SUMÁRIO 1. História da Loucura --------------------------------------------------------------- 01 1.1 Sociedades Pré-Históricas e Antigas --------------------------------------------- 01 1.2 Grécia e Roma Antigas ------------------------------------------------------------- 02 1.3 Idade Média -------------------------------------------------------------------------- 03 1.4 Renascimento ------------------------------------------------------------------------- 04 1.5 Idade Clássica ------------------------------------------------------------------------ 05 2. O Surgimento da Clínica Psiquiátrica ------------------------------------------ 08 3. O Normal e o Patológico ----------------------------------------------------------- 15 3.1 A normalidade como média estatística: análise do conto “O Alienista” ------------- 16 3.2 A normalidade como normatividade segundo G. Canguilhem ------------------ 20 3.3 Caso clínico ilustrativo “Witty Ticcy Ray” ---------------------------------------- 24 4. A Psicopatologia como um Campo de Dispersão do Saber ------------------ 27 5. Diagnóstico psicopatológico e diagnóstico estrutural ------------------------- 34 6. Semiologia Psicopatológica --------------------------------------------------------- 55 6.1 A consciência e suas alterações ------------------------------------------------------ 57 6.2 A atenção, a orientação, as vivências do tempo e do espaço e suas alterações ------------------------- 68 6.3 A sensopercepção e suas alterações ------------------------------------------------- 73 6.4 A memória e suas alterações --------------------------------------------------------- 80 6.5 A afetividade e suas alterações ------------------------------------------------------- 85 6.6 A vontade, a psicomotricidade e suas alterações ---------------------------------- 91 6.7 O pensamento e suas alterações ------------------------------------------------------ 95 6.8 A linguagem e suas alterações ------------------------------------------------------ 104 7. Considerações finais ------------------------------------------------------------------ 110
Psicopatologia crítica: guia didático para estudantes e profissionais de Psicologia
Rogério Paes Henriques
Sobre o autor: Psicólogo pela Universidade Federal do Espírito Santo (1999) — tendo sido bolsista do PET/CAPES de 1995 a 1999. Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) (2003). Doutor em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ (2008). Atuou como psicólogo estatutário da Prefeitura Municipal de Serra/ES, compondo uma equipe matricial em Saúde Mental junto à Estratégia de Saúde da Família (ESF), e como docente na iniciativa privada (20042008) e, a partir de 2009, é professor adjunto do Departamento de Psicologia (DPS) da Universidade Federal de Sergipe (UFS), onde leciona a cátedra de Psicopatologia para os cursos de Psicologia e Medicina. Tem experiência prática na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Saúde Mental e Atenção Básica. Vem se dedicando ao estudo da chamada "clínica da psicose", de uma perspectiva psicanalítica, pensando-a na sua interseção com os dispositivos da saúde. Contato:
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Poetas e romancistas são nossos preciosos aliados, e seu testemunho deve ser altamente estimado, pois eles conhecem muitas coisas entre o céu e a terra com que nossa sabedoria escolar não poderia ainda sonhar. Nossos mestres conhecem a psique porque se abeberaram em fontes que nós, homens comuns, ainda não tornamos acessíveis à ciência. (S. Freud, O delírio e os sonhos na Gradiva de Jensen).
(...) em nossa profissão, sem dúvida alguma, é muito melhor conhecer bem a obra de Sófocles, Eurípedes, Shakespeare, Dostoievsky e Machado, do que decorar síndromes, códigos e listas. O que vemos realmente todos os dias em nossos consultórios e enfermarias são frustrados Édipos, Orestes e Electras, ou prosaicos Hamlets, Karamazovs e Bentinhos, e não as siglas vazias do DSM-IV. (C. L. Bastos, Manual do Exame Psíquico)
PREFÁCIO Este livro propõe-se a suprir uma lacuna nos escritos sobre psicopatologia — cuja ênfase tecnicista voltada ao pragmatismo médico costuma, no geral, afastar os leitores mais críticos — servindo como guia didático de leitura aos estudantes e profissionais da psicologia, fomentando discussões e contemplando reflexões pertinentes a essa disciplina específica das ciências humanas. A adjetivação da expressão “psicopatologia” no título deste trabalho é meramente descritiva, referindo-se tão-somente à dimensão de criticidade que tentamos resgatar aqui, e não a mais um especialismo emergente. Nossa abordagem crítica em psicopatologia é holista (do grego holos = “todo”) sendo, portanto, incompatível com qualquer fragmentação desse saber em especialidades. Não temos a pretensão de escrever um manual de psicopatologia, ao menos por dois motivos principais: (1) este guia não substitui os textos didáticos básicos a partir dos quais redigimos cada capítulo, os quais continuam sendo leituras indispensáveis à formação ou à atuação profissional; antes, pretendemos, a partir das leituras desses textos básicos, sistematizar o debate pertinente à psicopatologia, que ocorre no campo multiprofissional da saúde mental, assinalando para os estudantes de psicologia e psicólogos os pontos cruciais que lhes dizem respeito; assim, sentimo-nos mais “portavozes” de um discurso polifônico já existente, que clama por sistematização, do que “autores” no sentido “poiético” (do grego poiesis = “criação”) do termo; além disso, (2) este não constitui um guia prático, no sentido de explicar ou compreender, mas sim de problematizar; ao invés de fornecermos respostas aos problemas pertinentes à psicopatologia com os quais os profissionais da psicologia lidam na sua prática clínica cotidiana, pretendemos, primeiro, formular tais questões de forma correta, condição indispensável para qualquer esboço de resposta que se pretenda consistente. Este guia surgiu de um esforço de compilação e construção narrativa de planos e esquemas de aulas da disciplina de Psicopatologia Geral I, preparadas e ministradas pelo autor aos cursos de graduação em psicologia, no decorrer dos seus seis anos de magistério nessa área, e como tais, refletem as idiossincrasias (positivas e negativas) do registro de transmissão oral. Convidamos, portanto, o leitor à apreciação deste trabalho sem a garantia de que seu esforço será recompensado no final, cabendo a ele julgar sua pertinência e relevância. De antemão, agradeço às leituras atentas e críticas. Aracaju, 30 de março de 2010.
Aos meus alunos e ex-alunos, que exigem ou exigiram de mim este esforço de poesia.
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1. História da Loucura •●•
A
história da loucura não se resume à história da “doença mental”.
Enquanto a doença mental, por se tratar de uma concepção médica
moderna acerca da loucura, possui pouco mais de 200 anos de história, a loucura, entendida como a experiência trágica da desrazão, acompanha a humanidade desde seu surgimento. Foi, portanto, relativamente recente, na virada do século XVIII para o XIX, que a loucura ganhou status de patologia mental, tendo sido apropriada pela medicina moderna. Retraçaremos a seguir um panorama das diversas e divergentes concepções históricas da loucura no mundo ocidental, até sua conceitualização pelo saber médico como “doença mental”. Utilizaremos aqui o método genealógico, desenvolvido por Michel Foucault ao longo de sua obra, para retraçar em linhas gerais a historiografia da loucura, destacando as descontinuidades históricas e as rupturas conceituais, em oposição à historiografia linear e triunfante, de base evolucionista positivista. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que Pinel operou uma escansão, um corte na evolução histórica ao designar a loucura como “alienação mental”; por mais que se procure precursores nobres a Pinel, este instaurou uma significação para loucura até então inédita no saber ocidental; depois de Pinel, não se retorna mais a Hipócrates, Galeno, a medicina árabe medieval ou à filosofia cartesiana para explicar a loucura; em suma: Pinel inaugurou uma discursividade sobre a loucura cujos desdobramentos ainda hoje nos perpassam. Passemos, então, a essa historiografia. 1.1. Sociedades Pré-Históricas e Antigas Nem sempre a loucura foi vista como doença mental. As sociedades préhistóricas e antigas possuíam uma concepção sobrenatural da loucura; consideravam-na obra de maus espíritos, atribuindo sua causalidade à possessão1. Fósseis de crânios 1
Não sugerimos aqui que o fenômeno da possessão se reduza ao fenômeno da loucura, tampouco que todos os ditos “possuídos” seriam, de fato, loucos. Isso implicaria trabalhar com uma concepção histórica linear e triunfante; como se os antigos, presos numa rede de significações primitivas de um mundo ainda encantado, vissem equivocadamente como sobrenatural (possessão), aquilo que a Modernidade, esclarecida pelas luzes da ciência positiva, desvelaria na sua essência, enquanto uma patologia (loucura
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humanos perfurados do período Neolítico ou Idade da Pedra Polida2 foram encontrados, fornecendo indícios de que tais perfurações decorriam de psicocirurgias primitivas, chamadas trepanações, que visavam a exorcizar os maus espíritos do corpo do possuído. Os antigos escritos hebraicos, chineses e egípcios também atribuíam a loucura à possessão. De acordo com essa concepção, o tratamento freqüente proposto para a loucura era o exorcismo, realizado por um xamã ou sacerdote, que podia recitar preces, dialogar com os maus espíritos, insultá-los, executar magias, produzir ruídos altos, fazer a pessoa beber poções amargas e, até mesmo, flagelar ou deixar a pessoa passar fome. 1.2. Grécia e Roma Antigas Na Grécia e Roma Antigas (500 a. C. a 500 d. C.), essas concepções sofreram mudanças. Explicações naturais da loucura, fornecidas por filósofos e médicos gregos, passaram a mesclar-se às explicações sobrenaturais tradicionais. Hipócrates de Cós (460-377 a. C.), considerado o pai da medicina, compreendia a loucura como uma doença natural, destituindo-a de implicações religiosas; considerava o cérebro como o verdadeiro centro da atividade mental. Segundo sua fisiologia, as doenças resultavam de um desequilíbrio dos quatro fluidos (ou humores básicos) que circulavam pelo corpo: bile amarela, bile negra, sangue e fleuma. Acreditava que o excesso corporal de “bile negra” (melaina kólos, em grego) causasse a “melancolia”, forma discreta e retraída de loucura; da mesma forma, a mania, forma exuberante e furiosa de loucura, seria o resultado do excesso de bile amarela circulante; e assim por diante. Hipócrates acreditava que o tratamento das formas de loucura passava necessariamente pelo tratamento das patologias físicas subjacentes. Propunha, por conseguinte, a restituição do equilíbrio dos fluidos corporais; por exemplo, o excesso de bile negra poderia ser reduzido através de uma vida tranqüila, dieta vegetariana, temperança, exercícios, celibato e, até mesmo, sangrias. Tal visão foi compartilhada pelos filósofos gregos Platão (427-347 a. C.) e Aristóteles (384-322 a. C.), sendo mais tarde aprimorada por influentes médicos gregos como “doença mental”). Concordamos com Foucault quando este autor assinala que o complexo problema da possessão requer uma história das idéias religiosas, e não uma história da loucura (1968, p. 75); contudo, uma história da loucura requereria, a nosso ver, uma analogia com a possessão — nosso método é, antes, comparativo, que redutivo. 2 Último período pré-histórico que se inicia em 8.000 a. C. e termina com o advento da escrita.
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e romanos, cujo mais importante foi Galeno (131-200 d. C.). Daí esta escola ter ficado conhecida como “hipocrático-galênica”. Galeno distinguia três faculdades diretivas da mente: a imaginativa, a racional e a mnemônica. Acreditava que alterações ou a perda dessas faculdades dariam origem às diferentes formas de loucura: frenitis (loucura febril), letargia, melancolia, mania, moria (perda do senso crítico) e delírio. Vale ressaltar que não se tratou da substituição de uma concepção da loucura “primitiva” por outra supostamente mais avançada, mas sim da sobreposição de duas concepções explicativas distintas (religiosa e proto-científica) que passaram a coexistir a partir de então. Não custa lembrar que a medicina greco-romana era reservada somente aos cidadãos, excluindo a plebe, ou seja, a maioria absoluta da população, da sua clientela. Ainda hoje, em pleno século XXI, concepções científicas da loucura convivem com explicações religiosas, sobretudo, a partir do fenômeno atual da proliferação indiscriminada de seitas neopentecostais no Brasil e da difusão em massa da noção de “encosto” 3. 1.3. Idade Média Com o declínio do antigo Império Romano, a demonologia sofreu um paulatino ressurgimento, à medida que o poder do clero aumentava na Europa. Na chamada Idade Média ou Idade das Trevas (500-1350 d. C.), o louco era a personificação viva do mal, que comprovava a influência de Satã. Embora alguns cientistas e médicos ainda insistissem em explicações e tratamentos naturais, sua visão tinha pouco peso na atmosfera demonológica reinante naquela época4. A Idade Média foi um período conturbado de guerras, insurreições urbanas e pestes. As pessoas culpavam o demônio por tais perturbações e temiam ser possuídas por ele. Conseqüentemente, a incidência da loucura aumentou vertiginosamente. Havia 3
A noção de “encosto” no Brasil assume atualmente as proporções de uma Culture-Bound Syndrome ou “Síndrome Ligada à Cultura” (APA, 2002, p. 837-842), que os clínicos não devem desprezar. Estudos de etnopsiquiatria conduzidos por François Laplantine, Geza Róheim, Georges Devereux e Tobie Nathan apontaram para a importância da dimensão cultural enquanto variável indispensável dos processos diagnóstico e terapêutico. 4 Trabalhamos aqui com a idéia foucaultiana de “episteme” (Foucault, 2007; 2008), segundo a qual, certos contextos históricos privilegiariam determinadas formas de pensar e de sentir, que moldariam nossa apreensão e nosso conhecimento do mundo, ampliando-a. Na Idade Média, as condições discursivas favoreceram a constituição de uma Weltanschauung (visão de mundo ou cosmovisão) religiosa. Na contemporaneidade, por sua vez, as condições discursivas privilegiam uma Weltanschauung biológica (Kurz, 1999) que redefine o estatuto do sujeito em termos cerebralistas (Ehrenberg, 2004). Esse conceito foucaultiano se aproxima da noção de “jogos de linguagem”, cunhada por Ludwig Wittgenstein (2005), e de “paradigma”, de Thomas Kuhn (2003).
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explosões de loucura coletiva em que grande número de pessoas partilhava delírios e alucinações. Surgiu naquela época, na Itália, a música/dança “tarantela” como antídoto ao “tarantismo” – possessão por um tipo de aranha chamada tarântula. Data também daquela época a “licantropia”, crença na possessão de homens por lobos, chamados “lobisomens”. Durante esse período, há o ressurgimento das técnicas de exorcismo, a cargo dos clérigos católicos, que podiam suplicar, entoar cânticos, rezar, administrar água benta ou bebidas amargas; caso tais técnicas não funcionassem, podiam, ainda, insultar o demônio e atacar o seu orgulho ou, em casos mais extremos, fazer o indivíduo passar fome, flagelá-lo, escaldá-lo ou estirá-lo. Vale ressaltar que a maioria dos hospitais ocidentais do Medievo comportava leitos reservados aos loucos (de fato, não passavam de jaulas). Ou seja, mesmo na Idade Média havia espaço para as curas médicas da loucura. Todavia, isso se limitava às formas de loucura tidas como curáveis (frenesis, episódios de violência ou acessos melancólicos). No geral, a loucura possuía uma grande extensão, sem suporte médico. 1.4. Renascimento Durante a fase inicial do Renascimento (que compreende os séculos XV e XVI), período de florescimento cultural e intensa atividade científica na Europa, a visão demonológica da loucura vai sendo paulatinamente substituída pela visão médica grecoromana (escola hipocrático-galênica), preservada para a posteridade e aprimorada pela medicina árabe, cujos principais representantes foram Avicena (séc. XI) e Averróis (séc. XII). O século XV testemunhou a abertura dos primeiros estabelecimentos reservados aos loucos no Ocidente, primeiramente, na Espanha muçulmana (Saragossa), em 1409, e posteriormente na Itália. No século seguinte, tais estabelecimentos se expandiriam para a Inglaterra, Áustria, França etc. Contudo, as práticas asilares são pontuais; a loucura é experimentada em estado livre, isto é, ela circula, faz parte do cenário e da linguagem comuns; é, para cada um, uma experiência cotidiana que se procura mais exaltar do que dominar, como o ilustram os loucos célebres na França, no início do século XVII.
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Vale ressaltar que, naquele período, a demonologia continuava em alta, como o comprova o manual de caça às bruxas Malleus Maleficarum5, escrito em 1484 por dois monges inquisidores, espécie de protótipo dos modernos manuais nosográficos. 1.5. Idade Clássica (séculos XVII e XVIII) Em meados do século XVII, uma brusca mudança acontece; o mundo da loucura vai se tornar o mundo da exclusão. Criam-se em toda a Europa estabelecimentos para internação não somente dos loucos, mas de todos os indivíduos desviantes com relação à moral burguesa em ascensão: inválidos pobres, mendigos, desempregados, portadores de doenças venéreas, libertinos etc. Na França, criam-se os Hospitais Gerais (Bicêtre e La Salpetrière) com este propósito, cujo correspondente na Inglaterra eram as Workhouses. Também os antigos estabelecimentos para loucos, que haviam surgido no Renascimento, alinharam-se à proposta da chamada “Grande Internação”. Tais novos estabelecimentos não têm vocação médica alguma; trata-se apenas de depósitos humanos que visavam a separar os que podem ou não fazer parte da ascendente sociedade capitalista. No mundo burguês em processo de constituição, o pecado maior passa a ser a ociosidade, e não mais o orgulho e a avidez, como na Idade Média. O critério de exclusão (dos residentes nas casas de internamento) é a incapacidade de tomar parte na produção, na circulação ou no acúmulo de riquezas. Tanto que, nesses estabelecimentos, reina o trabalho forçado – conforme o sugestivo nome dado a eles na Inglaterra (Workhouses) o atesta — como forma de expiação moral. A loucura, durante tanto tempo manifesta e loquaz, entra num tempo de silêncio no qual permanecerá por um longo período, ao menos até Freud, que reconheceu na desrazão uma linguagem comum capaz de comunicar algo. Durante seu período de silêncio, a loucura é despojada de sua linguagem e, se se pôde continuar a falar algo dela, ser-lhe-á impossível falar acerca de si mesma. A chamada Grande Internação não duraria mais que um século. Na metade do século XVIII, dentro do ideário revolucionário francês pautado nos princípios de liberdade e igualdade, surgem denúncias políticas dos seqüestros arbitrários e críticas
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KRAMER, H & SPRENGER, J. O martelo das feiticeiras. São Paulo: Record, 1996.
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dirigidas à forma tradicional de assistência, que geram um pavor popular pelas casas de internamento, consideradas focos do mal. No fim do século XVIII, os reformadores franceses quiseram suprimir o internamento como símbolo da opressão do Antigo Regime. Como à loucura, por tanto tempo ausente do cenário social, já se associara o estigma da periculosidade, as antigas casas de internamento passaram a ser reservadas somente aos loucos. O internamento tomou, então, uma nova significação: tornou-se medida de caráter médico, justificandose como uma prática de tratamento; da mesma forma, a loucura ganhou uma nova concepção, tornando-se objeto do saber médico a partir de sua conceitualização como doença mental. A possibilidade de aglutinar os loucos em um mesmo espaço para conhecer e tratar suas loucuras permite o nascimento da psiquiatria. Pinel, na França, Tuke, na Inglaterra, Chiarugi, na Itália, Wagnitz e Riel, na Alemanha, todos médicos reformadores do hospício que humanizaram o tratamento dispensado aos loucos (é bem conhecido o gesto romântico de Pinel de libertar os loucos de suas antigas contenções físicas), inserindo suas loucuras numa nosografia6 médica.
SELETA BIBLIOGRÁFICA: • (APA) AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION [2000] Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Quarta Edição – Revista (DSM-IV-TR). Porto Alegre: Artmed, 2002. • COMER, R. Psicologia do Comportamento Anormal: passado e presente. In: Psicologia do Comportamento Especial. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 2003, p. 01-17. • DALGALARRONDO, P. Civilização e loucura: uma introdução à história da etnopsiquiatria. Rio de Janeiro: Editora Cultura Médica, 1989.
• EHRENBERG, A. Le sujet cérébral. Esprit, 309:130-155, 2004. • FOUCAULT, M. [1954] A constituição histórica da doença mental. In: Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1968, p. 39-53. • ________. [1961] História da Loucura na Idade Clássica. 6 ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. • ________. [1966] As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2007. • ________. [1969] Arqueologia do saber. São Paulo: Forense Universitária, 2008. • KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2003. • KURZ, R. A biologização do social. In: Os últimos combates. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 191-197.
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A nosografia é uma nomenclatura decorrente de uma classificação, ou seja, um conjunto de termos particulares para a descrição de doenças em medicina; associa-se à “nosologia”, que é o estudo sistemático e elucidativo dessas doenças.
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• LAPLANTINE, F. Aprender etnopsiquiatria. São Paulo: Brasiliense, 1994. • WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. Petrópolis: Vozes, 2005.
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2. O Surgimento da Clínica Psiquiátrica •●•
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m 1793, Philippe Pinel, médico, filósofo e ideólogo da Revolução Francesa, tornou-se diretor de Bicêtre, um asilo parisiense para homens.
Lá, ele mandou desacorrentar os loucos de suas correntes, gesto mítico que se confunde com o nascimento da psiquiatria. A complexidade do gesto de Pinel se reflete nas opiniões díspares a seu respeito: se por um lado, como assinalam Gauchet & Swain (1980), ele teria sido um libertário, ao devolver a humanidade aos loucos, concebidos e tratados até então como bichos, por outro, como assinala Foucault (1968; 2000), ele teria sido um carcereiro, ao inscrever suas loucuras numa nosografia, aprisionando-os ao saber médico. Pinel esquadrinha o Hospital Geral, classificando e agrupando os diversos tipos de loucura em classes, gêneros e espécies, com base em seus sinais e sintomas; seguia o método da história natural, segundo o qual conhecer é classificar, separar e agrupar os diferentes fenômenos em ordens aproximativas. Escreveu o Tratado Médico-Filosófico sobre a Alienação Mental, primeira incursão médica sobre a loucura. Inaugurou a clínica psiquiátrica fundando-a como uma disciplina autônoma, uma pura ciência da observação. Conhecer a loucura era observar, descrever e classificar aquilo que às vistas do alienista era estranho ao padrão moral; colocando-se no lugar do cientista imune às influências sócio-culturais, era ele quem determinava o que é normal e o que é patológico. Pinel concebia a loucura como “alienação mental”. Sua concepção revolucionou a idéia que se tinha dela até então. Considerava o louco não como desarrazoado, à maneira cartesiana, mas sim como um alienado de sua própria razão; por sua vez, a loucura não era mais concebida como o outro da razão (desrazão), mas como um distúrbio da paixão no interior da própria razão (alienação). Voltando à discussão entre Gauchet & Swain (op. cit.) e Foucault (op. cit.), se, por um lado, Pinel definiu um estatuto patológico para a loucura, medicalizando-a e, por conseguinte, silenciando-a, por outro, abriu um campo de possibilidades terapêuticas para ela, pois, até então, a loucura era considerada uma natureza externa ao humano, estranha à razão e, portanto, incurável. Em termos práticos, Pinel instituiu a possibilidade de tratamento e cura da loucura. Se o louco é um alienado de sua razão, e não um desarrazoado, há um resquício de razão nele. É possível se apegar a este resto de razão e resgatá-la no seu todo, curando o alienado. Propôs, por conseguinte, o “tratamento moral” da loucura, espécie
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de método de reeducação pedagógica centrado na autoridade do médico, que tinha como premissa básica o isolamento terapêutico dos loucos nos hospícios. Como ideólogo da Revolução, Pinel justifica a privação da liberdade dos loucos nos hospícios como um gesto libertário; na verdade, a alienação mental nada mais é que o estado de privação da liberdade individual, de perda do livre-arbítrio, sendo o alienista, por intermédio do tratamento moral, o único que poderia restituir aos loucos sua liberdade subtraída pela alienação7. Pinel atribuía a loucura às causas de ordem moral (psicológicas e/ou sociais), tais como: as paixões intensas, muito contrariadas e prolongadas; os excessos de todos os tipos, as irregularidades dos costumes e dos hábitos de vida, assim como a educação perniciosa, fosse por brandura ou dureza excessivas. Resgatando a tradição hipocrático-galênica, Pinel concebe a loucura como um desequilíbrio do organismo, um distúrbio de suas paixões, entendendo estas como modificações desconhecidas da sensibilidade física e moral. Haviam as paixões debilitantes ou opressivas (desgosto, ódio, temor, saudades, remorsos, ciúmes, inveja etc.) e as paixões alegres (alegria, orgulho, amor, compaixão etc.). As duas ordens de paixões poderiam ser perfeitamente normais, se em grau e intensidade adequados; porém, se em proporções excessivas, exageradas, desmedidas, poderiam ocasionar alienação. Contrariando a anátomo-clínica e sua obstinada busca das lesões subjacentes às doenças através das dissecações dos cadáveres, paradigma médico da época, Pinel negava qualquer causalidade física à loucura (alienação mental). Sendo esta predominantemente um distúrbio das paixões, afirmava ser possível curá-la (por intermédio do tratamento moral) reeducando a mente alienada, indo de encontro ao dogma da incurabilidade da loucura e ao niilismo terapêutico em voga. Pinel fundou a “medicina mental” ou “alienismo” como uma medicina especial, já que ele não se encaixava ao modelo da anátomo-clínica. Consolidando o projeto alienista, Pinel retorna à clínica geral, deixando seu legado a Esquirol.
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Esta idéia da internação como condição sine qua non para a cura - que originaria o chamado “modelo asilar” de tratamento da loucura – vigoraria por aproximadamente um século e meio, norteando a psiquiatria até meados do século XX, ocasião na qual uma série de experiências terapêuticas alternativas ao asilo (Comunidades Terapêuticas, Psiquiatria de Setor, Psiquiatria Comunitária, Psiquiatria Democrática Italiana etc.) viria questionar a natureza segretativa e iatrogênica das práticas psiquiátricas até então vigentes. Tal movimento ficaria conhecido como “Reforma Psiquiátrica” e originaria o campo multiprofissional da Saúde Mental.
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Esquirol foi o mais fiel e o mais ortodoxo dos discípulos de Pinel e sua obra representa a aplicação, a ilustração e o aprofundamento das idéias de seu mestre. Por intermédio de seu ensino, ele foi o principal difusor das idéias pinelianas. Dentre seus seguidores, destacam-se Georget, Parchappe, Ferrus, Delasiauve, Baillarger, Leuret, Moreau de Tours etc. As concepções de Pinel, de Esquirol e de seus seguidores, reinaram absolutas até o último quarto do século XIX. Num primeiro momento, a prática alienista veio corroborar as assertivas de Pinel, Esquirol e seguidores, pois era o tratamento moral, e não os tratamentos físicos, que traziam resultados positivos para os alienados. Todavia, num momento posterior, o tratamento moral dá seus primeiros sinais de declínio, uma vez que a superlotação dos asilos praticamente impossibilitava uma observação caso a caso, fazendo-o perder sua eficácia. Apesar disso, e diante da ausência de um tratamento alternativo, ele continuaria sendo amplamente adotado, embora com algumas limitações8. Não é nossa intenção aqui nos aprofundar nos meandros históricos do campo psiquiátrico, porém, valeria à pena ressaltar uma descoberta que fundaria o pólo somático em psiquiatria. Tal descoberta inaugurou uma tensão bipolar no campo psiquiátrico entre os “psiquistas” e os “somatistas”, que perdura até hoje: no decorrer da história, ora determinadas condições discursivas favorecem a expansão das teses psicogênicas, como no pós-II Guerra Mundial, ora das teses somatogênicas, como na atualidade. Antoine-Laurent Bayle, em sua tese de doutorado em medicina de 1822, atribuía os sintomas psiquiátricos da neurossífilis à inflamação crônica das meninges. Bayle circunscreveu, assim, pela primeira vez uma organicidade intrínseca ao que se considerava na época uma doença mental, estabelecendo que, quando a doença subjacente piorava, os sintomas tomavam o mesmo rumo (doutrina da paralisia geral progressiva). De fato, a originalidade da descoberta de Bayle ficaria encoberta por algum tempo devido à tese alienista, hegemônica naquela época, que considerava as “lesões encontradas na autópsia dos alienados (...) quer como a expressão de moléstias independentes, quer como complicações ou conseqüências da loucura, bem longe de 8
Reconhece-se a herança do tratamento moral em qualquer prática de infantilização e culpabilização/punição do louco, ainda comuns na psiquiatria e, mesmo, no campo mais amplo da Saúde Mental.
