TEORIA GERAL DO DIREITO PENAL I DPM0111 Teoria Geral do Direito Penal I Prof. Doutor Pierpaolo Cruz Bottini 1º Semestre de 2013 – Sala 22 – Turma 186 Anotações: Isac Silveira da Costa (
[email protected]) Versão: 2.0 (10/6/2013)
Conteúdo 1.
Introdução e Metodologia Dogmática. ........................................................................................................................................... 3 1.1. Perspectivas do Direito Penal .................................................................................................................................................. 3 1.2. Código Penal .................................................................................................................................................................................... 3 1.3. Antecedentes Históricos ............................................................................................................................................................ 3 1.4. Precursores da Escola Clássica ................................................................................................................................................ 4 2. Escolas do Direito Penal....................................................................................................................................................................... 5 2.1. A Escola Clássica: Contratualistas .......................................................................................................................................... 5 2.2. A Escola Clássica: Racionalismo Categórico ....................................................................................................................... 6 2.3. Crítica ao Direito Penal Categórico ........................................................................................................................................ 7 2.4. A Sociedade no Início do Século XX e o Positivismo Naturalista ............................................................................... 7 2.5. Crítica ao Positivismo Naturalista (Prevenção Especial) ............................................................................................. 8 2.6. Sistema Liszt‐Beling ..................................................................................................................................................................... 9 2.7. Neokantismo ................................................................................................................................................................................... 9 2.7.1. Teoria psicológico‐normativa da culpabilidade .................................................................................................. 10 2.8. Finalismo ....................................................................................................................................................................................... 10 2.9. Crítica ao Sistema Finalista .................................................................................................................................................... 12 2.10. Direito Penal Contemporâneo ......................................................................................................................................... 12 2.10.1. Sociedade de Risco ........................................................................................................................................................... 12 2.10.2. Politização do Judiciário ................................................................................................................................................ 13 2.10.3. Características do Direito Penal Contemporâneo ............................................................................................... 14 2.10.4. Escola de Frankfurt (Garantismo) ............................................................................................................................. 14 2.10.5. Abolicionismo .................................................................................................................................................................... 14 2.10.6. Funcionalismo ................................................................................................................................................................... 15 3. Teoria do Bem Jurídico Penal. ........................................................................................................................................................ 17 4. Limites do Direito Penal. .................................................................................................................................................................. 18 4.1. Critérios para definir a tolerância a ataques a bens jurídicos. ................................................................................ 18 4.1.1. Ofensividade ....................................................................................................................................................................... 18 4.1.2. Fragmentariedade ............................................................................................................................................................ 18 4.1.3. Culpabilidade ..................................................................................................................................................................... 18 4.1.4. Utilidade ............................................................................................................................................................................... 18 4.1.5. Subsidiariedade ................................................................................................................................................................. 19 4.2. Formas de proteção: proporcionalidade e legalidade. ............................................................................................... 19 1
4.2.1. Proporcionalidade ........................................................................................................................................................... 19 4.2.2. Legalidade ........................................................................................................................................................................... 20 5. Legalidade ............................................................................................................................................................................................... 20 5.1 Taxatividade ............................................................................................................................................................................ 20 5.2. Irretroatividade e lei penal no tempo ........................................................................................................................... 21 5.3. Territorialidade e lei penal no espaço .......................................................................................................................... 23 5.4. Interpretação da Lei Penal ..................................................................................................................................................... 24 6. Teoria do Delito: Tipicidade ............................................................................................................................................................ 25 6.1. Comportamento .......................................................................................................................................................................... 25 6.2. Resultado ....................................................................................................................................................................................... 26 6.3. Nexo de Imputação .................................................................................................................................................................... 27 6.4. Pensamento clássico: teoria da equivalência de condições ................................................ ......................... ............................................ ...................................... ................. 27 6.5. Neokantismo: causalidade adequada. ............................................................................................................................... 28 6.6. Finalismo: Dolo ou Culpa ........................................................................................................................................................ 29 6.7. Funcionalismo: a Teoria da Imputação Objetiva........................................................................................................... Objetiva........................................................................................................... 29 6.7.1. Criação de risco de resultado ...................................................................................................................................... 30 6.7.2. Risco não permitido ........................................................................................................................................................ 30 6.7.3. Reflexão do risco não permitido criado no resultado ....................................................................................... 31 6.7.4. Inclusão do Resultado no Âmbito de Abrangência da Norma de Cuidado ............................................... 31 6.8. Adequação típica ........................................................................................................................................................................ 31 6.9. Elementos subjetivos da tipicidade: dolo e culpa ......................................................................................................... 33 6.9.1. Dolo ........................................................................................................................................................................................ 33 6.9.2. Culpa ...................................................................................................................................................................................... 34
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1. Introdução e Metodologia Dogmática. Definições: crime e pena. Perspectivas do Direito Penal: legislação, dogmática, criminologia e política criminal. Código Penal: estrutura. Evolução histórica do pensamento do pensamento dogmático.
Faz‐se mister no estudo do direito a percepção dos interesses, da ideologia e da estrutura social que geram a regra jurídica. Os institutos jurídicos são um produto da evolução (ou involução) histórica. Alguns livros são fundamentais para o auxílio do desenvolvimento da própria ideologia, que será relevante no estudo dos diversos ramos do direito e na aplicação da lei:
e Casa Grande e Senzala, de Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil e Os Donos do Poder , de Raymundo Faoro. Formação do Brasil Contemporâneo Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior.
Afinal, o que é o direito penal? Trata‐se do direito do crime e da pena. Para a melhor compreensão destes conceitos (crime e pena), recorremos ao sociólogo alemão Niklas Luhmann, para o qual as expectativas sobre o comportamento dos demais indivíduos em uma sociedade é imprescindível para o seu adequado funcionamento. Estas expectativas precisam ser preservadas – diante de sua frustração diante da demonstração de anormalidade, deve haver reação. Neste sentido, o crime é todo comportamento considerado intolerável , segundo um critério estabelecido pela sociedade. A reação à frustração das expectativas é a pena, a qual deve ser proporcional à relevância da expectativa. Assim, a definição de crimes e penas depende dos valores da sociedade, que possuam relevância para a manutenção das expectativas e assegurem seu funcionamento.
1.1. Perspectivas do Direito Penal Conforme o objeto em foco, podemos ter as seguintes perspectivas no estudo do direito penal:
Legislação: o foco é a lei. Dogmática: o foco é a interpretação da lei; por dogmática entende‐se a sistematização de conceitos,
princípios, ideologias. Objetiva preencher lacunas e determinar conceitos, consiste em um estudo do direito positivo. Nesta perspectiva, temos diversas correntes de pensamento: causalista, finalista e da imputação objetiva. Criminologia: o foco é a realidade empírica; realiza‐se a observação empírica do impacto do crime e do criminoso da sociedade, com, por exemplo, coleta de dados sobre a incidência de determinados crimes após a vigência de determinada lei que criminalizou dada conduta ou tornou‐a mais gravosa. Política Criminal : o foco é obter uma proposta de aprimoramento do sistema, trata‐se de uma perspectiva propositiva. Ocupa‐se de valorar a legislação a partir dos fins a que ela se pretende, propondo leis alternativas.
1.2. Código Penal O Código Penal é o Decreto 2.848/1940, constituído de uma Parte Geral (arts. 1 a 120) e de uma Parte Especial. Além disso, há a Legislação Penal Especial, com leis esparsas tratando de matéria penal, como, por exemplo, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998) e a Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/1998). No site do Planalto, é possível visualizar a legislação de matéria criminal através do link: http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao‐por‐assunto/crimes‐e‐seguranca‐publica‐teste#content
1.3. Antecedentes Históricos Arbitrariedade e desproporcionalidade das penas. Aspectos históricos. Legitimação teórica para a aplicação de penas. Contrato social versus social versus direito natural.
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Na pré‐história do direito penal, antes da Idade Média (até o século V), não havia uma abordagem sistematizada ou uma preocupação com uma legitimação teórica para a aplicação de penas, que eram arbitrárias e desproporcionais, com caráter de vingança e não como instrumento de manutenção da sociedade. Houve lapsos de racionalidade, como o Código de Hamurabi (século XIX a.C.) com a lei de talião (olho por olho, dente por dente), através da qual se estabelecia um limite para a punição aplicável ao indivíduo. Por mais bárbara que tal lei possa parecer, representou a primeira manifestação do princípio da proporcionalidade. Um dos aspectos que caracteriza a evolução de um povo é a separação entre os poderes político, jurídico e religioso. Com a evolução dos povos, temos novos desenvolvimentos em momentos históricos subsequentes. Na Idade Média ocorreu a fragmentação das fontes jurídicas pela pulverização do poder, o que deixaria de ser a regra apenas com a ascensão da burguesia na época moderna, com sua busca por uniformidade jurídica para viabilizar a concretização de seus negócios. No período medieval também tivemos lapsos de racionalidade como o Corpus Iuris Civilis (século VI) e o Código Visigodo (Século VII). Com o Absolutismo, ainda não havia grande legitimação teórica. Com a unificação do poder, há o início de uma sistematização legal, ainda incipiente, dentre as quais podemos citar as Ordenações Afonsinas (século XV), as Ordenações Manuelinas (século XVI) e as Ordenações Filipinas durante o domínio espanhol sobre Portugal. Nestas legislações, a pena ainda era demasiadamente desproporcional à conduta criminosa. No final do século XVIII, surgem teorias políticas sobre a legitimidade do exercício do poder, agora em bases distintas do direito divino da época absolutista. Neste sentido, destaca‐se a teoria do contrato social de Rousseau. Os homens se reúnem, cansados da guerra de todos contra todos. O Poder Legislativo passa a ter prevalência sobre os demais, dedicando‐se a um detalhamento preciso das regras jurídicas, dada a desconfiança da interpretação pelos juízes (“o juiz é a boca da lei”). Por exemplo, a Lei da Boa Razão de 1769 proíbe o juiz de interpretar a lei em Portugal. Os crescentes interesses econômicos da burguesia demandavam maior estabilidade e segurança jurídica. Um cenário de instabilidade jurídico‐política poderia representar um controle arbitrário pela maioria. Em contraponto ao contrato social, surgem as teorias do direito natural , preconizando a existência de direitos assegurados a todo ser humano, independentes de vontade de poder, transcendendo a vontade humana. Tais direitos não poderiam ser objeto de limitação pela maioria. Neste sentido, o principal direito defendido era o de propriedade, o que representava a essência dos interesses burgueses. Surge a divergência entre os contratualistas e os naturalistas.
1.4. Precursores da Escola Clássica Surgimento de leis penais mais humanas. Busca pela legitimidade teórica do estabelecimento de crimes e cominação de penas. A contribuição de Beccaria.
No tocante ao direito penal, há rechaço às práticas absolutistas através de um movimento político por leis penais mais humanas. Em 1786 é abolida a pena de morte na Toscana. Surgem códigos penais mais racionais, como o Código da Baviera (1813) e o Código Criminal do Império no Brasil (1830). Para os contratualistas, a legitimidade teórica do estabelecimento de crimes e cominação de penas estava no contrato social (fala‐se pela primeira vez na legitimidade do direito penal). A obra Dos Delitos e Das Penas (1764), de Cesare Beccaria, representa não uma doutrina do direito penal, mas um manifesto político que, de forma pioneira, enuncia o princípio da legalidade: “não há crime sem lei anterior que o defina”. Ainda, o princípio da proporcionalidade torna‐se essencial, uma vez que um sistema penal só seria eficaz se as penas fossem proporcionais aos crimes. O contrato social precisa ser racional . Na mesma linha de pensamento, há a obra de Mello Freire, Instituições do Direito Criminal Português (1794). É a manifestação do Iluminismo no direito penal. Até aquele momento, a legislação penal tinha raízes no pensamento medieval e respondia a uma concepção teocrática de poder. A crise política do século XVIII ocasionara um notável endurecimento da justiça penal, o que representava uma contradição com respeito às ideias filosóficas vigentes, que defendiam uma sociedade cujo ponto de partida era o indivíduo e sua liberdade. A obra de Beccaria é um livro crítico, que hoje seria incluído no contexto da Política Criminal. Seu ponto de partida é o contrato social. Suas críticas têm como base 4
o controle da arbitrariedade (pelo princípio da legalidade), a desvinculação entre delito e pecado e a consagração da humanização das penas. Estes princípios inspiraram o direito penal liberal: penas humanas, abolição da tortura, igualdade perante a lei e proporcionalidade entre delito e pena.
2. Escolas do Direito Penal. No século XIX há um embate filosófico. Para os contratualistas, o direito tem legitimidade no contrato social . Os categóricos têm receio de que tudo seja decidido pela maioria, há valores que são imanentes ao ser humano, a despeito da vontade da maioria: os direitos naturais. Este embate filosófico ocorre também no âmbito do direito penal. Recordando a teoria da prevenção geral negativa: “todos somos potenciais delinquentes, por isso vamos estabelecer penas que nos inibam no que diz respeito a cometer crimes”.
2.1. A Escola Clássica: Contratualistas Feuerbach: pena como coação psicológica. Prevenção geral negativa.
Como vimos anteriormente, para os contratualistas, a legitimidade teórica do estabelecimento de crimes e cominação de penas estava no contrato social. Aquele que rompe com o contrato social dá ao soberano a possibilidade de puni‐lo da forma como bem entender. O pensamento de Beccaria inspirou a Escola Clássica, essencialmente vinculada a Carmignani, Rossi e Carrara na Itália. Outros de seus expoentes foram Feuerbach e Bentham na Alemanha e Inglaterra, respectivamente. Na Escola Clássica encontramos contratualistas e jusnaturalistas. O método empregado pelos autores clássicos foi racionalista, abstrato e dedutivo. Buscam critérios válidos para qualquer tempo e qualquer lugar. Carrara considerava que o delito era a infração da lei do Estado, que deveria se pautar pela lei natural. Assim, não se trata de um direito positivo, mas de um direito ideal que deve ser elaborado com a ajuda da razão, do qual as leis estatais devem extrair seu conteúdo. As construções da Escola Clássica estão vinculadas à legalidade e a humanização da sanção penal, esta última consequência da valorização do homem perante o poder estatal, postulado fundamental do pensamento liberal. Havia divergência entre os clássicos quanto à finalidade da pena: Rossi defendia a pena como retribuição, enquanto Carmignani aspira a um fim claramente preventivo. Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach foi o autor do Código da Baviera de 1813 e desenvolveu a teoria da pena, estabelecendo uma fundamentação, uma justificativa para as ações do estado. Conforme a teoria da prevenção geral negativa, as penas servem para fazer com que as pessoas não cometam crimes – são uma ameaça, uma intimidação ao indivíduo. A pena, desta forma, tem função social e motivação política. É prevenção geral porque é endereçada à sociedade e não ao indivíduo (prevenção especial). Justapondo‐se à prevenção geral negativa (intimidação, coação psicológica), há a prevenção geral positiva, afirmando os valores da sociedade, tranquilizando seus membros no sentido de que há meios de prevenir o crime. Resumo do pensamento de Feuerbach:
O fundamento da sociedade civil para garantir a todos a liberdade recíproca é a união da vontade e da energia dos indivíduos. O Estado é organizado por uma vontade conjunta e visa criar uma “condição jurídica”, isto é, a existência conjunta dos homens conforme a lei e o direito. Toda forma de lesão jurídica contradiz o objetivo do Estado, que possui o direito e o dever de criar institutos que possam impedir as lesões jurídicas. O Estado pode ter institutos de coação física com anterioridade ou posterioridade a uma lesão jurídica. Porém, a coação física é insuficiente para proteger direitos irreparáveis. Assim, deve existir outra forma de coação, que não pressuponha o pré‐conhecimento da lesão. Esta coação deve ser psicológica. As contravenções têm sua causa psicológica na sensualidade. O impulso sensual pode ser cancelado se o indivíduo souber que receberá um mal maior que a frustração de não satisfazer seu impulso. Para obter este efeito, deve haver uma lei que estabeleça a consequência para a conduta e a demonstração da sua relação com a realidade (aplicação efetiva da lei). 5
A razão pela qual existe a norma penal é a preservação da liberdade recíproca de todos mediante o cancelamento do impulso sensual dirigido às lesões jurídicas. O objetivo da cominação da pena é a intimidação de todos, enquanto potenciais protagonistas de lesões jurídicas. Objetivo de sua aplicação é dar fundamento efetivo à cominação legal. O fundamento jurídico da cominação da pena é sua conformidade com a liberdade jurídica do condenado. A razão que permite ao Estado cominar penalmente é a necessidade de assegurar o direito de todos. O fundamento jurídico da aplicação da pena é a prévia cominação legal. O mal, como consequência jurídica necessária, se vinculará a uma lesão jurídica determinada mediante uma lei.
Kant viria a criticar o uso da pena como forma de coação psicológica, apresenta o problema ético do utilitarismo penal . Sua visão foi ratificada pela história, em situações em que a ameaça de atrocidades cometidas pela maioria se concretizou e gerou situações de totalitarismo pela atuação do legislativo.
2.2. A Escola Clássica: Racionalismo Categórico Pena: intimidação ou retribuição? Contexto histórico: necessidade de segurança pela burguesia e desconfiança do Judiciário. O problema ético da função social da pena. A proposta de um cálculo racional para a retribuição justa pela prática de um crime. A busca racional do imperativo categórico e a elitização da produção jurídica.
