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Apresentação
CIVILIZAÇÕES CLÁSSICAS II
O Mediterrâneo foi um mar tão importante para as civilizações que em torno dele se desenvolveram – a grega, a romana e a cristã e, em boa medida, a islâmica – como os Rios Nilo, Tigre e Eufrates, Indo e Amarelo o foram para as civilizações egípcia, mesopotâmica, hindu e chinesa. O espaço articulado pelo Mediterrâneo, entretanto, é pobre de recursos naturais e impôs às sociedades movimentos contínuos de expansão, convertendo-se deste modo num mar de ligação e de trânsito com todas as demais civilizações: as do Oriente Médio e Extremo Oriente, as da África e, mais tarde, as da América. Não é casual que as velhas civilizações do Oriente se tenha m expandido pelo mundo, carregadas pelas civilizações desenvolvidas no Mediterrâneo. É i sto, em boa medida, que explica nossa múltipla herança civilizatória, a que nos vem do Oriente, sobretudo pela via religiosa do judaísmo, do cristianismo e do islamismo, e a que no s vem do Mediterrâneo por meio da Filosofia, do Direito e da política greco -romanas. Insisto neste ponto: é preciso que reconheçamos as heranças que nos vêm das civilizações mediterrâneas, seja para entender os fundamentos profundos da ci vilização contemporânea, seja para criticar-lhe a pretensão de verdade (religiosa ou científica) única e absoluta. Reconhecer no presente nossas heranças forjadas no passado talvez nos obrigue a fazer a crítica de nossas atitudes presentes de auto-suficiência, arrogância e orgulho, tão próprias da modernidade. Não esqueçamos nunca: todas as vezes que comemos um bocado de pão, não estamos só nos alimentando, estamos comendo um símbolo universal das condições de nossa existência cotidiana. Por isso dizemos: “d ai-nos o pão nosso de cada dia...” e, quando trabalhamos duro para sobreviver no dia-a-dia dizemos: “estou ganha ndo meu pão...”. Este roteiro de estudo privilegia as duas grandes civilizações do Mediterrâneo: a grega e a romana. E por ser um roteiro, padece da exclusão de muitos temas e questões importantes de ambas as civilizações. Tive de fazer escolhas, e o critério que as orientou foi a i mensa herança social e política que nos advém dos gregos e romanos. Dos gregos discutiremos principalmente a herança política, o paradigma da compreensão e do exercício do poder que está na origem da reflexão científica e filosófica das poleis e m particular, Atenas e Esparta. 7
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Dos romanos abordaremos a construção de um vasto império, movido pela permanente dinâmica de um poder fundado na guerra, na ex ploração econômica de inúmeros povos subjugados e na necessidade de construir sistema s jurídico-políticos capazes de lhe oferecer estabilidade e permanência. Roma, sob este aspecto, é a fonte inspiradora de todos os impérios posteriores, seja o de Carlos Magno, o da Espanha, da França, seja o da Inglaterra ou dos Estados Unidos da América. Sobre outros temas não tratados aqui, podemos conversar no decorrer de nossos es tudos ou incorporá-los numa agenda futura de estudos e pesquisas. Estudaremos na seqüência as civilizações americanas, aquelas que os povos da América construíram durante milênios e que foram bruscamente interrompidas com a conquista e a dominação européia a partir de fins do século 15, quando da chegada das naus de Cristóvão Colombo. Nós conhecemos bem a história dos povos americanos sob a dominação européia. E conhecemos muito mal a história desses mesmos povos antes de tal dominação. As razões disso são diversas. A primeira delas deve-se ao fato da sistemática destruição da memória, dos documentos e monumentos das civilizações anteriores. Os missionários europeus, ao erradicar as crenças religiosas, a organização social e as diversas formas de organização do trabalho dos povos americanos, destruíram também a sua história, ou, pelo menos, a silenciaram. Faremos, em razão disso, um grande esforço no sentido de compreender os povos americanos em suas trajetórias originais de civilização. Descobriremos, às vezes espantados, que as civilizações americanas haviam percorrido algumas, outras estavam percorrendo trajetórias civilizatórias em nada diferentes das percorridas por mesopotâmicos, egípcios, chinese s ou europeus. Não podemos esquecer em nossos estudos de compreender o quanto somos herdeiros das civilizações indígenas da América, seja na longa lista de alimentos e bebidas incorporadas ao nosso cotidiano, seja nos preciosos conhecimentos que nos legaram sobre a flora e a fauna da América, ou ainda nos preciosos conhecimentos oriundos do manejo de ecossistemas tão diversos como os da Cordilheira dos Andes, das florestas tropicais da Amazônia, das pradarias da América do Norte ou da incrível capacidade de viver em ambientes tão hostis como os do Ártico. Quando comeres um pão de milho, um chocolate, um tomate, um bocado de mandioca ou uma batatinha frita, não te esqueças que aí está representado o “pão nosso” dos povos da América. E não esqueças que o chimarrão, que tanto apreciamos, é uma bebida indígena e guarani. 8
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Conhecendo o Professor
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Dinarte Belato Nasci em 1943, num pequeno município do norte do Rio Grande do Sul chamado Maximiliano de Almeida, filho de colonos descendentes de imigrantes italianos. Sou bacharel e licenciado em Filosofia pela Unijuí e especialista em Filosofia contemporânea pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Comecei a lecionar na Unijuí em 1967, há quase 40 anos, como professor de Filosofia da Educação e História da Filosofia e, logo a seguir, também de História da Educação. Este convívio com a História me levou, em 1978 e 1979, a fazer o Mestrado em História na Universidade Estadual de Campinas. A partir de então passei a fazer parte do grupo de professores do curso de História. Desenvolvi pesquisas sobre as questões agrária e agrícola. Atualmente sigo pesquisando e sta problemátic a, mas a ela acrescentei outros temas como: a história dos alimentos, a história da morte e da velhice, temas que, no meu modo de entender, guardam profunda relação. Nunca, ao longo de minha atividade de professor, deixei de manter um intenso trabalho de assessoria a g rupos sociais populares, movimentos sociais e aos professores da rede pública estadual e municipal. São esses trabalhos que ligam profundamente a universidade com a sociedade e dão aos professores universitários as razões e as motivações para o estudo, a pesquisa e a formação dos futuros docentes. Gosto de estudar, de fazer pesquisa e de ser profess or. 9
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Unidade 1
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O MEDITERRÂNEO E SUAS CIVILIZAÇÕES OBJETIVOS DESTA UNIDADE • Aprofundar nossos conhecimentos históricos da civilização grega, visando a compreendêla em seu processo de construção e, sobretudo, em sua significativa contri buição na construção da civilização atual, mostrando o quanto nossos valores, crenças, instituições sociais, econômicas, políticas e estéticas t iveram suas origens nesta civilização.
AS SEÇÕES DESTA UNIDADE Seção 1.1 – A Civilização Grega: o período arcaico Seção 1.2 – Esparta: a pólis da disciplina militar Seção 1.3 – A Maturidade da Democracia Ateniense – Século 5º Seção 1.4 – Crise da Democracia Ateniense – 431-322 a.C. Seção 1.5 – Alexandre e a Conquista do Oriente
Estudaremos as civilizações do Mediterrâneo: a c ivilização grega, a civilização romana e a bizantina. Elas sucederam-se umas após as outras e os seus e los foram propiciados pelas águas do Mar Mediterrâneo. O Mediterrâneo não é apenas o berço dessas civilizações, ele é o meio de contato e de influência das grandes civilizações do Oriente Médio: do Egito, da Anatólia e, um pouco mais a leste, da Mesopotâmia. Mais tarde o Império Romano sofrerá o impacto do Cristianismo e es te, mais tarde ainda, o impacto do Islamismo. 11
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Fonte: Disponível em: . acesso em: 21/1/09.
O que é o Mediterrâneo, pergunta-se Braudel, o historiador contemporâneo que, provavelmente, mais o estudou e mais o conhec eu. Ele mesmo responde:
Mil coisas ao mesmo tempo. Não uma paisagem, mas inúmeras paisagens. Não um mar, mas uma sucessão de mares. Não uma civilização, mas civilizações sobrepostas umas às outras. Viajar pelo Med iter râne o é encontr ar o mundo romano no Líbano, a pré-história na Sardenha, as cidades gregas na Sicília, a presença árabe na Espanha, o islã turco na Iugoslávia. É mergulhar nas profundezas dos séculos até as construções megalíticas de Malta ou até as pirâmides do Egito. É encontrar coisas muito velhas ainda vivas, ladeando o ultramoderno; ao lado de Veneza, falsamente móvel, a pesada aglomeração industrial de Mestre. Ao lado do barco do pescador, que é ainda o mesmo de Ulisses, a traineira devastadora do fundo do mar, ou os enormes petroleiros. É ao mesmo tempo emergir no arcaísmo dos mundos insulares e surpreender-se diante da extrema juventude de cidades muito antigas, abertas a todos os ventos da cultura e do lucro, e que, há séculos, vigiam e comem o mar (1988, p. 1-2).
O Mediterrâneo são muitos mares. A oeste, lá es tá o Mar de Alboran; no centro, o Mar da Ligúria, o Mar Tirreno e o Adriático; a leste, o Jônico, o Egeo, o Mar de Mármara ou Propôntida e o Mar Negro ou Ponto. 12
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O Mar de Alboran é a parte mais ocidental do Mar Mediterrâneo. Limita-se ao norte com a costa espanhola, ao sul com o litoral do Marrocos, a oes te com o estreito de Gibraltar, conexão do Atlântico com o Mediterrâneo. Estende-se a leste até o cabo de Gata. É a ilha de Alboran que dá nome a esta porção do Mediterrâneo. A importância his tóric a da Ligúria, do Golfo de Gênova e dos acessos e caminhos do continente à península italiana, deu a essa pequena porção do Mediterrâneo o nome de Mar Lígure ou da Ligúria. Logo abaixo, ao sul, no espaço interno delimitado pelo litoral da Itália e as ilhas da Córsega, Sardenha e Sicília, está o Mar Tirreno. É por ele que se tem acesso ao porto de Óstia que, por sua vez, dá acesso a Roma. Entre a península italiana e balcânica es tá o Mar Adriático, ponto de contato entre a civilização grega, que se estende mais ao sul ao Mar Jônico que, por sua vez, a leste, dá acesso ao Egito, à Fenícia e às civilizações do Oriente Médio, e a nordeste dá acesso ao Mar Egeo, o qual, pelo Mar de Mármara, abre caminho ao Mar Negro, e por ele, à Pérsia, à Mesopotâmia e Anatólia. É por isso que o Mediterrâneo são muitos mares, pois
[...] é uma encruzilhada muito antiga. Há milênios tudo converge em sua direção, confundindo e enriquecendo sua história: homens, animais de carga, veículos, mercadorias, navios, idéias religiosas, arte de viver. E até mesmo plantas (Braudel, 1988, p. 2).
Originárias daí, só a oliveira, o trigo e a vinha. Aí se adaptaram e aclimataram laranjeiras, limoeiros e tangerinas que vêm da Ásia do leste, da China, trazidas pelos árabes; as figueiras, aloés e cactos, que vêm do norte da África, da Barbária; da América vêm os tomateiros, as batatas, o milho, o tabaco, o girassol. As plantas e outros temperos da gastronomia mediterrânea, que vêm da Índia e do sudeste asiático. E para o Mediterrâneo convergiram e ainda convergem povos de todos os continentes, da Europa setentrional, da Ási a e da África. E conclui Braudel (1988, p. 3):
Tanto em sua paisagem física como em sua paisagem humana, o Mediterrâneo-encruzilhada, o Mediterrâneo heteróclito apresenta-se em nossas lembranças como imagem coerente, como um sistema onde tudo se mistura e se recompõe numa unidade original. Como explicar essa unidade 13
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evidente, esse ser profundo do Mediterrâneo?... A explicação não é somente a natureza... Nem apenas o homem... São ao mesmo tempo as graças da natureza, ou suas maldições – umas e outras numerosas – e os múltiplos esforços dos homens, ontem como hoje.
Da mesma forma que os rios Nilo, Tigre e Eufrates, também o Indo, Amarelo e Azul são dons da natureza, vantagens dadas potenciais, entretanto só o tra balho secular da sociedade pôde convertê-los em base sólida de civilizações. Assim também é o Mediterr âneo. Foi preciso atravessá-lo, conhecer-lhe a diversidade, seus ri tmos e perigos para convertê-lo em base das civilizações que em suas margens se fizeram. Os romanos, quando o dominaram por completo, chamaram-no de Mare Nostrum: Nosso Mar, ou Mediterrâneo, isto é, o mar que está cercado de terras, que está no meio da terra. Ao recorte do mar em mares corresponde um desenho de terras que se projetam águas adentro. São as sucessivas penínsulas que d e oeste para leste adentram no mar: a península ibérica, italiana, balcânica e anatólica. A península italiana divide o Mediterrâneo em dois, o poente e o levante, o leste e o oeste, Ocidente e Oriente. Como destaca Braudel (1988, p. 8):
Aí a Itália encontra o sentido de seu destino: ela é o eixo mediano do mar e, [...], sempre se desdobrou entre uma Itália voltada para o poente e uma Itália que encara o levante. Não foi nisso que por muito tempo encontrou suas riquezas? Ela tem a possibilidade natural, o sonho natural de dominar todo o mar.
Às vezes dizemos que tal ou qual região do Brasil tem um clima mediterrâne o. Que queremos dizer com isso? Simplesmente que estamos comparando tal ou qual clima com o do Mar Mediterrâneo. Que clima é esse? É um clima homogêneo, singular, que dá um caráter único a toda a bacia do mar e que proporciona às paisagens e aos gêneros de vida que aí se desenvolvem há milênios um toque unificador, uma identidade. O clima é governado por duas forças que em suce ssão se impõem: o deserto do Saara ao sul e o Oceano Atlântico ao oeste. “Todo o verão, o ar s eco e ardente do Saara envolve toda a exte nsão do mar, ultrapassando, porém, seus limites em direção ao norte. O Mediterrâneo torna-se, então, quente, aprazível e à noite exibe céus límpidos e estrelados” (Braudel, 1988, p. 13). Van 14
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Gogh, um homem das planícies do norte da Europa, de céus cinzentos, captou como ninguém este céu azu l quando esteve internado no sul da França, em A rles. Ele pintou também o vento implacável que, várias veze s por ano, no verão, sopra tórrido do Saara, carregado de areia, que entorta as árvores e qu e obriga todos, homens e animais, a se recolherem para dentro de casa. É o siroco, mistral, khamsin ou plumbeus aus ter, como dizia o poeta romano Horacio. De abril a setembro os ventos dominan tes do nordeste, os ventos que os gregos chamavam de etésios, eram també m quentes e não contrabalançavam o calor vindo do Saara. A partir de outubro impõe m-se o s ventos carregados de umidade do Atlântico. Ventanias e chuvas torrenciais tornam o continente e o mar perigosos e umedecem o solo à espera das sementeiras de primavera e de verão. O ciclo se repete a cada ano, de forma regular, há milênios, e requer das sociedades que aí plantam, disciplinas coletivas e muito trabalho. Não por acaso, gregos e romanos foram buscar na massa de escravos que capturaram em guerras e piratarias o trabalho de que tanto necessitavam. Eles foram os cria dores das sociedades escravistas. Iguais a elas, só a escravidão em grande escala de p ovos africanos e obrigados ao trabalho compulsório nas fazendas e plantações da América nos três séculos que vão do 16 ao 18. Se examinarmos com atenção as c ivilizações fenícia, grega e romana, todas têm como um de seus móveis a busca de alimentos ou a expulsão de suas populações excedentes, fundando sucessivas colônias ao redor da bacia do Mediterrâneo. Mesmo assim, a comida nunca foi abundante, o que acabou convertendo a sobriedade, a temperança, em virtude cardeal e explica o escândalo que produziam no povo romano e nos cristãos primitivos os banquetes fartos dos ricos romanos que a iconografia fixou gordos e o besos. Não por acaso gordo, “grosso”, “grasso, gras”, é sinônimo de rico, de abastado. De um modo geral, observa Braudel (1988, p. 25), “[...] o Mediterrâneo equilibra sua vida a partir da tríade: oliveira, vinho e trigo.” Muito pouca proteína animal, que vinha da pesca e da criação de suínos e de c aprinos e ovinos, mas muito poucos bovinos. O Império Romano, em sua extensão máxima e em seu apogeu se converteu numa máquina de rapina de alimentos que eram drenados para Roma: trigo, vinho, azeite, animais, queijo, peixes. 15
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O trigo e o pão, entretanto, eram o alimento básico da população mediterrânea. Sua escassez poderia ensejar revoltas e motins. Em contrapartida, uma celebração mediterrânea pedia a Deus “...o pão de cada dia...”. O Cristianismo celebra a memória de Jesus Cristo simbolizando seu corpo em pão e seu sangue em vinho. E observa Braudel (1988, p. 27):
Ainda hoje [...] em Nápoles e Palermo (o s operários) [...] contentam-se com o Compana tico, um molho de cebola ou tomates sobre um pão regado com azeite, acompanhado de um pouco de vinho [...]. A pizza tão apreciada hoje em socie dades superabunda ntes de comida é a comida típica dos pobres do mediterrâneo: “sottile focaccia di pasta lievitata, condita com olio, mozzarella, pomodoro, o altro e cotta in forno o sotto bracia”. Rodela fina de massa levedada, temperada com óleo (de oliva), queijo, tomate ou outra coisa e assada no forno ou sob brasas (Minore, 1994).
O Mediterrâneo é onipresente e perigoso, traiçoeiro, de tempestades imprevistas e súbitas que parecem governadas, como acreditavam os antigos, por deuses soberanos do mar: Poseidon ou Netuno. E foi sempre pobre em sua fauna aquática e hoje vê suas reservas biológicas ameaçadas pela pesca predatória e pela poluição. O Mar Mediterrâneo foi, desde milênios, antes de mais nada, uma via de comunicação, uma “superfície de transporte”, de intercâmbios e de riqueza (Braudel, 1988, p. 36). Há indícios de que foram os cretenses os primeiros a ousar viagens em alto-ma r desde Creta até o delta do Nilo. A Odisséia descreve uma viagem de Ulisses de sde a ilha de Itaca, onde se faz passar por um mercador cretense, até o delta do Nilo.
Assaltou- me a vontade [...] de fazer um cruzeiro [...] para o Egit o. Ar mo nov e naus e os homens afluem. Durante seis dias esses bravos festejam em minha casa [...]. No sétimo, embarcamos e, das planícies de Creta, um belo e bom (vento) Boreas nos le va sempre em frente, como na corrente de um rio [...]. Bastou sentarmo-nos e deixarmo-nos levar pelo vento e pelos p ilotos. Em cinco dias alcançamos o belo rio Egyptor (Braudel, 1988, p. 38).
Os fenícios, marinheiros ex perientes, viajavam em linha reta de Creta até a Sicília e daí para as Ilhas Baleares. A partir do século 4º a.C. a vi agem da Ilha de Rodes à Alexandria do Egito fazia-se em quatro dias (cf. Braudel, 1988, p. 38). 16
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As rotas do Mediterrâneo foram se expandindo e os marinheiros ganharam o Atlântico e daí o Mar do Norte e a Bretanha. O Mediterrâneo será, por isso, disputado entre gregos e feníc ios, gregos e persas, entre romanos e cartagineses, entre cristãos e muçulmanos e entre genoveses e venezianos, entre espanhóis e turcos. Na batalha de Lepanto, em 1571, enfrentaram-se as Marinhas de Guerra do Império Turco e da Europa cristã de Felipe II, da Espanha: cem mil pessoas se confrontaram em 250 navios de cada lado. A batalha lembra o que aconteceu próximo a Lepanto em 480, quando os gregos venceram a frota persa, com navios menores, s em canhões, mas muito ágeis e rápidos. O Mediterrâneo são muitos mares, isto sabemos. As pri meiras porções do Mediterrâneo que vêm à luz são as do levante, as do Oriente, aquelas que põem em contato Creta, Micenas, Hugarit, Síria-Fenícia e Egito, e mais ao longe, a leste, a Mesopotâmia. Embora a técnica de transporte de mercadorias por água se tenha desenvolvido nas civilizações agrícolas do Egito e da Mesopotâmia, inicialmente com barcos de junco e d epois de madeira, foram duas áreas mediterrâneas periféricas a essas civilizações que desenvolveram embarcações capazes de navegar o Mediterrâneo, a partir do 2º milênio a.C.: os povos do Mar Egeu e os povos do litoral da costa libanesa. Os novos barcos eram mais leves, equilibrados, com remos e velas, querena e quilha. Foi o primeiro barco adaptado ao transporte marítimo. Síria-Líbano e Egeu foram dois pontos onde se fabricaram navios e o nde se encontraram marinheiros capazes de manejá-los. Foram eles que, por primeiro, puseram em contato as civilizações que nasceram no Oriente, trocando objetos, técnicas, modas, gostos, correspondências.
Todas as civilizações comunicam-se entre si a partir d e outras, [...] inclusive o Eg ito, normalmente tão fechado... É a época das viagens das trocas de presentes [...]. Época em que se vê surgir nos afrescos dos túmulos egípcios [...] todos os povos da Oriente Próximo e do Egeu: cretenses, micênicos, palestinos, núbios, cananeus; em que as magníficas cerâmicas cretenses invadem todo o Levante; em que as porcelanas azuis do Egito [...] acompanham os mortos nos túmulos micênicos; em que o culto das divindades cananeias, sem dúvida, introduzido pelos comerciantes, espalha-se pelo d elta (do Nilo), enquanto as es finges aladas ou os deuses do Eg ito florescem na Síria ou na região hitita [...] em que a moda egípcia, até entã o devotada ao linho branco, apaixona-se pelos bordados sírios e pelos tecidos de várias cores dos cretenses (Braudel, 1988, p. 6 1-62). 17
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O Mediterrâneo, primeiro o Oriental, está pronto para desenvolver suas civ ilizações peculiares: cretense, fenícia, micênica, grega e romana. E o Mediterrâneo será seu s uporte material, inspiração simbólica e desafio permanente. A ligação das civilizações do Mediterrâneo com as do Oriente Médio realiza -se por intermédio de três sociedades, muito parecidas entre si, constituindo uma herança muito significativa para as futuras civilizações greco-romana. Cretenses, primeiro, micênicos a seguir e fenícios constituem uma linha de tempo sucessiva que vai de 3 mil a aproximadamente 1.200 anos a.C. Esses povos refletem no Mediterrâneo os grandes traços culturais das sociedades orientais, seja na forma de organização do poder, fortemente centralizada na mão de um rei semidivinizado, apoiado numa coesa burocracia civil e militar, seja num sistema de exploração da terra mediante arrendamento e pagamento de tributos em espécie: vinho, azeite e trigo e, sobretudo, de uma e xtensa divisão do trabalho artesanal de metais – bronze, cobre, estanho – de cerâmica, tecidos e j óias de luxo e armas. Adotam alfabetos do Oriente, modificados e adaptados às condiç ões de cada uma dessas sociedades. É dos fenícios que os gregos receberam o alfabeto que se tornará, por sua vez, o alfabeto romano, do qual deriva o alfabeto que utilizamos até hoje. Em 1450 a.C. Micenas invade a ilha de Creta, de Rodes e de Chi pre, destruindo para sempre a civilização cretense. O século 12 a.C. é marcado por uma intensa movimentação de povos que, partindo da Europa Central, do Cáucaso e d a Ásia Central, movem-se para o sul e se chocam com a civilização micênica, que é des truída. Na Anatólia chocam-se com o hititas e só são contidos e derrotados nas costas da atual Síria e Líbano. Essas invasões de povos vindos do norte, entre os quais estão os dórios, que se fixam na Grécia continental, produzem uma profunda regressão cultural, um período em que desaparecem os avanços culturais cretenses e micênicos, extinguindo-se também a escrita. Os historiadores costumam chamar o período que vai do início do século 12 até o século 8º a.C. de idade obscura, idade média. 18
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A partir do século 8º a.C. a Gréci a reeme rge e dá início ao que denominamos de civilização grega. Por séculos o Mediterrâneo será grego. A ocupação das bordas do Mediterrâneo pelos gregos realiza-se ao longo de séculos e obedece a motivações variadas: seja a pressão das hordas invasoras vindas do norte, sejam as condições geográficas da península, muito montanhosa, muito pedregosa, de poucas planícies e terras de fertilidade medíocre. Seja, finalmente, a grave crise agrária dos séculos 8º e 6º, que obrigava a grandes contingentes de agricultores empobrecidos a emigrar, aliada a uma vigorosa expansão mercantil, que importava cereais, peixe salgado, metais preciosos, ma rfim, âmbar, estanho, cobre, madeiras e pele e exportava vinho, azeite, jóias, armas, utensílios, navios, têxteis, cerâmica, perfumes e ungüentos. As colônias gregas semeadas desde o extremo leste do litoral do Mar Negro até a Espanha davam à Grécia acesso ao trigo e peixe salgado produzidos nas terras férteis do Mar Negro, do Egito e do sul da Itália; a madeira para a construção de navios vinha das florestas da Tracia, os minérios da Espanha, França, Inglaterra e Groenlândia; produtos de luxo, do Egito e da Fenícia. As colônias fundadas pelos gregos e os povos do Mediterrâneo, que os gregos chamavam de bárbaros, eram os consumid ores dos produtos da indústria grega. Todos os elementos de um grande comércio intramediterrâneo estavam então reunidos e a Grécia, bastante incapaz de viver em autarquia – isto é, de ser economicamente autosuficiente – a não ser que se resignasse a uma vida miserável, abria-se largamente por todos os lados (Levêque, 1967, p. 129). A expansão colonial representava ao longo da história grega uma solução para as graves crises que a acometiam, pois sempre
[...] transportava em si uma força indefinida de expansão; assim, quanto mais se importava trigo, menos havia necessidade de o produzir, mais se podia cultivar a vinha e a oliveira, mais se podia exportar vinho e azeite (e também recipientes de cerâmica para seu transporte); a madeira de importação permitia construir barcos cada vez em maior número, instrumento necessário para um comércio unicamente marítimo. Os minérios que afluíam – principalmente – do ocidente forneciam a matéria-prima indispensável tanto às indústrias utilitárias como às indústrias artísticas e daí vem um aumento das exportações em direção do novo mundo. A indústria e a agricultura eram simultaneamente estimuladas e o comércio tornava-se a base de uma vida em contí19
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nuo desenvolvimento. A Grécia e a Anatólia enriqueciam-se com o incessante entrecruzamento de navios que iam longe trocar as suas produções agrícolas e industriais requintadas por víveres e metais (Levêque, 1967, p. 130).