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serem as causas dela” (Bercherie, 1989, p. 59), indo de encontro à tese de Bayle. Diante da rejeição quase unânime de suas idéias — sem dúvida, tratava-se de idéias progressistas para a sua época —, Bayle abandonaria a psiquiatria, decepcionado. “(...) seriam necessários vinte anos para que sua descoberta começasse a ser reconhecida, e trinta anos para que surtisse efeito, provocando uma reviravolta completa na ciência das doenças mentais” (idem, p. 83). Se a descoberta de Bayle fundou o pólo somático em psiquiatria, o conceito de “degenerescência” de Morel o afundou. Em seu Traité des dégénérescences, de 1857, Morel cunhou o conceito de “degenerescência” no intuito de explicar a “incessante progressão” na Europa de males, tais como a paralisia geral, a epilepsia, o suicídio, a criminalidade etc. Morel tentava identificar as “forças subjacentes” que moldavam o destino da condição humana. Ele notou que seus pacientes recapitulavam “nos seus corpos a patologia orgânica característica das gerações precedentes” (apud Shorter, 1997, p. 94). Segundo sua crença, uma característica adquirida do meio, como uma tuberculose, por exemplo, poderia ser transmitida hereditariamente à descendência, culminando, três ou quatro gerações seguintes, numa demência seguida de esterilidade. Tomando emprestado um termo da zoologia comparativa de sua época, Morel decidiu denominar esta suposta cronificação mórbida da descendência familiar com o termo “degenerescência”. Esta última extrapolaria o âmbito familiar, contaminando a porção saudável da sociedade. Portanto, era preciso extirpá-la em sua base, ou seja, aplicando uma política de ação que a seqüestrasse do mundo social. Assim, estavam lançadas as bases “científicas” da eugenia. A teoria da degenerescência moreliana conheceu grande sucesso mundial. Morel possuía simpatizantes em vários países que difundiam sua doutrina à comunidade psiquiátrica, dentre os quais se destacam Richard von Krafft-Ebing, na Europa Central, Valentin Magnan — que se tornou o porta-voz da teoria da degenerescência na França após a morte de Morel —, e Henry Maudsley, na Inglaterra. Durante a belle époque, a teoria da degenerescência saiu de moda entre os psiquiatras. A degenerescência tornou-se um objeto de piadas dentre os adeptos da então nascente psicanálise. Interpretações não-biológicas — tal como a abordagem fenomenológica de Karl Jaspers, que enfatizava a empatia com a vivência subjetiva dos pacientes psiquiátricos e a “compreensão” da loucura — ganharam a cena no campo psiquiátrico no início do século XX.
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Assim, no início da I Guerra Mundial, a degenerescência estava desacreditada dentro da psiquiatria. No Entre-Guerras, os psiquiatras que continuavam adeptos de tal teoria eram mal vistos pelos seus colegas de profissão. Contudo, o estrago já estava feito e a doutrina da degenerescência, extrapolando o campo psiquiátrico, conheceria sua radicalização com a “solução final” proposta pelo nacional-socialismo hitlerista. Seria necessário o desenvolvimento da psicofarmacologia e o advento da genética moderna e das neurociências para que a vertente somática retomasse sua credibilidade no campo psiquiátrico, porém, ganhando certa desproporcionalidade (na linhagem do que Karl Jaspers designou de “mitologia cerebral”) na atualidade9. O fundador da clínica psiquiátrica moderna foi Emil Kraepelin (1856-1926)
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Nascido na Alemanha, em 1856, ou seja, no mesmo ano que Freud, Kraepelin, ex-aluno de Wundt (considerado o pai da psicologia moderna), desenvolveu sua obra fundadora da psiquiatria contemporânea em paralelo com a nascente psicanálise. Seu gigantesco trabalho descritivo e classificatório constituiria uma grande síntese das conquistas semiológicas da psiquiatria do século XIX, como também estabeleceria um sólido sistema nosográfico, ao qual se referenciariam todas as principais correntes psiquiátricas posteriores. Mesmo a obra freudiana, em vários momentos, supõe o recorte de Kraepelin do campo psicopatológico, notadamente no que se refere à delimitação das psicoses. O essencial de seu pensamento foi publicado em seu famoso Tratado de Psiquiatria, que conheceria oito edições entre os anos de 1883 e 1915. Cada nova edição comportava, em geral, uma revisão da doutrina e um remanejamento da classificação. Seu método de abordagem dos fenômenos psicopatológicos era essencialmente clínico-descritivo e classificatório. Trabalhando e morando por vários anos na clínica psiquiátrica da Universidade de Heidelberg (que, por sua iniciativa, viria a se tornar, em 1918, o Instituto Alemão de Pesquisas Psiquiátricas), Kraepelin tinha acesso direto à observação de seus pacientes, não apenas através de consultas isoladas, mas podendo acompanhá-los ao longo do tempo. Dessa forma, a perspectiva longitudinal e evolutiva acabou por se tornar uma exigência metodológica da psicopatologia kraepeliniana. Descrever uma entidade mórbida era descrevê-la
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Ver (Serpa Jr., 1998). Parte do texto, a seguir, foi extraída de PEREIRA (2001).
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minuciosamente no tempo e em sua evolução, determinando, por fim, as características de seu estado terminal. Uma dimensão importante da proposta classificatória e sistematizadora de Kraepelin diz respeito ao estatuto das categorias descritas. Para o psiquiatra alemão, tratava-se inquestionavelmente de se delimitarem entidades mórbidas, ou seja, doenças mentais em um sentido médico estrito enquanto entidades nosológicas clínicoevolutivas. Dessa forma, a seu ver, uma nosografia psiquiátrica deveria ter por eixo metodológico a preocupação etiológica, ou seja, as entidades descritas deveriam corresponder precisamente a recortes nosológicos específicos, segundo as causas implicadas. É assim que encontramos em suas classificações a divisão entre doenças de causa “endógena” e doenças de causas “exógenas”, “doenças mentais congênitas” e “doenças mentais adquiridas” etc. O conceito de “endógeno” foi introduzido na medicina em 1892 pelo célebre neurologista alemão Moebius, que mereceu um estudo biográfico escrito pelo próprio Kraepelin. Importado da botânica, esse termo deve justamente ser distinguido de “somatógeno”, referindo-se, antes, a uma disposição individual resultante da combinação de fatores físicos e mentais. A grande contribuição de Kraepelin à nosografia psiquiátrica foi sua divisão clássica das chamadas “psicoses endógenas” em esquizofrenias (catatônica, hebefrênica e paranóide), paranóia e psicose maníaco-depressiva. Apesar das constantes mudanças de nomenclatura, essa sistematização nosográfica kraepeliniana das psicoses permanece atual, como o comprovam os manuais contemporâneos, CID-10 (OMS, 1993) e DSMIV-TR (APA, 2000), à exceção das psicoses afetivas (melancolia e/ou mania) terem deixado o grupo dos transtornos psicóticos passando a elencar os transtornos do humor; cabe ainda ressaltar que os idealizadores do DSM, chefiados pelo psiquiatra norteamericano Robert Spitzer, reivindicam uma filiação metodológica kraepeliniana (Shorter, 1997), contudo, paradoxalmente, abriram mão do eixo que a caracterizava, a preocupação etiológica, em prol de uma abordagem exclusivamente sindrômica (discutiremos as implicações práticas dessa opção metodológica no cap. 5 adiante).
SELETA BIBLIOGRÁFICA: • AMARANTE, P. O paradigma psiquiátrico. In: O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996, p. 39-67.
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• (APA) AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION [2000] Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Quarta Edição – Revista (DSM-IV-TR). Porto Alegre: Artmed, 2002. • BERCHERIE, P. Os fundamentos da clínica: história e estrutura do saber psiquiátrico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989. • COMER, R. Psicologia do Comportamento Anormal: passado e presente. In: Psicologia do Comportamento Especial. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 2003, p. 01-17. • FOUCAULT, M. [1954] A constituição histórica da doença mental. In: Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1968, p. 39-53. • ________. [1961] História da Loucura na Idade Clássica. 6 ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. • GAUCHET, M. & SWAIN, G. La pratique de l’esprit humain. L’instituition asilaire et la revolution démocratique. Paris: Gallimard, 1980. • KRAEPELIN, E. [1904] Trattato di Psichiatria. 7 ed. Milano: Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi, s/d. • (OMS) ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10: descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. • PEREIRA, M. E. C. Introdução à “Melancolia” de Emil Kraepelin. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre: os nomes da tristeza, Porto Alegre, ano IX, n. 21, p. 165-169, dez. 2001. • SERPA JR. O. D. Mal-Estar na Natureza: estudo crítico sobre o reducionismo biológico em psiquiatria. Rio de Janeiro: Te Corá, 1998. • SHORTER, E. A History of Psychiatry: from the Era of the Asylum to the Age of Prozac. New York: John Wiley and Sons, 1997.
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3. O Normal e o Patológico •●•
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os inúmeros critérios de normalidade existentes, pelo menos, três deles se destacam: o subjetivo, o estatístico e o qualitativo. O critério subjetivo associa a doença ao sofrimento, logo, está doente quem se
sente doente; a crítica que se faz a tal critério é que, por exemplo, num quadro eufórico de mania, o sujeito sente-se extremamente bem, potente, disposto, enérgico, sem, no entanto, apresentar-se saudável. Pelo critério estatístico ou quantitativo o normal é sinônimo de comum, freqüente, ou mais próximo à média; todavia, a ansiedade leve e a cárie são muito freqüentes na população brasileira e nem por isso podem ser considerados saudáveis, da mesma forma que um alto Q. I., apesar de infreqüente, não pode ser considerado patológico. Já o critério qualitativo define que o normal é aquilo adequado a determinado padrão funcional considerado ótimo ou ideal; as críticas a esse critério recaem no relativismo cultural que ele implica, haja vista basear-se em normas sócio-culturais arbitrárias o que, a nosso ver, não constitui um problema em si, a não ser que se parta de uma concepção universalista da doença, transcultural e transhistórica, com a qual não compartilhamos. Curioso que o manual nosográfico norte-americano, o DSM-IV-TR, reserva um apêndice exclusivo para classificar as “Síndromes Ligadas à Cultura” (APA, 2002, p. 837-842), descrevendo, nesse suplemento temático, as “doenças étnicas” que afetam culturas tidas como exóticas e que não geram um código diagnóstico, enquanto esse mesmo manual codifica o fenômeno da “personalidade múltipla”, uma autêntica “doença étnica” da cultura norte-americana, como um transtorno específico (transtorno dissociativo de identidade - 300.14) (ver Hacking, 2000). É nessa direção que o antropólogo norte-americano Atwood Gaines (1992), desconstrói o processo classificatório dos DSM’s e extrai uma etnopsicologia subjacente às nosografias psiquiátricas norte-americanas, demonstrando que elas são porta-vozes de uma das três tradições culturais do ocidente (particularmente, a tradição Protestante Germânica do Norte Europeu), que pressupõe uma noção positiva idealizada do eu: a saber, aquela de um “eu referencial”, autocontrolado, cujas questões existenciais centrais se referem à autonomia, à individualização e ao desenvolvimento/crescimento pessoal. Daí entendese o motivo pelo qual uma amostra representativa dos psicólogos norte-americanos
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rejeita o DSM, concebendo-o como enviesado por questões culturais e de gênero, reprodutor do modelo médico-psiquiátrico e guiado pelo reembolso dos planos de saúde11 (Hill & Fortenberry, 1992, p. 77). No tópico 3.1 faremos uma leitura do conto O Alienista, de Machado de Assis, à luz do critério estatístico de normalidade. O tópico 3.2 discorrerá sobre a concepção de Georges Canguilhem de normalidade, que abrange os critérios subjetivo e qualitativo. Finalmente, o último tópico, 3.3, ilustrará com um caso clínico de Oliver Sacks a noção canguilhemniana de normalidade. 3.1. A normalidade como média estatística: análise do conto “O Alienista” É possível identificar no conto O Alienista, de Machado de Assis, uma crítica voraz à escola alienista francesa de Pinel, Esquirol e seguidores, sobretudo no que tange a sua tentativa científica de objetivação da loucura. A princípio, a própria história do alienista Simão Bacamarte, personagem principal do conto, médico com formação erudita nas Universidades de Coimbra e Pádua, que foi parar não se sabe por qual motivo em Itaguaí, cidadezinha do interior fluminense, pode ser encarada como a reprodução da trajetória dos primeiros alienistas franceses, os quais, após receberem uma sólida formação em Paris, rumavam para o interior da França, onde construíam um asilo, criando assim um campo de trabalho e pesquisa. Tal como Pinel, em Bicêtre, Simão Bacamarte pode ser considerado um “reformista”. Com a criação da “Casa Verde”, primeiro hospício construído por ele em Itaguaí12, Simão Bacamarte conferiu aos “loucos furiosos”, “que eram trancafiados em sua própria casa” e viviam como bichos, um tratamento digno, científico. À semelhança de Pinel, seu principal objetivo com a construção da Casa Verde era “estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhes os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal” (Assis, 1995, p. 22).
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No original, em inglês: “reimbursement driven, psychiatry-owned, non-universal, gender-biased, nonempiric extension of the ‘ medical model’”. 12 O nome “Casa Verde” dado ao hospício de Itaguaí, no conto, é uma referência explícita a cor das suas janelas, todavia, implicitamente, trata-se também da cor que designa a medicina. Estaria Machado de Assis fazendo uma alusão à idéia de que talvez a única escapatória dos loucos às amarras da psiquiatria (tanto físicas, quanto morais) estaria na passagem ao ato clássica, a defenestração?
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Uma vez desonerado da administração [da Casa Verde], o alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas. Isto feito, começou um estudo aturado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissão, costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família, uma devassa, enfim, como a não faria o mais atilado corregedor. E cada dia notava uma observação nova, uma descoberta interessante, um fenômeno extraordinário. Ao mesmo tempo estudava o melhor regime, as substâncias medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos, não só os que vinham dos seus amados árabes, como os que ele mesmo descobria, à força de sagacidade e paciência (Ibid, p. 24).
Não estaria aí ilustrado o projeto da escola francesa alienista da primeira metade do século XIX? Mesmo tendo sido escrito na década de 1880 (1881-1882), este conto recapitula uma época anterior do Brasil Colônia por intermédio de um narrador neutro que lê as crônicas daquela época, e narra sua história, mantendo o distanciamento necessário para as críticas que tece. É num diálogo entre Simão Bacamarte e o boticário Crispim Soares que o alienista antecipa sua primeira concepção da loucura: “A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente” (Ibid., p. 27). Daí a enunciação de sua primeira concepção da loucura como sendo o desequilíbrio das faculdades mentais: Supondo o espírito humano uma vasta concha, o meu fim (...) é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia, e só insânia (Ibid., p. 28).
A conseqüência fatídica dessa primeira tese bacamartiana acerca da loucura já se prenuncia no título do capítulo subseqüente à sua enunciação: “O Terror”, numa clara alusão à Revolução Francesa. Tendo sido dotado de plenos poderes legais, o alienista procedeu a um encarceramento desenfreado de cidadãos itaguaienses, jamais visto na história da cidade. Tal como Pinel, colocando-se no lugar do cientista imune às influências sócio-culturais, era Simão Bacamarte quem, aleatoriamente, determinava o que era normal e o que era patológico. Nesse meio tempo, houve uma revolta popular contra seu suposto abuso de poder, liderada pelo barbeiro Porfírio, que ficaria
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conhecida como “Revolta dos Canjicas”. Teria Simão Bacamarte algum interesse escuso por trás dessa coleta desenfreada — questionavam os revoltosos? Interessante notar que a batalha entre o alienista Simão Bacamarte e o barbeiro Porfírio reflete, em tese, a luta entre o douto e o leigo – vale lembrar que “barbeiro” era o temo usado na época para designar os cirurgiões que não tinham formação médica acadêmica e utilizavam técnicas curativas pouco ortodoxas como as sangrias, por exemplo. Dessa batalha entre Davi e Golias, ironicamente, Golias sai vencedor. Simão Bacamarte fortalece-se ainda mais e se conclui que o trato com a loucura é matéria de ciência, coisa para doutos, e não para leigos. As dúvidas quanto à idoneidade moral do alienista se dissiparam tão logo ele internou sua própria esposa, a qual, segundo ele, padecia de “mania suntuária”. Ao final de tais acontecimentos, constatou-se que 4/5 da população de Itaguaí estava encerrada na Casa Verde. Para assombro de Itaguaí, Simão Bacamarte resolveu expedir um ofício à Câmara de Vereadores comunicando que todos os loucos da Casa Verde iriam ser postos na rua. Tal decisão refletia uma mudança em sua concepção da loucura, advinda do exame estatístico da vila e da Casa Verde e da constatação de que a maioria da população estava reclusa nesta instituição. No terceiro item desse ofício remetido à Câmara, o alienista enunciou sua segunda concepção da loucura: (...) a verdadeira doutrina não era aquela [loucura como desequilíbrio das faculdades mentais], mas a oposta, e portanto que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades, e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto (Ibid., p. 46).
Subjacente a essa mudança de concepção de Simão Bacamarte está sua tentativa de redefinir a sanidade/loucura a partir de critérios estatísticos baseados na noção de média. De acordo com sua primeira tese, se a maioria da população de Itaguaí estava internada na Casa Verde, isto significava que a maior parte dos itaguaienses eram desequilibrados mentalmente e, portanto, loucos, o que representava um contra-senso à estatística e à razoabilidade científica. Tomando-se o gráfico da distribuição normal segundo a curva de Gauss, como o desvio da norma, representado pela loucura, poderia ser mais prevalente do que a própria norma? Simão Bacamarte deduziu dessa constatação que sua primeira tese estava errada, redefinindo a sanidade/loucura a partir da prevalência estatística: se o desequilíbrio mental prevalece, ele passa a ser a norma a partir da qual se mede o desvio-padrão, isto é, a loucura, que passa a ser entendida
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como o perfeito equilíbrio das faculdades mentais. Por trás dessa inversão de concepção encontra-se, portanto, a tentativa do alienista de se adequar ao critério quantitativo baseando-se na média estatística para definir os limites entre o normal e o patológico13. De início, essa nova tese bacamartiana acabaria por se comprovar devido aos seus desdobramentos. Após cinco meses em vigor, estavam reclusas na Casa Verde 18 pessoas, número que pode parecer pequeno se comparado aos “loucos” reclusos segundo sua primeira teoria; contudo, concluiu-se que “Essa mesma desproporção confirmava a teoria nova; achava-se enfim a verdadeira patologia cerebral” (Ibid., p. 49). É possível reconhecer, ainda, na terapêutica adotada pelo alienista na Casa Verde com base em sua segunda tese um tratamento moral às avessas; tal terapêutica consistia em “atacar de frente a qualidade moral predominante” (Ibid., p. 52). “Cada beleza moral ou mental era atacada no ponto em que a perfeição parecia mais sólida” (Ibid., p. 51). Aqui, ao invés de reeducar o louco, visava-se deseducá-lo até o limite suposto da sanidade mental. Tal como o tratamento moral, seu reverso mostrou resultados promissores. Após cinco meses e meio, todos os internos haviam restituído o desequilíbrio das faculdades e, portanto, a “normalidade”, ficando a Casa Verde vazia. Posteriormente, desencadeia-se uma crise de consciência no alienista acerca de seus méritos como curador: teria ele curado os loucos ou o que pareceu cura não foi mais que a descoberta do perfeito desequilíbrio mental, ou seja, da normalidade? 13
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Conforme o desfecho do conto, verificar-se-á que essa tentativa já nasceu fadada ao fracasso, uma vez que tal critério não se mostra eficaz quando aplicado à esfera psíquica. 14 Poder-se-ia encontrar aqui uma crítica à limitação das intervenções psiquiátricas cujo panorama contemporâneo é o de uma proliferação indiscriminada de códigos diagnósticos que não é acompanhada proporcionalmente pela proliferação de condutas terapêuticas específicas? Sabe-se, por exemplo, que a psiquiatria, comparativamente a outras especialidades médicas, tem um dos menores elencos de medicamentos disponíveis, cuja ação é bastante inespecífica. Até que ponto a loucura traria em seu âmago a possibilidade espontânea de recuperação, assinalada por Freud no “caso Schreber” de 1911, ao circunscrever o delírio (seu sintoma clássico) como uma tentativa de cura? — “A formação delirante, que presumimos ser o produto patológico é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução” (Freud, [1911], p. 78; grifo original). Até que ponto se descobriria a normatividade naquilo que é concebido pela medicina como um signo da doença? Freud (op. cit.) não fala em cura da psicose, mas sim em “solução do conflito” (p. 43), “reconciliação” (p. 48-49) e “estabilização do conflito” (p. 59) que, em Schreber, deu-se a partir de seu trabalho delirante que culminou na transformação de seu delírio sexual persecutório inicial, relacionado ao seu primeiro psiquiatra (Dr. Flechsig), em delírio transexual salvacionista, referente a Deus: assim, Schreber, antes perseguido sexualmente por seu médico sem propósito algum, tornar-se-ia mulher para engravidar de Deus e dar à luz uma nova raça superior de seres humanos, nascida de seu próprio ventre; em suma: tornar-se-ia a “mulher de Deus” em conformidade às determinações da “ordem do mundo” (ver Lacan, [1955-56]; [1959]). Ainda segundo Freud [1911], o mecanismo psicológico da “projeção” na psicose, cujo produto é o delírio, é uma tentativa de religar a libido aos objetos, reconstruindo o mundo à maneira singular de cada delirante; o delírio teria, então, sua dimensão de poiesis. Cito outro texto mais tardio de Freud ([1924], p. 169): “(...) o delírio se encontra aplicado como um remendo no lugar em que originalmente uma fenda apareceu na relação do ego com o
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Como desfecho dessa crise, Simão Bacamarte reconhece em si mesmo as características do perfeito equilíbrio mental e moral. “(...) pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto” (Ibid., p. 52). Recolhendo-se à Casa Verde, faleceria dali a 17 meses, no mesmo estado em que entrou, “sem ter podido alcançar nada”. Tentou em vão explicar cientificamente os meandros da mente humana. Morreu na dúvida, sem ao menos ter entendido a si mesmo... 15 3.2. A normalidade como normatividade segundo G. Canguilhem16 A definição das fronteiras entre saúde e doença (normal e patológico) em termos meramente quantitativos trouxe conseqüências, sendo a mais importante a assimilação da idéia de patologia à noção de “desvio” que passou a ser sinônimo de alteração patológica. Qualquer desvio passou a ser medido como alteração patológica; passou a ser medido em relação ao “normal”, que é predeterminado. Todavia, seria a definição de “normal” facilmente obtida, de forma tão simples e objetiva? Por trás da aparente e enganosa simplicidade do conceito de “normal”, haveria uma duplicidade de sentido, que pode alterar bastante a compreensão da relação entre normalidade e patologia. Canguilhem define duas formas do que seja o “normal”. A primeira toma o termo como “fato”: normal aqui é o mais prevalente, o que estatisticamente se demonstra como a medida em torno da qual se agrupam as variações que podem deslizar em direção ao terreno da patologia; é algo detectado pela observação e objetivamente mensurável. Ao mesmo tempo existe, imersa no uso habitual dessa palavra, a concepção de “normal” não apenas como aquilo que “é”, mas como o que “é desejável”, introduzindo aí um conteúdo valorativo. Dizer de um órgão que ele é normal, tanto pode significar que seu funcionamento segue o padrão médio esperado, quanto pode significar que ele é capaz de funcionar acima desse padrão, se a vida assim o exigir. Neste caso, um órgão é normal não porque esteja dentro desses limites, mas
mundo externo. Se essa precondição de um conflito com o mundo externo não nos é muito mais observável do que atualmente acontece, isso se deve ao fato de que, no quadro clínico da psicose, as manifestações do processo patogênico são amiúde recobertas por manifestações de uma tentativa de cura ou uma reconstrução.” 15 Chamo atenção para outras leituras “psis” empreendidas desse conto, uma mais datada e psicocrítica (Lopes, 1981), outra mais atual, à luz da teoria lacaniana da psicose (Quinet, 2006). 16 Parte do texto desse tópico foi extraída de Bezerra Jr. (1998).
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porque atende com elasticidade e vigor às demandas que lhe são feitas. É normal porque é “normativo”, ou seja, é capaz de criar novas normas de funcionamento sempre que isto se fizer necessário para a preservação ou ampliação do estado de saúde do organismo. O coração bradicárdico de um remador, por exemplo, está fora do padrão habitual, mas o fato de ser desviante em relação à normalidade estatística é, neste caso, índice de saúde superlativa, e não de doença. Assim, a simples objetividade mensurável das médias não basta para qualificar o estado de um órgão ou de um organismo como normal ou patológico. É sempre necessário atentar para o grau de “normatividade” presente. Canguilhem distingue claramente a “anomalia” da “anormalidade”, quando descreve os desvios respectivamente quantitativo e qualitativo em relação à média. Anomalia é qualquer diferença constatada em relação ao que é estatisticamente prevalente, uma simples variação, que não implica necessariamente restrição patológica. Exemplos desse tipo são a polidactilia, a dextrocardia, o situs inversus totalis (inversão total dos órgãos) etc. Todavia, a vida não é indiferente a qualquer tipo de anomalia. A acefalia, por exemplo, é uma anomalia incompatível com a preservação da vida, que dirá com sua expansão; o que define a fronteira entre os desvios que resultam apenas em variações próprias à pluralidade do fato vital e aqueles desvios, às vezes mínimos, que consideramos como anormalidade, ou patologia, não é um padrão de médias, não são medidas estatisticamente aferidas, mas a implicação que esse desvio tem sobre o processo de preservação e expansão da vida. Para Canguilhem, o indivíduo não é normal porque simplesmente se adapta a norma X ou Y, mas sim porque possui “capacidade normativa”, isto é, capacidade de adaptação possível e voluntária a todas as condições imagináveis. O homem normal é o ser capaz de instituir novas normas para si próprio, conforme as demandas do meio, que expandam sua vida – já que esta possui nela mesma uma superabundância de possibilidades. Ser sadio significa não apenas ser normal numa situação determinada, mas ser, também, normativo, nessa situação e em outras situações eventuais. O que caracteriza a saúde é a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas em situações novas (Canguilhem, 2002, p. 158). O homem só se sente em boa saúde (...) quando se sente mais do que normal, isto é, não apenas adaptado ao meio e às suas exigências, mas,
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também normativo, capaz de seguir novas normas de vida” (Ibid., p. 161).
Na prática clínica, quanto mais conhecemos o pensamento de Canguilhem, mais importância concedemos ao grau de normatividade do paciente. A terapêutica será justificada, não porque traga de volta o indivíduo para padrões de funcionamento previamente estipulados como normais, ou porque promova uma restitutio ad integrum, o que nem sempre é possível17. A justificativa estará no aumento da normatividade que um paciente pode alcançar, dadas as condições de limitação que a doença impôs. No campo da saúde mental, a importância dessa discussão é crucial. Trata-se de um campo no qual se mostra evidente a fragilidade de critérios estatísticos e médias, não só porque os desvios em relação à média podem significar sanidade – e não patologia – mas porque nem sempre a normalidade implica saúde. Pelo contrário, é possível perceber, em alguns indivíduos, “patologias da normalidade”
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. A
normalidade, nesses casos, nada mais significa que fixidez, fragilidade psíquica, que se defende do inesperado, do incerto, da vida enfim, por meio da construção de mecanismos adaptativos rígidos. O sujeito está preso a um padrão do qual não consegue fugir. É normal, mas pouco tem de normativo. É a essa capacidade de superação de limites anteriores que Canguilhem define como o valor fundamental da vida. Talvez a maior contribuição de Canguilhem à prática clínica tenha sido a relativização que ele promoveu da noção de saúde (que, como vimos, não se confunde com a normalidade), a qual só pode ser analisada a partir da singularidade de cada caso. Estendendo os limites do pensamento de Kant em Conflito das Faculdades, que pensou a saúde fora do campo de saber objetivo, Canguilhem argumentará que não há ciência da saúde, haja vista a saúde não ser um conceito científico, mas sim vulgar (no sentido de comum, ao alcance de todos). Dessa forma, não é o discurso científico que delimitará a saúde/doença, a partir de medições normativas referentes a um corpo biológico objetivado (“corpo-máquina”); antes, é o “corpo subjetivo” que delimita a saúde/doença, já que a normatividade acaba sendo o critério mais pragmático. Define-se o “corpo subjetivo” como o conjunto de habilidades que cada um possui e que permite contornar as agressões às quais se está exposto. Nunca é demais lembrar: ser saudável é 17
Aliás, Canguilhem não acredita em restitutio ad integrum, uma vez que o indivíduo que caiu enfermo e se recuperou, isto é, que experimentou de sua saúde vencendo uma adversidade, já é outro, saindo mais fortalecido desse processo intrínseco à vida. 18 Remeto o leitor ao trabalho de FERRAZ, F. C. Normopatia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.
