"Fazendo acontecer: materialidades e movimentos em duas religiões afro brasileiras".1 Cauê Fraga Machado (PPGAS/MN/UFRJ - RJ) Mariana Vitor Renou (PPGAS/MN/UFRJ - RJ) RESUMO Esta proposta é um esforço comparativo a partir de duas experiências etnográficas em religiões de matrizes africanas brasileiras, em que a materialidade e a centralidade dos objetos foram pontos comuns. Em candomblés angola de Nova Iguaçu/RJ e no batuque gaúcho de Nação Oyó é preciso fazer a “religião acontecer”, e para isso, uma materialidade específica. No primeiro caso, através das oferendas, foi possível refletir sobre sentidos sagrados e como a religião acontecia, além do modo como a religião se relacionava, atuava, constituía, fazia acontecer e concebia outras esferas, como a da política, a partir de movimentos pelo direito de realizar oferendas em espaços públicos. No batuque, foi possível observar e refletir o fazer acontecer através dos “serviços” envolvendo a feitura de comidas para que os orixás trabalhem, do assentamento das divindades nos “ocutás” e na cabeça de seus filhos, das rezas e danças, do “se ocupar” e de diversos objetos sagrados no esforço de presentificar as potências divinas, num aqui e agora vivido. Apesar das diferenças dos contextos etnográficos, observamos uma continuidade no fluxo ininterrupto de movimentos que fazem “a religião acontecer”. A proposta é avançar no sentido de compreender o significado dos objetos e a materialidade que envolve essas religiões de maneira mais geral e ampla, e tomar as práticas e concepções nativas para desestabilizar os modos pelos quais as as noções de objeto objeto e matéria vêm vêm sendo pensados pensados pela antropologia. antropologia. Palavras-Chaves: INTRODUÇÃO
Assentar, fixar, representar, representar, fazer fetiches, fetiches, oferendas e outros. Palavras comuns comuns para descrever práticas das religiões afro-brasileiras, que envolvem um tipo de materialidade bastante específica. Levadas ao pé da letra, através de concepções demasiado ocidentais, podemos incorrer num engano não menos comum nas descrições 1
Trabalho apresentado na 28ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 02 e 05 de julho de 2012, em São Paulo, SP, Brasil. 1
dessas mesmas práticas, a saber, a materialidade como algo dado, estancado, imóvel. Ancorados em dados etnográficos produzidos por nós e em propostas teóricas de Bruno Latour (2004; 2006; 2008), percorremos um caminho alternativo, no qual os conceitos dos sacerdotes da religião são pensados “ao lado” e em diálogo com as teses sobre re presentação, actancia e movimentação. Assim, buscamos refletir e compreender de que
maneira alguns materiais, objetos ou coisas existem no candomblé no processo em que se faz a "religião acontecer", de modo que possamos pensar de outras formas e por outras direções a noção de materialidade, objetos e matéria. São dois contextos etnográficos, duas religiões afro-brasileiras, o candomblé angola praticado em Nova Iguaçu/RJ e o batuque gaúcho de Nação Oyó. Considerando as diferenças e guardadas as especificidades no que concerne as crenças, cosmologias, divindades, línguas, cantos, ritos e etc, que não trataremos nesse espaço, as duas religiões se encontram em práticas ou, sobretudo, em movimentos e princípios básicos que os norteiam, no sentido de fazer as religiões acontecerem, e que envolvem materiais. Mariana Renou descreverá algumas situações que vivenciou com sacerdotes do candomblé angola de Nova Iguaçu quando fazia a pesquisa para a dissetação de mestrado em 2010, e Cauê Machado tratará do que têm vivido no batuque de Oyó ao realizar sua pesquisa para a dissertação. Juntos apresentaremos como a religião e outras coisas acontecem em determinados momentos. O verbo acontecer é privilegiado em nossa descrição. Seja no cuidado cotidiano da uma casa de religião, seja em rituais extraordinários – extraordinários – como como o Mutirão de Limpeza, uma Festa, a construção e reconstrução de uma Casa de Santo – observamos observamos uma movimentação ininterrupta, que não cessa ao atingir o pretendido, pois a ênfase no verbo faz do pronto um novo início. Assim, o macumbódromo nunca está limpo, um assentamento sempre tem fome, um Orixá ou Nkise sempre têm que ser feitos ou assentados. Dito isso, apresentamos o material etnográfico dos dois campos, para ao final confrontá-los e levar à cabo nosso intento inicial: a observação de um movimento contínuo que permite a aproximação das duas religiões e o extrapolamento de algumas considerações para além dos campos específicos. O Batuque Oyó
Nesta sessão dedicada ao batuque gaúcho de nação oyó discutiremos, a partir de um caso específico, as noções de matéria/objeto e de movimento encontradas na reconstrução de uma casa de religião no interior do Rio Grande do Sul. Deparamo-nos 2
com a importância da ação, do verbo fazer e refazer e do re-construir – pois nada se constrói a partir do nada 2. Ao longo da comunicação alguns conceitos mais específicos ao batuque gaúcho serão explicitados. Aos 27 dias do mês de fevereiro de 2012 a casa de religião que Pai Odacir do Ogum mantém em São Luiz Gonzaga/RS (doravante SL) incendiou devido um curto circuito na rede elétrica, o que destruiu por completo o quarto de santo – onde os fios de luz incendiaram – e a cozinha, uma das partes mais importantes de uma casa de religião. É na cozinha que se fazem as comidas para os orixás, que “trabalham” à base de alimentos3 preparados e posicionados de diversas formas nos feitiços (também chamados de oferendas, serviços ou trabalhos). A sala de estar, o banheiro, o quarto de dormir e a sala de búzios foram atingidos por fumaça forte, o que destruiu, também, parte dos objetos desses outros cômodos. Inatingida apenas Oxum, na imagem de Nossa Senhora Aparecida. A sua volta os restos daquilo que fora um local sagrado. Tal fato fez com que essa parte da comunicação fosse repensada de última hora, pois a partir do trabalho de campo foi possível acompanhar o encadeamento de ações que propiciaram a feitura de uma nova casa, repleta de “novos” objetos rituais, de novas “obrigações”. Por conseguinte, partindo da descrição do observado remontamos os diferentes movimentos e materialidades do oyó. Os jornais do município de SL noticiaram o milagre da santa que guardou a casa. A foto de Nossa Senhora Aparecida sobre os escombros, chamuscada, era prova cabal de que a casa estava sob sua proteção. Contudo, comentários de leitores oscilavam entre o sentimento de pena e as observações mais raivosas. “Casa de feiticeiro tem que queimar”. “Tanto fez, que teve o que mereceu”. Na contramão das agressões publicadas e de comentários que “se ouviu”, um número bastante significativo de clientes e amigos fez um mutirão para alugar uma nova casa, salvar o que era possível – como roupas, móveis e demais utensílios domésticos – comprar o que faltava e levantar o ânimo de Pai Odacir. O babalorixá pensou em desistir de sua casa em SL, pois seus assentamentos e o de seus filhos ficam em sua casa no município de Gravataí, também no Rio Grande do Sul. Além disso, ele possui outra casa em Laguna, no estado de Santa Catarina. Foi a força da gente amiga que não deixou que ele desistisse de tudo que construíra em SL. 2
