1 UFSC - CFH - Filosofia Subsídios FilosofiaXTeologiaXEconomia Selvino J. Assmann
A fábrica do homem endividado Ensaio sobre a condição neoliberista1 A guinada autoritária do neoliberismo (Prefácio à edição italiana, 2012) Maurizio LAZZARATO LAZZARATO (Trad. Selvino J. Assmann) O endividamento do Estado era, do contrário, o interesse direto da direto da fração da burguesia que governava e legiferava por meio das Câmaras. O déficit do Estado era Estado era de fato o verdadeiro objeto da sua especulação e a fonte principal do seu enriquecimento. Todo ano um novo déficit. Após quatro ou cinco anos, um novo empréstimo oferecia à aristocracia financeira uma nova ocasião para fraudar o Estado que, mantido artificiosamente à beira da bancarrota, era obrigado a fazer um contrato com os banqueiros nas condições mais desfavoráveis. Todo novo empréstimo era uma nova ocasião para esvaziar o público, que investe os seus capitais em renda do Estado. MARX, K. As K. As lutas de classe na França. França . A saída da crise acontece fora das linhas traçadas pelo FMI. Esta instituição continua propondo o mesmo tipo de modelo de ajuste fiscal, que consiste em diminuir os soldos que se dão às pessoas - os salários, as aposentadorias, os financiamentos públicos, mas também as grandes obras públicas que geram trabalho - para destinar o dinheiro poupado ao pagamento dos credores. É absurdo. Após quatro anos de crise pode-se ir em frente tirando o dinheiro sempre dos mesmos. É exatamente aquilo que se quer impor àGrécia! Cortar tudo para dar tudo aos bancos. O FMI transformou-se numa instituição com o objetivo de proteger unicamente os interesses financeiros. Quando se está numa situação desesperada, como era a Argentina em 2001, é preciso trocar as cartas. LAVAGNA, Roberto. Ministro argentino da Economia de 2002 a 2005.
1 LAZZARATO,
Maurizio. La fabbrica dell'uomo indebitato. Saggio sulla condizione neoliberista . Trad ital. Roma: DeriveApprodi, 2012, pp.5-21
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Menos de vinte anos depois da "definitiva vitória sobre o comunismo" e a quinze anos do "fim da história", o capitalismo entrou num impasse histórico. Desde 2007 ele está vivo graças às transfusões de somas astronômicas de dinheiro público. Mesmo assim, continua girando no vazio. No máximo, consegue reproduzir-se, mas dando um golpe mortal, com raiva, naquilo que sobra das conquistas c onquistas sociais dos últimos dois séculos. Desde que explodiu a "crise das dívidas soberanas", oferece um espetáculo divertido do próprio funcionamento. As regras econômicas de "racionalidade" que os "mercados", as agências de rating rating e os especialistas impõem aos Estados para sair da crise c rise da dívida pública são as mesmas que produziram a crise da dívida privada (por sua vez, na origem da primeira). Os bancos, os fundos de pensão e os investidores institucionais exigem dos Estados o reordenamento das balanças públicas, quando ainda detêm bilhões de títulos podres [titoli [titoli spazzatura], spazzatura], que são o resultado de uma política de substituição de salários e renda por um sistema de crédito. As agências de rating de rating,, depois de terem fornecido uma avaliação de tríplice A a títulos que hoje já não valem nada (com uma amostra de 2679 títulos entre 17.000 relativos a empréstimos imobiliários, um banco fez uma análise das avaliações de Standard &Poor's: 99% mereceu um tríplice A no momento da emissão, mas hoje 90% recebem avaliações que desencorajam o investimento: noninvestment grade), grade), têm a pretensão, contra qualquer bom senso, de deter a justa avaliação e a boa medida econômica. Os especialistas (professores de economia, consultores, banqueiros, funcionários de Estado, etc.) - cuja cegueira sobre os desastres que a pretensa auto-regulação dos mercados e da concorrência produziu sobre a sociedade e sobre o planeta é diretamente proporcional à servidão intelectual dos mesmos - foram foram catapultados para dentro dentro de governos governos "técnicos", que recordam irresistivelmente os "comitês de negócios da burguesia". Mais do de "governos técnicos", se trata de "técnicas de governo" autoritárias e repressivas, que marcam uma ruptura até mesmo com o "liberalismo" clássico. Mas no cume do ridículo está provavelmente a mídia. A "informação" dos telejornais e os talk-show nos explicam que "a crise é culpa de vocês, porque vocês se aposentam cedo demais, porque vocês gastam demais em cuidados médicos, porque não trabalham mais tempo e como se deveria, porque vocês não são suficientemente flexíveis, porque vocês consomem consomem demais. Em suma, vocês são culpados por viverem bem bem além dos próprios meios". A publicidade, por sua vez, que regularmente pretende fechar a boca para os discursos culpabilizantes de economistas, especialistas, jornalistas e homens políticos, afirma exatamente o contrário: " Vocês são totalmente inocentes, vocês não têm responsabilidade alguma! Nenhum erro e nenhuma culpa mancha a alma de vocês. Todos vocês, sem exceção, merecem os paraísos da nossa mercadoria. É dever de vocês consumirem de modo compulsivo". As "ordens" e as injunções veiculadas pelos significantes semióticos do senso de culpa e pelas semióticas icônicas e simbólicas da inocência conflitam entre si. Há uma contradição aberta entre a moral ascética do trabalho e da dívida e a moral hedonista do consumo; elas já não são capazes de recomposição. Mais do que a uma saída da crise, toda essa agitação se assemelha a um círculo vicioso no qual o capitalismo aparece afogado. A visão das nossas classes dirigentes nunca vai além do próprio bolso,e há que esperar o pior. A ferocidade com que os governos técnicos ou não perseguem o reembolso da dívida e a defesa da propriedade privada (os representantes dos bancos e dos fundos credores da dívida grega tentaram, de acordo com o New York Times, levar à Corte européia para os Direitos humanos o Estado
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Menos de vinte anos depois da "definitiva vitória sobre o comunismo" e a quinze anos do "fim da história", o capitalismo entrou num impasse histórico. Desde 2007 ele está vivo graças às transfusões de somas astronômicas de dinheiro público. Mesmo assim, continua girando no vazio. No máximo, consegue reproduzir-se, mas dando um golpe mortal, com raiva, naquilo que sobra das conquistas c onquistas sociais dos últimos dois séculos. Desde que explodiu a "crise das dívidas soberanas", oferece um espetáculo divertido do próprio funcionamento. As regras econômicas de "racionalidade" que os "mercados", as agências de rating rating e os especialistas impõem aos Estados para sair da crise c rise da dívida pública são as mesmas que produziram a crise da dívida privada (por sua vez, na origem da primeira). Os bancos, os fundos de pensão e os investidores institucionais exigem dos Estados o reordenamento das balanças públicas, quando ainda detêm bilhões de títulos podres [titoli [titoli spazzatura], spazzatura], que são o resultado de uma política de substituição de salários e renda por um sistema de crédito. As agências de rating de rating,, depois de terem fornecido uma avaliação de tríplice A a títulos que hoje já não valem nada (com uma amostra de 2679 títulos entre 17.000 relativos a empréstimos imobiliários, um banco fez uma análise das avaliações de Standard &Poor's: 99% mereceu um tríplice A no momento da emissão, mas hoje 90% recebem avaliações que desencorajam o investimento: noninvestment grade), grade), têm a pretensão, contra qualquer bom senso, de deter a justa avaliação e a boa medida econômica. Os especialistas (professores de economia, consultores, banqueiros, funcionários de Estado, etc.) - cuja cegueira sobre os desastres que a pretensa auto-regulação dos mercados e da concorrência produziu sobre a sociedade e sobre o planeta é diretamente proporcional à servidão intelectual dos mesmos - foram foram catapultados para dentro dentro de governos governos "técnicos", que recordam irresistivelmente os "comitês de negócios da burguesia". Mais do de "governos técnicos", se trata de "técnicas de governo" autoritárias e repressivas, que marcam uma ruptura até mesmo com o "liberalismo" clássico. Mas no cume do ridículo está provavelmente a mídia. A "informação" dos telejornais e os talk-show nos explicam que "a crise é culpa de vocês, porque vocês se aposentam cedo demais, porque vocês gastam demais em cuidados médicos, porque não trabalham mais tempo e como se deveria, porque vocês não são suficientemente flexíveis, porque vocês consomem consomem demais. Em suma, vocês são culpados por viverem bem bem além dos próprios meios". A publicidade, por sua vez, que regularmente pretende fechar a boca para os discursos culpabilizantes de economistas, especialistas, jornalistas e homens políticos, afirma exatamente o contrário: " Vocês são totalmente inocentes, vocês não têm responsabilidade alguma! Nenhum erro e nenhuma culpa mancha a alma de vocês. Todos vocês, sem exceção, merecem os paraísos da nossa mercadoria. É dever de vocês consumirem de modo compulsivo". As "ordens" e as injunções veiculadas pelos significantes semióticos do senso de culpa e pelas semióticas icônicas e simbólicas da inocência conflitam entre si. Há uma contradição aberta entre a moral ascética do trabalho e da dívida e a moral hedonista do consumo; elas já não são capazes de recomposição. Mais do que a uma saída da crise, toda essa agitação se assemelha a um círculo vicioso no qual o capitalismo aparece afogado. A visão das nossas classes dirigentes nunca vai além do próprio bolso,e há que esperar o pior. A ferocidade com que os governos técnicos ou não perseguem o reembolso da dívida e a defesa da propriedade privada (os representantes dos bancos e dos fundos credores da dívida grega tentaram, de acordo com o New York Times, levar à Corte européia para os Direitos humanos o Estado
3 grego, que estaria violando os direitos fundamentais: "property rights are human rights"), não retrocede diante de nada. Até mesmo a recessão recessão e a depressão (Grécia) são males menores frente à eventualidade de não manter a promessa de reembolsar a dívida. Numa recente entrevista, o presidente do Banco Central Europeu propõe, com um um cinismo bastante tatcheriano, remédios remédios que não só estão na origem da crise, mas que nada mais farão do que agravá-la.: diminuição da imposição para enriquecer os ricos e redução das despesas sociais para empobrecer os pobres. Os políticos são reduzidos a cumprirem o papel de contadores e de "procuradores" "procuradores" (Marx) do capital. Sarkosy propôs que as entradas para "pagar os juros da dívida grega sejam depositadas numa conta bloqueada que funcione como garantia para que as dívidas dos nossos amigos gregos sejam saldadas". Angela Merkel, "favorável" à idéia, considera que isso consentiria que se ficasse "seguro de que este dinheiro esteja disponível de maneira durável". Se há algo constante no capitalismo é precisamente o de um estado de guerra a que o liberalismo parece levar de maneira quase "automática". A guerra inter-capitalista aparece hoje menos intensa em relação àquela que cada capital nacional leva contra o próprio inimigo interno. Os diversos capitalismos, em desacordo sobre o modo de dividir o bolo da exploração mundial, convergem sobre o modo como intensificá-lo no interior de cada estado. Para sair da crie, os tempos são os das "reformas" estruturais: regulação das finanças? redistribuição da riqueza? Redução das desigualdades, da precariedade, do desemprego? Fim da escandalosa "assistência" do Estado social e dos presentes fiscais aos ricos e às empresas? As únicas "reformas de estrutura" imaginadas e efetivadas são duas: reestruturação do mercado de trabalho acompanhada pela redução dos salários e drásticos cortes dos gastos sociais, começando, como sempre, pela ajuda-desemprego. O modelo de referência é o alemão. Numa das suas aparições televisivas, Sarkosy citou a Alemanha nove vezes e o governo técnico de Mario Monti (IT) seduz a nova "lady de ferro" de quem recebe "conselhos" diretamente.
O modelo alemão Há dez anos a Alemanha promove políticas de flexibilização e de precarização do mercado de trabalho e de rígidos cortes cortes no Estado social. No parlamento europeu, Daniel Cohn-Bendit perguntou perguntou a Angela Merkel: "Como é possível que um país rico como a Alemanha tenha 20% de pobres?" 2. O ex-ativista de 68 é um grande ingênuo ou sofre de amnésia? Melhor dizer, é um cínico hipócrita, pois foi o governo "vermelho-verde" de Schröder que introduziu, entre 2000 e 2005, a maioria das leis que estão na origem da situação atual: as de um "pleno emprego precário", que transformaram desempregados e "inativos" numa impressionante massa de working poors. poors. Servem um mínimo de história e alguns dados para escancarar as misérias do modelo alemão que a troika ( Europa, Europa, FMI e Banco Central Europeu) está impondo a todos os países europeus. Entre 1999 e 2005, o governo "vermelho-verde" levou adiante, apoiando-se no slogan "Fördern " Fördern und fordern" fordern" (promover e exigir), quatro reformas, da assistência ao desemprego e do mercado de trabalho, uma mais catastrófica do que a outra (ver Harzt). Em janeiro de 2003, a lei Harzt II introduziu os contratos "mini-job", uma espécie de contrato de trabalho negro legalizado (livram os que dão o trabalho das contribuições sociais e não garantem a quem
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estatísticas falam de 14,5% de pobres, mesmo assim um dado notável. Sabe-se que os números da pobreza não diminuem com o "crescimento", pelo contrário. E isso basta para mostrar a natureza deste crescimento.
4 foi empregado nem a cobertura para o desemprego nem aposentadoria), e os contratos "midi-job" (salário entre 400 e 800 euros), empurrando todos a se tornarem empreendedores da própria miséria. Em janeiro de 2004, a lei Harzt III reestrutura as agências para o emprego nacionais e federais, com o objetivo de intensificar o controle dos comportamentos e da vida e o acompanhamento individual dos trabalhadores pobres. Uma vez prontos os dispositivos de governo dos trabalhadores pobres, o governo vermelho-verde aprova uma série impressionante de leis para "produzi-los". A lei Harzt IV, que entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 2005, prevê: - Redução da duração das indenizações de três para um ano; enrijecimento das condições de acesso e obrigação de aceitar qualquer trabalho proposto. Para ter direito ao subsídio de desempregado é preciso ter sido assumido por pelo menos doze meses no curso dos dois anos precedentes à perda de emprego. Após um ano de subsídio, o desempregado receberá a ajuda social (equivalente a uma renda de solidariedade) igual a 359 euros por pessoa, reavaliado em 374 euros. Um relatório da agência federal para o emprego indica que um trabalhador em cada quatro que perde o próprio emprego recebe diretamente a ajuda social ( Arbeitslosengeld II: ALG II) e não a indenização de desempregado (ALG I). O motivo está na tipologia do emprego que o trabalhador acabou de perder: precário ou mal pago. - Redução das indenizações pagas as desempregados de longa duração que rejeitarem aceitar trabalhos subqualificados. - Os desempregados devem aceitar empregos de um salário de 01 euro por hora (adicional à ajudadesemprego que percebem). - Possibilidade de reduzir as indenizações dos desempregados que têm poupanças, e, portanto, possibilidade de acesso às contas bancárias dos "assistidos". Possibilidade de avaliar a qualidade do alojamento do "assistido" e de pedir, se necessário, uma transferência. Os beneficiários da ajuda social Hartz IV são estimados em 6,6 milhões, de que 1,7 milhões de crianças. Os restantes 4,9 milhões de adultos são na realidade workingpoors empregados por menos de 15 horas semanais. Em maio de 2011, as estatísticas oficiais já declaravam cinco milhões de contratos mini job, com um aumento de 47,7%, apenas precedidos pelo boom do que é provisório (134%). Trata-se de formas de contrato muito difundidas também entre os aposentados: 660.000 deles acumulam as aposentadorias a um mini-job 3. Uma parte importante da população, 21,7%, em 2010 foi assumida parttime. O instituto de estatística alemão mediu o aumento da precariedade e das formas que ela assume: entre 1999 e 2009, todas as formas de trabalho atípico cresceram pelo menos 20% 4. As mais atingidas são as famílias monoparentais (as mulheres) e os idosos. No quadro do pleno emprego precário, a taxa de desemprego oficial exibida como sinaldo "milagre econômico alemão" não significa nada de especial! O 3
Se, com relação ao total representam apenas 3%, em termos de fluxo estão em constante aumento. Em 2000, eram apenas 416.000. Mas em dez anos o seu número aumentou 58%. Em 2007, o governo alemão elevou a idade de aposentadoria de 65 para 67 anos, quando a idade real de aposentar-se é de 62,1 anos para os homens e de 61 para as mulheres, o que comporta uma precarização e um abaixamento do nível das prestações. 4 No dia 11 de janeiro de 2012, Destatis publicou o relatório"Sombras e luzes sobre o mercado de trabalho", no qual se lê: "O número de empregos chamados atípicos - part-time ou menos de vinte horas semanais, incluídas as atividades marginais, os empregos temporários e os provisórios - entre 1991 e 2010 aumentou e 3,5 milhões, enquanto o número de ativos que dispõem de um emprego regular caiu de cerca de 3,8 milhões.
