FURET, François. A Oficina da História. 1º v. (Trad. Adriano Duarte Rodrigues) Lisboa, Gradiva, 1986, p. 81-98. Da história-narrativa à história-problema *
A história é filha da narrativa. Não se define por um objecto de estudo, mas por um tipo de discurso. Dizer que estuda o tempo não tem de facto outro sentido que dizer que dispõe todos os objectos que estuda no n o tempo: fazer história é contar uma história. Contar é, na realidade, dizer «aquilo que aconteceu»: a alguém ou a alguma coisa, a um indivíduo, a um país, a uma instituição, aos homens que viveram antes do instante em que se narra e aos produtos da sua actividade. É restituir o caos de acontecimentos que constituem o tecido de uma existência, a trama de uma vida. O seu modelo é muito naturalmente a narrativa biográfica, porque conta algo que se apresenta ao homem como a própria imagem do tempo: a duração muito nítida de uma vida, entre o nascimento e a morte, e as datas referenciáveis dos grandes acontecimentos entre esse início e esse fim. A divisão do tempo é portanto po rtanto aqui inseparável do carácter empírico do «assunto» da história. Uma história «de França» ou de qualquer outro país obedece no fundo à mesma lógica: não pode, por definição, começar senão pelas origens da França, contar em seguida as fases do crescimento e da aventura nacional por meio de cortes cronológicos. A única diferença está em que uma tal história permanece aberta ao futuro: mas a narração * Diogelle, n.O 89, «Problemes des sciences contemporaines», Janeiro-Março de 1975. 81
A OFICINA DA HISTÓRIA do passado, tesouro da nação, tem igualmente a responsabilidade de . traçar esse futuro e, por conseguinte, de fechar o tempo. A narrativa histórica obedece portanto a um recorte do tempo que se inscreve no dado bruto da vivência: no fundo, fixa as recordações dos indivíduos e das colectividades. Conserva vivo aquilo que escolheram do seu passado ou simplesmente do passado, sem desfazer nem reconstruir os objectos desse passado: fala de momentos, não de objectos. Mesmo quando trata ou quer tratar de «civilizações», esse tipo de história não escapa à regra: quando Voltaire compara o século de Péricles ou de Augusto ao de Luís XIV, a encarnação concreta dessas sucessivas grandezas indica bem que está a comparar períodos e não conceitos. Essa é com certeza uma das razões pelas quais esta história foi principalmente - mas não unicamente - biográfica ou política. Na vivência colectiva da humanidade aquilo que é mais fascinante para as testemunhas e mais disponível para a narração é a aventura dos grandes homens e dos Estados. Não nos devemos admirar de que a história se tenha desenvolvido, na Antiguidade grega e romana, e depois na Europa Moderna, como anais do poder e da guerra. O recorte narrativo compassou os infortúnios e as vitórias dos povos - os grandes momentos da história. É que o acontecimento dessa história é um momento. É isso mesmo que o caracteriza por excelência: é aquele ponto de tempo ímpar em que se passa qualquer coisa que não é redutível nem àquilo que houve antes, nem ao que virá depois. Essa «qualquer coisa», ou seja, o facto histórico revestido da dignidade de acontecimento, não é nunca comparável, falando com todo o rigor, a um facto anterior ou posterior, dado que é o seu carácter empiricamente singular que lhe dá a sua importância: a batalha de Waterloo ou a morte de Estaline aconteceram apenas uma vez, não se compararam com nenhuma outra bata, lha, com nenhuma outra morte, e transformaram a história do mundo. No entanto, o acontecimento, tomado em si próprio, é ininteligível. É como uma pedra que apanho na praia: privada de significação. Para que a adquira, tenho de integrá-la numa rede de acontecimentos, em relação aos quais vai ganhar um sentido: é a função da narrativa. Waterloo tem um sentido em relação a uma história que conte a vida de Napoleão, o Primeiro Império ou a rivalidade franco82
A HISTÓRIA HOJE -britânica do século XIX, por exemplo. A morte de Estaline ganha importância na história da Rússia no século XX, na do comunismo internacional ou noutra qualquer constelação cronológica de factos que se possa imaginar. O que significa que, no interior da histórianarrativa, o acontecimento, apesar de por natureza ser único e não comparável, extrai a sua significação da sua posição no texto da narrativa, ou seja, do tempo. Não sendo ele um objecto intelectualmente construído para ser estudado, não pode portanto receber a sua significação da análise das suas relações com outros objectos comparáveis, ou mesmo idênticos, no interior de um sistema. Pertencendo à ordem do vivido, ao domínio «daquilo que aconteceu», não pode ser organizado ou mesmo simplesmente baptizado a não ser em relação à significação externa e global do tempo histórico que tem por função medir. medir. Toda a história-n história-narrat arrativa iva é uma sucessão sucessão de acontecimentos acontecimentos-ori -origens, gens, que podemos chamar, se quisermos, de história evenemencial; toda a história evenemencial é uma hist histór ória ia tele teleol ológ ógic ica: a: só o «fim «fim»» da hist histór ória ia perm permit itee esco escolh lher er e comp compre reen ende derr os acontecimentos com que ela é tecida. Esse «fim» pode ser diferente segundo os historiadores e os assuntos que escolheram para contar. Foi envolvido durante muito tempo pela apologética religiosa ou pela edificação moral, que hoje em dia passaram de moda. Não se pode dizer o mesmo da exaltação do poderio ou da consciência nacionais, que continua a ser uma das grandes justificações da história-narrativa, depois de ter sido, sem dúvida, o seu impulso fundamental: todos os povos precisam de uma narrativa das origens e de um memorial da grandeza que possam ser ao mesmo tempo garantias do seu futuro. Assim como a escrita é um poder, os nossos arquivos são recordações ou símbolos do poderio. Mas a história transnacional, geralmente designada como história das civilizações, também não foge a essa imposição inevitável de dar um sentido prévio ao tempo. No mundo laicizado em que vivemos, ela traduz na maior parte das vezes, para além da pertença nacional, a outra grande vivência colectiva da humanidade desde o século XVIII: o sentimento do progresso. Esse progresso tem nomes e rostos diferentes, é por vezes o desenvolvimento dos bens materiais, mais frequentemente o difícil advento da razão, da democracia, da liberdade ou da igualdade. Reco83
A OFICINA DA HISTÓRIA nhece-se nas incertezas desta enumeração ao mesmo tempo toda a ambiguidade das realizações e dos valores que caracterizam o mundo contemporâneo e a impossibilidade, no entanto, de não os evocar como outros tantos fundamentos implícitos de uma certa história: o narrador tem de situar o mundo de que fala no fim do tempo que narra. Em suma, a história-narrativa é a reconstrução de uma experiência vivida no eixo o tempo: reco recons nstr truç ução ão inse insepa pará ráve vell de um míni mínimo mo de conc concep eptu tual aliz izaç ação ão,, mas mas em que que essa essa conceptualização nunca é explicitada. Esconde-se no interior da finalidade temporal que estrutura qualquer narrativa como se fosse o seu sentido. Ora, o que me parece caracterizar a evolução recente da historiografia é o recuo talvez definitivo dessa forma de história, sempre florescente ao nível das produções de grande consumo, mas cada vez mais abandonada pelos profissionais da disciplina. Parece-me que passámos, sem o sabermos ainda, de uma história-narrativa a uma história-problema, à custa de mutações que se podem resumir do seguinte modo: l. O historiador renunciou à imensa indeterminação do objecto do seu saber: o tempo. Já não tem a pretensão de contar o que se passou, ou até o que se passou de importante, na história da humanidade, ou numa parte da humanidade. Está consciente de que escolhe, nesse passado, aquilo de que fala e, assim fazendo, coloca, a esse passado, questões questões selectivas. selectivas. Por outras palavras, palavras, constrói constrói o seu objecto de estudo delimitando delimitando não só o seu período, o conjunto dos acontecimentos, mas também os problemas colocados por esse período e por esses acontecimentos, e que terá de resolver. Não pode portanto escapar a um mínimo de conceptualização explícita: a boa questão, o problema bem colocado são mais importantes - e são mais raros! - do que a habilidade ou a paciência em trazer à luz do dia um facto desconhecido, mas marginal. 2. Rompendo com a narrativa, o historidador rompe igualmente com o seu material tradicional: o acontecimento singular. Se, em lugar de descrever um vivido, único, fugidio, incomparável, procurar explicar um problema, vai necessitar de factos históricos menos vagos do que aqueles que encontra constituídos sob esse nome na memória dos homens. Tem de conce concept ptual ualiz izar ar os obje object ctos os da sua sua inves investi tiga gaçã ção, o, inte integr grá-l á-los os numa numa rede rede de significações e, por conseguinte, torná-los, se não 84
A HISTÓRIA HOJE idênticos, pelo menos comparáveis num dado período de tempo. É privilégio da história quantitativa oferecer a via mais fácil - mas não a única - para este tipo de trabalho intelectual. 3. Ao definir o seu objecto de estudo, o historiador tem igualmente de «inventar» as suas fontes, que geralmente não são apropriadas, tal como estão, ao seu tipo de curiosidade. Pode acontecer, evidentemente, que se lhe depare um arquivo que não só será utilizável tal qual está, mas ainda o vai conduzir a idéias, a uma conceptualização nova ou mais rica. É uma das bênçãos do ofício. Mas geralmente acontece o contrário. Ora o historiador que procura colocar e resolver um problema deve achar os materiais pertinentes, organizá-los e torná-los comparáveis, permutáveis, de modo a poder descrever e interpretar o fenômeno estudado a partir de um certo número de hipóteses conceptuais. 4. Daí a quarta mutação da profissão de historiador. As conclusões de um trabalho são cada vez meno menoss sepa separá rávei veiss dos dos proce procedi dime ment ntos os de veri verifi fica cação ção que que as sust susten enta tam, m, com os constrangimentos intelectuais que implicam. A lógica muito particular da narrativa, do post hoc, ergo propter hoc, não se adapta melhor a esse tipo de história do que a história, também ela tradicional, que consiste em generalizar o singular. E é aqui que aparece o espectro da matemática: a análise quantitativa e os processos estatísticos, desde que adaptados ao problema e judiciosamente conduzidos, estão entre os métodos mais rigorosos de «testagem» dos dados Antes de ir mais longe, deveríamos interrogar-nos sobre as razões desta mutação da história. história. Referem-se Referem-se provavelment provavelmentee a factores factores externos ao próprio próprio conhecimento conhecimento,, como a crise geral do progresso com a qual nos debatemos, que põe em causa o sentido de uma evolução dominada pelo modelo europeu dos séculos XIX e XX, e a própria noção de uma história global e linear. Mas também se referem a elementos internos ao saber, tais como a influência difusa da conceptualização marxista nas ciências sociais, o desenvolvimento muito brilhante brilhante de algumas algumas dessas ciências de objecto objecto limit limitado ado e definido definido (estou a pensar na economia, na demografia, na antropologia), ou ainda o impacte da informática, que perm permit itee cálc cálcul ulos os até até aqui aqui inim inimag agin ináv ávei eis, s, mas mas com a condi condição ção de serem serem prév prévia ia e rigorosamente formuladas as questões 85
A OFICINA DA HISTÓRIA que se quer resolver e as hipóteses que se pretende testar. Sem me querer alongar sobre este vasto problema, gostaria de me limitar ao exame das consequências dessa mutação na nossa profissão e no nosso saber. O arquivo com base no qual se escreve a história passou de uma colecção de documentos a uma construção serial de dados. Com efeito, se o historiador passa a trabalhar com um objecto de investigação conceptualmente claro, e se quer por outro lado permanecer fiel à especificidade da sua disciplina, que- é estudar a evolução dos acontecimentos no tempo, tem de dispor de dados pertinentes (raramente disponíveis enquanto tais) e comparáveis entre si num período de tempo relativamente longo. O facto histórico já não é a irrupção de um acontecimento importante que abre uma fenda no silêncio do tempo, mas sim uma fenômeno escolhido e construído, e cuja regularidade permite que seja referenciado e estudado através de uma série cronológica de dados idênticos, comparáveis a intervalos preestabelecidos. Estes dados já não existem em si, mas como elementos de um sistema formado pelos que os precedem e pelos que os seguem. São menos susceptíveis de uma crítica externa de verosimilhança (através da comparação com outros testemunhos da mesma época) do que de uma crítica interna de coerência (através do estabelecimento da sua comparabilidade no interior do sistema que formam). A operação operação intele intelectu ctual al que constit constitui ui os dados dados é portan portanto to dúbia. dúbia. É precis precisoo primei primeiro ro estabelecer a sua significação, que condiciona a sua utilização exacta. Por exemplo: o hist histor oria iador dor que que se int inter eres essa sa pela pela alfa alfabet betiz izaç ação ão possu possuii ante antess de mais mais,, para para perí período odoss anteriores ao século XIX, enumerações de assinaturas. Mas que significa saber assinar o nome, em relação aos critérios actuais de alfabetização, que são a capacidade de ler e escrever? Ou ainda: o historiador das crises e dos diferentes tipos de crises econômicas na época moderna utiliza em profusão as séries de preços. Mas tem de responder primeiro à seguinte pergunta: que significa o preço? Quais os movimentos, quais os níveis da vida econômica de que é indicador? Uma vez estabelecida a significação dos dados, é necessário constituir a sua série, torná-los comparáveis entre si, decidir da unidade-tempo que cobrem, dos procedimentos estatísticos apropriados, etc. Operações que não são 86
