Submetido a uma deterioração semântica, o termo mística acabou por designar uma espécie de fanatismo, com for-
Henrique C. de Lima Vaz
te conteúdo passional e larga dose de irracionalidade fenômeno ilustrado pelas expressões "mística do partido político", "mística do clube esportivo" e outras semelhantes. Por outro lado, a captação da mística pela política arrastou para o campo da relatividade histórica a intenção do Abso luto própria da experiência mística e da experiência religiosa em geral. Por meio de um estudo histórico-teórico rigoroso e erudito sobre as formas legítimas da experiência mística na tradição ocidental, em Experiência mística e filosofia na tradição ocidental, LIMA VAz resgata o sentido original do termo mística- uma forma superior de experiência, de natureza religiosa ou religioso-filosófica, que se desenrola normalmente num plano transracional, mas que mobiliza as mais poderosas energias psíquicas do ser humano, elevando-o às mais altas formas de conhecimento e de amor que lhe é dado alcançar nessa vida- e apresenta a experiência mística e a experiência política como os dois pólos ordenadores do complexo e rico universo da experiência humana, traduzindo as duas formas mais altas de auto-realização da pessoa humana: sua abertura para o Absoluto e sua abertura para o outro.
na tradição ocidental Autor: Vaz, Henrique C. de Lima Título: Experiência mística e filosofia
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Henrique C. de Lima Vaz
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1. A Palavra se fez livro Johan Konings
2. Cenários da Igreja, 2a ed.
J.
Experiência Mística e Filosofia
B. Libanio
3. Teologia da espiritualidade cristã Danilo Mondoni
na Tradição Ocidental
4. Igreja contemporânea - encontro com a modernidade
J.
B. Libanio
5. Conhecimento afetivo em Santo Tomás Paulo Meneses 6. Experiência mística e filosofia na tradição ocidental
Henrique C. de Lima Vaz
X
fdkões Loyola
SuMÁRIO
Preparação Danilo Mondoni Revisão Cristina Peres
Advertência Preliminar ...
Diagramação So Wai Tam
Introdução .
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I Antropologia da experiência mística
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11 Formas da experiência mística na tradição ocidental a. A mística especulativa b. A mística mistérica c. A mística profética
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Conclusão a experiência mística na modernidade ocidental Anexo Mística e Política
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ISBN: 85-15-02221-4
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil. 2000.
Biblioteca Jornal de Op!nif1o
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ADVERTÊNCIA PRELIMINAR
O texto que aqui publicamos foi primeiramente apresentado em um Seminário sobre Mística e Política promovido pelo !BRADES e pelo Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ (Rio de Janeiro, outubro de 1992). Posteriormente foi publicado pela revista Síntese 59 (1992): 493-541. Aqui o reproduzimos com diversas modificações, a começar pelo título, e com alguma atualização bibliográfica. Encontra-se anexo, com pequenas modificações, o editorial "Mística e Política" [Síntese 42 (1988): 5-12], que versa sobre o mesmo tema. Belo Horizonte, setembro de 2000. HENRIQUE
C.
DE LIMA
vAZ
INTRODUÇÃO
Uma das manifestações mais características da cultura ou, melhor dizendo, da incultura da nossa época é a aparentemente incontrolável deterioração semântica a que nela estão submetidos alguns do termos mais veneráveis e de mais rica significação da nossa linguagem tradicional. Lançados no jargão da mídia, e sem que seus usuários tenham condições de defini-los com um mínimo de rigor, acabam por não significar coisa alguma, servindo apenas para dar uma aparência de respeitabilidade a certas linguagens convencionais sobretudo no jornalismo e na política. Um caso exemplar desse esvaziamento semântico é o do termo "ética". Mas também ao termo "mística" coube a mesma infeliz sorte. Decaído de sua nobre significação original, acabou por designar uma espécie de fanatismo, com forte conteúdo passional e larga dose de irracionalidade. Assim o vemos nas expressões "mística do partido político", "mística do clube esportivo" e em outras semelhantes. Essas expressões seriam inocentes e não representariam mais do que impropriedades de linguagem se a elas não estivesse subjacente uma inversão profunda da ordem que deve reinar em nossa atividade psíquica e espiritual. Com efeito, o sentido original, e que vigorou por longo tempo, do termo mística e de seus derivados diz respeito a uma forma superior de experiência, de natureza religiosa, ou religioso-filosófica (Plotino), que se desenrola normalmente num plano transracional - não aquém, mas além da razão -, mas, por outro lado, mobiliza as mais poderosas energias psíquicas do indivíduo. Orientadas pela intencionalidade própria dessa original experiência que aponta para uma realidade transcendente, essas energias elevam o ser humano às mais altas formas de conhecimento e de amor que lhe é dado 9
ExPERIÊNCIA MísTICA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
alcançar nessa vida. A utilização moderna do termo "mística" para designar convicções, comportamentos ou atitudes, cujo objeto está circunscrito aos limites do nosso ser-no-mundo e envolvido por uma nuvem passional que obscurece o claro olhar da razão, deve ser interpretada como indício de uma inversão radical na ordem de nossas prioridades espirituais, que inflete para o domínio da imanência o termo último da intencionalidade constitutiva do espírito. Essa inversão tem lugar em face de um amplo espectro de atividades e dos respectivos objetos, tendo como conseqüência, na maior parte das vezes, ou apenas um injustificável desgaste psíquico do indivíduo, como nessas "místicas" banais que solicitam e aprisionam o homem desarvorado da nossa civilização - tal a "mística" do esporte -, ou então uma notável perda de objetividade no uso normal da razão, como nas sedutoras e ambiciosas "místicas" do progresso e do desenvolvimento. O século XX conheceu, no entanto, uma captação do termo "mística" que acabou por designar talvez a mais profunda perversão espiritual que a história conheceu, tendo dado origem a cruéis e devastadores efeitos sobre uma civilização que se orgulhava de seus incontestáveis êxitos em todos os campos. Referimo-nos à captação da mística pela política (ver Anexo). É justamente a ameaça permanente do retomo desse fenômeno teratológico na vida da civilização que justifica um estudo histórico-teórico sobre as formas legítimas da experiência mística na tradição ocidental, como o que aqui apresentamos em grandes linhas. Em que sentido a captação pela política representa a mais grave perversão da mística? Uma primeira resposta pode ser dada pela simples consideração da natureza das duas experiências, a mística e a política, do ponto de vista respectivamente do sujeito e do objeto. Do ponto de vista do sujeito, a experiência mística tem lugar num plano transracional, ou seja, onde cessa o discurso da razão: inteligência e amor convergem na fina ponta do espírito - o apex mentis - numa experiência inefável do Absoluto, que arrasta consigo toda a energia pulsional da alma. Vale dizer que, da parte do sujeito, a experiência mística é absolutamente singular e, como tal, não pode ser partilhada. Já o sujeito da experiência 10
INTRODUÇÃO
política é, por definição, o indivíduo partilhando a vida de uma comunidade constituída pelo consenso racional em tomo de leis livremente aceitas e submetendo-se à equânime distribuição de direitos e deveres. Vê-se, portanto, que a experiência mística e a experiência política desenrolam-se em patamares distintos do espírito e supõem usos da razão inconfundíveis por natureza: na primeira, a razão transcendendo-se a si mesma e voltada toda para a intenção do Absoluto; na segunda, a razão empenhada numa tarefa dialogal, tendo em vista um consenso racional entre os indivíduos e guiada pela intenção da "melhor constituição" (Aristóteles) para a comunidade. Assim sendo, podemos concluir que a experiência mística, já agora considerada do ponto de vista do objeto, move-se na esfera de uma transcendência real, movimento que implica, num primeiro momento, a posição entre parênteses do mundo. A experiência política, ao invés, desenrola-se na relatividade do mundo histórico e das suas contingências, e em nenhum momento deve transpor as fronteiras da imanência para absolutizar seus objetivos e suas práticas 1• A experiência mística e a experiência política configuram os dois pólos ordenadores do complexo e extraordinariamente rico universo da experiência humana, traduzindo as duas formas mais altas de auto-realização do indivíduo na sua abertura para o Absoluto e para o Outro. A ordem desse universo repousa sobre uma identidade fundamental, a identidade reflexiva do Eu, capaz de diferenciar-se na multiplicidade de suas experiências - de suas expressões - e assegurando sua unidade na referência às duas formas mais altas dessas experiências: a relação com o Absoluto na mística, e a relação com o Outro na política. A mais grave, portanto, e a mais devastadora perturbação da ordem natural do nosso espírito tem lugar quando a política, numa iniciativa de suprema violência espiritual, arrasta para o campo da relatividade 1. Situando-nos no ponto de vista formal das categorias antropológicas, podemos dizer que a experiência mística desenrola-se no espaço conceptual da categoria da transcendência., ao passo que a experiência política tem sua estrutura conceptual no âmbito da categoria da intersubjetividade. Ver, sobre essas categorias, H. C. DE LIMA V AZ, Antropologia Filosófica I/, São Paulo, Loyola, 1992, 93-137; 49-91. 11
INTRODUÇÃO
EXPERIÊNCIA MíSTICA E fiLOSOFIA NA TRADIÇÃO ÜCIDENTAL
histórica a intenção do Absoluto própria da experiência mística e da experiência religiosa em geral. Trata-se de uma desordem que revelou inequivocamente sua face após a descoberta grega da racionalidade política. Ela passou a assinalar o lado sombrio dos séculos cristãos após a aliança entre cristianismo e ideologia imperial a partir do século IV. Ai, no entanto, estava preservado o espaço para o florescimento da experiência mística autenticamente cristã, que conheceu na Idade Média, e até o século XVII, sua idade de ouro. Mais profunda e realmente mortal foi a desordem nos espíritos implantada pelas religiões seculares da modernidade, que atingiu seu paroxismo no trágico século XX. A mística passou então a estar inteiramente a serviço da política, e a própria prática cristã foi tentada por formas de politização do religioso que revelavam uma desordem espiritual muito mais grave do que a sacralização medieval do poder político. A ordem que deve reinar no mundo das experiências humanas supõe, evidentemente, a unidade na diferença do nosso ser, segundo a qual em cada uma das nossas operações está empenhada a unidade total do sujeito, segundo o princípio enunciado por Tomás de Aquino: "Não é o intelecto que entende, mas o homem por meio do intelecto" 2• É essa implicação da unidade do sujeito na diferença das experiências que torna possíveis tantas aberrações e permite tentar arrastar numa só direção a riqueza multiforme do espírito, como aparece no exemplo emblemático da mística captada pela política. A relação entre mística e política na atual situação espiritual e cultural do Ocidente aparece, na verdade, paradoxal. O político, como previra Hegel, acabou por penetrar e envolver todas as esferas da existência, canalizando para seus desígnios de poder as poderosas energias psíquico-espirituais despertadas no ser humano pelo apelo do Absoluto e que devem confluir normalmente para a experiência mística. Mas o pseudo-absoluto do político d0 Estado - não é, por definição, capaz de acolher, e muito 2. SANTO ToMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae, Ia., q. 72, a. 2 ad Antropologia Filosófica, I/, 37, nota 8. 12
menos de satisfazer, a autêntica intenção do Absoluto constitutiva do nosso espírito. Outros pseudo-absolutos irão proliferar à sombra desse primeiro, pois o ser humano, como já sentenciara Santo Agostinho (De Véra Religione, XXXIX, PL, 34, 154), não pode habitar este mundo sem a companhia de algum absoluto (o verdadeiro ou os falsos, a Verdade ou algum ídolo). Daqui a multiplicação das "místicas" e das pseudo-"experiências místicas" à margem do dominante e opressivo "absoluto" do político. Nossa intenção no texto aqui apresentado tem em vista uma clarificação conceptual e histórica: pequena e modesta contribuição para resgatar a natureza de uma autêntica experiência mística, na qual se exprime, como viu Bergson, a alma profunda de uma civilização. Nossa informação obriga-nos a nos limitar à tradição ocidental greco-cristã, embora reconhecendo a existência e a riqueza de outras tradições místicas como a judaica, a islãmica ou a hindu. Nosso texto será dividido em duas partes e uma conclusão: 1. Fundamentos antropológicos da experiência mística. 2. Formas da experiência mística na tradição ocidental. 3. Conclusão: experiência mística e modernidade ocidental
lm; ver
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I
ANTROPOLOGIA DA EXPERIÊNCIA MÍSTICA
No ponto de partida das nossas reflexões convém traçar uma primeira figura conceptual do que entendemos por experiência mística. Evidentemente a fonte principal, e mesmo única, na qual podemos haurir uma informação segura sobre a natureza e o conteúdo desse tipo singular de experiência é o testemunho dos próprios místicos. Na verdade, eles são os primeiros teóricos da sua própria experiência, e é reconhecendo como autêntico seu testemunho experiencial 1 e aceitando, em princípio, a interpretação por eles proposta que os estudiosos da mística podem definir o objeto da sua própria investigação. Essa, por sua vez, é necessariamente pluridisciplinar, pois a experiência mística é um fenômeno totalizante, no qual estão integrados todos os aspectos da complexa realidade humana. Como primeira aproximação, podemos dizer que a experiência mística tem lugar no terreno desse encontro com o Outro absoluto, cujo perfil misterioso desenha-se sobretudo nas situações-limite da existência, e diante do qual acontece a experiência do Sagrado. No entanto, a experiência mística apresenta-se dentro da esfera do Sagrado caracterizada pela certeza de uma anulação da distância entre o sujeito e o objeto imposta pela manifestação do Outro absoluto como tre1. A distinção entre experimental e experiencial, decisiva para o estudo da experiência religiosa no cristianismo e, em particular, da experiência mística, deve-se a JEAN MouRoux, L'expérience chrétienne, Paris, Aubier, 1952, 19-24. O experiencial ê o campo de uma experiência estritamente pessoal, mas obedecendo a uma estrutura defmida, ao passo que o experimental é o domínio da experiência científica, com suas condições e regras. Ver igualmente L. GARDET, Théologie de la mystique, &vue Thomiste 71 (1971): 571-588.
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ANTROPOLOGIA DA EXPERIÊNCIA MíSTICA
ExPERIÊNCIA MísTicA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
mendum (para usar a terminologia de R. Otto); ela é experiência do Outro absoluto como fascinosum, mas o fascinium aqui é apelo a uma forma de união na qual prevalece o aspecto participativo e fruitivo, tendendo dinamicamente a uma quase-identidade com o Absoluto e transformando radicalmente a existência daquele que se vê implicado nessa experiência. Desta sorte, podemos adotar inicialmente a definição de J. Maritain, segundo a qual a experiência mística consiste essencialmente numa "experiência fruitiva do Absoluto" 2 • Como experiência fruitiva, ela se exerce através de um tipo de conhecimento do seu objeto e de adesão afetivovolitiva que transcendem o modo usual de operar das nossas faculdades superiores de conhecer e querer, e visa, em sua intencionalidade objetiva, o Absoluto, ultrapassando a contingência e relatividade dos objetos que se oferecem à nossa experiência ordinária. A imensa cadeia de testemunhos que corre ao longo das mais variadas tradições religiosas não deixa dúvidas quanto à realidade e à autenticidade dessa experiência, que se impõe, por isso mesmo, como um dado antropológico fundamental, tendo resistido vitoriosamente a todas as tentativas de reducionismo, sobretudo psicologista3, e oferecendo, por outro lado, campo à conhecida interpretação do fato místico que H. Bergson propõe na sua teoria das duas fontes da moral e da religião4 • A definição maritainiana nos permite, assim, excluir desde logo do terreno da experiência mística toda uma série de fenômenos extraordinários ou anormais, espontâneos ou induzidos, que podem acompanhar os estados místicos, porém são dele não apenas distintos, mas 2. Ver o texto 'I1expérience mystique naturelle et !e vide', ap. J. MARITAIN, Oeuvres (7912-1939}, (éd. H. Bars), Paris, Desclée, 1975, 1125-1158. Sobre essa definição, ver O. LAcoMBE, Introduction, ap. L. GARDET-0. LACOMBE, L'expérience de soi: essai de mystique comparée, Paris, Desclée, 1981, 23. 3. A esse respeito, permanecem clássicos os estudos de J. MARÉCHAL, Science empirique et psych~logie religieuse; Le sentiment de présence chez les profanes et les mystiques, ap. Etudes sur la psychologie des mystiques, 2, Bruxelas/Paris, VÉdition Universelle/Desclée de Brouwer, 21938, I, 3-168; ver igualmente A. MAGER, Mystik als seelische Wirklichkeit, Graz, A. Pustet, 1947, 205-266. 4. H. BERGSON, Les deux sources de la Morale et de la Religion, ap. Oeuvres, éd. du Centenaire, Paris, PUF, 1959, 1159-1201.
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separáveis, e que, em geral, são objeto de severo controle e crítica por parte dos próprios místicos autênticos5 • A singularidade da experiência mística como "experiência fruitiva" e a unicidade do seu objeto como "absoluto" irão justamente conferir-lhe as caraterísticas que, na tradição ocidental, foram designadas por uma constelação semântica formada por um grupo de vocábulos cuja significação abrange os dois pólos - subjetivo e objetivo - da experiência e pode ser figurada pelo triângulo "místico-mística-mistério" 6• A experiência mística, em seu teor original, situa-se justamente no interior desse triângulo: na intencionalidade experiencial que une o místico como iniciado ao Absoluto como mistério; e na linguagem com que, num segundo momento, rememorativo e reflexivo, a experiência é dita como mística e se oferece como objeto a explicações teóricas de natureza diferente. Ora, é a própria originalidade da experiência mística que nos obriga a colocar o problema de uma concepção antropológica adequada capaz de interpretá-la corretamente 7• Se percorrermos, com efeito, as interpretações do fenômeno místico na literatura 5. Ver J. LoPEZ GAY, Le Phénomene mystique, ap. A. SoLIGNAC ET AL., Mystique,
Dictionnaire de Spiritualité, X (1980), cais. 1893-1902 (aqui, cais. 1897-1898); A. MAGER, Mystik als seelische Wirklichkeit, 222-227. Com respeito à mística cristã, ver C!. TRESMONTANT, La mystique chrétienne et l'avenir de l'homme, Paris, Seuil, 1977, 9-24. _. 6. Eis a figura desse triângulo: mtsttca
místico
L
mistério
O místico é o sujeito da experiência, o mistério, seu objeto, a mística, a reflexão sobre a relação místico-mistério. A derivação etimológica desses termos vem de myein (fechar os lábios ou os olhos), donde, por uma transposição metafórica, "iniciar-se", do qual deriva o complexo vocabular: mystes, iniciado, mystikós, o que diz respeito à iniciação, tà mystiká, os ritos de iniciação, mistikôs (advérbio), secretamente e, finalmente, mystérion, objeto da iniciação. Essa terminologia vem do culto grego dos mistérios, ao qual mais adiante nos referiremos. Ver L. BouYER, Mystique: essai sur l'histoire d'un mot, La Vie Spirituelle, Supplément 3 (1949): 3-23; In., Mystérion, La Vie Spirituelle, Supplément 6 (1952): 397-412; LIDELL-ScorrjoNES, Greek-English Lexikon, ed. 1951, s. v. myô. 7. A ausência de um definido pressuposto antropológico é responsável pela equivocidade que afeta o termo mística na linguagem contemporânea. 17
ANTROPOLOGIA DA EXPERIÊNCIA MíSTICA
ExPERIÊNCIA MísTicA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
moderna a respeito, não é difícil perceber que são guiadas por procedimentos reducionistas inspirados nas diversas ciências humanas8. Mas a incontestável originalidade da experiência mística que transluz nos testemunhos autênticos e irrecusáveis dos grandes místicos mostra-se irredutível a estreitos pressupostos reducionistas. A experiência mística é um dado antropológico original. Sua interpretação exige, pois, uma concepção da estrutura do ser humano apta a dar razão dessa originalidade. De fato, todos os grandes textos, na tradição do Ocidente, que se podem considerar místicos, de Platão a São João da Cruz, transmitem-nos uma imagem do ser humano, traçada segundo invariantes fundamentais, que permanece ao longo dos dois grandes primeiros ciclos da nossa civilização, o greco-romano e o cristão-medievaJ!l. Essas invariantes são representadas tradicionalmente pelas metáforas espaciais do inferior-superior e do interior-exterior. Elas designam, na estrutura ontológica do ser humano, uma ordem hierárquica dos níveis do ser e do agir, segundo a qual o nível supremo representa igualmente o núcleo mais profundo da identidade ou, se preferirmos, da ipseidade humana. O superior-interior é designado com o termo grego noús e com o latino mens. A ele refere-se Santo Agostinho numa passagem célebre quando, dirigindo-se a Deus, assim se exprime: Tu eras interior intimo meo et superior summo meo10 • No mais íntimo da mente- aditum mentis -,que é igualmente a sua fina ponta - apex mentis -, o Absoluto está presente na sua radical transcendência - superior summo - e na sua radical imanência - interior intimo. A elucidação antropológico-filosófica da experiência mística implica, pois, necessariamente, duas teses fun8. A situação da mística no universo cultural da modernidade é descrita por M. DE CERTEAU no artigo Mystique da Encyclopédie Universalis, XI, 521-526; ver ainda, do mesmo autor, La fable mystique (XVI - XVII siécle), Paris, Gallimard, 1982, que tenta uma interpretação do destino da mística na aurora dos tempos modernos, a partir da nova estrutura da epistéme ocidental. Por outro lado, a incapacidade dos esquemas reducionistas para explicar o fato religioso em geral foi denunciada rc;centemente por L. DuPRÉ, L'autre dimension: essai de philosophie de la religion (tr. fr.), Paris, Cerf, 1977, 65-105. 9. Ver H. C. LIMA VAz, Antropologia Filosófica I, São Paulo, Loyola, 1991, 27-75. 10. SANTO AGosTINHO, Conftssiones, III, 6. 18
damentais: a) o espírito como nível ontológico mais elevado entre os níveis estruturais do ser humano"; b) a dialética interior-exterior e inferior-superior como constitutiva do espírito-no-mundo, e que se articula segundo a figura de um quiasmo, ou seja, em que o interior é permutável com o superior e o exterior é permutável com o inferior~. Vale dizer: o mais íntimo de nós mesmos é o nível ontológico mais elevado do nosso espírito, e é no fundo d~sa imanência (interior intimo) que o Absoluto se manifesta como absoluta transcendência (superior summo). Aí pode ter lugar a experiência mística. Ela é, em suma, a atividade mais alta da inteligência espiritua4 que é, por sua vez, a atividade mais elevada do espírito~:'. Como atos da inteligência espiritua4 a contemplação metafísica e a contemplação mística podem exercer-se na sua plenitude. Portanto, somente o discurso antropológico que compreende em si a categoria do espírito, e admite como atos espirituais mais elevados os atos da inteligência espiritua4 é capaz de acolher e explicar adequadamente a autêntica experiência mística. A revolução antropocêntrica da filosofia moderna, invertendo na direção do próprio sujeito o vetor ontológico do espírito~ trouxe consigo a dissolução da inteligência espiritua4 provocando, em conseqüência, o desaparecimento, no campo da conceptualidade filosófica, do espaço inteligível no qual contemplação metafísica e contemplação mística podem encontrar, do ponto de vista antropológico, os princípios da sua explicação 14 . Não obstante o esforço de um Schelling ou de um Hegel no sentido de operar uma trans11. A categoria do espírito, denotando o nível estrutural mais elevado do ser humano, foi exposta em Antropologia Filosófica I, 201-237. 12. Essa dialética pode ser assim representada pela figura do "quiasmo" interior
superior
inferior
exterior
Sobre a origem agostiniana dessa figura, ver Antropologia Filosófica I, 237, nota 106. Ver, a propósito, o excelente estudo de E. BoRNE, Pour une doctrine de l'intériorité, ap. lntériorité et vie spirituelle, Recherches et Débats 7 (1954): 8-74. 13. Ver o capítulo sobre a "inteligência espiritual" em Antropologia Filosófica I, 243-289. 14. Antropologia Filosófica I, 289, nota 166, e 288, nota 175. 19
ExPERIÊNCIA MíSTICA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
posição especulativa da experiência mística segundo os princípios de uma filosofia da imanência, ou de um Bergson para estabelecer o alcance heurístico dessa experiência na interpretação filosófica da moral e da religião, a filosofia moderna mostrou-se incapaz de oferecer um pressuposto antropológico adequado para a compreensão do fenômeno místico na sua originalidade, e esse ficou abandonado aos procedimentos reducionistas das ciências humanas. Um exemplo, entre todos o mais notável, da perda da significação autêntica da experiência mística que se segue à desconstrução da Metafísica, ou à sua "superação", encontramos justamente no filósofo que se celebrizou pelo anúncio do "fim da Metafísica". A experiência do Ser preconizada por M. Heidegger é, na verdade, uma experiência mística desfigurada que tenta exprimir-se numa linguagem poética e paraconceptual, na qual o que de fato se significa é a pura presença do sujeito (ou do Dasein) a si mesmo na sua mais radical imanência 15 • A teoria da experiência mística, seja a que está implícita no próprio testemunho dos místicos 1ü, seja a que é explicitada na reflexão filosófica e teológica, é construída, portanto, sobre um fundamento antropológico, no qual a concepção do ser humano está aberta ao acolhimento de uma dupla dimensão de transcendência: 15. A experiência mística desfigurada apresenta certa analogia com a experiência mística natural, descrita por MARITAIN como experiência pura do esse substancial do espírito: Vexpérience mystique naturelle et le vide, cit. supra, nota 2. A interpretação mística do Sein heideggeriano foi brilhantemente exposta por um discípulo de Maritain: ver E. J. KoRN (H. SCHMITZ), La question de l'être chez Heidegger, III: observations critiques concernant l'entreprise de Heidegger, Revue Thomiste 71(1971): 33-58; uma comparação entre o pensamento de He1degger e a mística hindu é proposta por L. GARDET, Expérience de sai et discours philosophique: à propos de Heidegger, ap. L. GARDET-0. LAcoMBE, L'expérience de soi: essai de mystique comparée, 319-370. 16. Para um perfil dos grandes místicos cristãos na tradição ocidental, ver CHARLES-ANDRÉ BERNARD, Le Dieu des mystiques, Paris, Cerf, 1998. Para distinguir o aspecto experiencial e o aspecto teórico da experiência mística, convém distinguir: a) mistica para designar o exercício da experiência mística; b) mistologia:· a refl:xão sobre a experiência e sua tradução em categorias teóricas; c) mistagogw: a prahca da direção espiritual no domínio da mística. Essas distinções são explicadas por H. U. VON BALTHASAR, Zur Ortsbestimmung christlicher Mystik, ap. Grund.fragen der Mystik, 49-52.