O racionalista categórico não vê segurança no contrato social. O direito penal pode virar injusto e desproporcional . É preciso encontrar outro fundamento para a idéia de crime e de pena. A sistemática do direito penal é desenvolvida através da filosofia kantiana. Kant desenvolve a noção de imperativo categórico: existem princípios e valores que têm eficácia e validade independente de sua utilidade concreta. Estes valores decorrem da ideia de justiça, os quais podem ou não ter alguma repercussão social. Em algum lugar fora do mundo físico, há o mundo metafísico. Neste mundo ideal, são inscritos todos os valores absolutos: os imperativos categóricos, tudo o que é bom, tudo o que é ruim, tudo o que é certo, tudo o que é errado. O conceito de justiça está inscrito neste plano ideal, onde também estão inscritas as consequências para quem pratica o mal. Estas noções sempre existiram e sempre existirão. Para Kant, o que vemos é mera sombra do conceito de justiça inscrito no mundo metafísico. Por isso, devemos sempre evoluir para nos aproximarmos cada vez mais destes valores absolutos. A legislação perfeita pode atravessar séculos e ser aplicada em todas as sociedades sem necessitar de mudanças. Como conhecer o que é justo? Através do método lógico‐racional. Como calcular a pena? Conforme um cálculo racional para a retribuição justa pela prática do crime. Esta determinação da pena não guarda relação com a vontade da maioria, apenas com uma discussão jurídica. O processo lógico‐racional é suficiente para se aproximar da legislação perfeita, buscando uma racionalidade cada vez maior que independe da sociedade e do momento histórico. Carrara, Rossi e Joaquim Augusto de Camargo foram defensores desta idéia. É a busca racional do imperativo categórico. No início do século XIX, havia dificuldade na definição das instituições, bem como traumas decorrentes do Terror. Formava‐se o império napoleônico. Estas circunstâncias, aliadas à oferta ideológica de estabilidade, estavam alinhadas com os interesses da burguesia, a maior interessada na estabilidade política e jurídica.
Enquanto para os contratualistas a pena tinha caráter de intimidação, para os categóricos a pena era vista como uma retribuição. O uso do corpo e da liberdade da pessoa para uma função social não era ético. Uma pena ética seria apenas uma retribuição exata, justa, proporcional. A pena, assim, não teria finalidade alguma, não serve de ameaça ou de ressocialização. Era um mero castigo proporcional ao mal praticado – uma retribuição justa. Para que existe a pena? Porque não é possível abrir mão do direito penal, a um mal se aplica outro mal, mantendo o racionalismo categórico. A não retribuição a uma prática de injustiça é injusta. Para Kant, enfim, o direito penal não se presta a nenhum fim político. Esta noção oferece um direito penal estável, seguro. A alegoria da ilha: se todos os habitantes de uma ilha tomassem conhecimento de que viria uma onda dentro de alguns dias capaz de matar a todos ali viventes, ainda assim deveriam ser executados aqueles que tivessem 6
sido condenados à morte. Mesmo que todos fossem morrer dali a alguns dias, a execução da pena de morte dos condenados seria justa e necessária. A realização desta ideia resulta em uma aristocratização (quem define o que é justo?), uma elitização da produção jurídica. Os estudos acadêmicos acabam por ser responsáveis pela elaboração das leis penas, que virão a ser ratificadas pelo parlamento. Foge‐se, assim, da decisão da maioria. A recepção das ideias kantianas pode ser explicada fundamentalmente pelo momento histórico em que foram desenvolvidas: a necessidade de segurança pela burguesia e a desconfiança do Judiciário. O castigo só é aplicável a alguém que teve a opção de fazer o bem ou o mal, e escolheu livremente fazer o mal. A teoria da pena como retribuição tem que necessariamente pressupor a existência do livre arbítrio. Os imperativos categóricos pautaram o direito penal em todo o século XIX, superando o contratualismo.
2.3. Crítica ao Direito Penal Categórico O cálculo racional como instrumento da elite. Impossibilidade de demonstrar a existência dos valores absolutos. A questão do livre arbítrio.
Em 1830, no meio deste embate jusfilosófico, o Brasil passa a ter o primeiro diploma penal, o Código Criminal do Império, escrito por Bernardo Pereira de Vasconcelos. Trata‐se de um código penal humano, abrandando a legislação penal, praticamente abolindo a pena de morte e reduzindo as punições corporais. Ainda, é um código bastante categórico e racionalista, apresentando uma peculiaridade no que diz respeito à fixação das penas: para cada crime são cominadas três penas (uma mínima, uma média e uma máxima) – a possibilidade de o juiz fazer política com a pena é reduzida. O racionalismo categórico pode servir de instrumento pela elite – única habilitada a definir o que é justo – que pode utilizar o cálculo racional para definir como bom aquilo que lhe seja favorável e como mau o que seja desfavorável. Ainda, os valores absolutos podem não existir, podem ser artificialmente criados conforme os interesses de quem está apto a produzir o direito. É o problema da impossibilidade de demonstrar a existência dos valores absolutos. No começo do século XX, o caráter absoluto de vários valores passa a ser questionado. O desenvolvimento da ciência sugere que o método empírico pode ser mais eficaz que a mera presunção da existência de um valor absoluto e imutável. As crises sociais desafiam a capacidade de organização decorrente da pretensa segurança dos imperativos categóricos. É possível demonstrar que o ser humano efetivamente possui livre arbítrio? Sua presunção é fundamental para as ideias de Kant. É pouco provável que exista um mundo pré‐determinado com base em elementos estruturais de caráter totalmente aleatório: a Física Quântica pode algum dia demonstrar a existência do livre arbítrio. Porém, a ideia da pena como retribuição deixa de ter utilidade em função da incapacidade de demonstração do livre arbítrio.
2.4. A Sociedade no Início do Século XX e o Positivismo Naturalista Elementos das sociedades no início do século XX: urbanização, aumento da criminalidade, intensificação das reivindicações sociais, desenvolvimento científico (em especial as ciências naturais). É a crise do Estado liberal , incapaz de tratar de problemas concretos. Na filosofia, surge o positivismo naturalista. August Comte aponta a ineficácia dos imperativos categóricos para resolver problemas, louva o método empírico (com observações da realidade e catalogação sistemática dos fatos, nos brindando com uma ciência muito mais útil e eficaz) e sugere a adoção da abordagem das ciências naturais para a construção das ciências sociais. Leis permanentes, seguras e estáveis não seriam encontradas na metafísica, mas sim na realidade, observada, medida, catalogada. Os pensadores do direito penal começam a abandonar o racionalismo categórico e passam a adotar o positivismo naturalista penal. Lombroso, Ferri e Garofalo percebem que o contrato social não pode fundamentar o direito penal porque suas bases são muito inseguras e constatam que os valores absolutos não existem. Se a função do direito penal é combater a criminalidade, muda‐se o foco de estudo: Quem é o 7
criminoso? Como ele se comporta? Qual a razão da prática do crime? A que classe social pertence? Tais questões serviram de base para a coleta de informações que viabilizariam a criação de um direito penal que seja eficaz. É com o positivismo naturalista, principalmente o italiano, que surge a ciência da Criminologia. Lombroso é o primeiro a falar sobre as condições da prisão e a possibilidade de reabilitação, que para ele reside num tratamento médico, já que o problema é biológico e a criminalidade, uma patologia. A abordagem da criminologia clássica, porém, permitia generalizações racistas ou voltadas para fins políticos distorcidos. Teve duração efêmera, sendo substituída logo após a Primeira Guerra Mundial. A conclusão é a de que o criminoso é um doente e a pena tem que ter um sentido de cura, de ressocialização. Cria‐se uma nova teoria da pena. Os criminosos são levados a cometer o crime por uma série de fatores biológicos e sociais que podem ser avaliados até antes de os crimes serem cometidos. A noção de crime e castigo pressupunha livre arbítrio. Diante da observação empírica, existe, na verdade, um determinismo: ninguém escolhe cometer um crime. O criminoso é um produto das circunstâncias, por isso a pena não pode ser um castigo, uma retribuição, deve ser um tratamento, uma medida de segurança. Temos a teoria da prevenção especial negativa (se irrecuperável, o indivíduo é retirado da sociedade) e a teoria da prevenção especial positiva (se recuperável, o indivíduo recebe tratamento) [NOTA: VERIFICAR AS ANOTAÇÕES SOBRE ESTAS TEORIAS NA BIBLIOGRAFIA]. A condenação é análoga à prescrição de um remédio. A dimensão da pena é dada pela ciência. O irrecuperável deve ser excluído da sociedade. Ainda, é possível ter uma medida pré‐delitiva com atuação preventiva em grupos que possuem propensão ao delito. Na Itália, desenvolveu‐se o Positivismo Criminológico, voltado ao estudo do delito e do delinquente como realidades naturais, caracterizado essencialmente pelo uso de um método experimental. Na Alemanha tivemos o Positivismo Jurídico, cujo centro de suas análises foi a norma jurídica, subdividindo‐se em Jurídico‐Penal, Jurídico‐Normativista e Jurídico‐Sociológico (Von Liszt).
2.5. Crítica ao Positivismo Naturalista (Prevenção Especial) A medida da pena. Determinação da ressocialização pela ciência. Problema ético: exigência de comportamento versus imposição de valores. Contradição: ressocialização através do isolamento. Reincidência.
A ideia da pena como tratamento tem influência na nossa legislação até hoje. A noção de progressão de regime , embora muito criticada, é que o preso, após ser retirado da sociedade, possa ser reintegrado socialmente. A pena vista como possibilidade de ressocialização foi um legado direto do positivismo naturalista. Se a única função da pena é ressocializar, quais problemas isto pode representar? A segurança decorrente do racionalismo pode ser perdida quando a medida da pena deixa de ser a proporcionalidade, de ser calcada na gravidade da conduta e passa a ser determinada pela ciência como o tempo necessário para a ressocialização. Haveria capacidade científica, liberdade de ingerência e imparcialidade no estabelecimento da medida destas penas? A decisão de retorno à sociedade é jurídica, se a pena foi a merecida e não se houve cura ou não (resposta que a ciência não tem, inclusive reconhecendo sua incapacidade). Também há um problema na impossibilidade de demonstrar o determinismo positivista. Neste caso seria possível uma pena perpétua para um cleptomaníaco. Outro problema é o de crimes políticos. Uma vez passado o contexto político no qual os atos de criminosos políticos, tiranos e torturadores, a pena não pode ser aplicada a eles, pois senão teria a função de intimidar os demais, para que não voltassem a cometer o crime. Neste caso, teríamos não a prevenção especial, mas sim a prevenção geral (pena como ameaça). Há também um problema ético na prevenção especial. Consideremos um anarquista, dissociado, desagregado dos valores sociais, que não acredita na propriedade privada ou no Estado. Após ser preso, quando poderá ser ressocializado? Se, ao final da pena, ele ainda não crê na propriedade privada, não estaria curado, não teria introjetado os valores, não há como saber se ele manifestará sua crença a não ser se ele for reintegrado à sociedade. Não é possível impor o pensamento da sociedade a uma pessoa. É possível apenas exigir um comportamento. Observando‐se o índice de reincidência, constata‐se que a pena como tratamento é ineficaz. Há uma contradição em termos ao procurarmos ressocializar alguém isolando‐o da sociedade. A questão principal é a privação da liberdade. 8
2.6. Sistema Liszt‐Beling Limites à ciência pelo juiz e pelo legislador. Lei como garantia do criminoso. Teoria do delito: tipicidade, antijuridicidade (causa de justificação na lei) e culpabilidade (dolo, culpa, imputabilidade).
O Código de 1890 de Batista Pereira foi duramente criticado, pois seu ideário não era positivista naturalista. Entre o final do século XIX e início do século XX, von Liszt desenvolve uma forma de pensar bastante original e importante para o sistema penal. Tratava‐se de um crítico do sistema penal racionalista, que se fundamentava em valores absolutos. Identificou que faltava alguma coisa no positivismo. Não era possível abrir mão da ciência penal em prol dos cientistas. O estabelecimento do limite da atuação das ciências naturais deveria ser estabelecido pelo juiz e pelo legislador. A criminologia e a realidade social são fundamentais para a análise da criminalidade e a prescrição de remédios. Tudo o que a ciência tem a dizer sobre o combate à criminalidade deve ser colocado na lei, que pode ser aplicada e interpretada sobre o réu, o criminoso, o doente. O juiz e o legislador podem evitar o abuso da ciência sobre a integridade física do criminoso. A lei é o limite infranqueável entre a política criminal e o réu. O código penal é a Carta Magna do Delinquente, sua garantia. Beling e Liszt formulam a teoria do delito. Até aquele momento o foco do estudo dos penalistas era a pena: diante de um delito temos uma consequência jurídica. Para eles, a função da pena é a ressocialização, mas procura responder uma pergunta anterior – o que é o delito? Procuram um conceito de crime aplicável a qualquer país, qualquer legislação. Quais as características de um comportamento que permitem chamá‐lo de crime?
Tipicidade. O primeiro critério de análise é determinar se o comportamento está necessariamente
descrito na lei, a despeito da motivação do legislador para incluí‐lo na lei. Para von Liszt, a tipicidade é algo neutro, isento de valoração (certo/errado, justo/injusto). Antijuridicidade. O segundo critério é se o ato pode ser considerado justo ou injusto (antijurídico), se existe ou não uma causa de justificação para aquele comportamento típico. Qual o critério de valoração do que é justo ou injusto? A causa de justificação deve ser encontrada na lei, tornando este critério eminentemente formal. Culpabilidade. O foco passa para o agente que praticou o ato jurídico e temos a teoria psicológica da culpabilidade – só há uma hipótese de escusar o sujeito da culpa: não haver dolo (intenção) e culpa (imprudência, negligência, imperícia). Não há nenhuma relação psicológica com aquele resultado. Resta avaliar as consequências para o inimputável (criança, louco) – para o sistema não há culpabilidade, pois não têm desenvolvimento mental incompleto ou retardado, não possuem capacidade de agir com dolo ou com culpa. A imputabilidade é um pressuposto do dolo ou da culpa.
2.7. Neokantismo Limitações da ciência. Necessidade de valoração para a compreensão da sociedade. Valores culturais como parâmetro de valoração: normatização do sistema penal. Dogmática: orientação para o intérprete da lei. Contribuições do neokantismo para a teoria do delito. Tipicidade como indício de antijuridicidade. Ausência de ofensividade social e o conceito de antijuridicidade material.
O deslumbramento com a ciência que antecedeu a Primeira Guerra Mundial é substituído pelo ceticismo. Nota‐ se que o método científico é incapaz de fundamentar o que é bom ou ruim. A aparente neutralidade da ciência e de suas constatações não passa de uma análise ideologizada disfarçada. A ciência sem um sistema de valoração é incapaz de modelar a sociedade. [Recomendação de leitura: Zvevo – A Incosnciência de Zeno] Toda ciência tem uma carga de subjetividade. O cientista (o ser que estuda) coloca sua carga de valor, de ideias no objeto que estuda. Ocorre um resgate da autonomia das ciências humanas em termos de direito penal. Autores como Mezger sugerem que a fundamentação de um sistema penal provém de um sistema metafísico de imperativos categóricos ou de uma análise científica da realidade. Até então, a única forma de caracterização de algo como bom ou ruim era o sistema de Kant, no qual os valores provinham da metafísica (que vimos ser indemonstrável). O legislador utilizará os valores culturais de uma 9
sociedade para efetuar a valoração: normatização do sistema penal. A lei não é perfeita, tem lacunas. Portanto, é necessário criar uma ciência que orientará o intérprete da lei – a dogmática. Os valores mais intoleráveis de uma sociedade são trazidos para a lei e identificados como crime. A solução de dúvidas que venham a surgir na interpretação da lei residirá nos mesmos valores utilizados na criação da lei. Esta abordagem ajuda a enriquecer a teoria do delito, embora sua aplicação sem nenhum tipo de filtro tenha justificado as atrocidades cometidas pelo nazismo. Na tipicidade, há um indício de antijuricidade. A tipicidade é a ratio cognoscendi. Esta distinção tem implicações no processo penal: o ônus da prova é do réu para provar que o ato que cometeu tem justificação, uma vez que a tipicidade traz em si o indício de antijuridicidade. No sistema Liszt‐Beling o réu é absolvido mesmo se não comprovar a causa de justificação, mas no sistema neokantista não. A presunção de inocência existe para a caracterização da tipicidade, mas na caracterização da antijuridicidade, há presunção de culpa. Antijuridicidade: ausência de causa de justificação. A ausência de ofensividade social (ofensa aos valores sociais vigentes) também pode ser uma causa de justificação – esta pode ser supralegal. Temos a antijuridicidade formal (previsão legal da causa de jusitifcação, já prevista por von Liszt e Beling) e a antijuridicidade material (contribuição do neokantismo). Cada juiz entenderá da sua forma os valores sociais vigentes.
2.7.1.
Teoria psicológico‐normativa da culpabilidade
Imputabilidade, dolo normativo e inexigibilidade de conduta diversa.