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ser normativo, ou seja, é a capacidade de instaurar novas normas de existência, de acordo com as adversidades que o meio impõe; já o patológico implica um sentimento de sofrimento e de impotência, sentimento de vida contrariada. Quanto à definição de saúde da OMS atualmente em vigor: “a saúde é um completo estado de bem-estar físico, mental e social, e não a mera ausência de doença”, lembrou-me um conto de Jorge Luis Borges, O imortal, onde o narrador protagonista após exaustiva busca pela Cidade dos Imortais, decepciona-se com o que se depara ao encontrá-la por acaso nas suas andanças — trata-se de uma cidade triste e monótona onde nada acontece, existencialmente falando, afinal, tem-se a eternidade ainda pela frente a se viver. A ficção borgeana serve de parâmetro para se pensar os desdobramentos da definição utópica de saúde da OMS: numa cidade onde a doença é extirpada e onde o “bem-estar” é alcançado, sendo todos salubres na sua plenitude (ninguém morre, a não ser devido a algumas causas acidentais), a vida19 se aniquila. A definição de saúde da OMS também se mostra problemática quando aplicada ao campo da saúde coletiva. Sabe-se que uma das formas privilegiadas de exercício do biopoder20 na contemporaneidade ocorre por intermédio do dispositivo21 da saúde, via utopia da “saúde perfeita” (Sfez, 1996), que justifica a ampla medicalização da população, haja vista o objetivo “altruísta” sanitário de proporcionar-lhe o tão almejado “bem-estar”. Contrapondo-se a esse furor intervencionista, Canguilhem adere à discrição e à cautela no que tange às políticas públicas de saúde, ao definir a saúde não somente como a vida no silêncio dos órgãos, mas também como a vida na discrição das relações sociais. Portanto, a saúde não solicita atenção; para que isso não se torne omissão, seria função do poder público ampliar a saúde — entendida na sua singularidade, como “margem de segurança” individual — ao seu limite máximo. A saúde das pessoas é um assunto ligado às próprias pessoas, eis o ponto chave do 19
Entendida por Canguilhem como “polaridade dinâmica” e, portanto, como movimento dialético entre saúde e doença. Dessa perspectiva, saúde é a capacidade de adoecer e se recuperar. 20 Trata-se de um conceito que Michel Foucault cunhou, em seu ensino no Collège de France, visando a circunscrever um novo modo de exercício do poder, surgido no fim do séc. XVIII, que tem por alvo o controle das populações: um poder disciplinador e normalizador que já não se exerce sobre os corpos individualizados nem se encontra disseminado no tecido institucional da sociedade, mas se concentrava na figura do Estado e se exercia a título de política estatal que pretendia administrar a vida e o corpo da população; ver a síntese dessa idéia em Foucault (1979). 21 Segundo o referencial teórico-conceitual foucaultiano, muito disseminado na Reforma Psiquiátrica brasileira, o dispositivo é concebido como um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos (Foucault, 2001).
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pensamento de Canguilhem. Não se pode substituir os atores da saúde por elementos externos, haja vista que é cada sujeito quem sofre e reconhece suas dificuldades para enfrentar as demandas que seu meio lhe impõe. Na perspectiva de Agamben (2002), Canguilhem parece preferir a “vida qualificada”, da qual sua noção de normatividade se aproxima, à “qualidade de vida”, medida segundo os parâmetros do bem-estar, que se confunde com a norma moral social e que, muitas vezes, acaba por proporcionar uma “vida nua”, ao despojar a própria vida de sua qualificação, como no conto de Borges. 3.3. Caso clínico ilustrativo “Witty Ticcy Ray” Oliver Sacks nos relata um dos seus famosos casos clínicos. Trata-se de um portador de Síndrome de Tourette, transtorno neurológico caracterizado por “tiques, contrações espasmódicas, maneirismos, caretas, ruídos, imprecações, imitações involuntárias e compulsões de todo tipo, com um singular humor travesso e uma tendência a fazer palhaçadas e brincadeiras bizarras” (Sacks, 1997, p. 108). O paciente em questão se auto-intitulava witty ticcy Ray (“Ray dos chistes e tiques”). Mesmo sendo portador de um transtorno neurológico grave, Ray não se fazia de rogado e utilizava os sintomas da doença em seu proveito próprio, dando mostras de sua saúde; assim, era um exímio baterista de jazz, famoso por suas súbitas improvisações decorrentes de seus tiques biológicos, o que lhe permitia sobreviver tanto financeira quanto afetivamente. Se, por um lado, ele obtinha vantagens de sua doença, por outro, seu casamento estava ameaçado por seus impulsos: ele não se continha e berrava palavrões aos montes durante o coito; também não conseguia permanecer por muito tempo num emprego desde que se formara na faculdade. Cansado de seus insucessos na vida profissional e afetiva, Ray, que contava então 24 anos de idade, procurou tratamento com o Dr. Oliver Sacks, após ter se identificado como portador de Transtorno de Tourette a partir de uma matéria que leu sobre o assunto no jornal. A primeira intervenção de Sacks sobre Ray foi inteiramente pautada no paradigma médico clássico, tendo ele, em seu furor sanandis, lhe receitado o uso do medicamento Haldol numa dosagem que, se não eliminava, pelo menos diminuía bastante os sintomas da doença. Se Ray, por ser portador de um transtorno grave, representava um desvio com relação ao “normal”, nada mais condizente com a lógica
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médica que resgatar sua suposta normalidade subtraída pela doença. Todavia, Ray sofria os efeitos dessa síndrome desde os 4 anos de idade, tendo já se identificado com o tourettismo; ao longo de 20 anos, ele já havia construído estratégias para lidar com os sintomas da doença. O que Sacks não esperava era que sua intervenção fosse questionada por Ray, que não se reconhecia mais sem a agilidade psicomotora e a rapidez de pensamento que eram sua marca registrada. Ele havia, agora, perdido as características que lhe faziam ser admirado pelos outros; tinha, dentre outras coisas, se tornado um músico medíocre, o que lhe era praticamente inconcebível. Após discutirem sobre os prós e os contra do tratamento, Ray e Sacks chegaram a uma solução de compromisso. A intervenção de Sacks passa a se pautar na noção de normatividade. Durante os dias úteis, Ray permaneceria “sóbrio, sensato, convencional” com o Haldol, o que lhe permitia trabalhar; porém, nos finais de semana, se livraria da droga para poder “disparar”, tornando-se witty ticcy Ray, “inconseqüente, frenético e inspirado”. Desde então, existem dois Rays: o com e o sem Haldol. Conforme assinala: Ter a Síndrome de Tourette é uma loucura, é como estar bêbado o tempo todo. Estar sob o efeito do Haldol é sem graça, deixa a pessoa certinha e sóbria, e nenhum desses dois estados é realmente livre (...) Vocês, “normais”, que possuem os transmissores certos nos lugares certos no cérebro, têm todos os sentimentos, todos os estilos disponíveis o tempo todo: seriedade, veleidade, o que quer que seja apropriado. Nós, os que temos a síndrome, não: somos forçados a leviandade pela síndrome e forçados à seriedade quando tomamos Haldol. Vocês são livres, têm um equilíbrio natural: nós precisamos tirar o maior proveito possível de um equilíbrio artificial (apud Sacks, 1997, p. 117-118).
Ray de fato tira o melhor proveito possível e leva uma vida qualificada, apesar da síndrome de Tourette, apesar do Haldol, apesar da “não-liberdade” e do “artificial”, apesar de ser privado do direito inato da liberdade natural que a maioria de nós desfruta. Mas ele aprendeu com sua doença e, de certo modo, a transcendeu, dando mostras de sua “Grande Saúde”, como diria Nietzsche.
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4. A psicopatologia como um campo de dispersão do saber •●•
A
expressão “psicopatologia” foi cunhada por Jeremy Benthan, em
1817. Contudo, Esquirol e Griesinger, a partir de seus trabalhos publicados, respectivamente, na França (em 1857) e na Alemanha
(em 1845), é que são considerados seus pioneiros. Em 1913, Jaspers a fundou como ciência autônoma, desvinculando-a da clínica psiquiátrica; para tanto, ele aplicou o método fenomenológico (compreensivo e descritivo) à investigação dos fenômenos psicopatológicos, criando assim a “psicopatologia fenomenológica”, também chamada de Psicopatologia Geral, conforme o título de seu livro mais famoso; a partir da “redução fenomenológica”, os fenômenos são colocados “entre parênteses”: descrevemse as vivências psicopatológicas em si, tal como elas dão-se a ver e/ou são relatadas pelo paciente, sem a preocupação com as suas causas e conseqüências (a psicopatologia fenomenológica é uma psicopatologia descritiva). Nas palavras de Jaspers: Fenômenos psicopatológicos parecem exigir este tipo de abordagem; uma que se propõe a isolar, fazer abstrações a partir de observações correlatas, apresentar como reais apenas os dados em si mesmos, sem tentar entender como emergiram; uma abordagem que apenas pretende “ver”, e não explicar (2005, p. 777-778). (...) a fenomenologia não tem nada a ver com a gênese dos fenômenos psíquicos. Apesar de seu emprego ser um pré-requisito para qualquer investigação causal, ela deixa as questões genéticas de lado, e estas não podem nem refutar nem corroborar seus achados (idem, p. 784).
A descrição aqui é entendida como um primeiro passo rumo à explicação, afinal, só se pode explicar o que foi anteriormente descrito. “Psicopatologia” (do grego: psyché = alma; pathos = sofrimento, paixão, passividade; logos = palavra, relato) significa, num recorte de sua intrínseca polissemia, “falar sobre a alma que sofre”. Depreende-se de sua etimologia que o discurso sobre o sofrimento psíquico não é uníssono, mas sim polifônico, cujas ressonâncias ecoam em diversos modelos explicativos dos transtornos mentais. Dentre as chamadas “psicopatologias explicativas” (aquelas que se baseiam em modelos teóricos ou achados experimentais, buscando esclarecer a causa dos transtornos mentais), pode-se identificar
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três principais vertentes em psicopatologia (ou três principais discursos sobre o sofrimento mental): biológica, psicodinâmica e sociocultural. Vejamos cada uma delas em suas linhas gerais. A psicopatologia biológica concebe o ser humano como sendo determinado biologicamente. A base de todo transtorno mental são alterações do funcionamento cerebral (sejam elas anatômicas ou bioquímicas) resultantes, na maioria das vezes, de herança genética. O transtorno depressivo, segundo uma das hipóteses dessa vertente, seria causado por uma alteração na dinâmica entre os neurotransmissores, sobretudo nos níveis da serotonina; vale ressaltar que o estabelecimento de uma correlação entre déficit de serotonina e depressão não implica a descoberta de uma causalidade entre ambos – poder-se-ia argumentar que aquilo que o discurso biológico atribui como causa da depressão (déficit de serotonina), é, na verdade, o efeito fisiológico resultante da ação de fatores psicológicos e sociais, estes sim causais22. Os terapeutas biológicos empregam métodos físicos e químicos (medicamentos, eletroconvulsoterapia23, psicocirurgia etc.) para ajudar as pessoas a superarem seus problemas psicológicos. A psicopatologia psicodinâmica surgiu com a psicanálise de Sigmund Freud, tendo sido aprimorada por diversos autores pós-freudianos, em sua tentativa de explicação dos transtornos mentais. Segundo essa vertente, o ser humano seria determinado por forças, desejos e conflitos inconscientes. Os transtornos mentais são considerados formas de expressão de conflitos inconscientes, de desejos irrealizáveis e de temores inacessíveis ao sujeito. Em seu ensaio Luto e Melancolia, de 1917, Freud utiliza o modelo do luto como parâmetro para pensar a depressão. Este transtorno é então concebido como uma reação à perda (real ou simbólica) e à introjeção do objeto perdido, com o qual o sujeito acaba por se identificar, retirando sua libido do mundo e reinvestindo-a em si mesmo, isto é, no objeto perdido introjetado com o qual ele se identificou.
Assim,
a
auto-recriminação,
que
Freud
identifica
como
signo
patognomônico da depressão, diferenciando esse transtorno do luto normal, pode ser entendida como uma recriminação ao objeto perdido pelo fato deste ter lhe recusado seu amor; da mesma forma, as auto-mutilações e tentativas de suicídio em pacientes 22
Trata-se de uma discussão interminável já que não se conhece, com precisão científica, a causa de nenhum transtorno mental; aliás, a adjetivação de um transtorno como “mental” advém do desconhecimento de sua etiologia biológica, caso contrário, o mesmo passaria a ser “neurológico”, como no caso da epilepsia. 23 Segundo Bastos (2000, p. 183), a eletroconvulsoterapia (ECT), popularmente conhecida como “eletrochoque”, devido à sua elevada gravidade e risco de vida, só pode ser aplicada aos casos de estupor catatônico (na esquizofrenia) e estupor depressivo (na depressão unipolar ou transtorno bipolar), depois de esgotados todos os demais recursos terapêuticos disponíveis.
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deprimidos pode ser vista como um esforço desesperado de ferir ou matar o objeto introjetado. Além de Freud, dos seus contemporâneos fiéis (Abraham, Ferenczi, Jones etc.) e dos psicanalistas pós-freudianos — dentre os quais podemos citar os adeptos da escola norte-americana de psicanálise (“psicologia do ego”, com base em Anna Freud), da escola inglesa (Klein, Winnicott etc.) e da escola francesa (Lacan, Dolto, Lagache, Laplanche etc.) -, outros autores dissidentes também se aventuraram na construção de modelos explicativos psicodinâmicos em psicopatologia, como Alfred Adler, Carl G. Jung, Wilhelm Reich etc. Uma característica comum que reúne tamanha diversidade de opinião no grupo dos teóricos “psicodinâmicos” é a coincidência no que tange às explicações, todas elas de natureza psicológica, para os transtornos mentais e ao tratamento psicoterápico (baseado nas terapias da fala) proposto para eles. A psicopatologia sociocultural, como o próprio nome sugere, concebe o ser humano como determinado sócio-culturalmente. Os transtornos mentais seriam comportamentos desviantes que surgem a partir de fatores sócio-culturais adversos, tais como pobreza, migração, preconceito, estresse ocupacional etc. Pode-se, assim, entender o transtorno depressivo como tendo sua origem nas condições adversas e insalubres pela qual passam boa parte da população brasileira, que vive abaixo ou na linha da miséria; todavia, segundo esse raciocínio, deveria haver mais casos de transtorno mental entre as classes proletárias que entre as abastadas, o que não é confirmado por dados epidemiológicos, embora se constate que o meio sócio-cultural é um fator desencadeante e agravante dos transtornos mentais. Aqui, o tratamento proposto para os transtornos mentais pelos adeptos dessa abordagem, herdeiros da tradição marxista, se baseia na transformação das condições materiais de existência desfavoráveis que
supostamente engendram tais transtornos, indo desde
o
assistencialismo direto às políticas sociais. Quem já assistiu um debate entre adeptos dessas escolas conhece as inócuas discussões egóicas travadas, típicas de Babel: cada qual fala um dialeto próprio, hasteando a bandeira de seu reducionismo, seja biológico, psicológico ou sociológico. O que estaria em jogo nessa querela de escolas psicopatológicas é a idéia de uma causalidade única subjacente aos transtornos mentais; destes fenômenos complexos, cada qual acredita deter o monopólio explicativo. Tal como na parábola hindu dos cegos e o elefante24, cada qual acredita que sua parte representa o todo. Nesse caso, fala-se em 24
Diz-se que, na antiga Índia, um grupo de cegos foram ao jardim zoológico conhecer o elefante. Como o animal era imenso, cada qual só teve como tatear uma parte dele; assim, um apalpou as orelhas, outro a
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reducionismo epistemológico25, já que cada vertente acredita portar uma verdade absoluta acerca da natureza dos transtornos mentais. O campo da Saúde Mental trabalha com a idéia de multicausalidade e entende os fenômenos do adoecimento psíquico como uma problemática biopsicossocial. Dessa perspectiva, nenhuma escola psicopatológica, isoladamente, irá dar conta da totalidade de questões que envolvem os transtornos mentais. Nenhum discurso contém toda a verdade sobre a essência dos transtornos mentais. Antes de nos perguntarmos sobre um suposto grau maior ou menor de verdade de um discurso psicopatológico, devemos nos indagar se ele é útil ou não, e a que fins e resultados conduz. Ao invés da pergunta: qual discurso psicopatológico é o mais verdadeiro? Reformulemo-la do seguinte modo: qual dos discursos psicopatológicos é o mais útil para determinado paciente? Nunca devemos perder de vista que, na prática clínica cotidiana, lidamos com o sofrimento mental, e não com abstrações conceituais. Não é preciso reduzir o sujeito aos determinantes prefixais do bio, psico ou sócio, trata-se de definir qual recurso terapêutico (medicamentos, psicoterapias, intervenções assistenciais etc.) pode ser mais salutar para um indivíduo em sua circunstância. Afinal de contas, conforme já assinalava Jaspers, no início do século XX, o objeto da psicopatologia é o ser humano em sua totalidade. Nas palavras de Cláudio Lyra Bastos: Como ainda estamos muitíssimo longe de uma “teoria do campo unificado” na psicopatologia, e ficamos restritos às tentativas de amarrar as inúmeras pontas soltas – biológicas, psicológicas e sociológicas – dos nossos conhecimentos, a tentação de nos lançarmos às especulações teóricas é praticamente irresistível. A única maneira de se evitar – ou talvez tentar administrar – os devaneios explicativos é a absoluta fidelidade à observação clínica, a exemplo de Ulisses, que se fez prender ao mastro da embarcação para não se deixar seduzir pelo canto das sereias. Cair nessa armadilha é oscilar entre a Cila da afirmação categórica, incontestável porque inconfirmável, e o Caribdes da obviedade. Dizer que a essência da psicose está na forclusion du nom du père é tão sem sentido quanto afirmar que está nas sinapses dopaminérgicas, na comunicação familiar ou na microestrutura do lobo frontal. Para escapar dos raciocínios circulares e das conclusões acacianas, devemos nos manter atrelados à clínica. Imagino que esta seja comparável a um veleiro no mar, que para navegar necessita de tanto tromba, outro, ainda, o rabo, e assim por diante. Tendo tido somente uma visão de sua parte, já que nenhum dos cegos tivera a dimensão de sua totalidade, cada qual descrevia o elefante à sua maneira, o que gerou acaloradas discussões intermináveis entre eles. 25 Que se localiza para além do reducionismo metodológico, característico da ciência moderna, que metodologicamente reduz seu objeto de estudo para a análise de suas partes. O problema surge quando, após essa redução, não se restabelece a totalidade original do objeto estudado.
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mais quilha e mais lastro abaixo de si quanto de maior extensão de velas acima; sem as velas não progride, mas sem o lastro vira, e sem a quilha e o leme não tem direção (Bastos, 2000, p. 242).
Além dessas três principais vertentes, existem outras abordagens em psicopatologia, como a comportamental, a cognitiva e a humanista-existencial. A psicopatologia comportamental concentra-se nos comportamentos e propõe que eles se desenvolvem de acordo com os princípios da aprendizagem. Todo comportamento, seja normal ou disfuncional, seria o resultado de três tipos de condicionamento: clássico, operante e modelagem. A depressão, segundo essa abordagem, seria um conjunto de comportamentos não-adaptativos resultante da aprendizagem. O papel do psicoterapeuta seria então identificar tais comportamentos problemáticos e substituí-los por outros mais adequados, empregando técnicas baseadas em um ou mais princípios de aprendizagem; percebe-se que esse papel se aproxima mais das funções de um educador que de um curador. Um dos seus maiores ícones foi Burrhus F. Skinner. A psicopatologia cognitiva, também chamada “cognitivo-comportamental”, afirma que para se entender o comportamento humano é preciso, antes, que se entenda o pensamento humano. Desse ponto de vista, o comportamento estaria indissociavelmente ligado aos processos cognitivos. Segundo um dos mais respeitados teóricos cognitivistas (Aaron Beck), o “pensamento negativo” estaria no âmago da depressão; algumas pessoas estariam sempre interpretando os eventos de maneira negativa e tal modo de ver as coisas as conduziria ao transtorno. O papel do psicoterapeuta seria o de ajudar as pessoas a reconhecer e a modificar suas idéias e seus processos de pensamento defeituosos. A psicopatologia humanista-existencial centraliza-se na necessidade humana de confrontar com êxito aspectos psicológicos como auto-percepção, valores, sentido e escolha, a fim de se satisfazerem na vida. Os humanistas acreditam que as pessoas são levadas à auto-realização. Quando esse impulso natural sofre interferências externas, o resultado pode ser o adoecimento. Já os existencialistas acreditam que o adoecimento mental seria o resultado do fato de a pessoa se esconder das responsabilidades da vida, o que a privaria de sua liberdade de escolha e da busca de uma vida mais significativa. Os psicoterapeutas adeptos dessa abordagem procuram acolher as demandas de seus “clientes” (eufemismo do termo pacientes), auxiliando-os a se reconhecerem e se
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aceitarem. Os mais conhecidos representantes dessa vertente são Carl Rogers, Fritz Perls e Victor Frankel. Atualmente, o discurso biológico domina incontestavelmente o cenário da psicopatologia, principalmente depois da ascensão da psiquiatria biológica no campo psiquiátrico ocidental, a partir da década de 198026. Nos mais variados meios de comunicação científica e de massa, proliferam artigos e matérias que associam os transtornos mentais aos seus supostos substratos anátomo-fisiológicos geneticamente herdados, difundindo no imaginário social a idéia de que tais transtornos são biologicamente determinados. A biologização da psiquiatria insere-se nesse contexto de biologização mais amplo da sociedade na atualidade, como já assinalamos anteriormente (ver nota de rodapé n. 4 acima), cujas condições discursivas privilegiam uma Weltanschauung biológica (Kurz, 1999) que redefine o estatuto do sujeito em termos cerebralistas (Ehrenberg, 2004). Não é à toa que o consumo de psicofármacos nunca foi tão grande quanto o é na atualidade (a indústria farmacêutica só perde para a indústria bélica no que tange ao volume de movimentação financeira mundial!), possível desdobramento da “psicofarmacologia cosmética” (Kramer, 1995), que inaugurou o uso de psicotrópicos por sujeitos normais para fins de “automelhoramento” (Enhancement) (Azize, 2008), ou seja, para a otimização de performances voltadas à “sociedade do espetáculo” (Debord, 1997). Da mesma forma, vê-se ressurgir com entusiasmo discussões sobre tratamentos físicos para os transtornos mentais, como psicocirurgias e eletroconvulsoterapias, que se pensava serem anacrônicos frente aos outros recursos mais humanizados disponíveis. Enfim, vivenciase a soberania epistemológica da biologia e sua aplicação no mundo ocidental de forma pouco reflexiva e crítica. Independente do tipo de discurso psicopatológico que se torne hegemônico em determinado contexto histórico — como ocorre com o discurso biológico na atualidade —, a sua adoção cega implica um reducionismo com o qual não concordamos, sob o risco de, tal como na parábola hindu, se tomar a parte pelo todo. 26
O pressuposto central da psiquiatria biológica é a de que o “cérebro é o órgão da mente”. Essa entronização do cérebro justifica o fato de que a estrutura e a função cerebrais estejam no centro de seu sistema conceitual, embora, como assinala Serpa Jr. (1998, p. 266), não haja um “enquadramento teórico encompassador que permita articular coerentemente os achados da psiquiatria biológica”. Ela assimila os achados de várias disciplinas (sobretudo da genética, da psicofarmacologia e das neurociências), concatenando-os, e se legitima pela eficácia de seus procedimentos, centrados nas terapias físicas e químicas.
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5. Diagnóstico psicopatológico e diagnóstico estrutural •●•
E
xistem em medicina, basicamente, dois tipos de diagnóstico, o “sindrômico” e
o “nosológico”, ao qual seria necessário acrescentar, a nosso ver, o “estrutural”, derivado da psicanálise; o diagnóstico psicopatológico restringe-
se aos dois primeiros, sendo este último um diagnóstico psicodinâmico da estruturação subjetiva, que denota um modo de ser, e não uma síndrome ou uma doença. Síndrome (do grego syndromé = concurso) constitui um agregado de sinais e sintomas que evoluem conjuntamente, provocada por mecanismos e causas desconhecidas. Embora não haja um consenso entre os psicopatólogos, Cheniaux (2008, p. 8) descreve as seguintes síndromes psiquiátricas: de ansiedade, fóbica, obsessiva, compulsiva, de conversão, dissociativa, hipocondríaca, de somatização, depressiva, maníaca, de estado misto ou bipolar (manifestações maníacas e depressivas associadas), delirante (ou paranóide), alucinatória, hebefrênica (ou desorganizada), catatônica (hipercinética, hipocinética), apático-abúlica, de retardo mental, demencial, de delirium, amnésica,
anoréxica,
bulímica,
de
despersonalização-desrealização;
algumas
combinações sindrômicas também são freqüentes na clínica: fóbico-ansiosa, obsessivocompulsiva, depressivo-ansiosa, hebefreno-catatônica, hebefreno-paranóide, delirantealucinatória. Uma mesma entidade nosológica pode manifestar-se sob diversas formas sindrômicas, por ex., a esquizofrenia associa-se às síndromes paranóide, hebefrênica, catatônica, apático-abúlica, delirante-alucinatória, ou mesmo depressiva, como no caso de Schreber, analisado por Freud; assim como uma mesma síndrome pode manifestar-se em diferentes entidades nosológicas, por ex., a síndrome depressiva pode ser primária (depressão maior) ou secundária, associada a outro transtorno mental (depressão pósesquizofrênica), a uma doença orgânica (hipotireoidismo), ou ao uso de substâncias psicoativas (abuso de álcool). O diagnóstico sindrômico é sempre passível de ser feito, independentemente da cooperação do paciente, haja vista tratar-se da descrição do quadro clínico tal como ele se apresenta ao observador ou ouvinte. O diagnóstico nosológico (do grego nósos = doença27), como a etimologia nos permite deduzir, é o diagnóstico de doenças, que se baseia na investigação anamnésica
27
O termo latino para doença é dolentia, que significa “dor”, “sofrimento”.
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(coleta da história de vida e do adoecimento do sujeito) e armada (exame direto do sujeito com ajuda dos mediadores técnicos, instrumentais, biológicos etc.). De acordo com o conceito clássico, uma doença possui causas, alterações estruturais e funcionais, e história natural conhecidas. Como a existência do campo da psicopatologia só se justifica em função do desconhecimento dessas características associadas ao adoecimento mental, senão já se o teria incorporado ao campo das neurociências, privilegia-se naquele campo o diagnóstico sindrômico, em detrimento do nosológico. Assim, o eixo metodológico norteador das nosografias atuais (CID-10 e DSM-IV-TR) é sindrômico, e não etiológico, possibilitando diagnósticos bem confiáveis e pouco válidos28. O termo “transtorno” adotado por esses manuais nosográficos para designar as entidades nosológicas é bastante impreciso: é mais específico que “síndrome”, porém não equivale a “doença”. Hacking (2000) assinala que a expressão “transtorno” (ou “distúrbio”) deriva do inglês disorder (prefixo grego dys = mal, ruim, inadequado) e aponta para o critério quantitativo de normalidade; a terapia de um disorder objetivaria, por conseguinte, o restabelecimento de uma “ordem” (order) perdida: vulga “ortopedia psíquica”. O diagnóstico estrutural psicanalítico, por sua vez, concebe a “neurose”, a “psicose” e a “perversão” como estruturas subjetivas que resultam da travessia do complexo de Édipo e de tomadas de posição frente à ameaça de castração. Ao invés de representarem doenças, representam modos de ser, portanto, esse diagnóstico não implica uma patologização, antes denota uma possibilidade existencial. As três estruturas clínicas descritas acima definiriam modos de subjetivação, em função do mecanismo psicológico específico que as caracterizaria: o “recalque” ou “recalcamento” (Verdrängung) na neurose; a “rejeição” ou “foraclusão” (Verwerfung) na psicose; a “recusa”, “renegação”, ou “desmentido” (Verleugnung) na perversão. Diferentemente do diagnóstico psiquiátrico (seja sindrômico, seja nosológico) — calcado na almejada objetividade científica, que se volta mais para o olhar perscrutador na busca por traços categoriais
distintivos
que
sirvam
de
evidência
para
a
identificação
das
síndromes/transtornos —, o diagnóstico psicanalítico implica a escuta clínica da Verdrängung, da Verwerfung e da Verleugnung, a partir dos seus efeitos discursivos na fala do analisando. Assim, escuta-se o “ato falho” e o “chiste” na neurose, como 28
A “confiabilidade” (reliability) é o indicador de reprodutibilidade do procedimento diagnóstico; já a “validade” (validity) refere-se à capacidade de um procedimento diagnóstico conseguir identificar aquilo que realmente se propõe com fidedignidade.
