuma ser o mesmo quando, nos meios de comunica9ao e no Parlamento, faz-se referenda as atua9oes da administra9ao, da policia ou dos cidadaos espanhois: se essas atua9oes fo236
'rem negativas ou polemicas, tende-se a eliminar a responsabilidade dos agentes que pertencem a "nos". A eliminapao desses agentes e realizada atraves da Utiliza9ao de estruturas sintaticas tais como as ora9oes passivas, as passivas reflexivas, as substantiva9oes3 etc.: (8) Expulsos 32 imigrantes que entraram em bando pela fronteira de Melilla (El Pats, 11/08/1998).
Essa manchete nao nos permite saber nem quern foi responsavel pela expulsao (a administra9ao, a policia, o exercito, etc.) dos 32 imigrantes nem de que maneira isso foi realizado. Com isso, os imigrantes sao apresentados como sujeitos passives das a9oes dos outros. Essa tendencia predominanos discursos das autoridades governamentais, especialmente quando se trata de a9oes negativas, policiais (o que dilui a responsabilidade das autoridades em acoes coercivas ou de expulsao): os imigrantes "foram detidos", "foram instalados em dependencias", "foram levados para o Centre de Interna9ao". Essa manipula9ao dos papeis semanticos costuma vir associada com a sele9ao lexica. Assim, nos discursos governamentais estudados, sobretudo naqueles pronunciados no Parlamento espanhol pelo entao Ministro do Interior Mayor Oreja, prevalece a tendencia de descrever as 39068 oficiais com termos neutros, formais, positives ou legitimadores e recorrendo a palavras que sao caracteristicas dos registros burocraticos, legais ou medicos: "procede-se a comprova9ao da sirua9ao", "cumprir tramites", "garantir a seguran^a dos cidadaos", "inevitavel obriga930 de proceder", "cumprimento da lei", "respeitar a lei", alem de descri9oes de diversas 39668 legais: "expedir os processes judiciais", "assistencia letrada", etc. Assim, quando se fazmen9ao de medidas coercivas, as descri9oes nao envolvem o emprego da violencia, como e o caso de "devolu9ao", "ingressar", "distribuir", "trasladar" ou "sub237
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ministrar". Todas essas a9pes sao consideradas como "metodos (ou procedimentos) habituais"14. (9) A seguir, procedeu-se ao cumprimento das negocia9oes posteriores para a expulsao e, em seu caso, devolu530, do territorio nacional daqueles, na aplica^ao da Lei de Imigrafao vigente e da regulamenta9ao que a desenvolve [...] (Diario de Sesiones del Parlamentoy 29/077 1996, p. 848; convocacao ao Parlamento do Ministro conservador Jaime Mayor Oreja).
Tanto a burocratiza9ao do discurso e o uso de um jargao autorizado contribuem para as estrategias de legitimagao que incidem na legalidade, corre^ao nas atuafoes, autorizagao e normalidade. Essa tendencia a apresentar os imigrantes como seres passives aparece tambem com freqiiencia nos discursos govemamentais, quando se trata de agoes positivas ou de integragao (Ministro do Trabalho): "ajudados", "atendidos", "expulsos", "enviados" etc.; algo muito semelhante ocorre com as acoes negativas das mafias, de quern o govemo vai proteger a popuia9§o. O carater de passividade do sujeito se realiza atraves de construfoes sintaticas passivas, ou atraves de substantiva9oes, que nao so o fazem passive como tambem, muitas vezes, tiram dos imigrantes o papel de agentes: "integra9ao/regulariza9ao dos imigrantes", etc. 3) Em terceiro lugar, destaca-se a tendencia a apresenta-los como experimentadores de uma situagao pela qual nao sao responsaveis e na qual nao parecem poder interferir. O EXPERIMENTADOR e outro papel semantico. Trata-se de um partlcipante que nao e responsavel pela rea14 Um estudo detalhado da convocagao do Ministro Mayor Oreja pode ser vista em Martin Rojo, L. & van Dijk, T. (1998). "Habia um problema y se ha solucionado". A legitimacao da expulsao de imigrantes "ilegais" no discurso parlamentar espanhol, em Martin Rojo, L. & Whittaker, R. (orgs.). Poder-decir o el poder de los discursos, Madri, Arrecife, 1998, p. 169-234.
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lizacao da agao, mas que experimenta processos inenfais de percep9ao/afeic.ao/cogni9ao, vivenciando fenomenos como ver, sentir, pensar, que nao estao sob seu controle ("Vi Juan pela ma"; "Pepe sabia a resposta"; "Gosto de cinema"). A tendencia a apresentar os imigrantes como experimentadores nao esta muito distante da tendencia anterior, na medida em que envolve tambem uma cerfapassiviza<;do. Porem, na medida em que nao objetifica e sim humaniza, despertando, por um lado, a solidariedade de todos e mostrando as injusti9as sociais que essas pessoas enfrentam, esta terceira tendencia se distancia da anterior. Em conrrapartida, ela pode envolver certa redu9ao a condicao de vitima, em vez de apresentar os imigrantes como pessoas que contribuem para a vida do pais e que podem, ate certo ponto, solucionar seus proprios problemas e sua situa9ao. Essa tendencia predomina nos discursos da oposi9ao no Parlamento e muito especialmente de um dos entao porta-vozes da IU-IC no Parlamento espanhol, Meyer Pleite Meyer que, muitas vezes, apresenta os imigrantes como experimentadores de 39068 e situa9oes terriveis: "viverem amontoados", "padecer uma situa9ao injusta", etc. Mais que uma visao positiva e enriquecedora da diversidade, encontramos aqui um apelo a compaixao nesses discursos que, as vezes, pode ser confundido com pateraalismo15. 15 Insistir na dificuldade e na pobreza nao e, em si, negative, embora fosse positive ressaltar a contribui9ao cotidiana dessas pessoas para a vida, cultura e economia do pais receptor. Ou seja, discursos mais voltados para a vida na Espanha do que para a chegada. Ou reproduzir a expressao de suas proprias experiencias. Poemas como o que citamos a seguir recolhem essa visao da propria experiencia migratoria. Uma possivel ilustracao pode ser o poema El Azote (fragmento): jQue lejos esta la costa! Y el Estrecho, ique lejos!/Pero, i,a donde vas? i,A donde vas? /Los brazos se cansan y hay marejada/El traficante se llevo el dinero./Y se quedo con los remos./Y la patera se esta hundiendo. [...] No estoy solo/Ni soy um extranjeroVSoy um ciudadano azotado,/y um cuchillo hiere mis manos./Mi tierra es fertil,/fertil para las fieras./Mi sol resplandece/y mis mares rebosan. Autor Nas al Guiwan. Tradu9ao para o espanhol de Mustafa Boutaher e Gonzalo Fernandez Parrilla. Ex-
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Nao deixa de se tornar preocupante ja que ela impede que os trabalhadores estrangeiros e suas familias sejam vistos como cidadaos que participam da vida do pais e contribuem para seu funcionamento, contribuindo para sua cultura e enriquecendo-a e gerando atividade economica. 4.3. Argumentagao Nao podemos tratar com profundidade urn aspecto tao complexo quanto o da argumentasao, principalmente em casos como este em que, por um lado, a condenagao do racismo, em termos abstratos, frequentemente coexiste com o repudio a imigra9ao e com uma experiencia controversa da diversidade . Por isso, nos discursos tenta-se, muitas vezes, justificar atuafoes e versoes polemicas de acontecimentos controversos (como o fechamento de fronteiras ou as expulsoes) e sao obrigados a manipular os argumentos cuidadosamente para nao despertar a suspeita de racismo. Para esse fim, e muitas vezes preciso recorrer a varies argumentos, tais como os principios morais gerais ou "fatos" sobre os quais nao pode haver controversia; e tambem e preciso nao expressar explicitamente outros fatos que poderiam ser considerados vergonhosos. traido de: Martin Rojo, L. et al. (orgs.) (1994). Hablary dejar hablar. Sobre racismo y xenofobia. Madri: Universidad Autonoma de Madri, p. 245. (NT - Que longe esta a costa!/ E o Estreito, que longe!/ Mas aonde vais? Aonde vais?/ Os brac.os se cansam e o mar esta agitado/ O traficante levou o dinheiro/ e ficou com os remos/ e a embarcacao se afunda. [...] Nao estou so/ Nem sou um estrangeiro/ Sou um cidadao asoitado/ e uma faca me fere as maos/ Minna terra e fertil/ fertil para as feras/ Meu sol resplandece/ e meus mares transbordam). 16 Para a argumentapao, pode-se esrudar, entre outros, C. Antaki, (1994). Explaining and Arguing — The social Organization of 'Accounts. Londres: Sage. E para a argumenta^ao dos discursos racistas torna-se muito esclarecedor o livro de van Dijk, Communicating Racism,
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Assim, por exemplo, na convoca9ao ao Parlamento do antigo Ministro Mayor Oreja, antes citado, a forma elementar da argumentacao produz-se em oragoes complexas nas quais a primeira oragao refere-se a uma agao oficial e a segunda, quase sempre subordinada, remete-se a existencia de razoes suficientes para tal acao. (10) Neste caso, podia-se proceder a sua expulsao, ja que se tratava da execucao de uma ordem ja expedida (Diario de Sesiones del Parlamento, 29/07/1996, p. 849; convocasao ao Parlamento do Ministro conservador Jaime May or Orej a).
Nesse caso, a primeira oracao expressa uma opiniao que serve de conclusao a um argumento, do qual a segunda oracao funciona como premissa (objetiva): e necessario uma decisao legal para a expulsao. Essa e simplesmente uma condicao necessaria, nao suficiente, ja que nem todas as decisoes legais acerca da sirua9ao (ilegal) dos imigrantes acabam em sua expulsao. Para que esse breve argumento seja um silogismo, a premissa geral implicita seria: "Sempre que um juiz tome uma decisao (sobre a situacao ilegal de um imigrante) o imigrante sera expulso". Ja que Mayor Oreja emprega "podia-se proceder a sua expulsao" sua formula9ao e formalmente correta. No entanto, a mera possibilidade legal da expulsao nao e o que esta em jogo aqui, ja que, na verdade, os imigrantes ja foram expulsos. Evidentemente, a frase causal e o argumento implicito e suas bases legais sao uma forma de "argumentar a favor da" expulsao e assim legitima-la. Na argumenta9ao dos discursos cotidianos, as narrativas e as pequenas historias desempenham um papel-chave. Em primeiro lugar, essas pequenas historias quase sempre relatam experiencias vividas por outros, e que podem ter sido vivenciadas por qualquer um, mas sobre as quais o
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locutor nao tern responsabilidade, e algo que Ihe foi contado por uma fonte fidedigna, alguem que, alem disso, e igual a mim e a voce. O conteudo dessas narrativas costuma concentrar-se em atuagoes dos imigrantes. A historia refere-se a uma/s pessoa/s em particular mas, apesar disso, delas costuina-se extrair uma conclusao que e generalizada para todos os fepresentantes da categoria. Sao do tipo: "minha prima tinha uma faxineira de X, que e pessima na limpeza, voce sabe como e, para eles a limpeza nao importa muito". Assim, as historias terminam em uma avaliacao na qual se realiza essa generalizacao17. (11) —»/ ou seja, o unico que consegui dizer foi que pouco homem voce e e segui adiante/ ou seja fazer isso em um grupo de amigos diante de uma m09a que vai passando nao e alguma coisa da qual temos que dizer ->/ sdo uns bobos/totalmente idiotas os espanhois (Narrativas coletadas por Adriana Patino, 2003).
4.5. Legitimagao Nesta secao, focalizaremos as estruturas e estrategias da legitimapao. Embora seja possivel encontrar essas estrategias em qualquer discurso, nesta secao as estudaremos em relafao aos processes politicos e com os discursos e a intera9ao parlamentar. Em primeiro lugar, nos referiremos aos procedimentos rotineiros que o estado utiliza ao administrar uma crise (nesse caso, quando se produz um questionamento de sua legitimidade) e como isso da lugar a um discurso politico de justificativa. Assim comprova-
remos como, muitas vezes, nao se trata unicamente de enfrentar ou "resolver um problema" (relacionado com a imigra9§o ou com um conflito belico), mas tambem de resolver um problema discursivo e sociopolitico, que tern como cenario o Parlamento ou os meios de comunicacao. Com firequencia, a maneira pela qual se tenta solucionar esse conflito discursivo envolve silenciar e deslegitimar os detratores de determinadas atuagoes (como as expulsoes de trabaIhadores estrangeiros em avioes militares ou o bombardeio da popula9ao civil), persuadir a oposi^ao de que a atua9ao foi legitima e assim obter o apoio parlamentar naquilo que muitos tinhampodido consideraruma viola9ao dos direitos humanos fundamentals. Como exemplo, usaremos a expulsao dos 103 imigrantes, algemados e narcotizados a bordo de avioes militares e depositados em paises africanos diferentes dos seus, no verao de 1996, e o discurso com que Mayor Oreja fez frente a crise no Parlamento18. O poder politico e a legitimidade estao constantemente em perigo. Podem ser questionados por rivais politicos, institui9oes civis, tais como a imprensa e as organiza9oes nao-govemamentais (ONGs), ou ate pela popula9§o em geral. Em uma crise assim, os atos de Iegitima9ao sao fundamentals. Nesse caso, tanto os questionamentos como a posterior Iegitima9ao sao em grande parte discursivos e, portanto, torna-se relevante analisar esses discursos. E
17 Para o papel das historias breves na criasao das minorias etnicas nos paises receptores, pode-se consultar o Trabajo de Investigation de A. Patino Santos. "Vivir para contar: a narrativa de experiencia personal como justification de prejuicios extendidos entre colombianos residentes en Espana". Universidad Autonoma de Madri, 2003.
18 Tomamos esse exemplo que estudamos junto com Teun van Dijk (Martin Rojo, L. & van Dijk, T. (1998). "Habia un problema y se ha solucionado". A legitima^ao da expulsao de imigrantes "ilegais" no discurso parlamentar espanhol, em Martin Rojo, L. & Whittaker, R. (orgs.). Poder-decir o elpoder de los discursos. Madri, Arrecife, 1998, p. 169-234. O leitor pode, paralelamente, fazer um exercicio semelhante com um acontecimento que o preocupe neste momento, como a Guerra do Golfo, ou qualquer outro conflito parlamentar ou midiatico.
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claro que essa legitimate discursiva tern sua funcao e se insere em um processo mais geral de legitimagao social e politica, no qual estao em jogo as instituigoes que controlam o poder. o Estado, a lei, os valores compartilhados e a ordem social. As estrategias discursivas e politicas de legitimagao tern muitas facetas, e por isso so nos referiremos a algumas delas. Distinguiremos tres niveis diferentes embora interdependentes de legitimagao discursiva: a) um ato pragmatico de justificativa de agoes e politicas controversas; b) uma construcao semantica dapropria versao dos sucessos como verdadeira e confiavel; c) uma autorizacao sociopolitica do proprio discurso legitimador. a) No que se refere a como se legitima uma agao controversa em si (a expulsao) encontramos que a justificativa consiste em uma explicagao discursiva de agoes passadas cujo objetivo e o de persuadir a um publico critico de que tais agoes eram aceitaveis dentro da ordem normativa, ou seja, que estavam de acordo com a lei, com as normas sociais em vigor e com outros principios normativos de conduta social adequada. Em todos os niveis do discurso podem ser utilizadas estrategias para obter essas versoes persuasivas. Assim, no discurso de Mayor Oreja, encontramos estrategias semanticas globais que tern como objetivo afirmar a aceitabilidade da expulsao, isto e, sua legalidade, o respeito que teria tido pelos procedimentos legais e burocraticos, sua execucao cuidadosa, sua autorizacao por organismos estatais e profissionais apropriados e as circunstancias especiais como uma suposta ameaga a ordem publica. Essas estrategias implicam, ao mesmo tempo, uma dicotomia entre a apresentacao positiva de si mesmo e a apresentagao negativa do outro, na qual "nossas" agoes e politicas foram corretas e beneficas e as acoes "deles" anormais 244
e uma ameaga para o pais. Assim, a condicao rundamental para a legitimagao politica das praticas governamentais e que essas sejam legais. Portanto, no caso concrete de Mayor Oreja, esse se esforga por fazer referenda as leis relevantes durante o discurso e insiste que a expulsao ocorreu "estritamente" de acordo com aquelas leis: (12) [...] medidas essas que se adotam com o carater de medidas governamentais e em cumprimento estrito do disposto na Lei Organica Reguladora dos Direitos e Liberdades dos Estrangeiros na Espanha, conhecida habitualmente como "Ley de extranjeria" {Diario de Sesiones del Parlamento, 29/07/1996, p. 848; convocacao ao Parlamento do Ministro conservador Jaime Mayor Oreja).
