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DE SÃO PAULO
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Mal'Y Amazonas Leite de Barros
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Tradução
C ar 10 s A lb ert o
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Nél io Marc o Vincenzo R ic ar do
T ol ed o S il va
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Celso Faval'e llo e Leon Kossovitch
José Mel 1i
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Diretora Editor;al
das Condutas
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DE S ÃO PA ULO
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do Gesto
Uma Estética
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T ítul o do o ri gi na l fra nc ês :
Lu Beullté dll geste: Por llneesthétiqlle des condllites
Tradução para o português feita a partir da edição da Prcsses de L ' É co le N or ma le S up ér ie ur e, 1 98 4. Copyright © 1 99 7 b y J ea n G al ar d I " e di çã o 1 99 7 I " e dição , I " r eimprcssão
2008
Dados I nternacionais de Catalog ação na Pub licação ( Câ ma ra Br as il ei ra d o Li vr o, S I' , B ra si l)
(CIP)
G al ar d, J ea n, 1 93 7A Bel eza do Gesto: Uma Estéti ca das Condutas / Jean Gal ar d; tr adu ção de Mar y Amazonas Leite de Barr os. - 1. e d., I . reimpr . - São Paulo: Editor a da Universidade de São Paulo, 2008. - (Críticas Poéticas, 7)
Para Alena
ISBN 978-85-314-0420-7 I. Estética
I. Título.
I!. Série.
97-4843
CDD-305.567 Indíces para catúlogo
I. Estética:
Filosofia
sisten1útico:
I 11.85
Direitos em língua portuguesa reservados ü Edusp
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SUMÁRIO
Prefácio à Edição Brasileira 11
Uma Arte, ao Pé da Letra 19
Poética da Conduta 23
Ética do Signo 39
A Economia dos Meios 49
A Ação Simbólica 59
Parêntesis 73
Estética Romântica 77
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o Sentido do Insignificante 89
o Franqueamento
do Gesto
103
Estéticas 119
PREFÁCIO
À
EDIÇÃO BRASILEIRA
Muitas línguas - embora nem todas - utili zam o mesmo termo para designar os movimentos do corpo portadores de significação e algumas ações que são qualificadas de "gestos" em sentido figurado. É neste sentido que considero um gesto, por exemplo, o ato generoso graças ao qual este ensaio pode ser hoje editado no Brasil, gesto de hospitalidade da Universidade de São Paulo, que repete outro, do passado, do qual eu já me benefi ciara. A língua portuguesa e francesa jogam de modo semelhante com essa ambivalência da pala vra "gesto" - o que constitui ao menos um ele mento favorável a esta tradução. Até que ponto as conotações da palavra "gesto", entendida no sentido figurado, são idênticas em fran cês e em português? Para nota percebê-Io, é preciso um ouvidobem treinado. Esta não pretende respon der a tal questão. Apenas chama atenção para o fato de que a palavra, em francês, tem um valor estéti-
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co. Só O emprego do masculino subsiste atualmen te, mas ele parece ter conservado, no sentido figu rado, tudo o que havia de glorioso nos dois empre gos femininos, hoje em desuso, e que designavam, na Idade Média, seja a narrativa das façanhas de uma personagem histórica, exaltadas pela lenda, sejam as ações belas e memoráveis. Para ilustrar (por,apa rentemente, não poder defini-Ia) a acepção dita "abs trata", os dicionários mencionam correntemente a locução "fazer um belo gesto". A existência ou a ausência numa língua de uma palavra que expresse o gesto no sentido figu rado tem, certamente, alguma significação antro pológica. O mesmo acontece com a associação pos sível dessa palavra com a que designa a beleza e com ojuízo de valor implicitamente aplicado a esse eventual par terminológico. Essas realidades lin güísticas são, sem dúvida, interessantes sintomas para um estudo das mentalidades. A atitude italia na em relação ao bel gesto é, antes, laudativa, en quanto a atitude alemã em relação ao schõne Geste tende ao irônico. O gosto pelo belo gesto pressupõe
São inúmeros os fenômenos históricos, os pe ríodos, as instituições, que, cuidadosamente ana lisados, permitiriam compreender melhor a sedu ção, a gravidade e também os engodos da "beleza do gesto". Para citar alguns modelos metodológi cos, pense-se no trabalho de Maurice Pinguet, La Mort volontaire au Japon (1984), que explora com documentos as significações do "bem morrer", ou no de Michel Foucault, que, em L'Usage des plaisirs eLe Souci de sai (1984), deslinda e interroga,
uma preocupação com as que formas (ecom osmais códigos, até para desobedecê-Ios) se encontra nos franceses do que nos brasileiros, pois, segundo consta, estes são mais suscetíveis a condutas "in formais". Mas este ensaio não tem como objetivo, de for ma alguma, analisar o espírito de um povo, nem se colocar sob a égide de uma sociologia comparativa, nem contribuir para uma história das mentalida des. Ele não tem a intenção de fazer o saber posi
des exemplos (ocavaleiro, o sábio, o homem da cor te, o herói corneliano), com os quais se fica em ex celente companhia, alguns casos mais comprome tedores: o dos "dândis" e dos "decadentes", o de um d'Annunzio, o de um Marinetti, que são igualmente instrutivos ou mais cruelmente esclarecedores. Mas, quando este pequeno livro procurava fa zer surgir seu objeto (e não analisar um objeto "dado"), o desejo de saber se a conduta da vida poderia ser, um dia, inteiramente estetizada, im
tivo avançar, por pouco que seja. Sequer teve o cui dado de definir um corpus. Caberia aqui um arre pendimento?
punha-se quase obsessivamente. Estava fora de cogitação encarar um estudo aprofundado, dedica do a uma ou a outra dessas figuras: o ganho pare-
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no núcleo da cultura greco-~atina, aquilo a que chama de "artes da existência". Pense-se também nos inúmeros objetos de pesquisa designados, de passagem, por Georges Duby, no que concerne ao fenômeno da cavalaria; por Jacob Burckhardt ou Philippe Aries, a respeito da sociedade da corte; por Paul Bénichou em Morales du grand siecle (1948). Renato Janine Ribeiro efetua um vivo pa norama da ética-estética das cortes européias dos séculos XVII e XVIII em A Etiqueta no Antigo Regime: do Sa ngue à Doce Vida (1 983). Pode-se - e deve-se - acrescentar a esses gran
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cia demasiado incerto; o desvio, por demais longo. O passado só era interessante como reservatório de "fatos e gestos" em que se pudesse escolher con forme a ocasião. É assim, parece, que a educação moral tratava outrora o conhecimento do passado: ela descontextualizava os fatos históricos a fim de torná-Ios exemplares. Este ensaio, refratário à in vestigação historiadora, procurou agenciar algu mas noções a partir das quais uma conduta bela seria dorauante concebível. Projeto novo, capaz de ter sentido atualmente? Ou projeto "utópico", isto é, do qual nunca se en
Diderot: "Não se tem pelos seres imaginários a de ferência que se deve a seres reais". Por isso, apli
contrará realização satisfatória em ou lugar algum? Programa radicalmente impossível, atualmen te impraticável devido à civilização em que esta mos, que é tecnicista e inteiramente votada ao princípio de utilidade? Em seu Hagakure nyumon (Introdução ao Hagakurê, 1968; traduzido para o francês sob o título Le Japon moderne et l'éthique samourai", 1985), Mishima imputava a causa de seu desespero à época em que vivia: "A atmosfera de compromisso deste tempo deve-se ao fato de
própria infelicidade, como também a de outrem. Não cabe aqui retomar novamente o problema, vasto, de saber se a arte pode ou não modelar a vida, se ela deve ou não fazê-Io. Porém, uma vez que esta é exatamente a questão que subtende este ensaio, que nos seja permitido acrescentar ainda uma ou duas observações, em tom interrogativo: talvez elas possam revelar uma incorrigível inge nuidade; talvez possam, pelo contrário, mostrar como uma estética das condutas não é ainda uma
que aquele que se aesforça por viver morrer beleza se destina uma morte que eterá toda naa aparência da ignomínia, ao passo que aquele que só aspira a uma vida e a uma morte que são, na realidade, repugnantes passa dias felizes". Não seria, antes, de modo totalmente intemporal que a conduta da vida (assim como a da morte) e a von tade de beleza se excluiriam mutuamente? A arte, geradora de beleza (não apenas de de leite, mas de beleza trágica, sublime, surpreenden te), tem, sobre a vida corrente, a vantagem de re correr à ficção. Tudo, então, lhe é permitido. Ela vive sob o regime da impunidade. Como afirma
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cam-se as invenções da arte representações da realidade: "Não se deve fazeràspoesia na vida. Os heróis, os amantes romanescos, os grandes patrio tas, os magistrados inflexíveis, os apóstolos da re ligião, os filósofos a qualquer custo, todos esses raros e divinos insensatos fazem poesia na vida, daí a sua infelicidade" (Salon, de 1767). "Eles são excelentes para ser pintados", acrescenta Diderot. Fornecem após sua morte os temas de grandes qua dros. Mas, enquanto vivem, causam não só a sua
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questão fechada. Quando Diderot escreve que não se deve fazer poesia na vida e que as grandes ações só convêm aos quadros, quando afirma em outra parte (em Paradoxe sur le comédien) que o teatro aumenta o que ele representa e que a arte imita um mundo ideal onde tudo é "grande, raro, maravilhoso e su blime", observa que nossa vida, por contraste, é "pequena, pobre, mesquinha e miserável". Resig nar-se-á com essa comprovação? Será preciso até consentir em vê-Ia piorar sob o efeito de uma arte adversa, que difunde por toda parte doravante a imagem de um outro "mundo ideal", convidando a
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uma vida sempre mais uniforme e vulgar? De qualquer modo, a questão da estética da vida se
ilustrada de propósitos retóricos que as noções de "Arte" e de "Vida" tornaram-se cada vez mais ne
propõe. Seuma não explicitamente, paraimplicitamente, definir as con dições de conduta bela, será na súbita tomada de consciência de que um gesto foi ignóbil ou de que um destino foi desperdiçado. Após os triunfos, no século XVIII,da doutrina do "belo ideal", a "arte" e a "vida", durante dois séculos, não deixaram de se situar, uma em rela ção à outra, numa complexa relação de rivalidade, como dois termos que, ao mesmo tempo, se apro ximam necessariamente e se excluem fatalmente.
bulosas. do queética, inúteis: tretanto, Pior a questão por atravancadoras. seu lado, continuaEna se colocar, embora seja abandonada pela teoria. Como conduzir a vida? Pergunta de todos os ins 'tantes, que requer, ao longo de nossos dias, prin cípios diferentes daqueles açambarcados pelo dis curso moral (tolerância, respeito pelos direitos do homem). Talvez ela requeira, de fato, outra coisa além de "princípios". Será que não se pode imagi nar, em vez das leis que se supõem governando a
"Empregar seu gênio na vida e não na obra": esta é a ambição, proveniente do romantismo, que se formula mais ou menos expressamente durante o século XIX e que se repete cada vez mais obstina damente no decorrer do século XX. U ma grande parte da arte deste século parece mobilizada pela intenção de apagar as fronteiras entre a obra e seus entornos, entre a cena e o espectador, entre a religião da arte e o mundo comum. A vasta des cendência de Marcel Duchamp se esgota hoje na
vida moral, uma arte do "pertinente", produzindo para cada situação singular o gesto que convém? Kant, em Crítica do Juízo (§ 5) estabelece a distin ção: "mostrar gosto em sua conduta (ou no julga mento da de outros) é algo totalmente diverso do que exteriorizar seu modo de pensamento moral". Este é precisamente o ponto sobre o qual é interes sante interrogar-se. Não está o exercício do gosto na origem de nossas condutas mais inventivas? Não será a repugnância o fator mais poderoso de
compulsiva experimentação do que é "próprio da arte". Na perplexidade em que estamos agora quanto à questão de saber o que a arte tem de es pecífico ou distinto, duas hipóteses extremas aco dem: terá a arte concluído o trabalho de apagar suas fronteiras a ponto de ter-se abolido totalmen te? Ou terá ela cumprido a ambição de estender seus limites a ponto de ter conquistado (pelo me nos a título simplesmente de "zonas de influência") todos os domínios da vida?
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recusa das condutas degradantes? É preciso enten der por "gosto" coisa diferente da expressão de uma intuição obstinada: é exatamente o que acon tece esteticamente, uma vez que se admite que o gosto se cultiva. Nas páginas que se seguem, cogi tar-se-á a eventualidade de uma ética renovada, que procuraria, para nossos juízos e escolhas, constituir, refinar, cultivar um gosto esclarecido.
A questão da disseminação da arte, de sua "di fusão" (de seu triunfo difuso), de seu ultrapassa mento, produziu uma literatura tão ricamente
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UMA ARTE, AO PÉ DA LETRA
A arte mais necessária, aquela para a qual cada instante oferece matéria e oportunidade, é entretanto de todas a mais rudimentar, a mais desprovida de princípios conscientes, de categorias estilísticas, de referências notórias: a arte do com portamento. Saber encontrar, no momento oportuno, o gesto adequado; atribuir valor tanto à maneira quanto ao objetivo; não se contentar com o respeito aos usos nem com as facilidades da sem-cerimônia; saber, com gestos mínimos, abrir o curso banal da existên cia à estranheza: alguns modos felizes de comporta mento requerem uma compreensão que parece de correr da mesma ordem estética que a do sentimen to, inspirado, no pólo oposto, pela trivialidade de um malogro, pela deselegância de um procedimen to, pela afetação de um modo de ser; mas estão lon ge de constituir objeto de reflexões há tanto tempo familiares quanto as que se aplicam habitualmente
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às artes instituídas. Enquanto as análises cinema tográficas, as concepções arquitetõnicas, as teorias
irmã da moça desmanchar-se em soluços convul sivos, não podia impedir-se de observar, apesar
literárias florescem no luxo especulativo, a aprecia ção das condutas e das atitudes permanece subme tida à indigente jurisdição da intuição. Todos os nossos atos são constantemente sus cetíveis de se converter em gestos, de simbolizar um modo de ser, um jeito de tratar os outros. É im possível, até na solidão ou na inação, impedir que a conduta tenha sentido (que signifique, por exem plo, o isolamento, o recolhimento, por vezes a de missão, a deserção), portanto, que seja, como uma
da aflição, as falhas de emissão vocal observáveis naqueles soluços e pensava, vagamente, nos exer cícios apropriados para lhes dar mais corpo"!. Villiers de l'Isle-Adam se empenha em persuadir nos de que a dor ou a alegria não são menos in tensamente sentidas quando sua expressão é con tida do que quando ela se manifesta em ruídos confusos. Nos seres que gostariam de se prescre ver impulsos mais espontâneos, paixões mais francas, mais sinceras, ele evidencia, pelo contrá
postura, expressiva. Esse conjunto de atitudes (de posturas ou imposturas), que adotamos inevitavel mente a todo instante, não requereria uma verda deira arte, que o avalie, o trabalhe, o recomponha? Talvez a noção de arte sugira uma intenção por demais aplicada, concertada, para parecer compa tível com a espontaneidade e a improvisação que se supõem prevalentes na condução da vida. Mas não será em nome de uma exigência estética que notamos justamente essa inconveniência (essa in
rio, uma fraqueza afetiva, conjecturando que lan çam clamores para justificar-se de antemão pela inércia na qual sentem que vão logo recair. A agi tação emocional reivindica mentirosamente o natural: reproduz "sinceridades correntes", "pan tomimas convencionais". Seé verdade que toda reação é socialmente mo delada, que nossos gestos, inclusive os mais ele mentares, são educados, a arte que se dedicasse a eles não contradiria o "natural", substituiria uma
compatibilidade) e que ficamos constrangidos, por exemplo, quando vemos alguém compondo sua imagem ou calculando seus efeitos? Decorreriam as atitudes afetadas de uma aplicação intempes tiva da arte à vida? Não indicariam elas, antes, pelo contrário, que nisso nos ativemos aos proce dimentos de uma arte simplificada? Os escrúpulos da atividade artística levam-na a desfazer as po ses, os maneirismos, as construções mais estuda das. A espontaneidade é uma das ambições da arte; o natural, uma categoria estética. Villiers de l'Isle-Adam evoca "um cantor que, junto ao leito de morte de sua noiva, e ouvindo a
arte anterior, uma estética implícita, pouco cons ciente, que regula o porte e a atitude, a continên cia e as conveniências, que subtende a exigência da contenção, quando não do comedimento. Uma arte deliberada, associada às condutas, não teria como objetivo opor seus eventuais refinamentos aos ex travasamentos dos instintos; ela experimentaria gestos inusitados, que a estética herdada exclui. É preciso entender aqui o "gesto" na maior extensão do termo: não só no sentido próprio (os
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1 . V i ll ie rs d e l'Isle~Adam, "Sentimentalisme",
Fl amma ri on ,
Contes cruelfj, Paris, Garnier-
1 98 0, p . 1 80 .
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movimentos do corpo, os usos corporais), mas tam bém na acepção figurada. Permanecer resoluta mente exposto a um perigo, enfrentar um adversá rio mais forte, lançar-se em nome da honra numa aventura sem esperança, é "agir pela beleza do gesto" - como se um sistema estético, de princí pios constantemente ativos, mas informulados, nos incitasse a acreditar que a beleza nunca pode apa recer tão bem como nas poses de desafio, nas rea ções suicidas, no brilho e na gratuidade. Referên cias tácitas determinam igualmente ojuízo dirigi do ao gesto global que é todo o desenrolar de uma vida: elas detêm os critérios segundo os quais uma vida é "bem-sucedida" ou "malograda", fixam o modelo das carreiras "exemplares", cristálizando, ao mesmo tempo, o fracasso incontável das exis tências frustradas. Tratar a conduta como uma arte. Postular
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que ela pode, como o teatro ou a música, despren der-se dos ideais estreitos, das estéticas corren tes. As tentativas deste ensaio entendem o inte
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resse estético segundo diversas definições concor rentes, para explorar a cada vez a eventualidade de sua aplicação ao conjunto do comportamento. Essas hipóteses desejam propor-se, como outras abordagens, como sendo uma série de esboços (como sendo uma seqüência de gestos). Longe de atribuir a si mesma um campo de experiência pré-constituído, um domínio de observação, a in vestigação procede aqui de um desejo cujo obje to não é comprovado, mas induzido; apoiando-se num esquema analógico, ela infere a possibilida de de provocar, no próprio curso da vida, a con sistência formal ou a intensidade emocional, pró prias da experiência artística.
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POÉTICA DA CONDUTA
Que a apreensão estética da existência seja, afinal, coisa comum, é o que atestam, por exemplo, o uso corrente das noções de "rotina", "monoto nia", "cinza", o enfado que se tem por levar uma vida chinfrim, pobremente cotidiana, condenada à chatice, ou ainda a extensão metafórica que às vezes se dá à oposição da "prosa" à "poesia". A categoria do "poético" reivindica, desde o ro mantismo, um campo de aplicação que excede a es fera das palavras, inclui, para Chateaubriand, al gumas práticas antigas (as festas, as peregrina ções), estende-se, com George Sand, ao modo de vida campestre em seu conjunto. Sartre, um século depois, interpreta a maneira de ser africana, cele brada por Senghor sob o nome de N egritude, como a expressão de uma poesia de agricultores, oposta a uma prosa de engenheiros! . Por mais distante 1. J.~P.8artre, "Orphée noir", Situations IIl, Paris, Gallimard, 1949, p. 265.
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que esteja dos temas românticos, Valéry destaca um fato de linguagem ("Dizemos de uma paisagem
e os prosadores segundo suas preferências, saben do-se que gosto não se discute, é eliminar depres
que é poética; dizemo-Io de uma circunstância da vida; dizemo-Io às vezes de uma pessoa") e retoma o postulado que este uso implica ("Sei que tem poesia neste arranha-céu"2). Karel Teige, nos Ma nifestos do Poetismo, declara preferir as vibra ções que a vida oferece aos cinco sentidos às flores destacadas da literatura: "poesia das tardes de do mingo, das excursões, dos cafés iluminados, do ál cool embriagador, dos bulevares animados, das ca minhadas nos balneários, e ainda poesia do silên
sa demais o objeto do debate. Pelo contrário, que renovação de perspectiva não haveria, se as dife rentes maneiras de viver e agir pudessem compa rar-se, criticar-se, comentar-se conforme uma ter minologia tão elaborada quanto a das análises do discurso e, para começar, conforme a alternativa da poesia e da prosa. Em vez de atingir uma tipologia naturalista dos caracteres, essa transpo sição das categorias literárias ofereceria a cada um a liberdade de decidir sobre o tom, o gênero, o
cio, da noite, da calma e da paz"3. De que modo objetos, lugares, condições de existência, seres, comportamentos podem pare cer carregados de poesia? Se aí só existe uma série de idéias feitas, como e por quem foram elas transmitidas?
registro nos quais ele escreveria sua vida. Um in divíduo, e até um grupo, escolheria comportar-se de maneira poética ou consentir com a prosa, em virtude das circunstâncias ou do estado de suas convicções estéticas. Suponhamos que a poesia, em vez de ser pri meiramente uma coleção de objetos (verbais), seja um processo cuja autonomia fosse suficiente para que ele operasse de maneira semelhante nas cons truções de palavras, nas disposições de objetos,
Jean Lacouture ressalta que Malraux se empe nhou em combates pelos chineses, vietnamitas, espanhóis, enquanto se manteve à margem das tribunas da Frente Popular. Observa também que algo dessa atitude reaparece no terceiro-mundismo da esquerda dos anos 60, que prefere apaixonar-se pelos palestinos ou vietnamitas a fazê-Io pelo pro letariado francês. Ele conclui: "Debate sem fim, e talvez sem razão. Há os da infantaria e os da ca valaria. Nômades e sedentários. Poetas e prosado res"4.Repartir em variedades congeniais os poetas
2 . P aul V al ér :y ' "Pr opos s ur I a poé si e" e "Né ce ss ité
nas composições de gestos. Se a operação poética consiste em algum funcionamento dos signos (e não no uso de alguns signos), torna-se concebível uma poética da conduta que não se deixe deter pela evidente heterogeneidade das palavras e dos gestos na tarefa de determinar as propriedades desse funcionamento. Sem ambicionar exatidão (nem paralelismo com a incerta essência da Poesia), sem outra ga rantia que não seja o sucesso amplamente testa do do esquema que J akobson construiu para clas sificar as funções da linguagem, tome-se como ponto de partida a definição da função poética
de I a poé si e", Variété,
Pa ri s, G al li ma rd , 1 95 7, Pl éi ad e, t omo I, p p. 1 3 6 2, 1 3 86 . 3. Kar el T eige , " Poétis me " ( 1924), Change (10):111,1972. 4 . J ea n L ac ou tu re ,A nd ré pp.184·185.