A HISTÓRIA HOJE simplesmente técnicas, mas que implicam em cada fase escolhas metodológicas. Poder-se-á objectar a esta visão do trabalho histórico uma espécie de questão prévia: é que as fontes do historiador são geralmente lacunares, parciais ou simplesmente inexistentes, segundo os acasos da sua conservação. Seja como for, não se trata, entre a história e as outras ciências sociais, de estabelecer uma diferença de princípio mas de situações; existem com certeza pro probl blem emas as,, sobr sobret etud udoo nos nos perí períod odos os recu recuad ados os do pass passad ado, o, em rela relaçã çãoo aos aos quai quaiss desapareceram os materiais de análise. Porém, em contrapartida, é preciso ver que esses materiais não foram constituídos de uma vez por todas no século XIX com o depósito público de arquivos: têm uma elasticidade quase indefinida, e muitos vezes é a curiosidade do historiador, o problema que ele põe a si próprio, que revela a sua existência. O exemplo clássico neste campo é o dos registros de paróquia, que dormiram nas freguesias francesas, durante séculos, até que o nascimento recente da demografia histórica, nos anos cinqüenta, viesse descobrir o seu imenso valor. Por outro lado, o historiador que não encontra, para responder às questões que se coloca, dados dados constit constituíd uídos os direct directame amente nte pertin pertinent entes es pode pode na maiori maioriaa dos casos casos contorn contornar ar o obstáculo com um tratamento prévio desses dados, que lhe permita a sua utilização em segundo grau. Deste ponto de vista, existe sempre uma possibilidade de utilização substitutiva dos dados históricos. Distingui, num artigo recente, três tipos de dados seriais: o primeiro, o mais simples e mais fácil de manejar, é aquele que agrupa os dados quantitativos disponíveis constituídos de modo a responder directamente à pergunta que o investigador põe. É o caso, por exemplo, dos nascimentos, casamentos e óbitos nos registros de paróquia para o historiador demógrafo: deles se extraem, com uma manipulação manipu lação mínima e estandardizada (a técnica da reconstituição das famílias), cálculos clássicos de taxas demográficas. Ou ainda resultados eleitorais para o especialista da história das atitudes políticas. O segundo tipo de fontes inclui igualmente dados quantitativos, mas utilizados de modo substitutivo, para responder a questões completamente diferentes das razões por que tinham sido agrupados esses dados. É o caso, por exemplo, do historiador que utiliza o cálculo dos intervalos entre nascimentos para estudar a difusão da contracepção 87
A OFICINA DA HISTÓRIA e o comportamento sexual das populações do passado. Ou do especialista do crescimento econômico que trabalha com séries de preços. Nestes casos, o problema da pertinência e a eventual reorganização dos dados em relação ao problema posto é o problema central da sua manipulação. Por fim, existe um terceiro tipo de fontes, mais delicado, ainda de manejar: as que não são de natureza numérica, mas que o historiador quer utilizar de modo serial. Para tal, como no caso anterior, deve não apenas estabelecer a sua pertinência e o seu valor valor como como também também reor reorga gani nizá zá-l -las as sist sistem emat atic icam amen ente te em unid unidad ades es conc concept eptuai uaiss e cronologicamente comparáveis. Exemplos: a utilização de contratos notariais de casamento para estudar a endogamia, a mobilidade social, a fortuna ou a alfabetização. Ou a dos testamentos para a análise do sentimento da morte. Assi Assim, m, se se procu procura rass ssee clas classi sifi fica carr as mais mais recen recente tess conqu conquis ista tass da hist histor orio iogr graf afia ia contemporânea pelo grau de rigor das suas realizações, seríamos levados a ter em conta ao mesmo tempo o tipo de conceptualização dos problemas e a qualidade das fontes em relação a esses problemas. Assim, é fácil de verificar que, por exemplo, a demografia histórica histórica ou a história história econômica são deste duplo ponto de vista, vista, e pelo menos em relação relação ao chamado período «moderno», os sectores mais bem apetrechados: primeiro porque beneficiam de conceitos elaborados por disciplinas específicas como a demografia e a economia política, pelo que basta importá-los para a história, com adaptações menores. Depois porque os objectos desses estudos são mais fáceis de abstrair, de definir e de medir do que a maioria dos produtos da actividade humana e porque, de resto, a maior parte dos estados europeus estabelecem e conservam dados desse gênero desde há vários séculos. Contudo, até no interior desses sectores «avançados» da história as coisas não são tão simp simple less como como o pode poderi riam am deix deixar ar pens pensar ar os crit critér ério ioss deste deste palma palmaré rés, s, reti retira rados dos da classificação acadêmica das nossas disciplinas. É que a história, dada a sua natureza indeterminada, tende a extravasar incessamente às aquisições sectoriais desses saberes especializados. A questão que se põe é saber se, e em que medida, ao tomar de empréstimo, ao integrar algumas dessas aquisições, ela terá instituído um conhecimento do passado que se possa classificar como científico. 88
A HISTÓRIA HOJE É preferível, a fim de ter uma melhor visão deste velho problema, raciocinar sobre exemplos, numa ordem crescente de complexidade ou de incerteza. Vou escolhê-los no campo da demografia histórica, que é um dos sectores mais trabalhados pela historiografia franc frances esaa desd desdee há uns uns vint vintee anos anos.. É tamb também ém um sect sector or que apres apresen enta ta faci facili lida dades des excepcionais para a formalização matemática dos problemas. Esse privilégio resulta da natureza específica da disciplina e dos sacrifícios que esta consentiu na definição do seu obje object cto: o: a demo demogr graf afia ia fund fundame ament ntaa-se se inte inteir iram amen ente te num postu postula lado do abst abstra ract ctam amen ente te igua iguali litá tári rio, o, segu segund ndoo o qual qual o nasc nascim imen ento to de Napo Napole leão ão tem tem exact exactame ament ntee a mesm mesmaa importância que o de qualquer um dos seus futuros soldados. Sacrificando assim por hipótese tudo aquilo que haja de peculiar na vida dos indivíduos, ou seja, o essencial da sua histór história, ia, consti constitui tui a humanid humanidade ade histór histórica ica em uni unidade dadess permut permutáve áveis is e mensur mensurávei áveis, s, mediante alguns r tipos constantes e comparáveis de acontecimentos: o nascimento, o casamento, casamento, a morte. Esses acontecimentos, acontecimentos, desembaraçados desembaraçados de todas as significaçõ significações es que as civilizações, cada uma à sua maneira, neles colocam, ficam reduzidos àquilo que têm de mais elementar: o facto, simplesmente, de terem acontecido. Digo propositadamente que são acontecimentos porque não vejo, a priori, o que possa dist distin ingu guir ir deter determi mina nado do fact factoo hist histór óric icoo de out outro ro fact factoo hist histór óric ico: o: por exemp exemplo lo,, um nascimento, mesmo anônimo, de uma batalha célebre. Deste ponto de vista, a distinção usual entre estrutura e acontecimento, entre história estrutural e história factual não pode ter qualquer significação no que diz respeito ao próprio dado histórico; não há factos não factuais e factos factuais. A história é um acontecimento permanente. Mas certas categorias de acontecimentos prestam-se mais facilmente do que outros a uma conceptualização, ou seja, a uma integração num sistema de inteligibilidade: é o caso dos acontecimentos demográficos. De facto, esses dados brutos, e particularmente simples, sobre os nascimentos, casamentos e óbitos constituíram o objecto de um saber específico: a demografia. Podem portanto dar lugar a um certo número de cálculos e análises, que são em si outros tantos objectos préfabricados da investigação histórica: ou seja, objectos, conceitos elaborados por uma disciplina que não é a história - neste caso a 89
A OFICINA DA HISTÓRIA demografia, mas para a qual a história fornece igualmente os materiais primários-, o levantamento de nascimentos, casamentos e óbitos. Por pouco que trabalhe com dados seguros ou verificados - e esse «pouco» é, na realidade, muito porque o problema da verificação das fontes numéricas não é simples -, a demografia histórica contribui com resultados comparáveis aos da simples demografia: o conjunto das relações que permitem medir os elementos de uma dada população e o modo como evoluem. Esses elementos, medidos ano a ano, constituem resultados claros (não ambíguos) e certos. Mas a sua interpretação já não o é. Tomemos uma taxa de mortalidade geral que baixa durante um século, por exemplo na França do século XVIII. É necessário estabelecer, decompor essa taxa por grupos etários, obter nomeadamente a taxa de mortalidade infantil ou juvenil, para saber onde se produz a baixa da mortalidade. Suponhamos que se trata de ganhos espectaculares na sobrevívência dos recém-nascidos (0 – 1 ano): uma série de hipóteses muito diversas pode explicar um fenómeno desse tipo, desde desde a mu mult ltip ipli licaç cação ão das parte parteir iras as nos nos campo camposs até até à tran transf sfor orma maçã çãoo do sist sistem emaa de aleitamento, passando por este ou aquele progresso pontual da medicina numa dada doença infantil. Como escolher, sem ter testado cada uma destas ideias e algumas outras? É verdade que se pode proceder de outro modo é partir, não de uma só variável, mas do conjunto das variáveis de um sistema demográfico. A abordagem é então menos histórica do que propriamente demográfica: utiliza ou constitui um modelo de reprodução de uma população supostamente estável, pondo provisoriamente entre parênteses o factor tempo. Supo Suponha nhamo moss que que toda todass as «cas «casas as»» dest destee mo mode delo lo fora foram m pree preench nchid idas as;; a perg pergunt untaa do historiador subsiste: como evolui o sistema? É possível, evidentemente, pela observação daquilo que se passou ou mesmo pela simulação daquilo que se teria podido passar se esta ou aquela variável do sistema tivesse estado ausente ou fosse muito diferente diagnosticar por onde é que o sistema se modifica; como é que, por exemplo, se desenvolve ou, ao contrário, se retrai. Mas a análise dessas variáveis estratégicas remete, como no caso anterior, para elementos exógenos ao sistema e que agem age m sobre ele. Isto é, para hipóteses de interpretação que saem do campo demo gráfico e remetem imediatamente para con90
A HISTÓRIA HOJE ceitos não constituídos em disciplina científica e para indicadores que na maioria dos casos estão por inventar. inventar. Vejamos o problema da idade de casamento, variável central da regulação demográfica nas populações da Europa pré-industrial, entre os séculos XII e XIX. Sem entrar aqui em pormenores, parece de facto que o recuo da idade de casamento terá sido o instrumento endóg endógeno eno esse essenci ncial al para para um umaa esta estabi bili liza zaçã çãoo da dime dimens nsão ão globa globall dess dessas as popul populaçõ ações es,, submetidas por outro lado a punções externas (fomes, guerras, epidemias) cujo impacte decresce ao longo do período. Como se opera essa regulação? De dois modos. A longo prazo, a elevação progressiva da idade de casamento, até aos seus «níveis» clássicos de vinte e cinco, vinte e seis anos (para as mulheres), anula dez anos de fecundidade possível e diminui assim, independentemente de qualquer acção contraceptiva, o número de crianças por família «completa». Por outro lado, a mais curto prazo, a extrema variabilidade das taxa taxass de mo mort rtal alid idade ade segu segundo ndo os acaso acasoss da conj conjun untu tura ra é equi equili libr brad adaa por por vari variaç ações ões compens compensató atória riass da idade idade de casamen casamento: to: quando quando uma populaç população ão atraves atravessa sa uma crise crise demográfica (qualquer que seja a sua causa), adia os seus casamentos, pelo que recua a idade de casamento. Mal sai dela, pelo contrário, acrescenta aos casamentos adiados outros de cama camada dass etár etária iass mais mais jove jovens ns.. O abaix abaixam ament entoo provi provisó sóri rioo da idade idade de casame casament ntoo desempenha então um papel de recuperação do nível anterior à crise. Deste modo, podemos facilmente conceber e fazer funcionar um modelo demográfico que permita examinar qual a evolução de uma população, permanecendo a todos os outros factores iguais, a partir das variações da idade de casamento: como é que cresce, como é que diminui. Este tipo de simulação permite seguir o papel desempenhado por uma variável num sistema, e até na evolução desse sistema. Mas não as causas que sobre ela actuam. Por outras palavras, permite descrever e não interpretar e muito menos explicar. De facto, basta colocar a questão: quais são os factores susceptíveis de agir sobre um comportamento cultural como o da idade em que se casam as pessoas, para se ser remetido para uma pluralidade pluralidade de interpretaç interpretações ões possíveis. possíveis. A longo prazo, a elevação elevação da idade de casamento, casamento, na Europa clássica, clássica, até aos vinte e cinco, vinte e seis anos, pode ser interpretada interpretada como um ajustamento optimizado da densidade populacional popu lacional aos recursos disponí91
A OFICINA DA HISTÓRIA veis: veja-se Chaunu, Le Roy Ladurie, redescobrindo Malthus! A Europa rica, a Europa «desenvolvida» dos séculos XVII e XVIII, essa franja de alta produtividade agrária que se estende desde a bacia de Londres até à Itália do Norte, passando pelos Países Baixos, a França do openfield, o vale do Reno, encontraria a sua estabilidade em tomo de uma relação do homem com a terra de quarenta habitantes por quilômetro quadrado. Mas esta proposição, mesmo que seja grosso modo verdadeira - o que não é muito evidente, porquanto os dados sobre a produtividade e a produção agrárias desta época são difíceis de manejar -, não diz nada sobre as mediações através das quais foi vivido esse ajuste da idade de casamento. Será que se trata - na medida em que não é acompanhado de um aumento dos nascimentos ilegítimos - de uma mais perfeita interiorização, durante urna adolescência mais mais longa longa,, das regr regras as de auste austeri rida dade de sexu sexual al?? Ou deve devere remo moss ver ver aí sobr sobret etud udoo um umaa adaptação de tipo socioeconómico, de tal modo que os filhos esperam, para se casar, isto é, para se estabelecerem, que a geração precedente lhes entregue a exploração familiar? Dir-me-ão que se deve começar pelo mais fácil e que as incertezas são menores no que respeita às variações da idade de casamento a curto prazo. Porque é que, em períodos de crise, uma população adia os seus casamentos? A resposta é relativamente clara: por causa das incertezas em relação ao futuro, que nascem do espectáculo do presente. A consciência histórica é, de facto, uma consciência determinada pelos ,acontecimentos a curto prazo; é a conjuntura que condiciona as suas reacções de optimismo ou de pessimismo em relação ao futuro. Quando o historiador tem de lidar com reacções deste tipo, que são estratégias conscientes de resposta a um dado acontecimento, está relativamente à vontade para reconstitui reconstituir-l r-lhes hes o encaminhament encaminhamentoo através através dos vestígios que elas deixaram; pois não faz mais do que ressuscitar as razões dos agentes históricos. O aborrecimento é que essa redundância não leva longe! A crise adia os casamentos, a prosperidade multiplica-os antes que a crise seguinte os atinja novamente. Bom! Mas fica por compreender o problema essencial: saber como se estabelece, através dessa sucessão de ajustamentos em sentido contrário, um recuo global da idade de casamento que permita travar o crescimento «natural» das populações da Europa pré-industrial. 92