Em outros momentos de crise, sao outras leis ou resolupoes de instituicoes intemacionais que sao invocadas. b) Enquanto que as estrategias anteriores concentram-se nos acontecimentos e em sua justificativa moral e legal, a legitimagao tambem requer uma formulagao dos fatos que seja digna de confianga, isto e, uma descrigao ou "versao" oficial em cujos termos seja possivel aceitar a tal justificativa discursiva. Essa construcao semantica tera de apresentar a propria representagao ou versao subjetiva ou parcial dessa agao e de seus protagonistas, como verdadeira e confiavel (em contraste com as versoes, por exemplo, da imprensa ou das ONGs). Para tal fim, serao mobilizados todos os recursos que estivemos examinando, as estrategias de substantivagao e predicagao, a argumentagao, etc., de maneira tal que, do conjunto delas, emane uma imagem negativa dos imigrantes que justifique a agao governarnental, nesse caso a expulsao nos termos em que foi realizada. (13) O Ministro do Interior, diante desses graves acontecimentos que punham em grave risco a ordem publica e pressupunham uma grave alteracao da seguranga dos 245
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cidadaos, tinha a obriga^ao inevitavel de proceder, em nossa opiniao, a expulsao ou devolucao dos imigrantes ilegais (Diario deSesiones delParlamento, 29/07/1996, p. 848; convoca?ao ao Parlamento do Ministro conservador Jaime Mayor Oreja).
No entanto, isso nao quer dizer que nem nesse, nem em outros casos, o falante manipule seu discurso de forma consciente e utilize os recursos e estrategias discursivas de uma maneira premeditada para tal fim. O que signiflca e que, como em todo discurso e como com todo falante, nesse caso, o falante selecionou os recursos lingiiisticos de que dispunha, de acordo com seu ponto de vista. Nesse processo ele/a e guiado/apor seu conhecimento tacito da lingua e do uso que dela se faz em sua comunidade. Pois bem, tambem e certo que, no caso do discurso parlamentar, geralmente nos deparamos com discursos mais preparados do que o normal, que foram escritos com uma certa anterioridade por falantes com experiencia na arte de persuadir e de atuar e sobre os quais se refletiu longamente, quase sempre em equipe.
discurso, ao mesmo tempo em que pode ser deslegitimada a fonte de outros discursos que questionam o primeiro, ou cujo conteudo se quer deslegitimar. Assim, por exemplo, o fato de que Mayor Oreja refere a si proprio na terceira pessoa e como "Ministro do Interior" contribui para que a autoridade da instituicao que ele representa se transfira para seu discurso. O mesmo efeito produzirao os que evocarem outras fontes autorizadas: tal e como ordena a Lei, de acordo com a sentenga do juiz, etc. No exemplo que se segue, no entanto, comprovamos como o Ministro Corcuera deslegitima as reivindicagoes dos imigrantes, apresentando-os como ilegais, enquanto que o "nos" ve-se legitimado pelo respeito do outro e da legislacao: (14) mas como e possivel que um cidadao, ao qual devemos respeito, ao qual devemos tratar da melhor forma possivel, que entrou ilegalmente, que esta em uma situa$ao ilegal na Espanha, nao somente fafa manifestafoes - o que realmente faz - mas que tambem nos diga como temos que promulgar as leis {Diario de Sesiones del Parlamento, 9/12/1995; Interven9ao do Ministro Jose Luis Corcuera).
c) A terceira faceta da legitimacao inclui um aspecto ao qual nao demos a atencao suficiente: a autorizagao sociopolitica do proprio discurso legitimador, que no exemplo aqui discutido seria o proprio discurso ministerial que e apresentado como sendo apropriado e autorizado. A maneira como os falantes dao legitimidade ao proprio discurso e deslegitimam ou invalidam outros que os contradizem e, sem duvida, uma questao de grande importancia.
2) A apresentafao do proprio discurso como um reflexo da realidade, isto e, atraves de um processo de objetivacao, enquanto que outros discursos sao apresentados como deformagoes, constitui um segundo processo de legitimacao do proprio discurso. Dessa forma, se estabelece uma distincao enrre discursos verdadeiros (o proprio) e versoes subjetivas ou distorcidas (o alheio) como vemos no exemplo que se segue:
Nesse sentido, podemos destacar tres procedimentos: 1) A enfase nas diferencas de poder, status e autoridade, como procedimento de legitimafao, de forma que a autoridade e a legitimidade das instituigoes se transfiram ao falante e a seu discurso. Dessa forma se legitima a fonte do
(15) Eu quis serfiel a rela$ao dosfatos, quis agir com a major transparencia possivel, quis tratar de transmitir, mais que a busca, como dizia antes, da opera9ao modelo, o con/unto de inexatidoes e deformagoes que se foram produzindo e que distorceram a realidade da mesma. Essa era minha obriga9§o e nesse sentido estou eviden-
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temente a disposi9ao das interven?6es dos varios grupos (Diario de Sesiones del Parlamento, 29/07/1996, p. 848; convocacao ao Parlamento do Ministro conservador Jaime Mayor Oreja).
3) For ultimo, com o fim de legitimar o proprio discurso, cabe evocar o conjunto de regulamentos e de preconceitos linguisticos que estao a base da ordem social dos discursos e que permitem controlar sua produ9ao, sua circu13930 e o acesso a eles. Em todas as comunidades da-se um processo de exclusao e inclusao atraves do qual sao estabelecidas normas e regulamentos que fazem com que detenninados discursos sejam aceitaveis, enquanto que outros modos de expressao e outros discursos sao desacreditados e desvalorizados e sua circula9ao restrita. Sao precisamente esses valores e essas restri9oes que podem ser evocados no momento de legitimar o discurso. Assim, o uso dejargoes autorizados, como o jargao medico, o legal e o de variedades e registros linguisticos de prestigio, tais como o registro burocratico, ou as variedades proprias das classes ricas, legitimam e prestigiam o proprio discurso. Enquanto que as normas e as institui9oes que fomentam os preconceitos linguisticos e desqualificam as formas que se afastem dessas formas de prestigio nao so invalidam essas formas como tambem as excluem de determinados circulos deslegitimando-as tanto em termos de seus aspectos formais quanto em termos de seu proprio conteudo. No exemplo que se segue, vemos como o Ministro Mayor Oreja recorre a essas formas de prestigio, para dar autoridade a seu discurso, e a ele contrapor o discurso nao autorizado das associa9oes de imigrantes e das organiza9oes nao-governamentais. (16) Nesse momento, solicitou-se ao Exercito do AT que pusesse a disposi9ao um contingente de avioes, a fim de transportar as forfas de seguranfa necessarias para con-
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frontar a siruacao de emergencia (Diario de Sesiones del Parlamento, 29/07/1996, p. 848; convoca?ao ao Parlamento do Ministro conservador Jaime Mayor Oreja). (17) Nao e verdade, portanto, que se tenha produzido um processo de narcotiza9ao e que se tivesse drogado os imigrantes. Quero lembrar-lhes de que nao houve nem droga nem narcoticos e sim que se fez uso de uma especialidade farmaceutica autorizada (Diario de Sesiones del Parlamento, 29/07/1996, p. 848; convocacao ao Parlamento do Ministro conservador Jaime Mayor Oreja).
Confluem, portanto, a Iegitima9ao da 3930, da representa9ao dos acontecimentos e do proprio discurso. Com efeito, essa ultima parece imprescindivel para a consecu930 das outras. A Iegitima9ao das representa9oes que os falantes constroem no discurso a respeito dos varios acontecimentos e agentes sociais e um movimento discursive que desempenha um papel essencial na transmissao persuasiva e na implanta9ao das representa9oes sociais. Essa transmissao persuasiva contribui para que sejam consideradas apropriadas determinadas 39068 ou politicas, de acordo com uma determinada interpreta9ao dos acontecimentos. Conclusao O que vimos ate o momento nos mostra como nossa maneira de falar, a sele9ao dos recursos e estrategias discursivas de que dispomos que fazemos ao produzir discursos, reflete a nossa interpreta9ao dos acontecimentos, que, por sua vez, reflete e obedece a nossa situa9ao e posi9ao social. Obedece tambem a seja qual for nossa participa9ao em tais acontecimentos, a seja qual for o grupo a que pertencemos, a sejam quais forem nossos interesses, a seja qual for nosso posicionamento com rela9ao as ideologias, valores, discursos hegemonicos, etc. Isso nao significa que nossos discursos e posi9oes sejam sempre identi249
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cos ja que, dependendo de nossos interlocutores e de muitos outros fatores, poderemos modificar nossa posi9ao. No entanto, podemos, sim, encontrar em nossos discursos tra905 dos discursos dominantes ou majoritdrios que reproduzimos ou repudiamos em determinados contextos. Uma vez produzidos, esses discursos incidem, por sua vez, sobre os mesmos aspectos que desempenharam um papel relevante em sua producao, podendo assim reproduzir, refor9ar ou questionar a ordem social e as representacoes e valores dominantes. Assim, esses discursos que se originam na sociedade tern, por sua vez, conseqiiencias sociais, podendo contribuir, como no caso examinado, para perpetuar situa9oes sociais que sao discriminatorias ou negativas para determinados grupos.
neira tal que fiquem limitados o acesso e a circula9ao de determinados discursos em determinados contextos. O capital simbolico do discurso se encontra nao somente na capacidade de 3930 que representa mas tambem na capacidade de gerar representa9oes das praticas sociais e da sociedade como um todo.
GLossario
Esse poder gerador de conhecimento que os discursos tern explica que esses se tornem objetos de disputa e de polemica. Por isso existe uma regulamenta9ao e uma ordem social dos discursos que estabelece restriQoes, de ma-
Argumenta$ao: uso que se faz do idiomaparajustificar ou refutar uma determinada posi9ao com o fim de obter a conformidade com rela9ao aos pontos de vista (EEMEREN, F.H. et al. Argumentacion. In: VAN DIJK, T. (comp.) (1999). Estudios do Discurso, vol. 1. Barcelona: Gedisa.) Discurso: este conceito adquiriu varios sentidos que se superpoem. Da perspectiva da ACD propoe-se uma visao do discurso como pratica, isto e, como uma atividade socialmente regulada. Incorpora-se, alem disso, uma visao tridimensional: todo discurso constitui, ao mesmo tempo, uma pratica textual, uma pratica discursiva e uma pratica social. Pratica textual: chamamos discurso a uma unidade linguistica, superior a ora9ao, coesa e dotada de coerencia, consrruida a partir de determinados materials linguisticos. Pratica discursiva: todo discurso tern como moldura uma situa9ao, em um tempo e espa90 detemiinados, e por esse motive damos o nome de discurso a uma produ9ao discursiva que permita a realiza9ao de outras praticas (julgar, classificar, informar), que se enquadra e adapta a regulamenta9ao social dessas e ao mesmo tempo as estrutura e da significado. Pratica social: o discurso se encontra configurado pelas situa9oes, estruturas e redoes sociais, pela ordem e estrutura social; mas, por sua vez, tambem configura todas essas coisas e incide sobre elas, seja consolidando-as, seja questionando-as; trata-se, portanto, de uma pra-
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Com efeito, as conseqiiencias do contraste de acoes e de agentes que vimos, entre o "nos" e o "eles", vao mais alem da crisujao de imagens distintas. Elas projetam uma visao da sociedade polarizada e em permanente conflito, o que fomenta uma experiencia negativa da diversidade e da convivencia com pessoas procedentes de outros lugares. Esse contraste envolve, alem disso, uma cadeia de simplificadores: eles/as aparecem freqiientemente como um coletivo homogeneo ("todos sao iguais") associado a delinquencia, violento, nao racional, e que, em determinadas ocasioes, busca aproveitar-se do "nosso" bem-estar economico (exigindo cuidados, alojamento, emprego, etc.) enquanto que o "nos" e apresentado como nao racista, democratico, solidario, civilizado e normal. As duas imagens sao claramente interdependentes.
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tica social, com origem e efeitos socials (FAIRCLOUGH, N. (1992). Discourse and social change. Cambridge: Polity Press). Estrategias discursivas: entende-sepor estrategias discursivas um piano de agao, mais ou menos intencional, que o falante adota como um objetivo discursivo, por exemplo, apresentar um determinado participante, e que reune um conjunto amplo de recursos linguisticos (por exemplo, estrategias de designagao). Esse conceito nao esta isento de problemas, embora queira-se separa-lo completamente da nocao de intencionalidade. Legitimacdo discursiva: processo pelo qual tenta-se assegurar a legitimidade dos poderes e das instituigoes, da lei, dos valores compartilhados e da ordem social, atraves de meios discursivos; e claro, essa legitimacao discursiva tem sua funcao e se insere dentro de um processo mais geral de legitimagao social e politica. Distinguimos tres niveis de legitimacao discursiva: a) um ato pragmatico de justificativa de agoes e politicas controversas; b) uma construcao semantica da propria versao dos sucessos como verdadeira e confiavel; c) uma autorizagao sociopolitica do proprio discurso legitimador. Ordem social dos discursos: com esse conceito nos referimos a maneira como as diferengas de status e de autoridade projetam-se sobre o universo-discursivo estabelecendo um principio de desigualdade: ao lado de discursos autorizados, encontramos discursos "desautorizados "; diante de discursos legitimados, discursos "deslegitimados "; diante de discursos dominantes ou majoritdrios, discursos "minoritarios". Essas diferengas na avaliacao social dos discursos sao tambem um reflexo das tentativas, por parte dos distintos grupos sociais, de controlar a producao, circulagao e recepcao dos discursos, devido a seu poder gerador; e da imposigao, por 252
parte desses grupos, dos criterios de produgao e avaliagao (MARTIN ROJO, L. (1997). El orden social de los discursos, Mexico. Discurso, 21-22: 1-37). Papeis semdnticos: os varios participates podem desempenhar papeis distintos na realizagao do processo. No texto so nos referimos a tres papeis: Agente: participante animado, ativo, que controla e e responsavel pela agao verbal. Paciente: participante inativo, nao controla a agao, mas se ve afetado ou modificado pela agao verbal. Experimentante (experimentador): participante animado, que vivencia o processo mas nem o controla nem e responsavel por ele (com os processos mentais: ver, sentir, pensar). Processos: os processos sao categorias semanticas que explicam em termos muito gerais como os fenomenos que nos rodeiam sao representados pelos falantes atraves de estrururas lingiiisticas. A moldura geral dessa representagao e compostapor: o processo em si (freqiientemente realizado por um grupo verbal); os participates do processo (freqiientemente representados por um grupo nominal); e as circunstancias associadas a esse processo (freqiientemente uma frase preposicional, um adverbio, etc.): "Pepe (participante/G.Nominal) bate (Processo/ G.Verbal) em sua mulher (Participante/G.Nominal) com freqiiencia (circunstancia/Frase preposicional)". Halliday distingue varios tipos de processos: Material: (agao; criativo; acontecimentos); Mental (percepgao/ afeigao/ cognigao) (ver; sentir; pensar); Verbal; Relacional: intensiva (atributivo/equitativo), circunstancial (relagoes de tempo, lugar, etc.); possessao; Existenciais (haver, aparecer, ocorrer). Cada um desses tipos seleciona participantes diferentes e Ihes atribui papeis no processo (papeis semanticos) (HALLIDAY, M.A.K., 1994 [1985]. An introduction tofunctional grammar. Londres: Arnold). 253
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Recursos lingiiisticos: e o conjunto de formas lingiiisticas, pertencentes a todos os niveis do idioma (sejam sons, morfemas, palavras, construcoes sintaticas, ou caracteristicas e estruturas semanticas, processes de inferencia, etc.) que os idiomas poem a disposicao dos falantes. Variedades lingiiisticas: Maneiras de falar que surgem como resultado dos processes - inerentes e constantes - de variacao que sao observados nos idiomas, devido a diferenpas sociais (idade, genero, grupo, classe social, casta, origem rural ou urbana), ou devido a divisao social do trabalho e do conjunto de praticas nas quais o idioma desempenha um papel relevante. Classificam-se em: Socioletos (dialetos sociais): "o que voce fala (habitualmente) irifluenciado por aquilo que voce e (regiao social de origem e/ou adogao); expressam diversidade na estrutura social". E registros ou estilos: "o que voce fala (em um momento determinado) influenciado pelo que voce faz (natureza da 3930 que realiza); expressam diversidade nos processos e na vida social (divisao social do trabalho)" (definipao extraida de HALLIDAY, M.A.K. (1978). El lenguage como semiotica social. Madri: Fondo de Cultura Economica). Bibliografia basica
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7. Praticas discursivas...