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ANTROPOLOGIA DA EXPERIÊNCIA MíSTICA
a) de um lado, a transcendência da inteligência espiritua4 seja sobre o entendimento discursivo e o livre-arbítrio, seja sobre as atividades próprias do psiquismo; b) de outro, a transcendência ontológica do Absoluto sobre o sujeito finito que a ele se une na experiência mística. Não obstante as profundas diferenças que irão distinguir a mística cristã daquela que se convencionou denominar mística pagã, e cuja expressão conceptual será recebida da tradição platônica (ver infra), o traço comum que as une encontrase no mesmo modelo antropológico dotado de uma estrutura vertical aberta coroada pela fina ponta do espírito (noús ou mens), capaz de captar a universalidade formal do ser e de afirmar seu existir real (Metafísica), ou de unir-se fruitivamente ao Absoluto (Mística) 17 • A concepção antropológica subjacente à experiência mística - como também à contemplação metafísica - deve admitir, em conseqüência, o reconhecimento da capacidade do es, · h umano que Platão - d enommou · "oIh o d a a Ima" 18 . E sse "oIh ar pmto da alma" prolonga sua contemplação para além da multiplicidade sensível e imaginativa e da multiplicidade conceptual, e é intuição simples da Idéia ou do Absoluto ideal 19 • A estrutura antropológica vertical apresenta-se, pois, na tradição ocidental, como a condição de possibilidade da experiência mística - e, mais geralmente, do conhecimento natural de Deus, 17. Essa estrutura vertical é ilustrada por uma das mais célebres transposições metafóricas da literatura filosófica, aquela que estabelece uma proporção entre o olhar - coroando a estação vertical do ser humano, ver Antropologia Filosófica I, 3031 e 51, notas 14 e 15 - e a faculdade superior do conhecimento (nous), que tem por objeto as realidades supra-sensíveis (eidos, idéa). Esse tema é tratado exaustivamente por L. PAQUET, Platon et la médiation du regard, Leiden, E. J. Brill; ver a Conclusão, 458-463. 18. A metãfora do "olhar da alma" (PLATÃO, República VI, 533 d 2) torna-se clãssica na literatura mística. Ver os textos de Alcher de Clairvaux e de Hugo de São Vítor citados por E. V. Iv&'IKA, Plato Christianus: Übernahme und Umgestaltung des Platonismus durch die Viiter, Einsiedeln, Johannes Verlag, 1964, 317; 326-327; 333. 19. A intuição (nóesis) situa-se, portanto, no extremo superior dos modos do conhecimento, ordenados linearmente: pístis (sensação), eikasía (imaginação), diánoia (raciocínio matemático), nóesis (intuição); PLATÃO, República VI, 511 d-e. A essas operações do conhecimento correspondem as duas grandes ordens da realidade: sensível ou visível (tà orata} e inteligível (tà noeta). 21
ExPERIÊNCIA MísTICA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
bem como da recepção da revelação divina na Fé. A transcrição conceptual dessa estrutura se fará segundo dois esquemas clássicos, obedecendo a dois procedimentos metodológicos distintos de ordenação da complexa realidade do ser humano: a) o esquema dual corpo-alma20 , construído segundo um procedimento analítico - análise da substância "ser humano" em seus princípios constitutivos; b) e o esquema trial corpo-alma-espírito21 , construído segundo um procedimento dialético - articulação do movimento de auto-expressão do ser humano na passagem da natureza dada à forma manifestada2 2 • A teoria da mística, implícita no testemunho dos místicos ou explicitada pela reflexão filosófico-teológica, apóia-se, portanto, num substrato antropológico, que é a natureza do espírito enquanto este é capaz de elevar-se por suas próprias forças - mística natural - ou pela graça divina - mística sobrenatural - à experiência fruitiva do Absoluto em si mesmo ou em alguma de suas manifestações 23 • A investigação desse substrato antropológico, que reúne motivos platônicos, estóicos e cristãos, constitui um capítulo importante da antropologia cristã depois de Orígenes, vindo finalmente integrar-se no edifício conceptual da mística cristã medieval e de seus prolongamentos modernos 24 . Sua sistematização dás20. Dual aqui não significa dualista. O dualismo antropológico é um caso-limite do esquema dual que, no entanto, não o implica necessariamente, como mostra a doutrina hilemórfica na antropologia aristotélica. Sob a antropologia subjacente à experiência mística, ver MAX HuOT DE LONGCHAMP, Mystique, Dictionnaire critique de la Théologie, (dir. J.-Y. Lacoste), Paris, PUF, 1998, cols. 774-778 (v. 777) [ed. br.: Edições Loyola-Paulinas, no prelo]. 21. Sobre a chamada "antropologia tripartida", ver H. DE LUBAC, Anthropologie tripartite, ap. Théologie dans l'histoire: L La lumiere du Christ, Paris, Desclée, 1990, 113-199. 22. Para o sentido do termo dialética nesse contexto, ver Antropologia Filosófica L 165-167; H. C. LIMA V AZ, Antropologia tripartida e exercícios inacianos, Perspectiva Teológica 23 (1991): 349-358 (v. 351-352). 23. A distinção entre mística sobrenatural e mística natural, objeto de longas discussões, pressupõe, evidentemente, uma teologia da graça subjacente ao conceit'l de "mística sobrenatural". Além do clássico artigo de Maritain (supra, nota 2), ver O. LAcoMBE, Introduction, ap. GARDET-LAcoMBE, L'expérience de soi, 26-29. 24. Esse edifício significa a estrutura ontológica do espírito, a partir do seu fundamento - designado pelo conceito estóico de hegemonikón, traduzido pelos latinos como principale cordis - até o seu cimo ou o apex mentis, ver, a respeito, E. VON
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ANTROPOLOGIA DA EXPERIÊNCIA MíSTICA
sica será levada a cabo por Tomás de Aquino, ao reelaborar filosoficamente a teoria agostiniana da menf- 5, ou, segundo a terminologia acima adotada, da inteligência espiritual. Por conseguinte, desde que nos disponhamos, acolhendo o testemunho irrecusável dos místicos, a atribuir à experiência mística, tal como se nos apresenta na tradição espiritual do Ocidente, uma forma e um conteúdo originais, somos forçados igualmente a admitir que essa experiência só pode exercer-se num lugar antropológico próprio. A determinação conceptual desse lugar cabe, então, à reflexão filosófico-teológica como parte integrante de uma teoria da mística. Essa teoria deve, portanto, como tarefa preliminar, mostrar que o lugar antropológico no qual a experiência mística pode acontecer a torna irredutível, na sua essência, aos condicionamentos psicológicos, sociológicos ou culturais que normalmente a acompanham26 • Recorrendo ao sistema de categorias exposto em nossa Antropologia Filosófica2 7, propomos situar o lugar antropológico da experiência mística exatamente no espaço intencional onde se dá a passagem dialética das categorias de estrutura para as categorias de relação, ou do sujeito no seu ser-em-si ao sujeito no seu ser-para-ooutro. Essa passagem, que articula ontologicamente o ser humano ao seu mundo, torna-se possível pela "suprassunção" (Aujhebung, ou elevação que conserva) das estruturas do corpo próprio e do psiquisIVANKA, Plato Christianus, 315-351 (v. 325-326), que distingue um modelo puramente platônico - continuidade do racional ao transracional - e um modelo platônico-estóico - Orígenes, Agostinho e a mística cristã posterior - que admite uma descontinuidade entre o fundo da alma (principale cordis) e a razão discursiva. 25. Sobre essa questão, ver a obra clássica de A. GARDEIL, La structure de l'âme et l'expérience mystique, 2 vo1s., Paris, Gabalda, 1927. A primeira parte (I, 1-352) estuda a teoria da mens em Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. Ver igualmente o amplo artigo de L. REYPENS, Âme, structure de I' ... , Dictionnaire de Spiritualité, I, cols. 433-469. Quanto ao exercício da contemplação segundo Santo Agostinho, ver ibid., II, cols. 1912-1921; segundo Santo Tomás, ver P. PHILIPPE, ibid., li, cols. 1983-1988. 26. Sobre a determinação do lugar antropológico da experiência mística, ver]. SuDBRACK, Wege zur Gottesmystik, Einsiedeln, Johannes Verlag, 1980, 9-49; e ainda MAx HuoT DE LoNGCHAMP, art. cit., nota 20 supra. 27. Ver Antropologia Filosófica L 49-137.
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ExPERIÊNCIA MísTicA E FILosoFIA NA TRADIÇÃo OciDENTAL
mo ao nível estrutural do espírito. Desta sorte, o ser humano pode abrir-se ao mundo, num primeiro nível relacional, expresso pela categoria de objetividade; pode abrir-se ao outro e à história, num segundo nível relacional, expresso pela categoria da intersubjetividade; finalmente, pode abrir-se ao Absoluto, num terceiro e mais elevado nível relacional, que se exprime pela categoria de transcendêncirJ28. Mas, da mesma forma com que o ser humano só é um ser-para - sujeito de uma relação propriamente humana - porque nele o espírito suprassume o corpo próprio e o psiquismo 29 , assim o seu mundo - termo intencional do ser-para - só se constitui como tal porque a relação de transcendência suprassume, sob diversas modalidades, as relações de objetividade e de intersubjetividade. Vale dizer que o ser humano só se abre à realidade objetiva na forma de um mundo humano porque movido intencionalmente pela sua ordenação profunda ao absoluto, seja o absoluto formal, como universalidade do Ser, seja ao Absoluto rea~ Deus. Eis por que a figura do absoluto, multiforme e única, habita o universo intencional do ser humano e acompanha como uma sombra todas as suas formas de auto-expressão e a sua autoposição como sujeito, pela qual ele se faz presente entre os seres30 • Igualmente, no seu manifestar-se a si mesmo ou na sua reflexão sobre si mesmo, o ser humano desvela sua ordenação essencial ao Absoluto31. Nessa dupla ordenação, objetiva e reflexiva, ao Absoluto reside a raiz metafísica da idolatria e dessa imensa procissão de 28. Essas duas categorias são expostas em Antropologia Filosófica li, 49-137. 29. Antropologia Filosófica I, 224-225. 30. Antropologia Filosófica I, 163-164 e 170, nota 11. 31. Essa ordenação constitui, em suma, o dinamismo ontológico fundamental do espírito. Esse dinamismo exprime a ordenação do ser humano, como ser inteligente, para a Verdade, e, como ser livre, para o Bem, dando ao espírito uma estrutura noético-pneumática: ver Antropologia Filosófica I, 219-233. A concepção do dinamismo do espírito no campo da teoria do conhecimento foi amplamente exposta por J. MARÉC_HAL em sua obra Le point de départ de la Métaphysique, cah. V, 2, Bruxelas/ Paris, Ed. Universell~/Desclée, '1947 e por ele aplicada à interpretação da experiência mística em Etudes sur la psychologie des mystiques, I, 194-195; li, 481-483 e passim. Ver, a propósito, G. MOIOLI, Mystique chrétienne, Dictionnaire de la vie spirituelle (tr. fr.), Paris, Cerf, 1983, 742-754 (v. 750-751). 24
ANTROPOLOGIA DA EXPERIÊNCIA MíSTICA
pseudo-absolutos que acompanha os passos do ser humano na história32 • Entre simplesmente ser e manifestar-se- que é propriamente o existir como ser espiritual - o ser humano cumpre um movimento intencional de natureza dialética pelo qual ele é ou manifesta-se a si mesmo - categorias de estrutura: corpo próprio, psiquismo, espírito - e é ou manifesta-se em face da universalidade do ser - categorias de relação: objetividade, intersubjetividade, transcendência. É no curso desse movimento ou desse duplo movimento - para-si, para-o-outro - que a experiência mística tem propriamente seu lugar antropológico. Ela pode ser considerada como que uma tensão paroxística entre ser e manifestação: entre o ser humano na sua finitude e nas condições da sua situação, e o dinamismo profundo ordenado ao Absoluto que move a sua automanifestação. Esse paroxismo ocorre num aflorar do Absoluto que, sendo o termo último do movimento intencional do sujeito, está, por isso mesmo, presente na origem e no curso desse movimento e, formalmente presente nos atos de inteligência e vontade com que o sujeito se auto-exprime: aqui, no apex mentis, acontecem a intuição e fruição do Absoluto, configurando o ato mais elevado da vida do espírito: a experiência mística. Esse aparecer do Absoluto pode assumir a modalidade do absoluto formal na afirmação metafísica do ser, quando esta é acompanhada da intensidade de uma experiência (a experiência metafísica) que tem por objeto a unidade e universalidade absolutas com que o ser se apresenta como cognoscível (Verdade) e como amável (Bem); ou então pode anunciar a presença do Absoluto real (Deus) que surge ao termo do movimento dialético de auto-expressão do ser humano, presença atingida seja indiretamente pela intuição do Absoluto como Fonte criadora - mística natural - seja diretamente pela intuição do Dom absoluto de um Amor infinito -mística sobrenaturaP:1• 32. É a lei inelutável formulada por Santo Agostinho: (... ) ut nemo ab ipsa veritate dejiciatur qui non recipiatur ab aliqua effigie veritatis (De Vera Religione, XXXIX, PL, 34, 154). 33. A intensidade quase mística da experiência metafísica é uma das raízes da mística especulativa. Sobre a questão da intuição ou contemplação natural de Deus e sua natureza mística ou quase mística, ver R. ARNOU, Contemplation III-B, Dictionnaire de Spiritualité, II, cols. 1742-1762.
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Por outro lado, o aparecer do Absoluto no movimento de autoexpressão do ser humano pode orientá-lo seja reflexivamente, na forma de uma experiência do Si substancial atravessado pela energia divina do Ato criador ou pelo apelo transformante do Amor infinito, dando origem às místicas do ênfase (ou da interioridade), seja objetivamente, ou na direção do Cosmos ou da História contemplados à luz do Absoluto que os envolve, ou na saída de si para a união fruitiva com o próprio Absoluto, dando então origem às místicas do êxtasil 4 • Nas místicas do ênfase o Absoluto é experimentado como que constituindo o fundo abissal, o interior interior intimo do próprio sujeito. Nas místicas do êxtase, na sua forma mais genuína, o Absoluto é experimentado como Absoluto pessoal - superior summo -, manifestando-se como Dom de si mesmo que introduz o místico na comunhão da vida divina. A experiência mística deve ser reconhecida, portanto, como um fato antropológico singular, cuja singularidade só pode ser reconhecida e interpretada nos quadros de uma adequada filosofia do ser humano. Desta sorte, a essência da experiência mística não é alcançada através dos procedimentos metodológicos das ciências humanas, na medida em que estas permanecem no plano da chamada "compreensão explicativa"35 , que trabalha com modelos abstratos aplicáveis apenas a dados selecionados da experiência. No momento em que passam a ocupar-se com experiências humanas que escapam manifestamente às características da experiência ordinária, mas que, por outro lado, ocorrem em sujeitos perfeitamente normais, como acontece emblematicamente com a experiência mística, as ciências humanas são obrigadas a recorrer, tácita ou declaradamente, a pressupostos filosóficos, e não é difícil descobrir a filosofia que subjaz a algumas das mais conhecidas interpretações "científicas" da experiência mística36 • Nesse campo, aliás, Sobre essa terminologia, ver L. GARDET, La Mystique, (co!. Que sais-je?), PUF, 1970, 27-28. Ver Antropologia Filosófica I, 13; 159-164. Exemplos: o pragmatismo em Williamjames, o idealismo em Henri Delao materialismo em ]ames Leuba. Sobre esses autores, ver J. MARÉCHAL, Etudes sur la psychologie des mystiques, vol. 1.
34. Paris, 35. 36. c:oix,
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o problema filosófico coloca-se inevitavelmente, pois a experiência mística faz sua aparição no ãmbito de uma questão especificamente filosófica: a questão da transcendência. A experiência mística pode e, mesmo, deve ser estudada cientificamente. Mas é necessário que as ciências humanas, ao aplicar-se a esse estudo, evitem todo tipo de reducionismo e/ ou explicitem a filosofia que as inspira, ou ao menos deixem aberto o espaço às interpretações filosóficas ou teológicas que dispõem de instrumentos conceptuais adequados para captar, na sua essência, o fenômeno da experiência mística37 • Como acabamos de ver, a tradição filosófica e teológica do Ocidente, até pelo menos os inícios da modernidade, pensou a experiência mística segundo um modelo antropológico fundamental que, nas suas grandes variantes - modelo dual ou trial -, e não obstante as diferenças que separam as místicas grega e cristã38, concebe a unidade do ser humano como uma unidade estrutural aberta, no nível superior do espírito, à universalidade do ser e ao conhecimento do Absoluto. É esse modelo que iremos encontrar dando significação e unidade às grandes formas de experiência mística que a tradição ocidental nos apresenta.
37. Sobre a legitimidade da investigação científica, em particular psicológica, da experiência mística e sobre sua compatibilidade com a interpretação filosóficoteológica, ver as observações pertinentes de A. MAGER, Mystik als seelische Wirklichkeit: eine Psychologie der Mystik, 11-29. Convém lembrar igualmente as páginas clássicas de J. MARITAIN, Expérience mystique et philosophie, ap. Les Degrés du Savoir, Paris, Desclée, 41946, 489-583. Ver também C!. TRESMONTANT, La mystique chrétienne et l'avenir de l'homme, 9-23. 38. Ver supra, nota 9.
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fORMAS DA EXPERIÊNCIA MÍSTICA NA TRADIÇÃO OCIDENTAL
A investigação histórica e a reflexão filosófico-teológica identificaram, na tradição mística do Ocidente, três grandes formas segundo as quais a experiência mística é vivida pelos místicos e pensada pelos teóricos da mística. Os traços característicos dessas formas permitem descobri-las e descrevê-las nesse ou naquele escritor místico e nessa ou naquela escola de espiritualidade. Na experiência concreta, porém, tais formas aparecem freqüentemente integradas no todo da experiência, tal como, na sua riqueza e complexidade, é vivida e descrita pelos grandes místicos. Essa observação vale particularmente para a mística cristã, que herdou da tradição grega uma estrutura conceptual e nela transfundiu um espírito novo, vindo a surgir daí um modelo ou modelos de experiência mística profundamente originais. Aqui também, pois, distinguir não é separar, mas tornar possível uma visão, ao mesmo tempo complexa e ordenada, da verdadeira fisionomia e das vicissitudes históricas desse evento espiritual aparentemente enigmático que denominamos Mística, que persiste em repetir-se na história e que, como reconheceu Bergson, é uma fonte inesgotável das mais altas aspirações éticas e religiosas a que uma civilização pode elevar-se. Distingamos, pois, três grandes formas de experiência mística na tradição ocidental: - a mística especulativa; - a mística mistérica; -
a mística profética. 29
ExPERIÊNCIA MísTicA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
As duas primeiras são comuns aos misticismos grego e cristão, levando-se em conta a profunda diferença do conteúdo doutrinal nas duas tradições. Já a mística profética é própria da tradição cristã, sendo essencialmente uma mística cristológica.