5 exércitode working poors em contínua expansão não é formado apenas pelos precários, mas também por trabalhadores com um contrato de duração indeterminada. Assim, em agosto de 2010, um relatório do instituto do trabalho da universidade de Duisburg-Essen estabeleceu que mais que 6,55 m ilhões de pessoas na Alemanha recebem menos do que 10 euros brutos por hora, com um aumento de 2,26 milhões de pessoas em dez anos. Na sua maioria se trata de antigos desempregados que o sistema Harzt conseguiu "ativar": aqueles com menos de 25 anos, os estrangeiros e as mulheres(69% do total). Por outro lado,dois milhões de desempregados ganham menos de 06 euros por hora no além Reno, enquanto na ex-república democrática alemã são muitos os que têm que viver com menos de quatro euros por hora, ou seja, 720 euros por mês em tempo pleno. Resultado: os workingpoors representam 20% dos ocupados alemães. Durante a crise financeira, o governo recorreu maciçamente à desocupação parcial, que consente à empresa de pagar apenas 60% da retribuição normal e de pagar apenas a metade das contribuições sociais. Outro resultado da mudança iniciada com Schröder: com respeito ao Produto Interno Bruto, desde 2002 o valor dos salários decresceu 5% no além-Reno. As mudanças desejadas pelos "vermelho-verdes" são significativas: após anos de proliferação caótica e selvagem da precariedade, de sub-empregos e de subsalários, chegava o momento de introduzir uma regulamentação e uma racionalização da pobreza e da precariedade, constituindo um "verdadeiro" e "coerente" mercado de trabalho de "maltrapilhos" que conduzirá à flexibilidade e à adequação à razão econômica também os que estão mais bem empregados.É a população no seu conjunto - precários, working poors, trabalhadores qualificados - que se torna flutuante, disponível para a flexibilidade permanente. Os diferentes componentes da "força-trabalho" social já são uma simples variável de ajuste da conjuntura econômica. O programa "vermelho-verde"mereceu o nome que traz: "Agenda 2010" 5, pois depois da primeira lei Hartz os resultados são, fora de qualquer metáfora, mortais. Na Alemanha, a expectativa de vida dos mais pobres - daqueles que alcançam apenas 75% da renda média - diminui. Para as pessoas de renda baixa, de acordo com as cifras oficiais, a mortalidade desceu de uma média de 77,5 anos em 2001 para 75,5 em 2011. Nos Länder do Leste do pais é ainda pior: a expectativa média de vida desceu de 77,9 para 74,1 anos. A Alemanha é o primeiro país europeu a seguir os Estados Unidos no caminho do progresso liberista. Bastam dois decênios de esforços ainda para "salvar o sistema previdenciário" e para que a morte coincida com a idade da aposentadoria. Também a guerra interna tem em vista os seus "bombardeamentos cirúrgicos". Na ex-Alemanha do Leste a expectativa de vida chega a 66 anos, apenas um ano antes do direito à aposentadoria. Mors tua, vita mea! Mas pouco importa: a economia está sã, as " agências" dão juízos positivos, os credores se empanturram e a expectativa de vida da parte mais rica da população continuará crescendo. Convém fazermos uma breve digressão sobre Peter Hartz, promotor das leis sobre o regime de desocupação (desempreguização - NT) e da reforma das ajudas sociais; porque a sua condenação a dois anos de prisão com condicional e ao pagamento de multa de 576.000 euros é um exemplo da "corrupção" consubstancial ao modelo neoliberista. Peter Hartz, ex-responsável dos recursos humanos da Volkswagen e grande moralizador dos Anspruchsdenker , dos" aproveitadores do sistema", admitiu ter pago a Klaus 5
A social-democracia, depois de se ter convertido à economia social de mercado (ordo-liberalismo) no pós-guerra, se converteu ao neoliberalismo em o1 de junho de 2003, aprovando a Agenda 2010 com uma maioria de 80% dos delegados. Em 15 de junho de 2003, o congresso dos Verdes adotou com uma maioria igual a 90% o mesmo programa, que também prevê um sistema de aposentadoria em forma de capitalização, a privatização dos serviços públicos, etc.
6 Volkert, sindicalista da IG Metall e ex-presidente do conselho de fábrica da construtora de automóveis alemã, diversos maços de dinheiro a fim de pagar prostitutas e viagens exóticas. Klaus Volkert, por sua vez, foi levado a julgamento por incitamento ao abuso de confiança, exatamente como o ex-diretor do pessoal, Klaus-Joachim Gebauer, acusado de cumplicidade. Fazer da pobreza e da precarização uma variável estratégica da flexibilidade do mercado de trabalho é o que, sob o resgate da dívida, está acontecendo na Itália, Portugal, Grécia, Espanha, Inglaterra e Irlanda6. A França pôs-se nesta direção apos a chegada ao poder de Sarkozy, embora aqui os resultados não sejam tão notáveis quanto na Alemanha. Graças mais uma vez a um homem de centro-esquerda, Martin Hirsch, assumido pelo presidente de direita por ocasião de sua abertura a "esquerda", na França será experimentada a transformação da ajuda social (Renda mínima de inserção - RMI - no valor de 454 euros por pessoa) em arma de produção de workingpoors (Renda de solidariedade ativa - Rsa). É com tecnologias de governo dos pobres que se faz o teste de dispositivos de poder e de controle que, num segundo tempo, serão estendidos para o conjunto da sociedade, o que não parece interessar nem à esquerda e nem aos sindicatos. A Renda de solidariedade ativa comporta a superação dos dualismos fordistas (desemprego/emprego, salário/renda, direito de trabalho/direito de assistência social, lei/contrato) e organiza a sua sobreposição e a sua concatenação graças à figura do working poor . Fixa de maneira estável o estatuto de um trabalhador/assistido que permite acumular salário de atividade e renda de "solidariedade". Esta confusão entre "assalariado" e "assistido", entre trabalho, desemprego e assistência social, entre direito de trabalho e direito ao Welfare, é a condição da construção de um mercado de trabalho secundário, que tem por norma o sub-emprego e um sub-salário. A Renda de solidariedade ativa marca assim o abandono oficial do objetivo de pleno emprego e a instituição de políticas de "plena atividade", entendida como uma atividade para todos, independentemente da duração e da qualidade do emprego7.
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Europa caminha forçadamente para o modelo norte-americano da livre demissão. O governo espanhol aprovou, em 10 de fevereiro de 2012, leis que seguem a mesma lógica: facilitar a demissão, reduzir as indenizações de desemprego e cortar salários. As indenizações de desemprego passam de um máximo de 42 para 24 mensalidades. As demissões por motivos financeiros, com um salário desemprego [cassa integrazione] limitado a 12 mensalidades, são facilitadas. Para demitir por motivos financeiros, é suficiente que a empresa tenha três semestres consecutivos de redução de vendas, mesmo que continue tendo lucros. Após três trimestres de queda nas vendas, as empresas podem impor redução de salários unilateralmente. A não-aceitação acarreta a demissão. 7 Com a Renda de solidariedade ativa passa-se de uma lógica estatutária e institucional (direitos iguais para todos!) a uma lógica contratual e discricionário (para aceder aos direitos o beneficiário deve assinar um contrato preventivo) que, tendo em vista situações específicas, aprofunda o sulco de toda política social: a individualização. O contrato de inserção é um híbrido entre "lei" e "contrato" que, segundo Alain Supiot, não expressa a igualdade e a autonomia desenvolvidas no contrato, mas a afirmação de uma assimetria de poder: "O seu objeto [dos contratos de inserção] não é trocar bens determinados, nem estreitar uma aliança entre iguais, mas sim legitimar o exercício do poder", visto que o contratante , para poder obter o subsídio, é obrigado a assinar. Passa-se de uma lógica do direito de "ter direitos" a uma lógica que subordina o subsídio a um investimento subjetivo, cuja primeira prova é representada por um "trabalho sobre si", com o objetivo de demonstrar que se "está disponível para o sub-emprego e para um subsalário". A Renda de solidariedade ativa efetua uma inversão da lógica da ajuda social, ou melhor, uma inversão da "dívida". Fecha de uma vez por todas a brecha aberta pela Renda mínima de inserção dentro do direito à assistência social: um subsídio não vinculado ao "trabalho" e privado de "contrapartida" direta. A Renda mínima de inserção afirmava, mesmo que fosse de maneira ambígua, um débito da "nação" com relação aos "cidadãos mais desavantajados". A Renda de solidariedade ativa, pelo contrário, tem como objetivo endereçar o subsídio a uma subemprego, à disponibilização para a ocupabilidade e a um contrato de inserção. Além de instituir um working poor , ainda forma um senso de culpa, pois o trabalhador é implicitamente considerado responsável pela própria condição e, portanto, em dívida com a sociedade e com o Estado.
7 Também a reforma do mercado de trabalho que o "governo técnico" italiano está prestes a aprovar inspira-se diretamente no modelo alemão. O ministro das Políticas sociais Fornero, em carta ao jornal "La Stampa" de 04 de março (2011) o diz de forma bem clara. A tradução da realidade alemã na Nova Língua com a qual se expressa a "governance" é uma obra-prima de hipocrisia e de falsidade: O exemplo mais recente de uma reforma conjunta do mercado de trabalho e dos instrumentos de proteção social - prescindindo do percurso recentemente tomado pela Espanha - é proporcionado pelas intervenções realizadas na Alemanha no início do decênio passado quando o País era considerado o "enfermo da Europa", incapaz de crescer e de superar o choque da reunificação. As reformas alemãstinham a ver com todos os aspectos do mercado de trabalho e do Welfare: melhoria dos instrumentos de instrução profissionalizante e facilitação da passagem entre escola e trabalho; sustento à participação do mercado de trabalho e da ocupação, mesmo parcial, das faixas mais desvantajadas; reforço do vínculo entre o gozo de tratamentos particulares e a efetiva ação de requalificação e de busca de trabalho; potencialização da atividade dos centros para o emprego; introdução de maior flexibilidade, tanto com novas tipologias contratuais, quanto nos espaços da contratação entre empresa e trabalhador.
Sob o resgate da dívida, o Estado quer levar a termo aquela passagem, inaugurada nos anos oitenta, do Welfare (direitos e serviços sociais) para o Workfare (subordinação das políticas sociais à disponibilidade e à flexibilidade do pleno emprego precário). A mudança de rota autoritária do neoliberismo está para acabar com o "modelo social europeu", pois, como afirma Mario Draghi 8, não podemos mais permitir que se "paguem as pessoas que não trabalham". Em toda mudança de fase econômico-política sempre encontramos o Estado e a sua administração no comando das operações. Precisamente assim como favoreceu e estimulou as políticas neoliberistas do crédito nos anos oitenta e noventa, é ao Estado com cabe a organização da sua continuidade nas novas formas autoritárias e repressivas de reembolso da dívida e da figura do homem endividado. Cai, assim, outra ilusão da esquerda, aquela que opõe à lógica da propriedade privada do mercado a lógica de um "público" estatal. Não há autonomia do político, nem neutralidade do Estado. As suas administrações agem em profundidade sobre a economia, a "sociedade" e as subjetividades, como a construção do mercado de trabalho demonstra de maneira paradigmática.
Crise da finança ou crise do capitalismo? Não se trata tanto de demonstrar a onipotência do capitalismo quanto de assinalar a sua debilidade, a médio e a longo prazo. Se as contra-reformas estruturais irão atingir dramaticamente grande parte da população, não traçam por isso alguma estrada de saída para a crise. Os especialistas, os mercados, as agências de rating e os homens políticos, não sabendo nem para onde ir, nem como, sob o resgate dos déficits das balanças, apelam para as políticas neoliberistas de produção e de intensificação das diferenças de classe que são a verdadeira origem da crise. A máquina capitalista enguiçou-se não porque não estivesse bem regulada, não porque houvesse excessos ou porque os homens das finanças fossem ávidos (outra ilusão da "esquerda" reguladora!). Tudo isso é verdade, mas não colhe a natureza da crise atual, que não começou com o desastre financeiro.Antes de mais nada ela é resultado da falência do programa neoliberista (fazer da empresa o modelo de qualquer relação social) e da resistência que a figura subjetiva promovida por ela (o capital humano e o empreendedor de si mesmos) encontrou. É tal resistência , mesmo se for passiva, que, ao criar obstáculos 8
Mario Draghi é desde 2011 o presidente do Banco Central Europeu [Nota do Tradutor]
8 para a realização do programa neoliberista, transformou o crédito em débito. Se o crédito e o dinheiro expressam a sua natureza comum de "débito" isso se deve ao fato de que a acumulação está bloqueada, e é incapaz de garantir novos lucros e de produzir novas formas de sujeitamento, e não o contrário. Entre 2001 e 2004, nos Estados Unidos, o crescimento de 10% do PIB foi possível unicamente porque medidas de relançamento da atividade injetaram na economia 15,5 pontos de PIB: redução da imposição de 2,5 pontos do PIB, crédito imobiliário que passou de 450 a 960 bilhões (1300 antes da crise de 2007), aumento dos gastos públicos de 500 bilhões. No início do século, a Alemanha estava na mesma situação. O crescimento do PIB alemão entre 2000 e 2006 foi de 354 bilhões de euros. Mas se comparado com os números da divida no mesmo período (342 bilhões) não e difícil constatar que o resultado real é um "crescimento zero". Foi o Japão que entrou por primeiro - após a explosão da bolha imobiliária nos anos noventa (e a sucessiva explosão da dívida para por em ordem o sistema bancário) - num "crescimento zero", que já chega à recessão. Melhor do que outros países, o Japão revela a natureza da crise contemporânea. As razões do impasse do modelo neoliberista não devem ser buscadas unicamente nas contradições econômicas, embora sejam muito reais, mas também e sobretudo naquilo que Guattari chama "crise da produtividade da subjetividade". O milagre japonês, que foi capaz de forjar uma força-trabalho coletiva e uma força social "muito integrada ao maquinismo"(Guattari), parece girar no vazio, aprisionado também ele, assim como todos os países desenvolvidos, nas malhas do débito e dos seus modos de subjetivação. O modelo subjetivo "fordista" (emprego a vida, um tempo unicamente dedicado ao trabalho, o papel da família e a sua divisão patriarcal dos papeis, etc) acabou, e não se sabe com que substituí-lo. A crise do débito não é uma loucura da especulação, mas a tentativa de manterem vida um capitalismo já enfermo. O "milagre econômico" alemão é uma resposta regressiva e autoritária aos impasses que já se haviam manifestado antes de 2007. É por este motivo que a Alemanha e a Europa são tão ferozes e inflexíveis com a Grécia. Não só em nome do "I want my money back" (o dos credores), mas também e sobretudo porque a crise financeira abre uma nova faze política, na qual o capital já não pode contar com a promessa de uma futura riqueza para todos como nos anos oitenta. Já não pode dispor dos espelhinhos para as cotovias da "liberdade" e da "independência" do capital humano, nem daqueles da sociedade da informação ou do capitalismo cognitivo. Para dizê-lo com Marx, só pode contar com a extensão e o aprofundamento dos "plusvalor absoluto", ou seja, um prolongamento do tempo de trabalho, um incremento ao trabalho não retribuído e dos baixos salários, dos cortes de serviços, da precarização das condições de vida e de emprego, e com a diminuição da esperança de vida. A austeridade, os sacrifícios, a produção da figura subjetiva do devedor não representam um momento ruim a superar tendo em vista um "novo crescimento", mas tecnologias de poder de que só mesmo o autoritarismo, que nada mais tem de "liberal", pode garantir a sua reprodução. O governo do pleno emprego precário e a armadilha do saldo do débito exigem a integração no sistema político democrático - que desde os anos oitenta funciona sobre outra coisa e não mais sobre a representação - de inteiros blocos do programa das extremas direitas. A resistência passiva que não aderiu ao programa neoliberista representa a única esperança de escapar das "tecnologias de governo" dos "governos técnicos" do débito. Diante da feira de horrores dos planos de austeridade impostos à Grécia, há de quem se deveria dizer, de algum modo, de te fabula narratur ! É de ti que se fala.