Os discursos sobre risco defmem territories linguisticos que demarcam campos de gestao. Nesses campos desenvolvem-se maneiras especificas de falar sobre riscos. Assim, ao nos referirmos a linguagem dos riscos, embora usando o singular, nao estamos propondo a existencia de uma linguagem unitaria. Estamos sugerindo que no interior de cada campo desenham-se formas de falar sobre riscos que Ihe sao especificas e que estao presas a tres tradi9oes de discursos sobre riscos por nos identificadas em estudos anteriores: o govemo de cpletivos, a disciplinarizapao da vida privada e a aventura (Spink, 2000a; 2001). De modo a melhor detalhar nossa proposta e situar o que estamos entendendo por linguagem dos riscos faz-se necessario explicitar o conceito de linguagem a que estamos nos referindo. Essa questao e particularmente relevante dado que utilizamos uma abordagern de analise discursiva que trabalha de forma concomitante os microprocessos de produgao de sentidos no aqui-e-agora das interapoes sociais e a circulac.ao de repertories linguisticos em geral, incluindo ai seu uso em documentos de dominio publico tornados como praticas discursivas que sustentam estrategias de governamentalidade (Spink, 1999). O estudo dos microprocessos de produ9ao de sentidos se alia as correntes pragmaticas da filosofia da linguagem. Ja a compreensao dos repertories interpretativos requer uma visao mais estrutural (ou minimamente, mais normativa) que permita entender as regras de constru^ao sem, no entanto, perder de vista a singularidade do uso em distintos contextos. A tensao entre aspectos performativos e estruturais da linguagem sera discutida na primeira parte do texto. Na segunda, nos apoiando em Michel Foucault e Mikhail Bakhtin, discutiremos uma proposta de linguagem que atenda a essa dupla exigencia - trabalhar corn a processualidade do cotidiano e entender os discursos sobre risco como uma linguagem social expressa emgeneros de fala proprios aos diversos dominios de saberes e fazeres.
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ste capitulo tern como objetivo geral apontar para a importancia da analise de documentos de dominio publico, compreendidos como praticas discursivas que sustentam estrategias de governamentalidade. Como exemplo abordaremos uma arena especifica de govemo das relac, oes cotidianas: a gestao da vida por meio da pratica da comunicac. ao sobre riscos, contrastando os usos da linguagem dos riscos em tres dominios de saber fazer - a saude publica, o esporte aventura e o campo da reproducao humana assistida.
* Uma versao preliminar deste texto, sob o titulo Psicologia social, governamentalidade e linguagem dos riscos na vida cotidiana, foi apresentada no IX Simposio da ANPEPP (Associate Nacional de Pesquisa e Pos-graduacao em Psicologia), realizado em agosto de 2002. ,** * * Programa de Estudos Pos-graduados em Psicologia Social, PUC-SP. *** * Programa de Estudos Pos-graduados em Psicologia Social, PUC-SP. 258
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7. Praticas discuisivas...
Mary Jane P. Spink e Vera Mincoff Menegon
Adentrando mais especificamente na linguagem dos riscos, na terceira parte do texto, apresentaremos as tres tradicoes de discursos sobre risco propostas em trabalhos anteriores (Spink 2001; Menegon, 2003). E no jogo entre semelhancas e diferencas entre essas tradigoes que se torna possivel conciliar sistemas linguisticos e a polissemia do uso dos repertories sobre risco. Se pensarmos que cada tradigao discursiva gera uma moralidade caracteristica, a analise dos generos de fala e importante para compreender as estrategias de gestao de relacoes sociais, cabendo a pergunta sobre a possibilidade de comunicagao transversal entre essas tradicoes. De modo a explorar essas diferen9as contrastaremos, na parte final do texto, formas discursivas empregadas em diferentes campos: dos esportes radicais (tradigao aventura), da prevengao de agravos a saude (tradigao do governo de coletivos) e dos programas de reprodugao humana assistida (entrelacamento de duas tradigoes: disciplinarizacao da vida privada e aventura). 1. Da interioridade das ideias a exterioridade da linguagem: a virada linguistica
Pica dificil entender o debate contemporaneo sobre linguagem sem situa-lo, primeiramente, na filosofia e nas rupturas que ocorreram nas relacoes estabelecidas na filosofia classica entrepensamento, linguagem e as coisas do mun~ do. As questoes contemporaneas da filosofia da linguagem, segundo Ludwig (1997), sao de tres ordens: o que e compreender uma mensagem linguistica, qual o sentido de uma palavra ou frase e o que 6 uma significagao. Essas perguntas pressupoem um posicionamento quanto a relagao entre tres elementos: a) os sons e as palavras; 260
b) os estados da alma; c) as coisas do mundo1. As relagoes entre esses elementos suscitaram duas questoes majoritarias para a filosofia classica. 1) As teorias classicas da comunicacao voltavam-se ao poder das palavras de refletir fielmente nossos pensamentos e a codificagao de nossas representacoes mentais em um meio exterior de modo a toma-las acessiveis a uma outra pessoa. Tal postura focalizava os vinculos que \msmpensamento e linguagem^ inaugurando uma primeira via de acesso aos problemas da significagao: o estudo da significagao a partir da ftmcao expressiva da linguagem. Nessa diregao, as palavras nao teriam outro signiflcado alem das ideias que sao comunicadas e seu poder de representagao derivaria totalmente dos estados do espirito. 2) Mas seria possivel focalizar tambem a relagao entre linguagem e as coisas das quais elas tratam: gragas a linguagem, podemos descrever as coisas e modificalas (com ordens, ameagas etc.). Nessa diregao pode-se tomar a significagao como uma relagao direta entre as palavras e as coisas, privilegiando assim afun$ao de representagao da linguagem. Na filosofia classica a abordagem dessas questoes toma como base pressupostos ontologicos e epistemologicos realistas, que fazem com que a linguagem assuma o papel de mediagao entre mente (interna) e mundo (externo). Foram necessarias varias inversoes para que ocorresse a virada lingufstica, entre elas: o deslocamento do foco da cognigao (ou da filosofia da consciencia, no periodo classico) para a comunicagao; o deslocamento do foco no pensamento (ou ideias) para a linguagem exteriorizada -
1 Esses tres elementos ja estavam presentes na reflexao filosofica desde que Aristoteles escreveu o texto Da Interpretaqao.
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a linguagem em uso - e o deslocamento da lingua como estrutura (la langue) para o foco na produ9ao de sentidos {la parole). Desses varies elementos, e o deslocamento do foco da interioridade da mente para a exterioridade do uso que propicia o solo para ancoragem da proposta de estudar a linguagem dos riscos, incorporando anogao de formacoes discursivas e praticas discursivas. Das relagoes entre pensamento e linguagem: as bases da teoria classica sobre linguagem
A teoria de linguagem que dominou o pensamento filosofico por muitos seculos tern por fiindamento o pressuposto que a significacao e essencialmente a relacao entre pensamento e palavras. Nessa teoria, na formulacao dada por Hobbes, "o uso geral da palavra e de transformar nosso discurso mental em discurso verbal, e o encadeamento de nossos pensamentos em urn encadeamento de palavras"2. Como a representa9ao mental tern prioridade sobre a representacao linguistica (ou discurso publico), a teoria classica repousa duplamente sobre uma teoria dos signos e uma teoria das ideias*. Nessa perspectiva, saber o que quer dizer uma palavra e conhecer a ideia da qual a palavra e signo (a ideia a qual esta convencionalmente associada) e entender o significado de um grupo de palavras, e conhecer as ideias associadas a cada palavra e a Iiga9ao que as associa. 2 Em Leviathan, 1,4, segundo Ludwig, 1997. 3 Para os classicos a no?ao de signo traz uma relacao natural de significasao (relativa aos signos naturais: por exemplo, a fumaca e sinal do fogo) ao lado do qual ha tambem uma relacao convencional (signos de instituicao: por exemplo, por conver^ao a palavra cao denota um certo animal embora nao haja uma rela9§io intrinseca entre a palavra e o animal). Se a nofao de signo domina a semantica dos classicos, a nogao de ideia atravessa toda sua epistemologia, constituindo seu principal conceito teorico (Ludwig, 1997: 13). 262
7. Praticas discuisivas...
Esse reducionismo e problematico, pois deixa de fora a rela9ao entre ideias e palavras e as coisas do mundo. Como entao explicar a rela9ao entre ideias e coisas? A resposta comum, nos seculos XVII e XVIII, segundo Ludwig (1997), era que "as ideias representam diretamente as coisas porque elas sao suas imagens", ou seja, porque se assemelham as coisas que representam. A exemplo da representa9ao efetuada pela pintura e fotografia, a presen9a de uma imagem no espirito do locutor garantiria o elo intrinseco da representaQao mental com o objeto representado. Contudo, nao ha associa9ao de imagens com todas as palavras de uma lingua, por exemplo, com termos abstratos, com os conectores (ou, e) ou com os pronomes. Para poder ancorar a significa9ao das palavras, as representa9oes mentals - diferentemente das imagens - teriam que compartilhar algumas de suas propriedades. Elas teriam que ter um conteudo proposicional e, assim como nas frases, serem suscetiveis de comprova9ao e falsifica9ao, construidas observando as regras da sintaxe e que representem rela9oes e propriedades abstratas. Decorre dai a hipotese de uma linguagem do pensamento, ou mentalais. A emergencia das ciencias cognitivas contemporaneas pressupoe, em certo sentido, a hipotese da existencia de uma linguagem do pensamento, sendo a metafora do espirito-computacional (esprit-ordinateur) o elo de uniao entre as diferentes disciplinas (Psicologia Cognitive, Linguistica, Inteligencia Artificial). Ou seja, tal como os computadores possuem sua linguagem-maquina, nosso cerebro teria um codigo proprio: as mentalais. Mas, se pensamento e linguagem estao intimamente relacionados, passa a ser importante determinar quem tem prioridade: pensamento ou linguagem. E a linguagem que torna o pensamento possivel ou, vice-versa, a linguagem e tao-somente o meio de comunicar nossos pensamentos? A resposta a essa pergunta tende a ficar conceitualmente embaralhada: afmal, o que entendemos por linguagem? Se 263
7. Praticas discursivas...
Mary Jane-P. Spink e Vera Mincoff Menegon
linguagem e o conjunto de simbolos com certas propriedades das linguas de cada comunidade, entao ela depende somente das regras internas de funcionamento das linguas e nao do pensamento. Em contraste, se o uso das linguas depende dos estados mentais do locutor, para se comunicar e preciso se comportar de forma determinada e intencional. Nesse caso, o uso da linguagem pressupoe o pensamento, pelo menos no que diz respeito a intencao de comunica^ao.
A primeira fase da virada linguistica: de Frege a filosofia anah'tica Seguindo a discussao feita por Tomas Ibanez no primeiro capitulo deste livro, a primeira fase da virada linguistica, associada as teorizapoes de Gottlob Frege(18481925) e Bertrand Russell (1872-1970), leva a dois deslocamentos importantes em relagao a teoria classical 1) Do estudo das ideias, compreendido como discurso mental e caracterizado pela introspeccao, para o estudo dos enunciados lingiiisticos e publicos que evidenciam sua estrutura logica. Nessa perspectiva, a linguagem cotidiana e vista como problematica por se estabelecer sobre uma logica imperfeita, ambigua e imprecisa. 2) Dos espa9os intemos da mente para os externos, deixando de considerar que sao nossas ideias que estao em rela?ao com o mundo para afirmar que sao nossas palavras que correspondem aos objetos do mundo. Com esses deslocamentos, a linguagem passa a representar os fatos que compoem a realidade, ou seja, e tomada como instrumento codificador e transmissor de informagao sobre o mundo. Historicamente, essa abordagem da significa^ao se opoe a teoria classica, segundo a qual as leis da logica nada mais sao do que descri9oes de regularidades psicologicas; generalizafoes, portanto, da maneira como cada individuo raciocina. Frege e Russell, ao contra264
rio, postulam a objetividade e universalidade das leis logi- ' cas, defendendo uma abordagem objetiva da significa9ao. A proposi^ao da linguagem como meio de representar a realidade parte de uma teoria naive da significa$ao, segundo a qual as palavras tern como essencia representar coisas. Compreender uma palavra e conhecer o que ela representa; compreender uma frase e conhecer a que agenciamento de coisa ela corresponde: ou seja, coiiecer suas condi9oes de verdade. Em suma, a teoria naive da significa9ao anda de par com uma visao representacionista da linguagem: uma frase comunica uma informagao como sua representante. O que a frase representa nao e a representa9ao mental do locutor, mas um aspecto da realidade, portanto algo objetivo (umaproposi$ao). Sob influencia de Russell, a maioria dos filosofos contemporaneos voltados a filosofia analitica associa o sentido das expressoes com os conceitos que elas conotam e que permitem, por sua vez, identifkar de forma unica seus referentes. Trata-se de uma analise que se presta admiravelmente as describes. A descri$ao, todavia, vai de par com uma concep9ao cartesiana de significa9ao das palavras: conhecer o sentido de uma palavra e possuir um conceito, ou uma representa^ao mental que seja aplicavel. A compreensao e, portanto, uma opera9ao interna do espirito. Por exemplo, um locutor compreende o sentido da palavra dgua se conhecer suas condi9oes de aplica9ao. Ou seja, possui uma descri9ao precisa que identifique a extensao do termo - liquido incolor que estanca a sede. A preocupagao com a Linguagem cotidiana Interessar-se pela linguagem implica focaliza-la tambem em sua utiliza9ao e nao apenas em sua essencia. E 265
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este caminho que leva ao interesse pela linguagem ordinaria e fenomerios da comunicagao. Historicamente, esse interesse caracteriza-se como reagao a abordagem logica da linguagem que dominou o pensamento dos fundadores da filosofia da linguagem contemporanea: Frege e Russell. Para a filosofia que se mitre da escola da logica, a unidade linguistica fundamental e a frase afirmativa que permite descrever um fato, veicular uma informagao ou exprimir um conhecimento. Todavia uma frase e um objeto abstrato e suscetivel de multiplas realizagoes no espago e no tempo. Ao considerar a frase como unidade fundamental da significacao esta passa a ser um fenomeno independente do contexto e das circunstancias de seu uso. Mas quando nos debrugamos sobre as acoes efetuadas na pronuncia das frases, a imagem classica da comunicagao se complica. Lembremos que, na concepgao classica, a fungao primeira das palavras e comunicar uma informagao factual que concerne diretamente os pensamentos do locutor e, indiretamente, os fatos sobre os quais remetam tais pensamentos. Nessa acepgao, a propriedade essencial dos sinais lingiiisticos e sua capacidade de corresponder ou nao a realidade. Os filosofos da linguagem comum opoem-se violentamente a essa doutrina que revela, segundo John Austin (1962), uma ilusao descritiva, e buscam mostrar que os enunciados nao veiculam apenas informagoes factuais, mas veiculam tambern informagao sobre o tipo de ato que eles permitem efetuar. Veiculam, pois, alem de conteudo proposicional, uma indicagao do ato que desejam efetuar. Nomeando esses atos de performatives Austin argumenta que esses enunciados permitem transformar a realidade, e nao apenas descreve-la. Eles nao tern significado senao no interior da rede de papeis que uma comunidade 266
social dada define. Nessa perspectiva, que parte do ato de enunciagao e nao somente da frase, e necessario estudar nao apenas os conteudos da frase, mas tambem a forma e as circunstancias de utilizagao. Isso fica mais claro quando focalizamos a comunicagao como empreendimento coletivo, pois e necessario, de um lado, aceitar certas regras e, de outro, ser capaz de ter em conta os pensamentos e intengoes dos parceiros a fim de antecipar suas agoes. Em suma, a flexibilidade da linguagem utilizada na comunicagao parece ser extraordinaria: segundo o contexto, as mesmas palavras podem comunicar um numero infmito de mensagens. Esse e o enquadre linguistico da analise das praticas discursivas quando focalizamos os processes de produgao de sentidos nas interagoes face a face. 2. Da conciliacao possivel entre linguagem em uso e aspectos estruturais da Linguagem situada
Nosso desafio, conforme enunciamos anteriormente, esta na conciliagao da perspectiva da linguagem em uso, com a outra vertente de nosso trabatho sobre praticas discursivas, voltada a genese e circulagao dos repertories sobre risco, em que identificamos tres tradigoes discursivas distintas: governo de coletivos, disciplinarizagao da vida privada (via disciplina dos corpos) e aventura. Na busca de subsidies para trabalhar dialeticamente (mas nao contraditoriamente) com essa dupla face nos discursos sobre risco, deparamo-nos com dois caminhos: o enquadre foucaultiano de formagoes discursivas e a proposta teorica de generos de fala de Mikhail Bakhtin. Um primeiro caminho: as formagoes discursivas foucaultianas
No capitulo intitulado "Formagoes discursivas", do livro Arqueologia do saber, publicado em 1969, Michel 267
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Foucault (1987) problematiza a possibilidade de pensai a unicidade dos discursos a partir das relagoes entre enunciados. Busca integrar regularidades e sistemas de dispersoes, denunciando a paradoxal integra9ao do mesmo e da diferenca das formasoes discursivas. Nesse afa, descarta paulatinamente quatro hipoteses sobre as bases da rela9ao entre enunciados: a referenda a um mesmo objeto (por exemplo, risco); a constancia no estilo (ou o carater constante da enuncia9ao); o sistema de conceitos em jogo, a identidade e a persistencia dos temas. Descarta essas hipoteses, pontuando as diferencas, os desvios e as transformacoes historicas em cada elemento potencialmente integrador, propondo que se estude os principios de individualizagao do discurso justamente em seus pontos de dispersao e nao de integracao. Foucault define asformacdes discursivas precisamente por meio da imbrica9ao entre sistemas de dispersao e regularidades discursivas.
controlar os perigos do discurso e domar sua aleatoriedade. Volta-se, portanto, asprdticas discursivas mais do que as regras intemas de seu funcionamento e sao essas fun9oes de controle do discurso como pratica discursiva que Foucault utiliza como tema de sua aula inaugural no College de France, em 1970: A Ordem do Discurso. Nessa aula, Foucault parte da hipotese que [...] em toda sociedade a produ9ao do discurso e ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuida por certo numero de procedimentos que tern por funcao conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatorio, esquivar sua pesada e temivel materialidade (Foucault, 2002: 8).
