A HISTÓRIA DE CAIM E ABEL: ALGUNS ELEMENTOS PARA COMPREENSÃO DO TEXTO
2
I – TRADUÇÃO
1.1.
O texto bíblico
`hw"hy> hy>-ta, -ta, vyai vyai yti ytiynI ynIq'q rm, ' rm,aTo aTow:w: !yI !yIq;q;-ta, dl, dl,TeTw:we rh; : rh;T;T;w ATv. : ATv.aia hW" i hW"x;x;-ta, [d;y"y ~d' " ~d'a'ah'h' w>w' > 1 `hm'd'da]'a dbe ] dbe[o hy" hy"h'h !yI ' !yIq;q;w !aco > !aco h[e h[eror lb, o lb,h,h,-yhiy>y>w:w: lb,h'h-ta, -' ta, wyxi wyxia'a'-ta, td, td,l,l' @s, @s,ToTow: 2 `hw"hyl; hyl; hx' hx' mi n>n> hm' hm'd'da]'a]h'h yrI ' yrIP mi. !yIq;q abe ; abeY"Y"w: ~ymi ~ymiy"y" #Qe #Qe mi yhi yhiy>yw:w> : 3 `Atx' mi n>n> -la, -la,w>w> lb, lb,h,h-la, -, la, hw" hw"hy> hy> [v; [v;YIw:w: !h,bebel.x me, W Anaco tArko tArkoB.B mi. aWh-~g: aWh-~g: aybihehe lb,h,hw>w, > 4 `wyn"P'P ' WlP.YIYw:wI : daom. !yIq;ql.l; rx; . rx;YIYw:wI :
h['v'v' al{ Atx' Atx' mi n>n> -la,w>w !yI > !yIq;q;-la,w>w> 5
`^yn
w' > %l' %l' hr' hr'x'x' hM'l'l' !yIq'-la, -la, hw" hw"hy> hy> rm,aYO aYOw:w: 6 Atq'WvT. WvT. ^yl, ^yl,aeaew> #be #beror taJ' o taJ'x;x xt; ; xt;P,P,l; byji byjiyte yte al{ al{ ~ai ~aiw>w tae > taef.f. byjiyTe yTe-~ai aAlh] aAlh] 7 `AB-lv' m.TiTi hT' hT'a;aw>w; >
3
1.2.
A Tradução elaborada
1. E o homem conheceu (coabitou com) Eva sua mulher. E ela concebeu e gerou Caim. Então ela disse: consegui homem o auxílio de IHWH. 2. E ela continuou a fazer parir seu irmão Abel. E ocorreu que Abel tomava conta de rebanho (de ovelhas e cabras) e Caim era trabalhador na terra (cultivável). 3. Então ocorria que no fim de um tempo fazia chegar Caim do fruto da terra, oferenda a IHWH. 4. E Abel fez trazer outra vez dos primogênitos de seu rebanho e da gordura. Então olhava IHWH em direção a Abel e em direção da sua oferenda. 5. E em direção de Caim e em direção a oferenda dele não olhou e então ele (Caim) irou. 6. E dizia IHWH para Caim por que irou e por que lhe abateu tua face? 7. A quem não se fazia tornar algo bom erguerá. Mas se não te comportar bem junto a tua porta o pecado se acampará.
4
1.3. A tradução das palavras hebraicas 1 homem consegui disse e Caim
gerou e concebeu e mulher sua Eva coabitou homem o E
IHWH com auxílio
~d'a'hw' > : w> :
então, e, quando, agora, ou, mas, que, assim;
h; :
artigo definido;
~d'a' : Adão, homem, humanidade [d;y" : [dy : QA L : notar, observar,perceber, descobrir, interessar-se, conhecer, coabitar; NI : tornar-se conhecido, revelar-se; PI : conhecido, confidente; HI : fazer saber, tornar conhecido; HIT : tornar-se conhecido; verbo qal perfeito 3ªpessoa m a s c u l i n o s i n g u l a r.
hW"x-; ta, : ta, : ATv.ai
Partícula acusativa do Objeto Direto;
: Mulher, esposa, fêmea;
hW"x ; : Eva
nom e comum feminino singular. Sufixo 3ª
pesso a masculino sing ular (sua/dele)
rh;T : >w; : : : >w: :
hrh :
QA L : conceber, então, quando, e, ou, mas, que, assim; estar grávida; PU : ser concebido; v e r b o q a l i m p e r f e it o 3 ª p e s s o a f e m i n i n o singular.
dl,Twe : ew: :
dl,y e :
então, quando, agora, ou, mas, que, assim, e; QA L - gerar, engendrar, dar à luz, parir, tornar-se pai; NI : nascer, ser nascido, PI ajudar a dar à luz; PU : nascer, ser nascido; HI : gerar, fazer dar à luz; HO : ser nascido; HIT : ter a descendência reconhecida; verbo qal imp erfeito 3ªpesso a feminin o singu lar .