9 Berlim, 05 de março de 2012.
O DÉBITO COMO FUNDAMENTO DO SOCIAL9
Porque falar de economia do débito e não de [economia de] finanças [...] Mais do que de finanças, preferimos falar de "débito" e de "juro". Aqui não analisaremos "as finanças", os seus mecanismos internos, a lógica que preside às escolhas dos traders, etc.; analisaremos sim a relação entre credor e devedor. Ou seja, contrariamente ao que se apregoa todos os dias, os economistas, os jornalistas e os "especialistas", as finanças não são um excesso de especulação que seria necessário regulamentar, uma simples funcionalidade capitalista que garante o investimento; nem sequer representam uma expressão da avidez e da cobiça da "natureza humana" que seria necessário controlar racionalmente, mas é uma relação de poder. O débito é as finanças do ponto de vista dos devedores que devem reembolsá-lo. Os juros são as finanças do ponto de vista dos credores, proprietários de títulos que lhe garantem gozar do débito. Economia do débito parece ser uma expressão politicamente mais apropriada do que de finanças ou do que economia financeira ou até mesmo de capitalismo financeiro, porque compreenderemos imediatamente do que se trata: do débito que gregos, irlandeses, portugueses, ingleses, islandeses não querem pagar e contra o qual vão às praças há meses; do débito que legitima o aumento dos custos das taxas universitárias inglesas e que em Londres desencadeia violentos conflitos; do débito que justifica o corte de 800 euros por família, sempre na Inglaterra, para arrumar as contas públicas desarrumadas pela crise financeira; do débito que justifica a contra-reforma das aposentadorias na França; do débito que determina cortes na educação na Itália, e contra os quais se insurgem os estudantes romanos; do débito que corta os serviços sociais, os financiamentos à cultura, os auxílios desemprego, os mínimos sociais na França e, com o novo pacto de estabilidade, na Europa. Uma vez estabelecido que as crises atuais não são a consequência de um distanciamento entre finanças e produção, entre a chamada economia "virtual" e a economia"real", mas que expressam uma relação de poder entre credores e devedores, devemos focalizar-nos na influência crescente do débito sobre as políticas neoliberistas.
A fábrica do débito O débito não é, portanto, o impedimento para o crescimento; pelo contrário, constitui o motor econômico e subjetivo da economia contemporânea. A fábrica das dívidas, ou seja, a construção e o desenvolvimento de uma relação de poder entre credores e devedores foi pensada e programada como o 9
M. Lazzarato. La fabbrica dell'uomo indebitato, loc. cit. pp. 42-52.
10 coração estratégico das políticas neoliberistas.. Se o débito é tão central para entendermos, e portanto, combatermos, o neoliberismo , é porque este está vinculado desde o nascimento a uma lógica do débito. Uma das guinadas do neoliberismo é constituída por aquilo que alguns economistas definiram com o "golpe de 1979", que, tornando possível a constituição de enormes déficits públicos, escancarou as portas para a economia do débito, constituindo assim o ponto de partida de uma inversão das relações de força entre credores e devedores. Em 1979, por iniciativa de Volker (na época presidente da Federal Reserve e conselheiro econômico do primeiro staff Obama), as taxas normais (os juros a pagar para reembolsar a dívida) mais do que dobraram, passando de 9% a 20%, enquanto no período precedente na média eram negativos. "Estas taxas elevadas cimentaram os endividamentos cumulativos dos Estados (dívida pública) os dos países (divida externa). As classes privilegiadas constroem assim um dispositivo de polarização extrema de proporções gigantescas entre credores e devedores" 10, que se destina totalmente em vantagem dos credores. A impossibilidade de mediar a dívida social (ou seja, a dívida do Estado social) através de dispositivos monetários (recurso do Tesouro ao Banco central) obriga a desenvolver os mercados financeiros, desenvolvimento que é mais uma vez organizado, solicitado e imposto, passo após passo, pelo Estado - na França isso foi feito, sobretudo, sob os governos socialistas. É, pois, através da gestão das dividas dos Estados, criadas por aquilo que aconteceu em 1979, que os mercados financeiros foram estruturados e organizados. Os Estados não se limitaram a liberalizar os mercados financeiros, mas acompanharam a organização e a estruturação do seu funcionamento. Abriram, portanto (diversificando a gama dos títulos emitidos nos mercados primários), e tornaram importantes (aumentando os volumes das transações nos mercados secundários) os mercado dos títulos públicos atrativos para os poupadores. A curva das taxas de juro para estes títulos tornou-se o parâmetro de referência para a formação do preço dos ativos, substituindo as taxas de base bancárias11
As políticas monetárias, as políticas de deflação salarial (bloqueio dos salários), as políticas do Estado social (redução dos gastos sociais) e as políticas fiscais (transferências para as empresas e para os estratos mais ricos da população de diversos pontos do BIP em todos os paises industrializados) convergem para a criação de enormes dívidas públicas e privadas. A redução do débito, hoje na ordem do dia em todos os países, não está em contradição com a sua criação, pois se tratada continuação e da ampliação do programa político neoliberista. Por um lado, se trata de retomar, através de políticas de austeridade, o controle sobre o "social" e sobre os gastos sociais do Welfare, ou seja, sobre as rendas, sobre o tempo (da aposentadoria, das férias, etc.) e sobre os serviços sociais que foram conquistados pelas lutas contra a acumulação capitalista. É algo o que claramente está em jogo e foi enunciado pelo programa da confederação da indústria francesa, a "refundação social", cuja direção passou, no final do século passado, das mãos dos industriais da metalurgia à das companhias de seguro e ao setor financeiro. Denis Kessler, que é o ideólogo disso,na época do seu lançamento em 1999, afirmava que é necessário reintroduzir "a exigência econômica dentro de um social que, às vezes, tem tendência demasiada para jogar com a própria emancipação ou até mesmo para querer dominá-la"12. Por outro lado, trata-se de perseguir e aprofundar o processo de privatização dos serviços do Estado social, ou 10
G. Duménil & D. Lévy. La finance capitaliste: rapports de production et rapports de classe. Em: La finance capitaliste. Paris: PUF, 2006, p.167. 11 M. Aglietta& A. Orléan. La monnaie entre violence et confiance. Paris: Odile Jacob, 2002, p. 244. 12 D. Kessler. L'avenir de la protection social. Commentaire, n. 87, outono de 1999, p. 625.
11 seja, a sua transformação em terreno de acumulação e de lucro para as empresas privadas. Estas últimas devem "re-internacionalizar" a proteção social que haviam externalizado durante o Fordismo, "delegandoa" ao Estado (aliás, as companhias de seguro, cabeças da nova direção da confederação de indústrias francesa, consideram que foram "roubadas" em 1945). Os planos de austeridade impostos pelo FMI e pela Europa à Grécia e a Portugal têm como parâmetro o das "novas privatizações". Um sindicalista grego, a propósito das medidas impostas pelo FMI e pela Europa, observa que se trata de uma "liquidação" bela e boa mais do que de um plano de "salvação". A economia do débito é, portanto, vetor de um capitalismo no qual a poupança dos trabalhadores assalariados e da população - os fundos de pensão, os seguros-doença, os serviços sociais" geridos no interior de um universo de concorrência 13 - voltaria a ser uma função da empresa. Em 1999, Denis Kessler estimava em 2600 bilhões de francos, ou seja, 150% da balança do Estado, a quantia representada pelas empresas por parte dos gastos sociais. A privatização dos mecanismos de seguridade social, a individualização da política social e a vontade de fazer da proteção social uma função de empresa são os fundamentos da economia do débito. A última crise financeira foi acolhida, por parte do bloco de poder da economia do débito, como a ocasião para se aprofunda re se expandir a lógica das políticas neoliberistas.
O débito, vetor de uma relação especifica de poder O débito age contemporaneamente como máquina de captura, de "depredação" ou de "cobrança" sobre a sociedade no seu conjunto, como instrumento normativo e de gestão macro-econômica, e como dispositivo de redistribuição de renda. Funciona também como dispositivo de produção e de "governo" das subjetividades coletivas e individuais. Para dar conta das novas funções das finanças, a teoria econômica heterodoxa de André Orléan fala de "poder credor" e de "potência credora", cuja força "se mede com esta capacidade de transformar o dinheiro em débito e o débito em propriedade e, ao fazer isso, com a capacidade de influir diretamente sobre as relações sociais que estruturam as nossas sociedades" 14 O pensamento de Orléan define a relação credor-devedor como o pilar em volta do qual acontece a transformação da "governance" (termo da neo-língua do poder que significa comando) capitalista: "Passamos da regulação fordista que privilegiava o polo industrial e devedor a uma regulação financeira que põe na dianteira o polo financeiro e credor" 15 Mas a relação credor-devedor não se limita a "influir diretamente sobre as relações sociais", pois também ela é uma relação de poder, uma das mais importantes e universais do capitalismo contemporâneo. O crédito ou débito e a sua relação de poder credor-devedor constituem uma relação de poder especifico, que implica modalidades específicas de produção e de controle da subjetividade (uma forma particular de homo oeconomicus, "o homem endividado"). A relação credor-devedor sobrepõe-se às relações capital-trabalho, Estado social-usuário, empresa-consumidor, e as atravessa transformando os usuários, os trabalhadores e os consumidores em "devedores".
13Ibid.,
p. 662. Aglietta& A. Orléan. La monnaie entre violence et confiance, op. cit., p. 182. 15 Ibid., p. 248. 14 M.
12 O débito segrega uma "moral" própria, ao mesmo tempo diferente e complementar à do "trabalho". O duo "esforço-recompensa" da ideologia do trabalho acaba revestida pela moral da promessa (de honrar a própria dívida) e de erro (de tê-la contraído). Conforme lembra Nietzsche, o conceito de "Schuld" (erro, culpa), conceito fundamental da moral, remete ao conceito material de "Schulden" (dívidas). A "moral" do débito leva a uma moralização tanto do desempregado, do "assistido", do usuário do Estado social, quanto de populações inteiras. A campanha de imprensa alemã contra os parasitas e os que não fazem nada gregos testemunha a violência da culpabilização inerente à economia do débito. A mídia, os políticos, os economistas, quando falam da dívida, só têm uma mensagem a transmitir: "vocês são culpados". Os gregos douram a pílula ao sol enquanto os protestantes alemães se afanam para o bem da Europa e da humanidade sob um céu carregado. O poder do débito é representado como se não fosse exercido nem através da repressão, nem de ideologia: o devedor é "livre", mas suas ações, seus comportamentos devem ocorrer nos limites definidos pelo débito que foi contraído. Isso vale tanto para o indivíduo quanto para uma população ou um grupo social. Vocês são livres na medida em que assumem o estilo de vida (consumo, trabalho, gastos sociais, impostos, etc.) compatível com o reembolso. O uso das técnicas para educar os indivíduos a fim de viverem com a dívida inicia muito cedo, antes mesmo do ingresso no mercado de trabalho 16. O poder do credor sobre o devedor se assemelha muito à última definição que Foucault oferece do poder: uma ação sobre uma outra ação, ação que mantém "livre" aquele sobre o qual se exerce o poder. O poder do débito nos deixa livres, e nos incita e impele a agir a fim de podermos honrar as nossas dívidas (mesmo que, como o FMI, tem uma tendência a matar os "devedores" com a imposição de políticas econômicas que favorecem a "recessão"). O neoliberismo governa através de uma multiplicidade de relações de poder: credor-devedor, capital-trabalho, Welfare-usuário, consumidor-empresa, etc. Mas o débito é uma relação de poder universal, pois todos nela estão incluídos; até mesmo aqueles que são pobres demais para terem acesso ao crédito devem pagar juros a credores através do reembolso da dívida pública; até os países que são pobres demais para se dotarem de um Estado social devem reembolsa as suas dividas. A relação credor-devedor tem a ver com a população atual no seu conjunto, mas também com aquela futura. Os economistas nos dizem que todo recém-nascido francês nasce já com 22.000 euros de dívida. Não é mais o pecado original que nos é transmitido no ato de nascer, mas a dívida das gerações precedentes. O "homem endividado" é submetido a uma relação de poder credor-devedor que o acompanha no arco de toda a vida, desde o nascimento até a morte. Se antes estávamos endividados com a comunidade, com os deuses, com os antepassados, agora acontece com o "deus" Capital. Faltam-nos os instrumentos teóricos para analisarmos todo o alcance da relação de poder entre credor e devedor e as diferentes funções que o débito atinge. O conceito de especulação corresponde 16 Nos
Estados Unidos, 80% dos estudantes que terminam um master em jurisprudência acumula uma dívida de 77.000 dólares, se frequentaram uma escola privada, e de 50.000 dólares se o fizeram numa universidade pública. De acordo com um estudo da Association of American Medical Colleges, o endividamento médio dos estudantes que completam uma escola de especialização em medicina é de 140.000 dólares. Uma estudante que terminou com sucesso um master em jurisprudência declarou a um jornal italiano: "Creio que não conseguirei reembolsar as dívidas contraídas para pagar meus estudos; há dias em que penso que quando eu morrer ainda terei de pagar as mensalidades à universidade. Hoje tenho um plano de reembolso distribuído em 27 anos e meio, mas é ambicioso demais porque a taxa é variável e só consigo pagar [...] Fico muito atenta às minhas despesas, anoto todo gasto num caderno, o café ou a passagem de ônibus [...]. Tudo deve ser programado [...]. O que me preocupa mais é que não consigo ter uma poupança e a minha dívida está sempre aí e aterroriza" (La Repubblica, 4 de agosto de 2008).