Para uma discussão mais aprofundada sobre o dado e o feito em religiões de matriz africana ver Goldman, 2009 e 2012. 3 Devemos estender a noção de alimento a outros objetos, como velas e toda sorte de presentes, pois o orixá, basicamente, come para trabalhar. O que não exclui que se lhe peçam coisas apenas com palavras proferidas, para pagamento posterior, quando da graça alcançada. 3
Na cidade pertencente ao chamado Sete Povos das Missões o sacerdote cuidou de imagens centenárias – que continham o axé de antigos pais e mães de santo e de seus orixás – , assentou um Bará de trabalho (orixá não pessoal, mas da casa) e muitas amizades. Filhas de Santo fez duas. Fez quartinhas para segurança de crianças também. Perder no fogo, imagens, quartinhas e outros objetos religiosos tão antigos foi o que mais lhe doeu. Preferia que a casa tivesse queimado por completa, perder a cama, as roupas e tudo. Essa dor ainda não superada serviu como motor para que trabalhasse mais. Foram as clientes que compraram objetos novos – tanto rituais, quanto profanos – e cuidaram de arrumar aquilo que podiam. Além disso, recebeu muitas doações de objetos já antigos: imagens, móveis, eletrodomésticos. Trataram de aumentar o valor do jogo de búzios, mesmo que Pai Odacir não o desejasse num primeiro momento. Assim, ele voltou a atender em suas novas instalações, em uma casa maior, “uma mansão!”, como diz. A algumas quadras da casa queimada, uma nova casa religiosa, como a antiga, sem placas nem qualquer tipo de sinalização de que ali se joga búzios; o que é corriqueiro em SL. Bará, orixá de frente, dono dos caminhos, das portas, das chaves, dos cruzeiros abertos, dos mercados, da fartura, do movimento e da sexualidade é o primeiro a receber tudo no batuque. Bará, Elegbará ou Exú é o orixá para quem primeiramente se homenageia, com presentes e rezas, tudo primeiro é dado a ele, caso contrário não se chega aos outros orixás, nem a lugar algum. É orixá de frente, protege a casa e a rua. Por isso, mesmo tendo Bará e Bará Lôde (orixá que mora em casa separada na rua) em Gravataí, Pai Odacir assentou um Bará de trabalho para proteger a casa em SL. Lôde tem sua casa vermelha na frente das casas de religião, Ogum Avagã pode morar com ele, são os chamados orixás da rua. Os outros barás (Lanã, Tiriri, Bô, Dei, Ajelú, etc.) são assentados dentro do quarto de santo onde estão os demais orixás, entretanto, cada um deles fica em uma pequena casa de madeira, vermelha, no chão, nunca em prateleiras. Em SL o Bará morava dentro de casa, no quarto de santo, em sua casinha vermelha. Com o incêndio a casinha fora queimada, seu alguidar e suas ferramentas também, o ocutá fora chamuscado. O fato é que ainda não se sabe se aquela pedra (o ocutá) está viva. Na casa nova ele (Bará) está sob uma árvore, encostado na raiz, tomando sol e chuva, em contato com a natureza e seu movimento ( maré). As cinzas da antiga casinha, o alguidar, a quartinha e as ferramentas foram despachadas no mato. Já tinham perdido sua vida, seu axé. O ocutá não. É preciso ir aos mais velhos na religião e pedir para que joguem e vejam o destino ( odú) dessa pedra: o mato ou a uma 4
nova casinha. No caso da segunda hipótese Bará necessitará de uma série de cuidados e ofertas. Carinho, suas folhas sagradas, ori, dendê, sangue de carneiro e de galos vermelhos. Tudo isso transmite axé. O sangue ( axorô) é a forma mais concentrada de força vital, mas as mãos de um pai de santo ao tocar uma pedra a envolvem de axé forte também. Caso seja necessária outra pedra, essa também deverá passar por diversos rituais. Os ocutás são encontrados na natureza ou em casas de religião de conhecidos. Como o Ossanha de Pai Odacir, “encontrado” na casa de sua irmã de santo. A pedra do orixá das folhas se assemelha a um pé, símbolo do santo que não tem a perna esquerda. Do mesmo modo, é através do jogo de búzios q ue se define se a pedra “escolhida” será aceita ou não pelo orixá. Semelhante a noção de “viva” ou “morta” utilizada ao se falar das pedras (ocutás) está a noção de “crua” ou “preparada” aplicada as imagens de santos. Quando se vai a uma flora (loja especializada em artigos religiosos) se encontram imagens cruas, não adianta acender velas, dar comida ou rezar para elas. É preciso fazer um mieró – banho de ervas – para a imagem; que deve permanecer imersa nesse preparado por alguns dias. O correto é que tal ritual seja realizado dentro do quarto de santo. Quando das matanças se derrama o sangue do animal correspondente ao orixá na imagem. Na casa de SL além de cuidar do Bará, renovando sua frente (suas comidas) e seu ecó (alguidar contendo água, dendê e moedas) todas as segundas-feiras, o ecó de Iemanjá (vasilha de vidro transparente contendo moedas, mel, perfume e água) deve ser renovado no mesmo dia. Nas segundas-feiras após o último jogo de búzios e o último feitiço cuida-se do Bará e da Iemanjá. É justamente esse dia, considerado o primeiro da semana, que é o dia do menino (Bará). Milho torrado, sete batatinhas, sete balas de mel, pipoca, o opeté (bolo feito de batata cozida e moldado em diferentes formatos de acordo com cada orixá), miam-miam (farofa feita com farinha de mandioca e azeite de dênde, o epô)
e o ecó são despachados na frente de casa. O opeté é despachado no verde, nos
fundos da casa, o ecó no meio da rua, na frente de casa – é jogado primeiro para frente, depois para um lado e para o outro, cuidando dos caminhos, das direções. O restante da “frente” é misturado dentro de um alguidar grande e jogado aos poucos na rua em frente a casa. Durante o rito se pede por uma boa semana, deve-se agradecer pelo tudo, pelo muito, pelo pouco e pelo nada e pede- se que “seja de vida e saúde”. O ecó de Iemanjá deve ser despachado nos fundos da casa, no verde (lugar com folhas). Algumas semanas se prepara cinza – a partir da brasa fria – para Iansã. As cinzas são sopradas na frente de 5
