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SAPIENTIÆ
Psicólogo e Professor do Curso de Psicologia do Centro Regional de Braga da Universidade Católica Portuguesa - UCP. É Autor do livro Recriar o (Ser) Humano: Crítica da Razão Cognitiva no Contexto da Evolução Cultural do Ocidente (Edições Sapientiae) e Coordenador da obra colectiva em CD-ROM O que é Ser Humano? (Edições da Faculdade de Filosoia de Braga da UCP).
“Neste muito claramente redigido trabalho de síntese, vem explicitada a (...) básica airmação de que a verdadeira compreensão da psicologia, como ciência, pressupõe uma antropologia. Percorrendo a bibliograia, tem-se uma visão da largueza de vistas e originalidade na utilização das fontes em busca das novas deinições, oferecendo um enquadramento do que há de mais moderno na psicologia cognitiva e social, aliada a uma visão dinâmica, também pelo uso singular dos conceitos da psicologia das organizações, ao focar as estruturas a criar pelo “eu” no seio da subjectividade (...) para explicitar os meandros do novo ponto de vista relacional a colocar em cena”. MARIA RITA MENDES LEAL Professora Catedrática de Psicologia da Universidade de Lisboa e Psicoterapeuta
ISBN: 978-989-95880-2-8
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588028
Cérebro, Mente e Sociedade
CÉREBRO, MENTE E SOCIEDADE Por uma Psicologia Relacional
JOÃO CARLOS MAJOR
JOÃO CARLOS MAJOR
JOÃO CARLOS MAJOR
CÉREBRO, MENTE E SOCIEDADE Por uma Psicologia Relacional SAPIENTIÆ
CÉREBRO, MENTE E SOCIEDADE Por uma Psicologia Relacional
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Ficha Técnica Autor: Título: Subtítulo: Data: Edição: Cidade: ISBN: Depósito Legal:
João Carlos MAJOR Cérebro, Mente e Sociedade Por uma Psicologia Relacional Dezembro de 2009 1.ª edição Braga 978-989-95880-2-8 303771/09
Edições SAPIENTIAE
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Execução Técnica: Departamento Gráfico das Edições SAPIENTIAE
Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida por qualquer processo, incluindo a fotocópia, sem autorização por escrito do editor.
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João Carlos Major
CÉREBRO, MENTE E SOCIEDADE Por uma Psicologia Relacional
BRAGA ― 2009
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À saudosa memória de Ilda de Lourdes Monteiro, minha Avó.
Braga, Natal de 2009
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ÍNDICE
PREFÁCIO.........................................................................11 INTRODUÇÃO .................................................................13 1 - A PSICOLOGIA PRESSUPÕE UMA ANTROPOLOGIA.............................................................17 2 - RELACIONALIDADE VS. CLAUSURA ORGANIZACIONAL ........................................................34 3 - DA POSSIBILIDADE DE UMA ANÁLISE ESTRUTURAL DO SER HUMANO...............................44 3.1 - Uma Visão Dinâmica ............................................47 3.2 - Uma Visão Cognitiva............................................69 4 - POR UMA VISÃO INTEGRADA ..............................81 5 - A FÓRMULA RELACIONAL EM PSICOLOGIA ..107 5.1 - A Narratividade Clínica ......................................109 5.2 - A Abordagem Relacional Dialógica..................113 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................123 ANEXOS ..........................................................................127 BIBLIOGRAFIA..............................................................155
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PREFÁCIO
Sinto como lisonja e agradeço o convite de prefaciar a obra Cérebro, Mente e Sociedade: Por uma Psicologia Relacional, do psicólogo clínico João Carlos Major ― colega que também é formado em teologia, como ainda é Mestre em filosofia e em psicologia e apresenta aqui, como projecto, a sua visão pessoal da psicoterapia relacional/dialógica encarada num formato narrativo. Neste muito claramente redigido trabalho de síntese, vem explicitada a sua básica afirmação de que a verdadeira compreensão da psicologia, como ciência, pressupõe uma antropologia. Percorrendo a bibliografia, tem-se uma visão da largueza de vistas e originalidade na utilização das fontes em busca das novas definições, oferecendo um enquadramento do que há de mais moderno na psicologia cognitiva e social, aliada a uma visão dinâmica, também pelo uso singular dos conceitos da psicologia das organizações, ao focar as estruturas a criar pelo “eu” no seio da subjectividade, englobando em tudo isso Järvilehto, Vygotsky, Bruner, com Leal e Aires, para explicitar os meandros do novo ponto de vista relacional a colocar em cena. Gratifica-me o encontrar tão bem aplicada e enquadrada a minha teoria da formação progressiva
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das estruturas emocionais do Eu (Leal, 2007), tornando claro (a partir da pág. 91), o que são esses “processos que preparam outros processos que ainda não o são”, ou seja, realçando o pensar-se em realidades biológicas que no desenvolvimento se convertem em outros fenómenos relacionais. A fórmula que refere o marco narrativo na experiência individual humana ― conforme enunciada já por João Carlos Major noutro lugar (Major, 2008c) ― é o que aparece então como aspecto diferencial encaminhando a psicoterapia relacional do adolescente e do jovem adulto na perspectiva de um “treino activo do Eu”, abrindo perspectivas novas em alternativa do pressuposto reconstitutivo das psicoterapias analíticas. Deixa o leitor expectante. Desejo ao autor o sucesso que merece de encontrar muitos leitores deste seu profundo estudo que pode ser de grande proveito para os interessados do ramo, e que venha a dar continuidade à pesquisa na linha psicoterapêutica que anuncia.
Maria Rita Mendes Leal Professora Catedrática Jubilada de Psicologia da Universidade de Lisboa e Psicoterapeuta
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INTRODUÇÃO
A perspectiva que denominamos por relacional dialógica considera a inteligência como bioantropológica na sua origem, mas psicossocial no seu desenvolvimento. Tal pressuposto promove um tipo de intervenção psicológica que se aproxima daquilo que Vygotsky denominou por zona de desenvolvimento proximal do indivíduo, ou seja, do seu nível de modificabilidade cognitiva. Esta concepção de intervenção em psicologia parte de um diagnóstico sobre como os indivíduos objecto da nossa intervenção se colocam perante as situações de observação e de como utilizam os seus recursos cognitivos (entendida a cognição como a propensibilidade para a resolução de problemas) e que estratégias colocam em jogo para darem respostas ou soluções aos problemas com que se deparam. A finalidade deste tipo de observação está em nos aproximarmos da arquitectura cognitiva do indivíduo observado. Mas esta observação não é meramente passiva, é antes uma abordagem participante! A cognição, surgida primeiro de sistemas não simbólicos e posteriormente de sistemas simbólicos de representação, emergiu de estratégias de proces-
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samento da informação de redes neuronais definidas para outras finalidades adaptativas. Daí a cognição, sobretudo nos exemplos apontados pela psicopatologia, reflectir a descontinuidade e a articulação de sistemas distintos; afinal, a cognição refere-se a um sistema complexo, baseado na modularidade. Contudo, a cognição humana não decorre apenas de tais sistemas pré-estruturados que servem primordialmente outros fins, mas também de sistemas de mediatização inter-individual que se co-constroem em contextos sócio-históricos. No ser resultante de tal evolução, podemos afirmar que sem experiências de aprendizagem mediatizada, as habilidades humanas não emergem. Não basta que a maturação neurológica ocorra no homo sapiens sapiens de acordo com a lógica temporal. É essencial que se observe um processo intencional de interacção social e mediatizadora entre indivíduos experientes e inexperientes, pois o aprender envolve o somatório da integridade neurobiológica e a presença de um contexto social facilitador. Portanto, a cognição humana e a aprendizagem a ela associada, não emergem automaticamente por maturação: do sapiens sapiens não surge o humano sem o desenvolvimento psicossocial. O que encaminha à aprendizagem de novas formas de relação intrapsíquica e interpessoal, enquadradas como processo dialogante, conversacional, em situações
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abertas. Ainda que, e sempre, em continuidade com as nossas raízes bioantropológicas. Um padrão inato de relação emocional dialogante, assente no “dar-a-vez” ou turn-taking, encontra-se na origem e na organização daquilo que podemos chamar de mente. Mente que resulta de um diálogo múltiplo sob o olhar de “outros” significativos: eis o que promove a emergência de um “eu” resiliente, regulador das relações profundas da pessoa com o seu mundo interno e externo, em comunicação múltipla, flexível e aberta. A visão da psicoterapia que pretendemos apresentar com este trabalho centra-se na valorização e compreensão do encontro, estando em causa a reconstrução da “relação de objecto” em que inevitavelmente psique e soma se entrosam originariamente, apostando naquilo que também nós consideramos o instrumento primeiro de organização do “eu”: o “vai-e-vem” recíproco e alternante, o turn-taking emocional, para induzir a movimentação da mente, fazendo do intercâmbio o novo berço de um treino activo do “eu”, na expectativa de um re-começo para quem nos procura…
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Em trabalho anterior (Major, 2008c), do ponto de vista histórico e filosófico e no contexto de uma elaboração crítica sobre as modernas Ciências Cognitivas, procurámos fundamentar a ideia de que a actual sociedade ocidental está estruturada sobre um conceito iluminista do ser humano: um ser racional e auto-suficiente. Nessa obra, defendemos que tal concepção, que conduziu ao actual individualismo liberal, é desviante, promove a desumanização e toda uma série de patologias. Aí, também defendemos a urgência de se encontrar um novo conceito de pessoa. O presente trabalho continua essa ideia desde a perspectiva da psicologia.
1 - A PSICOLOGIA PRESSUPÕE UMA ANTROPOLOGIA
Estamos numa época de crise, não só económica mas em geral. Uma crise da nossa civilização, no que tem de tradicional mas também no moderno (crise da modernidade), o que se reflecte na própria biosfera (crise da ecologia). E todas essas crises criam uma crise gigante do planeta e da humanidade. 17
Naturalmente, um momento de crise pode ser um momento de soluções novas que permitam superar o perigo e favorecer o ser humano. Apesar dos riscos, também existem possibilidades novas de superação (Major, 2008c). Mas não há nenhum tipo de certezas relativas ao caminho que a humanidade irá tomar. Certo é que o actual sistema de pendor individualista não tem a capacidade de resolver os seus problemas (Dinis, 2003; Morin, 2009). Portanto, ou o sistema se desintegra (não conseguindo resolver os problemas, a catástrofe será certa) ou, então, se torna capaz de fazer nascer um sistema mais rico e melhor, procurando encontrar em si mesmo a capacidade de regeneração, de metamorfose. É nesta bifurcação que nos encontramos. Praticamente até ao surgimento da filosofia, na antiga Jónia, o ser humano não se terá diferenciado do seu meio, mesmo quando esse meio deixou de ser a natureza e as suas vicissitudes e passou a se constituir como Estado. Naturalmente, um ou outro indivíduo se terá destacado da massa. Mas só com os gregos o indivíduo se afirma como realidade social reconhecível. Hoje, justamente quando as oportunidades de um cultivo responsável da sua individualidade parece possível, o homem claudica e parece tornar-se cada vez mais presa do individualismo, por um lado, e mais massificado, por outro.
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Até agora não houve suficiente desenvolvimento de todos os implicados no actual estado de coisas para concretizar a necessária mudança. Tanto mais que, de acordo com Morin (2009), o problema não é melhorar o caminho que tomamos, o problema é mudar de caminho, alterar radicalmente de via. O que se apresenta deveras difícil; mas a haver saída, será esta a única possível. Apesar de as probabilidades serem péssimas (afinal, parece que rumamos directos ao abismo) vale-nos a esperança de uma probabilidade não ser uma certeza. A saída consistirá numa multiplicidade de reformas que possam chegar de todas as áreas. Ou seja, o fim das abordagens e intervenções compartimentadas, individualistas e isoladas, fragmentadas e sem comunicação entre si, o que impede a percepção dos problemas fundamentais e globais. É verdade que existem especialistas, e bons, em todas as áreas; mas isso não basta, pois o que mais falta é um pensamento de carácter global. A hiper-especialização, por muito útil que possa parecer, não é compatível com a urgente e necessária integração das várias áreas do conhecimento. E só com um pensamento global a humanidade será capaz de compreender e enfrentar os problemas fundamentais, cada vez mais complexos, bem como o imprevisto e a mudança.
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Morin o diz:
“Se pudesse existir um progresso de base no século XXI, seria que os homens e mulheres não fossem mais os brinquedos inconscientes não só das suas ideias mas das suas próprias mentiras. É um dever capital da educação armar cada um para o combate vital pela lucidez” (2002, p. 43).
Urge, pois, uma reforma do conhecimento, o que implica uma reforma em todas as outras áreas. Não se pode fazer uma só reforma, ela só é possível em interligação. Cada reforma é fundamental ― reforma na educação, na ética, na economia, na ecologia, etc. ― e todas são necessárias. Um dos males é estarmos domesticados por uma visão quantitativa; já não conseguimos ver devidamente o qualitativo. Por conseguinte, a solidariedade, a responsabilidade, em face do quantitativo se esfumam. O mundo actual e a nossa civilização promovem o desenvolvimento do individualismo, o que tem rasgos muito positivos para a autonomia, mas potencia o desenvolvimento do egocentrismo e da desintegração das antigas solidariedades e responsabilidade.
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Quando as pessoas têm uma pequena responsabilidade, no seu pequeno compartimento, já não têm uma visão do todo, da sociedade, da comunidade. Precisamos de um pensamento de novo global e, como tal, responsável. Responsável ao nível local mas também ao nível nacional, europeu e planetário. Hoje, como nunca, o que existe é uma interdependência geral, o que significa o reconhecimento de termos um destino comum. E se assimilarmos esse conceito de destino comum isso implicará uma solidariedade humana em geral e o esforço por procurarmos entender as motivações dos outros. Morin (1994) parte de uma traumática experiência pessoal (Edgar tinha nove anos quando morreu a sua mãe, Luna Beressi) e mostra como uma situação traumática se pode transformar na condição de emergência de um acto criador ― o seu acto criador ― e como o conhecimento daí produzido pode retroagir e redimensionar o que, à partida, se constituia apenas numa contingência negativa. Mas este movimento de retroacção transformadora não se dá espontaneamente nem de forma mecânica (Almeida, 2004). Continua a sociedade, então, a precisar dos apelos e do esforço dos mais avisados. Não para se tornarem nos novos senhores à frente de novas e mais requintadas prisões, mas para libertar o humano aprisionado no meio de tanta escória e encaminhá-lo para a via da responsabilidade pessoal e social.
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A construção de uma sociedade mais justa e igualitária só será possível por meio de uma nova e complexa compreensão do mundo. Entre os nossos limites e possibilidades de tipo biológico e cultural, um diálogo entre todos deve ser entabulado. Há a possibilidade de nada ou tudo fazendo, optarmos pelo desastre; mas também poderemos optar pela salvação, dado que o futuro não está traçado e, apesar de todos os determinismos (sejam eles biológicos, genéticos, sociais, geográficos ou ecológicos) o futuro depende em boa medida das decisões responsáveis que formos tomando. É nesta medida que se torna urgente encontrar um novo conceito de pessoa, mormente em psicologia. E a necessária “mudança de paradigma” poderá já se estar a anunciar, ainda que algo tímida, nos resultados da investigação sobre o cérebro humano dos últimos 30 anos. Lentamente (talvez, demasiado lentamente), a imagem de um órgão social tem vindo a impor-se: “o nosso cérebro é, assim, menos um órgão para pensar que um órgão social” (Hüther, 2006, 18). Apesar das posições que defendem uma (certa) “clausura organizacional” no ser humano terem a sua pertinência ― vejam-se as teorias da auto-organização de Maturana e Varela e seus seguidores (de um modo sucinto, abordá-las-emos no próximo capítulo) ― nesta obra procuramos reafirmar, na linha de Vygotski, Bruner ou Rita Leal, a
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clara influência do meio ou do social nos comportamentos e características humanas, procurando ser mais uma dessas passadas, serenas mas firmes, no sentido de uma necessária renovada visão do ser humano. Isto, ressalve-se!, sem esquecer que é verdade que, num grande número de vezes,
“as pessoas estão de tal maneira focalizadas na sua organização interna que se tratam a si próprias não como sistemas fechados, mas sim como se fossem sistemas isolados, ou seja: não fazem qualquer esforço para comunicarem com quem tenta comunicar. Estas perspectivas podem também ajudar a compreender o êxito, ou o insucesso, das práticas psicológicas clínicas” (C. Oliveira, 2003b).
Feito este alerta, declaremos alguns princípios que nos movem:
“O self não reside apenas no corpo, mas encontra-se distribuído entre posições localizadas num espaço real ou imaginário, com a possibilidade de se ir movendo entre tais posições. (…) Eis uma concepção muito di23
nâmica do self” (Hermans e Kempen, 1995, 112)1.
“O ponto fundamental (…) é que a mente humana individual não está confinada ao interior da cabeça, mas estende-se por todo o corpo humano vivo e abarca o mundo para além da membrana biológica do organismo que é a pele, especialmente o mundo social e interpessoal do eu e do outro” (Thompson, 2001, 2)2.
“São as relações que constituem a pessoa. Esta não é anterior à, nem independente da, teia de relações em que nasce e vive. Por isso se pode dizer que a relacionalidade tem um carácter não simplesmente psicológico, cognitivo ou afectivo, mas ontológico” (Dinis, 2008, 5). “The self is not simply in the body, but rather distributed between positions located in a real or imaginal space, with the possibility of moving to and fro between the several positions. (…) This conception of the self is highly dynamic”. 1
“The theme (…) is that the individual human mind is not confined within the head, but extends throughout the living body and includes the world beyond the biological membrane of the organism, especially the interpersonal, social world of self and other”. 2
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É o carácter relacional da pessoa humana o que procuramos colocar em evidência: a perspectiva segundo a qual o “eu” é indissociável do “tu” e vice-versa, e que ambos se constituem na relação; não fosse a identidade definida pela alteridade, isto é: a organização do self3 obedece à lógica relacional ou dialógica (Leal, 1975 a 2009 — consultar bibliografia) que parece indicar que o eu será o que a história das minhas relações faz dele. São já clássicas as ideias de Bruner (1990) de que a mente constitui e é constituída pela cultura, sendo as pessoas o resultado destas configurações relacionais, ou seja, do processo de produção de significados por intermédio de sistemas simbólicos culturais4. Contra o reducionismo de algumas cor“No campo da Psicologia, noções como as de self, identidade e subjectividade remetem-nos a modelos teóricos voltados à totalidade da pessoa, e não a comportamentos ou funções mentais isoladas (…). A visão do self mais frequente na Psicologia, no entanto, remete à tradição filosófica que vai de Descartes a Kant e Piaget: o self como o si mesmo, a tomada de consciência de que se é uma entidade independente e autónoma do outro. Apesar de apresentar perfeita consonância com o enquadre racionalista do psiquismo, esta noção de self expressa uma concepção individualista e auto-contida da unidade psíquica, incongruente com as perspectivas [por nós] defendidas” (M. Oliveira, 2006, 430). 3
4 Quando os benefícios de uma cultura são negados a alguém, esse indivíduo corre o risco de privação cultural. Ou, nas palavras de Vítor da Fonseca: “a síndroma de privação cultural emerge da falha ou da falta de mediatização adequada sobre as várias formas características de cultura, de percepção,
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rentes das neurociências, para nós o conceito de mente também é essencial bem como a influência do social no pensamento humano (Vicente Castro, 2003), quer na sua constituição como na sua manutenção e funcionamento correcto. Naturalmente, definir o termo cultura não é fácil, nem há consenso sobre o seu significado. Na linha de Geertz (1989), poderemos defini-lo como as imbricadas e complexas teias de significados que são construídas e compartilhadas pelos membros de um grupo social. Tal nos permite aproximar dos termos cultural e social praticamente como sinónimos, considerando-se as suas interdependências. Neste sentido, cultura, a despeito das discussões que procuram estabelecer os limites entre o cultural e o social, poderá ser considerada como um desdobramento da característica humana de filiar-se, viver em grupo, em sociedade. Da sociedade emerge a cultura ou emergem culturas, que são mais restritas à espécie humana, principalmente quando nos referimos à linguagem. Além deste sentido mais geral, poderemos também considerar os sentidos mais específicos (Correia, 2003) propostos tanto por Geertz como por Bruner, ou seja, cultura como um sistema simbólico. de processamento de informação e de organização da realidade, podendo mesmo repercutir-se na inacessibilidade a pensar sobre o pensar ou em definir ou resolver problemas” (2001, 92).