Tamanha transformação da Grécia, porém, só foi possível porque s e fizeram acompanhar de profundas revoluções sociais, políticas e culturais, das quais emergirá a c ivilização grega, como veremos mais a diante. A expansão econômica e colonial grega no Mediterrâneo foi favorecida também pela queda de seus concorrentes fenícios. Em 677 a.C. Sidon é tomada pelo Império Assírio e em 573 a.C. Tiro é conquistada pelos babilônios, embora, a partir de então, os impérios mesopotâmicos tentem submeter o Mediterrâneo e incorporá-lo a seu poder. As Guerras Greco-Pérsicas e as conquistas de Alexandre Magno são desdobramentos desse novo quadro geopolítico. Oriente e Ocidente inaugurarão uma sucessão de choques intermináveis e que se prolongam até os dias de hoje (Belato, 2008b).
Seção 1.1 A Civilização Grega: o período arcaico O povo grego é o resultado de um longo processo his tórico de invasões, todas vindas do norte, em direção à península e ao Mar Egeu. O mapa a seguir nos mostra a “descida” dos gregos, todos povos indo-europeus ocupando territórios e guardando características lingüísticas e c ulturais que se conservaram ao longo da história grega: jônicos, eólios, aqueus e dórios darão o caráter definitivo ao povoamento da península e da Anatólia.
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Os dórios, os últimos a chegar, destroem a civilização micênica e reduzem a península e as ilhas adjacentes a um estado de barbárie. Foram necessár ios quatro séculos para que nascesse uma nova cultura, que é a que conhecemos como cultura grega.
1.1.1 – A SOCIEDADE ARCAICA Os historiadores costumam dividir esta primeira fase da história grega em duas etapas. A prime ira, que se inicia com as invasões dos dórios e é denominada de obscura, medie val, vai do século 12 ao século 8º a.C. A segunda vai do sé culo 8º ao século 4º a.C. Para os gregos, arcaico é um adjetivo de significado altamente positivo, pois indica princípio, ponto de partida, fundamento. O período arcaico é, ent ão, para os gregos, aquele em que a sociedade plantou seus alicerces e deu feição à sua cultura e civilização. É o período em que foram criadas as instituições sociais, políticas e intelectuais que lhe deram um lugar único na História: a sua experiência democrática, de um lado, e a experiência militarista e autoritária, de outro, uma em Atenas e a o utra em Esparta. Foi também quando se iniciou uma nova forma de pensar e conhecer o mundo: a Filosofia e a Ciência. De ambas (Atenas e Esparta), da democracia, da Filosofia e Ciência, somos herdeiros diretos. Faz parte dessa etapa também a formação do imaginário religioso mediante a criação de uma complexa sociedade de deuses e deusas e entes divinos que foi inteiramente assumido mais tarde pela religião dos romanos. É nessa fase que se escrevem as duas grandes epopéias –, a Ilíada e a Odisséia –, e a poesia lí rica, que nasce o teatro com suas tragédias e comédias, bem como a sofisticada arquitetura urbana e a inimitável a rte da escultura. Todo esse complexo cultural e civi lizatório que se forma no período arc aico atinge sua plenitude e força no período seguinte, o clássico, nos séculos 5º e 4º a.C. Toma forma igualmente no período arcaico um traço que marcará as sociedades romana e moderna ocidentais: a escravidão. Nenhuma dessas sociedades foi possível se m a escravidão. E mais, a civilização grega e romana e a sociedad e moderna européia do século 15 ao 19 plantam seus fundamentos na escravidão, mas, por contraste, exaltam a liberdade daqueles que, em última instância, vivem do trabalho compulsório. 22
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1.1.2 – A PRIMITIVA SOCIEDADE HOMÉRICA O período obscuro e bárbaro que s e sucede à invasão dos dórios foi-nos revelado pelos poemas homéricos: a Ilíada e a Odisséi a, atribuídos a um poeta jônico chamado Homero . Os gregos reconhecem-se descendentes de três grandes grupos étnicos: jônios, aqueus/ eólios e dórios. Os laços de identidade lhes advém de uma comum cultura religiosa, de uma língua que se impôs a todos com suas próprias variantes dialetais e, sobretudo, de um mo do descentralizado de organização política, chamada pólis, cada uma delas completamente independente. Esse conjunto de elementos dava-lhes uma identidade própria, e permitia marcar a diferença em relação aos demais povos: a si denominavam gregos e civili zados; aos demais chamavam de estrangeiros e bárbaros. Produziu-se na Grécia, da diversidade, uma unidade e uma i dentidade, uma civilização. Compelidos a expandir-se na orla do Mediter râneo, os gregos faziam-no fundando colônias que, embora guardassem entre si profundos vínculos culturais e religiosos com a metrópole, constituíam unidades políticas e econômicas completamente autônomas. A sociedade descrita nos poemas de Homero é uma sociedade de classes bem definida:
Horizontalmente, pode-se distinguir um certo número de classes que se definem por sua fortuna, liberdade jurídica e atividade econômica. No topo, estão os grandes proprietários de terra, os nobres, que são os companheiros do rei. Eles apropriam-se das melhores e mais extensas terras (trabalhadas por escravos e dependentes e concentram em suas mãos também prestígio social e poder). A participação nas guerras lhes dá direito à partilha do butim. Nesta sociedade há também os camponeses livres que trabalham a terra do nobre. São pequenos produtores, pastores que habitam com suas famílias sua própria casa. Vêm depois os demiurgos [...] artesãos especializados (carpinteiros, ferreiros), mais ou menos ambulantes, pagos por tarefa. Vêm a seguir os “thetes”, que só possuem sua capacidade de trabalho. São livres, descendentes de estrangeiros ou camponeses expropriados, vivem junto à casa do nobre e são pagos por tarefa. Não se pode confundi-los com os escravos. Os escravos que Homero denomina de “andropoda” ou animal de duas pa tas, são, sobretudo as mulheres, presas de guerra [...] (Humbert, 1984, p. 23).
A esta estrutura de classe horizontal sobrepõe-se, segundo Humbert (1984, p. 23), uma clivagem vertical que lhe dá sentido. “A sociedade homérica é dominada por um grupo que é, ao mesmo tempo, unidade de produção econômica e uma das bases do poder político. É a oikos.” 23
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O que é a oikos, que literalmente significa casa?
[...] a oikos reúne em torno do chefe da casa e de seus parentes próximos, [...] todos os que, instalados na propriedade participam de sua exploração, seja o conjunto dos bens e meios destinados à produção agrícola e à pecuária, sejam os camponeses livres, pastores e escravos, suficientemente amplos para que a p ropriedade seja auto-suficiente (p. 24).
A oikos é também uma estrutura jurídic a e política. O chefe da oikos tem sob sua dependência todos os que nela habitam, aos qua is garante proteção e defesa, que se funda no poder de jurisdição doméstica sobre seu domínio (apenas as questões graves são levadas ao rei e a seu conselho). O indivíduo aí ganha seu estatuto, identidade e proteção, uma vez que isolado não tem existência social e pode ser morto (p. 24). A oikos, porém, não é uma unidade isolada, ela faz parte de uma unidade maior, que agrupa várias oikos e dá origem à fratria (ou fraternidade de armas). Na Ática havia 12 fratrias, por sua vez repartidas em quatro tribos. A oikos é unidade de poder político, e é a condição do poder:
É a oikos que dá suporte e faz de seu chefe um nobre (os aristoi, os agathoi). A estrutura agrária muito estável da oikos faz com que seja impossível a um pretendente adquirir a terra suficiente para tornar-se um senhor de prestígio. O sistema, então, acaba por gerar uma casta. Primitivamente aristocracia agrária, a nobreza se converte em nobreza de sangue. A nobreza se fecha totalmente. A oikos, que deu aos companheiros do rei os meios (riqueza e prestígio) de acesso ao poder, lhes permite, no fim do período homérico, assegurar-se o monopólio do poder (p. 25).
Esta nobreza, convertida em casta para se proteger, minará e eliminará o poder do rei. E o fará de forma gradativa, mediante um processo de separação dos poderes até então enfeixados na sua mão, que dará origem ao colégio dos arcontes, cujos membros são eleito s, inclusive o rei, por dez anos, cada um deles exercendo o poder por um ano. Os eleit ores são o conjunto dos nobres que constituem o Conselho dos nobres ou “areópago”. O areópago ou Conselho, do qual fazem parte os arcontes, é constituído pela elite política e econômica da nobreza. Seus membros têm mandato vitalício e se constituem no verdadeiro núcleo do poder da sociedade. Reúnem-se, não mais no palácio do rei, mas n a Colina de Ares (Deus da guerra), daí o nome de Conselho da Colina de Ares ou Areópago. Este Conselho, como poder supremo, controla os arcontes que, por turno, exer cem o governo. 24
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A assembléia do povo, composta por todos os que não fazem parte do Conselho, nada representa. Mesmo quando convocada, nada diz, nada nunca decide. É apenas um testemunho que observa. Perdeu, com a monopolização do poder pela nobreza, inclusive o poder de dar ou negar confiança aos governantes. Deixou de ser, como afirma Humbert (1984), mesmo passiva, um contrapoder. Ao povo resta apenas o caminho do confronto, do qual sairá vitorioso em Atenas e derrotado em Esparta e na maioria das póleis da Gré cia. Essa nobreza oligárquica, que monopoliza o poder e a riqueza da sociedade, também se apropria da religião ao moldar um panteão e dinastias de deuses das quais esta nobreza pretende ser descendente. Deuses e deusas feitos à imagem e semelhança da nobreza oligárquica. Por toda a parte a nobreza controla com mão de ferro a sociedade. E o povo foi completamente excluído de qualquer intervenção nos negócios públicos: governo, guerra, administração da justiça:
O exercício do poder, da riqueza, o prestígio deram às famílias tradicionais mais poderosas uma coesão e uma amplitude que lhes permitirão por longo tempo dominar a polis. Estas famílias atribuíram a si não só o título de “agathoi”, os “bons” ou sua forma superlativa, os “aristoi”, os melhores, mas também de “eupatridai”, isto é , os “bem nascidos” (Humbert, 1984).
A religião, a administraçã o da justiça, as armas – só acessíveis aos nobres e seus clientes – o poder, enfim, só têm sentido no interior de uma linhagem ou com o apoio de uma linhagem ilustre. Em seu con junto, a nobreza se converte numa oligarquia. A cultura também estará a serviço dos interesses da nobreza. A esc rita, que reapare ce no século 8º, se presta à difusão da Ilíada e da Odisséia, que se converte num manual de educação da nobreza. Como observa Aristóteles, no entanto, “A desigualdade gera o descontentamento: e quando é prolongado, provoca um estado de crise” (Aristóteles. Política, VIII, 2007, 9, 21). E acre scenta Humbert (1984):
A nobre za mante ve- se no pod er enquanto se perpetuavam as condiçõe s que lhe deram nascimento: a riqueza ligada à terra. Mas a partir do momento em que o comércio se tornou outra fonte de riqueza, a partir do momento em que os camponeses tomam consciência de sua existência e não 25
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mais aceitam um acesso à terra que sequer lhe permite sobreviver, o Conselho e o povo entraram em conflito. E as alternativas tentadas pelos reformadores foram muitas: deportar o povo, decapitá-lo politicamente e tentar composições e acordos. As poleis do mundo grego dão amostras de todas essas tentativas. Duas, no entanto, representam as soluções radicais da luta de classes que sacode a Grécia nos sé culos VII e VI: Atenas e Esparta.
1.1.3 – DA CRISE DA SOCIEDADE ARCAICA À DEMOCRACIA ATENIENSE E À AUTOCRACIA MILITAR ESPARTANA Hesíodo é um poeta completamente diferente de Homero. Ele não canta a nobreza,
seus feitos, seu heroísmo, seu parentesco com os deuses. Ele canta e conta a miséria dos pobres, dos camponeses, a exploração que sofrem por parte de uma nobreza que lhe suga o sangue. Ele canta o trabalho do camponês, exalta a sua luta para sobreviver. Eis o conselho que ele dá ao irmão Perseu:
[...] vá, mas lembra-te sempre de meu conselho: trabalha, Perseu, para que a fome te tenha ódio e que tornes amado da grande deusa Demeter – deusa da agricultura e da fertilidade – que encherá teu celeiro de trigo que dá vida (Hesíodo, Trabalhos, v. 298ss).
É notável o esforço de Hesíodo no sentido de construir uma referência identitária e de classe dos camponeses perante os nobres, que ele vai chamar de “ reis comedores de presentes” por sua venalidade na administração da justiça e do governo que eles mantêm e controlam de forma monopólica. Em Hesíodo temos a primeira manifestação de uma consciência camponesa que transformará os camponeses em atores centrais das reformas políticas que se s eguirão. Não são somente os camponeses que se movem. Um pouco por toda a parte e em decorrência da expansão das colônias gregas ao longo do litoral do Mediterrâneo, s urgem novos atores econômicos e sociais que entrarão no confronto com a nobreza e se u regime oligárquico: artesãos da cerâmica, da metalurgia, do bronze e do ferro, joalheiros, pedreiros e marceneiros e uma burguesia mercantil cada vez mais rica e poderosa, de uma riqueza que não vem da terra, mas do comércio de longa distância, da bacia do Mediterrâneo. Todos esses novos personagens pretendem partilhar o poder da nobreza, do qual e stão excluídos. As fontes de tensão social estão dadas. E é entre os camponeses que ela toma corpo e se converte em luta de classes, que irá levar às reformas. Esclarece Aristóteles: 26
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[...] os nobres e o povo entraram em conflito por um longo período. Com efeito, o regime político era oligárquico em tudo; e em particular, os pobres, suas mulheres e seus filhos eram escravos dos ricos e eram chamados “clientes” e “hectomeros”, isto é, trabalhavam para os ricos cinco dias em seis. Toda a ter ra estava na mão de poucos. E se os pobres não pagassem suas d ívidas, caíam na escravidão eles e se us filhos” (Política, 2007, 2, 2).
Partilha da terra e fim da escravidão, eis o e ixo maior do conflito: crise política e crise agrária. Ambas requerem reformas. E como a aristocracia detinha de forma absoluta e mantinha sob controle a administração da justiça e o fazia a partir de princípios e regras estabelecidas pelo Conselho dos nobres, ao qual a população não tinha acesso, a primeira reforma incidiu sobre os códigos, leis e procedimentos da justiça. E a demanda central era que as leis fossem escritas e to dos pudessem ter acesso a elas. É provável que os gregos, ao se expandirem pelo Mediterrâ neo oriental, tenham conhecido a sua prática de gravar em pedra as leis e códigos que regiam a s ociedade. O exemplo do rei babilônico Hamurabi, que gravou seu código em pedra, em 1800 a.C., chega à Grécia 1.200 anos depois. Atenas, que fez sua s primeiras reformas e m 624, foi antecedida pelas reformas jurisdicionais da Locrida, em 663, e da Catania em 633. Corinto e Creta fizeram suas reformas durante o s éculo 6º.
Administração da justiça, d ireito pena l, d ireito civil: por to da a part e se afirma simultanea mente a autoridade do Estado em detrimento dos interesses da aristocracia ou dos preceitos tradicionais. A obra dos grandes legisladores marca uma data na história do direito e assegura o primeiro triunfo do demos (do povo) sobre os nobres (Levêque, 1967, p. 137).
1.1.4 – DRACON – 624 A.C. A reforma do Arcon te Drac on, governan te de tur no em 624, dá o pri meiro passo para as sucessivas reformas em Atenas. A administração da justiça era um privilégio exclusivo da nobreza. Dracon não muda a lei em vigor. Publica a lei penal que confere a sua reforma a fama de severidade (lei dr aconiana). São publicadas também as leis referentes ao Direi to de Família, a devolução sucessória, a condição (de e scravos) dos devedores insolúveis. 27
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O avanço representado pela reforma consiste no acesso de todos aos termos da lei. Consiste também na vitória da comunidade, da pólis, sobre as linhagens de nobres. É a primeira fenda na cultura e na prática jurídica monopolizada por uma classe. E há outros avanços ainda embrionários, como o da punição i ndividual. Ao se desfazer a linhagem, o crime de um indivíduo não é mais um crime coletivo do clã ou da família, mas emerge em seu lugar o indivíduo. Em vez de responsabilidade ou crime coletivo, a responsabilização criminal do i ndivíduo se torna possível... A sanção do crime será definida agora pela gravidade da intenção. O delito será doloso – intencional –, ou culposo – involuntário, não-intencional. Punir-se-á, portanto, a vontade criminosa de um acusado e não mais, como antes, o clã ao qual pertence o criminoso. Reconhece-se também a busca individual de reparação ou vingança pela ofensa ou lesão recebida. Antes, o indivíduo fora do clã simplesmente não tinha existência. A ação se torna individual. Com a re forma de Sólon – que virá logo depois da de Dracon – a ação s erá popular, isto é, aberta a todos os cidadãos. Sob todos os aspectos, começam a se r definidos os primeiros t raços daquilo que virá a ser, muitos séculos depois, o Direito moderno (Humbert, 1984, p. 46-47).
1.1.5 – SÓLON – 594 A.C As reformas de Dracon, longe de resolver os problemas da sociedade atenien se, agravaram-nos, pois os nobres recusavam-se a fazer q ualquer outra concessão, explicitando de forma ainda mais clara as profundas diferenças sociais, d as quais o povo ia tomando consciência. Sólon pertencia a uma família aristocrática e muito rica. Poeta, assumia posição favorável aos camponeses em se us poemas. Tornou-se popular entre as camadas pobres rurais e urbanas. Foi nomeado arconte com a tarefa de propor uma nova reforma capaz de pacificar a sociedade. Não conseguiu seu intento, mas sua obra marca definitiva, teórica e metodologicamente as concepções de sociedade e das re gulações que esta necessita instaurar para viver. 28
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Sólon conhecia as e speculações filosóficas dos primeiros filósofos jônicos, Tales e Anaxim andro. Eles est avam e m busca das leis n atur ais que regem pe rmanentemente o universo. Sólon tinha a convicção de que também existem leis per manentes que governam o mundo social. Essas, como as da natureza, são próprias da sociedade e independem da vontade dos deuses, nem são por eles reveladas aos homens. Ele diz num poema:
[...] da nuvem vem a neve e a chuva de g elo (de pedras de gelo); ao relâmpago lhe sucede necessariamente o trov ão e se uma cidade tiver nela homens excessivamente poderosos, irá à ruína e o povo (demos) cairá sob o poder de um déspota. O princípio da causalidade acaba de ser descoberto. E a causa da ruína da cidade é o desequilíbrio, o excesso (que Sólon vai denominar de hybris) de grupos rivais. Desmedida dos ricos em seu afã irracional e louco de lucro (é próprio da riqueza não ter medida). Loucura também do povo que em sua fraqueza e imaturidade está sempre pronto a lançar-se nos braços de um tirano. Excesso do povo igualmente em seu desejo imoderado de se apropriar da riqueza dos nobres (eupátridas). Para Sólon, os nobres (os r icos) são um contrapeso à p ressão popular; seus privilégios uma vez justamente contidos, servem de barreira a uma massa politicamente não formada (Humbert, 1984, p. 48).
Seria errôneo pensar que Sólon teria adotado uma espécie de determinismo físico. Existem as leis da sociedade, mas é o homem o único responsável por seu destino. E diz: “Nossa cidade não perecerá por um decreto de Zeus... São os próprios cidadãos, por sua avidez de dinheiro, por sua estupidez, que cond uzirão a cidade à ruína.” O futuro da sociedade política não é fruto d o acaso. O homem é o senhor deste mundo coerente. As reformas de Sólon são a primeira afirmação da capacidade exclusivamente humana de propor soluções globais às crises que ele próprio produz. Sólon separa a política da religião, das divindades do transcendente. A política e a sociedade são tarefas humanas, imanentes. Maquiavel retomará estas teses no século 16 d.C. Por onde i rá Sólon iniciar suas propostas de reforma social? Pela classe social que fora mais severamente expropriada e explorada pela nobreza latifundiária. Para eles, Sólon decretou o “estado de seichtheia”, contra a voracidade dos nobres. E i ncidia sobre o passado, o presente e o futuro. 29
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As disposições imediatas para o pres ente: os devedores terão suas dívidas extintas, sejam elas públicas ou privadas, isto é, os proprietários nobres, credores e o Estado não receberão qualquer indenização. Ficam abolidas as dívidas dos pobres. Igualmente ficam suprimidas as hipotecas das terras. São extintas também as humilhantes taxas de pagamento (5/6) da colheita. Sólon extingue e proíbe a escravização de gregos. Os devedores insolventes caíam na escravidão, muitos deles eram vendidos a estrangeiros e muitos outros fugiam para não serem escravizados. Liberta todos os escravos e estabelece o res gate dos que foram vendidos ao estrangeiro por conta do Estado. Sólon proíbe a hipoteca da terra dos camponeses e dos membros de sua família, extinguindo desse modo a “máquina” que na Antiguidade fabricava escravos: as dívidas. A legislação de Sólon incide sobre outras ques tões e atende a outros sujeitos sociais. Ocupa-se em definir leis que protegem a família nuclear e nela, o direito de sucessão. Sólon, porém, não propõe uma reforma agrária, uma redistribuição geral das terras. Ele sugere a urbanização dos sem-terra, incorporando-os nas atividades industriais e nos serviços de transporte marítimo. Para tal, propôs e instituiu uma reforma d e pesos e medidas, uma reforma monetária. Proibiu a exportação de trigo, método adotado pela nobreza para, produzindo escassez, aumentar-lhe o preço e alimentar a cadeia de dívidas e a e scravidão. Sólon dá a esses camponeses urbanizados garantias de participação política, militar e me ios de vida. Sólon avança ao estabelecer o direi to de todos os cidadãos de participar do Estado (da pólis): na sua defesa, como s oldados; como partícipes do sistema de administração da justiça – o crime torna-se uma responsabilidade coletiva –; abre o acesso e amplia a participação na pólis das camadas subalternas, mas não o faz de forma igualitária. O critério de participação é censitário, isto é, em conformidade com a riqueza do indivíduo, critério definido anteriormente no direito de participação na defesa da pólis e que dá origem ao modelo hoplita de organização do exército da pólis. 30
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As catego rias de sold ados e cidadãos cens it ári os são as segu intes: os pentacosiomedimnes, aqueles cujos be ns equivalem a 500 medimnes ou mais; os cavaleiros são os que têm uma renda de 300 medimnes e os zeuguitas, a quem corresponde uma renda de 200 medimnes. E, finalmente, os tetes, que estão abaixo desses patamares, que constituem as camadas pobres da sociedade. Embora esta divisão da sociedade já exi stisse, a novidade introduzida por Sólon foi que a avaliação das rendas não se fazia mais em espéc ie, mas em dinheiro. A dracma correspondia a um medimne e as listas censitárias das cidades não eram mais fixadas exclusivamente com base nos rendimentos das terras, mas de acordo com o rendimento total. Essa medida representou efetivamente a garantia de acesso à participação política dos cidadãos cujas rendas proviessem do comércio e da indústria (Jardé, 1977, p. 167; Humbert, 1984, p. 34). A faceta verdadeiramente revolucionária da reforma política de Sólon consiste no acesso dos “tetes”, daqueles que, por definição, não têm renda alguma, e eram isentos das o brigações militares, de acesso à assemb léia, à “eclésia”. Agora eles ascendem aos novos poderes da pólis criados por Sólon. O povo, o demos, passou a participar da eleição dos magistrados – outrora prerrogativa da nobreza – e da a ssembléia popular composta de 6 mil c idadãos, que passou a exercer o direit o de ratificar as sentenças dos magistrados. Pronunciar as sentenças converte-se em direito soberano do povo, um direito coletivo. Sólon igualmente confere a todo o cidadão a iniciativa da lei: todo o delito contra um homem ou uma mulher, uma criança, um concidadão ou estrangeiro livre ou escravo pode ser levado à justiça por qualquer cidadão para que o delito seja reparado e o delinqüente castigado. Cada indivíduo-cidadão é, assim, pessoalmente responsável pela aplicação do direito e da justiça. As reformas de Sólon, porém, não são ainda a democrac ia, apesar do acesso dos “tetes” à justiça e à eclésia, da redução dos privilégios dos nobres e dos devedores libertados de suas dívidas e da escravidão. Sólon não propôs uma Constituição que igualasse a t odos perante a lei e uma distribuição igualitária do poder político. A sociedade nascida das re formas de Sólon no início do século 6º permanece desigual econômica, social e politicamente. 31
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Para Sólon, a sociedade divide-se entre os bons ou nobres (os kaloi kagathoi, literalmente, belos e bons) e os feios e maus (kakoi) ou vilões. Os nobres não partilharão suas terras com os pobres porque eles detêm a virtude política, porque é perigoso dar muitos bens a que não tem nada, posto que eles não têm a sabedoria necessária. Por isso, diz Sólon, “os nobres não terão suas terras confiscadas, pois não me agrada dar aos bons e aos maus uma parte igual das terras férteis da pátria” (Aristóteles, Política, 2007, 12; Humbert, 1984, p. 54). O princípio ordenador e pacificador da sociedade e que Sólon denominou Eunomia, que significa “ordem e medida”, impõe aos nobres a renúncia de seu orgulho e de sua força brutal e ao povo que se contente com os novos poderes que recebeu s em exigir mais nada. Não pode haver entre essas duas classes nem vencidos, nem vencedores. Não foi isso que aconteceu. Os nobres reagiram à perda de seus privilégios e o povo por não ter recebido o que desejava, sobretudo uma justa distribuição da terra. E a Ática acabou por dividir-se em três facções antagônicas: o “partido da planície”, composto pelos ricos e nobres proprietários de terras, defensores de um governo oligárquico; em confronto com eles, formou-se o “partido da montanha”, que agrupava os camponeses pequenos pro prietários, pastores e sem-terra, decepcionados por não terem recebido as terras que reclamavam para si; e o “partido da costa”, isto é, da cidade de Atenas e do litoral, que aceitaram as reformas de Sólon, pois por meio delas artesã os e mercadores podiam ter acesso às magistraturas e aos Conselhos. A Ática estava à beira de uma gue rra civil. Es sas trê s facções, acentua Aris tóteles, em contínuo confronto entre si freqüentemente impediam a eleição dos magistrados (Aristóteles, Política, 2007, 13) até que, em 561 a.C., um nobre de nome Pisís trato que, eleito chefe do exército e habilmente apoiado no partido da montanha (os camponeses pobres), dá um golpe de Estado e se apodera do poder como tirano. A “tirania” era uma forma de governo instituída em diversas póleis da Grécia, que consistia na reunião de características monárquicas e democráticas: monárquicas porque o tirano possuía autoridade ilimitada, sustentado por um exército de soldados mercenários; democráticos porque, para conquistar o poder, o tirano se apoiava nas c lasses subalternas – os pobres do campo e da cidade –, diminuindo os privilégios da aristocracia e promovendo o bem-estar e a prosperidade do povo. 32
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Pisístrato governou Atenas por 20 anos, até sua morte, em 528 a.C. Ao invés de promover uma reforma agrária, Pisístrato investe pesadamente na infra-estrutura urbana e portuária e converte Atenas num dos mais poderosos centros industriais e comerciais d o Mediterrâneo e atrai os camponeses mais pobres para a cidade, integra-os à economia urbana e aos demais, converte-os numa classe estável de pequenos p roprietários, confiscando as terras das famílias nobres que o tirano mandara ao exílio. A estes novos proprie tários concede os emprés timos necessários para que façam os investimentos na formação das culturas permanentes – a oliveira e a vinha – e na compra de instrumentos e animais de trabalho. Em contrapartida, favorece a importação de trigo para o abastecimento da população. A Ática, mediante a indústria urbana e a cultura da vinha e da oliveira, tem excedentes exportáveis e meios de inserção no amplo mercado do Mediterrâneo. A pólis ateniense não mai s precisa nem depende de sua aristocracia. Nasce e se c onsolida neste período uma classe média ampla e próxima das aspirações do povo, que muito rapidamente tomou consciência de si, de sua identidade. Estava aberto o caminho para a democracia (cf. Humbert, 1984, p. 55-58; Jardé, 1977, p. 166).