O olhar se desloca, assim, da ordem ao controle; das regularidades per si aos procedimentos, que tern por fun9ao
Nessa apresenta9ao, aborda os procedimentos de exclusdo que operam do exterior sobre o discurso: a interdi9ao (a palavra proiblda), a separa9ao (como no caso da loucura) e a vontade de verdade. Discute, tambem, os controles internes sobre o discurso - o comentario (as formulas e rituais), o autor (como foco de coerencia) e as disciplinas (e seu jogo de regras e defini9oes) - assim como as condicoes de utilizaqao que defmem os individuos que podem, legitimamente, entrar na ordem do discurso (o ritual, as sociedades de discurso, a doutrina e as formas de apropria9ao social dos discursos). Tomando por foco o jogo complexo e qui9a paradoxal entre a ordem e a desordem dos discursos, propoe, para o estudo das forma96es discursivas, que sejam tomadas uma serie de decisoes metodologicas: a inversao, a descontinuidade, a especificidade e a exterioridade. Por inversao, Foucault se refere ao deslocamento das figuras tradicionais da analise - autor, disciplina ou vontade de verdade - em dire9§o ao "jogo negative de um recorte e de uma rarefa9ao do discurso" (2002: 52), deixando, poiss de considera-las instancias fundamentals e criado-
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No caso em que se puder descrever, entre um certo numero de enunciados, semelhante sistema de dispersao, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enuncia$ao, os conceitos, as escolhas tematicas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlafSes, posi9oes e funcionamentos, trans forma9oes) diremos, por convencao, que se trata de umaforma$ao discursiva - evitando, assim, palavras demasiadamente carfegadas de condicoes e conseqiiencias, inadequadas, alias, para designar semelhante dispersao, tais como "ciencia", ou "ideologia", ou "dominio de objetividade". Chamaremos de re~ gras deformaqao as condicoes a que estao submetidos os elementos dessa reparti^ao (objetos, modalidade de enunciacao, conceitos, escolhas tematicas) (Foucault, 1987:43).
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ras! Ja o principle de descontinuidade trata os discursos como praticas descontinuas que por vezes se cruzam, mas tamb6m, por vezes, se ignoram. Ou seja, nao se busca por detras delas "uma realidade mais fundamental do discurso" (p. 79).
tramos subsidies para trazer as formagoes discursivas foucaultianas para o espa^o das interagoes cotidianas.
Quanto ao principio da especificidade, trata-se de nao transformar o discurso em "um jogo de significacoes previas", como se o mundo tivesse uma face legivel que cabe ao discurso decifrar. Foucault propoe que se conceba "o discurso como uma violencia que fazemos as coisas, como uma pratica que Ihes impomos [...]" (p. 53). Finalmente, quanto a regra de exterioridade, propoe que nao passemos do discurso para um suposto nucleo escondido: o amago de um pensamento ou de uma significagao. Devemos, a partir de sua regularidade, buscar as suas condigoes externas de possibilidade,"[...] aquilo que da lugar a serie aleatoria desses acontecimentos e fixa sua fronteira" (p. 53). Tais posicionamentos metodologicos fogem da descrigao da estrutura interaa dos discursos e sao compativeis com a virada linguistica, apesar de Foucault ter chegado a eles por caminhos singulares, refletindo sobre poder (associado ao saber) e subjetividade, mais do que sobre linguagem propriamente dita. Suas pesquisas focalizam as condigoes de emergenciados sistemas de conhecimento (a arqueologia) e as condigoes de funcionamento na perspectiva do poder (a genealogia).
Com referenda a Bakhtin, vale pontuar que a preocupa9ao aqui nao e com a obra (que, no caso desse autor, e rica e complexa) e sim um texto muito especifico - The problem of speech genres - publicado originalmente em 1952-1953. Para Bakhtin a unidade basica da comunica9ao e o enunciado. Este, entretanto, nao pode ser entendido isoladamente: "Qualquer enunciado e um elo em uma corrente formada de maneira muito complexa por outros enunciados" (1994: 69). Os enunciados, na perspectiva de Bakhtin, implicam presen9a de interlocutores, presentes, passados e futures, inserindo-se assim, de maneira concomitante, em uma teoria da Hnguagem e uma teoria da comunica9ao. Esse posicionamento fica claro ao considerarmos as no9oes de enderegamento e de vozes. O endereqamento refere-se a presenga do outro, havendo dois aspectos importantes. De um lade, a propria nogao de enunciado j a denuncia essa presenga, dado que as fronteiras de um enunciado sao deflnidas pela mudanga de locutor (presente ou imaginado). De outro lado, a compreensao da comunicagao e, ela mesma, perpassada por responsividade: ao compreender a mensagem, o interlocutor assume automaticamente uma atitude responsiva para com ela. Mesmo tratando-se da compreensao silenciosa, Bakhtin a posiciona como uma forma de dialogo; ele diz: "A compreensao e uma forma de didlogo; ela esta para a enunciagao assim como uma replica esta para a outra no dialogo. Compreender e opor a palavra do
Entretanto, a proposta de estudo da Hnguagem dos riscos prende-se a relacao entre estrategias de governamentalidade e as posicoes de pessoa que tais estrategias definem (ou tornam possiveis). Assim, ao nosso ver, falta na proposta foucaultiana de analise das praticas discursivas o lugar da pessoa: da interatividade e dialogicidade que marca os processes cotidianos de produgao de sentidos. E na reflexao de Bakhtin sobre generos defala que encon270
Um segundo caminho: Mikhail Bakhtin e o conceito de generos de fala
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locutor urna contrapalavra" (Bakhtin, 1929/1995: 132 Enfase do autor). Mas e a no^ao de vozes que nos permite maior aproxima9ao com o foco deste texto que visa discutir a possibilidade de integra9ao de uma perspectiva mais estrutural (ou normativa) e da dialogicidade das praticas discursivas orais. Nossos discursos sao produzidos por uma voz the speaking personality. Como tal, um enunciado e sempre falado ou escrito a partir de um ponto de vista (Wertsch, 1991: 51). Mas esse ponto de vista e simultaneamente resultado da criatividade do ato singular (do estilo individual) e do tipo de enunciados a que pertence. "Naturalmente, se visto de maneira isblada, cada enunciado e individual, todavia, cada campo em que a linguagem e utilizada desenvolve enunciados tipicos e relativamente constantes. A estes chamamos generos defala" (Bakhtin, 1994: 60 - Enfase do autor). E essa dinamica, entre formas estaveis de enunciados e os usos singulares que deles sao feitos, que propicia o enquadre para pensar a relacao entre linguagem dos riscos, tradicoes discursivas e usos especificos de enunciados sobre risco. Essa rela9ao dialetica entre normatividade e singularidade e abordada por Daniel Fa'ita (1997) em texto publicado em obra comemorativa dos cem anos de Bakhtin (Brait, 1997). Diz o autor: Com efeito, o individuo dispoe, certamente, de formas identicas as de qualquer outro membro da comunidade, mas nenhuma forma, no entanto, isto &, nenhuma abstracao pode ser transmitida a quern quer que seja a nao ser na concretude da relafao, com todas as nuan9as ou colora9oes sociais, psicologicas ou simplesmente afetivas pelas quais e nas quais se perfilam os sujeitos singulares. A dimensao criadora das atividades pertencentes a diferentes areas, por um lado, em niimero maior ou menor conforme os individuos, nao se inscreve numa mesma
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7. Praticas discursivas... ordem de coisas. A normatividade se exprime nas combina9oes que o enunciado realiza, enquanto sua individualidade resulta da Hvre concep9ao, pelo locutor de $Q\iprojeto discursivo (Faita, 1997: 171).
Essa rela9ao dialetica entre conhecimento situado e dialogicidade, de um lado, e o solo mais normative em que se processa a comunica9ao e trabalhada por Bakhtin por meio das no9oes de linguagem social e generos de fala. Esses conceitos possibilitam a integra9ao entre propostas aparentemente irreconciliaveis: unique speech events (enunciados singulares produzidos por vozes singulares) e tipos de speech events (tipos de enunciados produzidos por tipos de vozes), As linguagens sociais sao discursos peculiares a estratos especificos da sociedade (grupos profissionais, etarios, campos de conhecimentos distintos etc.), num determinado sistema social e numa determinada epoca. Segundo Wertsch, Ao empregar a no9ao de linguagem social, Bakhtin pode identificar e estudar principios organizadores da comunica9ao discursiva concreta. Seu empenho ancorava-se no pressuposto de que nao ha logica em examinar unidades que "a ninguem perten9am e a ninguem sao endere9adas" para formular principios que generalizam enunciados da comunica9ao humana (1991: 59).
Em suma, as linguagens sociais nao existem no vacuo. Segundo Bakhtin, um locutor sempre invoca uma linguagem social ao produzir um enunciado, mas faz isso se apropriando desta e povoando-a com suas proprias inten9oes e estilo. Portanto, a linguagem e sempre uma constru930 hibrida - um atravessamento de vozes, estilos e tipos de enunciados. Se a no9ao de linguagem social remete a posi9ao de pessoa (estrato social, profissao etc.) a partir do qual fala o 273
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locutor, os generos defala sao caracterizados, sobretudo, por temas e situagoes tipicas de comunicagao. Bakhtin afirma que "urn genero de fala nao e uma forma de linguagem, mas uma maneira tipica de enunciado; assim, ao ser expresso, o genero carrega uma tipicidade que Ihe e inerente" (1994: 87). Isso se aplica tanto as comunicagoes corriqueiras do cotidiano, como as diversas formas de comunicagao cientifica e generos literarios. Para o autor, a riqueza e diversidade dos generos de fala (escritos e orais) sao ilimitadas "porque as possibilidades da atividade humana sao inesgotaveis e porque cada uma dessas esferas contem seu repert6rio de generos de fala que se diferenciam a medida que essa atividade se desenvolve e se torna mais complexa" (1994: 60). Mesmo fazendo distincoes analiticas entre linguagens sociais e generos de fala seus limites sao dificeis de serem demarcados porque o estoque social linguistico dispomvel vive na constancia de repertories prototipicos encadeados na tipicidade de diferentes generos de fala, ao mesmo tempo em que sao atualizados infmitamente, por meio de diferentes praticas discursivas. Os generos de fala, como tipos de enunciados, nos permitem tambem fazer a ponte entre passado e presente, o que vem ao encontro da perspectiva temporal por nos adotada no estudo das praticas discursivas (Spink & Medrado, 1999). Segundo Bakhtin, os "enunciados e suas formas tipicas, isto e, os generos de fala, sao as correntes transmissoras (drive belts) da historia da sociedade para a historia da linguagem" (1994: 65). Faita parece concordar com isso ao afirmar: [...] e a introdugao naproblematica do processo historico de constituicao do sentido que nos parece estabelecer um marco importante. Esse processo tern dupla implicagao, por assim dizer, pois nao so a evolucao do dialogo
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7. Praticas discursivas... produz uma circulagao, um movimento tematico transformando a cada instante os valores em referenda aos quais os sentidos das palavras se reconstituem, como tambem este ultimo (ou a "significagao real" nessa etapa do pensamento de Bakhtin) esta ainda parcialmente determinado por essas "vozes" anteriores as quais respondemos sem explicitar, ou que nos esforcamos por ignorar (Faita, 1997: 162).
Ainda nos apoiando nas consideragoes de Faita a respeito das teorizagoes de Bakhtin sobre generos de fala, e a soma de varias contradigoes que asseguram a motricidade do dialogo no processo paradoxal de produgao de sentidos. Primeiramente, a contradigao entxe a individualidade da produgao e a dimensao social do ato. Em segundo lugar, a contradigao entre "a pregnancia incontornavel das normas e a liberdade do projeto discursive". Em terceiro lugar, a contradigao "entre a liberdade da criagao e a implicagao de todo sujeito na relagao triadica entre si mesmo, o outro, e estas vozes que se exprimiram antes ou se exprimem em outros lugares, em paralelo" (Fai'ta, 1997: 173). E tambem a partir da argumentagao de Bakhtin de que qualquer enunciado (oral ou escrito) implica a presenga de interlocutores, presentes, passados e futuros, que se materializam nas nogoes de vozes e de enderegamento, que podemos compreender os textos escritos como praticas discursivas e acatar o principio de que toda linguagem e dialogica. Nessa perspectiva, as praticas discursivas sao as maneiras pelas quais se articulam as linguagens sociais existentes e os generos de fala, produzindo singularidades de uso e hibridizagoes discursivas, como nos rnostra o estudo do uso da linguagem social dos riscos. 3. A linguagem dos riscos e suas diferentes tradigoes
O programa de pesquisa voltado a gestao dos riscos na modernidade tardia desenvolvido no ambito do Nucleo de 275
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Estudo e de Pesquisa em Praticas Discursivas e Producao de Sentidos (PUC/SP)4, desde 1996, assenta-se em alguns apontamentos; 1) A palavra risco tornou-se de uso corrente nas linguas indo-europeias por volta do seculo XIV, em um periodo em que havia se tornado possivel pensar o futuro como passivel de controle; 2) A formalizacao do risco como conceito fundamental para a gestao de coletivos sustenta-se no desenvolvimento de uma tecnologia especifica: o calculo de probabilidades; 3) A analise dos riscos, a partir de meados do seculo XX, assenta-se em tres pilares: o calculo do risco, a perceppao do risco pelo publico e a gestao dos riscos (que envolve, mais recentemente, a comunicacao do risco para o publico); 4) A analise dos riscos e palco de acirrados debates que confrontam posturas objetivistas e socioculturais que desembocamno consenso (pouco confortavelparauns) que a definicao do que vem a ser riscos esta imbricada com valores e ordens morals que extrapolam a racionalidade do calculo do risco; 5) Esse debate, na modernidade tardia, desloca-se da esfera dos valores para a esfera do calculo, ponderando que os riscos manufaturados tendem a ser imponderaveis; 6) Finalmente, sejam os riscos calculaveis ou imponderaveis, na medida em que afetam os coletivos, eles sao obrigatoriamente objetos de gestao publica. Ou seja, a gestao dos riscos e tarefa central no governo das populates, seja nos microcontextos de cada cidade, estado, nagao, ou no macrocontexto da sociedade 4 O Nucleo e o programa de pesquisa estao sob a coordena9ao de Mary Jane Spink e incluem Projetos Integrados do CNPq assim como projetos desenvolvidos por mestrandos e de doutorandos.
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globalizada. Riscos associados a falencia economica ao terrorismo internacional, a destruigao ambiental a contaminate por agrotoxicos entre outros, ao emprego de novas tecnologias na saude, assim como os riscos do cotidiano urbano precisam ser calculados, segurados e gerenciados. As formas de controle dos riscos possibilitam, portanto, entender as modernas estrategias de governamentalidade, conceito desenvolvido por Foucault em escritos variados, sobretudo em texto homonimo da aula proferida no College de France em 1° de fevereiro de 1978 (Foucault, 1995). Optamos pelo conceito de governamentalidade por evitar reduzir o problema da gestao dos riscos a esfera do Estado, inserindo-o na questao mais abrangente de uma mentalidade de governo. O conjunto constituido pelas institui9oes, procedimentos, analises e reflexoes, calculos e taticas que permitem exercer esta forma bastante especifica e complexa de poder que tern por alvo a populasao, por forma principal de saber a economia politica e por instrumentos tecnicos essenciais os dispositivos de seguransa (Foucault, 1995:291).