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Mas dizer que o ser humano é na sua essência relação, nada tem a ver com a velha máxima de que o homem e a mulher são um ser social ou cultural. Essa concepção apenas afirma que a vida em sociedade é o seu habitat natural (Dinis, 2008). Com efeito, a sociedade ou a cultura podem constituir-se por uma teia de relações exteriores aos próprios indivíduos, um conjunto de interacções apenas funcionais e opcionais. Mas o que pretendemos definir com o vocábulo relacional pretende ir mais longe e implica afirmar o carácter constitutivo ou ontológico, da relacionalidade (Dinis, 2008; Hoffmeyer, 2008). Visão tão diferente da que emana do actual paradigma científico de cunho individualista. As neurociências parecem ser a fonte de todos os nossos conhecimentos, presentes e futuros, sobre os seres humanos. Do ponto de vista clínico, a perspectiva que nos reduz ao funcionamento neuronal parece ser hegemónica. Tudo se trata em termos medicamentosos, dado se crer que as perturbações se relacionam unicamente ou fundamentalmente com a biologia do corpo humano. No caso das perturbações psíquicas, as intervenções bioquímicas têm por objectivo intervir unicamente a nível neuronal. É aquilo que Polly Young-Eisendrath, no prefácio a uma obra de Dale Mathers, denomina por mito da salvação biológica: 27
“Desde o advento daquilo que eu chamo de ‘mito da salvação biológica’ ― ideologia de carácter biológico como meio de libertação da miséria e da humilhação ― tendemos a reduzir o significado do humano a ‘estratégias várias de adaptação’. Dessas que se podem comparar às do comportamento dos outros animais e/ou explicáveis através de alguns logaritmos dos genes face ao ambiente. Nós, nas profissões de ajuda, parece que escolhemos este particular momento histórico para reduzir o significado do humano à ideologia biológica. (…) O mito contemporâneo da salvação biológica é um estreitamento da nossa imaginação ao nos apresentar como menos complexos do que aquilo que somos, reduzindo a pessoa a um processo, um organismo, um sistema interactivo sem intencionalidade ou desejo ou imaginação” (Mathers, 2001, X).
Convenhamos, muitos técnicos de saúde limitam-se a ouvir os seus clientes5 com vista à prescrição de medicação; ou, então, no sentido da apli-
Ainda que se possam usar outras palavras (paciente, doente, utente, etc.), tendemos a usar a palavra cliente, dado que esta última se refere a alguém que tem deveres e direitos relativamente a um técnico de saúde. 5
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cação de medidas manipulativas breves, rápidas, e isto na esperança de um resultado duradouro… Tal mentalidade, com excepção daqueles terapeutas com treino nas áreas mais narrativas, tem vindo a contaminar as fileiras da psicologia. Por isso, não é de estranhar que um considerável número de psicoterapeutas contemporâneos se sintam desiludidos e frustrados se não conseguirem fazer “alguma coisa” de imediato, algo de visível, de palpável por aqueles que os procuram e que se encontram em sofrimento. É desta forma que as noções de que nos devemos acercar e descodificar os sistemas de significado de alguém, com o objectivo de perceber as causas e razões que levaram ao actual sofrimento, são ridicularizadas por aqueles que subscrevem o mito da salvação biológica, que rotulam estes expedientes de cientificamente não apoiados na indústria médica e farmacêutica. Por sua vez, tal crença na absoluta efectividade das “respostas biológicas” contaminou inclusivamente quem mais beneficiaria das medidas de mais longo alcance: os próprios pacientes. É assim que
“o ser humano surge cada vez mais como uma máquina biológica inteligente, feita de automatismos nos quais se torna cada vez mais
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possível intervir sem que isso implique escolhas filosóficas ou antropológicas, das quais muitos neurocientistas nada sabem. As neurociências não só pressupõem uma antropologia de tendência mecanicista e determinista, com algum paralelismo com a física newtoniana, como, mais do que isso, reclamam o direito de constituir uma nova antropologia, de dizer aos seres humanos quem são, de onde vêm, qual a sua natureza e destino, qual a explicação dos seus comportamentos, dos seus sonhos e derrotas, etc. Trata-se de uma perspectiva internalista, que considera que tudo o que realmente interessa no ser humano se passa no seu cérebro e aí se devem procurar as causas dos distúrbios mentais. Das neurociências se aproximam com alguma ansiedade a maior parte das correntes psicológicas, embora nem sempre de forma consensual” (Dinis, 2008, 6).
Que imagem do ser humano nos parece mais verosímil e qual deverá ser adoptada pelas ciências psicológicas? A perspectiva internalista e determinista, da qual nos fala Dinis, tomada num sentido radical, também nos parece incapaz de colocar adequadamente o ser humano no contexto do que o torna
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humano, pois defendemos ser o ser humano na sua essência relação. Nesta medida, as relações pessoais não podem ser vistas como um anexo à sua condição de pessoa, antes como o que o fazem ser pessoa. Contudo, no contexto do individualismo contemporâneo, o carácter relacional da pessoa humana acaba por ser demasiadas vezes negligenciado. A consequência é lógica: as terapias tendem a centrar-se no indivíduo, abstraído da sua teia de relações interpessoais, recorrendo a métodos que o mais das vezes deixam ignorado e intocado o carácter constitutivamente relacional da pessoa, por conseguinte, da raiz das suas perturbações físicas e mentais. Como defende Dinis (2008), as relações que constituem a pessoa são no fundo o “lugar” de todas as disfunções individuais e sociais. Mesmo as doenças psíquicas de raiz genética e hereditária têm muito a ver com as disfunções nas relações interpessoais. É o que podemos rotular por “perspectiva da segunda pessoa” (visão que parece encontrar não poucas resistências…):
“A perspectiva da primeira pessoa, subjectivista, correspondente à introspecção ou à relação da pessoa consigo mesma enquanto auto-consciente, e a perspectiva da terceira pessoa, objectivista, correspondente à dimen-
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são física, biológica e neurobiológica da pessoa, enquanto objecto de estudo científico, são as duas perspectivas geralmente consideradas dignas de atenção” (Dinis, 2008, 6). “A perspectiva chamada da segunda pessoa tem sido a que até agora tem atraído menos atenções. É a perspectiva da relação eu-tu na qual o ‘eu’ é indissociável do ‘tu’ e vice-versa. O ‘eu’ e o ‘tu’ constituem-se concretamente na relação eu-tu, e não podem subsistir fora dela senão por um exercício de abstracção” (Dinis, 2008, 6).
Postulando, com Dinis, o carácter relacional da pessoa humana, também nós só podemos concluir que uma psicologia excessivamente identificada com, e dependente de, uma antropologia introspectivista e subjectivista, que é uma forma de individualismo estéril, como uma psicologia objectivista, identificada com, e dependente de, um modelo médico-biológico ou neurocientífico, só podem conduzir a correntes teóricas e a métodos terapêuticos inadequados, se quisermos falar de uma ajuda terapêutica profunda e de longo prazo. Por conseguinte, acreditamos que é necessário repensar numa perspectiva relacional conceitos tão fundamentais em
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psicologia como, por exemplo, os conceitos de “eu”, de “mente” e de “consciência”6. Também por estas razões, a psicologia deve estar precavida contra as “pré-compreensões” de que muitas vezes padece sem ter consciência disso. Por outro lado, se é verdade que o ser humano é, por definição, um ser relacional, também é verdade que essa relacionalidade não deixa de ser sempre auto-centrada.
6 Como escreve Azevedo: “a perspectiva elementarista-associacionista dá lugar a uma perspectiva mais completa, a perspectiva dinâmico-estruturalista ou relacional, que considera a personalidade como um sistema de relações dinâmicas entre o eu e o mundo (…). Estava assim criado o contexto para que, na segunda metade do século XX, surgissem teorias cognitivas e sócio-cognitivas, tornando possível conhecer a diversidade humana” (2005, 48).
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2 - RELACIONALIDADE VS. CLAUSURA ORGANIZACIONAL
“Passamos como num sonho sobre o Deserto, saltando um Mundo que rotulamos com uma palavra, mas esse Mundo assim tão facilmente rotulado transborda-nos indefinidamente, em todas as dimensões. O nosso todo é realmente uma totalização nossa, só possível por uma radical simplificação do nosso conhecimento. Vemos como contínuas, realidades em si descontínuas. O todo é uma percepção, não uma sensação pura” (Martins, 1961, 118-119).
O conhecimento das coisas do senso comum erra quando julga ter uma percepção clara e distinta dos objectos realmente existentes fora de nós. Na verdade, todo o conhecimento sensível não é puramente objectivo, como se atingisse independentemente da subjectividade o mundo “lá fora”. Para o actual paradigma da psicologia, o realismo ingénuo é inaceitável e nos obriga a considerar o mundo dos dados imediatos dos sentidos como uma transposição do mundo físico, que nos aparece re-
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vestido de interioridade ao ser percebido sob a forma de cores, sons, etc., em vez da ôntica brutalidade do puro ser físico das vibrações, das ondas e dos corpúsculos. Assim, e ainda que saibamos que o mundo “lá fora” existe, a nossa percepção organiza-o, pinta-o de cores e enche-o de sons cuja realidade concreta ignoramos na sua entidade física. Muitos dos elementos espontaneamente atribuídos às coisas só existem, efectivamente, no sujeito que as conhece. Naturalmente, isto não tem que nos condenar ao idealismo, pois o mundo existe realmente e as nossas percepções, afinal, são sugeridas por ele, não obstante a heterogeneidade dos seus efeitos nos órgãos dos sentidos ou a deficiência de acção directa sobre eles. Uma das correntes biológicas que mais se tem debruçado sobre esta questão é a teoria da autopoiésis, enunciada pela primeira vez por Humberto Maturana e Francisco Varela em 1972. Estes biólogos consideram que o que especifica os seres vivos dos seres inorgânicos e das máquinas produzidas pelos seres humanos é exactamente a capacidade que os seres vivos têm de auto-produzirem espontaneamente componentes e processos de que necessitam para sobreviver. Os seres vivos são, por isso, caracterizados como sendo autopoiéticos, ou seja, autónomos e fechados. Por fechados entendem-se os sistemas que mantêm a lógica organizacional face
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à influência daquilo que um observador pode apelidar de “meio”. E, como chama a atenção Clara Oliveira, é importante não confundir a clausura organizacional dos sistemas vivos com o isolamento energético dos sistemas termodinâmicos, como é o caso dos cristais (C. Oliveira, 2003b). Portanto, “fechado” não significa o mesmo que “isolado”:
“Adoptamos como definição de sistema fechado aquele que troca apenas energia, e não matéria, com o meio, contrariamente aos sistemas abertos que trocam matéria e energia, e aos sistemas isolados que não trocam nem matéria, nem energia. Um exemplo de um sistema aberto é um computador: os componentes que nele existem foram introduzidos por um ser que lhe é exterior e o seu funcionamento necessita de energia exterior, quer sejam pilhas, electricidade, energia solar, etc. (…) Um exemplo de sistema fechado são os seres vivos que convertem o material perturbador, quase sempre previamente seleccionado, em energia que eles podem utilizar para reforço da sua manutenção. Aquele que não pode ser utilizado como energia ou não significa o elemento perturbador, ou então, se o significa, é eliminado. Caso não consiga ser
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eliminado, os sistemas ou ficam temporariamente doentes ou morrem” (C. Oliveira, 2003a).
Uma divisão que Maturana e Varela propõem é a distinção entre sistemas autopoiéticos e sistemas alopoiéticos. Os sistemas autopoiéticos são aqueles que têm capacidade para produzir material e processos (poiesis) que o sistema anteriormente não possuía por si só, ou seja, que não são introduzidos por elementos exteriores (auto). Os sistemas autopoiéticos são aqueles cujas partes se especificam a si mesmas, aqueles que constroem a sua significação interna, e que são todos os sistemas vivos que conhecemos. A partir da investigação destes autores, à qual se soma a de Clara Oliveira, tem-se vindo a utilizar o vocábulo “enacção” para descrever a actuação dos seres vivos em função de uma lógica organizacional própria de cada organismo. Ou seja, os organismo compensam as perturbações que padecem em função da sua lógica organizacional e que constitui a história da sua ontogenia. A este processo denominam por conhecimento orgânico, isto é, um actuar com base em mecanismos e processos já existentes ou criados a partir deles num meio/comunidade no qual o individuo se insere e participa, provocando a mudança individual e comunitária.
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Reclamando-se da linhagem de autores como Husserl e Merleau-Ponty, Varela remete o enactivismo para a tradição filosófica da crítica à representação. Em termos gerais, a preocupação central seria a de sobrepor o conceito de acção ao de representação e fazer emergir um novo conceito, uma nova abordagem (a enacção). Nesta perspectiva, aquele que sabe e aquele que é sabido, definem-se um ao outro e são correlativos. É esta ênfase sobre a co-determinação que caracteriza este ponto de vista: a imagem da cognição/ /inteligência deixa de ser a resolução de problemas, por meio de representações, passando a centrar-se na faculdade de “fazer-emergir”, agindo. Por sua vez, o acto de comunicar não se traduz por uma transferência de informação do remetente para o destinatário, mas sim pela modelagem mútua de um mundo comum por meio de uma acção conjugada: o nosso comportamento social modulado pela linguagem ou (en)acção linguística, constrói o nosso mundo. Um exemplo, importado das neurociências, poderá ser útil: António Damásio demonstrou que a percepção do meio antes de ser representacional, é de ordem corporal, ou seja, há uma cognição não representacional que se gera num corpo. Aqui, a noção de corpo é entendida como o território onde pontuamos as nossas experiências/aprendizagens, ou mapas de significação, que orientam a nossa
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existência. Alguns desses mapas de significação são articulados numa lógica discursiva, verbal e escrita. Damásio (1994) denominou esses mapas de “marcadores somáticos”: quando surge um mau resultado associado a uma dada opção de resposta poderemos ter uma sensação desagradável. Dada a sensação ser corporal, atribui-se-lhe o termo de “somático”, e porque marca com um determinado sinal (neste caso negativo) uma imagem, chama-se-lhe “marcador”. A sua função é actuar como um “sinal de alarme”, que permite ao sujeito fazer escolhas e tomar decisões mais vantajosas para si e para a sua espécie. Damásio afirma que a maioria dos marcadores somáticos foi criada nos nossos cérebros durante o processo de educação e socialização, pela associação de estímulos a estados emocionais. Mas para que se constituam mecanismos adaptativos, os marcadores somáticos requerem que o cérebro e a cultura sejam saudáveis; quando isso não ocorre podemo-nos deparar com disfuncionalidades várias (Damásio, 1994, 189). Portanto, cada um de nós nasceu num mundo que nos precedeu e tem a sua história, aquela que pertence à comunidade concreta em que nascemos. Pelo que vamos incorporando significações desse mundo, porventura diferentes daquelas configurações básicas de carácter biológico que tínhamos quando nascemos. É neste sentido que se fala de uma cognição incorporada, ou seja, de um conheci-
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mento orgânico. Isto verifica-se quando inscrevemos no nosso comportamento algo que aprendemos e isso nos permite ou torna capazes de nos adaptarmos melhor ao meio em que estamos inseridos. Voltando à perspectiva de C. Oliveira (1999), aquilo a que apelidamos meio, ou mundo físico, não existe independentemente do mundo humano, nem possui uma história autónoma em relação ao universo humano. A história do mundo humano é a história do mundo físico e dos seres vivos, bem como das mudanças que foram introduzindo mútua e interactivamente. Todos somos responsáveis por tudo o que ocorre na comunidade em que vivemos, já que essa comunidade surge e se organiza a partir da interacção e relações que os seres humanos efectuam entre si, estabelecendo regras comunicacionais que formam um padrão organizacional (regra comunitária) desse grupo de pessoas. A propensão natural de cada ser vivo quando nasce, e que constitui o seu primeiro nível de cognição, corresponde à primeira actividade mental enactiva de significação adquirida a partir das suas (inter)acções com o meio e outros seres que o rodeiam. Dessas acções surgem perturbações internas e externas, que constituem um ajuste “informacional” ou de referências que o sujeito possui e as ajusta com as novas que adquiriu na interacção com o meio, e isto é aprender. Caso não consiga transformar essas perturbações em mapas de significado
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individual, o sujeito da acção pode adoecer ou até morrer. Mas quando o sujeito é capaz de compensar as perturbações inscrevendo-as e complexificando o seu padrão organizacional, ele aprende, modificando-se e tornando-se mais adaptado. Ou seja, enacção corresponde a uma acção enquadrada no contexto significativo da história de vida de um organismo, por um lado, e no contexto significativo da história da espécie a que esse organismo pertence, por outro lado. Outro aspecto importante da teoria auto-poiética é o seguinte: os seres vivos vivem em acopulamentos estruturais ou, no caso humano, em interacção comunitária. Essa interacção só é possível com organismos que apresentem um padrão organizacional parecido já que é o padrão organizacional de um ser vivo que especifica o tipo de estrutura, isto é, o tipo de componentes que esse ser vivo produz e admite. E é essa parecença o que permite aos seres vivos comunicar. Importa salientar que não se comunicam informações ou mensagens totalmente novas, dado que essas mensagens não seria inteligíveis. Só poderão ser comunicadas se o organismo conseguir integrar essa mensagem no seu modo de significação interna. Caso não o consiga fazer, o organismo que tentou comunicar com outro organismo não teve qualquer êxito. 41
Escreve Clara Oliveira:
“Esta é uma questão muito importante para a educação, e para o ensino em particular, já que o que acontece na maior parte das aulas a que todos assistimos, ou ministramos, é que não chega a haver comunicação, já que as lógicas organizacionais são de tal maneira diferentes que não conseguem acopular-se estruturalmente” (C. Oliveira, 2003b).
Tal concepção é de extrema importância também para a prática clínica, além de ser salutarmente não dualista, na medida em que considera a existência humana não como dicotomizada num corpo que é natureza, por um lado, e as relações sociais que cada ser humano empreende, e a que está sujeito, por outro. Também neste contexto se fala de cognição encorporada, na medida em que os estados mentais dizem respeito a todo o organismo. Daqui podermos postular a inseparabilidade do conhecimento em relação à acção, à qual por sua natureza está unido. Também daqui se pode inferir que o vocábulo mente se refere ao aspecto relacional que um organismo empreende para a compreensão da sua existência, que se concretiza com os relaciona-
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mentos (acopulamentos estruturais) que vai estabelecendo. O que introduz a noção de que um indivíduo só evolui no seu conhecimento (conhecimento orgânico) quando consegue inscrever no seu comportamento corporal significações diferentes das já existentes e que lhe permitam uma melhor compreensão das suas interacções copulativas. Ora, esta dialéctica entre relacionalidade e clausura organizacional é de suma importância para quem, como nós, tem por missão encontrar um sentido para cada lágrima que se chora, transformando o sofrimento em algo de inteligível, de nominável e, com isso, passível de ser enfrentado sem que nos derrote. Mas, se o ser no seu interior só em nós pode ser conhecido, ou a partir de nós (a célebre questão dos qualia7), tal não parece tratar-se de um problema insolúvel? Como o “ser em si” pode ser conhecido como “ser em si”, se só o conheço como “ser em mim”? É o solipsismo radical de toda a natureza interior… Mas a antinomia poderá ser apenas aparente, porque o ser é em si como é em mim, já que actua em mim como é em si (Martins, 1961). A nosso modo, voltaremos a esta ideia.
7 Qualia, termo filosófico que define as qualidades subjectivas das experiências mentais.
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3 - DA POSSIBILIDADE DE UMA ANÁLISE ESTRUTURAL DO SER HUMANO
Por um instante, detenhamo-nos nesta palavra “analisar”. Tal vocábulo poderá significar o descobrir dos princípios gerais subjacentes a um fenómeno individual através da decomposição das suas partes. Ou seja, caminhar do mais complexo para o mais simples, indagando por um padrão que seja passível de explicar a totalidade do fenómeno. Poderá haver quem afirme que este método, que disseca as partes, é a melhor forma de não atingirmos o todo ou, quando muito, de ficarmos com um mero cadáver do todo; e um cadáver presta-se bem às mais lamentáveis dissecações… E assim será, se pretendermos com a psicologia atingir uma imagem típica do homem como tal, uma ideia geral, considerada à maneira de um universal, ou um conjunto de leis acerca do mesmo homem8. Mas isto dar-nos-á uma fisiologia ou uma anatomia? Não interessará mais encontrar esse ser ainda vivo depois do estudo a fazer sobre ele? “A sobrevalorização lógica das leis e essências, em relação aos indivíduos em que essas leis e essências se verificam, faz das leis um absoluto e dos indivíduos simples contingentes, imperfeitamente conhecidos, em relação a essas essências e leis” (Martins, 1961, 31). 8
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Haverá, então, um “homem geral”? E, se houver, que valor tem na sua aplicação ao homem concreto? Se, outrora, o indivíduo interessava apenas como via ad essentiam, sem outro valor lógico do que revelar a essência que nele se realizava (a monografia de um caso só interessava como elemento para levar à determinação da lei geral que nesse caso se manifestava), hoje, se reconhecermos que os indivíduos só imperfeitamente são conhecíveis em si, e que essa imperfeição afecta a natureza mesma dos universais (ao contrário do que parece à primeira vista); então, podemos dizer que o ser não se deduz (de um universal), mas que só se conhece no sendo. É deste modo que fica inteiramente valorizada a experiência individual, mesmo do caso único. A frequência dum caso não pode, evidentemente, ser conhecida por um só caso ― mas isso é outra questão (Martins, 1961). Tal não é desdenhar dos alcances da ciência (e ciência é sempre dos universais); mas no que ao ser humano diz respeito, não basta a sua anatomia, pois o ser humano se realiza através do tempo, o ser humano é histórico, interior e exteriormente. Para mais ― e é o menos que se pode dizer ― é humano tudo o que na experiência individual se manifestar. Portanto, numa só acção se pode tornar
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completamente conhecida uma natureza, se essa acção realizar a plenitude potencial dessa natureza. Podemos dizer que se o homem é um ser em evolução, a sua essência é inexistente como substância permanente, a sua essência é esse evoluir. Mas mesmo assim terá o homem uma essência, uma essência semelhante à do tempo. Então, a ciência, para ser completa, deve englobar a ciência dos indivíduos e a ciência das abstracções, a ciência das realizações e a ciência das ideias realizadas. E a psicologia, para ser ciência perfeita, tem de ser ciência dos homens e ciência do homem. Verdadeiramente, a par da ciência dos universais, deverá desenvolver-se uma ciência dos indivíduos, com valor próprio. A vertente clínica da psicologia, pode bem ser essa ciência. Ainda que, apenas e só, seja da cooperação de todas as escolas e perspectivas da psicologia que se deva esperar o progresso da psicologia como ontologia do homem. Então, julgamos ser possível compaginar a historicidade humana com a postulada necessidade científica da busca de universais. A título de exemplo, enunciemos no próximo ponto uma visão psico(pato)lógica que intenta, mais ou menos conscientemente, este compromisso: reunir as questões históricas, relacionais, autopoiéticas e as universais. De seguida, apresentaremos uma visão mais cognitiva. Note-se, para além das linguagens nem sempre
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unívocas, de ambas as perspectivas podemos e devemos recolher o que têm de precioso; e ambas têm o bastante.