13 apenas a uma parte do funcionamento do débito e impede que possamos ver as suas funções produtivas, distributivas, de captura e de modelamento da subjetividade. Por isso queremos voltar ao pensamento de Deleuze e Guattari que sempre foram fiéis, tornandoa operativa dentro do capitalismo contemporâneo à argumentação da segunda dissertação da Genealogia da Moral : " No crédito - e não mais na troca - Nietzsche vislumbra o arquétipo da organização social" 17. Importa sublinhar , uma vez por todas, que desta afirmação não podemos deduzir o desaparecimento ou a inexistência da troca, mas simplesmente que ela funciona a partir de uma lógica que não é sempre aquela da igualdade, mas do desequilíbrio, do diferencial de potência. Ver no débito o arquétipo da relação social significa duas coisas. Por um lado, fazer com que a economia e a sociedade comecem por uma assimetria de potência, e não por uma troca comercial que implica e pressupõe a igualdade, introduzir diferenças de poder entre grupos sociais e dar uma nova definição de moeda, pois esta se manifesta imediatamente como comando, como um poder de destruição/criação sobre a economia e a sociedade. Por outro lado, fazer com que tudo comece com o débito significa tornar a economia imediatamente subjetiva, pois o débito é uma relação econômica que, para se realizar, implica um modelamento e um controle da subjetividade, de tal forma que o "trabalho" fique indissociável de um "trabalho sobre si". No curso deste ensaio verificaremos, graças ao débito, uma verdade que tem a ver com toda a história do capitalismo: o que definimos como "economia" seria simplesmente impossível sem a produção e o controle da subjetividade e das suas formas de vida. Os dois autores do anti-Édipo, em que a teoria do débito é pela primeira vez amplamente desenvolvida e utilizada, continuarão da mesma maneira sempre fiéis também a Marx, e sobretudo à sua teoria da moeda. Numa entrevista de 1988, no período do pleno desenvolvimento neoliberista, Deleuze sublinhou a importância de se voltar à concepção marxista da moeda: 'É o dinheiro que reina além, é ele que comunica, e o que atualmente nos falta não é uma crítica do marxismo, mas uma moderna teoria do dinheiro que esteja à altura daquela de Marx e a leve em frente" 18. Deleuze e Guattari interpretarão a teoria marxiana, por um lado, a partir da relação entre credor e devedor e, por outro, a partir da univocidade do conceito de produção: a produção da subjetividade, das formas de vida, das modalidades de existência não remete à superestrutura, mas faz parte da infra-estrutura "econômica". Além disso, na economia contemporânea , a produção de subjetividade revela-se como a primeira e a mais importante forma de produção, "mercadoria" que se inscreve na produção de todas as outras mercadorias. No que diz respeito à moeda, eles afirmam que ela não deriva da troca, da simples circulação da mercadoria; nem mesmo constitui o signo ou a representação do trabalho, mas expressa uma assimetria de forças, um poder de prescrever e impor modalidades de exploração, de domínio, de sujeitamento futuros. A moeda é, antes de mais nada, moeda-débito, criada ex nihilo, que não tem nenhum equivalente material a não ser numa potência de destruição/criação das relações sociais e, sobretudo, dos modos de subjetivação. Este desvio teórico nos parece essencial para podermos compreender mais adiante que a relação credor-devedor modela o conjunto das relações sociais nas economias neoliberistas. Não se trata nesse 17 G.
Deleuze. Nietzsche e la filosofia e altri testi . Trad. it. de F. Polidori. Turim: Einaudi, 2002, pp 202-203. Neste livro, de 1963, já se fala de débito e das suas implicações na subjetividade.. 18 G. Deleuze. Pourparler . Trad. S. Verdicchio. Macerata: Quodlibet, 2000, pp. 202-203.
14 caso de lançar as bases sobre as quais poderemos, num segundo momento, apoiar-nos para reler as transformações atuais sofridas pelas nossas sociedades através da economia do débito. ______________________________
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A genealogia do débito e do devedor
Débito e subjetividade: a contribuição de Nietzsche A relação credor-devedor como base da relação social
A economia do débito parece ter produzido uma mudança de grande importância no interior das nossas sociedades., e procuraremos interpretar ao seu significado através da segunda dissertação da Genealogia da Moral . A economia neoliberal é uma economia subjetiva, ou seja, economia que requer e produz processos de subjetivação, em que o modelo já não é, como na economia clássica, o homem da livre troca e o produtor. No decurso dos anos oitenta e noventa, tal modelo era representado pelo empreendedor (de si mesmo), segundo uma definição de Michel Foucault, que, com este conceito,sintetizava a mobilização, o empenho e a ativação da subjetividade através de técnicas de management de empresa e governo social. Desde que se sucedem crises financeiras, pelo contrário, a figura subjetivado capitalismo contemporâneo parece ser encarnada pelo "homem endividado". Esta figura, já existente - por ter representado o fulcro da estratégia neoliberal - já investiu o conjunto do espaço público. Nas sociedades neoliberais o conjunto dos papeis atribuídos pela divisão social do trabalho ("consumidor" , "usuário", "trabalhador", "empreendedor de si mesmo", "desempregado", "turista", etc.) é atravessado pela figura subjetiva do "homem endividado", transformando tais papeis em consumidor endividado, em usuário endividado e, por fim, como acontece no caso da Grécia, em cidadão endividado. Quando não é o débito individual, é o débito público que pesa, literalmente, sobre a vida de cada um, porque é cada um que o deve assumir sobre si. Durante um longo período, pensei que esta implicação subjetiva derivasse principalmente das mudanças ocorridas no interior da organização do trabalho. Hoje gostaria de atenuar esta afirmação com a ajuda de uma hipótese complementar : é o débito e a relação credor-devedor que constitui o paradigma subjetivo do capitalismo contemporâneo,no qual o "trabalho" é ao mesmo tempo "trabalho sobre si", em que a atividade econômica e a atividade ético-política da produção do sujeito caminham juntos. É o débito que traça, domestica, fabrica, modula e modela a subjetividade. De que subjetividade se trata? Através de que maquinação o débito fabrica o sujeito? A este propósito, Nietzsche já havia dito o essencial. Na segunda dissertação da Genealogia da Moral , de um só golpe ele exclui do jogo o conjunto das ciências sociais: a constituição da sociedade e a educação do ser humano ("disciplinar com a educação o animal de caça homem a ponto de o tornar um animal manso e civilizado, um animal doméstico")19 não resultam nem da troca econômica ( contrariamente à tese defendida por toda a tradição da economia política, desde os fisiocratas até Marx, passando por Adam Smith), nem pela troca simbólica (ao contrário das tradições teóricas antropológicas e psicanalíticas), mas da relação entre credor e devedor. Nietzsche faz do crédito o paradigma da relação social, descartando assim toda explicação "à inglesa", ou seja, aquela baseada na troca ou no interesse.
1919 F.
NIETZSCHE. Genealogia della morale. Trad.it. de F. Masini.Milano: Adelphi, 2011, p 31. Todas as citações deste parágrafo foram extraidas da primeira e da segunda dissertações.
16 O que é o crédito/ o débito no seu significado mais imediato? Uma promessa de pagamento. O que é um título financeiro ou uma obrigação? A promessa de um valor futuro. "Promessa", "valor" e "futuro" são também as palavras-chave da segunda dissertação de Nietzsche. Para ele, a "mais antiga e originária relação pessoal que há" é a relação entre credor e devedor. É nessa relação que "pela primeira vez se mediu pessoa a pessoa" 20. Consequentemente, o erro da comunidade ou da sociedade consistiu antes de mais nada naquele de gerar um homem capaz de prometer , um homem capaz de responder por si no interior da relação credor-devedor, ou seja, capaz de honrar ao próprio débito. Fabricar um homem capaz de manter uma promessa significa construir para ele uma memória, muni-lo de uma interioridade, de uma consciência que possa opor-se ao esquecimento. É no interior desta esfera de obrigações que começam a ser fabricadas a memória, a subjetividade e a consciência. Deleuze e Guattari, comentando estas passagens da Genealogia da Moral , observam que o homem se constitui mediante a remoção da memória biocósmica e mediante a constituição da memória das palavras, através das quais formulamos a promessa 21. Mas se a promessa implica a memória da palavra e da vontade, não basta fazer uma promessa para ficarmos desvinculados do débito. A segunda dissertação é uma extraordinária desmistificação do funcionamento daquilo que a filosofia analítica chama o "performativo". Se, por um lado, o performativo da promessa realiza o ato de prometer ao invés de limitarse a descrevê-lo, por outro, não constitui por si mesmo o reembolso do débito. A promessa é, sem dúvida, um "ato de palavra", mas a humanidade produziu uma multiplicidade de métodos, um mais "pavoroso e sinistro" do que o outro, para garantir que o performativo não se reduza a simples palavra, um flatus vocis. O performativo da promessa implica e pressupõe uma "mnemotécnica" da crueldade e uma mnemotécnica da dor que, assim como a máquina da colônia penal de Kafka, escrevem a promessa de reembolso diretamente sobre o corpo. "Imprime-se algo a fogo para que permaneça na memória: só aquilo que não cessa de fazer mal permanece na memória" 22. Da mesma maneira, a "confiança" - palavra mágica de todas as crises financeiras, repetida como um encantamento por todos os serviçais da economia do débito (jornalistas, economistas, homens políticos, especialistas) - não é garantida pela simples enunciação; necessita de garantias corpóreas e incorpóreas. Para infundir confiança na sua promessa de restituição, para dar uma garantia da seriedade e santidade da sua promessa, para impor, em si mesmo, à própria consciência a restituição como dever e obrigação, o devedor oferece como penhor, por força do contrato, ao credor, para o caso de não pagar, algo diferente que ainda "possui", e sobre o qual ainda não tem poder, por exemplo, o próprio corpo ou a própria mulher ou a própria liberdade ou até a própria ida (ou então, segundo determinados pressupostos religiosos, até mesmo a sua beatitude, a salvação da sua alma, e, por fim, talvez, também a paz no sepulcro)23
Deste modo, a esfera do direito das obrigações do débito representa o fulcro do mundo dos"tétricos fatos", como são os conceitos morais - "culpa", "culpabilidade", "consciência" e "má consciência", "repressão", "dever", "sacralidade do dever". Educar um animal para ser capaz de prometer pressupõe a realização preventiva de outra ação: tornar "primeiramente o homem, até certo grau, necessário, uniforme, igual entre os iguais, coerente com a regra e consequentemente calculável" 24.
20
Ibid., , p. 58 G. DELEUZE e F. GUATTARI. L'anti-edipo. Capitalismo e schizofrenia. Trad. ital. de A. Fontana. Torino: Einaudi, 2002, pp 213-214. 22 F. NIETZSCHE. Genealogia della morale, p. 49. 23 Ibid., p. 52. 24 Ibid., pp. 46-47 21
17 "Graças à eticidade dos costumes" - ao "peculiar trabalho do homem sobre si mesmo" - "e à camisa de força social se fez do homem um ser efetivamente calculável"25. Portanto, o débito implica uma subjetivação que Nietzsche chama um "trabalho sobre si mesmo, auto-martírio". Tal trabalho é o da produção do sujeito individual, responsável e devedor perante o próprio credor. Por conseguinte, o débito - como relação econômica - traz consigo a particularidade segundo a qual, para se poder desenvolver, requer um trabalho ético-político de constituição do sujeito. E o capitalismo contemporâneo parece ter descoberto por si mesmo as técnicas nietzschianas para a construção de um homem capaz de prometer: o trabalho é, ao mesmo tempo, trabalho sobre si mesmo, um auto-martírio, uma ação sobre si mesmo. O débito implica um processo de subjetivação que marca ao mesmo tempo o "corpo" e o "espírito". Observamos que, partindo da leitura de Nietzsche, Foucault, Deleuze e Guattari, todos estes autores formulam um conceito não-econômico da economia (a produção econômica implica a produção e o controle da subjetividade e das suas formas de vida, a economia pressupõe uma "eticidade dos costumes", o desejo de fazer parte da "infraestrutura"). "O homem caracteriza-se como" o "animal que tem apreço por si". Mas a origem da medida, da avaliação, da comparação, do cálculo e da contabilidade (todas elas funções relativas à moeda) não deve ser procurada dentro da troca econômica ou do trabalho, mas no débito. Assim, a equivalência e a medida não se forjam na troca, mas no cálculo das garantias de reembolso do débito. Sobretudo, o credor podia infligir ao corpo do devedor toda sorte de humilhações e torturas, por exemplo cortar, tanto quanto parecesse proporcional ao tamanho da dívida, - e com base nisso, bem cedo e em toda parte houve avaliações precisas, terríveis em suas minúcias, avaliações legais de membros e partes do corpo26
Também aqui, a economia parece tornar-se nietzschiana: a sua medida não é mais apenas objetiva (o horário do trabalho), mas também subjetiva, enquanto está fundada sobre dispositivos de avaliação; disso nasce o poder econômico da opinião pública no interior das nossas sociedades. O conceito de débito traz, além disso, consequências sobre os paradigmas sócio-politicos de compreensão e de genealogia das relações sociais e das instituições. A assimetria de poder que o constitui nos liberta das "imaginações" que atribuía o nascimento do Estado e da sociedade a um contrato (ou, na versão contemporânea, a uma convenção): "Aquele que pode mandar, por que iria apelar para contratos?!"27 Livra-nos também de uma interpretação do processo de constituição da sociedade como passagem do estado de natureza para o estado social e para a política. Os processos de constituição da sociedade não se realizam através de mudanças progressivas, através de consenso, convenções ou representação, mas através de "fratura", "salto" e "constrição". É só depois de fraturas, saltos e constrições que se estabelecem novos contratos e novas co nvenções. Se tivéssemos necessidade de uma confirmação posterior deste estado de coisas, bastaria olhar, mesmo com um olhar preguiçoso,para o modo como se impôs o neoliberalismo. Seguramente não através de contratos ou convenções, mas através de ruptura, violência e usurpação. A acumulação originária do
25
Ibid., p. 47. p. 52. Aqui foi usada a tradução portuguesa da obra: F.NIETZSCHE. Genealogia da moral. Trad. de Paulo César de Souza. S. Paulo: Companhia das Letras,2009, p.49. 27 Ibid., p. 76. 26 Ibid.
18 capital sempre é contemporâneo ao seu desenvolvimento, não se constituindo como uma sua fase histórica, , mas como uma contemporaneidade sempre renovada.
O tempo do débito como possível, escolha, decisão
A sociedade dominada pela atividade bancária, ou seja, pelo crédito, condiciona o tempo e a expectativa, condiciona o futuro, como se todas estas atividades fossem maciçamente computadas como antecipação com relação à mesma, como antecipação relação a ela pela expectativa e pelo desconto.
com
Jean-Joseph GOUX
A pergunta mais importante feita pela segunda dissertação da Genealogia da Moral é aquela sobre o tempo e sobre a subjetivação "ético-política" que dela deriva, dado que a memória que se trata de fabricar não é uma memória que conserva o passado, mas uma memória do futuro. Tanto para o credor quanto para o devedor importa fabricar uma "memória da vontade" que torna possível "fazer promessas" voltadas para o futuro28. O que é o crédito? Uma promessa de saldar um débito, uma promessa de reembolso num futuro mais ou menos longínquo,mas sempre imprevisível, por estar submetido à extrema incerteza do tempo. Para Nietzsche, plasmar uma memória do homem significa poder "dispor antecipadamente do futuro", "ver e antecipar o que está longe como presente", ou ainda "responder por si como futuro"29. Conceder um crédito obriga a fazer uma estima daquilo que é inestimável - os comportamentos e os acontecimentos futuros - e obriga a arriscar-se na incerteza do tempo. Portanto, cabe às tecnologias do débito neutralizarem o tempo, ou seja, o risco a ele vinculado. Por outras palavras, devem antecipar e afastar qualquer imprevisível "divergência" dos comportamentos do devedor que o futuro po de esconder. À luz da economia do débito neoliberal, a segunda dissertação da Genealogia da Moral se reveste assim de nova atualidade. O débito não só é um dispositivo econômico, mas é também uma tecnologia securitária de governo destinada a reduzir a incerteza dos comportamentos dos governados. Ao educar os governados para serem capazes de "prometer" (a honrar o próprio débito), o capitalismo dispõe antecipadamente " do futuro (deles)", dado que as obrigações do débito permitem prever, calcular, medir e estabelecer equivalências entre os comportamentos autuais e aqueles futuros. São os efeitos de poder do débito sobre a subjetividade (culpabilidade e responsabilidade) que consentem ao capitalismo de lançar uma ponte entre o presente e o futuro. A economia do débito é uma economia do tempo e da subjetivação segundo uma acepção específica. De fato, o neoliberalismo é uma economia projetada para o futuro, dado que as finanças são uma promessa de riqueza futura e, consequentemente, não comensurável com a riqueza atual. É inútil gritar pelo escândalo, porque não há correspondência entre "presente" e "futuro" da economia! O que conta é a pretensão das finanças de quererem reduzir o que será ao que é, ou seja, reduzir o futuro e os seus possíveis às relações de poder atuais. Sob tal óptica,toda a engenharia financeira só tem uma 28 Ibid., 29
Ibid,
p. 46.