casa, no ar, pedindo para que a dona dos eguns (mortos) proteja a casa de todo mal, que a dona dos ventos sopre o mal olhado, a inveja, o feitiço, a morte para longe da casa. Somente após esse ritual se pode descansar, tomar banho, jantar, beber e conversar sobre o dia que passou, até o sono chegar. Nos fundos da casa, no verde, é o local onde se plantam feitiços e diferentes tipos de obrigações, como as penas e inhalas (miúdos e patas dos animais) utilizados nas seguranças depois de ficarem no quarto de santo até o período necessário. Alguns serviços devem “cheirar bem”. É o perfume dos orixás, o sangue putrefato. Aquilo que chamamos de vermes ou larvas são as flores dos orixás, que quanto mais rápido florescem, sinal de que melhor foi aceito qualquer tipo de serviço. A casa é tomada por um ritmo grande de clientes, filhos e amigos que preenchem o dia do pai de santo com jogos de búzios marcados e outros serviços, marcados ou não. Pois podem aparecer na mesa de búzios como sendo de urgência, ou alguém pode telefonar ou chegar contando algum problema que exija a imediata feitura de algum feitiço. Na nova casa, um novo quarto de santo, novas prateleiras, novas imagens, tudo em processo de transformação do “cru” para o “preparado”, de “talvez -morto” para o “vivo”. O novo se constrói com um já “sempre aí” (Anjos , 2006) presente nas religiosidades afro-brasileiras, o axé está disperso em tudo esperando para ser passado. Tal força, talvez seja mais bem descrita como um movimento, um monismo que compreende em diferentes porções e modulações tudo no universo (Goldman, 2012). Assim como no novo quarto de búzios, mesa e cadeira novas, porém com búzios antigos. No quarto de santo, prateleiras novas, toalhas e castiçais antigos. Além disso, as ervas e o axorô. Na re-construção e re-organização da nova casa podemos observar a ação de deuses e humanos sobre objetos e vice-versa. Afora isso, é preciso parar e dar atenção ao conceito nativo de “obrigação” que engloba tanto o que traduzimos por objetos rituais, quanto por algumas ações e pelos próprios orixás em seus assentamentos. “Obrigação” designa o fazer, o cuidar, mas também aquilo que fica guardado, atrás das cortinas em sopeiras e manteigueiras. São as ferramentas, armas dos orixás; como a chave e a foice do Bará. São, também, os próprios ocutás. E, ainda, momentos, como os cortes (matanças), festas e outros eventos. Ouvimos falarem do tempo em que fizeram sua obrigação, ou “na obrigação da minha mãe vai ori”. 6
A partir dessa breve descrição sobre a casa de Pai Odacir do Ogum, podemos depreender uma série de “obrigações”, o encadeamento de ações que fizeram com que uma casa queimada desse lugar a um novo templo, com o antigo axé. Nesse processo o que traduzimos por material e por imaterial podem ser unidos sob o conceito de “obrigação”, que não confunde ingenuamente o que tendemos dividir, mas coloca numa mesma movimentação diferentes séries de acontecimentos. Acontecimentos que precisam ser feitos para acontecer. Restaria, ainda, tecer breve comentário sobre os orixás “no mundo”, quando eles acontecem nos corpos de seus filhos terrenos, que emprestam o corpo de tal forma que transluzem a força do orixá, sublimando o que de pessoa exista. Semelhante a Berma proustiana que se torna Fedra em cena, pessoas são territórios que se tornam puro orixá em determinada temporalidade. Diferente do que ocorre em outras religiosidades afro brasileiras, no batuque gaúcho, em seus diferentes lados/nações, quem recebe um orixá (“se ocupa”) não pode sabê -lo. Esse se constitui no maior segredo da religião: a ignorância da própria possessão pelo orixá dono da cabeça. Candomblé Angola
Em outra direção, nessa sessão encontraremos os objetos e a materialidade no candomblé angola de Nova Iguaçu, município do Rio de Janeiro. No inicio desta pesquisa um limite foi estabelecido, o de não tratar dos aspectos pertinentes ao culto propriamente dito, aspectos litúrgico, cosmológico, ritual, mítico ou simbólico das religiões de matriz africana, visto que as condições da pesquisa- tempo reduzido, pouca inserção em casas de culto, conhecimentos prévios limitados- diziam que não seria possível tratar dessas questões de maneira adequada. A ideia era, partindo da observação de algumas comunidades de terreiro do Rio de Janeiro e as ações definidas como “sociais” e “culturais” que colocavam em prática, bem como ações e relações que travavam com e na política, refletir sobre essa dinâmica, sobre essas práticas, o caráter e as relações, fluxos e associações que elas possibilitavam. Evidentemente, estudar algo “fora” da religião propriamente dita, mas relacionada a ela imporia a necessidade de repensar e refletir, a partir das concepções e ações dos grupos estudados, sobre a própria definição, o caráter, os conteúdos do que compõem e é inscrito no âmbito da religião, do social e da política, assim como repensar as divisões, separações e relações entre essas esferas, entre o “religioso” e o “não religioso”, o “interno” e o “externo” , de que se partia inicialmente. 7
Mas, o que de fato aconteceu foi que, os praticantes do candomblé angola mostraram de maneira concreta o que significava problematizar as divisões. Nas palavras deles tratava-se de um estudo sobre o candomblé angola em Nova Iguaçu , portanto, determinadas dinâmicas, que mesmo que postas de fora, integravam, participavam e se relacionavam com a religião propriamente dita, e que, de fato, permitiam entrar em contato com conteúdos, princípios e sentidos das religiões de matriz africana, no caso, do candomblé angola. Era possível tecer e movimentar-se por fluxos que faziam vir de um lado para outro, observando as coisas em funcionamento, onde separações pareciam arbitrárias e ineficazes, onde a religião perpassava e estava em tudo. A experiência e ponto de vista dos praticantes demonstrou o quanto as coisas estão articuladas, imbricadas e relacionadas, em movimentos conjuntos, gerando e inscrevendo composições diversas. As diversas experiências vividas, em constante relação, fazem parte de um mesmo movimento, mesmo que às vezes os atores expressem certas separações. Portanto, era possível deparar-se com questões da religião, à articulação e à imbricação das instâncias e experiências diversas da vida. Assim, acompanhando diversos “trabalhos sociais” 4, relações e atuações com e na política do município de Arlene de Katendê, Pai Roberto e Mãe Margarida, era possível encontrar as oferendas e toda uma materialidade do candomblé que acabava exposta em espaços públicos. Os sacerdotes estavam envolvidos na atividade denominada de Mutirão da Limpeza. Ideia que surgiu na preparação da Semana dos Cultos Afro de Nova Iguaçu, que aconteceu no âmbito das atividades relativas ao mês da Consciência Negra de 2009, para a qual os líderes da Coordenadoria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial de Nova Iguaçu (COPPIR) reuniram sacerdotes e adeptos com os quais já tinham relações, conhecimentos e parcerias. A Semana foi planejada e executada pelos religiosos em novembro de 2009, compreendendo a realização de atividades itinerantes em cinco casas religiosas de matriz africana, dentre as quais as de Mãe Margarida e Roberto. O tema estabelecido para as atividades foi o da relação dos Cultos Afro com o Meio Ambiente. Ao final de debates e atividades em torno da temática, os sacerdotes e adeptos sugeriram um ‘Mutirão de Limpeza’ para recolher o ‘lixo religioso’ em alguma área municipal utilizada por adeptos para a realização de rituais religiosos. Conceberam e realizaram a atividade em novembro de 4