!yIq-; ta : ta : rm,aTo ,w: : w: :
Partícula acusativa do Objeto Direto;
!yIq :
Caim
rma :
QA L : Dizer, então, e, quando, agora, ou, mas, que, assim; falar, dizer algo sobre si mesmo, exprimir através da fala; HI : fazer declarar; HIT : vangloriar, gloriar-se; verbo qal 3ªpesso a feminino singu lar
5
ytiynIq : hnIq - QAL -
Obter, conseguir, adquirir, comprar, resgatar, remir; NI : ser
comprado;verbo qal perfeito, 1ªpesso a com um sing ular.
vyai :
Homem
`hw"hy>-ta, : ta, :
Partícula acusativa de Objeto Direto ou preposição: junto com,
com o auxílio de, junto a, ao lado de, na presença de;
hw"hy :
IHWH, Senhor
2 preparava foi Caim ovelha pastoreava Abel aconteceu e
Abel
irmão deu à luz acrescentou E
terra (cultivável)
@s,Two :
w: :
@sy :
QA L : Acrescentar, continuar a, somar; NI mas, e; : ser acrescentado; HI : acrescentar, superar, aumentar, continuar a fazer; verbo hitpahel imp erfeito 3ªpesso a femin ino singu lar.
td,l,l' : dly :
QA L : Dar à luz, parir, tornar-se pai, gerar; NI : nascer, ser nascido, ajudar a dar à luz; parteira; PU : nascer, ser nascido, gerar, fazer dar à luz; HO : ser nascido; HIT : ter a descendência reconhecida; v e r b o q a l i n f i n i t o c o n s t r u t o
wyxia-' ta, : ta, :
Partícula acusativa de Objeto Direto;
xa :
Irmão;
wy: sufixo 3ª
masculino singular
lb,h'-ta : ta,
Partícula acusativa de Objeto Direto;
lb,h,-yhiy>w: :_ ,w:
lb,h ' :
Abel
hyih :
- e, então, quando, mas, assim ; Q A L : tornar-se, acontecer, ocorrer, ser haver, ter, acontecer; NI :acontecer, ocorrer ; verbo qal, 3ªpessoa masculino singular
lb,h : Abel h[ero - h[r – QA L : pastorear, tomar conta de rebanho; HI : apascentar; v e r b o qal p articípio , mascu lino sin gu lar.
6
!aco :
gado menor, isto é, ovelhas e cabras
!yIqw; > : w> :
vav conjuntivo;
!yIq - Caim
hy"h :' : hyih :
Q A L : tornar-se, acontecer, ocorrer, ser haver, ter, acontecer; :acontecer, ocorrer ; verbo qal, 3ªpesso a masc ulino singu lar. NI
dbe[o :
Q A L : preparar (o solo), trabalhar (como escravo), servir, adorar (a Deus),
render culto; NI : trabalhado, ser cultivado; PU : ter trabalhado, ser escravizado; HI : fazer trabalhar,obrigar ao trabalho, manter na escravidão, escravizar; HO : deixar-se induzir a um serviço/ culto; verb o qal parti cípio mas cu lino s ing ular
`hm'da' ] :
terra (cultivável), solo, chão, superfície da terra
3 IHWH para oferenda
yhiy>w:
(cultivável) terra a fruto de Caim trouxe e tempos fim de aconteceu E
w: :
hyh
então, e, assim; – Q A L : ser, tornar-se, existir, haver, NI : ser, acontecer, ocorrer, ter, acontecer; verbo qal imperfeito, 3ªpessoa mascu lino singular.
#Qe mi : mi : ~ymiy"
-
preposição: de, fora de, mais do que;
~wy :
#Q :
fim
Dia, ano, tempo
abeYw" : : w: :
awb ;
QA L : Entrar, então, quando, agora, ou, mas, que, assim; chegar, vir coabitar; sobrevir-se, cumprir-se, suceder; relacionar-se, seguir; HI : fazer entrar, fazer vir; trazer; HO : ser trazido, ser levado; verbo h iphil im perfeito, 3ª p e s s o a m a s c u l i n o s i n g u l ar
!yIq ; :
Caim
yrIP mi. : m :
de;
yrIP :
Fruto
hm'd'a]h ' : h : Artigo definido; hm'da' :
Solo, terra
7
hx' mi n>
- Dádiva, presente, oferta, sacrifício, oferenda, presente, dom, oblação,
sacrifício
`hw"hyl; : l; :
para ;
hw"hy :
IHWH, Senhor
4 Abel a IHWH estimou e gorduras de e rebanho primogênito de ele igualmente trouxe Abel Então
dele oferenda a e
lb,h,w> - w :
então, quando, mas, que, assim;
aybih : o awob :
lb,h : Abel
QA L : Entrar, chegar, vir coabitar; sobrevir-se, cumprir-se, suceder;
relacionar-se, seguir; HI : fazer entrar, fazer vir; trazer; HO : ser trazido, ser levado; verbo hiph il perfeito, 3ªpesso a mascu lino sin gular .
aWh-~g: :o ~g: : Novamente, outra vez, de novo, igual, semelhante; aWh tArkoB mi. : m : Anac :
de;
rkoB :
: Ele, ela
Primogênito; n o m e c o m u m m a s c u l in o p l u r al .
A
Ovelha, rebanho; : sufixo 3ªpessoa m ascu lino s ingular .
!h,bel.x me, W : W :
então, quando, agora, ou, mas, que, assim Gordo, banha, gordura, o melhor, o escolhido
[v;Ywi : w :
me
- de;
h[v
!hbelx. :
então, quando, agora, ou, mas, que, assim; – QA L : olhar para, olhar, estimar, dar apreço, considerar, desviar os olhos; HI : desviar os olhos de, HIT : olhar ao redor ( com ansiedade); v e r b o q a l i m p e r fe it o 3 ª p es s o a m a s c u l i n o s i n g u l a r .
hw"hy :
IHWH, Senhor
lb,h,-la, : la :
para, a, em direção a, até, contra
: lb,h : Abel
8
Atx' mi n> -la,w> : w>
- e;
la, :
para, a, em direção a, até, contra;
Oferenda, presente, dom, oblação, sacrifício;
A :
tx' mi n> :
dele; : s u f i x o 3 ª p e s s o a
masculino singular.