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produções de linguagem da Verdrängung; da mesma forma, escuta-se os “neologismos”, os “vazios de significação” e as “frases interrompidas” como produções lingüísticas características da psicose, efeito da Verwerfung; bem como se escuta o discurso sobre o Gozo (descritivo, imagético e denotativo) na perversão, como efeito lingüístico da Verleugnung. Propomos a seguinte tabela no intuito de ilustrar essas três dimensões do diagnóstico: DIAGNÓSTICO SÍNDRÔMICO
• Síndrome apático-abúlica (estuporosa)
NOSOLÓGICO
ESTRUTURAL
• Neurossífilis
• (?)
• Transtorno Bipolar
• Psicose
(TAB) • Esquizofrenia
• Psicose
• Transtorno de conversão
• Neurose
(antiga histeria conversiva) • • Síndrome compulsiva
• Síndrome amnésica
Transtorno
obsessivo- • Neurose
compulsivo (TOC) • Fetichismo
• Perversão
• Abuso de álcool
• (?)
• Encefalite
• (?)
•Anemia Megaloblástica
• (?)
• Doença de Alzheimer
• (?)
• Amnésia e fuga
• Neurose
dissociativas (antiga histeria dissociativa) Observa-se que o estupor pode ocorrer em várias doenças, como, por ex., na paralisia geral da sífilis terciária, na fase depressiva do transtorno afetivo bipolar, nas síndromes alucinatória e catatônica das esquizofrenias, e nas descargas corporais da conversão histérica. Já a compulsão pode aparecer no TOC, cujos rituais compulsivos
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geralmente visam a anular as idéias obsessivas, no fetichismo, modalidade na qual o gozo sexual condena-se a repetir-se compulsivamente com o objeto fetichizado, e na compulsão à bebida no alcoolismo. Por sua vez, a falha de memória, fenômeno típico de doenças orgânicas (inflamações do encéfalo, déficit severo de vitamina B12, demências etc.), pode surgir também na histeria dissociativa; neste último caso, Kaplan & Sadock (1997, p. 347) assinalam que “os pacientes (...) estão mais propensos a perderem sua orientação autopsíquica [orientação referente a si mesmo] e podem ter déficits de memória mais seletivos” do que nos casos orgânicos (ver tópico 6.4 abaixo). Percebese, ainda, que o diagnóstico de doença orgânica não confere base suficiente para o estabelecimento do diagnóstico estrutural, embora este último possa ser presumido (com alguma validade) a partir do diagnóstico nosológico psiquiátrico. Assim, o campo estrutural das psicoses abarcaria, no DSM, sobretudo, as esquizofrenias, a paranóia (ainda chamadas “transtornos psicóticos”) e as psicoses afetivas (“despsicotizadas” e reclassificadas dentre os “transtornos do humor”), além de alguns transtornos da personalidade (como a paranóide, esquizóide e esquizotípica, por ex.); o campo da perversão constituir-se-ia, basicamente, das parafilias (chamados “transtornos sexuais”) e de alguns transtornos da personalidade, sobretudo o antissocial (psicopatia); já o campo das neuroses englobaria boa parte dos transtornos de ansiedade (TOC e fobias), somatoformes (transtorno de conversão e doloroso), dissociativos (amnésia e fuga dissociativas, e personalidade múltipla), além de alguns transtornos da personalidade (como a histriônica, esquiva e obsessivo-compulsiva, por ex.). Ver quadro abaixo: QUADRO COMPARATIVO ENTRE OS DIAGNÓSTICOS PSICANALÍTICO
PSICOPATOLÓGICO (DSM-IV-TR) • Fobia Específica • Fobia Social • Agorafobia • Transtorno de Conversão
• Neurose
• Transtorno Doloroso • Fuga Dissociativa • Amnésia dissociativa • Transtorno Dissociativo de Identidade • Transtorno Obsessivo-Compulsivo • Transtorno da Personalidade Histriônica
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• Transtorno da Personalidade Esquiva • Neurose (cont.)
•
Transtorno
da
Personalidade
Obsessivo-
Compulsiva • Esquizofrenias Tipo Paranóide Tipo Desorganizado Tipo Catatônico Tipo Indiferenciado Tipo Residual • Transtorno Esquizofreniforme • Transtorno Esquizoafetivo • Psicose
• Transtorno Delirante (Paranóia) • Transtorno Bipolar I • Transtorno Bipolar II • Transtorno Depressivo Maior (incluindo a “melancolia” ou “depressão psicótica”) • Transtorno Ciclotímico • Transtorno da Personalidade Paranóide • Transtorno da Personalidade Esquizóide • Transtorno da Personalidade Esquizotípica • Parafilias Exibicionismo Fetichismo Froutterismo Pedofilia Masoquismo Sexual Sadismo Sexual Travestismo Fetichista
• Perversão
Voyeurismo S. O. E. (bestialidade, necrofilia etc.) • Transtorno Factício Síndrome de Münchausen por Procuração (sadismo não-sexual) •
Transtorno
da
Personalidade
Antissocial
(Psicopatia) • Transtorno da Personalidade Narcisista • Transtorno da Personalidade Dependente • Transtorno da Personalidade Borderline
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Vale ressaltar que o que se denominou “neurose” no quadro acima (que não pretende esgotar as correlações diagnósticas, mas sim estabelecer alguns paralelos comparativos possíveis) coincide com o que Freud designava “psiconeuroses de defesa”; além destas, existem as chamadas “neuroses atuais” (neurastenia, hipocondria e neurose de angústia), que Freud desvinculou de uma etiologia exclusivamente psicossexual (Freud, [1894]; [1896]), e que compõem, atualmente, o campo da “psicossomática” no DSM — são elas: além da neurastenia29 e da hipocondria (cujas nomenclaturas permanecem inalteradas), o transtorno da ansiedade generalizada e o transtorno do pânico (ambos, desdobrados da antiga “neurose de angústia”); a estes, acrescentaríamos, para compor o campo da psicossomática, o transtorno somatoforme de somatização. Todos esses transtornos psicossomáticos podem ocorrer em quaisquer estruturas clínicas, seja neurose, seja psicose, seja perversão, com o colorido clínico característico de cada uma delas. A adesão a um eixo metodológico sindrômico, e não mais etiológico, adotado a partir do DSM-III, de 1980, fragmentou as antigas entidades nosológicas em um sem número de síndromes, daí o aumento vertiginoso de códigos classificatórios: dos 180 listados no DSM-II, passou-se para 265 no DSM-III e, atualmente, no DSM-IV-TR, esse número ultrapassa os 300! O quadro a seguir nos ajudará a visualizar essa evolução:
DSM-II (1968)
DSM-III (1980) Fobia Específica
► Neurose Fóbica
Fobia Social Agorafobia T. de Conversão
► Neurose Histérica (tipo conversivo) 29
T. Doloroso
Vale ressaltar que a neurastenia é codificada pela CID-10 (F48.0), mas não pelo DSM-IV-TR, que a considera um “transtorno étnico” associado à cultura chinesa, classificando-a como uma Culture-Bound Syndrome, chamada “shenjing shuairuo” (APA, 2002, p. 841).
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Amnésia dissociativa ► Neurose Histérica (tipo dissociativo)
Fuga dissociativa “Personalidade Múltipla” (T. Dissociativo de Identidade)
► Neurose obsessiva
T. Obsessivo-Compulsivo (T.O.C.)
Percebe-se no quadro acima que nove novos transtornos surgiram a partir de três velhas neuroses e quatro categorias (já que a histeria já era dividida em duas), ou seja, o quantitativo mais do que dobrou. Esse aumento progressivo no número de códigos assemelha-se ao conto de Jorge Luis Borges, Dos rigores da ciência, no qual os personagens cartógrafos de um reino, não mais satisfeitos com a aproximação inexata que os mapas que produziam proporcionavam, resolveram confeccionar um mapa do tamanho do próprio território a ser cartografado, despojando-o, assim, de sua própria funcionalidade representativa. Reproduzo, a seguir, a epígrafe do texto de Borges e o triste fim dado a esse mapa “mais realista do que o Rei”, como diz o provérbio: Naquele Império, a Arte da Cartografia alcançou tal Perfeição que o mapa de uma única Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa do império, toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmesurados não foram satisfatórios e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império, que tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente com ele. Menos Afeitas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes entenderam que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos; em todo o País não há outra relíquia das Disciplinas Geográficas. (Suárez Miranda: Viajes de Varones Prudentes, livro quarto, cap. XLV, Lérida, 1658.)
Talvez o futuro da série do DSM e da CID, em se insistindo na mesma metodologia adotada a partir do DSM-III, já esteja vaticinado nesse antigo texto fictício de Suárez Miranda, criação de Borges.
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Os diagnósticos sindrômico e nosológico importam à clínica psiquiátrica para o estabelecimento do prognóstico e para a escolha do tratamento médico (farmacológico) mais adequado. Do mesmo modo, o diagnóstico estrutural importa à clínica psicológica (psicanalítica) para a definição do tipo de vínculo transferencial que o analisando tende a estabelecer com o analista e para o manejo clínico adequado dessa relação, pelo viés da fala. Enquanto o diagnóstico sindrômico e/ou nosológico é o ponto de chegada da clínica psiquiátrica (já que definem a previsão do caso e a prescrição terapêutica), o diagnóstico estrutural é o ponto de partida da clínica psicológica, aberta à causalidade psíquica e, mais particularmente, à imprevisibilidade dos efeitos do inconsciente. Em sua clássica comparação analógica, Freud [1917] diz que a psicanálise relaciona-se com a psiquiatria assim como a histologia relaciona-se com a anatomia; contrapondo-se aos laudos emitidos pelo psiquiatra assistente de Schreber, assinala que: O interesse sentido pelo psiquiatra militante em formações delirantes como estas [de Schreber] exaure-se, geralmente, uma vez haja determinado o caráter dos produtos do delírio e feito uma estimativa de sua influência sobre a conduta geral do paciente; em seu caso, maravilhar-se não é o início da compreensão. O psicanalista, à luz de seu conhecimento das psiconeuroses, aborda o assunto com a suspeita de que mesmo estruturas de pensamento tão extraordinárias como estas, e tão afastadas de nossas modalidades comuns de pensar, derivam, todavia, dos mais gerais e compreensíveis impulsos da mente humana; e gostaria de descobrir os motivos de tal transformação, bem como a maneira pela qual esta se realizou (Freud, [1911], p. 28).
De modo geral, os psicólogos praticamente restringem o uso do DSM ou CID para fins de comunicação, como uma espécie de “língua franca” que permite a interação entre profissionais nas equipes multiprofissionais de saúde e entre os pesquisadores acadêmicos, haja vista sua utilidade quase nula à prática clínica psicoterápica30. *
30
A exceção à regra é a abordagem cognitivista-comportamental (ver p. 31 acima), que reproduz o modelo médico, pautado numa conduta padrão associada à especificidade da diagnose — para um dado transtorno, uma dada técnica para suprimi-lo. Healy (2000, p. 191-199) relata as acirradas e acaloradas disputas entre os adeptos dessa abordagem psicoterápica e os laboratórios farmacêuticos (Upjohn e Geigy), ambos reivindicando para si uma superioridade terapêutica sobre o transtorno do pânico e o TOC. No intuito de sair na frente da concorrência e transcender essa disputa, a indústria farmacêutica Pfizer criou recentemente um “pacote” para o tratamento do TOC que inclui seu antidepressivo “inibidor seletivo da recaptação da serotonina” (ISRS), a sertralina, junto com um método de autotratamento cognitivo-comportamental desenvolvido pelo clínico inglês Isaac Marks, a ser comercializado no Reino Unido (!).
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A 6ª edição da CID (CID-06), de 1948, foi a primeira a contemplar uma seção destinada aos transtornos mentais31. Logo após sua publicação, surgiu a 1ª edição do DSM (DSM-I), em 1952. O DSM surge como alternativa à CID, vindo contemplar a demanda dos psiquiatras norte-americanos, que criticavam o descompasso entre os transtornos mentais encontradas em solo estadunidense e àquelas descritas na CID. Com o passar do tempo, esses manuais foram sendo revisados e ampliados até suas edições atuais: CID-10 e DSM-IV-TR; na ocasião da elaboração desses manuais, houve uma série de consultorias entre a American Psychiatric Association, responsável pelo DSM, e a Organização Mundial de Saúde, promotora da CID, que resultaria numa formulação de códigos e termos em comum acordo. Leite assinala que o DSM-III, de 1980, (...) desconsidera a existência de um Sujeito na causação dos transtornos mentais (...) Nascido da psiquiatria universitária norte-americana, conhecida como escola de St. Louis, o DSM-III teria por modelo a resposta padrão à administração de uma substância química específica. Este procedimento denominado critério operacional pretendia preencher a ausência de signos patognomônicos e de exames de laboratório em psiquiatria, e, ao medicalizá-la, a retiraria de uma influência filosófica a que estaria submetida (...) (Leite, 2001, p. 137).
Desde então, os diagnósticos psiquiátricos se confirmam operacionalmente em função da resposta positiva frente a uma conduta farmacológica; assim, confirma-se o diagnóstico de transtorno bipolar no caso de boa responsividade aos estabilizadores do humor, descartando-se tal diagnóstico nos casos refratários a tal intervenção química. Essa “pasteurização” dos manuais nosográficos contemporâneos em psiquiatria, que se supõe serem “descritivos e ateóricos”, implicou seu afastamento radical da fenomenologia e, também, da psicanálise. Para a psiquiatria (re)medicalizada contemporânea (dita “biológica”), esses saberes são tão indignos de figurar numa nosografia científica quanto a metafísica clássica o é para a filosofia kantiana. A conseqüência prática, como já dissemos, é o aumento da confiabilidade do diagnóstico (facilmente reprodutível) e a uma grande perda referente à sua validade (dificilmente identifica aquilo que se propõe identificar); isso se nota na patologização e na medicalização sem precedentes que se vive na atualidade de fenômenos normais (toma31
Aliás, a CID-06 foi a primeira a ser realizada pela OMS. Uma característica desta edição foi a inclusão da classificação de doenças propriamente ditas, já que, até então, a CID destinava-se a fornecer uma classificação das causas de morte, possibilitando um consenso internacional acerca dos atestados de óbito, que facilitava os trabalhos estatísticos e a formulação de políticas públicas de saúde.
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se, por ex., a tristeza por depressão, a agitação por hiperatividade, a irritabilidade por distimia etc.), dada a banalização do diagnóstico, reduzido a listas descritivas de sinais e sintomas. E, como já assinalamos, a indústria farmacêutica só perde, ainda, para a indústria bélica em termos de lucratividade. O exemplo da pulverização das depressões nas nosografias contemporâneas, reduzidas a meras síndromes e confundidas com a tristeza comum, é emblemático. Tomemos a classificação de Jaspers (1985) para as depressões, com base nos seus conceitos de processo, reação e desenvolvimento. Circunscreve-se o processo quando há ruptura do desenvolvimento existencial (biográfico) e surgimento de um evento novo, que produz alteração permanente da vida psíquica (personalidade); refere-se à alteração patológica que surge sem clara relação ou nexo causal com a personalidade pré-mórbida, de forma não-compreensível (natureza endógena)
32
. Pode-se entender a depressão endógena como um processo depressivo,
associado à estrutura psicótica — daí a extensão de seu campo semântico: depressão “psicótica”, “melancólica”, “vital”, “maior” etc. Esta se caracteriza por uma vivência de insuficiência radical (tristeza vital). Durante a fase depressiva, é muito difícil estabelecer vínculo psicoterapêutico adequado com o paciente devido à ausência de investimentos afetivos de sua parte; o paciente não tenta convencer o entrevistador de sua infelicidade e sofrimento. A hipotimia e a inibição psicomotora (que pode chegar ao estupor) tendem a predominar no quadro clínico. Já a noção de reação pressupõe sempre um fator desencadeante externo (vivência), responsável pela deflagração do transtorno mental de forma compreensível e relacionado às características da personalidade do sujeito (ex: reações depressivas, paranóides etc.); não há ruptura da personalidade. As reações autênticas, cujo conteúdo tem conexão compreensível com a vivência, que não se dariam sem a vivência; e cujo curso depende da vivência e de suas conexões. [...] existe a tendência posterior ao reconhecimento claro da doença, ficando o paciente em condições de encará-la como algo completamente alheio (Jaspers, 1985, p. 460).
A idéia de uma depressão reativa aponta para a existência de episódios depressivos psicologicamente compreensíveis, no sentido de se poderem estabelecer nexos causais entre um evento estressor ambiental e os sintomas depressivos; não há quebra da
32
Sobre a noção de “endógeno”, ver p. 13 acima.
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biografia do sujeito. A ansiedade é um elemento sempre presente nesse caso (inquietação psicomotora: o paciente não pára quieto, insone, irritado, anda de um lado para o outro, desespera-se). Há vivência de insuficiência narcísica, ou seja, há, mesmo que implicitamente, uma demanda endereçada ao outro, sendo esse tipo mais responsivo aos tratamentos psicoterápicos. Por fim, há ainda o desenvolvimento psicologicamente anormal e compreensível de uma personalidade, como no caso das personalidades depressivas, oligofrênicas, psicopáticas ou neuróticas; não há ruptura da personalidade. Comparando-se o desenvolvimento com o processo: São critérios biográficos do processo: o aparecimento da novidade em espaço de tempo curto, temporalmente localizável, a concomitância de sintomas conhecidos variados a esse tempo, a ausência de causa desencadeadora ou de vivência suficientemente baseada. Falamos, ao contrário, em desenvolvimento de uma personalidade, desde que possamos compreender, no conjunto das categorias biográficas, o que veio a acontecer, pressupondo a normalidade biológica do evento básico (Jaspers, 1985, p. 847).
A noção de um desenvolvimento depressivo aponta para as chamadas personalidades depressivas. Tais personalidades apresentam-se sob um fundo psíquico de depressão crônica de intensidade leve e duradoura (os sintomas devem permanecer por mais de dois anos), codificadas pelos manuais nosográficos contemporâneos sob a insígnia “distimia” ou “transtorno distímico”. Caracteriza-se por baixa auto-estima, aumento da fadiga, desânimo, anedonia, dificuldades de concentração e de tomada de decisão, mauhumor crônico, irritabilidade e pessimismo. Não chega a constituir propriamente uma depressão clínica. Diferentemente das depressões endógena e reativa, não há ruptura súbita do equilíbrio afetivo, e os sintomas distímicos permanecem como um fundo vivencial, apresentando-se como menos disfuncionais. Jaspers nos fornece subsídio etiológico para se pensar em uma diferença qualitativa entre as depressões e, portanto, em uma diversidade de condutas terapêuticas a elas correspondentes. Acontece que o “abandono da etiologia”
33
pela CID-10 e pelo
DSM-IV-TR implicou, também, o abandono da distinção qualitativa entre as 33
Colocamos essa expressão entre parênteses porque os manuais contemporâneos não abandonaram efetivamente a etiologia; segundo o “critério operacional” adotado por eles, uma vez que um transtorno mental passa a responder satisfatoriamente a um determinado medicamento, acaba-se por “confirmar” sua suposta etiologia orgânica. O que eles abandonaram foi a diversidade etiológica, associada à idéia de multicausalidade, em prol da adesão irrestrita às teses biológicas.
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depressões; assim, todas as depressões foram reunidas no grupo dos “transtornos do humor”, sendo entendidas como variações quantitativas (de intensidade: leve, moderada e grave) de um mesmo fenômeno psicopatológico subjacente: a disfunção cerebral. Isso tem implicado a uniformização das condutas terapêuticas para os quadros depressivos em torno da prescrição medicamentosa. A tentativa da psiquiatria contemporânea de se adequar ao paradigma da “medicina baseada em evidências”, adotando “critérios operacionais” para a diagnose e se afastando de toda “influência filosófica” (seja da fenomenologia, seja da psicanálise) nesse campo, acabou por transformá-la, como assinala Joel Birman, num “canteiro de obras da indústria farmacêutica” (2001, p. 22). Com relação à crescente influência do DSM no Brasil e seu incentivo ao uso de questionários e tabelas na prática diagnóstica, Bastos nos faz um importante alerta: Deve-se tomar cuidado com os modelos americanos de avaliação, pois nos Estados Unidos existe uma longa tradição cultural e religiosa do culto à verdade, doa a quem doer. Aqui no Brasil, não é assim; dizer a verdade explicitamente pode ser considerado inadequado, deselegante ou ofensivo. Por isto, questionários ou perguntas formais não costumam funcionar bem em nosso meio (Bastos, 2000, p. 80).
Vale lembrar que a clínica é antes uma arte, que uma ciência. A avaliação cientificista dos transtornos mentais baseada exclusivamente em listas de sintomas, como no DSM-IV-TR, é freqüentemente falha ou, no mínimo superficial. Aprender a ouvir, antes de enquadrar, classificar ou rotular, é uma tarefa mais prolongada e árdua do que parece. Citando o célebre aforismo de Hipócrates: “a vida é breve, a arte é longa, a oportunidade é fugaz, a experiência é enganadora, a avaliação é difícil” (apud Bastos, op. cit., p. 79). * O termo diagnóstico vem do grego diagnosis, que significa “discernimento”, “capacidade de distinguir”, sendo formado pelo prefixo dia = “através” e pelo sufixo gignosko = “conhecer”. Acreditamos que o diagnóstico psicopatológico tem um importante papel na comunicação interprofissional e, também, na prática clínica, permitindo conhecer o quadro clínico em questão por intermédio de seu enquadramento numa categoria prévia (síndrome ou doença). Cabe ressaltar que as síndromes e as doenças são constructos
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sociais34 e, como tais, podem ser criadas, modificadas ou, até mesmo, descartadas; constituem condições relacionadas ao pathos (dor, sofrimento, incapacitação ou morte), que só vão ser consideradas patológicas em função dos contextos histórico e cultural35. Young (1997) fornece um exemplo nesse sentido: a invenção do “transtorno do estresse pós-traumático”, nos Estados Unidos, na década de 1970, em função da demanda social dos veteranos da Guerra do Vietnã, incapacitados para o trabalho. São controversas as opiniões acerca do diagnóstico emitidas pelas diferentes vertentes “psis”. Enquanto algumas atribuem ao diagnóstico apenas uma função de controle, que visa à estigmatização e à segregação dos “diferentes” e “questionadores”, outras lhe atribuem uma importância desproporcional que acaba por extrapolar seus reais alcances e limites. Entre tais extremos encontram-se várias nuances de opiniões, dentre as quais a nossa, acima descrita. Como finalidades do diagnóstico psicopatológico (sindrômico e nosológico) destacam-se: (1) permitir ao sujeito atribuir sentido ao seu sofrimento, inserindo-o no registro simbólico. Permite aos profissionais: (2) definir a gravidade de um estado e, se possível seu prognóstico (previsão do desfecho do caso); (3) elaborar ações terapêuticas e preventivas mais eficazes: decidir entre uma quimioterapia imediata ou uma psicoterapia, prevenir os riscos de um estado perigoso para o próprio paciente e seu entorno (suicídio, agressividade, agitação etc.); (4) comunicar-se de modo mais preciso com outros profissionais e pesquisadores, por intermédio de uma língua franca que possibilite a troca de informações. Dentre as principais características do diagnóstico de um transtorno mental, destacam-se: • baseia-se, preponderantemente, nos dados clínicos colhidos na entrevista, composta de: ►ANAMNESE (do grego ana = nova + mnesis = memória; “rememoração”), coleta da história de vida do sujeito e de seu
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Ver Hacking (1986). Canguilhem nos mostrou que a definição do patológico sempre implica um julgamento de valor, na medida em que ele se define pelo desvio com relação ao que é desejável numa dada sociedade ou cultura, trazendo, assim, a discussão sobre o normal e o patológico para o campo filosófico da Ética. Ver tópico 3.2 acima. 35
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adoecimento; inclui-se aquilo que é relatado pelo paciente, seus familiares e/ou conhecidos. ►EXAME PSÍQUICO, também chamado EXAME DO ESTADO MENTAL ATUAL, que consiste no exame das funções mentais ditas superiores com base na semiologia; inclui-se aquilo que é observado pelo entrevistador. OBS: os testes psicológicos ou neuropsicológicos, assim como os exames clínicos laboratoriais e as técnicas de neuroimagem funcional, são complementos importantes, principalmente no que tange ao diagnóstico diferencial com as doenças orgânicas, porém, não constituem o instrumento principal da diagnose, sendo a clínica soberana nesse aspecto. • De modo geral, não existem sintomas psicológicos totalmente específicos (sintomas patognomônicos) de um determinado transtorno mental. Assim, o fato de se constatar a presença de delírios (falsos juízos da realidade) num dado paciente não é suficiente para se lhe rotular de paranóico; embora o delírio seja um dos traços fundamentais da paranóia, não lhe é exclusivo. • Em inúmeros casos, só é possível estabelecê-lo com a observação do curso da doença; é relativamente comum alterar-se o diagnóstico com o decorrer do caso; isso se coaduna com o “critério operacional” adotado pelas nosografias atuais: é a resposta à medicação que acaba por confirmar ou não a hipótese diagnóstica inicial. • É sempre pluridimensional, isto é, deve-se levar em conta as várias dimensões (biológica, psicológica, sócio-cultural etc.) que perpassam a vida do sujeito. Os quadros a seguir ilustram a dimensão plural propostas para a diagnose: Diagnóstico pluridimensional do DSM-IV (Dalgalarrondo, 2000, p. 34)
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Eixo 1 – Diagnóstico de Transtorno Mental (Esquizofrenia paranóide, Episódio depressivo grave, Dependência ao álcool, Anorexia nervosa etc.) Eixo 2 – Diagnóstico da personalidade e do Nível Intelectual (Personalidade histriônica, Personalidade borderline etc., Retardo Mental leve, moderado etc.)36 Eixo 3 – Diagnóstico de transtornos somáticos associados (Diabete, hipertensão arterial, cirrose hepática, infecção urinária etc.) Eixo 4 – Problemas Psicossociais e Eventos da Vida Desencadeantes ou Associados (Morte de uma pessoa próxima, separação conjugal, falta de apoio social, viver sozinho, desemprego, pobreza extrema, detenção, exposição a desastres etc.) Eixo 5 – Avaliação Global do Nível de Funcionamento Psicossocial (Bom funcionamento familiar e ocupacional, incapacidade de lidar com a própria higiene, não saber lidar com o dinheiro, dependência de familiares ou serviços sociais nas atividades sociais ou na vida diária; trata-se de uma escala que varia de 0 a 100)
Peguemos um exemplo do livro de casos clínicos (reais) do DSM-IV, mais especificamente o caso intitulado “Adoentada” (Spitzer et. al., 1996, p. 282-284): Uma mulher casada, de 38 anos, veio a uma clínica de saúde mental com a queixa principal de depressão. No último mês, ela vinha sentindo-se deprimida, tinha
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Discordamos de Dalgalarrondo, posto que o diagnóstico de personalidade do DSM coincide totalmente com o diagnóstico de patologias do caráter ou de anomalias intelectuais, refletindo, portanto, a mesma dimensão que o Eixo 1. Em Psicologia, sabe-se que um diagnóstico de personalidade é muito mais amplo do que isso. Acreditamos que a divisão existente no DSM entre os Eixos 1 e 2 reflita, respectivamente, a separação entre os transtornos que são responsivos às terapias medicamentosas daqueles que não o são. Henning (2000, p. 129) destaca que, apesar de seu quadro clínico se assemelhar aos transtornos da personalidade, a distimia aparece no DSM-III como um transtorno clínico do Eixo 1, devido única e exclusivamente a sua resposta terapêutica positiva frente os antidepressivos e os estabilizadores de humor.
