POESIA & CIDADE: RUÍDOS BAUDELAIREANOS NA POESIA DE DRUMMOND1 Márcia Cristina Valdivia
Graduada em 2003/2, campus Méier Mestranda em Literatura Brasileira - UFRJ Poesia & cidade: Ruídos baudelaireanos na poesia de Drummond
Resumo Carlos Drummond de Andrade e Charles Baudelaire são duas expressões da poesia lírica moderna. Ambos trazem na sua poética os sentimentos de angústia e solidão estabelecidos no homem moderno que, a partir do século XIX - época da explosão industrial -, se revela um ser fragmentado e solitário. Perdido na multidão das grandes cidades, esse homem se vê mergulhado numa profusão de sentimentos contraditórios, fruto do inevitável contato infeccioso com uma modernização dilacerante, que é orquestrada pela doutrina do capitalismo voraz. Deste modo, esse ensaio propõe uma análise crítica - com base em algumas poesias - que capte uma leitura intertextual entre esses dois poetas, em que sobressaiam os sentimentos que angustiam o homem da grande cidade moderna. Em vista disso, se faz necessária, a título de suporte, uma breve explanação acerca do que se convencionou chamar modernidade e termos correlatos. Também serão utilizados conceitos de teóricos da lírica moderna, tais quais: Idealidade vazia (Hugo Friedrich) e Experiência de choque (Walter Benjamin). Palavras-chave:: Palavras-chave Drummond - Baudelaire - modernidade - fragmentação - multidão - solidão Eu te vejo sumir por aí avisei que a cidade era um vão da tua mão, não faz assim, não vai lá não (Chico Buarque)
É Baudelaire que, no ano de 1859, faz pela primeira vez o uso do termo "modernidade", esclarecendo que tal termo tinha como função "expressar o particular do artista moderno: a capacidade de ver no destino da metrópole não só a decadência do homem, mas também de pressentir uma beleza misteriosa, não descoberta até então" ( Apud Friedrich, 1991: 35). A explosão industrial do século XIX traz uma série de modificações no comportamento da humanidade que se vê então regida por uma idiossincrasia burguesa - cujos valores são voltados prioritariamente para a produção de capital, acima de qualquer ideal humanista. É, pois, mergulhado nesse contexto que se situa o homem de um tempo que se convencionou chamar de modernidade.
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Entenda-se por modernismo as expressões da modernidade na arte e no pensamento. A concepção da estética modernista era a de encaminhar o fazer artístico para a retratação de um mundo (cada vez mais fragmentado) em que seriam utilizadas novas formas de linguagem que traduzissem o universal e o eterno. O fato é que a Revolução Industrial incidiu de forma avassaladora sobre o homem do século XIX, que com o advento de um capitalismo agressivo, encaminha o indivíduo para um mundo de opressão - tendo em vista uma população culturalmente impregnada pela doutrina capitalista. A modernidade é expressamente assinalada pelo cosmopolitismo. Nela ecoa o frêmito de uma massa social que se congrega nos grandes núcleos citadinos, e que se deixa enredar na teia " do maravilhoso progresso" capitalista. A metrópole capitalista com a vida angustiante, os intermináveis atentados aos seus habitantes, converte-se em constante estímulo para a modernidade e as vanguardas que encontram aí o lugar ideal para produzir e confrontar suas propostas. As diversas linguagens e aspirações artísticas e ideológicas medem-se por sua relação com o metropolitano. A cidade aparece como o lugar por excelência onde se sentem, de forma mais agudizada, as conseqüências do desenvolvimento do sistema capitalista e da Revolução industrial. (Gomes, 1994, 35) Todo esse panorama da modernidade, configurado por um processo vertiginoso de mudanças sociais, é material da Lírica moderna que tem na figura de Baudelaire seu poeta maior. G. M. Hyde, em seu texto "The Poetry of the City ", corrobora com essa asserção: It could be argued that Modernist literature was born in the city and with Baudelaire especially with his discovery that crowds mean loneliness and that the terms ' multitude' and 'solitude' are interchangeable for a poet with an active and fertile imagination. (Hyde: 1981,