:5 semblante Caiu e extremamente Caim
!yIq-; la,w> - w> :
a irou e considerou não oferenda para e Caim para E
e, então mas, que;
la, :
Para, a, em direção, até, contra;
!yIq :
Caim
Atx' mi n> -la,w> : w> :
e, então, quando, agora, ou, mas, que, assim;
em direção, até, contra;
al{ :
hx' mi n>
la, :
Para, a,
: Oferenda presente, dádiva, oferta
não
h['v' :
QA L : olhar para, olhar, estimar, dar apreço, considerar, desviar os olhos; HI : desviar os olhos de, HIT : olhar ao redor ( com ansiedade); verbo qal perfeito, 3ª p e s s o a m a s c u l i n o s i n g u l ar .
rx;YwI : : w: :
hrx
e, então, quando, agora, ou, mas, que, assim; : QA L : esquentarse, inflamar-se, irar-se; NI : estar zangado: HI : deixar inflamar, ser inflamado; HIT : irritar-se, impacientar-se; TIFEL : concorrer, competir; v e r b o q a l, 3 ª p e s s o a masculino singular
!yIql; > : l> : a, para; !yIq ; :
Caim
dao m : excessivamente, muito, extremamente, extraordinariamente WlP.YIw: : w: :
lpn :
QA L : cair; HI e, então, quando, agora, ou, mas, que, assim; : fazer cair, deixar cair, lançar, atuar (para baixo), abater; HIT : cair sobre, atacar, mostrar-se; verbo qal perfeito 3ªpessoa masc ulina s ingu lar
wyn"P' : hn,P' : singular
Face, semblante, rosto, feição; s u f i x o 3 ª p e s s o a m a s c u l i n o
9
6 (?) semblante caiu por que e para irou por que Caim para
IHWH
disse E
rm,aYOw: - w: e, então, quando, agora, ou, mas, que, assim; rma : QA L : Dizer, falar, dizer algo sobre si mesmo, exprimir através da fala; HI : fazer declarar; HIT : vangloriar, gloriar-se; verbo qal imp erfeito 3ªpesso a mascu lino s ingu lar.
hw"hy> :
IHWH, Senhor
!yIq-' la, : la, : hM'l' :
Para, a, em direção de;
Partícula interrogativa;
hM; .
!yIq:' Caim
: O que? para que? por que? para que... não
hr'x' :
: estar zangado: HI : deixar QA L : esquentar-se, inflamar-se, irar-se; NI inflamar, ser inflamado; HIT : irritar-se, impacientar-se; TIFEL : concorrer, competir; verbo qal perfeito, 3ªpesso a mascu lino singu lar.
%l' :
em direção a, oposto a, para, junto a
hM'l'w> : w> : e, então, quando, agora, ou, mas, que, assim, destarte; hM'l : . : O que? para que? por que? para que... não Partícula interrogativa; hM; Wlp.n" : lpn :
QA L : cair; HI : fazer cair, deixar cair, lançar, atuar (para baixo), abater; HIT : cair sobre, atacar, mostrar-se; v e r b o q a l p e r fe i to , 3 ª p e s s o a m a s c u l i n o p l u r al
^yn
face, semblante; sufixo 2ªpesso a sing ular m asculina (tu).
7 ti para e jaz pecado o porta para tratar bondosamente não (não) e dignidade comportar-se bem não (não) quem A
como dominaste
tu e
desejo
10
aAlh] - rva :
quem, qual;
al :
não
byjiyTe-~ai : ~ai :
bji iy
se, não, quando, desde, seja, ou; : QA L : ir bem, agradar; HI : tratar bondosamente, tratar graciosamente, fazer bem a alguém, tornar algo bom, comportar-se bem; advérbio: bem profundamente; verbo hiphil imperfeito, 2ª p e s s o a m a s c u l i n o s i n g u l ar
taef. : aefn
- Ato de erguer-se, dignidade, exaltação; verbo qal infinitivo
construto
~aiw> : w> : e, então, quando, agora, ou, mas, que, assim, destarte; ~ai :
se, não,
quando, desde, seja, ou
al{ :
não
byjiyte : bjy :
QA L : ir bem, agradar, ser bom, estar bem, estar alegre, ser
agradável; HI : tratar bondosamente, tratar graciosamente, fazer bem a alguém, tornar algo bom, comportar-se bem; advérbio: bem profundamente; v e r b o h i p h i l imp erfeito, 2ªpesso a m asculino singu lar
xt;Pl, ; : l :
Para, a, em, de, sobre, perto, junto, ao lado de entrada da porta, entrada, porta
taJ'x ; :
: xt;P , : Abertura,
Pecado, expiação, sacrifício pelo pecado
#bero : #br :
QA L : deitar-se, acampar-se, estar deitado, jazer, estar acampado;
HI : fazer deitar-se, deixar acampar-se, deixar repousar, cobrir, revestir; verbo qal par tic ípio sin gu lar
^yl,aew> : w> : e, então, quando, agora, ou, mas, que, assim, destarte; la/ : Para, a , em dentro, ao lado, junto, perto, contra, diante de; ^y: sufixo 2ªpessoa mascu lino singular.
Atq'WvT. : hq'WvT :
Desejo, saudoso, nostálgico, impulso, avidez;
p e s s o a m a s c u l i n o s i n g u l a r.
At: s u f i x o 3 ª
11
hT'a;w> : w> :
e, então, quando, agora, ou, mas, que, assim, destarte;
hT'a: :
Tu
(masculino)
AB-lv' m.Ti : lvm :
QA L : governar, dominar, reinar, obter, exercer domínio (sobre), dar domínio (sobre), domínio; HI : Fazer senhor (sobre), dar domínio (sobre), ter domínio, reinar; verbo qal imp erfeito 2ªpesso a mascu lino sin gular
AB
: Em, dentro de, em meio de, entre, como.
