1. Fundamentação teórica: conceituação e delimitação Maria Cecilia Mollica
Lingüística e Sociolingüística A Sociolingüística Sociolingüís tica é uma das subáreas da Lingüística e estuda estud a a língua em uso no seio das comunidades de fala, voltando a atenção para um tipo de investigação que correlaciona aspectos lingüísticos e sociais. Esta ciência se faz presente num espaço interdisciplinar, interdisciplinar, na fronteira entre língua e sociedade, focalizando precipuamente os empregos lingüísticos concretos, em especial os de caráter heterogêneo.
A heterogeneidade como foco Todas as línguas apresentam um dinamismo inerente, ineren te, o que significa dizer que elas são heterogêneas. Encontram-se Encontram-se assim formas distintas que, em princípio, se equivalem semanticamente semanticamente no nível do vocabulário, da sintaxe e morfossinta morfossintaxe, xe, do subsistema fonético-fonológico e no domínio pragmático-discursivo. O português falado no Brasil está repleto de exemplos. No sul do país, o pronome “tu” é o tratamento preferido quando o falante interage com o ouvinte, encontrando-se em menor escala em outras regiões e evidenciando uma diferenciação geográfica, em que os pronomes de tratamento distribuem-se em sistemas variacionais diferentes. A presença de marcas de concordância nominal e verbal como em “o s estudos sociolingüístico s” e “eles estudam Sociolingüística” em geral alterna-se com a possibilidade de ocorrência de enunciados em que tais marcas estão ausentes: “os estudo ∅ sociolingüístico ∅”, ramengo”, “eles estuda∅ Sociolingüística”. A realização de “f r a mengo”, “andano”, “∅tá”, “fala∅”, “paia” é encontrada no português do Brasil coexistindo com “flamengo”, “andando”, “está”, “falar”, “palha”. Construções sintáticas como “eu vi ele ontem”, “nós fomos no Maracanã”, “é o tipo de matéria que eu não gosto dela”, “a ela a é muito difícil” estão presentes no português do Brasil (PB), alternando Lingüística, el com os equivalentes semânticos “eu o vi ontem”, “nós fomos ao Maracanã”, “é o tipo de matéria de que eu não gosto”, gosto” , “a Lingüística é muito difícil”. Esses são alguns exemplos que ilustram a variabilidad variabilidadee lingüística, presente em todas as línguas naturais naturais humanas. A Sociolingüística Sociolingüística considera em especial especial
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como objeto de estudo exatamente a variação, entendendo-a como um princípio geral e universal, passível de ser descrita e analisada cientificamente. Ela parte do pressuposto de que as alternâncias de uso são influenciadas por fatores estruturais e sociais. Tais fatores são também referidos como variáveis independentes, no sentido que os usos de estruturas lingüísticas são motivados e as alternâncias configuram-se por isso sistemáticas e estatisticamente previsíveis.
Áreas de interesse da Sociolingüística São muitas as áreas de interesse da Sociolingüística: contato entre as línguas, questões relativas ao surgimento e extinção lingüística, multilingüismo, variação e mudança constituem temas de investigação na área. O fenômeno da diversidade lingüística em cada sistema é diferente do que entendemos por multilingüismo. Um país pode conviver com mais de uma língua, como é o caso do Brasil: somos plurilingües, pois, além do português, há em nosso território cerca de 180 línguas indígenas, de comunidades étnicoculturalmente diferenciadas, afora as populações bilingües que dominam igualmente o português e línguas do grupo românico, anglo-germânico e eslavo-oriental, como em comunidades multilingües português/italiano, português/espanhol, português/ alemão, português/japonês. A lingüística volta-se para todas as comunidades com o mesmo interesse científico e a Sociolingüística considera a importância social da linguagem, dos pequenos grupos sócio-culturais a comunidades maiores. Se cada grupo apresentasse comportamento lingüístico idêntico, não haveria razão para se ter um olhar sociolingüístico da sociedade. O papel da mudança lingüística é fundamental para os estudos sociolingüísticos. Os problemas teóricos envolvidos referem-se aos processos de encaixamento, avaliação e implementação. Antes de tudo, o lingüista deve compreender como se caracteriza uma determinada variação de acordo com as propriedades da língua, verificar seu status social positivo ou negativo, entender o grau de comprometimento do fenômeno variável no sistema e determinar se as variantes em competição acham-se em processo de mudança, seja no sentido de avanço, seja no de recuo da inovação. Em última análise, deve definir se o caso é de variação estável ou de mudança em progresso, conceitos explicitados e ilustrados em alguns capítulos deste livro.