Ou seja, o governo nada mais e que a fusao das atividades de cada um de nos, cabendo a Psicologia Social uma importante contribuigao na compreensao dos sentidos dos riscos na vida cotidiana. Trazendo essa proposta para o enquadre da psicologia discursiva que se desenha no ambito do movimento construcionista, o foco se desloca das estrategias regradas para as formas de falar sobre riscos em diferentes instancias da vida cotidiana5. 5 Haviamos explorado, em pesquisas anteriores, as diversas maneiras em que circulam os repertories sobre risco. Com esse objetivo, desenvolvemos pesquisas na midia (Spink et al,, 2002), em alguns campos disciplinares (Psicologia e Educacao em Saude) e exploramos os sentidos do risco no espago de vida de pessoas de diferentes segmentos da sociedade (Spink et al.}.
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Continuando a reflexao acerca do estatuto teorico da linguagem dos riscos, retomamos a pergunta: como trabaIhar a contradigao entre os aspectos mais permanentes das maneiras de falar sobre risco na moderaidade (a normatividade da linguagem dos riscos), as especificidades dos discursos em diferentes setores de atividade que tern riscos como aspectos intrinsecos (os generos de fala) e a polissemia dos sentidos dos riscos nas praticas discursivas cotidianas (a dialogicidade)? Comegando com o pressuposto de existencia de uma linguagem social dos riscos, o que estamos propondo e que desde que os riscos puderam ser pensados na perspectiva da gestao, formataram-se certas constancies discursivas que nos permitem falar da existencia de uma linguagem dos riscos. Barbara Adam e Joost Van Loon referem-se a esta nos seguintes termos: A linguagem dos riscos esta tradicionalmente associada ao mundo economico das trocas e das apolices de seguros, ao mundo medico na rela9ao entre profissionais da saiide e seus pacientes, aos esportes radicals e as pessoas que "arriscara" suas vidas por outros. Nessas situacoes tradicionais de risco, as pessoas calculam o risco potencial de certas 39068 e tomam decisoes fazendo escolhas a luz de suas avalia9oes. Riscos especificos sao concebidos e relacionados as pessoas, as familias e as nagoes, no que se refere ao bem-estar fisico, mental, social e/ou economico. A linguagem dos riscos, entretanto, e e sempre foi inescapavelmente social. A percepcao de risco pressupunha uma relagao particular com um fiituro essencialmente desconhecido, cuja probabilidade de ocorrer podia, todavia, ser calculada tomando como base freqiiencias passadas: uma resposta sociocultural calculada em antecipacao a acontecimentos potenciais. 0 calculo do risco e esse tipo de comportamento 6 uma questao de matematica que independe do risco ser calculado de maneira explicita ou implicita. [...] Nessa perspectiva, o 278
mundo do calculo de riscos pressupoe diferenciacoes nitidas entre o que e seguro e perigoso, entre verdadeiro e falso e entre passado e futuro (Adam e & Van Loon, 2000:7).
O foco da reflexao de Adam e Van Loon e o ordenamento do risco na moderaidade tardia. Sendo os riscos na modernidade tardia6 mais desordenados (messy) e menos propensos ao calculo, Adam e Van Loon argumentam a favor da necessidade de mudar o genero prevalente que articula riscos e perigos com base no calculo (que obedece uma logica binaria), para outro genero mais relacionado com a reflexao que leve em conta os sentidos que sao atribuidos a risco em diferentes contextos. Ou seja, postulam ser necessaria uma nova linguagem. Ja a nossa proposta, mais proxima a teoria linguistica de Bakhtin, e que jamais apagamos as vozes que falam a partir de outras linguagens sociais, por mais inadequadas que possam vir a ser. Alem do mais, a linguagem dos riscos que se fonnata no decorrer dos seculos, desde que risco se tornou objeto de gestao, se expressa de formas diferentes quando usada em contextos distintos, por exemplo, no ambito das tres tradicoes discursivas por nos propostas (Spink, 2001): o governo de coletivos (nas questoes de saude, tecnologia, ambiente), a disciplinarizagao dos corpos e a aventura. A primeira tradigao, o governo de coletivos, relaciona-se a crescente necessidade de governar populates, a partir da modernidade classica. Referenda, portanto, medidas coletivas, destinadas a gerenciar relagoes espaciais - a distribuigao e o movimento de pessoas nos espagos fisicos e sociais. Nessa tradigao discursiva a metafora mais
6 Modernidade tardia compreendida segundo a teorizaQao de Ulrich Beck (1992) sobre a sociedade de risco.
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utilizadaparaposicionar as pessoas comrelacao aos riscos e estar em risco (Spink, 2000a; 2001). A segunda tradi9ao sustenta processes de disciplinarizacao da vida privada das pessoas, disciplina essa em que o proprio corpo e alvo de controle, sendo a educa9ao sua estrategia central (Foucault, 1995). A disciplinarizacao das pessoas contempla duas etapas. Na primeira, a disciplina do corpo esta na higiene, vinculada ao movimento higienista do final do seculo XIX e a moral da preven9ao: higiene pessoal, higiene do lar e higiene moral. No decorrer do seculo XX, com o aumento da expectativa de vida, por causa do controle de doenc.as infecciosas e da melhoria das condic.6es sociais, as doencas cronicas tornam-se preocupacoes centrais da saude publica. Progressivamente, os conhecimentos medicos definem novos padroes de controle. Uma pessoa devidamente informada e responsavel pelo autogerenciamento de sua saude. O estilo de vida como forma de autocontrole e a face mais famosa dessa reorganiza9ao (Spink, 2000a). "E nessa esfera que vemos emergir uma das mais potentes metaforas sobre os comportamentos perante riscos: correr riscos" (Spink, 2000b: 163). No que se refere a preven9ao, a logica e evitar os riscos. A terceira tradi9ao, que aproxima os campos da Economia e dos Esportes, herda a positividade da aventura apresentando especificidades discursivas quanto a logica da governamentalidade. Assim, um conjunto de repertorios sobre risco que, de certa maneira, escapa a governamentalidade, exibe conota9oes que fazem do correr riscos uma pratica necessaria para alcan9ar determinados ganhos. Essa perspectiva e reinterpretada na modernidade pela Economia. Correr riscos, monitorado por taxas probabilisticas, e elemento intrinseco desse dominio. Alguns dos repertories proprios da aventura tomaram-se parte integral do campo da Economia, imprimindo singularidades
na abordagem de riscos nesse campo de saber: coragem, adrenalina, medo e ate mesmo o risco de falencia ou de sincope cardiaca (Spink, 2000a; 2001). O cotidiano do pregao da bolsa de valores e elucidative desse genero discursivo sobre risco. O que esta em jogo na abordagem da Economia sobre riscos e o grau de satisfa9ao ou descontentamento associado a uma possivel a9ao ou transa9ao. Nessa perspectiva e totalmente irrelevante se um dano e significado como prazeroso ou catastrofico: arelevancia esta na satisfa9ao subjetiva perante potenciais consequencias e nao numa lista predefinida de efeitos indesejaveis. Assim, o denominador comw^satisfacaopessoal e que permite a compara930 direta entre riscos e beneflcios, a partir de um leque de op9oes (Renn, 1992). A aventura, que parece ser parte da condi9ao humana, e ressignificada na modalidade das emocoes radicals. Certos esportes radicais sao domesticados e, ate certo ponto, reintegrados a vertente da governamentalidade, posto que se apoiam em regras e equipamentos de seguran9a. Nessas modalidades busca-se manter viva a tradi9ao de fortalecimento de carater. Mas, em oposi9ao a aventura presa a regras, encontra-se um crescente numero de modalidades de aventura sem resgate., por exemplo, a demanda por reservas narurais onde pessoas adentram sem expectativa de resgate em caso de acidente. As peculiaridades discursivas da tradi9ao aventura (considerando aqui o mundo dos negocios e dos esportes) mostram ser necessario reconhecer que as teoriza9oes sobre risco precisam incorporar o sentido do risco desejado (Machlis & Rosa, 1990). A metafora e correr o risco desejado. Nos processes de socializa9ao herdamos tensoes decorrentes da maneira como certas constancias discursivas
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sobre risco foram formatadas na sociedade industrial ou sociedade moderna: 1) tensao entre uma perspectiva coletiva de gerenciamento de risco - apoiada na legislacao - e uma perspectiva mais individualista de introje?ao da disciplina; 2) tensao entre as visoes de leigos e de especialistas - os especialistas mais apoiados na quantifica?ao dos riscos enquanto os leigos lansam mao da informa?ao disponivel; 3) tensao entre o imperative da prevencao dos riscos e a percep9ao de que correr risco ajuda a formar o carater ou a liberar a criatividade (Spink, 2000a). Em suma, essas tensoes e diferencas emergemnos distintos generos de fala utilizados em campos variados. Embora preservando a ideia de controle baseado em calculo, a linguagem dos riscos assume conot^oes singulares e usos especificos, ficando colorida pelos generos de fala tipicos das praticas discursivas nas diferentes arenas de atividade. Buscaremos, no restante deste texto, ilustrar essas diferencas e, paralelamente, apontar que se tratam de generos de fala que tern interlocupao corn a linguagem social formatada no afa de falar sobre o controle dos riscos: a linguagem dos riscos.
7. Praticas discursivas... quivos, diarios oficiais e registros, jornais e revistas, anuncios, publicidade, dentre outros. Compreendendo esses documentos como produtos sociais tornados publicos e conferindo-lhes a condicao de praticas discursivas, ele diz: Os documentos de dominio publico refletem duas praticas discursivas: como genero de circula9§o, como artefatos do sentido de tornar piiblico, e como conteudo, em rela9ao aquilo que esta impresso em suas paginas. Sao produtos em tempo e componentes significative s do cotidiano; complementam, completam e competem com a narrativa e a memoria. Os documentos de dominio piiblico, como registros, sao documentos tornados publicos, sua intersubjetividade e produto da intera9ao com um outro desconhecido, porem significative e frequentemente coletivo. Sao documentos que estao a disposi9ao, simultaneamente tra?os de apao social e a propria a9ao social. Sao publicos porque nao sao privados. Sua presenca reflete o adensamento e ressignifica^ao do tornar-se publico e do manter-se privado; processo que tem como seu foco recente a propria constni9ao social do espa90 publico (Spink, 1999: 126).
Peter Spink, reconhecendo a necessidade de ampliar as fontes de pesquisa, tradicionalmente utiiizadas no campo da Psicologia Social como entrevistas, questionarios e discussoes de grupo, argumenta sobre a riqueza de fontes como ar-
Neste texto, ao analisarmos documentos de dominio publico compreendendo-os como praticas discursivas, avan9amos na compreensao da linguagem em uso ao propor que os repertories sobre riscos se integram em uma linguagem social e sao expresses nos diferentes campos em que se fala sobre risco por meio de generos defala que Ihes sao especificos. Tomando como material de analise documentos de dominio publico, apresentaremos tres usos da linguagem dos riscos, ressaltando os contrastes e as diferen9as entre as tradi9oes discursivas acima descritas: 1) risco e saude publica: a campanha de preven9ao ao cancer de colo de utero; 2) risco como aventura: a Expedi9ao Mata Atlantica; 3) risco e beneficio: programas de reprodu9ao humana assistida.
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4. Estrategias de governamentalidade: contrastes e diferencas entre tradic.oes discursivas
Como referimos anteriormente, um dos nossos desafios, ao estudar o uso da linguagem dos riscos como forma de gestao das relaQoes sociais, tem sido trabalhar a dupla face da compreensao dos microprocessos de producao de sentidos no aqui-e-agora das intera9oes sociais e da analise mais voltada a circula9ao de repertories linguisticos.
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Mary Jane P. Spink e Vera Mincoff Menegon
As duas primeiras ilustragoes tomam como base a analise realizada por Spink (2002) em texto apresentado ao Grupo de Trabalho da ANPEPP, sob o titulo Psicologia social, governamentalidade e linguagem dos riscos no, vida cotidiana. A terceira ilustra^ao foi extraida da pesquisa realizada para a tese de doutorado intitulada Entre a linguagem dos direitos e a linguagem dos riscos: os consentimentos informados na reproducdo humana assistida (Menegon, 2003). A primeira ilustracao trata de uma campanha na area de saude publica que se dirige ao publico-alvo a partir da tradigao coletiva de governamentalidade. A segunda refere-se a chamada para a quinta edifao de uma corrida de aventura, inserindo-se, portanto, na tradicao do risco-aventura. Nessas duas primeiras ilustrasoes, de modo a destacar as diferen9as discursivas, analisou-se uma mesma modalidade de texto: a que faz um apelo por voluntaries. Finalmente, a terceira ilustra9ao foca o uso da linguagem dos riscos (risco e beneficio) em documentos destinados a obter o consentimento informado (e vohmtario) de pessoas que buscam a tecnologia de reprodufao humana assistida. Risco e saude publica: a campanha de prevengao ao cancer de coLo de utero O texto do Jornal da Associa9ao, Medica Brasileira (JAMB) tern por titulo Campanha contra o cancer de colo de utero e foi publicado na 86930 "Brasil Medico" do numero 1318, ano 43, de mar9o de 20027. Trata-se de exem7 O texto analisado foi obtido na Internet, em consulta realizada em 4/8/2002. Utilizou-se a Homepage de uma instituipao importante na area da saude: a Associacao Medica Brasileira (http://amb.connectmed.com,br). Realizou-se consulta on-line a revista oficial da entidade, o Jomal da Associacao Medica Brasileira, JAMB. Utilizou-se somente material de livre acesso, portanto, de dominio publico.
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plo prototipico da linguagem dos riscos, embora atravessado pelo genero de fala especifico das relacoes entre profissionais e pacientes. O argumento, nesse texto, esta organizado em tres partes, havendo entre elas diferen9as substantivas quanto ao uso da linguagem. A primeira consiste em uma introdu9ao que situa a campanha: o periodo em que sera realizada; os objetivos; o publico-alvo e a infra-estrutura disponivel. Sao trequentes as alusoes numericas: em numero de dias (dura9ao da campanha), em idade (do publico-alvo) em centenas e milhoes (para falar do numero de funcionarios envolvidos, do nurnero de laboratorios, de polos cirurgicos e de Centros de Alta Complexidade). Trata-se, poderlamos proper, de um uso numerico de carater arirmetico, lembrando aqui da distin9ao feita por Foucault entre a aritmetica e a geometria: Recordemos aqui, apenas a titulo simbolico, o velho principio grego: que a aritmetica pode bem ser o assunto das cidades democraticas, pois ela ensina as relacoes de igualdade? mas somente a geometria deve ser ensinada nas oligarquias, pois demonstra as proporfoes na desigualdade (Foucault, 2002: 17).
A aritmetica, no caso, faz o apelo retorico da competencia e, ao mesmo tempo, democratiza as informa9oes (senao a propria a9ao de preven9§o). A segunda parte do texto situa o problema que leva a organiza9ao da campanha: o cancer de colo de utero. Aqui, a enfase e na propo^ao e na probabilidade do risco e nao causa espanto que tenha por subtitulo chances de cura. Nao bem geometria, mas a ardilosa linguagem probabilistica do calculo do risco. Estamos, assim, no cerne da linguagem dos riscos: o calculo para fins de gestao. Obviamente que, para calcular, e precise que tenhamos se285
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ries historicas dos efeitos do risco e sao esses registros que organizam a segunda parte do texto: • Segundo as estimativas publicadas anualmente pelo Inca, em 2001 foram registrados 16.270 novos casos desse cancer. De 1979 a 1998, o numero de obitos cresceu 29%. • De acordo com o Inca, o cancer de colo de utero e mais freqiiente na regiao norte [...]. • Nos ultimos 20 anos, a taxa de mortalidade por esta doenca esteve muito alta, o que levou o governo brasileiro a assumir o compromisso [...] de desenvolver um programa em ambito nacional.
Ou seja, tendo sido fornecidas as informacoes consideradas necessarias, organizadas em series historicas por pais, regiao etc., defmem-se medidas para fazer face ao problema. Mas o controle da doen9a e dificil, nao pelo empenho do ministerio - vejam-se os dados apresentados na introdu9ao do texto; mas por tudo aquilo que diz respeito a populacao-alvo: as mulheres. Atualmente o controle da doen?a e dificultado, sobretudo por fatores culturais, socials e economicos, com o inicio da atividade sexual antes dos 18 anos de idade; pluralidade de parceiros sexuais; fumo; falta de higiene e uso prolongado de contraceptivos orais. Essa e a ponte para a terceira parte do texto, intitulada prevengao. Nesta, o foco e a mulher a quern se destina a campanha e a preven?ao e o profissional que a atende. Aqui, a acao nao e mero compromisso (como nas acoes governamentais de gestao do cancer de colo de utero), mas um dever. • Toda mulher com vida sexual ativa deve submeter-se a exame preventive periodico [...]. • Inicialmente, o preventive deve ser felto a cada tres anos. • Em mulheres gravidas, deve-se evitar a coleta endocervical.