Por fim, analisemos a contribuição do neokantismo à discussão da culpabilidade (ponto de partida é a teoria psicológica da culpabilidade). Recordamos que o inimputável não tinha capacidade de ter dolo ou culpa. A interpretação pelo neokantismo modifica o conceito, indicando que há culpa ou dolo, mas não há capacidade de compreender a norma ou capacidade de ter autocontrole – não há desenvolvimento mental completo. Assim, o primeiro elemento da culpabilidade é a imputabilidade. Distinta é a situação do sujeito que não tem culpa e não tem dolo. O segundo elemento é o dolo normativo: só posso ter intenção se eu tiver ciência de que aquela conduta é ilícita – consciência e vontade da ilicitude. Aqui se inicia a discussão sobre o conhecimento ou não do direito (erro de direito). Exemplo: argentino que vende lança perfume, caçador que mata acidentalmente um amigo durante caçada à noite. A terceira hipótese de exclusão da culpabilidade para os neokantistas é a inexigibilidade de conduta diversa. Não haveria causa de justificação com base no estado de necessidade, pois, quando o perigo é uma agressão humana, a reação deve ser contra o agressor não contra um terceiro. Em suma, os neokantistas transformam culpabilidade em reprovação do comportamento. Trata‐se de um conceito normativo, que só pode ser concretizado como conhecimento dos valores culturais da sociedade. A agregação de valores normatiza a teoria do delito. A principal dificuldade do neokantismo é a constatação de quais são os valores culturais vigentes. O problema é agravado em sociedades pouco homogêneas e surge o risco de fundamentação com lógica inabalável que viabiliza sistemas de totalitarismo. A História comprovou que o neokantismo serviu oportunamente para fundamentar o nazismo. Com a indemonstrabilidade dos imperativos categóricos de Kant e a impossibilidade de constatação dos valores culturais no neokantismo, vê‐se que ambos os sistemas têm como falhas fundamentais o caráter etéreo das suas bases de valoração.
2.8. Finalismo Contexto histórico. Pensamento estruturalista. O papel do constitucionalismo e dos tratados universais de direitos humanos. A perspectiva ontológica de Welzel.
Após a Segunda Guerra Mundial, surge a próxima escola penal, que perduraria até meados dos anos 60. Naquele momento, aumenta a desconfiança no Poder Legislativo, que perde legitimidade pela conivência com os horrores da guerra. O direito constitucional ganha enorme força, estabelecendo matérias que não são passíveis de legislação pelo Legislativo: regras que são hierarquicamente superiores às leis. Concretiza‐se a hierarquia das normas, com a Constituição em posição suprema e também surgem as cláusulas pétreas. Ainda, 10
os Estados se esforçam para assinar tratados internacionais, universais sobre direitos humanos. É o resgate de direitos imutáveis, transcendentais e universais, assemelhando‐se com os imperativos categóricos de Kant quando refutou o contrato social. As bases são as mesmas: a busca por segurança e estabilidade, agora com base no constitucionalismo e nos tratados universais de direitos humanos. Ganha força na filosofia o pensamento estruturalista. A base do raciocínio humano é a mesma em todo e qualquer povo. O mesmo aplica‐se à base das relações sociais e à base das linguagens. Lacan também oferece uma base psicológica de todo o ser humano que é a mesma. Há um esforço coletivo na tentativa de descoberta de elementos comuns em todas as sociedades. Estes elementos seriam, efetivamente, imperativos categóricos ancorados na realidade, na natureza das coisas e não na metafísica. O estruturalismo contribuiu para o surgimento da escola penal do finalismo, cujo principal expoente foi Welzel. No que consiste o finalismo? É preciso ancorar o direito penal em algo estável. Os imperativos categóricos não existem. Os valores culturais são muito instáveis. Welzel decidiu ancorar o direito penal na natureza das coisas, procurando achar o que há em comum em todos os seres humanos. Sua construção é a partir de uma perspectiva ontológica, na visão do homem como ele é e não em um homem idealizado. É o foco nas estruturas lógico‐objetivas do homem, de todas as épocas, de todos os povos. Esta natureza deve servir de parâmetro e referência para o legislador. É a estrutura comum a todos os ordenamentos jurídicos. Este pensamento revoluciona a teoria do delito. A quem se dirige a norma penal? Ao ser humano em geral, pela voluntariedade do seu comportamento, capacidade de dirigir a sua ação. Conclui que a norma penal só pode se dirigir a comportamentos humanos voluntários e direcionados a uma finalidade (não pode se dirigir a comportamentos sem dolo e sem culpa). Assim como a norma não pode se dirigir a elementos da natureza, não pode determinar que não se pode causar a morte de alguém sem dolo ou sem culpa, pois seria igualmente inútil – o comportamento não pode ser direcionado, uma tragédia não é passível de proibição. O legislador só pode proibir ações finais, com finalidade de causar resultado danoso ou então fruto de imprudência. Impacto do pensamento de Welzel na Teoria do Delito. Inclusão de dolo e culpa na tipicidade: aspecto objetivo e subjetivo. Dolo natural.
Tipicidade é comportamento descrito na lei como crime. Um homicídio sem dolo e sem culpa não é um comportamento descrito na lei como crime da mesma forma como se subentende que o “não matar” não se aplica a um leão. A não previsão legal explícita de dolo ou culpa não contradiz a natureza das coisas: não faria sentido existir esta previsão explícita, pois só é possível proibir o que é proibível. É necessário que seja uma ação final, intencional ou, ao menos, imprudente. O dolo e a culpa são retirados da culpabilidade e passam a fazer parte do tipo penal. A ação humana que não é dolosa nem culposa não é proibível pela norma. Assim a tipicidade tem dois aspectos: objetivo e subjetivo. O observador externo faz a análise objetiva, verificando a norma penal. Na análise subjetiva, busca‐se determinar se o sujeito teve dolo ou culpa. Se não há dolo ou culpa, não há crime. O dolo é a vontade do resultado, é a intenção de praticar aquele fato, a despeito do conhecimento do indivíduo acerca da licitude ou não da conduta. Para o finalismo, o dolo é diverso do dolo normativo do neokantismo (vontade e consciência da ilicitude), consistindo apenas na vontade – é o dolo natural. Culpabilidade. Quais as hipóteses pelas quais alguém que praticou um injusto penal (ato típico e antijurídico) é
desculpado? A imputabillidade permanece, assim como no neokantismo. Dolo e culpa não são mais causas de desculpa, passando a excluir a tipicidade. Resta a potencial consciência do ilícito. A potencial consciência difere do conhecimento da lei – desconhecer a lei não exonera o sujeito da responsabilidade – pois, além de não conhecer a lei, o sujeito não possui nenhum motivo para suspeitar de que está praticando algo errado, por mais diligente que seja. Tais hipóteses são raras, mas existem. Por exemplo, no Direito Empresarial, uma empresa que contrata um parecer de um departamento jurídico que acaba por aprovar uma atividade ilícita. Neste caso, exclui‐se a culpabilidade (erro de proibição 1).
1
CP – Erro sobre a ilicitude do fato:
Art. 21 ‐ O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí ‐la de um sexto a um terço.
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Por fim, a terceira e última hipótese de exclusão da culpabilidade é a inexigibilidade de conduta diversa. Há aqui uma pequena diferença, mas fundamental. No juízo neokantista, buscavam‐se os valores culturais para decidir. Welzel não se baseia nos valores culturais e propõe que a decisão sobre se havia inexigibilidade ou não deve ser fundado em algo estável em todas as culturas e em todos os tempos – define‐se como critério o poder de atuar de outro modo. Diante do caso concreto, pondera‐se sobre se o indivíduo poderia, de fato, se comportar de maneira diversa. É preciso presumir uma liberdade de opção de ação, com uma alternativa que não violaria a norma. Tornamos ao problema de provar a existência do livre arbítrio. É possível encontrar uma justificativa determinística e causal para qualquer comportamento. A parte geral do Código Penal, que trata da teoria do delito e que reformada em 1984, é essencialmente finalista.
2.9. Crítica ao Sistema Finalista A fundamentação da culpabilidade em um livre arbítrio indemonstrável é uma falha significativa. Ainda, todo o pensamento de Welzel baseia‐se no fato de que a norma penal só pode proibir comportamentos humanos finais. Há um tipo de imprudência que não é comportamento final, mas é criminalizada pela norma penal finalista. Exemplo: alguém que acelera um carro sem perceber que excedeu o limite de velocidade e atropela alguém – pela norma brasileira é um homicídio culposo, mas não houve intenção de ser imprudente. Outro exemplo é o de alguém que dirige um carro emprestado e desconhece se há algum problema no freio, e, por conta disso, acaba por ser responsável por um acidente. Nestes casos não há uma ação final na acepção de Welzel, e é necessário recorrer a um pensamento diferente a fim de justificar a imprudência inconsciente.
2.10.
Direito Penal Contemporâneo
2.10.1.
Sociedade de Risco
Teoria da Sociedade de Risco. Características dos riscos contemporâneos. Procedência humana. Potencial lesivo, ação preventiva e crimes de perigo. Democratização do risco. Sensação da proximidade do risco. Paradoxo do risco. Legislador como gestor de riscos. Politização do Judiciário.
A compreensão da sociedade contemporânea recorre à Sociologia. A Teoria da Sociedade de Risco, de Ulrich Beck e Giddens, oferece as bases que nos permitem entender as transformações pelas quais passa o Direito Penal. A sociedade em que vivemos hoje é caracterizada como uma sociedade de risco (cf. Balman). Temos uma sociedade com alto avanço tecnológico e um sistema econômico de livre concorrência – os agentes, para se manterem no mercado, precisam inovar incessantemente produzindo produtos mais baratos com menor custo e maior qualidade, utilizando‐se para isto de uma extrema evolução da ciência. Paradoxalmente, a mesma ciência não é capaz de desenvolver instrumentos que permitam medir a periculosidade destes novos produtos. Vivemos uma sensação de proximidade de risco muito grande. Por conta da heterogeneidade do desenvolvimento científico, oferecendo produtos sem oferecer uma métrica de periculosidade, há a sensação de que vivemos um risco muito maior ao qual estamos efetivamente submetidos. Este é o pano de fundo para o desenvolvimento do direito penal contemporâneo. Quais as características dos riscos contemporâneos? Os principais riscos aos quais nossos avós estavam submetidos e que difere dos riscos atuais eram, por exemplo, as doenças (menor expectativa de vida) e guerras. Atualmente, um dos maiores riscos que corremos é o de sermos atropelados. Hodiernamente, a fonte do risco é o próprio ser humano, produzido na própria sociedade. A procedência humana é a primeira grande característica dos riscos contemporâneos: agressão, acidentes de trânsito, dano ambiental, etc. O direito penal não era capaz de gerenciar um risco do passado. Porém, pela procedência humana dos riscos contemporâneos, é possível produzir normas penais que possam mitigá‐los. O direito penal, assim, passa a ser visto como um instrumento de gestão de risco, sendo expandido para âmbitos nos quais não era considerado anteriormente. Surge a tendência de ampliação do direito penal. Parágrafo único ‐ Considera‐se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência.
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Há outra característica dos riscos de procedência humana contemporâneos que diferem dos riscos de igual natureza em épocas remotas – furto, roubo, agressão, homicídio, entre outros –, todos com poder de destruição muito pequenos quando comparados aos riscos de hoje como, por exemplo, a possibilidade de destruição de regiões inteiras por acidentes nucleares ou outras formas de dano ambiental. Assim, esta segunda característica é a magnitude do potencial lesivo. A partir do momento em que o resultado lesivo passa a ser altamente destrutivo, insuportável, intolerável, o direito penal passa a tentar agir preventivamente. Busca‐se a antecipação da punição do comportamento, sem esperar o resultado. Surgem os crimes de perigo. Simples comportamentos, independentemente de terem gerado resultados, passam a ser criminalizados. O direito penal não se limita mais aos crimes de resultado. Porte ilegal de arma, condução de veículo estando embriagado... crimes de resultado passam a ser substituídos por crimes de perigo, pois a sociedade está cada vez menos tolerantes a resultados lesivos. A terceira característica dos riscos contemporâneos tem nautreza política: os novos riscos são democráticos em relação aos riscos anteriores. Por exemplo, num cenário de risco ambiental, quem produzia e se beneficia do risco conseguia se distanciar deste no caso de instalação de uma indústria altamente poluidora. Atualmente, ocorreu uma democratização relativa destes riscos, impossibilitando este distanciamento – é efeito bumerangue de Beck. A classe econômica dominante, produtora de um discurso político mais forte, se sente incomodada com os novos riscos, passando a desenvolver um discurso pela redução destes riscos. Democratiza‐se com o risco, o discurso pela sua redução. O efeito imediato deste discurso é o reforço do direito penal, com sua expansão. Surgem as leis de crimes ambientais. O Poder Legislativo é atingido de forma muito mais forte, passando a responder de forma mais rápida a esta demanda. A quarta característica mais importante é o efeito de intensificação do risco produzida pelos meios de comunicação de massa (midiáticos). Passa a ser possível vivenciar o risco sem estar fisicamente próximo dele. Surge, ainda, o paradoxo do risco: ao mesmo tempo em que a sociedade clama pela redução do risco, não é capaz de abrir mão do conforto produzido por este mesmo risco. O conforto provém de uma atividade cujos resultados representam um risco obscuro. Vivemos uma espécie de esquizofrenia social, não sabendo o que fazer com os novos riscos. Há uma brutal dificuldade em limitar a tolerância ao risco e o grau de descarte do conforto que possuímos. O paradoxo do risco traz uma série de consequências para a organização política e jurídica da sociedade. Alguém deve estabelecer a linha entre o risco permitido e o não permitido: o gestor de riscos. Há vários gestores de riscos, públicos e privados, na sociedade, sendo que o gestor primário de riscos no modelo político é o legislador, através da criação da lei.
2.10.2.
Politização do Judiciário
Em uma sociedade plural e heterogênea, há grande dificuldade em se chegar a um consenso. A dificuldade de obtenção de quorum para a aprovação de um texto legal requer concessões, resultando em um texto cada vez mais abrangente e de ampla interpretação. Assim, passa a ser mais comum a existência de textos legais mais imprecisos e abrangentes. Um exemplo não ligado ao direito penal: discussão do descanso semanal remunerado do trabalhador – partidos de esquerda queriam o descanso aos domingos, partidos mais ligados aos sindicatos patronais queriam que o dia fosse deliberação de assembleias coletivas. O consenso obtido foi “o descanso será preferencialmente aos domingos”. Assim, o texto comporta as duas interpretações. Este resultado (possibilidade de múltiplas interpretações) tem um efeito colateral importante: o ônus político de uma decisão final é transferido ao Judiciário, que passa a ficar cada vez mais politizado. Outro exemplo: o legislativo abriu mão de definir o que é gerir de forma temerária uma instituição financeira. A edição de normas em branco, carentes de conteúdo, transfere ao Executivo o encargo de definir o sentido destas normas. A função política de preencher o conteúdo da norma, assim, é transferida do Legislativo para o Executivo e o Judiciário. Em particular, este último passa a estar mais envolvido nas decisões políticas fundamentais da sociedade, que deveriam estar sendo tratadas pelo Legislativo. O problema central da politização do Judiciário é a sua falta de legitimidade, pois seus membros não são eleitos. [Recomendação de Leitura: Luís Moreira – A Politização do Judiciário]
13
O Judiciário tenta suprir este déficit de legitimidade pelo que Haberle chama de sociedade aberta dos intérpretes da constituição – as decisões políticas se disfarçam como interpretações da constituição. A Corte Constitucional convoca a sociedade civil para a discussão. Isto é feito, por exemplo, através de audiências públicas. Outro instituto, talvez ainda mais usado, é o amicus curiae – entidades da sociedade civil com capacidade intelectual, conteúdo para contribuir com a discussão em pauta.
2.10.3.
Características do Direito Penal Contemporâneo
Neste contexto, o Legislador começa a produzir uma legislação penal diferente da que existia até então. Os tipos penais definidos a partir dos anos 80 são peculiares, sendo caracterizados por aspectos como:
Prevenção: a maior parte dos crimes passa a ser crimes de perigo. Os crimes de resultado lesivo perdem
espaço.
Imprecisão: as normas penais deixam de ser taxativas, passam a ser mais imprecisas – em termos
técnicos, isto significa a produção cada vez maior de tipos penais abertos ou normas penais em branco, usando expressões como probidade, honra – delegam a outras pessoas a definição do crime. Proteção de bens jurídicos coletivos em detrimento dos individuais: os novos tipos penais passam a proteger o meio ambiente, o trânsito, a ordem econômica, a livre concorrência – cada vez menos há uma vítima identificável. Direito penal expansivo: a partir do momento em que se constata que os principais riscos são produzidos pelo homem, o direito penal passa a ser gestor de riscos, embora, em alguns momentos, o legislador tenha uma postura de despenalização.
Diante deste novo direito penal, o que irá fazer a ciência jurídica – as escolas penais? No estudo das escolas penais, a partir do modelo de sociedade, procuramos entender como a escola penal tenta se adequar aquela sociedade. Quais as propostas de construção de um sistema penal para a sociedade de risco? O direito penal deve ou não deve se tornar um gestor de riscos da sociedade? Está é a questão que as escolas penais a partir dos anos 70 procura responder.
2.10.4.
Escola de Frankfurt (Garantismo)
É um apanhado de vários professores alemães, não se confunde com a escola filosófica de Frankfurt (desdobramento do marxismo). Estes professores não se reconhecem enquanto Escola de Frankfurt, alegando diferenças no seu pensamento, mas, para fins didáticos, são agrupados sob um mesmo rótulo. Destacam‐se: Hassemer e Naucke. O direito penal não é um instrumento idôneo para gerir os riscos da sociedade. Só se destina a resolver coisas muito claras: roubo, estupro, homicídio. Não adianta tipificar crimes de perigo, normas imprecisas, proteger direitos coletivos. São se trata de inadmissibilidade deste caráter, mas sim de inadequação da expansão do direito penal para fazer frente a todos os riscos da sociedade. A função ideal do direito penal é o seu “núcleo duro” – os crimes de resultado descritos com precisão. O direito penal deve ser mínimo. É necessário um novo ramo do direito – direito de intervenção –, capaz de fixar, de uma maneira mais fluida, mais imprecisa e dinâmica deve tratar os riscos. Reparação de dano, multa, impedimentos. É uma espécie de direito administrativo, pois não tem pena de prisão – a agressividade do direito penal se restringe aos crimes tradicionais. A principal crítica a esta abordagem está relacionada ao seu corte social, pois, partindo do pressuposto de que os crimes tradicionais são realizados por sujeitos de classes sociais mais baixas, afasta‐se a agressividade inerente ao direito penal das pessoas de classes mais altas, mais propensas a cometerem crimes de perigo. Gracia Martin (Prolegômenos Para a Luta da Modernização do Direito Penal ) enfatiza este corte social, criticando o pensamento da Escola de Frankfurt.