a. A mística especulativa A chamada "mística especulativa" pode ser considerada um prolongamento da experiência metafísica em termos de intensidade experiencial. Ela se apresenta, pois, como a face do pensamento filosófico voltada para o mistério do Ser, tentando mergulhar seu olhar nas profundidades propriamente insondáveis e inefáveis que assinalam a fronteira última do pensamento distinto e da palavra - do lagos. A mística especulativa é, portanto, o esforço mais audaz - na mística natural - e o apelo mais radical - na mística sobrenatural - para que o espírito humano, seguindo o roteiro do lagos, penetre no domínio do translógicoi. Ela floresce, assim, historicamente, nas proximidades dos grandes surtos do pensamento metafísico que marcaram a história da filosofia de Parmênides a HegeF. Nesse sentido, pode-se dizer que, em sua versão ocidental, a mística especulativa é originariamente grega, não obstante o vigoroso crescimento que conheceu em terras cristãs. Situa-se na vertente noética da consciência, desabrochando como que no seu vértice. É, portanto, uma mística do conhecimento, e essa é a feição original que a distingue na história da Mística. É em Platão que os estudiosos reconhecem habitualmente a fonte primeira da mística especulativa. Ela nasceu de algumas passagens dos Diálogos, que se tornaram quase canônicas, e foi, sem dúvida, alimentada pelas especulações sobre o Bem e o Uno, 1. Lembremo-nos de que o domínio da mística não é o domínio do alógico ou do irracional, mas do translógico: a realidade que se alcança com um passo além do lógico ou do pensamento conceptual. Ver A. BRUNNER, Der Schritt über die Grenze, 30-38. 2. Com efeito, alguns autores fazem remontar a Parmênides as origens históricas da mística especulativa; ver, por exemplo, K. KoMOTH, Hegel und die spekulative Mystik, Hegel-Studien 19 (1984): 65-93. 30
FORMAS DA ExPERIÊNCIA MísTICA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
que a tradição atribui ao ensinamento não-escrito do Filósofo3 • É justo, pois, afirmar-se que a mística especulativa tem sua origem nesse singular intento de Platão, que foi o de unir o entusiasmo e a razão 4 • Independentemente da interpretação da theoria platônica, seja como uma visão terminal da Idéia, de natureza quase mística e em descontinuidade com a ascensão dialética, seja a de uma intuição que coroa essa ascensão", é inegável que os temas e conceitos platônicos irão constituir um organismo teórico que será animado por correntes sucessivas de vida mística na antigüidade grega e no cristianismo dos primeiros séculos 6• A mística especulativa será, pois, fundamentalmente uma mística platônica, e será sob o patrocínio de Platão que mística e filosofia se unirão por estreitos laços na tradição do Ocidente. Fiel às suas origens platônicas, e desenvolvendo-se no campo temático aberto pela filosofia dos Diálogos e pela tradição nãoescrita, a mística especulativa apresenta-se dotada de uma estrutura fundamental que permanecerá constante através de todas as vicissitudes de sua história. Dois grandes eixos sustentarão essa estrutura: a) o eixo subjetivo, correspondendo a uma ordenação vertical e hierárquica das atividades cognoscitivas da alma (psyché, anima) e, por conseguinte, das formas de conhecimento, culminando 3. A Primeira Academia, onde essas lições foram ministradas, pode ser considerada a primeira escola de mística especulativa. A estrutura platônica da mística especulativa é sintetizada nos três princípios essenciais do platonismo, segundo E. voN IvANKA (Plato Christianus, 499): a) real e ideal integrados na unidade de um Todo ordenado; b) a totalidade do ser fluindo de uma fonte única, que é também a unidade originária; c) a existência do Uno originário é objeto, ao mesmo tempo, de certeza racional e de experiência mística, sendo o fim último da tendência essencial do homem. Ver ibid., 450-459, sobre os problemas levantados a propósito da integração dessa estrutura platônica na mística cristã. 4. Essa expressão é de V. GoLDSCHMIDT, Les Dialogues de Platon: structure et méthode dialectique, Paris, PUF, '1988, 337; ver à p. 341 a descrição do momento em que entusiasmo e razão se unem na intuição da essência. [ed. br.: Os Diálogos de Platão, São Paulo, Edições Loyola, 2001]. 5. A primeira dessas interpretações foi exposta por A.J FESTUGIÉRE em sua obra clássica Contemplation et vie contemplative selon Platon, Paris, Vrin, '1950; com ela concorda substancialmente R. ARNou, Contemplation, II/2, 1719-1725. 6. A comparação do organismo deve-se a A.J FESTUGIÉRE, op. cit., 5. 31
EXPERIÊNCIA MíSTICA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OCIDENTAL
com a inteligência (noús, mens) no seu ato mais elevado (nóesis, intuitio). A mística especulativa, em suas formas clássicas, admite, portanto, que o conhecimento humano possa elevar-se, seguindo a continuidade de um mesmo movimento espiritual, até o cimo da 7 mente (apex mentis), onde se dá a intuição do divino ou de Deus • O eixo subjetivo, que sustenta a experiência mística na sua forma especulativa, orienta, desta sorte, a alma na direção que conduz ao exercício pleno da sua capacidade de abrir-se ao Absoluto capax entis, capax Dei" - por uma forma de conhecimento supraracional, do qual se origina o êxtase do amor, num quiasmo perfeito entre conhecimento e amor, cuja expressão ultrapassa os limites da razão discursiva9 • b) o eixo objetivo está em perfeita homologia com o eixo subjetivo na estrutura da mística especulativa. Com efeito, esta repousa sobre a pressuposição de que, à capacidade do ser humano de conhecer e amar o Absoluto, corresponde a realidade objetiva desse mesmo Absoluto intuído e amado - vigora aqui o objetivismo da gnosiologia antiga, em cujos quadros nasceu e se desenvolveu a mística especulativa - numa paradoxal relação de sujeito a objeto, que forma como que o cerne da mística especulativa. De um lado, aí se manifesta o supremo esforço do espírito humano para alcançar, pelo conhecimento e pelo amor, o vértice da pirâmide do ser, tal como parece elevar-se aos olhos da sua inteligência. De 7. Na mística sobrenatural cristã, a elevação pela graça - no caso, uma graça atual gratis data - do contemplante é pressuposta ao ato da contemplação. 8. Segundo a tradição platônica, esse eixo atravessa todas as camadas da alma até atingir seu cimo; ver, no entanto, supra, nota 24, cap. 21. 9. Como é sabido, remonta igualmente a Platão a doutrina da íntima interrelação entre amor e conhecimento (eros e logos). A propósito, ver H. C. LIMA V A:z, Amor e Conhecimento: sobre a ascensão dialética no Banquete, Revista Portuguesa de Filosofia 12 (1956}: 225-242. Sobre a dialética amor-conhecimento , ver também P. MENESES, O conhecimento afetivo em Santo Tomás (co!. CES}, São Paulo, Loyola, 2000. SAo GREGÓRIO MAGNO resumiu essa inter-relação numa sentença célebre: Amor ipse notitia est (Hom. in &echielem, II, hom. 27, 4; PL, 76, 1207}. Para o pleno exercício dessa sinergia amor-conhecimento , impõe-se a necessidade, já realçada por Platão, da purificação (kátharsis) da alma como condição para a ascensão espiritual. O capítulo da "purificação" permanecerá fundamental no neoplatonismo (Plotino} e no cristianismo.
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FoRMAs DA ExPERIÊNCIA MísTICA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
outro, esse vértice do ser, apenas entrevisto, distancia-se ao infinito, mergulhado numa profundidade insondável, para além de toda intuição distinta 10 • A homologia que mantém em equilíbrio os dois eixos, subjetivo e objetivo, da mística especulativa exprime-se na equação ontológica inteligência = ser. É essa mesma homologia que permite construir igualmente o edifício da Metafísica. Nesta, porém, a inteligência procede por via discursiva e/ ou elabora, utilizando o procedimento analógico, o conceito universalíssimo de ser (absoluto formal) ou avança, na linha da afirmação judicativa, até a posição do Absoluto realn. Na mística especulativa a inteligência é elevada como que acima de si pelo ímpeto profundo de atingir 12 em si mesmo o Absoluto na sua plenitude absoluta de ser. Mas como atingi-lo desta sorte sem identificar-se, de alguma maneira, com ele e sem descobrir em si mesma uma identidade original com o Absoluto? Tal é, fundamentalmen te, o roteiro desenhado pela mística especulativa para seu itinerário, e que será a fonte de todos os problemas que sua prática e sua expressão 13 teórica encontrarão ao serem recebidas pela tradição cristã • O eixo objetivo da mística especulativa aponta tradicionalmente em duas direções o caminho para se atingir o Absoluto: o caminho do ênfase e o caminho do êxtase. Ou o caminho da descoberta do Absoluto no íntimo do Si substancial ou o caminho da sua descoberta no ápice da ordem ascendente dos seres. Em ambos os casos, o atingir assume a forma de um ver transracional, de um excessus mentis. Por outro lado, como falar do objeto dessa contemplação, senão transgredindo as regras da linguagem ordinária? O 10. Deve-se igualmente a l'L\TAO a fórmula para designar a transcendência absoluta que eleva o vértice da realidade para além do ser determinado, quando declarou a Idéia do Bem "para além da essência em majestade e poder" (epékeina tês ousias prebeia kai dynámei hyperéchontos, Rep., VI, 509 b}. As místicas neoplatônica e cristã usarão as preposições hyper = supra e melá = trans, para designar a transcendência do termo da ascensão mística. 11. Sobre o fundamento antropológico da Metafísica, ver o capítulo sobre a categoria da relação de transcendência, ap. Antropologia Filosófica 11, 93-137. 12. Os verbos "atingir" e ''tocar" (thingánein, attingere) são usuais na linguagem da mística especulativa. Ver Antropologia Filosófica I, 286, nota 161. 13. Esses problemas são discutidos por E. v. IvANKA, Plato Christianus, 453-457. 33
ExPERIÊNCIA MísTICA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃo OciDENTAL
problema da linguagem da mística especulativa está, pois, intimamente ligado ao problema da sua natureza: o paradoxo da linguagem de um savoir incommunicable\ que vem sendo transmitido desde Platão a toda a linguagem da mística especulativa e é uma das fontes, seja dito de passagem, da não raro desconcertante linguagem filosófica de Hegel. A tradição da mística especulativa se desdobra em duas grandes fases: a mística neoplatônica e a mística cristã. A essas convém acrescentar as formas filosóficas modernas de secularização da mística. O neoplatonismo é, na verdade, a matriz teórica e lingüística da mística especulativa. Ela tem nos textos de Platina como que suas escrituras canônicas. A discussão sobre a natureza da mística plotiniana deu origem a uma vasta literaturai5 • Seus traços fundamentais, cuja presença se prolongará de modo muito profundo na teologia mística posterior e nas modernas versões filosóficas da mística, de um lado dizem respeito à estrutura da alma e da inteligência e aos degraus correspondentes para a subida contemplativa; de outro, referem-se à natureza da união final no ápice da theoria entre a inteligência e o Uno 16 • Nesses dois temas da mística plotiniana estão presentes aqueles que serão os tópicos clássicos da mística especulativa: estrutura do espírito, degraus da ascensão mística, contemplação terminal, natureza do Absoluto e linguagem da contemplação. Depois de Platina a mística especulativa neoplatônica recebe uma importante contribuição por parte de seus sucessores, a começar por Porfírio, merecendo destaque Proelo (século V), que estabelece didaticamente a distinção entre 14. J. MARITAIN, Les Degrés du Savoir, 615-618. O silêncio na intuição místic~ ou quase mística foi assinalado por SANTO AGOSTINHO na narração do êxtase de Ostia
(Confessiones, IX, 3, 2-3). 15. Ver Antropologia Filosófica I, 276, notas 55 e 57 e R. ARNou, Contemplation II, 4, Dictionnaire de Spiritualité, II, c ois. 1727-1738. Ver ainda J. MARÉCHAL, Le seu! à seu! avec Dieu dans l'extase d'aprês Plotin, ap. Études sur la psychologie des mysttques, 51-87; W. BEIERWALTES, Reflexion und Einigung zur Mystik Plotins, ap. HANS U. v. BALTHASAR (org.), Grundfragen der Mystik, 7-16; O. LAcoMBE, Plotin, ap. GARDETLAcoMBE, L'expérience du soi, 51-84. 16. Ver a penetrante exposição de O. LACOMBE, Plotin, art. cit., 62-67. 34
FoRMAS DA ExPERIÊNCIA MísTICA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
conhecimento catafático (afirmativo) e conhecimento apofático (negativo), distinção que se tornará clássica na tradição teológicofilosófica posterior. Depois de Proclo a theoria neoplatônica deriva para formas de theurgia Qãmblico, século VI), que recorrem a práticas de tipo mágico para forçar a ação de Deus na transformação psicossomática daquele que se entrega à theoria. É esse o último capítulo da mística especulativa grega. Na tradição cristã, a mística especulativa irá conhecer um longo e complexo itinerário. Trata-se de um caso exemplar do encontro entre cristianismo e platonismo, na medida em que, ao longo de todo o seu desenvolvimento, foi marcado pela estrutura de pensamento e pelas categorias neoplatônicas. Por outro lado, no entanto, será a própria tradição cristã, fluindo das fontes bíblicas, que irá plasmar definitivamente a forma da mística especulativa no ciclo cristão da sua história. Sendo fundamentalmente a mística especulativa uma mística do conhecimento17 na sua forma mais elevada, ou seja, a contemplaçãoi8, será, de fato, em torno do problema da contemplação que irão constituir-se e diferenciar-se os diversos ramos da mística especulativa cristã. Em primeiro lugar convém acentuar que sua originalidade em face da mística filosófica grega provém do seu íntimo entrelaçamento com a versão cristã da mística mistérica e com a mística profética (v. infra). Com efeito, a mística cristã deve ser considerada um tronco único, cujas raízes mais profundas estão no Novo Testamento e do qual crescerão, como ramos freqüentemente entretecidos de maneira inextricável, as místicas especulativa, mistérica e profética. Em particular, a mística especulativa estará necessariamente presente em toda ocorrência do fato místico, pois a contemplação é o termo normal da expe17. Referimo-nos aqui ao termo grego gnosis, cuja fortuna, como é sabido, foi imensa na Antigüidade tardia. A partir de Clemente de Alexandria (séc. III) esse termo recebeu a acepção especificamente cristã que começara a ser elaborada por São Paulo. Ver J. LEMAiTRE ET AL., Contemplation III, I, ap. Dictionnaire de Spiritualité, II, cols. 1762-1768. 18. Theoria, termo de origem filosófica (Platão, Aristóteles) tem uma significação estritamente intelectual, distinguindo-se assim de gnosis, termo dotado, a partir da época helenística, de uma componente religiosa. Sobre as significações de gnosis, ver J. LEMAiTRE, loc. cit., co!. 1766.
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EXPERIÊNCIA MíSTICA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OCIDENTAL
riência mística, cuja interpretação teórica vê-se diante do problema maior de pensar distintamente e de exprimir na linguagem o objeto da contemplação: tarefa própria da mística especulativa 19 • A parte histórica do grande artigo sobre a contemplação do Dictionnaire de Spiritualité, não obstante os quase cinqüenta anos que se passaram desde a sua publicação (1953), continua sendo uma fonte extremamente rica e uma referência obrigatória para quem deseja acompanhar a história da theoria ou contemplação e, por conseguinte, da mística especulativa na tradição cristã. Ele será nosso guia nas páginas seguintes. A história da contemplação é percorrida pelos colaboradores do Dictionnaire de Spiritualité na parte principal que se refere à contemplação cristã - ela é precedida por um importante estudo de R. Amou sobre a contemplação entre os gregos -, seguindo duas tradições que crescem paralelamente, mas com características próprias: a mística especulativa na Patrística grega e seus prolongamentos na teologia bizantina, e a mística especulativa na Patrística latina e seus prolongamentos na teologia ocidental. É necessário, porém, observar que a matriz da mística especulativa cristã formou-se inicialmente entre os Padres gregos, mais próximos por tradição, língua e cultura da filosofia grega e, sobretudo, do médio neoplatonismo. Podemos, pois, considerar como patronos da mística especulativa cristã alguns dos representantes mais ilustres da Patrística grega: os alexandrinos Clemente e Orígenes (séc. III), o capadócio São Gregório de Nissa (séc. IV), denominado o "pai da mística cristã" 20 , Evágrio Pôntico (séc. IV), os escritos chamados pseudodionisianos (provavelmente inícios do séc. VI), Máximo Confessor (séc. VII). A obra do Pseudo-Dionísio, cuja influência foi enorme no Oriente e, a partir do século IX (primeiras tradu----·-----
19. A partir do século XVII continuam florescendo na Igreja admiráveis vocações místicas, mas a era das grandes obras místicas aparentemente termina. A era da sabedoria mística sucede aparentemente a era da ciência da mística. :W. Ver M. VILLER~K. RAHNER, Askese und Mystik in de Vdterzeit, Freiburg i. B., Herder, 1990, 1:13-145. Sobre Gregório de Nissa, ver a obra clássica deJ D.·\:\IÉLOL, Platonisme et théologie mystique, Paris, Aubier, 1946, e uma síntese em Contemplation III, Dictionnaire de Spiritualité, II, cols. 1R72-188!i.
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FoRMAS DA ExPERIÊNCIA MísTicA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
ções) no Ocidente, acabou por fixar definitivamente a estrutura conceptual e a terminologia da mística especulativa cristã21 • Por sua vez, a mística ocidental latina reconhece como seu mestre indiscutível Santo Agostinho (sécs. IV-V), que deu uma expressão latina e genuinamente cristã à terminologia e à estrutura conceptual da contemplação neoplatônica. A obra de Santo Agostinho, juntamente com a de São Gregório Magno (séc. VI), constituem a fonte principal da doutrina da contemplação na mística especulativa cristã no Ocidente, fonte que, a partir do século IX, misturará suas águas com a corrente provinda dos escritos pseudodionisianos. Nossa atenção volta-se sobretudo para a história da mística especulativa cristã no Ocidente. Menos especulativa, talvez, que a mística de expressão grega, ela conhece, no entanto, um surto vigoroso de crescimento que irá culminar na mística espanhola do século XVI e na chamada "invasão mística" (Henri Bremond) no século XVII francês. Um dos problemas fundamentais, e que representa a vertente especulativa dessa tradição mística, é o problema da intuição de Deus no cimo da contemplação. Foi estudado particularmente por ]. Maréchal, que investigou minuciosamente a respeito os escritos de Santo Agostinho e de Santo Tomás de Aquino 22 • Na história da mística especulativa do Ocidente manifestam-se duas tendências principais 23 : a) a tendência agostiniano-gregoriana, que prevalece no século XII, sem dúvida o século de ouro da mística medieval; b) e a tendência neoplatônico-dionisiana, que domina a produção dos textos místicos nos séculos XIV e XV. O grande élan místico do século XII conhece duas direções principais: a) a mística cisterciense - e, em sua órbita, a mística 21. Sobre a mística dionisiana, ver R. ROQUES, Contemplation III, Dictionnaire de Spiritualité, II, cols. 1885-1911. Com os escritos pseudodionisianos a expressão "teologia mística" (mystike theologia) entra definitivamente na terminologia da literatura mística cristã. 22. Ver Études sur la psychologie des mystiques, II, 20-47; 145-362. 23. O universo espiritual do século XII é reconstituído admiravelmente por J LECLERCQ, L'amour des lettres et le désir de Dieu, Paris, Cerf, 2 1953; Jnitiation aux auteurs monastiques du Moyen-Âge, Paris, Cerf, 1956; e por M.-D. CHENC, La théologie au X!Ie. siecle, Paris, Vrin, 1957.
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ExPERIÊNCIA MísTICA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OCIDENTAL
eremítico-cartusiana; b) a mística vitoriana, representada pelos mestres da escola que floresce na Abadia de São Vítor em Paris. Na mística cisterciense eleva-se a grande figura de São Bernardo de Claraval, à qual deve ser associada a de seu amigo Guilherme de Saint-Thierry. A doutrina mística de São Bernardo, de Guilherme de Saint-Thierry e seus discípulos procede diretamente do ensinamento de Santo Agostinho e de São Gregório Magno. Ela une o rigor teórico e a componente afetiva numa síntese original, cuja influência foi decisiva na história da espiritualidade ocidentaF 4 • A mística vitoriana, cujos mestres principais foram Hugo e Ricardo de São Vítor, une à tradição agostiniana a influência dos escritos dionisianos, o que acentua seu caráter especulativo 2". O século XIII será, como é sabido, o século das grandes construções teológicas. Seus grandes mestres irão, pois, aprofundar a natureza da contemplação mística do ponto de vista da ciência teológica e determinar sua significação na economia da vida cristã. Nessa tarefa destacam-se os grandes nomes de Santo Alberto Magno, São Boaventura e Santo Tomás de Aquino. Alberto Magno, inspirando-se nos escritos dionisianos, será o iniciador da corrente de mística especulativa que irá culminar na chamada "mística renana" no século XIV. São Boaventura levou a cabo uma síntese magistral entre a mística especulativa de tendência dionisiana e a mística afetivo-especulativa da tradição cisterciense, tendo como paradigma a vida mística de São Francisco de Assis. 24. A coerência da doutrina mística de São Bernardo e sua vertente especulativa foram magistralmente estudadas por E. GILSON, La théologie mystique de Saint Bernard, Paris, Vrin, '1947. Ver igualmente P. DELFGAAUW, Saint Bernard, maitre de l'amour divin, Paris, FAC Éditions, 1994, e os estudos reunidos em R. BRAGUE (org.), Saint Bernard et la philosophie, Paris, PUF, 1993. O livro de jEA:'i LECLERCQ, Saint Bernard mystique, Paris, Desclée, 1948, oferece uma excelente introdução e uma antologia de textos bernardinos sobre a mística. Sobre Guilherme de SaintThierry, ver a tese de A. BAUDELET, L'expérience spirituelle selon Guillaume de SaintThierry, Paris, Cerf, 1985; J. M. DÉCHANET, Contemplation V, Dictionnaire de Spiritualité, II, cais. 1961-1966. 25. Sobre Ricardo de São Vítor, ver o artigo de J. CHÃTILLON, Richard de SaintVictor, Dictionnaire de Spiritualité, XIII, cais. 594-654.