M al ra ux . Une V ie d an s l e s iê cl e, Paris, Seuil, 1973,
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por ele proposta - mesmo que se tenha depois de explorar as deduções resultantes de uma de finição diferente. A função poética põe em evidência o lado ma terial dos signos; ela enfatiza as particularidades sensíveis da mensagem, que então se refere prin cipalmente a si mesma em vez de se dissolver, as sim que utilizada em proveito da experiência evocada ou da informação transmitida; ela organi za as seqüências de signos de forma a manter o caráter perceptível de sua construçã05. Quais os processos que permitem obter essa visibilidade da linguagem tornada "autotélica"? Em primeiro lu gar, as "figuras", e talvez exclusivamente elas, se esse termo for entendido com suficiente amplitu de para designar tudo o que torna a linguagem percebida enquanto tal, e não apenas o que se afasta de seu emprego mais freqüente6• O caráter perceptível de algumas seqüências de signos manifesta-se no âmbito da conduta, as sim como no da linguagem. Os "códigosdo savoirvivre" formavam outrora um rigoroso equivalente dos tratados do bem falar ou do bem escrever. Sua existência bastaria para provar que a conduta é suscetível da mesma aproximação retórica que a linguagem. Os gestos que eles codificavam consti tuem a "visibilidade" da conduta, como as figuras tornam possível a da linguagem.
5. Roman Jakobson, "Lingllistique et poétique", Essais de linguistique générale, P ar is , M in ui t,
1 96 3, p. 21 8. de Ia prose,
6. Tzvetan Todorov, Poétique Dictionnaire 351-352.
P aris, 8ellil, 1971, p. 51;
encyclopédique des sciences du langage, P ar is , S eu il , 1 97 2, p p.
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Do mesmo modo que a análise literária teve de combater o descrédito que era lançado sobre as "formas" supostamente vazias quando prevalecia a preocupação com um assim chamado "fundo", a análise das condutas deveria começar por reabili tar o gesto, que é freqüentemente depreciado por ser considerado exterior e secundário em relação à verdade das intenções. A intenção verdadeira seria a que se concretiza em atos. A intenção seria falsa, afetada, quando se contenta com gestos. O ato e o gesto, entretanto, não se distinguem segun do as intenções diferentes que os subtendem. Os movimentos de um operário aparecem ora como atos, ora como gestos, embora não se suponha que a intenção que os dirige tenha mudado. São atos enquanto não são descritos. São gestos desde que despertem atenção. O gesto nada mais é que o ato considerado na totalidade de seu desenrolar, per cebido enq"llantotal, observado, captado. O ato é o que resta de um gesto cujos momentos foram es quecidos e do qual só se conhecem os resultados. O gesto se revela, mesmo que sua intenção seja prática, interessada. O ato se resume em seus efei tos, ainda que quisesse se mostrar espetacular ou gratuito. Um se impõe com o caráter perceptível de sua construção; o outro passa como uma prosa que transmitiu o que tinha a dizer. O gesto é a poesia do ato. A conduta se gestualiza por meio de figuras que são parcialmente as mesmas inventariadas pela teoria do discurso. A repetição poetiza os cos tumes. A gradação caracteriza as carreiras bem sucedidas, como também a antítese, os. s ucessos inopinados ou as quedas magistrais. A elipse assi nala a liberdade de postura. A ironia mimetiza ati-
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tudes e, ao mesmo tempo, ordena índices que con tradizem o sentido dessas mesmas atitudes. Os holocaustos, numa insurreição, constituem ora as metáforas (quando devastam os edifícios oficiais), ora as metonímias (quando destroem bens priva dos) da simbólica revolucionária. Recusar um aperto de mão é uma litotes; (,)abraço é uma hipérbole.
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Skira, cujo escritório ficava na casa ao lado: quan do concluía um cobre, em vez de pegar o telefone,
É verdade que algumas figuras do comporta mento permaneceriam despercebidas (não existi riam enquanto figuras) se a linguagem não inter viesse para ressaltá-Ias. Nenhuma conduta, talvez,
fazia soar Skira logo Teria esse uma gestotrombeta; o mesmo charme casocomparecias. se supuses se que ele ocorreu sóuma vez? A reiteração desem penha um papel estético decisivo. Mas é preciso indagar se esse papel não lhe é conferido pelo modo verbal do imperfeito, se não resulta de um artifício de expressão mais do que de uma virtude poética que estaria ligada à própria realidade repetitiva, em suma, se a poesia das repetições não é inteiramente obra da linguagem.
poderia se dar que por "se elíptica, sem uma enunciação que destacasse queimaram as etapas". Tão determinante na ordem da poesia verbal, a repe tição é um problema quando se trata dos gestos. Por um lado, ela é correntemente vivida comouma necessidade infeliz: as tarefas comuns se repetem na monotonia. Todavia, ela aparece comoum fator de poesia segundo a estética espontânea que rege, por exemplo, as narrações de anedotas, onde se utiliza comumente o imperfeito de reiteração. "Os
recursos comportamento cor rem Os o risco de secriativos revelaremdopor demais reduzidos, comparados com as possibilidades das artes de fic ção e, mais especialmente, com os das artes de pura linguagem. Algumas condutas podem ser di tas, mas não realizadas. Por exemplo, a imagina da por Coeteau: "o que eu pegaria numa casa to mada pelo fogoseria exatamente o fogo".A beleza do gesto deriva aqui da ambigüidade da palavra "fogo", de seu simbolismo. Trata-se de um gesto
Surrealistas se reuniam todos os dias no Cyrano". O passado se torna tanto mais mítico quanto mais habitual ele tiver sido. "Maillol freqüentemente segurava o mijo quando voltava de Paris para Marly-Ie-Roy, para melhor regar as grandes está tuas de seu jardim com esse elixir que tão bem patina os bronzes"7. Uma ocorrência que foi talvez única se enriquece quando relatada comoum rito. Brassai' conta que Picasso, na época em que mora~ va na Rue La Boétie, trabalhava para Albert
fictício, inteiramente constituído de um jogo de palavras. A passagem ao ato não só seria inútil (procura-se fogo tanto num incêndio quanto em qualquer outro lugar), como seria até impossível (não se transporta o fogo em estado puro: o que se retira do incêndio é este ou aquele objeto em cha mas). É, portanto, à linguagem que se deve atri buir, ainda aqui, o poder de poetização que se exer cita em um aparente proveito da conduta.
7. Brassal, Conversations
avec Picasso, Paris, Gallimard, 1964, p. 251.
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8. Id., p.
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Deve-se generalizar? Propõe-se a questão de saber se a conduta não é irremediavelmente pro saica em relação aos achados a que se prestam as palavras. Pode-se ficar tentado a responder que os gestos, enquanto tais, não são poéticos nem prosai cos, que o papel decisivo pertence à linguagem, que é por ela que a poesia acede ao comportamen to, sendo este esteticamente neutro enquanto a li teratura dele não se encarrega. Um dia, Alfred Jarry mostrou de maneira bru tal que um gesto aparentemente insensato adqui re sentido de repente, no exato instante em que se
É, portanto, verdadeiro, em certo sentido, que só há poesia nos poemas (como só há aventura nos· romances, intriga nas narrativas, dramatização no teatro) e que um gesto talvez deva o essencial de sua beleza ao talento com que é relatado. Entre tanto, desde que não se minimizem esses privilé gios da literatura, podem-se reconhecer os proce dimentos de que ela dispõe para tentar fazê-Ios operar alhures de outro modo. Apreendidos num grau suficiente de abstração, eles aparecem como operações estéticas, suscetíveis de se precisarem diversamente segundo a substância da arte que os
pensa pronunciar a expressão Tendo verbalentrado que mais li teralmente lhe corresponda. num bar com seu aparato' habitual de armas de fogo, dá um tiro de revólver no copo de gelo, que se estilha ça. Em meio ao pânico geral, volta-se para uma senhora sentada perto e diz: "Muito bem, quebra do o gelo"', conversemos". A polissemia da palavra "gelo", como há pouco a da palavra "fogo"é essen cial na constituição de tal gesto. Portanto, este não existiria se não tivesse sido dito.
emprega. O mais notável desses procedimentos é o que consiste em restabelecer o sentido de algumas for mas que os constrangimentos funcionais destina vam à insignificância. No texto artístico, como afirma Iuri Lotman, "produz-se uma semantização dos elementos extra-semânticos (sintáticos) da lín gua natural"9. A mesma operação que se encontra .na prática cinematográfica da câmara lenta ou do congelamento da imagem consistirá também, sob
frase de os dois sentidosa de "fogo" estãoNaligados porCocteau, uma relação simbólica, combus tão física significando, de maneira convencional, a intensidade espiritual. Jarry, ao contrário, aproxi ma dois sentidos de "gelo" que não têm relação. O pseudogesto de Cocteau possui um efeito "poético" que se pode julgar relativamente fácil; ele é apenas engenhoso, ao passo que o de Jarry é insólito e "sur realista". Mas ambos têm em COl;num fato de ilus trarem mais os poderes do verbo que os do gesto.
outras romper desenrolar da conduta,modalidades, em reter a em atenção em oalgum de seus momentos, para conferir-lhe um sentido que o en cadeamento dos atos dissolveria. Greimas assinalou a ambivalência de algumas atividades corporais que, segundo a situação, têm estatutos semióticos opostos. Um movimento, abaixar a cabeça, por exemplo, pode parecer um enunciado gestual completo (saudar); pode, ao con trário, embora fisicamente idêntico, integrar-se
*
9. Iuri Lotman, L a S tr uc tu re
A lf red J arry d á u m t iro d e rev ól ver n um esp el ho . A l ín gu a f ra nces a u sa a mesma palavra "glace" pa ra e spe lho e p ar a ge lo [N. d a T .] .
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du texte artis tiqu e,
Paris, Gallimard, 1973,
p.53.
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numa sequencia (passar por uma porta baixa). Tendo sido um enunciado, torna-se então um ele mento que tem, antes de mais, o estatuto do
serindo-o em sua conduta, porque esse movimen to nela não se integra como na do camponês que semeia um campo. Do mesmo modo, um simples
fonema, nada da unidade mínima que, reduzida a si mesma, quer dizer. Movimento semelhante pode, portanto, se dar, quer para um programa inteiro, dotado de significado, quer para um subprograma, que Greimas compara à sílaba des provida de significação. Neste caso, ele se limita a assegurar a transitividade da seqüência. Naquele, será dito intransitivo. Um movimento corporal, que era suscetível de constituir por si só um pro grama e, portanto, de se encontrar carregado de
espectadorde pode um elemento da conduta outremressemantizar e ver, por exemplo, um "gesto augusto"ll em que o semeador nem tem a sensação de ser augusto, nem sequer a de fazer gestos. Isso dá conta de uma propriedade notável do gesto, a saber, que ele permite dizer, em virtude da riqueza semântica que pode ligar-se a qualquer movimento do corpo, mas resguardando-se do que tenha sido dito, devido à absorção sempre possível desse movimento num sintagma que o neutraliza.
sentido, se "dessemantiza" quando se incorpora num sintagma mais amplolo. Por uma decisão terminológica que não é a de Greimas, mas que parece confluir com o uso da lín gua, consideremos como sendo gestos apenas os movimentos do corpo que são intransitivos, que são programas inteiros. É preciso então admitir que os mesmos movimentos, quando se fundem num sintagma mais vasto, quando se dessemantizam, perdem o estatuto de gesto. Como não existe, ao que parece, qualquer movimento que se encontre sempre em posição semanticamente neutra, e tam pouco existe algum que esteja definitivamente à margem do processo de dessemantização, deve-se esperar que, no conjunto dos usos corporais, a clas se dos gestos seja móvel. Um ator pode constituir como gesto o movimento do braço que toma de empréstimo ao semeador: ele o ressemantiza in-
A significação do gesto é sempre transmitida com a possibilidade de sua denegação. Um movimento é capaz de se apresentar comoportador de um sen tido autônomo facilmente legível e de desaparecer imediatamente na inocência de uma prática insig nificante. Ele diz perfeitamente o que quer dizer, mas, de repente, cala-se, apaga-se, não é preciso nele deter-se, ele nunca foi um gesto. As condutas de sedução freqüentemente jogam com essa ambi güidade: as proposições amorosas arriscam gestos que sabem anular-se como tais se não obtêm a res posta esperada (então um carinho não passa de um toque casual, que não se queria um gesto). É que todos os movimentos, todas as posturas estão em condições de se mostrar intransitivos, mas igualmente de se desembaraçar imediatamente de sua carga semântica incorporando-se numa se qüência, seja pela efetiva construção ulteríor des-
1 0. A . J . G rei ma s, " Co nd it io ns d 'u ne sé mi ot iq ue d u Il lo nd en at ur el ", Langages (10 ): 1 4-15 , 1 96 8; r etom ado e m Du Senso Essais sémiotiques,
P ar is, Se ni l, 1 97 0, p p. 4 9- 91 , v er e sp ec ia lme nt e
p p. 6 0, 6 5.
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1 1. E xp res sã o b em co nh eci da n a l ín gu a f ra nc esa . Vi ct or H ug o: "L'ombre I Semble élargirjusqu'aux
étoiles / Le geste auguste du semeur".
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sa, seja por uma simples mudança de pontuação que faz aparecer um fragmento de seqüência onde
crever: "Nous lézards aimons les Muses"12'). Quan to ao estreitamento das unidades, parece ser este o objetivo dos procedimentos mobilizados com mais constância pelo que se convencionou chamar de poesia. A repetição, multiplicando os enunciados nos quais reaparece uma palavra, disjunge-a de cada contexto, impede-a de fundir-se na seqüência que ia confiscá-Ia. A aliteração cria unidades sig nificantes interiores às próprias palavras. O esta belecimento de correspondências inesperadas rea nima as metáforas primitivas que inúmeras pala vras contêm, mas que o uso havia extinguido, ou
se enunciado completo. as poderia coerçõester de lido umaum ocupação é o meio mais Alegar banal, por exemplo, de suprimir o sentido de uma parti da, que lhe fora efetivamente conferido, mas que se prefere anular. Indo embora, signifiquei meu desacordo, minha inimizade ou minha indiferença; entretanto, essa partida deixa de ser um gesto, se a seqüência do programa me solicitar alhures. Para que a linguagem disponha de latitudes semelhantes, seria preciso, por um lado, que uma palavra pudesse deixar de ser umaem palavra, que ela se transformasse eventualmente sílaba des provida de significação, e que, por outro, uma sí laba pudesse valer subitamente como uma pala vra. A primeira condição, na verdade, é preenchi da, pois é em relação à experiência lingüística que Greimas definiu o fenômeno de dessemantização para assinalar sua presença na ordem gestual; a palavra ar anula-se como tal em par; que se anu la por sua vez em parte, que se anula ainda em
então inventa costumeiros. etimologias fictícias, que deslocam os agregados Uma permanência for mal ressaltada pela rima ou por uma assonância produz um salto de nível que faz erguer a palavra além do discurso linear. No extremo desse estrei tamento, e como Leiris mostrou suntuosamente, vogais e consoantes reencontram seu sabor, seu perfume, sua qualidade tátil, enquanto os caracte res alfabéticos libertam toda a simbólica de seu
repartirá. Mas e o processo recíproco? Que magia poderia por ventura fazer supor o par na parte ou bruscamente fazer entrar ar em par?' A poesia é a arte dessas metamorfoses. Cha
gela quando letras e palavras retomam o seu lugar na ordem e tornam-se letras mortas após terem sido energias cabalísticas de iluminação"13. A semelhança se torna, portanto, exata entre a poesia - que J akobson define também como uma linguagem na qual "a forma interior das pa lavras, em outros termos, a carga semântica de
memos agora de função poética o poder que tem a linguagem de variar a extensão dos elementos car regados de sentido. Como exemplo de acrescenta mento, podemos pensar nos artifícios de Queneau, provocando a absorção da matéria sonora de uma palavra na de outra (volatilizando les Arts ao es-
grafismo. "A poesia se desvanece e o sabá se con
12. Raymond Queneau,
Si
tu ['imagines, Paris, Gallimard, 1952, p. 115.
O t ex to j og a c om a h omo fo ni a d e lézards
(lagartos) e le s a rt s (as artes)
[N . d a T. ].
o
ex emp lo d e J ea n G al ar d escande lorl.
IP01:t/.
/porte/ e /rapportera/
[N. da T.].
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13. Michel Leiris, Biffures, tulo " Alphabet",
P ar is , Gal li ma rd, 1 94 8, v er o c onjunto do c apí-
pp. 38- 71.
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seus constituintes, encontra sua pertinência"14 _ e um certo tipo de comportamento que seria pre ciso qualificar de gestual porque se caracteriza
empenhado num esforço transitivo em favor de um resultado, em relação ao qual ele representa um meio dessemantizado. A abstenção, ao contrário,
pela abundância dos movimento ressemantizados. Esse tipo de comportamento é, evidentemente, muito diferente do hábito de gesticular. Do mesmo modo que a poesia verbal não é o simples acúmu 10 das unidades lingüísticas que a sensibilidade de uma época já sobrecarregou de sentido, a conduta determinada pela função poética não consiste em uma multiplicação dos gestos, entendendo-se com isso os movimentos já codificados pelo sistema de comunicação em vigor.Trata-se, antes, de uma cri
propõe-se de chofre como um gesto; ela concretiza no instante o sentido que pretende atribuir à con sulta enquanto tal. Ora, revela ao mesmo tempo que a participação no voto é também ela um ges to; ressalta que a aceitação do sufrágio já é signi ficativa de um assentimento dado ao sistema que organiza a expropriação das responsabilidades; ela põe em evidência que "votar, seja em que chapa for, é votar pelo voto e já aceitar as instituições"15 . Por fácil que seja criticar a ineficiência dos
ação de gestos, isto é, da liberação de movimentos ainda não percebidos, devido ao deslocamento da seqüência que os continha. Na situação mais favo rável à atividade gestual, que é o teatro, a oportu nidade dessa distinção é flagrante: a cabotinagem se contenta com retomar, tais quais, os gestos tes tados, enquanto a procura do ator visa a decompor o comportamento nas unidades significantes que são habitualmente imperceptíveis. Aplicada à conduta, a função poética desman
gestos demasiado puros, é preciso pelo menos re conhecer que são eles que fazem sobressair, por contraste, que as condutas mais pragmáticas são, por sua vez, compostas por gestos esquecidos. Jacques Vaché, dizem, nunca estendia a mão. Esse outro gesto de abstenção lança uma significa ção renovada sobre o gesto contrário, salienta, brus camente, no outro, o estranho hábito do aperto de mão mecânico e ressemantiza um movimento que comumente deixamos de reconhecer como gesto.
tela o encadeamento pragmático dos movimentos; ela contraria a absorção dos meios pelo fim, do imediato pela perspectiva; ressalta a maneira de agir, o método empregado, converte a escolha do procedimento num verdadeiro objetivo. Participar de uma votação ou abster-se dela. Se é verdade que aí estão dois gestos, ambos entre tanto não se apresentam imediatamente comotais. Votar é primeiro um ato, que parece inteiramente
A poesia, seja ela verbal ou gestual, reanima os signos extintos, para que toda prosa se torne assim mais viva.
14. Roman Jakobson, "Linguistique et Poétique", op. cito
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15. Cf. Francis Jeansoll, Sa rt re d ans s a ui e, Paris, Senil, 1974,
pp.
257-258.