A HISTÓRIA HOJE É aqui que uma descoberta de tipo descritivo, como esta, leva forçosamente o historiador a hipóteses explicativas que são duplamente delicadas: primeiro porque estavam por natureza fora do alcance dos homens cujo comportamento estuda e, portanto, não existem traços escritos directamente utilizáveis. Depois, porque é obrigado a sair da análise propriamente demográfica e da precisão conceptual e factual que ela implica. Tem de compreender os mecanismos através dos quais a probabilidade de comportamento colectivo que está inscrita na análise dos dados sobre a idade de casamento se encama na multiplicidade das condutas individuais. Retomemos a título de exemplo as duas hipóteses sugeridas acima. Apesar de serem de natureza diferente, não são incompatíveis. Têm em comum facilitar nos indivíduos que viveram nessa época a harmonização das expectativas e das oportunidades que é uma das condições da vida social, esse mecanismo um pouco melancólico com o qual os homens prevêem prevêem e fabricam fabricam o seu futuro mais provável. provável. Mas a primeira é de ordem psicológica, psicológica, a segunda de ordem económica. A primeira é uma moral, a segunda uma estratégia. A primeira não é mensurável, a segunda já o é. De facto, o historiador poderá estabelecer uma relação entre a procura das novas gerações e o mercado das explorações, ou dos empregos livres, em resultado do desaparecimento dos velhos. Se não dispuser de dados suficientes para trabalhar numa escala macroeconómica, poderá ao menos abordar o problema por intermédio de uma série de monografias de explorações familiares, que lhe permitirão definir a rotação das gerações numa mesma exploração. Trata-se de um processo objectivo, que pode, pelo menos em teoria, ser objecto de uma conclusão clara. Ao contrário, a generalização na Europa clássica de um super-ego puritano (no plano sexual) é uma hipótese que não pode implicar respostas não ambíguas. Vê-se facilmente o que é que toma essa hipótese verosímil: a ética protestante, a Contra-Reforma, a «civilização» de Norbert Elias1... Mas não se pode provar j realmente nem que é verdadeira nem que é falsa. Porquê? Antes de mais porque o super-ego é um conceito psico ________________ 1 Norbert Elias, La Civilisation des m(J!urs, Calmann-Lévy. Calmann-Lévy. 93
A OFICINA DA HISTÓRIA lógico a propósito do qual nenhuma demonstração é possível. Serve para interpretar comportamentos que são indefinidamente interpretáveis noutros termos: por exemplo, subs substi titu tuin indo do a idei ideiaa webe weberi rian anaa de autodi autodisc scip ipli lina na do indi indiví vídu duoo pela pela do refo reforç rçoo dos dos constrangimentos externos, neste caso a Igreja e o padre; todavia, por outro lado, não existem e não existirão nunca dados pertinentes para responder a hipóteses que dizem respeito à psicologia dos agentes históricos: estes morreram já e poucos foram, mesmo entre os raros que falavam de si, os que se interessaram por essa parte de si próprios que não tinham, antes de Freud, nem os meios nem mesmo a curiosidade de explorar. O historiador daquilo que hoje em dia se designa de um modo muito vago por «mentalidades» é assim levado quer a raciocinar sobre text~s esparsos ou ambíguos quer a achar um indicador, não nas psicologias, mas nos próprios comportamentos, para induzir a partir deles as características psicológicas. No primeiro caso, vai encontrar dificuldades ligadas à significação de um testemunho ao mesmo tempo subjectivo e excepcional. É verdade que, em certo sentido, todos os dados históricos (tirando aqueles que constituem os vestígios da vida material do homem) são subjectivos: mesmo o registo de um nascimento ou a contabilidade de uma exploração agrícola foram, num certo momento do tempo, lançados no papel por um indivíduo. Mas as imposições do registo são muito diferentes conforme o objecto observado, a natureza da observação e do observador: consoante se trate de um acontecimento normal, repetitivo, isto isto é, compa compará rável vel a um anter anterio iorr, ou de um acont acontec ecim imen ento to extr extraor aordi dinár nário io,, anot anotado ado exactamente porque foge aos hábitos; consoante se trate de uma observação sistemática, submetida a regras, ou de um testemunho fortuito, de uma contagem ou de uma impressão; consoante, enfim, a relação que une o observador e a coisa observada é da ordem do conhecimento ou não. No que ao meu exemplo diz respeito, os testemunhos históricos que nos podem informar sobr sobree as cara caract cter erís ísti tica cass psic psicol ológi ógicas cas dos dos comp compor orta tame ment ntos os de há vint vintee sécu século loss são, são, evidentemente, de ordem literária; digo «literária» no sentido lato do termo, nele incluindo alguns textos que a posteridade não elevou a essa dignidade, alguns diários íntimos inéditos, uns quantos manuscritos antigos que possam lançar 94
A HISTÓRIA HOJE alguma luz sobre o tema. Porém, limitados a um meio social restrito, estes testemunhos são por natureza raros, impossíveis de explorar em séries temporais sistemáticas. Quem quiser ultrapassar o seu carácter aleatório deve voltar-se para uma documentação diferente, de tipo normativo: por exemplo, os manuais de bem-viver ou os tratados especializados de moral religiosa, como os livros de penitências. Mas os textos natureza apresentam a mesma ambiguidade que a produção legislativa dos Estados: prescrevem um dever-ser, do qual nunca se sabe em que medida é aceite, obedecido, interiorizado pelos homens. A repetição, no decurso de um longo período histórico, das mesmas prescrições traduzirá uma penetração social do comportamento prescrito ou, pelo contrário, traduzirá resistências a esse comportamento? A segunda hipótese é tanto, se não mais, verosímil do que a primeira: neste caso, o texto normativo é mais interessante pela «exposição dos motivos» e o que implica de observação do que por aquilo que interdita ou ordena; no fundo, é essencialmente testemunho dos meios de que provém, o Estado ou a Igreja. Por Por isso isso o hist histor oria iado dorr das das ment mental alid idade ades, s, que que procu procura ra alca alcança nçarr nívei níveiss médi médios os de comportamento, não se pode satisfazer com a literatura tradicional do testemunho histórico, que é inevitavelmente subjectiva, não representativa, ambígua. Deve voltar-se para os próprios comportamentos, ou seja, para os sinais objetivos desses comportamentos. A hipótese discutida aqui de um super-ego «weberiano» que estenderia o seu domínio às alma almass da Euro Europa pa clás clássi sica ca pode pode ser ser test testad adaa com vári vários os dess desses es sina sinais is:: o númer númeroo de nascimentos ilegítimos e de concepções pré-nupciais ou a prática da contracepção. A diminuição ou o baixo número de nascimentos ilegítimos ou de concepções pré-nupciais num mundo onde a idade de casamento é elevada traduz de facto uma prolongada castidade aceite. Mas é ainda necessário, para que estes indicadores façam sentido, que não tenha havido, na época, práticas contraceptivas largamente desenvolvidas entre as populações da Europa. Como saber isso? Não por meio de testemunhos literários, que são por natureza, nesse domínio por excelência excelência do não-dito, não-dito, muito raros. raros. Essencialm Essencialmente ente através da medida dos interv intervalo aloss inter intergené genésic sicos, os, ou seja, seja, do espaçam espaçament entoo dos nascim nasciment entos os das crianç crianças as durante a vida conjugal dos casais. É conhecida a técnica estatística que permite medir 95
A OFICINA DA HISTÓRIA a evolução desse espaçamento na vida das famílias. Consiste, a partir de um stock de mulheres casadas em idade de ter filhos, em relacionar o número de nascimentos e a idade das mães. Se a fecundidade dos casais diminuir muito rapidamente depois das primeiras crianças e com a idade da mãe, há intervenção de práticas contraceptivas; senão, há apenas sucessão dos nascimentos, travada unicamente pela duração do aleitamento dos recémnascidos e pelo enfraquecimento biológico da fecundidade à medida que a mãe potencial envelhece. As condições da experimentação parecem assim simples e claras. As curvas estabelecem sem ambiguidade, por exemplo, que as populações canadianas no século XVIII ignoravam a contracepção e que os duques e os pares de França da mesma época já a praticavam. Mas entre estes dois extremos, os resultados permanecem ambíguos: precisamente porque o espaçamento dos nascimentos, na vida de um casal, está sujeito a factores diferentes da simples contracepção, é impossível isolar esse elemento. E o alongamento do intervalo intergenésico, quando não é brutal, pode dever-se, por exemplo, a uma modificação das práticas de aleitamento e a um desmame mais tardio do recém-nascido. Por isso as conclusões categóricas são difíceis, como testemunha a discussão em curso sobre este problema desde há uma dezena de anos. Quando se tenta fazer o resumo do balanço metodológico, parece'-me que encontramos incertezas inultrapassáveis a três níveis: o do conceito (o super-ego pensado como uma espécie de consciência colectiva de austeridade que dá forma às condutas individuais), que na realidade não é susceptível de demonstração; o dos dados históricos subjectivos, dos testemunhos, que são raros, não-represemativos, ambíguo-:; o dos indicadores objectivos, que são igualmente ambíguos. A hipótese adiantada é mais do domínio do verosímil do que do verdadeiro. Seria portanto inexacto pensar que basta passar da história-narrativa à história-problema (ou, se se preferir, à história conceptualizante) para entrar, ipso facto, no domínio científico do demonstrável demonstrável.. A história história conceptualiza conceptualizante nte é provavelment provavelmentee superior superior,, do ponto de vista do conhecimento, à história-narrativa porque substitui a inteligibilidade do passado em nome do futuro por elementos de explicação expli96
A HISTÓRIA HOJE citamente formulados, porque descobre e constrói factos históricos destinados a dar apoio à explicação proposta e alarga assim consideravelmente o domínio da história propriamente dita, ao recortá-lo e especificá-lo. Max Weber talvez tenha seguido por um caminho errado com a sua Ética Protestante, mas que posteridade não teve! Uma descoberta conceptual mede-se pelo campo de investigações que abre, pelo rasto que deixa... Mas ainda assim não se passa tão simplesmente para uma história científica. Primeiro porque existem questões, questões, conceitos, que não têm respostas respostas claras (não ambíguas). ambíguas). Depois porque há questões que, em princípio, têm respostas claras e que, no entanto, não podem ser resolvidas quer por causa da falta de dados, quer pela sua natureza - seja pelo carácter ambíguo dos indicadores ou pelo pe lo facto de estes não serem susceptíveis de procedimentos de análise rigorosos. De facto, como já se viu - e a este respeito poder-se-iam multiplicar os exemplos -, esses proc procedi edime ment ntos os adapt adaptamam-se se ao mane manejo jo de indi indicad cador ores es clar claros os (ou (ou assi assim m torn tornad ados os), ), disponíveis' em séries cronológicas e respondendo a questões não ambíguas geralmente elaboradas pelas ciências sociais contemporâneas mais desenvolvidas, como a demografia ou a economia. Nesta medida, a história também é susceptível de resultados certos. Por exemplo: podem calcular-se as grandes variáveis dos comportamentos demo gráficos da Europa ocidental desde o século XVII. É possível medir a alta dos preços na França do século XVIII ou o aumento brusco da produtividade agrária no século XIX. Isto equivale a dizer que este tipo de história, caracterizado pela possibilidade de extra polar no passado questões muito específicas geralmente elaboradas Doutras disciplinas, é ao mesmo tempo muito rendível e muito limitado. Permite chegar a resultados seguros, a uma boa descrição do fenômeno localizado que foi escolhido como objecto de estudo. Mas a interpretação desses resultados não apresenta o mesmo grau de certeza que os próprios resultados. A interpretação é no fundo a análise dos mecanismos (objectivos e subjectivos) pelos quais uma probabilidade de comportamento colectivo - essa mesma que foi revelada pelo tratamento dos dados - se encarna nos comportamentos individuais numa dada época e o estudo da transformação desses mecanismos. A interpretação consiste portanto em ultrapassar o nível 97
