O Y OGA OGA DO OCIDENTE VS O Y OGA OGA DO ORIENTE DE SÓCRATES A P ATAÑJALI: A IDENTIDADE PRÓPRIA Fernando Liguori
á algum tempo venho defendendo a ideia, entre meus alunos do Colegiado da Luz Hermética e Hermética e outros que acompanho particularmente, que nós não precisamos ir ao Oriente buscar o que já temos aqui no Ocidente. Essa ideia, contudo, não é minha. Foi minha mãe, mestre em filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), quem a me transmitiu anos atrás. Na época, ávido por aventuras em e m terras distantes, me distanciei da cultura ocidental para buscar na Índia uma saída, ou melhor, um encontro, comigo mesmo. Seja como for, não só meus alunos, mas também algumas pessoas que acompanham meu trabalho no You Tube, começaram a indagar a validade desta ideia. A indagação da grande maioria que me procurou, assim identifiquei rapidamente, não partia daquela mesma ignorância que fez com que eu, anos atrás, não tivesse dado ouvidos ao que minha mãe me ensinava, mas ao contrário, do significado da filosofia e do filósofo, pois a imagem que a grande massa constrói sobre o filósofo não é, nem de longe, aquela ensinada por Platão e Aristóteles, inspirados por Sócrates. Inúmeros autores 1 de calibre têm dedicado boa parte de sua energia intelectual em demonstrar que a filosofia e o filósofo como se conhece nos dias de hoje não passa de uma emulação pífia de quem vive uma vida de filosofia, um estilo de vida a partir da mudança de perspectiva causada pela contemplação ou meditação filosófica por meio da periagoge da periagoge platônica, platônica,2 um giro de 180° na Alma que a afasta da indolência espiritual e a coloca na perspectiva do Unum, Unum, pois a meta fundamental de todo filósofo é a busca da unidade para além e por cima de todos os abismos e dificuldades que a cultura [...] pode ter espalhado ao longo do caminho. nho.3 A filosofia, nos diz Hadot em sua magnífica obra, E XERCÍCIOS ESPIRITUAIS
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1 Veja
por exemplo Pierre Hadot: O QUE É FILOSOFIA ANTIGA? (Loyola, 2014) e EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS E FILOSOFIA ANTIGA (Realizações, 2014); Algis U ždavinys, PHILOSOPHY & THEURGY IN LATE ANTIQUITY (Angelico Press, 2010); Olavo de Carvalho, F ILOSOFIA E SEU INVERSO & OUTROS ESTUDOS (Vide Editorial, 2012); Giavann Reale, F ILOSOFIA: ANTIGUIDADE & IDADE MÉDIA (Paulus, 2017). 2 Considerada a autêntica educação liberal , é uma arte primeiro arte primeiro esboçada por Soren Kierkegaard (1813-1855), considerado o primeiro filósofo existencialista. A ideia é provocar no aluno, a partir dos apontamentos do professor, um diálogo interno, digamos socrático, capaz de provocar uma profunda mudança de perspectiva existencial, despertando no aluno a busca pela verdade. A periagoge A periagoge se se dá em três etapas: estética, ética e religiosa. 3 Olavo de Carvalho, F ILOSOFIA E SEU INVERSO & OUTROS ESTUDOS, p. 40. São afirmações como esta de Olavo de Carvalho que o afastam, insisto, do caminho sofista como muitos desconhecedores de sua obra apontam.