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ÉTICA DO SIGNO I
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Onde há catástrofe, grande ou pequena, prin cipalmente pequena, sempre se encontram homens providenciais para organizar os salvamentos, ca nalizar os transeuntes, afastar os curiosos, distri buir conselhos: personagens enfáticos que aprovei tam a oportunidade para gesticular. Sempre, nos locais das catástrofes, sobretudo das grandes, testemunhas apressadas se conven cem de que não têm nada a fazer ali, que aquilo não lhes diz respeito, que estão sendo esperadas em outro lugar, esquecendo imediatamente que sua fuga também terá sido um gesto. As catástrofes ocorrem em qualquer lugar. Portanto, a todo momento realizamos um ou outro destes gestos: ora o excesso de signo, o exagero, a presteza exibicionista, a solicitude indiscreta; ora o signo da defecção, da demissão, da indiferença. O cuidado com a imagem que se dá de si mes mo é uma preocupação que embaraça, comprome-
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tendo a credibilidade dessa imagem e que muitas vezes acaba por transmitir um sentido diferente do que devia ser mostrado: em vez de ser a persona gem que se queria aparentar, revela-se o preten sioso que se é. Mas, se é imediata a denúncia da cabotinagem, da mania de se oferecer como espe táculo, não existe, inversamente, uma palavra que designe a consciência insuficiente das significações que se produzem "involuntariamente", por exem plo, quando um silêncio é uma aprovação suben tendida do que dizem os outros, quando a simples presença física marca uma solidariedade tácita para com os circunstantes ou quando consentimos com as atitudes mais vis a pretexto de que a inten ção significante pode ser suspensa. Aprender a produzir signos exatos; saber me dir os signos que sempre se emitem: pode-se con ceber uma ética que consistiria num bom uso dos signos e que aproveitaria a experiência adquirida nesse sentido pela atividade artística. Roland Barthes, por exemplo, várias vezes, levou suas análises semiológicas até o limiar de uma moral explícita. Em Essais critiques, ele es boça uma "moral da roupagem de teatro"l. Em Mythologies, ele declara que o exame dos proces sos empregados pelo cinema de reconstituição his tórica "pode nos introduzir numa moral do signo"2. Se se reconhece que o comportamento cotidi ano e a conduta inteira de uma vida são compostos de elementos significantes, é preciso admitir que uma tal moral semiótica se aplicará a todos os as-
1. Roland Barthes, Essais critiques, Paris, Seuil, 1964, 2 . Rol an d Bar th es ,
Mythologies,
pp.
53~62.
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pectos desse comportamento, ao conjunto dessa conduta. Ora, sua expressão elaborar-se-á apro ximando-se ao máximo (é o que acontece em Barthes) da experiência teatral, cinematográfica, fotográfica, literária. Parece, portanto, que a con duta da vida pode regular-se por uma axiologia de origem estética. O mais das vezes, quando a arte e a moral não são separadas nem inseridas em campos de expe riência heterogêneos, é da moral (por exemplo, política) que se esperam as normas que orientarão a produção artística. Aqui, ao contrário, a prova artística ou, mais precisamente, a escolha esteti camente fundada entre os diversos estatutos do signo que podem ser utilizados pela arte fornece seus princípios à moral. Que toda a vida moral se defina como u m bom uso dos signos é o que o estoicismo já pretendia. Mas ocorre, hoje em dia, que a reflexão sobre o sig no tem seu terreno predileto na análise do espaço literário, do fato pictórico ou cinematográfico, isto é, do que é preciso chamar o domínio artístico, en quanto os procedimentos semióticos que ali se ex perimentam não interessam à vida cotidiana em seu conjunto. O refinamento de nossas avaliações morais depende doravante, pois, dos sucessos da investigação estética. Tudo se dá, aliás, como se a moral estabeleci da se regulasse por uma concepção do signo que determinou uma certa literatura ou uma certa pin tura em seu esforço, agora fora de moda, de repro dução da realidade. Não pertenceriam os valores morais de franqueza, sinceridade, autenticidade a um sistema que, esteticamente, exigiria a fidelida de da expressão, a verdade, a exata semelhança?
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Há uma moral, como há uma estética, que privile gia a função referenciaI. Importa saber com quem e do que se trata; é preciso primeiramente satis fazer à necessidade de elucidar o que é o outro, o que se pode esperar dele, o que ele possui verda deiramente. O hipócrita fornece signos que supos tamente traduzem as qualidades que sua alma contém; mas ele não fornecerá "a própria coisa". O mal moral se encarna na figura do escroque, que não tem a propriedade real dos bens que sua ati tude significa, e se desenvolve em todas as formas de "representação fraudulenta" enumeradas por Erving Goffman em La Mise en scene de Ia vie quotidienne3. Essa axiologia, moral ao mesmo tem po que estética, pressupõe uma separação cortan te entre o que pertence à ordem dos signos e a realidade verdadeira à qual eles remetem. Pode-se imaginar uma generalização semiótica, totalmente estranha a essa concepção e que não deixa mais nada fora da rede significante. Desapa rece a distinção que dispunha, de um lado, os ges tos deliberados, as confissões de intenção, a comu nicação ratificada e, dotempo, outro, as as atividades condutas "insigni ficantes" e, ao mesmo "sérias" às quais as pessoas se entregariam sob o impacto da coerção ou das obrigações, distinção que separa va também a cena social (o espetáculo dos signos) e os bastidores (outilitário). Ora, com o desapareci mento desse dualismo, é a possibilidade de muitas astúcias ideológicas que desmorona, na medida em que o mito, segundo Barthes, consiste em empregar
3. E rving G of fm an, L a Mi se e n s ce ne d e I a u ie q uo ti di en ne , 1973, vaI. I.
signos, mascarando-os enquanto tais, "naturalizan do-os", ou em utilizar conotadores que convêm ape nas O a significações denotadas. primeiro princípio de uma moral semiótica imporia, portanto, o reconhecimento do signo onde ele está, ou seja, em toda parte. Ele recomendaria arrancar as condutas ditas funcionais de sua pseudo-insignificância, para afirmá-Ias em seu valor simbólico. Existe em Barthes, paralelamente a essa exi gência, um dever de discrição concernente à inten ção significante. A moral da roupagem de teatro proscreve a hipertrofia da função histórica, a da beleza formal, a da suntuosidade. De um modo geral, a moral do signo recusa "o luxo das formas significativas", a tentação "de tornar pesada a sig nificação de qualquer caução da natureza". Ver-se-á a intervenção simultânea desses dois princípios tomando-se livremente como referência a oposição do estilo aristocrático ao estilo burguês, como a evoca Erving Goffman ao retomá-Ia, por sua vez, de Adam 8mith4. O estilo burguês divide a vida, por um lado, em atividades profissionais, em que se trata de produzir com brilho índices de competência, de prestígio ou riqueza, por outro lado, em atividades privadas em que reinam a parcimônia, o conchavo secreto, a mediocridade sem importância. O estilo aristocrático mobiliza todas as atividades menores comumente abando nadas ao insignificante para nele incorporar os signos do caráter, do poder e da distinção. Uma semelhante exigência de perfeição "espetacular"
Paris, Minuit, 4 . Id. , p. 39.
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(que possa ser exibida, como acontece com qual quer signo) refere-se desta vez às circunstâncias
significação exatamente como as poses públicas, as atitudes expressamente destinadas à comunicação,
mais banais e a cada detalhe do comportamento corrente. Esses dois estilos de vida se opõem, por tanto, primeiramente quanto à extensão que atri buem ao mundo dos signos. Opõem-se ao mesmo tempo pelo grau de ênfase com que cada um os dota. Um se extenua na sobrecarga, no inchaço, no pesadume: ele não concebe o ensino sem as postu ras professorais, a medicina sem a redundância das poses doutorais, a indústria sem o aparato dos emblemas do dinamismo. O outro acena um fugi
as grandes cenas apresentadas sob as luzes da ri balta. Para essa moral, não há deslizes, nem ges tos semanticamente neutros, nem recurso possível para a desculpa de se ter infringido o sentido de uma conduta "só desta vez". Tal consciência inexo rável, aliada à vontade de rigor precedentemente definida, põe em ação uma moral que merece em dobro a denominação de rigorismo, por mais que se queira dissociar esse termo de qualquer idéia de austeridade. Por praticar muito precisamente esta
dio sinal para quem quiser compreender. Os termos "burguês" e "aristocrático" são, evi dentemente, inadequados para designar esses dois estilos hoje. Em relação ao repertório dos concei tos que qualificam, por exemplo, os estilos pictóri cos, aquele de que se dispuser para a apreciação dos estilos de vida será marcado pela penúria, como se não fosse admitida ali a existência de um objeto de pensamento.
ética, André Breton incorreu na censura de ter-se imiscuído de maneira constante e intratável na vida de seus companheiros, ainda que ninguém lhe negasse o direito à intransigência quando só se tratava da literatura dos outros ou da vida públi ca do grupo surrealista. Haveria, portanto, por um lado, uma moral fundada no papel representativo do signo. Ela re prova a hipocrisia comouma aparência enganosa: o comportamento manifesto do hipócrita exprime disposições internas, uma benevolência por exem plo, uma simpatia, uma cortesia, que não estão contidas na realidade do caráter. O signo represen tativo pode ser falso: a expressão nem sempre cor responde à verdade que deve ser traduzida. Mes mo quando o signo é verídico, a reprovação pode se manifestar, por exemplo, a propósito do servilismo que exprime uma alma baixa: a baixeza, a covar dia, o egoísmo são referentes reprovados. Existem aqui, portanto, ao mesmo tempo dois tipos de con denações possíveis: a que se refere à tradução in fiel da realidade interior, e a que se refere à tra dução fiel de uma realidade inconfessável.
Conviria, porém, uma qualificação para resu mir os dois primeiros princípios de uma moral do signo de acordo com as sugestões de Barthes. Ater se à sobriedade do signo, à nitidez de seu valor convencional, deixar-lhe a leveza de sua arbitrarie dade, é admitir uma exigência estética de rigor5• O outro princípio, por sua vez, impõe o reconheci mento de que todo gesto, todo ato, por furtivo que seja, toda atitude, mesmo "não-intencional", toda conduta, mesmo "privada", todo arranjo secreto e toda preparação nos bastidores são portadores de
5. Roland Barthes, E ss ais c ritiqu es , o p. c it., p. 142.
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É possível uma outra moral, não mais funda da nessa função de duplicação tradicionalmente atribuída ao signo. Imaginemos que a conduta não
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mais seja compreendida como a exteriorização de uma natureza íntima, que não seja mais suposta como manifestação de um ser interior, que não seja mais um índice de um temperamento, mas que se dê apenas por aquilo que ela é na pura exteriori dade: uma forma produtora de um sentido, uma configuração significante que é supérfluo referir a uma origem substancial. Permanece a possibilida de de uma avaliação. Independentemente do valor atribuído ao referente, independentemente tam bém da veracidade do significante, a crítica visa rá à própria forma do signo e, notadamente, suas "hipertrofias" como diria Barthes. Por exemplo, o comportamento servil é desprezível, não porque exprime uma alma de escravo ou porque represen ta falsamente uma disposição obsequiosa que es taria ausente, mas porque ele superalimenta os signos da obsequiosidade. O servilismo é a redun dância da obsequiosidade. Domesmo modo, o com portamento enfatuado é desprezível, não porque exprime a vaidade ou porque representa falsamen te uma importância que se empresta a si mesmo e que não se possui, mas porque é a inflação dos signos de segurança. A suficiência é uma seguran ça redundante. O gesto "falso", por conseguinte, não é mais o que remete mentirosamente a uma intenção que deveria corresponder-Ihe e que falta. A intenção pode efetivamente existir, e é justamente na me
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ta insincera, mas a que domina um sentido deci dido de antemão, devidamente reconhecível, como "a competência profissional", "a jovialidade", "a descontração". Pouco importa, a essa altura, que os recursos expressivos sejam hauridos num reper tório tradicional ou que sejam renovados de forma a chocar os hábitos. Tanto faz que se repita sua respeitabilidade ou que se reafirme sua margina lidade se a intenção assim exibida preexistir ao comportamento, que se reduz a um papel repre sentativo e se corrompe sob o efeito da preocupa ção com a comunicação. Toda conduta é significan te e, talvez, "comunique" um sentido. Mas, quan do este é isolável, quando uma fórmula o resume, pode-se considerar, de maneira análoga, que a con duta é falsa, ritualizada, dominada pela função de comunicação, semioticamente imoral. Esta moral tem como condição o reconheci mento da aptidão de outrem para compreender os signos. Sua virtude dominante é a inteligência aquela que é preciso demonstrar para escolher os signos mais precisos, e aquela de que é preciso acreditar que o outro esteja provido. Sua genero sidade é postular em todos a inteligência mais sen sível e preferir o risco de deixar perder um bom número de signos demasiado discretos à insistên cia, aos gestos ressaltados.
dida que ela estáfixada, ali, patente, demasiado pre sente,em previamente que o gesto será perce bido como falso. A conduta afetada não é a condu-
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A ECONOMIA DOS MEIOS i'll:
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A contenção e a discrição, a recusa da ênfase, da hipertrofia dos signos, tal é a condição da qualidade do gesto, em culturas, aliás, em tudo opostas. Longe do universo mental do classicismo europeu, nos astecas, nessa sociedade da consumação que Georges Bataille situou "moralmente em nossos antípodas"l, a ética, contudo, prescrevia a medida, a ponderação, ela reprovava os trasbordamentos de atividade tanto quanto a inaçã02• "Ao caminhar pelas ruas e estradas, ande com calma e tranqüilidade, não levante os pés alto demais, não corra... Fale com calma, pausadamente, com uma voz bem empostada, nem demasiado baixo, nem demasiado alto, não fale depressa demais, nem alto demais, não urre como um impudente." A ética dos
1. Georges Bataille, La Part maudite, Par is , M in ui t, c ol . Poi nt s, 1 96 7, p . 8 8. 2. Christian Duverger, La Fleur Zétale, économie du sacri{ice azteque, Paris, S eu il , 1 97 9, p p. 5 9· 68 .
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antigos mexicanos caracteriza-se pela desconfian ça quanto aos movimentos passionais e pela repug
A gesticulação emocional representa a inversão dessa relação. Afirmando que a sinceridade, para
nância da gesticulação. obedece a um"Em princípio que Christian DuvergerEla formula assim: toda ação, um resultado ótimo deve ajustar-se a uma despesa energética mínima". Duverger considera que essa ética da parcimônia deriva de uma "preo cupação draconiana com a economia generalizada" que os astecas teriam herdado de seu período de errância num ambiente hostil. Todavia, ele obser va, por outro lado, que ainda no século XIII "é o ardor guerreiro que os mexicanos valorizavam aci
ser justa, pressupõe sejamosreservados "sóbrios nos tos, escrupulosos nasque palavras, nosges en tusiasmos, contidos nos desesperos", Villiers de l'Isle-Adam imagina uma passagem ao ato desse preceit03• Maximiliam de W, abandonado por sua amante, que o considera desprovido de sensibilida de, volta para casa, senta-se à mesa de trabalho, lixa as unhas; escreve alguns versos sobre um vale escocês cuja lembrança lhe vem por acaso, percorre algumas páginas de um livro novo; depois se levan
ma tudo", ao passo que, no século XV, eles zom bamde"do quachic, o soldado valoroso, mas fogoso, que se atirava à frente do combate sem refletir so bre o perigo". Uma "conquista de cultura" operou se entrementes; constituiu-se uma "moral econômi ca" que os hábitos ancestrais, portanto, não expli cam inteiramente. Como compreender então essa reprovação da gesticulação agitada? Duverger su gere brevemente uma razão para isso. "O gesto é calibrado porque a sociedade asteca é uma socie
ta e, tendo fechado cortinas,e dado pega de seuombros. revólver, mata-se depois de teras sorrido Esse efeito, de que os dândis fizeram seu ideal, exerce um fascínio que se encontra em paragens bem distantes do dandismo: nos autores de readymade, por exemplo. Pois, contentando-se com uma mudança na orientação de um objeto, com um leve deslocamento, com uma transformação de nome, Marcel Duchamp talvez satisfizesse sua "preguiça"; ele talvez perseguisse uma empresa de derrisão;
dade de signos [...] Para não interferir nessa rede semiótica, o gesto utilitário deve, portanto, passar absolutamente despercebido, isto é, reduzir-se à eficácia." Da ética austera, submetida às condições da sobrevivência, que reprova o desperdício, se passou, em suma, a uma ética dorigor propriamen te semiótico. O mínimo de movimento para obter o máximo de conseqüência: a qualidade do gesto é função dessa relação de parcimônia. A impressão de ele
mas, ao mesmo tempo, aplicava um projeto concer tado de conversão das energias Ínfimas4• Nessa chave da economia dos meios, o mutis mo do gesto terá um alto rendimento. A parcimô nia de linguagem é sempre bela. O gesto silencio so e medido, desencadeando por si só a transfor mação de sentido de uma situação, representará, portanto, um caso notável do efeito estético, pelo menos como ele é aqui encarado.
gância, mas também a de inteligência ou de poder provêm do contraste entre a agitação mais reduzi da e a amplitude do resultado alcançado.
3. Villiers de l'Isle-Adam, "Sentimentalisme",
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Fl amma ri on ,
1 98 0, p . 1 87 .
4 . Gil be rt L as ca ul t, Duchamp, VAre
Contes cruels, Paris,
"Le s P etites é ne rg ie s e t I a pui ss ance
Garnier~
tim ide", Mareei
(59): 3-7, 1974.
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Brummel passa diante de destacamento ao mesmo tempo que o príncipe de Gales, com quem
de sentido, e separando-os, assim, de seu quadro ou de seu manejo habituais. Um gesto mínimo encon
ele estádas estremecido, e fingea acreditar que a sau dação tropas se dirige ele5. Sem nenhuma palavra, sem esforço, utilizando economicamente um dispositivo simbólico já montado, Brummel torna soberbamente evidente que não se pode se quer imaginar que tanto aparato seja destinado a um simples príncipe. Do mesmo modo, o gesto discreto de Jules Valles, evidenciando subitamente a verdade de um lugar:
tra então prolongamentos rápidos numa simbólica previamente traçada. Ele pode atingir, ademais, uma polivalência de sentido tão exatamente instan tânea que nenhuma tradução verbal dele pareça concebível; daí a impressão ainda maior de poupan ça de energia, pois o pensamento tropeça ao enunci ar de pronto ou mesmo ao desatar exaustivamente o sentido complexo que se pressente e que um sim ples gesto pôde produzir com facilidade. Milan Kundera, em La Vie e st ail leurs, conta
J ule s V al les t rab al hav a
n a R ot on de d a R ue d 'H au tef eu il le .
N um ca nt o d e m es a, o i ns ur re to ,
em m eio de graves jor nalistas
es cr ev ia s eu s ar ti go s i nc en di ár io s
do Monde e profe ssores de S orbonne
qu e beb iam co pos de água com f lo r de laranjeir a. se podia fumar lil
na sobreloja.
Terminado
Nada de licor ; só
o artigo, Valles saía na
ponta dos pés f azen do o gesto de tomar água benta6 .
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Do café à igreja: se essa metáfora é bem-suce dida, isso não se dá a despeito dos poucos recursos que aí se empregam, mas em razão justamente dessa contenção, em proporção direta da discrição que se adotará, por exemplo, ao se persignar. É preciso imaginar aqui algum gesto quase impercep tível, que quer e não quer ser surpreendido. Ainda que os usos corporais sejam perfeita mente capazes de desenvolver, por si sós, uma sim bólica infinitamente variada, podem também enri quecer-se tomando como coadjuvante um objeto, entre os que já estão mais fortemente carregados
que seu jovem herói quer chamar a atenção de um ilustre poeta, que tarda a responder à admiração que lhe é dedicada. Perdendo a paciência, Jaromil põe-se a pilhar as cabines telefônicas, reúne uma coleção de fones, empacota-os e os envia ao poeta. O fone com o fio cortado foi anteriormente designado como"o tipo de objeto que, separado de seu quadro habitual, produz uma impressão mágica e pode le gitimamente ser qualificado de objeto surrealista". Sua utilização, no episódio das relações com o ilus tre poeta, transferirá ao gesto uma pluralidade de sentidos possíveis (apelo suplicante ou, ao contráio, interrupção orgulhosa de uma vã espera) justifi cando a expressão pela qual Jaromil define sua re messa: "um gesto carregado de poesia"7. Esse emprego de objetos com simbolismo pré constituído tem um efeito tão seguro que se pres ta a algumas facilidades de repetição, que são o academismo dogesto, como o de queimar uma ban deira. Dá-se com um gesto o que se dá com um
5 . E mi li en C ar as su s, L e M yt he d u d an dy , Paris, A. Colin, 1971, p. 121. 6. Pierre Labracherie, L a \ fi e q uo ti di en ne siecie,
d e l a b oh em e l it tér ai re
a u XI X"
Paris, Haehette, 1967, pp. 3·7.
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7. Milan Kundera, La Vie est ailleurs, Paris, Gallimard, 1973, 194.
pp.