3.1 - Uma Visão Dinâmica
Sem ― de modo algum! ― querermos entrar na clássica querela filosófica entre empiristas e racionalistas, haveremos de concordar que para além do conhecimento intelectual cujo conteúdo vem das sensações, há o conhecimento intelectual cujo conteúdo se atinge apenas com as sensações, mas a partir dos actos intelectuais. Nesta medida, e independentemente de qual é o primeiro (as abordagens de tipo bottom-up ou top-down9), apesar das dificuldades, também julgamos ser lícito enunciar algum tipo de organização/estruturação da mente humana. Não somos defensores dos paradigmas psicanalíticos clássicos ou ortodoxos, contudo parece-nos existir alguma razão em abordagens mais recentes e, digamos, atenuadas dessas visões clássicas. Referimo-nos às abordagens psicológicas de tipo dinâmiTop-down e bottom-up são estratégias de processamento da informação e organização do conhecimento. Em muitos casos top-down é usado como sinónimo de análise ou decomposição, e bottom-up como síntese. 9
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co, como as enunciadas pela Escola de Lyon. Para mais, subscrevemos que sem uma concepção razoavelmente clara sobre como o psiquismo humano está organizado ― ou, nas palavras do mentor desta escola: “uma concepção clara e precisa da organização económica profunda (…) no plano psíquico” (Bergeret, 1998, 149) ― não podemos fazer com eficácia referência a quadros clínicos e à forma de os tratar. Por outras palavras: o sujeito não responde simples e linearmente às influências do mundo, mas requalifica e reconstrói essas influências de acordo com as leis e organizações desenvolvidas no seio da sua subjectividade (cfr. as questões da clausura organizacional atrás discutidas). A vantagem de uma estruturação de cunho dinâmico sobre as classificações de molde psiquiátrico (do tipo do DSM-IV), é que permite distinguir entre afecções de tipo orgânico de afecções de tipo psicológico; além disso, e o mais importante, aceita de modo inequívoco que podem existir disfuncionalidades de tipo psicológico sem que se tenham de reduzir ao cerebral, como tal, aos tratamentos de tipo farmacológico. O que não significa, necessariamente, algum tipo de dualismo!10
10 Ainda que, “mais ou menos conscientemente, a psicologia tem permanecido sempre num contexto dualista” (Broyer, 2002, 14)… No entanto: “só artificialmente psique e soma podem conceber-se em separado (…). Por isso, as psicoterapias de orientação dinâmica (aliás, todas de qualquer
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Tal tipo de psicopatologia procura estudar a disfuncionalidade dentro do comportamento humano e tudo o que está relacionado com o seu equilíbrio através do método psicoterapêutico e não do método medicinal ou bioquímico. A razão não é uma mera aversão ou rivalidade para com a psiquiatria ou as neurociências, mas a crítica de que a medicação, se indevidamente prescrita ou mantida, cristaliza a patologia (Brandão, 2000), na medida em que procura eliminar a sintomatologia sem indagar da etiologia da afecção psicológica. Naturalmente, isto não invalida as abordagens neurológicas quando se reconhece que a causa de uma afecção reside não em eventuais relações disfuncionais mas em afecções de cunho vincadamente orgânico. Uma visão metapsicológica ou dinâmica, onde os fenómenos do passado são vistos como relevantes para a compreensão do comportamento do sujeito, permite uma abordagem mais humana e mais próxima da facticidade e unicidade da vida de cada paciente. Para a psicopatologia cada caso é um caso e qualquer generalização apresenta-se como perigosa. modo filiadas na psicanálise) procuram abarcar os significados da pessoa total”. Maria Rita Leal continua: “é curioso notar que os investigadores da medicina biológica encontram-se, hoje, mais próximos do cerne do problema do ‘misterioso salto’ entre psique e soma, do que muitos psicoterapeutas, sobretudo os que apostam na intervenção comportamental” (Leal, 1999, 47).
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A estruturação apresentada pela escola de Lyon, é recriada em cada ser humano através do tempo, desde a infância, enriquecida cada dia com novos dados, parte consciente parte inconsciente, sempre pronta para entrar em acção, consciente ou inconscientemente, conforme a natureza e a eficiência dos excitantes actuais e a força da vida psíquica, nas suas várias camadas e diversos estratos. Nesta medida, a vida é acção do eu sobre o mundo, depois de ser, na primeira infância, reacção do eu aos excitantes do mundo, para se lhe adaptar. É assim que faz sentido falar de uma estrutura de tipo neurótico, onde se apresenta um domínio do Super-Ego sobre o Ego, combatendo o Id11. Bem como podemos falar de uma estrutura de tipo psicótico, onde o Id exerce domínio sobre o Ego (um Ego fraco ou inexistente), com inexistência de Super-Ego. E faz sentido dizer que estas estruturas não são sinónimos de “doença”; antes são o modo de funcionamento “normal” desse tipo de estruturação da personalidade. Como tal, Bergeret não fala de patologia nestes casos. A patologia só surge quando esses arranjos caracteriais se quebram, quando acontece uma ruptura no equilíbrio da estrutura, dando então origem ― e só então ― à sintomatologia: as neuroses e as psicoses. 11 Estes termos da psicanálise são por demais conhecidos, pelo que nos dispensamos de os definir.
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Tenha-se em conta que o simples facto de dar um nome a uma coisa naturalmente imprecisa torna-a aparentemente clara, quando a única coisa clara é a palavra à qual essa coisa fica ligada, e que a fica substituindo (Wittgenstein, 1956; Martins, 1961). Também por esta razão, continua a reinar uma certa confusão sobre os qualificativos “neurótico” ou “psicótico”, sendo com frequência confundidos com a sintomatologia inerente às “neuroses” e “psicoses”, respectivamente. Detenhamo-nos um pouco na possível organização das estruturas profundas do psiquismo humano, ou organização da personalidade, tal como apontada por Jean Bergeret (Bergeret, 1998; Bergeret, 2000). Tenha-se em consideração o diagrama reproduzido no Anexo 1 (pág. 129) (Bergeret, 1998, 230). Neste diagrama podemos constatar a proposta de Bergeret relativa às organizações possíveis da personalidade e respectiva nosologia psicológica12. Estas organizações e instâncias psicológicas não pretendem ser simples ideias ligadas umas às outras, mas um sistema onto-lógico, uma expressão lógica da realidade ôntica como ela aparece no contexto das relações humanas e no contexto clínico. E para as conhecer (não dizemos para construir) este sistema onto-lógico, temos de começar por um ponto qualquer, uma vez que o ser humano não aparece como um quadro em branco, mas um quadro que se nos apresenta já escrito quando o estudamos (como, é o que resta determinar) e caminhar dele em todas as direcções do ser, se o queremos abranger todo. Não fosse verdade que só tarde, por reflexão, o sujeito se pensa a si mesmo como sub-jectum. 12
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Como se pode verificar graficamente, a diferenciação entre os diversos tipos de organização reside na diacronia dos acontecimentos.
A Organização Neurótica da Personalidade É a personalidade neurótica (Chartier, 1998; Rodrigues e Gonçalves, 1998) a que é caracterizada por uma integração do “eu” e dos objectos significativos. É esta a personalidade que poderemos alcunhar de “normal”. Na estruturação de tipo neurótico, a evolução dita normal é conseguida justamente por causa do conflito rotulado de edipiano, que se apresenta como um expediente salutar e estruturador do Super-Ego ― nesta fase são marcados os limites sociais (por intermédio da actividade educativa) para as pulsões do Id, estabelecendo-se então uma estrutura de tipo neurótico onde se apresenta um domínio do Super-Ego (um Super-Ego funcional, ou seja, a internalização de um sistema de valores estável e sem um excesso de proibições inconscientes infantis) sobre o Ego, combatendo o Id. Facto este que propicia a capacidade de diferir no tempo a realização dos impulsos do Id. Mas este normal a que nos referimos não é algo de não-problemático, é antes um equilíbrio sempre instável de forças psíquicas em permanente dispu-
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ta… E no adulto, como na criança, a libido transforma-se em angústia quando a pulsão não pode alcançar a sua satisfação. Apesar de todos os riscos, nestas condições ditas “normais”, num momento posterior as representações completamente boas ou completamente más são integradas num conceito unificado, que é o que permitirá uma visão realista que tolera tanto os impulsos de amor como de ódio, combinando os aspectos completamente bons ou completamente maus de cada uma das pessoas importantes na vida da criança, e de si mesma. Um Super-Ego desta forma integrado, fortalece a capacidade para estabelecer relações de objecto adultas, assim como a autonomia, na medida em que um sistema de valores internalizado torna o indivíduo menos dependente da confirmação externa, ao mesmo tempo que facilita um empenho profundo no relacionamento com os demais. Tornando-se patente, neste tipo de integração mental, um predomínio dos impulsos libidinais sobre os agressivos, o que não acontece nas perturbações graves da personalidade, onde predomina largamente a presença da agressão patológica. Esta configuração proporciona a capacidade para o estabelecimento de relações objectais profundas, tolerância à ansiedade, controlo dos impulsos, funcionamento da sublimação, eficácia e criativida-
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de no trabalho, capacidade para o amor sexual e intimidade emocional. Sequência que se inicia muito cedo na vida da criança sob a influência dominante de um estado afectivo intenso, positivo ou negativo, conduzindo, respectivamente, a representações completamente boas ou completamente más, de acordo com as experiências pelas quais o infante vai passando. Estas unidades representacionais constituem as estruturas básicas do que virão a ser os adultos daí resultantes.
A Organização Psicótica da Personalidade Esta estruturação (Dubor, 1998; Rodrigues e Gonçalves, 1998) é marcada pela ocorrência de um traumatismo desorganizador precoce. Este facto origina uma ausência de integração com os objectos, o que se manifesta pela difusão da identidade, predominância de operações defensivas primitivas, centradas na clivagem e alterações do teste da realidade. O teste da realidade refere-se à capacidade para diferenciar o intra-psíquico dos estímulos externos e manter a empatia com os critérios sociais da realidade. Isto manifesta-se particularmente quando este tipo de estrutura se “quebra” e surge a psicose. A psicose manifesta-se particularmente pela presença de alucinações e delírio: a informação recebida faz “ricochete”, mas não se sabe onde embate dada a inexistência de informação acerca
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das consequências que a informação provoca no aparelho psíquico, como tal o resultado desse ricochete aparece sob a forma de delírio, que funciona como um mecanismo de defesa para estes indivíduos. O delírio pode, então, ser definido como uma síndroma constituída por um conjunto de ideias mórbidas, elaboradas muitas vezes a partir de uma tendência afectiva ou de um trauma emocional, “ideias” que traduzem uma alteração fundamental da imaginação e do juízo, na qual o doente crê com uma convicção inabalável. O delírio paranóide. Este tipo de delírio corresponde a formas delirantes de direcção centrífuga constituídas essencialmente por conteúdos de grandeza, de reforma, de invenção, de reivindicação e de transformação cósmica e que por vezes assumem um carácter altamente reivindicante. São delírios pouco compreensíveis, ilógicos ou incoerentes e evoluem sem uma sistematização precisa, tornando-se a personalidade do doente dificilmente penetrável ou até impenetrável ao observador e aproximando-se por vezes, em certos aspectos, da personalidade autista. Os delírios paranóides são considerados por muitos autores (sobretudo pela escola psiquiátrica francesa) como delírios de carácter passional (delírio de ciúme, delírio místico…). Costuma estar presente nas crises maníacas graves, nas psicoses do tipo paranóide propriamente dito, incluindo as formas esquizofrénicas dessa natureza
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(delírio de grandeza), nas parafrenias e em muitas demências. Os temas apresentam-se como isolados, justapostos, divididos e ao mesmo tempo sem obedecer a qualquer lógica aparente ou interna. O conteúdo do delírio é cada vez mais abstracto, seccionado de toda a relação com a realidade limítrofe. Este pensamento “abstracto”, “simbólico”, pode trazer problemas importantes para a linguagem no que diz respeito ao léxico, à sintaxe e à gramática. Nestas circunstâncias o delírio vai causar perturbação na relação interpessoal. A síndroma de despersonalização é típica do delírio paranóide, a qual consiste numa forte preocupação com a integridade do seu corpo. O delírio paranóico. Opondo-se ao paranóide, o delírio paranóico é caracterizado por ser um delírio hiperlógico, interpretativo, apresentando um certo trabalho delirante e uma grande sistematização. Este tipo de delírio vai-se enriquecendo todos os dias, a partir de interpretações, de novos amantes, de novos espiões… Embora se restrinja a um domínio muito preciso, não se apoia num só tema. O postulado inicial ― muito preciso, muito circunscrito, encaixa-se num ângulo da realidade, sem com isso contaminar os outros pensamentos, sem perturbar a actividade, visto que funciona com uma “ideia fixa”. O delírio agudo. O delírio agudo é caracterizado por crises brutais e de grande intensidade; admite-
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-se a hipótese do orgânico na génese deste tipo de delírio. Será interessante apontar a dificuldade de distinguir, segundo Jean Ménéchal (1999, 54), na psicose, e com acuidade, os sonhos dos delírios, sendo esta uma questão pouco desenvolvida pelas principais teorias; mas este autor aponta uma excepção: a da psicopatologia de inspiração freudiana e, mais concretamente, na sua clínica das demências. De facto, já Freud entendia o sonho como o delírio fisiológico do homem normal (Mancia, 1991, 105). Neste, o processo não se desenrolaria de forma diferente quando arbitra entre o verdadeiro e falso: ele parte de elementos considerados verdadeiros e compara-os com os novos para os validar ou invalidar. No psicótico o processo é o mesmo, mas tudo é levado num sentido que ignora o princípio da realidade. Assim, Freud falava da relação estreita entre sonho, psicose e delírio porque, tal como no sonho, no delírio verifica-se um preenchimento do desejo, por uma retirada da libido do mundo exterior para o mundo interior. Como a realidade pode ser muito penosa, a satisfação dos desejos recalcados, no psicótico, pode dar-se através de um complexo processo cuja lógica pode-se transformar pela passagem pelo incons-
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ciente e pela intervenção do recalcamento, e de uma forma muito semelhante à do funcionamento do sonho. Pelo que, e cada vez mais, irão investir no mundo interior elevando este à categoria de postulado fundamental, que será mantido em todas as ocasiões; é desta forma que o delírio/sonho pode vir a substituir o lugar da realidade, invalidando-a, porque só nesta neo-realidade encontram satisfação (segundo Ménéchal, a abordagem da intencionalidade inconsciente é uma das perspectivas mais interessantes em psicopatologia das psicoses). Deparamo-nos, então, com a explicação para a confusão que os psicóticos fazem entre os sonhos e os delírios; e esta encontra-se justamente no facto de ambos obedecerem à mesma lógica: a da busca da satisfação; satisfação esta que não encontram no confronto com a dura realidade. Resumidamente, nesta estrutura o Id exerce domínio sobre o Ego (um Ego fraco ou inexistente), com inexistência de Super-Ego. A Organização Estado Limite ou Borderline da Personalidade Jean Bergeret apresenta uma “via media”, uma evolução marcada por um traumatismo desorganizador, mas não tão precoce e, portanto, não tão limitativo quanto na estruturação psicótica (Bergeret, 1998). 58
Nesta evolução também se manifesta uma difusão da identidade e a predominância de mecanismos de defesa primitivos centrados na clivagem, mas distingue-se da organização psicótica porque o teste da realidade encontra-se mantido. Devido a esse traumatismo, todavia, apresentam uma desorganização acentuada do Super-Ego. Bergeret não defende que esta seja uma verdadeira estrutura ou organização da personalidade, antes defende ― e disso o gráfico do Anexo 1 (pág. 129) é revelador ― que é de todos os desenvolvimentos o mais penoso para o sujeito, e a tal modo que terminará por desembocar numa das vias organizadas (neurótica ou psicótica). Contudo, um dos seus discípulos, Adriano Brandão (2000), defende que esta é uma verdadeira organização pois, talvez fruto das acentuadas mutações sociais das quais somos testemunhas, este tipo de organização é o mais claramente evidente e mantém-se “estável” (no âmbito de uma instabilidade não cristalizada) ao longo de toda uma vida13. Cada vez mais existem 13 Como chama a atenção Neubern (2001; 2004), a tradição moderna em psicoterapia caracterizou-se tanto pela elucidação empírica das essências como pela desvalorização das manifestações mais aparentes das expressões dos sujeitos. Enquanto as causas estariam na essência, de onde derivaram, por exemplo, as noções de estrutura da personalidade, os efeitos estariam a um nível mais aparente e transitório. Esta noção moderna, sucedânea das pressuposições cartesianas, começa paulatinamente a ser substituída por uma visão integrada organismo-meio (Järvilehto, 2009), tornando-se esta na uni-
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indivíduos que, apesar de manterem as características de base desta estruturação, são capazes de manter uma adaptação social relativamente satisfatória e também algum grau de intimidade nas relações de objecto e na integração dos impulsos sexuais com a ternura. As perturbações da personalidade que se originam deste espectro borderline, apresentam, todavia, devido à difusão da identidade, alterações graves das suas relações interpessoais, sobretudo problemas nas relações íntimas com os outros, falta de objectivos consistentes na profissão, incertezas na condução das suas vidas em muitas áreas e vários graus de patologia da sexualidade (existe frequentedade básica para as investigações em psicologia. Afinal, a subjectividade não significa a exclusão do agente do seu mundo. Como o desenvolvimento dos sentidos e significados dos sujeitos não obedece à singela lógica linear preconizada pela modernidade, mas a uma relação complexa, faz sentido o reconhecimento da organização borderline por parte de Brandão. O que também nos permite, no espírito da psicologia ecológica, colocar em causa a pretensa cristalização definitiva das demais estruturas da personalidade (neurótica e psicótica), e até suspeitar da sua real existência…, o que abre interessantes possibilidades para a prática clínica em psicologia/psicopatologia. Seja como for ― e como já referimos ― o sujeito não responde simples e linearmente às influências do mundo, mas requalifica e reconstrói essas influências de acordo com as leis e organizações desenvolvidas no seio da sua subjectividade (cfr. as questões da clausura organizacional atrás discutidas).