19 finalidade: a de dispor antecipadamente do futuro, objetivando-o. Tal objetivação é de natureza totalmente diferente com relação à do horário de trabalho.: objetivar o tempo, dispor dele antecipadamente, significa subordinar à reprodução das relações de poder capitalistas qualquer possibilidade de escolha e de decisão incluída pelo futuro. Deste modo, o débito apropria-se não só do tempo de trabalho dos assalariados e da população no seu conjunto, mas exerce um direito de preferência inclusive sobre o tempo não cronológico, sobre o futuro de cada um e sobre o porvir da sociedade no seu conjunto. A estranha sensação de vivermos numa sociedade sem tempo, sem possibilidades, sem uma ruptura imaginável, encontra no débito a explicação própria principal. A relação entre tempo e débito, a saber, entre o empréstimo de dinheiro e a apropriação do tempo por parte de quem faz o empréstimo, e conhecida há séculos. Se, na Idade Média, a distinção entre usura e lucro não era muito clara - pois a primeira era considerada simplesmente um excesso do segundo (ah! sabedoria dos antigos!) - havia, contra isso, uma ideia muito precisa sobre o lugar para onde levaria o "furto" daquele que emprestava dinheiro e em que consistiria a sua culpa: vendia tempo, algo que não lhe pertencia e cujo único proprietário era Deus. "O que vende o usurário senão o tempo que passa entre o momento em que empresta e aquele em que é reembolsado com juros? Ora,o tempo pertence somente a Deus. Ladrão de tempo, o usurário é um ladrão do patrimônio de Deus"30. Para Marx, a importância histórica do empréstimo usurário(uma "denominação arcaica dos juros") reside no fato de que, contrariamente à riqueza consumidora, ele representa um processo gerador assimilável ao (e precursor de) do capital, ou seja, do dinheiro que produz dinheiro. Um manuscrito do século XIII, citado por Jacques Le Goff, sintetiza muito bem tanto este último ponto quanto o tipo de tempo de que o emprestador do dinheiro se apropria: do tempo da vida e não só do tempo de trabalho: Os usurários pecam contra a natureza querendo fazer dinheiro gerar dinheiro, assim como cavalo com cavalo ou mulo com mulo. Além disso, os usurários são ladrões (latrones), pois vendem o tempo, que não lhes pertence, e vender um bem alheio, contra a vontade do possuidor é um roubo. Ademais,como nada vendem a não ser a espera do dinheiro, isto é, o tempo, vendem os dias e as noites. Mas o dia é o tempo da claridade e a noite é o tempo do repouso. Portanto, não é justo que tenham a luz e o repouso 31 eternos.
Enquanto na Idade Média o tempo pertencia única e exclusivamente a Deus, hoje, enquanto é possível, criação, escolha e decisão, é o principal objeto de expropriação/apropriação capitalista. Se nos afastarmos do ponto de vista econômico - no qual todo o mundo já parece estar afundado - o que representam as enormes quantidades de moeda concentradas nos bancos, nas asseguradoras, nos fundos de pensão, etc e manipuladas pelo setor de finanças a não ser potencialidades, imensas concentrações de possíveis? O setor financeiro cuida para que as únicas escolhas e decisões possíveis sejam aquelas da tautologia do dinheiro que produz dinheiro, da produção pela produção. Enquanto nas sociedades industriais sobrava ainda um tempo "aberto" - sob forma de progresso ou de revolução - hoje, o futuro e seus possíveis, sufocados pelas somas de dinheiro exorbitantes postas em movimento pelo setor financeiro e destinadas a reproduzir as relações de poder capitalistas, parecem ficar bloqueados, simplesmente porque o débito neutraliza o tempo, o tempo como criação de novas possibilidades, ou seja, como matéria-prima de todas as mudanças políticas, sociais ou estéticas. É tal matéria-prima que exerce e organiza o poder de destruição/criação, o poder de escolha e o de decisão. 30 J.LE
GOFF. La borsa e la vita. Trad. ital.de S. Addamiano. Roma/Bari: Laterza, 2003, p. 33. Ibid., p.p.34-35. (J. LE GOFF. A bolsa e a vida. Trad. port. Rogério Silveira Muoio. S Paulo: Brasiliense, 2004, p. 40-41)
31
20
A economia como processo de subjetivação
Além de por a relação credor/ devedor como paradigma social, a segunda dissertação de Nietzsche contém outro ensinamento fundamental que importa aprofundar. Conforme já dissemos, a relação credordevedor é inseparavelmente uma economia e uma "ética", pois pressupõe - para que o devedor possa garantidor de "si" - um processo ético-político de construção de uma subjetividade dotada de uma memória, de uma consciência e de uma moralidade que a remetem contemporaneamente à responsabilidade e ao senso de culpa. Produção econômica e produção de subjetividade, trabalho e ética são, portanto, inseparáveis. Sendo assim, a economia do débito leva à acutização de uma descoberta da economia política clássica, segundo a qual a essência da riqueza é subjetiva. Por outras palavras,aqui o termo subjetivo não significa apenas o fato de por à disposição uma capacidade - física e mental - e tempo (o tempo de trabalho) em troca de um salário, mas também produção de subjetividade individual. Neste sentido, a economia do débito modifica ao mesmo tempo o conceito de "trabalho" e de "política". Acredito que meus amigos do capitalismo cognitivo erram quando consideram o "conhecimento" como a fonte da valorização e da exploração. Não é novidade o fato de que a ciência, a habilidade, as inovações tecnológicas e organizativas representam as forças produtivas - Marx já havia afirmado isso na metade do século XIX; mas a pretensa economia do conhecimento não representa a totalidade das relações de classe que a teoria do capitalismo cognitivo lhe atribui. Ela nada mais é do que um dispositivo, um tipo de atividade, uma articulação das relações de poder que acompanha uma multiplicidade de outras atividades e de outras relações de poder, sobe as quais não exerce hegemonia alguma. Pelo contrário, ela deve submeter-se aos imperativos da economia do débito (cortes selvagens nos investimentos "cognitivos", na cultura, na formação, nos serviços, etc.). De toda maneira não é partindo do conhecimento que se joga o destino da luta de classe, nem no lado do capital, nem naquele dos "governados". Sendo assim, o que se exige e o que atravessa tanto a economia quanto a sociedade contemporânea não é o conhecimento, mas o imperativo de nos tornarmos "sujeito" econômico ("capital humano", "empreendedor de si") - imperativo que interessa da mesma maneira o desempregado e o usuário dos serviços públicos, o consumidor, o mais "humilde" trabalhador, o mais pobre ou o "migrante". Na economia do debito, tornar-se capital humano ou empreendedor de si mesmo significa assumir para si os custos e os riscos de uma economia flexível e financeirizada; trata-se de custos e riscos que estão bem longe de serem apenas os da inovação, porque também são e sobretudo os da precariedade, da pobreza, do desemprego, dos serviços sanitários definitivamente insuficientes, da carência de moradia, etc. "Fazer de si mesmo uma empresa" (Foucault) significa responsabilizar-se pessoalmente pela pobreza,pelo desemprego, pela precariedade, pela renda mínima social, pelos salários baixos, pelos cortes na aposentadoria, etc. como se fossem "recursos" e "investimentos" do indivíduo, para ser gerido como um capital, como o "próprio" capital. Já é notório que os conceitos de empreendedor de si mesmo e de capital humano devem ser interpretados partindo da relação credor-devedor, ou seja, da relação de poder mais geral e desterritorializado através do qual o bloco de poder neoliberal governa a luta de classe. Dentro da crise, o "algo mais" que o capitalismo solicita e captura - em qualquer âmbito - é o assumir-se para si dos custos e dos riscos externalizados pelo Estado e pelas empresas, e não o conhecimento. Os diferenciais de produtividade não derivam principalmente do "saber" ou da informação, mas do fato de alguém assumir o encargo subjetivo destes custos e destes riscos, tanto na produção do
21 conhecimento,na atividade do usuário quanto em qualquer outro tipo de atividade. É tal "subjetivação", somada ao trabalho no sentido clássico do termo, que faz crescer a produtividade - para falarmos como os economistas do capital. A figura subjetiva deste assumir-se o encargo é a do devedor afetado pelo sentimento de culpa, pela má consciência e responsabilidade, que perde, à medida que afunda na crise, as próprias veleidades empreendedoras e os cantos épicos que os albores do neoliberalismo haviam entoado à glória da inovação e do conhecimento. Enquanto se preocupam pouco em investir numa mais que improvável"sociedade do conhecimento" - desde sempre anunciada e nunca realizada - os capitalistas são, em compensação, rigidamente inflexíveis ao imporem aos governados para que estes assumam todos os riscos e todos os desastres econômicos criados por eles mesmos. No interior da crise do débito soberano, de modo algum está em jogo o conhecimento, o capitalismo cognitivo, a criatividade ou o capitalismo cultural; no entanto, é precisamente este o terreno que o capital escolheu para levar em frente a própria luta de classes. Por isso,a economia do débito caracteriza-se por uma dúplice expansão da exploração da subjetividade: extensiva (por não dizer respeito apenas à ocupação no setor industrial e no de serviços, mas a qualquer atividade e condição), e intensiva (por ter a ver com a relação em si, na forma de uma empreendedoria de si - originariamente tanto do "próprio capital, quanto da própria má gestão - cujo paradigma é o "desocupado"32). A economia do débito invade também o terreno do político, utilizando e desfrutando dos processos de constituição "ético-política" a fim de transformar todo indivíduo em sujeito econômico endividado. Tais transformações do capitalismo, que atingem a vida e a subjetividade, não parecem ser consideradas minimamente pelas teorias políticas de Rancière e de Badiou. Por que ocupar-se de economia do débito, de exploração do "trabalho sobre si" e de apropriação/expropriação do tempo (como ocasião, escolha, decisão), quando o processo de subjetivação política é visto como algo que se desenvolve sempre da mesma maneira - seja no interior das cidades gregas ou no império romano (a revolta dos escravos), seja na Revolução Francesa, na Comuna de Paris ou na Revolução russa - ou seja, a partir da questão universal da igualdade? Seria uma perda de tempo ocupar-sede transformações do capitalismo, visto que não podemos deduzir a revolução a partir da "economia"! Para Rancière e Badiou, a política é independente da "economia" simplesmente porque a imagem que têm desta última e do capitalismo em geral é aquela, caricatural, veiculada pelos próprios economistas. Contrariamente àquilo que é enunciado por estas teorias revolucionárias, democráticas ou simplesmente econômicas, a força do capitalismo reside na própria capacidade de articular, sob diversos aspectos, a "economia" (e a comunicação, o consumo, o Welfare, etc.) com a produção de subjetividade. Dizer, como o fazem Badiou e Rancière, que a subjetividade política não é dedutível da economia é completamente diferente do que por-se perguntas sobre a sua articulação paradoxal. O primeiro caso traduz a ilusão de uma política "pura", dado que a subjetivação, articulada com o nada, não alcançará jamais uma consistência necessária para existir; o segundo caso abre , pelo contrário, canteiros de experimentação e de construção política, pois a subjetivação deve, para que resista e se reforce, realizar uma ruptura , re-atravessando e re-configurando o econômico, o social, o político, etc.
32 Prefere-se
aqui traduzir literalmente o termo usado no italiano para se referir ao desempregado: "disocccupato"= desocupado) (N. Tradutor)
22
Os dois Marx Um Marx muito nietzschiano
Um texto de juventude de Marx, Extratos do livro de James Mill , “Élements d’économie politique”, permite que completemos e aprofundemos a natureza da relação credor/devedor 33. Neste texto, extraordinário sob muitos pontos de vista,Marx descreve uma relação de crédito muito diferente daquele analisado no terceiro livro de O Capital. Neste, que na realidade é uma aproximação de anotações mais ou menos redigidas, o crédito é simplesmente uma das três formas que pode assumir o capital (financeira, industrial e comercial) e a relação credor/devedor é vista como questão entre capitalistas. Pelo contrário, em Extratos do livro de James Mill , é o “pobre” que é o devedor, e é sobre o pobre que o credor faz cair um juízo “moral”, para avaliar a sua solvência. O que é calculado como garantia de reembolso são as “virtudes sociais” as “capacidades sociais”, a “carne e o sangue”, a “moralidade” e a própria “existência” do pobre. Estas páginas de juventude enriquecem a construção do personagem conceitual do “homem endividado”, que começamos a delinear graças à ajuda preciosa de Nietzsche. Para Marx, a relação credor/devedor é ao mesmo tempo diversa e complementar da relação capital/trabalho. Se prescindirmos do conteúdo da relação entre credor e devedor (o dinheiro), constataremos que o crédito desfruta e exige não tanto o trabalho, mas a ação ética e o trabalho de constituição de si num plano ao mesmo tempo individual e coletivo. O que acaba sendo interpelado através da relação de crédito é a moralidade do devedor, o seu modo de viver (o seu “ethos”) e não suas capacidades físicas e intelectuais, como no trabalho (material ou imaterial, pouco importa). A importância da economia do débito reside no fato de que ela se apropria e usufrui não só do tempo cronológico, do tempo enquanto escolha, decisão, aposta sobre o que acontecerá e sobre as forças (confiança, desejo, coragem, etc.) que tornam possível a escolha, a decisão, o agir. Deixemos a palavra para algumas páginas de Extratos do livro de James Mill , datadas de 1844: No crédito, cuja expressão mais completa é o banco, parece que o poder da potência material e estranha esteja rompido, que a relação da auto-alienação seja suprimido e o homem esteja de novo em relações humanas com o homem {p. 232}.
O crédito parece funcionar de modo inverso ao do mercado e à relação capital-trabalho. Tem-se a impressão de que as relações sociais entre as pessoas não se apresentem mais invertidas em relação social entre coisas, como acontece no funcionamento da relação capital/trabalho. O fetichismo da mercadoria (“o poder externo, material”) não parece mais operar, pois o homem se confronta diretamente com outro homem, dando-lhe confiança.
33 K.
MARX, Estratti dal libro di James Mill “Élements d`économie politique” . Em: K. MARX, Opere complete, vol. III, org. por Nicolao Merker, Roma: Editori Riuniti, 1976, pp. 229-248 (ver tb. Trad. italiana org. por M Tronti. Apunti su James Mill . Em: K. MARX, Scritti inediti di economia politica. Roma, Editori Riuniti, 1963).
23 Mas esta supressão do estranhamento, este retorno do homem a si mesmo e, portanto, ao outro homem nada mais é do que aparência; e ela é tanto mais um auto-estranhamento, uma des-humanização muito mais infame e extrema, enquanto o seu elemento já não é a mercadoria, o metal, o papel, mas a existência moral , a existência social , a própria interioridade do coração humano; enquanto, sob os despojos da confiança do homem para com o homem, ela é a máxima desconfiança e o estranhamento perfeito (p. 232-233).