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insônia, chorava com freqüência e percebia que tinha fraca concentração, fadiga e interesse diminuído por atividades. A paciente conta que, quando criança, estava sempre adoentada e estivera deprimida desde que o pai abandonou a família, quando ela estava com 10 anos. Aparentemente, ela foi levada a um médico, devido a isso, que recomendou que a mãe desse à paciente um pouco de vinho antes de cada refeição. Sua adolescência foi normal, embora ela diga que era tímida. Ela terminou o segundo grau aos 17 anos e começou a trabalhar como escriturária em uma loja de departamentos. Casou-se mais ou menos na mesma época, mas o casamento foi infeliz; ela discutia freqüentemente com o marido, em parte devido à sua indiferença e dor sexual durante o intercurso. Aos 19 anos, ela começou a beber pesadamente, com episódios compulsivos e tremores matinais, que aliviavam tomando álcool tão logo se levantava pela manhã. Ela sentia-se culpada por não cuidar adequadamente de seus filhos em razão de seu hábito de beber. Aos 21 anos, foi baixada em um hospital psiquiátrico, onde recebeu o diagnóstico de alcoolismo e depressão, sendo tratada com antidepressivos. Após a alta, ela continuou bebendo quase que ininterruptamente; quando estava com 29 anos, foi novamente hospitalizada, desta vez na unidade de tratamento para o alcoolismo, e desde então permaneceu abstêmia. Ela foi baixada subseqüentemente em hospitais psiquiátricos devido a um misto de sintomas físicos e depressivos, tendo sido tratada em uma destas ocasiões com um curso de terapia eletroconvulsiva, que produziu pouco alívio. A paciente refere “nervosismo” desde a infância; ela também admite espontaneamente ser adoentada desde sua juventude, com uma sucessão de problemas físicos que os médicos, freqüentemente, diziam serem resultados de seus nervos ou depressão. Ela, entretanto, acredita que tem um problema físico que ainda não foi descoberto pelos médicos. Além do “nervosismo”, ela tem dores torácicas e recebeu de vários médicos a informação de que tem um “coração nervoso”. Ela, freqüentemente, vai a médicos em função de dor abdominal, e já recebeu o diagnóstico de “cólon espástico”. Ela já consultou quiropráticos por dores lombares, dores nas extremidades e anestesia na ponta dos dedos. Três meses atrás, ela teve vômitos, dor torácica e dor abdominal, sendo hospitalizada para fazer uma histerectomia. Desde então, ela vem tendo repetidos ataques de ansiedade, episódios de desmaios que afirma estarem associados com inconsciência que duram mais de 30 minutos, vômitos, intolerância a alimentos, fraqueza e fadiga. Ela submeteu-se a cirurgia para abscesso na garganta. A paciente tem quatro irmãos, tendo sido criada pela mãe depois que o pai saiu de casa. Seu pai, conforme ela soube, era um alcoólico que morreu aos 53 anos de câncer no fígado. Apesar de uma infância financeiramente difícil, a paciente concluiu o
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segundo grau e trabalhou 2 anos, sendo forçada a demitir-se em razão de suas constantes enfermidades. Ela casou-se aos 17 anos e continua casada com o mesmo homem. Seu marido é, conforme ela, um alcoólico que apresenta alguns períodos de instabilidade no trabalho. Eles têm discutido sobre sexo e finanças. Têm 5 filhos, cujas idades variam dos 2 aos 20 anos. A paciente admite que, atualmente, sente-se deprimida, mas acha que isso ocorre porque “seus hormônios não foram corrigidos”. Ela ainda está em busca por uma explicação médica para seus problemas físicos e psicológicos.
Não é nossa intenção aqui traçar o raciocínio semiológico (ver cap. 6 abaixo) que nos permite, associado à anamnese, formular hipóteses diagnósticas sindrômicas e nosológicas para o caso clínico em questão; antes, pretendemos, a partir desse caso, ilustrar a pluridimensionalidade do diagnóstico, tal como proposta pelo DSM-IV. Avaliação multiaxial do DSM-IV de “Adoentada” (Spitzer et. al., 1996, p. 284)
Eixo 1 – Transtorno de Somatização Transtorno Depressivo Maior, Recorrente, Leve Dependência de Álcool, em Remissão Completa Mantida Eixo 2 – Diagnóstico protelado Eixo 3 – Nenhum Eixo 4 – Múltiplos problemas com o marido Eixo 5 – AGF = 50 (nível mais alto atual e no passado)
Dalgalarrondo (2000, p. 34) destaca, ainda, a importância, para fins diagnósticos e terapêuticos, das formulações psicodinâmica e cultural do caso:
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Formulação Psicodinâmica do Caso Quais conflitos afetivos são mais importantes neste paciente? Conflitos relativos à sexualidade. Dinâmica afetiva da família. Conflitos relativos à identidade psicossocial. Que tipo de transferência o paciente estabelece com os profissionais da saúde? Que sentimentos contratransferenciais desperta nos profissionais
que
o
tratam?
Que
mecanismo
de
defesa
utiliza
preponderantemente? Qual o padrão relacional do paciente? Qual a estrutura clínica, do ponto de vista psicanalítico (neurose, psicose, perversão)?
Trata-se da formulação diagnóstica mais importante à clínica psicológica, de modo geral. Com relação a essa importância, destaco um caso clínico do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ), relatado por dois psicanalistas dessa instituição (Figueiredo & Tenório, 2002). Trata-se de um caso de uma senhora idosa, que deu entrada nessa mesma instituição apresentando um quadro estuporoso e que foi diagnosticada, durante sua internação de um mês, como neurótica pelos psicanalistas da equipe multiprofissional (ver quadro na p. 36 acima); essa senhora apresentava um histórico de mais de 20 anos de tratamento psiquiátrico, que incluía internações recorrentes em diversas instituições nas quais se lhe aplicava, em média, cinco sessões de eletroconvulsoterapia ao longo de cada estada asilar. Em suma: trata-se da descoberta tardia de uma estrutura neurótica histérica, tratável por benzodiazepínicos e psicoterapia, que havia sido tratada até então, pela psiquiatria, como se fosse uma psicose esquizofrênica (vide nota de rodapé n. 23 acima). Emblemático caso para se pensar nas implicações de uma “clínica do olhar”, psiquiátrica, e de uma “clínica da escuta”, psicanalítica. Formulação Cultural do Caso Como é o meio sociocultural atual do paciente (bairro de periferia, favela, morador de rua, de uma instituição etc.)? Como o paciente e seu meio cultural concebem e representam seu transtorno? Quais as suas teorias etiológicas e de cura? Como é a identidade étnica e cultural do paciente? Qual e como é sua
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religiosidade? Como o paciente e seu meio cultural encaram o diagnóstico e o tratamento psiquiátrico “oficial”? O paciente é migrante, de área rural? Como isso interfere no diagnóstico e terapêutica? Qual a “linguagem das emoções” que utiliza? Qual o impacto das mudanças socioculturais pelas quais o paciente passou sobre seu transtorno mental?
Quanto à formulação cultural do caso, vale destacar o trabalho de Duarte (1986), que circunscreve as metáforas somáticas — “sofrer dos nervos”, “doença nervosa”, “nervosismo” etc. — utilizadas pelas “classes trabalhadoras urbanas” para designar o adoecimento psíquico. Tais metáforas denunciam um entendimento biológico acerca das causas subjacentes e, por conseguinte, do tratamento dos transtornos mentais. Nesse sentido, são conhecidos casos atendidos ambulatorialmente em saúde mental, nas grandes metrópoles, por ex., nos quais os pacientes tomam até três conduções uma vez por semana para buscar a medicação psicotrópica na farmácia central do Estado, mas não freqüentam sessões de psicoterapia no ambulatório de seu próprio bairro. No caso “Adoentada”, relatado acima, o complexo semântico associado ao “nervoso”, utilizado pela paciente para se referir ao sofrimento que a acometia desde a sua infância, e ouvido pela mesma da boca de vários médicos, teria alguma correlação com sua incessante e incansável busca de uma causa física para seus males? Além disso, a análise da religiosidade do paciente também é crucial para sua adesão ou não ao tratamento médico-psicológico. Às vezes, o que se entende como “resistência” ao tratamento “científico” é mera descrença do paciente nesse tipo de conduta, tendo em vista suas concepções, muitas vezes, religiosas e sobrenaturais acerca de seu adoecimento, associadas à possessão (ver nota de rodapé n. 3 acima). Conhecendo-se a importância do simbolismo para a eficácia terapêutica (Lévi-Strauss, 1985a; 1985b), qualquer clínico sensato, diante desse impasse, construiria uma aliança com o paciente, tentando empaticamente conquistar sua confiança e lhe mostrar que as crenças religiosas e o saber científico não são, necessariamente, auto-excludentes — como reza o fanatismo tanto religioso quanto científico.
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6. Semiologia Psicopatológica •●• A semiologia (do grego: semeion = signo) é a “ciência dos signos”. O signo é um “sinal” (qualquer estímulo emitido pelos objetos do mundo) provido de significação, isto é, de uma combinação entre significante e significado. Segundo Saussure (1970), a relação entre “significante” (imagem acústica) e “significado” (conceito), na lingüística, é sempre arbitrária: “o significante é imotivado, isto é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem nenhum laço natural na realidade” (p. 83; grifo original); ou seja, Saussure aponta o caráter arbitrário do signo lingüístico ou símbolo. Embora intimamente associada à lingüística, a semiologia geral não se restringe a ela, dado que o signo transcende a esfera da língua; são também signos os gestos e os comportamentos não-verbais, os sinais matemáticos, os signos musicais etc. Existem, basicamente, três tipos de signos: (1) ícones; (2) índices ou indicadores; (3) símbolos. Os ícones resultam de relações de semelhança entre o significante e o significado, por ex., as pinturas realistas, as fotografias, os mapas que tendem a reproduzir em menor escala e com grande exatidão os territórios mapeados, os atalhos na área de trabalho de nosso computador, que reproduzem iconograficamente os programas a eles correspondentes etc. Os índices caracterizam-se pela existência de uma relação de contigüidade entre o significante e o significado, por ex., fumaça indicando fogo, nuvem negra indicando chuva, febre indicando infecção, as pegadas e fezes frescas de animais na selva indicando sua proximidade, nas investigações criminais qualquer indício que comprove a participação do suspeito no crime etc. Nos símbolos (ou signos lingüísticos), a relação entre o significante e o significado é convencional e arbitrária; corresponde a qualquer ato de nominação, por ex., chamar o país no qual vivemos de Brasil, a deturpação grave do julgamento de realidade de “delírio”, os quadros clínicos delirantes de “síndrome paranóide” e assim por diante. Os signos da psicopatologia são os sinais e sintomas dos transtornos mentais; sinais e sintomas são índices dos transtornos mentais, enquanto os próprios transtornos mentais constituem símbolos, ou seja, constructos culturais que permitem, a partir do ato de nomeação, certo entendimento do sofrimento psíquico. Por ex., uma fala acelerada na qual as idéias não se concatenam é um índice de exaltação do humor designada arbitrariamente de “mania”, em psicopatologia. A semiologia ou semiótica
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psicopatológica, ao se ocupar dos sinais e sintomas dos transtornos mentais, fundamenta a realização do exame psíquico, pilar do diagnóstico psicopatológico. A semiotécnica refere-se aos procedimentos de observação e coleta dos sinais e sintomas, assim como de sua interpretação; nos casos dos transtornos mentais, a semiotécnica concentra-se na entrevista direta com o paciente, com seus familiares e com as demais pessoas que com ele convivem. Apesar da divisão esquemática apresentada a seguir, vale ressaltar que não existem funções psíquicas isoladas e alterações psicopatológicas desta ou daquela função; é sempre a pessoa na sua totalidade que adoece. QUADRO GERAL DAS FUNÇÕES MENTAIS NO EXAME PSÍQUICO (Dalgalarrondo, 2000, p. 62; ligeiramente ampliado)
• Funções mais afetadas nos transtornos psicorgânicos37: consciência (lucidez / vigilância), atenção, orientação, memória, inteligência e linguagem. • Funções mais afetadas nos transtornos afetivos, neuróticos e da personalidade: afetividade,
vontade
(motivação,
conação),
psicomotricidade,
personalidade
(“caráter”), consciência moral. • Funções mais afetadas nos transtornos psicóticos: sensopercepção, pensamento (incluindo o delírio, alteração do juízo de realidade), vivência do tempo, do espaço e do eu, e linguagem.
37
Kaplan & Sadock (1997, cap. 10) assinalam como transtornos psicorgânicos: delirium, demências, transtornos amnésicos e transtornos mentais devido a uma condição médica geral (transtornos degenerativos, epilepsia, tumores cerebrais, traumatismo craniano, transtornos desmielinizantes, doenças infecciosas, transtornos imunológicos, transtornos endócrinos, transtornos metabólicos, transtornos nutricionais e toxinas).
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6.1. A consciência e suas alterações Existem, basicamente, três dimensões da consciência: da realidade (dimensão neurobiológica): lucidez / vigilância ► CONSCIÊNCIA
do eu (dimensão psicológica): “identidade” moral (dimensão social): conduta ética
Essas três dimensões podem estar alteradas em função de transtornos mentais, por ex., no delirium (ver abaixo), altera-se a consciência da realidade, constatada pela correspondente desorientação alopsíquica ou temporo-espacial; nos transtornos dissociativos do espectro histérico são freqüentes as alterações da consciência do eu, dadas as crises de desorientação autopsíquica; já no transtorno da personalidade antissocial (ou psicopatia), uma grave alteração da consciência moral se manifesta, dada a conduta transgressiva crônica dos psicopatas.
CONSCIÊNCIA → do latim: cum + scio = conhecimento compartilhado (consigo mesmo) ↓ “O conjunto dos rendimentos psíquicos num dado instante” (Karl Jaspers)
ALTERAÇÕES PATOLÓGICAS DA CONSCIÊNCIA
►Quantitativas:
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Constituem os diversos graus de rebaixamento do nível da consciência da realidade (lucidez / vigilância), que sempre possuem causas orgânicas. ● Obnubilação (ou turvação) da consciência (et. latina: ob + nubilare = “pôr uma nuvem na frente”, “enevoar”): redução global do nível de consciência em grau leve a moderado. Diminuição do grau de clareza do sensório, déficit da compreensão e da concentração, pensamento confuso, perplexidade. ● Sopor (torpor ou coma superficial): sono mórbido; bloqueio parcial da ação espontânea; paciente pode reagir a estímulos sonoros intensos e dolorosos. ● Coma (ou coma profundo): nível mais profundo de rebaixamento; ausência de qualquer indício de consciência e bloqueio total da ação espontânea e da sensibilidade. Principal síndrome associada ao rebaixamento do nível da consciência: ● Delirium: abarca o conjunto das “síndromes confusionais agudas” • alteração básica: rebaixamento do nível de consciência (o paciente apresenta-se sonolento, confuso e com déficit cognitivo global). • alterações secundárias: ilusões e alucinações visuais e/ou táteis; idéias deliróides (muitas vezes, persecutórias); ansiedade intensa; labilidade afetiva (podem ocorrer estados de perplexidade, irritação, terror ou pavor); agitação (ou, menos freqüentemente, lentificação) psicomotora; insônia; desorientação alopsíquica. Principais causas (Kaplan, 1997, p. 326): doença do sistema nervoso central (por ex., epilepsia), doença sistêmica (por ex., insuficiência cardíaca) e intoxicação ou abstinência de agentes farmacológicos ou tóxicos.
Delirium ↓ síndrome orgânica (alteração do nível de cs)
≠
Delírio ↓ sintoma (alteração do juízo de realidade)
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Delirium: “síndrome confusional (orgânico-cerebral) aguda”, “psicose tóxica”, “psicose exógena”, “encefalopatia metabólica” e “reação exógena de Bonhoeffer”. OBS: na evolução do quadro clínico, o delirium manifesta-se com mais intensidade à noite e de madrugada quando as alterações secundárias se intensificam, podendo ocorrer também sudorese profunda, tremores grosseiros e febre. Alguns pacientes, inclusive, só se apresentam em estado confusional durante a noite, permanecendo lúcidos no decorrer do dia. Passada a crise, o paciente tem apenas uma vaga lembrança do que ocorreu. Exemplo – José Aparecido, 38 anos, casado, mestre-de-obras, aposentado em virtude de freqüentes internações motivadas pelos excessos alcoólicos. Internado durante a noite, quando apresentava intensa inquietação psicomotora. Pela manhã, ao ser examinado, revelou obnubilação da consciência e alucinações visuais. Passava as mãos por cima da mesa, recolhia alguma coisa, mostrava-a ao médico, algo inexistente em suas mãos, e atirava-a para longe. [...] durante a noite manteve o estado de excitação e, ao ser medicado, tentou agredir o enfermeiro. Gritava sem cessar e, quando o enfermeiro se aproximou para aplicar-lhe uma injeção, correu por entre os leitos da enfermaria e tentou abrir a porta. Forneceu ao médico o seu nome e a sua idade de maneira correta, no entanto, encontra-se desorientado no tempo, no espaço e em suas relações com as pessoas do ambiente. [...] Leu uma carta em papel em branco que lhe foi entregue e admitiu que estava em casa. Informou ao médico que, durante a noite, “os cães ladravam” e ouviu “os passos dos soldados” que se aproximavam para prendê-lo. [...] [parece] encontrar-se em estado [oniróide]. Nos dias seguintes, manteve-se o estado de ânimo ligeiramente eufórico. Disse que se encontrava na clínica porque havia bebido muito e que, de agora em diante, vai abandonar as bebidas. Admite que está enfermo, mas ignora como foi trazido para a clínica. Esclareceu que ouviu “estampidos e toques de campainhas”. Não se recorda de ter agredido sua esposa. (Delirium tremens) (Paim, 1993, p. 187)
Partindo da concepção de Jaspers de que o estado de consciência engloba todas as funções psíquicas, Bastos assinala que “(...) nenhum sintoma psicopatológico tem valor em si mesmo na decorrência de uma redução da consciência. Assim, em termos diagnósticos, de pouco valem uma alucinação, um pensamento incompreensível, um déficit cognitivo, se o paciente se encontra obnubilado” (2000, p. 93).
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►Qualitativas
Constituem os diversos graus de estreitamento da consciência da realidade e do eu, cujas causas podem ser orgânicas ou não. ● Estados crepusculares: estreitamento transitório da consciência, com a conservação de uma conduta mais ou menos coordenada. Déficit da compreensão do mundo exterior. Eventualmente, apresentam-se alucinações e idéias deliróides. Podem ocorrer episódios de descontrole emocional, atos agressivos contra pessoas e atos aparentemente incompreensíveis, como perambular a esmo sem destino. Ocorrem em quadros histéricos agudos, em pacientes epilépticos (relacionado à confusão pós-ictal) e em intoxicações. Exemplo – Joana, 29 anos, sofre de acessos epiléticos típicos desde os 18 anos, com intervalos variáveis de 1 mês a 1 ano. No momento da internação, devido ao estado crepuscular, Joana indica corretamente o caminho percorrido, sabe o dia da semana e o mês correntes. Alguns dias depois começou a ficar agitada e foi necessário conservá-la isolada. Entoava cânticos religiosos e rezava durante a maior parte da noite, falava da localidade rural onde morava e dizia que o seu único desejo era voltar para lá. Desejava entregar ao médico um cartão com o seu endereço na referida localidade, mas as indicações contidas eram de seu endereço atual, na cidade (Joana já havia se mudado há tempos dessa zona rural). Em certos momentos respondia prontamente e de modo correto a determinadas perguntas e, instantes depois, voltava a divagar, deixando-se levar pelas ocorrências até perder a consciência de sua própria situação: dizia nesses momentos que se encontrava na Arca de Noé, que não tinha feito a sua refeição e que as águas ainda não haviam penetrado em seu quarto. Informou ao médico que a senhora W. havia lhe trazido flores, muito embora ninguém da clínica soubesse da existência dessa suposta paciente. Durante horas seguidas manteve um monólogo em tom untuosamente doutrinário e prolixo com conteúdo místico-religioso (Paim, 1993, p. 205-206; ligeiramente modificado).
● Estados dissociativos: na dissociação completa, surgem personalidades múltiplas, geralmente de caráter psicodinamicamente complementar; assim, se a personalidade principal é recatada e séria, a secundária (que pode ser mais de uma) provavelmente terá
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como características o atrevimento e a fanfarronice. Outras formas dissociativas são: as amnésias histéricas, nas quais ocorre perda seletiva da memória relacionada a eventos traumáticos específicos; as fugas histéricas, associadas à perda da memória para eventos específicos (flight = “escapadas”) e desintegração da identidade; as psicoses histéricas, que são quadros pseudo-esquizofrênicos com alucinações e idéias deliróides (chamadas “bouffées
delirantes”);
os
fenômenos
de
transe38,
despersonalização39
e
desrealização40. Ocorrem nas personalidades com traços histéricos (sedução, teatralidade, sugestionabilidade acentuada, carência de atenção, imaturidade e frigidez sexual etc.) e em quadros de ansiedade intensa. Exemplo – Um xerife de 46 anos relatou três episódios de fuga dissociativa. Em cada ocasião, ele se descobriu a cerca de 300 Km de distância de casa. Quando voltava a si, imediatamente chamava a esposa, mas ele nunca se lembrava do que havia feito enquanto estava ausente, às vezes por diversos dias. Durante o tratamento, o xerife lembrou quem ele era durante essas “escapadas”. Apesar de sua profissão, ele se tornou um tipo fora-da-lei, que ele sempre havia admirado inconscientemente. Ele adotou um pseudônimo, bebia muito, misturava-se com pessoas rudes, ia a bordéis e a festas barrapesada (Barlow & Durand, 2008, p. 220).
Os casos acima descritos nos mostram que estreitamentos da consciência do eu podem ou não implicar alterações na consciência moral, como no caso do xerife e no de Joana, respectivamente. Entretanto, o transtorno da personalidade antissocial parece implicar um estreitamento primário da consciência moral, com a preservação da lucidez e da consciência do eu. Vejamos um exemplo ilustrativo nesse sentido: Exemplo – Hank Allen foi condenado pelo homicídio de 10 mulheres. Sua esposa, Jody, que testemunhou contra ele, trabalhava como sua cúmplice, atraindo as vítimas para a morte. Desejando realizar a fantasia de encontrar a “amante perfeita” do marido, Jody acompanhava-o a shopping centers ou feiras e convencia garotas jovens a entrarem em sua caminhonete personalizada. Uma vez ali, as vítimas eram confrontadas com seu
38
Semelhantes a estados hipnóticos. Sentimento de perda ou de transformação do eu, no qual há uma vivência profunda de estranhamento e infamiliaridade consigo mesmo, associada à profunda perplexidade. 40 É a perda da relação de familiaridade com o mundo comum. O cotidiano, o familiar, torna-se estranho, incomum. 39
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marido, que segurava um revólver e as atava com fita adesiva. A maioria das vítimas era adolescente, embora duas das últimas fossem adultas; a mais jovem tinha 13 anos. A vítima mais velha, de 34 anos, era uma garçonete que, ao sair tarde do estabelecimento, certa noite, baixou o vidro de seu automóvel para falar com o casal, que estivera dentro do bar bebendo e agora se aproximava. Os Allen raptaram a mulher e levaram-na à sua própria residência. Enquanto Jody ficou dentro de casa assistindo a um filme antigo na televisão, Hank atacava sua vítima no fundo da caminhonete, obrigando-a a “encenar” o papel da filha adolescente dele. Depois que ele terminou, Jody juntou-se a ele e serviu de motorista, afastando-se de casa nas primeiras horas da manhã, com o rádio em um volume altíssimo para abafar os sons de seu marido no fundo do furgão, estrangulando sua vítima. Naquela noite, o casal celebrou o aniversário de Hank. A maior parte das vítimas de Hank eram loiras, de constituição miúda, como a filha do casal. Todas eram submetidas a abuso sexual, depois recebiam tiros ou eram estranguladas; várias foram enterradas em covas rasas. Uma delas, uma grávida de 21 anos que pedia carona (Jody também estava grávida na época), foi estuprada, estrangulada e enterrada viva na areia. Hank classificava o desempenho sexual de cada uma de suas vítimas, sempre se certificando de que Jody soubesse que não era ela a melhor. Jody tentava melhorar aos olhos do marido submetendo-se a todas as suas exigências. Mesmo quando finalmente separou-se dele, era incapaz de dizer “não”. Após vários meses de separação, Hank telefonou à ex-esposa, pedindo para se encontrarem mais uma vez. Ela concordou e, naquele dia, eles fizeram a nona e a décima vítimas. A violência de Hank era um legado de seu pai. Quando Hank nasceu, seu pai de 19 anos estava cumprindo pena por furto de automóveis e por estelionato. Uma condenação posterior deu-lhe uma pena por assalto à mão armada, mas ele escapou. Em uma saga subseqüente de recaptura, fuga, recaptura e fuga, ele assassinou um policial e um carcereiro, cegando este último ao jogar ácido em seu rosto, antes de espancá-lo até a morte. Pouco antes de ser executado, seu pai escreveu: “Quando matei aquele tira, isto me fez sentir bem. Não sei descrever o quanto me senti bem, porque a sensação era algo que me excitava ao ponto da felicidade...” Ouvindo com freqüência que seria exatamente como seu pai quando crescesse, aos 16 anos Hank soube que o pai fora recapturado e executado na câmara de gás, após seu esconderijo ter sido delatado pela esposa. Hank confessou à polícia, posteriormente: “Às vezes eu [penso] em estourar a cabeça dela... Às vezes, eu queria colocar um revólver em sua boca e explodir aquela cabeça...” Em uma avaliação psiquiátrica forense, Hank revelou que sua mãe era o objeto de sua fantasia sexual mais intensa:
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Eu ia amarrar os pés dela no alto, pendurá-la, tirar suas roupas, rodar seu corpo, pegar uma navalha, fazer pequenos cortes, assim, bem pequenos, olhar o sangue escorrendo, pingando de sua cabeça. Pendurá-la dentro do armário, passar cola de avião e depois tocar fogo em seu corpo. Tatuar “vadia” em sua testa...