12
II – ANÁLISE SEMÂNTICA
No ciclo das origens Gn 4 – 6, encontramos as histórias ou genealogias. A saga de Caim e Abel pertence à genealogia dos descendentes de Adão. Para análise vamos proceder com a seguinte divisão de Gn 4, 1-7. vs.1-2: Genealogia de Caim e Abel vs. 3-4: Oferenda de ambos a IHWH vs. 5-7: Rejeição da oferenda de Caim e a indignação dele perante IHWH.
2.1. A genealogia de Caim e de Abel Dentro desse pequeno bloco alguns elementos são importantes para a nossa análise semântica. O primeiro deles está referente ao verbo conhecer
[dy . Desse
radical procede a palavra c o n h e c i m e n t o 1 . O israelita conhece com o coração. Não há distinção entre pensamento e desejo. O conhecimento atinge seu objeto, ao mesmo tempo em que o desejo toma posse dele. Por isso o encontro sexual é também conhecimento (Gn 4,1; 17,25). Nesse contexto, o verbo vincula uma relação (Eva). entre o h o m e m (Adão) e a m u l h e r 2
O termo hebraico para designar homem no sentido genérico de "ente humano" é A d a m 3 e e n o s h . Apesar da incerteza etimológica, Adam e adamesh (solo cultivável) estão relacionados um ao outro (Gn 2, 7). A d a m é quase sempre um conceito coletivo, embora em Gn 2, 5ss é o nome do ancestral da humanidade. E n o s h é incerto, mas o hebreu ouve ressoar nele o verbo anash que significa "ser
1
Johannes B. BAUER. Dic io nário de Teo log ia Bíbl ic a , vol. I, pp. 204-210. Idem, vol. II, pp.733-740 e Alan UNTERMAN. Dic io n ário Ju dai co d e Len das e Tr adi ções , p. 184. 3 VV.AA. Dic io nário Cul tu ral d a B íbl ia , p. 25. 2
13
fraco." Conforme a concepção semita, o homem é realidade coletiva unificada. Portanto, a palavra hebraica A d ão significa homem no sentido coletivo (o gênero humano) e o Gn 1, 27 precisa que ele foi criado por IHWH “homem e mulher”. Ev a 4 é o nome da primeira mulher, esposa de Adão, mãe de Caim, Abel e
Set. Formada a partir da "costela" do homem, ela é da mesma natureza que ele, em tudo igual a ele. Chama-se i s h - s h a , feminino de is h , o homem. Eva é explicada por um jogo de palavras que reconhece nela a mãe de todos os viventes (Gn 3, 20). A mulher está ligada à função de gerar e dar continuidade à vida. No Judaísmo a mulher é figura-símbolo de Israel, de Jerusalém ou de Sião. Uma mulher ortodoxa é limitada em seus próprios papéis públicos de liderança: não pode servir como rabino ou como diretor laico ou como juiz ou como testemunhas num “beit din” e se tiver
irmãos não herda a propriedade de seu pai. E Adão conheceu Eva. Desse conhecimento nasce Caim 5 , o primeiro filho deles. O texto de Gn 4, 1-7 começa com a narrativa do nascimento de Caim, aquele que foi conseguido graças a IHWH. Há uma relação entre o verbo a d q u i r i r pois quando Eva concebeu e deu à luz a ele e disse: adquirir um homem
com ajuda de IHWH (Gn 4,1). Ele é agricultor (Gn 4,1-2). Caim também significa em hebraico “qayan” , ferreiro. Nesse sentido, a descendência dele abrange as tribos cameleiras de grandes nômades, os músicos ambulantes e os ferreiros. Representa o mundo disparatado, temido pelos pastores de pequenos rebanhos que sofrem suas rapinas e são representados aqui por Abel. Em Gn 4, 17 encontramos Caim relacionado a construtor de cidade e pai de uma civilização (Gn 4,22) e assassino de Abel (4, 2-8). A b e l 6 é o segundo filho de Adam e Eva. O nome significa respiração, vapor, 7 exalação. Era pastor (nômade ignorante), morto pelos agricultores (instruídos) e
personifica os pastores nômades em oposição ao seu irmão Caim, o agricultor sedentário. Ambos ofereceram a IHWH sacrifícios, mas Ele preferiu os animais de Abel aos produtos da terra de Caim. Abel é considerado a típica vítima inocente. Quanto ao ofício de Abel, pastor, em muitas culturas tem sentido simbólico
4
, p. 108. Di cio n ário d e Sím bo lo s Alan UNTERMAN. Dici on ário Ju dai co d e Len das e Trad ições , p. 52. 6 Ad de VRIES. Dictionary of Symbo ls and Imagery , p. 1. 7 Johannes B. BAUER. Dic io nário de Teol og ia Bíbl ic a , vol. II, pp.821-822. 5
14
religioso, sendo visto como a figura paterna, protetora, em muitas culturas. As insígnias dos reis egípcios são derivadas dos pastores. IHWH é pastor do povo de Israel. Os antigos israelitas eram um povo pastoril. A bíblia contém inúmeras passagens que evocam a vida dos pastores. Era uma existência sofrida, por isso os ricos proprietários empregavam assalariados a quem pagavam, em dinheiro ou em espécie, para vigiar os rebanhos, combater os ladrões,
as feras selvagens e
conduzir os animais aos poços de água e trazê-los de volta à noite aos seus currais. é símbolo do amor, da caridade. Ela dá sua carne e leite para A o v e l h a 8
fortalecer os fracos e a lã para o frio.