O crédito realiza e manifesta, mais do que o trabalho, a essência objetiva da produção, porque aquilo que está em jogo – segundo outra tradução da mesma passagem – é a “existência moral, a existência comunitária, o instinto do coração humano”. Para agir – ou seja, para iniciar algo cuja realização está submetida à variável do tempo – e para arriscar-se no desconhecido, no imprevisível e no incerto, são necessárias forças diferentes daquelas investidas no trabalho: a confiança nos outros, em si mesmos e no mundo. A relação credor/devedor não representa nada mais do que a “ilusão”do fim da subordinação do homem à produção “do valor” econômico e a sua elevação à “ produção de valores” fundados sobre a comunidade e sobre os sentimentos mais nobres do coração humano (a confiança, o desejo, o reconhecimento do outro, etc.) – e não mais sobre o trabalho assalariado, o mercado e a mercadoria. Com o crédito, diz-nos Marx, a alienação é completa, porque aquilo que é explorado é o trabalho ético da constituição de si e da comunidade. A confiança, condição do agir, transforma-se em desconfiança de todos com relação a todos e materializa-se depois em pedido de “segurança”. A circulação de débitos privados é uma circulação de interesses egoístas e individuais. Pressupõe, por detrás da aparência de reconhecimento do outro, uma desconfiança preliminar, pois o outro é o rival, um concorrente e/ ou um devedor. O que constitui a essência do crédito? Prescindamos aqui totalmente do conteúdo do crédito, que de novo é o dinheiro. Prescindamos, portanto, do conteúdo desta confiança através da qual o homem reconhece o outro antecipando-lhe valores e – no melhor dos casos, ou seja, quando não pede que lhe paguem o crédito , ou seja, quando não é um usurário - dispensa ao seu semelhante a confiança que consiste em não considerá-lo um velhaco, mas um “bom homem”. Por um “bom homem” que inspira confiança entende aqui, como Shylock, um homem ”capaz de pagar” [p. 233]
A confiança a que recorre o crédito nada tem a ver com a confiança em novas possibilidades de vida e, portanto, em força generosa com relação a si mesmo, aos outros e ao mundo. Pelo contrário, limita-se a ser uma confiança na solvência,fazendo desta o conteúdo e a medida da relação ética. Os conceitos “morais”, de bom e mau, de confiança e desconfiança, são traduzido sem solvência e insolvência. As categorias “morais”, através dos quais “medimos” o homem e sua ação são medida da razão econômica (do débito). Portanto, no capitalismo a solvência é a medida da “moralidade” do homem. E também no caso em que “um rico concede um crédito a um pobre” – o que na sua época constituía uma exceção e não a regra – Marx observava: Também admitindo esta exceção, concedendo esta possibilidade romântica, a vida de pobre, o seu talento e as suas atividades,continuarão valendo para o rico como uma garantia da restituição do dinheiro emprestado; ou seja, portanto, todas as virtudes sociais do pobre, o conteúdo da sua atividade vital, a sua própria existência, representam para o rico o reembolso do seu capital com os juros habituais. A morte do pobre é por conseguinte o pior dos casos para o credor. Ela é a morte do seu capital com todos os juros [p. 233]
24 O crédito implica uma “avaliação moral” do devedor por parte do credor, ou seja, uma medida “subjetiva”do valor. O importante é que aquilo que é avaliado não são ap enas as competências e as habilidades do trabalhador, mas também a ação do pobre na sociedade (as “virtudes”, as “atividades”, as “reputações” sociais), a saber, seus valores, sua própria existência. É através do débito que o capital pode apropriar-se das forças sociais e existenciais do pobre, e não só das suas capacidades físicas e intelectuais exercidas dentro do trabalho. Pense-se em toda a infâmia que há no fato de estimar um homem em dinheiro, como acontece na relação de crédito. [...] O crédito é o juízo econômico sobre a moralidade de um homem. No crédito, no lugar do metal ou do papel, o próprio homem tornou-se o intermediário da troca, não, porém, enquanto homem ,mas enquanto existência de um capital e dos seus interesses. Portanto, o meio da troca certamente voltou e se transferiu, da sua figura material, para o homem, mas só porque o próprio homem, alienado de si, se tornou ele mesmo uma figura material [pp. 233-234].
Portanto, o crédito explora não apenas as relações sociais em geral, mas também a singularidade da existência. Explora o processo de subjetivação, atingindo a própria individuação da existência. Em síntese, o juízo “moral” recai sobre a “vida”. Mas a “vida” de que falamos não é a biológica (a saúde, o nascimento e a morte) – como acontece no conceito de biopolítica -e menos ainda a vida cognitiva, mas a vida “existencial”. Aqui, a existência significa poder de auto -afirmação, força de auto-posicionamento, escolhas que fundam e trazem consigo modelos e estilos de vida. Aqui, o conteúdo do dinheiro não é o trabalho, mas a existência, a individualidade e a moral humana; a matéria do dinheiro não é o tempo do trabalho, mas o tempo da existência: Já não é o dinheiro que é superado no homem, na relação de crédito, mas é o próprio homem que é mudado em dinheiro, ou seja, é o dinheiro que se incorporou nele Aindividualidade humana, a moral humana tornou-se ela mesma tanto um artigo de comércio, quanto um material em que existe o dinheiro. Não mais moeda e papel, mas a minha própria existência pessoal, a minha carne e o meu sangue., a minha virtude e o meu valor sociais são a matéria, o corpo do espírito do dinheiro. O crédito arranca o valor do dinheiro não mais do próprio dinheiro, mas da carne humana e do coração humano [pp. 233-234]
O texto de Marx retoma o de Nietzsche em mais aspectos. A relação de crédito mobiliza e explora a “moralidade dos costumes”, a constituição ético-política de si mesmos e da comunidade. A sua ação inscreve-se no corpo empenhado na produção da “virtude social”. Mas, diferentemente de Nietzsche, o discurso já não tem a ver com as sociedades “arcaicas”, mas com a economia capitalista a que o homem, domesticado, está acorrentado.
O débito “objetivo”em O Capital de Marx
Segunda leitura de Marx. É útil voltar rapidamente à teoria que Marx expôs no terceiro livro de O Capital. Se nos permitimos esta digressão, o fazemos com o objetivo de compreender as evoluções do papel do crédito na obra de Marx. Se no primeiro texto analisado, Marx tratou daquilo que poderíamos chamar de débito subjetivo ou existencial, aqui se trata do débi to objetivo. Marx não retoma a rica análise
25 dos efeitos subjetivos do débito desenvolvida no arco da sua juventude. Concentrando-se unicamente nas funções “sistêmicas”, permite contudo que nos livremos de muitos lugares comuns incessantemente repetidos pelos comentadores da crise financeira. Em primeiro lugar, o caráter especulativo, parasitário, usurário do capital financeiro é indissociável do seu papel funcional: “Um banco representa por um lado a concentração do capital monetário, ou seja, daqueles que emprestam, por outro lado, a concentração daqueles que tomam o empréstimo”34. Em segundo lugar, não obstante ele assuma diversas formas (comercial, industrial, monetário, financeiro), existe só um capital e só um processo de valorização. Já na época de Marx era absurdo separar uma “economia real” de uma presumida “economia financeira”. É a fórmula do capital financeiro, ou seja, o dinheiro que se autovaloriza (A-A`) que representa plenamente a lógica do capital. Para os ocidentais, na maioria cristãos,não deveria ser difícil seguir o raciocínio de Marx segundo o qual o valor se apresenta como uma “substância motora de si mesma”, pela qual o capital industrial, comercial e financeiro são, também eles, formas a serviço do seu “automovimento”. Assim como na teologia a Santa Trindade se distingue no Pai, no Filho e no Espírito Santo, assim o capital se distingue em três formas diferentes (industrial, comercial e financeiro). Mas Marx vai muito além. Mesmo que defina os capitalistas financeiros com todo tipo de epíteto (“bandidos honoráveis!”, “usurários” e não obstante não existam para ele capitalistas bons, os industriais, os capitalistas maus, os financeiros e os banqueiros), Marx tem a lucidez que falta a quase todos os comentadores, especialmente aos de esquerda. Já na sua época, Marx define a posição específica ocupada pelo capital financeiro com respeito ao capital industrial: por um lado isso representa o “comum” da classe capitalista e, por outro, o dinheiro concentrado nos bancos é dinheiro em “potência”, diferentemente do capital industrial que é sempre atualizado. Não representa uma riqueza atual, mas uma riqueza futura, ou seja, a possibilidade de escolha e de decisão sobre a produção e sobre as relações de poder que estão por vir. Na sua forma financeira, o capital acumulado nos bancos apresenta-se como “capital em geral”, simples abstração, mas se trata de uma abstração potente, pois se manifesta como “valor autônomo”, “independente” da sua atualização em setores específicos; existe como potência “indiferenciada” capaz de qualquer realização. Manifesta-se, portanto, enquanto poder de prescrição e de antecipação do valor futuro, enquanto poder de destruição e de criação. No mercado monetário encontram-se confrontados apenas quem concede empréstimo e quem toma de empréstimo. A mercadoria só tem uma forma, o dinheiro. Todas as formas particulares que o capital assume, segundo o seu investimento em esferas particula res de produção ou de circulação, aqui acabam sendo cancelados. Ele existeaqui na forma homogênea , igual a si mesma, do valor autônomo do dinheiro. A concorrência entre as esferas particulares aqui cessa; elas são todas reunidas na figura de quem toma de empréstimo, e também o capital se encontra frente a todos na forma na qual ainda é indiferente com respeito à determinada natureza e maneira do seu emprego 35
Assim, é só na esfera financeira, por causa da sua indiferenciação, que o capital se mostra como “capital comum” da classe dos capitalistas. “O capital industrial que só comparece como capital substancialmente comum de toda a classe no movimento e na concorrência entre as diferentes esferas, manifesta-se aqui realmente, com todo seu peso, como tal, na demanda e na oferta de capital” 36. O 34 K.
MARX. Il Capitale. Libro III. Org. por Maria Luisa Boggeri. Roma: Editori Riuniti, 1989, p. 477. p. 436. 36 Ibid., 35 Ibid.,
26 dispositivo capitalista não se subjetiviza no capitalista industrial (este tem unicamente uma função de gestão e de direção da produção), mas no capitalista financeiro (cuja possibilidade, de decidir e de escolher enquanto proprietário, é desterritorializada). Diversamente do que acontece nas múltiplas formas do capital industrial, é ao capital financeiro que cabe a representação dos interesses do “capital social”. Acrescente-se a isso que , com o desenvolvimento da grande indústria, o capital monetário, enquanto ele aparece no mercado, é representado em grau cada vez maior, não pelo indivíduo capitalista, pelo proprietário desta ou daquela fração do capital que se encontra no mercado, mas se apresenta como uma massa concentrada, organizada, que, de modo totalmente diferente do que ocorre na produção real, é posta sob o controle do banqueiro que representa o capital social 37.
O que consente ao capital a exploração do social é a sua forma geral, a sua indiferença frente a qualquer especificidade industrial, como ela se manifesta no crédito. O crédito permite a cada capitalista ou a quem é tido por capitalista dispor completamente, dentro de certos limites, do capital e da propriedade alheia, e, consequentemente, do trabalho alheio. A possibilidade de dispor do capital social que não lhe pertence permite-lhe dispor do trabalho social. 38
Para Lenin, que, em época sob muitos aspectos semelhante à atual, retoma e desenvolve o ponto de vista de Marx, os bancos e os banqueiros cumprem um papel político de primária importância pois conferem “coerência” e estratégia aos capitalistas industriais, cujos interesses são demasiadamente heterogêneos para poderem representar a classe dos capitalistas: “estas cifras simples são suficientes [...] para mostrar como a importância dos bancos foi modificada radicalmente a partir da concentração do capital e do aumentado movimento de negócios. Em lugar dos capitalistas separados surge um único capitalista coletivo”39. A “coerência” e a estratégia são as da lógica A-A` que, pretendendo produzir dinheiro através do dinheiro, revela ao mesmo tempo a própria “irracionalidade”. Irracionalidade que se manifesta em todos os períodos “liberais” e conduz, de modo praticamente automático, às crises mais violentas, que cada vez abrem as portas para políticas autoritárias (conforme aconteceu com a Primeira Guerra mundial e com o Fascismo). Mesmo que o capital financeiro tenha sofrido profundas mudanças, estes escritos de Marx são ainda atuais.
A ação e a confiança na lógica do débito Na economia do débito,não é mais possível distinguir o trabalho da ação, como ainda fazia Hannah Arendt. Com o crédito, a ação torna-se elemento da dinâmica econômica, e até mesmo o seu motor! O 37
Ibid. p. 436-437 p. 521 39 V. LENIN. L`imperialismo, fase suprema del capitalismo. Em: ID. Opere complete. Roma: Editori Riuniti, 1955-1970, vol 22, p. 216. 38 Ibid.
27 capitalismo contemporâneo, através da subjetivação implícita no débito, integra a ação e as forças que tornam isso possível. Não é por acaso que o débito explora a ação ética da constituição tanto da comunidade quanto do indivíduo, mobilizando as forças que estão na origem da “existência moral, a existência comunitária”. Entre todas estas forças, dedicaremos atenção especial à ”confiança”, palavra mágica da crise em curso, que representa um sintoma do deslocamento das fronteiras da exploração capitalista, para além do uso inflacionado que dela fazem os economistas, os jornalistas e os especialistas. Para reconstruir o conceito de ação e de confiança, é necessário fazer uma pequena digressão filosófica que o leitor também poderá dispensar. O interesse desta digressão reside no fato de nos permitir compreender como e porque o capitalismo influi sobre a ação, ou seja, sobre o tempo não cronológico e, portanto, sobre a capacidade de escolher e de decidir aquilo que é bom e aquilo que é mau. Segundo a teoria do agir do pragmatista norte-americano William James, toda vez que nos confrontamos com uma alternativa real, uma alternativa existencial qualquer, enquanto atualiza alguns possíveis e anula outros, como no caso dos problemas “morais”, a escolha não depende apenas do intelecto, da “cognição”, do saber e do conhecimento40, muito pelo contrário. Ela chama em causa sobretudo “nossas tendências ativas”, nossas “forças mais íntimas”, nossa “natureza passional”, nossos impulsos mais caros”, ou seja, “o íntimo do coração humano”, de que nos fala Marx e que James define com conjunto de forças ativas (“a força de espírito, a esperança, o encanto, a admiração, o ardor”) e que sintetiza no conceito de “desejo”. A medida, a estima, a avaliação “do que é bem, ou das coisas que seria bom existirem” não podem ser delegadas à especulação filosófica, nem ao saber científico. “A ciência nos pode dizer o que existe; mas para confrontar os valores, seja do que existe, seja do que não existe, não devemos recorrer à ciência, mas àquilo que Pascal chama o nosso coração”41. A potência do nosso agir e “o sucesso de uma ação dependem da energia empregada no ato e a energia por sua vez está subordinada à íntima certeza de ser bem sucedido”, ou seja, à convicção/confiança naquilo que se faz, à convicção/confiança no mundo e nos outros. Portanto, o ato depende da intensidade da convicção/confiança e esta, das “tendências ativas”, das emoções e dos impulsos mais íntimos do coração humano. A convicção /confiança é definida por James como uma “disposição para agir”. O modo de entendera potência do agir remete a um “método subjetivo, o método da convicção f undada no desejo”. Mas a convicção /confiança ou disposição para agir pode ser definida de duas maneiras diferentes. Num caso, é a convicção- hábito e noutro, a convicção –confiança (ou fé) que provoca a ação. No primeiro caso, o mundo é determinado, completo, tudo já é dado, de modo que a convicção reside nas convicções já estabelecidas. No segundo caso, aquele que nos interessa, o mundo está em devir. É incompleto, indeterminado, e tal incompletude e indeterminação remetem ao nosso poder de agir, e este último, à confiança. É esta segunda concepção de confiança que é “mobilizada” e orientada pelo crédito (a força do 40 A
linha de autores citados neste parágrafo – Pascal, Kierkegaard, Nietzsche, James, Deleuze – configura aquilo que Deleuze descreve como uma substituição do paradigma da crença com o paradigma do sabe, fato que representa outra boa razão para duvidar da pertinência do paradigma do “capital cognitivo”. Até mesmo a ciência, força produtiva por excelência deste paradigma, para existir exige algo diverso do conhecimento: “Uma filosof ia, uma `fé` deve sempre preexistir, para que a ciência derive dela uma direção, um sentido, um limite, um método, um direito de existência. [...] Mesmo assim se trata sempre de uma fé metafísica aquela em que repousa a nossa fé na ciência” (NIETZSCHE Genealogia dela morale, loc. cit, p. 146). É impossível pensar na “produção” contemporânea como se fosse uma “produção d\de conhecimentos através da ciência. A produção de algo novo, tanto no plano econômico, quanto político ou subjetivo, exige outra coisa com respeito ao “saber”. 41 W. JAMES. La volontà di credere. Trad. It. P. Bairati. Milano: Rizzoli, 1984, p. 76.