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quadro: não é necessário que se tenha encontrado seu semlhante para que ele produza um sentimen to de déjà vu. Kundera não deixa de ser irônico acerca das impressões poéticas de Jaromil. Um "motivo", por seu sentido próprio, não ga rante a excelência da obra em que figura, assim como ele não basta, se banal, para corrompê-Ia. Ao estereótipo que consiste em queimar uma bandei ra, é interessante comparar um outro gesto, utili zando-se o mesmo emblema, também com intenção de protesto, porém mais duramente ofensivo a des peito de sua aparência mais pacífica: o de um ra paz que foi detido, no fim dos anos 60, pela polí cia, em Santiago do Chile, por ter lavado a bandei ra norte-americana na frente da embaixada dos Estados Unidos. i
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Um gesto, para atingir a plenitude de sentido de que uma verdadeira obra de arte é capaz, de modo nenhum precisa conter implicações infinitas. Pelo contrário, suponhamos que estas sejam pou co numerosas e límpidas para a intuição; imagine mos que uma posição analítica se presuma capaz de traduzir logo em algumas palavras essesinespe signos tão abertamente inteligíveis; pelo fracasso rado da intenção discursiva se reconhecerá a jus teza do gesto. Este gesto, por exemplo, o último, sem dúvida, de Alfred Jarry (André Breton dizia que, a partir de Jarry, "a diferenciação tida por muito tempo como necessária entre a arte e a vida seria contes tada, para acabar aniquilada em seu princípio"B): transportado para o hospital La Charité, da água8. André Breton, Anthologie de l'humour noir, Paris, Ed. du Sagittaire, 1940, pp. 168-169.
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furtada miserável
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onde vivia e onde um dia foi
descoberto paralisado das duas pernas, Jarry, às vésperas de sua morte, quando o médico Saltas lhe pergunta o que lhe daria mais prazer, pede um pa lito de dentes. Alusão ao "banquete da vida"? Ação de graças pelas migalhas de um pseudofestim? Cinismo sé rio? .. Ou ironia, de antemão, em relação aos co mentários, fatalmente canhestros, acumulados de noções por demais amplas, de referências elásti cas, pretendendo captar a singularidade de um gesto que, afinal, de maneira não menos evidente e igualmente incerta, dispensava a metafísica e nada queria "dizer"? O contraste entre a extrema simplicidade do gesto e sua riqueza simbólica é suscetível de au mentar infinitamente, sem que seja necessário imaginar uma complicação desmedida de seu sen tido, contanto que o gesto se simplifique até a abs tenção. Pois a verdadeira ausência de movimento se torna ela mesma, eventualmente, um gesto. O hábito de Jacques Vaché de nunca estender a mão não deixava, certamente, de ter sentido, de manei ra até bastante brutal. Há alguns anos, jornais relatavam na França minúsculos atos de sabotagem ou de fraude a que se atribuíam um alcance "revolucionário" e que queriam mover uma "verdadeira arte nova". Recei tas simples permitiam viajar gratuitamente pela SNCF (Société N ationale des Chemins de Fer Français) ou de metrô, paralisar a produção da empresa em que se trabalha, provocando nela, pela contrafação dos documentos, planejamentos ou registros contábeis, inextricáveis incidentes. O intuito era quebrar os regulamentos, o sistema de
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controle minucioso, a hierarquia permanente, e isso com gestos mínimos cuja simplicidade con trastava com a perturbação que criavam. Por que esses furtos, essas pequenas fraudes, essas vin ganças sorrateiras dão a impressão de que o ges to aqui é menos ainda que mínimo, miserável? No mesmo momento, na Itália, praticava-se o que se chamou "a desobediência civil". Por exemplo, tendo o preço da passagem de ônibus aumentado (mas não os salários), o protesto con siste, não em deixar de pagar, mas em adquirir a passagem pelo preço anterior. A recusa fica desse modo mais bem marcada, a desobediência mais nítida, a abstenção finalmente mais com pleta do que viajar de graça. A comparação desses dois tipos de conduta evidencia que, para se apreender a qualidade do gesto segundo a perspectiva de uma economia dos meios, convém precisar algo importante: não é a quantidade objetiva de parcimônia que se deve le var em conta, mas o efeito de simplicidade. A be leza do gesto, por definição, mostra-se; é de sua essência manifestar-se e até, em certa medida, dar-se como espetáculo. A fraude, sendo secreta, o desembaraço, que dissimula seus procedimentos, a sabotagem sub-reptícia situam-se, na realidade, no oposto desse efeito. Freud utiliza essa noção de parcimônia em O Chiste e Suas Relações com o Inconsciente. Anali sando diversos procedimentos pelos quais as mes mas palavras tomam diversos sentidos, ele consi dera que "uma tendência à compressão, ou melhor, à parcimônia, domina todas essas técnicas". Ora, Tzvetan Todorov, por sua vez, acha que é preciso afastar a validade dessa noção na explicação dos
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fenômenos do espírit09• A propósito de um exemplo de duplo sentido citado por Freud (tendo sido um dos primeiros atos do reinado de N apoleão III o de confiscar os bens da família de Orléans, fez-se a esse respeito um trocadilho: "É o primeiro vôo' da águia"), ele se pergunta se a parcimônia no esforço físico, que teria sido necessária para pronunciar duas palavras em vez de uma, não é amplamente compensada pelo dispêndio de esforço mental ne cessário para que se ache uma palavra muito bem apropriada aos dois sentidos visados. Ele acrescen ta que a fragilidade desse conceito de parcimônia não escapou ao próprio Freud, que, quando o apre senta, confessa que algumas economias realizadas pela técnica do espírito [ ...] l embr am-nos t alvez as das donas de casa que perdem tempo e dinheiro com transporte, na esperança de, num mercado distante, pagar por seus legumes alguns centavosmenos. Queeco nomias realizaria, portanto, o espírito com sua técnica? Ele pou pa a reunião de algumas pal avras novas que, na maior par te do tempo, teriam sido facilmente encontradas; em compensação, o es pírito deve se esforçar por procurar a palavra capaz derevestir os dois pensamentos; muitas vezes, até, é preciso procurar, primei ro, para um de seus pensamentos, uma expressão poucousual mas s us cetí vel de r eali zar sua f usão com o segundo. Não seri a mai s simples, realmente mais econômico,exprimir os dois pensamen tos tais comose apresentam, sob o risco de não encontrar para eles expressão comum?Não estaria a parcimônia de palavras mais do que compensada por um suplemento de dispêndio intelectual?
Parece que essa discussão não teria objeto se ficasse entendido de chofre que o chiste chama a
9. Tzvetan Todorov, Théories du symbole, P ar is , S eu il , 1 97 7, p p. 3 11 -3 15 . * Em francês {{voZ" s ig ni fi ca a o m es mo t em po " vô o" e " fu rt o" , r es um in do e xa tamente
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o pi ni ão p úb li ca s ob re o g es to d e N ap ol eã o 1 11[ N. d a T .] .
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atenção de Freud por seu efeito estético (do contrá rio, como se efetuaria a seleção dos exemplos?) e que esse efeito não se mede de modo algum mas por uma parcimônia positivamente verificável, antes, segundo a impressão de desafogo que provo ca. Ocorre que o máximo esforço é requerido para dar à imagem a maior simplicidade: assim ocorre na dança. A "economia" estética tem a particulari dade de começar nada economizando; puro dispên dio, dissipação das energias, o jogo consiste aqui em dilapidar o esforço físico e mental para chegar a um mínimo - contrastando esse mínimo com os inesperados abalos de sentido que ele desencadeia. O efeito estético, por definição, é pura aparência. Se, por hipótese, ele for relacionado com a noção de poupança, será preciso então imaginar uma es pécie de jogo com poupança, uma economia repre sentada, uma poupança fingida, não sendo o obje tivo economizar realmente forças, mas produzir, de modo tão custoso quanto necessário, a forma mais simples para evidenciá-Ia em sua relação com o sentido mais pleno.
A AÇÃO SIMBÓLICA
Há, portanto, um "efeito" do gesto, que não se reduz aos resultados que se esperam de um ato. O gesto se mostra. Ele tem sentido, ao marcar um tempo de pausa no encadeamento dos atos. Há, em qualquer gesto, algo suspenso que dá margem à repercussão simbólica, ao valor de exemplo. A ação militante recorreu por por gestos. vezes a Foi um omodo de intervenção que procede que aconteceu freqüentemente, nos anos 60, em países tão diversos quanto o Japão, o Uruguai ou os Paí ses Baixos. Os Estados Unidos, particularmente, foram palco de numerosas manifestações desse tipo, das quais Jerry Rubin, que foi um de seus atores, fez uma relação em Do it1• Quando os trens de G. 1.'s transportavam as tropas com destinação à estação militar de Oak1. Jerry Rubin, 1971.
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D o i t,
Ed. Simon and Schuster, 1970; trad. fr., Paris, Seuil,
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land, O Comitê Vietnã de Berkeley tentou opor-se à sua passagem. Os trens continuaram seu cami nho até o dia em que os militantes conseguiram
efetiva. É verdade que J erry Rubin, mais tarde, refugiou-se na espiritualidade absconsa e no psicologismo bioenergétic03• É verdade que Tom
bloquear um comboio. Sua imobilização não exce de alguns minutos. Os militantes pacifistas logose dispersam, espalham-se pelas ruas de Berkeley como combatentes vitoriosos, proclamando haver detido o transporte das tropas: "Detivemos de vez a máquina de guerra em seus trilhos"2. Duas com preensões do acontecimento entram em choque. Para uma, esse gesto é totalmente irrisório; ele não tem conseqüência quanto ao prosseguimento da guerra. Para a segunda, ele prova subitamen te que a máquina não é invencível. Naquela, uma duração contínua contém momentos que agem uns sobre os outros, passo a passo, segundo uma cau salidade transitiva; nesta, o instante exemplar não está inserido no encadeamento temporal, despoja se de qualquer eficiência sobre o futuro próximo e ergue-se intransitivamente como uma referência firme para um futuro indefinido. Todos os atos re feridos em Do it pressupõem que se admitiu a va lidade dessa concepção do tempo, que substitui o rendimento linear pela influência paralela. Por isso é difícil avaliar a eficácia de ações se melhantes: a própria noção de eficácia, a idéia de medir os efeitos adquiridos, pertencem provavel mente a uma outra ordem de avaliação diferente daquela que um gesto, enquanto tal, pode ressal tar. Pela mesma razão, o destino do movimento pacifista em seu conjunto não deve ser apreciado segundo a consideração de sua degenerescência
Hayden fez uma campanha eleitoral no mesmo estilo de seus adversários dos anos 60 e que Eldrige Cleaver arregimentou pessoas em favor do exército american04• Mas os gestos outrora bem sucedidos conservam sua vida própria e seu valor de exemplo, apesar das abdicações que se segui ram. Vale para o belo gesto o mesmo que para a obra realizada: a ausência de efeito imediato ou os absurdos ulteriormente proferidos pelo autor não legitimam sua depreciação retrospectiva. Os atos dessa espécie convertem-se em gestos porque parecem comportar em si mesmos sua jus tificação. Bastante ricos de sentido para não serem indiferentes ou gratuitos, só têm por objetivo pro duzir o acontecimento que os resume. Não formam o meio de uma finalidade exterior, mas têm em sua própria realização sua razão suficiente. Seria bom demais que esses simples gestos ti vessem rigorosamente os mesmos efeitos de uma longa paciência. As ações contadas em Do it visam à repercussão espetacular imediata. É duvidoso que tenham tido, em profundidade, a influência que Jerry Rubin, por outro lado, lhes atribui:·"Po díamos mudar o curso da história num só dia. Numa hora. Num segundo. Pela intervenção deci siva no momento decisivo". A euforia que Rubin manifesta com tanta constância não provém pro vavelmente apenas do contraste entre os meios que ele emprega e o resultado obtido, mas de uma 3 . Les Tem ps m od em es ,
2. Id., pp. 32-36.
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4 . Id. , p p. 75 e
S5.;
(361-362): 202 e S5., 1976.
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verdadeira suspensão do princípio de realidade. O benefício revolucionário antecipado é pelo menos incerto; o militantismo refletido teria boas razões
qüilizar na tevê o povo americano e dizer que a guerra continua". A dicotomia que reserva ao "ato" os privilégios
para avaliá-Io como nulo. Será, entretanto, irremediavelmente aberran te a simplificação, alegremente agressiva, que con siste em confundir o brilho do gesto e a ação efi caz? Há, em Do it, um episódio no qual se realiza a inteira substituição da realidade pelo desejo: o do anúncio, nas ruas de Nova Iorque, do fim da guerra do Vietnã, vários anos antes que a paz se tenha tornado efetiva, numa barafunda tão convin cente que a polícia, acrescentando seu próprio tu
da eficácia e qualifica de simples "gesto" qualquer conduta presumida estéril domina há tanto tempo o pensamento espontâneo que os recursos próprios do gesto são dificilmente diferenciados. Contudo, a celebração antecipada do fim da guerra e uma manifestação pacifista comum,ainda que se limi tem ambas a se oferecer como espetáculo, não se reduzem à mesma coisa. "Nossa celebração arran cava as pessoas de seus hábitos. As que eram fa voráveis à guerra não sabiam como se defender
multo, parece ter-se juntado à festa. "Ninguém parecia lamentar o fim da guerra. É ainda mais surpreendente que ninguém tenha tido a idéia de perguntar quem ganhara"5. Quando a resignação, a inércia do hábito, o bloqueio da imaginação con tribuem, por sua vez, para a perpetuação da rea lidade histórica, como negar, em contrapartida, qualquér poder à ficção em ato, à ruptura das ro tinas e ao próprio simulacro da esperança? A pro clamação do fim da guerra era irrealista como um
contra aquele ataque psicológico. Não a podiam ignorar comoteriam ignorado cartazes que diziam: Abaixo a guerra." A natureza particular do gesto subversivo requer um princípio específico de apre ciação, levando em conta a novidade e a simplici dade dos meios empregados, a desproporção entre a iniciativa e suas repercussões, a desorientação e a anarquia resultante desse desequilíbrio, abrin do assim uma dimensão que não é redutível, nem todavia inteiramente heterogênea, àquela da ação
jogo, mas obrigava a realidade a se enunciar, por seu turno, como uma má ficção. Quando projeta essa farsa muito séria, Jerry Rubin não se com praz apenas em imaginar a satisfação instantânea de um desejo inútil; tem em vista o efeito de cho que que a interrupção de um sonho produz e a ati va repulsa que dela resulta quando o chamado da verdade toma um aspecto brutalmente paradoxal: "Seria preciso que Nixon se mexesse para vir tran-
militante razoável. Embora o gesto possa ser exemplar sem visar a efeitos tão ruidosamente espetaculares, ele é indissociável de uma intenção de parecer ou mos trar, por onde já se introduz, aiqda que discreta mente, a idéia de espetáculo. É nesse ponto que ele está mais sujeito à crítica. Talvez seja aqui, ao mesmo tempo, que evidencia seu pleno senti do. O exagero que Jerry Rubin traz à espetacula rização da conduta é, a esse respeito, uma (ltil ampliação da teatralidade elementar deteetável em qualquer gesto.
5.
Jerry
Rubin, op. cit., pp. 138·140.
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Quando a Comissão das Atividades Antiameri canas abre um inquérito sobre o Comitê Vietnã de Berkeley, Rubin, chamado a Washington para tes temunhar, prepara-se "como para uma esti"é~ na Broadway" .. Sua chegada ao Congresso, com,? é descrita em Do it, é uma verdadeira entrada em cenas. Envergando um traje de ópera com os bol sos atulhados de panfletos e brochuras, atravessa o saguão frustrando divertidamente as objeções dos guardas que pretendem reprimi-Io. "Os proje tores e as câmaras ronronaram. Fazíamos nossa I
entrada. Dei a volta na sala, sentindo meu públi co... " Um dos advogados é expulso da audiência e preso. Seus colegas levantam-se, em protesto, de sistem e saem da sala um a um. "Víamo-nos sem advogados. Era realmente um golpe duro. Aqueles canalhas de advogados nos roubavam a cena." Ter a cena, no caso, é captar a atenção geral de modo que a atitude que se apresenta adquira o alcance do que Rubin chama "mito". Alguns anos depois, "os yippies iam servir-se da Convenção Democra ta e de suas pompas teatraIs para construir seus tablados edos encenar o mito; a íamos afanar o papel principal democratas, imprensa só se inte ressaria por nós, e o espectro yippie ia começar a assombrar a América"?. Entre este ser imaginário que é o mito e o in divíduo ou o grupo que o simboliza, a relação é a mesma que a existente entre a personagem e o ator. Analisando essa relação de representação, Louis Jouvet excluía a possibilidade de a persona-
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gem, comoo herói, alguma vez "se encarnar": viva, mas inacessível, a irrealidade é sua naturezas. Essa irrealidade, longe de diminuir a sedução ou o assombro que exerce, é, antes, a sua condição. O próprio Jerry Rubin, tão confiante contudo na pos sibilidade de realizar o mito, bem observa a irre dutível distância que o separa de seus agentes oca sionais: "Omito ultrapassa sempre o que o fundou. O mito do Che é muito mais poderoso que o indi-' víduo Che Guevara"9. Ora, esse acesso do real ao estatuto do imagi nário necessita de algumas mediações, que são a verdadeira fonte do mito. Este deriva menos de um dado inicial, cujo conteúdo seria favorável a essa transfiguração, do que dos procedimentos que entram em ação na narrativa mitológica ou na imagem lendária. Isso explica que os detalhes que pareciam os mais prosaicos alcancem um dia o prestígio simbólico - e torna-se plausível a reco mendação yippie de fazer de cada pequeno aconte cimento um elemento mítico1o. Esses procedimen tos, por diversos que sejam, conforme se trate de uma épica, de uma efígie, de uma repora tagemnarrativa televisiva, reduzem-se, essencialmente, abstrair fragmentos instantâneos, cuja irrealidade mágica resultará do seu simples destacamento de um conjunto contínuo. "Todo j ornalista é um dramaturgo: ele pega a vida e faz dela uma peça de teatro"11. É que ele
8 . L ouis JOl1vet,
Témoignages
sur le théâtre, P ar is , F la mm ar io n,
1 95 2, pp.
175,177. 6. Id., pp. 61.63. 7. I d. , p. 8 3 (o m ov im ento )'ippie f orma u ma sínt ese corrente hippie).
9 . Je rry R ub in . op. cit., p . 8 3. d o esquerd ismo
e da
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10. Id.• p. 128. 11. Id.• p. 106.
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não pega toda a vida; o que retém dela se encon tra, por isso mesmo, liberto dos encadeamentos pragmáticos
e se torna disponível para os jogos
do imaginário. A transformação mítica de um episódio qualquer exige, para toda encenação, essa seleção isolante, que o relatório mais escru necessariamente. puloso, como também o mais sumário, realiZa) O ato de alcance mítico implica, portanto, um/ fracionamento do tempo; a descontinuidade é sua condição. A propósito das grandes manifestações relatadas por Rubin, um testemunho exterior a Do it revela que "os combates de rua paravam assim que as equipes de televisão saíam para o almoço"12. A partir dessa observação desmistificadora, pode se contentar em concluir que o espetáculo assim dado só tinha o sentido de servir à ambição de apa recer dos participantes, o vedetismo dos protago nistas, a vaidade de reter por um instante os olha res de um público. Uma interpretação menos res trita detectaria talvez em tal preocupação da "mí dia" a necessidade de produzir, não só diante dos outros, mas também para si, essa mutação da rea lidade evanescente em acontecimento, da continui dade cotidiana em lenda, que sua intervenção ga rante automaticamente. Permanece o fato de que, ao submeter-se a esse tipo de mediação, que é for çosamente intermitente, a conduta se fragmenta: às grandes cenas, fechadas sobre si mesmas, suce de-se apenas a trivialidade dos entreatos. Preparando com o Comitê Nacional de Mobili zação a manifestação antiguerra de outubro de
12. L es T em ps m oder ne s, op. c it.,
p. 274.