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mente a incapacidade de integrar a ternura nos comportamentos sexuais, mantendo uma vida sexual caótica com muitas tendências polimorfas infantis. Nos casos mais graves pode existir uma inibição generalizada de todas as respostas sexuais, como consequência da falta de activação suficiente das respostas sexuais na relação precoce com o prestador de cuidados ou devido à predominância invasiva da agressão que interfere na sexualidade). Também encontramos em todos estes pacientes manifestações não específicas de fraqueza do Ego, tais como: baixa tolerância à frustração, dificuldade de controlo dos impulsos e dificuldade na utilização da sublimação, que se evidencia na incapacidade para a consistência, persistência e criatividade no trabalho. Da Validade de uma Visão Dinâmica Longe vai o tempo em que precisávamos fazer esforço para entender as teses narrativas da psicanálise. Assim, e independentemente de aceitarmos ou não as suas asserções, há que reconhecer que a cultura imbuiu-se dos ensinamentos dos chamados filósofos da suspeita (Marx, Nietszche e Freud). Bom para a sociedade ― as filosofias da suspeita agitaram o mundo, sacudiram-no e muito do pó de séculos foi afastado. Mas, actualmente, ainda nos permitem o auto-conhecimento que, desde Sócrates, todos almejamos? 61
Na verdade, nenhuma das correntes criadas pelos filósofos da suspeita permitiu o verdadeiro auto-conhecimento. Aliás, jamais uma filosofia, como também o é a psicanálise, conseguiu juntar à sua volta o consenso generalizado dos ansiosos habitantes deste mundo. Há sempre um lado limitado em cada uma. Mas passa hoje a psicanálise por um novo desafio: não o de ter mais perto de si a capacidade de chegar a possuir uma fundamentação mais científica, mas o de estar a perder a frescura das origens. Fundamentalmente, ela surgiu como uma reacção emotiva contra o então estado de coisas. Estado de coisas, a expressão é a correcta: contra a petrificação lutou Freud, procurando uma libertação para tantos corações desvirtuados, desiludidos, apagados. Também o seu. Fundamentalmente, procurou a sua própria libertação. Te-lo-há conseguido? Mas alguém o consegue de todo? Perguntas para as quais não existirão jamais respostas completas. Se existissem, já não faria mais sentido a psicanálise e todas as “suspeitas” de ontem e de hoje, todas as buscas, mas também todos os sonhos e perspectivas. E foram estes que a psicanálise procurou: para os identificar, analisar, mas também para os fazer
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seus, para verdadeiramente os sonhar, mas desta vez da forma mais perfeita, da forma “correcta”: longe da noite escura. Assim, e de uma maneira libertadora, sonhar acordado liberdade ― nomeando o sonho mau, rememorando a inquietude, afastando os demónios das trevas, tudo iluminando pelo poder com-criador da palavra. Então, desejo, palavra, corpo ― fundidos ― se mostram nus perante o terapeuta ― psicanalista ortodoxo ou heterodoxo ― não para os profanar, antes para o ritual da purificação. Silencioso, talvez, mas atento e profundamente participante, no gesto ameno, na atenção prestada, na compreensão jamais paternalista. Mas, e hoje? Pode-se hoje ter ainda acesso a isto? Tantas foram as vezes que os termos da psicanálise se nos depararam no caminho que, talvez, já tenham perdido o encanto. É, pois, agora, o momento de a psicologia, sua descendente, não se acomodar nem se vangloriar com a aceitação tão alargada que conseguiu. Nem sempre esta é a vitória. É tempo, portanto, de a psicologia ressuscitar um traço fundamental do pensamento freudiano: a coragem de desafiar o senso comum e a opinião pública.
Actualmente, cada vez mais sectores da psicologia distintos dos da psicologia dinâmica, consi-
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deram que a personalidade individual, entendida no âmbito de um “organismo funcional” (Brandão, 2002, 79), é afectada por vários processos psicológicos e por influências que vão desde o biológico ao social; e isto em clara oposição ao modelo psiquiátrico que vê na disfunção e no comportamento apenas uma causa: a orgânica. De facto, ressurge na actualidade, nomeadamente nas áreas das ciências cognitivas (que bem longe se encontram da psicanálise), as noções de mente e de suas relações ― incluindo uma noção mais clara do comportamento humano, e menos inclinado para o modelo da ciência neutra, destituída de valores e alheia à diversidade da experiência humana, compreendendo o impacto dos acontecimentos situacionais e sócio-culturais sobre a personalidade. Passando, assim, a personalidade a definir-se como as causas internas subjacentes ao comportamento, mais a experiência dos indivíduos. E de algum modo a actual onda de mutação epistémica (Dinis, 1998) parece dar razão, em parte, à velha psicanálise quando esta afirmava a possibilidade do mental frente ao físico. Mesmo que para o pai fundador da psicanálise o corpo fosse e permanecesse sempre como a fonte da vida psíquica (Dumet, 2002, 8), Freud iria abandonar a fórmula isomorfista do corpo em relação à mente (Mancia, 1991, 34).
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Afinal, a fórmula isomorfista sempre se revelou humanamente redutora. Não se estranha, assim, que as nosologias médicas (que analisam os traços da personalidade como uma característica orgânica e estável) se vejam a braços com as limitações dessa maneira de descrever. Edelman refere:
“A individualidade do paciente consciente é resultado de um padrão extremamente complicado de eficácias sinápticas que funcionam unicamente para ele ou para ela. Consequentemente, a tarefa de comunicar com o paciente através de meios verbais e emocionais não pode ser substituída pela utilização de drogas. É provável que continue a ser necessária uma combinação das drogas com a psicoterapia” (1995, 261).
Não fosse a personalidade algo de dinâmico e epigénico: o genético só determina o curso do epigénico no ponto de partida! Em termos biológicos, sermos não apenas genótipo significa que o citoplasma não é uma mera bolsa para o núcleo, é antes uma arquitectura que na rede mais vasta das relações permite que se estabeleça o fenótipo (Major, 2001; Barbieri, 2003).
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Afirmar o mental, realçar o inconsciente, não significa a exclusão do corpo; pelo contrário. Valorizar o inconsciente significa a inclusão do corpo (além de ser por ele representado). É que o corpo não é um obstáculo ao pensamento psicológico, ele é fermento, a base, uma realidade incontornável (Dumet, 2002) ― não fosse o ser do homem uma unidade sómato-psíquica: em verdade, quando consideramos a multiplicidade dos sistemas corporais e o evidente entrecruzamento e cooperação dos processos químico-biológicos e neuro-psíquicos, dos quais só se podem captar, do prisma das ciências da natureza, apenas uns quantos processos particulares, verificamos que este corpo funciona como um organismo unitário e total. Todos os processos parciais, desde os processos perceptíveis ultramicroscospicamente ou invisíveis, até ao grande sistema da circulação sanguínea e às reacções do sistema nervoso, decorrem coordenadamente e são destinados uns aos outros em mútua interdependência. Inclusivamente os processos psíquicos, os pensamentos, têm uma correlação física (“de algum modo tudo reflecte-se nas sinapses” (Edelman, 1995, 259)); e por sua vez são influenciados pelos estados corporais. Portanto, mesmo dualisticamente, temos de falar de o inconsciente implicar sempre a inclusão do corpo. E quando se fala de Terra, essa Terra identifica-se simbolicamente com o corpo, assim como também a fuga à Terra é
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sempre ao mesmo tempo fuga ao corpo (Neumann, 1991, 96). Perigoso é, então, tudo aquilo que impede, para além da aparente dualidade, o reconhecimento da unidade. E tudo o que ensina a apontar isto ou aquilo como indigno, em mim ou fora de mim, sem conseguir reconhecer que eu sou também aquilo que aponto como mau e perdido, impede o meu crescimento como homem e me destrói. Porque “mau” é o que me afasta da responsabilidade de possuirmos a profunda consciência de nós mesmos ― das nossas culpas e das nossas impotências, e das prisões em que, invariavelmente, caímos. Mas tudo isto deve ser encarado com alguma complacência e ― porque não!? ― com doçura. É que, “para paranóide, paranóide e meio”: Como indica Claude Olivenstein, podemos encontrar pelo caminho o espelho de uma contra paranóia e, se levarmos as coisas demasiado a sério, pode acabar por ocorrer
“uma escalada a dois ou com mais participantes, todos tentando não se desacreditar e aumentando, sucessivamente, as fasquias de uma represália progressiva. Quantas guerras idiotas se desencadearam nestas condições, enquanto os observadores se deixavam enganar por justificações ideológicas? Quem se
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sabe capaz de cometer actos injustificados pode imaginar que outros, mais poderosos, não são menos vulneráveis. (…) Não é simples retórica: recordo-me, com um vivo mal estar, de ter impedido a saída de um jovem doente do hospital psiquiátrico, porque teve a audácia de ser insolente durante a última entrevista. O remorso que senti não apagou a vilania do acto, agravada ainda pelo facto de o ter condenado, por ele ter persistido na atitude, a ficar só, sem roupa, numa cela de isolamento. Avaliei nessa ocasião a perigosidade do poder e a imperiosa necessidade da ética, dessa fronteira que você ergue contra si próprio, para assegurar o estancamento entre os problemas pessoais que defronta e o cargo público que exerce” (Olievenstein, 1996, 39).
É preciso, pois, assumir que a “sombra”, a “instintividade corporal”, ou o que quer que lhe chamemos, reside em nós, que somos nós próprios o “mal” ― talvez isto faça com que ele se afaste, e possamos ser homens livres; mas de um tipo de liberdade toda outra: forte, porque esclarecida, unificada. É preciso força para crer que tal é possível: é possível ser uno e livre (ou espontâneo, no sentido etimológico de sponte: “por sua própria vontade”). É esta a esperança. Mas onde o simbolismo for fraco, e o imaginário for dualista, então é inevitável
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que se torne monstruoso, infeliz, doloroso, inteiramente submetido à negatividade. E se o real contribui para isso pela farsa das suas representações, “se as fachadas são dignas e os interiores podres, a exclusão fabrica-se no imaginário dos mais vulneráveis e produz-se o movimento oscilatório progressivo ou brutal, e entramos na paranóia” (Olievenstein, 1996, 58)…
3.2 - Uma Visão Cognitiva14
“O estudo da mente humana é tão difícil, e de tal maneira enredado no dilema de ser ao mesmo tempo objecto e agente do seu próprio estudo que não pode limitar as suas pesquisas a modos de pensar que dimanaram da física do passado” (Bruner, 1997, 12).
“Após um longo e frio inverno de objectivismo” (Bruner, 1997, 15), foi mérito da revolução cognitiva inserir de novo a “mente” e o “pensamento” nas Referimo-nos ao que Bruner “iria denominar a ‘segunda revolução cognitiva’: enquanto a primeira fez migrar a atenção dos comportamentos para o pensamento, a segunda retira o foco das explicações psicológicas dos pensamentos (internos) para a linguagem (social) em acção nas comunidades de prática” (M. Oliveira, 2006, 430). 14
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Ciências Humanas, bem como a questão de os processos superiores ― a mente, o pensamento e a cultura ― poderem ser “causa” de alguma coisa. Por demasiado tempo havia-se tido por bem colocar no círculo das questões proibidas tudo aquilo que hoje a psicologia vai assumindo com naturalidade como sendo a actividade mental e tudo o que tem a ver com a compreensão, o processamento e a comunicação do saber ― ou seja, a cognição15. A seu tempo, a psicologia científica acabou por reconhecer que o pensamento funciona por meio de agrupamentos mentais denominados conceitos e representações que por sua vez se agrupam em clusters cada vez mais vastos. Sendo a capacidade para elaborar e utilizar esses elementos própria do chamado pensamento racional, como também o é a capacidade para resolver problemas, isto é, enfrentar situações novas para as quais não temos uma resposta bem elaborada. Alguns problemas, é certo, são resolvidos através do sistema de experiência e erro, mas outros ― a maioria ― o são através da compreensão dos mesmos, o que, e por entre a formulação de juízos, leva à tomada de decisões. Por cognição podemos entender todos os processos pelos quais o impulso sensorial é transformado reduzido, elaborado, armazenado, recuperado e usado na conduta com vista à resolução de problemas (Ramos, 2001). 15
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A cognição humana aglutina-se na forma de esquemas mentais. Esquema é uma denominação criada por Jean Piaget para explicar a maturação mental das crianças e, em geral, a progressão mental de qualquer indivíduo. Os esquemas são maneiras de ver o mundo que organizam as experiências anteriores e atribuem um padrão para compreender as experiências futuras. Iniciam-se de um modo simples e acabam construindo e adquirindo outros até formar uma grande gama de conhecimentos. Trata-se de um processo de assimilação de novas experiências a esquemas anteriores e de acomodação dos existentes, de modo a que se ajustem às novas experiências. Quando não se podem assimilar experiências novas porque não se ajustam aos velhos esquemas, é possível que estes mudem para se acomodarem à nova situação. Tenha-se em conta o caso da memória: a memória humana é composta por núcleos representacionais (um núcleo semântico e simultaneamente figurativo: duas palavras ou três e uma imagem…) que se aglomeram em configurações complexas cujo âmago se torna resistente à mudança e que somente à informação satélite é permitido um pouco mais de capacidade de variação. Assim, e à semelhança dos esquemas de Piaget, só quanto muita informação é recolhida em contacto directo com a realidade, existe a possibilidade de mudança. Mas este processo, como Bruner e Geertz com razão afirmaram, tem
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muito a ver com a interacção social ― o que nos leva para além de Piaget: afinal, a criança não está sozinha no seu desenvolvimento e este não é só genético mas também sócio-cognitivo. Reconhecemos ser, assim, o comportamento humano não tanto influenciado pelos objectos externos mas sim pelas representações sociais (que por norma se mantêm estáveis) e pelas emoções evocadas por essas representações (razões pelas quais é tão difícil mudar um núcleo significativo). Os esquemas cognitivos, todavia, são algo de mais complexo do que uma simples representação: são blocos de representações estruturadas em unidades de processamento de informação e, como tal, são os elementos mais básicos da memória (denominando-se de esquemas pessoais); e estão de acordo com a teoria sistémica para a qual o todo é maior do que as partes (todo o esquema é diferente da soma das partes que o constituem). Deste modo, podemos caracterizar por esquemas os conjuntos organizados de expectativas sobre a forma como os diferentes tipos de comportamentos humanos se encontram associados. O que tem claramente a ver, e como acima vimos, com as expectativas criadas e mantidas a nível social. Fenómenos deste tipo indicam que os processos da cognição são activos (teoria motora da mente) e que funcionam pela activação recíproca de nódulos
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ou esquemas mentais. Isto é claramente patente na depressão, dado a nossa memória ser cíclica ― razão pela qual existe como que uma auto-manutenção mental da depressão. Contudo, usando o mesmo mecanismo, é possível fazer com que o indivíduo saia desse círculo vicioso no acto mesmo de levar a que a pessoa se consciencialize dessa ciclicidade (Allen, 1999). Resumindo, esquema cognitivo é: a unidade mais básica da memória; o organizador e guia da percepção; a estrutura que permite criar representações; estrutura fortemente organizada e inconsciente que influencia todas as fases do processamento da informação; baseia-se na experiência e interacção social; tem conteúdos gerais e específicos, episódios e expectativas; o seu conjunto equivale às teorias implícitas sobre a realidade pessoal e social; é a responsável pelo comportamento e interacção; simplifica o processamento da informação numa perspectiva de economia cognitiva (o que leva também a ser o responsável pelo enviesamento cognitivo); quase sempre é positivo (os esquemas são muito complexos mas têm uma marca de positividade; excepto se o indivíduo estiver a atravessar um quadro depressivo) (Ramos, 2001). Nestes breves elementos enunciados encontra-se já bem patente a linha que está a nortear a investigação actual em psicologia cognitiva, nomeadamente no que à “cognição” e à “memória” diz respei-
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to. De facto, esses dois factores são hoje encarados como as faces de uma mesma moeda, não se mostrasse a memória “o espaço no qual são organizadas e classificadas as representações mnésicas, ou esquemas” (Ramos, 2001) e, em última análise, é por isso que aquilo para o qual estamos a olhar depende daquilo que já sabemos. Portanto, nunca lidamos com a informação de uma forma isenta, mas sempre de acordo com o que já conhecemos. É também por isto que o construtivismo de algum modo nega a realidade “em-si” em favor das nossas construções e acomodações mentais. Mas tal processo não é um “limite”, num sentido negativo, da nossa percepção, é antes uma característica com um fim invariavelmente positivo, ou seja: adaptativo. E este processo é genético, bem como são genéticos certos esquemas e significados. Mas os esquemas são mais do que genéticos: são mentais. E ainda mais: são sociais. Jerome Bruner o menciona, referindo-se ao seu colega e amigo Geertz:
“Como Clifford Geertz refere, sem o papel constituinte da cultura, somos ‘monstruosidades inexequíveis… animais incompletos ou inacabados que só se completam a si próprios através da cultura’” (Bruner, 1997, 23).
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Citemos dessa paradigmática obra de Clifford Geertz ― A Interpretação das Culturas: “As pesquisas recentes da antropologia indicam como incorrecta a perspectiva em vigor de que as disposições mentais do homem são geneticamente anteriores à cultura e que suas capacidades reais representam a amplificação ou extensão dessas disposições preexistentes através de meios culturais. O facto aparente de que os estágios finais da evolução biológica do homem ocorreram após os estágios iniciais do crescimento da cultura implica que a natureza humana ‘básica’, ‘pura’ ou ‘não-condicionada’, no sentido da constituição inata do homem, é tão funcionalmente incompleta a ponto de não poder ser trabalhada. As ferramentas, a caça, a organização familiar e, mais tarde, a arte, a religião e a ‘ciência’ moldaram o homem somaticamente. Elas são, portanto, necessárias não apenas à sua sobrevivência, mas à sua própria realização existencial” (Geertz, 1989, 96-97).
O que sugere não existir o que chamamos de natureza humana independente da cultura, pois foi a cultura que “criou” o homem. A cultura, em vez de ser acrescentada, por assim dizer, a um animal vir-
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tualmente acabado, foi um ingrediente essencial, na produção desse mesmo animal. Ainda que o simples aumento no número de neurónios possa ser a razão do florescimento da capacidade mental do homem, o facto de o cérebro humano maior e a cultura humana emergirem sincronicamente, e não serialmente, indica que os desenvolvimentos mais recentes na evolução da estrutura nervosa andaram a par e foram pressionados pelas estruturas simbólicas socialmente construídas. Assim, e muito antes de ser influenciada por forças culturais, a evolução do que chegou a constituir, finalmente, o sistema nervoso humano foi positivamente modelada pelas forças sociais. Ou seja: em vez de a cultura funcionar simplesmente para suplementar, desenvolver e ampliar capacidades organicamente baseadas, lógica e geneticamente anteriores a ela, ela parece ser o ingrediente dessas capacidades. Um ser humano sem cultura seria, provavelmente, não um macaco intrinsecamente talentoso, embora incompleto, mas uma monstruosidade totalmente sem mente e sem possibilidade de ser trabalhada. O que significa que o pensamento humano é, basicamente, um acto aberto conduzido em termos de materiais objectivos da cultura comum, e só secundariamente um assunto privado (Geertz, 1989).
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Pensamento de algum modo semelhante é o de Gregory Bateson (1987). Na mesma linha, este incontornável autor defende que ao mesmo tempo que o homem nasceu, nasceu a cultura e, uma vez nascida, ela determinou seu próprio curso de forma a crescer totalmente independente de qualquer evolução orgânica do homem. Todo o processo de criação da capacidade do homem moderno de produzir e usar a cultura, seu atributo mental mais destacado, é conceptualizado como sendo uma mudança quantitativa marginal, que deu origem a uma diferença qualitativa radical. É por estas razões que a pessoa humana não pode ser vista unicamente como um fenómeno psicológico, possivelmente explicável pela biologia. Antes, a pessoa humana emerge como resultado da interferência entre as suas raízes biológicas e a correlação cultural da qual cada um é parte. E é assim que, distinto quer do fisicalismo reduccionista e do funcionalismo computacional, está um terceiro paradigma: a emergência e estabilização da “pessoa humana” requer a co-evolução do cérebro e da cultura, no qual âmbito as capacidades mentais das pessoas humanas acontecem. Esta visão podemos denominar por paradigma bio-cultural (que, assim o cremos, aos poucos irá tomar conta do panorama “cognitivo”).
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Da Validade de uma Visão Cognitiva É certo que na actual reflexão científica e filosófica acerca da pessoa humana existem alguns sinais que em terminologia kuhniana denunciam a existência de uma crise, isto é, a não existência de um modelo que satisfaça, por um lado, e a pulverização da investigação com a consequente competição entre vários candidatos a novo paradigma, por outro. Mas o certo é que este paradigma relacional, bio-cultural, cognitivo ou como se lhe queira chamar, tem vindo a conquistar terreno. Isto é bem revelador da mudança de perspectiva que se iniciou no pensamento do séc. XX: de uma visão individualista para outra de cunho relacional. Neste contexto, uma antropologia holista tem vindo a desenhar-se, segundo a qual a pessoa humana é corporal no mesmo grau em que é mental: toda ela é corporal e toda ela é mental. E tal acontece dada a humana capacidade de transcender as condições naturais através da capacidade de relação interpessoal. Assim, revela-se verosímil que a mente tenha surgido através de uma retroacção: o cérebro criou a linguagem, a linguagem criou o cérebro, e ambos em conjunto criaram a consciência superior do “eu” (Popper e Lorenz, s/d). Popper escreve:
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“Não há (…) na evolução animal de que temos conhecimento, outra coisa que se tenha transformado tão rapidamente como o cérebro humano. E esta transformação, esta rápida evolução do cérebro humano, é (…) produto da linguagem” (1987, 72).