Nesta sessão termos e falas nativas serão colocados em aspas simples, para se diferenciar dos termos em aspas duplas referentes a termos problematizados e/ou usados como conceitos e referente a autores. 8
2009, no Parque Natural Municipal de Nova Iguaçu. A pesquisa começou em fevereiro de 2010, justamente em uma reunião na COPPIR, com representantes da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Agricultura de Nova Iguaçu (SEMAM), ONGs e adeptos de religiões de matriz africana do município destinada a discutir e avaliar a atividade do I Mutirão de Limpeza e planejar novas ações para o ano de 2010. A preparação do II Mutirão e outros momentos da pesquisa evidenciaram questões e relações que se desenvolveram entre os sacerdotes, políticos, membros das secretarias de governo e de ONGs, entre outros, que não serão debatidos aqui, e colocou em destaque o debate sobre ‘oferendas’ e ‘lixo religioso’. Em uma das reuniões, a subsecretária da COPPIR exibiu alguns vídeos gravados com os sacerdotes no dia do I Mutirão. No primeiro vídeo que exibiu, Mãe Margarida enfatizava que o Centro Social Raiz, instituição que coordena, trabalhava ‘tirando crianças da rua e oferecendo capoeira, educação e cultura, e principalmente preservação da natureza. Porque as crianças são a esperança de um futuro melhor, se antes houvesse mais consciência do que é a natureza, de sua utilidade, e de que os orixás são todos oriundos da natureza, não estaríamos nessa situação’.
Mãe Margarida expressava algo frequente na fala dos adeptos : a ‘natureza’ é a fonte de energia primordial, a energia que move o mundo, o axé. As divindades principais do candomblé, por ex. os Nkisis das tradições angola-bantu, são concebidas como forças oriundas da natureza, e é na natureza, portanto, que é possível encontrá-las, cultuá-las, trabalhá-las, presentificá-las. Através dela e de seus elementos é que tudo na religião pode ser criado, a partir do ‘trabalho’ com seus elementos potenciais, e é possível produzir o que possibilita a manutenção de um equilíbrio e a produção de novas forças dinâmicas e ativas capazes de interferir no mundo e na vida de cada pessoa. A religião e todo o resto acontecem. De todos os rituais que envolvem a natureza e que são praticados em áreas ‘naturais’, a produção e depósito de oferendas é talvez o mais comum e observável, e sobre a qual se desenrolava debates mais intensos. Os atos de ‘fazer a cabeça’, ‘fazer os santos’ de cada pessoa e cuidar dos santos – Orixás ou Nkisis – e das demais divindades que cada um possa ter, e fazer com que eles aconteçam e se atualizem, pressupõe alimentá-los. Esse cuidado pode começar antes mesmo da iniciação para o Nkisi, que pode nunca ser concretizada. O ato de ‘dar comida’ às divindades pode ser realizado em períodos determinados, quando se cumprem ‘obrigações’ correspondentes a etapas da vida de santo, ou em épocas em que se comemora a divindade cuja culminância dos 9
festejos se dá nas festas públicas com a incorporação dos santos. A divindade também pode requerer a oferenda a algum cliente ou adepto, ou a própria pessoa pode oferecer o ‘presente’ ao realizar algum ‘trabalho’ em sua honra buscando a realização de um pedido ou agradecimento, e o cliente pode ‘alimentar a cabeça’ ou seu santo, mesmo antes da iniciação. Realizam-se assim os ebós, os atos de ‘dar comida às forças’, segundo os adeptos, que evidenciam todo um corpo litúrgico e ritual que permite que as divindades aconteçam plenamente, o que é essencial para a vida dos seres humanos. Procedimentos que são também chamados de ‘obrigações’, assim como seus resultados materiais. Assim, a oferenda é uma forma de estabelecer comunicação com as divindades, um dos procedimentos na direção de criá-las de maneiras específicas, transformando-as, ou de torná-las possíveis, atualizando-as ao renovar suas forças ou ao dotá-las de forças que fazem com que ajam em alguma direção; reforçá-las em agradecimento e retribuição ao que têm feito, da mesma maneira em que se recria e reforça a pessoa, isso possibilita que as divindades satisfeitas ajam em seu favor. A alimentação é fundamental para que divindades e pessoas existam plenamente, para manter as forças em equilíbrio, o universo em bom funcionamento. Os religiosos das religiões de matriz africana, e aqui em especial o candomblé, se defrontam constantemente com a acusação de que são grandes poluidores e depredadores de “áreas naturais” e do “meio ambiente”. Para o grupo de religiosos de Nova Iguaçu, essa acusação é grave, porém não é sem fundamento. Tomam-na com seriedade e a somam aos discursos e conhecimentos divulgados por órgãos estatais e organismos não governamentais sobre os process os de degradação do “meio ambiente”. Agregam a esses discursos o fato de que a preservação do ‘meio ambiente’ também interessa ao povo de santo. No vídeo do I Mutirão, Arlene aparecia enfatizando que ‘todos devem se conscientizar que poluir não faz parte da cultura e da religião e que deve-se trabalhar para preservar e não poluir’. Outro sacerdote que os acompanhava reforçou essa ideia, dizendo que a poluição não agradava a Orixás, Nkisis e V oduns, e que ‘o lixo degrada a principal fonte de axé, que são as florestas e as águas doces que nos levam ao contato com nossa Mãe Oxum’. Deve-se combater a ignorância que faz com que religiosos pensem que jogar lixo na cachoeira é axé: ‘isso não é axé, isso é contra -axé’: ‘Orixá não se alimenta de louça, trazer a louça do seu axé, da sua casa de santo, barracão, terreiro, o que for, para cachoeira, isso é imundiçar, isso é quebrar a força da natureza, essa magia. Colocar uma folha de mamona, fazer a função real recipiente dessa tigela de louça é colocar uma folha de mamona, colocar o ‘admum’, a comida do orixá, retirar, suspender a 10
folha de mamona e entregar às águas, isso é o culto, a louça volta para casa, ela não tem função na natureza, só de poluir.’