1.1.6 – CLISTENES E A DEMOCRACIA Depois de derrotar, em 507 a.C., uma tentativa da nobreza de voltar ao poder, Clístenes, um aristocrata aliado das camadas populares, inicia a mais profunda reforma que dará origem ao regime democrático de Atenas. A reforma completa, a ruptura definitiva com as antigas estruturas de poder e de organização da sociedade: e em seu lugar criará uma tríplice estrutura de inserção do indivíduo na pólis: o demos, a tritie e a tribo. O demos é a célula local de base. Clístenes divide o território da pólis (do Estado) em cem circunscrições, os demos, igualmente distribuídos em três espaços: a cidade, a costa (o litoral) e o interior. A cidade de Atenas é dividida em 30 demos, que obedecem a uma geografia semelhante à dos nossos bairros. Os demos do interior organizam-se sobre as comunidades rurais pré-existentes. Cada demos agrupa entre 300 e mil pessoas – homens adultos. Isto dá à Ática uma população total de 25 a 30 mil cidadãos, 80 a 100 mil com suas famílias, às quais se juntam uns 10 mil metecos e uns 30 a 40 mil escravos. 33
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O demos agrupa todos os indivíduos residentes em s eu território, independentemente de classe social, origem étnic a ou posses. Sua identidade lhe vem do demos ao qual pertence e dele rece be inclusive o nome. Todas as referências ao passado são abolidas. O demos cumpre uma dupla função. Em primeiro lugar, é uma unidade administrativa de base que politicamente se expressa na assembléia, que eleg e o demarca ou “prefeito”, cujas funções são: gerir as finanças locais e os bens da comunidade, supervisionar os cultos, manter o cadastro dos cidadãos e cumprir a função de polícia. É esta assembléia também que elege os membros que formarão, por um ano, o Conselho da Cidade (a Boulé). Em segundo lugar, o demos é o lugar no qual todos os cidadãos aprendem a fazer política. É uma escola permanente de civismo. É no seu demos que o adolescente inicia sua vida pública, de cidadão. A segunda estrutura de representação e organização política da pólis é a “tritie”. Seu objetivo é evitar que os demos se tornem entidades isoladas, feudos e, desta forma, se perca de vista o interesse geral da pólis. Cada tritie agrupa três ou quatro demos contíguos. Obtém-se, assim, 30 trities, ou circunscrições homogêneas: dez para a cidade, dez para o interior e dez para o litoral. Para evitar que se tor ne um organismo poderoso, a tritie não dispõe de meios efetivos de poder, como magistrados e assembléias. Ela serve apenas para encabeçar os demos e formar as t ribos. As tribos criadas por Clíste nes visam a eliminar as anteriores sobre as quai s a nobreza exercia completo controle. Essas novas tribos são circunscrições puramente territoriais, porém não homogêneas, pois cada tribo é composta de três trities, misturando uma tritie da cidade, uma do litoral e outra do interior, de tal sorte que na tribo estão representados t odos os cidadãos, de todos os territórios da pólis. A tribo, geografic amente descontí nua, mistura, funde, as três fraç ões da população que estavam na base das lutas e dos conflitos p olíticos anteriores. Em contrapartida, a tribo assume um caráter “ nacional”, pois cada uma delas contém representantes de toda a Ática e impede que a cidade cresça em poder e rompa o equilíbrio geral. Cada tribo designa, por sorteio, todo ano, os 50 ci dadãos que representarão cada tribo na Boulé, composta de 500 membros, que é a imagem em miniatura, mas fiel, da totalidade do corpo cívico da pólis. 34
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1.1.7 – O CONSELHO DOS 500 OU BOULÉ O Conselho (Boulé) criado por Clístenes é formado de 500 membros, designados cada ano por sorteio, à razão de 50 por tribo, a partir das listas feitas por cada demos. Todos são candidatos, porém com a seguinte limitação: ninguém pode se r conselheiro mais de duas vezes em sua vida, o que garante a alternância de gover nar e ser governado. Todo o cidadão pode, por duas vezes em sua vida, ascender ao órgão máximo de governo e de poder da pólis. É o Conselho que convoca a assembléia dos cidadãos e a dirige, é ele que propõe as pautas de deliberações a serem tomadas. Cabe ao Conselho também governar a pólis, dia e noi te, em sessão permanente, não porém, simultaneamente, reunindo todos os 500 membros. O sistema de tribo resolve o problema da seguinte forma: durante um décimo do ano (chamado Pritania), os 50 membros de uma das dez tribos residirão sem descontinuidade no quarteirão dos pritanos, prontos a se reunirem todo o dia no “bouleterion” (prédio do Conselho o u Boulé) que Clístenes ma ndou construir sobre a “ágora”. Durante este “mês político” os 50 conselheiros (buleutas) assumem o nome “pritanes” (isto é, os chefes, os primei ros) e, cada dia, escolhem, por sorteio, um deles para ser o presidente (epistate dos pritanes). O presidente não pode ser reele ito. Em conseqüência, cerca de 360 buleutas sobre 500, cada ano, podem orgulhar-se de ter sido por um dia – e u nicamente por um dia – o chefe de Estado. São previstas sessões plenárias do Conselho, neste caso todos os buleutas participam delas (cf. Humbert, 1984, p. 62-71; Aristóteles, Política, 2007, liv. VI, cap. I-VIII). A estrutura da pólis compreende também outros organismos de representação e governo. Salientam-se entre outros: o exército e seus comandos, a assembléia dos cidadãos (a Eclésia), os cultos cívicos e o ostracismo. O novo exército da pólis é composto por todos os cidadãos. Sua inserção militar se f az por meio das dez tribos, cada uma delas formando um regimento. Cada tribo também elege o comandante do seu regimento. Os comandantes dos regimentos são subordinados ao comandante geral do exército denominado “arconte polemarco”, que é eleito pela assembléia dos cidadãos. 35
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1.1.8 – A ASSEMBLÉIA DOS CIDADÃOS OU ECLÉSIA A assemblé ia dos cidadãos ou eclési a é o órgão sob erano de gover no e de poder. A presidência da assembléia cabe aos “epistates dos pritanes” de turno. A assembléia se reúne em um prédio especialmente construído para tal, denominado Pnix. Ali os cidadãos participam das deliberações, escutam os discursos e os debates, sentados em d egraus semelhantes aos de um teatro. Clístenes garante a cada ci dadão o direito de tomar a palavra na assembléia, antes de votar. Este princípio será incorporado por todas as democracias antigas e modernas.
1.1.9 – OS CULTOS DO ESTADO Clístenes propõe um novo c alendário, não mais religioso e lunar, mas político. A pólis viverá segundo o ritmo da sucessão anual das dez pritanias que, a seu turno, governam, promovem as assembléias, as eleições, prestações de contas, etc. Clístenes não pretende abolir o calendário religioso anterior, simplesmente ele não é m ais o calendário da pólis. É um calendário privado, no qual se conservam os antigos cultos dos ancestrais, com seus ritos e sacerdotes. Cada demos e cada tribo terá seus deuses cívicos, suas festas e celebrações. A religião se subordina à política. O conjunto dos deuses cívicos compõe o no vo panteão da pólis. O ostracismo proposto por Clístenes é um instrumento de proteção da pólis e de autodefesa dos cidadãos. Consiste na cassação ou suspensão dos direitos políticos de um c idadão cujas ações, atitudes e propostas impliquem ameaça à pólis. O acusado só s erá punido com a pena do ostracismo se s eu nome for anotado por pelo menos 6 mil cidadãos na concha de uma ostra (ostrakon, em grego, daí ostracismo). O condenado por ostracismo deverá abandonar a pólis dentro de dez dias e por dez anos. Não é, porém, uma condenação penal, n em implica multa em dinheiro, nem perda de sua capacidade civil e de seus direitos cívicos, os quais simplesmente suspen sos. O ostracismo não desonra a pessoa nem envolve os membros de sua família. O condenado tem direito a apelar da sentença. 36
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O Estado democrático fundado por Clístenes atingirá sua ple nitude, a isonomia, isto é, a autoridade, por ser exercida em função do interesse comum, e não segundo os interesses de uma classe ou de um indivíduo. Todas as deliberações são s ubmetidas ao público e presta-se a ele contas da autoridade exercida, esclarece He ródoto. A democracia ateniense se completa quando todo o poder passa pelos canais constituídos pelos demos. A democracia é o governo da pólis pelos demos. Ela atingirá sua plenitude no século 5º, depois de t er passado pelo duro teste das guerras contra os persas (cfe. Levêque, 1967, p. 196-198; Humbert, 1984, p. 71-76).
SEÇÃO 1.2 Esparta: a pólis da disciplina militar Esparta passou no século 7º a.C, tal como as demais pólis gregas, por uma severa crise social. Os messêni os, povo vencido quando da invasão dos dórios, iniciaram uma longa rebelião que acabou por exigir da nobreza proprietária das terras, como ocorrera em Atenas, re formas profundas da estrutura social. O fio condutor des sas reformas é aqui também a eunomia, a disciplina, a ordem. Aqui, e ntretanto, diferentemente das reformas propostas por Sólon para Atenas, elas têm sucesso e Esparta é marcada definitivamente por elas. A vitória sobre os messênios revoltados só foi possível pela incorporação ao exérc ito da nobreza, da massa dos cidadãos comuns, dos esparciatas, ao todo uns 7 ou 8 mil cidadãos. A nobreza proprietária das terras desfe z-se delas e as pôs a serviço de toda a comunidade. Renuncia também às suas prerrogativas de classe e às diferenças em relação aos cidadãos comuns. Nasce daí a sociedade dos iguais. Todo o espartano recebe um lote de terra (cleros), inalienável e não suscetível de hipoteca. O lote é cultivado por um hilota, messênio derrotado e escravizado, propriedade do Estado, que deve entregar em espécie uma quantia de alimentos suficiente para manter a família do titular e sua con tribuição diária para a refeição comum. Aos e spartanos é proibida qualquer atividade econômica ou cultural. Sua ocupação única e permanente é a guerra. Todos os espartanos são, em princípio, iguais nas posses. 37
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Essa igualdade se estende também à educação, que c onsiste na formação do soldado. Sua formação militar inicia-se aos 7 anos e mais se asseme lha à doma de um animal. Depois de passar por sucessivas provas e iniciações, torna-se soldado aos 18 anos. É autorizado a casar-se aos 30. Sua educação intelectual reduziu-se à aprendizagem de um “catecismo moral” expresso em sentenças curtas ou “ lacônicas ”. Politicamente, os espartanos também são iguais. Todos participam da ass embléia. A assembléia escolhe, entre os iguais, magistrados ou éforos, cujo mandato dura um ano. A assembléia é dirigida pela “Gerusia”, o conse lho dos anciãos, composto por todos os que, chegados aos 60 anos, encerraram sua participação ativa no ex ército. Os espartanos conservaram também a figura política do rei, cujas funções eram exe rcidas por duas pessoas, simultaneamente, das quais as principais eram comandar o exército nas guerras e presidir celebrações religiosas e cívicas. O militarismo que perpassou a sociedade dos iguais esterilizou a s ociedade espartana em termos culturais, artísticos e econômicos (cf. Humbert, 1984, p. 38ss) e observa Levêque (1967, p. 181, 186-187):
Esparta aparece claramente como um fenômeno sociológico quase único, como um anacronismo vivo, com a decisão cruel e muito sua de continuar fiel aos esquemas ancestrais e à sua sociedade igualitária, herdade de idade s longínquas.
E acrescenta:
Os espartanos amputaram-se de tudo o que poderia temperar sua rudeza. Desde e ntão, Esparta não sorrirá... nada pode dissimular o fator de egoísmo que entra na sua constituição oligárquica, a serenidade que entra no seu imobilismo, o desprezo pelos bens espirituais que entra na sua ruptura com a civilização (p. 186-187).
Essa sociedade exclusivamente voltada para a guerra s ó foi possível porque, como vemos, submeteu e escravizou populações de c amponeses obrigados a trabalhar suas terras em regime de escravidão, os hilotas. A sociedade igualmente dependia de outro imp ortante grupo humano, os “periecos”, isto é, os que habitavam a periferia urbana e as terras cultivadas pelos hilotas. Gozavam de alguma liberdade, dedicavam-se ao comércio, ao 38
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artesanato, à indústria. Dif erentemente dos hilotas, nunca se revoltaram e parece terem aceitado com resignação sua marginalização política e militar (Jardé, 1977, p. 162; Humbert, 1984, p. 41). Embora tanto Esparta quanto Atenas tenham iniciado suas trajetórias históricas no mesmo período e com o mesmo problema social a resolver, as duas soluções foram diametralmente opostas. Ambas duraram um longo período e te rminaram suas trajetórias sob o domínio dos macedômios, primeiro, e dos romanos, depois. Entre esses dois extremos, de Esparta e Atenas, estão as demais poleis gregas. Todas, em seu conjunto, nos legaram boa parte das bases sobre as quais se assentam as sociedades ocidentais.
SEÇÃO 1.3 A Maturidade da Democracia Ateniense – século V A civilização grega, ao término do século 6º , já percorrera todas as ex periências políticas, fruto inicial de revoltas e revoluções contra as aristocracias que desde o século 8º, se haviam instalado no poder e o monopolizavam de forma absoluta, constituindo-se numa cerrada oligarquia. Desses movimentos antiaristocráticos ou antioligárquicos surgem, a partir do século 7º, os regimes governados por tiranos que promoveram em quase todas as póleis, à e xceção de Esparta, reformas políticas e sociais que implicaram, senão o fim da aristocracia, pelo menos uma decisiva diminuição de seu poder e riqueza. Atenas, entretanto, rapidamente ultrapassou o regime dos tiranos e em seu lugar instaurou um regime baseado numa ampla participação dos demos. Foi a reforma de Clístenes. Os atenienses, porém, não deram a seu novo regime o nome de democracia. A palavra não existia, embora, como observa Humbert, na prática, a realidade do poder já estivesse no povo. 39
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A palavra democracia apare ce pela prime ira vez, ainda segundo Humbert, na tragédia de Ésquilo, as Suplicantes, escrita em data incerta entre 499 e 472 a.C.: “A mão soberana do povo” (em grego “demou cratousa kheir ”) “é a transposição poética do poder soberano de votar a lei erguendo a mão. A maneira como a palavra foi construída é re veladora. Não se trata de um decalque de “mon-arquia”, palavra já em uso, ou “oligarquia”. “Arquein” exprime o poder de mando sobre o outro, sobre um sujeito: o termo só conviria ao povo do qual se pode dizer que não é senhor de si mes mo. A palavra “cratein”, em contrapartida, abria um caminho de si gnificações muito mais rico: a idéia de um poder que tem sua origem, sua fonte, em si mesmo, de um poder, portanto, que se possui de forma absoluta. “Demo-cratia” exprime a noção de “poder soberano” que reside no povo, que nada mais é do que o modo como os antigos gregos afirmavam a “soberania popular” (Humbert, 1984, p. 78). Atenas pôde realizar a mais importante, talvez única, experiência democrática radical da Antiguidade porque reuniram-se na Ática do fim do século 6º e no século 5º a.C. as condições intelectuais, materiais e jurídicas que permitiram esta extraordinária experiência política e social. Os persas, depois de uma rápida expansão, iniciada em 559 a.C, submeteram a Ásia Ocidental, as bordas da Ásia Central, o Egito e a Líbia e em 512 a.C submeteram a Trácia, região nordeste da Grécia. Em 494 submeteram todas as colônias jônicas da Ásia Menor (Mileto, Éfeso, Colofon). Os persas pretendiam submeter a seu poder todas as costas do Mar Negro, controlar os estreitos de Helesponto e d a Propôntida, além de todo o Mediterrâneo Ocidental e a Península Balcânica. A ameaça persa era real e iminente e poderia significar a extinção da civilização grega e o fim da recém-criada democracia ateniense. Em 490 a.C, sob o comando de Mardônio, os persas avançam sobre a península, submetendo as póleis uma após a outra. Atenas, porém, resolve resistir e derrota duas vezes os p ersas, a primeira vez na batalha da planície de Maratona, em setembro de 490 a.C. Os persas são novamente derrotados em 480 a.C na batalha naval de Salamina. Os persas, até então invencíveis no mar, retiraram-se para a Ásia Menor. O projeto de tomar o Mediter râneo foi abandonado quando as esquadras persas e de seus aliados etruscos e cartagineses foram derrotadas, ambos inimigos de Roma, que saberá tirar proveito desses eventos. 40
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A vitória sobre os persas foi o teste decis ivo da democracia ateniense. O povo compreendeu definitivamente que era não só o poder político, mas também o poder militar. A pólis foi salva pelos “demos armados, pelo povo em armas, inclusive aquela par cela da população pobre, chamada “tetes” que havia sido negligenciada por Clístenes. Os tetes tomaram definitiva consciência de si na batalha de Salamina. A defesa da pátria e a vitória contra o poderoso inimigo os converte de vez em cidadãos. Os tetes eram o s remadores dos navios de guerra gregos. Eles foram, portanto, decisivos na vi tória. Em 462 a.C., Efialte, chefe do partido democrático, decide abolir todas as funções políticas e jurídicas do Areópago, conselho mantido por Clístenes e onde se re presentava ainda a velha aristocracia oligárquica, com poderes, s egundo Aristóteles, de tutelar a constituição, de controlar os altos magistrados (arcontes e estrategos) e a jurisdição criminal. Efialte atribui esses poderes ao conselho dos 500 e à assembléia popular. Ao concluir a reforma Efialte foi assassinado por um estrangeiro (meteco) a mando e armado pelos partidários da nobreza. Cimon, influente político conservador, aliado da nobreza, recebeu da assembléia o voto de ostracismo e foi declarado inimigo do povo. É muito provável que entre os inspiradores da queda de Cimon estivesse Péricles (cf. Humbert, 1984, p. 84-85), que irá prosseguir nas reformas de Efialte. Péricles, nascido em Atenas em 490 a.C, foi a mais ilustre personalidade grega do século 5º, conhecido como século de Péricles, primeiro dos cidadãos de Atenas. E com justiça. Aliado de Efialte, prossegue as reformas e o aperfeiçoamento da democracia, por 13 vezes foi eleito estratego, isto é, chefe das f orças armadas de Atenas e dos aliados da c onfederação grega, tesoureiro das finanças, membro permanente da Boulé e partícipe da elaboração das leis. A ele se devem múltiplas iniciativas: a construção dos muros ligando a cidade ao porto, a construção da Acrópole e do templo da deusa Atena, cujas ruínas existem ainda hoje. Patrocinou o teatro, as artes, a ciência e a Filosofia. As iniciativas e propostas de aperfeiç oamento da democracia ateniense são as seguintes: entre 454 e 450 a.C. Péricles i ntroduziu o princípio da remuneração de todas as atividades públicas. Os honorários são modestos, representam apenas o mínimo vital necessário, tomando-se por base a remuneração de um soldado. 41
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Mas esta compensação dada ao cidadão durante o tempo de exercício de sua função pública é, em sua origem, uma medida capital: uma das regras da democracia dá suporte efetivo à igualdade aritmética, à igualdade de oportunidades a todos de exercer os mesmos direitos políticos. Sem estes honorários, todos os que dependiam de seu trabalho para viver, metade dos cidadãos de Atenas, não poderiam participar de fato da vida pública [...] (Humbe rt, 1984, p. 92). Os inimigos da democracia opuseram-se ferozmente a esta medida taxando-a de demagógica, fonte de corrupção dos j uízes, declínio do civismo e, sobretudo, de acesso dos mais pobres, portanto, dos mais ignorantes ao governo da cidade (p. 92).
Péricles promoveu a fundação de colônias nas q uais assentou a população desempregada e desocupada de Atenas, freqüentemente mobilizada contra Péricles e o regime democrático pela nobreza, que viu extintos definitivamente seus pri vilégios. Para proteger a democracia contra suas próprias possibilidades de praticar excessos, de cometer erros, Péricles propõe um mecanismo de autocontrole chamado “ação de ilegalidade”, que visa a
[...] proteger o demos contra uma decisão que ele próprio seria tentado a tomar, por força de enganos ou má informação. “A ação popular”, cuja iniciativa está aberta a qualquer cidadão, é dirigida contra o cidadão autor de um projeto de lei contrária à democracia [...]. Trata-se de um mecanismo de autodefesa, que impede o demos de oscilar entre o abuso e a tirania [...]. Tecnicamente é um mecanismo que permite ao próprio povo j ulgar a legalidade de medidas propostas à assembléia ou votadas por ela (Humbert, 1984, p. 94).
A democraci a atenie nse atinge as sim sua forma mais elaborada de organi zação e participação política da totalidade dos cidadãos. Atenas se converteu em centro de convergência não só de negócios e de febril atividade econômica e merca ntil, como também de artistas, filósofos, urbanistas, arquitetos, médicos e escultores. A experiência política da participação popular, direta e permanente, confe riu à democracia um sentido humano, terreno, do poder: “A democracia é uma obra humana. Por ela, o homem, sem o apoio dos deuses [...] afirma seu poder de decisão face aos deuses, à natureza, aos outros homens [...]” (Humbert, 1984, p. 94). Isócrates, ao fazer um balanço da democracia atenien se, afirma: 42
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Nós implantamos nas outras poleis a mesma constituição que a nossa [...]. Apenas algumas palavras são suficientes para fazer-lhe o e logio. Nós vivemos por setenta anos so b um regime que não conheceu tiranos, livres dos bárbaros, protegidos das intrigas intestinas, promovendo a paz a todos os homens (p. 95).
