IDEIAS CENTRAIS DO TEXTO: CANÁRIO, Rui . A escola como construção histórica .In: O que é a escola ? Um olhar sociológico. Porto: Editora Porto, 2005. Capítulo 5: .pp.59-88. 1. Crise ou mutação?
Os debates recentes sobre escola (últimos trinta anos): pano de fundo: generalizado e difuso sentimento de insatisfação, ao qual as múltiplas mudanças (reformas) não tem conseguido dar uma resposta pertinente; “Sentimento de mal estar” - Diagnóstico realizado ao final dos anos sessenta – existência de uma “crise mundial da educação” – deve ser entendida como “crise da escola”;
2. Os paradoxos da escola:
Os sentimentos de frustração em relação às promessas da escola tem permanecido e alimentado o debate sobre a “crise” da escola sem que esse tenha se convertido em
uma compreensão dos paradoxos, que na metade do século XX, marcaram a expansão da escolarização: o
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1º paradoxo: por um lado: lado: o inegável triunfo da escolarização, no final do milênio, é contado como uma história de progresso e de vitórias, o que contrasta com a visão pessimista da “crise”, instalada desde os anos 70. 2º paradoxo: a “erosão” a que foi submetida a educação escolar, por via de uma crítica permanente e sistemática, foi contemporânea da hegemonia do modelo escolar que tendeu a contaminar todas as modalidades educativas, podendo-se afirmar que a educação permanece refém do escolar; e scolar; 3º paradoxo: a crescente escolarização de nossas sociedades foi concomitante com o agravamento de problemas de natureza social (guerra, ambiente, pobreza, desigualdade) que configuram autênticos impasses civilizacionais. As promessas iluministas do triunfo da razão, de que a escola é historicamente herdeira e executora e cuja concretização a ciência e a técnica deveriam facilitar, encontram um obstáculo intransponível na imaturidade política dos nossos modos de governo social; 4º paradoxo: paradoxo: a centralidade da missão de promoção da cidadania atribuída à escola, que contrasta com um fenômeno de retrocesso na participação política, nas sociedades mais ricas e escolarizadas (Europa e América do Norte);
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5º paradoxo: “a corrida à escola” iniciada no período áureo dos “trinta gloriosos” (explosão escolar dos anos 60) não mostra indícios de abrandar. A
crescente insatisfação com a escola traduz-se numa intensificação da procura e na opção por percursos escolares mais longos, como se a escola se tivesse transformado num “mal necessário”.
Os debates sobre a escola têm mostrado alguma incapacidade de procurar compreender, de forma articulada, esse conjunto de paradoxos e a confusão que freqüentemente os marca;
“Mais do que a complexidade da “crise da escola”, exprime uma crise do modo de pensar a escola”
PRIMEIRA QUESTÃO QUE SE IMPÕE: entendido como correspondente a uma patologia que rompe temporariamente um equilíbrio – é adequado para descrever a situação atual da escola. Diante do conceito de crise, que remete para problemas de natureza conjuntural, propõe-se o conceito de “mutação”, que remete para mudanças e problemas de caráter estrutural; o
será que estamos diante de uma “crise” e se esse conceito –
O QUE É ENTÃO A ESCOLA? Essa pergunta é suscetível a uma pluralidade d e respostas: RESPOSTA 1: Não há dúvidas de que estamos em presença de uma invenção histórica, contemporânea da dupla revolução industrial e liberal que baliza o início da modernidade e que introduziu, como novidades: o
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o aparecimento de uma instância educativa especializada que separa o aprender do fazer; a criação de uma relação inédita, a relação pedagógica no quadro da classe, superando a relação dual entre o mestre e o aluno; uma nova forma de socialização (escolar) que progressivamente viria a tornar-se hegemônica; Três dimensões da escola: Como forma Como organização Como instituição
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A dimensão da forma: representa uma nova maneira de conceber a aprendizagem, em ruptura com os processos de continuidade com a experiência e de imersão social que prevaleciam anteriormente; A dimensão da organização: A escola corresponde, também, a uma nova forma de organização que, tendo tornado possível a transição de modos de ensino individualizados (um mestre, um aluno) para modos de ensinos simultâneos (um mestre, uma classe), viabilizou a emergência dos si stemas escolares modernos; A Dimensão da Instituição: finalmente, a escola é uma instituição que, a partir de um conjunto de valores estáveis e intrínsecos, funciona como uma fábrica de cidadãos, desempenhando um papel central na integração social, na perspectiva durkheimiana de prevenir a anomia e preparar a inserção na divisão social do trabalho.