2.2. A Oferenda de Caim e de Abel a IHWH Caim e Abel oferecem os frutos de seus trabalhos. O primeiro, os frutos da terra e o segundo, a primícia de seu rebanho. Cada um oferece o melhor de si. Abel do mesmo. A gordura em diversas traz das primícias do seu rebanho e da g o r d u r a9
culturas, era sinal de prosperidade, por isso também de oferta valiosa aos deuses, por ser dotada das forças especiais dos respectivos animais, dos quais foi obtida. A gordura de uma parte do animal e a escolha de uma porção, que era sagrada aos deuses na inauguração de um tabernáculo. Um novilho era morto e o sangue era espalhado sobre os chifres e usado para aspersão, enquanto a gordura era queimada. Os restos eram incinerados fora dos acampamentos como sacrifício impróprio.
2.3. A rejeição da oferenda de Caim e a indignação dele perante IHWH No Antigo Testamento, a face 10, o “rosto” é considerado mais importante que a cabeça. Sempre usado no plural, significa as várias maneiras que se tem de entrar em contato com o semelhante. Expressa uma escala cheia das emoções e sentimentos, para os hebreus 11 (dor, alegria, vergonha e a serenidade). Irritar-se, no sentido de ser rejeitado é descrito por um semblante caído. É muito comum, os israelitas mencionarem a face de IHWH, querendo significar a própria pessoa Dele, 8
Ad de VRIES. Dictionary of Symbo ls and Imagery , p. 418. , p. 141 e Ad de VRIES. Dictionary of Symbols and Imagery , p. 177. Di cio n ário d e Sím bo lo s 10 L. MOULOUBOU E F.M du BUIT. Dic io n ário Bíb li co U n iv ers al , p. 283. 11 The Anchor Bible Dictionary , p.743-744. 9
15
sua presença (Sl 31, 21; 80,17). Assim, quando IHWH por cólera desvia sua face, afasta-se do homem. Face é a mais comum palavra do AT denominada como a presença num sentido mais amplo do que apena s rosto. A palavra “panin” é referente a estar (na) ou deixar a presença de um rei, de um superior ou de um ser na presença de IHWH. No relato bíblico, IHWH considera a oferenda de Abel e rejeita a de Caim, que ajx no fica irado. É a primeira vez que a Escritura menciona a palavra p e c a d o 12
contexto de relação social (4,7). No AT, o pecado não é uma transgressão de uma lei moral, mas a ruptura do laço pessoal do crente com IHWH. O sentido bíblico do pecado acentua seu caráter concreto, objetivo e os preceitos do Decálogo especificam a melhor maneira de permanecer fiel à aliança divina (Dt 5, 1 -22).
12
VV. AA. Dici on ário Cul tu ral d a B íbl ia , p. 198.
16
III – ANÁLISE LITERÁRIA
A perícope de Gn 4, 1-7, encontra-se no bloco literário dos mitos: Gn 1 –11, especificamente no ciclo das Origens, Gn 4 –6, em que está situado o bloco das histórias ou genealogias dos descendentes de Adão. Essa história constitui uma saga. Dentro do bloco literário, está o capítulo 4 do Gênesis que é constituído por 26 versículos. Este capítulo apresenta três perícopes: o relato de Caim e Abel (Gn 4, 1-16); a descendência de Caim (Gn 4,17-24) e a descendência de Set (Gn 4, 25-26). Para análise, iremos tomar a história de Caim e Abel (Gn 4, 1-16) e dentro dessa perícope, fazermos um recorte limitando-nos aos versículos de Gn 4, 1-7.
3.1. Coesão Interna: Analisaremos cada um dos versículos da perícope Gn 4, 1-7, a fim de verificar a coesão textual. O versículo 1 descreve que o homem coabitou com Eva e esta deu à luz a Caim (adquirido com a ajuda de IHWH). Alguns verbos nos chamam a atenção, o verbo
(conhecer/coabitar) que está no QAL perfeito expressando ação
concluída; os verbos
(conceber) e
(dar à luz) estão no QAL imperfeito,
demonstrando ação incompleta, inacabada. Por último o verbo conseguir/ adquirir que está no QAL perfeito: Caim foi adquirido com o auxílio de IHWH. O versículo 2 é coeso com o 1, pois Caim e Abel são filhos do homem (Adão) e de Eva. Portanto, o ponto de coesão é a filiação de ambos. Entretanto, há elementos a serem analisados. Abel parece nascer normalmente, sem o auxílio de
17
IHWH. Este mesmo versículo 2, informa-nos as funções de Caim, lavrador e Abel, pastor. Quanto ao versículo 3, temos a referência à oferenda, fruto da terra, de Caim ao Senhor. O versículo 4 refere-se a Abel que traz as primícias do seu rebanho e da gordura (fartura) deste e IHWH a considerou. Há em nível destes dois versículos um ponto de coesão, a oferenda. Porém há dois elementos a serem analisados. O primeiro refere-se a Caim que leva a sua oferenda no fim de um tempo (dia). Para a ação de Caim, verbo
(trazer) está no
HIFIL imperfeito, indicando ação inacabada. A segunda consideração a ser feita é
que Abel oferece das primícias e da fartura do rebanho. Temos o mesmo verbo , entretanto para ação de Abel ele está no HIFIL perfeito, ação concluída. A ação de IHWH ao olhar para a oferenda de Abel é inacabada, através do verbo (considerar/estimar) no QAL imperfeito, significando que de fato, a oferenda agradou a IHWH, que Ele parece ter uma atitude contemplativa diante da atitude de Abel. A ira de Caim é caracterizada no versículo 5, quando ele percebe que sua oferenda desconsiderada por IHWH. No caso de Abel (v.4) a ação do verbo é inacabada. Aqui temos o mesmo verbo uma partícula negativa
(considerar/ estimar) acompanhado de
al (não). O autor o coloca no QAL perfeito, indicando que
IHWH não aceitou de fato a oferenda de Caim. Vale lembrar que Caim ficou (muito) decaído e isso é demonstrado pela partícula
(extremamente).