É de Péricles que nos vem, talvez, a melhor avaliação da democracia ateniense, c ontida num discurso fúnebre pronunciado em 431 a.C, recolhido por Tucídides e reproduzido em seu livro História da Guerra do Peloponeso. O próprio Tucídides nos conta as circunstâncias e as razões do discurso:
No curso do mesmo inverno os atenienses, seguindo um costume de seus antepassados, celebraram a expensas d o tesouro os ritos fúnebres d os primeiros concidadãos vítimas desta guerra. A cerimônia consiste no seguinte: os ossos dos defuntos são expostos num catafalco durante três dias, sob um toldo próprio para isto, e os habitantes trazem para os seus mortos, as oferendas desejadas; no dia do funeral ataúdes de cipreste são trazidos em carretas, um para cada tribo, e os ossos de cada um são postos no ataúde de sua tribo; um ataúde vazio, coberto por um pálio, também é levado e m procissão, reservado aos de saparecidos cujos cadáveres n ão foram encontrados para o sepultamento. Todos os que desejam, cidadãos ou estrangeiros, podem participar da procissão fúnebre, e as mulheres das famílias dos defuntos também comparecem e fazem lamentações; os ataúdes são postos no mausoléu oficial, situado no subúrbio mais belo da cidade; lá são sempre sepultados os mortos em guerra, à exceção dos que tombaram em Maratona que, por seus méritos excepcionais, foram enterrados no próprio local da batalha. Após o enterro dos restos mortais, um cidadão escolhido pela cidade, considerado o mais qualificado em termos de inteligência e tido na mais alta estima pública, pronuncia um elogio adequado em honra dos defuntos. Depois disso o povo se retira. São assim os funerais e durante toda a guerra, sempr e que havia oportunidade, esse costume era observado. No caso presente das primeiras vítimas da guerra, Péricles, filho de Xântipo, foi escolhido para falar. No momento oportuno ele avançou para o local do mausoléu, subiu à plataforma, bastante alta para que a sua voz fosse ouvida tão longe quanto possível pela multidão [...] (Humbert, 1984, p. 107).
Eis o discurso de Péricles:
Muitos dos que me precederam neste lugar fizeram elogios ao legislador que acrescentou um discurso à cerimônia usual nestas circunstâncias, considerando justo celebrar também com palavras os mortos na guerra em seus funerais. A mim, todavia, ter-me-ia parecido suficiente, tratando-se de homens que se mostraram valorosos em atos, manifestar apenas com atos as honras que lhes prestamos – honras como as que hoje presenciastes nesta cerimônia fúnebre oficial – em vez de deixar o reconhecimento do valor de tantos homens na dependência do maior ou menor talento oratório de um só homem. É realmente difícil falar com propriedade numa 43
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ocasião em que não é possível aquilatar a credibilidade das palavras do orador. O ouvinte bem informado e disposto f avoravelmente pensará talvez q ue não foi feita a devida justiça em face de seus próprios desejos e de seu conhecimento dos fatos, enquanto o outro menos informado, ouvindo falar de um fe ito além de sua própria capacidade, será levado pela inveja a pensar em algum exagero. De fato, elogios a outras pessoas são toleráveis somente até onde cada um se julga capaz de realizar qualquer dos atos cuja menção está ouvindo; quando vão além disso, provocam a inveja, e com e la a incredulidade. Seja como for, já que nossos antepassados julgaram boa esta prática, também devo obedecer à lei, e farei o possível para corresponder à expectativa e às opiniões de cada um de vós. Falarei primeiro de nossos antepassados, pois é justo e ao mesmo tempo conveniente, numa ocasião como esta, dar-lhes este lugar de honra rememorando os seus f eitos. Na verdade, perpetuando-se em nossa t erra através de gerações sucessivas, eles, por seus méritos, no-la transmitiram livre até hoje. Se eles são dignos de elogios, nossos pais o são ainda mais, pois aumentando a herança recebida, constituíram o império que agora possuímos e a duras penas nos deixaram este legado, a nós que estamos aqui e o temos. Nós mesmos aqui presentes, muitos ainda na plenitude de nossas forças, contribuímos para fortalecer o império sob vários aspectos, e demos à nossa cidade todos os recursos, tornando-a auto-suficiente na paz e na g uerra. Quanto a isso, quer se trate de feitos militares que nos proporcionaram esta série de c onquistas, ou das ocasiões em que nós o u nossos pais nos empenhamos em repelir as investidas guerreiras tanto bárbaras quanto helênicas, pretendo silenciar, para não me tornar repetitivo aqui diante de pessoas às quais nada teria a ensinar. Mencionarei inicialmente os princípios de conduta, o regime de governo e os traços de caráter graças aos quais conseguimos chegar à nossa posição atual, e depois farei o e logio destes homens, pois penso que no momento presente esta exposição não será imprópria e que t odos vós aqui reunidos, cidadãos e estrangeiros, podereis ouvi-la com proveito. Vivemos sob uma forma de gove rno que não se baseia nas inst ituições de noss os vizinhos; ao contrário, servimos de modelo a alguns ao invés de imitar outros. Seu nome, como tudo depende não de p oucos, mas da maioria, é democracia. Nel a, enquanto no tocante às leis todos são iguais para a solução de suas divergências privadas, quando se t rata de escolher (se é p reciso distinguir em qualquer setor), não é o fato de pertencer a uma classe, mas o mérito, que dá acesso aos postos mais honrosos; inversamente, a pobreza não é razão para que alguém, sendo capaz de prestar serviços à cidade, seja impedido de fazê-lo pela obscuridade de sua condição. Conduzimo-nos liberalmente em nossa vida pública, e não observamos com uma curiosidade suspicaz a vida privada de nossos concidadãos, pois não nos ressentimos com nosso vizinho se ele age como lhe apraz, nem o olhamos com ares de reprovação que, embora inócuos, lhe causariam desgosto. Ao mesmo tempo que evitamos ofender os outros em nosso convívio privado, em nossa vida pública nos afastamos da ilegalidade principalmente por causa de um temor reverente, pois somos submissos às autoridades e às leis, especialmente àquelas promulgadas para socorrer os o primidos e às que, embora não escritas, trazem aos transgressores uma desonra visível a todos. Instituímos muitos entretenimentos para o alívio da mente fatigada; temos concursos, temos festas religiosas regulares ao longo de todo o ano, e nossas casas são arranjadas com bom gosto e elegância, e o deleite que isso nos traz todos os dias afasta de nós a tristeza. Nossa cidade é tão 44
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importante que os produtos de todas as t erras fluem para nós, e ainda temos a sorte de colher os bons frutos de nossa terra com certeza de prazer não menor que o sentido em relação aos produtos de outras. Somos também superiores aos nossos adversários em nosso sistema de preparação para a guerra nos seguintes aspectos: em primeiro lugar, mantemos nossa cidade aberta a todo o mundo e nunca, por atos discriminatórios, impedimos alguém de conhecer e ver qualquer coisa que, não estando oculta, possa ser vista por um inimigo e ser-lhe útil. Nos sa confiança se baseia menos em preparativos e estratagemas que em nossa bravura no momento de agir. Na educação, ao contrário de outros que impõem desde a adolescência exercícios penosos para estimular a coragem, nós, com a nossa maneira liberal de viver, enfrentamos pelo menos tão bem quanto eles perigos comparáveis. Eis a prova disso: os lacedemônios não vêm sós quando invadem nosso território, mas trazem com eles todos os seus aliados, enquanto nós, quando atacamos o território de nossos vizinhos, não temos maiores dificuldades, embora combatendo em terra estrangeira, em levar freqüentemente a melhor. Jamais nossas forças se engajaram todas juntas contra um inimigo, pois aos cuidados com a frota se soma em terra o envio de contingentes nossos contra numerosos objetivos; se os lacedemônios por acaso travam combate com uma parte de nossas tropas e derrotam uns poucos soldados nossos, vangloriam-se de haver repelido todas as nossas forças; se, todavia, a vitória é nossa, queixam-se de ter sido vencidos por todos nós. Se, portanto, levando nossa vida amena ao invés de recorrer a exercícios extenuantes, e confiantes em uma coragem que resulta mais de nossa maneira de viver que da compulsão das leis, estamos sempre dispostos a enfrentar perigos, a vantagem é toda nossa, porque não nos perturbamos antecipando desgraças ainda não e xistentes e, chegado o momento d e provação, demonstramos tanta bravura quanto aqueles que estão sempre sofrendo; nossa cidade, portanto, é digna de admiração sob esses aspectos e muitos outros. Somos amantes da beleza sem extravagância e amantes da filosofia sem indolência. Usamos a riqueza mais como uma oportunidade para agir que como um motivo de vanglória; entre nós não há vergonha na pobreza, mas a maior vergonha é não fazer o possível para evitá-la. Ver-seá em uma mesma pessoa ao mesmo tempo o interesse em atividades privadas e públicas, e em outros entre nós que dão atenção principalmente aos negócios não se verá falta de discernimento em assuntos políticos, pois olhamos o homem alheio às atividades públicas não como alguém que cuida apenas de seus próprios interesses, mas como um inútil; nós, cidadãos atenienses, decidimos as questões públicas por nós mesmos, ou pelo menos nos esforçamos por compreendêlas claramente, na crença de que não é o debate que é empecilho à nação, e sim o fato de não se estar esclarecido pelo debate a ntes de chegar a hora da a ção. Consideramo-nos ainda superiores aos outros homens em outro ponto: somos ousados para agir, mas ao mesmo tempo gostamos de refletir sobre os riscos que pretendemos correr; para outros homens, ao contrário, ousadia significa ignorância e reflexão traz a hesitação. Deveriam ser justamente considerados mais corajosos aqueles que, percebendo claramente tanto os sofrimentos quanto as satisfações inerentes a uma ação, nem por isso recuam diante do perigo. Mais ainda: em nobreza de espírito contrastamos com a maioria, pois não é por receber favores, mas por fazê-los, que adquirimos amigos. De fato, aquele que faz o favor é um amigo mais seguro, por estar disposto, através de constante benevolência para com o beneficiado, a manter vivo nele o sentimento de gratidão. Em contraste, 45
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aquele que dev e é mais negligente em sua amizade, sabendo que a sua generosidade, em vez de lhe trazer reconhecimento, apenas quitará uma dívida. Enfim, somente nós ajudamos os outros sem temer as conseqüências, não por mero cálculo de vantagens que obteríamos, mas pela confiança inerente à liberdade. Em suma, digo que nossa cidade, em seu conjunto, é a escola de toda a Hélade e que, segundo me parece, cada homem entre nós poderia, por sua p ersonalidade própria, mostrar-se auto-suficiente nas mais variadas formas de atividade, com a maior elegância e naturalidade. E isso não é mero ufanismo inspirado pela ocasião, mas a verdade real, atestada pela força mesma de nossa cidade, adquirida em conseqüência dessas qualidades. Com efeito, só Atenas entre as cidades contemporâneas se mostra superior à sua reputação quando posta à prova, e só ela jamais suscitou irritação nos inimigos que a atacaram, ao verem o autor de sua desgraça, ou o protesto de seus súditos porque um chefe indigno os comanda. Já demos muitas provas de nosso poder, e certamente não faltam testemunhos disto; seremos, portanto, admirados não somente pelos homens de hoje mas também do futuro. Não necessitamos de um Homero para cantar nossas glórias, nem de qualquer outro poeta cujos versos poderão talvez deleitar no momento, mas que verão a sua versão dos fatos desacreditada pela realidade. Compelimos todo o mar e toda a terra a dar passagem à nossa audácia, e em toda parte plantamos monumentos imorredouros dos males e dos bens que fizemos. Esta, então, é a cidade pela qual estes h omens lutaram e morreram nobremente, considerando seu deve r não permitir que ela lhes fosse tomada; é natural que todos os sobreviventes, portanto, aceitem de bom grado sofrer por ela. Falei detidamente sobre a cidade para mostrar-vos que estamos lutando por um prêmio maior que o d aqueles cujo gozo de tais privilégios não é comparável ao nosso, e ao mesmo tempo para provar cabalmente que os homens em cuja honra estou falando agora merecem os nossos elogios. Quanto a eles, muita coisa já foi dita, pois quando louvei a cidade estava de fato elogiando os feitos heróicos com que estes homens e outros iguais a eles a glorificaram; e não há muitos helenos cuja fama esteja como a deles tão exatamente adequada a seus efeitos. Parece-me ainda que uma morte como a destes homens é prova total de máscula coragem, seja como seu primeiro indício, seja como sua confirmação final. Mesmo para alguns menos louváveis por outros motivos, a bravura comprovada na luta por sua pátria deve com justiça sobrepor-se ao resto; eles compensaram o mal com o bem e saldaram as falhas na vida privada com a dedicação ao bem comum. Ainda a propósito deles, os ricos não deixaram que o desejo de continuar a gozar da riqueza os acovardasse, e o s pobres não permitiram que a esperança de mais tarde se tornarem ricos os levasse a f ugir ao dia fatal; punir o adversário foi aos seus o lhos mais desejável que essas coisas, e ao mesmo tempo o perigo a correr lhes pareceu mais belo que tudo; enfrentando-o, quiseram infligir esse castigo e atingir esse ideal, deixando por conta da esperança as possibilidades ainda obscuras de sucesso, mas na ação, diante do que estava em jogo à sua f rente, confiaram altivamente em si mesmos. Quando chegou a hora do combate, achando melhor defenderse e morrer que ceder e salvar-se, fugiram da desonra, jogaram na ação as suas vidas e, no brevíssimo instante marcado pelo destino, morreram num momento de glória e não de medo. Assim este s homens se comportaram de maneir a condizent e com nossa cidad e; quanto aos sobr eviventes, embora desejando melhor sorte deverão decidir-se a enfrentar o inimigo com bravura não menor. Cumpre-nos apreciar a vantagem de tal estado de espírito não apenas com palavras, 46
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pois a fala poderia alongar-se demais para dizer-vos que há razões para enfrentar o inimigo; em vez disso, contemplai diariamente a grandeza de Atenas, apaixonai-vos por ela e, quando a glória vos houver inspirado, refleti em que tudo isso foi conquistado por homens de coragem cônscios de seu dever, impelidos na hora do combate por um forte sentimento de honra; tais homens, mesmo se alguma vez falharam em seus cometimentos, decidiram que pelo menos à pátria não faltaria o seu valor, e que lhe fariam livremente a mais nobre contribuição possível. De fato, deram-lhe suas vidas para o bem comum e, assim fazendo, ganharam o louvor imperecível e o túmulo mais insigne, não aquele em que estão sepultados, mas aquele no qual a sua glória sobrevive relembrada para sempre, celebrada em toda ocasião propícia à manifestação das palavras e dos atos. Com efeito, a terra inteira é o túmulo dos homens valorosos, e não somente o epitáfio nos mausoléus erigidos em s uas cidades que lhes presta homenagem, mas há igualmente em terras além das suas, em cada pessoa, uma reminiscência não escrita, gravada no pensamento e não em coisas materiais. Fazei agora destes homens, portanto, o vosso exemplo, e tendo em vista que a felicidade é liberdade e a liberdade é coragem, não vos preocupeis exageradamente com os perigos da guerra. Não são aqueles que estão em situação difícil que têm o melhor pretexto p ara descuidar-se da preservação da vida, pois eles não têm esperança de melhores dias, mas sim os que correm o risco, se continuarem a viver, de uma reviravolta da fortuna para pior, e aqueles para os quais faz mais diferença a ocorrência de uma desgraça; para o espírito dos homens, com efeito, a humilhação associada à covardia é mais amarga do que a morte quando chega despercebida em acirrada luta pelas e speranças de todos. Eis porque não lastimo os pais destes h omens, muitos aqui presentes, mas prefiro confortá-los. Eles sabem que suas vidas transcorreram em meio a constantes vicissitudes, e que a boa sorte consiste em obter o que é mais nobre, seja quanto à morte – como estes homens – seja quanto à amargura – como vós, e em ter tido uma existência em que se foi feliz quando chegou o fim. Sei que é difícil convencer-vos desta verdade, quando lembrais a cada instante a vossa perda ao ver os outros gozando a v entura em que também já vos deleitastes; sei, também, que s e sente tristeza não pela falta de coisas boas que nunca se teve, mas pelo que se p erde depois de ter tido. Aqueles entre vós ainda em idade de procriar devem suavizar a tristeza com a esperança de ter outros filhos; assim, não somente para muitos de vós individualmente os filhos que n ascerem serão um motivo de esquecimento dos que se foram, mas a cidade também colherá uma dupla vantagem: não ficará menos populosa e continuará segura; não é possível, com efeito, participar das deliberações na assembléia em pé de igualdade e ponderadamente quando não se arriscam filhos nas decisões a tomar. Quanto a vós, que já estais muito idosos para isso, contai como um ganho a maior porção de vossa vida durante a qual fostes f elizes, lembrai-vos de que o porvir será curto, e sobretudo consolai-vos com a glória desses vossos filhos. Só o amor da glória não envelhece, e na idade avançada o principal não é o ganho, como alguns dizem, mas ser honrado. Para vós aqui presentes que sois filhos e irmãos destes homens, antevejo a amplitude de vosso conflito íntimo; q uem já não existe recebe elogios de todos; quanto a v ós, seria muito bom se um mérito excepcional fizesse com que fôsseis julgados não iguais a e les, mas pouco inferiores. De fato, há inveja entre os vivos por causa da rivalidade; os que já não estão em nosso caminho, todavia, recebem homenagens unânimes. 47
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Se tenho de falar também das virtudes femininas, dirigindo-me às mulheres agora viúvas, resumirei tudo num breve conselho: será grande a vossa glória se vos mantiverdes fiéis à vossa própria natureza, e grande também será a glória daquelas de quem menos se falar, seja pelas virtudes, seja pelos d efeitos. Aqui termino o me u discurso, no qua l, de acordo com o cost ume, falei o que me pareceu adequado; quanto aos f atos, os homens que viemos sepultar já receberam as nossas h omenagens e seus filhos serão, de agora em diante, educados a expensas da cidade até a adolescência; assim ofereceremos aos mortos e a seus descendentes uma valiosa coroa como prêmio por seus feitos, pois onde as recompensas pela virtude são maiores, ali se encontram melhores cidadãos. Agora, depois de cada um haver chorado devidamente os seus mortos, ide embora (Tucídides, 2001).
Seção 1.4 Crise da Democracia Ateniense – 431-322 a.C O fim do século 5º e o século 4º representaram um período de crises e de agonia irreversível para a experiência política, social e civilizatória da Grécia. Péricles morre em 429 a.C. É uma morte emblemática, mas, por paradoxal que possa parecer é, nesse século de crise e decadência, que os intelectuais gregos, alguns deles entre as mais brilhantes inteligências humanas, como Sócrates, Platão e Aristóteles, vão tentar encontrar saídas para a crise em que mergulhara a civilização grega. De um lado, Sócrates e Platão ensaiarão propostas que, em última instância, se re velaram irrealizáveis, pois negavam radicalmente a rica experiência das póleis e de seus sistemas de participação popular (Platão, A República. As leis). Já Xenofonte e Sócrates tentaram compreender detalhadamente a história política das póleis em busca de um eq uilíbrio de classes capaz de estabilizar o regime e pacificar a sociedade (Aristóteles. A Política). Todos fracassaram. Alexandre submete a Grécia em 335 a.C. Novo paradoxo. A civilização grega se expande sobre todo o Oriente Médio, o Egito e o Mediterrâneo. As póleis gregas já não mais existem, mas sua secular civilização marcará para sempre a cultura humana. 48
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Sem seu legado político e filosófico, sem suas categorias lógicas e epistemológicas, não poderíamos compreender e ex primir o mundo do modo como o fazemos. A cu ltura e a civilização ocidental, hoje globalizada, guarda da Grécia as bases sobre as quais se assenta. O próprio Cristianismo é despojado de suas estruturas mentais orientais e revestido das categorias gregas, que lhe dão sentido e inteligibilidade.
1.4.1 – A BUSCA DE UMA SOLUÇÃO PARA A CRISE Pensar a crise, buscar-lhe uma solução, eis a obsessão dos intelectuais gregos do século 4º. E o fizeram com tal profundidade que criaram a ciência po lítica, os fundamentos das leis e do Direito e as regras da moral individual e coletiva. Comecemos por Sócrates. Termi nada a Guerra do Peloponeso, em 404 a.C, a democracia foi restaurada em Atenas e p roclamada uma anistia segundo a qual ninguém poderia ser acusado por crimes passados, sob pena de morte. E em 399 a.C, em completa desobediência à Lei da Anistia, um líder político chamado Anytos propõe uma “ação pública de impiedade”: “Sócrates é denunciado por impiedade, pois ele não crê nos deuses da cidade e por introduzir divindades novas. É culpado também de corr upção da juventude. Pena proposta: morte.” Protágoras e Anaxágoras, estrangeiros, foram expulsos de Atenas pela mesma acusação. Sócrates era ateni ense, de vida intocável, cidadão exemplar. Por que a condenação, por que a morte decretada pelo Conselho dos Heli astes e pelo arconte-rei? Sócrates conhecia bem os avanços conquistados pelos filósofos-cient istas que o precederam. Deles aprendeu não só suas descobertas, como o método de obtê-las. Ele sabia que os astros, tidos como sagrados, são feitos de terra ou fogo e nada tinham de divinos ou misteriosos. O ser humano, já o diziam os sofistas, é a medida de todas as coisas. O homem, porém, precisa conhecer a si mesmo do mesmo modo como a ciência conhecera a natureza. E o método que ele propõe é o diálogo, o confronto com o outro, o debate, a discussão. É daí que nasce a verdade, a justiça, ensinava Sócrates. 49
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Em que poderia tal prática ameaçar a democracia e o Es tado? Humbert (1984) entende que a restauração da democracia de 403 a.C, após o término da Guerra do Peloponeso (Tucídides) é percebi da como tarefa de regeneração moral. Os mentores polít icos de tal proposta, um deles é Anytos, pensavam que era fundamental reconciliar a pólis com s eus deuses, pois estes a tinham abandonado. A condenação de Sócrates toma então todo o seu sentido político. Ele foi condenado porque criticava e ridicularizava a religião tradicional como uma mitologia imoral e ingênua; denunciava o uso mesquinho da oração, das oferendas, ato puramente mercantil. Ele provocou a ira e o medo dos dirigentes políticos, que precisaram suprimir toda e qualquer possibilidade crítica. Provavelmente esta tenha si do a última oportunidade para o ressurgimento da democracia em Atenas.
1.4.2 – XENOFONTE E ISÓCRATES – A RESTAURAÇÃO DA TRADIÇÃO Xenofonte e Isócrates entendiam que a desordem social e p olítica vinha da pobreza das camadas populares. Suas propostas consistiam fundamentalmente nos modos de eliminála. Na prática, eles propunham a expulsão d os pobres das póleis por me io do velho método adotado pelas oligarquias dos séculos 8º e 6º: a colonização. Xenofonte sugere o envio dos pobres para a Trácia (atual Bulgária). Isócrates defende a mesma proposta. A proposta de Isócrates é, porém, mais sofisticada e abrangente de todas as pólei s e não só de Atenas, um projeto “pan-helênic o”. Todas as póleis gregas devem unir-se contra a Pérsia, seu grande rei e suas possessões: é sobre estas terras e nas dos aliados que deverão ser instalados os pobres. Quando ficou claro que sua proposta não seria viável, foi buscar apoio junto ao rei Felipe da Macedônia, que acatou a proposta, mas a executou à sua maneira. O pan-helenismo deu a Alexandre as bases ideológicas da conquista do império persa e da própria Grécia. Voltemos à proposta da expulsão dos pobres. O poder deverá voltar ao Areópago, isto é, para a nobreza, que deverá controlar a aplicação da lei pelos magistrados. É preciso, sobretudo, acabar com os honorários pagos pelo Estado para que os pobres não participem da política, e 50
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restituir, desta forma, aos ricos, o monopólio do poder que, para exercê-lo, deveria ser onerado. Os candidatos aos cargos públicos não serão assim motivados pela oportunidade de ganho, mas unicamente pela ambição (timé-kai-timocracia) e pelo amor às honras. Aristóteles retomará esta proposta e lhe dará as bases teóricas em seu livro Política, como veremos adiante. Platão (427-348), discípulo de Sócrates, passa bo a parte de s ua longa vida pensando alternativas à crise das póleis gregas, cujo obje tivo básico deveria ser a supressão do conflito social, da luta de classes, origem de todos os males da sociedade. Busca, portanto, um novo fundamento, legitimador e organizador da p ólis. Platão parte do pressuposto de que os homens são desiguais por natureza. É p reciso, por isso, descobrir os desiguais e agrupá-los segundo sua igualdade, isto é, segundo sua “justiça” ou sua alma. Para Platão, os homens podem ser classificados segundo as virtudes de suas almas: a sabedoria, a virtude dos filósofos, os que conhecem a justiça e, p or isso, devem governar a pólis; a fortaleza, a virtude dos que devem defender a polis e, finalmente, a temperança, a virtude dos que, por seu trabalho, sustentam a si mesmo e os demais. Platão usou uma metáfora para explicar estas desigualdades: uma parcela da sociedade é constituída pelos que têm alma de ouro; outra de prata e uma terceira de ferro. A sociedade será, desta forma, um corpo composto de três partes in separáveis: a cabeça (filósofos/governantes); o tronco ou peito (a força), os militares ou defensores e, finalmente, os braços e as pernas que trabalham e carregam as outras duas partes. A cada porção do corpo da pólis corresponde uma classe, uma função e uma virtude. Organizar a sociedade segundo a virtude de cada um é organizá-la de acordo com a justiça, o bem, a verdade. Em contrapart ida, toda vez que uma sociedade mistura as classes, resulta disso a injustiça, a desordem, o conflito e a monstruosidade. O que pode ser mais monstruoso do que os pés pretenderem ser a cabeça? Platão, ainda para ilustrar sua concepção de ordem social, imaginou outra metáfora, a de um Estado em que os chefes ou pastores são os detentores do conhecimento supremo, os filósofos. A eles cabe o governo da cidade. Os guerreiros ou cães de guarda, que encarnam a coragem, defenderão a cidade e, finalmente, os produtores ou o rebanho, trabalharão para a cidade. 51
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O filósofo defende sua proposta argumentando que os regimes políticos das póleis gregas são exemplos tanto das desordens da alma e das injustiças daí decorrentes quanto da impossibilidade de restaurá-los ou reformá-los. Eles são a expressão das várias formas de injustiça. Assim, argumenta Platão:
– a timocracia (a paixão da guerra, sem a sabedoria) se funda na ambição e não na sabedoria, e impele os guerreiros a governar. Essas almas só têm uma virtude, uma qualidade, a disciplina. Assim era Esparta. Mas o apetite de riqueza inevitave lmente leva à oligarquia; – a oligarquia (paixão pelo dinheiro) é sinônimo de governo dos ricos, de plutocracia, que divide a pólis em dois campos antagônicos: os ricos e os pobres. Para Platão, riqueza e virtude são excludentes; – a democracia (o instinto de liberda de), governo do povo, é um regime de desordem, pois aí se confundem e se misturam as funções de forma anárquica e onde se iguala o desigual; – finalmente, a tirania que nada mais é do que o governo dos instintos bestiais, o pior regime concebível (Humbert, 1984, p. 155).