Variantes e variáveis A variação lingüística constitui fenômeno universal e pressupõe a existência de formas lingüísticas alternativas denominadas variantes. Entendemos então por
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variantes as diversas formas alternativas que configuram um fenômeno variável, tecnicamente chamado de variável dependente. A concordância entre o verbo e o sujeito, por exemplo, é uma variável lingüística (ou um fenômeno variável), pois se realiza através de duas variantes, duas alternativas possíveis e semanticamente equivalentes: a marca de concordância no verbo ou a ausência da marca de concordância. Uma variável é concebida como dependente no sentido que o emprego das variantes não é aleatório, mas influenciado por grupos de fatores (ou variáveis independentes) de natureza social ou estrutural. Assim, as variáveis independentes ou grupos de fatores podem ser de natureza interna ou externa à língua e podem exercer pressão sobre os usos, aumentando ou diminuindo sua freqüência de ocorrência. Vale frisar que o termo “variável” pode significar fenômeno em variação e grupo de fatores. Estes consistem nos parâmetros reguladores dos fenômenos variáveis, condicionando positiva ou negativamente o emprego de formas variantes. As variantes podem permanecer estáveis nos sistemas (as mesmas formas continuam se alternando) durante um período curto de tempo ou até por séculos, ou podem sofrer mudança, quando uma das formas desaparece. Neste caso, as formas substituem outras que deixam de ser usadas, momento em que se configura um fenômeno de mudança em progresso. Cabe à Sociolingüística investigar o grau de estabilidade ou de mutabilidade da variação, diagnosticar as variáveis que têm efeito positivo ou negativo sobre a emergência dos usos lingüísticos alternativos e prever seu comportamento regular e sistemático. Assim, compreende-se que a variação e a mudança são contextualizadas, constituindo o conjunto de parâmetros um complexo estruturado de origens e níveis diversos. Vale dizer, os condicionamentos que concorrem para o emprego de formas variantes são em grande número, agem simultaneamente e emergem de dentro ou de fora dos sistemas lingüísticos. A partir de um esquema geral, uma classificação da natureza dos fatores atuantes na variação configura-se como se segue. No conjunto de variáveis internas, encontram-se os fatores de natureza fono-morfo-sintáticos, os semânticos, os discursivos e os lexicais. Eles dizem respeito a características da língua em várias dimensões, levando-se em conta o nível do significante e do significado, bem como os diversos subsistemas de uma língua. No conjunto de variáveis externas à língua, reúnem-se os fatores inerentes ao indivíduo (como etnia e sexo), os propriamente sociais (como escolarização, nível de renda, profissão e classe social) e os contextuais (como grau de formalidade e tensão discursiva). Os do primeiro tipo referem-se a traços próprios aos falantes, enquanto os demais a características circunstanciais que ora envolvem o falante, ora o evento de fala. Neste livro, aprofundam-se as questões relativas ao comportamento dos grupos de fatores com relação a fenômenos variáveis ou em mudança. Alguns capítulos destinam-se a detalhar didaticamente os aspectos concernentes a algumas
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das variáveis independentes possíveis que contextualizam os fenômenos variáveis. No entanto, a complexidade dos condicionamentos da variação não permite a previsão de todos os tipos de agentes correlacionados às variantes lingüísticas. A explicação didática do efeito das variáveis independentes (ou grupo de fatores) é um artifício aqui utilizado que não reflete evidentemente a atuação simultânea da rede de fatores que interage na variação lingüística.