2.10.5.
Abolicionismo 14
Sua proposta é abolir o direito penal. Seus maiores representantes são Hulsman e Nils Christie. A discussão do direito penal é reducionista (não consegue conhecer o que é crime), porque não traduz as condições sociais que resultaram naquela situação. É extremamente maniqueísta e superficial, não resolve a raiz do conflito. A função do direito penal é proteger um bem jurídico, por isso, é inútil e contraproducente, pois contribui para lesionar outros bens jurídicos na sua aplicação. Os efeitos colaterais podem ser mais graves que o benefício trazido pelo remédio. Por último, o direito penal não cumpre nenhuma das funcionalidades da pena – ameaçar (não é possível provar que ameaça), ressocializar (é possível provar que não ressocializa). Este instrumento reducionista e contraproducente só existe para estigmatizar uma parte da população e deixá‐ la à margem da sociedade com alguma justificativa. Até que ponto não é o direito penal que produz o criminoso? O crime é algo ontológico, pertence ao mundo do dever ‐ser e não do ser . O problema do abolicionismo é propositivo: não apresenta uma solução. Ainda, o direito penal tem uma função de satisfação da ira popular – institucionaliza o sentimento de vingança. Abolir o direito penal seria eliminar uma garantia do criminoso.
2.10.6.
Funcionalismo
É uma tentativa original de construção de um sistema penal. Todas as escolas penais tentam construir um sistema, definir as fontes do legislador e do intérprete. Fontes vistas até aqui:
Direito clássico: valores absolutos e metafísicos. Neokantismo: valores culturais. Finalismo: natureza das coisas – identificação da estrutura igual em todos os direitos penais de todo o mundo – ações finais do ser humano.
O funcionalismo parte de uma negação: os valores absolutos (direito penal clássico, metafísico) e o finalismo não funcionam. Nada que é absoluto e imutável é humano – não existem valores absolutos nem no reino da metafísica nem na natureza das coisas. Ainda, crimes culposos não são crimes finais. Pessoas jurídicas, desprovidas de intenção, passam a ser punidas. O finalismo é falacioso. O fundamento para a construção do sistema penal é a sociedade – valores relativos, como os culturais. Assim, a base do funcionalismo é o neokantismo. Os valores sociais são de difícil apreensão, são intangíveis – por isso a fundamentação do sistema deve ser os valores funcionais – tudo aquilo que é importante para a sociedade continuar funcionando. Hoje, a constituição é o ponto de partida para examinar como a sociedade funciona. O direito penal não muda a sociedade, ele a acompanha – o que a muda é a política. Tem a função única de manter o status quo. Usualmente, os fatores de mudança de uma sociedade são crimes, são valores desfuncionais. Uma vez transformada a sociedade, são descriminalizados. Valores como liberdade de expressão, pluralismo, proibição do racismo, são valores necessários para o funcionamento da sociedade. Os valores sociais são o ponto de partida para a elaboração da lei e sua interpretação. São a base da dogmática penal. Há dois tipos de funcionalismo: o radical (Jakobs) e o moderado (ou teleológico, Roxin). Funcionalismo radical (Jakobs). Os principais pontos de funcionamento da sociedade devem ser identificados,
para que possa ser construída a legislação e a dogmática. Recorre ao pensamento do sociólogo Niklas Luhmann, onde a sociedade é conhecida pelas expectativas de comportamento dos agentes sociais. Há expectativas que, se forem reiteradamente frustradas, trazem uma perturbação social, que pode comprometer o funcionamento da sociedade. Neste sentido, o direito penal tem função de proteger expectativas de comportamento cuja frustração gere uma disfuncionalidade. Apesar de sua frustração, as expectativas devem continuar válidas. A ideia não é ameaçar, mas reforçar a validade de expectativas. Crítica: os valores funcionais são tão imprecisos quanto os valores culturais. Não há garantia de que sejam
democráticos, racionais, não impedem um regime totalitário. A perspectiva funcional não está dada a um modelo funcional determinado – falar que o direito penal é funcional não diz nada sobre seu conteúdo. Não há compromisso com uma sociedade adequada – esta é definida pela política. Qualquer tipo de direito penal pode 15
ser legitimado. Exemplo: direito penal do inimigo – poucas garantias para as pessoas que não querem pertencer à sociedade, que querem disfuncionalizá‐la – por conta da ameaça do terrorismo. Funcionalismo teleológico. Roxin vai além do pensamento de Jakobs, não se conforma com o direito penal para
qualquer tipo de sociedade. Concretiza sua opção política pelo Estado Democrático de Direito. O único direito penal legítimo é o deste tipo de sociedade. Inicia‐se a busca pelos valores funcionais do Estado Democrático de Direito, caracterizado essencialmente pela proteção à dignidade da pessoa humana – liberdade de autodeterminação (o espaço de um indivíduo vai até onde começa o espaço do outro). Assim, a função do direito penal não é a proteção de expectativas, mas sim do espaço de dignidade. A função do direito penal é a proteção de todos os bens jurídicos relevantes para garantir a dignidade da pessoa humana. Exemplos: vida, propriedade, honra, liberdade de religião, liberdade de expressão, integridade física. Não se admite um direito penal simbólico, pois a necessidade de segurança pode ser imensa a ponto de entrar na esfera de dignidade dos indivíduos. Quando colocado em funcionamento, o direito penal é acompanhado do cerceamento da liberdade. Há um paradoxo: o principal instrumento para garantir a dignidade das pessoas é excludente de dignidade. Inicia‐se um processo dialético, uma contraposição/tensão/conflito constante, buscando a máxima proteção da dignidade humana e uma mínima restrição à dignidade humana (efeito colateral do direito penal). É o máximo de proteção com o mínimo de custo. É a política criminal, o pensamento constante do legislador e do intérprete para alcançar o equilíbrio na referida tensão dialética. Surge uma teoria da pena baseada nas anteriores – a aplicação da pena tem três fases (uma ideia fragmentada, com limitações internas):
A previsão legal da pena pelo legislador (função de prevenção geral – ameaça e tranquilização), sendo que tem que ser proporcional à gravidade do crime (teoria da retribuição como limite da pena). A determinação da pena pelo juglador, aplicada ao criminoso no caso concreto é a retribuição. A execução da pena tem a prevalência da prevenção especial, com a tentativa de ressocialização dentro do tempo estipulado para a pena. A retribuição limita a prevenção especial.
Matéria para a prova bimestral: Capítulos 1, 3, 4, 5, 12 e 13 do Tratado de Direito Penal do Cezar Roberto Bittencourt.
16
3. Teoria do Bem Jurídico Penal. Função do direito penal. A proteção de bens jurídicos que mantenham a sociedade em funcionamento (Jakobs) e que sejam relevantes para a autodeterminação das pessoas, excluindo comportamentos que não tenham impacto para a dignidade da pessoa humana. Bens jurídicos individuais e coletivos. Natureza jurídica dos bens coletivos: autonomia ou referencial antropológico? A questão da criminalização dos maus tratos aos animais e do incesto. Relevância da teoria do bem jurídico: referencial crítico, sistematização da legislação penal e análise de proporcionalidade. Distinção entre bem jurídico e objeto jurídico.
Qual a função do direito penal? Esta é a primeira pergunta da dogmática penal. Partimos da premissa funcionalista: a função do direito penal é manter o funcionamento da sociedade (ideia de Jakobs)2. A sociedade brasileira é um Estado Democrático de Direito, que protege a dignidade humana (liberdade de autodeterminação das pessoas) e o pluralismo. É preciso proteger bens jurídicos fundamentais que mantenham esta sociedade funcionando e que sejam relevantes para a autodeterminação das pessoas. Um bem jurídico sempre terá um referente antropológico.
A Constituição é o ponto de partida para informar valores importantes para a dignidade da pessoa humana. Porém é um rol exemplificativo destes valores. Será um conceito material de bem jurídico, mesmo estando fora da Constituição, seja, pelo ponto de vista do legislador, fundamental para a dignidade da pessoa humana, desde que esta relevância possa ser demonstrada. Embora abrangente, a noção de bem jurídico permite que sejam excluídos do direito penal (critério negativo) uma série de comportamentos que não tenham nenhum impacto para a dignidade da pessoa humana. Moral, religião e política não são passíveis de tutela pelo direito penal. A ética é intersubjetiva, compartilhada pelos indivíduos. A moral é individual, são valores que não precisam ser compartilhados para ter vigência. Qualquer comportamento do outro que esteja dentro de sua esfera de privacidade não afeta o direito penal. Existem dois tipos de bens jurídicos: individuais (um titular perfeitamente identificado) e coletivos (não têm um titular claramente identificado, pode ser um grupo ou comunidade ou a sociedade inteira). Há duas propostas sobre a natureza jurídica dos bens coletivos: há os que pregam a sua completa autonomia e os que defendem o bem jurídico com referente antropológico. Os primeiros afirmam que o bem jurídico coletivo existe por si, é protegido por ele mesmo, independentemente de outra consideração, não por sua importância para o ser humano. Não há necessidade de identificar qualquer interesse humano por trás, ainda que indiretamente. A outra corrente defende que o bem jurídico é protegido porque, mediata ou imediatamente, está relacionado a um interesse humano. Essa diferenciação, aparentemente de natureza acadêmica, é fundamental na prática. Se não é adotado um referencial antropológico, é possível ocorrer a espiritualização do bem jurídico (mais amplo, etéreo, vago). Caso contrário, a mensagem para o legislador é mais clara: é necessário justificar por que o bem jurídico é relevante para o ser humano para que seja protegido. A criminalização dos maus tratos aos animais: caso fosse adotado o referencial antropológico, seria necessário utilizar o direito penal para punir quem tem clandestinamente um casal de micos‐leões dourados e os maltrata? Tal conduta seria lesiva à dignidade da pessoa humana? Esta questão suscita a discussão quanto à crise que atravessamos hoje no que diz respeito ao conceito de bem jurídico. Em diversos países há discussão quanto à proteção de bens jurídicos que não afetam a dignidade da pessoa humana. Em especial, a criminalização de maus tratos aos animais e do incesto são pontos relevantes nesta discussão. Roxin tentou por muito tempo justificar o interesse humano na proteção dos animais: a punição parte da base de que o legislador criou uma espécie de solidariedade entre as criaturas, elevando os animais a outro patamar. Posteriormente, Roxin admitiu que existem crimes que não têm um bem jurídico com referente antropológico. A sua teoria, então, é colocada em xeque. Na Alemanha o incesto é considerado crime e, após longa discussão na corte constitucional alemã, teve o bem jurídico fundamentado no interesse de gerações vindouras (possibilidade de doença dos descendentes). A teoria do bem jurídico é relevante porque fornece um referencial crítico para a legislação. Ainda, é importante para realizar uma sistematização da legislação penal. A partir da ideia de bem jurídico, é possível fazer uma análise de proporcionalidade das penas (ex. o bem jurídico “vida” é, em princípio, mais relevante que o “patrimônio”, com respeito à dignidade da pessoa humana). 2 Para Welzel, a função do
direito penal é introjetar valores nas pessoas, sendo, portanto, uma função pedagógica.
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Questão terminológica: bem jurídico (geral) x objeto jurídico (concreto, materialização do bem jurídico).
4. Limites do Direito Penal. 4.1. Critérios para definir a tolerância a ataques a bens jurídicos. Tolerância a ataques a bens jurídicos. A tensão dialética entre o máximo de proteção e o mínimo de restrição à dignidade da pessoa humana. Ofensividade (sem prevenção excessiva). Fragmentariedade (proteção fragmentada e não absoluta, comportamentos humanos e dissensuais). Culpabilidade (dolo ou imprudência). Utilidade (eficácia na proteção do bem jurídico). Subsidiariedade (ultima ratio). Princípios como mensagem ao legislador sobre conteúdo a ser tratado pelo direito penal.
Excessos no direito penal podem ser lesivos à dignidade da pessoa humana, exatamente aquilo que ele deveria proteger. Nesta linha dialética (máximo de proteção com o mínimo de restrição), é preciso estabelecer os limites do direito penal. A proteção de bens jurídicos fundamentais à dignidade da pessoa humana é o ponto de partida para a definição dos limites do direito penal. Um indivíduo que deixa de pagar uma dívida comete um crime? Há alguns ataques a bens jurídicos que são toleráveis, enquanto outros são intoleráveis. Assim, a questão passa a ser: quais são os ataques a bens jurídicos que chamam a atenção do direito penal? Em segundo lugar, quais as formas de proteção aplicáveis? Neste contexto, discutiremos os seguintes princípios: ofensividade, fragmentariedade, culpabilidade, utilidade e subsidiariedade. Com respeito às formas de proteção discutiremos os princípios da proporcionalidade e legalidade. Estes princípios são mensagens ao legislador com respeito a quais condutas deverão ser foco do direito penal.
4.1.1.
Ofensividade
Só são passíveis de criminalização condutas que lesionem ou coloquem em perigo um bem jurídico. A ideia é evitar um direito penal que faça futurologia, que adote medidas excessivamente preventivas, antecipando demais a punição. Quão próximo o comportamento está de lesionar um bem jurídico? É um critério de ponderação.
4.1.2.
Fragmentariedade
Será que todo comportamento que lesiona um bem jurídico é objeto do direito penal? O direito penal só deve ser utilizado para evitar comportamentos humanos e dissensuais (sem a vontade do titular do bem jurídico), isto é, intoleráveis. O bem jurídico não é protegido de maneira absoluta, mas sim de maneira fragmentada – apenas ataques intoleráveis. No caso do bem jurídico “vida” e do bem jurídico “integridade física” (este, a partir de determinada gravidade), o direito penal desconsidera a concordância do titular do bem jurídico. Por esta razão, o auxílio ao suicídio e o tráfico de órgãos são criminalizados. O bem jurídico é considerado tão relevante que é tratado como indisponível.
4.1.3.
Culpabilidade
Só é possível punir comportamentos direcionados à lesão do bem jurídico. Comportamentos fortuitos, fatos involuntários, tragédia não são passíveis de proibição. Há situações de lesão a um bem jurídico sem consentimento do seu titular que não são relevantes para o direito penal. Assim, são relevantes apenas lesões a bens jurídicos decorrentes de comportamentos humanos dissensuais com dolo ou imprudência. É este princípio que impede a responsabilidade objetiva no direito penal (responsabilização por um resultado danoso pelo qual não se tem dolo ou culpa).
4.1.4.
Utilidade
A medida mais grave (agressiva, violenta) existente no ordenamento jurídico deve ser eficaz na proteção do bem jurídico. É preciso demonstrar que a medida adotada tem potencial para reduzir o número de crimes – ela deve ser útil. A utilidade é um critério político‐criminal. 18
4.1.5.
Subsidiariedade
Será que ainda há um último limite ao direito penal? Mesmo que eu tenha todos os requisitos e elementos anteriores, ainda assim, o direito penal só pode ser usado quando não exista nenhum outro instrumento político ou jurídico que gere os mesmos efeitos. É preciso demonstrar que o direito penal, efetivamente, é o único instrumento que vai proteger o bem jurídico diante daquele tipo de lesão. Todos os limites estão ligados ao caráter de ultima ratio do direito penal. Para a criação de uma norma penal, é preciso seguir estes limites. É preciso, agora, estabelecer uma consequência para aquele comportamento.
4.2. Formas de proteção: proporcionalidade e legalidade. Formas de proteção. Proporcionalidade: proximidade de lesão ao bem jurídico, gravidade da conduta, ofensividade e culpabilidade. A possibilidade de desproporcionalidade pela prevenção geral negativa e pela utilidade. A proporcionalidade como parâmetro de controle de constitucionalidade. O princípio da proteção deficiente pelo direito penal.
4.2.1.
Proporcionalidade
A pena deve ser proporcional à gravidade do crime, da violação do bem jurídico. É um parâmetro passível de controle de constitucionalidade. A gravidade está relacionada à importância do bem jurídico, da autodeterminação da pessoa. É preciso distinguir a pena para o homicídio consumado do homicídio tentado. Assim, para um mesmo bem jurídico, pode ser utilizado como critério de proporcionalidade a proximidade da lesão ao bem jurídico. Ainda, a culpabilidade também pode ser utilizada como critério – quanto maior a culpabilidade, maior a pena. Assim, três critérios podem ser utilizados: gravidade da conduta, ofensividade e culpabilidade. A utilidade como critério de proporcionalidade pode resultar em uma situação na qual se estabeleça uma pena maior para uma lesão de gravidade menor só para que esta pena seja mais útil. É o mesmo problema já comentado quanto à possibilidade de desproporcionalidade decorrente da prevenção geral negativa. Exemplo de desproporcionalidade no direito penal positivo: desrespeito aos direitos autorais tem a mesma pena que o homicídio simples. O crime de lesão a planta ornamental tem a mesma pena da lesão corporal leve. A conduta de dirigir embriagado tem a mesma pena que a do crime de constrangimento ilegal. O STF tem dado sinais, ainda tímidos, de que vai levar a proporcionalidade como critério para controle de constitucionalidade. A dificuldade era decorrente do fato de que o princípio não é explícito no texto da constituição. Pode ser declarada inconstitucional uma lei que estabelece uma pena gravosa demais (desproporcional). “Controle e constitucionalidade das leis penais. Mandatos constitucionais de criminalização: A Constituição de 1988 contém um significativo elenco de normas que, em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de condutas (CF, art. 5º, XLI, XLII, XLIII, XLIV; art. 7º, X; art. 227, § 4º). Em todas essas normas é possível identificar um mandato de criminalização expresso, tendo em vista os bens e valores envolvidos. Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Pode‐se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote), como também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote). Os mandatos constitucionais de criminalização, portanto, impõem ao legislador, para o seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção 3 insuficiente.” (HC 104.410, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 6‐3‐2012, Segunda Turma, DJE de 27‐3‐2012.)