Platão não se ateve apenas às propostas que ele dese nhou em seu volumosos liv ro A República. Mais velho, escreveu um tratado chamado Leis, um código regulador da pólis. Suas propostas básicas des enhadas nessa obra são, conforme Humbert (1984), as seguintes:
1ª – A estrutura da pólis – A pólis terá 5.040 (sic) cidadãos, todos originários de um me smo país, que eles abandonaram, como um enxame, para fundar uma nova pólis. Para Platão, a unidade étnica é garantia de coesão. – A cidade será construída longe do mar, pois a cidade deverá viver em completa autarquia e ao abrigo das influências e xternas, do comércio e da marinha, pelas quais Platão tinha particular aversão. Unicamente pessoas escolhidas poderão manter contatos externos. – Na nova c idade todos gozarão de direitos políticos. Todos são proprietários de lotes iguais e inalienáveis. Cada casal terá um úni co filho, que herdará a propriedade do pai. Caso nasçam outros filhos, serão dados a casais s em filhos. 52
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– O ouro e o dinheiro serão banidos. Só serão toleradas pequenas diferenças de fortuna, que darão origem a quatro classes censitárias. As atividades manuais e a agricultura serão entregues aos escravos e aos e strangeiros.
2ª – Os organismos da cidade O exemplo seguido por Platão é Esparta, pois ele considera sua Constituição equilibrada: a monarquia compartilhada por dois reis é contrabalançada pelos éforos e pela gerúsia. Os magistrados e os cidadãos serão dominados por 37 guardiões das leis, que s erão, por sua vez, submetidos a controladores que, por sua vez, serão inspecionados. Trata-se de um sistema de vigilância mútuo, total e permanente. Acima de todos está o Conselho Noturno (os olhos e os ouvidos da cidade) que encarna o saber religioso e o poder judiciário. Sua função consiste em traduzir em leis humanas as leis divinas, pois Deus é a medida universal. O que Platão nos propõe é um Estado totalitário e teocrático. Para ele, a ortodoxia religiosa é uma necessidade porque as leis divinas governam a condição humana. O ateísmo e o desprezo pelos deveres religiosos tradicionais serão reprimidos. Nas duas tentativas de solucionar a crise das sociedades gregas, Platão simplesmente joga as soluções para um mundo transcendente, que só encontrará eco séculos m ais tarde no Cristianismo, nos seus sistemas de vida religiosa e monástica e nas concepções teocráticas tão caras aos pensadores da Idade Média e aos teóricos do absolutismo da Idade Moderna. A Grécia não lhe deu ouvi dos, nem mesmo seu mais brilhante discípulo, Aristóteles.
1.4.3 – O REALISMO POLÍTICO DE ARISTÓTELES Aristóteles é um pensador que estudou e escreveu praticame nte sobre todos os temas. À política ele dedicou um volume, cujo título é Política, no qual se propõe a relatar a história das experiências políticas das póleis gregas, entender sua nature za e especificidade, bem como as categorias e a teoria que lhe emprestam sentido e inteligibilidade. E propõe os princípios e as alternativas que, segundo ele, s eriam capazes de contornar a crise p olítica das póleis gregas. 53
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Segundo Humbert (1984), a obra de Aristóteles pode ser dividida em duas grandes partes: a primeira estabelece os princípios de um bom governo e a segunda propõe sua aplicação concreta. Aristóteles não se propõe a eliminar a luta de classes e a conflitividade nas relações humanas. Para ele, os conflitos se originam dos desequilíbrios e dissimetrias presentes nas constituições das póleis. É preciso, portanto, examinar tais constituições, identificando tanto os desequilíbrios quanto os elementos que numa boa constituição devem produzir o equilíbrio. Segundo Aristóteles são os seguintes os princípios de um bom governo: 1. O princípio da igualdade geométrica . Aristóteles rejeita o princípio de igualdade univer-
sal estabelecido pela democracia ateniense. Ele afirma: “igualdade só para os que são iguais e não igualdade entre os desiguais.” E acrescenta: “Aqueles que, por sua capacidade moral superior fortalecem o bem comum de todos mer ecem receber direitos políticos superiores aos demais cidadãos.” Aristóteles, então, vai estabelecer os critérios para medir tal capacidade superior. 2. O princípio da riqueza (ou princípio timocrático). Os melhores cidadãos não são esco-
lhidos apenas por suas virtudes morais (justiça, sabedoria, prudência, discernimento...), mas também por um critério de riqueza, de posses. Segundo Aristóteles, a riqueza de uma pessoa dá a ela liberdade e independência. Por conseguinte, os pobres de vem ser excluídos, assim como os ricos que, por força de seu trabalho, dependem de seu salário. Pobreza e trabalho alienam a liberdade. Só podem ocupar-se da política os que gozam do lazer, não precisam trabalhar e, e ntão, podem dedicar-se ao governo da pólis. Para Aristóteles, se o magistrado ou o juiz forem ricos, não procurarão no governo o que eles já têm. Eles procurarão unicamente um bem moral, a honra (time). É o princípio da timocracia. E mais: quanto maiores as responsabilidades dos cargos exercidos na pólis, tanto mais rico deverá ser seu ocupante. Aristóteles sabe, no entanto, que essa proposta o levaria à plutocracia, ao governo dos mui to ricos. Estabelece, então, o terceiro princípio, cuja função é equilibrar o poder dessa maioria rica. 54
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3. O princípio majoritário ou a virtude do número . O bom governo não pode dispensar o
número, a massa que, enquanto tal, tem sua virtude própria: “A multidão, composta de indivíduos que, tomados separadamente, são pessoas s em valor, tomadas em conjunto, constituídas em corpo, são capazes de se mostrar superiores à elite (Política, 3, 2007, 1281a). E acrescenta: “[...] a multidão é menos suscetível à c orrupção do mesmo modo como uma grande quantidade de água está menos sujeita a corromper-se do que uma pequena [...]” (Política, 3, 2007, 1286). A massa, por seu número e por suas virtudes , serve de contrapeso ao poder dos ricos e impede que a minoria (dos ricos) use a Constituição em benefício próprio, ou que a pólis caia sob o poder de uma ol igarquia. Aristóteles, contudo, não pensa o número de forma simples mente aritmé tica. Ele vai estabelecer um critério ao número, que consiste no seguinte: “É preciso que este número permita estabelecer uma maioria de re ndas que, somadas, ultrapassem a renda dos magistrados que exercem individualmente ou em colégios restritos os grandes cargos do Estado” (Política, 3, 2007, 1281a). Eis o equilíbrio que Aristóteles e ntende ser o fundamento da participação política no governo da pólis. Teoricamente, pelo menos, o número (a massa) e a riqueza se equilibram. A soma de numerosas pequenas rendas individuais confere à massa dos cidadãos o poder de controlar, punir, eleger ou depor os magistrados, mas isso s ó é possível mediante um censo ou uma declaração de renda dos cidadãos. 4. O censo dos cidadãos . Aristóteles exclui os pobres da política. Sua justificativa é a se-
guinte: é preciso que os cidadãos candidatos a participar do governo da pólis disponham de uma renda média, isto é , nem tão pobres, nem tão ricos. Por quê? Se a renda exigida for muito alta, os ricos aca barão ficando majoritários, mas se a re nda for muito baixa, a massa cívica será excessivamente numerosa e suas rendas somadas ficarão abaixo da soma da riqueza dos ricos. É preciso, portanto, encontrar um número que não seja excessivamente alto, pois beneficiaria aos ricos, nem excessivamente baixo, pois favoreceria os pobres. O resultado é que ficam, desta forma, excluídos os pobres. O poder de equilíbrio migraria para uma classe média alta e uma elite rica. A estes, Aristóteles dará o nome de cidadãos ativos. O conceito fez tanto sucesso que só foi extinto com o surgimento das democracias de massa na segunda metade do s éculo 20. 55
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Na prática, a proposta de Aristóteles para a cris e política das póleis é uma “democracia ou oligarquia moderada”. De posse desses critérios e princípios, Aristóteles tem os meios teóricos e metodológicos para julgar, avaliar as constituições e as experiências políticas das póleis e, a partir daí, propor a Constituição adequada ao momento de crise que a sociedade grega atravessava. As constituições das muitas póleis gregas, segundo Aristóteles, podem ser class ificadas em três tipos: monarquia, aristocracia e república (politéia, em grego), a melhor Constituição. Cada uma delas conheceu formas degeneradas: a t irania, a oligarquia e a democracia. Cada uma dessas formas degeneradas exprime o interesse egoísta dos governantes: – a monarquia supõe que um cidadão tenha tal mérito e superioridade que ele, no limite, não deveria fazer parte da cidade. É uma espécie de De us entre os homens, ele é para si mesmo a lei (Política, 3, 2007, 1284a). Aristóteles exclui radicalmente este sistema de governo; – a aristocracia tampouco é admissível pois é ela mesma contraditória em seus termos; – a oligarquia e a democracia, ambas devem ser rejeitadas, em particular a democracia, a experiência de Atenas, em que o número é le i e os pobres são os senhores invejosos da riqueza da minoria e estão sempre prontos para ex propriá-la. Os honorários pagos aos pobres pelo exercício das funções públicas só agravam e pioram as coisas. A democracia deu aos pobres a ocasião de se ocupar dos negócios da pólis; – finalmente, Aristóteles faz sua proposta: democracia ou oligarquia moderada, cujos traços básicos são os seguintes: • a massa cívica será formada de cidadãos – trabalhadores. São aqueles proprietários que se e nquadram nos critérios do censo, são trabalhadores livres e independentes. As obrigações de sua profissão, entretanto, não lhes permite participar das tarefas do governo. Eles elegerão os magistrados. Controlarão suas contas e os julgarão. Serão excluídos do governo da pólis os operários e os não-proprietários, isto é, a maioria da população livre. Os magistrados, os governantes, serão eleitos unicamente entre os 56
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homens cujas rendas os liberem do trabalho. O modelo censitário de governo proposto por Aristóteles foi imposto a Atenas em 322 a.C por Antipatros, testa-de-ferro e sucessor de Alexandre. Foi também o critério de participação na história política de Roma, nas formas limitadas de participação política na Idade Moderna, nas propostas liberais de governo modernas. E, como afirmei anteriormente, foram o modelo de poder das elites até meados do século 20. Não é incomum, ainda hoje, ouvir pessoas que se op õem ao direito de participação universal na gestão da res-pública. Muitos dizem : “o povo (ou número, como chama Aristóteles) é burro.” Aristóteles, é preciso reconhecer, foi, como teóri co da política, um homem mui to bemsucedido. E será difícil esquecê-lo.
Seção 1.5 Alexandre e a Conquista do Oriente A Macedôni a era um pequeno reino ao norte da Península Balcâni ca, governado por uma aristocracia. Os gregos consideravam os macedônios bárbaros. Em meados do século 4º, ascende ao poder Felipe II. Consolidou-se no poder confiscando as terras da nobreza e distribuindo-as aos camponeses pobres, muitos d os quais foram engajados no novo exército que criara. A Macedônia rapidamente converteu-se num Es tado poderos o. O rei Fe lipe, apro veitando-se da crise generalizada das póleis gregas e dos conflitos que continuamente as enfraqueciam, estende sobre el as seu poder, impondo-lhes uma confederação na qual exercia um efetivo poder de mando. Quando se preparava para invadir a Pérsia, foi assassinado.
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E a D
http://www.templodeapolo.net/Civilizacoes/grecia/historia_civilizacao/mapas.html
D i n a r t e B e l a t o
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Sucedeu-lhe o filho Alexandre, então com 20 anos de idade. As póleis gregas, imaginando que o jovem rei poderia ser facilmente vencido, rebelaram-se. Alexandre as derrota uma atrás da outra e inicia em 334 a.C a guerra contra os persas. M orre 11 anos depois, aos 33 anos, na Babilônia, capital de um gigantesco império, que ia do Egito e Macedônia até o vale do Rio Indo, quando se preparava para conquistar o norte da África, a oeste do Egito, e a bacia do Mediterrâneo ocidental. O império, após violentas lutas entre os generais de Alexandre, foi dividido em três grandes reinos: o reino da Macedônia e a Grécia ficaram com Antígono; o Egito com Ptolomeu e a Ásia com Seleuco. Esses reinos desaparec erão ao serem derrotados pelos exércitos romanos e incorporados ao império como meras províncias. Embora ainda hoje os feitos militares e políticos de Alexandre sigam espantando os historiadores e ninguém ouse contestar-lhe o epíteto de “O Grande”, não é por esses feitos
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Sucedeu-lhe o filho Alexandre, então com 20 anos de idade. As póleis gregas, imaginando que o jovem rei poderia ser facilmente vencido, rebelaram-se. Alexandre as derrota uma atrás da outra e inicia em 334 a.C a guerra contra os persas. M orre 11 anos depois, aos 33 anos, na Babilônia, capital de um gigantesco império, que ia do Egito e Macedônia até o vale do Rio Indo, quando se preparava para conquistar o norte da África, a oeste do Egito, e a bacia do Mediterrâneo ocidental. O império, após violentas lutas entre os generais de Alexandre, foi dividido em três grandes reinos: o reino da Macedônia e a Grécia ficaram com Antígono; o Egito com Ptolomeu e a Ásia com Seleuco. Esses reinos desaparec erão ao serem derrotados pelos exércitos romanos e incorporados ao império como meras províncias. Embora ainda hoje os feitos militares e políticos de Alexandre sigam espantando os historiadores e ninguém ouse contestar-lhe o epíteto de “O Grande”, não é por esses feitos que ele é mais importante, mas por ter sido capaz de integrar economicamente o Oriente e o Ocidente e, sobretudo, difundir a civilização grega em todos os re cantos do império e dos reinos que lhe sucederam. Desse longo contato da cultura ocidental grega com as culturas orientais da Mesopotâmia, Pérsia, Índia e Egito s urgem, mediante empréstimos e fusões, a cultura helenística comum a todos os povos e cujo vínculo é a língua grega, denominada de “Koiné”, língua universal. Os centros dinâmicos de produção cultural não são mais as antigas póleis gregas, mas a cidade de Alexandria, no Egito, fundada por Alexandre, convertida em capital do reino pelos reis Ptolomeus. Era aí que s e reuniam os cientistas, filósofos, poetas, historiadores e escritores do mundo helenístico. Os faraós da dinastia grega dos Ptolomeus criaram ali a maior biblioteca da Antiguidade, com mais de 700 mil livros manuscritos. Outros centros importantes eram Antioquia e Pérgamo. A biblioteca de Pérgamo tinha um acervo de 400 mil volumes. Não é por acaso que, e ntre 250 e 100 a.C., um grupo de rabinos – 70, segundo a tradição – traduziu boa parte dos textos bíblicos para o grego da Koiné. Esta tradução é ainda hoje adotada pela Igreja Ortodoxa grega. Intelectuais, pesquisadores, cientistas, reunidos nos centros helenísticos de Alexandria e Pérgamo, deram importantes avanços às ciências. O astrônomo e matemático Eratóstenes demonstrou que a Terra era redonda e calculou com margem pequena de erro sua circun59
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ferência. Aristarco de Samos (século 3º a.C.) demonstrou que o Sol é maior que a Terra e esta move-se girando sobre seu próprio eixo e ao redor do Sol. Essas descobertas foram rejeitadas em favor do geocentrismo defendido pelo astrônomo Ptolomeu, cujas teses só foram derrubadas por Copérnico e Galileu na Idade Moderna. Viveu em Alex andria na primeira metade do século 7º a.C. o matemátic o Euclides. A ele devemos, até hoje, o que os matemáticos denominam de Matemática e Geometria euclidianas. Em algum momento de nossa vida escolar nos deparamos com os axiomas, teoremas e postulados da Geometria formulada por ele. Em Siracusa, uma pólis grega do sul da Itália, viveu o célebre cientista Arquimedes. A ele devemos os primeiros des envolvimentos da Física, em particular a formulação da Lei da Hidrostática. Homem prático e cidadão dedicado, aplicou seus conhecimentos de Matemática e Física para inventar máquinas de guerra para a defesa da cidade, tais como: catapultas, balestras, aríetes e espelhos côncavos que, concentrando os raios solares sobre os navios inimigos, incendiava-os. Em Alexandria se reuniam poetas, es critores, copistas, literatos. Os estudos das obras literárias do passado, levadas a efeito por esses intelectuais, deram origem à crítica literária e a sistemas aperfeiçoados de exegese textual. Aos estudiosos do idioma grego devemos a elaboração das primeiras gramáticas destinadas ao ensino da língua. Foram esses gramáticos que, mais tarde, a pedido dos romanos, elaboraram a gramática da língua latina. Os centros de cultura helenísticos funcionaram como antecipações do que mais tarde se denominará universidade, isto é, locais em que se reuniam os estudiosos de todos os saberes humanos (Michulin, 1963, p. 140ss). Se é certo que a cultura grega, racional e científica, seu alfabeto simplificado e prático, sua língua, ambos longamente elaborados pela poesia épica e lírica, pelo teatro e oratória, pela Filosofia e pela política, seu modo de cultivar o corpo e exibi-lo em esculturas, pinturas e nas gravuras e jogos, foram adotados com entusiasmo pelos orientais, é certo também que o Ocidente adotou os deuses do Oriente, sua prese nça constante na vida das pessoas e seus modos de c uidar das angústias da condição humana. 60
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O Ocidente não apenas orientalizou seus deuses como adotou quase sem acréscimos os deuses e a espiritualidade orientais. Como entender de outro modo a difusão das religiões orientais de origem persa, egípcia e judaica? E, sobretudo, teremos de levar em conta heranças religiosas que, sob as condições sociais e políticas do heleni smo, se reformularam e se adaptaram às condições de vida de frações da população que buscavam na religião razões novas de vida. É daí que emergem novas crenças, quase todas elas independentes dos deuses oficiais, dos deuses tutelares do Estado, tal como o Cristianismo que se separa do Judaísmo, religião de Estado por excelência. Grupos de homens e mulhe res “formavam confrarias, se encontravam lado a lado porque escolheram livremente adorarem o mesmo deus” (Levêque, 1967, p. 491). E acrescenta Levêque:
Gregos e bárbaros, cidadãos e estrangeiros aí (nas confrarias) se acotovelavam. Ainda que os escravos se agrupem por ve zes só entre e les, [...] a maior parte das confrarias recebe ao mesmo tempo homens e escravos. Mulheres e homens estão aí em igualdade e mesmo as crianças são admitidas como meninos de coro. Pode imaginar-se o poderoso fermento de unificação social que essas confrarias representam: ao mundo clássico, onde a oposição entre grego e bárbaro ou entre cidadão e escravo é absoluta, onde a mulher é desprezada, sucede um mundo novo em que os antagonismos se atenuam, onde todos os homens se sentem irmãos, visto que amam um mesmo deus e esperam dele a mesma salvação. (Levêque, 1967, p. 491).
É neste caldo de cultura, de incertezas, conflitos e angústias que as camadas populares, que não tiveram acesso às respostas da Ciência e da F ilosofia gregas, vão buscar suas âncoras que se apresentam como religiões de salvação, sejam as religiões órficas, dionisíacas ou as religiões de mistério dos semitas e iranianos e egípcios.
É também deste mundo que nascerá uma religião oriental, religião também de mistérios, religião também de salvação, que vai impor-se lentamente: o cristianismo. Ainda que suas raízes judaicas sejam e videntes, é na religião hele níst ica q ue e le e ncontr a a sua preparação psicológica: a trindade, a possibilidade de um traço de união entre natureza divina e natureza humana, a mãe do salvador, o culto dos santos, seus dogmas cujo equivalente direto se encontra nos r einos helenizados do Oriente, ao passo que são profundamente estranhos ao judaísmo. Aliás, o essencial é talvez que, tal como o misticismo do Egito ou da Ásia, o cristianismo ensina o amor e não o medo do Senhor (p. 492). 61
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O helenismo não é, como muitas vezes se poderá supor, um caudal de influências e aportes civilizatórios de mão única. E como assegura Levêque (1967, p. 492):
Na confrontação da Grécia e do Oriente, que foi provocada pela conquista de Alexandre, é difícil medir o que o Oriente proporcionou à civilização helenística: por assim dizer nada no que respeita à literatura, um pouco mais na arte, na filosofia e na ciência, mas quase tudo na religião.
Pela mão dos gregos voltamos ao Oriente, não aquele Oriente tal como o vimos em Civilizações Clássicas I, mas um Oriente helenizado, do qual recebemos a civilização à qual conferimos o epíteto de ocidental e cristã.
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Unidade 2
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A CIVILIZAÇÃO ROMANA OBJETIVOS DESTA UNIDADE • Aprofundar nossos conhecimentos históricos da civilização romana, visando a compreendê-la em seu processo de construção e, sobretudo, em sua enorme contribuição à civilização atual, mostrando o quanto nossos valores, crenças, instituições sociais, econômicas, po líticas e estéticas tiveram su as origens nesta civilização.
AS SEÇÕES DESTA UNIDADE Seção 2.1 – Da Guerra Seção 2.2 – O Lácio e os Povos Latinos Seção 2.3 – Roma, uma Máquina de Guerra Seção 2.4 – Os Frutos da Guerra Seção 2.5 – A Política: uma aristocracia que jamais cede o poder e a riqueza Seção 2.6 – Nasce a Cives Romana ou o Estado Romano Seção 2.7 – Os Eixos Históricos de uma Classe Predadora: o butim e a glória Seção 2.8 – Os Deuses Romanos Seção 2.9 – O Cristianismo e o Império Seção 2.10 – O Legado do Cristianismo Primitivo Seção 2.11 – A Escravidão na Grécia e em Roma Seção 2.12 – As Heranças que nos vêm dos Romanos 63
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Estudaremos a civilização romana a partir de uma de suas mais importantes dinâmicas de expansão: a guerra. Sem guer ra não haveria nem Roma, nem seu império, nem sua civilização. A guerra determina os suces sivos formatos do Estado romano, a identidade e a cidadania dos indivíduos, bem como seu lugar na e strutura do poder e da riqueza. Quando Roma não mais pôde expandir-se e, portanto, fazer guer ra, rapidamente entra em decadência e desaparece sob os golpes d os povos “bárbaros”.
Seção 2.1 Da Guerra A Itália é uma península que divide ao meio o Mediterrâneo. Os romanos souberam tirar proveito desta posição estratégica do território, expandindo se u domínio em todos os quadrantes e construindo um império que, a partir das bordas do Mediterrâneo, adentrou o continente europeu, o norte da África, se apossou do Oriente Médio até o limite dos Rios Tigre e Eufrates e, a nordeste, até o Cáucaso e as desembocaduras do Rio Danúbio.
Fonte: Disponível em: . Acesso em: 21/1/2009.
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Fonte: Disponível em: . Acesso em: 21/1/2009.
Para Para uns, a Itália lembra uma bota feminina; para outros, uma árvore, cujas raízes se plantam ao sul, na Sicília, e ao norte, a galhada dos Alpes. Seja qual for a me táfora que a Geografia nos sugere, por força da sua posição no Mediterrâneo, seu clima é ameno, seus solos, embora divididos de de norte a sul pela cadeia dos Apeninos, são férteis, com extensas planícies e platôs, bem irrigados por chuvas regulares e rios perenes. É na Itália que se reuni ram todas as condições para o desen volvimento da agricultura agricultura e da pecuária típica do Mediterrâneo, isto é, da criação de bovinos, cabras, ovelhas, suínos, e da produção do trigo, da oliva, da uva, bem como dos figos, maçãs, pêras, cítric os, alho e cebolas. Suas florestas são ricas em pinheiros, ciprestes e carvalhos, cujas madeiras são apropriadas para a construção de casa, móveis e embarcações. 65
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A ocupaçã oc upaçãoo humana hum ana da peníns pen ínsula ula é mui m uito to antiga, antig a, recuan re cuando do para 2 mil ano s a.C. a .C. Os arqueólogos mapearam assentamentos humanos indicando a existência de intercâmbios culturais e econômicos da Itália e Sicília com o mundo grego do Egeu. Desses primitivos povos, cujas culturas são chamadas calcolíticas, foram desenterradas aldeias de cabanas e túmulos, freqüentemente situados em cavernas. A partir p artir de meados me ados do segundo seg undo milênio milê nio a I tália passa pass a a ser invadida inva dida por suces su cessivas sivas ondas de povos que falavam falavam línguas de origem indo -européia. Estes povos deixaram vestígios em seus assentamentos ao longo de toda a península e seu desenvolvimento foi impactado no século 9º pelas invasões dos etruscos no centro-norte; já no século 7º o sul é invadido por colonos vindos das diversas póleis gregas. Ess es invasores trazem consigo cons igo os avanços de suas respectivas respecti vas civilizações, civilizações , de tal modo que a Itália pôde incorporar-se ao vasto movimento civilizatório que se havia consolidado no Oriente Médio e na Grécia.