Academia. Ela começa na vida e parte da vida E FILOSOFIA ANTIGA, está fora da Academia. e não se trata apenas de especulação filosófica e construção lógica. Não se trata de uma ciência para o aperfeiçoamento do pensamento lógico, mas ao contrário, uma ciência para o aperfeiçoamento do ser humano. Isso permaneceu assim na história da filosofia até o aparecimento das escolas catedrais dos Sécs. X a XII, herdeiras de Sócrates, Platão e Aristóteles, onde se estimulava um intelecto apurado e um comportamento equânime e ajustado. E uma vez que o comportamento é a própria atuação da mente no mundo, equânimes e ajustados são àqueles que consideramos equilibrados. A partir do Estatuto da Universidade de Paris de 1215, no entanto, a filosofia foi oficialmente institucionalizada e tornou-se um meio de ascensão social, poder e prestígio. Mas muito embora o estilo de vida filosófico preconizado pelos pais da filosofia ocidental tenha sido gradativamente marginalizado em detrimento da simples especulação e treinamento da lógica, a filosofia oriental manteve intacta sua característica fundamental: a busca pela verdadeira identidade, o que requer o mesmo grau de dedicação e aprofundamento filosófico. Eu tenho estudado e praticado a filosofia do yoga por trinta anos. Após esse período de aprofundamento, seguramente tenho uma definição particular sobre o objetivo do yoga: 4 harmonizar as funções da mente. Quando as funções da mente estão harmonizadas por meio do exercício do yoga, nossa maneira de agir e nos expressar no mundo muda. Uma mente quieta e em paz no mundo produz ações moralmente exemplares, éticas e espirituais, alinhadas ao Uno ou Supremo Bem. Este é o mesmo objetivo da filosofia como ensinada por Sócrates, Platão e Aristóteles. Mas a partir daqui eu gostaria de ser um pouco mais técnico em Sócrates e Patañjali. Sócrates permanece como o exemplo de filósofo ideal, àquele que descobre a si mesmo e a partir dessa descoberta, fala por si mesmo, livre das restrições sociais ou culturais. No diálogo socrático, a questão fundamental não é aquilo do aquilo do que se fala, mas aquele que aquele que fala. É seguro dizer que Sócrates aponta para um caminho psicológico e psicopedagógico interior capaz de levar os mais sensíveis a uma jornada de descobertas até a natureza mais íntima e cruel de cada um. O que Sócrates fazia com aqueles que com ele dialogavam era uma periagoge capaz periagoge capaz de levar a Alma de fora para dentro, do entorno para o centro, da verdade do outra para verdade de si mesmo. Trata-se de um convite a um exame profundo da consciência e o progresso interior. Em O BANQUETE de Platão, Alcibíades diz após engajar em um diálogo com Sócrates: Ele me constrange a confessar a mim mesmo que, embora tenha tantos defeitos, continuo a não cuidar e mim [...]. Mais de uma vez ele me colocou em tal estado que não me parecia possível viver me comportando como tenho me comportado. comportado.5 Em outro diálogo de Platão, o A POLOGIA DE SÓCRATES, 4 Assim como na
filosofia levamos levamos um tempo para amadurecer e passarmos a exercer a nossa própria filosofia, àquela que parte da verdadeira essência daquilo que somos em verdade, também realizamos yoga apenas quando estamos em sintonia com a verdadeira essência interior, quando assumimos e exercemos nossa verdadeira identidade. 5 Platão, O BANQUETE, 215c-216a.
temos: Não tenho nenhum cuidado com o que a maior parte das pessoas cuida: coisas de dinheiro, administração de bens, cargos militares, sucesso oratório, magistraturas, coalizões, facções políticas. Eu me engajei não nessa via [...], mas naquela onde, a cada um de vós em particular, farei o maior bem, tentando vos persuadir a se preocupar menos com o que se tem do que com o que se é .6 Em outra passagem deste mesmo diálogo: Caro amigo, tu és ateniense, cidadão de uma cidade que é maior, mais renomada que qualquer outra por sua ciência e seu poder, e tu não te ruborizas por cuidar de tua fortuna para aumentá-la o mais possível, assim como de tua reputação e de tuas honras; mas