A OFICINA DA HISTÓRIA dos dados descritos para o relacionar com outros níveis da realidade histórica. Exige geral geralme ment ntee dados dados adic adicio iona nais is,, pert pertenc encen ente tess a um campo campo dife difere rent nte, e, e que que nem estã estãoo forçosamente disponíveis, nem são forçosamente claros. Geralmente acarreta hipóteses não verificadas, ou não verificáveis. Por isso, o problema colocado pela evolução recente da história, e em particular pela utilização de procedimentos rigorosos de demonstração, não é saber se a história como tal pode tomar-se ciência: dada a indeterminação do seu objecto, a resposta a esta pergunta é indubitavelmente negativa. O problema está em conhecer os limites no interior dos quais esses procedimentos podem ser úteis a uma disciplina que fundamentalmente não é científica. Do facto de esses limites serem evidentes não se deve deduzir que a história deve regressar à sua função antiga de contadora de excelentes aventuras. Devemos antes aceitar a redução das ambições pouco razoáveis da história total, para utilizar ao máximo, dentro do nosso conhecimento do passado, as descobertas sectoriais e os métodos de algumas disciplinas, assim como as hipóteses conceptuais que nascem dessa grande embrulhada contemporânea chamada ciências sociais. O preço a pagar, para essa reconversão, é o estilhaçar da história em histórias, a renúncia do historiador a um magistério social. Mas o ganho em conhecimento merece talvez essas abdicações: a história oscilará provavelmente sempre entre a arte da narrativa, a inteligência do conceito e o rigor das provas; mas se essas provas forem mais seguras, seguras, os conceitos conceitos mais explicitado explicitados, s, o conhecimento conhecimento ganhará com isso e a arte da narrativa nada perderá. 98
FURET, François. A Oficina da História. 1º v. (Trad. Adriano Duarte Rodrigues) Lisboa, Gradiva, 1986, p. 109-35. O nascimento da história * Uma dupla tradição Se a história não existe no ensino, e portanto como disciplina escolar, na época clássica, é simple simplesme smente nte porque porque não existe existe como como discipl disciplina ina.. Está Está div dividi idida da em duas activi actividad dades es intelectuais que se ignoram quase sempre ou se desprezam: a erudição e a filosofia. A primeira está nas mãos dos antiquarii, que os antigos textos franceses também chamam de antiquários: ou seja, especialistas do antigo e naturalmente da Antiguidade, escondidos por detrás de conhecimentos estreitos, esotéricos, eruditos, e manejando línguas desaparecidas. É desta tradição que nos vem, não a história, como a entende o século XIX, mas o facto histórico, tal como deve ser estabelecido como material constitutivo da história. Velha tradição, que remonta ao Renascimento, e que, na sua origem, não é uma tradição crítica.1 Não toca nos textos sagrados. Se diz respeito à Antiguidade greco-romana, na qual a Europa do século XVI procura apaixonadamente uma nova identidade, não é porque queira reescrever a história: essa história já foi escrita pelos Antigos, e quem __________________________________ * H - Histoire, n. o 1, Março de 1979, Hachette. 1 A melhor exposição desta questão é a de A. Momigliano: «Ancient History and the Antiquarian Antiquarian», », in Journal Journal of the Warbur Warburgg anil Courtauld Institutes, Institutes, Londres, vol. 13, 1950. pp. 285-315. 109
A OFICINA DA HISTÓRIA faria melhor do que Tucídides, Tito Lívio ou Tácito? Os «modernos» limitam-se a comentar os historiadores antigos, a trabalhar nas suas margens: a isto se consagram as «belasletr letras as». ». Ou entã então, o, quan quando do quer querem em esca escapa parr a est este jogo ogo de espe espellhos hos, escr escrev evem em «antiguidades», e não «histórias» romanas (ou gregas). Mas essas «antiguidades» são também duplamente marginais em relação à via real da história: descrevem fontes não literárias, exumam partes de monumentos, moedas, pedras, inscrições, vestígios aleatórios de um irre irreme medi diáv ável el nauf naufrá rági gio. o. Alim Alimen enta tam m come coment ntár ário ioss e estu estudo doss que que não não são são verdadeiramente história, visto que dizem respeito a costumes, instituições, arte, e a história é feita da análise cronológica dos regimes e dos governos. Assim, o antiquário não é um historiador. Mas na segunda metade do século XVII, no momento em que vacila a idéia de que existe uma história universal no interior da qual cada história foi escrita de uma vez por todas, o antiquário toma-se um crítico da história. O campo da sua «arte» (a ars antiquaria) estende-se para lá da Antiguidade clássica e alcança a Antiguidade sagrada, por exemplo. Sobretudo emancipa-se da espécie de tutela que sobre ele exercia a historiografia antiga, o modelo dos Antigos. O antiquário nem sempre é um historiador. Mas visto que o passado não foi fixado eternamente por Tito Lívio ou Plutarco, ele pode escrever história. O que significa que os materiais que exuma e classifica deixaram de ser marginais: representam, tal como as fontes literárias, elementos constitutivos da história. E as próprias fontes literárias tomaram-se objecto da crítica erudita. A filosofia não serve apenas para os restituir, mas para os discutir. E as moedas, as inscrições, os fragmentos de arcos e colunatas permitem cotejar-lhes as informações. A crítica interna e externa do documento nasce com a integração dos diferentes tipos de fontes numa busca do verdadeiro. Deste modo, a segunda metade do século XVII não inventa a história. Retrabalha os seus materiais e, ao fazê-lo, desloca as suas linhas que pareciam fixadas para sempre. Bossuet ainda escreve uma História Universal, mas teve uma certa dificuldade em fazer entrar na cronologia sagrada a história profana dos povos antigos da qual as descobertas dos «antiqu «antiquári ários» os» alarg alargam am doravan doravante te os lim limite ites. s. A própri própriaa histór história ia sagrad sagrada, a, esse esse blo bloco co intangível, imóvel no fluxo indefinido 110
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA do tempo, é reexaminada pelos cronologistas modernos. O oratoriano Richard Simon publica, em 1678, uma História Crítica do Antigo Testamento, que lhe custa a exclusão da ordem. No entanto, é a própria Igreja que dá o exemplo da investigação erudita, mesmo que não controle sempre o seu desenvolvimento. "Não só é apanhada no espírito do tempo, como ainda se vê obrigada, pôr necessidade da controvérsia antiprotestante, a inventariar e exaltar o conjunto da tradição cristã: e em primeiro lugar esses seis primeiros séculos que constituem a Antiguidade cristã e que dão a interpretação fundamental da Escritura. A erudição eclesiástica diz antes de tudo respeito aos Padres da Igreja. Floresce em PortRoyal, sobretudo através da obra de Tillemont. Vai encontrar o seu centro nos beneditinos de Saint-Maur que, mais de um século antes da historiografia alemã, estabelecem os cânones da crítica histórica. A arte do antiquário culmina assim, no fim do século, na empresa sistemática dos monges de Saint-Germain-des-Prés para distinguir o verdadeiro, o verossímil e o falso. De acordo com a divisa de Mabillon: «A verdadeira piedade só gosta daquilo que se funda na verdade», a investigação histórica moderna nasceu da aplicação dos processos da razão crítica à exploração da Antiguidade cristã; assim, a Antiguidade pagã, que não se pode separar dela neste aspecto, porque está incluída na mesma cronologia, é susceptível do mesmo tratamento. Mas se a divisão canônica entre história sagrada e história profana tende a desaparecer por esta razão, a própria história continua a distinguir-se da investigação histórica. Constitui um gênero literário, do qual uma das regras é precisamente excluir qualquer referência ao apar aparel elho ho crít crític icoo e às «pro «prova vas» s».. Os anti antiqu quár ário ioss publ public icam am cron cronol olog ogia ias, s, «ana «anais is», », «compilações», «memórias»; a história é uma narrativa continuada, que não se incomoda com originais originais e que apresenta apresenta ao mesmo tempo uma lição de moral e uma forma regular regular e ornamentada. A história perdeu a sua rigidez de conteúdo, mas conserva todas as suas regras estéticas e morais. É um trabalho de escritor. escritor. Quando Tillemont quis publicar aquilo que serão as suas Mémoires pour servir à l'histoire ecclésiastique, hesitou no título que daria ao seu trabalho. Se escolheu «mémoires», foi porque nelas utiliza um método de exposição que é o dos antiquários: «Parece o mais sólido e o mais 111 111
A OFICINA DA HISTÓRIA seguro. É como apresentar peças de um processo; ao leitor caberá escolher. Mas este método obriga a uma grande extensão e a repetições freqüentes [...]. É mais a matéria da história do que a própria história.» No entanto, o mesmo autor aceitou o termo «história» para a parte profana da sua obra, publicando três anos antes, em 1640, a Histoire des empereurs, com um título que merece ser citado por inteiro: História dos imperadores e dos outro outross prínci príncipes pes que reina reinaram ram durant durantee os seis seis primei primeiro ross séculos séculos da Igreja Igreja,, das perseguições que fizeram aos cristãos, das suas guerras contra os judeus, dos escritores profanos e das mais ilustres pessoas do seu tempo, justificada por citações dos autores originais, com notas para esclarecer as principais dificuldades da história. Deste modo,
Tillemont mescla, e é um dos primeiros a fazê-lo, história e erudição. Mas como se descul desculpa pa por isso isso na sua advert advertênci ência! a! Escutem Escutemo-l o-lo, o, para para poder poder avaliar avaliar a tirani tiraniaa dos «gêneros» na época clássica: «Hesitou-se durante muito tempo em dar a esta obra o título de memórias, mas é certamente o que mais lhe convém, seja pelo modo como se compõe, seja pela visão com que foi empreendida. Ainda se pensou no de anais, porque, na realidade, nela se segue tanto quanto possível a ordem dos tempos e quase sempre está dividida por anos; para além de que parece que um estilo sem elevação nem ornamento, como aqui se encontrará, convém melhor a anais do que a uma história. No entanto, o título de história prevaleceu, prevaleceu, como aquele em relação relação ao qual se é menos obrigado obrigado a dar razões, por ser o mais comum e porque qualquer narrativa é de certo modo uma história. Mas pedese aos leitores que não o tomem senão nesse sentido e que não esperem encontrar aqui uma história regular. Nunca o autor teve a intenção de fazer uma história desse tipo e gostaria que se soubesse que sempre viu essa intenção como muito difícil em si e extremamente acima do talento e das luzes que pode ter 2.» _______________________________ 2 B. Neveu, Un Historien à l'école de Port-Royal. Sébastien Le Nain de Tillemont 16371698, Haia, 1966, pp. 182-185. 112
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA O século XVIII: um ensino impossível Poderia, no entanto, inferir-se desses protestos tão modestos que o fosso entre historiadores e antiquários está a fechar-se. Pelo contrário, o século XVIII francês vai abri-lo ainda mais, pond pondoo em mo moda da a «his «histó tóri riaa filo filosó sófi fica» ca» da vez vez mais mais afas afasta tada da da inve invest stig igaçã açãoo dos dos antiquários, que desdenha. Na realidade, são os próprios progressos desta investigação que se viram contra ela, à passagem do século XVII para o século XVIII. Pelo facto de haver criticado uma parte das crenças históricas tradicionais, de ter, por exemplo, destruído milagres, diminuído o número dos mártires cristãos, remodelado a cronologia bíblica, o individualismo racionalista atrai uma dúvida sistemática sobre o próprio facto histórico. Bayle dedica um Dicionário inteiro, de A à Z, à destruição dos fundamentos históricos das crenças religiosas, mas deixa o indivíduo racional apenas com incertezas. Fontenelle constata simplesmente a impossibilidade de uma história verdadeira: «Acostumaram-nos com tanto apego durante a nossa infância às fábulas dos Gregos que, quando estamos em idade de raciocinar, já não as achamos tão admiráveis como o são. Mas se acabarmos por nos desfazer dos jogos do hábito, não podemos deixar de nos apavorar ao ver toda a história antiga de um povo que é apenas um acervo de quimeras, de sonhos e de absurdos. Será possível que se tenha dado tudo aquilo por verdadeiro? Com que fim no-lo teriam dado por falso? Qual teria sido esse amor dos homens pelas falsidades manifestas e ridículas e porque não duraria ainda?» Mas sobretudo este derrotismo histórico é feito de uma obsessão do moderno, ou seja, do presente. As elites européias viveram, desde o Renascimento, com uma identidade retirada da Antiguidade, cujos artistas e autores constituíam inultrapassáveis modelos e cujos gêneros, literários formavam as molduras obrigatórias do belo e do verdadeiro. Ora, eis que a Europa põe a questão da sua autonomia cultural: a querela acadêmica dos Antigos e dos Modernos, na França do fim do reinado de Luís XIV, XIV, exprime no fundo esse pensamento de que a cultura clássica não é um passado, mas um presente, e a história, não, um recomeço, mas um progresso. Sendo assim, ela também se organiza 113
A OFICINA DA HISTÓRIA em volta da percepção do presente, o que vai relegar a curiosidade dos antiquários para a gaveta de um período ultrapassado. Aliás, os «filósofos» anexaram às suas novas histórias as fontes e as «provas» não literárias. Ao quebrar a tirania da história política como a Antiguidade a tinha transmitido e a sucessão dos imperadores, utilizam a arte, a religião, as instituições: escrevem a história da «civilização». Mas escrevem-na para compreender o seu tempo. Montesquieu procura na histór história ia romana romana os segred segredos os da estabi estabilid lidade ade ou da decadênc decadência ia dos regime regimes. s. Voltair oltairee compara o século de Péricles com o de Luís XIV. O século procura na história dos povos não só o espectáculo da diversidade das religiões e dos costumes, mas o sentido de um devir liberto da Sagrada Escritura e indefinidamente aberto ao progresso. A história filosófica tem outro pólo conceptual para além dos progressos da civilização: é a origem da nação. Os Franceses do século XVIII procuram na sua história nacional simultaneamente a fonte do seu «contrato» com o rei e a legitimidade da nobreza. Supõe-se que as invasões germânicas trouxeram para a Gália romana uma realeza electiva e uma aristocracia de guerreiros. A polêmica em tomo de Clóvis traduz deste modo, à sua maneira, o dram dramaa de um umaa socie ocieda dade de em busc buscaa da sua repr repres esen enttação ação.. Mas a hist histór óriia de Boulainvilliers, assim como a de Voltaire, já não tem nada que ver com os «antiquários». A França do século XVIII não tem nenhum nen hum Gibbon. Os filósofos e os eruditos estão separados por uma linha intransponível, que aliás exalta os primeiros para atirar os segundos para o gueto da academia das inscrições. A tradição da investigação crítica e a da grande narrativa filosófica e literária só irão reconciliar-se com os historiadores da Restauração. Basta observar um pouco as bibliografias daquela época para compreender até que ponto a história nelas constitui um gênero heterogêneo, em plena evolução: as classificações das bibliotecas, por exemplo, agrupam em nome dela um vasto sector na classificação dos conhecimentos. A história reúne tudo aquilo que se relaciona com o saber nas sociedades humanas: como cabeçalho de rubrica epistemológica, acumulou todas as contribuições eruditas ou simplesmente descritivas da cultura européia desde o Renascimento. Reina sobre 114