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FORMAS DA ExPERIÊNCIA MísncA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
Sua obra ocupa um lugar proeminente entre os clássicos da mística cristã26 • Tomás de Aquino é o artífice de uma "teologia da mística" - distinta da "teologia mística" -, na qual a vida contemplativa e o ato da contemplação recebem seu estatuto teológico e adquirem o perfil conceptual que serão reconhecidos como definitivos va teologia católica27 • Por outro lado, ao introduzir na análise da contemplação mística, como fruto do dom da sabedoria que acompanha a virtude teologal da caridade, a categoria de origem aristotélica do "conhecimento por conaturalidade"28 , Santo Tomás delineia uma solução genial para o problema central da mística especulativa cristã, qual seja, o problema do amor que conhece, do conhecimento (ou ciência) que procede do amor ou que conhece amando. Tomás de Aquino se nos apresenta, assim, como o grande mestre da inteligência espiritual coroada pela contemplação mística29 - sendo ele mesmo um grande místico -, ou ainda como o grande doutor do "saber comunicável" sobre a contemplação (teologia especulativa da contemplação), assim como São João da Cruz será o grande doutor do "saber incomunicável" (teologia prática da contemplação) 30 • 26. A ordenação de toda a teologia à contemplação é exposta por SÃo BoAVENTURA em seus opúsculos Breviloquium, Itinerarium mentis in Deum, De reductione artium ad Theologiam. Texto latino e tradução em L. DE BoNI ET AL., Obras escolhidas, Porto Alegre, Sulina, 3-218. 27. As passagens clássicas de SANTO ToMÁS a respeito encontram-se na Summa Theologiae, lia. Ilae, qq. 179-182, onde é tratada a distinção entre vida contemplativa e vida ativa, e a relação entre ambas; nas questões sobre o dom da inteligência (lia. Ilae, q. 8, aa. 1-8) e sobre o dom da sabedoria (lia. Ilae, q. 45, aa. 1-6). Sobre a doutrina da contemplação em Santo Tomás, ver LuciEN RoY, Lumiére et Sagesse; la grâce mystique dans la théologie de Saint Thomas d'Aquin, Montréal, IJimmaculée Conception, 1948; P. PHIUPPE, Contemplation V, Dictionnaire de Spiritualité, II, cais. 1~83-1987; J.-P. ToRRELL, Saint Thomas d'Aquin, Maitre spirituel, Friburgo S./ Paris, Ed. Universitaires/Cerf, 1996. 28. Summa Theologiae, lia. Ilae, q. 4.5, a. 2. 29. Ver Antropologia Filosófica, I, 254-260. 30. Essas expressões são de J. MARITAIN, Saint Jean de la Croix, praticien de la contemplation, ap. Les Degrés du Savoir, 615-697, com a ressalva de que a Teologia é una, sendo eminentemente especulativa e prática. Uma exposição magistral da doutrina da contemplação inspirada em Santo Tomás deve-se a J.-H. NICOLAS,
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EXPERIÊNCIA MíSTICA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OCIDENTAL
A mística especulativa na tradição mística ocidental irá conhecer um vigoroso crescimento nos séculos XIV e XV, no contexto histórico e cultural conhecido como Baixa Idade Média. No século XIV floresce a chamada "mística renana" e no século XV a "mística flamenga", esta, de resto, estritamente dependente daquela, de modo a justificar-se a expressão "mística renano-flam.enga", com a qual é conhecido o mais significativo movimento espiritual de fins da Idade Média. A influência dos escritos pseudodionisianos toma-se dominante e, por conseguinte, a influência dos motivos neoplatônicos. Trata-se, pois, de uma corrente mística na qual o problema do conhecimento do Absoluto, da sua possibilidade, das suas condições, dos seus modos e da expressão do seu objeto ocupa um lugar proeminente. A tendência intelectualista é mais visível na mística renana. Como observamos acima sua origem remonta ao ensinamento de Alberto Magno (séc. XIII), e seus principais representantes pertencem à ordem de São Domingos: Ulrico de Estrasburgo, o célebre Mestre Eckhart, o beato Henrique Suso,João Tauler31 • O estudo da mística renana desperta atualmente acentuado interesse e conhece grandes progressos 32 • Para tanto, contribuem as edições críticas das obras de seus principais representantes, o que permite um conhecimento mais exato de suas fontes, a determinação mais exata de seus principais temas e do seu exato conteúdo doutrinaP 3 • Convém lembrar ainda que a mística especulativa renana desempenhará papel importante na transformação moderna da mística em filosofia especulativa, que Contemplation et vie contemplative en Christianisme, Friburgo S./Paris, Éd. Universitaires, 1980, 48-95. 31. A esse tipo de mística os historiadores alemães deram o nome de "mística essencial" ( Wesensmystik), distinguindo-a da "mística nupcial" (Brautmystik), de caráter mais afetivo. "Essência" diz respeito aqui não ao objeto, mas ao modo da contemplação. Ver A. DEBLAERE, Mystique Il, Dictionnaire de Spiritualité, X, co!. 1912. Sobre a distinção entre "mística essencial" e "mística nupcial", e sua pertinên· cia, ver A. DE LiBERA, Introduction à la mystique rhénane, Paris, O. E. I. L. 1984, 235. 32. Para situar essa época no desenvolvimento da mística medieval, ver A. DEBLAERE, Mystique Il, Dictionnaire de Spiritualité, X, 1902-1919. 33. Ver a excelente síntese de A. DE LiBERA na obra citada Introduction à la mystique rhénane. 40
FoRMAS DA EXPERIÊNCIA MísTICA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
culmina em HegeP 4 • Por sua vez, a mística especulativa flamenga, cuja origem os historiadores identificam na comunidade espiritual de Groenandel e no magistério universalmente reconhecido de seu maior representante,Jan Ruysbroeck (t 1381), apresenta uma vertente afetiva mais marcante do que a mística renana. Dela procederá a chamada devotio moderna (G. Groote, t 1384, Thomas a Kempis, sécs. XIV-XV), que se desenvolve no século XV e assinala igualmente o declínio do élan especulativo da mística renano-flamenga. O fim da Idade Média assistiu igualmente, é importante assinalálo, a um esforço de sistematização didática da mística cristã, inaugurando um gênero literário que perdurará até nossos dias. Trata-se de definir o lugar da mística e, em particular, da mística especulativa, no edifício da vida espiritual. É a época que vê surgir os tratados De mystica theologia, como os de Thomas Gallus e Hugo de Balma (séc. XIII), de H. Herp (Harphius) (séc. XIV), e os do célebre chanceler da Universidade de Paris, Jean Gerson (sécs. XIV-XV), conhecido pelas críticas à mística especulativa flamenga e, ao mesmo tempo, como sistematizador da teologia mística nas suas duas obras De mystica theologia speculativa e De mystica theologia practica. A história da mística especulativa cristã no Ocidente atinge, pois, seu apogeu em fins da Idade Média, para declinar nos inícios da Idade Moderna. A modernidade verá surgir, em lugar da mística especulativa, a filosofia especulativa, na trilha do movimento geral de secularização do pensamento35 . 34. Ver K. CoMETH, Hegel und die spekulative Mystik, 76-77. As relações da mística especulativa com a noética pós-tomásica são resumidas por A. DE LIBERA, La Philosophie médiévale, (co!. Que sais-je?), Paris, PUF, 1989, 110-113. 35. A idade de ouro da mística moderna, ou seja, o século XVI espanhol, assinala-se, como é sabido, pela inflexão psicológica que então é dada à análise da vida espiritual (estrutura psicológica da oração e seus métodos). Santa Teresa de Jesus é a mestra consagrada da análise psicológica da experiência mística, e sua obra tem um eminente caráter pedagógico nos caminhos da oração. Ver a síntese recente de T. ALVAREZ, Thérese de Jesus (Ávila), Dictionnaire de Spiritualité, fase. XCVIII (1990): cols. 611-658. São João da Cruz põe decididamente em relevo a vertente especulativa da ascensão mística, tendo esse aspecto de seu ensinamento sido interpretado em perspectiva idealista por J. BARUZI em sua obra clássica Saint Jean de la Croix et le problême de l'expérience mystique, Paris, Alcan, 2 1931. Uma 41
ExPERIÊNCIA MísTICA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
Com efeito, o destino da mística especulativa nos tempos modemos estará intimamente ligado ao destino da inteligência espiritua~ órgão próprio da contemplação metafísica e da contemplação mística:l6. A inteligência espiritual submete-se, a partir de Descartes, à inflexão noética determinada pela primazia gnosiológica e, por conseguinte, ontológica do sujeito, em cuja imanência é absorvida a dimensão transcendente do Ser. A cultura profana dos tempos modemos assiste, desta sorte, a uma seculari;:p,ção da mística, desenvolvendo-se em várias direções e atingindo primeiramente a mística especulativa na sua intenção de alcançar uma forma supradiscursiva ou intuitiva de conhecimento do Absoluto. A secularização da mística começa por atingir o próprio termo "mística". Da sua significação elevada ao cimo da linguagem teológica nos tratados De mystica theologia da Baixa Idade Média, ele é dessacralizado, banalizado e mesmo rebaixado a uma significação pejorativa no clima racionalista ou empirista da filosofia dos séculos XVIII e XIX37 • Na verdade, porém, é o próprio conteúdo e a significação profunda da mística especulativa que sofrem uma profunda transformação ou, mais exatamente, uma completa inversão da direção do seu vetor intencional ao longo da cultura e da filosofia modernas. Essa inversão desdobra-se, por sua vez, em duas linhas: a primeira estende-se pelo campo da reflexão filosófica com a formação da metafísica da subjetividade, que atinge sua forma acabada em Hegel; a segunda avança pelo campo da vida cultural e política, onde a intencionalidade mística do Absoluto dobra-se às exigências da absolutização interpretação penetrante, de matiz hegeliano e, sob alguns aspectos, discutível, é a de G. MoRE L, Le sens de l'exístence selon Saint Jean de la Croix, 3 vois. O estatuto teórico da mística sanjuanista foi magistralmente estabelecido por J. MARITAIN em "Saintjean de la Croix, praticien de la contemplation" e "Todo y Nada", ap. Les Degrés du Savoir, 615-765. 36. Ver Antropologia Filosófica L 260-271. 37. Ver H. V. LESSING, Mystik, mystisch, Hístorísches Worterbuch der Philosophie VI (1984): cols. 268-279 (aqui, co!. 270). A recuperação do termo "místico", mas já num sentido profundamente diferente da antiga acepção teológica, tem início com o romantismo e com LESSING (ibid., 271-272). A acepção teológica estrita é conservada na terminologia da teologia católica. No século XX o termo é reabilitado filosoficamente na corrente fenomenológica (Scheler, Heiler etc.) e por H. Bergson. 42
FoRMAS DA EXPERIÊNCIA MísTicA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
pós-hegeliana da práxis, vindo desembocar no niilismo moderno e, já agora, pós-moderno. Ambas essas linhas desenrolam-se sob o signo do que foi chamado o "titanismo'\18 - evocando a revolta dos Titãs contra os deuses na mitologia grega - da cultura moderna pós-cristã. Esse titanismo caracteriza-se pela transfusão de antigos motivos gnósticos no projeto verdadeiramente titânico de inversão radical do anúncio cristão da Encarnação do Verbo de Deus: projeto de autodeificação do ser humano na imanência da sua história. Tanto na sua vertente teórica ou filosófica, quanto na sua vertente prática, esse projeto define perfeitamente a secularização da mística especulativa nos tempos modernos. Aqui a transcrição do especulativo no prático - fenômeno tipicamente pós-hegeliano39 - mostra-se igualmente como sendo a transcrição, nos quadros de uma cultura da imanência, do antigo problema das relações entre ação e contemplação. A linha teórica de imanentização da mística especulativa caminha, primeiramente, através da tradição teosófica alemã inaugurada por Jacob Bohme, e cuja influência sobre o Idealismo alemão é conhecida40 • Essa linha prolonga-se no Romantismo alemão, alimentada justamente pela vizinhança com os grandes sistemas idealistas 4I. No entanto, a herança da antiga mística especulativa foi recolhida sobretudo pela vertente racionalista e idealista da filosofia moderna. A transformação da mística em filosofia especulativa avança, de Espinoza a Hegel, para o reconhecimento de uma 38. Ver H. U. v. BALTHASAR, Theodramatik, II, I, Einsiedeln, Johannes Verlag, 1976, 385-391. 39. É essa a ruptura revolucionária do pensamento no século XIX estudada na obra clássica de K. LowiTH, Von Hegel z;u Nietz;sche: der revolutioniire Bruch im Denken des XIX]ahrhunderts, Stuttgart, Kohlhammer, 1956 (tr. Fr., Gallimard, 1969). 40. Ver, sobretudo, H.-R. ScHMITZ (E. R. KoRN),Jacob Boehme et l'avenement d'un homme nouveau, Revue Thomíste 78 (1978): 5-31; 561-617; e outros estudos sobre Boehme do mesmo autor na Revue Thomiste, que são utilizados e comentados por Y. FwucAT no capítulo "Regard chrétien sur la siguification théologique et mystique de !'aventure philosophique moderne", ap. Métaphysique et Religion: vers une sagesse chrétienne intégrale, Paris, Téqui, 1989, 159-172. Sobre a dimensão "profética" do pensamento de Boehme, ver H. DE LUBAC, La postérité spirituelle de joachim de Piore, Paris/Namur, Lethielleux/Culture et Vérité, 1979, I, 218-225. 41. Ver E. BENZ, Les sources mystiques de la philosophie romantique allemande, (tr. fr.), Paris, Vrin, 1968.
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identidade entre ambas sob a égide da Razão dialética ( VernunftJ, que a clarividência hegeliana reconheceu e proclamou em face da rejeição da mística pelas filosofias do Entendimento ( Verstand} 4 ~. O desfecho dessa absorção da mística pela filosofia terá lugar, aparentemente, na evolução do pensamento de M. Heidegger, com o movimento inverso da dissolução da filosofia numa espécie de pensamento místico-poético, visivelmente imanentista, do Ser43 • A transformação, operada nos tempos modernos, da mística especulativa em metafísica da subjetividade mostra, desta sorte, uma flagrante analogia com a transformação da Teologia especulativa em Filosofia da Religião, obedecendo, de resto, a uma lógica que é imanente à formação da modernidade". Em ambos os casos, a primazia do Sujeito impõe suas exigências em confronto com a transcendência metafísica do Ser. A teologia e a mística devem, pois, submeter-se ao que Hegel denomina "a grandeza do ponto de vista do mundo moderno, esse aprofundamento do sujeito em si, vem a ser, que o finito sabe-se como infinito e está, portanto, enredado com a oposição que é impelido a dissolver" 45 • É assim que a dissolução da oposição entre o finito e o infinito, designada como tarefa primordial da hybris da modernidade, atinge do modo mais radical a mística especulativa, no momento em que 42. Ver Einleitung in der Geschichte der Philosophie, (ed. Hoffmeister), Leipzig, Meiner, 1940, 209-210; Vorlesungen über die Philosophie der Religion, (ed. Jaeschke), Teil 3, Hamburgo, Meiner, 1984, 205-208 (sobre o conteúdo especulativo do mystérion): ver a nota do editor, p. 353; e a importante nota de HEGEL sobre as relações entre filosofia e religião, Enzyklopiidie der philosophischen Wissenschaflen (1830), 573, nota. A leitura filosófica da mística especulativa em Hegel obedece ao modelo neoplatõnico, em que há continuidade entre o movimento dialético e o seu termo (ver E. v. lvANKA, Plato Christianus, 453). Assim, a componente afetiva dos místicos tardo-medievais e a dialética amor-conhecimento ficam fora da sua perspectiva. A filosofia como mística, para Hegel, terá, em suma, seu fundamento na suprassunção da religião na filosofia. Sobre a compreensão hegeliana do mistério, ver E. BRITO, Dieu et l'être d'aprés Thomas d'Aquin et Hegel, (co!. Théologiques), Paris, PUF, 1991, 42-56. 43. Ver supra, nota 15, cap. I. 44. Ver H. C. LIMA V AZ, Religião e modernidade filosófica, ap. M. C. L. BINGEMER (org.), O impacto da modernidade na religião, São Paulo, Loyola, 1992, 83-107. 45. Vorlesungen über die Philosophie der Religion 111 {Wt?rke, ed. Moldenhauer-Michel, 17, p. 207).
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FoRMAS DA EXPERIÊNCIA MísTICA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
o alvo da unia mystica deixa de ser a profundidade insondável do Deus transcendente e é posto na História ou, mais exatamente, na práxis histórica do ser humano, absolutizada como práxis demiúrgica de um mundo onde impera a total autárkeia do ator histórico, celebrando o triunfo de um titanismo historicamente realizado. Desde esse ponto de vista, é permitido considerar a teoria e a prática da modernidade como o imenso processo da gênese do homem novo a partir do espírito da Mística, para usar uma expressão nietzscheana que já foi usada por Karl Joel para falar do nascimento da filosofia46 • Com efeito, é lícito supor que a poderosa energia espiritual que elevava o homem antigo-medieval em direção ao theíon, ao divino, reflui nos tempos modernos para o próprio homem e arrasta-o nessas correntes que foram justamente denominadas de humanismo ateu47• Com efeito, o destino da mística especulativa, na sua transmutação moderna em metafísica da subjetividade e em absolutização da práxis, pode ser decifrado nas vicissitudes desse surpreendente e desafiador fenômeno que marca de maneira profunda a humanidade ocidental, e pode ser considerado o doloroso parto da primeira civilização não-religiosa da história. O tema do humanismo ateu é objeto de uma vasta literatura. Lembramos apenas que ele conhece fases em seu desenvolvimento 48 , e que a direção de fundo desse desenvolvimento pode ser traçada a partir do prometeísmo dos inícios até esse niilismo que se difunde na nossa civilização como último avatar da humanização da mística especulativa, banalizada na frenética mística do consumo que se alastra sob a premência do eras moriemur (amanhã morreremos) 49 . 46. K. JoEL, Die Geburt der Philosophie aus dem Gezste der Mystik ( 1906). 4 7. A obra clássica de H. DE LuBAC, Le drame de l 'humanisme athée, Paris, Spes, 1945 (nouv. éd., Cerf., 1983), embora em parte ultrapassada quanto à documentação, continua de indiscutível atualidade. A gênese do "novo homem" é, por sua vez, analisada magistralmente por DE LcBAC em "La recherche d'un homme nouveau", ap. Ajfrontements mystiques, Paris, Témoignage chrétien, 194~), 17-92. 48. Uma tentativa de descrição dessas fases em H. C. LI~!.\ VAz, Religião e sociedade nos últimos vinte anos (1965-1985), Sintese 42 (1988): 27-47. 49. Em sua primeira obra, Apokalypse der deutschen Seele, 3 vols., Salzburg, A. Pustet, 1937-1939. cuja importância foi ofuscada pela guerra, H. U. HJ:\ BA!:I'IIASAiZ caracteriza três fases do ateísmo, situando-as sob o signo de Prometeu (das Prome-
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ExPERIÊNCIA MísTicA E FILosoFIA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
O século XIX foi, sem dúvida, a época que assistiu às mais espetaculares inversões da mística especulativa - do prometeísmo marxiano ao dionisismo nietzscheano 50 • Foi formulada mesmo a tentativa de nele se demonstrar, como sendo sua aspiração mais profunda, perseguida tenazmente, aquela que pode ser considerada a essência da inversão a que é submetida a mística especulativa na modernidade: a identidade entre mito e razão e sua celebração nas diversas formas da religião da imanência51 • Essas formas encontram as expressões mais representativas seja nos mitos literários da idade romântica, seja nas gnoses filosóficas, seja, enfim, nas utopias político-sociais que, germinando no século XIX, irão produzir em nosso século os frutos amargos que todos conhecemos. Todas essas expressões podem ser, talvez, condensadas no lema religião da Humanidade, que A. Comte celebrizou e que definiu, para muitos, o espaço místico de uma forma de religiosidade pós-cristã intensamente vivida52 • Quanto à utopia sociopolítica, representa, sem dúvida, a forma mais dramática de secularização da mística especulativa, aquela cuja incidência nas peripécias da história real segue uma trajetória paradigmática para a definição das relações entre mística e política: a trajetória da mística e do mito da Revolução 53 • Aqui cumpre-se finalmente o destino da mística especulativa na sua transmutação moderna em mística da imanência, manifestado no "desígnio que inspirou a vertente titânica theusprinzip), de Dionísio (das Dyonisiusprinzip) e da morte (das Thanatosprinzip). Um vigoroso esboço do tipo histórico que é denominado o homem "sem medida" (ohne Mass) - perfeita antítese do místico em seu excessus in Deum - é apresentado pelo mesmo autor em seu Theodramatik, 11, 1, Der Mensch in Gott, 382-393. Ver também M. CARROUGES, La mystique du surhomme, Paris, Gallimard, 1947. 50. Ver a análise penetrante sobre "Nietzsche mystique" de H. DE LuBAc, Affrontements mystiques, 143-183. 51. É a tese desenvolvida por PH. MuRAY, Le dix-neuviéme siécle à travers les âges, Paris, Denoel, 1984 [ver recensão em Síntese 34 (1985): 117-122]. 52. A propósito do caso exemplar de A. LorsY, ver a obra recente de E. PouLAT, Critique et Mystique: autour de Loisy ou la conscience catholique et l'esprit moderne, Paris, Le Centurion, 1984, 217-306. Ver igualmente P. BÉNICHOU, Le temps des prophétes, Paris, Gallimard, 1977. 53. Descrevemos brevemente essa trajetória no texto "Destino da Revolução", Síntese 45 (1989): 5-12. 46
FoRMAS DA EXPERIÊNCIA MísTICA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
do Romantismo alemão, qual seja, o de dirigir para a imanência do tempo e da história - ou para o absoluto da Natureza - as torrentes de aspiração mística abertas no mais profundo da alma humana pelo dom sobrenatural da graça54 •
b. A mística mistérica Essa designação é, etimologicamente, um pleonasmo, pois "mística" e "mistério" provêm da mesma raiz55 , e toda mística é, por definição nominal, mistérica. Mas a denominação de "mistérica" atribui-se convencionalmente a uma fo!ma de experiência do divino (theinn) ou do "deus" (theós) que floresceu nos antigos cultos mistéricos ou iniciáticos da tradição grega. A experiência de Deus no mistério cristão (sacramental ou litúrgico) apresenta analogias com esses cultos, fundadas em algumas influências históricas, o que explica em parte a presença de certa forma de mística mistérica na tradição cristã. Trata-se, pois, de uma forma de mística que se distingue da mística especulativa, na medida em que o espaço intencional onde se desenrola a experiência de Deus não é o espaço interior do sujeito ordenado segundo a estrutura vertical do espírito, mas o espaço sagrado de um rito de iniciação os recém-batizados eram denominados na liturgia oriental mjsteis, ou seja, "iniciados", donde o nome de Catequeses mistagógicas dado à instrução que recebiam após o batismo - ou de um culto. No entanto, é preciso não esquecer que, sendo uma experiência, a mística mistérica é vivida, evidentemente, no campo interior da 54. Ver H. C. LIMA V AZ, Mística e Política, Síntese 42 (1988): 5-12 (aqui p. 7). Provavelmente na trilha da secularização da mística especulativa, mas em reação a ela e às formas militantes da "mística da imanência", deve ser assinalado o movimento de recuperação, na primeira metade do nosso sêculo, do "fato místico" nos níveis psicológico, sociológico, filosófico e teológico, no qual se distinguiram nomes como os de Henri Delacroix, H. Bergson, Jean Baruzi, F. Heiler e outros, e filósofos e teólogos católicos como J. Maréchal, L. Massignon, J. Maritain, C. Butler, A. Stolz, A. Mager, R. Garrigou-Lagrange, O. Lacombe, L. Gardet e outros. Ver, a propósito, E. PouLAT, Critique et Mystique, 260-306 e GARDET-LACOMBE, L'expérience du so~ 7-14. 55. Ver supra, nota 6, cap. 1.
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ExPERIÊNCIA MísTICA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
consciência, orientado, porém, nesse caso, não para a "fina ponta" da alma, como na mística especulativa, mas para o conteúdo objetivo do mistério. Trata-se de orientações distintas, conquanto não opostas, que dão origem a dois estilos de experiência de Deus: a experiência reflexiva5li e a experiência litúrgica, inspirando duas concepções da mística57 , nascidas ambas no solo comum da revelação cristã e dele recebendo sua seiva. As primeiras manifestações da mística mistérica devem ser buscadas, portanto, nos cultos de mistérios da tradição religiosa grega. A origem desses cultos, sua natureza exata e sua estrutura iniciática constituem um tema clássico de investigação e discussão entre os historiadores da religião grega e da antigüidade cristã58 • Os mais célebres são os mistérios de Elêusis e de Dionísio e o orfismo. A estes vieram juntar-se os cultos orientais que invadem o mundo greco-romano a partir da idade helenísticas 9 • Não é fácil caracterizar uma mística mistérica no contexto dos cultos de mistérios da tradição grega. Tal caracterização envolve problemas de natureza histórico-crítica, fenomenológica e filosófica. Os cultos de mistérios são, com efeito, uma das formas de vivência e expressão dos mitos transmitidos através da história religiosa e cultural da Grécia antiga. No caso do culto de mistérios, convém distinguir, igualmente, as dimensões subjetiva e objetiva de uma experiência do divino ou do deus, e que será objeto de transposições literárias e filosóficas. A dimensão subjetiva orienta-se, aqui, no sentido de uma "assimilação" ao deus (homoíosis theô), ou seja, de comunhão com as realidades divinas em vista da libertação dos males da vida presente, sendo essa uma das aspi56. Usamos esse termo. à falta de outro melhor. para caracterizar uma experiência cujo vetor intencional se volta para a interioridade do sujeito. 57. Essas duas concepções alimentaram uma controvérsia na literatura teológica contemporânea, na qual se destacaram os dois beneditinos A. Stolz e A. Mager. Ver infra, nota 81 e A. MAGER, Mystik als seelische Wirklichkeit, 26-29. 58. Ver o exaustivo artigo de R. fLOOET~K. PRL'MM, Mystéres, Dictionnaire de la Bible (Supplément). VI, co!. 2, 2-225; síntese da questão e bibliografia em W. FAt:TH, Mysterien, ap. Der kleine Pauly, DTV, 1979, 3, cols. 1533-1542. 59. Ver K. PRl''!M, Mystéres, 87-151. 48
FORMAS DA EXPERIÊNCIA MíSTICA NA TRADIÇÃO OCIDENTAL
rações mais profundas do homem antigo 60 • Essa busca da libertação se exprimirá seja no discurso filosófico - e é nesse terreno que a filosofia se prolonga em mística - seja no discurso religioso. Em ambos os casos o conhecimento é caminho de "salvação" (sôtería), e é assim que acaba assumindo um caráter iniciático, sendo o termo do caminho, para o filósofo, a visão da Verdade 61 , e para o iniciado nos mistérios (mystes), a visão (epoptía) do deus 62 • Nessa sua vertente subjetiva, a mística mistérica apresenta assim dois frutos: o conhecimento de uma verdade superior e propriamente divina, e a transformação do iniciado em novo ser pelo dom divino (theia moira) e pela presença interior do deus (enthousiasmós) 63 • Como é sabido, para Platão a forma privilegiada da inspiração divina que conduz à intuição da Idéia suprema do Belo é o amor (eros). Por outro lado, uma passagem do diálogo Fedro mostra-nos os diferentes tipos de dom ou partilha divina (theia moira) que conferem ao ser humano uma forma mais alta de conhecimento e culminam no eros filosófico 64 • Aqui aparece como que o lugar de inserção da mística mistérica no espírito grego, 60. Ver as páginas clássicas de A.
J.