No versículo 6 temos uma indagação de IHWH a Caim. O verbo (dizer/falar) encontra-se no QAL imperfeito, indicando uma fala continuada de IHWH Perguntando-lhe porque a face de Caim decaiu. É como se IHWH o questionasse constantemente. A atitude de Caim é ação acabada, ele está irado. O verbo (irar) no QAL perfeito demonstra isso. O versículo 7 parece estar destoando de todos os outros. Os anteriores nos permitem extrair conclusões. Neste, há um elemento novo, o pecado. Há também uma mudança de assunto e de conteúdo, a atitude moral de Caim. Dá-se a impressão de que este versículo foi (estruturado) escrito posteriormente por uma tradição deuteronomista por sistematizar um conceito teológico-moral no texto
18
(pecado).
Apesar
desses
elementos,
tem-se
uma
coesão,
através
do
questionamento de IHWH a Caim, entre os versículos 6 e 7. Quanto ao estilo, o texto está em forma de prosa, de forma linear e objetiva, sendo que ações acontecem sucessivamente e uma se torna conseqüência da outra.
19
IV – ANÁLISE DO CONTEXTO
A grande dificuldade de contextualizar Gn 4, 1-7 se deve ao fato de ser um mito (saga), o que lhe possibilita se deslocar ao longo da história sem perder a sua atualização. O interessante do mito é que ele é uma criação histórica que supera a própria história. Daí não termos precisão ao situá-lo historicamente. Outra dificuldade é a de precisar o (s) redator(es), pois não há consenso entre os biblistas sobre a autoria do Pentateuco. Acreditava-se na teoria das fontes, mas hodiernamente já não tem muito significado 13. Diante disso, vamos nos valer das análises já feitas neste trabalho para encontrarmos pistas que nos ajudem a contextualizá-lo. Há dois elementos que o texto bíblico nos coloca e que são fundamentais. Entre os dois irmãos há uma diferença de atividades. Caim é agricultor e Abel, pastor. Dentro dessa análise, uma indagação se coloca: por que Deus aceita a oferenda de Abel e rejeita a de Caim, se Caim oferece produtos da terra e esta é para o israelita, sagrada? Não é nossa intenção respondê-la neste momento, mas o certo é que o texto bíblico aponta para um princípio de rivalidade entre agricultores e pastores que disputavam o uso da terra. Isso significa dizer que o ambiente do texto é agro-pastoril e expressa o conflito entre os agricultores sedentários e os nômades. Como o texto é um mito, não se fecha em si mesmo, permite-nos contextualizá-lo também num outro ambiente, o conflito entre campo e cidade. Seja como for, é escrito por uma classe israelita que está sendo espoliada por uma outra. Sociologicamente os agricultores se caracterizavam por moradias fixas construídas de tijolos de barro e viviam em aldeias ou cidades. Eles se dedicavam à 13
– Um a Ex peri ênc ia Parad ig m átic a Milton SCHWANTES. As tribos d e Javé , p. 104.
20
agricultura, à lavoura e cultivam cereais, vinho, verduras e frutos e criavam gado bovino14, portanto, eram proprietários de terras, visto que o gado bovino exigia maior espaço para sua sobrevivência. Os agricultores migrantes eram pessoas sedentárias que alternavam entre agricultura e criação de gado. Viviam na terra cultivada próximos às cidades fortificadas e grande maioria das vezes na dependência delas15. Quando os israelitas foram para a terra de Canaã (Canaã=Caim, têm o mesmo radical) cada um recebeu um lote de terra. Essas classes abastadas, com o passar do tempo foram se enriquecendo e comprando as terras dos pequenos agricultores. Surgiram conflitos entre latifundiários e os pequenos agricultores que lutavam para não perderem seu pequeno pedaço de terra. O trabalho era familiar e praticado com o auxílio de alguns servos. Além dos conflitos, os agricultores enfrentavam o problema da seca, os ventos fortes do leste (siroco), a praga de gafanhotos e os exércitos invasores 16. Na época somente as planícies litorâneas e a de Jezrael eram ocupadas. Na planície situavam as cidades fortificadas que dominavam o mundo rural dos camponeses, a grande maioria da população cananéia, explorando-os. Com a queda do imperialismo egípcio, mantenedor das cidades-estados, estas entram em crise profunda, digladiando-se entre si em busca de hegemonia umas sobre as outras. Quem sofria as conseqüências eram os agricultores que encontravam dificuldades de plantar e de colher, porque suas terras eram verdadeiros campos de batalhas dos monarcas cananeus. Após esse conflito nasce Israel e uma te ntativa dos lavradores de se instalarem na planície: “um texto egípcio de 1220 a.C. refere-se a um Israel que devemos procurar na Planície de Jezreel, fazendo frente aos reis cananeus e a uma expedição militar egípcia. Este Israel são os lavradores que se rebelam contra os espoliadores.”17 Os camponeses pagavam tributos ao soberano e esse pagava tributos ao Egito. À medida que os camponeses não conseguiam saldar seus compromissos, tornavam-se escravos por dívidas. Muitos, para escaparem delas fugiam para as estepes, áreas de ninguém e se organizavam em grupos seminômades. Como