No dia 21 de março de 2010 aconteceu o II Mutirão de Limpeza no Parque Natural Municipal de Nova Iguaçu (PNMNI). Na verdade, a atividade aconteceu na área natural fora dos limites do Parque, já que este é de responsabilidade e está sob fiscalização da prefeitura que proíbe realizar qualquer tipo de ritual religioso. Além disso, era logo próximo a entrada do Parque que existia um ‘macumbódromo’5. Na ocasião, Roberto e Arlene tiveram a ideia de confeccionar algumas placas educativas, reservando alguns lugares para a realização dos rituais e orientando para que estes fossem feitos conscientemente. Arlene contou que eles têm um projeto que inclui colocar um grande recipiente onde as pessoas possam depositar os resíduos orgânicos resultantes das atividades sagradas, formando em um adubo natural. Outro local seria reservado para o depósito dos recipientes utilizados que poderiam ser reaproveitados para plantação de ervas sagradas, que inclusive são destruídas por religiosos que não sabem extraí-las devidamente da natureza. Essas ervas poderiam ser levadas pelos religiosos. Este projeto, contudo, segundo os sacerdotes, não tem recebido apoio político ou aprovação da SEMAM. Em conversa, Arlene respondia se havia problema em retirar os ‘trabalhos feitos’, dizendo que ‘o processo só funciona no momento em que está sendo realizado, depois pode ser tirado sem problemas’. Ela mostrou um casarão antigo que deveria ser comprado para ser a sede do projeto que formularam. Mãe Margarida com seus capoeristas também fizeram parte da atividade, e além de limpar se apresentaram para os presentes. A atividade foi um sucesso, e muito lixo, religioso ou não, foi retirado. A preparação do III Mutirão foi mais complicada, uma vez que todo o planejamento do início do ano ficou comprometido pela desativação da COPPIR e pelas trocas dos secretários municipais, como no caso da SEMAM, com o rearranjo das forças políticas locais e com a saída do prefeito do PT, Lindberg Farias. O III Mutirão só aconteceu devido ao esforço de Arlene e Roberto, que trabalharam para rearticular as relações e
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Este termo é usado por adeptos e não adeptos para designar espaços exclusivos, delimitados e estruturados – existentes ou apenas em projeto – especificamente para a prática de rituais das religiões afro. Por sua inadequação, expressões como ‘espaço sagrado’ aparece m como mais adequado na fala dos adeptos. O termo também é utilizado de maneira pejorativa e acusatória pelos não adeptos ou pelos próprios praticantes para designar áreas não oficiais ou não regulamentadas muito usadas para rituais. 11
parcerias com as secretarias e outros órgãos públicos, direcionar o movimento, resgatar antigos contatos e parceiros, conduzindo, quase sozinhos, a iniciativa. Por todos os problemas, o III Mutirão se realizou com poucos participantes, nem mesmo Arlene pode participar, pois estava em viagem, e Mãe Margarida não foi convocada, uma vez que não era possível providenciar o necessário para levar todo seu grupo. Roberto e Pai Sérgio, pai pequeno do terreiro de Roberto, conduziram o evento. Pouco antes do inicio do trabalho de recolhimento do ‘lixo religioso’, Roberto disse aos funcionários da EMLURB que eles não deveriam ter medo de mexer nos ‘trabalhos’ , nas ‘obrigações’ que estavam depositadas, que ‘não havia mais nada sagrado ali’, já era tudo lixo, ‘lixo religioso, como as próprias pessoas de santo dizem’. O sacerdote argumentou que, passados 15 minutos, depois de arriar 6 o ‘carrego’, o material deixava de ser oferenda sagrada. A oferenda já havia sido recebida pelas divindades e se tornava a mesma coisa que os funcionários recolhiam na porta das casas das pessoas. Alguns funcionários encaravam seriamente o problema, enquanto outros brincavam e se divertiam às custas daqueles que demonstravam certo receio. De qualquer maneira, Roberto e Pai Sérgio estavam presentes para assegurar que a empreitada era segura e para tranquilizar aqueles que pareciam se importar com a questão, o que não impediu que alguns se mantivessem o mais afastados possível do ‘lixo religioso’. O Mutirão começou. No macumbódromo, desde a entrada na beira da estrada principal até muito longe dentro da mata, no rio, nas pedras, no caminho, nas encostas e na vegetação, havia uma quantidade de materiais, de ‘lixo religioso’, impressionante. A certa altura Pai Sérgio disse não haver problema em deixar comidas e animais na natureza, pois podem dar um pouco de mau cheiro mas, da mesma forma que o barro e os pedaços de alguidares, degradam- se e acabam sendo ‘absorvidos’ . Ao contrário de sacos plásticos e outros recipientes utilizados para transportar as coisas, que devem ser levados de volta para casa. Efetivamente, para os sacerdotes, recipientes como alguidares de barro, travessas de louça, balaios, garrafas de vidro, roupas, utensílios de ferro, esteiras, instrumentos musicais como atabaques e berrantes, velas acesas, imagens de gesso de diversos santos católicos e outras entidades, sacos plásticos, caixas de ovos e os elementos não
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Termo nativo que significa colocar no chão, depositar, abaixar. Possui toda uma significação sagrada, uma vez que o ato de depositar a oferenda significa que ela está sendo enviada e é recebida pelas divindades. 12