Ou seja: “Antes tomada como um processo mental encarregado da representação e da comunicação do pensamento, por meio dos códigos sociais, a linguagem passa a ser compreendida como aspecto nuclear da constituição subjectiva da pessoa, à medida que estabelece o elo entre a ordem do psicológico e a da cultura, por meio dos significados (…). Dessa forma deixa de figurar como uma função cognitiva para constituir um meio para a acção, a ferramenta por excelência dos processos interdependentes de interacção social e formação pessoal” (M. Oliveira, 2006, 429). Em resumo, os problemas passaram a tornar-se conscientes através da linguagem que os extraia do sujeito que por sua vez já os tinha tirado do mundo, e podiam agora ser debatidos, o que levou ao incrí-
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vel desenvolvimento da espécie humana (de certo que isto a um nível, digamos, rudimentar nas fases primievas). Ora, isto tem uma importância biológica tão grande que motiva a pressão selectiva que depois conduziu ao incrível desenvolvimento do nosso cérebro (Deacon, 1997; Hoffmeyer, 2008).
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4 - POR UMA VISÃO INTEGRADA
“Numa ordem que mais ou menos se repete, costumam as psicologias estudar sucessivamente os métodos, as sensações, as percepções, a imaginação, a atenção, a memória, a vida afectiva, as emoções, as paixões, as tendências, os instintos, os hábitos, a inteligência, a vontade, o temperamento, o carácter, a personalidade… No fim sabemos imensa coisa do homem. Mas o homem não se pode reduzir a um somatório de sensações, de percepções, etc.” (Martins, 1961, 120).
No seu tempo, Freud teve o mérito de ter demonstrado a existência do inconsciente, e até que ponto a teia de relações da primeira infância com os pais e com a sexualidade determinam o homem e a história da humanidade. Na actualidade, até as correntes mais positivistas da psicologia estão a reassumir noções de carácter relacional e processual, nomeadamente ao realçar as virtudes da relação terapêutica16. Portanto, 16 Apenas a título de exemplo, veja-se o número especial da Psychotherapy Research dedicado à “relação terapêutica” (consultar bibliografia).
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hoje, todo e qualquer determinismo, quer psicológico quer biológico e suas visões da vida dos homens como governada apenas pelas leis cegas e impiedosas da natureza, de um inconsciente mais ou menos tirânico, ou pelo jogo do acaso e da sobrevivência do mais forte, deverá ser ponderado à luz de outras evidências: a relacionalidade que nos humaniza. A questão da origem da linguagem parece-nos interessante não porque nos queiramos imiscuir nesta controvérsia, mas porque alguns dos argumentos nos parecem úteis para a nossa problemática relacional. Após a polémica que no séc. XIX resultou na proibição da discussão sobre o tema da génese da linguagem na Sociedade Linguística de Paris, a introdução de uma metodologia científica de estudo considerada válida, recolocou a questão no séc. XX e acendeu um debate epistemológico e também ideológico entre inatistas e construtivistas. Os inatistas defendiam a existência de um núcleo de universais do comportamento humano, enquanto os construtivistas admitiam a possibilidade de uma aprendizagem sem restrições. Podemos integrar os investigadores daí resultantes em três grupos: 1) Os comportamentalistas, representados por J. B. Watson e B. Skinner. Estes encaram a génese
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da linguagem como o resultado de simples exposição a uma comunidade de falantes. 2) Os formalistas, sendo N. Chomsky o mais visível representante, e para quem a linguagem tem origem numa estrutura cerebral inata contendo informação sobre a construção futura da linguagem (princípio formante). Para estes, tal acontecimento resultaria da interacção com falantes de uma língua específica (princípio activante). 3) Por seu turno, os sócio-históricos, representados na primeira metade do séc. XX por L. Vygotsky17, A. Luria ou mais recentemente, por J. Bruner e R. Leal, encaram a linguagem como um produto histórico, possível em resultado de estruturas cerebrais não especificamente endereçadas para a linguagem serem (re-)construídas a partir da actividade relacional humana, esta estimulando recursos comunicacionais de origem biológica. Ou seja, no decurso da história evolutiva conducente à linguagem, vão sendo recrutadas e integradas na organização cerebral redes de neurónios que, apesar de nada terem de específico para o processamento da linguagem, servem ao processamento de vários dos seus componentes. Resulta daqui uma integraUma pertinente sistematização do pensamento deste autor encontra-se na Tese de Doutoramento de Joaquim Quintino Aires, defendida em 2007 na Universidade Nova de Lisboa (consultar bibliografia). 17
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ção orquestrada dos componentes do sistema funcional complexo da linguagem. Então, podemos dizer que estas redes neuronais não eram para a linguagem mas servem à linguagem. Melhor, a linguagem que existe é a que essas redes de neurónios permitem estruturar (Deacon, 1997; Aires, 2007; Hoffmeyer, 2008). Se a primeira18 e a segunda19 posições nos parecem simplistas, esta terceira posição se nos afigura como o ponto intermédio entre essas posições extremas; e é aqui que nos desejamos situar. É verdade que as crianças não fazem formalmente nenhum curso intensivo de língua, no 18 Note-se que o behaviorismo ou comportamentalismo não procurou “negar” a existência dos estados mentais ou do que quer que existisse no interior da caixa negra, antes desejou aplicar os cânones da ciência, isto é, os ideais de previsibilidade e controlabilidade, na consideração dos eventos privados, no sentido de tornar científico e sistemático o projecto de pesquisa da conduta humana (a psicologia) num tempo em que as neurociências ainda não se encontravam desenvolvidas.
Chomsky insurge-se contra o comportamentalismo por entender que a ideia da génese da linguagem ser apenas o resultado da aprendizagem por imitação não daria conta da imensa criatividade que a linguagem permite, nem do carácter sistemático das produções linguísticas realizadas pelas crianças. Neste sentido tem razão; mas já não nos parece ter quando, a partir do argumento da pobreza do estímulo e da rapidez com que as crianças aprendem a falar, postula a existência de um órgão cerebral capaz de, por si, responder pela génese da linguagem no ser humano. 19
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entanto a sua condição biológica coloca-as num padrão comunicacional (relacional) mutuamente contingente (Leal, 2004) que as mobiliza como que para um “curso intensivo”, ainda que não formal. Além de que o “muito breve”, como diria Chomsky, é muito relativo e subjectivo, dado que existe um enorme volume de processos de interacção linguística entre o prestador de cuidados e a criança, que dão conta do muito trabalho que ocorre nos primeiros quatro anos de idade. Trata-se da questão da aprendizagem explícita versus a aprendizagem implícita. Ou seja, a linguagem adquire-se através do seu uso activo em contextos de interacção, e não por simples exposição. Naturalmente, para que tal aconteça, assume-se a necessidade de uma competência comunicativa prévia à linguagem, para que esta se adquira. Nesta abordagem, o peso da estrutura inata fica mais associado a padrões de natureza comunicativa ou cognitiva global, do que a uma gramática universal. Daí a necessidade de uma experiência interactiva para que se desenvolva a linguagem, uma experiência significativa para a criança, embora ainda não compreendida linguisticamente. Note-se que, quando não se produz linguagem em contexto significativo e no qual a criança esteja implicada de forma activa, a linguagem não é adquirida.
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Portanto, o que é “inato” na criança é a comunicação. Mas esta dicotomia entre inato e adquirido não é real. É antes um
“mero artifício conceptual, erroneamente dialectizado, já que inato se refere ao genótipo e adquirido ao fenótipo, nenhum dos conceitos sendo oposto do outro. Nos processos biológicos há interacções, reaferências e retroacções em todos os níveis: os próprios genes não são abstracções, mas códigos materializados com um substrato químico mergulhado no meio interno dos organismos; enquanto a capacidade mais ou menos lata para aprender é designada em cada espécie por um certo grau de abertura do programa. Ou seja: os genes, hierarquizados e agrupados em constelações interactivas (que provocam estimulação, adição ou inibição de efeitos), são eles próprios um elemento do ambiente; e a aprendizagem tem uma base genética, fixada em graus diversos pela história natural de cada espécie. Os genes interagem com as células, os tecidos e o meio interno, dirigem a ontogénese e dão instruções para a realização do plano geral do fenótipo, que é edificado a partir deles e com a concorrência dos factores do ambiente exterior” (Vieira, 2009, 74-75).
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Assim nos deparamos com a pertinência da posição sócio-histórica para o âmbito do nosso interesse. Ainda que, hoje, Vygotsky se assuma como uma referência quase obrigatória, foi só nos anos 90 que assistimos a uma generalização do interesse pela sua obra. O que torna sumamente actual o pensamento de Vygotsky é o entendimento que ele teve sobre a relação entre o biológico e o social na génese do psiquismo humano:
Organização sistémica das funções nervosas superiores A primeira tese importante de Vygotsky (1896/ /1934) é que as funções nervosas superiores (FNS) do cérebro têm uma organização sistémica. O que não se mostra distinto de outros sistemas funcionais do corpo humano. Também a digestão é um sistema funcional complexo que recruta várias estruturas; a título de exemplo: boca, língua, glândulas salivares, esófago, estômago, intestino. Quer no caso da digestão como no da fala, não se tratam de funções; tal poderia induzir-nos em erro e fazer com que andássemos à procura da localização dessas funções (como se fossem o produto de órgãos únicos). No caso da fala, no cérebro estão localizados os componentes dos sistemas funcionais e não as funções, as quais só existem como conceitos ou
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distinções académicas (Wittgenstein diria “jogos de linguagem”); ou seja, têm o estatuto de “função” apenas no pensamento filosófico que lhes deu origem. Ao contrário do que, no séc. XIX, pensaram Paul Broca ou Karl Wernicke, cada produto cerebral é o resultado do funcionamento sistémico de várias regiões cerebrais, cujos vários componentes integrados e orquestrados entre si, concorrem cada um de forma específica com um determinado componente para esse produto (Deacon, 1997). O que está localizado no cérebro não são as funções, nem mesmo os componentes das funções, mas os reflexos das conexões nervosas que realizam o trabalho que nós associamos às componentes das funções: “a nossa referência a elas, para efeitos de estudo ou de comunicação, não se deve confundir com a sua existência. Aquilo a que chamamos funções mentais, são na verdade sistemas funcionais complexos, estes sim com existência real, e que recrutam vários processadores neurológicos. Estes processadores não existem como peça única no cérebro, antes resultam do funcionamento sistémico ‘orquestrado’ de várias unidades cerebrais” (Aires, 2007, 185).
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Localização dinâmica das funções nervosas superiores A segunda tese de Vygotsky defende a localização dinâmica das FNS. Vygotsky postula que ao longo do desenvolvimento a estrutura interna das FNS altera-se. Por isso, em estádios diferentes do desenvolvimento a mesma FNS recruta regiões cerebrais diferentes. O modo como se organizam os sistemas funcionais não é sempre o mesmo. Aires (2007) refere trabalhos recentes recorrendo a modernos métodos de neuroimagem que aparentam demonstrar tal tese20. Apenas a título de exemplo, também Edelman (1995) e Deacon (1997) subscrevem este aspecto dinâmico. Ou seja, em fases diferentes do desenvolvimento das FNS, elas apresentam processamentos e características diferentes, e essas diferenças são realizadas em regiões cerebrais diferentes.
F. Ostoresky-Solís (2004). “Can literacy change brain anatomy?” In International Journal of Psychology, 39 (1), 1-4. B. Kotik-Friedgut (2003). “A systemic-dynamic lurian theory and cultural neuropsychology today. In Jornal de Psicologia Clínica, vol. 3, pp. 5-21. 20
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A origem relacional das funções nervosas superiores A tese mais revolucionária de Vygotsky é a da origem relacional das FNS: as funções tipicamente humanas, como a atenção voluntária, a memória lógica, a linguagem, etc., não são inatas, não resultam de uma biologia com milhões de anos de evolução filogenética, mas são estruturadas no cérebro num processo relacional com outro humano. Ao longo da ontogénese, as relações entre os componentes dos sistemas funcionais cerebrais vão-se alterando e, à medida que se modificam, emergem novas constelações que estavam ausentes no estádio anterior. O desenvolvimento destas novas e flexíveis relações entre componentes funcionais cerebrais é o que dá origem ao sistema psicológico. Eis a importância, na estruturação do sistema psicológico, das ligações extra-cerebrais que, influenciando a organização do cérebro desde o exterior, possibilitam a formação dos assim denominados “novos órgãos cerebrais”. E esta é uma nova forma de evolução: os cérebros humanos contêm as condições e possibilidades para a combinação de componentes funcionais numa nova síntese, possibilitando o surgimento de “novos órgãos” cerebrais (como se
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compreende, “novos órgãos” deve permanecer entre comas). Estes “órgãos” funcionam da mesma maneira que os órgãos de morfologia constante, mas distinguem-se por serem neo-formações que aparecem no decurso da ontogénese. É nesta medida que podemos dizer que o cérebro humano se tornou num órgão capaz de formar órgãos funcionais. Repare-se na importância dos excitantes exteriores para a criação e manutenção do que podemos rotular por mente. Assim, podemos afirmar que a mente não “reside” no interior do cérebro, ainda que dependa da orquestração cerebral, mas sim em toda a dinâmica de factores “internos” e excitantes “externos” (Järvilehto, 2009). O que, por sua vez, torna evidente o papel crucial da cultura no aparelho cognitivo e cerebral, ou seja, no desenvolvimento do cérebro e das suas funções: a literacia, assim como outras instrumentalidades culturais disponibilizadas numa relação significativa, verdadeiramente alteram a organização funcional do cérebro adulto. É um aspecto relevante que Vygotsky tenha acentuado o carácter relacional entre humanos para o processo de apropriação de instrumentos de cultura, ainda que nunca tenha apresentado a estrutura desse carácter relacional (Aires, 2007). É aqui que o contributo da psicóloga portuguesa Maria Rita Leal surge como deveras relevante.
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Um padrão inato de procura de resposta do outro (coisa, pessoa ou evento) como locus de estruturação das FNS Rita Leal (1975; 2004), dando conta do componente natural, de carácter comunicacional e não linguístico (pré-linguístico) que Bruner postula em 1990, escreve:
“Impõe-se encontrar uma regra que aclare as diferenciações em curso desde os primórdios e que, nos humanos, se define prospectivamente como ‘padrão inato de procura da resposta’. O padrão inato de procura de resposta do outro (coisa, pessoa ou evento) é uma função de orientação e apreciação (‘appraisal’), que se vem a organizar como capacidade simbólica (Fordham) ou seja, uma atitude criadora de significados. O padrão inato ‘de procura de resposta contingente’ falha na criança perturbada e encontra-se como atributo da criança saudável” (Leal, 2004, 119).
Com efeito, o bebé dá sequência à imitação por parte do prestador de cuidados das expressões que ele próprio emitiu (não o inverso), imitando-as de novo. Deste intercâmbio de imitações emerge uma
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diálogo prazeroso, de gestos e motivações, em que se descobrem significados. Este intercâmbio desemboca em mútua ressonância e torna-se “proto-conversação”, um diálogo com fases e ritmos bem diferenciados, observado desde as oito às doze semanas de vida (a solidez deste sistema relacional estruturante da relação eu/outro comprova-se a partir das doze semanas de idade, assim como a experiência de desorganização por parte de bebés para quem falha, repetidamente, a consistência da resposta reguladora) (Leal, 2007). É importante referir que esse “jogo de imitações” refere-se a processos que preparam outros processos que ainda não o são (Aires, 2007). Ou seja, estão a descrever-se mecanismos biológicos (inatos) que no desenvolvimento se convertem em outros (por exemplo, nos que permitem estruturar a linguagem). Nesta medida, este jogo de imitações (sendo pressuposto esse impulso inato de busca, por parte do bebé) nada tem a ver com o processo de imitação (repetitiva) que permite à criança adquirir a linguagem no formato apresentado na teoria behaviorista da aprendizagem de Skinner. São estes mecanismos inatos o que dão conta da passagem do biológico ao mental, e a permitir enquadrar o entendimento de significados: à semelhança dos mecanismos inatos que existem nos demais animais e que os programam para a integração social e comunicativa da espécie, também
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no animal humano existe uma determinação biológica que permite a adequada integração filiativa na espécie. Uma determinação que é anterior à linguagem, e que constitui instrumento de comunicação por excelência entre os humanos. A nível neurofisiológico, como explica Leal (2004), esta comunicação é servida por estruturas cerebrais pré-corticais, sendo depois integrada em estruturas nervosas de circuito cortical. Esta autora utilizou os resultados do estudo experimental de J. S. Watson sobre a “análise da contingência recíproca”21, um padrão inato de procura contingente à própria iniciativa com as características de um “padrão fixo de acção”, e encontrou neste fenómeno um ponto de partida para a sua intenção de operacionalizar e entender o mecanismo relacional humano precoce, estudando experimentalmente a sua eficácia em projectos de reabilitação. Descreveu, então, que esta troca comportamental do tipo agora-eu-agora-tu-agora-eu, com características de jogo, era vivida pelo bebé como 21 Bebés, de oito a catorze semanas, tomavam a iniciativa de relação com pessoas e coisas. A este comportamento foi chamado de “análise da contingência”, expressão que se refere ao facto destes bebés bastante pequenos seleccionarem sistematicamente entre os seus actos espontâneos, aqueles que, de uma forma mais consistente e dentro de um certo intervalo de tempo (dois a cinco segundos em média e nunca superior a nove segundos), os presenteavam com um estímulo interessante, como se o estímulo estivesse sob o seu próprio controlo.
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imensamente prazerosa. E concluiu que o comportamento do bebé é o resultado de uma procura, uma necessidade do outro que esteja ali a responder. Daí Leal (2006) falar de emoção como moção e não como entidade. “A reacção emocional define-se como fenómeno relacional, pelo qual é assegurada a comunicação de organismo para organismo: ressonância implícita de um organismo ao seu meio circundante que é também reconhecível (como mensagem) por outro organismo da mesma espécie. A emoção como fenómeno relacional primário, pré-verbal, encontra indicadores claros nos comportamentos do filhote humano, pelo menos desde o nascimento” (Leal, 1999, 48-49). Será este o locus que configura a matriz relacional: comprometido emocionalmente, o adulto imita espontaneamente qualquer gesto ou movimento do bebé. Também o adulto vai realizar pausas e observar o que se segue (de notar que este intercâmbio comportamenal é absolutamente prazeroso para os humanos ― bebé e adulto ― intervenientes), e esta postura de espera e aceitação, este “diálogo” de actos, confirma a agência do bebé. 95
“A comunicação primária envolve para o Sujeito (seja ele pato, peixe ou humano) uma expectativa inata de reciprocidade: de que um outro se encontra ao alcance para completar o Meu acto. Nesta perspectiva, a vida emocional, como um todo, define-se como comunicação envolvendo intenções (que podem ser frustradas) respeitantes a um outro que é, a um tempo, co-agente, recipiente e respondente de mensagens que mutuamente se pressupõem e se regulam. (…) Vivências que se irão diferenciando como ‘objectos internos’” (Leal, 1999, 49). De notar que perturbações deste formato relacional estão na origem de desordens graves do desenvolvimento. Mas quando um profissional treinado permite reatar esta configuração de intercâmbio, uma nova oportunidade pode-se configurar, já que o mecanismo inato de busca da resposta contingente à própria iniciativa não se extingue ao longo da vida (Leal, 2003). O que depende “de se instituir desde o início, com o paciente, o intercâmbio pré-verbal, dialógico, entendido nos moldes primitivos do ‘vai-e-vem’ recíproco e alternante, o ‘turn-taking’ emocional primeiro que se observa nos estados de boa relação inicial mãe/filho” (Leal, 1999, 50). 96
Eis a importância do trabalho de Rita Leal: “na medida em que oferece a resposta à questão de Bruner (1990) sobre a estrutura e a natureza da relação precoce na qual se inicia a estruturação da linguagem, e explicita a categoria ‘social’ em biologia e psicologia” (Aires, 2007, 182). O que nos remete para o que já referimos: este social ou esta relacionalidade não tem um carácter simplesmente psicológico, cognitivo ou afectivo, mas ontológico. Implica, portanto, um intercurso mutuamente contingente, o que não interfere apenas no comportamento, mas também na organização interna. É assim que a teoria de Vygotsky e suas teses da organização sistémica, localização dinâmica e origem relacional das funções nervosas superiores, e a perspectiva dialógica de Leal (cfr. Anexo 2, pág. 131) nos aproximam de um novo entendimento do que nos faz humanos. Sem receio, podemos então afirmar que o que nos faz humanos é bioantropológico na sua origem e psicossocial no seu desenvolvimento e manutenção. Por isso é que o “indivíduo” ou homem neuronal (Caldas, 2003) é apenas um conceito abstracto e espúrio. O que existe são “pessoas” (seres relacionais) humanas, o que faz com que cada um de nós não dependa exclusivamente da sua biologia mas essencialmente dos relacionamentos nos quais e pelos quais vive, ou seja: o humano só existe na sua dimensão sócio-psicológica.