Princípio da proteção deficiente: a CF prevê em determinados dispositivos que o legislador penal proteja determinados bens jurídicos. Se o legislador não utilizar ou utilizar de forma deficitária o direito penal, também há espaço para controle de constitucionalidade, pelo fato de a proteção oferecida pela norma ser insuficiente. A descriminalização de um comportamento pode ser declarada inconstitucional pelo STF, se o bem jurídico protegido for considerado como relevante para que seja protegido pelo direito penal.
3 Íntegra disponível em
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=1851040
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LEI X NORMA: um parêntese terminológico
Qual a diferença entre lei e norma? Norma é a comunicação, a determinação, a orientação que vem do texto legal. Este, na verdade, é um instrumento de linguagem que contém a norma – é a forma de expressão da norma. Em regra, toda lei tem pelo menos duas normas subjacentes. Ex. CP art. 121 – as comunicações são: “não matar” para todos e “se alguém matar, a pena é de 6 a 20 anos”, esta última dirigida ao aplicador do direito. Norma penal é o conteúdo, a matéria, aquilo que o legislador quer dizer (mens legislatoris). Muitas vezes o texto legal permite várias interpretações. No fim, quem diz a norma penal concreta é o juiz, ao interpretar o texto legal, procurando a norma em si neste texto. O direito penal é uma ciência dialética, há um conflito permanente entre os seus institutos. A função do direito penal é proteger bens jurídicos, mas dentro de certos limites, pois há o risco de atingir os próprios bens jurídicos que deseja proteger. Certos ataques a bens jurídicos podem ter relevância e os parâmetros para a construção da norma incriminadora: ofensividade, fragmentariedade, culpabilidade, utilidade e subsidiariedade. Assim, podem ser determinados os comportamentos intoleráveis. Até aqui nos encontramos no âmbito do Legislativo, estabelecendo bens jurídicos e condutas passíveis de criminalização. Na sequência, precisa ser estabelecida a sanção penal, que deve ser proporcional à importância do bem jurídico, à lesividade da conduta e à culpabilidade, entre outros parâmetros. Embora não esteja expresso na Constituição, o princípio da proporcionalidade é reconhecido pelo STF como parâmetro de controle de constitucionalidade das normas.
4.2.2.
Legalidade
A legalidade será discutida no tópico a seguir.
5. Legalidade Legalidade. Contornos formais: lei ordinária. Contornos materiais: taxatividade, irretroatividade, territorialidade. Taxatividade: tipo penal indeterminado e norma penal em branco. Lei penal no tempo: irretroatividade, formas de alteração da lei (abolitio criminis, novatio legis in pejus, novatio legis in melius, criminalização), ultra‐atividade da lei excepcional ou temporária, crimes instantâneos e permanentes (tempo do crime). Territorialidade: princípio da territorialidade temperada, extraterritorialidade incondicionada, extraterritorialidade condicionada, exceções restritivas à territorialidade, lugar do crime (ubiquidade).
O último elemento a ser estudado é o princípio da legalidade, o mais básico, o mais simples de todos: não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (CF, art. 5º, XXXIX e CP, art. 1º). O último limite é a legalidade: o comportamento só será transformado em crime quando houver previsão legal. O contexto histórico do surgimento deste princípio foi a desconfiança do Judiciário, da necessidade de se dar segurança aos ideais burgueses. Desde a Constituição do Império, o princípio da legalidade já estava presente no nosso ordenamento jurídico. Por mais intolerável, por mais imoral que seja um comportamento, não é crime se não houver previsão legal. No passado, ocorreu uma discussão sobre a cola em concurso público. Tal comportamento não se inseria em nenhum tipo penal e o STJ não tinha outra opção a não ser absolver os acusados, fazendo com que a sociedade entrasse em crise. A legalidade tem contornos formais e materiais. O contorno formal da legalidade é o estabelecimento da espécie de texto legal que tem a exclusividade de portar o crime e a pena, que é a lei ordinária. Sequer a Constituição cria tipos penais – ela menciona os crimes de terrorismo, mas, por não haver lei ordinária tipificando crimes de terrorismo, não há tal crime em nosso ordenamento jurídico. Há limites materiais (de conteúdo) da legalidade. Passaremos a estudar estes limites nas próximas seções.
5.1 Taxatividade Taxatividade (ou princípio da lex certa). A lei que define este crime, produzida por um processo legislativo
regular, precisa definir o comportamento de maneira correta, precisa, taxativa, precisa ter contornos bem definidos. A ideia é inibir a produção de leis vagas, imprecisas. Isto não significa que o legislador não possa utilizar de técnicas4 como:
4 Se utilizadas de forma exagerada, podem
afetar a própria ideia de legalidade, deixando margem de atuação ampla demais
para o juiz.
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Tipo penal indeterminado. Para descrever o comportamento criminoso, o legislador utiliza elementos imprecisos ou carentes de determinação. Exemplo: crime de injúria – injuriar alguém, ofendendo‐lhe a honra, dignidade e o decoro. Estes termos são carentes de interpretação, remetem o juiz a um trabalho de reflexão maior sobre seu conteúdo semântico. Usar este recurso não significa dizer que o comportamento não foi definido com precisão. A norma por trás da lei penal pode ser visualizada. Porém, alguns tipos penais são excessivamente abertos (ex. gestão temerária de instituições financeiras). Norma penal em branco. É um tipo penal propositadamente incompleto. O legislador remete a outra autoridade a competência para regulamentar certa conduta. Exemplo clássico: tráfico de drogas. As drogas proibidas não são explicitadas pela lei, devem ser especificadas pelo Poder Executivo (este mecanismo dá maior agilidade para a inclusão de novas substâncias). No art. 60 da Lei Ambiental – é proibido descumprir ordem relevante de autoridade ambiental. Aqui é delegada à autoridade a descrição completa do comportamento criminoso. Também estamos no campo da norma penal em branco, porém há violação da segurança da legalidade.
O uso destes mecanismos não afeta, necessariamente, a taxatividade. Se há excesso, há margem para discussão da legitimidade do tipo penal indeterminado ou da norma penal em branco.
5.2. Irretroatividade e lei penal no tempo A lei deve ser anterior à prática do crime. O inverso não é verdadeiro: se hoje pratico um comportamento que é crime, uma despenalização futura afeta os comportamentos anteriores à lei em que ocorre. A lei pode retroagir para beneficiar o réu. Se um dado bem jurídico deixou de ser importante do ponto de vista da prevenção, não há sentido em continuar apenando aquele sujeito. A lei se mostrou inexpressiva para o funcionamento da sociedade. Há exceção à retroatividade de leis excepcionais e temporárias (em situações específicas, a conduta necessariamente tinha de ser criminalizada). CF, art. 5º, XL. A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu. CP, Lei penal no tempo
Art. 2º ‐ Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. Parágrafo único ‐ A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica‐se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.
Há quatro hipóteses de alteração da lei.
Abolitio criminis. A conduta deixou de ser crime. Há retroatividade. Quem já cumpriu a pena volta a ter
primariedade. Para quem está cumprindo a pena, cessam seus efeitos. Discussão: se a Anvisa exclui inadvertidamente uma droga da lista de substâncias proibidas, chegando a publicar tal lista, todos aqueles que estavam sendo processados pela droga excluída deixam de ser afetados (extinção da punibilidade). [VER QUADRO A SEGUIR] Novatio legis in pejus. O comportamento continua sendo crime, mas a pena é aumentada, diminuído o benefício ou dificulta‐se a progressão do regime. Não há retroatividade. Novatio legis in melius. A situação do réu é abrandada, é criada causa de diminuição, cria‐se um atenuante. Há retroatividade. Criminalização. O comportamento não era crime e passou a ser. Não há retroatividade.
“Abolitio Criminis” e Cloreto de Etila
A Turma deferiu habeas corpus para declarar extinta a punibilidade de denunciado pela suposta prática do delito de tráfico ilícito de substância entorpecente (Lei 6.368/76, art. 12) em razão de ter sido flagrado, em 18.2.98, comercializando frascos de cloreto de etila (lança‐ perfume). Tratava‐se de writ em que se discutia a ocorrência, ou não, de abolitio criminis quanto ao cloreto de etila ante a edição de resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária ‐ ANVISA que, 8 dias após o haver excluído da lista de substâncias entorpecentes, novamente o incluíra em tal listagem. Inicialmente, assinalou‐se que o Brasil adota o sistema de enumeração legal das substâncias entorpecentes para a complementação do tipo penal em branco relativo ao tráfico de entorpecentes. Acrescentou‐se que o art. 36 da Lei 6.368/76 (vigente à época
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dos fatos) determinava fossem consideradas entorpecentes, ou capazes de determinar dependência física ou psíquica, as substâncias que assim tivessem sido especificadas em lei ou ato do Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina e Farmácia do Ministério da Saúde — sucedida pela ANVISA. Consignou‐se que o problema surgira com a Resolução ANVISA RDC 104, de 7.12.2000, que retirara o cloreto de etila da Lista F2 — lista das substâncias psicotrópicas de uso proscrito no Brasil, da Portaria SVS/MS 344, de 12.5.98 — para incluí ‐lo na Lista D2 — lista de insumos utilizados como precursores para fabricação e síntese de entorpecentes e/ou psicotrópicos. Ocorre que aquela primeira resolução fora editada pelo diretor‐presidente da ANVISA, ad referendum da diretoria colegiada (Decreto 3.029/99, art. 13, IV), não sendo tal ato referendado, o que ensejara a reedição da Resolução 104, cujo novo texto inserira o cloreto de etila na lista de substâncias psicotrópicas (15.12.2000). (...) Aduziu‐se que o fato de a primeira versão da Resolução ANVISA RDC 104 não ter sido posteriormente referendada pelo órgão colegiado não lhe afastaria a vigência entre sua publicação no Diário Oficial da União ‐ DOU e a realização da sessão plenária, uma vez que não se cuidaria de ato administrativo complexo, e sim de ato simples, mas com caráter precário, decorrente da vontade de um único órgão — Diretoria da ANVISA —, representado, excepcionalmente, por seu diretor‐presidente. Salientou‐se que o propósito da norma regimental do citado órgão seria assegurar ao diretor‐presidente a vigência imediata do ato, nas hipóteses em que aguardar a reunião do órgão colegiado lhes pudesse fulminar a utilidade. Por conseguinte, assentou‐se que, sendo formalmente válida, a resolução editada pelo diretor‐presidente produzira efeitos até a republicação, com texto absolutamente diverso. Repeliu‐se a fundamentação da decisão impugnada no sentido de que faltaria ao ato praticado pelo diretor‐presidente o requisito de urgência, dado que a mera leitura do preâmbulo da resolução confirmaria a presença desse pressuposto e que a primeira edição da resolução não fora objeto de impugnação judicial, não tendo sua legalidade diretamente questionada. Assim, diante da repercussão do ato administrativo na tipicidade penal e, em homenagem ao princípio da legalidade penal, considerou‐se que a manutenção do ato seria menos prejudicial ao interesse público do que a sua invalidação. Rejeitou‐se, também, a ocorrência de erro material, corrigido pela nova edição da resolução, a qual significara, para efeitos do art. 12 da Lei 6.368/76, conferir novo sentido à expressão “substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”, elemento da norma penal incriminadora. Concluiu‐se que atribuir eficácia retroativa à nova redação da Resolução ANVISA RDC 104 — que tornou a definir o cloreto de etila como substância psicotrópica — representaria flagrante violação ao art. 5º, XL, da CF. Em suma, assentou‐se que, a partir de 7.12.2000 até 15.12.2000, o consumo, o porte ou o tráfico da aludida substância já não seriam alcançados pela Lei de Drogas e, tendo em conta a disposição da lei constitucional mais benéfica, que se deveria julgar extinta a punibilidade dos agentes que praticaram quaisquer daquelas condutas antes de 7.12.2000. HC 94397/BA, rel. Min. Cezar Peluso, 9.3.2010. (HC‐94397)
Se há uma situação em que a lei não é alterada, mas ocorreu mudança na jurisprudência dos tribunais, passando a ter uma interpretação mais branda, é possível utilizar os mesmos efeitos ou não? Nada impede que seja solicitada uma nova apreciação com base na jurisprudência alterada. A ideia da retroatividade da lei mais benéfica também pode ser aplicada no caso de mudança de jurisprudência. E se a nova lei, ao mesmo tempo, é mais benéfica e mais prejudicial? Isto aconteceu na Lei de Drogas, no caso do tráfico: na lei antiga (6.368/1976) a pena era de 3 a 15 anos e na lei nova (11.343/2006) aumentou para 5 a 15 anos (novation legis in pejus), mas trouxe um artigo que estabelece uma causa de diminuição de pena de 1/3 a 2/3 que não existia na lei anterior ( novatio legis in melius). A combinação de leis (com os dispositivos que favorecem o réu) é inovação, criação de uma terceira lei. O STF decidiu ser possível esta combinação de leis5.
Lei excepcional ou temporária. Neste caso, vigora a ultra‐atividade dos seus termos – a pessoa continuará respondendo pelo crime cometido – o tempo rege o ato (tempus regit actum)6. São leis que preveem no seu próprio texto um dispositivo de extinção, o tempo de seu término, de perda de validade. Exemplo: em um período de fome, é elaborada uma lei que criminaliza a especulação envolvendo alimentos – se o período de crise acaba, o criminoso continua respondendo independentemente do fato de a conduta não ser mais crime. A única forma de garantir a eficácia destas leis é a ultra‐atividade. Tempo do crime. Para que uma lei seja aplicada na prática, é preciso determinar o momento em que o crime foi cometido – qual o critério utilizado para dizer o momento da prática do crime, o tempo do crime. CP, art. 4º: Considera‐se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado. Com respeito ao tempo, há dois tipos de crime: instantâneos e permanentes. Crime instantâneo é o que se consuma no momento de sua prática. O crime permanente é o que se prolonga no tempo, sua execução, 5 O voto do Min. Ricardo Lewandowski no RE 596152/SP pode ser lida em
http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo646.htm#transcricao1 6 CP, Lei excepcional ou temporária Art. 3º ‐ A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica‐se ao fato praticado durante sua vigência.
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consumação, o ato criminoso se prolonga no tempo. Temos a Súmula 711 do STF: A lei penal mais grave aplica‐se ao crime permanente se sua vigência é anterior à cessação da permanência. Se enquanto eu estiver praticando o crime, ocorre uma novation legis in pejus, aplica‐se a lei mais gravosa. Há dificuldade na determinação do caráter instantâneo ou permanente nos crimes de lavagem de dinheiro e ocultação de cadáver.
5.3. Territorialidade e lei penal no espaço CP, Territorialidade
Art. 5º ‐ Aplica‐se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional. § 1º ‐ Para os efeitos penais, consideram‐se como extensão do território nacional as embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro onde quer que se encontrem, bem como as aeronaves e as embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, que se achem, respectivamente, no espaço aéreo correspondente ou em alto‐mar. § 2º ‐ É também aplicável a lei brasileira aos crimes praticados a bordo de aeronaves ou embarcações estrangeiras de propriedade privada, achando‐se aquelas em pouso no território nacional ou em vôo no espaço aéreo correspondente, e estas em porto ou mar territorial do Brasil. Lugar do crime
Art. 6º ‐ Considera‐se praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir‐se o resultado.
Dificuldade: crimes transacionais. O princípio que vigora é o da territorialidade. A regra geral é que a lei penal brasileira vigora no território nacional. Há exceções expansivas e limitativas – é o princípio da territorialidade temperada. Espaço aéreo e mar territorial são considerados território brasileiro. Devem ser consideradas as exceções expansivas do § 1º do art. 5º. Há hipóteses de extraterritorialidade no art. 7º do CP.
Extraterritorialidade incondicionada. São crimes que afetam de maneira grave a soberania nacional. Aplica‐ se a lei brasileira, ainda que o agente tenha sido absolvido ou condenado no estrangeiro.
Princípio da proteção real: crime contra a vida ou a liberdade do Presidente da República. Crimes contra o patrimônio e a fé pública dos entes federados, empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia ou fundação instituída pelo Poder Público. Crimes contra a Administração Pública, por quem está a seu serviço. Princípio da justiça universal: genocídio, se agente brasileiro ou domiciliado no Brasil, não importa onde o crime tenha sido cometido. Idealmente, todo país deveria ter uma regra semelhante.
Extraterritorialidade condicionada. Não vale automaticamente a lei brasileira, há condições que precisam ser verificadas. As situações são especificadas no art. 7º, II.