utilizados diretamente nos rituais não deveriam ser deixados após sua realização. Isso não significava que não poderiam ou não deveriam ser utilizados. Mais tarde, Roberto foi até um grupo que fazia rituais no local e lá permaneceu um bom tempo conversando com as pessoas. T ambém conversava com uma ‘entidade’, Vovó Maria Conga do Rosário. Esta parecia estar aprovando a iniciativa, já que Roberto perguntava, ‘não estou certo, Vó?’, e ela assentia, balançando a cabeça. O sacerdote explicava o trabalho que estava sendo realizado e convidava os irmãos a se unirem ao esforço de ‘preservar e cuidar da natureza’. Roberto destacava que o povo de santo e ra o principal acusado de poluir e degradar a natureza. ‘Toda vez que tem um incêndio aqui, os bombeiros dizem que foi por causa de velas acesas deixadas pelo povo de santo...’ Desta maneira, apontava para a necessidade de cuidar dos espaços utilizados pelo povo de santo para seus rituais, de modificar as formar de fazê-los, recolhendo e reciclando os materiais utilizados, por exemplo, ou usando alternativas de suporte para apoiar as oferendas. Contou ainda sobre a ideia de se montar ali um ‘Espaço Sagrado’ . Não demorou muito, o sacerdote pegou os recipientes que tinham sido usados pelo grupo em suas oferendas, esvaziou-os, dizendo que os guardaria para reutilizá-los, e entregou a Pai Sérgio. Depois do trabalho, Roberto contou sobre reuniões de que participou com um fabricante que havia criado um alguidar de casca de coco, que custaria R$18,00. Comparou esse preço com aquele que é pago pelos alguidares de barro, mais ou menos R$3,00, e mostrou a inviabilidade do preço para as comunidades de terreiro. Na ocasião, sugeriu: ‘Então por que não utilizarmos folha de mamona?’ Ele riu e comentou que os fabricantes ficaram bastante irritados. Mais tarde, Roberto disse haver perguntado ao grupo que realizava seus rituais durante o trabalho se eles levariam embora os utensílios e eles responderam que ‘Vovó disse que faz parte do carrego’. Ainda assim, pediu licença, esvaziou os recipientes, recolheu-os e levou embora. Vovó, por sua vez, não fez nenhuma objeção. Pai Sérgio comentou que esses recipientes eram como os pra tos que utilizamos para comer. ‘Não comemos na mesa? Colocamos a comida no prato, tudo direitinho, mas depois que se come se recolhe o prato, não deixa ele lá. O alguidar e outros recipientes são a mesma coisa’. E se tinham o consentimento da divindade para serem retirados, então não poderia haver problema. Assim, uma vez ‘depositado o carrego’, ou ‘quando realizada diretamente na natureza, depois que as divindades comem a oferenda’, ‘depois do ritual realizado’, 13
‘após alguns minutos’ ou ‘alguns dias’, nas palavras nem sempre consonantes dos sacerdotes, a oferenda transformou-se em ‘lixo religioso’. Era a partir desse argumento que os religiosos asseguravam aos demais que não havia problema em fazer a limpeza do material, contudo aquilo não era qualquer lixo, era prudente contar com a presença dos sacerdotes para garantir continuamente que ‘não tinha perigo recolher o lixo religioso’, garantir a correta manipulação daqueles objetos, receber ‘a orientação religiosa’, e contar com eles para qualquer eventualidade . E, claro, algumas ‘coisas’ não podiam ser “limpas”. Para os sacerdotes estar presente nessas atividades era ainda mais fundamental para cuidar e ocupar o espaço que deveria ser oficialmente direcionado, na concepção deles, a essas práticas religiosas, recebendo uma estruturação para tal do poder público. Desta maneira, as oferendas deveriam ser realizadas ou postas naqueles locais ‘naturais’. Neles passavam a estar sujeitas a um processo de transformação, tornando -se ‘lixo religioso’. Obviamente, classificar o que recolhiam de ‘lixo religioso’ era motivo de indignação e reprovação por grande parte dos religiosos de matriz africana do município, que os condenavam veementemente. A resposta deles, contudo, era apontar a maneira como eram feitos e a degrada ção que o material causava às áreas ‘naturais’: prejuízo a ‘natureza e meio ambiente’ e à morada das divindades, fonte de energia e forças sagradas. Mas, o que os Mutirões de Limpeza e outras discussões e propostas que se seguiram evidenciaram é que aquelas oferendas, de fato dotadas de potencialidades e forças específicas, poderiam ter um destino mais apropriado. Os sacerdotes não queriam que as oferendas se tornassem ou fossem vistas como ‘lixo religioso’. Concebê-las como ‘lixo religioso’ naquele estági o em que se encontravam no PNMNI era necessário para que cuidassem da área, mantivessem-na de maneira adequada para o prosseguimento dos rituais e, sobretudo, para que contassem com o apoio do governo e de instituições não governamentais que identificavam o problema ‘da sujeira’ e viam como única solução a ‘limpeza’. O ‘lixo religioso’ permitia alianças, contatos e diálogos, mas, a partir dos Mutirões, estando em contato com políticos, ambientalistas, acadêmicos e outros, os sacerdotes propunham um projeto muito mais duradouro e uma forma de realizar oferendas de maneira ‘sustentável para o meio ambiente’. Sem dúvida, os debates e as falas dos informantes iam no sentido da “oferenda ecológica” e dos ‘espaços sagrados’. A ideia de ‘lixo religioso’ se limitava ao âmbito dos Mutirões de maneira a reunir apoios e alianças variados. Diante da crítica que outros religiosos faziam às ações de limpeza e, 14
principalmente à desqualificação das oferendas como ‘lixo religioso’, os sacerdotes propunham outra forma de realizar oferendas de maneira que não se tornassem ou fossem concebidas como algo a ser retirado como ‘lixo’ , já que todos compartilhavam sobre o que são e o que podem conter aqueles objetos. Argumentavam que as comunidades de terreiro em geral deveriam passar por um processo de ‘educação’, ‘formação’, ‘conscientização’ sobre a maneira de proceder corretamente em relação à realização e ao depósito das oferendas. “Oferenda ecológica” foi uma expressão que formulei diante de diversos comentários de meus informantes ao reforçarem a necessidade de fazer ‘oferendas que não agridem a natureza’, ‘oferendas que sejam mais rapidamente absorvidas pela natureza’, ‘oferendas que sejam realizadas em materiais que se degradam facilmente’, ‘oferendas que não poluam os ambientes’ ou ‘oferendas conscientes’. O termo surgiu mais do diálogo com os interlocutores e a partir de movimentos que têm sido observados em todo o país, do que como uma expressão que eles próprios usassem no dia a dia, o que aconteceu apenas eventualmente. Assim, a partir dos Mutirões, os sacerdotes demonstravam que soluções mais duradouras e significativas deveriam ser adotadas. Dias depois do II Mutirão de Limpeza, Arlene me contou que fora ao local fazer ‘obrigação’ de uma de suas filhas de santo e que ‘já estava tudo muito sujo’. Ela comentou sobre a necessidade urgente de instalação das placas educativas e até de lixeiras na área e de, finalmente, se criar o ‘Espaço Sagrado’ no local, com estrutura adequada, apoio para os praticantes, funcionários, tornando o local de formação dos adeptos e de valorização e divulgação da cultura afro. Contou que sua ‘obrigação’ foi destinada a Dandalunda e que havia feito bastante canjica e espalhado no chão. Por cima da canjica foi depositando os demais elementos, como flores, e a oferenda ‘ficou lindíssima’ e não utilizou nenhum recipiente ou material que não fosse orgânico. Arlene destacou que se preocupou em agredir o mínimo possível a natureza, afirmando que havia posto de tal forma que ‘a própria natureza, as águas da cachoeira, se encarregariam de limpar a obrigação’. Ela enfatizou a necessidade de educar as pessoas para que preservem a ‘natureza’ e respeitem o ‘espaço religioso’. Como visto, no III Mutirão, e ao longo do trabalho de campo, os recipientes que continham as oferendas eram apontados como o que prejudicava a natureza e que bastava o uso de outro tipo de material para que as oferendas pudessem ser ‘limpas naturalmente pela natureza’. Em todos os Mutirões, Roberto preocupou -se em recolher 15