FESTUGIÉRE, L'idéal religieux des Grecs et
l'Évangile, Paris, Gabalda, 1932, 161-169. 61. Assim, o proêmio do poema de PARMÉNIDES (DK 18, B, 1) apresenta a estrutura de uma iniciaç.ão mistérica. Sobre as interpretaç.ões e o sentido desse Prólogo, ver M. PIMENTA MARQUES, O caminho poético de Parmênides, (co!. Filosofia, 13), São Paulo, Loyola, 1990, 34-54. O tema do "assemelhar-se a Deus" é tipicamente platônico (Teeteto, 176 a-b). É conhecido, por outro lado, o uso que Platão faz nos Diálogos da terminologia dos mistérios. Ver, por exemplo, epopteuin (contemplar), epoptia (contemplação), epoptikós (contemplante), em Banquete 210 a; F.edro, 250, c; Leis, VII, 333 e; ou o termo mystéria (coisas santas) em Teeteto, 156 a. Ver o capítulo sobre Platão em A. J. FESTUGIÉRE, L'idéal religieux des Grecs et l'Évangile, 44-53; e, do mesmo autor, o capítulo sobre a kathársis platônica em Contemplation et vie contemplative selon Platon, 123-153. 62. Trata-se de uma verdade reservada ao iniciado (daqui o termo mystérion ou sacramentum) e que, como tal, é propriamente "mística". 63. Ver a descrição do caso exemplar dos mistérios de Elêusis e a descriç.ão do êxtase místico (cultuai ou filosófico) em E. DES PLAc~s, La religion grecque, Paris, Picard, 1969, 207-214; 308-320. A tradição do enthousiasmós no cristianismo foi estudada brilhantemente por R. A. Krmx, Enthusiasm: A Chapter in the History of Religion, Oxford, Clarendon Press, 1950, que vai da comunidade paulina de Corinto ãs formas modernas do revivalismo. 64. Fedro, 244 a-257 b; trata-se do segundo discurso de Sócrates, o elogio do éros. 49
FoRMAS DA ExPERIÊNCIA MísTICA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
ExPERIÊNCIA MísTICA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
desde que aceitemos nele a presença da dimensão que foi impropriamente chamada "irracional" 65 , e na qual se desenvolve esse lado místico - ou mistérico - do helenismo que marcou tão profundamente a cultura ocidental66 • O lado objetivo da mística mistérica grega diz respeito justamente ao que é mystérion. Compreende as realidades intuídas na visão final do mjstes, vem a ser, na epoptía, na qual se descobre o que é contemplado (tà epoptikâ}, mas este, por outro lado, é inefável (árrheton) e resguardado pela disciplina do segredo. O conteúdo do mystérion é o mjthos, desvelado mas não racionalizado. Na tradição grega, o mjthos foi submetido a pelo menos três tipos de interpretação: a alegórica, a filosófica e a cultual A primeira é essencialmente literária e desenvolveu-se através de uma complexa técnica interpretativa, mais tarde utilizada pelo alegorismo judaico (Fílon de Alexandria) e cristão. O mito filosófico, ilustrado sobretudo por Platão, enquanto "discurso da verossimilhança" (eikàs lógos), obedece a motivos gnoseológicos diversos ao ser aplicado seja às realidades sujeitas ao movimento e ao tempo - bem como à narração das origens (Timeu) -, seja à natureza das almas (Fedro) ou à história do seu destino (Górgias, Fedon, República) 57• O mito filosófico, a partir de Platão, terá, sem dúvida, estreitas relações com o mito nos cultos mistéricos, mas estes seguem sua lógica própria. Ou melhor, deles procede um logos especificamente distinto do logos filosófico, caracterizado como "discurso sagrado" (hieràs logos), do qual são conhecidas duas formas: o hieràs logos literário e o hieràs logos cultual68 • Ambos apresentam, porém, a mesma estrutura cog-
noscitiva, distinguindo-se pelo fato de que o hieràs logos cultuai é acompanhado por práticas ou ações rituais (erga) que devem conduzir a um conhecimento (gnósis), obtido numa contemplação (théa), tendo como objeto o divino ou o deus (theíon, theós). É exatamente na estrutura desse processo que tem lugar um tipo de experiência que caracterizaria a "mística mistérica" na tradição grega. Tal designação, no entanto, envolve uma realidade complexa, não totalmente elucidada pelos historiadores 69 • Os cultos mistéricos, os mistérios literários e a própria filosofia nas suas expressões platonizante ou estóica - sem falar do nascente gnosticismo - adensavam em torno do termo mystérion, ao fim da era helenística, um halo religioso e místico que envolvia o clima espiritual do mundo no qual o cristianismo começava a difundir-se 70 • Era inevitável que alguma coisa da linguagem e da temática do mystérion helenístico viesse a ser recebido na forma e na linguagem do anúncio denominado justamente por Paulo o mystérion de Deus revelado em Jesus Cristo. Essa nova realidade do mystérion irá inspirar uma mística mistérica autenticamente cristã. Inicialmente é importante sublinhar que, não obstante todas as tentativas para se estabelecer uma relação de continuidade e de dependência entre o mystérion helenístico e o mystérion cristão 71 , as diferenças entre as duas versões do mystérion que estão na origem da nossa tradição mostram com límpida evidência a originalidade do mystérion cristão. Ora, é dessa originalidade que a mística mistérica cristã recebe seus traços característicos. Ela não será mais do que a experiência intensamente vivida da vida em nós desse
65. Tal o título dado por E. R. Do o os ao seu livro clássico The Greeks and the University of California Press, 1951. 66. Esse aspecto é realçado no belo texto de R. FLACELIÉRE, La Grece antique et les mysteres, ap. Le Mystére, (Semaine des Intellectuels catholiques, 1959), Paris, P. Horay, 1960, 203-216. O tema é retomado amplamente no seu aspecto filosófico por J. FRÉRE, Les Grecs et le désir de l'être: des Préplatoniciens à Aristote, Paris, Les Belles Lettres, 1981. 67. Ver a síntese de W. BuRKERT, Mytbos II, Historisches Worterbuch der Philosophie VI (1984): cols. 281-283. _ 68. Ver A. J. FESTUGIÉRE, L'idéal religieux des Grecs et l'Evangile, 116-132. Os mistérios literários e culturais distinguem-se também pelo alvo que perseguem: os
primeiros visam ao conhecimento e à união a Deus (theíosis); os segundos, à felicidade (eudaimonia). 69. Ver A. J. FESTUGIÉRE, L'idéal religieux de Grecs et l'Évangile, 132-142 sobre
Irrationa~
50
"mistério" e "misticismo".
70. Ver a respeito, A.
J.
FESTUGIÉRE, Cadre de la mystique hellénistique, ap.
Hermétisme et mystique pai'enne, Paris, Aubier, 1967, 13-27. 71. Ver a síntese dessa questão em L. BoUYER, Le rife et l'homme: sacralité naturelle et liturgie, Paris, Cerf, 1962, 170-208; e uma excelente exposição em H. RAHNER, Griechische Mythen in christlicher Deutung, Zurique, Rhein-Verlag, 1945, 21-72 (há uma tradução francesa dessa obra magistral: Mythes grecs et mystere chrétien, Paris, Payot, 1954). 51
ExPERIÊNCIA MísTICA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
mystérion, traduzindo-se na sinergia entre o Espírito de Deus e o nosso espírito, que leva Paulo a exclamar: "Não vivo eu, Cristo vive em mim" 72 • A mística mistérica cristã organiza-se, pois, em torno das categorias de Batismo, Ressurreição e Vida nova - categorias fundamentais em Paulo e João -, em que a vida verdadeira é tanto a vida revelada e oferecida no mystérion de Cristo quanto a vida recebida e vivida pelo cristão na sua participação ou incorporação a esse mystérion. A primeira constitui a dimensão objetiva da mística mistérica cristã; a segunda, sua dimensão subjetiva. Por sua vez, a dimensão objetiva do mystérion cristão pode ser considerada sob dois aspectos que permitem, de resto, estabelecer com maior exatidão suas relações com o mystérion helenístico: o primeiro diz respeito à revelação do mystérion segundo o modelo do kérygma paulino e joanino; o segundo refere-se à dimensão cultuai do mystérion, que se desenvolve e enriquece ao longo do desenvolvimento da liturgia cristã até atingir o esplendor da ação litúrgica descrita e alegorizada pelo Pseudo-Dionísio em seu De ecclesiastica
hierarchia. 73 No mystérion anunciado por Paulo e João estão presentes as duas dimensões: a do que é anunciado e a do que deve ser vivido. 72. Gl 2,20; São Paulo é a fonte primeira da "mística mistérica" cristã; a essa fonte convém acrescentar os escritos joaninos, embora neles não compareça o termo mystérion. Quanto à pertinência do termo "mística" aplicado ao ensinamento de Paulo e de João, ver as observações de]. Ht:BY, Mystiques paulinienne et johannique, Paris, Desclée, 1946, 6-9. Sobre "mística" e "mistério" na tradição cristã, ver P. AGAESSE-M. SALES, Mystique III: mystique et mystere, ap. Dictionnaire de Spiritualité, X, cols. 1939-1948. 73. O termo tà mystéria ocorre nos Sinóticos (Mt 13,11; Me 4,11; Lc 8,10), no sentido de "coisas incompreensíveis ao entendimento vulgar". João não usou o termo, mas o conteúdo de seu kirygma é o mesmo de Paulo quando este proclama "a sabedoria de Deus no mistério ... a nós revelada por meio do Espírito" ( 7Cor 2,79). A ocorrência de mystérion no sentido especificamente pauliniano forma um grupo de textos: Rm 16,25; Ef 3,3-12; C! 1,25-27; 2,2-9; 2 Ts 2,7; e ainda, !Cor 4,1; 13,2; 15,51; Rm 11,24-25; Ef 5,32; 1Tm 3,9; 3,16. O estudo mais completo a respeito é o de D. DEDEN, Le mystere paulinien, Ephemerides Theologicae Lovanienses 13 (1936): 403-442. Sobre a significação espiritual e propriamente mística do mystérion, ver J. HuBY, Mystiques paulinienne et johannique, 133-135, e o artigo de A. SoLIGNAC, Mystere, Dictionnaire de Spiritualité, X, 1861-1874 (aqui, 1861-1862). Para
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FoRMAS DA ExPERIÊNCIA MísTICA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
O que é anunciado é o desígnio de Deus, oculto desde todos os séculos e agora, no kairós que é a plenitude dos tempos, dado a conhecer: o cumprimento de todas as promessas no Cristo Jesus (Ef 3,3-12) e a abolição da separação entre o judeu e o gentio, ou ainda, segundo um horizonte cosmológico mais vasto, a primazia absoluta do Cristo (C! 1,15-29; 2,3), no qual estão todos os tesouros da sabedoria e da ciência, e no qual são recapituladas todas as coisas (Ef 1,10f'. Esse mystérion objetivo, que é o Cristo Jesus, manifesta-se como vida dos que o recebem pela fé: ele é o "Cristo em vós, esperança da glória" (E/1,27-28). Desta sorte, as fórmulas "Cristo em vós" ou "no Cristo Jesus" acabam por resumir todo o conteúdo do mystérion paulino, seja em seu teor objetivo, seja subjetivamente como princípio de uma nova vida no cristão. Nessa vida o mystérion é sabedoria (~ophia) que nos é ensinada pelo Espírito (pneúma) (1Cor 2,6-11). E justamente em razão dessa presença do mystérion que parece lícito falar de uma mística paulina como 75 "mística mistérica" , na medida em que tal presença traz consigo uma renovação e transformação interiores (Rm 12,2; Cl3,10) e um crescimento do homem interior até atingir - sendo esse o ápice da mística paulina - o conhecimento do amor (agape) do Cristo que supera toda gnosis, de modo que a vida interior do cristão seja plenificada com a plenitude (pléroma) de Deus (Ef 3,18-19). A mística joanina, obedecendo ao mesmo modelo, tem como categoria cen6 tral a idéia de vida como amor , e encontra a expressão mais alta identidade proclamada pela Prina objeto seu e mais perfeita do (agape, l]o 4,8-16): a agape é, Amor" é "Deus meira Carta de João, comunicada no Cristo e Deus, em vida da essência a justamente, 77 lado, a mística joanina outro Por • viver a que o cristão é chamado o aspecto exegético e hermenêutica de mystérion na Bíblia, ver K. PRCMM, Mystére X: le mystére dans la Bible, Dictionnaire de la Bible (Supplément), VI, cols. 173-225. 74. Ver]. Hl'BY, Mystiques paulinienne et johannique, 133, nota 5. 75. Ver A. SOIJG"-'AC, Dictionnaire de Spiritualité, X, co!. 1862. 76. Os textos mais significativos de São João encontram-se em]. Ht:BY, Mystique paulinienne et johannique, 275-300. 77. A Primeira Carta de São João pode ser considerada uma síntese de sua doutrina espiritual e, por conseguinte, de sua mística. Ver, desde este ponto de vista, o excelente estudo de ]. MmJROUX, i}expérience chrétienne dans la Premiére
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EXPERIÊNCIA MísncA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
aproxima-se da mística paulina no anúncio do "novo nascimento" Oo 3,3-8; ljo 4,7-8)78• A mística mistérica paulino-joanina conhece um rico desenvolvimento na idade patrística e constitui uma das matrizes fundamentais da experiência mística ao longo de toda a tradição cristã. 79 Nessa tradição devem ser assinalados os nomes de Orígenes , Gregório de Nissa, São João Crisóstomo e Santo Agostinho. Por outro lado, a inserção dessa "mística mistérica" na instituição eclesial - a manifestação do mystérion para Paulo é a Igreja (Ef 5,2232) - assegura-lhe justamente o critério e a norma da sua autenticidade cristã. De resto, na tradição cristã, os grandes temas eclesiológicos podem ser considerados uma das fontes onde se alimenta a experiência mística80 • Ora, será justamente no espaço simbólico da palavra e do rito como ação do corpo eclesial, vem a ser, na liturgia, que a mística mistérica encontrará sua forma privilegiada de expressão. Nela o pólo objetivo da experiência se manifestará como presença divina no mistério do culto ou como presença mistérica no sentido estrito: presença do Senhor nos sacramentos (mystéria). No mistério do culto, a vida cristã, como vida de fé, está totalmente penetrada pela presença do Espírito e por sua ação. Nesse espaço sacramental, o cristão pode fazer a experiência dessa presença e dessa ação Epitre de Saintjean, ap. L'expérience chrétienne, 166-188. E. GILSON mostrou, por sua vez, que o capítulo IV da Primeira Carta de São João é a fonte primeira da mística de São Bernardo (ver La théologie mystique de Saint Bernard, 35-38). 78. Ver J. HUBY, Mystiques paulinienne et johannique, 155-170; sobre uma pretensa oposição entre a mística paulina da "ressurreição" e a mística joanina do "novo nascimento", ver ibid., 157, nota 3. 79. Sobre Orígenes, fonte principal da mística patrística, ver H. U. v. BALTHASAR, Paro/e et Mystere chez Origene, Paris, Cerf, 1958, e sobretudo H. CRouzEL, Origéne et la connaissance mystique, Paris-Bruges, Desclée, 1961. 80. Um desses temas, que apresenta íntima relação com a mística mistérica do "novo nascimento", é o do nascimento de Cristo no coração da Igreja e dos fiéis. <\ propósito, ver o belo e erudito artigo de H. RA!lNER, Die Gottesgeburt: die Lehre der Kirchenvater von der Geburt Christi aus dem Herzen der Kirche und der Glaubigen, ap. Symbole der Kirche: die Ekklesiologie der Viiter, Salzburg, Otto Müller Verlag, 1964, 13-187, que acompanha o tema desde a sua origem até a doutrina mística do Mestre Eckhart. 54
FoRMAs DA ExPERIÊNCIA MísTICA NA TRADiçÃo OciDENTAL
santificadora, não necessariamente no sentido do experimental psicológico, mas no sentido do experiencial místico. Semelhante experiência apresenta, então, analogias estruturais com a experiência da presença de Deus no mais íntimo da alma, tal como é vivida numa das formas da mística especulativa. Por conseguinte, a mística mistérica, na sua acepção estrita, tem como eixo a participação objetiva do cristão no mystérion, no sentido paulino, tornado presente na liturgia ou na ação sacramental (mystérion = sacramentum) da Igreja. A experiência mística desenrola-se aqui numa dimensão transpsicológica - dimensão de fé - e oferece-se como caminho aberto a todo cristão, ou ainda como itinerário espiritual que todo cristão é convidado a percorrer na sua participação objetiva ao mistério do Cristo na Igreja81 • A mística mistérica inspirou, na idade patrística, uma forma típica de contemplação (theoria) de estrutura neoplatônica, mas de conteúdo especificamente cristão. Trata-se da mística sacramental e hierárquica, exposta pelo Pseudo-Dionísio em sua obra De ecclesiastica hierarchia. Aí o autor descreve a significação mística de cada sacramento, a começar pelo sacramento do Batismo, apresentado como iniciação mistérica (myesis), e termina com a theoría, ou seja, com a contemplação que leva o cristão, iniciado na vida sacramental, a participar da "ordem dos contemplantes" (theoretike táxis), cuja prerrogativa é a contemplação mística do mystériolf2• Na teologia contemporânea, uma outra leitura do mistério do culto deu origem à chamada "doutrina do mistério do culto" 81. A concepção transpsicológica da mística, formulada, de resto, em polêmica com a mística psicológica moderna, é exposta por A. SroLZ, em sua obra Theologie der Mystzk, Regensburg, F. Pustet, 1936 (tr. fr. Théologie de la Mystique, Abbaye de Chevetogne, 1939; tr. it. Teologia del/a Mística, Brescia, Morcelliana, 1953), que se tomou uma referência obrigatória na literatura teológica contemporân ea sobre a mística. Sobre mística e liturgia, ver as reflexões profundas e iluminadoras de H. U. VON BALTHASAR, La priere contemplative (tr. fr.), Paris, Desclee, 1959, 113-134. 82. Os pormenores da theoria pseudodionisiana com relação à iniciação sacramental, em R. RoQUES, Contemplation, III, E, Dictionnaire de Spiritualité, II, cols. 1885-1911 (aqui, 1887-1894). Sobre o sentido e os limites da mística pseudodionisiana no contexto de sua concepção hierârquica, ver R. ROQUES, L'univers dionysien: structure hiérarchique du monde selon le Pseudo-Denys, Paris, Aubier, 1954, 327-329. 55
ExPERIÊNCIA MísTICA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
FoRMAS DA ExPERIÊNCIA MísncA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
(Mysterienlehre), desenvolvida nas décadas de 1930 a 1950 pelo
c. A mística profética
beneditino Odo Casel, da Abadia de Maria Laach, e por seus discípulos, dentre os quais se destaca o também beneditino Burkhard Neunheuser83 • A perspectiva da Mysterienlehre é profundamente distinta da que foi seguida pela teologia pseudodionisiana e pelo neoplatonismo cristão. Casei, embora acentuando a diferença entre as antigas religiões de mistérios e o mistério cristão vivido na liturgia8 \ aceita a presença, nos dois casos, de uma forma ou eidos comum, por ele denominado "eidos do culto" (Kulteidos). Esse eidos ou forma compreende os aspectos orante e contemplante, de um lado, iniciático e cultuai, do outro, que, na nova Aliança, vieram a constituir a estrutura do mystérion, ou seja, a união do Corpo de Cristo com sua Cabeça pela virtude unificante do Pneuma. Aqui reside a essência, segundo Casei, da "mística crística" (Christusmystik), que tem lugar na participação ao mistério do culto. O mistério do culto é atualização do mistério de Cristo, e é nele, por conseguinte, que o cristão vive esse mistério. Floresce aqui uma mística essencialmente cristocêntrica, orientada para a presença objetiva do Senhor no mystérion ou no sacramentum, tal como a Igreja o atualiza no culto85 • Na medida, pois, em que a Mysterienlehre afirma a presença do Cristo Senhor nos sacramentos, segundo um modo de ser transnatural e meta-histórico, oferece o fundamento para uma modalidade de "mística mistérica", cujos traços podem ser seguidos ao longo da tradição e que 8 a interpretação caseliana do mystérion torna mais visíveis 1i.
Com essa expressão pretendemos designar uma forma de mística que se constituiu em torno da Palavra da Revelação, tal como é comunicada, recebida e vivida ao longo da tradição bíblico-cristã. Assim como a mística especulativa é uma mística do conhecimento - saber e contemplação, gnosis e theoria - e a mística mistérica é uma mística da vidp - assimilação e divinização, homoíosis e theíosis -,a mística profética é uma mística da audição da Palavra - fé e caridade, pístis e agape -, ou seja, é uma mística que floresce no terreno da Palavra de Deus, ouvida e obedecida (Rm 10,17-18), que cresce até alcançar o caminho mais perfeito (hyperbolén hodón, 1Cor 12,37), que dá realidade e consistência a todos os outros caminhos: o caminho da agape (1Cor 13,2-3). Nesse sentido, a mística profética é a forma original da mística cristã. Como tal, ela está presente nas versões especulativa e mistérica assumidas historicamente pela mística cristã. Deve-se observar, no entanto, que o conceito de uma "mística profética" definida como "mística da Palavra" é considerado simplesmente contraditório aos olhos daqueles teólogos para os quais o cristianismo, como religião da Palavra a ser recebida na Fé, é hostil a toda espécie de mística87 . O mesmo conceito é rejeitado igualmente pelos fenomenólogos da religião, que julgam dever opor, do ponto de vista da análise fenomenológica, "profetismo" e "misticismo" 88 • Essa pretendida contradição parece, no entanto, proceder de uma idéia da mística quer acentua unilateralmente na
83. A obra principal de O. CAsEL é Das christliche Kultmysterium (I a ed. 1932). Edição ampliada por B. Neunheuser, Regenburg, F. Pustet, 1960 (tr. fr. da la ed., Le mystére du culte dans le Christianisme, Paris, Cerf, 1946). 84. Das christliche Kultmysterium, (4a ed.), 50; sobre eidos, ver p. 134. 85. Ver sobretudo as explicações de CASEL nos complementos à 4a ed.: Das christliche Kultmysterium, 185-195. 86. Ver o artigo da A. GAZIER, Mysterienlehre, Dictionnaire de Spiritualité, X, cols. !886-1889 (com bibl.). Convém observar que a tradição medieval-inaciana da meditação dos mistérios da vida de Cristo (INÁCIO DE LoYoLA, Exercícios Espirituais, nn. 261-312) representa uma concepção distinta da atualização "mistérica" da presença de Cristo no culto litúrgico, e desenvolve-se no âmbito da oração mental individual e de suas formas. Ver o artigo de H. J. SINEBE-W. LoESER, Mysteres de la vie du Christ, Dictionnaire de Spiritualité, X, cols. 1874-1886. É neste último
sentido que SMJjoAo DA CRcz emprega o termo "mistério"; ver Cántico Espiritua~ c. XXXVII (BAC, op. cit., 1136-1140). 87. Esse ponto de vista é defendido por K. BARTH; ver Die christliche Dogmatik, li, I, Zollikon-Zürich, Evangelischer Verlag, 1948, 348-350; ver pp. 839-840, e sobretudo por E. BRL!\NER (Die Mystik und das Wor~ 1924). Sobre a oposição mística-palavra na perspectiva protestante, ver H. U. v. BALTHASAR, Herrlichkeit /: Schau der Gestalt, 48-49, e H. DE LuBAC, Mystique et Mystere, ap. Théologies d'occasion, 51. 88. E o caso de F. Hm.ER em sua obra clássica Das Gebet (1928), tr. fr., La Priére, Paris, Payot, 1931, 329-34~) (oração mística e oração profética) e 447-449 (comparação entre ambos os tipos de oração). A concepção que Heiler expõe de "oração profética" não tem praticamente nada em comum com o que aqui denominamos "mística profética".