RESPOSTA 2: Uma outra forma de analisar a escola e tentar entender suas mutações corresponde a adotar uma perspectiva diacrônica que permite identificar três períodos distintos: das certezas”: marca o período forte da instituição, tendo como referência o designado “ Estado- educador”; Em oposição a visões naturalizadas que encaram a escola atual como uma 1.O período da “ escola
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espécie de realidade intemporal, a construção da escola como “objeto sociológico”
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supõe que a sua emergência seja historicamente situada. representando a escola, não apenas uma invenção histórica, mas uma invenção recente que corresponde a uma revolução nos modos de socialização, ou seja, a uma forma diferente de fabricar o social.(Queiroz, 1995,p.6) A construção histórica da escola moderna supõe: por uma lado: a invenção da infância; por outro lado: a emergência de uma relação social inédita: a relação pedagógica, exercida num lugar e num tempo distintos das outras atividades sociais, submetidos a regras de natureza impessoal e que definem a especificidade do modo de socialização escolar. O nascimento histórico, a consolidação e o desenvolvimento dos modernos sistemas escolares situam-se num contexto que é indissociável da dupla revolução (liberal e industrial) que marcou o final do século XVIII.
uma nova ordem política: a escola moderna significou subtrair à Igreja a tutela sobre o ensino, a partir de um sistema nacional de escolas, apoiado num corpo de funcionários libertos das tutelas locais: Uma nova ordem social: do ponto de vista social. A escola participa na construção de um novo tipo de laço social: construído em torno da relação salarial, contribuindo para acelerar o declínio do rural tradicional, a transferência da população para as zonas urbanas industriais, proletarizando-as. Uma nova ordem econômica: do ponto de vista econômico a escola participa historicamente na construção de uma sociedade industrial. A construção histórica da escola e a sua exterioridade relativamente ao mundo social conduziram ao aparecimento de uma nova categoria social: o aluno. Uma coerência dupla da escola num “tempo d e certezas” Em termos externos: a escola é consonante e está funcionalmente adaptada a uma nova ordem política, social e econômica; Em termos internos: a conflitualidade é reduzida ao mínimo e há harmonia entre escola e seus públicos. Durante esse período a escola goza de uma forte legitimidade social, na o
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medida em que é socialmente percebida como “justa”, apesar de funcionar
num registro claramente elitista (Dubet e Martuccelli); A Hegemonia da Forma escolar: A invenção histórica dos sistemas escolares modernos corresponde a instituir e tornar hegemônica uma outra forma de aprender, a partir da criação de uma relação pedagógica entre um professor e um al uno , relação essa que tende: Por um lado: a autonomizar-se das restantes relações sociais; Por outro lado: a tornar-se hegemônica, relativamente a outras modalidades de pensar e organizar as aprendizagens. Baseando-se nos princípios de: Revelação: o mestre que sabe ensina ao aluno ignorante; Cumulatividade: aprende-se acumulando informações; O trabalho escolar: entre o prazer e o enfado: Os alunos: Por aquilo que fazem: comportamentos inadequados e qualificados de o
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“indisciplina;
Por aquilo que não fazem: realização correta e diligente das tarefas escolares que lhes são pedidas; Tendem a ser, cada vez mais, encarados pelos professores como o problema principal da escola.
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A verificação recorrente de que os alunos “trabalham pouco” é, do ponto de vista
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dos professores, compreensivelmente preocupante: A aprendizagem corresponde, necessariamente, a um trabalho realizado por quem aprende e os professores, cuja missão é ensinar, confrontam-se com a impossibilidade de ensinar a quem não quer aprender (ou seja, realizar um determinado trabalho); Em síntese: o que está em causa, na organização escolar, é substituir o critério de “obrigação”
pelo
critério
da
“necessidade”,
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“constrangimento
pela
espontaneidade”, a incompatibilidade pelo entendimento, o enfado pelo prazer”.
2.O período da “escola das promessas ”: A partir de meados do século XX, é concomitante com a construção de um “Estado providência” que se assume como “estado -desenvolvimentista”; Esse fenômeno da “explosão escolar” assinala um processo de democratização de acesso
a escola que marca a passagem de uma escola elitista para uma escola de massas e a sua entrada num “tempo de promessas”;
A expansão quantitativa dos sistemas escolares estava associado a uma pano de fundo marcado pela euforia e otimismo em relação a escola, com base na associação entre mais escola e três promessas: Desenvolvimento Mobilidade social Igualdade o
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3.“Escola das incertezas ” , durante o último quarto de século, correspondendo à erosão do “Estado-providência”, à sua perda de legitimidade e conseqüente emergência de um Estado “mínimo” ou “modesto”, também designado por “Estado regulador” (Queiroz, 1955)
O desencanto com a escola amplificou-se durante o último quartel do século XX, em resultado das mudanças profundas que afetaram o setor econômico, político e social. Esse conjunto de mudanças profundas afetou a juventude de forma muito particular, nomeadamente no que diz respeito à natureza da sua relação, quer coma escola, quer com o mercado de trabalho: passou-se de uma relação marcada pela previsibilidade para uma relação em que predomina a incerteza. O Declínio do Estado Nacional: O fim ou declínio do Estado Nacional consagra uma mutação com consequências importantes no plano da atividade política. Essas transformações têm implicações importantes no campo da educação: o
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Está em causa a criação de uma nova ordem que altera e torna obsoletos os sistemas educativos concebidos num quadro estritamente nacional; As suas missões de reprodução de uma cultura e de uma força de trabalho nacionais deixam de fazer sentido numa perspectiva globalizada; A passagem de um paradigma da qualificação para o paradigma da competência representa, segundo Martuccelli (2001,p.309), uma erosão da centralidade da escola no monopólio legítimo da certificação de conhecimentos”.