alguns recipientes e levar para casa para reaproveitá- los, porque ‘aqui eles não têm utilidade alguma, na minha casa têm.’ Além disso, não iriam para o lixo. Propunham, assim, alternativas, além da limpeza: oferendas que não utilizassem materiais como louças, alguidares de barro, balaios de palha, garrafas etc., materiais que não desaparecem facilmente. Esses materiais podiam ser usados, mas levados embora após o ritual: a bebida deveria ser derramada e a comida e outros materiais orgânicos e eventualmente inorgânicos, mas que compunham as oferendas, deveriam ser depositados, ou até enterrados. Era muito mais forte em relação às ‘oferendas já passadas: dar a Intoto (Terra) o que é de Intoto’, e não ao lixo. Nesse processo, pude observar até divindades participando, desde muito tempo, do processo de criação e concepção das “oferendas ecológicas”. O ferecendo a oportunidade de as oferendas não chegarem nunca a ser ‘lixo religioso’, de retornarem como forças que são e/ou podem conter para natureza, de compor o espaço com suas energias específicas em perfeita harmonia com ele e em consonância com seus significados. Assim, a oferenda, trabalho, obrigação foi feita, o que se queria aconteceu, a religião aconteceu, mas considerando sua força e significado não se quer que elas sejam transformadas ou tornadas lixo, melhor que suas partes voltem para Terra – natureza e Nkisi-, ou para as casas, e sejam novamente transformadas e aconteçam em outras direções. O ideal é que ‘oferenda’ e ‘natureza’ se fund am harmonicamente e conservem o equilíbrio e o estado das forças de ambas. As oferendas ou o que delas sobrar, uma vez que já se constituíram como oferendas, devem encontrar outros espaços adequados a seu significado e força, mesmo que neste momento signifiquem apenas elementos oriundos da natureza e outros objetos, em si já potências, que para natureza devem retornar. Isso é importante para manter o equilíbrio geral nos próprios espaços ‘naturais’ e para que tanto a ‘oferenda’ quanto a ‘natureza’, o espaço e o objeto, aconteçam e se atualizem plena e constantemente. E trata-se de um duplo movimento dos religiosos, tentar se colocar no espaço público, sendo bem vistos, valorizados e aceitos, mas fazer isso, não à custa de seus princípios religiosos, até porque certas coisas terão que continuar sendo feitas mesmo que “poluam”, mas fazer isso baseados em ‘fundamentos’, em princípios legítimos e originais da religião, na concepção dos sacerdotes. Algumas Considerações 16
Nos diferentes acontecimentos religiosos acima descritos nos deparamos com importantes pontos de confluência. O primeiro deles talvez seja que fica claro que objetos ou coisas comuns, presentes na natureza ou fabricados pelo homem, quando colocados em conjunto e submetidos a procedimentos rituais se tranformam em muitas coisas: ‘oferendas’, ‘obrigações’, assentamentos ou “fetiches” que são as próprias divindades, objetos rituais plenos de energia, de axé, enfim, coisas que são e podem produzir efeitos. As coisas antes do preparo têm potência, potencial, como o ocutá que irá compor o assentamento que já é e já pertence a determinada divindade potencialmente, mas deve ser preparado e transformado para se torná-la plenamente (Goldman, 2009; 2012), assim como os demais objetos potenciais que vão ser preparados de modo a se tornar outras coisas e compor o universo sagrado. Ainda assim, essas novas “coisas sagradas” não cessam nunca de serem preparadas e de transformar se. Era porque a oferenda tendia a se transformar que os sacerdotes de Nova Iguaçu buscavam cuidar para que se transformassem de maneira adequada, assim como os assentamentos ou “obrigações” do batuque que devem ser sempre cuidados e alimentados. As diferentes descrições foram resultado dos diferentes tipos de inserções e objetivos de pesquisas de nós estudiosos. De fato a primeira descrição trata de maneira mais próxima como vão se fazendo e tranformado as coisas sagradas e a religião vai acontecendo. É nesse sentido que a primeira descrição se aproxima de uma ontologia das “obrigações” religiosas. No caso de Nova Iguaçu, foi possível observar não apenas as oferendas que criavam e estabeleciam uma relação importante entre religiosos e divindades fazendo acontecer a religião, mas o ‘lixo religioso’ e a “oferenda ecológica” que colocavam em contato e em relação actantes e as instâncias da política e da religião, por exemplo, e a partir de que os ‘trabalhos sociais’, a religião e a política eram feitas e aconteciam. Contudo, se focalizamos os objetos sagrados nos dois casos, iremos perceber como eles são criados e recriados continuamente, criam e agem, produzem efeitos e movimentos, são movimentos. Latour formula e utiliza o conceito de “actante” para englobar tudo que provoca uma ação, que age, não importa a figuração que tenha: pode ser um ideomorfismo ou um antropomorfismo, ou seja, uma ideia ou um ser humano, por exemplo (LATOUR, 2006: 7879). Tudo que vem modificar uma situação torna-se um ator, ou melhor, um actante, e é importante considerar entidades participantes da ação. Em sua teoria os objetos são tornados atores, já que os objetos desdobram outras maneiras de agir e agem. Neste trabalho, 17
assumimos o conceito de “actantes” de maneira a trazer para observação uma variedade daquilo que participa das ações, seja humanos ou não humanos, em suas múltiplas figurações, objetos e materiais sagrados ou profanos, divindades e outros.