quanto ao teu pensamento, à tua verdade, à tua alma, que se trataria de melhorar, disso tu não cuidas, nisso tu não pensas. pensas .7 Meu único afazer é, com efeito, andar pelas ruas para vos persuadir a não vos preocupar nem com vosso corpo, nem com vossa fortuna tão apaixonadamente como com vossa alma para torná-la tão boa quanto possível possível .8 O diálogo socrático é um exercício espiritual do yoga ocidental. Ele convida a descoberta de si mesmo, da realidade interior essencial, distanciando o que não somos daquilo que verdadeiramente somos. Isso permanece urgente nos dias de hoje: nós chegamos a um período na história do homem em que a identidade de rótulo obscureceu rótulo obscureceu completamente o conhecimento de nós mesmos. Por identidade de rótulo rótulo Patañjali descrevia um poderoso entrave ou perturbação na realização ou exercício do yoga, uma mazela poderosa que afasta o homem de sua verdadeira realidade interior e ele a chamou de abhinive ś aḥ. A prática do yoga oriental opera da mesma maneira que a filosofia ou yoga ocidental, quer dizer, através de uma purificação interior. As impurezas que queremos eliminar são quaisquer crenças, hábitos ou memórias que condicionem o pensamento a percorrer caminhos que não são os nossos, ou seja, que nos façam pensar com a cabeça de outras pessoas. Quando cometemos esse erro, de nos deixarmos guiar pela opinião alheia, nossa capacidade de percepção fica prejudicada por esta perturbação descrita por Patañjali. A palavra sânscrita abhiniveśaḥ significa desejo de entrar . Ela expressa com clareza o desejo de fazer parte de alguma coisa, ou seja, de se integrar socialmente com algum grupo. Essa é uma das mais fortes motivações que nos levam ao erro, pois o desejo de integração nos faz duvidar de nossos próprios valores em favor dos valores compartilhados pelo grupo. Quando assumimos uma identidade de rótulo, rótulo, quer dizer, quando assumimos que fazemos parte de um grupo, imediatamente abrimos mão de nossa identidade pessoal em detrimento da identidade do grupo, nos esquecendo de nós mesmos. Em meu livro, MEDITAÇÃO EM TEORIA & PRÁTICA, coloquei ênfase que o meditador, para ter sucesso em sua prática, não deve ter medo de ficar só, nem deve duvidar de si mesmo por se sentir diferente do grupo. É muito importante, para sua realização pessoal, que ele escute atentamente seu coração e 6 Platão, A POLOGIA DE SÓCRATES, 36c. 7 Ibidem, 29d. 8 Ibidem, 30a.
que não se envolva em relacionamentos de qualquer natureza, sob nenhuma hipótese, que estejam em conflito com suas crenças e valores morais. Nem deve também se sujeitar a situações nas quais sua opinião ou sua capacidade de decisão tenham de ser anuladas, a qualquer pretexto. pretexto . A meditação de Patañjali possui seu equivalente nas contemplações, reflexões e exercícios espirituais da filosofia como o diálogo platônico. A destruição de abhiniveśaḥ na mente é um processo de periagoge, periagoge, a transformação da consciência que abandona a miragem coletiva e, voltando-se para dentro, aí descobre as bases permanentes da sua existência. existência.9 Na tradição do yoga costuma se distinguir entre o yogī e e o praticante ou professor popular de yoga. Eu teci algumas palavras técnicas sobre essa diferença no texto SUPLETIVO DE YOGA, disponível na internet. 10 Rapidamente, o yogī não não se trata de um mero praticante de āsanas (posturas) sanas (posturas) e pr e pr āṇā āṇā y āmas (respiratórios), mas de um adepto que realizou o yoga. Ele, portanto, vive a partir do yoga e como tal, se expressa no contexto do yoga. Naturalmente, tal adepto é o melhor e mais apto a ensinar yoga, muito diferente dos professores de yoga formados em supletivos de seis a oito meses. Da mesma maneira, existe uma profunda diferença entre o filósofo, um amante da sabedoria, sabedoria, e um filodoxo, um amante da opinião. opinião. O filósofo, assim como o yogī , vive a partir da perspectiva última da filosofia, um caminho de interiorização e transformação espiritual, ética e moral. Os folodoxos, considerados pela grande massa ignorante como filósofos, são na verdade «filósofos profissionais», precisamente na medida em que ignoram o espírito da filosofia. filosofia . [...] No afã de esquivar-se da experiência íntima, de furtar-se à periagoge, ele apela a todos os subterfúgios, que vão do raciocínio fantasioso à chacota e às palavras ameaçadoras, ou então retira-se do diálogo. Aí a conclusão que se impõe é que estamos diante da inversão formal e paradigmática da figura do filósofo: o filodoxo, «amante da opinião» opinião».. 