Crimes que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir. Princípio da nacionalidade ativa e da nacionalidade passiva 7: crimes praticados por brasileiro e contra brasileiro (estes requerem condições adicionais, do § 3º do art. 7º). Crimes praticados em aeronaves ou embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, quando em território estrangeiro e aí não sejam julgados.
As condições são (§ 2º do art. 7º):
Entrada do agente no território nacional. Princípio da dupla tipicidade: fato ser punível também no país em que foi praticado. Crimes para os quais a lei brasileira autoriza a extradição. Não absolvição ou cumprimento de pena no estrangeiro. Não ter havido perdão no estrangeiro ou extinção da punibilidade, segundo a lei mais favorável.
7 O
brasileiro como sujeito passivo é situação de extraterritorialidade hipercondicionada, tratada no § 3º do art. 7º. Cumulativamente aos requisitos da extraterritorialidade condicionada, há também necessidade de não ter sido pedida ou negada a extradição do estrangeiro que cometeu o crime contra brasileiro e tenha havido requisição do Ministro da Justiça.
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Exceções restritivas à territorialidade. O crime é praticado dentro do país, mas o Brasil abre mão de sua soberania e não se aplica a lei brasileira. Isto pode ocorrer por tratado ou convenção ( caput do art. 5º). É o caso da Convenção de Viena. Os agentes diplomáticos possuem a chamada imunidade diplomática – para estas pessoas não vale a lei penal brasileira, mas a lei penal do Estado de origem. O que acontece na embaixada é a garantia de que a autoridade brasileira só entrará com autorização do embaixador – não é extensão de território, é território brasileiro. Lugar do crime. O critério adotado pelo CP é o da ubiquidade, conforme o art. 6º. Considera‐se tanto o local onde ocorreu a ação ou omissão, quanto o local onde se produziu ou deveria ter sido produzido o resultado. É o critério mais amplo possível, para evitar que detalhes formais impeçam a lei brasileira de ser aplicada.
5.4. Interpretação da Lei Penal Tipos quanto ao intérprete: autêntica, judicial e doutrinária. Tipos quanto à forma: gramatical, ontológica, histórica, sistemática, normativa. Impossibilidade de analogia para leis penais. Distinção entre analogia, interpretação analógica e interpretação extensiva. Analogia em favor do réu.
A lei penal é lacunosa. O papel do intérprete é entender qual a norma por trás da lei penal, é buscar o sentido e alcance da norma. Há outros instrumentos, além da literalidade da lei (interpretação gramatical), que podem ser utilizados. Formas de interpretação quanto ao intérprete:
Interpretação autêntica: quando a própria lei se interpreta. Ex. funcionário público para fins penais (art. 327). Interpretação judicial: feita pelo Poder Judiciário, cria a chamada jurisprudência. Interpretação doutrinária: feita pelos acadêmicos, juristas, pensadores do direito.
Classificação quanto à forma de interpretação8:
Gramatical: é o limite linguístico do teor literal do texto. No direito penal, o marco legal é fundamental. Quanto mais fraco for o direito penal, menos arbitrário será o Estado. A analogia não é possível no direito penal. Ontológica: interpretação de acordo com a natureza, a realidade das coisas, o mundo do ser . Se a legislação fala que o doente mental é inimputável. O termo “doente mental” é interpretado de forma ontológica, procura‐se na natureza das coisas o seu significado, busca‐se na área médica a definição do que seja “doente mental”. Não há margem para criatividade, pode haver necessidade, inclusive, de parecer técnico. O mundo do ser , porém, diz muito pouco sobre o que é reputação, honra, dignidade. Histórica: procurar desvendar o que o legislador quis quando da elaboração da norma. Exemplo: discussão da definição de “crime político” na Lei de Anistia. Sistemática: analisa‐se o ordenamento jurídico como um sistema, a norma deve ser compatível com outras normas. Problema: se “crime político” é a tortura, e o país dá abrigo a quem cometa crime político, os torturadores de outros países podem se refugiar no país. Se o Brasil assina um tratado se comprometendo com o combate à tortura, se a Constituição indica que tal crime é insuscetível de anistia, pode haver uma incompatibilidade. Normativa: a norma é interpretada de acordo com valores culturais ou funcionais (interpretação normativa cultural e interpretação normativa funcional, respectivamente).
O único método não utilizado no direito penal é a analogia. Não é permitido sair dos limites do sentido literal da norma. Exemlo: CP, art. 213 – crime de estupro: o texto antigo referia‐se ao constrangimento de mulher ; o legislador mudou o texto para constranger alguém. A analogia, porém, não se confunde com interpretação analógica nem com interpretação extensiva. Interpretação analógica. É quando a própria lei permite uma espécie de analogia. Vejamos o exemplo de um tipo penal aberto que ilustra a situação: 8 Todas as formas são válidas e não se excluem.
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CP, art. 61 ‐ São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: (...) II – ter o indivíduo cometido: (...) d) com emprego de veneno, fogo, explosivo, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que podia resultar perigo comum;
Através do tipo penal aberto, uma situação não prevista na lei pode ser trazida para a sua literalidade ( outro meio insidioso ou cruel ) pelo legislador. Na analogia stricto sensu, a situação não prevista na lei é determinada pelo juiz.
Interpretação extensiva. Ocorre no tipo penal aberto, isto é, na lei penal que possui um termo que comporta várias interpretações. Quando o juiz interpreta um tipo penal aberto, pode obter um resultado mais restritivo ou mais expansivo. Diz‐se que ocorre interpretação extensiva quando o juiz opta por uma interpretação mais abrangente . Exemplo: furto – subtrair coisa alheia móvel. Na legislação anterior, havia um problema para o caso de desvio de energia elétrica, que poderia ser tida como coisa alheia móvel (de forma mais expansiva) ou não (forma mais restritiva). A primeira interpretação é extensiva, pois, diante do termo dúbio, se escolhe o significado mais abrangente. Assim, a regra é o não cabimento de analogia no direito penal. Porém, há uma exceção: é possível valer‐se da analogia em favor do réu. Exemplo: aborto só não é crime quando a gravidez é decorrente de estupro ou quando gerar risco de morte para a mãe. Certa vez, houve abuso sexual que não chegou à conjunção carnal mas resultou em gravidez, havendo apenas atentado violento ao pudor, em termos técnicos. No fim, decidiu‐se que a situação é significativamente próxima da conjunção carnal, viabilizando a analogia com o estupro para escusar a ré de ter cometido o aborto (beneficiá‐la).
6. Teoria do Delito: Tipicidade Vimos a finalidade do direito penal e seus princípios limitadores. A próxima etapa do estudo consiste em analisar todos os delitos previstos na legislação e identificar as características comuns destes comportamentos. A dogmática procurará orientar os passos necessários para este processo de identificação. Todos os tipos penais possuem uma estrutura muito parecida, possuindo os seguintes elementos (objetivos):
Comportamento Resultado Nexo de imputação Adequação típica (previsão na legislação penal como crime)
6.1. Comportamento Pensadores tentaram por muito tempo identificar um mínimo denominador comum entre todos os crimes. Von Liszt sugeriu um movimento exterior corporal como elemento comum, uma noção falha para crimes de omissão. A busca pelo critério unificador do comportamento mostrou‐se inócua na prática. Quem chegou mais perto disto foi Jakobs: “eu nunca vou conseguir encontrar um comportamento ativo que abarque todos os crimes, por conta dos crimes de omissão – na verdade, todos os crimes são de omissão: criar um risco ou colocar‐se em uma situação de impedir um risco e não evitar a produção do resultado”. Desistência voluntária e arrependimento eficaz
Art. 15 ‐ O agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados.
Desde Welzel, sabemos que o comportamento é, necessariamente, humano e voluntário. Não faz parte da tipicidade a vis absoluta (coação física absoluta), o comportamento reflexo e o comportamento inconsciente. 25
6.2. Resultado A função do direito penal é proteger bens jurídicos. O comportamento só será relevante para o direito penal se produzir um resultado. É possível haver, assim, quatro espécies de crime:
Crime de resultado lesivo: lesiona um objeto jurídico. Em geral, exigem uma perícia, um corpo de delito para verificação de afetação do objeto jurídico. Exemplo: homicídio. Crime de perigo concreto: o comportamento quase afeta/lesiona um bem jurídico concreto (está no raio da ação). Exemplo: CP, art. 130 – perigo de contágio venério. CP, art. 250 – crime de incêndio. Crime de perigo abstrato: descreve‐se apenas a ação criminosa, se fazer menção a nenhum resultado lesivo ou de perigo. Exemplo: dirigir embriagado, tráfico de drogas, porte de armas. Crime de periculosidade (perigo abstrato concreto): é preciso demonstrar que a ação, embora não tenha lesionado ninguém, tinha a capacidade ou potencial de lesar alguém. A mera conduta tem capacidade, ainda que em abstrato, para lesionar um bem jurídico. Exemplo: dirigir embriagado na legislação anterior (expondo a incolumidade de outrem a risco).
Importante: a diferença prática entre crime de perigo abstrato e crime de periculosidade é que neste é possível demonstrar se a conduta foi inócua, o que não é possível naquele. Será que a técnica do legislador de definir crimes de perigo abstrato é condizente com a tese de que o direito penal visa proteger bens jurídicos relacionados à dignidade da pessoa humana? A mera conduta sequer oferece perigo potencial a um bem jurídico. Há três respostas para esta questão:
Inconstitucionalidade. Os crimes de perigo abstrato são todos inconstitucionais, são incompatíveis com as diretrizes constitucionais da lesividade, com a dignidade da pessoa humana. Esta ideia não faz sentido: a própria constituição prevê em seu texto um crime de perigo abstrato (tráfico de drogas). Plena aceitação. É perfeitamente possível ao legislador criar tantos crimes de perigo abstrato quanto desejar, pois todos lesionam, de certa forma, a ordem pública enquanto bem jurídico. Como qualquer comportamento pode afetar a ordem pública, o conceito de bem jurídico perde seu caráter limitador. Interpretação conforme. Os tipos penais devem ser interpretados de forma restritiva, sendo equiparados aos crimes de periculosidade. Na interpretação, o crime de perigo abstrato deve ser considerado como se fosse um crime de periculosidade, exigindo‐se a descrição de um risco hipotético a um bem jurídico. Um comportamento absolutamente inócuo ao bem jurídico é afastado do direito penal.
Recapitulando: os tipos penas descrevem um comportamento humano e voluntário. Todo tipo pena descreve, ainda, um resultado: crime de resultado, crime de perigo, crime de perigo abstrato concreto (periculosidade, conduta idônea para produzir um resultado, potencialmente lesiva), crime de perigo abstrato puro (criminalização de mero comportamento). Uma posição que começa a ganhar espaço nos tribunais é que os crimes de perigo abstrato têm que ser interpretado como crimes de periculosidade, pois o ordenamento jurídico visa proteger bens jurídicos. É necessário demonstrar que há uma capacidade, ainda que hipotética, de produzir um dano. O resultado pode ser de lesão, de perigo concreto, de periculosidade e, mais do que isso, tem que ser dissensual, ou seja, não pode haver consentimento, consenso da vítima do crime, o titular do bem jurídico afetado. Só há turbação de expectativas que afetem o funcionamento da sociedade se não houver consentimento, que desempenha um papel muito relevante no direito penal. Embora o consenso afaste a tipicidade na maior parte dos crimes, quando nos encontramos diante de situações tabu, mais especificamente quando há violação da vida ou da integridade física a partir de uma determinada intensidade, nosso legislador transforma o consentimento em algo irrelevante.
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6.3. Nexo de Imputação Pensamento clássico: Busca por nexo causal. Teoria da equivalência de condições (condition sine qua non) e sublimação mental. Limitações: Concausas relativamente independentes, causalidade hipotética, risco permitido (adequação social), regresso ao infinito. Neokantismo: causalidade adequada (adequação causal). Prognose objetivo‐ posterior. Finalismo: determinação do nexo de imputação pelo dolo ou culpa. Funcionalismo: Teoria da Imputação Objetiva.
Por fim, é preciso demonstrar que o resultado seja imputado àquele comportamento. O nexo de imputação deve ser identificado, mas o critério para tanto não é óbvio. Há muito de bom senso, intuição no entendimento da complexidade desta questão. Discorreremos sobre o assunto nas próximas seções.
6.4. Pensamento clássico: teoria da equivalência de condições O critério mais intuitivo é a busca de um nexo causal: causa e efeito. Esta é a resposta do direito penal clássico, através da proposta de Julius Glazer, que desenvolveu uma regra simples para a constatação deste nexo causal: conditio sine qua non ( teoria da equivalência das condições) – o resultado só estará relacionado com a ação, se esta for a condição sem a qual o resultado não existira. É o método da sublimação mental: se a ação for sublimada mentalmente e o resultado deixar de existir, não há nexo causal. É uma operação quase matemática, física, naturalista. O art. 13 do Código Penal adota esta medida. Art. 13 ‐ O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera‐se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.
É um critério transparente, objetivo, limpo. Mas há situações que esta teoria não resolve: as situações concausas relativamente independentes. Concausa é sempre que a produção de um resultado depende de mais de um comportamento. Concausa absolutamente independente: A coloca veneno no copo de B, e C faz o mesmo. A e C produzem o resultado, mas não é possível determinar quem exatamente. Ambos serão condenados apenas pelo homicídio tentado, a menos que estejam em concurso.
Quando há concausas relativamente independentes é possível chegar a resultados injustos com a busca do nexo causal proposta pela teoria clássica. Se A atira na perna de B e, enquanto levado por uma ambulância para o hospital, esta sofre um acidente, pega fogo e B more. As duas causas, relativamente independentes, apenas chegam ao resultado da morte de B quando somadas. O ato de A atirar na perna de B, quando suspenso mentalmente, elimina o fato de B estar na ambulância, logo B não morreria. Assim, causalmente, A produziu a morte de B, embora não pareça um resultado justo. Um exemplo mais absurdo e caricato seria o de B se recuperar do tiro, mas fica manco. No futuro, B, por dificuldades de locomoção é atropelado. Assim, pelo fato de A ter atirado em B, e B ter sido atropelado e morrer, há um nexo de causalidade entre a ação de A e o resultado (morte de B). Assim, aquele ato poderia produzir consequências para o resto da vida de B. Há problemas também na situação de causalidade hipotética (cursos causais patológicos). Este seria o caso do fuzilamento e do carrasco da pena de morte. Suponha que um general do exército nazista receba uma ordem de um superior para fuzilar um judeu e que haja possibilidade de conduta diversa. E que o general obedeça a ordem. Poderíamos alegar que, na supressão mental daquele ato, o resultado ainda seria produzido (pois outros estariam dispostos a obedecer a ordem, no caso de o general ter se escusado de cumpri‐la). No outro caso, um carrasco poderia ser empurrado pelo pai de uma vítima que desejasse ele mesmo apertar o botão para executar o criminoso que matou seu filho. Assim, o resultado seria gerado mesmo se o pai não tivesse praticado aquele ato (o carrasco o faria). Há, ainda, um terceiro problema, que é o do risco permitido ou da adequação social. Há comportamentos adequados socialmente nos quais há uma relação causal de imputação. Para que a sociedade continue 27
funcionando, certa exposição de bens jurídicos ao risco é tolerável em troca de benefícios trazidos pelas evoluções tecnológicas. Suponha que alguém esteja dirigindo seu veículo de forma prudente e alguém pule na frente do seu carro. Pela teoria da equivalência das condições, há homicídio. A despeito da ausência de dolo ou culpa (aspectos subjetivos) da forma como isto ocorreu não há sentido em falar que há caracterização do elemento objetivo da tipicidade. Porém, a supressão do pulo da vítima não resultaria em sua morte, logo a ação é essencial para a produção do resultado e constata‐se o nexo causal. Pela teoria clássica, não há valoração das concausas, não podemos dizer que uma é mais relevante com a outra. O quarto problema é o regresso ao infinito. Não há limite para o retorno causal. O fabricante de uma arma poderia ser imputado no encadeamento de causas que produziram um homicídio. Há uma equivalência de condições que leva a uma expansão desmesurada do nexo de imputação. A escola clássica tem medo de valorar, não podendo deixar ao juiz a interpretação sobre qual causa é mais importante, por isso estabelece um critério matemático.
6.5. Neokantismo: causalidade adequada. A principal característica do sistema dogmático do neokantismo é a valoração, os valores culturais são trazidos para dentro deste sistema. Para o neokantismo, a teoria clássica carece de uma correção normativa, carece de valoração para produzir resultados mais justos, mais adequados e resolver alguns dos problemas comentados anteriormente. A relação de causa e efeito é o ponto de partida. Mas isso não basta, pelo regresso ao infinito. É preciso estabelecer um critério para determinar a causa mais relevante para a produção do resultado. O resultado tem causas e condições – causa é tudo aquilo que produz o resultado, condição é aquilo que nos interessa. Temos a chamada causalidade adequada ou adequação causal. É aquela cuja previsibilidade é patente na produção do resultado. A causa, no momento de sua realização, era previsível. Do ponto de vista do agente, é a causa adequada para a produção do resultado. Como podemos medir a previsibilidade? Como determinamos se era de se esperar que a causa produzisse o resultado? Nos valemos de um método denominado prognose objetivo‐posterior: o juiz da causa, olhando o caso em um momento posterior, se coloca no lugar do agente, no momento em que ele agiu e se pergunta se naquelas circunstâncias, com os conhecimentos especiais que detinha, era previsível ou não a produção do resultado.