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA o conjunto, com a sua divisão canônica, história sagrada-história profana, a preponderância cultural da Antiguidade, o modelo de narrativa moral à Tito Lívio. Mas subordinou, como antiquaria - a cronologia, a subgêneros, não só as técnicas e as aquisições da ars antiquaria diplomática, a arqueologia, etc - mas também o inventário do espaço - aquilo que não é ainda a geografia, mas as «viagens». Com efeito, as sociedades não européias, perdidas na super superfí fíci ciee do Mund Mundo, o, e progr progres essi sivam vamen ente te descr descrit itas as pelos pelos viaj viajant antes es,, test testem emun unham ham igualmente, à sua maneira, da história: o «selvagem» é a infância do homem. O espaço e o tempo oferecem deste modo ângulos complementares para a constituição de um saber sobre a evolução. E é a partir desta cumplicidade epistemologia que a geografia vai avançar ao mesmo tempo que a história, como que ligada a ela, nas futuras reformas do ensino francês. Mas no século XVIII a indiferenciação do campo histórico é suficiente para mostrar a que ponto o estudo do passado está longe de ser uma disciplina escolar: se a história não é ensinada, é porque não está em constituída em matéria ensinável. Os dois tipos de actividade intelectual que abrange são demasiado, estranhos um ao outro para formarem um saber homogêneo. Um e outro são, aliás, pouco talhados para o ensino, mesmo secundário. A erudição é ao mesmo tempo uma arte demasiado incerta e demasiado sábia para ser objeto de uma transmissão escolar. É uma ocupação de gentlemen e de um pequeno mundo de especialistas que discutem os seus achados longe do público, até do público culto. Será que se ensina a numismática na escola ou no colégio? A História filosófica, por seu lado, atrai numerosos leitores, mas constitui um gênero demasiado moderno em todos os sentidos da palavra, para não ser, escolarmente, um produto perigoso. De facto, é demasiado recente, no século XVIII, para ter criado legitimidade e, por conseguinte, o respeito que envolve as matérias da aprendizagem escolar. Está sobretudo em contradição com aquilo que representa a história para a tradição clássica e que não passa de um anexo das belas-letras: uma bela narrativa no modelo de Tito Lívio ou de Tácito. É que os colégios jesuítas são fiéis à sua carta, que data do fim do século XVI: o modelo antigo constitui neles a identidade cultural da Europa. Os alunos só aprendem a história - para além da história sagrada - nas páginas de Cícero. 115
A OFICINA DA HISTÓRIA Houve e há excepções a esta regra. As pequenas escolas de Port-Royal fizeram da história uma disciplina central, à qual se devia consagrar uma parte do tempo quotidiano. Mas o seu caráct carácter er mui muito to provis provisóri ório, o, visto visto que foram foram encerra encerradas das na altura altura da perseg perseguiçã uiçãoo dos «Messieurs» de Port-Royal por Luís XIV, ao mesmo tempo que estritamente elitista, visto que agru agrupa pavam vam apena apenass filh filhos os da alta alta burg burgues uesia ia jans janseni enist sta, a, ilus ilustr traa mais mais o carác carácte ter r excepcional da história do que a sua presença no ensino. Também os colégios oratorianos tiveram tiveram remorsos de não falar mais dela. E as escolas militares, militares, criadas no terceiro terceiro quarto do século pela monarquia, para formar soldados profissionais, procuravam incluí-Ia no currículo. Mas até à expulsão dos Jesuítas do reino, em 1762, são os seus colégios que dão o tom ao ensino secundário; e posto que continuem conservadores nos seus programas e só integrem, por exemplo, o cartesianismo no século XVIII, seria um erro pensar que são particularmente «reaccionários». As universidades da época - e antes de tudo a de Paris são ainda infinitamente mais insensíveis às deslocações nos campos do saber. No fim do século XVIII, os professores de retórica da Faculdade das Artes, em Paris, não vêem o que é que poderiam modificar nas suas práticas: apontamentos de história antiga na periferia do sacrossanto discurso latino. Acontece que a expulsão dos Jesuítas marca o início de um grande debate de idéias sobre o sistema educativo nacional. Os famosos colégios, abandonados pelos seus mestres, são colocados sob a jurisdição do Parlamento de Paris, que tem portanto de os preencher com professores e ideais novos. Daí o florescer de planos de educação, entre os quais o mais o mais conhecido é o de La Chalotais, e cujo presidente Rolland d'Erceville procura fazer a síntese num relatório de l768. É um pouco uma desforra jansenista, na medida em que os parl parlam amen enta tare ress do sécul séculoo XVII XVIIII nunca nunca aceit aceitar aram am verdad verdadei eira rame ment ntee a conde condenaç nação ão do jansenismo por Roma e prezam muito os aspectos políticos do que foi uma das raras resistências à autoridade absoluta de Luís XIV. É portanto também uma desforra da história, que estivera em tão grande plano em Port-Royal. Mas sobretudo os parlamentares tinha ti nham m dete detest stad adoo na Comp Companh anhia ia de Jesu Jesuss uma ordem ordem estr estran anha ha ao rein reino, o, tota totalm lmen ente te dependente do papa. Pretendem a partir de então uma educação «nacional», controlada pelo Estado. Esta grande nobreza de toga, apaixo116
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA nadamente galicana, exprime à sua maneira, e com a sua própria cultura, o forte surto do sentimento de nacionalidade, enraizado num passado muito antigo: não é tanto a história que ela deseja ver aparecer nos programas escolares, mas a história de França, garante do contrato original entre a nação e o rei e depositária de uma tradição imprescritível. De facto, encontramos aqui e ali, no currículo dos colégios franceses reorganizados no fim do Antigo Regime um alargamento do ensino da história. No famoso colégio Louis-leGrand no monte de Sainte-Geneviève, a partir de 1769, existe meia hora obrigatória para a história nos «dias feriados – domingos e festas». Muitos temas históricos são propostos como matérias nos «exercícios» dos alunos, esses e sses concursos públicos que se realizavam nos dias sem aulas e que tinham por finalidade pôr à prova as faculdades de exposição e raciocínio. Em 1772, um exercício do colégio de Arras tem por tema demonstrar que «só o estudo sobretudo da história de França pode fixar no espírito do advogado os verdadeiros princípios do nosso governo». Em Lille, a história de França está incluída no próprio currículo, a partir do terceiro ano e abrange o estudo da Gália, das invasões germânicas e das duas primeiras dinastias (Merovíngios e Capetíngios), para no segundo ano ir até ao século XVI.3 O melhor exemplo, a este propósito, porque é talvez o mais precoce, é o do famoso colégio de Juilly, vitrina do ensino oratoriano e freqüentado por crianças da alta sociedade do reino. Esses velhos rivais dos Jesuítas que são os Oratorianos têm como ponto de honra oferecer à sua clientela um currículo escolar mais «moderno». Já no fim do século XVII um dos padres recomendava «o grande cuidado, segundo o uso desta academia, em ensinar o brasão, a geografia, um pouco de cronologia e a história». Esses diferentes saberes já têm, portanto, aos seus olhos, um estatuto escolar independente; indepe ndente; estão, por outro lado, ____________________________________ 3. Reti Retiro ro este estess exem exempl plos os de um arti artigo go infe infeli lizm zmen ente te inéd inédit itoo de Loui Louiss Tréna rénard rd.. «L'enseignement de l'histoire en France de 1770 à 1885», que é o texto de uma conferência pronunciada em Junho de 1968 sob a égide da Federação Belga dos Professores de História. 117
A OFICINA DA HISTÓRIA emancipados da relação exclusiva que mantinham com a Antiguidade: ensina-se em Juilly tanto a história nacional como a geografia da América. O ensino da história apresenta, para a época, o carácter distintivo de ser cronológico e de culminar, digamos assim, na história de França: passa-se da história sagrada à história de França, através da Antiguidade grecoromana romana,, ind indoo dos «mí «mínim nimos» os» até aos «grandes» «grandes».. Conserv Conserva, a, no entanto entanto,, um caráct carácter er relativamente marginal, visto que não faz parte dos programas regulares das aulas. É dispensado nas «câmaras», ou seja, nas salas onde os vários grupos de alunos vivem e estudam (Juilly é um colégio Interno), fora das aulas oficiais. Também faz parte dos «exercí «exercício cios» s» públic públicos os nos dias dias feriad feriados, os, as qui quinta ntas-f s-feir eiras as e aos domingos domingos,, mas são exercícios obrigatórios; parece, aliás, que têm um grande sucesso entre os alunos no século XVIII. Estes exemplos, que se poderiam multiplicar, mas não indefinidamente, mostram que o ensino da história avança a pouco e pouco, no fim do Antigo Regime, ao nível do ensino secundário, e tende progressivamente a quebrar a dupla tirania da história sagrada e da Antiguidade clássica. Mas a evolução é lenta, e os progressos tímidos: como disciplina ensinável, a história é a maior parte das vezes um passageiro clandestino dos programas oficiais, oferece mais temas para dissertações do que matéria que se baste a si própria; não existe no ensino elementar; mesmo no mais avançado da época, o dos irmãos das escolas cristãs. Noutro extremo do sistema educativo, até o alto ensino parisiense, quero dizer o College de France, quase especializado na inovação visto que foi criado, no século XVI, para contrabalançar contrabalançar a inércia da Sorbonne, Sorbonne, não tem ainda no século XVIII XVIII uma cadeira cadeira de história especializada. Surge apenas um ensino intitulado «História e Moral», que vai sobreviver no século XIX na sexta categoria do cartaz: «Ciências Morais e Políticas», e ao lado do «Direito «Direito da Natureza Natureza e das Pessoas», Pessoas», da «História «História das Legislações Legislações Comparadas», Comparadas», da «Economia Política». A histólia encontra-se emancipada da tirania das línguas _________________________ 4 Tiro estas informações sobre o colégio de Juilly de uma tese muito recente (1978), ainda inédita, de Etienne Broglin: De l'Académie royale à l'institution, le College de Juilly, 17451828. 118
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA antiga antigass (que (que formam formam a segund segundaa catego categoria ria de cadeira cadeiras). s). Mas continu continuaa como como histór história ia filosófica, separada da erudição. A contribuição indirecta, e de certo modo negativa, do College de France na especificação da disciplina passa sobretudo pela definição de áreas culturais específicas, progressivamente separadas do tronco comum da história, porquanto são marginais em relação à experiência européia, como a sinologia. Assim, o contraste entre a efervescência reformadora a propósito da modernização dos estudos e a lentidão da evolução pedagógica mostra que haveria um certo perigo em confundir história das idéias sobre educação com história da educação propriamente dita: as duas duas orde ordens ns de fact factos os não obede obedecem cem aos mesm mesmos os ritm ritmos os,, não não poss possuem uem as mesm mesmas as cronologias; é também verdade que não deparam com as mesmas inércias. A Revolução: ruptura e continuidade Esta observação aplica-se muito especialmente ao período da Revolução Francesa. Na verdade, a Revolução legislou muito mais sobre a educação nacional do que transformou duradou duradouram rament entee as instit instituiç uições ões de ensino ensino:: o que é facilme facilmente nte explic explicáve ávell tanto tanto pela pela brevidade cronológica do período revolucionário como pela ilusão, precisamente típica da época, de uma renovação completa dos homens e das coisas. Na realidade, a escola secundária sai praticamente impoluta do colapso aparentemente universal das instituições, e nada é mais parecido com um colégio do Antigo Regime do que um lice liceuu imper imperia ial. l. A hist histór ória ia,, em part partic icul ular ar,, conti continua nua a ser ser nele neless apen apenas as um complemento dos estudos clássicos e da aprendizagem do latim. Vale a pena, no entanto, deitar uma olhada pela legislação revolucionária para medir a evolução das mentalidades e as aspirações das novas elites políticas. A Constituinte esperou pelos últimos dias da sua existência (Setembro de 1791) para ouvir um vasto relatório de Talleyrand sobre a educação. O bispo retoma as idéias dos parlamentares do fim do Antigo Regime: Regime: enquant enquantoo conser conserva va a ossatu ossatura ra do curríc currículo ulo secund secundári árioo cláss clássico ico (gramá (gramátic tica, a, humanidades, retórica, lógica), introduz a história e a geografia. Condorcet, que o substitui durante a Legis119