A Nova questão social: O declínio do Estado nacional é coincidente com a ruptura do compromisso político que, no período fordista, sustentara o desenvolvimento do Estado-providência, o qual permitia uma articulação harmoniosa entre crescimento e a integração social; Os novos tempos marcam uma tendência inversa: o desmantelamento dos estados de bem-estar com consequências ao nível dos processos de ruptura do laço social que estão no cerne da designada o
“exclusão social”; o
As mutações no mundo do trabalho (desemprego estrutural de massas e precarização dos vínculos laborais) fazem evoluir sociedades baseadas em pleno emprego, para sociedades “doentes” do trabalho.
O efeito conjugado da expansão dos sistemas escolares e das mutações no mundo do trabalho tende a acentuar a discrepância entre o aumento da produção de diplomas pela escola e a rarefação de empregos correspondentes; Escola; do elitismo à exclusão relativa: É com o processo de democratização e massificação da escola que é possível assinalar o ponto de viragem que marca o irreversível rompimento do equilíbrio que caracterizava a “escola das certezas” e a evolução para uma dupla perda de coerência
da escola; Por um lado, essa perda de coerência é externa: na medida em que a escola foi historicamente produzida em consonância com um mundo que deixou de existir; Por outro lado, essa perda de coerência é interna: na medida em que o funcionamento interno da escola não é compatível com a diversidade dos públicos com que passou a estar confrontada nem com as missões o
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“impossíveis” que lhe são atribuídas.
Dubet e Martuccelli: defendem que o aspecto central da mutação sofrida pela escola reside na sua abertura a novos públicos e na mudança operada nos modos de seleção; Para alguns, a escola já não é uma instituição e, quer a organização escolar, quer a forma escolar, aparecem feridas de uma irreversível obsolescência; No quadro de um esgotamento do “programa institucional” (Dubet,2002), os atores
sociais nas escolas passam de uma lógica de desempenho de um papel para a de um processo de construção da sua experiência escolar, sendo a conseqüência mais importante desta mutação a de colocar como central o trabalho de construção do sentido do trabalho realizado na escola por professores e alunos; Trata-se de algo que é dificultado pela perda de legitimidade que decorre do fosso cada vez maior entre as expectativas sociais depositadas na escola e as possibilidades da sua concretização. O problema central da escola é, essencialmente, um déficit de legitimidade, o que condiciona o principal requisito para que a escola seja eficaz: a construção de um sentido positivo para o trabalho que é realizado. O déficit de sentido é algo em comum a professores e a alunos, prisioneiros, ambos e em conjunto, dos mesmos problemas e dos mesmos constrangimentos; o
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A Escola tem Futuro? O diagnóstico sobre a situação atual da escola é sombrio. O problema da escola pode ser resumido em três facetas: A escola, na configuração histórica que conhecemos: o
É obsoleta; Padece de um déficit de sentido para os que nela trabalham (professores e alunos); É marcada, ainda, por um déficit de legitimidade social, na medida em que faz o contrário do que diz (reproduz e acentua desigualdades, fabrica exclusão relativa); Não é possível advinha nem prever o futuro da escola, mas é possível problematizálo;È desejável agir estrategicamente, no presente, para que o futuro possa ser o resultado de uma escolha e não a conseqüência de um destino; Fecundo imaginar “uma outra escola”, a partir de uma crítica a que existe.
Assim, a construção de uma escola do futuro deverá se orientar por três finalidades fundamentais:
A de construir uma escola que se aprenda pelo trabalho e não para o trabalho; A de fazer da escola um sítio onde se desenvolva e estimule o gosto pelo ato intelectual de aprender – valor de uso para “ler” e intervir no mundo; A de transformar a escola em um sítio em que se ganha gosto pela política, isto é, onde se vive a democracia, onde se aprende a tolerância com as injustiças e a exercer o direito a palavra, usando-a para pensar o mundo e nele intervir. Os professores e os alunos são, em conjunto, prisioneiros dos problemas em comum. A construção de uma outra relação com o saber por parte dos alunos e uma outra forma de viver a profissão por parte dos professores têm de ser feitas a par. Construir a escola do futuro supõe, pois, a adoção do procedimento inverso ao da escola atual que visa a transformação das crianças e jovens em alunos, ou seja, para construir a escola do futuro será necessário: transformar os alunos em pessoas. Só nessas condições a escola poderá assumir-se, para todos, como um lugar de hospitalidade. o
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