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O sentimento de solidão em meio a uma multidão é um dos motes da poesia de Drummond que o aproxima do poeta francês. Toda a neurose do homem moderno escoa no veio capitalista. Aquele, não é mais visto como ser humano, mas sim, como uma mercadoria: vale pelo que tem. Configura-se todo um processo de reificação do homem que atua intensamente para a formação de um "mundo caduco", cuja sociedade fragmentada tende a ser habitada por um tipo gauche. Desde o início, era visível na poesia de Drummond a idéia de que vivemos num "mundo muito mal feito". Esta idéia vai aumentando, até que do mundo avesso do obstáculo e do desentendimento surja a idéia social do "mundo caduco", feito de instituições superadas que geram o desajuste e a iniqüidade, devido aos quais os homens se enrodilham na solidão, na incomunicabilidade e no egoísmo. (Candido, 1995: 122, 123) Verifica-se na poesia de Drummond uma intensidade de imagens baudelaireanas. Uma espécie de ruído, seja no sentido de suas poesias revelarem uma intertextualidade, seja pelo fato de a palavra "ruído" evocar uma sensação de desconforto e inquietude, presentes na poética de ambos. Tais sensações irrompem numa série de questionamentos do eu que vivencia uma experiência de choque, porque deslocado e em conflito com "o universo da grande cidade moderna, lugar da experiência de ser estranho no mundo, de estar sob o signo da precariedade e do desamparo". (Gomes, 1994:69) Nesse painel, surge a imagem do "eu retorcido", que se vê avesso a um mundo corroído por uma modernidade que tem como meta à obliteração da individualidade do homem, a ser verificada no processo de uniformização da sociedade capitalista. É nesse contexto que se pode entrever a metáfora do ruído baudelaireano na poesia de Drummond, aliando-a ao seguinte comentário de Antonio Candido (1995:117): "Na obra de Drummond a inquietude com o eu vai desde as formas ligeiras de humor até à
autonegação pelo sentimento de culpa - que nela é fundamental como tipo de identificação da personalidade, manifestando-se por meio de traços de uma saliência baudelaireana". A palavra ruído, tomada no sentido de bulício, evoca a idéia de multidão, e essa, quando conectada ao homem moderno, implica, paradoxalmente, num sentimento de solidão. É exatamente neste estado de solidão e anomia, que o poeta se encontra. Ele agora é um ser exilado em sua própria terra, porque em dissonância com um mundo decadente onde prevalecem valores marcadamente burgueses, como a obsessão pela acumulação de capital que acaba por gerar uma sociedade megalomaníaca e individualista. O homem, substrato da modernidade, é antes de tudo um solitário, perdido entre a multidão das grandes cidades. Os poemas "A Bruxa" e "A uma passante" trazem um diálogo que retrata bem esse quadro. A cidade superpovoada contrasta com a figura do eu-lírico, abandonado na multidão, frustrado e solitário. Sozinho na cidade, sozinho na América, "Sozinho no mundo/ E agora José"? Drummond, de forma baudelaireana, apresenta no poema "A bruxa" o paradoxo binômio: multidão/solidão. Um turbilhão de imagens engendradas numa linguagem que transforma palavras e expressões em metáforas densas e significativas: a rua, cidade, dois milhões de habitantes, solidão. Nesta cidade do Rio, de dois milhões de habitantes, estou sozinho no quarto estou sozinho na América. Estou só, não tenho amigo, (...) E nem precisava tanto. Precisava de mulher que entrasse nesse minuto, recebesse este carinho, salvasse do aniquilamento um minuto e um carinho loucos que tenho para oferecer. Em dois milhões de habitantes, quantas mulheres prováveis interrogam-se no espelho medindo o tempo perdido (...) Esta cidade do Rio! Tenho tanta palavra meiga, (...) Mas se tento comunicar-me, (...) e uma espantosa SOLIDÃO. (...) "A uma passante" estabelece a experiência de choque, pois que perpassa pela idéia de frustração, na medida em que o eu-lírico não consegue estabelecer qualquer tipo de relação numa multidão em que não só a mulher, mas todos são passantes. O homem está passeando/flanando na multidão. Porém, ele é um solitário porque consciente de ser um anônimo na multidão. Ele vê a mulher que passa e os seus olhares se cruzam , mas eles estão na multidão, imediatamente os olhares se desfazem: "No olhar, céu lívido onde aflora a ventania". Há uma sensação de perda - que caracteriza bem o processo vampiresco do capitalismo. Aquela troca de olhares que poderia ter representado várias coisas, tais quais amor, amizade, compreensão, não se concretizou. O poema é genial, e Baudelaire ratifica sua imagem de poeta ícone da modernidade. Vejamos abaixo "A uma Passante": A rua em torno era um frenético alarido. Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa.