A mãe de Hank costumava beber e zombar do filho, que urinou na cama até os 13 anos, chamando-o de “calças mijadas” na frente de visitas. Um dos padrastos puniuo imperiosamente, forçando-o a beber urina e queimando seu pulso com um cigarro. Ao tentar intervir, a mãe de Hank teve sua cabeça agarrada e golpeada com força contra a parede. Daquele ponto em diante ela uniu-se ao padrasto no abuso ativo de seus filhos. Desde muito cedo, Hank tinha pesadelos de ser sufocado por meias de nylon e ser atado a uma cadeira em uma câmara de gás, enquanto um gás verde entrava no ambiente. Hank começou a roubar com um irmão mais velho aos 7 anos, e aos 12 era levado ao juizado de menores. Um ano mais tarde, foi mandado à Autoridade Juvenil da Califórnia por cometer “atos libidinosos e lascivos” com uma menina de 6 anos. Na adolescência, enfrentou denúncias por assalto à mão armada e furtos de automóveis. Faltando habitualmente à escola, ele foi suspenso no segundo grau, aos 17 anos, sendo reprovado com nota mínima em cinco matérias do currículo e obtendo nota zero em cinco categorias de “cidadania”. Naquele mesmo ano, casou-se pela primeira vez. Freqüentemente lançado à inconsciência em brigas de rua, ele entrou em coma por duas vezes, por um breve período aos 16 anos e por mais de uma semana, aos 20. (...) Hank casou-se sete vezes, e espancou cada uma das esposas, às vezes com violência. A maioria dos casamentos não durou mais que alguns meses. Uma das esposas descreveu-o como “dominador” e disse que “ele precisa estar sempre no controle”. Uma outra, que teve tufos de cabelos arrancados de sua cabeça, chamou-o de “Jekyll e Hyde” [personagens do livro O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson]. Outra considerava o ex-marido “odioso”, contando que, quando ela disse que desejava a separação, Hank vingou-se espancando seus pais. O primeiro casamento terminou quando ele golpeou a esposa com um martelo. Ao abandoná-lo, esta substituiu a mãe de Hank em sua fantasia central. Eles haviam casado 5 dias após o nascimento de uma menina, e após a separação iniciou-se um litígio pela custódia. Apesar de seus extensos registros de agressões, furtos e violações da condicional, Hank venceu. Quando estava com 23 anos, Hank iniciou um surto de crimes que cobriu cinco Estados norte-americanos. Roubando automóveis, assaltando à mão armada lojas e bares, ele conseguiu escapar à captura, até ser finalmente pego e condenado por assalto
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à mão armada a um motel. Na penitenciária, onde cumpria pena de 5 anos, ele molestou sua filha de 6 anos pela primeira vez, durante uma visita conjugal. Ao ser libertado, Hank foi viver com sua mãe, que não o visitara durante seus 3 anos e meio na prisão. Enquanto estava ali, envolveu-se com uma mulher a quem engravidou e certa vez chutou da cama, literalmente, ao ver recusado seu desejo de ter intercurso anal. Ele preferiu não desposá-la, ela recordou mais tarde, porque “ele não desejava ter essa responsabilidade”. Treze dias depois que a companheira deu à luz, ele casou-se com outra mulher, sua quinta esposa. Ele estava com 28 anos. Hank e sua quinta esposa separaram-se quando ele foi liberado da condicional. Ele assumiu residência com sua filha de 13 anos, a quem logo engravidou. Ela submeteu-se a um aborto. Nesta época, sua filha substituía sua primeira esposa em sua fantasia favorita, e ele, freqüentemente, estuprava-a no fundo do furgão ao qual ele e Jody atrairiam suas vítimas. Ela fora estuprada pela primeira vez quando estava na quarta série e, durante os 6 anos seguintes, o pai atacava-a pelo menos uma vez por semana. Quando uma amiguinha chegou para uma visita de 2 semanas, ele estuprou-a também. Ele estava com 30 anos, e seu divórcio da quinta esposa ainda não havia sido oficializado quando ele foi morar com Jody. Ao se conhecerem, Hank já fora detido em 23 ocasiões diferentes. No verão seguinte, ele foi despedido de seu emprego como motorista. Ele era demitido com freqüência, e isso, geralmente causava-lhe impotência sexual. Um empregador chamou-o, na época, de “desajustado”. Uma semana antes ele celebrara seu aniversário sodomizando sua filha de 14 anos. Quando a menina finalmente informou as autoridades sobre os 6 anos de abuso, Hank foi trocar de nome. Usando uma carteira de motorista roubada de um policial estadual, ele obteve uma nova certidão de nascimento e número da Previdência Social e se mudou com Jody para outra cidade. Logo após sua última detenção, Hank, um admirador de armas, possuía um rifle semi-automático, uma pistola automática, dois revólveres e uma pistola de grosso calibre. Ele estava trabalhando como garçom. Um colega de trabalho descreveu-o como mulherengo, e disse que as mulheres telefonavam para Hank em seu emprego a qualquer hora. Após desligar, ele dava nota para cada uma. Diversas mulheres referiamse a ele como “Sr. Macho”. Ele também era um bebedor pesado. Jody certa vez alertouo de que dirigir e beber era uma combinação ilegal. “Foda-se a lei”, respondeu. Por seus crimes, ele recebeu múltiplas sentenças de morte (Spitzer et. al, 1996, p. 81-83).
Esse caso talvez não seja o mais ilustrativo da personalidade antissocial, já que constitui a tipologia clássica do psicopata. Um dos maiores estudiosos contemporâneos do
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assunto, Robert Hare (1996), não concorda com a identificação entre psicopatia e personalidade antissocial promovida pelo DSM e pela CID, e considera a psicopatia como a forma mais grave de manifestação do transtorno da personalidade antissocial; haveria, portanto, diversas nuances de manifestações da personalidade antissocial, em cujo extremo (no ápice da perversidade) se encontraria a psicopatia. A grande maioria dos portadores de transtorno da personalidade antissocial são transgressores crônicos leves e não saem por aí cometendo as mesmas atrocidades que o psicopata do caso acima. Todavia, o caso de Hank serve para ilustrar uma alteração primária da consciência moral, típica da psicopatia, na ausência de qualquer alteração da consciência da realidade (lucidez / vigilância) ou da consciência do eu (orientação com relação a si mesmo). Aliás, o que caracterizaria os psicopatas seria, antes, a plena conscientização dos seus atos deliberadamente transgressores, justificados pelo mais completo desprezo que eles nutrem por regras e normas morais (ver Cleckley, 1988). * SONO → o sono normal (cíclico) é uma alteração fisiológica da consciência, ao qual podem associar-se algumas alterações patológicas: terminal: acordar à noite ou cedo demais (depressões endógenas) • insônia inicial: dificuldade para adormecer (depressões ansiosas e reativas) • pesadelos: são sonhos de conteúdo simbólico extremamente angustiante ou assustador • terror noturno: a criança acorda apavorada no meio da noite; não estão diretamente relacionados aos sonhos normais, não tendo qualquer conteúdo nem simbolismo passíveis de interpretação; tende a desaparecer com o amadurecimento. • sonambulismo: consiste em andar ou apresentar atividades psicomotoras complexas
durante
psicopatológico,
o
estando
sono;
em
crianças,
relacionado
à
não
tem
maturação
nenhum tardia;
em
significado adultos,
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relaciona-se
às
situações
de
ansiedade
intensa,
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desequilíbrio
emocional ou conflitos psíquicos graves. • enurese noturna: corresponde à incapacidade da criança em controlar a diurese durante o sono; tal incapacidade, no adulto denomina-se incontinência urinária e está relacionada a causas orgânicas. • narcolepsia: caracteriza-se por súbitos ataques de sono de curta duração durante a vigília. Semiotécnica da consciência (Dalgalarrondo, 2000, p. 70): Lembrar que o rebaixamento do nível de consciência da realidade (lucidez / vigilância), que sempre possui causas orgânicas, repercute no funcionamento global do psiquismo; logo, o nível de consciência deve ser avaliado em primeiro lugar [com isso, visa-se a verificar se outros sintomas psicopatológicos por ventura observados são primários ou secundários a patologias orgânicas]. Observar pela fácies e atitude do paciente se é possível notar que ele está desperto ou sonolento. Observar se o paciente está perplexo, com dificuldade em apreender os estímulos ambientais. Lembrar que é pela orientação (principalmente temporo-espacial ou alopsíquica) que muitas vezes se pode avaliar o nível de consciência. Geralmente, a desorientação que ocorre devido a causas orgânicas (confusional / torporosa) ocorre primeiramente quanto ao tempo; com o rebaixamento progressivo do nível de consciência é que o indivíduo desorienta-se quanto ao espaço e, só por último, quanto a si mesmo. OBS: semelhanças com a Lei da Regressão Mnêmica de Ribot - o indivíduo que sofre de amnésia orgânica tende a perder os conteúdos mnêmicos na ordem e no sentido inversos em que os adquiriu: • elementos mais recentes → mais antigos;
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• elementos mais complexos → mais simples; • elementos menos habituais → mais familiares. CONCLUSÃO: desorientação e amnésia seletivas - indícios de que sejam psicogênicas.
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6.2. A atenção, a orientação, as vivências do tempo e do espaço e suas alterações A ATENÇÃO E SUAS ALTERAÇÕES ATENÇÃO: direção da consciência, concentração mental sobre determinado estímulo. Segundo Bleuler, seus dois aspectos básicos são: ►TENACIDADE: atenção concentrada; capacidade de fixação da atenção sobre determinado estímulo. ►VIGILÂNCIA: atenção difusa; estado de alerta para os estímulos vindos do meio ambiente e do próprio organismo – permite ao indivíduo mudar seu foco de um estímulo para o outro. ALTERAÇÕES PATOLÓGICAS DA ATENÇÃO
►Quantitativas • Hipoprosexia (do grego: hypo = sob, abaixo; prosektikos = atento): déficit global da atenção com hipotenacidade e hipovigilância; pode ocorrer nos estados depressivos, na esquizofrenia e nas alterações do estado de consciência (obnubilação e sopor). • Aprosexia: perda total da capacidade de atenção; ocorre nos estados estuporosos (estupor depressivo, catatônico, orgânico etc.). ►Qualitativas (DISPROSEXIAS; do grego: dys = mal, ruim, inadequado) • Hipervigilância (do grego: hyper = sobre, além): geralmente acompanhada de hipotenacidade; ocorre na esquizofrenia e em estados de grande excitação, como na mania, no uso de psicoestimulantes, no TDAH e situações de ansiedade [alguns autores, como Dalgalarrondo (2000, p. 72) e Paim (1993, p. 171), designam hiperproxesia (sic.) essa alteração da atenção].
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• Hipertenacidade: geralmente acompanhada de hipovigilância; ocorre na paranóia, em alguns quadros obsessivos e nas depressões graves; OBS: não há alteração quantitativa da atenção no sentido de seu aumento global (“hiperproxesia” = hipervigilância e hipertenacidade), uma vez que tal alteração também não é possível no nível da consciência. Cheniaux (2008, p. 15) assinala que, apesar de alguns autores falarem em elevação do nível de consciência (ou “hiperlucidez”), essa alteração não teria base empírica. Por ex., na intoxicação por alucinógenos (LSD, mescalina, ecstasy etc.) haveria um aumento de intensidade das sensações, do afeto, da memória de evocação etc.; todavia, isso se daria com prejuízos na capacidade de concentração, raciocínio, memória de fixação etc. Trata-se de uma opinião sensata, a qual endossamos aqui. Sendo a consciência “a síntese das funções mentais num dado momento” (Jaspers, 1985), a intensificação de algumas dessas funções implica o prejuízo de outras. Semiotécnica simplificada da atenção (Dalgalarrondo, 2000, p. 72): A avaliação mais simples e prática da atenção é pedir ao paciente que olhe os objetos que estão no recinto onde se realiza a entrevista e que, logo em seguida, repita de cabeça o que viu. Prova de repetição de dígitos (dígito span): pede-se ao paciente que repita uma série de dígitos que pronunciamos em voz alta, de forma pausada, evitando-se tudo o que possa distrair o sujeito: 2-7/ 4-9/ 5-8-2/ 6-9-4/ 6-4-3-9/ 7-2-8-6/ 4-2-7-3-1/ 7-5-8-36/ 6-1-9-4-7-3/ 3-9-2-4-8-7/ 5-9-1-7-4-2-8/ 4-1-7-9-3-8-6... O adulto sem alterações da atenção repete de seis a sete dígitos.
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A ORIENTAÇÃO E SUAS ALTERAÇÕES ORIENTAÇÃO: capacidade de situar-se quanto a si mesmo (orientação autopsíquica) quanto ao ambiente (orientação alopsíquica = referente ao espaço e ao tempo); usada para avaliação do estado de consciência e da capacidade cognitiva.
Com relação ao grau de complexidade da orientação e segundo a ordem crescente de aquisição psíquica temos: autopsíquica → espacial → temporal. Assim, um bebê que mal se equilibra com as próprias pernas já é capaz de responder quando chamado pelo seu nome próprio, o que é um índice de orientação autopsíquica, mesmo que primitiva; contudo, esse mesmo bebê, provavelmente, só adquirirá a capacidade de se orientar no tempo a partir dos 7 anos de idade, dada a complexidade do conceito de “tempo” e as habilidades cognitivas necessárias para manejá-lo. ►Nos casos de alterações da consciência por causas orgânicas, a perda da capacidade de orientação se dá na ordem inversa à aquisição: temporal
espacial
autopsíquica (ver Semiotécnica da consciência acima).
ALTERAÇÕES PATOLÓGICAS DA ORIENTAÇÃO Adjetiva-se a desorientação em função de sua causa: • desorientação torporosa ou confusa: desorientação por turvação da consciência; incapacidade de apreensão do real de forma clara e precisa; forma mais comum de desorientação.
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• desorientação amnésica: desorientação por déficit de memória de fixação; incapacidade de fixação na memória de informações ambientais básicas; típica da síndrome de Kosakoff, associada ao alcoolismo crônico. • desorientação demencial: além da perda da memória de fixação, ocorrem déficits de reconhecimento (agnosias) e perda global da capacidade cognitiva; típica dos quadros demenciais (Parkinson, Alzheimer...). • desorientação apática ou abúlica: desorientação por apatia e/ou desinteresse profundos; desorientação causada por uma marcante alteração da afetividade e/ou da vontade; ocorre nas depressões graves. • desorientação delirante: num fenômeno conhecido por “dupla orientação”, o indivíduo que vivencia idéias delirantes muito intensas crê com convicção que habita o lugar de seus delírios, ao mesmo tempo em que reconhece corretamente onde está. • desorientação oligofrênica: indivíduos com graves déficits cognitivos podem ter dificuldade ou mesmo incapacidade para compreensão das noções de espaço e tempo. • desorientação histérica: ocorre em quadros histéricos graves, geralmente acompanhada de alterações da identidade pessoal (“possessão histérica”, p. ex.) e da consciência do eu (dissociação histérica). • desorientação por desagregação: ocorre com maior freqüência em pacientes esquizofrênicos crônicos, devido à desagregação profunda do pensamento e à conseqüente desorganização acentuada da atividade mental.
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VIVÊNCIAS DO TEMPO E DO ESPAÇO ALTERAÇÕES PATOLÓGICAS DAS VIVÊNCIAS DO TEMPO E DO ESPAÇO As principais alterações patológicas das vivências do tempo e do espaço ocorrem na mania e nas depressões: • mania: devido ao taquipsiquismo, onde há aceleração de todas as funções psíquicas (pensamento, psicomotricidade, linguagem etc.), a passagem do tempo é percebida como acelerada; o indivíduo que apresenta um quadro maníaco desconhece as fronteiras espaciais e vive como se todo o espaço externo fosse seu, apresentando-se como extremamente invasivo e inconveniente. • depressões: devido ao bradipsiquismo, onde há a lentificação de todas as funções psíquicas (pensamento, psicomotricidade, linguagem etc.), a passagem do tempo é percebida como lenta e vagarosa; o depressivo vivencia o espaço externo como muito encolhido, contraído, escuro e pouco penetrável. Outras alterações patológicas das vivências do tempo e do espaço: • quadros de ansiedade: os pacientes descrevem uma “pressão” do tempo, como se o tempo de que dispõem fosse sempre insuficiente (sensação de “não dar conta do recado” no prazo estabelecido). • quadros obsessivo-compulsivos: os pacientes experimentam ocasionalmente uma lentificação enorme de todas as atividades, principalmente quando devem completar uma tarefa. • quadros paranóides: o indivíduo vivencia o seu espaço interno como invadido por aspectos ameaçadores, perigosos e hostis do mundo; o espaço externo é vivenciado como invasivo, fonte de mil perigos e ameaças. • agorafobia: o espaço externo é percebido como sufocante, perigoso e potencialmente aniquilador.
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6.3. A sensopercepção e suas alterações SENSOPERCEPÇÃO – é o processo pelo qual os estímulos sensoriais (visuais, táteis, auditivos, olfativos, gustativos, proprioceptivos e cenestésicos) são recebidos pelos órgãos dos sentidos e reconhecidos (percebidos) pela consciência do indivíduo. Diferencia-se a percepção, apreensão cognitiva de um objeto externo e real, isto é, localizado fora da consciência, da representação (“re - apresentação”), reprodução mnêmica da imagem de um objeto. PERCEPÇÃO
REPRESENTAÇÃO
CORPOREIDADE (os objetos são
AUSÊNCIA DE CORPOREIDADE (a imagem
tridimensionais)
dos objetos é bidimensional)
EXTROJEÇÃO (os objetos estão localizados no
INTROJEÇÃO (os objetos estão localizados no
espaço externo)
espaço subjetivo interno)
NITIDEZ (os contornos dos objetos são precisos)
IMPRECISÃO
FRESCOR SENSORIAL (a percepção é vívida;
FALTA DE FRESCOR SENSORIAL
por ex: cores brilhantes) ESTABILIDADE (a imagem é constante, não
INSTABILIDADE
desaparece nem se modifica repentinamente) AUSÊNCIA DE INFLUÊNCIA PELA
POSSIBILIDADE DE INFLUÊNCIA PELA
VONTADE (a imagem é aceita passivamente pelo
VONTADE
indivíduo, que não pode evocá-la nem modificá-la arbitrariamente)
ALTERAÇÕES PATOLÓGICAS DA SENSOPERCEPÇÃO ► Quantitativas – as sensopercepções adquirem uma intensidade anormal, seja para mais ou para menos. • Hiperestesia (do grego: aisthesis = sensação): aumento da intensidade das sensações; ocorre nas intoxicações por alucinógenos, na epilepsia, no surto esquizofrênico, na mania etc. Ex. de hiperestesia: “[...] sinto cada palavra dita a mim ou nas proximidades, cada passo humano que ouço, cada apito do trem de ferro, cada disparo de morteiros que é dado provavelmente por barcos a vapor em viagens de recreação etc., ao mesmo tempo como
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uma pancada dada na minha cabeça, que provoca nela uma sensação mais ou menos dolorosa, mais dolorosa se Deus se retirou para uma distância maior, menos dolorosa se ele permanece mais próximo.” (Schreber, 1903/1995, p. 88)
• Hipoestesia: diminuição da sensibilidade sensorial; ocorre em pacientes depressivos. • Anestesia: abolição da sensibilidade; ocorre em estados graves de turvação da consciência e em pacientes histéricos (conversão: não segue leis biológicas). • Analgesia (do grego: algos = dor): perda da sensibilidade à dor, com a preservação de outras formas de sensibilidade – tátil, térmica e discriminatória; ocorre na histeria e nos estados estuporosos.
►Qualitativas – são as alterações funcionais da sensopercepção. ■ Ilusão (do latim illusionem = engano, fantasia, miragem, logro, ludíbrio): é a percepção deformada de um objeto real e presente; deve-se ao rebaixamento do nível de consciência (obnubilação/turvação), à perturbação da atenção e às influências emocionais (catatímicas). Ex.: “Depois da troca dos guardas ― junto à minha cama ficava sempre um guarda, que, no meio da noite, era substituído por outro ―, acabaram dando-me algo pra dormir [...] e de fato conciliei um pouco o sono, que não me trouxe, contudo, nenhum efeito revigorante para o meu estado nervoso. Pelo contrário, na manhã seguinte encontravame no estado de velha prostração nervosa, tão profunda que vomitei o café da manhã que me trouxeram. Ao despertar tive uma impressão particularmente assustadora do rosto totalmente decomposto que acreditei perceber no enfermeiro R.” (Schreber, 1903/1995, p. 58; grifo nosso)
■ Alucinação (do latim, alucinare = dementado, enlouquecido, privado de razão) é a percepção de um objeto que não se encontra presente; o objeto alucinado se apresenta como algo estranho ao sujeito, que crê piamente na sua realidade (ausência de crítica).
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Segundo Mira y López (apud Paim, 1993, p. 41), na alucinação, a representação adquire as qualidades necessárias para ser aceita pelo juízo de realidade como percepção. São características das alucinações: (1) nitidez sensorial; (2) projeção para o exterior; (3) intensidade; (4) impressão de realidade; (5) valor emocional (Paim, op. cit., p. 43). Podem ser: (1) elementares – quando contém apenas os elementos de uma sensação, por ex., chamas, clarões, pontos brilhantes, ruídos etc.; (2) complexas – figuras, palavras, frases, pessoas, cenas estáticas ou em movimento etc. • Alucinações visuais – variam desde as visões de imagens simples chamadas “fotopsias” (cores, bolas, pontos brilhantes etc.), típicas da epilepsia, até visões de cenas complexas (“alucinações cenográficas”); embora ocorram nas psicoses funcionais (esquizofrenias, melancolia/mania e paranóia), as alucinações visuais são mais freqüentes no delirium e nas psicoses exógenas ― desencadeadas por drogas. Exs.: “[...] Mais tarde, quando pude voltar regularmente para o jardim, vi [...] dois sóis de uma vez no céu, dos quais um devia ser o nosso Sol terrestre, o outro, a constelação de Cassiopéia, condensada em um único Sol.” (Schreber, 1903/1995, p. 78) “Num dos dias subseqüentes [...] eu vi o deus superior (Ormuzd), dessa vez não com meu olho espiritual, mas com meu olho carnal. Era o Sol, mas não o Sol em sua aparência comum, conhecida por todos os homens, mas rodeado por um mar de raios prateados resplandecentes [...] a visão era de uma grandiosidade e magnificência tão imponentes que eu evitei olhar fixamente para ela, procurando desviar a vista daquela aparição.” (ibid., p. 120-121)
Subtipos de alucinações visuais: liliputianas (visão de personagens minúsculos), autoscópica (visão de si mesmo), extracampinas (visão localizada fora do campo sensorial). Ex.: “Os milagres operados de diversos modos em meus olhos, nos primeiros meses de minha estada [na clínica Sonnenstein], ficaram a cargo de ‘homúnculos’ [...] Esses ‘homúnculos’ eram um dos fenômenos mais notáveis e mesmo para mim, num certo sentido, dos mais enigmáticos; não tenho a menor dúvida sobre a realidade objetiva
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desses fenômenos depois de ter visto, com meu olho espiritual, esses ‘homúnculos’, em inúmeros casos, e ouvido sua voz. O estranho no caso era que as almas ou nervos isolados [...] assumiam a forma de figuras humanas minúsculas [...] e como tais se imiscuíam em parte no interior do corpo, em parte na sua superfície externa. Os que se ocupavam de abrir e fechar os olhos ficavam em cima dos olhos, nos supercílios, e de lá puxavam as pálpebras para cima e para baixo, a seu bel-prazer, servindo-se de fios muito finos, semelhantes a fios de teia de aranha. Também aqui eram, via de regra, um ‘pequeno Flechsig’ e um ‘pequeno von W.’ [supostos perseguidores]” (Schreber, 1903/1995, p. 133; grifo nosso)
• Alucinações auditivas – são as mais comuns; podem ser elementares (ruídos, zumbidos, estalidos etc.) ou complexas (palavras, frases, músicas etc.) ― chamadas “alucinações auditivo-verbais” (ou, tão somente, “alucinações verbais”). Ex.: “Pelo menos nos primeiros anos, era totalmente inevitável para os meus nervos a necessidade de continuar a pensar, de responder às perguntas feitas [pelas vozes], de completar do ponto de vista estilístico as frases interrompidas etc.; só com o correr dos anos consegui, pouco a pouco, que meus nervos (meu ‘subsolo’) se acostumassem, pelo menos em parte, a transformar as palavras e locuções enunciadas, por meio da simples repetição, em pensamento-de-não-pensar-em-nada, ignorando, portanto, o estímulo que por si só levaria a continuar a pensar.” (Schreber, 1903/1995, p. 178) “Tocar piano e ler livros ou jornais — à medida que o estado da minha cabeça o permite — são os principais meios de defesa; a isso sucumbem até mesmo as vozes esticadas ao máximo. Para os momentos do dia, como à noite, em que isso não é adequado, ou quando uma mudança da atividade se torna uma necessidade do espírito, encontrei na memorização de poesias um recurso extremamente bem-sucedido. Decorei um grande número de poesias, em particular baladas de Schiller, longos trechos dos dramas de Schiller e Goethe, e também árias de óperas e poemas satíricos, entre outros, de Max e Moritz, de João Felpudo e das fábulas de Spekter, que depois eu recito em silencioso verbotemus. Naturalmente, aqui não se trata do valor literário das poesias em si; qualquer rima, por mais insignificante que seja, até mesmo qualquer verso obsceno, vale ouro como alimento para o espírito em comparação com as incríveis bobagens que de outro modo meus nervos seriam obrigados a escutar.” (Schreber, 1903/1995, p. 180).
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Subtipos de alucinações auditivo-verbais: (1) sonorização do pensamento; (2) vozes que dialogam entre si; (3) vozes que comandam a ação. • Alucinações táteis - sensação de espetadas, choques, insetos ou pequenos animais correndo sobre a pele; é comum no delirium tremens (alcoólico) e nos quadros de delirium desencadeados por cocaína. • Alucinações olfativas e gustativas – são relativamente raras; manifestam-se geralmente como o sentir o cheiro e o gosto de coisas podres, de cadáveres, fezes, veneno etc., vindo acompanhadas de forte impacto emocional; ocorrem nas esquizofrenias e na paranóia. Ex: “[...] As almas ainda em processo de purificação se denominavam, em gradações diversas, ‘satãs’, ‘diabos’, ‘diabos auxiliares’, ‘diabos superiores’ e ‘diabos inferiores’; essa última expressão parecia aludir a uma estada subterrânea. Os ‘diabos’ [...] tinham uma cor peculiar (algo como vermelho-cenoura) e um particular odor repugnante que eu próprio pude constatar em muitas oportunidades no chamado Sanatório Pierson em Coswig (que denominei como ‘cozinha do diabo’).” (Schreber, 1903/1995, p. 38; grifo nosso)
• Alucinações cenestésicas (do grego: koinos = comum) - são sensações anormais do esquema corporal: cérebro encolhendo, fígado apodrecendo, cobra dentro do abdome etc.; geralmente, associam-se ao delírio de influência física; ocorrem nas esquizofrenias (vivência do “corpo despedaçado”) e na melancolia, sendo conhecidos como “Síndrome de Cotard”. Ex.: “[...] posso apenas assegurar que nenhuma recordação da minha vida é mais segura do que os milagres relatados no presente capítulo. Pois o que pode haver de mais certo para o homem do que aquilo que ele experimenta e sente no seu próprio corpo?” (Schreber, 1903/1995, p. 128, n. 68; grifo nosso). “[...] não há um único membro ou órgão do meu corpo que não tenha sido durante um tempo prejudicado por milagres, nem um único músculo que não tenha sido distendido por milagre, para pô-lo em movimento ou paralisá-lo [...]” (Ibid., p. 127).
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“[sofri] todo tipo de modificações nas minhas partes sexuais [...] retração do membro viril [...] amolecimento do membro que se aproximava da mais completa dissolução [...] eu tive um outro coração [...] repetidas vezes introduziu-se em mim um ‘verme pulmonar’ [...] uma parte mais ou menos considerável das minhas costelas foi temporariamente destruída [...] vivi sem estômago [...] o esôfago e os intestinos foram dilacerados ou desapareceram, a laringe, que mais de uma vez degluti junto com o alimento [...] muitas vezes o meu crânio era como que serrado em várias direções [...].” (ibid., p. 127-131)
• Alucinações cinestésicas (do grego: kinesis = ação de mover[-se], movimento) - são sensações alternadas de movimentos corporais (ex: corpo afundando, pernas encolhendo, braço levantando etc.); podem ocorrer nas esquizofrenias (sobretudo catatônicas) e na histeria; ocorrem com maior freqüência em pacientes neurológicos. • Alucinações sinestésicas (sinestesia; do grego: syn = união, junção; “sensação ou percepção simultânea”) - ocorrem alucinações de várias modalidades sensoriais (auditivas, visuais, táteis etc.) ao mesmo tempo; ocorrem com maior freqüência no delirium, embora possam ocorrer também nas esquizofrenias e nas formas graves de histeria. ■ Alucinose - é um tipo de “alucinação visual ou auditiva” na qual o indivíduo mantém sua consciência crítica, percebendo-a como estranha à sua pessoa; apesar de enxergar a imagem ou ouvir as vozes, falta ao indivíduo a crença na realidade de tais sensopercepções, portanto, ele não reage afetivamente da forma como reagiria um esquizofrênico diante de uma alucinação; associam-se a causas orgânicas: lesões cerebrais, intoxicação por alucinógenos, epilepsia, enxaqueca etc. Ex. - as visões da freira e mística Hildegarda de Bingen (1098-1180) associadas à aura enxaquecosa: “As visões que vi, não as contemplei durante o sono, nem em sonhos, nem na loucura [...] mas acordada, alerta [...]; eu as percebo com a vista desimpedida [...]” (apud Sacks, 1997, p. 186)
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“Vi uma grande estrela, esplêndida e belíssima, e com ela uma imensa multidão de estrelas cadentes que a acompanhavam em direção ao sul [...] E subitamente foram todas aniquiladas, transformadas em carvões negros [...] e lançadas no abismo, de modo que eu não mais as pude ver.” (ibid., p. 188)
Vozes que falam ao paciente na 3ª pessoa (“Fulano é mesmo um frouxo”) ou falam com ele humilhando-o, desprezando-o, na alucinose alcoólica (ocorrem com lucidez da consciência), constituem outros exemplos. ■ Pseudo-alucinações – neste caso, o objeto percebido assemelha-se a sua imagem representativa, devido à carência de corporeidade e de extrojeção; o paciente reconhece sua origem intra-psíquica (são imagens ou vozes que vêm de dentro da mente), muito embora não haja consciência crítica. O paciente alega: “é como se fosse uma voz interna falando comigo” ― ‘como se’ aqui deve ser entendido no sentido de não perceber nitidamente a voz, e não no sentido de desconfiar de sua existência; pode ocorrer nas psicoses funcionais e orgânicas. Vale ressaltar que qualquer termo definido negativamente, como o prefixo pseudo (em grego: “falso”) o atesta, é considerado pouco consistente, pois depende da validade de outro, no caso, o de alucinação.