Nota-se por toda a parte uma melhoria material e moral. Os grandes centros urbanos multiplicam-se. A escrita difunde-se nas diversas regiões, os primeiros documentos epigráficos aparecem, os quais permitem uma classificação lingüística e uma delimitação territorial dos diferentes povos [...] (Bloch; Cousin, 1964, p. 6).
No mesmo período, mercadores fenícios, feníc ios, assentados no litoral africano da atual Tunísia, Tunísia, expandiram-se formando colônias colônias inicialmente i nicialmente na Sicília e Sardenha e, posteriormente, na Espanha (p. 6). A parti r do sécu s éculo lo 8º, a Itália Itá lia tinha tin ha se u terri ter ritório tório partilhad parti lhadoo entre en tre os o s seguint seg uintes es povos: p ovos: vênetos, no extremo nordeste da península itálica e hístrios no noroeste da península balcânica. A costa do mar Adriático, do norte para o sul, estava dividida entre picentes, dauni, peucetios e messepios. Os etruscos, em sua máxima expansão, ocuparam o centro-oes te da península, do Rio Tibre ao Arno e, posteriormente, o vale do Rio Pó. Os lígures ocupam o atual território da Ligúria, cuja capital é Gênova; mais ao centro-oeste e leste, na Coroa dos Alpes, estão os celtas. No restante do território, do centro para o sul, viviam umbrios, sabinos, latinos, equos, samnitas, volscos, oscos e, na Sicília, os sículos. 66
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Os gregos e fenícios ocuparam, como vimos, o sul da Itália e a Sicília. Os fenícios ocuparam também, até serem expulsos pelos romanos, as ilhas da Sardenha e da Córsega, habitada originalmente por sardos e corsos. Gregos e fenícios, ao s e expandirem, levaram com eles s ua civilização: sociedades urbanas, com artesanato de bronze e ferro muito desenvolvido, bem como uma agricultura organizada na produção de trigo, de azeitonas e uvas, base para a indústria do ó leo e vinho, produtos de alto valor mercantil e de consumo em todo o Mediterrâneo e Oriente Médio. Foram Foram eles que introduziram alfabetos fonéticos, que estão na base do alfabeto que os romanos adotaram, recebendo-o dos gregos, a perfeiçoaram-no e no-lo legaram. Os etruscos, por sua vez, t rouxeram da Ásia (Anatólia) uma cultura desenvolvida que os distinguia em muito dos povos italianos, seus vi zinhos. Sua riqueza lhes advinha de uma bem estruturada produção industrial de ferro, cuja ex ploração se dava nas minas do norte, da exploração das florestas da Toscana, Toscana, da produção de cereais e animais e de d e um intenso i ntenso comércio com os feníc ios, tudo isso aliado à prática da pirataria, do saque e roubo (cf. Bloch; Cousin, 1964, p. 23). Os etruscos distinguiram-se também pela avançada técnica urbana, por su a arquitetura privada pública e funerária, em que a abóbada foi inteiramente utilizada, e pelas abundantes pinturas, imagens e jóias, que se conservaram, por um gosto refinado pela boa vida, pela boa comida e pelo vinho, pelos banquetes, esportes e lazer. Dedicavam Dedicavam a seus mortos rituais elaborados, tumbas luxuosas que parecem indicar, ao menos para os ricos, uma continuação da boa vida depois da morte. Os latinos, comparados com eles, eram bárbaros muito primitivos. A cultura etrusca foi profundamente marcada pela cultura das póleis gregas. E foi por me io deles que os latinos tiveram acesso à cultura helenística e , sobretudo, os primeiros contatos com as divindades do panteão grego, que os la tinos, reforçados por contatos diretos e por influência das colônias gregas, adotaram adotaram quase integralmente, apenas substituindo seus nomes originais por nomes latinos. O alfabeto etrusco é uma variante do alfabeto grego, o que permite a leitura das inscrições que deixaram. Até agora, porém, a língua etrusca continua ininteligível. 67
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Os latinos submeteram os povos circunvizinhos e, sucessi vamente, as três civilizações: a etrusca, a grega e, depois de três longas guerras, a fenícia, nas chamadas Guerras Púnicas.
Seção 2.2 O Lácio e os Povos Latinos O berço de Roma é um pequeno território chamado Lácio, constituído da parte baixa do vale do Rio Tibre. Ali os latinos criaram suas cidades, cujos nomes chegaram até nós: Alba-Longa, Lanúvio, Árdea, Prenes te e Roma. Estas cidades e terri tórios eram circundados por outros povos com suas cidades que os latinos, liderados por Roma, irão submeter. A língua latina dava a estes povos um vínculo e bases c ulturais comuns, em particular o culto a um Deus tutelar comum, o Júpiter Latino. A língua falada pelas tribos do Lácio se chamou Latin, aparentada ao Veneto (povos do Vale do Rio Pó), o Faliscio, falado na desembocadura do Rio Tibre, e o Sículo, falado pelos habitantes da Sicília. Os latinos conservaram sua antiga língua, a desenvolveram e a impuseram aos povos que iam, ao longo dos séculos, dominando. Tornou-se a língua universal do Império e substituiu, nesta função, o grego, que exercera esta função desde as conquistas de Alexandre.
Seção 2.3 Roma, uma Máquina de Guerra Sabemos que a população da Roma primitiva organizava-se em clãs, a que os romanos deram o nome de “gentes”. As terras constituíam propriedade comum, ou bem patrimonial ou “ pátria”. As terras que não pertencessem a nenhum clã eram consideradas terras comuns 68
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ou “agar publicus”, que poderiam ser ocupadas por um clã mediante “ posse” ou “ possessio” (posse). A principal atividade dos clãs era a criação do gado, “ pecus”, que constituía sua mais importante riqueza, “a pecunia”. A estrutura da sociedade em c lãs exprimia-se também militarmente. Todos os adultos de cada clã, capazes de portar armas, deveriam participar das guerras promovidas por Roma que, além da defesa contra os ataques de outras gentes, visavam, sobretudo, a apoderar-se de seu gado, de seus bens e de suas terras, impor-lhe pesados tributos em espécie e trabalho. A guerra estava, portanto, no centro da atividade econômica de Roma. A coesão interna dos clãs assentava-se numa concepção de “frater nidade” fundada no mito de um ancestral comum, cujo culto está na origem das práticas religiosas do clã, de seus deuses e deusas e entes divinos. A ident idade de cada clã era dada pelo nome comum portado por cada membro do clã: os júlios, os cipiões, os cornélios , os otávios, etc. (Diacov; Covalev, 1965, p. 654-655).
A estrutura soci al, polí tica e mil itar de Roma organizav a os clã s ou famílias em três tribos: Tities, Ramnes e Luceres. Cada tribo compreendia dez cúrias [...], cada cúria, dez decúrias. Esta divisão simples respondia às necessidades do recrutamento de tropas. Cada tribo contribuía com mil soldados de infantaria e cem cavaleiros. A divisão política da cidade correspondia a esta organização militar... A assembléia da cúria aprovava por aclamação as propostas do rei. Os chefes das gentes constituíam o senado e auxiliavam o soberano com seus conselhos nas q uestões graves (Bloch; Cousin, 1964, p. 42).
Esta estrutura social muito primitiva já deixa e ntrever a divisão da sociedade em classes, que se irão antagonizar ao longo da História: de um lado, os patres e suas famílias que darão origem à aristocracia romana ou os patrícios e, de outro, a plebe, as frações sociais das gentes e tribos que foram sendo excluídos do poder, das partilhas da guerra, das terras e escravos. Eles vão constituir a plebe romana que, segundo Bloch, incorporará t ambém os descendentes de povos vencidos, ou estrangeiros excluídos dos c ultos da cidade ou ainda camponeses caídos numa semi-servidão imposta pelos grandes proprietários (Bloch; Cousin, 1964, p. 42). 69
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Esta estrutura de classes está também na origem, seja da permanente tensão e pressão política dos plebeus, seja da imperiosa necessidade de incluí-los nos benefícios sociais, sem que os patrícios abdiquem de seus privilégios. O modo como Roma resolveu essa permanente contradição foi a guerra externa. A guerra externa, de expansão, de busca de riqueza, deslocou o conflito de classes p ara a guerra de conquista. É por isso que Roma não poderá jamai s re nunciar à guerra. A guerra é sua condi ção de existência. O Império Romano irá acabar quando não for mais capaz de levar as guerras civis que explodiam o tempo todo para fora das suas fronteiras. As guerras de Roma diri gem-se, inicialmente, a três obje tivos: o primeiro, tomar as terras dos etruscos ao longo do curso baixo do Rio Tibre; o segundo, a contenção das invasões gaulesas vindas do norte e, f inalmente, a dominação dos povos latinos e sua incorporação aos territórios de Roma. A segunda fase das conquistas completa o domínio do território da península medi ante a submissão da Etruria e de toda sua parte leste. São incorporadas as colônias gregas de Tarento, Crotona e Reggio. A terceira fase, que dura mais de um século, é a guerra quas e ininte rrupta de conquista dos territórios fenícios, cujo centro político é Cartago. São as célebres guerras púnicas. A última guerra terminou em 146 a.C., com a completa destruição de Cartago. O saldo das guerras contra Cartago foi a redução à condição de províncias romanas, a Sicília, a Sardenha e a Córsega, bem como o norte da África, o que conferiu aos romanos o controle dos mares Adriático, Jôni co e Tirreno. Esta posição estratégica de Roma sobre o Mediterrâneo abre-lhe o caminho para a conquista dos territórios a oeste e, sobretudo, das grandes civilizações a leste: Grécia, Anatólia, Síria, Pérsia e Egito. Roma come çou a pôr em prática o sonho de reconstruir o império de Alexandre. A quarta fase de expansão, a fase externa propriamente dita, realiza-se i nicialmente em duas frentes: a ocidental e a oriental. Na frente ocidental, Roma conquista a Península Ibérica ao derrotar os celtiberos e os lusitanos. Logo a seguir submete o sul da Gália, onde se situavam antigas colônias gregas e fenícias. Completa-se, desta forma, a conquista do Mediterrâneo ocidental. 70
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Os romanos iniciam a conquista do Oriente: ocupam a Macedônia e a Grécia (o reino da Macedônia) e, a seguir, a Síria (o reino dos Lágidas, cuja capital era Antioquia) e, finalmente, o Egito, o reino dos Ptolomeus, cuja última rainha foi Cleópatra VII. Todas as porções do Mediterrâneo e do Mar Negro estão agora sob o poder de Roma. Os três reinos em que se dividiu o império de Alexandre – Macedônia e Grécia, Síria e Babilônia e Egito – são províncias romanas. A expansão, contudo, não pára. E as guerras de conquista prosseguem: no fim da República, no último século antes de Cristo, Roma conquista a Gália, um gigantesco território situado entre a Espanha e os eixos dos Rios Reno e Ródano. As conquistas prosseguem com a vitória sobre os gauleses/celtas do vale do Rio Pó (a chamada Gália Cisalpina) e todos os territórios a leste do Rio Reno e ao sul do Danúbio até sua desembocadura no Mar Negro. Foram submetidas também as Ilhas Britânicas, a Bretanha, a Escócia e a Irlanda. O império em sua expansão foi detido por duas razões fundamentais: na Europa Central, a leste do Reno e ao norte do Danúbio, pela resistência eficaz dos povos germânicos e as extensa s florestas que cobriam a região. Foram obstáculos que os romanos não foram capazes de superar. A leste dos Rios Tigre e Eufrates os povos chamados partas derrotaram os romanos quando intentaram submetê-los. Estava assim fechado o caminho para a Ásia Central e para a Índia. O segundo tipo de obstáculo é de ordem natural: por um lado, o deserto do Saara que interrompe com suas areias o avanço romano e, por outro, a oeste, o grande mar, o Atlântico. Para navegá-lo será preciso aguardar mais mil anos, quando as naus portuguesas e espanholas se atreverão a devassá-lo em todas as direções com suas caravelas e galeões.
Seção 2.4 Os Frutos da Guerra As guerras entre os povos itálicos visavam à expropri ação das terras, do gado e dos bens dos vencidos e escravos, que constituíam o espólio ou o butim. A distribuição do butim e das terras não era igualitária. Famílias mais poderosas apropria vam-se de mais terra, bens 71
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e escravos. E as diferenças s ociais cresciam continuamente, gerando tensões muito violentas que conduziram a reformas sociais e à busca de novos equilíbrios sem que se tocasse efetivamente nos privilégios de uma classe restrita que se nobilitou e enriqueceu. Foi numa dessas reformas que emergiu a plebe como sujeito político e militar e os clientes, que compreendiam a massa de indivíduos desenraizados, romanos, latinos ou de outros povos subordinados que passavam à esfera do poder de um patrício. As tensões, porém, sempre podiam ser resolvidas, externalizando-as por meio de guerras:
As conquistas eram, antes de tudo , vant ajosas p ara os patrícios e os plebeus r icos, porque lhes dava oportunidade de apoderar-se da terra dos povos conquistados. Entretanto, como parte da terra também caía em mãos dos plebeus pobres, o campesinato romano ia com prazer à guerra... Foi possível, então, em menos de dois séculos, conquistar toda a Itália (Michulin, 1963, p. 154).
Dessa forma, na mesma medida em que a guerra resolvia os conflitos internos, jogavaos a um outro patamar, que se resolvia com novas guerras, expandindo suas conquistas em todas os rumos. E, como observam Franco Júnior e Cha con (1980), as conseqüências foram muito significativas, não só sociais, políticas e culturais, mas, sobretudo, econômicas:
Apoderando- se d e regiões bem mais ricas que a I tália de então , como Cartago e Ásia Menor, os romanos, por meio de saques e indenizações devidas pelos vencidos, canalizaram para a península imensos capitais: a primeira guerra cartaginesa (264-241 a.C.) proporcionou mais de 26 milhões de denários (moeda de prata que valia dez asses. Cada asse pesava 327 gramas) (Bornecque; Mornet, 1976, p. 140). A se gunda Guerr a Púnica (218-202) rendeu 60 milh ões d e denário s. A conquist a da Ásia Menor (74-63 a.C.) rendeu mais de 188 milhões de denários em indenizações de guerra. As minas de Cartagena (outrora sob domínio cartaginês) rendiam oito toneladas anuais de prata (Franco Júnior; Chacon, 1980, p. 51).
Os romanos impunham as indenizações ime diatamente após a derrota dos exércitos inimigos. A exploração, porém, não terminava aí: uma parcela da população era vendida como escrava, as terras eram expropriadas e distribuídas entre os patrícios, que as arrendavam aos vencidos, ficando estes obrigados a pagar rendas anuais elevadas. Quando os romanos desejavam consolidar as c onquistas, destinavam partes importantes das terras dos vencidos para assentamento de soldados e colonos. 72
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Considerando as indenizações, os impostos cobrados e o aluguel das terras ocupadas, calculouse para a primeira metade do século II a.C., uma renda aproximada de 500 milhões de denários. Dessa maneira, Roma se tornou importante praça financeira, pois nenhuma cidade concentrara antes, no mesmo grau, a maior parte das riquezas existentes em tão vasto raio (Franco Júnior; Chacon, 1980, p. 51-52). Tamanha riqueza deu origem a um complexo sistema monetário e a um organizado sistema bancário voltado a operações públicas, visando à arrecadação de impostos e seu encaminhamento ao erário do Estado e a operações de empréstimo, financiamento e constituição de empresas por “ações” ou “partes”, como as denominavam os romanos (Franco Júnior; Chacon, 1980, p. 52).
As conquistas cria ram um gigantesco mercado onde estava bem marcada uma inédita divisão internacional do trabalho:
[...] cada região especializou-se em um ou mais produtos [...]. O Egito, a África do Norte e a Sicília eram grandes produtores de trigo; a Itália e a Grécia, de vinho e azeite; a Espanha, de minérios; a Á sia Menor e a Itália, de gado; a Síria e a Gália, de manufaturados [...] (p. 52).
Essa divisão internacional do trabalho, ao romper os sistemas regionais auto-suficientes, propiciou um enorme d esenvolvimento do comércio. Dispomos de alguns números: Roma consumia em torno de um milhã o e meio de toneladas de trigo por ano, das quais 500 mil toneladas vinham do Egito, 300 mil do norte da África e 200 mil da Sicília. Além do intenso comércio entre as diversas províncias romanas, havia grande intercâmbio entre a Itália, exportadora de vinho, azeite, lã, cerâmica, objetos de metal, e as demais regiões, das quais importava, além de trigo, cobre, estanho, chumbo, prata, da Espanha; madeiras da Ásia Menor e Síria; peixe salgado do Mar Negro e da Espanha, quei jo e manufaturados da Gália e objetos de luxo (jóias, perfumes, sedas, porcelanas, especiarias) da Arábia, Sudão, Índia e China (Franco Júnior; Chacon, 1980, p. 52-53). Tamanha divisão do trabalho e do sistema de trocas que implicava, atingia duramente as populações que viam seus modos de vida e de trabalho destruídos. Os pequenos proprietários da Itália, por exemplo, foram atingidos por três calamidades simultâneas: seus lotes de terra muito pequenos e, em geral, pouco férteis, eram continuamente press ionados pelos latifúndios da nobreza que não paravam de crescer; esses grandes proprietários compravam escravos baratos e em grande quantidade, baixando dramaticamente os cus tos de produção. 73
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A ruptura dos sistemas de produção locais auto -suficientes obrigava esse s camponeses a comprar quase tudo. Eles não tinham dinhe iro para tal. Contraíam empréstimos, endividavam-se e acabavam perdendo as terras. Aos poucos, a pequena propriedade desaparece. Os camponeses migravam para as cidades, onde acabavam sendo alimentados pelo governo (pão e circo) quando não estavam engajados em guerras. A guerra seguiu sendo uma solução indispensável para evitar que multidões de expropriados ensejass em guerras civis destr uidoras. Em meados do século 1º a.C. Roma tinha 200.000 pessoas nestas condições (Franco Júnior; Chacon, 1980, p. 53). A aristocracia romana em suas dis putas intern as pelo poder, ganhava o apoio dessa massa, tanto para buscar aí os soldados quanto para as disputas eleitorais na busca de cargos estratégicos no Estado. Júlio César , por exemplo, ganhou o apoio dessa massa quando se fez nomear chefe do abastecimen to de Roma e promotor de jogos, festas e banquetes públicos. As guerras de conquista deram a Roma uma gigantesca fonte de riqueza: a redução à escravidão de populações vencidas. Temos alguns números reveladores: na primei ra Guerra Púnica (264-241 a.C.), 20.000 prisioneiros foram vendidos como escravos. Nessa guerra Cartago perdeu a Sicília, a Córsega e a Sardenha e pagou pesada indenização (Michulin, 1963, p. 160-163). Na terceira Guerra Púnica (140-146 a.C.) Cartago foi definitivamente vencida. Trinta mil homens e vinte e cinco mil mulheres foram feitos prisioneir os e vendidos como escravos. A conquista da Grécia, em 146 a.C., rendeu 150.000 escravos. A máquina de guerr a mostrava-se cada vez mais eficiente. S upõe-se que de meados do século 3º a meados do século 2º a.C., a Itália tinha recebido algo como 2,5 milhões de e scravos. Acredita-se também que no tempo do imperador Otávio Augusto (27 a.C. a 14 d.C.) Roma deveria ter 3 escravos para cada 5 livres (Franco Júnior; Chacon, 1980, p. 53-54).
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Economia do Império Romano Fonte: Franco Jr.; Chacon (1980, p. 60)
Seção 2.5 A Política: uma aristocracia que jamais cede o poder e a riqueza Ao longo da históri a de Roma, em nenhum momento as camadas populares alcançaram avanços sociais e polític os comparáveis aos que foram con quistados pelo povo de Atenas e pelo de muitas outras póleis. Por quê? A resposta é complexa. Pr ecis amos lembra r o que vimo s no item anterior: a guerra foi um fator de permanente externalização dos conflitos internos. A aristocracia romana, embora tenha feito concessões à plebe e às camadas subalternas mais pobres, em nenhum momento perdeu o poder e as bases s obre as quais se assentava: o controle do Estado e de seus órgãos, o poder de minis trar a Justiça e promulgar a lei, o controle absoluto do Senado enquanto instância política e legislativa. 75
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Quando fez concessões muito significativas, como quando a plebe se rebela e sob ameaça das armas impôs reformas, a aristocracia cooptou uma parcela dessa camada, a converteu em “cavaleiros” e, logo após, em “c avalheiros”. A organização polític a das camadas mais pobres da sociedade e sua redução à condição de clientes das várias frações do patriciado impediram que tomassem consciência de si como fração de classe. Foram permanentemente o núcleo mais estável de apoio às manobras das elites. A desqualificação da plebe romana à condição de fração dependente das políticas de pão e circo, e d as guerras do Estado romano, neutralizou para sempre sua capacidade política e sua consciência de classe. Um episódio mostra o quão dramático pode tornar-se essa incapacidade política da plebe. Em 122 Caio Graco foi eleito tribuno, o que lhe conferiu amplos poder es de governo e de iniciativa da lei. Ele propôs à assembléia popular um projeto de lei que concedia direitos de cidadania aos aliados de Roma. Na prática, estendia às camadas populares de toda a Itália o direito de cidadania e beneficiava diretamente todos os camponeses da pení nsula que, dessa forma, poderiam requerer lotes de terra para suas famílias. A assembléia popular não apoiou o projeto porque não queria compartilhar sua “situação privilegiada” com os demais povos da Itália. Caio Graco viu-se obrigado a retirar o projeto, não obteve o apoio para se reeleger no ano seguinte e acabou assassinado por tropas do Senado. Foi decapitado e seu corpo jogado no Rio Tibre (Michulin, 1963, p. 180-181).
2.5.1 – AS ESTRUTURAS POLÍTICAS Voltemos às origens remotas de Roma. A soci edade compunha-se de comunidades organizadas segundo um modo arcaico e fechado, chamadas “gentes” (singular: gens).
A gens define-se como um agr egado de famílias ligadas pela crença mítica num ancestral comum. Todos os membros do grupo, os “gentiles” têm o mesmo nome, embora entre eles não hajam vínculos de consangüinidade. Submetida à autoridade do chefe (pater) a comunidade gentílica é proprietária dos meios de subsistência (terras coletivas e butins), conserva as tradições religiosas (cultos e sepulturas gentílicas) e garante a segurança jurídica. A justiça interna é constituída de “decretos gentílicos” promulgados e acumulados ao longo do tempo. Os conflitos externos são regulados segundo a lógica da guerra privada até o su rgimento do Estado (Humbert, 1984, p. 174). 76
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É impensável e socialmente impossível a existência isolada, fora da estrutura gentílica. Uma pessoa ou família sem esses vínculos pode ser morta, ninguém irá vingá-la. Nessas sociedades o indivíduo não existe, não é um ente social. As gentes aos poucos diferenciam-se internamente e parcelas de seus m embros são mantidas em sua estrutura de forma subordinada. São os clientes. Sua existência indica, de um lado, o poder que se vai concentrando na mão de uns poucos e que se intitularão “patres” que, como coletivo de gentes, constituirão a classe dos patrícios ou nobreza, aristocracia. Cliente, que deriva do verbo cluere, e que significa obedecer, é um indivíduo livre que se colocou, voluntariamente, e em confiança, sob a “patronagem” de um membro de uma gens. O vínculo, constituído pelo compromisso bilateral, é he reditário e recíproco. O cliente deve ao patrão (ou senhor) dias d e trabalho, obediência, respeito e serviço militar. O patrão garante ao cliente segurança e proteção jurídica. O costume e a regulação posterior condenam à morte a violação do vínculo de clientela. O vínculo sacraliza-se e apesar da evolução da vida política romana, ele não se enfraquecerá. Perpetuar-se-á como um trunfo insubstituível das famílias romanas poderosas em suas disputas políticas e eleitorais. Permanecerá hereditário e recíproco. Em resumo, ele perpetuará vigorosamente as solidariedades pré-cívicas (Humbert, 1984, p. 173-175). Essas famílias poderosas formam muito rapidamente um coletivo, certamente o ancestral do senado, e elegem um dos seus como rei, com mandato anual, findo o qual o poder retorna ao conselho. Os “patres põem novamente o governo (res) em comum. De s orte que, a autoridade real, os auspícios sobre as comunidades gentílicas é uma emanação provisória do poder inalienável dos patres” (Humbert, 1984, p. 176-177). Em outras palavras, o poder jamai s escapa da esfera da classe dominante. O conceito de “auspício”, fundamental no Direito Público romano, exprime o poder de entrar em contato com os deuses para obter deles sua concordância, antes de tomar uma decisão pública. Empreender uma guerra, ordenar o combate, convocar uma assembléia, nenhuma decisão é válida sem a aprovação dos deuses (p. 177). É por isso que em Roma o poder político guarda uma função sacerdotal. O imperador romano é, ao mesmo tempo, sumo pontífice, isto é, aquele que liga permanentemente o povo romano aos deuses. 77
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A estrutura organizativa de tipo gentílico estabelece com clareza a fratura da soci edade entre os “patres” e os “clientes”. Ela define a s relações de fundo que atravessam séculos, mas por ser uma estrutura arcaica, não dá conta de uma realidade social e evoluirá para formas mais complexas, como as guerras. Para esse fim a s ociedade, como vimos, se organizou em tribos que, por sua vez, são formadas de dez “cúrias”. A cúria, q ue os gregos chamavam “fratria”, organiza a “fraternidade de c ombate” ou coletivo de c ombate ou, em latim, “co-viria”, literalmente “homens-junto” ou “uni dos”. O que pertence a uma “cúria” recebe o epíteto de “quirites”, isto é, o romano por excelência, aquele que se distingue do escravo, do latino, do estrangeiro. A mim parece que aqui se encontra uma das poderosas razões da permanência e da reprodução do poder da aristocracia romana: todos são ou clientes ou patres e nisto são ao mesmo tempo diferentes e amarrados por vínculos sacralizados. Já ser quirite, epíteto que se atribui a todos os romanos e só a eles, dilui a crueza da diferença entre patrícios e clientes/plebeus. De sorte que as relações designam o que a sociedade romana engendra desde seu nascimento e que perpetuará até sua decadência, mas que acabam se escamoteando duplamente: de um lado, pelo vínculo sagrado de senhor-cliente e, de outro, pela condição comum de quirite. Como observa com justeza Humbert (1984, p. 179), “Mas a assembléia das cúrias ou comícios curiatos é dominada pela ascendência dos chefes das gentes.” E acrescenta: “o poder, soberanamente, pertence aos chefes das gentes” (p. 179). Roma parece conter em ge rme sua evolução futura:
Em fins do século 7 a.C., quando Roma nasce, a aristocracia dos patres já domina a organização (pré)cívica e a realeza que ela criou. No conselho federal (da federação dos povos latinos) ela garante a vitória do princípio de hereditariedade: a composição do conselho tende a excluir todos os que não pertençam à fração da aristocracia. Tenderá também ampliar seu poder apropriando-se das funções sacerdotais, atribuindo-se o direito exclusivo de nomeá-los (ou ordenálos). Esta mesma autocracia, rica em terras e em clientes, apropria-se dos comandos do exército, pois é dela que advém a “milícia sagrada” dos cavaleiros (Humbert, 1984, p. 178-179).