O regresso ao infinito é resolvido com este método. A atira em B, matando‐o. Há relação causal. O juiz coloca‐se no lugar de A e se pergunta: ao atirar em alguém é previsível que esta pessoa vá morrer? Sim, então a causa é adequada. Agora, no caso de um vendedor de armas, é possível determinar a previsibilidade? Depende do caso concreto. É preciso determinar os conhecimentos especiais daquele agente. Se o vendedor for amigo de quem compra a arma e sabe que a pessoa tem planos de matar a sua mulher, então a venda da arma é uma causa adequada. Há em sua conduta uma relação causal. Coloca‐se um valor (normatização) para a conduta. Se alguém dá um susto em uma pessoa, e esta morre de um ataque cardíaco. Há relação causal. Há previsibilidade? Depende do caso concreto. Se quem dá o susto conhecia a priori a condição de cardíaco da vítima, então há nexo causal. O critério de valoração, assim, resolve o problema do regresso ao infinito. O problema das concausas relativmente independentes também é resolvido por este médoto. Novamente, a previsibilidade depende do conhecimento especial do agente. Em todas as teorias que partem da conditio sine qua non não é possível resolver a causalidade hipotética. A supressão mental do ato do pai da vítima que se coloca à frente do carrasco não afasta o resultado. Ainda que seja previsível que, ao apertar o botão, o condenado fosse executado, não há relação causal no sentido da teoria da equivalência de condições. Há relação causal na questão do risco permitido (condutor prudente que atropela alguém). Mas há um talvez em termos de previsibilidade, pois a definição de previsibilidade é vaga. Inerentemente, ao dirigir, o condutor coloca a vida de pessoas em risco. Outros podem afirmar que, enquanto o condutor respeita as normas, não é previsível um acidente. 28
6.6. Finalismo: Dolo ou Culpa O finalismo traz o dolo e a culpa para a tipicidade, por razões estruturalistas e ontológicas. Welzel e o finalismo respondem a questão do nexo de imputação. A etapa principal do pensamento de Welzel é a utilização do dolo e culpa nesta resposta: o nexo de imputação é determinado quando a ação causou o resultado e quando há dolo ou culpa. Devemos lembrar que Welzel não leva em conta valores culturais, portanto não discutia a relevância das causas.
O regresso ao infinito é resolvido: o vendedor da arma causou o homicídio ou não? Depende. Causalmente, sim. Só que não nos perguntaremos mais acerca da previsibilidade, mas sim se houve intenção ou imprudência por parte do vendedor. Não há nexo de imputação com respeito ao pai do homicida, pela ausência de intenção. Concausas relativamente independentes: o dolo era matar com um tiro e não com o incêndio da ambulância. Porém, a previsibilidade não faz parte do sistema de Welzel. É preciso criar uma explicação adicional na teoria, pois devemos atentar sobre a forma pela qual o agente tinha a intenção de matar a vítima. Outro exemplo: A atira em B três vezes e, por crer que B está morto, o enterra. B estava vivo, mas morreu por asfixia. Teria A intenção de matar B com tiros ou por asfixia ao enterrá‐lo vivo? A resposta da dogmática, quando muito clara, poder gerar injustiças. Mas pode ser tão complexa que acaba por dificultar a vida do intérprete. Causa hipotética: novamente, assim como as propostas anteriores, por partirem da relação causal, não resolvem esta questão. Risco permitido: o condutor prudente não seria punido por não ter dolo ou culpa, resolvendo a questão. Seria condenado pela teoria clássica. Poderia ser condenado pelo neokantismo. Mas não seria condenado pelo finalismo.
6.7. Funcionalismo: a Teoria da Imputação Objetiva Criação de risco de resultado. Risco não permitido: violação de normas de cuidado (ordenamento jurídico, regras técnicas profissionais, deveres normais de diligência), previsibilidade, utilidade social do comportamento. Reflexo do risco criado no resultado. Inclusão do resultado no âmbito de abrangência da norma de cuidado.
A nossa lei não indica nenhuma teoria em especial. No Brasil, a doutrina divide‐se entre o pensamento finalista e a teoria da imputação objetiva. O fundamento original desta teoria é o neokantismo, sua ideia básica é valorar o nexo de imputação – não qualquer valor, mas os que são importantes para o funcionamento da sociedade. Um dos critérios utilizados por Welzel era o dolo ou culpa. Roxin afirma que a consciência do agente não é relevante, a caracterização da situação é objetiva, uma relação de risco. Por isso o nome da teoria é imputação objetiva. A sociedade se explica pela teoria do risco. O segredo para determinar o funcionamento da sociedade é o nível de tolerância ao risco: queremos o mínimo de risco com o máximo de conforto (o paradoxo do risco). Um resultado só pode ser imputado a uma conduta, não se ele causa a conduta – pois se partirmos da relação causal, não conseguiremos resolver os problemas da causalidade hipotética – mas através de um critério de risco: a conduta é relevante para o direito penal sempre que criar um risco não permitido de produção do resultado (uma sofisticação do conceito de previsibilidade). Vamos desenvolver este raciocínio em etapas. Os instrumentos são menos claros para se trabalhar, mas constituem um critério dogmático que viabilize uma decisão mais justa. A teoria da imputação objetiva pressupõe quatro elementos para chegarmos à resposta sobre a existência do nexo causal: criação de risco de resultado, risco não permitido, reflexo do risco criado no resultado, o qual deve estar no âmbito de abrangência da norma de cuidado.
29
6.7.1.
Criação de risco de resultado
É preciso demonstrar que o comportamento criou o risco do resultado. Exemplo dado por Roxin: se A vê que uma velhinha vai ser atropelada por um ônibus e a empurra com o intuito de salvá‐la, porém ela cai e quebra um dente. Esta lesão corporal, embora com dolo, não criou um risco. É uma análise absolutamente objetiva: a prognose objetvo‐posterior – colocamo‐nos no lugar do agente e nos perguntamos se esta ação criou ou não criou um risco de resultado. A extinção total do risco pode derivar apenas do fim do funcionamento da sociedade. A criação de risco é apenas um primeiro requisito, é necessário, mas não é suficiente. E não é todo risco que interessa ao direito penal.
6.7.2.
Risco não permitido
É o que interessa ao direito penal. O critério para determinar se o risco criado é permitido ou não é a norma. O risco não permitido é aquele que viola as normas de cuidado. Um risco produzido dentro das normas de cuidado, mesmo que produza um resultado danoso, não há imputação de interesse do direito penal – este só há quando as normas de cuidado são violadas, quando o limite de tolerância da sociedade é ultrapassado. Se produzido um resultado dentro do risco permitido, o agente não é imputável. Se produzido um resultado fora do risco permitido, o agente é imputável. As normas de cuidado que devem ser seguidas podem ser encontradas, em primeiro lugar, no ordenamento jurídico (todos os atos expedidos pelo poder público9). Há também outras normas, fora do ordenamento jurídico, que são de cuidado – por exemplo, um médico que não esteriliza seu bisturi. Temos as regras técnicas profissionais (lex artis). Por fim, há um terceiro grupo de normas de cuidado, demasiado aberto (tudo que é vago no direito penal é demasiado perigoso), que são os deveres normais de diligência10. São regras que vêm do bom senso, que, se descumpridas, levam o agente a responder pelo resultado produzido. Se, ao dirigir, o condutor vê uma bola, deve desacelerar porque atrás de uma bola costuma vir uma criança. Esta possibilidade é suficiente para criar uma norma de cuidado? A previsibilidade11 é o primeiro critério para avaliar esta situação. Ao sair de carro na rua, é previsível que se possa gerar lesão a terceiros. A questão é determinar o grau de previsibilidade exigido. Quanto maior a previsibilidade maior a norma de cuidado. O segundo critério é a utilidade social do comportamento. O comportamento era necessário ou de utilidade social escassa? Quanto mais previsível o resultado danoso e quanto menos socialmente útil, mais se considera violada a norma de conduta. Atravessar um sinal verde: previsibilidade baixa de atropelar alguém e alta utilidade social de eu continuar seguindo e não parar (o trânsito flui). Continuar acelerando ao ver uma bola cruzando a rua: alta previsibilidade de atropelar uma criança e baixa utilidade social (não irá atrapalhar o trânsito se eu reduzir). Ao analisar estes critérios, o juiz transforma‐se em legislador, criando uma norma de cuidado ad ‐hoc. Vimos que, para o neokantismo, a previsibilidade era avaliada pelo conhecimento específico do agente. A capacidade do agente de perceber o perigo como mais ou menos previsível deve ser levada em consideração? Devemos nos perguntar se esta capacidade deve tomar como parâmetro de referência o homem médio ou o sujeito concreto da situação? E se este sujeito tiver uma capacidade menor de perceber o perigo? A maioria da doutrina, a despeito de considerável discussão, chegou ao consenso de que para identificar a previsibilidade, devo me colocar no lugar do sujeito, com seus conhecimentos especiais e, caso tenha uma capacidade maior (com respeito ao homem médio) de perceber os riscos e perigos, esta capacidade deve ser levada em consideração. Quanto maior o conhecimento, maior a norma de cuidado. IMPORTANTE: se há uma incapacidade de compreensão ou de conhecimento, a doutrina majoritária afirma ser exigível a norma de cuidado, porém é possível desculpá‐lo. Neste caso, não se trata de uma questão de tipicidade, mas sim de 9 Sempre
que eu for exercer uma atividade arriscada, eu preciso conhecer as normas de cuidado daquela atividade. Não é possível conhecer todos os atos expedidos pelo poder público. 10 O resultado esperado era previsível e a cessação da conduta não era uma exigência insuportável. 11 Roxin elabora a previsibilidade proposta pelo neokantismo.
30
culpabilidade. O nexo de imputação continua existindo. A pessoa média é utilizada como parâmetro de referência quando a capacidade do agente de perceber o perigo é menor.
6.7.3.
Reflexão do risco não permitido criado no resultado
A questão seguinte é: basta não cumprir uma norma de cuidado para que se tenha um crime? Não é preciso apenas criar um risco não permitido. É preciso que tal risco não permitido causado esteja refletido no resultado. Se eu estivesse dentro/fora do risco permitido, este resultado aconteceria? É um pensamento muito próximo da teoria da conditio sine qua non. Só há imputação se o resultado foi causado pelo risco não permitido. Se for possível demonstrar que o resultado seria causado dentro do risco permitido, não há imputação. Por exemplo, é necessário demonstrar que a morte de um paciente foi causada pelo uso de um bisturi não esterilizado (violação de dever normal de diligência): se o paciente morresse mesmo se o médico usasse um bisturi esterilizado, não há imputação. O crime é violar a norma de conduta e causar um resultado por isso. Qual a diferença deste raciocínio para a da conditio sine qua non? Todas as teorias partem do nexo causal. Aqui, o ponto de partida é a criação de um risco não permitido.
6.7.4. Inclusão do Resultado no Âmbito de Abrangência da Norma de Cuidado Suponhamos que eu esteja dirigindo um carro em alta velocidade e passo próximo a uma idosa que, ao tentar se afastar do carro, dá um pulo e morre de um ataque cardíaco. Temos a criação de um risco não permitido com reflexo no resultado. Para evitar o alargamento da imputação, o risco não permitido deve ter causado um resultado dentro do âmbito de abrangência da norma de cuidado. O juiz deve considerar a norma de cuidado que foi violada e se perguntar: quais eram os resultados lesivos que esta norma desejava evitar? No exemplo dado, ao estabelecer a velocidade máxima permitida, que tipo de situação a norma deseja evitar (acidentes de trânsito)? Estaria dentro do âmbito de situações que ela deseja evitar que uma idosa morresse de ataque cardíaco por conta de um susto? Um exemplo dado por Roxin é o de dois carros A e B em uma rodovia, ambos sem farol com A dirigindo atrás de B. Um terceiro carro C vem na contramão e causa um acidente, no qual todos em B e C morreram. Analisemos o comportamento de A: há um comportamento humano, voluntário que produz um resultado, há criação de um risco não permitido que gerou o resultado. A acusação pode afirmar que se A estivesse com o farol ligado faria com que B visse C. Qual a norma de cuidado que foi violada? Andar de farol aceso. Esta norma existe para você se identificar e não iluminar as coisas para os outros verem. Assim, A não pode ser imputado porque o resultado não se incluía no âmbito de abrangência da norma de conduta que se lhe aplicava. O âmbito de abrangência de uma norma de resultado embasada no princípio da precaução é infinito. Se os quatro elementos discutidos não forem encontrados cumulativamente, não há nexo de imputação.
6.8. Adequação típica Elementos do tipo penal: descritivos e normativos. Elementos normativos de ilicitude. Classificação dos tipos penais. Tempo de consumação: instantâneos e permanentes. Autonomia: autônomos e acessórios. Plurarilidade de comportamentos: uninuclear e polinuclear. Descrição da conduta: ação livre e ação vinculada. Reiteração de condutas: ação única e crime habitual. Bem jurídico protegido: simples e pluriofensivo. Completude: completos e incompletos. Tipos penais incompletos: norma penal em branco (própria e imprópria) e norma penal em branco ao contrário.
Vamos tentar classificar os elementos dos tipos penas e os próprios tipos penais. “Matar” alguém: matar é um elemento, assim como “alguém”. Os elementos podem se dividir, de forma geral, em descritivos e normativos. 31
Um elemento descritivo de um tipo penal é aquele que não demanda grande juízo de valor ou esforço hermenêutico para compreender seu significado, chegando a ser praticamente autoexplicáveis. Em contrapartida, um elemento normativo demanda uma análise interpretativa. Exemplo: CP, art. 140 – crime de injúria, art. 233 – ato obsceno. Dentre os elementos normativos, encontramos os chamados elementos normativos de ilicitude. Exemplo: CP, art. 153 – divulgar sem justa causa conteúdo de documento particular. O juiz deve decidir sobre a licitude (justo ou injusto) ao mesmo tempo em que responde a pergunta sobre o ato ser típico ou não – análise da antijuridicidade simultânea à análise da tipicidade. Na prática, esta classificação é importante em hipóteses de erro. Os tipos penais podem ser classificados de acordo com alguns critérios. Aqui há critérios extremamente diversos conforme o autor utilizado. O que importa é buscar as classificações que sejam importantes para resolver problemas práticos. O primeiro critério é o tempo de consumação: há crimes instantâneos e crimes permanentes. O tempo do crime instantâneo é rápido. O tempo do crime permanente se alonga, é um crime de gerúndio, que está acontecendo. A lei que vale para o crime permanente é a vigente no momento da cessação da permanência do crime. Outra importância prática é relativa à prescrição. A prescrição do crime permanente inicia‐se a partir do momento da cessação da permanência. Um fator adicional é a questão da prisão em flagrante. Para um crime permanente, a prisão em flagrante pode ocorrer a qualquer momento durante a permanência do crime. Não devemos confundir o crime permanente com o crime instantâneo de efeitos permanentes (ex. homicídio)12. A segunda classificação importante é quanto à autonomia. Há os crimes principais ou autônomos e os crimes acessórios. O crime principal não precisa de outro para existir. O crime acessório só pode existir, só pode ser verificado em decorrência de outro. Um exemplo de crime acessório é o de receptação (art. 180) – sujeito que compra um produto que é fruto de crime anterior. Outro crime acessório clássico é o de lavagem de dinheiro (ocultação de dinheiro proveniente de um crime). Ainda, podemos ter um tipo penal de ação única ou uninuclear (descreve um único comportamento) ou de ação múltipla ou plurinuclear (descreve mais de um comportamento, várias condutas, ex. tráfico de drogas). O crime qualificado é uma técnica de redação do tipo penal. Trata‐se de um tipo penal diverso. Quanto à descrição da conduta, há o crime de ação livre e o crime de ação vinculado. No crime de ação livre, o legislador praticamente descreve o resultado, explicitando sua proibição. O exemplo clássico é o homicídio: é proibido causar a morte de alguém, não importa o modo. O comportamento não é descrito com detalhes. Aqui surgem os problemas de imputação objetiva, pois é preciso determinar qual a causa efetivamente relevante para o resultado. O crime de ação vinculada é aquele em que o legislador escreve como muito mais precisão e detalhe o comportamento. Exemplo: CP, art. 136. Quanto à reiteração de condutas, temos o crime de ação única ou de conduta única e o crime habitual. O crime de ação única configura‐se quando uma conduta é praticada uma única vez para consumá‐lo. O crime habitual em sua redação requer uma habitualidade, uma reiteração de comportamento – uma única ocorrência não chama a atenção do direito penal. Exemplo: CP, art. 284 – curandeirismo. No caso do mensalão foi discutido o crime de gestão fraudulenta – seria este um crime de ato único ou habitual? Gestão é um ato único ou habitual? Quanto ao bem jurídico protegido, temos o crime simples e o crime pluriofensivo. O crime simples é aquele que afeta um único bem jurídico (homicídio, furto, lesão corporal). Um tipo pluriofensivo é o que afeta vários bens jurídicos (extorsão mediante sequestro, latrocínio). Quanto à completude, integralidade do tipo penal, temos os tipos penais completos e incompletos. O tipo penal completo é aquele no qual todos os elementos são descritos de maneira íntegra, não é necessário de 12 Se
o criminoso sequestrou uma criança e a inseriu em outra família, a permanência do crime dura até que aquela pessoa descubra que tenha sido sequestrada. Outro exemplo: fraude do INSS – se alguém morre e outra pessoa apresenta documentação falsa e percebe os proventos de aposentadoria por vários anos, trata‐se de um crime instantâneo (de falsidade ideológica) de efeitos permanentes OU um crime permanente (o uso do documento falso se estende por todo o período). Esta discussão chegou ao STF, cuja jurisprudência atual é a de que, se a falsificação é em favor próprio, trata‐se de um crime permanente; se em nome de terceiros, é um crime instantâneo de efeitos permanentes.