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experiência mística seja o aspecto do contato solitário com Deus (o mónos prós mónon, de Plotino), seja o aspecto da ascese e do laborioso caminho que conduz à união mística, sobrepondo aparentemente o esforço humano à graça divina. Veremos em seguida, no entanto, que tais objeções não atingem o verdadeiro conceito de mística profética. Com efeito, é da Bíblia, e particularmente do Novo Testamento, que tal conceito procede. Embora os termos mística ou místico não ocorram em sentido técnico na Sagrada Escritura, sendo exceção o derivado mystérion nos escritos paulinos, o teólogo H. U. v. Balthasar mostrou com profundidade em que sentido o dom místico pode, ou mesmo deve, florescer na Igreja em continuidade com o profetismo do homem bíblico89 • É verdade que esse dom se manifestará como inteligência da fé, ou seja, como hermenêutica espiritual da revelação do Logos - da Palavra substancial que é Jesus Cristo -, sendo, assim, fruto da ação do Pneuma divino. Ele não terá mais o caráter arquetipal e normativo da experiência dos primeiros depositários da palavra revelada, consignada no Novo Testamento 90 , mas será a efusão, no tempo da Igreja, da plenitude originária dessa experiência9 I. A mística profética pode ser assim considerada como fruto amadurecido da ação transformante da Palavra de Deus no espírito daquele que recebe essa Palavra pela Fé e que, pelo Batismo, renasce a uma vida nova. Nesse sentido, a mística profética assume e eleva a mística especulativa e a mística mistérica e o faz ' ' segundo o modelo proposto por Paulo, ao participar fruitivamente da "sabedoria de Deus no mistério" (1Cor 2,7), vem a ser, na revelação e conhecimento do mistério, fruto do dom do Espírito (Pneuma) que "tudo investiga, mesmo as profundezas de Deus" (I Cor 2,10) 92 , e cuja ação se exerce na Igreja segundo a ordem dos dons e carismas (lCor 12). 89. Ver Herrlichkeit 1: Schau der Gesta!~ 393-402 (aqui, pp. 394-395). 90. Integrada formalmente à Revelação do Verbo e encerrada, segundo um lema teológico, com a morte do último apóstolo. 91. H. U. v. BALTHASAR, Herrlichkeit 1: Schau der Gesta!~ 395-396. 92. Essa passagem de 1Cor 2,6-16 pode ser considerada um dos principais fundamentos neotestamentários da mística profética. Ver, sobre esse texto, CL. TRES58
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Com a mística profética é afirmada, pois, a legitimidade de uma forma de mística que nasce e cresce inteiramente em solo cristão, cujas raízes estão no Novo Testamento, mas cujas sementes podem ser encontradas já no Antigo Testamento 93 • Na sua expressão neotestamentária, a mística profética encontra seu lugar exatamente na conjunção das duas dimensões do kérygma: a Palavra e o Mistério. Duas dimensões que, procedendo da mesma origem - a Revelação de Deus -, traçam o espaço espiritual da vida cristã: a Palavra como anúncio e o Mistério como profundidade insondável do que é anunciado 94 • Espaço que é traçado, pois, pela Palavra substancial que se manifesta - o Verbo feito carne - e pelo Mistério que começa a ser desvelado: o Cristo em nós, esperança da glória (Cl1,27-28). É nesse espaço que se desenrola o dinamismo intencional que anima a mística profética. Nenhum élan da experiência mística genuinamente cristã poderá ultrapassar "a largura, a extensão, a altura e a profundidade que é o conhecer (gnônaz} a supereminente caridade (agape) do conhecimento (gnosis) de Cristo" (Ef 3,18-19), e nenhuma interiorização dessa experiência poderá ir além da forma segundo a qual o cristão é "conformado" (synmórphos) à imagem do Filho segundo a presciência e a predestinação de Deus Pai (Rm 8,29). Em outras palavras, o crescimento sem termo e o aprofundamento sem limites da amplitude e da profundidade da experiência mística no Cristianismo tem lugar sob a "norma da Palavra" 95 e no interior MONTANT, La mystique chrétienne et l'avenir de l'avenir de l'homme, 15-21. Sobre a possibilidade da irrupção da mística na vida da fé, ver H. U. v. BALTHASAR, Herrlichkeit /, 397-399. 93. Sobre a legitimidade dessa forma de mística, ver o artigo de H. DE LUBAC, Mystique et Mystere, 52-61 (Lubac não usa nesse contexto o termo "profético"). As sementes da mística no Antigo Testamento estão lançadas ao longo de duas linhas: a profética e a sapiencial. A exposição desse ponto excederia os limites da nossa competência e também dessa exposição. Ver, no entanto, o artigo de J. LEBRETON, La Contemplation dasn la Bible I, Dictionnaire de Spiritualité, II, cols. 1645-1673, e CL. TRESMONT~"iT, La mystique chrétienne et l'avenir de l'homme, 205-217. 94. Sobre o sentido de "místico" nesse contexto, ver CL. TRESMONTANT, La mystique chrétienne, 20-21. 95. Ver as observações de RICARDO DE SÃo ViTOR sobre a necessidade do testemunho da Escritura - simbolizado por Moisés e Elias ao lado do Senhor na 59
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do Mistério: nele está a "insondável riqueza do Cristo" (Ef 3,8), no qual estão escondidos (apókryphoz) todos os tesouros da sabedoria (sophia) e da ciência (gnosis) (C! 2,8). A mística profética apresenta-se, portanto, em primeiro lugar, como vida, a que todo cristão é chamado Uo 15,15), de intensa participação na oração e na contemplação do Senhor. Encontramos a forma arquetipal dessa participação na doutrina e na prática dos primeiros discípulos 90 • O Novo Testamento deve, pois, ser considerado o texto fundador e normativo da mística profética, e é a partir dele que sua estrutura pode ser descrita. Essa será a estrutura fundamental da vida contemplativa no cristianismo. Sobre ela deverão apoiar-se a mística especulativa e a mística mistérica na sua forma cristã. A estrutura da mística profética97 é construída segundo duas linhas que se elevam em perfeita correspondência, acompanhando os dois lados, subjetivo e objetivo, da experiência. Mas é importante observar que essas duas linhas não unem dois pontos fixados de antemão. A partir do ponto inicial, avançam seja em direção à plenitude nunca alcançada do ato de contemplação, seja em direção à infinidade insondável do seu objeto. A Fé eleva-se à Contemplação, e a Palavra sublima-se em Mistério. São essas as linhas convergentes da estrutura da mística proféti-
FORMAS DA EXPERIÊNCIA MíSTICA NA TRADIÇÃO OCIDENTAL
ca98 • Por sua vez, a Palavra alimenta a Fé, e o Mistério oferecese à Contemplação, constituindo o ritmo dinâmico da experiência mística. Na relação Fé-Palavra é assumida e elevada a um novo plano a mística mistérica, e na relação Contemplação-Mistério o mesmo se passa com a mística especulativa. Ambas são, assim, integradas no organismo vivo da experiência mística cristã. Esse ritmo já pulsa incoativamente na graça batismal e se amplia e fortalece como sinergia entre o regime das virtudes e o regime dos dons do Espírito Santo, operando na totalidade do ser do cristão, "corpo, alma, espírito" (1Ts 5,23), a renovação do "homem interior" (2Cor 4,17) e a vida da "nova criatura" no Cristo Jesus (Ef 2,9-10). A mística profética tem, pois, como pedra angular, a correspondência entre a Fé e a Palavra. Enquanto assume e eleva as versões mistérica e contemplativa, a mística profética é a mística cristã por definição. Ela nasce no terreno da Fé, e a Fé, por sua vez, nasce da audição da Palavra. A Palavra, por sua vez - e é esse um ponto de decisiva importância -, é a Palavra revelada na historia salutis: em primeiro lugar, cronologicamente, a que .foi comunicada aos Patriarcas e Profetas 99 ; e, na plenitude dos tempos (to plérôma tou chrónou, G! 4,4), a Palavra substancial que se fez carne e morou no meio de nós Uo 1,14). É sobre o fundamento dessa Palavra feita história 100 que a Palavra interior é recebida no
Transfiguração -
para a autenticidade da contemplação cristã: De praeparatione animi ad contemplationem (Benjamin minor), c. LXXXI, PL 196, 57-58; e H. DE
LuBAC, Mystique et mystere, 63-64: o sentido anagógico na interpretação das Escrituras é o mesmo sentido da contemplação mística. Seu fundamento é a relação das Escrituras com a alma como imagem de Deus, ver H. DE Lt:BAC, Histoire et Esprit: l'intelligence de l'Écriture d'apres Origene, Paris, Aubier, 1950, 347-348. Ver ainda a advertência de SAo JoAo DA CRuz, Noche oscura de la subida dei Monte Carmelo, Prólogo (BAC, op. cit., 559). 96 Ver J. LEBRETON, Contemplation dans !e Nouveau Testament, Dictionnaire de Spiritualité, II, 1673-1716. Esse artigo é como que a síntese de uma obra espiritual e exegética verdadeiramente magistral. 97. Uma exposição notável dessa estrutura é a de H. U. v. BALTHASAR em seu precioso opúsculo Das betrachtende Gebe~ Einsiedeln, Johannes Verlag, '1977 (tr. fr. La priére contemplative) Nele são descritos o ato, o objeto e o âmbito da contemplação. Ver também o grande tratado, redigido noutra perspectiva, dej.-M. NICOL~s,
Contemplation et vie contemplative en Christianisme. 60
98. Essa estrutura pode, pois, ser assim representada: Profundidade de Deus Rm 8,33 !Cor 2,10
Contempla,ào
/I~
I
Cristo Jesus
Fé.
Mistécio
I Palavra
Experiência
99. Ver supra, nota 95, a referência ao texto de Ricardo de São Vítor sobre a presença de Moisés e Elias ao lado de Jesus na Transfiguração. 100. Sobre esse aspecto fundamental, ver H. DE LuBAC, Mystique et Mystere, 7073; J.-H. Nicous, Contemplation et vie contemplative en Christianisme, 18-21; 88-93; e H. U. v. BALTHASAR, La priere contemplative, 163-185. 61
ExPERIÊNCIA MísTICA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃo OciDENTAL nosso espírito, acompanhando as vicissitudes do caminho para a contemplação 10 I, em virtude da graça da iluminação interior e do assentimento da Fé Oo 6,44) 102 • Assim, a primeira manifestação da vida mística no cristão, na sua qualidade de mística profética ou mística da Palavra, tem lugar numa dialética entre Fé e Palavra, na qual o esboço e como que as primícias da vocação mística de todo batizado estão claramente delineadas. Com efeito, o núcleo místico presente no ato de Fé pode ser reconhecido, se considerarmos as propriedades desse ato enumeradas e analisadas pela tradição teológica 103 : a) em primeiro lugar, a Fé é um dom de Deus, cuja absoluta gratuidade pede uma absoluta receptividade - primícias da passividade da experiência mística 104 - naquele que o recebe; b) em segundo lugar, a Palavra, objeto do ato de Fé, é formalmente Palavra de Deus, e a evidência da sua verdade permanece oculta na profundidade insondável da Sabedoria divina; penetrar, pela meditação ou pela contemplação, na verdade da Palavra é, de alguma maneira, penetrar na "noite obscura" (São João da Cruz) do itinerário místico, que somente na visão beatífica alcança o termo de uma iluminação definitiva; c) finalmente, a Fé é informada pela Caridade, e nela já está presente a intercomunicação vital entre conhecimento e amor, na qual vibra a pulsação mais profunda da vida mística. A articulação entre Fé e Palavra é, portanto, a articulação fundamental na estrutura da mística profética. A Palavra é a vertente objetiva na estrutura da experiência. Ela é ouvida e meditada no campo intérmino das Escrituras, no qual a meditação, aprofundando suas raízes e estendendo seus ramos, desabrocha em contemplação. Esta porém, por mais alta ou mais profunda que seja, 101. Sobre o tema da palavra interior, ver o ensinamento de SAoJoAo DA CRuz, Subida del Monte Carmelo, 11, c. XXVIII (BAC, op. cit., 707-717). 102. Ver Summa Theologiae, 11 llae, q. I e q. 2. 103. Ver Summa Theologiae, 11 llae, q. 6 a 1; e ainda q. 2 a 2 e q. 4 a 3. Ver P. AGAESSE-M. SALES, Mystique III, 2, Dictionnaire de Spiritualité, X, cols. 1948-1955.
104. Essa passividade é expressa classicamente na frase do PsEUDO-DIONíSIO retomada por SANTO ToMAs: non solum discens sed et patiens divina. Ver In lib. De Divinis Nominibus, 11, lec. 4; Summa Theologiae, I llae, q. 22, a. 3, ad lm. 62
FoRMAS DA ExPERIÊNCIA MísTicA NA TRADIÇÃO OciDENTAL nunca avança além do campo das Escrituras. A norma absoluta da Palavra da Revelação, presente nas Escrituras canônicas (depositum fidei primum), justifica a denominação "mística profética" que caracteriza a mística especificamente cristã 105 • Por sua vez, a Fé, vertente subjetiva na estrutura da experiência, consiste essencialmente na audição (he pístis ex akoês, Rm 10,17) da Palavra. São os ecos interiores dessa audição que se multiplicam e desdobram em meditação e contemplação. Na sua realidade subjetiva, a audição é, pois, um ato total do ouvinte. Todo o seu ser - dos sentidos externos à fina ponta do espírito - se abre para a recepção da Palavra 106 • É justamente tendo em vista o ato inicial da audição que o fundamento antropológico da experiência mística (supra, capítulo 1) pode adquirir uma significação especificamente cristã. Na perspectiva da mística profética, o modelo antropológico define o ser humano como "ouvinte da Palavra". Portanto, a determinação das condições de possibilidade desse "ouvir a Palavra" propõe-se como tarefa precípua para uma antropologia cristã, prolegômeno necessário seja a uma teologia da fé, seja a uma teologia da experiência mística 107 • 105. Essa função normativa da Escritura constitui o que podemos denominar a enteléquia ou o spiritus rector da mística cristã, desde sua primeira formulação sis-
temática com Orígenes e ao longo de toda a sua história. Ela constitui, pois, o critério decisivo da inteligência espiritual na sua acepção propriamente cristã. Na classificação patrístico-medieval dos sentidos da Escritura, o quarto sentido, ou o sentido anagógico, pode e deve ser interpretado como ascensão mística. Assim, toda a obra monumental de H. DE LuBAc, Exégese médiévale. Les quatre sens de l'Écriture, 4 vols., Paris, Aubier, 1959-1964, deve ser lida como um itinerário da mística cristã das origens à Renascença. Ver supra, nota 95. 106. A tradição viu o modelo dessa audição, como primeiro degrau da vida contemplativa, em Maria sentada aos pés do Senhor e ouvindo a sua Palavra (hékoen tón lógon autou, Lc !0, 38-39). Ver SANTO TOMÁS, Summa Theologiae, 11 llae, q. 180, a. 3, ad 4m. A audição supõe a graça que abre o coração (kardia) e os olhos. Ver o episódio do cego de nascença Oo 9,1-39). 107. Uma vigorosa tematização filosófica desses prolegómenos encontra-se nas lições de K. RAHNER (1937), publicadas sob o título Hiirer des Wortes: zur Grundlegung der Religionsphilosophie, (2a ed. preparada por J. B. Metz), Munique, Kõsel Verlag, 1963. A tradução francesa de]. Hofbeck, L'homme à l'écoute du Verbe, Paris, Mame, 1967, é cotejada com a primeira edição (1941) e contém um índice analítico que ajuda o leitor a orientar-se nesse texto difícil. Com respeito à audição da Palavra revelada, ver 185-202 (tr. fr., 260-287). 63
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O campo da experiência cristã, na sua natureza propriamente
experiencial (ver supra, nota 1 do capítulo 1), abrange, desta sorte, toda forma de articulação da Palavra e da Audição (ou da Fé). Nele está lançada e pode crescer a semente da experiência mística especificamente cristã na sua estrutura profética: a Palavra de Deus e o anúncio do Mistério no espírito e na linguagem do ser humano. A experiência mística de teor profético é fruto, pois, da experiência da Fé, sendo igualmente experiência na Fé 108 • Sendo a Fé informada pela Caridade, é impelida, no seu dinamismo mais profundo, para a consumação na visão beatificante do Fim: é, portanto, como antecipação da visão beatífica que a experiência mística nasce no itinerário da Fé 109 • Tentemos, pois, delinear a estrutura da mística profética: nela um arco vai da Fé à Palavra e da Contemplação ao Mistério dispostos em correspondência horizontal; e uma coluna sobe da Fé à Contemplação e da Palavra ao Mistério em correspondência vertical. Esse templo místico tem como seu ádito interior o Mistério de Cristo assim como Paulo o anuncia; pelo alto, porém, ele se abre para as profundezas infinitas do Mistério de Deus (ver esquema da nota 98). Convém observar, no entanto, que essa estrutura da mística profética deve ser necessariamente considerada a partir de dois lados, que são duas faces da mesma realidade: de um lado, ela é estrutura de uma experiência eclesial; de outro, estrutura de uma experiência individual. Mais exatamente: é a mesma experiência que é experiência da Igreja, Corpo do Cristo, e do cristão, que é membro desse Corpo (!Cor 12). A circulação vital entre a Fé e a Palavra e entre a Contemplação e o Mistério corre ao longo da mesma estrutura experiencial, que é tanto do membro, como ex108. Essa distinção é importante, por excluir todo subjetivismo na experiência da Fé e na experiência mística no cristianismo. A experiência da Fé e seu florescer na experiência mística estão enraizados no terreno objetivo da Palavra - experiência na Fé - e sua intencionalidade estã totalmente dirigida para o objeto, forma e fim da Fé: Deus. Tal o sentido da distinção agostiniana explicada por Santo Tomás: tredere Deum, credere Deo, credere in Deum. Ver Summa Theologiae, II Ilae., q. 2, a. 2. 109. Ver J. MouROUX, L'expérience chrétienne, 324-337. 64
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periência individual, quanto do Corpo, como experiência eclesial: não há, portanto, experiência mística autenticamente cristã que não seja experiência na Igrejai 10 • A mística especulativa cristã tem seu lugar próprio de crescimento na interiorização individual do Mistério pela meditação e pela contemplação. A mística mistérica, por sua vez, é vivida como meditação e contemplação no espaço do culto, quando da celebração eclesial do Mistério. Ambas entrelaçam seus ramos na mística profética, que é, ao mesmo tempo, audição interiorizante da Palavra e celebração contemplante do Mistério na vida do Corpo e na vida de seus membros. Finalmente, é necessário observar que a experiência cristã, ao se aprofundar e dilatar para assumir a forma da mística profética, conserva a componente essencial da mediação, sem a qual perderia sua especificidade cristã. Com efeito, é essa componente que irá distinguir inconfundivelmente a experiência mística no cristianismo de outras variantes do fenômeno místico nas diversas tradições religiosas. Duplo estágio da mediação: primeiramente, mediação da Palavra histórica recebida na Fé; em seguida, mediação do Mistério na Contemplação. Dupla mediação que, na verdade, identifica-se na única mediação da Palavra substancial que em si concentra a totalidade do Mistério: Jesus Cristo. Para enumerar os múltiplos aspectos dessa única mediação da qual a experiência mística em regime cristão recebe consistência e sentido, devemos considerá-la a partir do texto paulino fundamental que celebra a primazia universal do Cristo (Cl1,9-21). Três aspectos merecem ser aí ressaltados: a) mediação criatura4 que coloca todo ser humano na dependência radical Daquele no qual todas as coisas foram criadas (Cl 1,16). Essa mediação exclui qualquer pretensão à união por identidade com o Absoluto, ou seja, impõe um limite intransponível às as110. Ver H. U. v. BALTHASAR, Zur Ortsbestimmung christlicher Mystik, ap. Grundfragen der Mystik, 42-43. A eclesialidade da mística cristã foi estabelecida de forma paradigmática por Orígenes. Ver H. DE LuBAc, Histoire et Esprit: l'intelligence de l'Écriture d'aprés Origéne, 363-373. Ver tambémJ.-H NrcoLAS, Contemplation et vie contemplative en Christianisme, 367-389.
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pirações da mística especulativa em regime cristão 111 • Nesse sentido ela deve ser chamada uma mística "da imagem e da semelhança": a profundidade infinita de Deus é mediatizada para o místico por aquele que é "a imagem do Deus invisível" (Cl 1,15). A experiência mística será, então, um "refletir a glória do Senhor", tornando o espírito do místico uma imagem sempre mais brilhante (apo dóxês eis dóxam) pela ação do Senhor que é Espírito (2Cor 3,18). O Deus Criador, "que ordenou à luz brilhar dentre as trevas, Ele a fez refulgir em nossos corações para irradiar o conhecimento da glória de Deus na face do Cristo" (2Cor 4,6). Tal é a mediação criatura[ pela qual a experiência cristã recebe sua consistência ontológica e pela qual é orientada no sentido do eixo cristológico que, segundo o ensinamento paulino, orienta toda a criação; b) mediação da graça, segundo a qual a primeira iniciativa que põe em movimento a experiência cristã e a impele para as alturas da experiência mística procede da soberana e gratuita iniciativa divina. Por conseguinte, a mediação da graça exclui da experiência mística cristã qualquer primazia conferida ao esforço humano ou às técnicas e métodos humanos em ordem a se alcançar o estágio final da união com o Absoluto 112 • Ao caracterizarmos, pois, essa experiência, devemos dar um relevo próprio à mediação da graça, sobretudo enquanto mediação da fé, uma vez que a vida mística no cristão mostra-se como uma modalidade ou, mais exatamente, como um fruto amadurecido da vida da fé. Ora, a experiência da fé, que se desenrola em vital energia com a caridade (ver Gl 5,6), 111. Esse ponto é acentuado por A. BRUNNER, Der Schritt über die Grenze, 126-127. 112. A primazia da graça não se opõe, evidentemente, à colaboração humana, seja no esforço purificador da ascese, seja na busca das condições favoráveis ao exercício da contemplação. O ensinamento clássico de São João da Cruz a respeito é sintetizado, entre outros, por A. BRUNNER, Der Schritt über die Grenze, 142-165. Em suma, o caminho da experiência mística é assinalado por conversões cada vez mais profundas e radicais na resposta do homem à iniciativa divina. _Yer AGAESSE-SALES, Mystique, li, 2, Dictionnaire de Spiritualité, X, cols. 1952-1954. E conhecido o ensinamento, a respeito, do P. L. LALLEMANT, célebre espiritual jesuíta do século XVII {Doctrine spirituelle, (éd. Courel) [co!. Christus], Paris, Desclée, 1956}. Ver também o artigo de J. GuiLLET, Metanoia, Dictionnaire de Spiritualité, X, 1093-1099. Por outro lado, a docilidade à ação da graça é um dos critérios da experiência mística cristã. Ver AGAESSE-SALES, Mystique li, 3, Dictionnaire de Spiritualité, X, cais. 1955-1965.
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percorre toda uma cadeia de mediações, seja no que diz respeito a seu objeto, seja com relação ao próprio ato de fé. Essas mediações exercem-se na ordem dos sinais, depositados tanto na Palavra de Deus em seu conteúdo objetivo, quanto no consentimento interior à audição da Palavra. Referida a esse horizonte de sinais, a experiência mística no cristianismo é, ao mesmo tempo, revelação e ocultação. Nem Deus se revela na limpidez e abrangência de uma visão saciante - o que somente acontecerá na visão beatífica - nem o sujeito da experiência mística atinge o fundo substancial do seu próprio Si 113 • Diante dele, no entanto, desdobra-se a riqueza infinita da Palavra e, ao penetrar nessa riqueza, ele poderá penetrar nas profundidades mais secretas do Eu 114 • Há ainda outro aspecto segundo o qual a experiência cristã em geral e a experiência mística podem ser consideradas à luz da mediação da graça. Trata-se da experiência da beleza irradiante da glória (doxa) divina que esplende na face do Cristo Jesus e, pela iluminação interior da fé, reflete-se no cristão. Sob esse aspecto a mística profética é uma mística da Beleza divina na sua Verdade irradiante ( Verum Pulchrum): verdade de Deus em si mesmo, verdade do plano salvífico na historia salutis, verdade da plena realização desse plano no Cristo Jesusn1; c) mediação histórica que, do ponto de vista da estrutura da experiência cristã, pode ser considerada como o fundamento da mediação criatura[ e da mediação da graça. Com efeito, na seqüência meta-histórica do plano salvífico, o Evento histórico da Encarnação do Verbo de Deus, que João e Paulo proclamaram como 113. Ver H. DE LcBAC: "L'expérience mystique chrétienne n'est pas un approfondissement de Soi; elle est, au plus intime de son être, approfondissement de la Foi", em Mystique et Mystere, ap. Théologies d'occasion, 59. 114. Toda essa questão é tratada magistralmente por J. MouRocx no capítulo sobre a experiência da Fé, de seu livro L'expérience chrétienne, 325-365. 115. Esse tema tradicional foi magnificamente desenvolvido por H. U. v. BALTHASAR em sua obra já citada Herrlichkeit: eine theologische Asthetik, 3 vols. em 7 tomos, Einsiedeln,Johannes Verlag, 1961-1988; (tr. fr. parcial sob o título La Gloire et la Croix, Paris, Aubier, co!. Théologie). O ! 0 vol., "Visão da Figura" (Schau der Gestalt), estuda a "evidência subjetiva" e a "evidência objetiva" da Figura da Revelação, e é o que mais próximo está do nosso tema.