A OFICINA DA HISTÓRIA lativa, é, por seu lado, um herdeiro directo dos homens da Enciclopédia; é um espírito exte extens nsoo e prof profun undo do,, um mate matemá máti tico co e filó filóso sofo fo,, ator atorme ment ntad adoo pela pela sepa separa raçã çãoo dos dos conhecimentos em disciplinas e pela unidade do saber humano. Constrói um projecto de uma ambição bem diferente, que consiste em reorganizar todo o ensino nacional em função de uma classifica classificação ção «filosófica» «filosófica» dos conhecimentos conhecimentos,, de modo a situá-lo situá-lo na vanguarda vanguarda da inovação intelectual. Logo a partir do ensino secundário, os alunos deverão abordar «os elementos de todos os conhecimentos humanos», repartidos em quatro grupos: ciências matemáticas e físicas, ciências morais e políticas, aplicações das ciências às artes (por exemplo, a anatomia comparada, os partos, a arte militar, os princípios das artes e ofícios), finalmente a literatura e as belas-artes (nas quais vamos encontrar, reduzidas à sua parte congrue congruente nte,, as humani humanidade dadess dos antigo antigoss colégi colégios) os).. A histór história ia encontr encontra-s a-see portan portanto to abrangida pelas «ciências morais e políticas», que para além disso agrupam a análise das sensações e das idéias, a moral, o direito natural, a ciência social, a economia política, o direito público, a legislação. É exactamente aquilo que os homens do século XVIII tinham bapt baptiz izado ado de «hi «hist stóri óriaa filo filosó sófi fica» ca»:: um umaa refl reflexã exãoo sobr sobree a evol evoluç ução ão dos povos povos e das das civi civili liza zaçõe ções, s, um estu estudo do do passa passado do indi indisp spen ensá sável vel para para a anál anális isee do prog progre ress ssoo da humani humanidad dadee nas nas vias vias da razã razão. o. É acomp acompan anha hada da pela pela cron cronol ologi ogiaa e pela pela geogr geograf afia ia,, decifra decifraçõe çõess complem complement entare aress de tempo tempo e do espaço. espaço. De Condor Condorcet cet,, pode-s pode-see passar passar a 5 Lakanal , porque os debates dedicados à educação durante o período montagnard são obcecados pelo aspecto puramente político da questão, e de resto não acrescentam nada de interessante. Foi depois do 9 Termidor que a sociedade política revolucionária retoma os seus direitos durante uns tempos abandonados ao Comité de Salvação Pública. A lei de Frimário ano III (Dezembro de 1794), revogada por Lakanal, institui dois graus de ensino, as escolas pri _______________________________________ 5 Podem encontrar-se os principais discursos dedicados pelos autores das assembléias revolucionárias às questões da educação nacional em: C. Hippeau, L'lnstruction publique en France pendant Ia Révolution, 1881. Para uma informação informação mais ampla, ver: J. Guillaume, Guillaume, Proces-verbaux du Comité d'lnstruction Publique de Ia Convention national e, 6 vols., Imp. Nat. 120
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA márias, para todos, e as escolas centrais, para instruir a elite da nação. Essas escolas centrais, que são ao mesmo tempo secundárias e superiores, rompem com o sistema das aulas ordenadas ordenadas desde o 1º ano até à filosofia, filosofia, por grupos de níveis. Instituem Instituem um sistema sistema de cursos paralelos, destinados a cobrir a totalidade dos conhecimentos, e no interior dos quais os alunos podem circular com toda a liberdade. Das catorze cadeiras que uma escola reúne e que reconstituem a enciclopédia dos conhecimentos de Condorcet, revista pelos ideólogos, uma delas é dedicada à «história filosófica dos Povos». Nos anos seguintes, os termidorianos, desejosos de estabelecer novamente um nível superior de ensino, sob a forma de escolas especiais, organizadas em tomo de determinada disciplina, imaginam que algumas seriam consagradas à história, reunindo a legislação, a economia política, a filosofia, a crítica e as antiguidades. Assim, a Revolução fez triunfar, antes e depois da ditadura de Robespierre, a concepção da história que tinha sido a dos enciclopedistas, sistematizada por Condillac e Condorcet. Trata-se no fundo de fazer aa história um dos terrenos privilegiados de demonstração do sentido da existência social. A história filosófica é um «discurso sobre a história universal» laic laiciz izad ado. o. A ques questã tãoo que que se põe põe é a de comp compre reen ende derr porq porque ue que que essa essa bur burgues guesia ia revolucionária, que tantas energias e sentimentos patrióticos investiu na guerra com a Europa, não manifestou mais gosto pela tradição parlamentar e legista da história nacional, tão forte no fim do Antigo Regime. Para isto vejo várias séries de razões. Umas de ordem epistemológica: a história pertence, tanto para Condorcet como para os outros ideólogos, ao domínio do raciocínio científico, e a exaltação da particularidade nacional não se enquadra bem com uma visão científica do universo, no interior da qual essa particularidade forma uma espécie de resíduo irredutível. Por outro lado, no plano da ideologia política, os revolucionários franceses também não se pensaram no interior de um quadro estritamente nacional: combatendo pela liberdade e pela igualdade, a França jacobina e termidoriana constitui uma vanguarda da própria humanidade. Mesmo quando os seus exércitos espoliam os países conquistados, a França revolucionária nunca abdica do universal democrático. Por fim, e talvez sobretudo, para que lhe servia esse interminável passado nacional, que pertence 121
A OFICINA DA HISTÓRIA à monarquia e à feudalidade? Só esteve durante muito pouco tempo ligada à restauração de uma idade de outro entre a monarquia e a nação; todas as ideais de um contrato popular, de direitos originais e de uma constituição primitiva desaparecem logo que se mostra e dá a conhecer aquilo que é: é ela que é a origem, que constitui o contrato e a constituição primitiva, e que funda a história nacional arrancando os Franceses do seu passado. Visto que corta a nossa história ao meio porquê narrar a sua parte maldita, que pertence aos inimigos? Mas a outra parte é demasiado curta para formar um passado; é apenas a celebração de uma origem. Para os revolucionários franceses, a história não é portanto uma genealogia, como o vai ser para para as ideol ideologi ogias as nacio nacional nalis ista tass do sécu século lo XIX. XIX. Cons Consti titu tuii um quadr quadroo univ univer ersa sall de referências em relação ao qual se revela a excelência e a racionalidade suprema da experiência francesa. É o laboratório de uma ciência social que tem a seu cargo organizar os materiais, e não um saber constituído como tal em volta do estudo cronológico dos anais da nação. Daí que a Revolução Francesa não legue às gerações que lhe sucedem nenhum corpo doutrinário duradouro sobre a história. A ideia de uma «ciência social» vai continuar a viver graças a Saint-Simon e a Auguste Comte, mas como corrente marginal, ilegítima, suspeita, da nossa cultura; o conceito enciclopédico começa a tomar-se antiquado já no tempo do Directório e nunca passou para o ensino. Quanto à história nacional, que vai representar o terreno por excelência da constituição da disciplina e da legitimidade escolar, a Revolução Francesa fez dela um campo de guerra civil intelectual. Os Franceses do século XIX são esse povo que só pode prezar metade da sua história; não pode amar a Revolução sem detestar o Antigo Regime e amar o Antigo Regime sem detestar a Revolução. A Constituição de uma disciplina A história toma-se assim um problema e uma aposta escolar tanto mais agudos quanto a sua linha de desenvolvimento, como saber e como disciplina, vai ser a genealogia da nação e, por isso, se toma cada vez menos ensinável à generalidade dos Franceses. O Primeiro 122
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA Império pôde ignorar a questão e reinstaurar o estudo da história como um simples anexo do latim: essa «colocação entre parêntesis» indica a vontade e a capacidade de amnésia do regime imperial, mas não é uma solução duradoura. Na mesma época em que a Restauração traz de volta ao poder, com Luís XVIII e os emigrados, as imagens concretas do passado, a história recebe a consagração de disciplina instituída, ao mesmo tempo no ensino e na nossa vida intelectual. Guizot, quase meio século depois de Gibbon (que traduz para o francês), funde a tradição dos historiadores com a dos antiquários, ao mesmo tempo que reconcilia a história nacional e história da civilização. A «filosofia» fora o tribunal do século XVIII. A história história toma-se o magistério do século XIX. Mas, ao certo, que história? A Restauração, que é o primeiro regime a estabelecer um ensino sistematicamente cronológico dela, procura recuperar a sua própria genealogia, a da tradição monárquica. Um texto de 1814, preparado por Royer-Collard, por conseguinte de inspiração constitucional e moderada, divide o ensino da história em fatias cronológicas para as aulas dos liceus e dos colégios: história sagrada no primeiro ano, Egipto e Grécia no segundo, Roma (até ao Império) no terceiro, de Augusto a Carlos Magno no quarto, a Idade Média no quinto, Tempos Modernos e história de França no sexto. É uma tentativa de síntese entre o antigo ensino, baseado na história sagrada e na Antiguidade, e as exigências de uma cronologia laicizada, mais moderna e mais «nacional». O espírito do programa consiste consiste em sublinhar sublinhar a dupla tradição tradição católica católica e dinástica dinástica de França França e formar os espíritos espíritos para a monarquia segunda a Carta. A história não é nunca inocente, e é o menos do que nunca na cultura francesa do século XIX. Mas é significativo que se tenha tomado ponto de passagem obrigatório para a monarquia constitucional. Aliás, sobrevive à passagem autoritária de 1820 e à queda dos Constitucionais. É que, mesm mesmoo que que se inte interr rrom ompe pess ssem em os prog progra rama mass em 1789, 1789, é preci preciso so compr compree eend nder er esse esse termin terminus us ad quem que é a Revolução Francesa e que domina toda a paisagem para montante. Ora, para tal, a direita ultra-realista não utiliza nenhum dos conceitos que estão disponíveis, nem o progresso, nem a democracia, nem a nação. Propõe apenas o direito divino, a Providência, o regresso a Bossuet. É por isso que inaugura um período durante o qual a história se torna 123
A OFICINA DA HISTÓRIA uma disciplina suspeita, que deve ser mantida sob a estreita vigilância dos poderes públicos não só nos estabelecimentos de ensino secundário, como também nas faculdades de letras, cujas conferências são nessa altura acontecimentos políticos e mundanos. Enquanto a história vegeta nos colégios, Guizot enobrece a Sorbonne atacando o regime de Villèle em nome do terceiro estado, da antiga monarquia e da marcha da civilização. Quando é destituído, em 1822, é de novo a antiga grande burguesia do terceiro estado, a tradição protestante, a liberdade, 1789 enfim, que são atingidos por intermédio dele. A queda de Villèle, em 1827, consagra também a desforra da história, que não tarda a ser emancipada da tutela das humanidades, sendo-lhe atribuído, nas classes secundárias, um professor especial (cedo admitido por agregação particular). Mas é em 1830, com o regime de Julho, que se abre um período decisivo decisivo para o ensino da história. Não só, evidentemente, porque os dois maiores historiadores franceses do século XIX, Guizot e Michelet, brilham então com todo o seu esplendor, um no poder (o que, injustamente aliás, vai comprometer a sua fama de historiador), o outro na oposição erudita e republicana do Collêge de France. Mas sobretudo porque o regime de Órleans, nascido da sublevação parisiense, tem por única legitimidade a que retira ao mesmo tempo do Antigo Regime e da Revolução Francesa. Ao contrário do bonapartismo, não dispõe, para esconder a sua miséria jurídica, jurídica, de nenhuma lenda, de nenhum assentimento assentimento prévio ao despotismo. despotismo. Tem de se situar no ponto exacto em que se justapõem e se somam as duas tradições liberais da história nacional, a da nobreza e a da burguesia, ou seja, re-estabelecer 1789, mas como traço de união entre o passado e o futuro e não como linha de divisão e despojo despojo de guerra Civil. Louis-Philippe transforma o palácio de Versailles em museu das glórias nacionais e manda regressar o caixão do Imperador aos Invalides. A história de França torna-se assim a grande instância de legitimação do regime que a envolve em atenções como como cria criança nça mima mimada, da, e teste testemu munho nho diss dissoo é o enor enorme me esfo esforç rçoo de conse conserv rvaçã açãoo do patrimônio arquivista nacional que foi empreendido nesses anos. Essa vontade política traduz-se igualmente ao nível do ensino. Em 1838, o ministro da Inst Instruç rução ão Públ Públic ica, a, Salv Salvan andy dy,, remo remodel delaa os progr program amas as de hist histór ória ia desl desloca ocand ndoo-os os cronologicamente 'para: história sagrada, 124
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA Ásia e Grécia no primeiro ano; Grande Grécia, Macedónia, Judeus no segundo; Roma no terceiro; Idade Média no quarto; Tempos Modernos (1453-1789) no quinto; história de França de 406 a 1789 no sexto. Já aqui se desenha uma cronologia universitária de que ainda ainda somos somos tribut tributári ários, os, visto visto que na nossa nossa consciên consciência cia histor historiog iográf ráfica ica nacion nacional, al, o «moderno» acaba em 1789, como se isso fosse uma evidência universal. Por outro lado, o facto de reservar todo o sexto ano do ensino secundário à história de França sublinha o carácter definitivamente central dessa pedagogia, em oposição à tradição das humanidades. Quando Louis-Philippe recebe em 1838 no palácio de VersailIes os alunos de dois colégios parisienses parisienses,, para lhes dar a honra de atravessar atravessarem em consigo o passado, passado, não esconde esconde as suas intenções: «Quis que pudésseis usufruir de todos estes belos exemplos da nossa história, de todas estas gloriosas recordações da antiga monarquia francesa que bem valia essas repúblicas de Atenas e de Roma, com as quais vos ocupam talvez demasiado.» Mas com este jogo, a história inteira, e não só história a história da França, torna-se um dos centros essenciais do debate político e intelectual francês. A história ecumênica e meiotermo de Guizot esbarrá à sua direita na tradição reaccionária, possuída pela ideia da poli politi tici ciza zação ção dos dos espí espíri rito toss jove jovens ns,, e à sua sua esque esquerd rdaa nos nos doi doiss gran grande dess inté intérp rpre rete tess democráticos da história nacional e europeia: Michelet e Edgar Quinet. Não cabe no quadro deste artigo traçar novamente a famosa batalha dos dois professores contra os Jesuítas e contra o domínio clerical da Universidade. Mas aquilo que importa para a minha intenção é compreender a que ponto essa batalha desestabiliza uma história que o regime de Julho quisera fixar em volta de 1789 e do seu remake de 1830. Guizot vira na Revolução de Julho um novo enraizamento das conquistas de 1789, uma espécie de 1688 francês, destinado a abrir para a França uma era de concórdia e de prosperidade social comparável com a que tinha inaugurado para a Inglaterra a Glorious Revolution. Eis que Michelet e Quinet exumam da história a dinâmica da Refo Reform rma, a, o inaca inacaba bame ment ntoo da Revol Revoluçã uçãoo e a prome promess ssaa indef indefin inid idaa da demo democr crac acia ia.. O consenso dos Franceses em tomo da sua história não parece mais profundo do que o seu acordo acerca do regime de Julho. Desaparecem em conjunto em 1848. 125