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• Para garantir a eficacia dos resultados, a mulher deve evitar ter relafdes sexuais um dia antes do exame [...].
Em suma, identificado o problema (a alta porcentagem desse tipo de cancer) e definidas as responsabilidades publicas (a rede de atendimento e a campanha), a responsabilidade pela eficacia da estrategia e transferida as mulheres, ja identificadas, no texto, como fatores que dificultam o sucesso. Cabe a mulher se disciplinary^ controlar o risco de cancer. , Mesclam-se no texto uma linguagem social - a linguagem dos riscos, permeada de repertories sobre gestao - e generos de fala que sao importados da relacao clinica entre medicos e pacientes. Risco como aventura: a Expedicao Mata Atlantica
No site da Expedigao Mata Atlantica (EMA)8, as informagoes estao organizadas em tres partes: o historico das corridas de aventura e da EMA; os dados sobre a corrida em sua quinta edigao e os procedimentos de inscricao, Em nenhum desses topicos encontram-se informagoes sobre riscos. O historico contem tres subtopicos: introdugao, corrida de aventura e projeto socioambiental. Na introducao, a retorica e a da tradicao. EMA esta em sua quinta edicao; suas origens estao presas a participacao de seu idealizador em uma corrida de aventura realizada na Nova Zelandia 8 O texto analisado foi obtido na Internet, em consulta realizada em 04/08/2002. Optou-se pela Homepage de uma institui9ao reconhecida no campo da aventura: a Sociedade Brasileira de Corridas de Aventura (www.EMA.com.br). No site da Sociedade Brasileira de Corridas de Aventura optou-se pela chamada recente para inscripao de equipes na Expedicao Mata Atlantica, de livro acesso. 287
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que o levou a criar, no Brasil, a Associagao Brasileira de Corridas de Aventura. Na descri9ao da modalidade de esporte denominada corrida de aventura busca-se duplamente caracterizar esse tipo de corrida e situa-la no contexto internacional dos ralis humanos. O terceiro subtopico retoma a tematica do projeto socioambiental que da a essa modalidade de esporte sua especificidade num contexto de progressiva invenpao de modalidades de risco-aventura. Sao, portanto, duas as retoricas: a da tradi^ao, sendo a EMA uma reedicao nacional de corridas de aventura realizadas em outras partes do mundo, e a da alian?a entre o prazer do esporte e um novo estilo de vida que Integra homem e natureza. • [...] este novo projeto que alia o prazer do esporte a uma nova visao, um novo estilo de vida que integra o homem a natureza, ao esporte e a conscientizacao da necessidade de preservagao ambiental (Introdugao); • [...] EMA, cujo conceito e unir o esporte, a aventura e a preocupa9ao com a conscientizasao ambiental (Introducao); • A Expedisao Mata Atlantica e um evento que interage com o meio ambiente atraves do respeito e conhecimento pela natureza, nao se restringindo aos atletas que dela participam. Os projetos socioambientais tern como objetivo conscientizar colaboradores de toda sorte e, principalmente, a comunidade proxima ao percurso da prova (Projeto Socioambiental).
Nao se fala em riscos, mas ha mencao de exigencia de superacao de limites e de correr contra o tempo, condi9oes que propiciam riscos. • A Corrida de Aventura e uma competicao da qual participam atletas agrupados em equipes de ambos os sexos, dispostos a cumprirem regras para alcancarem um objetivo
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no menor tempo, exigindo o maximo de suas resistencias fisica e mental (Corrida de Aventura); • Durante a Expedicao Mata Atlantica, todos aliam a estrategia de uma corrida contra o tempo a solidariedade, consciencia e rigidas regras ambientais. E quando os limites de um evento esportivo sao ultrapassados...
Na segunda parte do texto, voltado a descri?ao da quinta edicao da corrida, sao fomecidos dados gerais sobre a organiza9ao do evento: as equipes, o transporte dos equipamentos, as modalidades usuais e o valor da premiacao (R$ 62.000 para o primeiro lugar; R$ 30.000 para o segundo e R$ 18.000 para o terceiro), Usa-se, aqui, uma linguagem categorica autoritaria: as equipes serao mistas; os equipamentos deverao estar em caixas a serem transportadas pela organizacao; a integra9ao da equipe sera essencial para se chegar ate o final; os atletas deverao ser polivalentes. A terceira parte do texto explicita as condicoes para inscri9ao. Mais uma vez, usa-se um estilo categorico autoritario que pertence ao genero de fala dos contratos comerciais: o nome da equipe deverd ser informado no ato da inscri9ao; a documenta9ao completa deverd ser entregue ate 31/12/2002; o valor da inscri9ao devera ser pago da seguinte maneira; a organiza9ao da prova exigird a apresentacao dos seguintes documentos [...]. Incluem-se informa9oes sobre os certificados e atestados exigidos e defme-se a politica de desistencia, sendo que a equipe deverd informar a desistencia por escrito, ficando a organiza9ao desobrigada de ressarcir as parcelas ja pagas. Sao tres os documentos essenciais para validar a inscri9ao: a ficha de inscri9ao, a ficha medica e o termo de responsabilidade. Destes, e, sobretudo, o Termo de Responsabilidade que nos informa que estamos lidando com 289
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um genero de fala que se inscreve no ambito mais geral da linguagem sobre risco. Assim, o item 2 informa: 2) Os riscos de acidentes nas atividades desenvolvidas nesta competicao sao significativos e envolvem possibilidade de afogamento, deslocamentos, luxacoes, fraturas, queimaduras, mordidas, picadas de animais, insetos, contato com plantas venenosas, acidentes nas modalidades de canoagem, tecnicas verticals, ciclismo, marcha, natagao e rafting, risco de possivel paralisia permanente e morte. Apesar de regras especificas, equipamentos e disciplina poderem reduzir os perigos inerentes, o risco de serios danos existe; 3) EU RECONHEgO E ASSUMO LIVREMENTE TODOS OS RISCOS, CONHEODOS OU NAO, mesmo os originados por negligencia dos organizadores ou outros, e assume total responsabilidade pela minha participacao (caixa alta, conforme o original do Termo de Responsabilidade).
Em suma, nessa tradigao discursiva, os riscos sao incorridos voluntariamente pelo prazer do esporte. Os riscos sao tidos como inerentes a atividade, embora possam ser minimizados pela boa conduta (seguindo regras, por meio da disciplina e da competencia tecnica) e uso do equipamento adequado. Se incorridos voluntariamente, a responsabilidade por eventuais danos e de quern optou por correr riscos. Cabe aos promotores do evento se protegerem de possiveis acoes judiciais em caso de ocorrencia de acidentes. Risco e benefkio: consentimentos informados para reprodugao humana assistida
A comunicagao de possiveis riscos e beneficios e tratamentos altemativos associados ao emprego de tecnologias na area da saude e um aspecto relevante na agenda do que deve ser informado para a obtengao do consentimento in290
formado de usuarias(os). Subjacente ao uso da linguagem dos riscos nesse tipo de documento, na area da saude de maneira geral, esta a nocao de que e possivel decidir por meio de um equilibrio entre os riscos e os beneficios que sao comunicados sobre o tratamento proposto. Na pesquisa da qual extraimos os exemplos aqui utilizados foram analisados vinte e sete textos de formularios para obter consentimento informado, por escrito, das pessoas que procuram a tecnologia para reproducao humana assistida. O uso dos formularios foi devidamente autorizado pelas clinicas9. Em termos gerais, a analise mostrou que os consentimentos sao textos hibridos, com destaque para o entrelagamento de duas linguagens sociais, a linguagem dos direitos, compreendida no dialogo entre Direito e Filosofia Moral, com suas variacoes entre direitos e deveres, e a linguagem dos riscos, compreendida tanto na especificidade biomedica como nas abordagens tecnico-cientificas sobre risco. Esses documentos exibem um entrela9amento de diferentes generos de fala: da relagao medico-paciente, das explicagoes tecnico-cientificas, de acordos contratuais, dentre outros. O genero contratual, entretanto, acaba formatando a maioria desses consentimentos, como exemplifica o trecho abaixo: 9 Desenvolvida no Nucleo, a pesquisa, intitulada Entre a linguagem dos direitos e a linguagem dos riscos: os consentimentos informados na reproduqao humana assistida, utilizou como estudo de caso a reproducao humana assistida. Tendo como foco analitico a versao documental do consentimento, buscou entender as linguagens sociais ai presentes, com aten?ao especial a linguagem dos riscos e implicac.oes para a relac.ao entre os professionals da saude e os clientes dessa tecnologia. Os textos analisados foram produzidos por oito clinicas que oferecem esse tipo de assistencia, localizadas no municipio de Sao Paulo.
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Mary Jane P. Spink e Vera Mincoff Menegon Ihiciodo documento; Pelo presente instrumento, n6s (nome, idade e nacionalidade), conjuges, consentimos aps medicos a prestarem senses que constarao de exames clinicos e laboratoriais, tratamento ambulatorial e/ou hospitalar, procedimentos clinicos e cinirgicos, tudo conforme as necessidades [...]. Final do documento'. Por terem sido informados e estarem de acordo, firmam o presente marido, esposa e responsavel pela clinica (Menegon, 2003: 204).
A formulagao dos textos apresenta um encadeamento de frases e de palavras que transita entre afirmagoes categoricas e afirma^oes abertas10. As declaraqoes ou afirma$oes categoricas buscam nao deixar margem a duvidas. Ao contrario, exprimem certeza e controle da situa?ao, aproximando-se, por vezes, de formas autoritarias. A assertividade das frases, os tempos verbais (no indicativo presente ou future do presente) e o uso do verbo dever sao alguas elementos presentes na estrutura dos enunciados. Por exemplo, o trecho abaixo e assertive para falar de procedimentos tecnicos. Nos casos de FIV/ICSI/Prost, a terceira etapa sera realizada no laboratorio. Aqui se completara a maturacao dos odcitos, apos o que serao inseminados ou injetados com espermatozoides do marido, ou cornpanheiro, os quais previamente serao incubados em um meio de cultura adequado para preservar e aumentar sua capacidade de fertiliza?ao (Menegon, 2003: 229).
As afirma9oes categoricas sao usadas tambem para falar de deveres e de compromissos envolvidos no consentimento dado para participar do programa proposto. Declaramos, atraves deste consentimento informado que aceitamos participar do programa de reproducao assisti-
da e doar os ovulos excedentes para outra mulher, de acordo com a resolucao do Conselho Federal de Medicinan° 1358 de!992. [...] (Menegon, 2003:236-Enfase nossa). [...] Estamos cientes e concordamos em que: Nunca procuraremos identificar a doadora, bem como tambem a doadora nao deverd ser avisada de nossa identidade (Menegon, 2003: 224 - finfase nossa).
No que se refere as declaraqoes ou afirmaqdes abertas, o encadeamento de frases e palavras falam do possivel e da incerteza. As sentencas caracterizam-se pelo emprego de substantives (como probabilidade e possibilidade) e do verbo poder, no sentido de ser possivel. Ao relacionar a linguagem dos riscos a essa forma estrutural das frases (declaracoes nao-categoricas) observa-se a estreita inter-rela9ao} no que refere ao jogo entre o possivel e o provavel, e a possibilidade de duvida. Nos textos, esse uso esta associado a comunica9ao de possiveis resultados ou desdobramentos da interven9ao. Ha possibilidade de ocorrer descpnforto respiratorio, abdominal e hiperestimulagao ovariana, os quais obrigariam receber medicacoes especificas para os respectivos tratamentos (Menegon, 2003: 209 - Enfase nossa). Entendemos e aceitamos que nao existe certeza de que uma gravidez resultara destes procedimentos, uma vez que as taxas de sucesso variam entre 15 a 52% (Menegon, 2003: 209 - Enfase nossa). Os contratados tambem nao se responsabilizam pelos riscos inerentes ao tratamento. Estes riscos podem incluin a ocorrencia de gestacoes multiplas (gemeos, trigemeos ou quadrigemeos); casos de estimula9ao ovariana exagerada; [...] (Menegon, 2003: 250).
10 Segundo o analista de discurso Norman Fairclough (2001; 2003), a analise de modalidades textuais possibilita entender afirma^oes que expressam certeza, diivida e incerteza.
Na racionalidade do consentimento informado, a comunica9ao de riscos e beneficios deveria permitir decisoes esclarecidas e conscientes. Essa racionalidade exibe elos com a abordagem tecnica da Economia sobre riscos,
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segundo a qual o indicador satisfagao pessoal e um orientador da decisao. A metafora em pauta e correr ou nao os riscos comunicados. Como ja discutimos, essa potente metafora integra tambem a tradigao discursiva sobre a disciplinarizagao das pessoas. No caso do consentimento a gestao e feita por meio de escolhas, pois, teoricamente, a pessoa nao tem controle sobre os riscos comunicados - e pegar ou largar. O maior beneficio de um programa de reprodugao assistida e ter um bebe. Nos textos, esse beneficio e informado com repertories como probabilidades de sucesso, possibilidades de obter uma gravidez, taxas de sucesso etc. Assim, a taxa de sucesso para uma gestagao, numa determinada clinica, pode estar ao redor de 35%; e 28% para uma gestagao a termo. Logo, a probabilidade de nao engravidar e de 65% e da gestagao nao chegar a termo de 72%. O risco de nao engravidar nao e, entretanto, comunicado em porcentagens, mas em expressoes como: nao hd garantia, nao existe certeza, [a clinica tem] obrigagao de meios e nao de resultados, gestacao pode nao ocorrer e nao se responsabiliza pelo exito. Comunicam-se tambem riscos traduzidos como insucessos, falhas, acidentes e danos que, alem de cumprir o papel de informacao sobre o tratamento, promovem a distribuigao de responsabilidades, sejam elas causas responsaveis: [...] inumeras sao as causas que podem ser responsaveis por este fato [nao gravidez], entre as mais comuns podem ser citadas: • insucesso no processo de estimulagao ovariana; • ausencia de ovulos apos a aspiracao dos foliculos ovarianos; • falha total da fertilizacao dos ovulos em laboratorio, geralmente devido a obten^ao, neste ciclo, de gametas (ovulos e ou espermatozoides) de baixa qualidade, fato que pode ocorrer em aproximadamente 15% dos casos.
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7. Praticas discursivas... Sejam responsabilidades e nao-responsabilidades da ordem moral, civil ou legal. Titulo: Contrato para o casal receptor de oocitos doados [...] Pelo presente documento, firmamos compromisso legal de nao interpelar a clinica de nenhuma forma presente na lei, caso a gestasao resultante deste metodo tenha complicacoes ou problemas de qualquer natureza para a mae ou para a(s) crian9a(s) durante o parto, ou caso a(s) crianca(s) seja(m) portadora(s) de malforma?6es fisicas e/ou retardo mental, nao passivel de previsao, prevengao ou controle (Menegon, 2003: 255).
A racionalidade do consentimento informado na area da saude, ao se pautar pela comunicagao de riscos e beneficios, promove o entrelapamento de aspectos de pelo menos duas das tradigoes discursivas: da disciplinarizagao e da aventura. Entretanto, como ressaltamos ao longo do texto, essas tradicoes recebem especiflcidades de seu uso situado. Assim, na disciplina do estilo de vida a metafora correr riscos deve ser invertida: evitar correr riscos considerados nocivos a saude. Em contraste, no campo da reproducao assistida correr riscos e uma forma de buscar o bebe desejado: os riscos comunicados nao sao passiveis de controle, pelo menos por parte das(os) usuarios. 5. Dando o no em tramas abertas: algumas consideragoes
O objetivo deste capitulo foi apontar para a importancia da analise de documentos de dominio publico, compreendidos como praticas discursivas que sustentam estrategias de governamentalidade. Utilizamos como ilustragao uma arena especifica de governo das relacoes cotidianas: a gestao da vida por meio da pratica da comunicagao sobre riscos, contrastando os usos da linguagem dos riscos em tres dominios de saber fazer- a saude publica, o esporte aventura e o campo da reprodugao humana assistida. 295
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Mary Jarie P. Spink e Vera Mincoff Menegon
Pressupondo a existencia de uma linguagem social dos riscos7 o texto teve como principal proposta teorica a possibilidade de conciliapao entre os aspectos mais estruturados das maneiras de falar sobre risco na modernidade (a normatividade da linguagem dos riscos), as especificidades dos discursos em diferentes setores de atividade que tern riscos como aspectos intrinsecos (os generos de fala) e a polissemia dos sentidos dos riscos nas praticas discursivas do cotidiano (a dialogicidade face a face).
sionais e mulheres em certa faixa etaria) assumam suas responsabilidades como participes de programas preventives que, em essencia, sao dirigidos a elas. A linguagem autoritaria separa os locutores, dividindo a responsabilidade entre quern calcula e propoe 39065 e quem deve submeter-se as acoes. Cabe a mulher conscientizar-se dos riscos e responder adequadamente ao compromisso assumido pelo governo. Em ultima instancia, a mulher teria o poder de controlar os riscos de cancer de colo de utero.