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6.4. A memória e suas alterações MEMÓRIA COGNITIVA (ou PSICOLÓGICA) – capacidade de registrar, conservar e evocar os fatos já ocorridos; relaciona-se com o nível de consciência, com a atenção e com o interesse afetivo. FATORES PSICOLÓGICOS DO PROCESSO DE MEMORIZAÇÃO • Fixação – assimilação de novos conteúdos. • Conservação – acomodação dos novos conteúdos, a partir de sua associação com outros pré-existentes. • Evocação – capacidade de recuperar e atualizar os conteúdos fixados; seu oposto é o esquecimento. DIVISÃO DA MEMÓRIA SEGUNDO O TEMPO DE FIXAÇÃO E EVOCAÇÃO • Memória Imediata (ou de Curtíssimo Prazo) – confunde-se com a atenção; capacidade imediata de retenção das informações – depende da concentração, da fadigabilidade e de um certo treino; por ex., decorar um número de telefone para se fazer uma única chamada. • Memória Recente (ou de Curto Prazo) – capacidade de retenção das informações por um período curto de tempo, desde alguns minutos até 1 h; um exemplo nesse sentido são as acaloradas discussões nos corredores das universidades após o término das aulas mais polêmicas, tão logo esquecidas pelos debatedores ao chegarem em casa. • Memória Remota (ou de Longo Prazo) – capacidade de evocação das informações e acontecimentos ocorridos no passado, geralmente meses ou anos após o evento; cabe ressaltar que nossa memória de longo prazo é seletiva e depende do nosso investimento afetivo, já que não temos condições de nos lembrar de todos os fatos que vivenciamos. O escritor argentino, Jorge Luis Borges, em seu conto Funes, o memorioso, assinala o drama e a opressão que poderia se tornar a aquisição por alguém de uma memória
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prodigiosa, associada a uma percepção não-seletiva e exata do mundo; assim, seu personagem principal, Irineu Funes (cujo epíteto é “o memorioso”), a quem “(...) a menos importante de suas lembranças era mais minuciosa e mais viva que nossa percepção de um prazer físico ou de um tormento físico” (Borges, 2001, p. 128), passava os dias absorto em seus dois projetos mirabolantes: a construção de um vocabulário infinito para a série natural dos números e de um catálogo mental de todas as imagens da lembrança — cujo teor inútil e interminável de tais empreendimentos não lhe era estranho. “(...) ninguém (...) sentiu o calor e a pressão de uma realidade tão infatigável como a que dia e noite convergia sobre o infeliz Irineu (...)” (ibid., p. 127). Assinalando a mera extravagância despropositada constituída pelos inigualáveis dons perceptivos e mnemônicos de Funes, eis as penúltimas frases do narrador do conto: “Pensei que cada uma de minhas palavras (que cada um de meus gestos) perduraria em sua implacável memória; entorpeceu-me o temor de multiplicar gestos inúteis” (ibid., p. 128) 41. LEI DA REGRESSÃO MNÊMICA DE RIBOT (LEI DE RIBOT) O indivíduo que sofre uma lesão cerebral tende a perder os conteúdos da memória (esquecimento) na ordem e no sentido inverso que os adquiriu: • elementos recentemente adquiridos
elementos mais antigos
• elementos mais complexos
elementos mais simples
• elementos mais estranhos (menos habituais)
elementos mais familiares
ALTERAÇÕES PATOLÓGICAS DA MEMÓRIA
►Quantitativas: • Hipermnésias – relacionada à aceleração geral do psiquismo, na qual as representações afluem rapidamente à consciência; típica dos quadros maníacos.
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Freud [1915] mostrou o quanto o “esquecimento seletivo”, que consiste no apagamento da consciência de traços mnêmicos afetivamente dolorosos (ou “traumáticos”), por intermédio do mecanismo de defesa do ego chamado recalque (Verdrängung), contribui para a manutenção de uma certa economia psíquica saudável, apesar de conflitante.
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• Amnésias (ou Hipomnésia) – é a perda da memória, seja a perda da capacidade de fixar novos elementos ou da capacidade de manter e evocar conteúdos mnêmicos antigos; subdivide-se em: Quanto à causa: Amnésia Psicogênica – é a perda seletiva da memória; o indivíduo esquece conteúdos que têm valor psicológico específico (valor simbólico, afetivo). Amnésia Orgânica – é a perda não-seletiva da memória, que segue a Lei de Ribot. Quanto ao conteúdo: Amnésia Anterógrada – perda da capacidade de fixação de elementos mnêmicos a partir do momento do trauma cerebral; pode ocorrer em lesões cerebrais agudas ou crônicas. Amnésia Retrógrada – perda da capacidade de evocar elementos mnêmicos anteriores ao trauma (ou doença); este tipo de amnésia sem amnésia anterógrada pode ocorrer nos quadros dissociativos histéricos. Amnésia Retroanterógrada – déficit de fixação e evocação de fatos ocorridos tanto antes quanto depois do trauma ou da doença; típica dos quadros demenciais (Parkinson, Alzheimer etc.).
►Qualitativas: PARAMNÉSIAS: consiste na deformação do processo de evocação de conteúdos mnêmicos previamente fixados; o indivíduo tem uma lembrança deformada que não corresponde à sensopercepção original.
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• Ilusões mnêmicas – há a distorção de um núcleo verdadeiro da memória; ocorre na esquizofrenia, na paranóia, na histeria grave e nos transtornos da personalidade. • Alucinações mnêmicas – são falsas lembranças criadas pelo indivíduo, que as crê reais; ocorre principalmente na esquizofrenia e em outras psicoses funcionais. • Fabulação (ou Confabulação) – são falsas lembranças criadas pelo indivíduo visando a suprir uma lacuna em sua memória, causada por um déficit de fixação (podem ser induzidas pelo entrevistador); ocorrem na Síndrome de Korsakoff (secundária ao alcoolismo crônico), em traumas cranioencefálicos etc. • Criptomnésias (do grego krypton = oculta) – é um falseamento da memória no qual as lembranças aparecem como fatos novos ao paciente. Ex: paciente com Mal de Alzheimer que repete ao grupo a mesma piada contada minutos antes por um colega seu. • Ecmnésias – é a recapitulação e revivescência intensa, abreviada e panorâmica da própria existência (visão de cenas passadas); pode ocorrer em paciente epilépticos. Visão Panorâmica da Vida – tipo de ecmnésia que pode ocorrer em situações de morte iminente, geralmente por afogamento ou sufocamento. • Lembrança obsessiva (ou Idéia Fixa) – surgimento de imagens mnêmicas ou idéias indesejáveis que se instalam na consciência do indivíduo à sua revelia, não podendo ser repelidos voluntariamente. TRANSTORNOS DO
→ Agnosias (causa orgânica)
RECONHECIMENTO
→ T. R. associados aos T. M. (causa psíquica)
AGNOSIAS – déficits de reconhecimento de estímulos sensoriais (visuais, auditivos, táteis etc.) que não podem ser explicados por um déficit sensorial, por transtornos da linguagem ou por perdas cognitivas globais; pertencem ao campo da neurologia.
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TRANSTORNOS DO RECONHECIMENTO ASSOCIADOS A TRANSTORNOS MENTAIS • Síndrome de Capgras – (falso desconhecimento); o paciente acredita piamente que seu familiar é, na verdade, um sósia idêntico que tomou seu lugar. • Síndrome de Frégoli – (falso reconhecimento); o paciente identifica uma pessoa estranha como sendo de seu círculo familiar. • Síndrome de Intermetamorfose – (falso reconhecimento); o paciente relata semelhanças físicas e psicológicas entre seu familiar e um estranho, ambos identificados como perseguidores. • Síndrome do Duplo Subjetivo – (falso desconhecimento); análoga à Síndrome de Capgras, apenas o sósia, neste caso, é o próprio paciente. Ocorrem com maior freqüência associadas à esquizofrenia, às depressões graves e síndromes psicorgânicas agudas e crônicas. • Fenômeno do Déjà-vú – sensação falsa de já ter visto algo com o qual ainda não se está familiarizado. • Fenômeno do Jamais-vú – sensação falsa de desconhecer algo com o qual já se está devidamente familiarizado. Ocorrem nos estados de esgotamento, em psicoses tóxicas, na epilepsia etc. • Pseudologia Fantástica – o paciente recorda uma experiência imaginária passada como se tivesse ocorrido verdadeiramente; os relatos são geralmente grandiosos e extremos, e o paciente parece acreditar plenamente no que relata; ocorre nos transtornos da personalidade (sobretudo histriônica e antissocial), nas histerias graves e em deficientes mentais.
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6.5. A afetividade e suas alterações ► AFETO (do latim afficere = influenciar, afetar): termo genérico usado para designar os elementos da vida afetiva (emoção, paixão, sentimento e humor). • Emoção e Paixão: estados afetivos súbitos, de grande intensidade, que se acompanham de alterações corporais, relacionadas a uma hiperatividade autonômica; as emoções têm uma duração mais curta do que as paixões. • Sentimento: quando comparado às emoções e às paixões, é um estado afetivo mais estável e menos intenso, sem alterações corporais, resultante de maior processamento cognitivo. • Humor: constitui o estado basal e fundamental, que se caracteriza por ser difuso, isto é, não relacionado a um objeto específico, e por ser, em geral, persistente e não-reativo; oscila entre os pólos da alegria, tristeza, irritabilidade e ansiedade.
ALTERAÇÕES PATOLÓGICAS DO AFETO Alterações do humor ■ HUMOR ALEGRE (euforia ou alegria patológica): humor morbidamente exagerado no qual predomina um estado de alegria intensa (sensações de satisfação plena e potência), desproporcional às circunstâncias; como conseqüência, há uma aceleração de todas as funções psíquicas. Associa-se aos quadros maníaco e hipomaníaco. Ex.: “Antes que Billy atingisse a ala, você poderia ouvi-lo rindo e mantendo uma voz profunda, parecia estar em um momento maravilhoso. Quando a enfermeira o trouxe para a parte de baixo do saguão para apresentá-lo à equipe, ele mirou a mesa de pingue-pongue. Em voz alta, ele exclamou: ‘Pingue-Pongue! Eu amo pingue-pongue! Joguei apenas duas vezes, mas é isso o que eu vou fazer enquanto estiver aqui; vou me tornar o maior jogador de pingue-pongue do mundo! E aquela mesa é deslumbrante!
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Vou começar a trabalhar aquela mesa imediatamente e torná-la a melhor mesa de pingue-pongue do mundo. Vou areá-la, levá-la para o outro lado e reconstruí-la até que ela brilhe, e cada ângulo seja perfeito!’ E logo Billy continuava com alguma outra coisa que lhe absorvera a atenção. Na semana anterior, ele esvaziou a conta bancária, pegou seus cartões de crédito e os dos parentes idosos com os quais ele estava morando e adquiriu os mais extravagantes aparelhos de som estéreo. Ele achava que iria montar o melhor estúdio de som da cidade e faria milhões de dólares alugando-o para pessoas que viriam de toda parte. Esse episódio precipitou sua internação.” (Barlow & Durand, 2008, p. 248)
Semiotécnica (Dalgalarrondo, 2000, p. 110): Sente-se mais alegre do que o comum? Mais disposto(a)? Tem, nos últimos dias, mais vontade de falar e andar do que geralmente? Sente-se mais forte? Mais poderoso(a)? Sente o tempo passar mais rápido? Tem muitos amigos? Eles são importantes? Tem propriedades ou é uma pessoa influente? Você se acha inteligente? Acha-se uma pessoa especial? ■ HUMOR TRISTE (tristeza patológica): humor morbidamente rebaixado no qual predomina um estado de tristeza profunda e imotivada (perda do élan vital), que se acompanha de lentificação e inibição de todos os processos psíquicos. Associa-se aos quadros depressivos psicóticos. Ex.: “Como se fosse uma onda de sofrimento, de incompreensão, de desarmonia, de impotência; um estranho sentimento, muito íntimo, de ausência de vontade de agir... Sem desejo para nada... Há ausência quase absoluta dessa força espiritual que impulsiona as idéias e nos faz pensar em algo... Parece que o meu receptor mental, que normalmente tem certa quantidade de fluido gerador de força, tinha carga muito reduzida... Diríamos como a luz amarela de um carro com acumulador descarregado, que só ilumina um metro do caminho, impossibilitando a visão da perspectiva. O que se experimenta com maior intensidade é uma enorme onda de algo que é mais do que sofrimento e impotência juntos, que asfixia o espírito... Sinto enorme peso de arrependimento e pesar por ter ocasionado sofrimento aos meus, pois eu matei minha mãe de preocupação com todas as minhas loucuras. Tudo isso me faz desejar a morte...” (Paim, 1993, p. 223).
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Semiotécnica (Dalgalarrondo, 2000, p. 110): Você tem se sentido triste ultimamente? Desanimado(a)? As coisas que lhe davam prazer agora lhe são indiferentes? Sente-se cansado(a), sem energia? Sente-se fraco(a)? Não se alegra mais com nada? Perdeu (ou aumentou) o apetite ou o sono? Perdeu o interesse pelas coisas? Tem vontade de sumir ou morrer? Sente que não tem mais saída (desesperança)? Sente tédio? Realizar as tarefas rotineiras passou a ser um grande fardo para você? Prefere se isolar, não receber visitas? Sente um vazio por dentro? Às vezes, sente-se como se estivesse morto? ■ HUMOR IRRITADO (disforia ou irritabilidade patológica): tonalidade afetiva malhumorada;
os
enfermos
manifestam
impaciência,
irritabilidade,
hiper-reação
desagradável, hostil e, eventualmente, agressiva a determinados estímulos ambientais (mesmo leves) e intolerância a ruídos. Associa-se aos quadros maníacos, depressivos (distimia) e ansiosos, às esquizofrenias, às chamadas “personalidades explosivas”, às oligofrenias e à epilepsia. Semiotécnica (Dalgalarrondo, 2000, p. 110): Você tem se irritado com mais facilidade que antes? Os ruídos (da TV, de pessoas falando, de buzinas etc.) o(a) incomodam muito? As crianças o(a) incomodam? Tem discutido ou brigado com facilidade? Às vezes acha que vai explodir? Seus nervos estão à flor da pele? Tem, às vezes, vontade de matar ou esganar alguém? ■ HUMOR ANSIOSO: a angústia/ansiedade define-se como um estado de humor desconfortável, uma apreensão negativa em relação ao futuro, uma inquietação interna desagradável, não associado a objetos ou situações específicos (como nas fobias). Inclui manifestações somáticas e fisiológicas (dispnéia, taquicardia, vasoconstrição ou dilatação, tensão muscular, parestesias, tremores, sudorese, tontura etc.) e manifestações psíquicas (inquietação interna, apreensão, desconforto mental etc.); humor típico dos transtornos de ansiedade e das depressões reativas. Semiotécnica
(Dalgalarrondo,
2000,
p.
110):
Sente-se
nervoso(a)?
Sente-se
agoniado(a)? Com uma inquietação interna? Sente angústia/ansiedade? Sente medos ou temores? Sente-se tenso(a)? Tem dificuldades para relaxar? Tem dificuldades para se concentrar? Tem insônia? Sente dores de cabeça, dores nas costas etc.? Tem falta de ar?
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■ PUERILIDADE ou PUERILISMO (do latim puerilis = infantil): o humor se caracteriza por seu aspecto tolo, infantil, simplório, “regredido”. O indivíduo ri ou chora por motivos banais, sua vida afetiva é superficial, ausente de afetos consistentes e duradouros. Típico da esquizofrenia hebefrênica ou desorganizada (subtipo mais grave) e das “oligofrenias” (do grego olígos = pouco; phrěn → phrenós = espírito) ou “deficiências mentais” ou, segundo a expressão mais atual, “deficiências intelectuais”. Alterações das emoções e dos sentimentos • Apatia: trata-se da vivência subjetiva de uma indiferença afetiva; o paciente torna-se hiporreativo, é um “tanto-fez-quanto-tanto-faz” para tudo na vida. Geralmente, acompanha-se de Anedonia (do grego: hedoné = prazer; incapacidade de sentir prazer). Típica dos quadros depressivos. Ex.: “A minha condição espiritual, a situação dos meus sentimentos é incompreensível, é um estado de impossibilidade de sentir emoções. Não posso, mesmo que queira, experimentar amor ou ódio; não tenho nenhuma espécie de emoções, não consigo sentir alegria, por exemplo, nem muito menos tristeza; não tenho medo de nada nem de ninguém, nem de nenhum perigo. Quando houve o tremor de terra na semana passada, eu me encontrava no salão de bilhar e todos saíram correndo no maior desespero. Eu permaneci completamente indiferente, apesar de compreender o perigo a que estava exposto.” (Paim, 1993, p. 224)
• Distanciamento afetivo: perda progressiva das vivências afetivas; ao contrário da apatia, que é basicamente subjetiva, este é observável, constatável pela mímica, postura e atitude do paciente; pode variar do empobrecimento ao embotamento afetivo. Ocorre nas formas negativas, deficitárias de esquizofrenia. • Labilidade (ou instabilidade) afetiva: dificuldade no controle dos afetos; ocorrem mudanças freqüentes e bruscas, que são imotivadas e inesperadas; os afetos atingem grande intensidade, mas são de curta duração, oscilando entre os diversos pólos: por ex., o humor do paciente passa direto da alegria para a tristeza, logo após retorna para a alegria e, a seguir, passa para a irritabilidade (grau mais extremo = incontinência
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afetiva: incapacidade de controle dos afetos). Ocorre na mania, em alguns transtornos da personalidade e em quadros psicorgânicos • Paratimia: incongruência entre o afeto expresso e a situação vivenciada/verbalizada; por ex., o paciente conta, rindo, que foi torturado na noite anterior. Reflete uma desarmonia profunda entre a afetividade e o pensamento. Ocorre nas esquizofrenias. • Neotimia: vivência afetiva inteiramente nova, extravagante e inusitada. São afetos qualitativamente diferentes de todos os que o paciente havia experimentado na vida. Podem ter esse caráter alguns sentimentos místicos, de êxtase, de elação, de desolação e de terror. Ocorre na esquizofrenia (durante o trema: pródromo do surto), na intoxicação por alucinógenos e em algumas auras epilépticas. • Fobia: consiste no temor patológico, que escapa à razão e resiste a qualquer espécie de objeção; as reações do indivíduo fóbico são desproporcionais e incompatíveis com as possibilidades de perigo real oferecidas pelos objetos ou situações desencadeantes, que podem ser as mais variadas possíveis. • Pânico: é uma reação de medo intenso, de pavor, relacionada geralmente ao perigo imaginário de morte iminente, descontrole ou desintegração; manifesta-se como crises agudas e intensas de ansiedade, acompanhadas por medo intenso de morrer ou de perder o controle/enlouquecer (sensação de ter um ataque cardíaco e, eventualmente, despersonalização e desrealização) e de acentuada descarga autonômica (palpitações, taquicardia, sudorese, tremores, parestesias, sensação de falta de ar, dor ou desconforto no peito, náusea etc.); as crises têm início súbito, duram alguns minutos e tendem a repetir-se com periodicidade variável; geralmente, não se identifica um fator desencadeante para as mesmas. Semiotécnica das emoções e sentimentos (Dalgalarrondo, 2000, p. 110): verificar como é o padrão de reações emocionais do paciente (intensas ou atenuadas, fáceis ou difíceis de serem desencadeadas, rápidas e superficiais ou profundas e duradouras etc.). Investigar que sentimentos predominantes o paciente tem pelas pessoas significativas de seu convívio. Perguntar, por ex., você tem muitos amigos? Você os vê com que freqüência? Como você se dá com seus familiares? Você tem relacionamentos íntimos
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com amigos ou parentes? Como são esses relacionamentos? Tem inimigos ou pessoas que odeia? Como isto se iniciou? [OBS: atentar ainda para o ciúme, inveja e ressentimento.]
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6.6. A vontade, a psicomotricidade e suas alterações A VONTADE E SUAS ALTERAÇÕES A vontade (também chamada motivação ou conação) é algo que se associa intimamente à esfera afetiva. A ação voluntária divide-se em quatro fases: intenção → deliberação → decisão → execução. ALTERAÇÕES PATOLÓGICAS DA VONTADE • Hipobulia/Abulia – diminuição/abolição da ação voluntária; geralmente associam-se à apatia (indiferença afetiva), à fadigabilidade e à dificuldade de tomar decisões, típicas dos quadros depressivos graves. Diferencia-se o ato impulsivo do compulsivo: IMPULSO Não há fases prévias de intenção, deliberação e decisão
COMPULSÃO Tais fases existem, embora não sejam suficientes para conter o ato indesejável (vivência de desconforto subjetivo)
É egossintônico - não é percebido como inadequado; não há tentativa de evitar ou de adiar o ato
É egodistônico – é percebido como indesejável pelo sujeito, que tenta resistir (ou ao menos) adiar) o ato
Não há sensação de alívio na execução do ato
Há sensação de alívio momentâneo após a execução do ato, seguido de mais desconforto subjetivo, num ciclo vicioso
IMPULSOS E COMPULSÕES PATOLÓGICAS Relacionadas à Auto e Heteroagressão – automutilação (ex: tricotilomania, autoenucleação etc.), frangofilia, impulso e ato suicida, piromania.
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Relacionados à ingestão de drogas e alimentos – toxicomania, bulimia (do grego: boulimia = fome insaciável), anorexia (do grego: an + orektos = ausência de apetite)42. Relacionadas ao Compto. Sexual – fetichismo, exibicionismo, voyerismo, pedofilia (do grego: paidos + philos = “amigo” da criança), gerontofilia, zoofilia (ou bestialidade),
necrofilia,
coprofilia,
ninfomania/satiríase,
compulsão
à
masturbação etc. Outros – poriomania, cleptomania, compulsão a comprar etc. OUTRAS ALTERAÇÕES DA VONTADE • Negativismo – é a recusa à interação, ao diálogo e à cooperação com outrem; o indivíduo se opõe a toda tentativa de relacionamento interpessoal; subdivide-se em: Negativismo Ativo – o indivíduo faz o oposto ao que lhe é solicitado. Negativismo Passivo – o indivíduo recusa-se a fazer o que lhe é solicitado (ex: mutismo). • Obediência Automática – é o oposto do negativismo; revela perda de autonomia e da atividade voluntária. • Sitiofobia (do grego: sition = alimento) – recusa sistemática de alimentos; associa-se a quadros delirantes persecutórios (delírio de envenenamento) e depressivos graves. • Fenômenos em eco (ecopraxia, ecolalia, ecomimia e ecografia) – repetição automática pelo indivíduo dos últimos atos de seu interlocutor, suas últimas palavras ou sílabas, últimos gestos ou escrita; ocorrem na esquizofrenia catatônica e nos quadros psicorgânicos. 42
Trata-se aqui dos sintomas “bulimia” e “anorexia”, que não se confundem com os transtornos bulimia nervosa e anorexia nervosa. Por ex., a anorexia nervosa não apresenta necessariamente o sintoma anorexia, visto que, muitas vezes, a anoréxica sente fome, mas não come com receio de engordar em função de uma deturpação da auto-imagem corporal. A rigor, a anorexia enquanto sintoma é muito mais comum nos quadros depressivos.
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A PSICOMOTRICIDADE E SUAS ALTERAÇÕES Psicomotricidade – relaciona-se à execução da ação voluntária. ALTERAÇÕES PATOLÓGICAS DA PSICOMOTRICIDADE • Agitação psicomotora – implica aceleração e exaltação de toda atividade motora do indivíduo – geralmente secundária a um taquipsiquismo; comumente associa-se à hostilidade e heteroagressividade; ocorre na mania, em episódios esquizofrênicos agudos, em quadros psicorgânicos, em deficientes mentais e em indivíduos com síndromes demenciais. • Lentificação/inibição psicomotora - implica desaceleração/inibição de toda atividade motora do indivíduo – geralmente secundária a um bradipsiquismo; típica dos quadros depressivos. • Estupor – consiste nos estados de inibição psicomotora sejam eles de natureza esquizofrênica (estupor catatônico), depressiva (estupor depressivo), neurológica (estupor orgânico) ou histérica (estupor dissociativo); implica a perda de toda atividade espontânea (comunicação verbal, não-verbal, mímica, olhar, gesticulação e marcha); o indivíduo restringe-se ao leito. • Catalepsia – acentuado exagero do tônus postural com redução acentuada da atividade global do organismo. • Flexibilidade cerácea (ou cérea) – o paciente torna-se modelável por outra pessoa, como se ele fosse “de cera”. A catalepsia e a flexibilidade cerácea são sintomas freqüentes na esquizofrenia catatônica. • Estereotipias motoras – repetição mecânica de determinado ato motor complexo (bater palmas, estalar os dedos etc.); um tipo de esteriotipia motora caracterizada por movimentos bizarros chama-se maneirismos; ocorrem nas esquizofrenias (sobretudo
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nas formas residuais ou crônicas e catatônicas), em deficientes intelectuais e em estados autísticos. • Tiques – são atos motores coordenados, repetitivos, resultantes de contrações musculares súbitas, breves e intermitentes; ocorrem com mais freqüência em crianças que em adultos; tiques múltiplos motores e/ou verbais podem indicar a presença da Síndrome de Tourette. • Conversão – há o surgimento abrupto de sintomas físicos (paralisias, anestesias, parestesia, cegueira etc.) de origem psicogênica; trata-se do sintoma principal da histeria. • Hipopragmatismo e Apragmatismo (do grego pragma = ação) – é a dificuldade ou a incapacidade de realizar ações voluntárias e psicomotoras minimamente complexas (cuidado pessoal, tarefas domésticas etc.); associa-se à hipobulia, à apatia e à desorganização psíquica geral; ocorre em psicóticos crônicos.
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6.7. O pensamento e suas alterações O pensamento constitui-se de: CONCEITOS – são relações entre idéias, construindo significados; expressam-se por palavras. JUÍZOS – são relações entre conceitos; expressam-se por frases ou proposições. RACIOCÍNIO – consiste no encadeamento lógico dos juízos.
ALTERAÇÕES DOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO PENSAMENTO Alterações dos Conceitos • Desintegração – perda do significado original das palavras. • Condensação – é a fusão de duas ou mais palavras numa só, que assume um novo significado. No plano lingüístico, tais fenômenos denominam-se neologismos e são típicos das esquizofrenias.
Principal Alteração do Juízo ou Julgamento ► Delírio (ou idéia delirante) (do latim delirare: de = fora; liros = sulcos; “lavrar fora do sulco”; “sair do eixo”): Características do delírio:
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▪ O paciente apresenta uma certeza praticamente absoluta no conteúdo de seu juízo (convicção inabalável, muito embora flutuante). ▪ É praticamente impossível sua modificação pela experiência objetiva, mesmo pela prova de realidade mais cabal (não-suscetível à influência). ▪ Trata-se de um juízo da realidade construído sob bases patológicas (não segue a lógica formal); a despeito de seu conteúdo ser verdadeiro ou falso, há incoerência entre a crença e a sua justificativa. ▪ É uma produção associal, idiossincrática em relação ao grupo cultural do paciente (não confundir com crenças culturalmente sancionadas).
INDICADORES DA GRAVIDADE DA IDÉIA DELIRANTE (Kendler et. al., 1983; apud Dalgalarrondo, 2000, p. 134)
• Convicção: o paciente está convencido da realidade de suas idéias delirantes? • Extensão: as idéias delirantes envolvem diferentes áreas da vida do paciente? • Bizarrice: as crenças delirantes se distanciam muito das convicções culturalmente compartilhadas pelo grupo social ao qual o paciente pertence? • Desorganização: as idéias delirantes são consistentes e concatenadas? • Pressão: quanto o paciente está envolvido com suas crenças delirantes? • Resposta afetiva: quanto as crenças delirantes tocam afetivamente o paciente? • Comportamento desviante: quanto o paciente age em função do seu delírio?