A OFICINA DA HISTÓRIA No entanto, aquilo que fora iniciado com Louis-Philippe é irreversível - a história e o ensino da história, mesmo que continuem a ser objecto de ruidosos conflitos políticos, permanecem no centro de qualquer pedagogia nacional. Por fim a II República, apesar do alarido do partido da ordem, e o Segundo Império, apesar da sua desconfiança no pensamento crítico, irão no sentido da reforma de Salvandy. Em 1848, Carnot inclui o período 1784-1814 nas classes de seconde e de Retórica *: eis a Revolução e o Império no ensino secundário. Em 1852, o decreto que estabelece a bifurcação entre estudos literários e estudos científicos (outro aspecto da modernização do currículo) remodela igualmente os programas de história. A história sagrada é daí em diante reservada para os mais jovens, na terceira e quarta classes. Os primeiro, segundo e terceiro anos do secundário são dedicados à história de França até 1815. Por fim, nos quarto, quinto e sexto anos, a tríade já clássica: Antiguidade, Idade Média, Tempos Modernos. Mas esta reforma de Fortoul é por sua vez transformada pela reorganização dos programas por Victor Victor Duruy, Duruy, em 1865. História sagrada na terceira classe, história de França na quarta: esta progressão da história de França nas classes mais jovens representa o sinal de um acordo crescente sobre a necessidade pedagógica desse ensino e sobre o seu conteúdo. Para cima, Duruy instaura uma divisão muito moderna, a Antiguidade do primeiro ao terceiro ano, a Idade Média no quarto, os Tempos Modernos no quinto, o período 1661-1815 no sexto ano, e o século XIX, até ao Segundo Império, no sétimo ano, chamado de filosofia. Ganha assim a batalha da história contemporânea, que anexa ao ensino secundário. Ao mesmo tempo que dá ao século XIX a dignidade histórica, estende, graças ao século XIX, o campo escolar da história aos factos econômicos e sociais. Com efeito, a história não é só a genea genealo logi giaa da nação nação,, mas mas també também m o estu estudo do do prog progre ress ssoo cien cientí tífi fico co e mate materi rial al da humanidade. E é assim que se prepara, em novas condições, a reconciliação da ideia nacional com a ideia enciclopédica. ____________________________________ * As classes de seconde e de Retórica equivalem aos anos terminais do ensino secundário francês. (N. do R.) 126
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA A partir de então a história aparece como o veículo privilegiado por duas séries de razões. As primeiras são de ordem científica e dizem respeito ao seu estatuto como tipo de conhecimento e como disciplina. Os meados ou este terceiro terço do século XIX marcam, em França, uma etapa-chave do desenvolvimento dos estudos históricos, a mais importante, talvez, desde os beneditinos de Saint-Maur. Taine, Renan, Fustel, Gabriel Monod fundam de novo a história como ciência. Victor Duruy cria, em 1866, a Escola Prática de Altos Estudos, para ambientar em França a investigação à alemã, na qual a transmissão de um método rigoroso e de um saber crítico do mestre para o aluno substitui a conferência mundana em voga nas universidades. Mas Mas se a hist histór ória ia apare aparece ce reve revest stid idaa do pres prestí tígi gioo inte intele lect ctual ual da ciên ciênci cia, a, perm perman anec ecee essencialmente, do 1ado da exigência social, não aquilo que a sociedade sabe sobre si própria, própria, mas aquilo que nação conhece do seu passado. É o outro aspecto aspecto da sua eminente dignidade. Ora, depois dos anos de «ordem moral», que fizeram reviver os receios reaccionários sobre os perigos de que ela é veículo, a República vitoriosa traz aos Franceses, ao mesmo tempo que um consenso duradouro em torno do regime, uma interpretação cumulativa das suas tradições em confronto. Ao contrário da Monarquia de Julho, que procurava sobretudo um lugar geométrico comum às classes dirigentes do país, aquela integra Michelet em Guizot e oferece a toda a nação uma história democrática de si próp própri ria. a. Os reis reis de Fran França ça não não fora foram m todo todoss mo mode delo loss de virt virtude ude ou de consc consciê iênc ncia ia profissional; mas, melhor aqui, pior ali, construíram a França, asseguraram o seu progresso e a sua irradiação. A própria Revolução teve os seus excessos; mas a Declaração dos Direitos do Homem e os exércitos do ano II fazem da nossa história uma espécie de modelo univ univer ersa sal. l. Assi Assim m as duas duas meta metade dess da noss nossaa hist histór ória ia não não são são tant tantoo riva rivais is como como complementares: não, como escrevera Tocqueville, porque em comum têm o Estado administrativo centralizado, mas porque partilham o culto do estado-nação, instrumento de progresso. A III República nascente assume por fim toda a herança nacional em nome do povo, porque ela própria é, finalmente e quase ao fim de um século, a Revolução Francesa no poder: essa figura provisória, mas que vai revelar-se bastante duradoura, é constituída por um poder conservador que governa em nome dos valores revolucionários. 127
A OFICINA DA HISTÓRIA O Magistério no século XIX A partir deste momento a história já não constitui apenas uma matéria de ensino secundário ou superior; é também indispensável aos mais pequenos, cujo juízo e patriotismo devem ser formados cedo. A partir do momento em que é conhecida a sua economia geral, assente no encaixe de uma história de França numa história universal cujo sentido é o progresso material e moral da humanidade, o mestre pode abandonar nas classes mais jovens as ideias abstractas: a «filosofia» geral da evolução poderá nascer de uma anedota, de um pormenor, ou, como se diz tão bem, «de uma história». Ouçamos, por exemplo, Lavisse recomendar o ensino da história antiga, nas suas célebres «Instruções» de 1890, e meçamos o caminho percorrido desde os colégios jesuítas: «A história de Grécia e de Roma é já a nossa história, visto que as origens da inteligência e da política moderna já nelas se encontram. É necessário mostrar ao aluno essas origens e explicar-lhes, mas quase sem que ele dê por isso, não lhe propor considerações filosóficas nem o embaraçar com nenhum pormenor de instituições.» A Antiguidade já não é um modelo; é uma introdução à história da Europa e de França. Já não dá ao mundo moderno o seu sentido; recebe-o dele. A capacidade de Lavisse de escrever a história a todos os seus níveis, não do mesmo modo, mas com a mesma certeza (e aliás com uma grande felicidade de expressão) testemunha que ponto se trata de um saber e de uma disciplina que atingem então uma espécie de classicismo escolar. Não é que Lavisse seja superficial: as suas leituras são imensas, mas sabe sempre para onde vai. Escreve à sua maneira, ele "que tanto admira a Enciclopédia e o século XVIII, uma história «filosófica», dominada pela burguesia esclarecida e erudita, progressivamente emancipada da Igreja e dos reis, estendendo rapidamente ao mundo as conquistas das ciências e do progresso. Mas esta «história filosófica» apresenta em relação à sua antecedente diferenças capitais: integrou a ars antiquaria, sob a forma aperfeiçoada do positivismo; fez do estado-nação a figura central da evolução. Em suma, tem um método e um objecto; é aquilo a que se chama uma disciplina. Pouparei ao leitor o comentário do famoso «pequeno Lavisse», no qual dezenas de gerações de franceses aprenderam, para a vida inteira, 128
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA o essencial da sua história. O seu testemunho é, evidentemente, capital no que respeita à utilidade pedagógica e social da história na França republicana do fim do século XIX: na verdade, é a esse nível que os efeitos da escrita histórica devem ser particularmente visíveis, para ter o máximo de impacto nos espíritos jovens. Mas o próprio Lavisse, muito claramente, claramente, escreveu a meta-histó meta-história ria da sua história de França França contada contada às crianças, no seu célebre texto de 1885 sobre o ensino da história nas classes primárias. Nele explicou, melhor do que ninguém, aquilo que fazia. A República nascente não tinha má consciência: nunca a visão de conjunto foi tão explícita. Primeiro há o lento nascimento da França, com o esforço dos reis, lutando contra o caos feudal: a viragem decisiva é a Guerra dos Cem Anos: «Expulso o Inglês, a nossa França aparece. Mas, nesta França, a personagem principal é aquele em que punha as suas esperanças Jeanne d’Arc, é o rei. Pelo facto de ter feito a unidade e reconquistado o seu reino ao inimigo, concentra por assim dizer nele a França inteira. E eis aquilo que os alunos devem saber bem: no século XV, quando já não há vassalos poderosos, quando Luís XI reuniu as ótimas grandes províncias independentes e as comunas foram desamparadas pelos agentes do rei e arruinadas pela guerra, o rei já não é um suserano e um protector, mas um mestre.» Segue a história do desenvolvimento do poder absoluto, história ambígua, visto que leva a França até à preponderância européia, embora a mine também e oprima os Franceses. A Revolução prolonga o «lado bom» da monarquia, enquanto elimina o lado mau: «E uma indiscutível verdade que a Revolução Francesa um esforço heróico para substituir a monarquia antiga pelo reino da justiça e da razão. É uma indiscutível verdade que abriu o mundo a uma era nova e que quase toda a Europa foi de certo modo refundida por ela. O mestre não irá portanto ferir qualquer consciência quando expuser os princípios dessa Revolução e mostrar como, pela força das nossas ideias e das nossas armas, os governos absolutos foram transformados por todo o lado e novos poVos adquiriram, ao longo da nossa história contemporânea, o direito à existência.» existência.» Mas cuidado! A advertência advertência que segue é capital capital para os futuros futuros cidadãos: «É uma indiscutível verdade o facto de o regime ideal sonhado pela Revolução Francesa ser, de entre todos, aquele que é mais difícil 129
A OFICINA DA HISTÓRIA de pôr em prática: a revolução e os golpes de Estado que se seguiram mostram-no com bastante clareza. É uma indiscutível verdade [a repetição destas palavras é por si só reveladora de que precisamente todas estas verdades são discutidas e não deveriam sê-lo] o facto de que essas revoluções e esses golpes de Estado enfraquecem a França e que, a proc proces essa sare remm-se se de novo, novo, a mata matari riam am.. O mest mestre re não irá irá port portan anto to engan enganar ar qualq qualque uer r consciência se ensinar que toda a violência contra a lei é um atentado contra o país e que a condição da salvação da França é a estabilidade política.» Por fim, um pensamento sobre a Alsácia-Lorena: «O mestre que tiver traçado perante os seus alunos os destinos da França, de toda a França, a antiga e a nova, saberá falar da mutilação que ela sofreu, há quinze anos.» A finalidade do ensino da história é tão clara que a escola se tomou laica, obrigatória e gratuita: formar «um cidadão compenetrado dos seus deveres e um soldado que ama a sua arma». Com Com o segu segund ndoo grau grau,, os prog progra rama mass toma tomamm-se se mais mais vast vastos os e as dire direct ctiv ivas as mais mais diferenciadas. Permitem sobretudo tomar o pulso a essa parte da transformação pedagógica que não é devida à ideologia republicana, mas antes à própria disciplina. Neste campo, a III República consolidou primeiro a obra de Victor Duruy, ameaçada durante a ordem moral. Sobretudo, com a reforma de 1902, que modifica completamente o ensino secundário francês, reformulou novamente os programas, fundamentados a partir de então - e até hoje em dois ciclos no interior do secundário: Antiguidade, Idade Média, Tempos Modernos (até 1789), período contemporâneo do primeiro ao quarto ano. E de novo história moderna no quinto e no sexto ano (mas até 1815: esse no man's land entre 1789 e 1815 continua difícil de baptizar), e contemporânea no último ano. Existe sobre os considerandos desta reforma um interessante comentário, redigido pelo homem que desempenhou o papel principal na sua concepção: Charles Seignobos. Trata-se aliás de uma introdução geral às suas «aulas», que estava incluída nos manuais manua is de todos os anos, do primeiro p rimeiro ao último. Seignobos não separa aquilo que ele apelida de «revolução» surgida na concepção do ensino da história desde as famosas «Instruções» de Lavisse, daquilo que se tornou a própria disciplina. Separa mal as 130
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA duas ordens de factores cuja distinção nos parece evidente e necessária: a autonomia pedagógica da história cobre a sua emancipação como saber. Outro modo de dizer que a escolarização triunfante da história naquela época coroa uma disciplina constituída a todos os níveis, possuindo método, objecto e utilidade social específicos - as três coisas estão indissoluvelmente ligadas. A sua «matéria» já não se reduz ao comentário da grande literatura greco-romana, como nos colégios jesuítas, ou à análise dos tratados e das guerras, como na tradição da Escola Militar. Já não prepara para uma carreira especial. Forma, em cada um dos Franceses, o cidadão. «O estudo das ciências permite conhecer o mundo material; o estudo das letras desvenda o mundo das formas e das ideias; a história introduz o aluno no mundo social e político. As letras anteriormente ignoravam este mundo que as mantinha afastadas; um francês, destinado a viver numa democracia, precisa de a compreender.» Trata-se portanto de formar, através do ensino da história, uma ciência social geral, que ensine ao mesmo tempo aos alunos a diversidade das sociedades do passado e o sentido geral de sua evolução. Mas esse passado continua a ser «genealógico», escolhido em função daquilo que se pretende anunciar ou preparar: a Antiguidade clássica, a Idade Média cristã, a Europa moderna e contemporânea. As outras sociedades, espalhadas no espaço, são abandonadas a outras disciplinas. A história só concede a honra de se interessar por aquelas que participem da «evolução», que é o outro nome do progresso. Daí advém o relevo posto ao período contemporâneo, em detrimento da Antiguidade e da Idade Média: não só para marcar a independência finalmente conquistada pela história sobre as humanidades, como ainda por ser o contemporâneo que dá sentido ao passado e, por conseguinte, justifica o seu estudo. «Os Tempos Modernos desde o século XVI fornecem agora a matéria essencial do ensino; desses tempos data a maioria dos factos que importa conhecer para compreender, o estado actual do mundo.» Mas no próprio interior daquilo daquilo que é «moder «moderno» no»,, as propor proporções ções tradici tradicionai onaiss são inv invert ertida idas: s: o século século XVII, XVII, «dura «durant ntee o qual qual não não se prod produzi uziuu nenhum nenhumaa tran transf sfor orma maçã çãoo prof profun unda da para para além além das das revoluções de Inglaterra», é reduzido a uma proporção congruente, em proveito do século XVIII, «durante o qual se formaram 131