Reportando as tres ilustra^oes, sao tres as perguntas a serein respondidas: 1) em que medida os textos discutidos nas tres ilustrapoes podem ser considerados como integrantes de uma mesma linguagem social, a linguagem dos riscos; 2) em que medida essa linguagem se expressa em generos de fala distintos; 3) como as diferentes tradipoes discursivas contribuem para a distribuigao de responsabilidades.
Entretanto, ha diferen9as substantivas na maneira como se fala sobre riscos. No texto da Jamb, o risco e o contexto necessario da a9ao: a campanha contra o cancer de colo de utero. Nesse contexto, o risco e apenas negative: remete a doen^a e possivel morte. O risco preexiste a 3930 e seu controle e possivel desde que as partes envolvidas (profls-
O risco, no caso da EMA, vem associado ao prazer (do esporte e da potencial mudanQa de estilo de vida pelo contato com a natureza). O risco nao e abordado nos textos introdutorios que enfatizam muito mais o prazer da competi930 em situa9oes que poem a prova os limites fisicos e mentals dos integrantes das equipes. O teor autoritario do enunciado flea depositado num outro tipo de contrato: o de cunho comercial. O risco fica evidenciado apenas nos termos de responsabilidade que, prendendo-se ao genero dos contratos comerciais, busca explicitar as responsabilidades das partes. Cabe aos participantes inteirar-se e proteger-se dos riscos, assumindo-os como parte intrinseca da atividade contratada. Nos consentimentos informados para reprodu9ao assistida, aceitar os riscos comunicados e urna inaneira de buscar o prazer de engravidar. A metafora em pauta e correr ou ndo os riscos comunicados. Exceto riscos associados ao estilo de vida, que se postula devam ser evitados, correr riscos, na area matemo-infantil aproxima-se da no9ao de veneer obstaculos no campo da aventura. Em geral a mulher nao e incentivada a correr riscos no campo dos esportes ou da aventura, mas correr riscos para fins de matemidade e culturalmente aceito e ate incentivado (Lupton, 1999). Nessa perspectiva, ao levar adiante uma gravidez de risco ou veneer as adversidades da reprodu9ao as-
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Retomando a definipao de linguagem dos riscos fomecida por Adam e Van Loon, verifica-se que as condicoes listadas sao de fato satisfeitas nas tres ilustra?oes. A linguagem dos riscos esta tradicionahnente associada ao mundo economico das trocas e das apolices de seguros, ao mundo medico na relafao entre profissionais da saude e seus pacientes, aos esportes radicals e as pessoas que "arriscam" suas vidas por oujros. Nessas situacoes tradicionais de risco, as pessoas calculam o risco potencial de certas a$oes e tomam decisoes, fazendo escolhas a luz de suas avalia?6es (2000: 7).
7. Praticas discursivas... Mary Jane P. Spink e Vera Mincoff Menegon Glossario
sistida, principalmente o risco de nao conseguir a gravidez tao sonhada, a metafora correr riscos pode adquirir o sentido de ato heroico. As informapoes sobre riscos e beneficios tern, todavia, outra funcao: acarretam distribuicao de responsabilidades. Na logica do consentimento informado, o profissional tern o dever de comunicar possiveis riscos, beneficios e tratamentos alternatives. Ao cumprir esse dever as responsabilidades sao transferidas para quern recebeu as informagoes e assinou consentindo a interven9ao. Independente das especifrcidades das duas situates - a busca do prazer pelo esporte e a busca de realizar o sonho de ter um bebe -, os consentimentos informados emergem como estrategias de gestao de risco, com enfase na defini9ao de responsabilidades e nao-responsabilidades. Assim, alem do pressuposto de que o consentimento informado e lima forma de garantir o respeito pela autonomia do paciente ou do consumidor, esse documento escrito e assinado emerge como uma protefao aos profissionais da saude e aos prestadores de senses de maneira geral, como no caso da EMA. Para alem dos conteudos especificos, as tres ilustracoes prestam-se admiravelmente bem aos objetivos deste capitulo. Permitem argumentar a favor da analise de documentos de dominio publico como praticas discursivas que sustentam estrategias de governamentalidade. Possibilitam, tambem, exemplificar a diversidade de generos de fala em que se expressa a linguagem dos riscos e, nesse afa, permitem ainda argumentar a favor da concilia9ao entre os aspectos mais estruturados das linguagens sociais (no caso a linguagem dos riscos) e a polissemia dos sentidos do risco que emerge quando essa linguagem e colocada em movimento nas praticas discursivas de diferentes dominios de saberes e fazeres. 298
Documentos de dominio publico: nomea^ao utilizada para referir a documentos variados como atas, arquivos diversos, diarios oficiais e regisrros, prontuarios, consentimentos informados, jornais e revistas, anuncios, publicidade, manuais de instrufao, relatorios etc. Esses documentos, como afirma Peter Spink (1999: 126), articulam diferentes praticas discursivas: "como genero de circulacao, como artefatos do sentido de tornar publico, e como conteudo, em relacao aquilo que esta impresso em suas paginas". Exibem, portanto, de maneira simuitanea, "tragos de a9ao social e a propria 39210 social". Governamentalidade: expressao cunhada por Michel Foucault (1986) em texto homonimo, para se referir as estrategias de governo, cujas rela^oes sao'caracterizadas pela circula9ao difusa de poder, e que escapam dos limites dos poderes atribuidos a esfera do Estado. Interanimagao dialogica: a compreensao dessa expressao apoia-se nos estudos de Bakhtin (1994), que postulam ser a linguagem inerentemente dialogica. Assim, qualquer enunciado sera sempre uma resposta a um enunciado que o precedeu. Nessa perspectiva, interanimacao dialogica e o entrelagamento de n vozes, estejam elas presentes ou mesmo ausentes. Os enunciados so podem existir na inter-rela9ao entre autores e destinatarios. Linguagem social: tomando Bakhtin (1994) como referenda, linguagens sociais sao discursos peculiares forrnados em esferas sociais especificas: categoria profissional, faixa etarra, genero, campos de conhecimento distintos, comportamentos tipicos de um grupo, linguagens de diferentes gera9oes e grupos, linguagens que expressam tendencias, linguagens de autoridades e circulos variados, linguagens da moda, linguagem que serve a propositos sociopoliticos, especificos de uma epoca. 299
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Mary Jane P. Spink e Vera Mincoff Menegon
Linguagem dos riscos: utilizada no mundo economico das trocas e das apolices de seguros, nos esportes radicals e no campo medico, essa linguagem exibe a permanencia de repertorios prototipicos como calculo, probabilidade e possibilidade (Adam & Van Loon, 2000), associados, por sua vez, a outros vocabulos como indices, taxas e porcentagens de sucesso, de chance, de danos, de perigos, de falhas, cie insucesso etc. Na abordagem de praticas discursivas, e compreendida como uma linguagem social que permite falar da aspiracao de governo e controle future de riscos, num jogo entre eventos passados e proje9oes futuras, agregando repertorios e sentidos produzidos em esferas sociais especificas (Spink, 2002; Menegon, 2003). Prdticas discursivas: as maneiras pelas quais as pessoas explicam, compreendem e dao sentido ao mundo e a si mesmas. As praticas discursivas tern como elementos constitutivos: a dinamica (flnalidade, enderesamento e a dialogia, dada por vozes presentes ou ausentes); os generos de fala, speech genres (Bakhtin, 1994); os conteiidos, expresses pelos repertorios lingiiisticos interpretativos, os quais, nas permanencias e continuidades discursivas, formatam diferentes linguagens sociais, com seus conjuntos de repertorios prototipicos (Spink, 1999).
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yf BriBJJOrV-G\ CENTRAL - UFV
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Accountability: propriedade das apoes que as fazem visivelmente racionais e acessiveis ou descritiveis. "Fazer o mundo visivel e fazer minha a^ao compreensivel ao descreve-la, porque dou aentender seu sentido ao revelar os procedimentos que emprego para expressa-la" (Coulon, 1987: 49). Active Voicing (expressao ativa): ocorre quando um falante fala como se estivesse citando as palavras verdadeiras de uma outra pessoa, ou suas proprias palavras ou pensamentos anteriores, as vezes assumindo uma qualidade de voz especial para mostrar como as palavras foram ditas. Veja Wooffitt, 1992. Analise Conceitual: a analise filosofica dos significados das palavras, segundo seus usos apropriadamente situados. Veja Coulter, 1990. Analise Conversational: metodo de analise que poe em pratica os principios da etnometodologia. Estuda a ordem e a organiza?ao da acao social cotidiana atraves da analise rigorosa das conversa^oes. O estudo da linguagem em uso - como as pessoas agem nos intercambios orais. Analise Critica do Discurso: modalidade da AD que, atraves do uso de procedimentos e tecnicas de varias tradi9oes, estuda as acoes sociais que sao postas em pratica atraves do discurso e que implicam abuso de poder, afirma?ao do controle social, domina^ao, desigualdade social, marginalizacao e exclusao sociais. Analise do Discurso: estudo das praticas linguisticas para esclarecer as relacoes sociais estimuladas e mantidas pelo discurso. Argumentacao: uso que se faz do idioma para justificar ou refutar uma determinada posi9ao, com o objetivo de conseguir a conformidade com relacao a determinados pontos de vista (EEMEREN, 304
Glossario geral:
F.H. et al. Argumentation. In: VAN DlJK, T: (comp.) (1999). Estudios del Discurso. Vol. 1. Barcelona: Gedisa). Ato ilocuciondrio (ilocutivo): ato que se realiza ao dizer alguma coisa. Ato locuciondrio (locutivo): 3930 da fala que produz significado. Ato perlocuciondrio (perlocutivo): ato de fala que produz efeitos ou consequencias. Atos de linguagem: expressao cunhada por J.L. Austin para se referir as expressoes linguisticas que devem ser enunciadas explicitamente para que uma realidade determinada possa se configurer. Por exemplo, a expressao "sim, quero" deve ser pronunciada em determinados rituais para que o matrimonio seja estabelecido. Categorias dos participantes: conceitos usados, sugeridos ou tornados relevantes pelos participantes. Sao elementos de trechos reais de discurso e interacao social, nao algo que os participantes supostamente levam em suas mentes. Competencia: conceito-chave da etnometodologia que se refere a idoneidade de uma pessoa membro de um grupo no uso e gestao da linguagem. Capacidade de atuar, dispor de conhecimentos, metodos e estrategias para adaptar-se e se desenvolver no contexto social em que se vive. Corpus: qualquer conjunto de emmciados em um meio material. Pode se tratar de transcri9oes de enunciados orais, reprodu9oes de elementos graficos e textos previamente escritos. Dictico: assinalador. Marca as pessoas que falam (eu, tu), os objetos do ambiente (este, esse...), o lugar do qual se fala ou de onde se fala (aqui, ali...) e o tempo em que acontece a a9ao ou o tempo a que se refere a narrafao (hoje, amanha...). Discurso: esse conceito adquiriu varios sentidos que se imbricam. Da perspectiva da ACD propoe-se uma visao do discurso como pratica, isto e, como uma atividade socialmente regulada. Incorpora-se, alem disso, uma visao tridimensional: todo discurso constitui, ao mesmo tempo, uma pratica textual, uma pratica discursiva e uma pratica social. Pratica textual: chamamos -discurso a uma unidade linguistica, superior a oracao, coesa e dotada de coerencia, construida a partir de determinados materials lingiiisticos. Pratica discursiva: todo discurso tem como moldu305
Manual de andlise...
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ra uma situa?ao, em um tempo e espago determinados, e por esse motive damos o nome de discurso a uma produ9ao discursiva que permita a realiza?ao de outras praticas (julgar, classificar, informar), que se enquadra e adapta a regulamentacao social dessas e ao mesmo tempo as estrutura e da significado. Prdtica social: o discurso se encontra configurado pelas situa9oes, estruturas e redoes sociais, pela ordem e estrutura social; mas, por sua vez, tambem configura todas essas coisas e incide sobre elas, seja consolidando-as, seja questionandoas; trata-se, portanto, de uma pratica social, com origem e efeitos sociais (FAIRCLOUGH, N. (1992). Discourse and social change. Cambridge: Polity Press). Discurso(2): conjunto de praticas linguisticas que mantem e promovem as redoes sociais. Disposition (predisposicdo): o estado de espirito ou personalidade de uma pessoa que, no raciocinio do senso comum, faz com que ela aja de uma certa maneira. O termo vem da filosofia lingiiistica de Gilbert Ryle. Na PD as predisposicoes sao relacionadas com "formulasoes de roteiro". Veja Edwards, 1995; 1997. Dixis: elemento gramatical que codifica a relacao entre o idioma e o contexto de uso. "O termo 'dixis1 se origina da palavra grega para assinalar ou indicar, sendo exemplos prototipicos ou principais o uso dos demonstratives, os pronomes de primeira e segunda pessoa, o tempo verbal, adverbios especificos de tempo e lugar como *agora' e *aqui', e varios outros tra9os gramaticais ligados diretamente as circunstancias da enuncia9ao [...]. A dixis se ocupa de como os idiomas codificam ou transformam em gramatica elementos do contexto ou do evento da fala, tratando tambem de como a interpreta9§o dos enunciados depende da analise do contexto da comunica9ao" (Levinson, 1983: 47). Dixis do discurso: expressoes de um enunciado para referir-se a alguma parte anterior ou posterior do mesmo enunciado. Dixis social: aspectos da linguagem que codificam as identidades sociais dos participantes ou a rela9ao social existente entre eles. Documentos de dominio publico: nomea9ao utilizada para referir a documentos variados como atas, arquivos diversos, diarios oficiais e registros, prontuarios, consentimentos informados, jomais e revistas, anuncios, publicidade, manuals de instru9ao, relato306
rios etc. Esses documentos, como afirma Peter Spink (1999:126), articulam diferentes praticas discursivas: "como genero de circulacao, como artefatos do sentido de tornar publico, e como conteudo, em rela9ao aquilo que esta impresso em suas paginas". Extbem, portanto, de maneira simultanea, "tracos de a9ao social e a propria 3930 social". Enunciador: lugar a partir do qual o enunciado e produzido - autor textual. Pode ou nao coincidir com o locutor- o emissor material de um enunciado. Estrategias discursivas: entende-se por estrategias discursivas um piano de a9ao, mais ou menos intencional, que o falante adota como um objetivo discursive, por exemplo, apresentar um determinado participante, e que reiine um conjunto amplo de recursos linguisticos (por exemplo, estrategias de designa9ao). Esse conceito nao esta isento de problemas, embora queira-se separa-lo completamente da 00930 de intencionalidade. Etnografia da cotnunicacao: tradi9ao da AD proveniente da antropologia e da linguistica cujo objeto de analise e a "competencia comunicativa", Ou seja, o conhecimento social, psicologico, cultural e linguistico que rege o uso apropriado da linguagem. Etnometodologia: corrente da sociologia que estuda as acoes cotidianas e os fenomenos, problemas, resultados e metodos que essas a9oes abrangem. "A etnometodologia tem como objeto de estudo empirico as atividades praticas, as circunstancias de cada dia, o raciocinio sociologico que normalmente desenvolvemos nos assuntos ordinaries" (Wolff, 1979: HI). Fact construction (constru9ao de fato): as maneiras pelas quais as descri9oes podem ser produzidas como reflexes objetivos do mundo externo. Ha uma variedade de artificios para fazer isso: veja Potter, 1996. Veja tambem "participa9ao e interesse" neste glossario. Implicatura: significado adicional comunicado pelo falante e inferido pelo ouvinte. Formulagao de roteiro: a descri9ao das 39005 das pessoas como se elas seguissempadroes rotineiros ou repetitivos. Isso se relaciona com a atribuigao de "predisposi9oes". Veja Edwards, 1995; 1997. 307