14
Herbert DONNER. A História de Israel e dos Po vos Vizinho s, Vol. I, p. 52. Idem p. 56. 16 , p. 267. En ci cl op é di a Ilu str ad a d a B íb li a 17 – Um a Ex peri ênc ia Parad ig m átic a Milton SCHWANTES. As tribos d e Javé , p. 106. 15
,
21
sobrevivência a economia deles era baseada na produção de caprinos. Suas vidas eram constantes migrações em busca de água e de pastagens para os animais. Nesta época, surgem muitos conflitos por causa da terra. O certo é que aos poucos o campesinato cananeu vai se desvencilhando dos monarcas das planícies e buscando as montanhas, libertando-se do regime das cidades-estados. 18 Os seminômades vivem em tendas e se alimentam do gado criado em pastagens extensivas, sobretudo dos pequenos animais, ovelhas e cabras. Alguns tinham bovinos (raros), camelos para se locomoverem e para o transporte de carga19. O grupo dos nômades se caracterizava por caçadores, coletores, agricultores migrantes, criadores de gado miúdo, metalúrgicos, ambulantes, ciganos e dos foras-da-lei das cidades 20. O grupo dos agricultores e dos nômades era fechados em si e se excluíam mutuamente. Os nômades conduziam seus rebanhos às estepes e às margens do Crescente Fértil 21. Isso era possível quando chovia e os territórios das estepes e dos desertos se cobriam com uma vegetação muito pobre e parca às necessidades dos rebanhos. 22 No verão os nômades, se quisessem manter vivo o seu gado, eram obrigados a deslocar seu rebanho para o interior da terra cultivada, porque a estepe e o deserto não lhes ofereciam possibilidade de pastagens ao animais, devido à falta de chuva. Em alguns casos era possível entrar em acordo com os agricultores em relação ao uso das pastagens, visto que os rebanhos faziam um trabalho de fertilização, fornecendo esterco ao solo. Isso nem sempre era possível e freqüentemente se tinham conflitos nesse nível 23. Os nômades criavam ovelhas e cabras, pois eram animais bem adaptados às encostas íngremes. As ovelhas serviam para fornecer lã e alimentação. Em Israel, a cauda gordurosa era considerada um excelente prato. A lã preta das ovelhas era tecida e utilizada para a cobertura das tendas. A lã branca para a confecção de roupas. As cabras forneciam carne e leite (coalhada) e os seus pêlos eram utilizados para a confecção de tecidos grosseiros e para a fabricação de odres. As ovelhas e cabritos eram mortos nos sacrifícios do tabernáculo e do templo. O rito dos
18
– Um a Ex peri ênc ia Parad ig m átic a Milton SCHWANTES. As tribos d e Javé , p. 107. , p. 259. En ci cl op é di a Ilu st rad a d a Bíbl ia 20 Herbert DONNER. A História de Israel e dos Po vos Vizinho s, Vol. I, p.56. 21 , p. 8 At las d a B íb li a 22 Herbert DONNER. A História de Israel e dos Po vos Vizinho s, Vol. I, p. 53. 23 Idem, p. 53 19
22
seminômades era matar um cordeiro ou cabrito e colocar o sangue no mastro e sacrificar a carne. A ovelha e o cabrito eram produtos preciosos para eles, a sobrevivência. No século XII, a Palestina dominada por monarcas e colonizada pelos egípcios impunha uma prática religiosa citadina. “O cul to citadino, vive, pois das realidades camponesas.”24 Isso significa dizer que a religião era uma legitimação do
poder cananeu e egípcio sobre os camponeses e servia para a expropriação dos bens deles e entregá-los ao tempo e ao Estado, no período das festas, das colheitas, no recolhimento dos dízimos e tributos. “No mundo cananeu de planície, a
religião citadina é religião de arrecadação de tributos. E, justamente, por ter esta função assume matizes da vida do agricultor. Seu tema central é o ciclo da natureza porque sua função é a arrecadação do resultado ou fruto do trabalho dos camponeses.” 25
O seminomadismo e o nomadismo eram um modo de vida no primitivo Israel. O pastoreio das estepes (no inverno) nos planaltos (na primavera e no verão), constituíam formas de pastoreio transumante. Os pastores moravam em meio aos povos sedentários de Canaã e do Egito. Os israelitas nômades pastoris compartilhavam com os israelitas agricultores um ressentimento comum: o conflito contra a dominação exploradora do feudalismo cananeu e do imperialismo egípcio, dos quais sofriam do mesmo modo 26. Portanto, o conflito que aparece na perícope de Gn 4, 1-7 é entre as cidadesestados e o campo e a luta é pela terra. Dado tudo isso, não reta dúvida de que o texto é escrito a partir da óptica dos
(Abel), “sopro/vapor”, significando os povos
oprimidos, mas que IHWH olha para eles.