Temos aí, claramente, o nascimento da nobreza (ou aristocracia) romana, que deu a si mesma o nome de “patres”, agora dá a si mesma o nome de “patrícios” ou descendentes ou nascidos dos patres. 78
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Seção 2.6 Nasce a Cives Romana ou o Estado Romano A evoluçã o das estrutur estru turas as gentíli gent ílicas cas e curi ais dos romanos rom anos receb r eceb e um impacto impact o a partir do momento em que os etruscos passam a dominar os romanos. Eles impuseram suas es truturas políticas e, sobretudo, uma t emporária expropriação do poder da aristocracia romana. A monarqui mona rquiaa etr usca usc a impost im postaa a Roma fun funda-s da-see no conce co nceito ito de “imperi “im perium um”, ”, isto é, num poder pessoal do rei, civil e militar, militar, poder total, sem apelação, soberano. A e le cabe o poder de coerção, de vida e morte. Os símbolos de seu poder: o manto púrpura, o cetro encimado por uma águia e u ma coroa de folhas de ouro, que o patriciado romano conservará de bom grado e os imperadores adotarão como signos de seu poder. poder. A aristocracia aristoc racia romana roma na que se vê frente fre nte ao poder etrusco des pojada de seus poderes pode res,, vai custar para reavê-los. A monarquia etrusca, porém, ameaçada pela aristocracia, i rá buscar apoio nas camadas subalternas e, inspirada nas reformas de Sólon e do tirano Pisístrato, encaminhará reformas significativas, significativas, entre elas a formação de um poder que emana de uma massa cívica homogênea e e quilibrada, que a aristocracia vê como ameaça a se u poder. poder. As reform r eform as, sob s ob inspi in spiraçã raçãoo de Sólon e Pisís Pi sís trato, trato , dão dã o ao patricia patr iciado do um outro outr o lugar lu gar e outra legitimidade, o direito de governar porque constituem a porção mais rica da sociedade, ou o governo dos ricos, ou timocracia. Em Roma, Sólon não conduz à Clístenes e a Efialte e Péricles, pois a nobreza não estava disposta a ceder t anto. Livra-se Livra-se da dominação etrusca, livra-se da monarquia e cria um regime político pelo qual poderia fazer concessões sem ceder o poder, a República, que nada mais é do que um u m regime oligárquico olig árquico do patriciado que, rapidamente, verá surgir um poder contestatório, a plebe. Ela se insurge contra a aristocracia, rejeita seu poder e le va à tensão extrema da rebelião. A plebe foi vitoriosa nos confrontos, mas nã o conseguiu reter o poder c onquistado por muito tempo. Uma parcela da plebe enriquece e conquista o estatuto de cavaleiros e se nobilita pela riqueza, convertendo-se convertendo-se em c avalheiros, isto é, em nobres. As conquistas romanas da Itália, Itália, a partilha partilha de terras e da riqueza com com plebe e clientelas, desaquecem as lutas populares e seus avanços políticos. 79
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Quando o regime republicano entra em cris e não são as cam adas populares, populares, a plebe e os clientes que formulam as soluções. São as elites que tomam a iniciativa e resolvem os problemas impostos pela expansão das conquistas mediante uma disputa interna violenta, na qual as camadas populares participam como massa. E como nesta disputa não há um tertius a luta luta intra-elites leva lev a inexoravelmente ao império. E o império, nós já sabemos, é um u m poder absoluto de uma classe social. As frações da nobreza que lutam pelo poder imperial precisam da plebe e dos clientes, mas eles não participaram participaram da partilha do poder e da riqueza que o império impéri o acumulou em proporções jamais vistas até então. É a vitória final da aristocracia romana. E a sua vitória foi de tal forma absoluta que não gerou no seu momento de crise nenhuma força popular criadora. E o império morreu nas mesmas mãos que deram o impulso impuls o expansivo da sociedade romana antes mesmo de seu surgimento como Estado. Ninguém melhor do que Cícero, um dos intelectuais inte lectuais mais brilhantes de Roma, resumiu a história política e militar das elites romanas, i mitadas aliás aliás até hoje e m suas estratégias e guerras imperialistas: “Roma “Roma jamais foi à guerra que não fosse para garantir sua defesa (pro salute) e socorrer seus seu s aliados injustamente agredidos a gredidos (pro fide)” (Laelius apud Cícero, 1999, 3, 34; apud Humbert, 1984, p. 237).
Seção 2.7 Os Eixos Históricos His tóricos de uma Classe Predadora: o butim butim e a glória Três eixos de força alimentaram por um milênio uma classe violenta e predadora: a aristocracia romana – pr – praed aeda, a, cupido cup ido gloria gl oriaee et e t maies m aiestas tas populi popu li romani roma ni (espólio ou butim, busca desenfreada de glória e ex altação do povo povo romano): – A busca do butim – praeda – praeda,, em latim – é um dos móveis centrais das d as guerras romanas. E atraía todas as frações da sociedade. O Estado romano ao se apropriar apropri ar das indenizações de guerra do Oriente, trazidas pelo cônsul Manlius Vulso, em 187 a.C., paga a dívida colossal (25 anos de soldo) que o governo devia aos banqueiros romanos contraída na guerra contra Hanibal. 80
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Os magistrados, os generais, usam os gigantescos lucros das guerras para construir monumentos em seu louvor e em homenagem ao povo romano. As guerras vencidas legitimaram a pilhagem, velho método de recompensa reco mpensa dos soldados. Compreende-se porque jamais as assembléias populares votaram contra uma declaração de guerra proposta pelas elites. Há, porém, uma exceção a essa prática, que foi a votação pela guerra da Macedônia. O povo opõe-se, mas os voluntários em massa se prontificaram prontificaram a atender o apelo dos generais. A campanha foi um s ucesso. Só em escravos o saldo foi de 150.000 pessoas... E, quanto mais o recrutamento foi perdendo apoio popular, tanto mais cresceram as promessas de pilhagem ou butim. Hoje não podemos esquecer dos negócios que dependem da guerra: fabricantes de armamentos e todo o tipo de fornecedores militares: transporte terrestre e naval, infra-estrutura, alimentos, vest uário... – A busca da glória , ou os bens simbólicos que a guerra traz a se us participantes, participantes, o que os romanos chamavam de cupido gloriae. gloriae.
A guer gu erra ra é indis in dispe pe nsável nsá vel à glóri gl óriaa dos aris tocra tas ta s que de pende pen dem m do suces suc esso so mili tar para pa ra a realização de uma notável carreira política. política. O magistrado é antes de mais nada um chefe: não é a ciência do direito nem o domínio da filosofia que forma o estadista romano, mas as campanhas militares militares que ele for c apaz de conduzir vitoriosamente. vitoriosamente. O que importa importa é ser “imperator” (saber mandar) e não (só) ser “orator” (saber falar). A cultura e a civilização romana romana são em se u núcleo belicistas. Sem guerra não há civilização romana. Todos os heróis romanos, sem exceção, são heróis guerreiros (Humbert, (Humbert, 1984, p. 239).
Conservou-se um refrão que indica bem este e spírito de guerra. O Senado teria ordenado ao general Vitelio Vitel io que partisse para a guerra contra os bárbaros: i Vitelli dei romani Vitelio ao soar dos clarins do deu s da guerra dos romanos. sonno belli: belli: vai Vitelio – A magnificência do povo romano , ou a vontade de poder é um dos traços profundos da mentalidade coletiva do povo romano. romano. As preces, mesmo as mais solenes, não p edem aos deuses paz e segurança nas fronteiras do império, mas a subjugação dos inimigos de Roma. Os Os sacerdotes romanos suplicam aos deuses que tornem os romanos e seu império mais forte e mais vasto (ut ( ut populi Romani res meliores et ampliores facerent facer ent)) ou ainda mais fortemente: “[...] que os deuses da cidade se dignem, na guerra e na paz, aumentar o poder ( imperium ( majesta roman o” (Humbert, 1984, p. 238 imper ium)) e a superioridade ( maj estass) do povo romano” 239). A guerra é, portanto, uma bênção dos deus es. 81
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Seção 2.8 Os Deuses Romanos Os romanos, como os demais p ovos antigos, são profundamente religiosos. Seus deuses e deusas desempenham, na vida cotidiana das famílias e do Estado, uma multidão de tarefas que se assemelham à divisão social do trabalho da sociedade. Havia deuses privados e deuses públicos: deuses tutelares das famílias e das pessoas e deuses tutelares do Estado, aos quais correspondiam práticas e cultos privados e cultos públicos.
A família tem seu culto prestado no interior da casa pelos membr os de uma mes ma família. Consiste essencialmente na adoração das almas dos antepassados falecidos, em primeiro lugar, do “ lar fami liaris”, alma do fundador da família, que se tornou gênio protetor da casa – e dos “ manes”, que são as almas dos demais antepassados (Bornecque; Mornet, 1976, p. 67).
Para os romanos, os mortos continuam junto aos vivos, participam de s ua vida e têm um lugar central na casa, onde são cultuados, que se chama “Lararium”, santuário doméstico. O culto doméstico é presidido pelo pai ( pater famílias ) e nesta condição ele exerce a função de sacerdote. Por meio de oferendas, de sacrifícios e de preces cotidianas, ele atrai a proteção dos deuses. Se, porém, o morto é esquecido ou seu culto negligenciado ou se ele t iver cometido grandes crimes, sua alma volta como fantasma ou assombração para atormentar seus descendentes (Bornecque; Mornet, 1976, p. 67), ou mais comumente sob a forma de vermes ou “larvas”. Para expulsar estas a lmas o pai de família, de p és descalços, percorria a casa atirando favas pretas e batendo num vaso de bronze (p. 68). No altar onde o s acerdote fazia as oferendas havia o fogo sagrado, símbolo e presença dos deuses ou dos “lares”. É daí que deriva, para as línguas neolatinas, a palavra “lar”, com conotações de fogo (lareira), de família (lar doce lar), de intimidade. Havia também, no espaço da família, o culto aos deuses c hamados “penates”, encarregados de cuidar do abastecimento de tudo o que a família necessitava, especialmente os alimentos e as bebidas consumidas diariamente. 82
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A intimi dade com que os romano s se relacionavam com as divindades expri mia-se na sua multiplicidade e no detalhamento das tarefas a eles atribuídas. A casa era protegida pelos deuses do lar e dos penates, be m como por “Fórculo”, que guardava a porta, os gonzos (ou dobradiças); Limentino, a soleira da porta (ele guardava a linha que separava o exterior do interior da casa). ”Limem” em latim significa limite, fronteira. A infância merecia o trabalho de muitos deuses: o Deus Vaticano fazia o recém-nascido soltar o primeiro choro; Rumina o e nsinava a mamar; Educa e Potina ensinam a criança a comer e beber; Estatino, a ficar em pé; Abeona e Adeona a caminhar e Fabulino, a falar. Os deuses e os gênios continuavam a proteger o homem nas demais f ases de sua vida e, freqüentemente, o comportamento individual era visto como manifestação do seu gênio tutelar: por exemplo, pessoa de gênio bom, amável, afável ou, ao contrário, um gênio irritadiço, inquieto. O gênio participava da vida, das alegrias e tristezas de seu tutelado a ponto de um se confundir com o outro. A pessoa acabava sendo seu próprio gênio. Outras divindades tomavam conta de atividades produtivas importantes c omo: Bubona cuidava dos bois; Epona dos cavalos; Pales dos carneiros; Flora das flores e das espigas de trigo; Matuta do amadurecimento das espigas; Robigo combatia a ferrugem (Bornecque; Mornet, 1976, p. 70-71). A conclusão impõe -se: os romanos e os gregos, embora de forma distinta dos orientais, egípcios, mesopotâmicos e judeus, são muito piedosos e as práticas religiosas os acompanham a cada passo. Vejamos, a seguir, como os romanos codificaram suas principais práticas religiosas: – Voto: oração ou compromisso dirigido aos deuses em busca de sua proteção ou de algum benefício. – Suplicações: rito de origem grega que consiste em prostrar-se diante da estátua de um Deus e em beijar-lhe as mãos, os joelhos e os pés. É um ato de agradecimento à divindade por algum benefício ou graça alcançada ou para pedir um favor. – Sacrifício: é o mais importante ato religioso. Oferece-se à divindade um animal ou um produto da terra. O animal chama-se “ victima” se for grande, um boi; se for pequeno, uma ovelha, ou se for produto da terra – trigo, farinha, pão, vinho, azeite – chama-se 83
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“ hostia”. Os sacrifícios são na verdade banquetes públicos porque apenas uma parcela muito pequena das oferendas é queimada – alguns miúdos dos animais ou pequenas porções dos vegetais. O restante é distribuído e consumido pelos participantes. – Purificação ou lustração: consiste em conduzir três vezes um cortejo processional (pompa) ao redor da assembléia ou da(s) casa(s) que se quer purificar. A cerimônia termina com a recitação das orações e o sacrifício de um novilho, um touro, um porco e uma ovelha, seguidos do banquete. Pessoas ou coisas purificadas ou submetidas à lustração tornam-se ilustres ou puras. – Libações: consistem em despejar em honra da divindade vinho misturado com água. A água utilizada devia vir de uma fonte, às vez es purificada pela adição de sal ou mergulhando-se nela tochas acesas. A água, desta forma, torna-se lustral, ou pura. Nestas ocasiões oferecia-se à divindade também comidas: me l, bolos (liba), especialmente produzidos para tal fim. – Os jogos públicos, que os romanos copiaram dos gregos, eram na verdade grandes festas populares em homenagem aos deuses. Para este fim, os romanos construíram grandes praças esportivas como o Coliseu, as arenas e os circos. Havia uma grande variedade de cultos dedicados a deuses tutelares próprios de um grupo privado, de um coletivo, por exemplo, de carpinteiros, de ferrei ros, sapateiros, de comerciantes. E havia os cultos públicos, do Estado, denominados “sacra pública”, cujo altar e fogo sagrado estavam no capitólio, centro oficial do culto. Aí eram venerados os “lares do Estado”, isto é, os fundadores míticos de Roma: Rômulo e Remo e os Penates públicos que cuidam do abastecimento da cidade. Os d euses tutelares do Estado não se resumiam a esses. Seu número foi se ampliando, sobretudo com a incorporação dos deuses gregos e do Oriente: do Egito e da Pérsia: – Carmenta, deusa das fontes e d epois da predição; – Ceres (a Demeter dos gregos), deusa que preside o nascimento e o crescimento dos frutos da terra (dela deriva a palavra “cereal”); 84
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– Diana (em grego, Ártemis), protetora dos campos e das florestas, deusa da caça; – Fauno (em grego, Pã), deus dos animais; – Flora, deusa das flores; – Jano, Deus do dia, ele abre a porta (janua) do céu, dela fazendo surgir a luz pela manhã e fechando-a no fim d o dia. Ele é representado com dois rostos; – Juno (em grego Hera), esposa de Júpiter e protetora das mulheres. Deusa nacional do povo romano; – Júpiter (Zeus, em grego), o mais poderoso de todos os deuses, Deus da luz, do raio e do trovão. Deus tutelar máximo do povo romano, juntamente com Juno e M inerva. Os juramentos eram feitos invocando seu nome; – Líber (em grego, Baco ou Dionísio), Deus da vinha, do vinho, vinho, Deus da festa e dos “bacanais”; – Marte (em grego, Ares), Deus da guerra, pai de Rômulo Rômulo e Remo, por isso é considerado considerado pai divino dos romanos; – Mercúrio (em grego, Hermes), Deus do co mércio, das estradas, dos mensageiros; – Minerva (em grego, Atena), deusa da inteligência, deusa tutelar das profissões liberais e das escolas; – Netuno (em grego, Poseidon), Poseidon), Deus das águas, d os mares e dos exercícios e qüestres; – Plutão ou Orco (em grego, Hades), Deus que habita embaixo da t erra, nos “infernos” para onde vão as almas dos mortos; – Pales, protetora protetora dos pastores e d os rebanhos; – Pomona, Pomona, deusa protetora protetor a dos frutos (daí deriva a palavra “pomo”, “pomo” , que nas línguas língu as neolatinas virou sinônimo de maçã); 85
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– Prosérpina (em grego, Perséfone), mulher de Plutão; – Quirino, um dos nomes de Marte. Este era também o nome de Rômulo; – Saturno (em grego, Cronos), Deus das sementes e da cultura; – Tellus, Tellus, Deus das sementes e das colheitas (daí deriva a palavra telúrico); – Vênus (Afrodite), deusa do amor; – Vesta, deusa do fogo doméstico; – Vulcano Vulcano (Efesto), Deus do fogo (Bornecque; M ornet, 1976, p. 68-69). 68-69). Entre todos esses deuses e outros que os romanos ainda incorporaram a seu panteão, os principais, aqueles que constituíam os deuses públicos, os deuses tutelares do Estado, estão os seguintes: se guintes: Júpiter, Júpiter, Marte e Quirino, J ano, Vesta, Vesta, Juno e M arte. Estes são os principais protetores ou tutelares do povo romano. O Sol e a Lua eram deuses muito reverenciare verenciados. Os bosques estavam cheios de “faunos” e de “silvanos”; as fontes cheias de ninfas. Certos atributos ou eventos poderiam assumir a forma divina, como paz, vitória, fortuna... fortuna... Passaram também a fazer fazer parte do panteão romano os seguintes deuses deu ses gregos: Apolo, as nove musas, Cibele, Hércules Hércule s (Heracles). Foram incorporados, no império, as divindades egípcias Ísis e Serapis, e Mitra, da Pérsia. As influências religiosas e políticas orient ais abriram o caminho para a divinização dos imperadores e da instituição de seus cultos. Para Para tal fim edificavam grandes templos chamados “basílicas”, em que sua e státua státua recebia os cultos e adoração. Os imperadores, além de se tornarem deuses, eram sumos s acerdotes, ou “pontífices”, isto é, são deuses que ligam o império a todos os demais deuses, s ão a ponte e a mediação entre o “céu e a terra”. Nesta função “pontifical” os imperadores tornam-se, a partir de Otávio, “Augustos”, ou seja, aqueles que são capazes de interpretar os auspícios, ou os sinais enviados pelos deuses para orientar as ações ou as tomadas de decisão importantes como empreender uma guerra, iniciar uma obra pública, lançar uma lei ou um decreto. O imperador torna-se a voz, a vontade, a presença dos deuses na Terra. Terra. 86
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Esta condição divina do imperador, que deriva, como vimos, da divinização dos governantes orientais, egípcios e persas, representa a síntese das antigas heranças romanas, etruscas, gregas e orientais. Esta síntese ganha, com a divinização dos imperadores, contornos cada vez mais nacionais, não só porque são deuses oficiais, públicos e tutelares de Roma e do Império, mas também porque precisam excluir, afastar ou eliminar deuses estrangeiros com pretensões a divindades públicas tutelares do Império. Embora os imperadores fossem tolerant es com os cultos privados dos estrangeiros, não permitiam seus cultos nem sua conversão em divindades do panteão romano. É isto que explica a repressão repress ão aos cultos estrangeiros estran geiros ordenados orde nados por Augusto Augusto em 28, por Agripa em 21, por Tibério Tibério em 9 d.C. e, a partir do século 3º d.C., os cultos a Jesus, uma divindade judaica que se proclamava proclamava único deus verdadeiro verdadeiro e cujos c ujos seguidores denunciavam denunciavam os deuses romanos como ídolos e falsos deuses. A resposta romana a tal insulto foi particularmente severa sob alguns imperadores, sobretudo Diocleciano, devoto e dedicado, mediante reformas, a tentar salvar o Império.
Seção 2.9 O Cristianismo e o Império O surgimento do cristianismo introduziu na vida política romana um dado absolutamente novo. Na Grécia e em R oma, a religião é um elemento essencial da vida política. Os deuses o ficiais ficiais do Estado garantem-lhe vigor e potência; reforçam o poder e lhe dão um caráter sagrado; garantem, pelo culto aos mesmos deuses, a coesão e a lealdade dos cidadãos. O culto às divindades públicas é o ato cívico mais importante. É expressão do patriotismo. Ocorre que o cristianismo primitivo primitivo é de outra natureza. Não é romano, não foi concebido concebido para servir ao Estado terrestre, prega o desprendimento e o desprezo das coisas deste mundo. Pretende-se universal e celeste. É por isso suspeito, perigoso e merece a hostilidade dos governos (Humbert, 1984, p. 403-404).
Examinemos, agora, em detalhe, onde se situa o núcleo conflitivo entre o Império, sua religião e o Cristianismo. Nós vimos que os cristãos negavam o panteão romano. Os deuses são ídolos. São, portanto, portanto, ficções, i nvenções humanas. Criaturas de madeira, pedra e barro. 87
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Essas doutrinas não são só religiosas. São um manifesto político, pois destroem as bases da vida cotidiana cotidiana dos romanos – os deuses e cultos domésticos e privados – bem como da vida pública, uma vez que os deuses são cívicos e o próprio imperador é um entre os deuses. Os cristãos, em conseqüência, rejeitam os ritos religiosos romanos qualificando- os de demoníacos. Plínio, o jovem, diz que eles recusavam-se, como superstição, a sacrificar o incenso e o vinho diante da imagem imperial. Tal Tal recusa implica pena de morte, pois é uma ameaça à existência do Estado. O Cristianismo primitivo é visto então como uma facção religiosa subversiva. E mais, o desprezo do mundo faz com que o cristão se sinta sempre no e xílio, em terra estrangeira – sua pátria é o céu – e se recuse a acatar as ordens, as determinações e os impostos municipais, recuse a autoridade autoridade dos juízes, juí zes, rejeite a pre stação do serviço militar, militar, pois este implicava juramento de fidelidade aos deuses de Roma e ao imperador. Apesar disso, a repressão dos cristãos nos primeiros dois séculos foi esporádica e castigava apenas as manifestações explícitas da re beldia e desobediência, do mesmo modo como e ram reprimidos os seguidores dos demais cultos estrangeiros “ilícitos”, não permitidos. A situação situaçã o muda a partir do século sé culo 3º. Os cristãos cri stãos já eram muito mui to mais numerosos, numer osos, recurecu savam-se a mobilizar-se para a defesa das fronteiras ameaçadas pelos bárbaros. Tertuliano desafia o Império ao negá-lo em sua ess ência: “um cristão não pode servir a dois senhores, a Deus (Cristo) e a César (romano).” Iniciam-se, então, as repressões sistemáticas e em maior escala. Ficava evidente para todos que “a cidade romana e a fé cristã tornavam-se cada vez mais inconciliáveis. Uma das duas deveria desaparecer d esaparecer ” (Humbert, 1984, 1984, p. 404-405). 404-405). O culto cristão, proibido diversas vezes, é novamente interditado em 304, 304, as igrejas destruídas, seus bens confiscados e os membros do clero feitos prisioneiros. Os res ultados, porém, foram praticamente inúteis. E os cris tãos continuavam continuavam crescendo. Em 312 os cristãos obtêm um triunfo definitivo: o imperador Constantino converte-se ao Cristianismo. Nunca saberemos se o fez por mero oportunismo ou por convicção. ImporImporta agora que o Cristianismo se torna religião oficial do Império e a re ligião romana, o panteão romano e seus cultos proibidos e reprimidos, seus templos e estátuas destruídos, seus bens confiscados. A repressão agora muda de lado. 88
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O clero cristão recebe de volta os bens confiscados , é beneficiado com amplas isenções de impostos, os símbolos cristãos são impressos nas moedas na mesma proporção com que desaparecem os símbolos romanos. As igrejas são também autorizadas a receber doações, heranças e legados. Nasce, desta forma, o patrimônio eclesiástico. Os bispos ampliam seus poderes ao se converterem em governadores, chefes militares e juízes em questões re ligiosas e civis. Este po der dos bispos amplia-se quando obtêm do imperador o poder exclusivo de reprimir os crimes contra a fé. A e xecução das sentenças passou a ser realizada pelo Estado ou, como se dirá na Idade Média, pelo “braço secular ”. Os bispos obtêm, finalmente, a jurisdição exclusiva – privilégio de foro – para o julgamento dos crimes e demandas do clero. Em 380 d.C. o imperador Teodosio, pelo Edito de Tessalônica, impôe a fé cristã a todo o Império. O Cristianismo torna-se definitivamente a religião única do Estado. As outras religiões são condenadas e os “desvios herétic os” perseguidos. Um século depois da grande onda de repres são aos cristão s decretada pelo imperador Dioclecian o, a política se inverte. Os bens dos templos pagãos são confiscados em todo o império, o culto pagão é proibido, inicialmente em Roma e, posteriormente, em todo o império (Humbert, 1984, p. 435).