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centro do Mistérioll6, situa-se entre a Criação e a Graça. A mística cristã possui uma relação necessária e estrutural ao tempo. Assim como a mediação criatura! dela exclui toda tendência a qualquer forma de acosmismo, do mesmo modo a mediação histórica impõe-lhe uma referência constitutiva a um tempo arquétipo que não é, porém, um tempo mítico, mas o tempo histórico da vida de Jesus. Nessa sua referência à mediação histórica, a experiência mística no cristianismo assume a forma de um itinerário no sentido estrito do termo. Por um lado é subida pelos degraus da perfeição que conduz à contemplação e à união fruitiva com Deus. Por outro é, na unidade de um mesmo movimento, um avançar no tempo em direção à união e à visão definitivas na eternidade. A experiência mística no cristianismo obedece, assim, a uma orientação escatológica essencial. Para o místico cristão a flecha que aponta para a eternidade voa no tempo: um tempo orientado pelo eixo cristológico que se estende da Criação à Parusia. Ela não se eleva, em virtude de uma tensão sobre-humana do arco do espírito, para alcançar a eternidade rompendo a sucessão do tempo, como na mística plotiniana. Mais: a mediação histórica opera uma articulação ainda mais profunda do tempo e da eternidade, pois é em razão da estrutura cristológica do tempo da experiência que nele pode ter lugar a mediação da graça; e a graça é já a presença, em mistério, da eternidade no tempo, ou é semente da visão beatífica depositada no âmago da fé 117 • A mediação histórica permite-nos, desta maneira, uma leitura da experiência mística cristã na sua feição profética, segundo a dupla dimensão do tempo e da eternidade. Nessa perspectiva seus traços originais se compõem harmoniosamente, seja desenhando sua figura autêntica, seja revelando sua natureza na forma em que foi vivida pelos grandes místicosll 8 . 116. Ver J. MouRoux, Le mystere du temps, Paris, Aubier, 1962, 81-99. 117. Ver, sobre esse tema, H. C. LIMA V AZ, A Assunção de Maria e a esperança cristã, Vàbum 17 (1960): 271-286. 118. Essa figura autêntica e essa natureza verdadeira da mística cristã, assim como as viveu e descreveu São João da Cruz, foram analisadas por J. MouRoux em seu admirável capítulo sobre a mística e o tempo, Le mystére du temps, 246-274. 68
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Finalmente, também a experiência mística, na sua especificidade cristã de mística profética, tem sua coroa e como que sua plenitude na contemplação. Por sua vez, a vida contemplativa propriamente cristã é definida pela intencionalidade que a orienta para o Mistérioll 9 • O termo contemplatio ou a expressão de vila contemplativa designam tradicionalmente a atividade ou o estado mais elevado da vida espiritual. Até o século XVI o termo "místico" (mystikós, mysticus) foi usado como adjetivo, por exemplo na expressão De mystica theologia. A partir do século XVII, "mística" passa a ser usado como substantivo para significar um tipo determinado de estado psicológico, ao qual corresponde uma forma peculiar de conhecimento com seu próprio estatuto epistemológico 120 • Segundo Michel de Certeau, essa passagem do adjetivo ao substantivo representa, por um lado, um novo regime de linguagem e, por outro, um início de distinção entre teologia especulativa e literatura espiritual 121 • Ao falarmos da experiência mística na sua especificidade cristã, convém, pois, ter presente a significação das expressões clássicas vida contemplativa e contemplação e, por outro lado, ao usar o termo "mística" como substantivo, evitar atribuir-lhe a significação de estados psicológicos paranormais ou de formas extraordinárias de conhecimento que possam ocorrer à margem do dinamismo normal da vida cristã. Vida contemplativa e contemplação representam, como ficou dito acima, a coroa e a plenitude da vida cristã normal. É nesse sentido que o adjetivo "místico" pode ser-lhes atribuído, e o substantivo "místico" pode ser usado como seu sinônimom. 119. O termo "contemplação" tem uma extensão genérica no campo da mística cristã. A contemplação da mística especulativa dirige-se ao Mistério como foco de unidade inteligível de todas as coisas: ela está sob o signo do transcendental Unum. A contemplação da mística mistérica dirige-se ao Mistério como ação salvífica de Deus no Cristo, atualizada no mistério litúrgico: ela está sob o signo do transcendental Bonum. A contemplação da mística profética dirige-se ao Mistério como Palavra da Revelação depositada na Escritura: ela está sob o signo do transcendental Verum, pois a Palavra é normativa de todo o ãmbito da contemplação cristã. 120. Ver M. DE CERTEAU, La foble mystique, 25-30; 107-155. 121. Esse aspecto foi assinalado por A. STOLZ em sua Theologie der Mystik; ver supra, nota 81. 122. Ver as aclarações de J.-H. NrcoLAs sobre "mística" e "contemplação" em Contemplation et vie contemplative en Christianisme, 5-46. 69
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A história da idéia e da prática da contemplação, como atesta o grande artigo do Dictionnaire de Spiritualité já citado, é extraordinariamente rica na tradição cristã, tanto na sua vertente oriental quanto na ocidental. Nesta ela percorre diferentes caminhos que foram traçados pelas grandes escolas de espiritualidade a partir da Idade Média 123 • O roteiro de todos esses caminhos obedece, no entanto, à norma fundamental da relação Fé-Palavra e desenrolase no interior do espaço espiritual do Mistério: a Revelação de Deus no Cristo Jesus. Três dimensões circunscrevem esse espaço. Segundo a terminologia tradicional podemos denominá-las as dimensões da iluminação, da união e da efusão, tendo sua origem, 124 à qual permanentemente retornam, no Mistério do Cristo . A contemplação é conhecimento e amor, e o amor, por sua vez, transborda em ação ou serviço. Conhecimento, amor e serviço são regidos pelos critérios evangélicos, que comprovam sua autenticidade cristã 125 . A graça da contemplação opera na vida do cristão um movimento de passagem da iluminação 121' da fé, que se refrata em conceitos e fórmulas - dogmas, símbolos, catequese, teologia discursiva-, 123. O grande artigo "Contemplation" do Dictionnaire de Spiritualité, freqüentemente citado ao longo da nossa exposição, constitui até hoje o roteiro mais completo para se acompanhar a história da idéia de contemplação no cristianismo. 124. Não trataremos aqui do discutido problema de uma distinção entre "contemplação adquirida" e "contemplação infusa", que ocupou boa parte da literatura teológica sobre a mística na primeira metade do século. Ver CH. BAUMGARTNER, "Conclusion général" do art. Contemplation, Dictionnaire de Spiritualité, II, cols. 2171-2193. 125. Eis como H. U. v. BALTHASAR enumera esses critérios: a) primazia do amor de Deus e do próximo sobre a intensidade da experiência religiosa; b) conformação do mandamento do amor ao seguimento de Cristo descrito na objetividade do relato evangélico, e não interpretado pelas vivências subjetivas; c) reconhecimento da profundidade insondável do amor de Deus na visibilidade e humildade da Palavra feita carne; d) e aceitação da contemplação dos mistérios dessa Palavra como caminho único para penetrar a profundidade inefável do mistério de Deus Uno e Trino. Ver Zur Ortsbestimmung christlicher Mystik, ap. Grundfragen der Mystik, 66-71. 126. A metáfora da luz para designar o conhecimento da fé insere-se no campo metafórico dos mais clássicos da tradição ocidental: o do conhecimento como iluminação. No Novo Testamento ela está presente sobretudo nos escritos paulinos e joaninos e constitui um dos tópicos tradicionais da teologia da fé. H. U. v. BALTHASAR desenvolveu-o brilhantemente em Herrlichkeit I: Schau der Gesta!~ 123-210.
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FoRMAS DA ExPERIÊNCIA MísTICA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
para o claro-obscuro de um conhecimento intuitivo e fruitivo de Deus como Verdade primeira, da qual procedem todas as verdades. Tal é o princípio da teologia mística ou contemplativa 127 • A dimensão da contemplação como iluminação é descrita por São João da Cruz como tensão vivida pela alma entre, de um lado, as proposições e artigos de fé, por ele denominados "semblantes prateados", e, de outro, a verdade manifesta e a substância, comparadas ao ouro, dessas proposições e artigos, que só se desvelarão totalmente na visão beatífica. A claridade sem sombras dessa visão é, pois, o paradigma perfeito da contemplação como iluminação128 • A iluminação contemplativa é descrita de muitas maneiras na tradição literária da mística cristã, sendo um dos mais belos exemplos as visitas do Verbo segundo São Bernardo, que são narradas segundo o modelo agostiniano 129 . Na iluminação contemplativa tem lugar a forma mais elevada do conhecimento "por conaturalidade"130. A ação do Espírito Santo opera aí pelo dom da inteligência, que corresponde à virtude teologal da fé 131 . Entre os modelos de enumeração dos degraus ou modos da iluminação contemplativa merece ser lembrado o modelo proposto por Ricardo de São Vítor, comentado por Santo Tomás de Aquinom, e que enumera seis genera contemplationis. Segundo Ricardo de São Vítor, o termo e a consumação da vida mística é também o degrau supremo da iluminação contemplativa, situando-se supra rationem et praeter rationem. Ele apresenta características inconfundíveis na mística cristã como mística profética ou mística 127. Um dos exemplos mais célebres da experiência mística como iluminação é a visão de Inácio de Loyola às margens do riacho Cardoner, nos arredores de Manresa, por ele mesmo narrada: ver Autobiografia de Inácio de Loyola, (tr. e notas de A. Cardoso), São Paulo, Luyula, 1974, nn. 30, 41-42. 128. Cãntico Espiritua~ canc. XII (BAC, op. cit., 1022-1026). 129. SÁO BERNARDO, Super Cantica, sermo 74, Il, 5, Opera (ed. Leclercq-TalbotRochais), Il, 242-243. Ver a bela análise literária desse texto por CH. MoHJUviANN, La langue et le style de Saint Bernard, Opera. II, Intr., IX-XXXIII (aqui, XXXIIXXXIII). 130. Ver supra, nota 27. 131. Summa Theologiae, li liae, q. 7, a. 6. 132. RICARDO DE SÁO ViTOR, De Grafia contemplationis seu Benjamin maior, I, c. 6 (PL 196, 70-73); SANTO ToMÁS, Summa Theologiae, li liae., q. 180, a. 4, ad 3m. 71
ExPERIÊNCIA MíSTICA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OCIDENTAL
da Palavra. A iluminação tem lugar na ordem do conhecimento e é como o crescer e o florescer da virtude teologal da fé. A união, por sua vez, consuma-se na ordem do amor e é o fruto mais sazonado da virtude teologal da caridade. Mas é na união que se verifica plenamente a circularidade ou comunicação recíproca do conhecimento e do amor 133 • Como circuncessão da fé e da caridade, ela é o próprio coração da vida do espírito, e a ela se aplica de modo perfeito o ensinamento de São Gregório Magno: amor ipse notitia est134 . De São Gregório de Nissa a Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz, e aos místicos do século XVII, a literatura mística escreve sua página central com a descrição da união divina135. Nela verifica-se propriamente a situação singular do místico caracterizada pelo Pseudo-Dionísio: non solum discens sed et patiens divina 136 . Daqui a designação tradicional da união como união teopática. Na união teopática, o conhecimento e o amor estão presentes segundo uma forma absolutamente singular que transcende o exercício normal dessas atividades. A linguagem da união característica dos autores místicos denota, na sua forma freqüentemente paradoxal, uma luta dramática para exprimir o inexprimível. É fundamental, no entanto, assinalar que, mesmo na inefabilidade da união, a mística cristã permanece uma mística da Palavra. Na sua circulação vital de conhecimento e amor, a contemplação só é uma contemplação teomorfa - revestindo, isto é, a forma do conhecimento e do amor de Deus no extremo limite da potencia133. Ver Antropologia Filosófica I, 221 e p. 235, nota 91. 134. Ver supra, nota 9. 135. Um exemplar clássico é o da união mística segundo São Bernardo, analisada excelentemente por E. GILSON, La Théologie mystique de Saint Bernard, 125-141. 136. Ver H. U. v. BALTHASAR, La priere contemplative, 197-207 e J.-H NJCOLAS, Contemplation et vie contemplative en Christianisme, 88-93. No âmbito da contemplação unitiva é que floresce, na tradição cristã, a chamada "mística nupcial" (Brautmystik), que a tradição, desde Orígenes, alimentou com a interpretação alegórica de Cântico dos Cânticos, e que, através da mística medieval - São Bernardo e a mística cisterciense -, atinge a plenitude da sua riqueza simbólica e doutrinai em São João da Cruz e Santa Teresa. Ver, a respeito, as reflexões de H. DE LuBAc, Mystique et mystêre, ap. Théologies d'occasion, 65-69. Sobre a "união teopática", ver a magistral exposição de AGAESSE-SALEs, Mystique lii, 3, Dictionnaire de Spiritualité, X, cols. 1965-1978. 72
FoRMAS DA ExPERIÊNCIA MísTICA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
lidade do espírito criado à ação divina -, na medida em que é também contemplação cristomorfa - participação, pela graça, à 137 contemplação amorosa do Verbo encarnado e à sua Revelação • Sendo o fruto amadurecido da virtude teologal da caridade, a união com Deus na contemplação é regida pelo dom da sabedoria138. Ora, o dom da sabedoria não é somente especulativo, mas também prático139 . Assim, a contemplação, tendo atingido o cimo da união divina, transborda da sua plenitude para tornar-se princípio de ação. Eis por que a terceira dimensão do espaço espiritual da contemplação deve ser denominada justamente efosão. Ela é um fluir na ação da verdade contemplada na iluminação e dos bens vividos na união. O problema da relação entre ação e contemplação, herdado da tradição grega 140 , tornou-se clássico na história da espiritualidade cristã e veio a situar-se no centro da interrogação sobre a especificidade cristã da experiência mística. Com efeito, a contemplação cristã, obedecendo ao critério (ver supra nota 125) da primazia do amor de Deus e do próximo, é animada por um movimento de efosão que parte do seu núcleo mais profundo - a união com Deus consumada no conhecimento e no amor - para prolongar-se em ação ou, em concreto, no serviço do próximo. A passagem da contemplação à ação é inerente à natureza eclesial da contemplação141. Ela verifica, em suma, a lei da encarnação que deve reger todas as manifestações da vida cristã. Sendo, pois, uma herança da tradição grega, o problema da relação entre contemplação e ação sofre, ao ser transposto para a teologia cristã, uma profunda e mesmo radical mudança em seus dados e em suas perspectivas, vindo a tornar-se uma marca origi137. Ver }o 1,18. 138. Summa Theologiae, li liae, q. 45, a. 2 c. 139. Summa Theologiae, li Ilae, q. 45, a. 3 c. 140. De Platão a Plotino, a discussão sobre os "gêneros de vidri' alimenta-se sobretudo com o tema das relações theoria-práxis. A transposição cristã desse tema é um dos capítulos mais importantes das relações helenismo-cristianismo. Ver J.H. NICOLAS, Contemplation et vie contemplative en Christianisme, 314-339. 141. Como foi antes observado (supra, nota 110), a vida contemplativa é necessariamente uma vida na Igreja.
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EXPERIÊNCIA MísTICA E FILOSOFIA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
nal da contemplação cristã. Essa originalidade manifesta-se em duas características fundamentais: a) primeiramente, a ação flui, por necessidade intrínseca, da própria natureza da conternplação142; b) em segundo lugar, contemplação e ação unem-se na identidade do fim, vem a ser, a vida eterna na visão beatificante de Deus 143 . Sendo a efusão urna dimensão constitutiva da contemplação cristã, esta pode ser pensada igualmente corno "contemplação na ação", concepção paradoxal em face do lugar comum que opõe contemplação e ação. Tal é, no entanto, urna das formas emblemáticas da contemplação cristã, que encontrou em Santo Inácio de Loyola seu mais conhecido praticante e mestre. Com efeito, um dos mais autorizados intérpretes da sua espiritualidade, seu discípulo Jerônimo Nadal, definiu-o corno in actione contemplativus, expressão que pode ser entendida, segundo as palavras do próprio Inácio, corno posse do dom de "encontrar Deus em todas as coisas" 144 . 142. Resultando da contemplação, como a propriedade resulta da essência, a ação é aqui, por excelência, a ação empreendida diretamente como serviço espiritual e corporal em favor do próximo, serviço que é uma exigência do amor de Deus vivido na contemplação. A ação, portanto, não tem em si mesma seu começo e seu fim. Ela é uma efusão da contemplação e portadora de seus bens: contemplata aliis tradere (SANTO ToMÁS, Summa Theologiae, I Ilae, q. 188, a 6, c.). No entanto, ela tem sua especificidade própria que a distingue da vida contemplativa, se a considerarmos segundo a forma natural da sua atividade e do seu fim (Summa Theologiae, II Ilae, q. 179, a. I c. e a. 2 ad 3m), permanecendo sempre, porém, sob a regência da contemplação (II Ilae, q. 182, a. 1 ad 3m). A mística cristã exclui radicalmente, portanto, qualquer forma de "mística da ação" polarizada pelo valor prioritário e quase absoluto do próprio agir, dos seus fins ou dos seus eventuais benefícios. 143. Eis aqui a diferença mais profunda entre a concepção grega e a concepção cristã: naquela, a vida humana é solicitada por dois fins - a eudaimonia, que nasce da theoria, orientada para as realidades eternas, e a eudaimonia, que resulta da práxis política, orientada para o "bem viver" (eu zên) na cidade -; nesta, um único fim orienta a contemplação e a ação, ou seja, a visio divinae essentiae na vida futura (Summa Theologiae, I Ilae, q. 3, a. 8c.). Sobre as diferenças entre as duas concepções, ver J.-H. NICOI.AS, Contemplation et vie contemplative en Christianisme, 320-324. 144. Monumenta Historica S./., Monumenta Natalis, V, 162. A dimensão mística ou contemplativa da espiritualidade de Santo Inácio tem sido objeto de numerosos estudos recentes. Ver a bela tese, com ampla bibliografia, de M. C. L. BINGEMER, Em tudo amar e servir: mistica trinitária e práxis cristã em Santo Inácio de Loyola, São Paulo, Loyola, 1990. A expressão "buscar Deus em todas as coisas" tem origem nas
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FoRMAS DA ExPERIÊNCIA MísTICA NA TRADIÇÃO OciDENTAL
Este célebre preceito inaciano abre-nos urna perspectiva profunda e ampla sobre a natureza profética da mística cristã corno mística da Palavra, e sobre a suprassunção, nela, da mística especulativa e da mística mistérica. O ritmo vital da mística cristã pulsa em dois momentos que marcam igualmente sua amplitude: a) quaerere Deum: buscar a Deus corno superior-interior na sua transcendência absoluta e na sua presença em nós mais intimamente do que nós mesmos pela tríplice mediação: criatura!, da graça e histórica; b) in omnibus, ou seja, "em todas as coisas", abrangendo a totalidade do que é inferior e que se situa infinitamente aquém da transcendência divina 14". Buscar a Deus no espaço da Palavra que se manifestou (hos ephanoróthe) como o grande mistério da Piedade (méga ... tà tês eusebeías mystérion, 1Trn 3,16), segundo a tríplice mediação antes descrita: tal a estrutura e a vida da mística cristã. Ela é especulativa quando inclina o olhar do conternplante para a profundidade da vida trinitária; é mistérica quando a contemplação se volta para a realidade divina nos sacramentos cósmico e eclesial; é profética como mística da Palavra contemplada na plenitude do seu ser e da sua expressão: o Verbo feito carne 146 que é o dizer total e definitivo de Deus aos hornens .
Constituições da Companhia de]esus, p. III, c. I (tr. port. de]. M. Abranches, Lisboa, 1975, p. 117). A propósito, ver]. STIERLI, Buscar Deus em todas as coisas, (tr. port.), São Paulo, Loyola, 1990. Sobre um dos aspectos fundamentais da mística inaciana, ver Ch. A. BER'IARD, l:illumination de l'intelligence: un trait de l'expérience mystique ignatienne, Gregorianum 72 (1991): 223-245. 145. Ver supra, nota 12, cap. 1. 146. Ver SAo JoAo DA CRCZ, Subida de! Monte Carmelo, II, c. 22 (BAC, op. cit., 680-684). Em nossa exposição não consideramos formalmente a dimensão da vida mística como vida de oração, o que necessitaria um novo e longo capítulo. Mas é evidente que, no cristianismo, toda vida mística é vida de oração, e que contemplar é, necessariamente, orar.
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CoNcLUsÃo
A EXPERIÊNCIA MÍSTICA NA MODERNIDADE OCIDENTAL
Em algum lugar do nosso texto observamos que a grande literatura mística do Ocidente, como produção de um conhecimento socialmente relevante e ostentando seus próprios títulos de legitimidade intelectual, conhece aparentemente no século XVII seu declínio e seu fim. A "invasão mística" na França seiscentista, de que fala Henri Bremond, é como a última vaga do refluxo de uma maré que não volta mais a bater nas praias da nossa história. A literatura mística clássica encontra, é verdade, continuadores no mundo moderno. A graça mística continua a florescer na Igreja e é descrita nas obras dos grandes espirituais que a vivem. Mas a literatura mística em geral passa a ser objeto de estilos novos de leitura. Ou é submetida a análises e interpretações dos chamados "estados místicos" no âmbito da Teologia da espiritualidade disciplina nascida da especialização moderna do conhecimento teológico - ou é lida como manifestação do assim denominado "fenômeno místico" investigado pelas ciências humanas, sobretudo pela ciência das religiões, em particular a fenomenologia e a psicologia religiosas. A experiência mística na modernidade ocidental tem seu destino ligado a uma profunda mudança de códigos epistemológicos que separa o saber dos tempos antigo-medievais e o saber dos tempos modernos. Tratar a experiência mística como um fenômeno observável e submetido às normas que regem a observação científica, ou, ainda, analisá-la e classificá-la segundo os procedimentos de uma razão de tipo cartesiano, mesmo quando animada 77
EXPERIÊNCIA MíSTICA E fiLOSOFIA NA TRADIÇÃO OCIDENTAL
por intenções teológicas, significa, em suma, integrá-la no imenso sistema de objetos - materiais e simbólicos - que se edifica ao longo do processo de formação da modernidade e cuja significação profunda deve ser buscada na pertinaz e gigantesca tarefa de reconstruir, segundo uma estrutura intencionalmente antropocêntrica, a realidade vivida, pensada e trabalhada pelo ser humano. Ao tomar-se objeto de uma razão antropocêntrica, a experiência mística é tratada ainda inicialmente segundo os esquemas e categorias da antiga teologia mística. Mas a linguagem desse saber pré-cartesiano logo recua e desaparece ante o avanço das ciências humanas. É esse o momento fugaz da passagem da mystica adjetivo à mystica substantivo, denominada por M. de Certeau como "a fábula mística" 1 • Ao declinar do século XVII e da âge classique francesa, ela assinala o fim de uma tradição e o início de uma dispersão: a errância da experiência mística pelos caminhos da modernidade. Início de uma dispersão: com efeito, a mística como fábula, ou seja, a narração de uma história imaginária, circulará doravante pelo sistema simbólico da modernidade como objeto de muitos saberes: histórico, psicológico, sociológico, filosófico. Desorbitada, porém, do seu centro real de atração em tomo do qual girou nos dois milênios da sua história (de Platão a São João da Cruz) como mística filosófica na Antigüidade grega ou como mística teológica no cristianismo, ela fica reduzida a objeto de um saber que lhe é exterior e que a domina. Com efeito, por ser radicalmente inobjetivável, o Absoluto transcendente, centro real da experiência mística, é posto sob suspeita ou é negado pela razão da modernidade, que não reconhece, por princípio, a legitimidade do procedimento transracional da inteligência espiritual, órgão próprio da contemplação2 • Tendo visto desaparecer seu centro, a experiência mística, tal como é considerada no saber e na linguagem da modernidade, vê abalada sua estrutura original que acaba por desabar. O que dela 1. Em sua obra já citada, La fable mystique: XVI-XVII siécle, M. DE CERTEAC propõe uma interpretação brilhante da situação do fato místico (experiência e discurso) no alvorecer da modernidade. 2. Ver Antropologia Filosófica I, 260-271.