Erguendo e sacudindo a barra do vestido. Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina. Que bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia No olhar, céu lívido onde aflora a ventania, A doçura que envolve e o prazer que assassina. Que luz... e a noite após! - Efêmera beldade Cujos olhos me fazem nascer outra vez, Não mais hei de ter senão na eternidade? Longe daqui! Tarde demais! nunca talvez! Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste, Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste! O poeta é um gauche na vida, um sujeito em dissonância com o seu tempo e o turbilhão da urbe. Ele é o resultado fragmentado de uma cidade cosmopolita alienada pelo capitalismo. Um sujeito diluído na massa. A ele que não compreende e não é compreendido, só lhe resta a arte como conforto. Assim, expressa Drummond no poema "A bruxa": Meu verso é minha consolação Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça. Para beber, copo de cristal, canequinha de folha-de-flandres, Folha de taioba, pouco importa: tudo serve. Para louvar a deus como para aliviar o peito, Queixar o desprezo da morena, cantar minha vida e trabalhos É que faço o meu verso. E meu verso me agrada Meu verso me agrada sempre... Ao tematizar a cidade Drummond mostra a fragmentação do homem moderno, apreendida nas imagens contraditórias de um ser cindido entre o fascínio da metrópole efervescente e a placidez do ambiente rural. Aquela casa de nove andares comerciais É muito interessante. A casa colonial da fazenda também era... No elevador penso na roça Na roça penso no elevador. As reflexões sobre metrópole e cidade do interior, podem ser conferidas no poema "Confidência do Itabirano": Tive ouro, tive gado, tive fazendas. Hoje sou funcionário público. Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói! O emprego de elementos que caracterizam a poesia moderna - detonando um processo de reflexão questionadora do sujeito poético - é marca indelével no "Poema de sete faces", de Drummond. Deste modo, vemos, já no título do poema, uma característica da lírica moderna: a crise da subjetividade - "sete faces": sete personas, sete questionamentos que remetem à idéia de um eu fragmentado, com percepções fragmentadas da realidade - numa forma de representação da realidade que foge aos moldes do cânone romântico. Perceba que, ao conceber sete estrofes independentes entre si - com flashs que remetem ao enfoque de várias cenas -, Drummond viabiliza a leitura de sete investidas do sujeito poético,
sete captações de vida, sete pontos de vista. Fatos que ratificam a idéia de fragmentação do eu. O ruído da poesia baudelaireana interage com o poema de Drummond à medida que cria um clima de desassossego e mal-estar. Sentimentos expressos ora pela experiência de choque do eu dissonante e solitário perante o mundo, ora pela transcendência vazia, de um poeta que cético e irônico, não mais acredita em uma salvação redentora do mundo. Passemos ao "Poema de sete faces": Quando nasci, um anjo torto Desses que vivem na sombra Disse: Vai Carlos! Ser gauche na vida. A estrofe remete a idéia do poeta no exílio, no sentido de ele não se sentir integrado ao mundo. O poema fala sobre o poeta, e esse não se adapta a vida; ele quer alguma coisa, mas não sabe o quê. A sua inadaptação o torna um gauche, um desajeitado largado no mundo. A má sina, indiciada pela presença de um anjo torto, é dissimulada pelo artifício da autoironia. O bonde passa cheio de pernas: Pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta o meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada. O homem atrás do bigode É sério, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos, raros amigos O homem atrás dos óculos e do bigode. Duas estrofes compostas por vários flashs, percepções fragmentadas da realidade que remetem a uma série de reflexões acerca das relações entre os homens. Como no poema de Baudelaire, "A uma passante", o poeta vive a experiência de choque, porque solitário em meio a uma multidão. A presença da cidade turbulenta se delineia pelas imagens cortadas do bonde cheio de pernas distintas; por um estereótipo do homem moderno que tem no adereço dos óculos e do bigode a figura de um ser circunspeto e forte. Ele não conversa, não tem amigos e certamente integra o "coro dos contentes". A prática de flânerie baudelairiana agencia os dados que remetem o poeta à reflexão. Meu Deus, porque me abandonaste Se sabias que eu não era Deus Se sabias que eu era fraco. Nos versos acima, o poeta quebra a atmosfera de distanciamento pela transfiguração da linguagem. Faz uso da apóstrofe trazendo à tona um boom de emoção do poeta que interpela a figura de um Deus, até então ausente no poema. Ressalte-se ainda, o jogo dialógico com o texto bíblico. Este ensaio termina com "As flores do mal" e alguns versos que revelam em Drummond um Baudelaire moderno, aqui no Brasil, passeando pela multidão e não entendendo a vida moderna. Poema no qual se encontram ruídos baudelaireanos, numa referência que liga o tédio a uma cidade moderna decadente, de crimes e homens solitários. Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta Melancolia, mercadorias espreitam-me. Devo seguir até o enjôo? [...]
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase [...] Crimes da terra, como perdoá-los? Crimes suaves, que ajudam a viver. BIBLIOGRAFIA ANDRADE, Carlos Drummond, Antologia Poética . 18ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1993. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade . São Paulo: Companhia das Letras, 1986. CANDIDO, Antonio. "Inquietudes na poesia de Drummond". In : _____ Vários Escritos . 3ª ed., São Paulo: Duas Cidades, 1995, pp. 111-145. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna . São Paulo: Duas Cidades, 1991. GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana . Rio de Janeiro: Rocco, 1994. HYDE, G. M. "The Poetry of the City". In _____ Bradbury, Malcol; McFarlane (org.). Modernism: 1890-1930 . New York , Middlesex , Victoria : Pinguin Books, 1981, pp. 337318. novembro de 2004