28 capitalismo não é apenas negativa; ela reside na capacidade de orientar em vantagem própria as paixões, os desejos e a ação), pois se trata justamente de antecipar uma ação futura cujo resultado não pode ser garantido antecipadamente. O crédito é um dispositivo de poder que se exerce sobre possíveis, cuja atualização/realização é submetida a uma incerteza radical e não probabilística. Nosso mundo incerto, instável e em devir é, para usarmos as palavras de Walter Benjamin,um mundo “pobre” de experiência, porque esta, conforme nos lembra James, “está sempre em vias de mudança”. Mas é justamente a pobreza da experiência (não sabemos de que é feito o devir) que mobiliza a confiança (convicção), o desejo, o íntimo do coração humano, necessários para arriscar-se neste mundo isento de certezas. Tais forças são exaltadas e aguçadas pela indeterminação do futuro. Assim, a que nos obriga a pobreza de experiência? “A recomeçar de novo, a recomeçar de novo”, afirma Walter Benjamin. O “bárbaro” 42, que define, seja em Benjamin seja em James,o homem contemporâneo, “não vê nada de duradouro. Mas precisamente por isso vê por todos os lados caminhos [...]. Por ver caminhos por todos os lados, ele está sempre numa encruzilhada”43. A confiança transforma a pobreza de experiência em política da “experimentação”. Como agir neste mundo, como correr o risco numa ação cujo êxito é incerto, visto que não sabemos de que será feito o futuro? Para agirmos em condições de incerteza é preciso ter confiança (fé) em si mesmo. É preciso estreitar um tácito acordo consigo mesmo, com o mundo e com os outros para agir num mundo em que as “máximas cotidianas” não podem servir para dirigir a ação. O agir representa, portanto, um salto no vazio, que o “saber” e o “conhecimento” não podem de forma alguma ajudar -nos a ultrapassar. Nosso ceticismo e nossas dificuldades políticas não são cognitivas, mas éticas, pois “se vive para frente e se pensa para trás”, diz James, citando Kierkegaard. Viver para frente significa “crer no mundo e nas novas possibilidades de vida” que isso encerra, acrescenta Deleuze. A convicção/confiança é, aqui, uma força que, alegre e confiante, dá um “poder generoso”. A confiança é, deste modo, a condição de todo ato de criação,quer se trate de criação artística, quer de criação ética ou de criação política. Segundo James, o homem contemporâneo deveria estar se sentindo em casa neste mundo “bárbaro”, pois seu poder de ação não se exerce sobre os “fatos brutos”, mas sobre possíveis, que são, de acordo com definição de Guattari, uma “matéria de escolha, matéria de opção” (é necessário escolher porque se trata de “possíveis ambíguos”, de virtualidades que escondem diversas alternativas). O fato de estarmos no mundo com nossas percepções, nossas sensações e nossos conhecimentos, ainda não basta para agir. Para que possa ocorrer poder de ação, importa que o possível supere o atual (“um pouco de possível senão sufoco , diria Kierkegaard), importa que o mundo contenha o indeterminado, um tempo aberto em devir, ou seja, um “presente” que traga dentro de si bifurcações possíveis e, portanto, possibilidades de escolha, riscos existenciais. São tais possibilidades e tais bifurcações imprevisíveis que o débito se esforça por neutralizar.
4242
Os “bárbaros”, em Walter Benjamin, ou os “brutos”(tough-minded) em William James são indivíduos plurais que sabem adaptar-se a um mundo instável e incerto, a uma verdade em devir, a um mundo no qual o atual é só um dos casos do possível. Os “bárbaros”aceitam o mundo assim como é, as coisas por aquilo que são, enquanto os “sentimentais” (tender-minded) são “racionalistas” que acodem em socorro deste mundo incerto, na tentativa de o transformar num “outro mundo”, num “mundo melhor”, no qual as coisas específicas formam uma totalidade ideal que as engloba, lhes dando estabilidade e sentido. Cf. W. JAMES, Pragmatismo: un nome nuovo per vecchi modi di pensare. Trad. It. De S. Franzese. Milano: Nino Aragno Editore, 2007, pp 12-14. 43 W BENJAMIN. Esperienza e povertà. Trad. It. de F. Desideri, Millepiani ( número monográfico: Walter Benjamin. Il carattere distruttivo. L`orrore del quotidiano), n. 4, 1995, p. 12.
29 O “bárbaro” exige “do mundo qualidades com as quais possam medir -se nossas emoções e nossas tendências ativas”. O desejo e a confiança exercem-se sobre um “presente vivo, ou seja, sobre a “zona plástica” que é a “zona das diferenças individuais e das modificações sociais que elas provocam” 44.Esta zona plástica é “correia de transmissão do incerto, o ponto de encontro do passado e do futuro” .Para que o poder vivo”, presente como possível, ou seja, no mundo e nas novas possibilidades de vida que ele contém. A potência de agir está subordinada a uma afirmação existencial, a um “sim” que expressa um auto posicionamento. Pressupõe a esperança e a confiança que antecipam aquilo que ainda não está dado, que torna possível o impossível. No mundo “bárbaro” a confiança e a esperança (as paixões, as emoções, o desejo) não determinam tanto uma tomada de posição,um partido tomado com relação às convicções , mas sim uma autovalidação de novas convicções, de novos valores, de novas conexões, de novos significados e de novas formas de vida. Pelo contrário, o medo e todas as emoçõese as paixões tristes constituem uma neutralização da potência de agir45. As finanças são um terrível instrumento de controle do tempo da ação, de neutralização do possível, do “presente vivo”, da “zona de transmissão do incerto”, do “ponto de encontro do passado e do futuro”. Encerra os possíveis dentro de uma moldura definida, mesmo projetando-os num futuro. O futuro é para ela a simples antecipação do domínio e da exploração presente. Mas se superamos o limiar crítico da incerteza sobre o futuro das relações de exploração e de domínio, então o que vai cair será um presente isento de possíveis. A crise é, portanto, crise do tempo e emergência de um tempo da criação política e social, que as finanças apenas podem tentar destruir. Estamos exatamente nesta situação! A lógica do débito sufoca nossas possibilidades de ação!
Deleuze e Guattari: pequena história do débito Para procurarmos entender mais precisamente a especificidade da lógica da dívida na economia contemporânea, nos voltaremos agora para a leitura que Deleuze e Guattari fazem do desenvolvimento 44 W
JAMES. La volontà di credere, p. 261. Exemplo do modo no qual os elementos subjetivos participam da determinação da nossa potência de ação e dos eventos do mundo nos é dado por James a partir de uma situação banal ( um salto perigoso durante um passeio em montanha). “Não tendo tal experiência, não tenho provas da minha capacidade de levá -la a termo com sucesso; mas a esperança e a confiança em mim mesmo me garantem que não errarei de alvo e consentem a meus pés de cumprir o que teria sido impossível sem o empurrão daquelas emoções subjetivas. Mas suponde que, pelo contrário, as emoções de medo e de desconfiança fossem dominantes; ou ainda que , tendo lido `Ethic of believe`, sinto que seria abominável agir com base numa hipótese ainda não demonstrada, - razão pela qual, naquela altura, hesito tanto tempo que no final, exausto e tremendo, caindo num momento de desespero total, resvalo com um pé e caio no abismo. [...] Existem, portanto, casos nos quais a fé produz a própria verificação. Acreditai, e tereis razão pois vos salvareis” (Ibid., p. 120). Isso de modo algum ignifica que querer = poder, pois a subjetividade nada mais faz do que acrescentar algo ao mundo: a interpretação dos sinais que lhe dizem respeito. “Suponde que, olhando para o velho mundo e vendo quanto ele está cheio de miséria, velhice, maldade e dor e quanto seja incerto o futuro, se deixe ir às conclusões dp pessimismo, cultive em si desgosto e terror, cesse de lutar e, por fim, se suicide.De tal modo, acrescenta à massa M de fenômenos mundanos, independentes da sua subjetividade, o complemento subjetivo X, que transforma a totalidade num quadro completamente negro sem nenhum raio de bem que o ilumine”(Ibid., p. 144). “Não se diga que X é componente infinitesimal demais para mudar o caráter da imensa totalidade na qual está inserida. Tudo depende do ponto de vista da preposição filosófica em questão. Se devemos definir o universo do ponto de vista da nossa sensibilidade, o material crítico do nosso juízo faz parte do reino animal considerado quantitativamente, insignificante como ele é”(ibid, p. 121) 45
30 histórico da dívida. De fato, no trabalho de Deleuze e Guattari aparece entre os anos sessenta e setenta enquanto elemento de análise do capitalismo contemporâneo. Unindo a teoria nietzschiana do crédito no interior das sociedades arcaicas à teoria marxiana da moeda no interior do capitalismo, eles traçam uma pequena história do débito que nos leva a uma leitura não-econômica da economia, não baseada na troca, mas numa relação de poder assimétrica entre credor e devedor. Uma leitura não-econômica da economia significa que, por um lado, a produção econômica é inseparável da produção e do controle da subjetividade, nas suas diversas formas; por outro lado, - antes de responder a funções econômicas de medida, meio de troca, pagamento e poupança – é expressão de um poder de comando e de distribuição das secções e das tarefas dos governados. Nos seus cursos de 1971, 1972 e 1973, oferecidos na universidade de Vincennes, Deleuze volta às considerações desenvolvidas com Guattari no Anti-Édipo a propósito da teoria marxiana da moeda 46. Relendo-a a partir da assimetria da relação de crédito, ou seja, da economia do débito, lançam as bases para a compreensão de uma moeda na qual as funções econômicas e políticas são indistinguíveis. Deste modo,eles desenvolvem a revisão do conceito de “poder” feita por Foucault – também ele estimulado pela releitura de Nietzsche -, tornando-a instrumento operativo para a compreensão da moeda: o capital é antes de mais nada um poder de comando e de prescrição, que se exerce através do poder de destruição/criação da moeda. O Anti-Édipo e estes cursos, escritos e pensados muito antes da introdução de políticas neoliberais, nos ajudam a compreender porque o débito e as finanças – em vez de representarem patologias do capitalismo ou a avidez e a cobiça de poucas pessoas – constituem “dispositivos estratégicos” que orientamos investimentos e determinam assim as modalidades de “destruição” da velha ordem mundial capitalista e de “criação” de uma nova. Os sistemas financeiros e bancários estão no centro de uma política de destruição/criação, no interior da qual o econômico e o político se sobrepõem. Se quisermos compreender como a economia do débito, num segundo momento, reconfigura o poder, importa sobretudo esclarecer os vínculos entre econômico e político. Nos cursos de Deleuze, a crítica concentra-se nos diferenciais de poder expressos pela moeda e de que os economistas têm dificuldade de percebera existência. O capitalismo dissimula objetivamente o fato de que a moeda tenha duas funcionalidades fundamentalmente diferentes: a da renda e a do capital. No primeiro caso, a moeda é um meio de pagamento (salário, renda)que adquire uma quantidade de bens já disponíveis – impostos pela produção capitalista – e se limita a reproduzir as relações de poder e as modalidades de sujeitamento fixadas por tal produção e a ela necessários. No segundo caso, a moeda funciona como estrutura de financiamento (moeda de crédito e quase-moeda das finanças), ou seja, tem a possibilidade de escolher e de decidir as produções e as mercadorias futuras e, portanto, as relações de poder e de sujeitamento que a sustentam. A moeda como capital exerce um direito de preferência sobre o futuro. A moeda-renda nada mais faz do que reproduzir relações de poder, a divisão do trabalho e as atribuições de funções e de papeis preestabelecidos. Enquanto capita, a moeda tem, por sua vez, a capacidade de configurá-los. É o que aconteceu, de maneira exemplar, com a chegada do neoliberalismo. A moeda-débito representou a arma estratégica de destruição do Fordismo e de criação dos contornos de 46 F.
GUATTARI & G. DELEUZE. Anti-Edipo. Trad.Ital., loc cit., pp. 263-264. Neste livro os autores se detém em geral, única e injustamente, à crítica da psicanálise que ele apresenta, lá onde se desenvolve uma teoria do débito e da moeda que supera as teorizações formuladas pelos marxistas sobre o mesmo tema.
31 nova ordem capitalista mundial47. Daqui em diante, as finanças/débito já não são simples convenção , simples funcionalidade da economia real, mas representam o capital social e o “capitalista coletivo”, o “comum” da classe dos capitalistas, como já o sabiam Marx e Lenin. A posição de Deleuze prolonga a teoria de Marx, purificando-a de numerosas ambiguidades: impossibilidade de considerar uma economia mercantil enquanto tal, por ela derivar da economia monetária e da economia do débito – que distribuem os poderes, os sujeitamentos e as dominações - e, ao mesmo tempo, é subordinada a ela; impossibilidade de fazer derivar a moeda da mercadoria, e até mesmo do trabalho, pois a moeda precede de direito e de fato o trabalho, a mercadoria e a troca. É ela que os ordena, comanda, organizando a distribuição. A assimetria de poder, os diferenciais de poder que se expressam na moeda-débito valem para todas as sociedades: sociedade arcaica, sociedade antiga, sociedade feudal, capitalismo. O que atravessa e informa uma sociedade nunca é um circuito de troca, mas sim um circuito completamente diferente que não remete à aritmética. O que entra em relação de troca não são quantidades iguais ou desiguais, mas são quantidades de potências diferentes, “ordens de potência no sentido matemático da palavra potência, são potencialidades diferentes”48. A troca nunca é a primeira. Aliás, justamente porque nenhuma economia funciona a partir da troca econômica, nenhuma sociedade funciona a partir da troca simbólica. Tanto a economia quanto as sociedades são organizadas partindo de diferenciais de poder, de um desequilíbrio de potencialidades. Isso não significa- importa sublinhá-lo novamente – que a troca não tenha algum valor, mas que funciona a partir de uma lógica que não é aquela da igualdade, mas do desequilíbrio, da diferença. No interior das sociedades arcaicas, não existem formas de troca, não existem formas de equivalência [...], existe um sistema de débito e o débito sofre fundamentalmente de um desequilíbrio funcional [...]. Por exemplo, o desequilíbrio entre dar e receber objetos de consumo é funcionalmente não reequilibrado; o desequilíbrio é fundamental e constante; a coisa funciona só se houver desequilíbrio49.
É precisamente este o objeto fundamental da polêmica entre Leach e Lévi-Strauss, quando Leach afirma que o desequilíbrio é parte fundamental do sistema, parte do seu funcionamento, enquanto LéviStrauss o considera uma consequência patológica do sistema. Leach tem razão: no plano de todo fluxo, de todo fluxo que cabe num produto composto, existe um desequilíbrio fundamental relativo aos fluxos interessados. Tal desequilíbrio é continuamente recuperado através de uma cobrança de outro fluxo, de um fluxo qualificado de outra maneira. Por exemplo, o desequilíbrio entre quem distribui os objetos de consumo e quem os recebe será compensado por fluxo totalmente diferente, o fluxo do prestígio em que aquele que distribui recebe prestígio [...] Diria que, fundamentalmente, a unidade econômica nas assim chamadas sociedades primitivas consiste em combinações finitas que fazem intervir nelas e no seu funcionamento desequilibrado todos os fluxos qualificados de maneira diferente; e existe um inteiro circuito do débito que se delineia a
47 O
sistema bancário, a moeda de crédito e as finanças realizam esta dissimulação convertendo um fluxo no outro. DELEUZE. Cours du 28 mai 1973.Cf. www.webdeleuze.com/php/index.html 49 G DELEUZE, Cours du 7 mars 1972. 48G.