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É neste sentido que “as formas de incarnação que conduzem à consciência são únicas em cada indivíduo, únicas do corpo dele ou dela e das suas histórias individuais” (Edelman, 1995, 197), porque “cada consciência está dependente da sua história e forma de realização, que são únicas. (…) Um eu humano consciente se constrói, algo paradoxalmente, através de interacções sociais” (Edelman, 1995, 201). Em suma, um “ser humano” é o produto do seu corpo e da sua história relacional. Portanto, não se pode deduzir linearmente as paixões do homem, de acordo com essa curiosa expressão outrora muito usada, a partir de pretensos instintos biológicos, pois elas se formam e moldam sócio-biologicamente a partir da relação entre as necessidades humanas e o ambiente (Soczka, 1994); dessa forma, já são substancialmente o resultado das condições sociais e culturais22. O que o “Na literatura científica mantém-se a confusão conceptual entre ressonância emocional (fenómeno originário e dimensionável no bebé humano) e os chamados afectos (ou emoções estruturadas de elaboração tardia no percurso da criança humana com significado sócio-cognitivo)” (Leal, 1999, 48). “Quando se parte do princípio, hoje aceite por todos, de que a representação interna dos objectos da realidade é construção progressiva da mente (…) forjada laboriosamente através da actividade do sujeito nos seus primeiros anos de vida, também se poderá admitir que a vida emocional se estrutura em passos sucessivos. Estes vão da ressonância pura do infante (o que não fala…), à organização em complexas estruturas dos elementos da experiência de estar em relação, e à organização simbólica das relações de presença e de ausência, dos 22
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mesmo é dizer, o homem não poderá mais ser visto como um sistema mecânico ― um homem máquina ― impelido pelas leis da física e da química, um ser basicamente isolado e egoísta, mas terá de ser encarado como um ser que primariamente está referido aos outros, impelido por instintos vitais, sim, mas que anseiam por união com outros: não existo eu e os outros, mas eu-em-relação-com-tudo-o-mais.
Por tudo isto, a noção substancial de “res cogitans” de Descartes ou o substancialismo neuronal de algumas vertentes da investigação cognitiva devem ser ultrapassados em prol de uma noção “processual” e “relacional” (de acordo com a nossa perspectiva relacional). Partilhando, a nosso modo, do “materialismo sofisticado” de Edelman (1995, 230), recusamos as visões teleológicas emanadas do antigo paradigma medieval bem como a substancialidade23 defendida de modo ora tácito ora explícito no antigo paradigma medieval e no novo paradigma cognitivo (Major, 2008c), em prol de uma “terceira via” relacional e mais abrangente, de modo a justificar plenamente o significado e a ipseidade. afectos mais elaborados, do enquadramento estético e ético dos significados do Eu e do Outro e daquilo que os transcende” (Leal, 1999, 49-50). 23 No sentido de “auto-subsistente”; portanto, nos antípodas da perspectiva relacional que aqui defendemos.
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Assim, e porque não existe qualquer análise externa objectiva que possa suplantar as respostas individuais e a troca intersubjectiva que têm lugar dentro de uma determinada tradição e cultura, autores como Jerome Bruner deram tanta ênfase ao papel central desempenhado pela construção do significado na psicologia humana e ao facto do “eu” surgir a partir das interacções interpessoais numa cultura sob a influência de narrativas (Bruner, 1990). O que, a seu modo, nos subtrai às leis darwinianas. Apesar das determinações e constrições a que a nossa física de base nos condena, encontramos alguma liberdade na “nossa gramática” (Edelman, 1995, 244), e esta ensina-nos que antes do eu está o tu, e por fim o nós, não fosse essa a sequência que nos leva da infância (de “infante”: o que não fala) à idade adulta. Tal perspectiva nos afasta, de modo salutar, do fatalismo biológico e/ou físico. O que permite, por exemplo, a manutenção da moralidade apesar da nossa condição unicamente material (portanto, limitada e finita), bem como explica que os dados das neurociências, qualquer que seja a sua quantidade, não conseguirão, por si só, explicar o ser humano. Contudo… “nada há de misterioso ou de místico nesta afirmação” (Edelman, 1995, 251). Subscrevemos. Em certa medida, poderemos dizer que possuímos uma “‘alma’ individual baseada na lingu-
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agem” (Edelman, 1995, 67). Preferimos, contudo, a mais complexa e abrangente qualificação de uma existência baseada em mecanismos processuais relacionais. Talvez isto se torne mais compreensível se referirmos que a “mente biológica” ― e correlata consciência ―, evoluiu como um órgão para controlar o corpo e mediar as suas relações com o entorno (Pinker, 1999). O que não implica, necessariamente, a linguagem, mas sim a relação. Afinal, alguns animais cujos comportamentos são não linguísticos e não semânticos também parecem possuir uma consciência, ainda que primária. Tal consciência primária parece ser eficaz (no sentido causal) e potenciar as capacidades evolutivas de adaptação. Por sua vez, a consciência elaborada, dependente da linguagem, parece ser ainda mais adaptativa, porque epigenética. E é aqui, nesta recursividade que não só é biológica mas essencialmente social, que podemos radicar a intencionalidade e o que hoje denominamos por humano. Afinal, consciência é, sobretudo, consciência de algo e das relações do sujeito com esse algo (Méndez Paz, 2003), o que não é apenas fruto da biologia, mas essencialmente da dimensão recursiva, social e comunitária. Ainda assim, é verdade que “a psicologia não pode continuar a declarar a sua autonomia em face da biologia, e tem sempre que ceder às descobertas da biologia” (Edelman, 1995, 255). Não fosse a nossa liberdade uma liberdade sempre relativa e
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situada (o que desde os tempos da psicanálise e da “descoberta” do inconsciente se sabe). Quanto mais não fosse porque, mais cedo ou mais tarde, tudo acaba por se reflectir nas sinapses (Edelman, 1995, 259)… Por causa do aspecto recursivo do cérebro humano e, qual correlato “exterior” deste processo neuronal/cerebral, a faceta social da pessoa humana, Edelman chega a afirmar: “não existe verdade absoluta nem perspectiva divina. A nossa perspectiva daquilo que existe (metafísica) não é independente do modo como conhecemos (epistemologia)” (Edelman, 1995, 356). O mesmo poderá ser dito se afirmarmos que não existe uma teoria óptima sobre nada ou um “mapa” óptimo de uma zona concreta. Tal como diria Bateson: “o mapa não é o território e o nome não é a coisa nomeada” (Bateson, 1987, 35). Consequentemente, temos de complexificar os nossos discursos e “incorporar a biologia nas nossas teorias do conhecimento e da linguagem. Para conseguir isso, temos que desenvolver (…) uma epistemologia biologicamente fundamentada ― uma explicação do modo como conhecemos e somos conscientes, à luz dos factos da evolução e da biologia do desenvolvimento. Uma realização mais completa destes objecti-
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vos fará expandir os nossos horizontes científicos. Através das suas ligações com aquilo que nos torna especificamente humanos, uma epistemologia biologicamente fundamentada enriquecerá as nossas vidas” (Edelman, 1995, 358-359)24.
Com efeito, o nível de explicação da psicologia deverá percorrer as etapas dos processos que têm lugar a nível molecular (sináptico) até ao nível modular formado pelo conjunto das redes neuronais, passando pelos padrões que se estabelecem a nível social. Ainda que não seja fácil determinar onde começa e acaba cada nível, dado que a maior parte das vezes tais processos actuam em simultâneo numa dança complexa de interacções e retroacções. Em síntese, e usando uma metáfora (desde que se não olvide que é apenas uma metáfora), podemos dizer que o ser humano é, à partida, constituído por algo semelhante à bios (“basic input-output system”) de um computador: um programa muito Cremos que tal se anuncia na emergente disciplina científica denominada por biosemiótica (Barbieri, 2002; 2009), na qual se enquadram eminentes académicos e cientistas como, por exemplo: Deacon (1997), Favareau (2001), Markoš (2002), Barbieri (2003), Hoffmeyer (2008), Cowley (2009). 24
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básico (no duplo sentido de simples e de estar na base do demais), que dá sentido às partes que constituem o todo orgânico do ser humano e ao que lhe acontece. Esta bios funciona de acordo com as leis da biologia humana que são o resultado de milhões de anos de evolução filogenética. No estado actual do ser humano, tudo parte daqui, desta configuração básica, inata e filogeneticamente muito antiga, onde se encontram codificados o tipo de estímulos que devem ser considerados relevantes; todos os demais serão considerados irrelevantes ou simplesmente não serão detectados pelo sistema sensorial do ser humano25. É só neste sentido que o início do “processo da mente”, ou conducente à mente, poderá ser rotulado de top-down (ou processamento descendente). De cima para baixo, do interior para o exterior, do programa biológico para a realidade. Este é o mecanismo inicial. Mas desde esse início entra em acção a relação com os outros e o entorno, que vai transformar a biologia cerebral de um modo tal que desemboca num “cérebro novo”, resultante do efeito transformador das instrumentalidades culturais, ou seja, a partir do exterior. “Estes mecanismos cerebrais inatos e amadurecidos à nascença são sempre contextualizados numa posição atitudinal e dimensionados por critérios dicotómicos: avaliação do novo (versus o irrelevante ou habitual), do agradável ou atractivo (versus o que é desinteressante)” (Aires, 2007, 177). 25
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Diante da multiplicidade dos estímulos exteriores (bottom-up, ou processamento ascendente) novas relações/conexões neuronais se começam a estabelecer. De início de modo frágil, com o passar do tempo de modo mais vincado. Por outro lado, redes neuronais pré-existentes começam a ceder face à pressão da aprendizagem. Toda esta abordagem depende da adequação das ligações, o que geralmente é regido por uma regra de “alteração” gradual das ligações (ou conexões) a partir de um estado mais ou menos arbitrário. Segundo a “regra de Hebb”26, se dois neurónios tendem a ser activos em conjunto, esta ligação é fortalecida, caso contrário, é diminuída. É desta forma que as redes neuronais, para além das tarefas definidas a priori para um determinado sistema, se tornam inseparáveis da história da sua transformação. Dado que a acção real acontece ao nível das ligações, a designação de conexionismo (muitas vezes chamado neo-conexionismo) foi proposta para esta via de investigação/explicação. Distinção que já era realizada por Pavlov, em 1924, quando falava sobre os circuitos neuronais generalizados, inatos ou herdados e comuns a todos os membros da espécie, e os circuitos neuronais 26 Em 1949 Donald Hebb sugeriu que a aprendizagem podia ser baseada em modificações no cérebro, as quais provêm do grau de actividade correlacionada entre neurónios.
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individuais, estruturados ao longo do desenvolvimento. A actividade nervosa superior é a que resulta da integração de ambos os circuitos.
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5 - A FÓRMULA RELACIONAL EM PSICOLOGIA
“A actual situação das sociedades ocidentais é a da afirmação de um individualismo auto-suficiente, contrariado embora por movimentos de solidariedade que revelam afinal o que há de mais constitutivo no ser humano: a abertura ao outro. A razão cognitiva, ao situar ao nível meramente neurobiológico o elemento essencial constitutivo do ser humano, transformando-o (…) numa máquina biológica regida pelas leis da sobrevivência, não parece ter qualquer contributo humanizante a oferecer às sociedades modernas onde (…) a dimensão interpessoal se fragmenta cada vez mais, e o homem-máquina, produtor-consumidor, perdido nas povoadas avenidas das cidades que não param de crescer, se arrisca a tornar-se um desconhecido para si mesmo e para os outros” (Major, 2008c, 146-147).
O que especifica a experiência humana é o seu marco narrativo, manifesto de modo esplendoroso na linguagem, a qual assume a forma de uma trama narrativa de cunho generativo ― a explicação de
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algo por intermédio de uma narrativa lógica, a qual tem mais a ver com a nossa história pessoal27 do que com uma realidade exterior e factual. É esta dinâmica da linguagem o que tem vindo a elaborar a experiência humana, o nosso self, e permite referir-nos a ele como tendo uma identidade narrativa (M. Oliveira, 2006), o que simultâneamente nos possibilita sair da mera imediatez dos sentidos. Desafortunadamente, foi também esta dinâmica quem nos fez perder a harmonia com o mundo, que consistia justamente na simultaneidade. No espírito de Maturana (1998), poderíamos dizer que uma mosca não pergunta pelo sentido do seu ser, apenas limita-se a existir, a estar ali, a “mosquear”28… Muitas outras espécies podem ter símbolos e linguagens para se comunicarem entre si, mas apenas os humanos possuem a habilidade de ver, pensar e teorizar sobre sítios e eventos nos quais nunca se encontraram, para se imaginarem em mundos tão pequenos para serem examinados mesmo pelos mais avançados aparatos técnicos, ou tão estranhos e infinitos que se tornam literalmente inatingíveis. 27 Por oposição à linguagem como janela para a mente ou como acto de revelação de uma subjectividade pré-existente.
A história desta desarmonia terá cerca de 80.000 anos (a idade aproximada da forma de falar como a nossa); sumamente recente, portanto. Além de que o primeiro alfabeto foi datado pelos 1.500 anos a.C. 28
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Esta forma especificamente humana de inteligência é o nosso maior dom e, porventura, a nossa mais triste maldição. Dádiva, porque nos permite imaginar o que os outros sentem, vermo-nos em outros lugares e em outros seres, ampliando a nossa capacidade de sentirmos empatia. Por outro lado, o descentramento que essa capacidade proporciona pode-se tornar numa terrível maldição na medida em que nos pode abstrair das consequências das nossas acções. Inventamos armas de destruição maciça, separamos os fins dos meios na nossa actuação, e esquecemos que dependemos dos demais para a nossa própria sobrevivência. Mas, se esta capacidade por um lado desarmonizou-nos com o meio, por outro lado permitiu-nos abrir uma perspectiva enorme ao ampliar-nos o passado e o futuro. E ao questionarmo-nos sobre o sentido da existência, pela narratividade da resposta esperada asseguramos o sentimento de continuidade; mas agora de um tipo de continuidade que é dada por entre as descontinuidades.
5.1 - A Narratividade Clínica
Em psicologia, a linguagem é uma importante ferramenta terapêutica. Mas é também um instrumento básico, pois ela é o fenómeno da consciência
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constitutivo para o humanizar-se. Por outras palavras: é a linguagem o que faz do homem humano. Assim, no próprio veneno encontrámos o antídoto e coetânea cura: a narratividade deu-nos a ocasião de ampliarmos de forma abissal a nossa existência, pelo forjar de um relato mais rico, mais dinâmico e, como tal, passível de nos reconstruir ― e isto é terapia: uma meta-linguagem que nos afasta do concretismo, dos momentos aflitivos, e por esse afastamento reflexivo serena-nos, de modo a podermos viver a imediatez de uma forma mais solta, mais livre, mais adaptativa; ou, se quisermos voltar a aplicar a palavra: de uma forma (mais) “humana”. Se considerarmos a ontologia dos actos humanos (e isso é psicologia), temos de concluir que as questões relacionais são na sua essência afectivas (Veríssimo, 2000). Os afectos aparecem exteriormente como meros episódios da vida humana, mas no íntimo de si, o homem é todo ele afectividade e desejo de relação. O homem não é só: é-em-presença-de; não existe propriamente: co-existe. A vida humana é essencialmente com-vívio (Maturana, 1998). É por isso que a ideia helénica de homem como pura razão solipsista mostra-se descabida no contexto do que nós somos e do modo como adoecemos psicologicamente. A consideração existencial do ser humano sob este aspecto, dá uma nova luz sobre o problema, tornando-o compreensível mesmo quando se apresenta sob as vestes do irracional.
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Além de que a supressão do “outro” acarretaria a nossa própria supressão. Pelo menos neste sentido, é lícito afirmar com os clássicos que: “nihil est in intellectu quod non prius fuerit in sensu”. Então, por intermédio de uma cumplicidade também ela afectiva com o terapeuta, procurar-se-á reformular, no presente, pelo desfiar do drama emocional ― eis a narratividade clínica (Guidano, 1991; Ruiz, 2003), os momentos que por não terem sido no passado digeridos, ficaram estagnados, bloqueando o são processo de criação de sentido29. E é nesta fossilização, rigidez, que residirá a patologia ― daí os terapeutas da linha narrativa serem de algum modo avessos à medicação (apenas aceitando-a nos casos mais graves das psicoses e apenas como terapia inicial de choque), por entenderem que a acção dos “fármacos” (álcool, drogas, anti-depressivos…) inevitavelmente corrompe o processo de criação de sentido, justamente por interromper o processo de individuação ou, como diria a psicanálise, do estabelecimento e manutenção dos bons objectos internos. É por isso, também, que se torna numa missão de suma importância o recuperar dos hábitos de leitura nas crianças, pois só estes permitem o despertar, isto é, a criação e Desde a partida, esta forma de actuar em clínica psicológica assegura a individualidade de cada caso; não pertencesse a uma determinada pessoa, com uma história e um porvir únicos. 29
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manutenção de uma meta-linguagem geradora de sentido. O que promove, ao mesmo tempo, a superação do império das imagens, as quais, sem uma meta-linguagem capaz, nada mais serão que estímulos desconexos e paralisantes. Na mesma linha, refere M. Oliveira: “é possível supor que em tempos como os actuais, em que a velocidade das transformações sociais, nos planos tecnológico, cultural e económico, torna-se vertiginosa, os sujeitos e, especialmente, os adolescentes, tenham ainda maior necessidade de dispositivos de sustentação de si, que forneçam a ancoragem aos diferentes posicionamentos do self, adoptados segundo o sistema de actividade em foco” (2006, 432). Convenhamos, a neurose característica do nosso tempo não é mais a sexualidade reprimida (como o foi no tempo de Freud e da nascente psicanálise) ― o que haveria hoje para ser reprimido? ― mas sim a falta de ligação e de orientação, a falta de normas, a falta de sentido e o sucedâneo vazio de que padece grande parte da população actual (Küng, 2005). Portanto, este precioso método narrativo e dialógico de conhecimento deverá ser levado até às últimas, e desejáveis!, consequências. A grande regra é, pois, a produção do máximo de mudanças com um máximo de auto-consciência. Mesmo correndo o risco de, no final do caminho, nos surgirem questões de sentido que nos apelam para o patamar meta-linguístico do
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desejo que faz ansiar pela Origem de toda a palavra e de toda a narrativa: a Palavra, escrita com maiúscula30…
5.2 - A Abordagem Relacional Dialógica
“A educação cognitiva encerra uma visão dialógica do desenvolvimento cognitivo humano, uma construtivista e outra co-construtivista. A construtivista, inspirada em Piaget, visa a construção centrípeta, significativa e estruturada do conhecimento, e não a pura acumulação acrítica de dados da informação. A co-construtivista, inspirada em Vygotsky, reforça a construção centrífuga do conhecimento com base em interacções sociais interiorizadas 30 Neste contexto, com Küng, podemos afirmar: “não advogo uma psicoterapia religiosa ou uma psicoterapia unicamente para o elemento religioso, mas sim uma terapia que ― entre outras formas de expressão humanas ― também leve a sério o fenómeno da religião” (Küng, 2005, 128-129).
Não se pode afirmar que todos os problemas do nosso tempo possam ser resolvidos por uma nova religiosidade. Mas o que ― também para nós ― está claro, é que na nossa época muitos problemas só existem precisamente por causa das questões de sentido. E se uma verdadeira psicologia/psicoterapia tem por função libertar, curar e estabilizar, então, com vista à almejada auto-realização do ser humano, esta só poderá ser a um só tempo pessoal e social.
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e mediatizadas envolvendo um diálogo intencional entre indivíduos experientes e inexperientes” (Fonseca, 2001, 8).