A OFICINA DA HISTÓRIA os grandes Estados contemporâneos, o Império Russo, a Prússia, os Estados Unidos, a Inglaterra parlamentar, a França revolucionária», e do século XIX, «durante o qual a vida material e intelectual foi subvertida pela constituição definitiva das ciências e a vida política transformada pelo regime representativo e pela igualdade democrática». A história não é só uma genealogia; é igualmente o estudo da mudança, daquilo que é «subvertido», «transformado», campo privilegiado em relação àquilo que permanece estável. Genealogia e mudança são aliás duas imagens gêmeas: a investigação das origens da civilização contemporânea só tem sentido através das sucessivas etapas da sua formação. Este fechamento do campo da matéria histórica implica uma modificação da natureza dos factos nos quais incidem o estudo e o ensino. É preciso renunciar a essas intermináveis nomenclaturas cronológicas, e em particular a essas enumerações de reis, de personagens ministeriais, de generais, de batalhas e de tratados que sobrecarregam sem proveito a memória dos alunos. O essencial é acentuar duas ordens de factos: aqueles que dizem resp respei eito to à civi civili lizaç zação ão mate materi rial al,, prim primei eiro ro,, porq porque ue é o funda fundame ment ntoo da civi civili liza zação ção propriamente dita; e aqueles que permitem compreender o carácter específico de um período em relação outro, ou seja a mudança, E esses factos serão naturalmente apontados, datados e descritos segundo o método celebrado pelo positivismo, que deve despertar o espírito dos alunos para a análise crítica, em lugar de se dirigir apenas à sua memória. Deixando de ser lima lição de moral, ou a ocasião para um lugar-comum literário, o novo ensino deve por fim renunciar ao estilo oratório ou filosófico: «Agora que a história começou a instituir-se como ciência, chegou o momento de romper com a tradição oratória romana e acadêmica e de adoptar a língua das ciências naturais.» Uma pedagogia do cidadão O que faz portanto com que a história seja, no fim do século XIX, uma matéria ensinável de pleno direito é inseparavelmente um método científico, uma concepção da evolução e ainda a eleição de um campo 132
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA de estu estudo doss ao mesm mesmoo temp tempoo crono cronoló lógi gico co e espac espacia ial. l. As regr regras as elem elemen enta tare ress da ars antiquaria, codificadas pelos positivistas, entram no ensino secundário por intermédio de um consenso provisório quanto ao sentido da história. Para chegar a esse consenso, Lavisse e Seignobos retomam os dois temas da história filosófica desde o século XVIII: a história é a nação; a história é a civilização. Mas reúnem-nos de um modo muito mais orgânico do que o puderam fazer, cinqüenta anos antes, Guizot e os homens de Julho. Esses mantinhamse prisioneiros de uma concepção estritamente burguesa da evolução e da «civilização»; para parando ndo a hist histór ória ia em 1830, 1830, ou seja seja,, em 1789, 1789, ou ainda ainda no habea habeass corp corpus us ingl inglês ês,, apresentavam uma base demasiado estreita para o campo histórico aberto pela ReYQlução Francesa. Os Franceses nunca foram tão entusiastas do regime representativo que fizessem dele a cúpula da história universal. Em contrapartida, «a evolução da humanidade», ao estilo de Seignobos ou de Lavisse, propõe-lhes uma série de figuras em que investem mais facilmente um consenso colectivo. A economia interna dessas figuras pode ser decomposta em três níveis sucessivos: a «civilizacão» é o outro nome da profecia científica reinante nesse fim de século. Leva os homens, pelas conquistas do espírito, ao domínio sobre a natureza. Desta marcha para o progresso intelectual e material, o principal agente histórico é a nação ou, mais precisamente, o Estado nacional, essa invenção da essa invenção da Europa moderna. Ora, desse Estado nacional, portador de progresso, a história da França oferece o exemplo por excelência, por intermédio da monarquia absoluta e da Revolução Francesa. É que não é correcto dizer-se que a historiografia republicana desse tempo seja estritamente patriótica; o que ela tem de nacionalista nunca esquece, segundo o exemplo jacobino, o universal democrático. A característica de eleição da história de França é a de possuir, como história real e como ensino da história, um valor e um alcance pedagógico específicos desse ponto de vist vista. a. Fora Foram m neces necessá sári rios os cem cem anos anos para para reun reunir ir Mably Mably e Cond Condor orce cett pela pela esco escola la republicana. A outra vertente desta análise consistiria em ver porquê e como é que este consenso se desfez, desde então, e em especial depois da Segunda Guerra Mundial, simultaneamente pelo exterior e pelo interior, em razão da evolução da disciplina e das ciências sociais em geral, e como 133
A OFICINA DA HISTÓRIA conseqüência do fim da preponderância da Europa no Mundo. Apesar de, ou em virtude de, os programas escolares sobreviverem sempre durante muito tempo às conjunturas que explicam o seu nascimento, toda a gente sente hoje que o nosso ensino da história deve ser retomado. E talvez que a primeira coisa a fazer seja, antes de avançar com propostas, compreender aquilo que se desfez em cem anos. Mas para isso é necessário o conhecimento prévio dos diferentes elementos da síntese; a viagem de ida é uma condição prévia; eis como vejo as suas principais etapas. Para existir como disciplina escolar, a história teve de sofrer várias mutações, de modo a constituir um campo do saber ao mesmo tempo intelectualmente autônomo, socialmente necessário e tecnicamente ensinável. De facto, ela não tem por natureza objecto específico (visto que tudo é «histórico»), sem linguagem autônoma (visto que é narrativa), sem limites fixáveis: existe em todo o lado e em lugar nenhum. Apresenta portanto dificuldades específicas a ser pensada em termos de disciplina, e mais ainda em termos de disciplina escolar. Ou não é ensinável, ou então é ensinada, como durante vários séculos passados, unicamente à margem das letras clássicas, e até, quando se tomou «matéria» escolar, passou a ser objecto de meticulosas delimitações, com receio de que o aluno se perca no oceano dos «factos históricos», sem por isso ganhar a aprendizagem de uma linguagem ou de um método. Desde o século XVII que o processo de autonomização da história se desenvolveu em duas direcções paralelas, ou seja, independentes uma da outra. A história filosófica ganhou a batalha do «moderno» sobre o «antigo» e acabou por elaborar, com Condorcet e os ideólogos, uma doutrina do progresso. Por seu lado, desde Port Royal aos beneditinos de Saint-Maur, passando pela Academia das Inscrições, a ars antiquaria construiu um método de localização e de pesagem do facto histórico. Mas na ausência de um Gibbon francês, o Século das Luzes nunca uniu as duas tradições eruditas; lega à Revolução e ao século XIX, por um lado, um conjunto de técnicas sobre a história-universal e, por outro lado, um conjunto de técnicas e de saberes descritivos distintos, cronologia, diplomacia, viagens, etc. 134
A HISTÓRIA NA CULTURA CLÁSSICA São essas tradições distintas que o século XIX vai remodelar profundamente e especificar para delas fazer, no início da III República, a história que se ensina aos jovens franceses. Remodelar significa antes de mais excluir. A cultura clássica tinha indicado o caminho começando por colocar fora da história certos sectores do imenso espectáculo dado pelas sociedades humanas. As «viagens» representam um inventário do espaço, antes de se tornarem geografia e antropologia. As civilizações não européias, do passado e do presente, que exigem investimentos lingüísticos especiais, tendem a constituir campos específicos. Esta tendência prossegue com a Restauração e a Monarquia de Julho, como se pode ver ao nível do ensino mais elevado, no Collège de France. A história das religiões, na mesma época, separa-se separa-se igualmente do tronco geral da história para se tomar um campo separado separado da erudição. Em sentido inverso, em razão da decadência do latim como língua escolar, a história erudita tende a recuperar progressivamente a Antiguidade greco-romana como matéria que deve ser ensinada sob um ângulo que não seja o de um modelo literário. Aquilo que constitui a identidade cultural da Europa das letras tomou-se agora a sua genealogia. É que a grande mutação do século XIX, e em particular dos anos 1820 e 1830, está aí: a história é a árvore genealógica das nações européias e da civilização de que são portadoras. Guizot ainda tem como modelos a França e a Inglaterra, Michelet já só tem a França. A part partir ir do mo mome ment ntoo em que o disc discur urso so encic enciclo lopé pédi dico co do sécul séculoo XVII XVIIII receb recebee essa essa significação, a história nacional é liberta da maldição «feudal» que a Revolução fez pesar sobre ela e da condenação que a envolvia. Constitui ao mesmo tempo uma imagem privilegiada (mas não única) do progresso da humanidade e uma «matéria» que deve ser estudada, um patrimônio de textos, de fontes, de monumentos que permitem a reconstituição exacta do passado. É na confluência dessas duas ideias que se instala a «revolução» positivista: dá-lhes, às duas, a bênção da ciência. A história dali em diante já tem o seu campo e o seu método. Toma-se, sob os dois aspectos, a pedagogia central do cidadão. 135
Furet, Francois 1927- "Democracy and Utopia" Journal of Democracy - Volume 9, Number 1, January 1998, pp. 65-79 The Johns Hopkins University Press
Excerpt Journal of Democracy 9.1 Democracy 9.1 (1998) 65-79
The subject of democracy and utopia may be approached in a philosophical fashion. Since the eighteenth century, century, democracy has presented itself to the modern individual as a promise of liberty, liberty, or more precisely, of of autonomy. autonomy. This is in contrast to earlier times when men were viewed as subjects, and consequently were deprived of the right of self-determination, which is the basis of the legitimacy of modern societies. Ever since the democratic idea penetrated the minds and peoples of Europe, it has not ceased to make inroads nearly everywhere through a single question, inherent in its very nature, that crops up continuously and is never truly resolved. That question, which was posed very early on by all the great Western thinkers from Hobbes to Rousseau and from Hegel to Tocqueville, was as follows: "What kind of society should we form if we think of ourselves as autonomous individuals? What type of social bond can be established among free and equal men, since liberty and equality are the conditions of our autonomy? How can we conceive a society in which each member is sovereign over himself, and which thus must harmonize the sovereignty of each over himself and of all over all?" [End Page 65] In the course of these probings into the central question of modern democracy, one is necessarily struck by the gap between the expectations that democracy arouses and the solutions that it creates for fulfilling them. In the abstract, there is a point in political space where the most complete liberty and the most complete equality meet, thus bringing together the ideal conditions of autonomy. autonomy. But our societies never reach this point. Democratic society is never democratic enough, and its supporters are more numerous and more dangerous critics of...
Furet, Furet, Francoi Francoiss 19271927- "Democracy "Democracy and Utopia Utopia"" Journal Journal of of Democracy Democracy - Volume 9, Number 1, January 1998, pp. 65-79 The Johns Hopkins University Press Excerto Journal of Democracy 9.1 (1998) 65-79 O assunto democracia e utopia pode ter chegado de um modo filosófico. Desde o século dezoi dezoito to,, a democ democra raci ciaa se apres apresen ento touu ao indi indiví víduo duo mo moder derno no como como uma prom promes essa sa de liberdade, ou mais precisamente, de autonomia. Isto está em contraste com tempos antigos quando os homens foram vistos como sujeitos, e por conseguinte eram privados do direito de autodeterminação que é a base da legitimidade de sociedades modernas. Desde então a idéia democrática penetrou as mentes e povos de Europa, não deixou de fazer descaminhos em quase todos os lugares lugares graça a uma única pergunta, pergunta, inerente inerente em sua mesma natureza natureza que semeia continuamente para cima e nunca é solucionada verdadeiramente. Aquela pergunta que foi posada muito cedo em por todos os grandes pensadores Ocidentais de Hobbes para Rousseau e de Hegel para Tocqueville, qual seja: "Que tipo de sociedade nós deveríamos deveríamos formar se consideraram consideraramos-nos os-nos como indivíduos indivíduos autônomos? autônomos? Que tipo de laço social pode ser estabelecid estabelecidoo entre homens livres e iguais, iguais, desde que liberdade liberdade e igualdade igualdade são as condições de nossa autonomia? Como nós podemos conceber uma sociedade na qual cada sócio é soberano sobre si, e no qual tem que se harmonizar a soberania de cada sobre ele e por toda parte? " [Fim Página 65] No curso deste sondagens na pergunta central de democracia moderna, a pessoa é golpeado necessariamente pela abertura entre as expectativas que democracia desperta e as soluções que cria pelos cumprir. Em teoria, há um ponto em espaço político onde a liberdade mais completa e a igualdade mais completa se encontram, assim reunindo as condições ideais de autonomia. Mas nossas sociedades nunca alcançam este ponto. Sociedade democrática nunca é bastante democrática, e seus partidários são mais numerosos e mais perigosos críticos de...