32 partir dos seus componentes finitos circulantes. É o regime do débito finito; e o regime dos vínculos desenha precisamente o circuito do débito finito 50
O débito infinito
A passagem do “débito finito” para o “débito infinito” que ocorre com a saída das sociedades arcaicas, constitui um acontecimento cujas consequências ainda se fazem notar, pois o capitalismo se apropriou desta passagem para produzir um homem endividado que nunca terminará de reembolsar o próprio débito. De fato,com os grandes impérios – que, centralizando e concentrando o poder em formas “estatais”, assinalam o fim das sociedades arcaicas – e com o advento das religiões monoteístas – que centralizam e concentram o poder “espiritual”- o débito não pode mais ser extinto: o sistema de combinações finitas e mutáveis ( “crio para ti um bloco finito de alianças e de parentelas”) das sociedades arcaicas, é substituído por um regime do débito infinito. O cristianismo “nos surrupiou o infinito”, o que equivale a dizer que estamos num regime social em que não se consegue acabar com nada, em que o endividamento é para a vida. O débito [...] é projetado para a associação reativa e se transforma assim em relação entre um devedor que nunca terminará de pagar e um credor que nunca terminará de consumir os juros do débito: “débito com a divindade”51
Golpe do gênio do cristianismo, pois a “santíssima trindade” inclui por sua vez o credor e o devedor. O próprio Deus que se sacrifica pela culpa do homem. O próprio Deus que ressarce a si mesmo. Deus como único que pode resgatar o homem daquilo que para o próprio homem se tornou não-resgatável – o credor que se sacrifica pelo seu devedor por amor (devemos acreditar nisso? ) – por amor pelo seu devedor52
O cristianismo, ao introduzir o infinito, reinventou profundamente o regime do débito; uma renovação de que o capitalismo posteriormente se tornará o herdeiro. No interior das formações imperiais anteriores ao cristianismo, o débito era justamente infinito, pois, em virtude do seu funcionamento “estatal” – diferentemente do que acontece nas sociedades arcaicas – não era possível reembolsá-lo; por conseguinte, não era possível reequilibrar as diferenças de poder determinadas pela troca, sempre desigual. Mas o débito continuava ainda “externo” ao indivíduo e à sua consciência. A especificidade do cristianismo consiste no fato de que se situa não só dentro de um regime do débito, mas também dentro de um regime do “débito interiorizado”. “A dor do devedor é interiorizada, a responsabilidade do débito se torna um senso de culpa” Nesta pequena história do débito de sobrevoo,Deleuze escande outra passagem fundamental: enquanto o “débito interiorizado” da religião cristã ainda tem algo uma natureza transcendente, no capitalismo tem uma existência “imanente”. O capitalismo reinventa no plano econômico aquele infinito que o cristianismo introduz na religião: o movimento de capital como automovimento do valor, do dinheiro que gera dinheiro e que, graças ao débito, leva cada vez mais em frente os próprios limites. Com o
50 Ibid. 51 G
DELEUZE, Nietzsche e la filosofia. loc.cit. p. 213. F. NIETZSCHE, Genealogia della morale, cit. p. 82.
52
33 capitalismo, a valorização capitalista e o débito se tornam processos infinitos que se alimentam mutuamente. Marx insiste na germinação através da qual o dinheiro produz mais dinheiro, mediante a qual o dinheiro se manifesta como automovimento que cresce sobre si mesmo e cujos limites são continuamente superados. O capital tem limites imanentes, mas consegue reproduzir os mesmos em escala cada vez mais extensa. Tal regime do infinito é o regime de destruição/ criação, que se expressa sobretudo na e através da criação/ destruição da moeda. Antes de chegarmos ao capitalismo propriamente dito, façamos uma digressão para a Antiga Grécia e a Idade Média a fim de verificarmos a continuidade histórica da relação débito-poder-medida que reencontramos na Genealogia da moral. No mesmo período em que é escrito Anti-Édipo, Michel Foucault desenvolve uma concepção da moeda que, como para Deleuze e Guattari, se opõe à interpretação tradicional que a faz derivar de uma economia mercantil. A moeda deriva diretamente do exercício do poder sobre o débito e sobre a propriedade, e não da troca de mercadorias. “O aparecimento da moeda está ligado à formação de novo tipo de poder, um poder que tem por razão de ser a de intervir no regime da propriedade, no jogo dos débitos e dos saldos” 53. A interpretação da origem mercantil da moeda, que a deixa confinada em funções de representação de valores e de utilidades no interior da troca, “trocando de sinal pela coisa em si, constitui uma espécie de erro radical filosófico original” 54. A instituição da medida, de que a moeda é uma expressão, não é de origem “econômica”. No curso de 1971, reencontramos a relação medida-débito estabelecida por Nietzsche, grande inspirador da teoria foucaultiana do poder: De que observamos claramente como está ligada a todo um problema de endividamento camponês, de transferência de propriedades agrícolas, de reembolso dos créditos, de equivalência entre produtos agrícolas ou produtos de fábrica, de urbanizaçãoe de instituição de uma forma estatal. No centro de tal prática da medida aparece a instituição da moeda55.
Desta complexidade de relações de poder os economistas isolam o comércio, fazendo dele, junto com a utilidade, a origem da sociedade do homem. Uma espécie de impostura “inglesa”, diria Nietzsche. Medida, avaliação e estima sempre são uma questão de poder, antes de ser questão econômica. A origem da estima, da avaliação e da medida é ao mesmo tempo religiosa e política: “Seja tirano ou legislador, quem detém o poder é o mensurador do espaço político: o mensurador de terras, de coisas, de riqueza, de direitos, de poder e de homens” 56
Os fluxos bárbaros
53
M.FOUCAULT. Leçons sur la volonté de savoir. Paris: Gallimard, 2011, p. 132 p. 128 55 Ibid. 56 Ibid., p. 127. 54 Ibid.,
34 Graças a um esplêndido comentário de Deleuze sobre o livro de Georges Duby, As origens da economia europeia, podemos aprofundara natureza de diferentes fluxos indissoluvelmente econômicos e de poder que atravessam e organizam a economia e a sociedade. As funções “econômicas” da moeda (medida, entesouramento, equivalente geral, meio de pagamento) dependem de um fluxo de outra natureza, ou seja, de outra potência. Se o dinheiro não tem sustentação de uma corrente de poder, ele rui e as funções econômicas de medida e de meio de pagamento da moeda ruem com ele. É isso que aconteceu com a economia europeia após a queda do império carolíngio, quando veio a faltar o fluxo de poder imperial. Só foi possível relançar a economia graças a um fluxo de destruição/criação, ou seja, a um poder de desterritorialização “bárbaro”, que fez literalmente que renascessem a troca e as diferentes funções da moeda. A economia mercantil não tem autonomia alguma, possibilidade alguma de existência independentemente de um fluxo de poder, de uma potência de desterritorialização. Da periferia do império, os Vickings, com suas naves, e os Húngaros com seus cavalos (fluxos de mobilidade, fluxos migratórios, fluxos nomádicos, fluxos guerreiros de potência superior à mobilidade camponesa) se lançam sobre o Império, saqueando vilas,túmulos e mosteiros. Cumprem uma espécie de perda de freios, uma libertação de dinheiro em toda Europa, que volta a inserir na economia uma nova potência monetária que a moeda, reduzida ao seu valor de aquisição ou ao seu valor de troca, tinha perdido completamente; através da destruição realizam um investimento econômico57.
As correntes menos móveis (os camponeses)submetem-se ao fluxo nômade e móvel (os guerreiros bárbaros). As correntes “bárbaras” são correntes desterritorializadas mas também desterritorializantes. Se o dinheiro – enquanto meio de pagamento, enquanto medida, etc. – é um fluxo desterritorializado, a sua força desterritorializante não deriva do dinheiro em si mesmo, mas dos fluxos destruidores/criadores transmitidos pelos bárbaros (ou, mais tarde, pelos capitalistas ou pelas forças revolucionárias). Os fluxos monetários impotentes recebem potência do fluxo nômade, migratório, móvel, bárbaro. Frente aos bárbaros, os camponeses fugiam e eram atingidos, na sua fuga, por um coeficiente “secundário” de desterritorialização que, por sua vez, fugindo, podia adquirir uma potência que não tinha no caso da agricultura estável. O poder de destruição/criação não é uma propriedade do dinheiro enquanto tal, ou seja, em poder de destruição/criação. No neoliberalismo, o dispositivo que realiza tal transformação em poder é aquele da bolsa, das finanças e do débito.
Os fluxos capitalistas
Deleuze insiste: nenhuma economia jamais funcionou como economia mercantil. Independente da formação social de que se trata, uma economia não pode circunscrever as trocas e fazer funcionar os circuitos de troca baseando-se apenas na moeda enquanto poder de aquisição, mas necessidade de ouro fluxo. " A troca é evidentemente secundária com respeito a algo de natureza totalmente diversa. Outra natureza tem um sentido muito rigoroso e significa um fluxo de outra potência"58. No capitalismo, o próprio dinheiro expressa fluxos de poder heterogêneo: o fluxo de poder de aquisição - que representa um conjunto de meios de pagamento (salário e renda) que se realizam através
57G
DELEUZE, Cours du 4 juin 1973. Ibid.
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35 da aquisição de bens já produzidos. já existentes, é estreitamente subordinado, como fluxo de poder menor, aos fluxos de financiamento - que não representam um simples "poder de aquisição", uma simples correspondência entre dinheiro e bens, mas um poder de prescrição, de ordenamento, ou seja, um conjunto de possibilidades de escolha, de decisões que se exercem sobre o futuro, ou melhor, que antecipam o que será a produção, as relações de poder e as modalidades de sujeitamento. A potência da moeda como estrutura de financiamento não deriva de um poder de aquisição maior, a força de um capitalista não depende do fato de que seja mais rico do que um operário. O seu "poder deriva do fato de que manobra e determina a direção dos fluxos de financiamento", ou seja, dispõe do tempo, enquanto decisão, escolha, possibilidade de explorar, de submeter, de comandar e de dirigir outros homens. A moeda enquanto poder de aquisição é, para Deleuze, aquilo através do qual reterritorializamos e costuramos os fluxos de trabalho com o consumo, com a família, com o emprego, e com o sujeitamento (operário, professor, homem, mulher, etc.), que são ao mesmo tempo determinação da divisão do trabalho. Por este motivo, a reivindicação salarial pode ser, como acontece na maioria das políticas públicas, um modo para aceitar e reconhecer tais sujeitamentos e tais relações de poder; mas a reivindicação salarial e o poder de aquisição também podem representar o ponto de ruptura desta reterritorialização, a recusa destes sujeitamentos, contanto que o fluxo salarial seja expressão de um fluxo de oura natureza, de outra potência. Da mesma maneira em que o capitalista deve transformar o dinheiro (meio de pagamento) em capital, o proletariado deve transformar os fluxos de poder de aquisição em fluxos de subjetivação autônoma e independente, em fluxos de interrupção da política do capital, ou seja em fluxos ao mesmo tempo de recusa e de fuga das funções dos sujeitamentos a que esta submetido. O capital tem um controle sobre o fluxo de poder de aquisição dos operários, principalmente porque é patrão de um fluxo de financiamento, a saber, é patrão do tempo, das escolhas e das decisões 59. A moeda enquanto capital tem um poder de destruição/criação de que a moeda enquanto poder de aquisição não dispõe60 O fluxo de financiamento, ou seja, o dinheiro enquanto capital, é um poder mutável, um fluxo criador, um conjunto de "sinais potência", porque empenha o futuro, porque expressa uma força de prescrição e constitui um poder de destruição/criação que antecipa aquilo que ainda não há. Os fluxos de financiamento são um poder desterritorializado e desterritorializante que não chega após a economia, mas lhe é imamente. Agem sobre os possíveis sobre as suas atualizações.
59 G.
DELEUZE. Cours du 22 février 1972: "Por mais que sejais ricos, por mais forte que seja o vosso poder de aquisição, o dinheiro enquanto poder de aquisição define um conjunto de sinais impotentes que recebem a sua potência só de outro fluxo, o fluxo do financiamento. E assim como o dinheiro enquanto poder de aquisição é regulado pelas regras da troca, assim o outro fluxo é regulado por leis totalmente diversas, ou seja, pelas leis de criação e de destruição da moeda". 60 Outra curiosidade curiosa! Documento do Banco dos Regulamentos internacionais (Bri), assinado por Claudio Borio e Piti Disyatat, critica as maiores autoridades econômicas norte-americanas por confundirem a moeda-renda com a moeda-capital. A partir desta distinção, criticam a tese da Federal Reserve, levada em frente principalmente por Bernanke, segundo a qual as condições monetárias da crise encontram sua causa principal no dinheiro fácil, numa " obstrução global da poupança", por sua vez produzida pelas sobras de conta corrente acumuladas pelos países emergentes (sobretudo a China) e recolocadas pelos Estados Unidos. A tese do excesso de poupança , que livra de qualquer responsabilidade os bancos e as autoridades monetárias europeias e norte-americanas, fundamenta-se na confusão entre a moeda como renda e a moeda como capital. "A atenção não justificada dirigida às contas correntes é sintoma da incapacidade de estabelecer uma diferença suficientemente clara entre poupança e financiamento", escrevem eles. A primeira é uma renda não consumada, enquanto o segundo representa o capital. "Os investimentos e os gastos em sentido geral exigem um financiamento, não poupanças".
36 A matéria do dinheiro, enquanto capital, é justamente o tempo, mas não tanto o tempo de trabalho, quanto o tempo como possibilidade de escolha, de decisão, de mando, ou seja, o poder de destruição/criação das formas sociais de exploração e sujeitamento. Pelo contrário, o dinheiro enquanto meio de pagamento é um "sinal impotente", porque só funciona como instrumento na aquisição de mercadorias já existentes, estabelecendo "uma relação bi-unívoca entre a moeda e uma gama imposta de produtos"61. No poder de aquisição, "o dinheiro representa um corte/cobrança possível sobre um fluxo de consumo" dado (das relações de poder dadas); na estrutura do financiamento, o dinheiro funciona como uma "possibilidade de corte-desapego" que rearticula cadeias de valorização e de acumulação do capital, reestrutura a composição da força trabalho e da população e delineia novas modalidades de sujeitamento. A especificidade do poder capitalista não deriva de uma simples acumulação de poder de aquisição, mas uma capacidade de reestrutura as relações de poder e os processos de subjetivação 62. É necessário assinalar que, dentro das crises, o saneamento dos desastres efetuados pela moeda enquanto capital (moeda "virtual", pois ainda deve realizar-se) se faz com a moeda/renda (salários e salários sociais, moeda atual). Deleuze e Guattari, ao fazerem derivar a moeda do débito, e ao afirmarem a sua "natureza" infinita - que combina o infinito com a "produção pela produção" - compreenderam logo, e por toda a duração do seu trabalho, uma das principais transformações do capitalismo contemporâneo. Esta breve história do débito deveria ser completada por uma breve história dos impostos, pois as políticas neoliberais são também, e de maneira indissolúvel, políticas fiscais. Tal intuição, que aqui podemos aprofundar, é desenvolvido sobretudo em Millepiani. Baseando-se nas pesquisas de Will, M. Foucault mostra que, em certas tiranias gregas, os impostos sobre os aristocráticos e a distribuição de dinheiro aos pobres eram meio para reconduzir o dinheiro aos ricos, para ampliar singularmente o regime dos débitos, para torná-lo ainda mais forte, prevenindo e reprimindo toda reterritorialização possível através dos dados econômicos do problema agrário. ( Como se os gregos tivessem descoberto a seu modo aquilo que os norte-americanos encontraram após o New Deal: que pesados impostos de Estado favorecem os bons negócios). Em suma, o dinheiro, a circulação de dinheiro, é o modo para tornar o débito infinito. E eis o que escondem os dois atos de Estado: a residência ou territorialidade de Estado inaugura todas as filiações primitivas à máquina despótica (problema agrário); a abolição dos débitos ou a sua transformação contábil preparam um serviço de Estado interminável que subordina a si mesma todas as alianças primitivas (problema do débito). O credor infinito, o crédito infinito substituiu os blocos de débito móveis e finitos. Há sempre um monoteísmo no horizonte do 61 F.
GUATTARI & G. DELEUZE, L'anti-Edipo, loc. cit. p. 259. Tais considerações sobre a moeda tem alcance mais geral, porque se estendem às relações de poder que não dizem respeito à economia. A produção de enunciados, como opiniões ou comunicações, não se realiza a partir de uma troca verbal que pressupõe a igualdade entre os locutores (como acontece na teoria de Jacques Rancière, por exemplo), mas a partir dos diferenciais de poder de fluxo. "O poder consiste justamente no primado que os fluxos de poder superior têm sobre os fluxos de poder inferior. Por outras palavras, considerar o poder em termos de troca e partindo do valor da troca é uma empresa tão estúpida quanto a de buscar na troca a condição de produção dos enunciados [...] É por isso que uma criação de enunciados nunca funciona a partir do circuito da troca; é por isso que, aliás, tal circuito da troca não intervém ou não vale senão com relação a um circuito de outro poder, que é o circuito da criação/destruição" (G DELEUZE, Cours du 4 juin 1973) 62