24
– Um a Ex peri ênc ia Parad ig m átic a Milton SCHWANTES. As tribos d e Javé , p. 108. Idem, p. 108. 26 Norman K. GOTTWALD. As Tribos d e Iahweh , p. 441-479. 25
23
V – A PERSPECTIVA TEOLÓGICA
A perícope analisada tem um sentido muito profundo. Entretanto, algumas interpretações parecem ser reducionistas, empobrecendo o significado dela. Há uma forte tendência nos meios eclesiásticos de interpretar a atitude de Caim e de Abel através de um juízo moral, a partir do egoísmo de Caim e da bondade de Abel. Se consideramos que Abel era pastor, essa classe também não era muito bem vista no Antigo Israel, pois eram salteadores de pastagens. Ora, se se fecha nesta questão, torna-se difícil um diálogo teológico. Vamos tentar outro caminho, talvez mais árduo e interpretar o texto a partir do olhar de I HWH sobre Caim e Abel. A contextualização nos mostrou que o(s) autor(es) retrata (m) um conflito básico, a luta pela terra. Partindo disso, vamos nos propor responder à questão levantada: por que IHWH considerou a oferenda de Abel e não a de Caim, se este oferece do fruto da terra e esta é para o israelita, sagrada? O problema não é tão simples de resolver, temos que perscrutar primeiramente quem é IHWH, a partir da teogonia israelita, visto que a teologia deste texto é a partir do javismo, isto é, a nomenclatura utilizada pelo redator bíblico é IHWH e não EL, por exemplo. A dimensão da transcendência divina é manifestada por três elementos: o cosmo, a antropologia e a história que se constituem evidências para mostrar a realidade de IHWH. A perícope analisada contém essas três dimensões. A cidade e o campo estão dentro de uma estrutura cosmológica. Entretanto, não se constroem sozinhos se não há o elemento antropológico que por sua vez faz a história e é nessa construção histórica que IHWH se revela. No princípio era o EL, depois BAAL – deuses da natureza e do Estado que tinham poder sobre a vida e sobre a morte. Posteriormente surge IHWH, que gera um povo a partir do evento da libertação. É esse acontecimento que faz com que IHWH seja chamado pelos israelita s de “nosso Deus”, pois fez do povo, gente, isto é,
24
Ele os elegeu e o povo ganhou uma identidade. Portanto, Israel passa a ser TU para IHWH. Dado isso, podemos trabalhar os outros elementos teológicos de Gn 4,1 -7. Se partíssemos de um julgamento moral, limitar-nos-íamos somente a um conceito, o de pecado. Corremos o risco de determinar que IHWH não aceita a oferenda de Caim porque é pecaminosa. IHWH ama Caim. Tanto o é que ele é gerado com a ajuda Dele e tem possibilidade de escolher o seu caminho. Isso nos permite desmontar um outro conceito, o de um Deus excludente. IHWH tem uma opção sim, que está acima de povos ou de categorias sociológicas, religiosas, mas é pela vida. Sendo assim, temos um fio condutor bastante amplo e que evita análises fundamentalistas. Em Israel a questão da terra é central. Terra para o israelita é vida. No texto de Gn 4, 1-7, temos dois elementos de fertilidade:
(terra cultivável) e
(mulher). Poderíamos definir esse pensamento da seguinte forma: a terra cultivada (
) e a mãe de todos os viventes (
) geraram Caim e Abel. Portanto, ambos
estão estritamente ligados à da terra. O problema é o mau uso dela. A terra de Caim é fértil. Porém ele não a partilha e leva a sua oferenda “no fim de um tempo”, ou seja, ele oferece as migalhas da vida. IHWH quer vida em
abundância. Abel, como o próprio nome diz é algo fugaz e representa os pequeninos (vida passageira/sopro) que oferece as primícias, isto é da abundância. Na luta pela terra, a opção de IHWH é olhar por aqueles que lutam pela vida e conseguem oferecê-la como gratuidade, mesmo não a tendo (sopro). Isso faz com que até IHWH contemple esta ação. Em Gn 4, 1-7, podemos compreender a profundidade da ação de IHWH. Ele é o Deus que sente com o seu povo. A grandeza Dele se torna pequenez e ele é capaz de estimar a gordura do rebanho, isto é, um Deus-Companheiro, aquele que come da mesma comida (pão) do seu povo. Conforme nossa pesquisa, a parte gordurosa da cauda de um cordeiro era um excelente prato e IHWH se torna aquele que faz refeição com o seu povo. Fazer refeição é celebrar a festa da vida e da alegria. E quando IHWH aceita a oferenda do pequeno faz com ele aliança. A aliança é estabelecida pelo olhar da transcendência, porque quando IHWH contempla deixa vir à tona sua identidade.
25
E Deus contemplou a vida. Ao fazê-lo Caim fica irado e o semblante dele decai. Ele perde a sua identidade perante IHWH. Quem não promove a vida, perde a identidade de si mesmo e se afasta do Doador da Vida. Aqui é necessário ir ao texto hebraico
. O verbo
(falar, dizer) está no QAL imperfeito e tem ação
incompleta. Isso significa dizer que o “falar” de IHWH é um constante questionar
sobre a oferenda da vida. A oferenda de Caim não é aceita não porque é invejoso, mas porque ele comete um pecado sério contra aqueles que são pequenos e IHWH é o Deus dos pequenos. O pecado de Caim é não partilhar da fertilidade de sua terra que poderia gerar vida em abundância. O olhar contemplativo de IHWH não se fixa onde não há a oferenda da vida. Seus olhos não conseguem contemplar estruturas de morte. Caim, mesmo ajudado por Deus, escolhe um projeto de opressão e tem liberdade para isso. O ápice de sua ação contra a vida vai além de Gn 4, 1- 7 e temos o “primeiro” homicídio. “Disse Caim a Abel, seu irmão: vamos ao campo, sucedeu que se levantou Cai m contra Abel, seu irmão, e o matou.” (Gn 8). A ação foi concluída, Abel é morto no campo, local da
fertilidade, onde se geram os frutos da terra. Mas IHWH pôs em Caim um sinal para que ninguém tirasse a vida dele (Gn 15). Como conclusão, a perspectiva teológica nos faz questionar as relações sociais em nossa sociedade. A saga de Caim e de Abel se atualiza nos dias hodiernos e tem a sua aplicabilidade. Quem são os “Cains” e os “Abeis”? Países
desenvolvidos e subdesenvolvidos? Latifundiários e sem-terras? Enunciados para tal não faltam! O que nos interessa e que nos questiona é que apesar dos sinais de não partilha da vida (Caim) presentes em nossa sociedade, há aprofunda e agradável oferenda da Esperança (Abel). E o olhar da transcendência de IHWH continua contemplar e a proteger os pequeninos. Para os insensíveis parece que cessaram as profecias e IHWH silenciou. Desde aquele tempo até hoje, a fala de Dele não cessa (Gn 4,7). Ele grita em favor da vida questiona perenemente aquele que não a promove. Quem luta pela vida não tem a face decaída e não perde a sua identidade, porque tem nela o brilho da força criadora de IHWH.
26
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