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Mecanismos formadores da idéia delirante, segundo Jaspers (apud Cheniaux, 2008, p. 59-60)
• Percepção delirante: há uma associação fortuita entre uma percepção e um juízo que se impõe como revelação ao sujeito. Ex: um indivíduo (que pode, de fato, estar sendo traído) ‘descobre’ que a mulher o trai no exato momento em que ouve um cachorro latindo; típica da esquizofrenia (≠ interpretação delirante: o indivíduo interpreta situações corriqueiras de modo a superdimensioná-las; ocorre na paranóia). • Representação delirante: recordações (conteúdos mnêmicos verdadeiros) ganham significados fantasiosos. Ex: o paciente diz que foi criado por pais milionários e que, por isso, é herdeiro de uma grande fortuna. • Cognição delirante: o indivíduo intui o delírio repentinamente pois capta de forma imediata (revelação) um novo sentido nas coisas, prescindindo de dados perceptivos e representativos. Ex: o indivíduo sabe de repente, sem nenhum motivo aparente, que é Jesus Cristo.
Os delírios classificam-se em: ■ Segundo a origem: delírios primários (idéias delirantes verdadeiras) e secundários (idéias deliróides). ►Idéia deliróide (delírio secundário) – diferentemente do delírio, esta é “psicologicamente compreensível” (Jaspers, 1985), i. e., origina-se a partir de outras manifestações psicopatológicas primárias, como alterações do humor, da sensopercepção, da consciência, da memória etc. Ex: idéias de culpa na depressão, idéias de grandeza na mania, idéias de influência na alucinação cenestésica, idéias persecutórias no delirium tremens (secundárias ao rebaixamento do nível da consciência) e nas síndromes amnésicas ou nas demências (secundárias à atividade fabulatória) etc.
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■ Segundo a estrutura: simples/complexos (número de temas), bizarros e não-bizarros (conteúdo temático) e sistematizados/não-sistematizados (concatenação lógica e riqueza de detalhes). • Delírios simples: são monotemáticos (conteúdo persecutório ou místicoreligioso ou erótico etc.) • Delírios complexos: são multitemáticos. • Delírios bizarros: conteúdo impossível; ex.: ter sido abduzido por óvnis. • Delírios não-bizarros: conteúdo possível, porém improvável; ex.: ter sido envenenado pelo vizinho. • Delírio sistematizado: há uma maior coerência interna entre as idéias, uma maior organização e consistência. Encontra-se uma rede de argumentações lógicas e compreensíveis. O delirante com idéias de perseguição é capaz de dizer quem o persegue, como e por quê. • Delírio não-sistematizado: são fragmentários, caóticos, desarticulados e sem concatenação. ■ Segundo o curso: agudos e crônicos. • Delírios agudos: surgem abruptamente e tendem a desaparecer em pouco tempo; associam-se a transtornos da consciência. • Delírios crônicos: surgem paulatinamente e tendem a persistir por mais tempo.
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CONTEÚDOS OU TEMAS MAIS FREQUENTES DO DELÍRIO ▪ de perseguição ou persecutório (de reivindicação ou querelante, de influência etc.);
▪ de grandeza ou megalomania (de auto-referência, de invenção ou descoberta, genealógico, de redenção ou salvacionista, místico-religioso etc.);
▪ sexuais (de ciúmes, erótico ou erotomania etc.);
▪ auto-depreciativos ou de ruína (de culpa ou auto-acusação, somático ou hipocondríaco, de negação ou niilista etc.);
▪ de identificação (síndrome de Capgras = falso desconhecimento; síndrome de Fregoli = falso reconhecimento) (ver p. 84 acima); OBS: não confundir com ilusões.
Exs: “[...] Desse modo foi preparada uma conspiração dirigida contra mim (em março ou abril de 1894), que tinha como objetivo, uma vez reconhecido o suposto caráter incurável da minha doença nervosa, confiar-me a um homem [prof. Flechsig] de tal modo que minha alma lhe fosse entregue, ao passo que meu corpo [...] devia ser transformado em um corpo feminino e, como tal, entregue ao homem em questão para fins de abusos sexuais, devendo finalmente ser ‘deixado largado’, e, portanto, abandonado à putrefação.” (Schreber, 1903/1995, p. 67).
“[...] A esse respeito, do ponto de vista humano que ainda predominava em mim, era inteiramente natural que visse meu verdadeiro inimigo apenas no prof. Flechsig, ou na sua alma (mais tarde acrescentou-se ainda a alma de von W., sobre a qual se falará mais adiante), considerando o poder de Deus como meu aliado natural; acreditava que Deus estivesse em uma situação difícil apenas diante do prof. Flechsig, e por isso acreditava poder apoiá-lo com todos os meios imagináveis, chegando até ao auto-sacrifício. Que o próprio Deus fosse cúmplice, senão instigador, do plano que visava o assassinato da minha alma e o abandono do meu corpo como prostituta feminina, é um pensamento
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que só muito mais tarde se impôs a mim e que em parte [...] só me veio claramente à consciência durante a redação do presente ensaio.” (ibid., p. 69; grifo nosso).
“Um capítulo importante da história da minha vida [...] registra-se no mês de novembro de 1895. Lembro-me ainda claramente desse momento; coincidiu com uma série de belos dias de fim de outono, quando em todas as manhãs havia densa névoa sobre o Elba. Nessa época, os sinais de feminilização apareciam tão intensamente no meu corpo que eu não podia mais deixar de reconhecer a finalidade imanente para a qual caminhava toda essa evolução.” “[...] a partir daí tive a absoluta convicção de que a Ordem do Mundo exigia imperiosamente de mim a emasculação, quer isso me agradasse pessoalmente ou não e, portanto, por motivos racionais, nada mais me restava senão me reconciliar com a idéia de ser transformado em mulher. Naturalmente, a emasculação só poderia ter como conseqüência uma fecundação por raios divinos com a finalidade de criar novos homens.” “A partir de então, inscrevi em minha bandeira, com plena consciência, o culto da feminilidade [...]” (ibid., p. 147-148; grifo nosso).
■ Na paranóia ou transtorno delirante, geralmente o delírio é simples, não-bizarro, sistematizado, auto-referente e interpretativo. ■ Na esquizofrenia, manifesta-se usualmente como complexo, bizarro, nãosistematizado, podendo ser primário (intuitivo) ou secundário (à atividade alucinatória); em ambas as enfermidades, os delírios tendem a ser crônicos. ■ Nas psicoses afetivas, geralmente o delírio é secundário e humor congruente; assim, nas depressões tende a predominar delírios de ruína e na mania, delírios de grandeza. Principais Alterações do Raciocínio • Aceleração do pensamento: trata-se do fluir acelerado do pensamento, uma idéia sucedendo a outra rapidamente; ocorre nos quadros de mania, nos estados de ansiedade intensa e em psicoses tóxicas (principalmente por anfetaminas e cocaína).
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• Inibição do pensamento: fluir lento e esforçoso do pensamento; há uma latência entre as perguntas formuladas e as respostas emitidas; ocorre principalmente nas depressões graves, em alguns quadros de rebaixamento do nível de consciência, em intoxicações (por substancias sedativas) etc. • Bloqueio ou interceptação do pensamento: há uma interrupção brusca do pensamento sem nenhum motivo aparente; o indivíduo pode desenvolver delírio de influência associado ao suposto roubo do pensamento; típico da esquizofrenia. • Fuga de idéias: variação rápida e incessante de tema, com preservação da coerência do relato e da lógica associativa ― as associações entre idéias, muitas vezes, se dão por assonância (rimas) ou aliteração (repetição de consoantes); o pensamento é facilmente desviado por estímulos externos; o indivíduo torna-se incapaz de concluir um raciocínio e as idéias-alvo se atropelam umas às outras; associa-se à aceleração do pensamento e à logorréia, sendo típica dos quadros maníacos. Ex: “Boas tardes! Sim, boas tardes, se a vida é doce como o mel. Também gosta de açúcar? ― fábrica de açúcar ― a cana e a corda ― não quer se enforcar? ― Você é assassino ― pai do assassino ― o pescoço ― o colarinho da camisa ― branca como a neve é a inocência ― Ah! A ingênua inocência! ― como uma jovenzita ― na ruazita ― agora vive no ruão ― no ruazelo ― tornozelo ― pata, pata de cão, pata de gato, línguas de gato ― que sabem como o chocolate da Suíça ― onde estão os loucos.” (Bumke; apud Cheniaux, 2008, p. 53-54)
• Pensamento mágico: antítese do pensamento racional; não segue a lógica formal (isto é, não respeita os indicativos da realidade nem os princípios da racionalidade da cultura na qual o indivíduo se insere); os juízos são encadeados de forma aleatória; típico do TOC e de alguns transtornos de personalidade. Exs: “se eu tocar nas roupas de uma prostituta ficarei contaminado”; “se eu repetir a palavra ‘santo’ 50 vezes impedirei que meu pai morra”; “se eu somar os múltiplos de 3 indefinidamente impedirei que minha avó adoeça” (ver caso “Lady Macbeth” em: Spitzer et. al., 1996, p. 243-245). Constitui a base da magia e das superstições.
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• Pensamento obsessivo (obsessão ou idéia fixa): trata-se da perseveração monotemática de um pensamento que se impõe à consciência do sujeito contra a sua vontade (egodistônico) e do qual ele não consegue se livrar. Exs: pensar de forma repetida na morte de uma pessoa querida, pensar que contraiu alguma doença ou que pode contraí-la a qualquer momento etc.; pode se ‘cristalizar’ num estado de dúvida permanente; o estado afetivo que predomina no sujeito acometido é o humor ansioso. • Pensamento derreísta (ou autista): antítese do pensamento realista; manifesta-se sob a forma de devaneio; volta-se para os próprios desejos em detrimento da realidade; o pensar não obedece às leis da lógica e, nos casos mais acentuados, tudo transcorre como se o indivíduo estivesse submerso num verdadeiro estado onírico — constitui a base para o desenvolvimento do delírio nas esquizofrenias; pode ocorrer também na histeria. • Pensamento concreto (ou concretismo): antítese do pensamento abstrato; expressa intuições e conceitos concretos, numa referência imediata ao sensorialmente percebido (pensamento analógico, “primitivo”); ex: interpretar literalmente metáforas; ocorre em deficientes intelectuais graves, em quadros avançados de demência e em esquizofrênicos crônicos. • Pensamento prolixo (ou prolixidade): caracteriza-se pela incapacidade de síntese e pelas longas digressões; possui dois subtipos: tangencialidade e circunstancialidade (somente nesse último caso a idéia-alvo é atingida); ocorre em pacientes com lesões cerebrais, em epilépticos, em deficientes intelectuais limítrofes e em neuróticos graves – sobretudo nos quadros obsessivo-compulsivos. • Pensamento demencial: trata-se do empobrecimento parcial (não-linear) do pensamento que ocorre no início das síndromes demenciais; com o desenvolvimento da doença, pode evoluir para o concretismo. • Pensamento confusional (ou incoerente): incoerência do pensamento (mostra-se confuso, contraditório e ilógico), causada por turvação da consciência, que lança o indivíduo num estado de perplexidade e impotência; ocorre nos quadros de delirium.
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• Pensamento vago: caracteriza-se pelo afrouxamento dos enlaces associativos entre idéias, sem que ocorra o empobrecimento do pensamento; pode ser um sinal inicial da esquizofrenia ou da demência; ocorre também em neuróticos graves. • Pensamento desagregado: perda dos enlaces associativos entre idéias que culmina numa incoerência radical do pensamento; este não segue minimamente a lógica; o discurso é incoerente, fragmentado e, muitas vezes, ininteligível, nada comunicando ao interlocutor; típico das formas deficitárias de esquizofrenias. Ex.: “Epaminondas foi alguém poderoso na terra e no mar. Conduziu grandes manobras marítimas e batalhas navais abertas contra Pelópidas, mas na Segunda Guerra contra Cartago levou um golpe na cabeça pelo fracasso de uma fragata armada. Caminhou com navios de Atenas para Mamre, levando para lá uvas da Caledônia e romãs, e sobrepujou os beduínos. Sitiou a acrópole com navios dotados de canhões e incendiou a ocupação persa com tochas vivas. O papa posterior Gregório VII – ah – Nero seguiu seu exemplo e fez incendiar todos os atenienses, todos os sexos romanos-germânicos-celtas, que não tinham uma posição definida diante dos sacerdotes, pelos druidas no dia da morte de Cristo, em honra ao deus do sol, Baal. Este é o período da idade da pedra. Pontas de lança de bronze.” (Bleuler; apud Cheniaux, 2008, p. 54)
Na esquizofrenia, o processo de desestruturação do pensamento segue, via de regra, a seguinte seqüência (em ordem de gravidade): Afrouxamento das associações → Descarrilamento do pensamento → Desagregação do pensamento
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6.8. A linguagem e suas alterações LINGUAGEM → em sua forma verbal é a atividade mental mais característica da espécie humana, sendo fundamental na elaboração e na expressão do pensamento.
fala: componente individual Possui duas dimensões básicas língua ou idioma: componente social, histórico e cultural
Dentre as funções da linguagem destacam-se: (1) comunicação; (2) suporte do pensamento; (3) instrumento de auto-expressão às vivências afetivas; (3) autonomização do “eu” frente aos outros e ao mundo; (5) expressão artística ou lúdica (linguagem como poesia, literatura etc.). ALTERAÇÕES DA LINGUAGEM Alterações secundárias à lesão neuronal identificável (evidente) Ocorrem, geralmente, associadas a lesões (acidente vascular cerebral - AVC, tumores cerebrais, malformações arteriovenosas etc.) do hemisfério esquerdo, particularmente das regiões ditas “áreas cerebrais da linguagem”. É comum virem acompanhadas de hemiparesias do lado direito do corpo. • Afasia – é a perda da linguagem (falada e escrita) anteriormente adquirida por incapacidade de compreender e utilizar os símbolos verbais. Ocorre necessariamente na ausência de déficit motor (no órgão fonador) ou perda cognitiva global. • Parafasias – o indivíduo deforma determinadas palavras (ex: designa “gameila” à cadeira, “ibro” ao livro etc.); ocorrem no início das síndromes demenciais.
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• Agrafia – é a perda da linguagem escrita na ausência de déficit motor ou perda cognitiva global. Pode se associar às afasias ou ocorrer de forma pura e isolada. • Alexia – é a perda da capacidade previamente adquirida para a leitura. Pode se associar às afasias e às agrafias ou ocorrer de forma pura e isolada. Difere-se da dislexia – dificuldades no aprendizado da linguagem escrita encontrada particularmente em crianças. • Disartria – é a incapacidade de articular corretamente as palavras, devido ao déficit motor do aparelho fonador. Ocorrem particularmente na paralisia geral progressiva (PGP) da neurossífilis, no complexo cognitivo-motor da AIDS e nas paralisias bulbares e pseudobulbares. • Disfonia – é uma alteração da fala produzida pela alteração da sonoridade das palavras. Sua forma acentuada, na qual o indivíduo não consegue emitir nenhum som ou palavra, denomina-se afonia. Ocorre por disfunção do aparelho fonador ou por defeito da respiração durante a fala. Difere-se da disfemia ou afemia – alteração da fala sem qualquer lesão ou disfunção orgânica, causada por fatores psicogênicos. Associa-se a estados emocionais e conflitos inconscientes intensos, e a quadros histéricos conversivos. O tipo mais freqüente de disfemia é a gagueira. Contudo, nem toda gagueira é psicogênica, podendo ocorrer também por defeitos mecânicos da fonação determinados neurologicamente. • Dislalia – é uma alteração da linguagem falada que resulta da deformação, omissão ou substituição dos fonemas. Pode ter origem orgânica ou psicogênica.
Principais alterações da linguagem associadas a transtornos psiquiátricos primários • Taquilalia (ou taquifasia): corresponde a um aumento da velocidade da fala; associase à aceleração do pensamento; ocorre nos quadros de (hipo)mania e ansiedade intensa.
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• Bradilalia (ou bradifasia): corresponde a uma diminuição da velocidade da fala; associa-se à inibição do pensamento; ocorre nas depressões. • Logorréia: trata-se da incontinência verbal; há uma maior produção da expressão verbal, sem prolixidade. Ocorre nos quadros maníacos, associada ao humor eufórico, à fuga de idéias, à excitação psicomotora e ao taquipsiquismo geral. Difere-se da verborragia – falação pernóstica e prolixa de quem tem o propósito de impressionar. • Mutismo: ausência de fala; implica necessariamente a impossibilidade psíquica, mas não física de expressão verbal. O mutismo nas síndromes psiquiátricas é, na maior parte das vezes, uma forma de negativismo verbal observado nos vários tipos de estupor, em quadros esquizofrênicos (principalmente catatônicos) e em depressões graves. • Verbigeração ou estereotipia verbal: há a repetição automática de palavras ou trechos de frases, de modo estereotipado, mecânico e sem sentido comunicativo. Denomina-se mussitação tal repetição murmurada, similar à reza. São formas de automatismo verbal, mais freqüentemente encontradas nas esquizofrenias (catatônicas e residuais). • Ecolalia: é a repetição automática, involuntária, da última ou últimas palavras ouvidas pelo paciente. Ocorre, sobretudo, na esquizofrenia catatônica. • Para-respostas: trata-se de uma alteração tanto do pensamento quanto do comportamento verbal. O indivíduo responde às perguntas que lhe são dirigidas de modo completamente disparatado com relação ao conteúdo que lhe foi perguntado. Ocorre nos diversos tipos de psicoses, mais especificamente na esquizofrenia. OBS: há que se distinguir as para-respostas verdadeiras de uma atitude voluntária de birra, ironia ou escárnio de alguns pacientes hostis aos seus entrevistadores.
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A LINGUAGEM NA ESQUIZOFRENIA • Neologismos – criação pelo paciente de novas palavras ou alteração radical do significado de palavras já existentes; pode ser resultado da desintegração ou condensação dos conceitos, ou constituir uma tentativa de expressar vivências fantásticas para as quais não haveria vocabulário disponível. Ex. - paciente relatado por Paim (1993, p. 271): “Não é solteiro nem casado, é sindorá; seu pai não está vivo é simprozatos e sua mãe chama-se Maria do Silenciale. Sabe escrever, tendo aprendido no cangaiero do Albuquerque; tem 955 silinidades de idade, tendo sido trabalhador de roça em Santa Rita de Cássia, em Minas Gerais. A casa em que se encontra no momento é craionalia, sendo antigamente Palácio do Rei; veio para aqui porque ‘lá em cima’ estava chovendo muito e ele foi obrigado a tomar um carro todo fechado e vir até aqui a fim de enrequerer o nosso coração. Entre nós se acha bem, está no meio dos encompostales, entre os doentes do hospital tem vários amigos, os palideus, com quem vive bem, e daqui preferirá sair se for para um lugar onde puder entrar e sair. À noite, no entanto, não passa muito bem, pois se acha tabulado com uma mansidão no coração.”
• Maneirismos: a fala torna-se pouco natural, afetada, seja quanto à escolha das palavras (expressões rebuscadas, formalismo exagerado, excesso de gírias, jargões, diminutivos etc.), seja quanto à pronúncia, ao sotaque, à entonação ou à gesticulação. Ex: o indivíduo refere-se a si mesmo na 3ª pessoa do singular. • Jargonofasia (ou esquizofasia): a linguagem se torna confusa e incoerente, sem que existam alterações graves do pensamento. Em sua forma extrema, a linguagem se apresenta como uma salada de palavras, em que o paciente emprega neologismos e palavras
conhecidas
transfiguradas,
tornando
seu
discurso
completamente
incompreensível. • Glossolalia: é como se o paciente falasse outra língua; ele produz sons guturais e ininteligíveis, mantendo a entonação da fala normal.
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Como assinala Cláudio Lyra Bastos: [a] comunicação esquizofrênica mostra-se dificultosa, dissociada, ambígua, por vezes impenetrável. Alguns pacientes acabam criando para si mesmos quase que um idioma próprio, que se fundamenta – de forma contrária às línguas reais – na incomunicabilidade, na indecifrabilidade, na negação da linguagem (Bastos, 2000, p. 193).
Entre pacientes esquizofrênicos, a pintura pode por vezes adquirir um papel comunicativo relevante. Lembremos, contudo, que nem todo louco é artista, como uma visão romântica da loucura apregoa43. “Não se tem talento por ser louco, mas apesar de sê-lo” (Ibid, p. 197), o que aponta para a capacidade normativa (Canguilhem, 2002) ou para a Grande Saúde (Nietzsche, s/d), isto é, para a potencialidade vital que o sujeito possui de ultrapassar suas próprias limitações, inclusive aquelas impostas pela doença e seu pathos.
SELETA BIBLIOGRÁFICA: • ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia: o problema XXX, 1. São Paulo: Lacerda, 1998. • BARLOW, D. H. & DURAND, V. M. Psicopatologia: uma abordagem integrada. São Paulo: Cengage Learning, 2008. • BASTOS, C. L. Manual do Exame Psíquico: uma introdução prática à psicopatologia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revinter, 2000. • BORGES, J. L. Funes, o memorioso. In: Ficções. Rio de Janeiro: Globo, 2001, p. 119-128. • CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Univiversitária, 2002 • CHENIAUX, E. Manual de Psicopatologia. 3 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2008. • CLECKLEY, H. M. [1941] The Mask of Sanity — An Attempt to Clarify Some Issues About the SoCalled Psychopathic Personality. Fifth Edition. Augusta, Georgia: Emily S. Cleckley, 1988. 485 p. [Scanned facsimile] • DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais. Porto Alegre: Artmed, 2000. • FREUD, S. [1915] O Recalque. In: Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente. Vol. 1. Trad. de Luiz Alberto Hanns. Rio de Janeiro: Imago, 2004, p. 175-193. • HARE, R. D. Psychopathy and Antisocial Personality Disorder: a case of diagnostic confusion. Psychiatric Times, 13 (2), p. 39-40, 1996.
43 Tal visão romantizada da loucura, que assumiu várias roupagens ao longo das épocas, ganhou consistência a partir da correlação estabelecida por Aristóteles (1998) entre a antiga melancolia grega (uma categoria de loucura mais ampla que a depressão psicótica atual) e a genialidade.
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• JASPERS, K. [1913] Psicopatologia Geral: psicologia compreensiva, explicativa e fenomenologia. 2 vols. Rio de Janeiro/São Paulo: Livraria Atheneu, 1985. • KAPLAN, H. & SADOCK, B. Compêndio de psiquiatria. 7 ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. • NIETZSCHE, F. Assim falava Zaratustra. 12. ed. Rio de Janeiro: Edioruro, s/d. • PAIM, I. Curso de Psicopatologia. 11 ed. rev. e ampl. São Paulo: EPU, 1993. • SACKS, O. As visões de Hildegarda. In: O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 185-189. • SAUSSURE, F. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1970. • SCHREBER, D. P. [1903] Memórias de um doente dos nervos. São Paulo: Paz e Terra, 1995. • SPITZER, R. L. et al. DSM-IV - casos clínicos: complemento didático para o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, quarta edição. 4ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
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7. Considerações finais No capítulo 1 retraçamos um breve panorama da história da loucura até sua apropriação pelo saber médico, com base no método genealógico de Michel Foucault; o recurso à historiografia foucaultiana se justificou na medida em que pretendíamos voltar ao passado para entender as relações de força existentes no presente, sobretudo quanto aos regimes discursivos sobre a loucura, que determinam modelos explicativos divergentes aos quais correspondem concepções paralelas de tratamento. Nesse sentido, assinalamos uma alternância histórica de dois regimes discursivos, religioso e científico, que coexistem de modo conflituoso na atualidade, sobrepondo-se um ao outro. O capítulo 2 discorreu sobre o nascimento da clínica psiquiátrica, por intermédio de Pinel e de seu revolucionário conceito de alienação mental, que operou uma escansão, um corte na evolução histórica da loucura; falamos também da vocação segregacionista e normalizadora da clínica alienista, respectivamente, devido aos pressupostos do isolamento terapêutico e do tratamento moral, que originariam o modelo manicomial de assistência à loucura. Abordamos, ainda, o nascimento da “bipolaridade” que se tornaria intrínseca ao campo psiquiátrico entre psiquistas e somatistas, a partir da descoberta de Bayle e de sua tese sobre a paralisia geral. Por fim, assinalamos as contribuições de Kraepelin à sistematização da nosografia psiquiátrica, fundando a clínica moderna. No capítulo 3 fizemos alusão aos três critérios principais de definição da normalidade: subjetivo, quantitativo e qualitativo. Efetuamos uma leitura crítica do conto O Alienista, de Machado de Assis, com enfoque no critério quantitativo de definição da normalidade e suas implicações. Abordamos a perspectiva de Georges Canguilhem da normalidade como normatividade (que engloba os critérios subjetivo e quantitativo), a nosso ver, a que mais se próxima de uma definição não reducionista, cujos desdobramentos clínicos mostram-se promissores; tendo em vista o aumento da incidência de doenças crônicas na contemporaneidade, a abordagem canguilhemniana, que atenta para a normatividade presente no doente, apesar das limitações impostas por seu pathos, mostra-se muito operativa e atualizada. Ilustramos, ainda, o conceito de normalidade como normatividade de Canguilhem a partir de um caso clínico descrito pelo neurologista britânico, radicado nos Estados Unidos, Oliver Sacks. O capítulo 4 abordou a polifonia discursiva presente no campo das psicopatologias explicativas, assim como a tentativa de tornar uníssono tal campo,
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empreendida por Karl Jaspers ao propor sua psicopatologia geral, cujo teor fenomenológico (descritivo) e compreensivo transcenderia a querela entre vertentes psicopatológicas explicativas conflitantes. Assinalamos que o atual desconhecimento das causas dos transtornos mentais permite a proliferação de várias hipóteses etiológicas (biológica, psicanalítica, sócio-cultural etc.); alertamos, ainda, o risco que implicaria reduzir um fenômeno complexo, como o adoecimento psíquico, a uma de suas partes constituintes (bio, psico ou social), enquanto sua problemática etiológica permanece sendo multifatorial (biopsicossocial) e, portanto, não reducionista. O capítulo 5 versou sobre o diagnóstico psicopatológico (sindrômico e nosológico) em sua comparação com o diagnóstico estrutural (modos de subjetivação); enquanto este último aproxima-se da clínica psicanalítica da escuta, denotando antes modos de ser, possibilidades existenciais, aquele se aproxima da clínica psiquiátrica do olhar, conotando patologias mentais, anomalias de personalidade ou deficiências intelectuais. O diagnóstico psicopatológico, em termos práticos, importa aos profissionais da medicina para orientar a prescrição medicamentosa e, aos demais profissionais, sobretudo, para fins de comunicação; haja vista o campo da saúde, na atualidade, requerer o trabalho em equipe, o profissional da psicologia deve, impreterivelmente, se apropriar dessa linguagem comum sob o risco de esterilizar o esforço transdisciplinar. Fizemos, ainda, uma leitura crítica dos manuais nosográficos contemporâneos, CID-10 e DSM-IV-TR, assinalando seus alcances e limites, bem como as implicações da mudança metodológica adotada por eles. No capítulo 6, discorremos sobre a semiologia aplicada aos transtornos mentais, que constitui a base para o diagnóstico psicopatológico, seja sindrômico seja nosológico. Nesse sentido, assinalamos as principais alterações psicopatológicas associadas às seguintes funções psíquicas: consciência, atenção, orientação, vivências do
tempo
e
do
espaço,
sensopercepção,
memória,
afetividade,
vontade,
psicomotricidade, pensamento e linguagem. Demos ênfase à psicopatologia das funções psíquicas, uma vez que constitui conteúdo básico dos cursos de psicologia o estudo da psicologia dessas mesmas funções; assim, ao falar sobre memória, por exemplo, não abrimos o tópico discorrendo sobre seu funcionamento normal, como a maioria dos textos de psicopatologia o fazem, dado que o estudo cognitivista da memória já é contemplado pelo currículo básico da graduação em psicologia. Optamos, também, por não reproduzir questionários e testes, tão ao gosto da clínica contemporânea baseada em supostas evidências, atendo-nos ao método semiológico e à importância do
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desenvolvimento de habilidades clínicas menos tecnicistas e mais humanizadas; visouse, com isso, o resgate etimológico do termo clínica (na antiga Grécia, klinè era “estar deitado, em repouso, entendendo-se que a pessoa está aberta à ação do outro”), ou seja, a clínica implica o tête-à-tête com o paciente (aquele que porta o pathos = sofrimento, passividade, paixão) e a sua compreensão, e não seu decalque caricatural proporcionado pelos crivos dos testes psicotécnicos e neuropsicológicos. Por fim, cabe ressaltar que falta universalidade e uniformidade a alguns dos mais importantes conceitos e termos da psicopatologia descritiva, sendo os apresentados nesse capítulo um esforço de síntese pessoal, construído por recortes das leituras que empreendemos de importantes autores da área, com fins operativos.