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1967 em Washington, Rubin imagina um "cenário" em que, de provocação em proibição, deve desen volver-se "o dramático enfrentamento da Liberda de contra a Repressão". Devido ao número imen so dos manifestantes, à estimulante intransigên cia governamental, à embriaguez de sentir que o mundo inteiro tem os olhos fixados sobre si, o co mício se torna uma sublevação, sua eclosão será invencível. "O governo é obrigado a transigir. E, no final, tomamos o Pentágono!"13. Uma liberdade de imaginação completa, exercendo-se relativamente a uma conjuntura ideal, concebe a tomada do
Pentágono como um fim. O mais gigantesco edifí cio administrativo, a mais implacável máquina de guerra, apesar da proteção de tropas especializa das, sucumbe ao cerco de manifestantes desarma dos que conseguem invadi-lo. E essa proeza não suscita, aparentemente, nenhuma conseqüência. Apocalipse ou apoteose, é um resultado. O cúmulo do prosaísmo, isto é, da falta de sen sibilidade ao mito, é atingido quando o espírito conserva, em meio a uma situação excepcional, a preocupação com as coerções cotidianas, como en tre essas Mães de Família que consentem em par ticipar da manifestação contra o Pentágono, contanto que tenham tempo de voltar para casa para o jantar14. O prosaísmo aqui não provém de alguma indignidade afeita à preocupação de se ali mentar. Não resulta, tampouco, da interrupção deliberada de uma proeza que prometia infinitos prolongamentos. Reside, ao contrário, no apego às
13. Jerry Rubin, op. cit., p . 6 8.
14. Id., p . 7 2.
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obrigações costumeiras, na ansiedade da tarefa próxima: na recusa das descontinuidades. A obser
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vância da disposição mítica consiste, para Rubin, nessa mesma circunstância, em provocar a inter rupção mais cortante. "Juramo-nos escapar, na medida do possível, de qualquer prisão, mas era preciso um fim teatral para a tomada do Pentágo no"15.Deixar-se prender, para um manifestante inflamado pela lenda, é a melhor maneira de as sistir a um autêntico cair de cortina e, por conse guinte, de conferir retroativamente ao lapso de tempo que precede uma completeza fabulosa.
sensivelmente retificada. A convicção de que os atos destinados exclusivamente ao efeito do espe táculo não são inofensivos se fortalece, em Rubin, todas as vezes que o adversário se apressa preci samente em esvaziá-Ios de sua significação simbó lica. Enquanto ele reivindica que o inculpem por ter urinado no muro do Pentágono, é por vadiagem que será preso17. Numa faculdade ocupada pelos estudantes, em que está em jogo nada menos que derrubar o governo, as detenções são caracteriza das como ataque à propriedade privada18. A mais dura resposta que as encenações subversivas de
A conduta pela inspiração mítica, des tacando, assim,dirigida de qualquer seqüência possível atos instantaneamente suficientes, parece, portan to, comprazer-se com uma perfeita esterilidade. E é esse exatamente o agravo comum dirigido aos fatores de perturbação simbólica: sua agitação é pura pantomima, seus lances fulgurantes só visam e conseguem ser imagem, esses fantoches e esses fogos-fátuos não mudam nem perturbam coisa al guma, sua turbulência carnavalesca é uma de
vem temer é a de se verem convertidas em infra ções menores: não é esta a prova de que sua eficá cia específica ia residir naquilo que contém de mais especificamente teatral? Por outro lado, o retorno publicitário que o poder estabelecido, por sua vez, não se priva de recolher de uma bela atitude gra tuita, o rendimento demagógico que ele extrai de uma infinitesimal reforma, o benefício que o Prín cipe assegura para si sabendo aparecer, o efeito muito real que ele obtém distribuindo ninharias,
monstração de impotência, e todo esse exibicionis mo é tão inútil quanto uma revolução de brincadei ra. Régis Debray, crítico severo das atitudes inú teis, denuncia nesses termos o maio estudantil de 1968, "que foi para a Revolução o que o onanismo é para o ato sexual"16.
toda essa potência oriunda da imagem contradiz o orgulhoso dualismo que desejaria opor a atividade fecunda às esterilidades masturbatórias. Debray admite, de passagem, que existe uma "eficácia re lativa do simbólico". Concessão oportuna, quando se propõe, como ele faz, incluir a gesticulação es querdista no fenômeno global que é a "sociedade do espetáculo"; pois essa perversão geral não precisa ria tanto ser vilipendiada se permanecesse sem
Entretanto, a oposição demasiado evidente en tre a esterilidade das posturas espetaculares e a virtude agente do trabalho paciente precisa ser
15. Id., p . 80. 17. Jerry Rubin, op. cit., p . 8 0.
16. Régis Debray, Les Rendez-uous manqués, Paris , S eu iI , 1 97 5, p p. 1 23 e 55.
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18.Id., p . 1 29 .
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conseqüência. A comum transformação do ato em imagem, da vontade em pose, do projeto em mito seria apenas deplorável se representasse simples mente a impotência. A irritação que suscita indi ca sem dúvida que se trata de outra coisa. O apego ao mito não é, necessariamente, este rilizante. No jogo de um modelo voluntariamente simplificador, condutas eventualmente fecundas idealizam seu objetivo, depuram seus motivos. Seria ousadia pretender que toda ação verdadeira implicasse uma escrupulosa consciência de suas razões, uma visão exata da complexidade de seus objetivos. É, antes, presumível que esforços perse verantes pudessem ter por incitação e por susten táculo o mais esquemático símbolo. Por que a to mada do Pentágono seria um mito menos eficien te do que a da Bastilha, ou a ocupação da Sorbonne do que a libertação do Santo Sepulcro? Um ato se torna espetacular quando um início marcado, uma realização nítida, a ênfase de sua expressividade o tornam uma unidade plena de significação. Ao apressar-se em amaldiçoar a idéia de espetáculo, reduzindo-a à de ineficiência, cai-se no engodo semelhante ao de opor os verdadeiros atos às vãs palavras: o mesmo que esquecer os.po deres da linguagem. A reprovação que atinge cada vez mais dogmaticamente o que se denomina a so ciedade do espetáculo visaria com mais direito al guns sentidos que ali se exprimem, os estilos que ali prevalecem. A abjeção que as palavras podem significar não motiva a depreciação da linguagem enquanto tal. Do mesmo modo, o desprezo dos ou tros que se manifesta no blefe de alguns atos não justifica que seja censurada a capacidade que tem a conduta de formar imagem.
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Infelizmente, não é freqüente que um ato sim bólico saiba contentar-se em ser exemplar. Ambi cionando ao mesmo tempo os méritos da ação di reta, o verdadeiro pela comé dia doele afã,abandona defende-se de ser puroteatro espetáculo e res vala para o estardalhaço. Maio de 1968 represen taria talvez ainda hoje um mito mais vivaz se se limitasse a criar a imagem de um abalo inédito, em vez de querer, além disso, dar-se a ilusão de instigar uma clássica revolução proletária. Quan do vitupera as falsas aparências esquerdistas, Régis Debray não é nada convincente se pretende censurar as demonstrações espetaculares, que não são tão vãs quanto diz, para melhor louvar o rigor do trabalho estratégico, o qual, como se sabe, nem sempre, tampouco ele, termina onde pensava ir. Mas a diatribe é justa se atribui à impostura uma teatralidade que crê dispor de outros meios além daqueles que a cena oferece, e se nisso tudo se tra ta, mais precisamente, de opor-se à confusão dos gêneros. As manifestações simbólicas dos anos 60 tive ram muitas vezes a virtude de contar, incondicio nal e exclusivamente, com os poderes do espetácu lo. Mesmo que tenha acontecido a seus autores superestimá-Ios, pelo menos não tentavam acredi tar que os paralelepípedos tenham o mesmo efei to que as granadas, nem que as imagens que in ventavam possam chocar outra coisa além das imaginações. Daí, por exemplo, nos amigos de Rubin, o interesse ingenuamente confessado pela publicidade que a imprensa e a televisão lhes re servava e a estranha indiferença pelas seqüências próximas das ações que empreendiam. Aoprocurar agir apenas pelo exemplo, eles se encontravam
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mais aptos a utilizar plenamente todos os seus recursos dramáticos. O pensamento espontâneo opõe a aparência do
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gesto à seriedade dodo ato, a esterilidade gesti culações à eficiência trabalho invisível,dasa ilusão do simbólico à realidade prática. Evitar-se-á subs tituir essa dicotomia simplista pela confiança in gênua nos poderes do gesto. Concedamos que ele não tem eficácia alguma. Mas nem por isso é des provido de alcance. Durante os Jogos Olímpicos de Munique, em 1972, dezenas de milhões de espectadores pude ram assistir pela televisão a um gesto ao mesmo tempo muito simples e muito ativo. Ao término de uma prova, durante a execução do hino nacional, o vencedor balançava ostensivamente sua medalha dando as costas à tribuna oficial. Seria preciso, para minimizar o alcance desse gesto e negar-lhe o peso de um ato verdadeiro, ignorar também a função dos ritos, dos cerimoniais, das festividades organizadas. Era apenas um gesto, ele tinha uma influência apenas simbólica. Mas seria a realida de, cujo prestígio ele minava, de outra ordem? Se ria inconseqüente admitir que os emblemas e as insígnias, os concursos, os aparatos, são autênti cos fatores de pressão, e acreditar que a arte de subvertê-los tem a inutilidade das gesticulações.
PARÊNTESIS
A teatralidade, o cálculo do rendimento espe tacular, podem faltar em inúmeras condutas que deverão sua qualidade a virtudes mais secretas. A escolha dos exemplos evocados até aqui restringiu se aos gestos concertados: assim se reduziu o de sígnio que se formara inicialmente. À margem des ses gestos deliberadamente emitidos para outrem, desenvolvem-se condutas mais fluidas: atitudes graciosas ou gratuitas, comportamentos soberanos, sem preocupação com o efeito. Mas, querendo-se considerá-los exemplos, experimenta-se a dificul dade que há em citar uma conduta. Não se menciona uma conduta como se pode citar um texto. Uma obra de linguagem se atribui um começo e um fim; ela é separável das contin gências que ac~mpanharam sua elaboração. Pres ta-se a uma reatualização a cada vez que se a relê. Limita-se eventualmente a algumas palavras, que encontram uma significação no instante em que se
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enunciam. Uma conduta, ao contrário, ganha sen tido a partir de uma situação que não tem contor nos assinaláveis e que, por esse fato, não se repe
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tirá. Seus inícios são fugidios, seu fim é impreci so. Não só o tempo que ela implica não é delimi tável, como também é intimamente solidária do espaço empírico em que se situa. Seu sentido de pende do lugar e dos arredores, dos parceiros, dos comparsas ou das testemunhas ocasionalmente presentes - componentes cujos limites são impos síveis de ser estabelecidos. Longe de se caracterizar pela incapacidade de invenção, o comportamento pode seguramente pro
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duzír acontecimentos análogos a um chiste; mas ele o fará englobando tantas alusões a circunstân cias tão fugidias que sua obra, efêmera, dificilmen te se deixará captar pela análise. Esta pesa num texto porque ele permanece e, num achado verbal, porque se repete. Ela fica desamparada diante da fugacidade de uma situação vivida, como a musi cologia ficaria se nenhuma música pudesse ser reouvida. Uma composição musical se apresenta
como
um objeto preciso. Sua execução por um intérprete, ainda que seja menos fácil definir o que lhe é pró prio, possui, contudo, por sua vez, uma existência distinta. Porém, e as circunstâncias dessa execu ção? A escolha da obra, a do lugar e do momento podem ter uma qualidade criativa que depende de uma arte verdadeira: arte da situação, do aconteci mento, do comportamento coletivo. Mas como tra çar os limites dessa situação? E comodescrever tal momento sem deslizar do relatório à reinvenção? Por razões possivelmente diferentes, mas de maneira igualmente radical nos dois casos, a des-
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crição malogra na restituição da qualidade exata de uma obra de comportamento, do mesmo modo que o fariam as palavras se devessem mostrar o aspecto de uma pintura ou a aparência de um monumento. É quase tão desconcertante ter de ci tar comoexemplo uma conduta quanto se ver obri gado a resumir um quadro. Ora, remeter à experiência direta tampouco é praticável: nesse caso, aqui não se visita, não se reserva e nada se reitera. Embora a lingua gem se esquive, é impossível dispensar esse re curso aproximativo. Algumas condutas serão, conseqüentemente, privilegiadas; nãosimplesmente em virtude de suas qualidades intrínsecas, mas porque são menos incômodas de ser citadas do que todas as outras. São aquelas que se destacam da continuidade am biente por um começoe um fim relativamente cla ros, por uma auto-suficiência que permite isolá Ias. Uma conduta se relata tanto melhor quanto mais comprimida estiver no tempo, mais intencio nalmente distinta de seu contexto, mais delibera damente visível: será evocada tanto mais facilmen te como exemplo, quanto mais já tiver adquirido o estatuto do "gesto". Por essa razão, categorias que a pura reflexão estética não teria talvez retido como essenciais passam acidentalmente a ocupar um lugar central. Assim, a referência às "ações exemplares", que correspondia à simples comodi dade da citação (poisjá tinham, literalmente, qua lidade de exemplos), acarretou uma valorização do teatral e do espetacular que conviria retificar. Porém, essa inclinação à teatralidade ou a pro pensão espetacular não seriamE apenas o gosto do gesto,aolevado à exacerbação? não se deveria
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pôr até mesmo esta idéia de gesto, agora, em ques tão? Atribuindo-lhe um papel preeminente, a pre sente reflexão se concedeu uma facilidade: entre
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todas condutas, ela restringiu seu (do interesse àquelasas que se abstraíam do fluxo vago) corrente e que se autodesignam por sua intransi tividade. Ao mesmo tempo, privilegiando o gesto, essa reflexão sobre a arte das condutas oferecia a si mesma a vantagem de encontrar tacitamente a caução de uma teoria estética já constituída: a que se elaborou há cerca de dois séculos e que conser va com freqüência, ainda hoje, a aparência de uma
ESTÉTICA ROMÂNTICA
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verdade Pois tudo como se a doutrina intemporal. romântica tivesse sidoacontece construída expres samente para se aplicar em particular ao gesto. Tzvetan Todorov demonstrou que a doutrina contida nos escritos de Karl Philipp Moritz, August Wilhelm Schlegel e Novalis permanece presente até no pensamento de Sartre, Blanchot ou Barthes1 . Ele a resume com os traços seguintes: 1.valorização do processo de produção, sendo pre ferido o momento de formação ao resultado forma
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do, ao produto acabado; 2. recusa da função na: a beleza reside na intransitividade de umaexter coi sa realizada em si mesma; 3. afirmação da neces sária coerência interna da obra de arte; 4. vonta de sintética de uma fusão entre a forma e o con teúdo, entre a matéria e a idéia; 5. afirmação de que o sentido da obra é indizível: as idéias que ela encerra são intraduzíveis em linguagem comum, 1. Tzvetan Todorov, Théories du symbole, Paris, Seuil, 1977; "La Réflexion s ur I a l itté ra ture
dans I a F ra nc a c onte mpor ai ne ",
Poétique (38), Paris,
8euil, 1979.
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sendo a interpretação, portanto, infinita. Segundo os textos teóricos do romantismo alemão, "esses cinco traços característicos (produção, intransiti vidade, coerência, sintetismo, expressão do indizí vel) aplicam-se ora ao belo em geral, ora à arte, ora ao que não é senão um meio dela, mas meio emblemático: o símbolo romântico". Basta conside rar ponto por ponto esse corpo de princípios para se verificar que ele convém ademais admiravel mente ao gesto. Seria esse "momento de formação", preferido pela estética romântica ao "resultado já formado", o gesto criador, oposto à obra realizada? O primei ro princípio dessa doutrina se aplica, portanto, mais imediatamente, ao próprio gesto do que à poesia, à arte ou ao símbolo; ele só terá validade em relação a esses na medida em que forem con cebidos como materialização de um gesto. Por isso, a pintura gestual, nos anos 40 de nosso século, dará a si mesma palavras de ordem que parecem demarcar os preceitos românticos. Ela desejará "revalorizar o ser em ato em relação aos produtos do ato"; "o gesto livre do artista sobre a tela será considerado o fim em si da pintura"2. Klee, Kan dinsky, Hartung serão tidos como os "longínquos precursores" de uma "revolução estética" cuja teo ria se encontra, na realidade, claramente formula da desde o fim do século XVIII. Recentemente, a arte conceitual, a body art, a land art se aplica ram, por sua vez e segundo o mesmo princípio, a destituir o objeto acabado de seu estatuto de obra, em proveito do gesto que o precede, a transferir ao 2. Margit Rowell, La Peinture, legeste, l'action, Paris, Klincksieck, 1972, pp.
9-10.
desenrolar do ato a atenção que se fixa comum ente em seu resultad03. É escusado procurar demonstrar que a idéia de intransitividade convém essência do gesto, pois é precisamente com essa àidéia que este se viu definido, quando foi preciso distingui-Io do at04• Poder-se-ia dizer, com Lukács, que "o gesto é a única coisa que se completa em si mesma"5, se essa fórmula não conviesse igualmente, palavra por palavra, à concepção romântica da beleza. Para Moritz, "o belo não exige um fim fora de si mesmo, pois ele é tão realizado em si mesmo que todo o fim de sua existência se encontra em si mesmo ... A essência do belo consiste em sua rea lização em si mesma"6. Não se deveria, por conse guinte, remeter à ideologia romântica toda a sedu ção que pode exercer o gesto quando ele é como o descrevemos: esgotando-se em sua atualização, indiferente aos resultados, exemplarmente ergui do fora do encadeamento temporal? Requer-se da obra de arte que ela possua um caráter sistemático, em que a finalidade interna (ou coerência) compense a ausência de finalidade externa. Para definir essa propriedade, que atribui à obra poética e que nega aos discursos prosaicos, Moritz procede por comparação e recorre à distin ção entre a dança, organizada de maneira interna pela medida, e a marcha7 - como se esse novo 3 . F ra nk P op pe r, A rt , a ct io n et p art ici pa ti on.
aujourd'hui,
4 . C f. supra, pp. 27, 32-33. 5. Cito por Michel Maffesoli,
p.176.
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Paris, Klincksieck, 1980.
6 . C it o p or T zv et an
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L a Co nq uê te
d u p rê se nt ,
Paris, P.D.F., 1979,
T hé or ie s du s ym bole , ap. c it., p. 188.
7. Id., p . 1 91 .
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princípio tivesse em suma, também ele, sua apli cação mais clara e mais imediata no domínio dos gestos. Seria preciso, sem dúvida, suspeitar-se
ca, como t ambém porque a estética não parou, até os dias de hoje, de apresentar a unificação desses contrários como uma tarefa essencial da arte. Ora,
igualmente da presença da ideologia romântica na atração da volta ao passado, no desejo de contem plar o destino, nessa atitude que amiúde se mani festa em Nietzsche, por exemplo ("Gosto dos ani versários, das noites de São Silvestre ... Adqui re-se uma visão segura, uma espécie de escorço do passado, toma-se a resolução com um coração mais audaz e mais firme a retomar caminho"B),que con siste em emprestar à vida a autonomia de uma forma orgânica, a coerência de uma obra ou a or
se essa exigência recomenda, como seu meio mais seguro, sintética que a relação entre o significan te e o significado seja "motivada", onde se encon trará uma possibilidade mais exata do que no ges to? Que discurso se organizará algum dia, para sig nificar o amor, de uma maneira mais bem "moti vada" que o beijo ou que uma conduta generosa? Enfim, o último princípio da estética românti ca, segundo o qual as palavras da linguagem co mum não podem traduzir o conteúdo de uma obra
ganização de um gesto. O tema romântico da fusão dos contrários re cobre uma quantidade excessiva de oposições para que se empreenda aqui o estabelecimento, a respei to de cada uma delas, do papel sintético que o gesto está particularmente em condições de desempe nhar. Deixando-se de lado aquelas que a história das idéias fez definhar (mas o gesto não seria no tavelmente indicado para reabsorver a antinomia da "alma" e do "corpo"?) ou aquelas cujo alcance,
de arte, aplica-se por sua vez diretamente ao ges to. Este, com efeito, não menos que a arte, possui a propriedade de exprimir as coisas sem as enun ciar, sem que elas sejam ditas. Não apenas a sua significação é sempre transmitida com a possibili dade de denegação, como se observou acima9, mas também lhe é facultado, devido à simultaneidade de seus aspectos, mostrar em conjunto significa ções contraditórias que a linguagem não poderia condensar tão intimamente - como na crise his
talvez erroneamente, tenha sido negligenciado nes te estudo (mas - falho ou não - não representa ria o gesto o mais flagrante encontro do "conscien te" e do "inconsciente"?) só reterá a oposição "for ma"/ "conteúdo", "matéria"/ "idéia" ou, segundo uma terminologia que parece hoje mais precisa, "significante"/ "significado"; não apenas porque ela ocupa um lugar importante na doutrina românti-
térica em que "a doente, com uma das mãos, segu ra o vestido contra o corpo (enquanto mulher), ao passo que com a outra mão se esforça em arrancá 10 (enquanto homem)"lo. Os gestos que já foram evocados para ilustrar o que se chamava então efeito de parcimônia11 conviriam igualmente como exemplos do símbolo comodefine a estética român-
9 . Cf . supra, pp. 33-34.
8. Carta a sua mãe, ci tada por Dani el Halévy, Nietzsche, Paris, Grasset, 1944, reed. 1977, pp. 71.72; "El e passa a noi te de São Sil vestre relendo suas composições dejuventude", p. 222.
10. Freud, L es F an tasm es
h ys té riqu es e t leu r r elation à la bisexualité, trad.
fr.em Névrose, psychose et perversion.
Paris, P.UF., 1973, p. 155.