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A
ExPERIÊNCIA MísTicA NA MoDERNIDADE OciDENTAL
resta, porque indestrutível, é apenas o profundo e incoercível élan para o Absoluto que habita o espírito humano, expresso em linguagem teológica como potentia oboedientialis. Por ela o ser humano pode receber a graça santificante (gratum faciens) e a graça da contemplação (gratis data). Diante do homem da modernidade levanta-se, então, a pergunta inevitável: em que direção se lançará a prodigiosa energia espiritual nele presente em virtude de sua orientação ontológica para o Absoluto? Assistimos, na verdade, nos tempos modernos, a dois imensos processos de captação dessa energia: a sua inclusão no campo das ciências humanas e a inversão da sua orientação original pela práxis política. Num e noutro caso a experiência mística, despojada do seu sentido primeiro, é reduzida apenas a objeto da razão antropocêntrica. No primeiro caso, a razão analítica a reduz aos componentes culturais, sociológicos ou psicológicos que condicionam sua manifestação, mas não permitem o acesso à sua essência. No segundo caso, a razão instrumental utiliza-a como arma do projeto titânico de fazer da práxis política, de modo paradigmático nos totalitarismos, o núcleo primeiro de inteligibilidade do ser humano e do seu mundo e a fonte primeira de todas as normas do seu agir. Em texto reproduzido no Anexo, (infra) 3 procuramos refletir sobre essa politização da mística e sobre sua significação nas vicissitudes históricas da modernidade. As conclusões que ali enunciamos há mais de uma década parecem confirmadas pelas espetaculares transformações do relevo político mundial nos últimos anos do nosso século. Após assistirmos ao desmoronamento dos regimes do chamado "socialismo real", nos quais a captação da mística pela razão política era instrumentalizada por um agressivo teor ideológico, estamos diante do predomínio aparentemente sem resistência de um estilo único de absorção da mística pela política. Aqui a razão instrumental envolve sua face ideológica, não menos agressiva, num enorme sistema de racionalidade técnica que, sob a designação anódina de "globalização", submete todas as esferas simbólicas do ser humano - pensamento, sensibilida3. Ver "Mística e Política", citado na nota 54 supra. Ver anexo.
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de, ação -, canalizando-as para um único alvo desenhado no proclamado único espaço da vida humana que pode reivindicar a prerrogativa do absoluto: o espaço do produzir, do consumir e do usufruir. Tudo leva a pensar ter sido aqui atingido o ponto final de queda da parábola da civilização ocidental que se elevou na Grécia e recebeu um decisivo impulso espiritual nos tempos platônicoaristotélicos. Então, a linha horizontal da práxis política avançando em meio às "coisas humanas" (tà anthrópina) e a linha vertical da theoria subindo até as realidades divinas (tà theía) geraram a curva do equilíbrio entre ação e contemplação, sempre ameaçado e sempre restabelecido, que guiou os passos do homem antigo e foi recebida e reformulada em novos termos pelo cristianismo. Qualquer que seja o juízo a ser feito sobre a inscrição real dessa curva na vida dos indivíduos e das sociedades nesses vinte e cinco séculos que nos separam de Platão, uma evidência se impõe nesse nosso fim de milênio: a poderosa atração das "coisas humanas", prodigiosamente multiplicada pelo enorme mundo de objetos criados pela tecnociência moderna, fez retumbar pesadamente a antiga curva no solo da nossa imanência, nele capturando as energias da subida contemplativa e arrastando-as no horizontalismo de uma práxis absolutizada, na qual é forçoso reconhecer o axioma primeiro da razão antropocêntrica da modernidade. O protagonista da história do século XXI, tendo atravessado o deserto do niilismo, poderá viver um novo dia histórico, iluminado pelo sol da Transcendência, e no qual a autêntica experiência mística venha de novo a florescer como o bem mais precioso de uma civilização? É na secreta esperança de um sim radioso que colocamos um ponto final a essas páginas.
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ANEXO
MíSTICA E POLÍTICA
Charles Péguy foi um dos nomes tutelares da cultura cristã durante boa parte do século XX. Hoje um discreto silêncio cobre seu nome e sua obra, e é permitido pensar que uma das razões desse distanciamento entre Péguy e nós deva ser buscada numa das idéias fundamentais e diretrizes do seu pensamento: aquela que aponta na degradação da mística em política o caminho que conduz às mais profundas perversões da consciência cristã. Na aurora de um século que iria assistir ao aparecimento das formas mais extremas de idolatria do poder, que poderiam ser interpretadas como o paroxismo da perversão das energias místicas transfundidas nas palavras de ordem das ideologias de dominação, Péguy colocava, na luz de uma atualidade que os anos iriam tragicamente prolongar e agravar, os termos de um problema desafiador para a práxis cristã desde quando penetra nesse campo das realidades terrestres - o campo político - atravessado pela oposição entre o Deus da consciência e os ídolos da cidade. Essa oposição, como é sabido, nasce com a própria invenção ocidental da vida política. Ela recebe uma expressão definitiva e fixa-se para sempre no imortal apelo da Antígona de Sófocles à lei não-escrita. Sócrates irá traduzi-la no discurso de uma lógica irrefutável diante dos juízes de Atenas. Mas, com o advento do Cristianismo, descobre-se nessa oposição uma nova e abissal profundidade. Com efeito, o anúncio da Boa Nova opera uma prodigiosa descentração da consciência humana, rompendo os círculos da hierarquia cósmica, onde seu lugar era designado em virtude da lei de uma ordem (kosmos) impessoal. A revelação cristã coloca 81
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o ser humano diante do apelo de um Deus que é amor gratuito (agape, l]o 4,8-9). A revelação desse amor descobre a um tempo a indigência essencial e a grandeza do ser humano, grandeza que se manifesta na abertura à graça de uma resposta que só pode ser, igualmente, dom gratuito de si. Homo capax Dei: eis o fundamento sobre o qual repousa a estrutura fundamental da experiência mística especificamente cristã. Eis por que a perversão da mística em política é tanto mais profunda quanto mais absoluta a exigência do dom de si que a habita. A extrema sensibilidade de Péguy aos valores essenciais do cristianismo não podia deixar de perceber a gravidade das ameaças de captação das energias místicas da vida cristã pelas grandes ideologias pagãs de divinização do político que se delineavam no horizonte do século XX. Enquanto permaneceu viva a inspiração de Péguy, a filosofia social cristã, por meio de seus melhores mestres na França, como J. Maritain e E. Mounier, conservou-se plenamente lúcida diante dessa ameaça, o que não impediu que clérigos, teólogos e féis se mostrassem desarmados em face do politique d'abord proposto pela Action Française e pelos fascismos de antes da guerra, ou pelo social d'abord preconizado pelos marxismos do pós-guerra. É necessário, pois, concluir que, para além das opções conjunturais, a questão decisiva coloca-se num plano espiritual mais profundo, onde o ser humano é chamado a optar sobre a orientação a ser dada a essa energia de origem divina suscitada no mais íntimo da pessoa pela sua vocação ao Absoluto. A inquietude inextinguível do coração atravessado pelo apelo divino - inquietum est cor nostrum - irá inclinar-se na direção de onde vem esse apelo: fecisti nos ad Te? Eis a pergunta incontornável que se apresenta ao cristão no momento em que a absolutização ideológica do político seduz poderosamente a consciência humana nesse nosso século e a lança pelos caminhos obscuros de uma espécie de experiência mística pervertida que exige sua imolação aos ídolos da raça, da classe, da nação e, onipresente nesse fim de século, aos ídolos do mercado: nomes e feições do ídolo proteiforme da História. Com efeito, é preciso admitir uma distância intransponí82
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vel entre a exigência absoluta do dom de si, que move a autêntica experiência mística, e os direitos e deveres que nos ligam aos fins relativos da convivência humana, onde a arte política, à luz da virtude intelectual da prudência, empenha-se na difícil e delicada tarefa de conciliar o possível e o melhor. A pretensão de se eliminar essa distância, que se declara como absolutização do político, configura exatamente a perversão mística denunciada por Péguy. Como não descobrir em semelhante perversão a raiz de todos os totalitarismos que se abateram sobre o nosso tempo? A forma contemporânea de degradação da mística em política apresenta-se, no entanto, com uma característica original que lhe confere uma singularidade inconfundível entre as suas análogas do passado. Ela é essencialmente distinta do chamado cesaropapismo teorizado por Eusébio de Cesaréia no século IV e que, por longos séculos, pesou sobre os destinos da Igreja Católica. Também distancia-se imensamente do estilo de aliança da mística com a política que se tomou paradigmático na figura do frere Joseph, a célebre éminence grise do Cardeal de Richelieu que Aldous Huxley retratou num livro fascinante. Aqui o místico é a outra face do político, oculta e talvez envergonhada e trabalhada por dúvidas interiores. A degradação atual da mística em política é uma absolutização ideológica da própria ação política ou, mais abrangentemente, da práxis social e política, na qual se inscrevem desfigurados os traços que caracterizam a incondicional entrega ao Deus verdadeiro na gratuidade da experiência mística. Nessa intenção a mística pretende infundir-se na práxis política como sua alma. Da união substancial dos dois deverá resultar, segundo as utopias político-sociais do nosso tempo, a figura do homem do futuro. Como quer que seja, a idéia de unir os pólos extremos do êxtase místico e da ação política absolutizada obedece a uma lógica profunda, e é sob esse aspecto que convém analisá-la. Semelhante lógica é a que rege justamente a absolutização do político e, mais abrangentemente, a absolutização do social e do histórico. Tratase da lógica que compõe os traços do que se poderia denominar a nova face do ateísmo e que, provavelmente, não é senão a última figura desse imenso processo de dissolução histórica do 83
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cristianismo iniciado pelo deísmo do século XVIII e que avança em nossos dias no campo concreto das relações sociopolíticas. Com efeito, infundir toda a energia da vida cristã, com suas exigências de absoluto de ordem religiosa e ética, na relatividade do social e do político é a maneira mais eficaz de dissolvê-la no fluxo da imanência histórica. No cumprimento desse programa é levado a cabo o desígnio que inspirou a vertente titânica do Romantismo alemão, qual seja, o de dirigir para a imanência do tempo e da história - ou para a Natureza como Absoluto - as torrentes de aspiração mística abertas no mais profundo da alma humana pelo dom sobrenatural da graça. Nesse caso a salvação e o êxtase místico são procurados na ação política e, sobretudo, na sua forma paroxística que é a ação revolucionária. É natural que Marx e seus epígonos apareçam como os mestres canônicos da teologia dessa mística. Surpreendente destino para a obra do homem que considerara definitivamente encerrada a crítica da religião na Alemanha, como anuncia com solenidade a primeira linha da Crítica da filosofia hegeliana do Direito (Werke, I, ed. Lieber-Fürth, p. 488). Imensa, na verdade, a distância que separa a celebração das virtudes teologais por Charles Péguy e a petite espérance cantada pelo poeta do Pórtico do mistério da segunda virtude, da simpatia com que conhecidos teólogos acolheram essa radical imanentização da tradição mística que E. Bloch operou sob o signo do chamado Princípio-esperança e que postula como seu fundamento o "ateísmo no cristianismo"! Dos veículos mais eficazes entre os que levaram ao mundo teológico, na sua evolução recente, alguns dos princípios fundamentais da modernidade representada pela sua deriva atéia e anticristã, e que traziam em seu bojo, entre outras conseqüências, a absorção da mística pela política, é o pretenso axioma, difundido e repetido como evidente e indiscutível como todo bom axioma, de que tudo é político. Foi provavelmente a partir de meados dos anos 1960 que essa afirmação, manifestamente falsa, recebeu sua consagração axiomática e, como tal, foi acolhida por uma ala, dita avançada, da teologia católica. Não há dúvida de que o brilho sedutor da práxis política, absolutizada ideologicamente em suas 84
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pretensões libertadoras, terá contribuído decisivamente para que se ofuscasse a falsidade de tal afirmação. Com efeito, basta um instante de reflexão sobre os campos por onde se estende a experiência humana para se descobrir que há domínios irredutíveis, por sua própria natureza, às leis e aos critérios que dominam a práxis política. Como reduzir ao agir e aos fins da política a experiência do amor, da arte, da busca e contemplação desinteressadas da verdade e, sobretudo, a experiência da fé na sua vivência mais radical, a experiência mística? Na verdade, para que se possa aceitar a onipenetração do político na existência humana é necessário que se aceitem preliminarmente dois pressupostos, muitas vezes inadvertidos, mas cuja conjunção gera a falsa evidência de que tudo é político: o primeiro é um pressuposto hermenêutico, o segundo, um pressuposto ideológico. O primeiro pressuposto aceita a primazia de uma chave política para a leitura do fato religioso na história. Essa é a chave freqüentemente utilizada na recente historiografia sobre a Igreja. Ela inspirou a Mareei Gauchet um livro brilhante e que foi amplamente discutido por ocasião de sua aparição (Le désenchantement du monde: une histoire politique de la religion, Paris, Gallimard, 1985). O segundo pressuposto aceita sem discussão a opção de se transfundir na imanência da práxis histórica a exigência do Absoluto que habita o coração da criatura racional e livre, imagem vivente do Deus vivo. É longa, na história, a procissão dos pseudo-absolutos, mas nunca se vira o ser humano absolutizar sua própria ação, elevando-se muito acima do desígnio de Prometeu e pretendendo-se criador de si mesmo e do seu mundo. Essa, no entanto, a convicção proclamada por Marx nos Manuscritos econômico-jilosóficos de 7844, e que irá alimentar a mística contemporânea da práxis. Quanto ao primeiro pressuposto, como explica Gauchet (op. cit., pp. 233 ss.), traduz uma acepção bem determinada da expressão "fim da religião", ao compreender a rota milenar das religiões como um processo histórico que desemboca na "religião da saída da religião", ou seja, exatamente no cristianismo. Com efeito, é o cristianismo, segundo essa hermenêutica histórica, que irá criar as condições estruturais para que o ser humano ocupe só e autonomamente, prescindindo de 85
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qualquer referência transcendente, o centro do movimento instituidor da sociedade nas suas vertentes organizacional e simbólica. Ao termo, pois, da sua história, a instância religiosa, considerada na sua imemorial função instituidora e legitimadora, é inteiramente absorvida pelo político. Na visão de M. Gauchet, e na lógica desse primeiro pressuposto, permanece, no entanto, ainda que socialmente residual, o espaço de uma interioridade religiosa e, nessa, de uma possível experiência mística. A eliminação desse espaço é o que justamente está implicado no segundo pressuposto. Aqui a interioridade do sujeito, dissipadas as nuvens ideológicas que a envolvem - e a primeira é, exatamente, a religião -, revela sua estrutura essencial como consciência mundana encerrada, por natureza, na imanência do universo do trabalho e do reconhecimento, ou seja, da práxis social e política. Esse segundo pressuposto descobre, em suma, o terreno onde se desenvolveu a crítica marxiana à religião (ver H. C. LIMA V AZ, Marx e o cristianismo, em Por que Marx?, Rio de Janeiro, Graal, 1983, pp. 133147). Ele permite estabelecer uma perfeita equivalência entre o tudo é político, que percorre como axioma uma parte da atual literatura teológica, e o tudo é histórico, que Marx colocou como fundamento à sua teoria da ideologia. Assim, a união dos dois pressupostos que afirmam, de um lado, a natureza política da história das religiões e sua convergência para a aparição histórica do cristianismo e para seu desdobramento no tempo da Igreja, e, de outro, a exaustão da interioridade religiosa na práxis política, gera necessariamente a convicção de que tudo é político, e torna, assim, perfeitamente lógica a proclamação da identidade do místico e do político. Negada na sua destinação transcendente e, como diziam os mestres espirituais da Idade Média, encurvada sobre si mesma - o paralelismo que São Bernardo estabelece entre os graus de descida e subida da alma em seu opúsculo De gradibus humilitatis et superbiae, transposto de seu contexto medieval e monástico, lança uma viva luz sobre os problemas atuais da vida cristã -, que resta à formidável energia psíquica suscitada pela sede do Absoluto, que habita o ser humano e que constitui a potentia oboedientialis à graça, 86
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senão transfundir-se na práxis política e alimentar esses implacáveis fanatismos e essas miragens utópicas que povoaram tragicamente o nosso século? A identidade do místico e do político tem, pois, complexos antecedentes doutrinais e históricos e obedece a uma lógica que descobre seu verdadeiro significado e seu alcance. Esse significado e esse alcance podem ser igualmente desvendados, se a pretensa identidade for considerada à luz da verdadeira idéia do político, tal como a elaboP ;. ~ prática e a teoria das sociedades ocidentais. A política é u11 ··' invenção grega. Ela nasce no momento em que as cidades se constituem democraticamente e em que os legisladores fazem apelo aos conceitos e aos procedimentos da razão para estabelecer os critérios e as regras do consenso cívico. A política é, pois, por excelência, arte da razão, e sua obra será justamente operar um consenso racionalmente fundamentado em tomo do mais justo, que será também, por definição, o melhor para a cidade. É esse o núcleo teórico do político, e é a ele que a prática política irá permanentemente referir-se ao longo da história das sociedades ocidentais todas as vezes que reencontrar a inspiração grega das suas origens. O desenvolvimento desse núcleo teórico na forma de uma filosofia política é outra criação admirável do gênio grego. Ela se proporá, fundamentalmente, levar a cabo uma teoria do político, ou seja, justificar num discurso coerente o projeto da existência consensual em tomo do mais justo, que define a comunidade política. Com efeito, sendo uma obra da razão que estabelece e ordena os fins da cidade e os exprime numa constituição (politeia), ou seja, num corpo discursivo de proposições ou leis aceitáveis pela razão comum dos cidadãos, a política coloca-se naturalmente sob a regência da filosofia que tem como alvo descobrir e ordenar os fins do ser humano como ser racional: eis o sentido do gesto fundador de Sócrates ao trazer a filosofia do céu à terra e ao designar-lhe como morada a cidade dos homens (M. T. CíCERO, Tusc. Disp. V, 4, 10). A filosofia política antiga, de Platão aos estóicos, floresce no tronco socrático da filosofia. Da raiz socrática alimenta-se toda a sua história, até nossos dias. Seu problema fundamental permanece sempre o 87
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mesmo: como fazer da ação política uma ação razoável, ou seja, obediente a normas de convivência racional consensualmente aceitas, e fazer, assim, da comunidade política ou do Estado uma obra da razão? A política nasce, pois, no seio da mesma vasta transformação do mundo grego nos séculos VI e V a.C., que viu a remodelação profunda do sistema simbólico da sociedade, em virtude do advento da razão demonstrativa e do seu caminhar para tornar-se o centro de um novo sistema simbólico. Essa transformação define igualmente novos estilos de vida para o homem e, entre esses, dois emergem como paradigmas dos novos tempos: a "vida teorética" (theoretikõs bíos ou vila contemplativa), longínqua origem da atual vida intelectual do filósofo ou do pesquisador e voltada para a atividade desinteressada do saber, e a "vida política" (politikõs bíos), também chamada "vida prática" (praktikõs bíos ou vila practica), que se dedica à preservação dos fins e à aplicação das leis da cidade em meio às vicissitudes e contingências da ação (práxis) na vida em comum dos homens, ou às voltas com o que Aristóteles caracterizou como mundo das "coisas humanas" (tà anthrópina). O problema das relações entre esses dois tipos de vida é, em suma, o problema das relações entre a razão na sua capacidade para elevar-se à verdade em-si - que Platão denominou idéia e para discorrer sobre essa verdade e à sua luz - o que é, propriamente, a ciência teórica - e a razão no seu trabalhoso empenho em ajustar às suas normas - que são para o ser humano, animal dotado de razão, as normas do melhor e do mais justo a confusa mutabilidade das coisas humanas. O estudo dessas relações é um locus clássico da historiografia da filosofia antiga, ilustrado por nomes como os de Werner Jaeger, A. J. Festugiere e outros. Finalmente, a relação entre os dois modos de vida irá fixar-se na idéia do filósofo político, ou preceptor do político, que irá inspirar os modelos de Platão na República e nas Leis, e de Aristóteles na Política. Essa junção do teorético e do prático irá tornar-se tradição na história do Ocidente, e podemos acompanhá-la nos conselheiros estóicos das grandes personagens políticas da Roma republicana e imperial, na própria união do filósofo e do 88
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imperador em Marco Aurélio, e nessa vasta assessoria intelectual dos políticos e governantes que se integrou aos quadros políticos normais da nação moderna. Como observa o grande historiador Arnaldo Momigliano (Problemes d'historiographie ancienne et moderne, Paris, Gallimard, 1983), o advento do cristianismo representou uma profunda ruptura na harmonia das formas de vida do homem antigo, ao difundir o ideal de uma nova forma de vita activa, a vida a serviço do Evangelho e da Igreja, irredutível por natureza ao bíos politikós a serviço da cidade terrena; e ao transpor para a hierarquia da vida espiritual do cristão o ideal da vila contemplativa, orientando-a para a contemplação da verdade revelada e apontando seu ápice na experiência mística da união com Deus. A partir de então, e após a definitiva consolidação histórica do cristianismo, a vida espiritual do Ocidente será assinalada pelo equilíbrio delicado e pelas contaminações freqüentes, e por vezes trágicas, entre essas formas fundamentais de vida: de um lado, o binômio vila activa-vita contemplativa da tradição clássica e, de outro, o binômio vila activavita contemplativa da tradição cristã. Nosso tempo assiste a um desequilíbrio extremamente grave e de incalculáveis conseqüências nesse edifício que sustentou até hoje, de um modo ou de outro, o complexo edifício simbólico das relações entre cristianismo e cultura edificado ao longo de dois mil anos de história do Ocidente. As razões desse desequilíbrio residem, de um lado, na profunda crise espiritual do mundo cristão provocada a partir do século XVIII pelo avançar da modernidade e que, desde então, tornou-se cada vez mais profunda; e, de outro, na remodelação da matriz conceptual básica do pensamento ocidental que teve lugar com o aparecimento das chamadas filosofias da práxis no século XIX, que suprimiram a antiga distinção e hierarquia entre a vila activa e a vita contemplativa. Ora, é nessa segunda metade do século XX que o universo espiritual e intelectual do catolicismo é verdadeiramente envolvido por essa crise e atingido a fundo por essa remodelação. Em março de 1969, no Prefácio de seu livro Désillusions du Progri:s, Raymon Aron, uma das mentes mais lúcidas do nosso tempo, considerava a rápida secula89
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rização da Igreja Católica como um fenômeno de imenso alcance e que suscitava as mais graves interrogações sobre o destino da civilização. Essa situação, é verdade, conheceu uma notória mudança com o advento de João Paulo 11 e ao longo de seu pontificado. Como quer que seja, uma evidência parece impor-se: não obstante os retornos e restaurações que pontilharam esses últimos vinte anos, as idéias e as práticas de uma parte importante dos intelectuais e dos militantes católicos continuaram a sofrer a atração desses dois pólos que são a leitura histórico-política do conteúdo da fé segundo os cânones da Ilustração, e a primazia da práxis político-social segundo o postulado (ou a evidência, como quer Marx), do homem criador de si mesmo e do seu mundo. A atitude que aceita como meta do futuro a identidade da mística e da política - ou a perda da especificidade da experiência mística autêntica - pressupõe, na verdade, o fim da idéia clássica da vida política e a dissolução da idéia tradicional da vida cristã. Nessa identidade, com efeito, os extremos se fundem e o lugar da razão política é ocupado pela intuição mística, assim como o lugar do Deus transcendente, para o qual se volta o excesso da mente na contemplação - excessus mentis in Deum -, é ocupado pela práxis política tomada absoluta nos seus meios e nos seus fins. Essa profunda inversão da hierarquia da ação e da contemplação que atinge tanto a ordem natural da vida política quanto a ordem sobrenatural da vida cristã, assinala talvez o abandono final dos caminhos dessa aventura histórica que chamamos Ocidente, e a exaustão do ciclo civilizatório e cultural que hoje os próprios cristãos evitam pudicamente denominar cristão. O que virá depois parece ainda incerto, mas podemos pensar que, ao fim e ao cabo, a destruição da antiga razão prática e a perversão da vida contemplativa pelo furor místico da práxis não são senão o trânsito para o triunfo definitivo da razão técnica e para a robotização do antigo animal político. Essas são metas que já se delineiam na direção da corrente de fundo que impele a modernidade e que, uma vez alcançadas, assinalarão o definitivo advento da pós-modernidade.
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