11 Platão criou seus pares de conceitos no curso da sua resistência à sociedade corrupta que o rodeava. Da luta concreta contra a corrupção circundante, no entanto, Platão emergiu vencedor com efetividade histórica mundial. Em consequência, o lado positivo dos seus pares tornou-se a «linguagem filosófica» da civilização ocidental, enquanto o lado negativo perdeu seu status de vocabulário técni t écnico… A perda da metade neg ativa destituiu a positiva do seu sabor de resistência e oposição, e deixou-a com uma qualidade de abstratismo que é profundamente alheia à concretude do pensamento par philosophos e e philo philoplatônico… A perda mostrou -se maximamente embaraçosa no par philosophos doxos. doxos. Em inglês temos philosophers temos philosophers,, mas não philodoxers não philodoxers.. A perda é, neste caso, peculiarmente embaraçosa, porque, na realidade, temos uma abundância de filodoxos; filodoxos; e, como o termo platônico que os designava se perdeu, referimo-nos a eles como «filósofos». No uso moderno, portanto, chamamos de filósofos precisamente as pessoas contra as quais, como filósofo, Platão se opunha. E uma compreensão da metade positiva do par se tornou hoje praticamente impossível, exceto para uns poucos eruditos, porque, quando falamos em «filósofos», pensamos em filodoxos em filodoxos..12
9 Olavo de Carvalho, F ILOSOFIA E SEU INVERSO & OUTROS ESTUDOS, p. 36. 10 Veja em:
http://drashtayoga.blogspot.co http://drashtayoga.blogspot.com/2014/05/suple m/2014/05/supletivo-de-yoga.html. tivo-de-yoga.html.
11 Olavo de Carvalho, F ILOSOFIA E SEU INVERSO & OUTROS ESTUDOS, p. 24 e 37. 12 Eric Voegelin, citado por Olavo de
meus.
Carvalho em F ILOSOFIA E SEU INVERSO & OUTROS ESTUDOS, p. 27. Os itálicos são
Para fechar com chave de ouro, citamos Perre Hadot: Conhecer a si mesmo é conhecer-se como não sábio (isto é, não como sophos, mas como philo-sophos, a caminho em direção a sabedoria) ou conhecer-se em seu ser essencial (isto é, separar o que não somos do que somos) ou conhecer-se em seu verdadeiro estado moral (isto é, examinar a consciência). consciência ).13 Na Tradição do Ocidente, portanto, temos tudo o que precisamos e não precisamos buscar no Oriente o que nós aqui temos em abundância. Foi Dion Fortune (1890-1946) que, embora diletante e enfadonhamente supersticiosa, com lucidez afirmava ser mais saudável aos ocidentais buscarem métodos ocidentais de iniciação e sabedoria. Isso é correto dizer, mas falamos em outra ocasião...
13 Pierre Hadot, EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS E FILOSOFIA ANTIGA, p. 38.
Sobre o Autor: Fernando Liguori é hermetista praticante e escritor interessado em Neoplatonismo, Tradição Salomônica, Magia na Antiguidade, Filosofia, Yoga, Tantra, Āyurveda, Xamanismo e Cabala Crioula. É líder e fundador do Colegiado da Luz Hermética, Hermética, uma Escola Neoplatônica de Iniciação que inclui uma Igreja de Ciências Herméticas (Ecclesiae (Ecclesiae Lvx Hermeticae) meticae) e a Ordem das Irmãs de Seshat , cujo trabalho é apresentar os Arcanos de Mistério da Tradição Esotérica Ocidental sob uma perspectiva feminina e para mulheres apenas. Nós celebramos os Mistérios & Arcanos da Iniciação através do conhecimento inspirado transmitido por Pitágoras, Sócrates, Platão, Aristóteles, Plotino, Jâmblico, Dionísio, o Areopagita e Marsílio Ficino. Somos uma comunidade teúrgica ecumênica fundada na cidade de Juiz de Fora (MG). Nós nos esforçamos para nos engajar na veneração do divino e alcançar o autoconhecimento celestial.