11. C f. supra, pp. 50, 56- 58.
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tica: eles se captam num "relance", "num só lan ce"12e a percepção instantânea de sua forma liber ta a superabundância de seu sentido - de modo que a linguagem cotidiana, incapaz de esgotar essa riqueza, é ademais impotente para restituir o equi valente de um tal contraste13. Suponhamos de pas sagem que isso se deva talvez ao seu aparecimen to tão indizivelmente carregado de sentido que o gesto de outrem suscita, com excessiva freqüência de nossa parte, a pobre resposta que é a repetição: enquanto replicamos as palavras com outras que as prolongam, devolvemos um gesto, como se fos se preciso anulá-Io, desfazer-se dele. É importante destacar a afinidade que o cul to do gesto mantém com uma doutrina formulada há já duzentos anos. Não que seja preciso conside rar essa doutrina como "falsa", nem mesmo como "caduca". Mas não é inútil tomar consciência da limitação que ela engendra. As condutas que ela incita privilegiar deixarão, por conseguinte, de aparecer como sendo as únicas dignas de interes se estético. Essa limitação é particularmente marcada pela própria natureza da concepção romântica. O
12. Friedrich Creuzer, citado por Tzvetan Todorov, T hé orie s d u sym bo le , o p. cit., p. 254. 13. Nie tz sc he , d e B on n, ond e e nt ão vivia, vai a Colôn ia. " Te nd op ed id o o e n dereço de um locador, foi conduzido, talvez por um engraçadinho, a uma c as a d e t oler ân cia. E nt rou n o s alão p úb lico, e logo s e viu c er cado p elas
princípio de intransitividade fraciona a conduta e reserva a seus diversos momentos uma qualidade desigual, pois os instantes que ele caracteriza, rea lizados em si mesmos, inúteis e belos, deixarão estender-se, no triste intervalo que os separa, lon gos períodos fatalmente transitivos. A menos que um estetismo voluntarista decida que cada mo mento será vivido como se representasse uma to talidade acabada e simbolizasse um destino. Para defender essa atitude, será preciso nada menos que a concentração crispada em si de um Malraux: certo dia, ele estava no elevador com sua mulher quando ela lhe pediu que fizesse a gentileza de livrá-Ia de um dos muitos pacotes que a atrapalha vam; ele se recusou a pegá-Io, considerando incom patível com a sua personagem carregar um paco te14. Mas, mesmo quando uma vigilância implacá vel - e condições de existência privilegiadas permite conferir a cada instante a completeza do gesto, de quanta certeza de gosto não se precisa para se compor, de um só lance, toda uma vida, com a coerência que, por outro lado, essa estética
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exige! Enquanto ou apor pintura terrupção e nãoa música se alteram ter detoleram dependera inda disponibilidade de seus instrumentos e de seus materiais, enquanto a poesia não enfrenta de for ma alguma o fracasso quando chega a uma pausa, a um branco, ao silêncio, a conduta tem a particu laridade de nunca poder ser suspensa: ela conti nua a tomar sentido e não-sentido, a derivar no
m ulhe re s d es pidas. No m eio d o s alão, u m p iano abe rt o. 'Fu i d ir et am en t e ao p iano', c on tou e le , 'como o ú nico s er q ue t in ha alm a n aq ue le c ôm o d o. ' E le s en tou- se , c oloc ou as m ãos n o t ec lado e f ez e xp lodir u ma d as p o derosas improvisações que seus amigos admiravam. As mulheres, estu p ef at as , ouviam. Nie tz sc he levan tou- se d e r ep en te e s aiu, d eixand o- as
14. Relat ad o p or Alain Malraux, L es Marronniers de Boulogne, Paris, PIou, 1978, p. 174.
perturbadas." Citado por Daniel Halévy, op. cit., pp. 75-76.
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informe, a consumir o seu tempo contado, mesmo quando a arte que ela requer se retira. Ora, impo tente para se protelar, a conduta é, além disso, refratária ao arrependimento. Ela não é suscetível de retoque. Nenhuma correção realizável, nenhu~ ma retomada do trabalho passado, nem da ociosi dade, nem mesmo da volta ao esboço.Nenhum cor te possível, diferentemente das artes que podem suprimir um fragmento mal-sucedido, ao contrário até, ao que parece, de todas as outras artes, em que é sempre possível anular uma obra malfeita e recomeçar tudo sobre novas bases. Aqui, os arre pendimentos permanecerão sem efeito: teria sido preciso parar ali, era preciso partir naquele mo mento. O erro de gosto, a inabilidade na execução são irremediáveis. Uma lentidão no acabamento de um episódio (uma visita, uma viagem, uma li gação), e não só esse erro é irreparável no futuro, mas corrompe o passado, embota o que o precedeu, contamina para sempre por retroação os mais fe lizes começos. É verdade que o artista das condutas, por mais dedicado que esteja a essa ansiedade do irreversí
ele reivindica a responsabilidade por seu crime e preserva sua vítima de tornar-se um cadáver anô nimo, um dejeto do Partido. Dir-se-á que apenas o sentido flutuou e que, pelo menos, o acontecimento permaneceu intransformável? Mas o acontecimento em si reduz-se a nada: foi um acidente, acaso con tra o qual justamente Hoederer se revoltou inven tando in extremis uma mentira. O gesto ulterior de Hugo dá enfim a Hoederer "a morte que lhe con vém". Uma porta aberta com um chute: nesse ins tante, o homem que foi assassinado dois anos antes morre por suas idéias em vez de morrer por acaso. Mas a liberdade de recompor o passado, que é,
vel, dispõe de recurso para temperá-Ia. Pois se o fenômeno deum retroação, que submete o que está terminado às influências do presente, pode chegar à paradoxal corrupção do passado, permitirá por vezes, igualmente, sua emenda. Sartre, em Les Mai ns sale s, dá vários exemplos desses retornos de sentido que afetam o que já aconteceu. Hoederer não mais existe, mas sua morte será o que o Parti do quiser que ela seja: assassinato político, se Hoederer for um adversário, crime passional,
tido político que reinventa a história. Em Le Li vre du rire et de l'oubli, Mirek queria se conceder, para completar seu destino que se aproxima do fim, o direito de que dispõe o romancista de reescrever ou de suprimir um episódio insatisfatório. Mas a mulher, a quem outrora amou, e de que se enver gonha, obstina-se em figurar em sua juventude e não se deixa apagar. A existência retorcida de -Zdena, que atravanca a vida de Mirek, é análoga finalmente à do próprio Mirek, que não convém ao
quando for reabilitado. Por sua vez, Hugo, o assas sino, num último gesto, fixa o sentido dessa morte:
Partido. Em ambos os casos, a coerência do todo pressupõe que seja eliminado o detalhe refratário:
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numa tal perspectiva, a licença mais tentadora, poderia perfeitamente ser também a mais perigo sa. É verdade que Sartre maneja uma distinção entre a piedosa intenção de Hugo e as operações cínicas do Partido. Todavia, em nome de que inti midade será um mais apto que outro para decidir, no que se refere a Hoederer, que tal é "a morte que lhe convém"? Milan Kundera, ao contrário, assimi la expressamente, por reservar-Ines a mesma des confiança, o indivíduo que retoca sua vida e o par
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um homem aqui, uma lembrança lá. Portanto, sempre é possível que um sentido retrospectivo remodele, como a história coletiva, um destino in
sar de tudo, bastante próxima das posturas que ela rejeita? Aplicando-se metodicamente a inverter o romantismo, ela o lembra constantemente, como
dividual; mas isso se dará à custa da morte e do esquecimento. Como conceber uma estética das condutas que escape a tais esquemas? Duas eventualidades po dem se oferecer: uma que consiste em tomar sis tematicamente o contrapé da ideologia romântica, a outra em escolher por princípio categorias que lhe sejam radicalmente estranhas. O esteta romântico queria momentos de exce ção, começos radicais (a partida do aventureiro, a
um contrário obsessivamente presente - quando não retoma certos traços para os transpor do subli me ao frívolo, do espetacular ao minúsculo, na in tenção de "democratizar" o direito à aventura. Em vez disso, postular-se-á, antes, mais uma vez, que a atividade artística está para desempe nhar, em relação à estética das condutas, o papel de modelo e que ela pode sugerir princípios mais intei ramente afastados das seqüelas do romantismo.
do emigrante, a efervescência da Grande Noite), acabamentos irrevogáveis (o adiamento da demis são, a suspensão das atividades, o suicídio). Ser lhe-á oposta a reabilitação da banalidade, a acei tação do cotidiano, a dignidade transitiva do tri vial, a digressão do transitório. Ele se impunha o dever de viver sem tempos mortos e intensificar o mínimo instante. Prefere-se agora percorrer com displicência as monotonias diárias. Nunca perdia de vista que cada um de seus gestos empenhava a imagem global de sua vida. Objetando-lhe a fór mula de Cioran: "só descobrimos sabor no cotidia no quando nos furtamos à obrigação de ter um des tino", é pela obstinação no insignificante e no des cosido que se fará doravante valer o direito de ser um homem comum. Essa atitude, que Pascal Bruckner e Alain Finkielkraut descreveram paramentando-a com uma surpreendente sedução15, não será ainda, ape15. Pascal Bruckner e Alain Finkielkraut, Au Coin de Ia rue, l'aventure, Pa-
r is , S euil, 1979.
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DO INSIGNIFICANTE
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Tudo o que se chama Arte, aqui e ali, ou trora e agora, é por demais disparatado para que uma função artística geral oriente esse heteróclito e flutuante conjunto. Uma obra por si mesma é ocasião de prazeres tão múltiplos e, para o mesmo . s ujeito, de abalos afetivos tão variados que uma investigação, que se dedicasse à definição da fun ção estética, deveria interrogar-se imediatamente sobre o estranho desejo que a faz postular uma tão improvável unicidade de princípio. Deixando-se de lado tal ou qual obra (sem dú vida, setores inteiros das Belas-artes), que serão excluídas do campo de aplicação da fórmula pro posta, pode-se tentar definir uma função, que não se deve apressadamente crer especificamente es tética, a qual, decerto, não é a única a reger as operações reputadas artísticas, maS que pode exemplificar-se de modos bastante semelhantes em artes bastante diferentes, para que, ao mesmo
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tempo, possa supor-se que seja consistente com uma função original, que a qualifique provisoria mente de estética. função de desfocalização, para se re É uma sumir numa palavra e para não se recear situá Ia em posição negativa relativamente ao que a precede. Estão em primeiro lugar a focalização da atenção, a consciência seletiva, a discrimina ção do essencial e do acessório, do significante e do insignificante, do sentido e do acaso, da figu ra e do fundo. A desfocalização destitui o essen cial, dá sentido ao acidental, detém-se no deta lhe, deriva na margem. Qual é essa necessidade primeira que impõe à atenção esquemas que negligenciam mil contingên cias? - O ato de fabricação, diz Valéry, em Eupalinos, não se inquieta com todas as qualidades da substância que ele modifica, mas apenas com algu mas: "O homem constrói por abstração, ignorando e esquecendo uma grande parte das qualidades do que ele emprega"1. Por conseguinte, necessidade "prática"? Necessidade "pragmática", "utilitária"? - Seria verdadeiramente preciso que, no campo de consciência, a recuperação da realidade residu al tenha comocondição uma atitude "teórica", uma disposição "desinteressada", uma curiosidade "gra tuita"? Será preciso tomar partido nessas oposi ções que relegaram a arte às regiões anódinas da superfluidade? - Necessidade "vital"? - Mas será que se acredita que a flutuação da atenção para além das balizas seja mortal?
1. Paul Valéry, Eupalinos ou l'architecte, Paris, Gallimard, 1960, Pléiade, voI. lI, pp. 123-124.
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Papel discriminante da linguagem? Mesmo que ali não esteja a origem absoluta da segregação do essencial e do secundário, verifica-se que a opo sição lingüística entre o que é pertinente e () q ue não é fornece o arquétipo mais claro das outras distinções aqui em causa e que a dualidade do sig nificante e do insignificante implica referência a sistemas de signos, dos quais a língua é o mais acabado. Entretanto, esta não estrutura de forma tão imutável a matéria verbal que não possa subi tamente dar sentido àquilo que, um pouco antes, estava privado de pertinência, pois a poesia é a arte dessa transmutação. Parece que se levaria em conta .ao mesmo tempo a primeira presunção, re ferente ao efeito de abstração próprio da língua, e a reserva que impõe a presença do recurso poéti co no núcleo da linguagem, avançando-se que a discriminação dos elementos vivos e dos elementos mortos, quanto ao sentido, não é imputável à lin guagem enquanto tal, mas à função de comunica ção que tende a açambarcá-Ia. . Tudo pode ser signo, do gesto mais furtivo à postura menos estudada. Na própria substância da linguagem tudo faz sentido; tal palavra em lu gar de um sinônimo, tal assonância, o timbre da voz, a fluência, o silêncio. Mas esses índices são por demais fugazes ou singulares para que um consenso se estabeleça sobre o que significam. A atitude de comunicação, que deve contar com a reciprocidade dos interlocutores, reterá exclusiva mente os significados experimentados, os signifi cantes instituídos, os signos estabelecidos. Afas tando o sentido inédito, que se prestaria a uma compreensão arriscada, a inteligências divergen tes, ela obscurece o que o engendra. Não é apenas
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o ato de fabricação, comoo definiu Valéry, é, gene ricamente, o ato de comunicação que procede por abstração, "ignorando e esquecendo uma grande
de uma justaposição entre o reino do sentido, es tabelecido nos limites da obra, e o da insignificân cia, que prolifera ao redor. A pintura moderna,
parte das qualidades do que emprega". A função de desfocalização, em compensação, dá sentido ao insignificante: à sílaba na palavra, à pedra no muro, à cor na forma, à palavra na fra se. A prosa de comunicação focaliza-se na frase, cujos elementos serão apenas constituintes. A pro sa literária, sem perder de vista o enunciado glo bal, assume suas unidades interiores, favorece em particular sua polissemia, que o contexto tende a reduzir e que a intenção de comunicar visa a anu lar.A poesia encarrega-se ao mesmo tempo da coe rênciado texto global, das implicações plurivalen tes de cada uma de suas palavras e até da textu ra das sonoridades ou das grafias. Essa reconquista estética do insignificante é sem fim. A arte propriamente dita é apenas uma de suas etapas. A desfocalização artística consiste em dar novamente sentido a todos os detalhes que entram no espaço da obra, em colocá-Ios no mes
desde o impressionismo, recupera o espaço bidi mensional da tela, impõe-lhe autodesignar-se como o próprio lugar do sentido, impede-a de reto mar o estatuto de invisível instrumento da pro fundidade; ela reconquista em seguida a própria substância dessa superfície, ressemantiza sua ma terialidade, recusando que se limite ao papel de suporte fortuito da área colorida. Todavia, a obra necessariamente se interrompe, abandona suas margens ao acaso. Picasso não elude esse proble ma: "O grande lance é o espaço entre o quadro e a moldura"2. Mas será esse ainda o lance da pintu ra? Será que esse é, ainda hoje, o lance da "arte"? Desde que esta se tornou manifestamente objeto de um interesse institucionalizado e está por sua vez focalizada enquanto tal pela cultura estabele cida, a desfocalização perseguida não é mais "ar tística"; munida de métodos experimentados no interior das Belas-artes, ela se dissemina fora dessa moldura.
mo plano, conferir-Ihes uma força significante igual. Masem essa operação de ressemantização de todos os elementos presentes só é bem-sucedida justamente nesse espaço privilegiado, à custa do fechamento da obra, às custas do circundante so bre o fundo do qual ela se põe. A desfocalização não é o abandono da atenção nem o relaxamento da consciência; é como se a disseminação percep tiva exigisse uma outra concentração e impusesse uma indiferença mais completa em relação ao con
O teatro restitui a cada gesto todos os seus poderes simbólicos, rompe o encadeamento dos movimentos transitivos, valoriza cada atitude, impede-a de fundir-se, despercebida, na totalida de indiferenciada de tal ou qual conduta social mente identificável. Os silêncios deixam de ser as
torno desse novo centro. Ora, se os academismos toleram essa contradição, a história da arte em ato é a das recusas sucessivas da idéia resignada
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pausas da significação; os ruídos tornaram-se coi sa diferente de parasitas da comunicação; a qua lidade das luzes não se reduz mais às funções da
2. C itado por L Ollis Ara gon, Les Collages, Pa ri s, H erm an n,
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dade estética? Na medida GALARD,Jean -ABelezaDo Gesto -slidepdf.com
iluminação. Mas a amplitude nova da atenção as sim solicitada, que, por ser difusa, não deve ser menos vigilante, esse alargamento da consciência, agora desfocalizada e requerida para encontrar sentido em cada entonação, em cada atuação, em cada expectativa, só parecem possíveis às custas dos inúmeros artifícios que reduzem, por algum tempo, o mundo às dimensões de uma cena. Ora, o grande lance, ainda aí, para os mais exigentes, é a relação entre o palco e as fileiras do público, o espaço entre a cena e os bastidores, o intervalo entre o espetáculo e o tempo profano que o prece de e o sucede. Muitos esforços do teatro contempo râneo tendem à abolição dessa fronteira instituí da pela ribalta entre uma zona integralmente semantizada e o lugar de penumbra onde a exis tência do público, contingente, permanece à mar gem dos desdobramentos do sentido. Outras ten tativas, do mesmo alcance, suprimem os bastido res, generalizam a troca dos cenários e das roupas diante do público. O momento em que um ator endossa os índices vestimentários de uma nova personagem
não pode aparecer
como sendo um
instante altamente significante: por que ele se dis simularia comouma coerção transitiva, comouma inessencial transição? - Contudo, essa teatraliza ção conquistadora, que ganha os bastidores, trans põe a ribalta, distribui papéis aos espectadores, anexa os corredores e arrisca eventualmente algu mas incursões nas ruas vizinhas, interrompe-se quando não é mais hora de atuar, quando a festa termina, ou quando, para os mais obstinados, che ga a hora de pensar em outras formas de ação. Dirigiria o reconhecimento dos limites da arte teatral ou da pintura uma visão restritiva da ativi-
em que a definimos de maneira muito geral para distingui-Ia das artes, que são submetidas, por sua vez, não apenas à es pecialização de seus procedimentos respectivos, mas à heteronomia da apresentação de uma "obra", pode-se sempre, é claro, postular que ela deve se aplicar ao campo integral da vida cotidiana. Toda via, querendo-se evitar repisar simplesmente uma palavra de ordem, pregar vagamente a obrigação de "mudar de vida", querendo-se exortar os outros e incitar-se a buscar efetivamente os meios de poetizar a existência, é preciso conceituar tão fir memente quanto possível pelo menos uma das fun ções que estão em atividade na prática das artes. Parece que, no que concerne à realização des sa preliminar, um primeiro passo pode ser dado que permita ultrapassar os sumários e agora mui to oficiais encorajamentos da "criatividade": a desfocalização da atenção ou, mais precisamente, a exclusão do princípio de pertinência (tal como é definido pelas ciências da comunicação) representa talvez a operação cuja análise seria muito fecun da nesse aspecto. Tomada de empréstimo à experiência teatral, a idéia de bastidor pode ser generalizada, a ponto de simbolizar toda a classe dos lugares, das ocupa ções, dos períodos que são dedicados à preparação do sentido e suprimidos de sua manifestação. O exemplo da recuperação progressiva, no espaço do jogo cênico, das passagens adjacentes ao palco ou aos corredores reservados ao escoamento do públi co, inspiraria então um modo de vida que instituís se um mesmo grau de densidade semântica entre a habitação e a rua (mas a rua seria então habitada), a destinação e a estrada (mas o viajante não teria
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mais destino), a "vida" e o trabalho (mas a vida per deria suas aspas, seus parêntesis, suas pontua ções). O apartamento moderno, que dissocia o living onde se vive e os bastidores reservados à co zinha, à toalete, ao sono, ao amor, seria substituído por um espaço comum, impedindo que uma ativida de qualquer fosse considerada indigna. Tomada de empréstimo às artes gráficas, a idéia de margem pode ser entendida, de forma mais genérica, como conveniente a todos os espa ços neutros, aos dias vazios, aos tempos mortos, aos encontros inuteis. A atenção marginal da qual dão testemunho, no sentido literal, a poesia de
musical, pois o ruído resulta da superposição de vibrações que são chamadas "não-harmônicas". Ora, tal como a idéia de bastidores ou a de mar
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gem, a estranhos idéia de ruído pode ser empregada mínios à arte de origem; a teoria em da do co municação designa dessa maneira os fenômenos que interferem com um sinal, seja qual for sua natureza (luminoso, gráfico, icônico, gestual, ver bal), e que limitam a transmissão da informação. O trabalho musical, que consiste em enriquecer a série dos sons disponíveis num sistema historica mente dado, aparece por conseguinte como exem plar fora do campo que lhe é próprio. Do mesmo
ApoIlinaire e a reflexão de Michel Butor, a caligra fia desde sempre, a escritura versificada talvez e a história em quadrinhos mostra por vezes o exem plo de uma possível reconquista, em benefício de um sentido mais diversamente enraizado, dessas extensões laterais e infecundas que são também as franjas de uma jornada, os dias seguintes de fes ta, os fins de vida. Num elogio da pane3, Jacques Meunier indica de que modo a ruptura dos meca nismos provoca descobertas, experiências, abertu
modo que a música concreta subtrai os ruídos (acústicos) ao acaso e os introduz na ordem da pertinência musical, a conduta cotidiana pode ar rancar os "ruídos" (metaforicamente definidos) da insignificância e conferir-lhes uma carga semânti ca. Quais são esses "ruídos"? Trata-se dos parasi tas da comunicação, dos elementos imprevistos pelo código que, misturando-se ao sinal, confun dem a mensagem: reações singulares, comporta mentos inclassificáveis. Tendo um colegial de de
ras no inesperado. Para isso, pressupõe-se uma verdadeira aptidão para apreender-se a providên cia marginal. Do contrário, o desarranjo da rotina representará apenas uma perda de tempo, o inci dente será apenas uma confusão; deixar-se-á pas sar a oportunidade de um encontro na irritação de ter faltado a um compromisso. A ideia de ruído, apesar de não ser espontane amente relacionada com a experiência da música, só é entretanto definível enquanto oposta ao som
zoito anos fabricado sem autorização um engenho explosivo que estourara inopinadamente no ba nheiro de seu quarto de estudo, a vara criminal lhe inflige quinze meses de prisão, catorze dos quais com sursis: o rapaz anota cuidadosamente sua con denação num caderno de notas, tal como deve ter anotado anteriormente, quando freqüentava as reuniões dos escoteiros ou a aula de tecnologia, a fórmula da mistura detonante4•