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nenhuma instância, pessoa ou autoridade que precise completar os elementos, que podem ser integralmente apreendidos na primeira leitura. O tipo penal incompleto é aquele em relação uma das partes está em branco, sendo necessário procurar informações em outro lugar para que sua integralidade seja compreendia. O preceito primário (comportamento) ou o secundário (pena) estão em branco. Temos duas espécies de tipos penas incompletos. Na norma penal em branco, o preceito penal primário está em branco, a descrição da conduta proibida. Temos a norma penal em branco imprópria e própria. Uma norma penal em branco imprópria é quando quem preenche o tipo penal, dando a informação que lhe falta, é uma lei da mesma hierarquia da lei penal. Exemplo: crime de peculato – o próprio código penal define o que é funcionário público (art. 324). A norma penal em branco própria, problemática e complicada, ocorre quando o legislador delega a uma instância administrativa o preenchimento da norma penal – é o caso da lei de drogas, no qual um órgão do Poder Executivo irá dizer o que é droga. Nestes casos, o legislador tem que ter muito cuidado, pois o excesso pode afetar o principio da legalidade (cf. discussão sobre taxatividade). Até mesmo é possível criar um direito penal estadual ou municipal dependendo da forma de delegação. Na norma penal em branco ao contrário é o preceito secundário que está em branco. Exemplo: genocídio – a pena é a mesma prevista para o homicídio qualificado. A delegação é legislativa e não para uma instância administrativa, por isso é sempre imprópria.
6.9. Elementos subjetivos da tipicidade: dolo e culpa Desde Welzel, a identificação de um comportamento não depende dos quatro elementos anteriores apenas. É preciso entrar na mente do agente e identificar um aspecto subjetivo: o dolo13 e a culpa. Trataremos destes conceitos no contexto do finalismo.
6.9.1.
Dolo
Teoria da vontade. Teoria da representação. Teoria do assentimento ou do consentimento. Dolo direto de primeiro e de segundo grau. Dolo eventual. Momento do dolo.
Praticamente todos os crimes são dolosos no nosso sistema. A punição por imprudência é exceção, só aparecendo quando o crime também é punível na sua forma dolosa. A estrutura do crime doloso: como qualquer outro crime, possui um aspecto objetivo (conduta, resultado, nexo de imputação, adequação típica) e um aspecto subjetivo (dolo). A pergunta aqui: o que é o dolo? Este é explicado pela teoria da vontade: dolo é a intenção de produzir um resultado. Esta teoria produz alguma dificuldade na caracterização de comportamentos dolosos, não contemplando o dolo eventual (ex. o sujeito que assume o risco de matar alguém conscientemente). Por conta disso, criou‐se outra teoria – a teoria da representação – que afirma que não importa se o agente quis ou não o resultado, e sim se o agente conhecia ou sabia que estava produzindo um risco não permitido. Se o resultado acontecer, então é doloso. Assim, o dolo eventual é agregado ao conceito de dolo. Porém, esta teoria torna‐se ampla demais, caracterizando como doloso outro comportamento: suponhamos que um indivíduo está dirigindo na rodovia e quer ultrapassar alguém em uma curva, confiando em sua habilidade e destreza, e, errando em sua análise, provoca um acidente e mata alguém. Neste caso, a situação se aproxima mais de dolo ou culpa? Veja que não há desejo de produzir o resultado, não há indiferença em relação ao bem jurídico, há uma certeza, ainda que equivocada, que o bem jurídico não será afetado. Este é o caso de culpa consciente. Pela teoria da representação, serão considerados como crime doloso tanto o dolo eventual quanto a culpa consciente, situações muito diferentes; em especial esta última, do ponto de vista de política criminal, não tenha a mesma gravidade. Surge uma terceira teoria, a teoria do assentimento ou do consentimento: o crime é doloso quando representa ou há percepção da criação de um risco de afetar um bem jurídico e consentimento com respeito a 13 O
dolo trazido para a tipicidade pelo finalismo é apenas a vontade de praticar o ilícito – dolo natural . A consciência permanece na culpabilidade como potencial consciência do ilícito, ao lado da imputabilidade e a inexigibilidade de conduta diversa.
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este risco, violando uma norma de cuidado. Você percebe que viola uma norma de cuidado, no entanto, você concorda com a possibilidade do resultado. No art. 18, I, o Código Penal adota tanto a teoria da vontade quanto a do consentimento14. Vamos às classificações do dolo. Há o dolo direto e o dolo eventual. O dolo direito é a intenção de produzir um resultado. Mas este querer tem dois graus. O dolo direto de primeiro grau é constituído de um elemento cognitivo e um elemento volitivo – neste caso, sei que o meu comportamento gerará um resultado e o objetivo principal era causar aquele resultado. Suponhamos, agora, que um agente queira matar o Presidente da República, que viajava em um avião com outras pessoas. Se o resultado é produzido, o dolo direto com respeito ao Presidente da República é de primeiro grau. Com respeito aos demais, o dolo direto é de segundo grau, porque, embora o elemento cognitivo seja tão intenso quando o anterior, o mesmo não ocorre com o elemento volitivo. O resultado é consequência necessária do plano imediato, é um efeito secundário, colateral necessário para a consecução do objetivo. Esta distinção tem relevância meramente doutrinária. O dolo eventual é algo ainda muito discutido na doutrina e de difícil comprovação na prática. A ideia é a seguinte: há um elemento cognitivo com respeito ao conhecimento da produção de um risco não permitido. O elemento volitivo, porém, é ainda mais fraco do que o dolo direto de segundo grau. O resultado não é desejado. Não há segurança de que ele irá acontecer ou não. Não há desejo nem segurança a respeito da afetação do bem jurídico. Se a percepção da criação de risco é acompanhada de segurança de que o resultado não seria produzido, então não é dolo eventual e sim culpa. Imaginem um crime onde há diversas fases: cogitação, atos preparatórios, depois a execução, o fim da execução e o resultado. Em qual destas fases o dolo deve estar presente para que tenha efeito? O dolo na cogitação ou no ato preparatório é irrelevante (dolo antecedente). A partir da execução, se houver dolo, então este passa a ser relevante, independente de acabar em outra etapa. Se o dolo acontece depois do fim da execução (dolo subsequente) não é irrelevante. Só importa o dolo se ele aconteceu durante a execução, no começo ou no meio. Pode ocorrer de a execução começar sem dolo, ainda assim sendo relevante. O momento do dolo é durante a execução.
6.9.2.
Culpa
Admissibilidade de crime culposo apenas com previsão expressa no tipo penal. Negligência, imprudência e imperícia. Crime culposo de perigo. Culpa consciente. Culpa inconsciente. Crime preterdoloso.
Código Penal, art. 18, II: negligência, imprudência, imperícia. O tipo penal foi produzido porque uma norma de cuidado foi violada. Um risco não permitido de resultado foi criado. O paradigma de crime até os anos 1940 era o crime doloso, com o sujeito de personalidade ruim que desejava o resultado. Quando começam a figurar no direito penal crimes ambientais, contra o consumidor, de gestão temerária de instituições financeiras, o legislador leva em conta comportamentos desidiosos. O crime culposo só é admitido se previsto expressamente no tipo penal. A doutrina procura diferenciar negligência, imprudência e imperícia:
Negligência: a norma de cuidado é violada por omissão; Imprudência: o sujeito violou a norma de cuidado por ação;
Crime doloso Art. 18 ‐ Diz‐se o crime: I ‐ doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi‐lo; Crime culposo II ‐ culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. Parágrafo único ‐ Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente. 14
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Imperícia: o sujeito não tinha o conhecimento técnico para atuar e, por isso, violou a norma de cuidado.
Havendo nexo de imputação entre a conduta e o resultado, ainda assim a punição é aplicável a título de culpa. Comportamento, resultado, nexo de imputação e adequação típica – se cumpridos estes quatro requisitos objetivos, houve violação de dever de cuidado. Existe crime culposo de perigo? Sim – ver a previsão para o crime de envenenamento de água na modalidade culposa. Há duas espécies de culpa: consciente e inconsciente.
Culpa consciente. Há comportamento, resultado, nexo de imputação e adequação típica. O elemento subjetivo é a ciência do agente acerca da criação de um risco não permitido de resultado, porém, tendo certeza que, por uma qualidade, destreza ou sorte especial a ele, o bem jurídico não será afetado. Exemplo: para o crime de homicídio culposo, precisamos nos colocar no lugar do agente. Se houve intenção de matar, temos dolo direto. Porém, o sujeito poderia ter percebido que estava criando o risco de matar alguém, não desejava sua morte, e não tinha certeza da produção do resultado. Neste caso, teríamos o dolo eventual . Objetivamente, a culpa consciente é a mesma coisa que o dolo eventual, no entanto, há na culpa consciente a certeza de que alguém não seria morto. A diferença essencial entre dolo eventual e culpa consciente é que neste, há a certeza, mesmo que equivocada, de que o resultado não será produzido. É a diferença sobre tomar a decisão de afetar um bem jurídico ou não. Intimamente, não há decisão contra o bem jurídico. A gradação de risco não permitido – dependendo da quantidade de normas de cuidado violadas – pode ser levada em conta para definir os limites desta certeza. Assim, a certeza ou não pode ser presumida. Culpa inconsciente. A diferença com respeito à culpa consciente está no elemento subjetivo. O sujeito cria o risco não permitido, viola o dever de cuidado, mas sequer percebe que o fez. É possível punir alguém sem nenhum nexo psicológico com o resultado? Sim, essa é a posição do legislador e da doutrina. Por que tais categorias são criadas pela dogmática? Para trabalhar a região fronteiriça entre dolo eventual e culpa consciente, com consequências práticas relevantes. Ainda no estudo da tipicidade subjetiva, temos crimes que não são dolosos nem culposos, são os crimes preterdolosos. Consideremos o parágrafo 3º do art. 129 do CP. Lesão corporal
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena ‐ detenção, de três meses a um ano. (...) Lesão corporal seguida de morte
§ 3° Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quís o resultado, nem assumiu o risco de produzí ‐lo: Pena ‐ reclusão, de quatro a doze anos.
Assim crime preterdoloso é o se inicia doloso mas tem um resultado intensificado além da intenção do agente, que acontece a título de culpa. Há dolo no antecedente e culpa no consequente. Devemos levar em conta o art. 19 do Código Penal: Agravação pelo resultado
Art. 19 ‐ Pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente.
Resumindo: todos os crimes têm os quatro elementos objetivos (conduta, resultado, nexo de imputação e adequação típica). Posto isso, devemos entrar na cabeça do indivíduo a fim de determinar se há dolo, culpa ou preterdolo. Nos crimes dolosos, há alguns tipos penas que, além do dolo, exigem um elemento subjetivo especial – dolo específico. Para que se configurem, agrega‐se outro motivo, finalidade ou objetivo para além do dolo. Por exemplo, crime de extorsão mediante sequestro: cercear ou constranger a liberdade de alguém com o 35
intuito de obter alguma vantagem a título de resgate. Percebemos claramente neste crime o elemento especial,
que não precisa se realizar na prática, bastando que se demonstre sua existência subjetiva, isto é, que havia a intenção. O ato é considerado consumado, mesmo apenas com a intenção relacionada ao elemento especial. A concretização da intenção é irrelevante para a caracterização do tipo.
Resumo do semestre: A missão do direito penal é a proteção de bens jurídicos fundamentais à dignidade da pessoa humana, dentro de limites que contenham excessos que violem exatamente o que se deseja proteger, havendo uma tensão dialética constante. Com este pano de fundo, estudamos a teoria do delito, que identifica as características que fazem com que um comportamento seja considerado típico, com a tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. Matéria para a prova final: Capítulos 2, 8, 9,10, 13, 14, 16, 17, 18 e 19 do Tratado de Direito Penal do Cezar Roberto Bittencourt.
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Evolução histórica da dogmática penal. Escolas Penais. Antiguidade e Idade Média Penas arbitrárias e desproporcionais. Lapsos de racionalidade: a lei de talião como garantia mínima do indivíduo e manifestação primitiva do princípio da proporcionalidade. Idade Moderna Fragmentação do poder do período medieval. Processo gradual de distinção entre os poderes religioso, jurídico e político. Inicia‐se a sistematização legal, ainda inicipiente. Penas ainda desproporcionais nas Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas. Século XVIII Teorias sobre a legitimidade do poder. Contrato social de Rousseau. Prevalência do Legislativo. Desconfiança do juiz, que é limitado a ser "a boca da lei". Surgimento do direito natural como resposta aos anseios da burguesia, receosa de controle arbitrário pela maioria e interessada na tutela da propriedade. Rechaço às práticas absolutistas e penas mais humanas (códigos penais mais racionais). Pena como intimidação. Clássicos ‐ Precursores e Cesare Beccaria e "Dos Delitos e Das Penas" como manifesto político e precursor dos clássicos, enuncia o princípio da Contratualistas legalidade e defende o princípio da proporcionalidade e a racionalização do contrato social. Posteriormente, Feuerbach desenvolve a teoria da pena, que passa a ter função social (coação psicológica, teoria da prevenção geral negativa) e motivação política. Clássicos ‐ Racionalismo Insegurança no contrato social. Os fundamentos passam a ser os imperativos categóricos. O justo deve ser conhecido Categórico pelo método lógico‐racional e a pena deve ser calculada como retribuição justa pela prática do crime. Este processo racional, independente da sociedade e do momento histórico, aproxima‐se da legislação perfeita. Defensores: Carrara, rossi e Joaquim Augusto de Camargo. Pena como retribuição. O problema ético do utilitarismo penal. Relevância ao longo do século XIX. Crítica ao Direito Penal Cálculo racional como instrumento da elite. Indemonstrabilidade da existência dos imperativos categóricos. Categórico Impossibilidade de demonstrar a existência do livre arbítrio (base da teoria da pena como retribuição). Positivismo Naturalista Crise do Estado liberal no início do século XX. August Comte sugere a abordagem das ciências naturais para a construção das ciências sociais. Culto ao método científico. Contrato social é inseguro e valores absolutos não existem: foco no criminoso (surge a Criminologia). Teoria da prevenção especial positiva e negativa: pena como tratamento para ressocialização. Expoentes: Lombroso, Ferri e Garofalo. Crítica ao Positivismo Naturalista Dúvida sobre a determinação científica da medida da pena: casos extremos como cleptomaníacos e crimes políticos. Determinação da ressocialização pela ciência. Problema ético: exigência de comportamento versus imposição de valores. Contradição: ressocialização através do isolamento. Reincidência. Sistema Liszt‐Beling Limites à ciência pelo juiz e pelo legislador. Lei como garantia do criminoso. Teoria do delito: tipicidade, antijuridicidade (causa de justificação na lei) e culpabilidade (dolo, culpa, imputabilidade). Neokantismo Limitações da ciência. Necessidade de valoração. Valores sociais como guia para o legislador. Dogmática como guia para o intérprete. Normatização da teoria do delito. Presunção de inocência na tipicidade. Presunção de culpa na antijuridicidade. Antijuridicidade material: ausência de ofensividade social. Culpabilidade: imputabilidade, dolo normativo e inexigibilidade de conduta diversa (com base nos valores culturais vigentes). Expoente: Mezger. Crítica ao Neokantismo Dificuldade de constatar os valores sociais vigentes. Caráter etéreo das bases de valoração. Lógica inabalável que viabiliza sistemas totalitários. Finalismo Contexto histórico: busca por segurança e estabilidade, constitucionalismo, direitos humanos. Pensamento estruturalista. Elementos comuns em todas as sociedades. Perspectiva ontológica de Welzel. Ações finais. Aspectos objetivo e subjetivo (dolo natural) da tipicidade. Culpabilidade: imputabilidade, potencial consciência do ilítico, inexigibilidade de conduta diversa (poder de atuar de outro modo). Expoente: Welzel. Crítcia ao Finalismo Impossibilidade de demonstrar o livre arbítrio. Imprudência inconsciente. Sociedade do Risco Inovações e riscos. Características dos riscos: procedência humana, magnitude do potencial lesivo, democratização (efeito bumerangue) e sensação de proximidade. Paradoxo do Risco. O legislador como gestor primário de riscos. Politização do judiciário. Direito Penal Contemporâneo Natureza preventiva: crimes de perigo x crimes de resultado. Imprecisão. Proteção de bens jurídicos coletivos. Expansividade. Questão: direito penal para a sociedade de risco. Escola de Frankfurt (Garantismo) Expoentes: Hassemer e Naucke. Caráter mínimo do direito penal (núcleo duro). Direito de intervenção: flexível e dinâmico. Crítica: corte social. Abolicionismo Expoentes: Hulsmann e Nils Christie. Direito penal inútil, ao proteger um bem jurídico lesa outros bens jurídicos. Crítica: eliminação de garantia do criminoso, perda da institucionalização da vingança, falta de proposta alternativa. Funcionalismo Base: neokantismo. Valores funcionais. Funcionalismo radical (Jakobs): proteção de expectativas contra frustrações que gerem desfuncionalidade (qualquer tipo de sociedade). Crítica: imprecisão dos valores funcionais, direito penal do inimigo. Funcionalismo teleológico (Roxin): opção política pelo Estado Democrático de Direito, máxima proteção e mínima restrição à dignidade da pessoa humana. Aplicação da pena: previsão pelo legislador (prevenção geral), determinação pelo julgador (retribuição), execução (prevenção especial) ‐ retribuição como limitante da prevenção geral e da especial.