Apesar de toda a psicologia ser, por sua própria essência, “relacional”, lamentavelmente alguns sectores da psicologia parecem ir esquecendo esse facto ― nomeadamente, aqueles sectores muito ligados às neurociências e às ciências cognitivas… Aqui, procuramos apenas uma simples ― mas essencial! ― correcção do percurso: não pode ser o “homem neuronal” o paradigma da psicologia, mas sim o “homem relacional”. Nesta medida, desde há muito que está claro para um crescente número de educadores que a experiência do self não é algo que emana exclusivamente do lado biológico ou “instintivo” do ser humano, como também não se apresenta como uma pura construção cognitiva. O self é uma co-construção que vai acontecendo entre estes dois pólos (Leal, 2007), envolvendo o “eu” (com toda a sua carga biológica) e os “outros” no encontro com a realidade; o que evoca Pierce (1932) e a sua visão triádica da realidade. Se o humano emerge da interacção com pessoas significativas numa lógica de experiência de conversação, essa mesma lógica deverá ser usada no contexto da clínica psicológica. Com efeito, a principal
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ferramenta da psicologia relacional de cunho narrativo reside na evidência de as competências ditas humanas resultarem da interacção sócio-linguística. Falamos, portanto, de uma intervenção dialógica sobre um self relacional, em que surge a figura do mediador (palavra, coisa ou pessoa) e se verifica uma visão não apenas dual, mas triádica. Como atrás referimos, os primeiros passos do processo de crescimento mental podem ser observados quando o bebé (e até mesmo o neonato) busca activamente no seu ambiente por uma resposta contingente à sua actuação comportamental espontânea (isto é, a busca primária do outro como interlocutor respondente). A partir daqui, a única condição para que o self aconteça é o encontro de um outro que se preste a essa transacção emocional, proporcionando as necessárias pausas para que a resposta da criança aconteça. Quando a criança percebe que um outro lhe responde, está aberto o caminho para que ela própria se descubra como uma entidade distinta e merecedora de valor: um “eu” por direito próprio. Tal se atinge por intermédio de uma presença atenta ― só assim o infante se irá encontrar consigo próprio. Também é no contexto deste jogo comunicacional, sustentado pelo sentimento básico da confiança, que a tolerância da criança à frustração se irá desenvolver e, na mesma medida, irá aprender a retardar ou diferir no tempo a satisfação. É destes factos que provém a terminologia de Rita Leal e sua
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descrição de um desenvolvimento “dialógico” da vida mental, isto é, dos actos que precedem a lenta construção de um sistema pessoal ou self. Com Leal (cfr. Anexo 2, pág. 131), constatamos que desde o nascimento todos os constructos humanos têm na sua origem uma narrativa comportamental que se estabelece numa rede de relações recíprocas, nas quais as emoções e as acções internalizadas (i. é, as cognições) são as fundações de tal edifício; e que desta narrativa comportamental emerge uma outra: as raízes da linguagem se estabelecem na mesma medida em que um adulto aceita os sons emitidos pelo infante como um chamado à relação. As primeiras experiências do apontar em conjunto (apontar a dois) e de referenciação, de característica triangular, o que paulatinamente levará à criação do símbolo como um veículo consensual para o significado ― eis o triângulo básico da comunicação: infante/objecto/prestador de cuidados31. É nesta medida, segundo a qual o comportamento, a Reconhece-se esta triangulação como desencadeante da actividade fundamental da criação simbólica, em que o objecto apontado a dois (desde o início que qualquer gesto ou objecto serve à transacção emocional) é por consenso rotulado e partilhado no novo formato simbólico em que se origina a linguagem (Peirce, 1932). De notar, como refere Rita Leal (2007), que os actos de fala são um dos tipos possíveis de expressão humana ― a capacidade para representar objectos e estados de coisas faz parte de uma capacidade mais geral da mente para referenciar o organismo à realidade. 31
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linguagem e o pensamento se manifestam interdependentes, que se pode vir a dizer, como Bruner (1991) o fez, que a realidade humana tem uma estrutura narrativa. Trata-se do estabelecimento de uma narrativa interna que se demonstra dependente de uma narrativa externa que se forma na conversação com os adultos ou os outros em geral acerca dos acontecimentos e episódios do passado e sua implicação no presente e no futuro. Com efeito, “o self não é uma estrutura que se desenvolve no silêncio do desenvolvimento cognitivo intrapsíquico, mas surge de um jogo de interacções sociais e linguísticas que ajudam a criança a sistematizar os significados das experiências pessoais. A significação da experiência permite gerar um impacto e um reflexo emotivo no Mim (auto-conhecimento) e este processo dialéctico engendra, por seu turno, o self” (Ramos, 2008, 65). Mas tal “auto-conhecimento” só será uma realidade na medida em que os eventos passados adquiram existência e consistência através dessas experiências de evocação. Na evocação ou recordação, o evento adquire uma nova oportunidade de codificação de significado, uma vez que a própria evocação precede a codificação, que depende do diálogo com os outros, como defende Ramos. Uma tal abordagem (dita psicossociogénica), possibilitada pela prática do uso de narrativas, permite o reelaborar e sistematizar dos eventos do dia-a-dia possibilitando
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esse conhecimento pessoal à luz do modo como cada um enfrenta os acontecimentos quotidianos e os elabora, potenciando as suas competências cognitivas e, por conseguinte, modelando o seu self de formas eventualmente mais adaptativas, e tudo isto numa óptica de meta-aprendizagem. Com isto, voltamos a tocar numa noção cara a Vygotsky: a noção de “zona de desenvolvimento proximal” (ZDP) do indivíduo, ou seja, do seu nível de modificabilidade cognitiva: o aprendiz (bebé, criança ou adulto) só avançará no conhecimento, quando o educador/professor que lhe serve de mediatizador (os termos são mediatizador/mediatização, e não apenas mediador/mediação, para não se confundir com um processo negocial) com as suas instrumentalidades (alguém mais velho ou mais apto ou mais experiente) se referenciar à sua ZDP. Como indica Rita Leal (2009), o comportamento espontâneo da criança durante qualquer desempenho, mesmo assistido, revela as competências que estão em vias de emergir. Se insistimos em avaliar os desempenhos independentes com o intuito de descobrir “onde é que uma criança está” ― o que sabe e o que pode fazer ― então as habilidades que estão à beira de emergir nunca serão evidentes. Vygotsky ao introduzir a noção de ZDP reforça a ideia de que o desenvolvimento de seres inexperien-
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tes depende da interacção com seres experientes, sugerindo que as formas superiores de desenvolvimento humano, nomeadamente emocionais (altruísmo, solidariedade, etc.), as cognitivas e as simbólicas, são função da mediatização destes sobre aqueles. Neste sentido, a mediatização é a chave do desenvolvimento social e cognitivo da espécie humana. Portanto, quando uma “habilidade” está fora da ZDP, as crianças ignoram-na, falham ou usam-na incorrectamente. Será pela observação das reacções/respostas espontâneas que os educadores/professores conhecerão se a sua intervenção didáctica cai dentro da ZDP, que é uma “janela” da aprendizagem. Daí que o trabalho em colaboração com um colega mais apto dá fácil acesso à ZDP. Sem experiências de aprendizagem mediatizadas, as habilidades não emergiriam, pois não basta a maturação neurobiológica; como divisámos, é fundamental a interacção social e mediatizadora entre indivíduos experientes e inexperientes. Assim mediatizada, a informação não é recebida de modo passivo, fragmentário ou assistemático, pelo contrário, por efeito da interacção intencional posta em prática pelo mediatizador, a informação passa a ser integrada de forma adequada, interiorizada e significativa.
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O que se pretende não é apenas a assimilação de conhecimentos (a génese do insucesso escolar talvez se deva por a tónica estar aqui centrada) mas desenvolver competências de resolução de problemas. Por conseguinte, joga-se com as funções que estão já maturas e as funções que estão em processo de maturação; e estas só podem ser manifestadas quando o indivíduo trabalha com outro mais experiente ou competente. Por sua vez, o que um indivíduo faz hoje em colaboração com outro mais experiente, fá-lo-á amanhã de modo independente. Se a avaliação tradicional e normalizada perspectiva aquilo que Vygotsky definiu por zona de desenvolvimento actual (ZDA), uma verdadeira avaliação para além de detectar a ZDA deverá ir mais longe e procurar determinar aquilo que o avaliado pode fazer com a ajuda de um colaborador (o observador-mediatizador) mais experiente, isto é, atingir a ZDP. Isto porque a ZDP é onde deve decorrer o nível de instrução/intervenção. O que sugere que o modelo adequado deverá ser o seguinte: pré-teste → intervenção-mediatização → pós-teste (ou teste → intervenção-mediatização → reteste). Como refere Fonseca (2001, 65), este modelo compreende um olhar clínico e semiológico: trata-se, pois, de avaliar um processo e não um produto final, bem como de reconhecer que a modificabilidade não ocorre por si própria, mas só quando se introduzem estratégias de aprendizagem mediatiza120
das, cujo objectivo é maximizar a ZDP e potenciar a aprendizagem futura. Nesta concepção educacional cooperativa e não competitiva, o diagnóstico psicopedagógico deverá anteceder a intervenção cognitiva. Daí que o “desenvolver o potencial de aprendizagem com programas de enriquecimento cognitivo não é uma futilidade, na medida em que o potencial não se desenvolve no vacuum, nem apenas por instrução convencional; para que ele se desenvolva, é preciso que ele seja estimulado e treinado intencionalmente” (Fonseca, 2001, 55). Tal como na clínica psicológica, do que se trata é de um processo de aprendizagem clinicamente orientado que adopta uma estratégia relacional vinculada e afectiva, intencionalmente voltada para a produção de relações significativas com a informação inerente às tarefas.
Assim, e
“em conclusão, a pedagogia mediatizada aplicada no contexto familiar e escolar pode evitar muitas perturbações emocionais e comportamentais, deixando rastos numa infância dolorosa ou numa adolescência atípica ao mesmo tempo que pode criar crianças e jovens
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mais competentes, alegres e motivados para aprender, isto é, mais solidários. Como a vida familiar constitui a primeira escola de aprendizagem, os pais devem investir mais na interacção mediatizada para os tornar socialmente mais hábeis; também na escola os professores, por meio da mediatização, podem criar futuros adultos mais solidários e mais aptos a responderem aos desafios complexos da sociedade futura. Em síntese, se queremos uma sociedade mais solidária, a família e a escola terão de ser mais mediatizadas” (Fonseca, 2001, 106).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Com relação à concepção de self e a relação self-narrativa, buscamos argumentar que a mudança de perspectiva que a abordagem narrativa impregna no enfoque do self, saindo de um self individuado, consciente e prenhe de representações, e chegando a um self dialógico, discursivo, que se faz nas interacções, não se resume a uma mudança geográfica, desde uma localização interior para outra exterior. Trata-se de uma mudança conceitual, que leva da representação para a apresentação, a emergência, a novidade; a transição do modelo de self como sistema fechado, encapsulado, o qual escapa da clausura pela via da linguagem (a visão da linguagem como janela da mente), para um modelo de self como sistema aberto e em constante reconfiguração nas práticas discursivas em situações sociais. De acordo com a visão aqui explicitada, a linguagem não expressa o self, mas o fabrica” (M. Oliveira, 2006, 434).
Numa perspectiva clínica, com este trabalho procuramos abordar algumas questões que nos pa-
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recem essenciais à psicologia como prática, mas que também se prendem com o seu ensino/aprendizagem. Afinal, como Ramos (2003; 2008) evidenciou, a memória autobiográfica se estrutura com base numa narrativa autobiográfica adquirida na cultura através das experiências sociais de conversação32. Nesta continuidade, também se pode afirmar como verdadeiro que a “elaboratividade” (perfilhamos o vocábulo usado por este autor), entendida como competência básica, também é algo que se transmite e se desenvolve (“elaboratividade” pode-se definir por: “uma acção verbal ou não verbal de confirmação, aprofundamento e, sobretudo, melhor definição e significação verbal (…) aquando da expressão de uma emoção relativa a uma experiência vivida” (Ramos, 2008, 107). Leal diria: é a resposta contingente à actuação comportamental de alguém). Nesta medida, a forma como alguém se comporta perante outrem em termos de reminiscência face às suas experiências passadas, permite potenciar o auto-conhecimento (dependendo, naturalmente, do nível da elaboração emocional da conversação e, por conseguinte, da reminiscência) e, neste sentido, É o princípio de que o indivíduo constrói a sua identidade com base em reminiscências do passado. E se é verdade que a memória autobiográfica é um produto cognitivo interno, a reminiscência, condição da primeira, é essencialmente social. 32
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incrementar as capacidades adaptativas humanas, mormente ao nível do auto-conceito33. No que às crianças diz respeito, “após o reconhecimento emocional, por parte do filho, da experiência enunciada pela figura materna, esta, pode ou não continuar a aprofundar a recordação. Não é uma mera repetição da palavra-emoção, mas a tentativa de aumentar a coerência da narrativa” (Ramos, 2008, 107). Assim, também se poderá traduzir “elaboratividade” por suporte emocional. Ora, é justamente este suporte emocional que se defende estar na base da auto-estima34 e da transição do sexto passo da “afectologia genética” de Leal para o sétimo passo, ou seja: da transição da adolescência/juventude para os alvores da maturidade (cfr. Anexo 2, págs. 147-154); não se manifestasse a adultez pela alternância possível entre ser cuidador e ser cuidado, entre o poder receber ajuda e o oferecê-la, sem que se desencadeApesar de representar as cognições do sujeito sobre si próprio, note-se que o auto-conceito começa por ser essencialmente de natureza social para, depois e gradualmente, se internalizar constituindo o sentimento de si próprio. O que mais uma vez põe a nu a importância da interacção social na construção do self. 33
“Contrariamente ao auto-conceito, que assume um carácter essencialmente cognitivo, a auto-estima refere-se a aspectos especialmente avaliativos e emocionais” (Azevedo, 2005, 66). 34
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iem sentimentos de inferioridade ou de superioridade. Ao que, uma vez mais, se manifesta fundamental a existência de uma estrutura narrativa (Bruner, 1991): “a estrutura narrativa é fundamental para o desenvolvimento da memória autobiográfica, na medida em que, esta, se torna efectivamente mais disponível para realizar a sua função básica, que é a projecção do self no futuro, no planeamento dos objectivos pessoais e na orientação das escolhas” (Ramos, 2008, 65).
Em suma, do sapiens sapiens não surge o humano sem a ajuda dos demais. Por sua vez, a psicoterapia, para ser verdadeiramente humana e, assim, eficaz, deverá centrar-se no instrumento primeiro de organização do “eu”: “o ‘vai-e-vem’ recíproco e alternante, o turn-taking emocional, para induzir a movimentação da mente, fazendo do intercâmbio o novo berço de um treino activo do ‘eu’, na expectativa de um re-começo para quem nos procura”.
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ANEXOS
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Anexo 1
Bergeret, 1998, 230.
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Anexo 2
DA GÉNESE À IDENTIDADE PESSOAL
Designada por “afectologia genética” (por analogia com a “epistemologia genética de Piaget), fundamentando-se em Lev S. Vygotsky, John S. Watson (não confundir com o seu homónimo, o behaviorista John B. Watson) e outros eminentes nomes, Rita Leal estabeleceu uma sequência descritiva que lhe pareceu mais adequada a responder à sua pertinente questão sobre a construção do sentido do “eu”35. De um modo conciso, apresentemos tal sequência:
1 - Primeiro Passo da Construção do Eu No primeiro passo, Leal caracterizou o recém-nascido como um ser selectivamente respondente Nos anos cinquenta, quando Rita Leal iniciou a sua actividade de psicoterapeuta, a visão cognitivista que então reinava não lhe possibilitou responder de modo cabal à sua preocupação básica (oriunda dos casos clínicos que tinha em mãos): como se constrói a pessoa, entidade psico-social emergindo da comunicação? 35
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aos estímulos do ambiente, parecendo movido por uma clara intencionalidade: “percebe-se que vive na expectativa (e na busca de um interlocutor/cuidador válido ― com características humana (e até femininas). O reflexo de ‘orientação’ exprime a busca de um qualquer outro, algo que emerge como imediatamente contingente ao seu próprio acto espontâneo. (…) A criança coloca-se, claramente, como pólo de um relacionamento em que se distingue como alguém, face ao outro, enviando-lhe mensagens e mostrando que aguarda resposta” (Leal, 2006, 9). Deste diálogo comportamental entre bebés de doze semanas de idade e o seu cuidador (descrito por J. S. Watson nos anos sessenta), Leal cunha a expressão: desenvolvimento dialógico da vida emocional: “percebe-se que a criança se sente ligada mentalmente (emocionalmente) ao seu interlocutor, aquele com quem ‘joga o jogo’ recorrente da alternância recíproca do: ‘agora-eu-agora-tu-agora-eu-agora-tu’, que tão naturalmente ocorre no convívio biológico entre mãe e filhote ― e no qual também se encontra o ponto de partida do diálogo recíproco e alternante e das dádivas mútuas que também perpassam, por vezes, nos relacionamentos adultos” (Leal, 2006, 10-11). Inicialmente regulada por centros pré-corticais do cérebro (ou seja, sem recurso à elaboração conceptual), é a partir desta sequência de alternâncias na comunicação que se vai estabelecendo a sociali-
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zação da criança, sendo as informações registadas como eventos relacionais, que o mesmo é dizer, memórias emocionais pré-cognitivas. Daqui a formação de uma matriz pré-cognitiva, ou emocional, de processamento da informação (facto que hoje em dia é tornado manifesto por investigações em neurociência). “Resumindo: Fala-se do primeiro passo da ‘afectologia genética’ (em analogia com a ‘epistemologia genética’ descrita por Piaget), ou da estruturação do ‘Eu’, em que se subentende um sentido do ‘Outro’ assente na ‘relação dialógica’. Começa a desenhar-se quando se verifica a consistência das expressões da reciprocidade no encontro com um interlocutor presente e ressonante. A solidez desse sistema relacional estruturante da relação ‘Eu’/’Outro’ comprova-se em bebés, a partir das doze semanas de idade (assim como a experiência de desorganização, quando repetidamente não experimentam essa consistência reguladora). Enquadra-se aqui a sugestão de que certas perturbações autistas de comportamento e de comunicação com o mundo e com a vida (o isolamento observado em crianças, mas também em certos adultos) se enraízam na deficiente organização deste primeiro modelo de relacionamento interpessoal registado na mente.
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Foi possível, então, formular-se estratégias de intervenção psico-terapêutica condizentes com essa disfunção do relacionamento, dita autista ― estando colocada, à partida, a hipótese da modificabilidade das estruturas de personalidade (hipótese baseado no modelo ‘relacional dialógico’)” (Leal, 2006, 12-13).
2 - Segundo Passo da Construção do Eu Com o passar das semanas, alarga-se o padrão originário de relação interpessoal pela projecção do jogo de alternâncias para fora do corpo próprio, num vai-e-vem de objectos do ambiente (designados de objectos transicionais) que se entende englobar a busca de compreensibilidade do que existe. São, então, encadeadas sequências de gestos, de aparência aleatória, mas que não dizem respeito à eficácia ou ao sucesso material, mas que têm uma função organizadora de significados. Os materiais tornam-se mediadores ou “metábulos” de experiências fundadoras de relação. É aqui que se julga radicar a primeira intuição de um “eu” e de um “outro”, coisa ou pessoa ― que, do ponto de vista do infante, já estiveram ali em outras ocasiões para cumprirem o seu papel de respondentes na alternância de um vai-e-vem dialogante.
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Ao mesmo tempo em que se desenrola esta exploração mediada do eu e do mundo, vai-se estabelecendo uma vinculação exclusiva e absoluta a um cuidador principal, situação comummente conhecida como attachment36, fenómeno relativamente passageiro mas que em certos casos se estende pelos anos com claros prejuízos para o desenvolvimento do indivíduo e sua estruturação do “eu”. Ou seja, de laço de pertença e suporte de protecção aquando das explorações no desconhecido, passa a grade que aprisiona. A flexibilização desta relação privilegiada (ainda que mantendo o laço afectivo seguro e firme e assente na confiança) deve envolver a continuidade do movimento primitivo de diálogo recíproco e alternante; e este renovado turn-taking deverá enca“O ‘attachment’ serve de estrutura de protecção do andarilho, numa fase em que deseja intensamente penetrar tudo o que o rodeia, e vai ensaiando, por vezes perigosamente, a exploração do ambiente. Ao cuidador eleito é remetida a função de promover um equilíbrio entre esses dois impulsos primaciais: a curiosidade para penetrar tudo o que é desconhecido; e a necessidade de colagem a um laço de pertença” (Leal, 2006, 16). 36
Será importante referir também a seguinte passagem: “o ‘attachment’ talvez tenha uma evolução diferente noutras sociedades da que se conhece nas sociedades ocidentais ― como as representadas por emigrantes provenientes de sociedades tribais africanas. Aí a relação filial parece manter uma normal ligação de tipo simbiótico pelos anos adiante que necessitaria de estudo aprofundado” (Leal, 2006, 17).
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minhar o indivíduo a uma nova e mais rica adjectivação do brincar com os elementos da realidade assim como a abertura ao desconhecido na base da autoconfiança. Quando não se realiza a saudável evolução para a autonomia e o attachment se mantém como força cega para além dos limites temporais em que se apresenta como útil, resulta uma criança insegura, estando implícito na sua mente que aquela figura de vinculação única pode abandoná-la de repente, pelo que a tem de vigiar em permanência; o que resulta na incapacidade de brincar e de se entusiasmar pela exploração do mundo, até mesmo na presença desse cuidador. Mas se a ligação apresentar o carácter de uma vinculação segura, poderá manter-se sólida até nos períodos de ausência material do cuidador eleito. Pelo que as suas ausências e regressos podem ser supridos pela criança enquanto o mantém presente no foro interno, podendo tais momentos ser passados como realidade incómoda mas isenta do perigo de abandono. “Resumindo: O segundo passo de organização do ‘Eu’, ou da afectologia genética, diferencia-se pela atenção circular por parte do bebé às alternâncias na movimentação recíproca de objectos e de eventos, como projecção da elaboração desse jogo
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instituidor de regulação das alternâncias na comunicação. Observa-se a manipulação repetitiva de objectos de uso corrente que são propícios para trocas recíprocas e alternantes. Esses objectos lúdicos manipuláveis são de entender como objectos ‘transicionais’ (Winnicot, 1951), vividos entre realidade e fantasia, sempre transportando uma função ‘metabolizadora’ de significados encaminhando a compreensão das relações entre o ‘Eu’ e o seu mundo. Do ponto de vista da criança, os objectos (passivos) estão ali para cumprirem um papel, enquanto o adulto cumpre o seu ― se estiver disponível para algumas vezes se inserir nesse brincar e responder na alternância de um vai-e-vem dialogante. Assim, na exploração de actos recíprocos e alternantes, a criança pode encenar um modelo de estruturação (incipiente) do ‘Eu’, na medida em que nessa movimentação em vai-e-vem pode vivenciar repetidamente aquela primeira intuição de um ‘Eu’ (subjectivo) face a um ‘Outro’ externo (pessoa/ /coisa). Considerando certos fenómenos de regressão e de desorganização do modelo básico do ‘Eu’, por exemplo, da desorganização na psicose afectiva (e, em adultos, a psicose maníaco-depressiva), propõe-se que este se enraízam na deficiente organização do segundo passo de organização do ‘Eu’ e, sen-
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do colocada a hipótese da modificabilidade das estruturas de personalidade sugere-se uma estratégia de intervenção condizente com a disfunção relacional encontrada, estruturando objectos transicionais que transportem a potencialidade de um vai-e-vem dependentes da iniciativa da pessoa carente em causa” (Leal, 2006, 17-18).