3. Jacques Meunier, "Vive Ia panne!", Le Monde dimanche, 12 fev. 1981.
4. Le Monde, 2 6 m ar . 1 98 1.
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o menor dicionário analógico enumera
GALARD,Jean -ABelezaDo Gesto -slidepdf.com roupas inadequadas à ocasião, cumprimentar com copiosa cortesia desconhecidos na rua: esses atos, mal saí mente as palavras que designam ruídos (zumbido, dos do impensável, revertem ao insensato. vozerio, sussurro, chiado, marulho, estalo, crepita O dandismo de modo nenhum recomendava a ção, grito, rangido etc.) e das quais a escuta musi cal se privou até recentemente. Pelo menos tais lis extravagância. Em vez do exagero no fausto ou na fantasia, ele procurava uma distinção sóbria. Sem tas podiam ser feitas antes mesmo do aparecimen dúvida, tratava-se de se singularizar, mais por to da música concreta. Nada disso, no que se refere refinamento que por incongruência. Era preciso à conduta. Num momento dado da evolução dos cos ser notado, mas sem recorrer aos procedimentos tumes, e comoresposta a uma situação determina vistosos; provocar a surpresa, mas utilizando me da, o sistema dos comportamentos cuja pertinência lhor do que ninguém os recursos comuns5. é admitida (seja qual for sua significação: que esta O dândi cultiva o detalhe essencial. Mais exa se relacione com as categorias do permitido, do re tamente, tudo é detalhe para ele, e cada detalhe é comendado ou do interdito), esse sistema sempre se capital. pretende relativamente aberto e, na medida justa mente em que não é totalmente rígido, dispensa-se É às coisas que têm menos importância que ele pretende de ser explícito: as virtualidades que exclui ficam mais se apegar .. . De um conjunto de práticas insignificantes e inú ainda mais recalcadas, sua enumeração, mesmo que teis, ele faz uma arte que leva sua marca pessoal, que agrada e parcial, ainda mais impossível. A codificação estri que seduz à maneira de uma obra de engenho. Ele comunica aos ta dos sistemas- musicais autoriza e provoca uma menores signos de roupa, de postura e de linguagem um sentido formulação dos elementos que eles admitem, isto é, e um poder que eles não têm naturalmente. Ele produz do nada uma sup erioridade misteriosa qu e ning uém saberia definir, mas dos sons, e permite o recenseamento dos ruídos que cu jos efeitos são tão reais e tão gran des q uanto os das s uperio ri excluem. Mas a codificação das condutas, muito dades classificadas e reconhecidas. O dândi é um revolucionário menos rigorosa aparentemente, impõe-se de manei e um ilusionista6•
ra indireta e tácita,relações embeleza-se com a no idéia de do li berdade e mantém imprevistas nada impensável. Não mais se trata aqui da classe dos atos interditos, que, no que lhes diz respeito, são perfeitamente codificados e cujos traços pertinentes os tribunais nunca deixam de lembrar com precisão. Os comportamentos que escapam ao código não acarretam uma interdição franca, suscitam uma re provação velada. Não infringindo regra explícita al guma, não têm a significação do delito; mas, por se comporem de signos inéditos,de aparecem comoUsar um desregramento do princípio comunicação.
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Ele é artista e, nisso mesmo, revolucionário, se é verdade que a arte tem como efeito subverter a hierarquia que a ordem estabelecida postula entre o importante e o acessório. Sua conduta não é ex travagante. Mas seria correto chamá-Ia de excêntrica se, desse modo, se pudesse designar a liber5. Emilien Carassus,
Le M yt he d a d an dy .
6. Jules Lemaitre, Les Contemporains,
Pa ri s, A. C ol in , 1 97 1, p . 1 Ol .
1875, citado por E. Carassus, op. cit.,
pp. 253-254.
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GALARD,Jean -ABelezaDo Gesto -slidepdf.com dade discreta que desloca bruscamente os valores conjuntura cênica. A atenção metódica aí seria len centrais. O dandismo transfere para os gestos ta e pesada. A focalização analítica delimita ape mais fúteis o cuidado exigente, comumente reser nas signos já desertados. Nenhum outro campo vado às tarefas reputadas sérias; ele mina por estético exige, como a arte das condutas, essa ex contragolpe os prestígios da riqueza, dos títulos, trema prontidão para a captura das coincidências, da função social. Institui uma arte de viver no sen cuja condição reside na atenção desfocalizada. tido em que realiza essa desfocalização da atenção Aqui, menos ainda que em outra parte, Ó sen que o exemplo das outras artes autoriza a conside tido premeditado não pode operar. Em vez do sen rar como sendo uma possível finalidade da ativi tido fixado, do significante distinto e dos signos dade estética. diferenciados: atenção flutuante, visão sem foco, Mas ele quer, ao mesmo tempo, que o descen vigilância esparsa. tramento dos valores se imponha como uma nova A elaboração de uma agenda proporciona tal maneira de ser. Visa a instaurar uma codificação vez uma satisfação de ordem estética: a de ter pre
das condutas, que Uma redefina as convenções e regu lamente os usos. decisão sobre nadas, que não se funda em nada, decreta obrigações de ves tuário, prescreve passatempos e fixa até seus ho rários. A exploração do inessencial, no dândi, in clui a experiência do frívolo e da arbitrariedade, mas não se aventura a tornar-se disponível aos efeitos de acaso.
É próprio da arte em geral tornar-se acolhedo ra dos achados fortuitos. Tirar partido dos mate
ludiado a eliminação das contingências, inserindo qualquer eventualidade na ordenação de um sen tido global. Entretanto, o revés está à altura da esperança: o acaso, não admitido, volta por refra ção, mas tem agora o aspecto amargo ou ridículo do absurdo. Por se ter querido proscrever o alea tório, impediu-se o poder de dar instantaneamen te uma significação ao acontecimento.
riais é, ao mesmo tempo, deixar viver seus aciden tes (nós da madeira, particularidade pessoal de um ator, tremor inopinado de um traço) e trans mutar esses dados contingentes em uma necessi dade nova. A função estética, que visa à evicção do insignificante, só se manifesta de maneira plena mente convincente onde este se deixou afrontar diretamente. Ora, é próprio da arte de viver lidar com o acontecimento, em outras palavras, com o imponderável e o imprevisível. A complexidade de uma situação vivida ultrapassará sempre em mil detalhes a de um problema plástico ou de uma
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o FRANQUEAMENTO
Em focaliza que ele índices
DO GESTO
nossas relações com outrem, a atenção se no sujeito, naquilo que ele quer, naquilo é. Os gestos de outrem aparecem como os de seu ser. Emitimos os nossos sabendo
que eles contribuem para revelar a pessoa que so mos. O efeito da desfocalização equivaleria a dissociar os gestos do sujeito que os realiza, a tomá-los pelo que dizem ou pelo que fazem, sem os imputar a uma substância subjetiva. Nossas con dutas provavelmente se diversificariam se lhes fosse concedida, em sua relação com a pessoa que se supõe assumi-Ias, a liberdade que têm os dis cursos diante de seu locutor. Definida pela intransitividade, a idéia de ges to, comose viu, reativa facilmente a estética laten te que herdamos do romantismo. Utilizada, em compensação, para marcar a distância que pode estabelecer-se entre uma conduta e seu ator, abre perspectivas novas.
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GALARD,Jean -ABelezaDo Gesto slidepdf.com Quando uma conduta é qualificada pejorativa to -que se trata de significar, como o árbitro que mente de simples "gesto", o que se incrimina não quer mostrar sua segurança de juízo por uma ra é talvez tanto sua ineficiência quanto sua insince pidez que compromete a segurança, ou como o ridade. Opondo-a aos "verdadeiros atos", não se ouvinte tão aplicado em emitir sinais de atenção quer apenas negar-lhe qualquer influência prag que não tem mais tempo para ficar atento. De mática, mas censurar-lhe uma imediata falsidade. modo geral e de modo menos paradoxal no senti Não é a insuficiência de seus efeitos que se real do corrente, a intenção de comunicação, por recor ça (seria preciso então suspender indefinidamen rer necessariamente à convenção de um código, te o j uízo, na espera de repercussões sempre pos não poderia tomar a conduta por matéria sem síveis), é o vício inicial de sua intenção. A condu provocar nela uma notável perturbação de seu es ta é apenas uma seqüência de gestos se o objetivo tado supostamente natural. que pretende perseguir se transforma de chofre O comportamento assim submetido à função em pretexto e se é flagrante que seus móveis são de comunicação foi qualificado anteriormente2 de É antes"Eu representados sentidos. semioticamente imoral. ainda senão aparece era uma falsaque criança: sentia meus atos se ra a eventualidade do j ogoque ao qual prestam os transformarem em gestos", afirma Sartre em sua signos. Hipertrofiar os índices da respeitabilidade autobiografial. Porque aprendeu a se ver pelos que se concede a si mesmo é uma coisa. Imitar por derrisão esses mesmos índices é outra. O acesso da olhos dos adultos, o pequeno ator conforma seu conduta ao universo das significações lhe abre ao comportamento à expectativa deles e compõe para outrem um ser artificial. mesmo tempo a possibilidade de tomar de emprés Em que consiste precisamente o artifício de timo diversos recursos à linguagem e de se bene um gesto? Como se explica que, entre todas as ficiar, por exemplo, de uma distinção análoga condutas culturalmente adquiridas, algumas espe àquela que opera a análise do discurso entre o
cialmente sejam suspeitas de afetação? Como, por meio do equívoco comum dos sentimentos, flagra se o índice de uma particular inautenticidade? O ato se torna gesto quando seu único sentido é mos trar-se, quando se dedica primeiro a se fazer com preender, quando se transforma em linguagem. Seu artifício é a ênfase dada a traços pertinentes devido aos quais ele transmite o que quer dizer. Ocorre que, por isso mesmo, contradiz-se o proje-
enunciado assumido e o enunciado citado. Na ordem verbal, com efeito, qualquer que seja o conteúdo literal de um enunciado, propõe-se a questão de saber se o locutor dele se encarrega ou não. Ainda que o discurso seja enunciado na pri meira pessoa, esse "eu"não é necessariamente o do autor. A literatura joga constantemente com o pluralismo subjetivo, com as posições defasadas do sujeito-autor, do sujeito-narrador, do sujeito-perso-
1. Jean-Paul Sartre, Les Mols. Paris, GaUimard, 1964, p. 67.
2 . C f. supra, p.47.
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nagem, com a distância que o escritor introduz en Jean -ABelezaDo Gesto ce-as possibilidades mais finas ou mais extremas. GALARD, slidepdf.com Mas vê-se que ele interessa igualmente às artes tre os dois "eus", quando dissocia autor e narrador, que não são verbais. Ele poderia ser retido pela quando é e não é a personagem à qual empresta uma voz, quando diz "eu" para ser um outro. Esse hipotética definição de uma função estética geral. Seria a conduta o único domínio onde ele não po processo de desdobramento, a literatura o dispara deria transcorrer? Suprimir-lhe a palavra seria, ao infinito incluindo o artifício eventual do pseu dônimo, a prática constante do enunciado comen primeiramente, simplificar abstratamente o com portamento. Sua distinção é uma evidência falha tado e até a vertigem da enunciação que se auto se incita a apreendê-Ios em concorrência. Falar em critica, e mesmo da crítica que vira derrisão. Ora, vez de se calar, dizer isso em vez daquilo, dizê-Io o teatro e o cinema sabem igualmente provocar tal assim e não de outro modo, são maneiras diversas diferenciação. Eles contêm a linguagem, é verda de se conduzir. A linguagem é um dos modos do de, como uma de suas componentes, mas não é comportamento. Ora, a prática da mentira osten sempre por sua presença stricto sensu que criam uma enunciação distanciada. Um paródico, espetáculo,irôni en quanto tal, é suscetível dos modos co, humorístico; nenhuma necessidade de diálogo nem de voz aff para recorrer, se preciso, a uma compreensão de segundo ou de terceiro grau. A pin tura presta-se também a essa defasagem. Quando a pop art apareceu, colocou-se a questão de saber se sua relação com a realidade contemporânea que ela exibia era de fascínio, de afastamento ou de derrisão. Que a incerteza tenha por muito tempo
siva, por ou exemplo, seja ela de ou cortesia, afetuosa lúdica, introduz na cinismo própria conduta um desvio idêntico àquele que constitui a condição es sencial das artes de ficção. Ademais, consideran do-se até o mutismo do gesto, é preciso reconhecer que ele não é refratário a esse processo de desdo bramento, pois este opera no mímico. Embora pa reça pouco verossímil que uma conduta saiba citar uma outra, que possa representar um ato que não seria o seu, é isso, contudo, o que acontece. Uma
persistido prova ao mesmo tempo que o decifra mento da intenção última é menos fácil em pintu ra que em literatura, mas que a distinção entre esse deciframento da enunciação e a leitura do enunciado é aí igualmente válida. Da mesma ma neira, ainda, a música, ao fazer sucederem-se, numa obra, movimentos diferentes, engendra uma enunciação irredutível aos enunciados que ela de signa alternadamente. Assim, o fenômeno do des dobramento subjetivo encontra talvez na lingua
breve mímica se assinala por vezes não apenas como a paródia dosgestos de outrem, mas comoum recuo tomado em relação a si mesmo. Por estreita que pareça a experiência que se pode aqui alegar, ela basta para afastar um obstáculo de princípio e abre caminho para uma estética cuja tarefa seria provocar metodicamente a multiplicação e o enri quecimento de experiências da mesma ordem. Afastar de si mesmo os próprios gestos, mos trá-Ios, designá-Ios pelo que são, pelo que dizem ou
gem o campo privilegiado: o que o torna mais fa cilmente analisável, comotambém o que lhe ofere-
pelo que fazem, administrando, aquém de seu enunciado, o implícito do sentido que a eles se dá.
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Por exemplo, o gesto de um dândi do século a atividade profissional. Uma forma de vestimen GALARD,Jean -ABelezaDo Gesto -slidepdf.com passado: um rico financista deixa cair uma moeda ta, um estatuto profissional, fazem sentido distin e se abaixa para procurá-Ia, d'Orsay se agacha por sua vez e, para ajudar na busca, ilumina um can
guindo-se das outras formas, dos outros estatutos simultaneamente concebíveis; eles identificam o
to queimando uma cédula3. A arte da conduta começa pela emancipação dos gestos, quando eles são emitidos sem que se deva, neles, identificar-se. Fica, assim, invalidada a alternativa do natu
sujeito que os adota ou os suporta, diferenciando se das virtualidades que ficam excluídas. A reto mada, em sucessão rápida, de possibilidades que são, quanto ao sentido, excludentes umas das ou tras desregula, portanto, as bases da comunicação, perturba a imputação das identidades. Ela provoca o retraimento do sujeito da enunciação e a liberta ção dos enunciados anônimos. Tendo Ruskin, Burne Jones e William Morris convidado seus compatriotas a passar de uma es tética pictórica a uma estética estendida a toda a vida, desenvolveu-se na Inglaterra, por volta de 1875, um esteticismo do mobiliário e da roupa. "Então se viu passear em plena luz do dia moci nhas vestidas com roupas da Idade Média, e du rante os serões essas mesmas mulheres apareciam em vestidos copiados de quadros antigos, com lí rios nos cabelos". Emilien Carassus, que cita os fa tos segundo Paul Bourget, acrescenta por sua vez: "Encontraremos mais tarde, na França, afetações igualmente estranhas, expostas em Maftresse d'esth?des, de Willy, por exemplo"5. Poder-se-ia falar em "afetação" se essas estra nhas roupas fossem usadas numa festa popular, num desfile de carnaval? Certamente não. Está convencionado que nessas circunstâncias a gente se disfarça. Por que o fato de passear com traje
ral e do factício. Não há como suspeitar do gesto de insinceridade quando este não pretende mais traduzir as disposições interiores nem os objetivos pessoais do sujeito que o inventa. Produzir gestos que se evita endossar. Essa representação da conduta, longe de submeter-se às críticas que visam a "mentira" do espetáculo, sus pende, ao contrário, a pertinência de toda distin ção entre o verídico e o enganador. Esse franqueamento dos gestos e a diversifica ção das condutas que dele resultaria parecem ter como condição que se saibam empregar os índices mais capazes de significar a distância subjetiva. Amplificação paródica, por exemplo, a propósito da qual seria inepto perguntar se ela é ou não since ra. Além disso, sucessão, numa mesma conduta, de gestos entre os quais se supunha que se escolhes se4, como quando se muda o estilo da vestimenta,
3. Emilien Carassus,
L e M yt he d u d an dy , P ar is , A . C ol in , 1 97 1, p . 1 23 .
4 . R oma n J ak obs on d efi ne d a s eg ui nte ma ne ir a a f unç ão p oét ic a: a c omb in aç ão, e m c on tigü id ad e, n a c on st ru ção d e u ma s eq üê nc ia, d e t er mos c on c or re nt es , p er te nc en te s
a u ma s ér ie vir tu al, e qu ivalen te s e nt re s i s ob u m
asp ec to e d if er en te s s ob out ras r elaç õe s. " Afu nç ão p oé tica p roje ta o p rinc ípi o de e qui va lên ci a
do e ix o da s el eç ão
so br e o e ix o d a c om bi na çã o. "
"Linguistique et poétique", Essaia de linguistique générale, Paris, Minuit, 1 96 3, p . 2 20 .
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5. Emilien Carassus,Le Sno bi snte e t l es l eU re s fra nç ai se s d e P aul B ourg et à Mareei Proust, P ar is , A. C olin, 1966, pp. 126-127.
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"próprios" gestos, quando aquele que fala é dispen medieval é percebido de forma tão diferente GALARD, num Jean -ABelezaDo Gesto -slidepdf.com caso e no outro? sado de apossar-se de cada um dos enunciados que formula?). Pelo disfarce se exibe a diferença entre o ser Estreitamente imputados ao sujeito que os de empréstimo e a pessoa real (esse contraste faz emite, os gestos têm uma coerência pobre. Fran rir). Na afetação, ao contrário, gostar-se-ia de dis queados desse assinalamento único, não só seu re simular os artifícios de uma identidade usurpada gistro se estende (como n o teatro, onde nem o au (essa confusão provoca indignação). Pobreza de tor, nem o diretor, nem o ator são pessoalmente nossos jogos: não conseguimos admitir que entre o obrigados a assumir os gestos que mostram), como disfarce e a afetação possam se estender todos os também se torna possível conceber condutas com graus da mudança de identidade. implicações divergentes. Os gestos subversivos Quando Emile Faguet tomava o ônibus com mais matreiros extraem sua força da hábil relação um uniforme de acadêmico, ele nem estava disfar que mantêm com a intenção bem pensante: é tão çado nem era afetado. impossível acreditar que eles a partilham quanto Vachépelas mudava uniforme ces estabelecer que zombam dela. Acontece o mesmo sar; Jacques ele passeava ruas deora vestido sem de avia com o gesto, já citado, daquele jovem americano dor, ora de hussardo. À diversidade sucessiva ele que, em Santiago do Chile, lavava a bandeira de preferia por vezes uma pluralidade simultânea: seu país de suas nódoas simbólicas; ou ainda da primeira manifestação pública do Movimento de De forma alguma abstencionista, é evi dente, ele arvora um u ni fo rm e a dmi ra ve lm ent e t al ha do e d ivi di do a o m ei o, un if or me d e Liberação Feminina: no dia 26 de agosto de 1970, a lgu m m od o s int ét ic o qu e é , de u m l ado , o do s e xé rc it os " al ia dos ", uma dezena de militantes vão ao Arco do Triunfo d o o ut ro o d os e xé rc it os
" in im ig os"
su pe rf ic ia l
c om gr an de
t al ab ar te s
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e c uj a un if ic aç ão
c la ro s, c art as d e e st ad o-m ai or
t ot al me nt e
r ef or ço d e bo lso s e xt ern os , e vo lt as a pe rt ad as
ços de seda com todas as cores do horizonte'
de l en
.
As artes da linguagem autorizam o sujeito fa lante a confundir sua identidade, e até a eclipsar se enquanto prosseguem osjogos desencadeados. A arte das condutas deveria admitir uma distinção semelhante entre o sujeito agente (suas intenções, suas convicções) e os gestos que ele propõe, paro dia ou cita (Por que seria preciso que sejam seus 6. André Breton, Anthologie de ['humour noir; Paris, Ed. du Sagittaire, 1940,
p.234.