Evidenciando a ideia de ‘movimentos’ que influi diretamente na temática proposta por esse GT, a saber a dos objetos e da materialidade nas religiões, podemos perceber algumas coisas. As noções êmicas de ‘trabalho social’ e de ‘obrigação’, por exemplo, associam numa mesma série, signos que tendemos a separar não apenas em gênero ou grau, mas na própria natureza de suas existências. Ações e alguidares, limpeza e divindades, pessoas e imagens, oferendas e natureza, para citar alguns, são esses ‘actantes’ que estão por aí que tentamos purifica r e estabilizar como matéria ou objeto, ou seus outros lados: o imaterial e o não-objeto, não-objetificável. Da mesma forma, o ensaio de Bruno Latour (2004), dedicado ao cristianismo coloca questões interessantes para o que pensamos para essa comunicação. O texto tem como intento resolver o que o autor chama de uma “dupla redução caricatural”: da religião à crença e da ciência ao conhecimento. Para isso propõe que se fale religiosamente sobre os diferentes geradores de verdades, adotando um modo de fala amoroso. Sua noção de que a imagem re-presenta e não representa é capital para o entendimento das “coisas de/na religião” no batuque e no candomblé angola. Para Latour (2004) é quando o espectador devoto repete a mesma melodia, no mesmo ritmo e andamento que o artista que faz a obra religiosa que o “iconoclasmo interior” acontece, re-presentificando o sagrado. As obras de arte são, elas mesmas, re-encenações de momentos do cristianismo. De modo semelhante as imagens cruas que são preparadas no batuque. A iconografia cristã, diz Latour, põe a imagem em movimento, não a congela: é preciso compreender (ainda que forçados) a presença que a mensagem carrega. É, então, a própria iconofilia um fluxo de imagens, no qual não existe um original. “A verdade não se encontra na correspondência [...] entre original e cópia, no caso da religião – , mas em tomar a si novamente a tarefa de continuar o fluxo, de prolongar em um passo a mais a cascata das mediações” (Latour 2004: 371-2, grifo no original). Pois, congelar, representar, isolar, retirar a imagem da série não permite a transmissão do significado como verdade. É interessante, também, a reflexão que Latour (2008) faz sobre a mão humana na feitura de ícones divinos. A mão produz o divino 7. 7
Para um aprofundamento Cf. o interessante texto de Latour (2008), no qual discute um diferente modo de por a imagem/ícone em movimento, o iconoclash. O autor faz uma espécie de tipificação, que serve apenas para pensar, pois logo após tipificar, complica o esquema inter-relacionando os tipos, de tal 18
Tanto no candomblé angola, como no batuque, é um tipo de movimentação ininterrupta que está em jogo. Não há espaço para o congelamento. É a oferenda que passado um período se torna lixo, é a pedra que precisa se alimentar de tempo em tempo para não morrer. É o próprio axé, ou força, que é um movimento que se apresenta em singularizações, que são momentos de acontecimentos. Um acontecimento oferenda, acontecimento pessoa, acontecimento preto velho, acontecimento casa de religião. Matéria e objeto, imaterial e não-objeto, são, nas religiosidades afro-brasileiras, não distintos ontologicamente, mas diferentes formas de presentificações do sagrado e do profano – que, também, não deixa de ser uma modulação do sagrado. Pensamos que a reflexão sobre o sagrado e sobre os objetos no pensamento de Latour produz um “ bom encontro” – como diria Espinosa – com
as etnografias aqui apresentadas. O pensamento
do autor é posto em movimento “ao lado” do movimento d a etnografia, não para substituir conceitos nativos, mas para potencializar uma teoria religiosa que comunmente é tratada como simples sistema de crenças. A partir dessas considerações iniciais, lançando mão de nossas experiências etnográficas e de alguns conceitos, queremos destacar que, guardadas as diferenças as religiões afro-brasileiras colocam em evidencia uma existência dos materiais e vivência da materialidade que pode nos auxiliar a pensar sobre a questão em outros contextos, conferindo aos materiais diversas formas, movimento, ação, relação, e uma materialidade em constante transformação. Bibliografia Projeto Elos de Força. Nova Iguaçu: Centro de Integração Inzo Ia Nzambi, 2009
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___________. O candomblé da Bahia . São Paulo: Ed. Nacional, 1978 COSSARD, Gisele Binon. Contribuition a l´etude dês candomblés au Brésil: Le candomblé angola. Paris: Faculte des Letres et Sciences Humaines, 1970. ELBEIN DOS SANTOS, Juana. Os nàgô e a morte: pàde, àsèsè e o culto égun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 1977. GOLDMAN, Marcio. Formas do saber e modos do ser: observações sobre a multiplicidade e ontologia no candomblé. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, ISER/CER, v.25, n.2, pp. 102-120, 2005 __________. Como funciona a democracia: uma teoria etnográfica da política. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006 __________. Histórias, Devires e Fetiches das Religiões Afro-Brasileiras. Ensaio de Simetrização Antropológica. Análise Social , v. XLIV, p. 105-137, 2009 ___________. O Dom e a Iniciação Revisitados: o Dado e o Feito em Religiões de Matriz Africana no Brasil. In: Mana. Estudos de Antropologia Social 18 (2) - 2012, no prelo. HENARE, A.; HOLBRAAD, M. & WASTELL, S. Thinking through things: theorizing artefacts ethnographically. London and New York: Routledge, 2007 LATOUR, Bruno. Nous n’Avons Jamais Été Modernes: Essai d’Anthropologie Symétrique. Paris: Editions La Découverte, 1991 ___________. Petite reflexion sur le culte moderne des dieux faitiches. Paris : Synthélabo, 1996 ___________. "Não congelarás a imagem", ou: como não desentender o debate ciência-religião. In: Mana, Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, Oct. 2004. ___________. Reassembling the Social . Oxford: Oxford University Press, 2005 ___________. Changer de société: Refaire de La sociologia. Paris: La Découverte, 2006 _______________. O que é iconoclash? Ou, há um mundo além das guerras de imagem? In: Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 14, n. 29, Jun., 2008. ORO, Ari Pedro. O sacrifício de animais nas religiões afro-brasileiras: análise de uma polêmica recente no Rio Grande do Sul. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, ISER/CER, v.25, n.2, pp. 11-31, 2005
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