3 - Terceiro Passo da Construção do Eu Para além do choro e dos gritos não dirigidos, por volta dos seis meses de idade observa-se o balbuciar dos bebés em contextos sociais. É importante situar o início e a evolução da linguagem como elemento organizador do sistema “eu”, não fosse a língua um poderoso instrumento das trocas humanas. Mas os sons produzidos nesta idade não parecem estar associados a qualquer significado que se possa referir como linguístico. Próximo do final do primeiro ano de vida extra-uterina, o gesto de apontar, já observado desde os três meses de idade, irá enquadrar-se em condutas do “apontar a dois” e na referenciação de algo, ambos de característica triangular. Aí vai surgir o rótulo referencial, designado por alguns como a primeira “palavra”, ainda que não tenha o carácter formal de vocábulo articulado. E deste jogo irá emanar um prazer intenso quer para a criança quer
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para o adulto/cuidador: “dois interlocutores, face ao objecto ou evento/circunstância referenciado pelo rótulo, vivem o prazer do encontro ao intuírem um significado por eles partilhado” (Leal, 2006, 19). Reconhecido a dois, tal rótulo já pode ser considerado mais do que um sinal, é um signo, isto é: esse rótulo referencial assumiu um significado independente da circunstância que lhe dá origem, passando a haver como que uma tomada de posse da realidade pelo “eu”: “dizemos que a vida está encadeada, desde o início, num padrão de relação de presença e contacto com um ‘Outro’ que responde e que estabelece um encontro com o mundo de significados, que se situam para além desse encontro, que transcendem a relação” (Leal, 2006, 20). Por intermédio deste tipo de aprendizagem que se coaduna com o formato consensual e social, a linguagem, ou seja, a fala que resulta como nova tradução das vivências e intenções, antes expressas só por sinais, pré-símbolos ou metábulos, logo assume os códigos encontrados no ambiente. É o que acontece entre os nove e os dezoito meses de idade: os rótulos, tornados signos, colados a situações do dia-a-dia, podem vir a ser evocados para significar situações idênticas mas ausentes. Diz-se, então, que ocorreu generalização. Por sua vez, quando estes factos da experiência emocional, sensorial e motora são expressos ver-
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balmente de modo socialmente comunicante, também poderão ser transformados em conceitos que, em momentos posteriores, poderão ser submetidos à reflexão. “Resumindo: O terceiro passo de construção da identidade (da ‘afectologia genética’) diferencia-se pelo encontro ‘triádico’: Eu-Outro-objecto (coisa ou evento), em que se enraíza a construção da linguagem expressiva e comunicante. Um objecto (coisa ou evento) corporaliza um significado porque apontado ao mesmo tempo por um e outro interlocutor, recebendo por consenso um rótulo ― que, por sua vez, pode ser traduzido pelo signo. Quando reconhecido como ‘signo’, o dito rótulo referencial assumiu um significado independente da circunstância que lhe dá origem, existindo uma diferente tomada de posse da realidade pelo ‘Eu’. O signo é, então, fonte de linguagem partilhada num mundo familiar e social consistente e estável: um significado em relação com um mundo, nomeado e reconhecido no encontro de ‘Eu’-‘Outro’ com outro ‘outro’, a coisa/evento (…). Referem-se a este passo as perturbações de organização da relação ‘Eu’/’Outro’ manifestadas nas estruturas psicopáticas de personalidades em que se observa não ter sido conseguido ou assumido um consenso viável quanto aos significados aponta-
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dos e sequer ao significado de ter um lugar no mundo. A estratégia de intervenção então proposta (sempre supondo a modificabilidade das estruturas de personalidade) consiste em movimentar um intercâmbio, a projectar repetidamente numa qualquer estrutura narrativa propícia, em busca de ocasiões para focar em conjunto e nomear significados, e, ainda, promover o recurso às capacidades de se maravilhar e de se manifestar em linguagem corporal e verbal, para vir a construir a capacidade de designar, conceptualizar, reflectir e abstrair e de gerar novos símbolos, tidos em comum” (Leal, 2006, 22-23).
4 - Quarto Passo da Construção do Eu Entre os três e os cinco anos de idade anotam-se momentos importantes para encaminhar a separação/individuação do self/si-mesmo, distanciando-se a criança ― em situações propícias ― do primeiro afecto fusional. Ao mesmo tempo destituída do seu sonho de ser o centro do mundo de um “outro”, a criança começa a incorporar a narrativa dos adultos, identificando-se ao seu nível com a figura parental do próprio sexo, podendo tomar consciência e exprimir verbal e não verbalmente os seus afectos (amor, ciúme, rivalidade, etc.).
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Outro importante aspecto que Leal chama à atenção nesta fase é a relativa liberdade com que a criança transita da realidade para a fantasia e desta para a primeira. Note-se, também, que apesar de estar a integrar o imaginário dos pais, ainda está muito dependente, pela sua condição de criança, de cargas emocionais que a transcendem. Nesta fase, a frequência da creche ou do jardim de infância ou o convívio com outros grupos extra-escolares pode ter uma acção benéfica sobre a criança. Nestes sistemas de comunicação múltipla, promove-se a contínua diferenciação de cada um ao assumir-se como eu/pessoa, origem de actos e de intenções, ao lado de outros seus iguais. Nesta multiplicidade de grupos e de relações, a criança pode encontrar-se de um modo diferente do seu estar na família e, se for bem encaminhada, poderá aprender no grupo estratégias de entreajuda e de partilha mútua, aprendendo/vivendo a tolerância para com o diferente e a alegria da reciprocidade. “Resumindo: No quarto passo de construção da identidade encontra-se em causa o poder-se abrir espaço na criança para a autonomia do sentir, confrontada com as exigências do ambiente e da progressiva diferenciação do seu viver face ao viver dos seus pais.
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Na medida em que continuam a digladiar-se no seu íntimo as necessidades de separação com o seu reverso de vivência de perda ― resultantes de uma individuação mal aceite ― esta ambiguidade estará, ainda, acompanhada, para a criança, pelo sentimento de estrago quando da descoberta de não ter pais tão perfeitos quanto deseja. Tudo isto se agrava quando a criança vive conflitos dolorosos na família. Quando as perplexidades dos impulsos ‘edipianos’ não se encontram em vias de solução e a vida familiar não preparou a criança para sair ao encontro do grupo de pares (na escola e nas actividades ditas dos tempos livres), é difícil que ela não se viva como socialmente desadequada e com dúvidas em relação à capacidade própria de lidar com os desafios da vida (acrescendo, por vezes, os problemas da ‘exclusão social’ de que já se está a perceber…). É de notar que, nestas idades, a criança poderá interiorizar e guardar em segredo as suas perplexidades e ansiedades, tornando difícil a compreensão de perturbações neuróticas que apresente. O adulto terá, então, dificuldades acrescidas de acesso para a ajudar a superar o seu sofrimento. Aqui enquadra-se a sugestão de que vivências neuróticas que se manifestem na criança como reacções fóbico-ansiosas podem ser melhor compreendidas à luz da procura de consistência própria, sepa-
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rada e das exigências da autonomização no enquadramento da família de origem, numa idade em que procura alcançar uma relativa consistência e identificação sexual harmónica, enquadrando um papel já reconhecido no seu grupo de pares” (Leal, 2006, 26-27).
5 - Quinto Passo da Construção do Eu Entre os seis e os doze anos encontra-se o ponto de viragem na diferenciação em curso, no sentido da emergência de uma identidade social própria: situando-se como pessoa distinta, a criança irá estabelecer novos relacionamentos que se abrem ao mundo lá fora: “o brincar e o fantasiar continuam a ser necessidades fundamentais, mas também os ‘jogos’ entendidos como tarefas com que se alcança um produto real. A aprendizagem das artes da escrita e da leitura são, igualmente, objectivos prementes (no mundo ocidental) para conseguir o reconhecimento e satisfação resultantes do sentimento de sucesso alcançado com o próprio esforço” (Leal, 2006, 28). Existe um vivo interesse, da parte da criança, em descobrir como as coisas funcionam, de que são feitas, e como se lida com elas; acções que as crianças se propõem a elas próprias. No pólo oposto, a criança também poderá viver um sentimento de inferioridade, mesmo que seja dotada, mas se sente incompreendida e rejeitada ― formato de perturbação
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desestruturante comum em crianças social e culturalmente desenraizadas, o que se encontra “aliado a uma restrição da elaboração linguística ― para quem falha a inteligibilidade, porque está afectado o encontro social e cultural em que se geram os significados” (Leal, 2006, 29). São estas crianças e adolescentes desintegrados e/ou socialmente submetidos os que estão prontos para todo o tipo de revoltas sem sentido; e igualmente prontos para todo o tipo de destruições. Realidade de risco social e pessoal que só será superada se a criança refizer o percurso de nomear significados em parceria e de construir uma nova linguagem, de modo a encontrar acesso a valores tidos em comum, e suas expressões socialmente reconhecidas. Tarefa que se não for realizada nesta idade de abertura para a vida, depois poderá revelar-se demasiado tarde. Nesta fase assistimos ao surgimento do arbítrio próprio e único, e ao expressar de opiniões e sua defesa. Com efeito, a criança começa a distanciar-se interiormente o suficiente para redescobrir o mundo e mesmo os seus pais e os demais adultos de um modo diferente, tendo-os avaliado e eventualmente aceite como pessoas não perfeitas. São importantes os cuidadores que nesta fase acompanhem os grupos de pares nas diversas actividades fora da família. Lamentavelmente, nem
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todos são capazes de gerar uma atmosfera que auxilie a aprendizagem espontânea do estar em grupo, e de promover o desenvolvimento das iniciativas de interacção e de cooperação na busca do encontro mútuo. Desejam-se, pois, educadores que tenham dentro de si um sentimento natural que impele na busca de realização própria (também do próprio) e de alegria, junto com o sentido dos valores impessoais e o reconhecimento do bom e do belo na vida de cada um. “Resumindo: Neste movimento que se vai processando, o quinto passo de estruturação do ‘Eu’, ou da ‘afectologia genética’, as crianças/os jovens estão, também, a preparar-se para assumirem uma maior autonomia, e um maior distanciamento da família, ao se deixarem inspirar por intuições de parceria no grupo de amigos. O brincar e o fantasiar continuam a ser uma necessidade fundamental, mas também o crescer e o aprender são objectivos prementes para conseguir o reconhecimento e o sentimento de sucesso alcançado com o próprio esforço. A individuação entendida como capacidade de se assumir conscientemente como pessoa separada, com seu próprio destino ― aliada ao fortalecimento do que se designa a linguagem interna, reflexiva ― será melhor sucedida quando se possam manter e fortalecer as trocas dialógicas com os adultos de
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referência. Na ligação com eles poderá distanciar-se e aproximar-se, ir e voltar, sob o seu próprio controlo, procurando o equilíbrio entre a demasiada identificação e o total desamparo. Quando se continuam a guerrear entre si os impulsos de autonomia e as carências de protecção ambiental, o desamparo pode manifestar-se por receios face a tudo o que rodeia o viver do dia-a-dia ― ou, pelo contrário, pode surgir uma necessidade de controlo absoluto sobre tudo e todos. (De notar que esta perturbação se tornará mais manifesta nos anos seguintes, na adolescência). Aqui enquadra-se a sugestão de que as vivências neuróticas manifestas como neurose histérica, assim como os indícios de neurose obsessiva-compulsiva (esta imersa em deduções racionais), podem ser melhor compreendidas à luz das tarefas de autonomização mal resolvidas encadeando-se nos movimentos de construção da identidade pessoal que ocupam necessariamente o pré-adolescente” (Leal, 2006, 30-31).
6 - Sexto Passo da Construção do Eu Na continuidade da evolução, o adolescente/ /jovem dá por si à procura de si próprio, comparando-se aos outros, assumindo papeis sociais e pessoais e posicionando-se face às exigências dos valo-
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res, realidades maiores do que a das figuras de autoridade a que se devem submeter quer na família quer na escola. É assim que a existência do indivíduo nesta fase se situa entre os pólos extremos de uma identidade definida e de uma identidade difusa ou confusa: “em tudo isto, comunga na expectativa de haver uma ordem e de existirem regras que alguém assegura, estando implícito um sentimento moral e um compromisso de responsabilidade pessoal a aceitar ou a combater acesamente ― ou a desilusão possível e perigosa…” (Leal, 2006, 32). Nesta fase o grupo de pares tem uma forte acção como instrumento de mobilização, e pode-se colocar ao serviço de tarefas que sejam programadas ou minimamente intencionadas ou promovidas por um condutor. Ao promover não directivamente a participação de todos os membros do grupo, este é participante na vida do grupo e também regulador da comunicação múltipla, assegurando deste modo a formação de uma “matriz de relação” constituída de acordo com as leis da comunicação: “Wilfred Bion (1961) sugeriu que as experiências de grupo podem oferecer condições óptimas para retomar as tarefas organizativas da infância em termos da comunicação e estruturação do ‘Eu’ nas suas relações com o ‘Outro’ ― se conduzidas por um adulto habilitado” (Leal, 2006, 33); daí fazer falta a formação dos docentes em dinâmicas de grupo, sem a qual tornam
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qualquer tarefa mais difícil, senão mesmo improdutiva, inclusive a tarefa de alcançar a adultez… O intercâmbio múltiplo com os pares e o jogo de amizades e de oposições, irá ser o caminho para o desenvolvimento da pessoa social, que irá reformular-se, um dia, como “eu” adulto. A génese e o desenvolvimento deste tipo de “eu” descrevem-se em termos de diferenciação de uma matriz de grupo, considerada uma entidade mais primitiva do que a individualidade que, afinal, se separou de uma matriz relacional mãe – pai – família extensa. “Resumindo: No que se descreve como sexto passo de estruturação da identidade, o adolescente define-se como estando ‘em busca de si mesmo’, comparando-se a outros, assumindo papeis, ‘roles’ sociais e pessoais. O intercâmbio múltiplo com os pares e o jogo de amizades e oposições, que se reconhecem como características do pré-adolescente e do adolescente, irá ser o caminho para o desenvolvimento da pessoa social ― que irá reformular-se ética e esteticamente, um dia, como ‘Eu’ adulto. Sempre esforçando-se por apreender as exigências do grupo e situar os ‘valores’ e o papel das figuras de autoridade ― na família, na escola e no mundo social mais vasto, o/a jovem reflecte sobre as realidades complexas e o sentido da vida, o significado
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do estar no mundo, assumindo-se numa atitude de sucesso ou de inferioridade… Surgindo novas identificações ligadas a um sentimento forte de pertença ao grupo de amigos próximos (os que falam a mesma ‘gíria’ e têm os mesmos costumes), é pelo contacto com o seu grupo de parceiros, os da sua geração, que o aparelho emocional do jovem se poderá voltar a equilibrar como sistema de ressonância ao serviço da integração numa ordem social e promovendo a continuada construção cognitiva e de partilha. Há que ponderar que se conhece bem o fenómeno de jovens que se congregam como marginais (fruto de diversas vicissitudes), para exprimirem com os seus companheiros os sentimentos destrutivos, encobrindo com isso os sentimentos de desesperança e de descrença depressiva. Parecem em fuga de si mesmos, ao mesmo tempo vivendo forte rejeição da ordem social. Referem-se a este passo as perturbações de comportamento de jovens disruptivos, os actos anti-sociais e as dependências de tóxicos (que tantas vezes encobrem problemas da auto-estima lesada) em que se supõe a quebra de relacionamentos primários e a perda do sentido da vida não devidamente reconhecidos e tratados, a seu tempo, em contacto continuado com orientadores avisados.
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Um grupo de suporte positivo pode ser fonte de solidez e de protecção contra as estruturas sociais adversas. (O movimento escutista tem larga experiência neste tipo de actuação. Mas também há os grupos de entreajuda e os grupos comunitários com funções assumidas…). A estratégia de intervenção então proposta (sempre supondo a modificabilidade das estruturas da personalidade) consiste em criar situações (reais ou de fantasia) para movimentar intercâmbios múltiplos a projectar repetidamente numa qualquer estrutura narrativa, quando trazida pelo/a jovem à consulta individual ou de grupo. Buscam-se ocasiões para nomear significados no vai-e-vem da comunicação múltipla, e, assim, construir ou reconstruir um relacionamento instituinte” (Leal, 2006, 34-36).
7 - Sétimo Passo da Construção do Eu Trata-se do “eu” adulto: “ser adulto respeita a poder arriscar-se a ir sempre de novo em busca de caminhos para satisfazer carências básicas, e colocar-se na brecha para realizar propósitos e significados íntimos e/ou públicos, defendendo o foro próprio, sem deixar de se mover flexivelmente no âmbito das realidades do trabalho e do convívio comum” (Leal, 2006, 37).
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É o passo onde se tornam possíveis relacionamentos não íntimos e o convívio impessoal, amigável ou não. Circunstância também emanada da percepção consciente de que as intenções dos outros podem ser diferentes da própria intenção, e que podem ser fingidas ou enganosas; por outro lado, há o claro reconhecimento de que também existem acções verdadeiras e generosas. A adultez também se manifesta pela alternância possível entre ser cuidador e ser cuidado, entre o poder receber ajuda e o oferecê-la, sem que se desencadeiem sentimentos de inferioridade ou de superioridade. Ser adulto também diz respeito a escolhas de vida de acordo com propósitos e significados próprios, mesmo fora dos padrões comuns, e a entrega a ideais superiores; bem como pela possibilidade de discutir pacificamente esses ideais e de os aprofundar, pelo estudo e pelo trabalho. É também a fase em que existe a possibilidade de se construir uma relação estável de intimidade a dois, unidade de pertença moldada na interactividade dinâmica das contribuições de cada um dos parceiros. E tal estabilidade radica na possibilidade de os dois se poderem relacionar em profundidade com o seu próprio self e também com o do(s) outro(s).
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Ao atingir este nível evolutivo/maturativo, Rita Leal considera que se encerra a etapa em que os indivíduos adquirem uma configuração interna personalizada, o que também lhes permite, na sua função de companheiro/a e de genitor, serem uma referência identificadora para as gerações futuras, criando e transmitindo valores com liberdade interna (em que há lugar para os desentendimentos e as mútuas concessões) em que pode constituir-se o potencial definitivo para a satisfação amorosa, sexual, de partilha de corpos e das vidas. “Resumindo: Ser adulto respeita a poder arriscar-se a procurar realizar propósitos e significados próprios, defendidos no foro interno, sem deixar de se mover flexivelmente também no âmbito das realidades da vida, do trabalho e do convívio comum. Isto implica a capacidade de assumir escolhas de vida, no trabalho, na união de família ou mesmo na entrega exclusiva a um ideal. Na família, a condição básica para um relacionamento amadurecido que implica a partilha duradoura entre duas pessoas que se amam reside em poder-se relacionar em profundidade com o seu próprio ‘Self’ e também com ‘Outros’. As vivências neuróticas manifestas como depressão clínica podem ser melhor compreendidas quando encadeadas nos movimentos de construção
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da identidade pessoal e o amadurecimento das relações em profundidade com o próprio ‘Self’. Admitindo a modificabilidade das estruturas de personalidade e tendo tomado a decisão própria de encetar ‘um novo caminho’ ― o adulto sofrendo de depressão clínica poderá vir a retomar os seus rumos na vida, ao permitir-se a experiência (de parceria com um outro adulto que se coloca na posição de cuidador, ‘comprometido’ na relação de ajuda), de um encontro reflexivo com o seu ‘Eu’, no modelo de intercâmbio dialógico mutuamente contingente. Irá ponderar os meandros da sua vida, com as suas preocupações, fantasias e intenções ― para descobrir a paz e poder reassumir uma atitude de confiança expectante” (Leal, 2006, 38-39).
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