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e ali depositam um ramo em memória da "mulher do soldado desconhecido". Nessas condutas aberta mente dúbias, o alcance ofensivo não é dissociável do respeito literal concedido ao emblema ou ao ri tual, como se o mesmo gesto implicasse ao mesmo tempo dois sujeitos, de modo que as forças da or dem, que não deixam de intervir, vão se expor ao ridículo de não poder sancionar um sem desautorar absurdamente o outro. Tzvetan Todorov distingue, em Barthes, o ca ráter tradicional das afirmações (o conteúdo dos enunciados, que reitera notadamente os temas da intransitividade do texto, da pluralidade de suas interpretações) e o modo novo da enunciação: "ne-
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Casa-se com velas nos castelos alugados por uma noite, ao nhum discurso é inteiramente assumido, nem to GALARD,Jean -ABelezaDo Gesto -slidepdf.com som das violas ou das flautas-doces. Em Evron, em Mayenne, os talmente condenado; sempre se ouve finalmente habitantes se ves tem com roupas do século X para ir ao mercado, uma palavra por procuração"7. Como afirma que festeja seu milênio este ano . .. A qui e ali, os campones es s e en Barthes sobre si mesmo, "ele evolui ao sabor dos contram aos domingos para muti rões à moda antiga, onde ceifam
autores de que trata", sem aderir ao que afirmam, sem se manter tampouco à distância desses outros discursos: ele queria empregar "aspas incertas", "parêntesis flutuantes". Essa enunciação inédita tem por efeito dispersar o "sujeito". Quem fala? A "pessoa" se encontra "se não anulada, pelo menos ilocalizável". Todorov vê em tal concepção da escri tura a marca da modernidade, que consiste em "re conhecer o outro diferente de si mesmo, o outro em si mesmo, em inaugurar a era da alteridade e da exterioridade generalizadas". Ora, o que pode a escritura, não estará o ges to, por sua vez, em condições de tentar? Parece até que a arte dos gestos nesse ponto precedeu a ex periência literária. Não será a relação que o ator mantém com sua personagem, há muito, rigorosa mente idêntica à que Barthes institui com os au tores de que trata? O paradoxo do ator é que ele não adere à personagem que faz viver. Ele lhe
amarrando
as gavelas
à mão, formando
t ri go c om o m ang ua l,
s uan do ba st an te ,
c ad ei ra s n os tá lgi ca s
d os ra paz es
uma roda para bater
o
t orc en do -s e d e ri r d as b ri n
da regiãoB•
em que é o teatro inteiro que se transporta para fora da cena que lhe é destinada, como nas cele brações dos costumes de outrora.
Semelhantes à festa, ao jogo e ao rito - se melhantes por isso igualmente ao teatro -, essas celebrações nostálgicas preenchem um tempo de finido; são momentos separados, parêntesis na vida. Mas não é difícil imaginar que esses parên tesis, como os de Barthes, podem se tornar "flu tuantes" e que, por exemplo, os hábitos da refei ção entrem, cada vez com mais freqüência, na era da alteridade. Bourdieu quer evidenciar, nas di ferentes maneiras à mesa, a filosofia prática de cada classe social. É um estilo de vida que se ma nifesta no "comer-à-vontade" das classes popula res, em que a refeição é colocada sob o signo da abundância, da liberdade, da familiaridade, da "sem-cerimônia". A burguesia, ao contrário, cóm sua preocupação de "comer nos conformes", mos tra o valor que atribui à contenção e ao comedi mento, à cerimônia social, à estilização da condu Evidentemente, Bourdieu não ignora que a ta9. luta pela elevação social, portanto o sobrelanço na distinção e a volta, supremamente distinta, aos costumes populares tornam cada vez mais
7. Tzvetan
8 . J os et tt e A li a, ( 'L a C ou rs e a u b on v ieux t emps ", Le Nouvel observateur,
empresta comoBarthes "empres ta sua vozseu aoscorpo, outrosassim sem se fundir com eles". Será essa relação transportável para fora do teatro? Talvez fosse conveniente afastar os casos
Todorov, "La Réflexion
sur Ia littérature
dans
Ia France
contemporaíne", Poétique (38): 141·147, 1978. A análise dessa "polifonia" do texto é desenvolvida no livro que Tzvetan Todorov dedicou a Bakhtin: M ik ha rl B ak ht in e, l e p ri nc ip e d ia lo gi qu e, P ar is , S euil, 1981.
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(826), 6-12 set. 1980.
9 . Pierre B ou rd ieu, L a Dis tinc tion , M inuit, 1979, pp. 215-222.
c ritiqu e B adale du jugem en t,
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Paris,
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difícil imputar qualquer etos a uma classe defi se abre ao imaginário. Entretanto, a cisão subje GALARD,Jean -ABelezaDo Gesto -slidepdf.com nida. Sua reflexão negligencia todavia, o mais tiva é praticável até mais perto de si: na vida das vezes, os casos de empréstimo, a infração ao profissional, como Sartre demonstrou com sua hábito, a migração dos costumes, todas as práti célebre descrição do garçom de café que represen cas que consistem em imitar, em experimentar, ta ser garçom de cafPo; também na vida senti em partilhar o etos do outro. mental, em que as condutas de sedução consis I Sem dúvida, esses fenômenos ainda não atin tem em se atribuir, com toda a gama das coni giram um grau de freqüência estatística suficien 1 vências e dos papéis codificados, o amor que ain te para que a sociologia se interesse por eles. A da não se experimenta; na própria vida amorosa estética, em contrapartida, deve talvez reconhecer e no erotismo, que inventam, como jogos, mitolo neles a operação de uma categoria suscetível de se gias secretas ou figuras intercambiáveis. Se fosse mais correntemente aceito que nossos tornar para ela essencial: a dispersão subjetiva. A arte de se comportar poderia então se de gestos não se destinam diretamente a exprimir finir como o exerCÍcio assíduo do afastamento de nossas convicções íntimas, nossas intenções pro si mesmo. Fundando-se no exemplo que o teatro fundas, nossos pontos de vista pessoais, admitin oferece constantemente, mas que não é o único a do-se que com eles jogamos como se fossem uma oferecer - pois a pintura, a música ou a litera linguagem e que eles devem servir para citar as tura implicam igualmente a expatriação afetiva, atitudes que queremos ressaltadas, ser-nos-ia a experimentação emocional, o jogo dos senti dado por acréscimo poder relacioná-Ios também, mentos e das idéias que são experimentados sem de vez em quando, de maneira inesperada e bela, que se deva aderir a eles -, esta arte consistiria a nós mesmos, ao sabor de uma coincidência que em manejar, em todo comportamento, o índice de é preciso prontamente captar. uma íntima distância. Assim como é lícito nutrir O escultor Manolo entra, num sábado à noite,
I 1,
se hoje "sem-cerimônia" e comer amanhã conformes", ou tomar emprestados os ritos"nos da refeição japonesa, depois os de uma refeição afri cana, é possível igualmente experimentar os ges tos de uma fé que não se possui, permanecer, por exemplo, sentado por muito tempo numa mesqui ta até que se se torne outro, como a gente se tor na outro ainda escutando um concerto de órgão numa igreja barroca. O jogo da alteridade fica sem dúvida facilitado, nesses últimos casos, pela
na igreja da Rue des Abbesses pegando esmoleira colocada diante do altare, da Virgem,uma co meça a fazer a coleta murmurando com uma voz finória: "Para os pobres, por favor". Os fiéis dão cada um seus dois tostões. Manolo, depois de se ajoelhar e se persignar, vai-se embora com a cole tall. Ora, de fato, ele era paupérrimo.
distância que separa pelo a cultura origemque e a aqui cul tura de empréstimo, amplodeespaço
11. Pierre Labracherie, L a V ie q uo ti di en ne
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10. Jean-Paul Sartre, VÊtre et le néant, Paris, Gallirnard, 1943, pp. 98-99. siécle,
d e i a b ohe me l it té ra ire
a u X IX '
Paris, Haehette, 1967, p. 230.
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Num concurso do conservatório, uma atriz sem dade como contrapartida de sua interioridade ba -slidepdf.com futuro, entrando em cena para representar aGALARD, som Jean -ABelezaDo Gesto nal: criadores de gestos, levando a discrição pes bria Eriphile de Racine, pronuncia o início de sua soal a ponto de fazer de seus afetos e convicções tirada olhando para ojúri: "Não os constranjamos, próprias o jogo secreto de sua fidelidade. Quando Doris, retiremo-nos". Tinham-lhe repetido que ela se retiram, o gesto inteiro de sua vida tem a den era ruim, que não tinha voz, traquejo, tempera sidade de uma obra. O enigma é completo. Tudo é mento. Ela diz o texto de Racine, o texto trágico, possível. Nem mesmo se exclui que tenham sido a grande tirada tão bem adaptada a sua ínfima "sinceros". situação: "Não os constranjamos, Doris, retiremo nos", deixando o teatro para sempre12• A relação ambígua que um autor mantém com sua obra, a distância mais ou menos marcada que ele opõe, não só a suas personagens, mas igualmen te ao sujeito virtual encarregado da função de narrador - como ao sujeito latente que o tom, o gênero, o registro empregados implicam e até ao tema que deve assumir o sentido global da obra _, todo esse jogo das distinções reivindicadas, denega das, reafirmadas constitui o espaço próprio da lite ratura e, por extensão, da invenção artística. A pre sunção de "insinceridade" seria, portanto, aqui vã. Mas, na medida em que nenhuma adesão é a priori requerida entre a pessoa do autor e os pontos de vista que eleapropriar-se encena, torna-se lícito, para ele, opor tunamente, intimamente deles. Face aos protestos habituais de sinceridade, que nos deixam indiferentes, tão tristemente pre visível é a vida interior de nossos semelhantes, quem nos dera encontrar amiúde verdadeiros ar tistas da conduta, mais preocupados em nos dar um prazer teatral do que em exigir nossa intimi-
1 2. 37-38. S uz an ne
B er na rd , L e T em ps des c igales , Paris,
J. J.
P au ve rt , 1 97 5, p p.
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ESTÉTICAS
"É o gesto que conta": fórmula benévola pela qual se desculpa a modicidade de um dom, a me diocridade de um serviço prestado. Aprecia-se a qualidade do gesto, na falta de seus efeitos. Justi ficação ambígua, que lembra e ao mesmo tempo nega que se esperava um resultado mais substan cial. Agir pela beleza do gesto, tal é o recurso que se oferece aos militantes das causas perdidas. Quando o fracasso é certo, resta ao menos o estilo. A falência é inevitável, mas não lhe faltará distin ção. Sucumbamos com topete. Se a morte é nosso destino, toda conduta não é mais que um gesto: apliquemos aí as formas e concluamos na beleza. A idéia do gesto, quando é compreendida no sentido do espetacular, do intransitivo e do simbó lico, induz tal estética do brilho e reatualiza a ideologia romântica que a subtende. Apesar de a assimilação da beleza e da inutilidade declarada ter caído em desuso nas artes refletidas, quando se
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trata da conduta da vida, a estética espontânea e os propósitos que se extirpam continuam a ade que a rege faz ressurgir essa referência longínqua. GALARD,Jean -ABelezaDo Gesto nr -aslidepdf.com sI. Pode-se, entretanto, conservar a idéia de ges Segundo a estética derivada do romantismo, o to, entendê-Ia de uma maneira totalmente diver campo aberto ao gesto se estende até dois extre sa - como a possibilidade de introduzir a alteri dade em si - e conceber um comportamento que seria doravante capaz de engendrar um sujeito plural em vez de exprimir uma pessoa constituída. Segundo Philippe Audoin, o surrealismo, que é "dotado de violência, é igualmente algo livre; uma postura, um gesto rápido, preciso. As justificativas ideológicas existem, podem formular-se, mas o que conta ao final, enfim, é a atitude, é o gesto"l. Uma vez mais, como na estética do simbólico, "é o ges to que conta". Mas a fórmula mudou de sentido. Enquanto o despeito se encontrava há pouco com pensado pelo brilho do gesto, agora, a intensidade, a convicção, a própria violência, coexistem com o que o gesto pode ter de livre. A paixão é compatí vel com a distância interior, a emotividade e a ten são com a liberdade, o sentimento do trágico da existência com o jogo soberano. É possível ser sé rio sem se levar a sério, conter uma resolução ina balável sem ser tomado por ela. Ser outro em si mesmo resume-se nisto: não ser desertado, nem possuído, mas exatamente o que se chama ser "ha bitado". O gesto rápido e preciso se destaca de seu au tor, desata-se do sujeito, como se usasse aspas, como se estivesse enunciado com essa elocução ní tida, bem articulada, que têm os atores. No desa jeitamento e no balbucio, os gestos que se tentam
mos aparentemente opo.stos: a forma global de uma vida (o grande gesto que constitui um desti no individual) e o instante privilegiado (o breve momento em que o gesto, auto-suficiente, acede a um estatuto mítico). Esses pseudocontrários têm em comum definir-se pela intransitividade: em ambos os casos, o gesto é uma totalidade fechada, sem finalidade externa, e por isso mesmo, simbó lica. A insatisfação estética torna-se então alta mente provável. O destino não tem o rigor que se esperava, sua linha não é tão nítida quanto se de sejava, contingências demais confundem-lhe o tra çado. Quanto ao instante, ele só está inteiro no so nho. O momento vivido é transitivo, captado de an temão pelo futuro próximo, já empenhado no tra balho em curso ou na tarefa vindoura. Supondo-se que se possa extrair do fluxo costumeiro algum instante verdadeiro, a continuidade comum da existência, ao contrário, parecerá ainda mais ba nal e sua maisatividade morna. Assim, para queinu le vava de poeta até Mallarmé, a mais pura tilidade e que devia circunscrever a profissão que o fazia viver, nas palavras de Valéry, "em não sei qual reserva e em qual região miserável e servil de si mesmo"2.A menos, evidentemente, que o instan te radical seja o do último gesto (como n o caso da2. P au l Valér y, " Sort e d e p ré face ", Variété,
Pa ri s, Ga ll ima rd,
1 95 7, c al .
Pléiacie, tomo l, pp. 682-683. "Mas esse admirabilíssimo doutor em letras s ub lime s q ue d is pe ns ava à s ua volta liç õe s d e p ur ez a e sp ir it ual, q ue n os 1. Philippe Audoin, "Le 8urréalisme P ar is , Mou ton, 1968, p . 456.
et lejeu", Entretiens
SUl'
le surréalisme,
o fe re ci a a m ei a v oz u ma d out ri na de f or ma de li ci os a qu e i ns pi ra va u ma espécie de mitologia generalizada,
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sofria cada vez menos silenciosamen-
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siasmo OU frenesi). Então, o ato e a intenção pres quele doente a quem é vetado o uso do álcool e que GALARD, Jean A Beleza Do Gesto -slidepdf.com crita fazem um só corpo. Anula-se a liberdade majestosamente se mata num jantar regado a interior, teria dito outrora a moral. Nenhum espa champanha; como também Dom Juan, em outro ço disponível - deveria dizer a estética -, nenhum banquete). O gesto intransitivo, quer seja conquis tado contra o prosaísmo que o limita quer sobre intervalo, nenhum jogo por meio do qual a exterio ridade e a alteridade do gesto se possam mostrar. venha como um último desafio, espalha ao seu re Essas duas concepções não esgotam certamen dor o definhamento e só se realiza plenamente na morte. te as possibilidades abertas à estética das condu tas. Não está excluído que se possa orientá-Ia numa Em contrapartida, se o gesto é compreendido outra direção, reservando à noção de gesto um como a possibilidade de introduzir um afastamen papel muito menos favorável. É possível, além dis to de si em relação a si, não há atividades ou mo so, que o próprio gesto seja suscetível ainda de al mentos privilegiados. Toda ocasião se presta a essa guma outra compreensão. O que é exemplificado defasagem íntima. Desvio francamente aberto às pelo teatro não é ap"enas o simbolismo dos atos vezes (na paródia, na ironia, no jogo), às vezes arrancados aos encadeamentos pragmáticos, nem imperceptível (quando se exerce uma profissão o franqueamento dos gestos desatados do sujeito, com escrúpulo e desprendimento; sem amargura é também o desenvolvimento de movimentos que nem indolência, ainda que sem zelo; interessando vão até o fim de si mesmos. Comparados aos dos se por ela, mas recusando-se a investir nela a to comediantes, nossos gestos - no sentido físico do talidade de si mesmo). termo - parecem comfreqüência hesitantes, qua Assim se extingue a espera ansiosa dos mo se sempre contraídos; eles são muito curtos; emi mentos de exceção. Mas não resulta disso que tem involuntariamente sinais contraditórios. Os de qualquer situação seja tolerável. À vontade de dis um ator são mais amplos, mais resolutos. Da mes tanciamento subjetivo se opõem os sistemas polí ticos, familiares que, não contentesreger com regrar religiosos, a literalidade da conduta, pretendem o estado de espírito com o qual se observam suas injunções (como essas empresas que utilizam em proveito próprio a mística do dinamismo, que não se limitam a distribuir as tarefas, mas exigem que elas sejam cumpridas com convicção, com entut e a c or vé ia d e p rofe ss ar out ra c oisa e a d ilap id aç ão d as h or as p re cios as que devia sacrificar ao seu dever i nferior"
ma forma, uma teatral geralmente uma necessidade queação se desenrola até as suasagita realiza ções extremas, enquanto nossos atos se esgarçam no inacabado. Por conseguinte, tomado no sentido figurado, o gesto, instruído pela experiência tea tral, poderia se definir assim: uma conduta dirigi da por uma determinação irreversível, que prosse gue até seu termo; o contrário das veleidades, das meias-medidas. Essa definição, com toda certeza, difere amplamente daquela que acaba de ser desen
[. .. ] I'Todos os anos, a aproxima-
ç ão d of im d as f ér ias e nven en ava n ele a e moção d om ome nt o s up re mo d os funerais do verão."
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volvida: afastamentoo grande de si mesmo, a distância subjetiva ocontrariam movimento no qual
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seria apenas contrário à convicção da maioria dos se entra de cabeça (nem por isso, porém, são con artistas, mas resultaria sobretudo emjulgar equi trários exatos; algum recuo em relação a si mesmo GALARD,Jean -ABelezaDo Gesto -slidepdf.com vocadamente sua influência real em domínios onde é compatível com o fascínio dos limites). Ela se ela é perfeitamente dispensável. Para levar em distingue igualmente da definição que foi anterior mente considerada: a atração pelo espetacular e conta o caráter experimental e exploratório que ela espontaneamente se atribui, e para não desconhe pelo simbólico é estranha à paixão que se lança até cer, ao mesmo tempo, o que pode haver de especí seu fim, preocupada demais com aquilo que ela ficona atividade estética, poder-se-ia imaginar que quer para se preocupar com o que se parece. a arte é o lugar privilegiado de uma pesquisa que O objetivo desta reflexão não consistia em lan visa a prover a conduta cotidiana (tanto quanto çar os fundamentos da estética das condutas: não aquela que não é de modo algum cotidiana) com se acreditou que devesse haver, nesse domínio meios ou conceitos nos quilis ela precisa muito se como tampo'Uco em outro qualquer, uma estética inspirar para se tornar menos insípida, pobre e única. O propósito não era sequer examinar exaus feia. tivamente os diversos sentidos que o gesto pode as sumir: retiveram-se dois deles, que não são os úni cos possíveis, como acabamos de ver rapidamente. Tratava-se, antes, de testar um dispositivo analógi co,de apreciar-lhe a fecundidade, na esperança de que ele prometa prolongamentos indefinidos. Pres supôs-se que as artes instituídas podem fornecer o exemplo de certos esquemas ou modelos3 que são transponíveis até para a conduta geral da vida. A arte atual pede uma redefinição de sua fun ção: se a questão for julgada segundo a abundân cia das obras deliberadamente agressivas, o sim ples deleite deixou de representar uma justificati va suficiente. Todavia, designar-lhe um fim com pletamente exterior, colocando-a, por exemplo, a serviço de causas consideradas prioritárias, não
Terá essa operação analógica, essa transposi ção do ato artístico para o comportamento geral encontrado aqui uma aplicação probatória? O au tor deste exercício não faz questão de defender sua hipótese, nem de se retratar. Um gesto pedia que fosse tentado. Mais do que um autor, era-lhe ne cessário um ator. Uma breve peça em dois quadros devia ser encenada. O gesto foi cumprido. Que o entendam como quiserem.
3. A h ip ót es e d e u ma l'art ialização" d a e xp er iê nc ia, d e u m e sq ue matism o s oc iotr an sc en de nt al
vin do d a art e, c on st it ui obj et o d e u m e st ud o m uito
erudito e muito mais amplo que o presente
ensai o por parte de Alain
Roger, N us e t p a ys ag es. Es sa i s ur I a f on ct io n d e l 'a rt , Paris, Aubier, 1978. A t es e de A la in R og er é discutida em Jean Galard, "Reperes pour l'élargissement de l'expérience esthétique", Diogene, (119), 1982.
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