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Manual de andlise.* Governamentalidade: expressao cunhada por Michel Foucault (1986) em texto homonimo, para se referir as estrategias de governo, cujas relacoes sao caracterizadas pela circulacao diiusa de poder, e que escapam dos limites dos poderes atribuidos a esfera do Estado. Indexicabilidade: conceito-chave da etnometodologia que se refere a propriedade da linguagem segundo a qual o significado dessa e sempre dependente do contexto de sua propria producao. Interanimacao dialogica: a compreensao dessa expressao apoiase nos estudos de Bakhtin (1994), que postulam ser a linguagem inerentemente dialogica. Assim, qualquer enunciado sera sempre uma resposta a um enunciado que o precedeu. Nessa perspectiva, interanimasao dialogica e o entrelacamento de n vozes, estejam elas presentes ou mesmo ausentes. Os enunciados so podem existir na inter-relasao entre autores e destinatarios. Legitimacao discursiva: processo pelo qual tenta-se assegurar a legitimidade dos poderes e das instituicoes, da lei, dos valores compartilhados e da ordem social, atraves de meios discursivos; e claro, essa Iegitima9ao discursiva tern sua funcao e se insere dentro de um processo mais geral de Iegitima9ao social e politica. Distinguimos tres niveis de legitima?ao discursiva: a) um ato pragmatico de justificativa de ac.6es e politicas controversas; b) uma construcao semantica da propria versao dos sucessos como verdadeira e confiavel; c) uma autoriza^ao sociopolitica do proprio discurso legitimador. Linguagem social: tomando Bakhtin (1994) como referenda, linguagens sociais sao discursos peculiares formados em esferas sociais especificas: categoria profissional, faixa etaria, genero, campos de conhecimento distintos, comportamentos tipicos de um grupo, linguagens de diferentes geragoes e grupos, linguagens que expressam tend6ncias, linguagens de autoridades e circulos variados, linguagens da moda, linguagem que serve a propositos sociopoliticos, especificos de uma epoca. Linguagem dos riscos: utilizada no mundo econdmico das trocas e das apolices de seguros, nos esportes radicals e no campo medico, essa linguagem exibe a permanencia de repertories prototipicos como calculo, probabilidade e possibilidade (Adam & Van Loon, 2000), associados, por sua vez, a outros vocabulos como indices, taxas e porcentagens de sucesso, de chance, de
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1(1986)
de esfera , refere essae
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ou apoiauagem vejapersdej vozes, "d sopoa cu|alores tiitiscursice e se in9a ocial e 9a 3 sofcontro-
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danos, de perigos, de falhas, de insucesso etc. Na abordagem de praticas discursivas, e compreendida como uma linguagem social que permite falar da aspiracao de governo e controle future de riscos, num jogo entre eventos passados eprojegoes futures, agregando repertories e sentidos produzidos em esferas sociais especificas (Spink, 2002; Menegon, 2003). Normative: relacionado a normas. Essas sao 39068 ou eventos que sao tratados pelos participates como sendo esperados, normais, ou que deveriam ter ocorrido. Ordem social dos discursos: o conceito refere-se a maneira como as diferencas de status e de autoridade projetam-se sobre o universe discursive estabelecendo um principle de desigusldade: ao lade de discursos autorizados, encontramos discursos "desautorizados "; diante de discursos legitimados, discursos "deslegifimados":, diante de discursos dominantes ou ma/oritdrios, discursos "minoritdrios ". Essas diferencas na avaliagao social dos discursos sao tambem um reflexo das tentativas, por parte dos distintos grupos sociais, de controlsr a produ9ao, circulacao e recepgao dos discursos, devido a seu poder gerador e da imposicao, por parte desses grupos, dos criterios de produ9ao e avalia9ao (MARTIN RO-JO, L. (1997). El orden social de los discursos. Discurso, 2\! 22, p. 1-37. Mexico [s.e.]). Papeis semanticos: os varios participantes podem desempenhar papeis distintos na realiza?ao do processo. No texto so nos referimos a tres papeis: Agente; participante animado, ativo, que controla e e responsavel pela 3930 verbal. Paciente: participante inativo, nao controla 3 acao, mas se ve afetado ou modificado pela a^ao verbal. Experimentante (experimentador): psrticipsnte animado, que vivencia o processo mas nem o controla nem e responsavel por ele (com os processes mentais: ver, sentir, pensar). Par de adjacencia: uma das estruturas basicas da linguagem em use - um enunciado (por exemplo, uma pergunta) prediz fortemente que um certo tipo de enunciado sera produzido como resposta (por exemplo, respostas). Participac,ao e interesse (stake and interest): esses sao os possiveis motives ou ganhos que um falante tern para reivindicar uma determinada versao dos fatos como sendo a verdadeira. Mostrar a participagao ou interesse do/a falante pode solapar o status factual daquilo que ele/ela diz. Por outro lado, estabelecer uma
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Glossario geral Manual de andlise... versao dos eventos como sendo factual pode exigir que o falante negue, ou contradiga que ele/ela tern uma participasao ou um interesse naquela versao. Veja Edwards & Potter (1992), e Potter (1996). Performatividade: propriedade que determinados enunciados linguisticos tern de afetar a constni9ao de realidades. Em determinadas concep9oes da linguagem, essa propriedade, inicialmente limitada a um tipo de expressoes lingiiisticas, passa a ser considerada generalizavel a linguagem como um todo. Pragmdtica: parte da linguistica que se dedica ao estudo dos usos da linguagem comum e leva em consideracao tanto os contextos como os efeitos, nao diretamente linguisticos, que envolvem praticas discursivas concretas ou que delas resultem. Prdticas discursivas: as maneiras pelas quais as pessoas explicam, - compreendem e dao sentido ao mundo e a si mesmas. As praticas discursivas tern como elementos constitutivos: a dinamica (fmalidade, endere9amento e a dialogia, dada por vozes presentes ou ausentes); os generos de fala, speech genres (Bakhtin, 1994); os conteudos, expresses pelos repertories linguisticos interpretativos, os quais, nas permanencias e continuidades discursivas, formatam diferentes linguagens sociais, com seus conjuntos de repertories prototipicos (Spink, 1999). Preferencia: enunciados que sao a segunda parte de um par de adjacencia podem ser de dois tipos: o tipo breve, rapido, sem marcas (que tendem a ser concordancia, consentimento, etc.) e o tipo "nao preferido" que sao assinalados com pausas, evasivas, alguma falta de fluencia e o fornecimento de um relate (e tendem a ser recusas, discordancia, etc.). Processes: os processes sao categorias semanticas que explicam em termos muito gerais como os fenomenos que nos rodeiam sao representados pelos falantes atraves de estruturas linguisticas. A moldura geral dessa representa9ao e composta por: o processo em si (freqiientemente realizado por um grupo verbal), os participantes do processo (freqiientemente representados porum grupo nominal) e as circunstancias associadas a esse processo (frequentemente uma frase preposicional, um adverbio, etc.): "Pepe (participante/G.Nominal) bate (Processo/ G.Verbal) em sua mulher (Participante/G.Nominal) com frequencia
um pot-
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fliiente insi-
plicam .team
(circunstancia/Frase preposicional)". Halliday distingue varies tipos de processes: Material: (acao; criativo; acontecimentos); Mental (percep9ao/afei9ao/ cognicao) (ver; sentir; pensar); Verbal; Relational: intensiva (atributivo/equitativo), circunstancial (relacoes de tempo, lugar, etc.), possessao; Existenciais (haver, aparecer, ocorrer). Cadaum desses tipos seleciona participantes diferentes e Ihes atribui papeis no processo (papeis semanticos) (Halliday, MAK., 1994 [1985]. An introduction to Junctional grammar. Londres: Arnold). Proposicao: expressao linguistica convenientemente formalizada de acordo com os procedimentos da logica modema para que se possa estabelecer seu 'Valor de verdade". Psicologia discursiva: perspectiva nascida no contexto da psicologia e que se apoia na etnometodologia e na AC. Enfatiza o exame das relacoes e das cren9as na fala exatamente como essa e usada pelos participantes em uma intera9ao social. Recursos linguisticos: e o conjunto de formas linguisticas, pertencentes a todos os niveis do idioma (sejam sons, morfemas, palavras, constru9oes sintaticas, ou caracteristicas e estruturas semanticas, processes de inferencia, etc.) que os idiomas poem a disposi9ao dos falantes. Reflexividade (Reflexivity): propriedade das a9oes segundo a qual as praticas descrevem e constroem ao mesmo tempo. "As descricoes do social se convertem, no memento de expressa-las, em partes constitutivas daquilo que descrevem" (Coulon, 1987: 44). Relativismo metodologico: a PD adota uma posi9ao neutra sobre a verdade ou precisao daquilo que os participantes dizem. Deixamos que essas questoes sejam tratadas pelos proprios pacientes em seu discursOj que 6 exatamente o que a analise tern a inten9ao de revelar. Veja Edwards, 1997. Representacionismo: doutrina filosofica que postula uma rela^ao de corresponddncia entre o conhecimento e a realidade que vai mais alem da simples utilidade pratica do conhecimento para operar sobre a realidade. Nessa doutrina, supoe-se que o conhecimento valido representa fielmente a realidade e que e possivel demonstrar a correspondencia entre conhecimento e realidade. 311
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Mary Jane P. Spink e Vera Mincoff Menegon Retorica: discurso que e elaborado e construido de forma a levar em considera?ao versoes ou pontos de vista alternatives ou opostos.VejaBillig, 1987. Roteiro: uma seqiiencia de acao reconhecida, rotineira. Na psicologia cognitiva, presume-se que as pessoas possuem conhecimento dos eventos sociais rotineiros que os ajudam a reconhecer situa^oes e eventos familiares. A PD focaliza as "formulacoes de roteiros". Sociologia interacionah tradi9ao da AD proveniente da antropologia, da sociologia e da linguistica que tern como objeto de analise a interacao caracterizada por uma relacao assimetrica dos participantes. Teoria dos atos da fala: teoria desenvolvida por John Austin que considera que falar nao serve unicamente para descrever o mundo, mas tambem para fazer coisas. Texto: conjunto de enunciados produzidos em contextos sociais a partir de posi?6es de enunciacao. Transcrigao: a reproduce de fala gravada tao fielmente quanto possivel. AC desenvolveu uma notacao especial para captar as caracteristicas da conversa que a ortografia comum ignora (por exemplo, entona9ao, volume, imbrica9ao) porque essas podem ser (e muitas vezes realmente sao) significantes para a compreensao daquilo que o falante esta fazendo. Variedades lingiiisticas: maneiras de falar que surgem como resultado dos processes — inerentes e constantes - de varia9ao que sao observados nos idiomas, devido a diferencas sociais (idade, genero, grupo, classe social, casta, origem rural ou urbana), ou devido a divisao social do trabalho e do conjunto de praticas nas quais o idioma desempenha um papel relevante. Classificam-se em: Socioletos (dialetos sociais): "o que voce fala (habitualmente) influenciado por aquilo que voce e (regiao social de origem e/ou adofao); expressam diversidade na estrutura social". E registros ou estilos: "o que voce fala (em um momento determinado) influenciado pelo que voce faz (natureza da a9ao que realiza); expressam diversidade nos processes e na vida social (divisao social do trabalho)". (definicao extraida de Halliday, M.A.K. (1978). El lenguage como semiotica social. Madri: Fondo de Cultura Economica).
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W EDITORA Y VOZES 5EDE E SHOWROOM PETR6POLIS, RJ Internet: hftp://www.vozes.com.br (25689-900) Rua Frei Luis, 100 Caixa Postal 90023 Tel.: (Oxx24) 2233-9000 Fax: (Oxx24) 2231-4676 E-mail: [email protected] UNIDADE DE VENDA NO EXTERIOR PORTUGAL Av_ 5 de Oulubro, 23 R/C 1050-047 Usboa Tel: |00xx351 21)355-1127 Fax: (00xx351 21(355-1138 E-mail: [email protected] UNIDADES DE VENDA NO BRASIL APARECIDA, SP Varejo (12570-000) Centre deApoiocos Romeiros Setor *A", Asa "Oeste" Rua 02e03-loios 111/112 e 113/114 Tel.:(Oxxl2)3I04-1117 Fox: (Oxxl2) 3104-1118 BEtO HORIZONTE, MG Afaeado e varejo (30130-170) Rua Sergipe, 120-loja 1 Tel.: (0»i31) 3226-9010 Fax: (Oxx31) 3222-7797 Voreja (30190-060) Rua Tupis, 114 Tel.: (OaxSl) 3273-2538 Fax: (Oxx31) 3222-4432 BRASILIA, DF Alocado e vore/o (70730-516) SCLR/Norte, Q 704, Bl. A, n" 15 Tel.: [Oxx61| 326-2436 Fax: (Oxx61) 326-2282 CAMPINAS, SP Vorejo (13015-002) Rua Br. da Jaguara, 1164 Tel.: [Oxxl9| 3231-1323 Fax: (Oxxl9) 3234-9316 CUIABA, MT Afacodo o vorejo (78005-970) Rua Antonio Maria Coelho, 197 A Tel.: (Oxx65) 623-5307 Fax: (Oxx65) 623-5186 CURITiBA, PR Atacado o vareja (80020-000) Rua Voluntaries da P6tria, 41 - lojo 39 Tel.: (Oxx41) 233-1392 Fax: (Oxx41) 224-1442 FLORIAN6POLIS, SC Afaeodo e vareja (88010-030) Rua Jsranimo Caelho, 308 Tel.: (Oxx48) 222-4112 Fan: (0*x48) 222-1052 FORTALEZA, CE
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GoiANiA, aq
Afacado e vare/o (74023-010) Rua 3, n" 291 Tel.: (Oxx62) 225-3077 Fax: (Oxx62) 235-3994 JUIZDE FORA, MO Afaeado e vaiejo (36010-041) Rua Espjrito Santo, 963 Tel.: (Ow.32) 3215-9050 Fax: (OxK32) 32)5-8061
LONDRINA, PR Afocado e vorefa (86010-160) Rua Senodor Souza Naves, 15Bc Tel.: (Oxx43) 3337-3129 Fax: |0xx43) 3325-7167 MANAUS, AM Afocado e vorefo (69010-230) Rua Cosla Azevedo, 105-Centra Tel.: (Oxx92) 232-5777 fox.: |0w92) 233-0154 PETROPOLIS, RJ Vorefo (25620-001) Run do Imperador, 834-Centra Telefax: (Oxx24) 2246-5552 PORTO ALEGRE, RS Afaeado (90035-000) Rua Romiro Bareelos, 386 Tel.: (OxxSl) 3225-4879 Fax: (Oxx51) 3227-6180 (90010-273) Rua Riaehuelo, 1280 Tel.: (Oxx51| 3226-3911 Fax: (OxxSl) 3226-3710 RECIFE, PE
Afaeado e vareja (50050-410) Rua do Principe, 482 Tel.: [Oxx8l| 3-123-4100 Fax: (OxxSl) 3423-7575 RIO DE JANEIRO, RJ Afaeado (20031 -143) Rua Mexico, ! 74 - sobreloja - Centra Tel.: [Oxx21l 2215-6386 Fax: (Oxx21)2533-8358 Vareja (20031-143) Rua Mexico, 174 -Centre Telefax: (Oxx21) 2220-8546 SALVADOR, BA Atacado e vareja (40060-410) Rua Carlos Gomes, 698-A Tel: (0)1x71)329-5466 Fax: (Oxx71) 339-4749 SAO PAULO, SP Afocado (03168-010) Rua dos Trjlhot, 62 7 - Maaca Tel: {Owl 1)6693-7944 Fax: (Oxxl 1)4693-7355 Varejo (01006-000) Rua Senador Fe.ijd, 168 Tel.: (Oxxll) 3105-7144 Fax: (Oxxl 1)3107-7948 Vorejo (01414-000) Ruo Haddock Labo, 360 Tel.: (Oxxl 1)3256-0611 Fax: (Oxxl 1)3258-2841 PARCERIA5 BOA VISTA, RR Vorejo Comarcio Vorejltta de Livros Nepomuceno e Padilha Udo(69301 -300) Rua Joss Coelho, 119 - Centre Telefax: (Oxx95) 624-1221 CAMPOS DOS GOITACAZES, RJ Vorejo W.T. Castro Uvraria ft Pope I aria Ltdo (28027-140) Rua Vistonds de Itaboral, 169rorque Ras6rio Tel.: [Oxx22l 2735-0003 e 2733-0967 Fax: (OKx22) 2733-0807 SAO LUlS, MA Vorojo J.M.F, de Lira Comercio e Repres0ntae,6es de Livros e Artigos Rellgtasos (65010-440) Rua da Pol mo, 502 - Centra Tel.: (0^(981 221-0715 Fox. (Oxx98) 231-0641
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Os sete capitulos do manual aprofundam os temas centrals pertinentes a relagao entre Analise do Discurso e ciencias socials: o primeiro capitulo elucida, teorica e epistemologicamente, o papel da linguagem nas ciencias socials. 0 segundo apresenta os fundamentos que legitimam o papel da linguagem nas ciencias, sobretudo, atraves dos conceitos de "linguisticidade" e "lingiiistico". O terceiro analisa o discurso como metodo e como perspectiva nas ciencias sociais, abordando praticas como a sociolinguistica interacional, a etnografia da comuiiicacao, a analise critica etc. Os quatro ultimos capitulos abordam, atraves de exemplos, a delicadeza, a importancia e as conseqiiencias que a pratica da Analise do Discurso pode ter na vida cotidiana, e a revolucao que e possivel fazer quando a conceitualiza9ao teorica e abordada de um ponto de vista discursive.