A contraparte fixa da língua, heterogeneidade e unidade Todo sistema lingüístico encontra-se permanentemente sujeito à pressão de duas forças que atuam no sentido da variedade e da unidade. Esse princípio opera por meio da interação e da tensão de impulsos contrários, de tal modo que as línguas exibem inovações mantendo-se, contudo, coesas: de um lado, o impulso à variação e possivelmente à mudança; de outro, o impulso à convergência, base para a noção de comunidade lingüística, caracterizada por padrões estruturais e estilísticos. Assim, as línguas apresentam as contrapartes fixa e heterogênea de forma a exibir unidade em meio à heterogeneidade. Note-se que isso só é possível porque a dinamicidade lingüística é inerente e motivada. Prova-se como é equivocado o conceito estruturalista de variantes livres, ao ser demonstrado que a variação é estruturada de acordo com as propriedades sistêmicas das línguas e se implementa porque é contextualizada com regularidade. Por isso, a variação lingüística pode ocorrer nos eixos diatópico e diastrático. No primeiro, as alternâncias se expressam regionalmente, considerando-se os limites físico-geográficos; no segundo, elas se manisfestam de acordo com os diferentes estratos sociais, levando-se em conta fronteiras sociais. Assim, tradicionalmente, concebe-se uma ecologia lingüística do ponto de vista horizontal, com a constituição de comunidades geográficas com base em marcadores regionais; e do ponto de vista vertical, com a geração de padrões por meio de indicadores sociais. A recorrência da atuação de parâmetros condicionadores resulta na sistematicidade da variação de tal modo que se originam padrões preditivos mensuráveis probabilisticamente. A tradição dialetológica discretizou consideravelmente os padrões sociolingüísticos, distinguindo de forma rígida variedades como “padrão culto”, “padrão popular” e “falar regional”. Note-se que, além de traços descontínuos, identificados nos pólos rural e urbano, devem ser levados em conta recursos comunicativos próprios de discursos monitorados e não monitorados. O grau de isolamento geográfico e social concorre para a gama de traços que definem uma estratificação descontínua, assim como as relações sociais, as características das redes sociais e o grau de relação do falante ao meio. São considerados
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também os estilos formais e informais na fala e na escrita em conformidade com o controle e o monitoramento da produção lingüística, além do plano da enunciação e de considerar-se o grau diferenciado de envolvimento dos falantes nos diversos gêneros discursivo-textuais. Desse modo, incorporam-se questões como a escolha do estilo que se impõe ao falante para acomodar-se ao seu interlocutor, o apoio contextual na produção dos enunciados, o grau de complexidade cognitiva exigida no tema e a familiaridade do falante com a tarefa comunicativa realizada. Qualquer que seja o eixo, diatópico/geográfico, diastrático/social, ou de outra ordem, a variação é contínua e, em nenhuma hipótese, é possível demarcaremse nitidamente as fronteiras em que ela ocorre. É preferível falar em tendências a empregos de formas alternantes motivadas simultaneamente por condicionamentos diversos.
Sistematicidade, legitimidade e estigmatização Numa perspectiva científica, cabe assinalar que todas as manifestações lingüísticas são legítimas e previsíveis, ainda que exista flutuação estatística. Embora os julgamentos de valor não se apliquem, os padrões lingüísticos estão sujeitos à avaliação social positiva e negativa e, nessa medida, podem determinar o tipo de inserção do falante na escala social. Estigmatização lingüística e mobilidade social constituem temas de interesse aos sociolingüistas. Em princípio, estruturas de maior valor de mercado que recebem avaliação positiva parametrizam-se com grau alto de monitoramento e de letramento. Maior sensibilidade, percepção e planejamento lingüístico são, via de regra, pré-condição à produção das formas de prestígio e disposição adequada para eliminarem-se estigmas sociolingüísticos na fala ou na escrita. Os sociolingüistas têm-se voltado para a análise dessas relações, e o preconceito lingüístico tem sido um ponto muito debatido na área, pois ainda predominam as práticas pedagógicas assentadas em diretrizes maniqueístas do tipo certo/errado, tomando-se como referência o padrão culto. As línguas, em geral, apresentam uma diversidade que se distribui em continuum, da qual o falante adquire primeiro as variantes informais e, num processo sistemático e paulatino, pode vir a apropriar-se de estilos e gêneros mais formais, aproximandose das variedades cultas e da tradição literária. Toda língua portanto apresenta variantes mais prestigiadas do que outras. Os estudos sociolingüísticos oferecem valiosa contribuição no sentido de destruir preconceitos lingüísticos e de relativizar a noção de erro, ao buscar descrever o padrão real que a escola, por exemplo, procura desqualificar e banir como expressão lingüística natural e legítima.
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Adotando uma metodologia Como toda área de conhecimento, a Sociolingüística oferece diferentes modelos teórico-metodológicos para a análise da variação e da mudança. Este livro apresenta a maneira como a abordagem da Teoria da Variação instrumentaliza a análise sociolingüística, cujo precursor é o lingüista William Labov. Esta é a linha adotada, em função de ser considerada teoricamente coerente e metodologicamente eficaz para a descrição da língua em uso numa perspectiva sociolingüística. Não se exclui, porém, a relevância e a contribuição importante de outros diferenciais de análise. Portanto, todos os capítulos que compõem a presente publicação orientam paulatina e gradualmente o leitor no treinamento em direção à prática da análise correlacional de base quantitativa, tipicamente laboviana. Aqui estão expostos os postulados conceituais necessários, tabelas, gráficos e figuras que são importantes para orientar o trabalho no âmbito teórico-metodológico adotado, além de diretrizes para a adequada interpretação de resultados.