Seção 2.10 O Legado do Cristianismo Primitivo Por estranho que possa parecer, o Cristianismo, embora se opusesse firmemente à divinização do imperador, contribuiu para conferir ao poder monárquico s eu caráter divino e absolutista. O teólogo Eusébio de Cesaréia, contemporâneo do imperador Constantino, dese nvolve a teoria da monarquia de direito divino: 89
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Segundo essa teoria, o príncipe monárquico é justificado (legitimado) porque Deus é o modelo do poder real; é ele que decide sobre o estabelecimento de uma autoridade única para todos os homens. Segundo Eusébio, Deus é a origem do poder monárquico: é do senhor d o universo, e através dele, que o imperador recebe e revest e a imagem de sua suprema realeza (Humbert, 1984, p. 402).
A legitimaç ão da teoria exprime-se tanto nas imagens do imperador recebe ndo o dom do poder diretamente de Deus quanto nos epítetos – divinos – pelos quais é nomeado: bemamado de Deus; aquele que é coroado das virtudes que são inerentes a Deus; aquele cuja alma recebeu de Deus os eflúvios que vêm de Deus... e se tornou racional ...sábio... bondoso... Com olhos voltados para o alto – para Deus –, ele governa a sociedade conforme o modelo, o arquétipo divino... (p. 402). Os imperadores bizantinos e o s papas romanos encarnarão este modelo de poder, cujo fundamento, em última instância, é a sacralização e a absolutização do poder. O Cristianismo, ao se c onverter na força social do Império Romano só pôde sê-lo porque assimilou, lentamente, ao longo de séculos, sua cultura e sua civilização e tornou-se seu defensor intransigente. A organização religiosa foi tomada do modelo civil. O Cristianismo, ao romanizar-se, cristianiza a civilização greco-romana. É por intermé dio do Cristianismo que nós, que pertencemos à “civilização cristã”, temos acesso às três fontes que lhe dão origem: a tradição oriental, que nos vem do judaísmo; a tradição grega, que nos vem da Filosofia e da política; a tradição romana, que nos vem das instituições e da organização centralizada e divinizada do poder e do Estado.
Seção 2.11 A Escravidão na Grécia e em Roma Em todas as sociedades pré-modernas há testemunho da presença de escravos. Há escravos exercendo todo o tipo de atividade: domésticos, pedagogos, especialistas e m ofícios – ferreiros, perfumistas, escultores, construtores, pastores... Alguns são membros empobrecidos da comunidade que perderam, por força de dívidas, de acesso precário à terra ou por outro motivo, as condições de se manter e a su a família. 90
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Na Grécia, as famílias donas de pequenos lotes, localizados nas encostas pedregosas, geralmente pouco férteis, não produziam os alimentos necessários e suficientes para se manter. Contraíam empréstimos e dívidas que jamais conseguiriam saldar. Hipotecavam a terra, os bens e os membros da família. E acabavam escravos nas mãos dos credores, dos grandes proprietários que, dessa forma, ampliavam seus domínios e podiam contar com mão-deobra barata e abundante. Outros escravos eram presas de guerra, não necessariamente estrangeiros, podiam ser membros de outras tribos ou parentelas. Caíam vítimas de conflitos e disputas. Em Esparta, os dórios proprietários, que se haviam convertido numa espécie de nobreza dominante, submeteram à escravidão os membros empobrecidos e que reivindicavam acesso à terra e à comunidade. Esparta representa provavelmente a mais violenta exper iência de escravização de frações da população da comunidade. As ref ormas de Sólon e Clístenes, na Ática, proibiram a escravidão de gregos, mas liberaram a e scravidão do estrangeiro. As dívidas e as guerras são a origem dos escravos egípcios, mesopotâmicos e judeus. A Torá – o livro da lei dos judeus – tem regras muito precisas para evitar a escravidão de membros da comunidade e normatizar o tratamento dos que são escravizados. Na Grécia e em Roma os grandes conflitos sociais travados entre a aristocracia e os camponeses têm em sua origem as ameaças de escravidão. Os regimes tirânicos nas póleis gregas e as mobilizações da plebe e d os proletários romanos têm esta motivação de fundo. Não é esta escravidão que faz da Grécia e de Roma sociedades escravistas, nem mesmo a escravidão que os europeus impuseram nas colônias de exploração na América a partir do século 16. A escravi dão grega e romana se instalou quando o escravo se converteu economicamente em mercadoria e socialmente é transformado em coisa, em “res”, como diriam os romanos, ou como diria Aristóteles: “instrumentos dotados de uma alma”, ou ainda quando lhe é negada a condição humana e é despojado da condição cívica e política. Ele desaparece, por conseguinte, da condição humana, torna-se máquina viva e propriedade de seu s enhor ou do Estado. 91
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Em meados do século 2º a.C. a sociedade romana passa por uma crise aguda que só se resolve com o fim do regime re publicano e a instituição do regime i mperial. A crise é complexa e pode ser visualizada sob vários aspectos, entre os quai s acolho os que são apresentados por H umbert (1984, p. 302-305): – As guerras de conquista e a pacificação das províncias rebeldes requer um esforço militar contínuo e altamente desgastante, sobretudo para aquelas frações sociais que eram obrigadas a suportar os seus pesados custos, os camponeses, pequenos proprietários. – As conquistas de províncias ricas em cereais puseram em perigo a produção da península. A importação de trigo das províncias, vendido ao povo romano a baixo preç o e depois distribuído gratuitamente, arruinou a produção local e os camponeses. Endividados, se obrigaram a abandonar suas terras. – O censo realizado em meados do século 2º a.C. indica uma regressão demográfica, que se mantém a partir daí e mesmo se acelera depois de 136 a.C. – Na mesma medida em que decresce a população livre, aumenta a população escrava. Eles vêm em massa do nordeste da Europa e do Oriente. “Entre o início do segundo século e término do primeiro, o número de escravos aumentou em 50% para o conjunto da Itália, passando de um milhão e meio para três milhões, para uma população total da península da ordem de sete milhões e meio de habitantes na época de Augusto. No segundo século d.C., as cidades tinham em média um escravo para cada 2,5 cidadãos. A zona rural tinha em média um escravo para cada 1,5 cidadão. A brutalidade desta estrutura social é propícia para as rebeliões e as repressões em grande escala”, como veremos mais adiante. (Humbert, 1984, p. 303-305). – Consolida-se então o modo de produção escravista. O trabalho no Império é escravo ou marcado pela escravidão, o que acarreta o s urgimento dos grandes proprietários agrícolas, monocultores e dos grandes empresários das indústrias, que tocam seus empreendimentos com centenas e, às vezes, milhares de escravos. As conseqüências são muitas: concentração das fábricas, produção em série e a baixo preço, grande propriedade monocultora e ruína do artesão livre e independente e do camponês pequeno pro prietário. O clima de revolta e rebelião social estava dado. 92
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As revoltas e rebeliões tornaram-se muito freqüentes porque o número de escravos crescia continuamente e porque, desta maneira, podiam criar uma consciência coletiva de sua condição subhumana. Os hilotas de Esparta levantaram-se inúmeras vezes. Na Itália duas rebeliões tornaram-se conhecidas porque ameaçaram a in tegridade da sociedade romana: a primeira foi a re belião comandada pelos escravos Sálvio e Atenion. Amb os chegaram a reunir, em 103 a.C., um exército de mais de 20 mil homens. Os romanos só conseguiram derrotá-los depois de uma guerra que durou quatro anos. A segunda grande rebelião ocorreu de 73 a 70 a.C. e foi comandada por um escravo de origem macedônica, detentor de grande experiência militar, chamado Espártaco. Divergências internas, entretanto, dividiram os escravos. Os romanos enviaram contra eles um grande exército que os derrotou. Seis mil escravos prisioneiros foram conde nados à morte e crucificados. Os motins e revoltas seguiram acontecendo durante todo o Império, mas foram movimentos que não ameaçaram seriamente a sociedade escravista. Eram, no entanto, um signo permanente de uma luta de classes que acabaria por ser uma das causas da extinção da sociedade romana. Com o advento do Cristianismo e sua difusão pelo Império Romano, aconteceram importantes mudanças na condição dos escravos, embora as guerras continuassem a lançálos no merc ado: Vespasiano trouxe 92.000 escravos judeus; Adriano capturou muitas centenas de milhares deles; Crasso capturou 20.000 sarmatas. Sob Nero e Sétimo Severo, cogitou-se vesti-los com uma espécie de uniforme para que pudessem ser mais facilmente reconhecidos. A idéia foi abandonada pelo temor de que a visão de seu número pudesse despertar sua consciência de classe e, em conseqüência, a rebelião. No segundo século nota-se uma diminuição do afluxo de escravos adultos e prisioneiros de guerra, mas aumenta o comércio de crianças, de jovens e de mulheres. Os imperadores tentaram estabelecer regras destinadas a pôr ordem nos vários aspectos relacionados ao trato de escravos: preço por peça; critérios de avaliação de suas aptidões físicas e mentais; critérios para concessão da alforria; estatuto dos filhos nascidos de mãe escrava e pai livre, sem g rande sucesso. Os filósofos estóicos e o Cristianismo pregavam a igualdade dos homens, no entanto, ao mesmo tempo, São Paulo ensinava o conformi smo aos escravos, impondo-lhes a obediência e o respeito a seus s enhores. É verdade que os cristãos proclamavam a igualdade e a liberdade, não entre os homens, só em Deus ou perante Deus. Para Jean Cousin, mudanças significativas vinham se acumulando desde o reinado de Otavio Augusto: 93
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A diminuição do número de prisione iros de gue rra, o aumento das alf orrias, o acréscimo do trabalho livre utilizado por contrato, a conversão dos escravos dos templos pagãos em escravos de igrejas cristãs (sem que nada houvesse mudado em suas condições de vida), obscureceram os aspectos quantitativos e qualitativos do problema (Bloch; Cousin, 1964, p. 302).
E acrescenta Jean Cousin (1964, p. 302):
Não se levaram em conta dois fatos: por um lado a evolução gera l do estatuto econômico e social dos grupos humanos que apagou progressivamente os limites que separavam o homem livre do escravo; por outro lado, o intervencionismo estatal (na esfera dos negócios privados) e a burocracia ligada à economia dirigida aproximaram as condições numa submissão de todos ao Estado e ao imperador.
Finalmente, Cousin observa que, muito mais do que o discur so e a caridade cristãos, foi o retorno gradativo a uma economia agrária e à instituição de um sistema de colonato que de fato vai mudando a relação escravista e encaminhando-a para uma relação que evoluirá para a servidão da gleba. Ser livre ou escravo perante o grande senhor territorial não fazia grande diferença... “A sujeição física do escravo ao seu senhor no período republicano, que podia condená-lo aos grilhões, estendeu-se no fim do império ao homem livre, que é submetido com o mesmo rigor, na sua profissão ou função, à mesma vergonha” (Bloch; Cousin, 1964, p. 302). O Cristianismo não pôde op or-se à escravidão, ao contrário, aceitou-a e legi timou-a, como vimos, porque seus dirigentes, a maioria deles vindos da elite do Império, entenderam que sem os escravos o Império não poderia sobreviver, mesmo quando o Cristianismo se tornou religião lícita e oficial. O Cristianismo... “não se pôs o problema de modificar as estruturas sociais e políticas; limitou-se a pregar o desapego individual, a lealdade nas transações, a submissão à autoridade política e judiciária, se esta es tiver de acordo com a moral do senhor...” (Bloch; Cousin, 1964, p. 304). Para c oncluir:
[...] entre Aristóteles (e os gregos) que faz do escravo um instrumento dotado de alma, os estóicos, que consideravam o sofrimento como um acidente indiferente para a serenidade do espírito e os cristãos que querem nivelar na humildade as desigualdades sociais, há uma evolução sensível, mas os discípulos de Cristo orientam-se menos pela abolição total da escravidão do que para uma atenuação da miséria e uma maior maleabilidade das leis (Bloch; Cousin, 1964, p. 303). 94
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À decadência, lenta e gradual, do Império, corresponde também uma gradual diminuição da escravidão. Ela nunca será extinta de todo, sobreviverá na Idade Média e uropéia e terá grande ímpeto no mundo i slâmico, particularmente a partir do século 10º, quando os mercadores do norte da África, pelos caminhos do Saara, iniciarão um tráfico de povos negros que duraria mil anos. Os mercadores cristãos do início da Idade Moderna introduzirão a escravidão n a América, baseada principalmente na captura e tráfico de escravos africanos. No século 16, os cristãos não terão nenhum problema de consciência pela escravidão que imporão aos negros e índios. As denúncias e condenações da escravidão não foram capazes de mudar a realidade.
Seção 2.12 As Heranças que nos vêm dos Romanos Somos herdeiros da civilização romana. Ela no s legou a língua portuguesa – uma das línguas neolatinas – com uma multidão de palavras, conceitos indispensáveis à nominação da realidade; dela e da Grécia recebemos também o modo urbano de viver em sociedade, modos de participação política. Dela nos vem o modelo da arquitetura monumental cujo componente estrutural é o arco; nos vêm também as celebrações, os jogos públicos e te atros, para os quais construíram gigantescos edifícios. Finalmente, deles recebemos os fundamentos do Direito e das instituições públicas e privadas.
2.12.1 – HERANÇAS LINGÜÍSTICAS São, portanto, numerosas as heranças que recebemos dos romanos. Antes de mais nada, herdamos a língua portuguesa que, com o italiano, francês, espanhol, são chamadas línguas neolatinas, isto é, dialetos ou línguas crioulas que se desenvolveram nas regiões de maior influência, de mais prolongado domínio da cultura romana: França, Espanha, Portugal e Itália. Recebemos deles não só uma multidão de palavras, como também a estrutura da língua e o alfabeto em que es tá escrita. 95
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Vejamos um exemplo bastante simples: a palavra velho. Na cultura latina, que recolheu importante contribuição da cultura grega, a nomeação dos velhos exprime, e m substantivos e adjetivos, a diversidade de sua condição social: velhice, senectude, senilidade, decrepitude; velho, senil, decrépito, veterano, vetusto, idoso, veterato, veterado, (inveterado). Alguns adjetivos latinos, que não têm exata transpos ição para o português , são mu ito ricos semanticamente: veterosus: letárgico, adormecido, inativo, lânguido; veternus: velho, antigo, colhido pelo marasmo, entorpecido, inerte, apático; veteratorius: fino, finório, manhoso, matreiro, hábil (nas manhas); veterarium: adega onde se envelhece o vinho ou onde se guarda o vinho envelhecido. A palavra aetas que significa i dade, período de vida, tempo que a vida dura ou, s implesmente, vida, dá origem ao adjetivo/substantivo idoso, com sentido de velho que, por sua vez, pode ter valor positivo ou ne gativo. Talvez o grupo de palavras de maior carga positiva derive do substantivo senecta (senectae), que significa velhice e da qual se originam: senator (senador); senatorius (relativo ao senador, senatorial); senatus (assembléia dos velhos, senado, conselho deliberativo); senectus (velho, envelhecido, velhice e , figuradamente, severidade, gravidade, seriedade, maturidade); senere e senescere (ser velho, envelhecer, encanecer); sênior (mais velh o, oposto de junior – mais novo). A raiz “sene”, entretanto, contém, também, um oposto negativo muito forte. Senilis, por exemplo, significa exatamente “senil”, signo de incapacitação do velho, ou “ senium” que significa velhice, peso da idade, declinação, enfraquecimento, pesar, mágoa, dor, enfado, decrepitude, morosidade. Há também no dicionário da cultura latina um c onjunto de significações ligadas à cor branca dos cabelos dos velhos, são as célebres “cãs”. Cani (canorum) significa cãs, cabelos brancos e velhice, com forte sentido de respeitabilidade, de experiênc ia vivida, de valor moral, exemplo a ser seguido. A cultura romana nos deixou de herança boa parte das múlti plas e contraditórias significações da velhice. De um lado, a respeitabilidade individual e coletiva dos velhos: 96
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– senex, senator , que exprime o poder político individual e cole tivo dos velhos; – vetus, veteranus, que indica o pretérito pertencimento de alguém a uma atividade ou função: veterano (do exército, do esporte ou de qualquer outra atividade profissional) e guarda um sentido de identidade e de respeitabilidade. – a cor branca dos cabelos e barba (as cãs) mistura respeito, cuidado, carinho pelo que alguém fez, foi ou sofreu em sua vida. É também signo de altivez e dignidade. E há os sentidos pesadamente negativos, seja de desprezo, seja “de fim da vida”, de inutilidade, de demência: senilidade e decrepitude. Na língua portuguesa os adjetivos podem guardar as duas concepções antitéticas, em particular, velho e velhice, de respeitabilidade, apreço, carinho ou desprezo. Já as palavras senil, senilidade, decrépito, decrepitude, exprimem a forma mais desprezível e excludente da velhice. Não há aí nada de positividade. Decrepitude, por exemplo, deriva do verbo crepare: estalar ruidosamente, crepitar, fazer ruído. O prefixo “de” é uma partícula de negação. Daí: não c repitar, não estalar como a lenha ao fogo, e star apagado, fogo morto. Velho, tout court (Belato, 2006). Outro exemplo interessante por sua significação política e para o complexo conceito moderno de cidadania é a palavra emancipação (emancipar, emancipado), da qual derivam expressões, hoje de uso corrente, como educação emancipatória, práticas emancipatórias, sociedade emancipatória. O Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa ainda não registra o adjetivo “emancipatório”. As palavras, tal como as pess oas, precisam de uma maioridade para serem admitidas em certos ambientes, no caso das palavras, ao dicionário, mas este registra o sentido do verbo emancipar: “...eximir do pátrio poder; tornar independente, dar liberdade...”. Conjuga-se também na forma reflexiva: “emancipar-se, libertar-se...”. Emancipar, conforme o Dicionário Escolar Latino-Português, editado pelo MEC em 1956 e coordenado pelo professor Ernesto Faria, vem do verbo latino emancipare e significa: emancipar, excluir da tutela, libertar. 97
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Tutela, por sua vez, significa, também segundo o mesmo dicionário, guarda, patrono, protetor. O sentido é claro: emancipar indica a nova condição de uma pessoa que deixa de estar sob o poder de alguém, seja pai, tribo, c lã, igreja, partido ou chefe. Etimologicamente emancipar compõe-se da partícula negativa “e” = “não” e do substantivo mancipium, que significa: ação de tomar na mão a coisa de que a pessoa se torna proprietária; significa, também, coisa adquirida como propriedade..., direito de propriedade. Mancipare e tutelare são, nesta acepção, sinônimos. E emancipare, então, significa tirar da mão ou, drasticamente, cortar a mão, cortar vículos, amarras, o que prende. As línguas neolatinas e mesmo anglo-saxônic as guardaram esta significação orinal e a ampliaram nos debates modernos e nas lutas pela cidadania e emancipação política. O Dicionário Le Robert, Dictionnaire D’Aujourd’Hui, diz que “’emancipar’ significa isentar ou libertar um menor do poder paterno ou da tutela, libertar alguém da tutela de uma autoridade superior, liberar, libertar-se de uma tutela, de uma sujeição, de servidões ou de prejulgados, libertação; tomar liberdades; romper constrangimentos morais ou sociais”. A língua italiana guarda as seguintes significações: “tornar-se livre, independente; emancipar-se da dependência econômica e de outras dependências (Vocabolario della Língua Italiana. Da Nicola Zangarelli). Em inglês, emacipate significa: “libertar-se da escravidão ou de outro regido e i njusto controle” ( English Dictionary for Speakers of Portuguese). O espanhol nos diz que emancipar-se significa: “tornar-se uma pessoa livre do domínio de outra; independizar uma pessoa” (Gran Diccionario Usual de la Lengua E spañola).
2.12.2 – ARQUITETURA E URBANISMO Dos romanos herdamos o modelo das cidades, seus serviços e, sobretudo, a cidade como o centro da vida política, s ocial e econômica. Para os romanos e g regos, só são verdadeiramente cidadãos (ou políticos) os que vivem na cidade e tomam parte de sua vida. 98
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Roma nos legou um modo de viver na cidade que hoje se reproduz em todo o mundo: o lazer urbano com seus locais especialmente construídos para tal fim: teatros, anfiteatros, circos. Era aí que se comemoravam os grandes eventos culturais, como as encenações teatrais, os jogos olímpicos, as comemorações religiosas e a vitórias contra os inimigos. Deles aprendemos a realização de eventos, jogos e comemorações de massa. O circo Maximo era um gigantesco centro de jogos, comemorações de vitórias contra os inimigos, celebrações re ligiosas, tinha 600 metros de comprimento por 200 de largura e podia acolher até 300.000 espectadores (Vision, 1996, p. 52). O Coliseu , desde a Antiguidade o monumento ícone de Roma de todos os tempos, é uma ousada obra de engenharia: 50 metros de altura do anel externo, com capacidade para 70.000 espectadores ( Vision, 1996, p. 10). Sua construção foi iniciada no ano 70 d.C. pelo imperador Vespasiano e concluído pelo imperador Tito. Este construiu ao lado do Coliseu, para celebrar su as vitórias, um gigantesco “arco do Triunfo” (Valigi, 1996, p. 46). Além dess es locais destinados aos espetáculos públicos, havia vári os teatros e anfiteatros, banhos públicos e termas, ginásios e ac ademias para exercícios físicos e desenvolvimento corporal, de luta corporal e d e aptidões físicas em geral. Roma foi copiada por todas as cidades capitais de província do Império. De Roma herdamos a arquitetura monumental dos edifícios públicos destinados ao culto, como templos e panteões, e os prédios públicos, como o foro de Augusto, a praça do foro, o mausoléu do imperador Adriano (cf. Vision, 1996). Diferentemente das arquiteturas egípcia e grega, que se caracterizavam pelo uso maciço de colunas para a sustentação dos prédios, os ro manos puderam não só dar-lhes amplitude, como criar extensos e spaços internos, graças à combinação da coluna, do arco e das cúpulas. Os monumentos sobreviveram aos sé culos: o Coliseu, o Panteão, os arcos de Triunfo, os teatros, o aqueduto e as pontes. Só o cimento e o aço for am capazes de substituir, no século 20, a técnica romana da construção de grandes prédios. 99
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2.12.3 – DIREITO ROMANO Foram os imperadores que, ao centralizar os poderes da sociedade, se convert eram em “fontes da lei” e impuseram a uniformização dos p rincípios, normas e procedimentos jurídicos. As constituições imperiais, c ujo último esforço de compilação e sistematização foi empreendido pelo imperador Justiniano, recebem o nome de leges (leis).
Todas as demais formas anteriores de criação do direito, leis votadas, senatus-consultus (autoridade suprema em termos jurídicos e legais durante o período republicano), éditos do pretor, e os “responsa” (respostas) de pessoas de notório saber (prudentes) desapareceram em proveito da vontade única do imperador. O imperador se auto-proclama lei viva: deus entregou ao imperador o poder das leis, por ele enviado aos homens como lei viva (Humbert, 1984, p. 426).
O imperador Justiniano (527-565), o último grande governante do império romano (do Oriente), procedeu à codificação do Direito Romano que chegou até nós. É a materialização da nossa herança jurídica de procedência romana. Justiniano, em seu esforço de sistematização e c ompilação da legislação imperial foi movido por duas razões básicas: a primeira, de natureza operacional ou técnica, pois as codificações anteriores (a do imperador Adriano – 117-138 – e a do imperador Teodósio – 379-394) já não correspondiam às necessidades de regulação da sociedade; a segunda é de natureza política e consiste na afirmação da autoridade imperial. A tarefa foi en tre gue ao jurista Triboniano, professor da Escola de Direi to de Constantinopla que, juntamente com um numeroso grupo de juristas, elaborou quatro documentos: o Código, o Digesto, os Institutos e as Novelas. O conjunto forma o que os juristas da Idade Média denominarão Corpus Júris Civilis (Corpo do Direito Civil) para distinguilo do Corpus Júris Canonici (Corpo do Direito Canônico) (cf. Humbert, 1984, p. 431). O Código foi promulgado pelo imperador Justiniano no ano de 534 d.C. O Código e os esforços de Justiniano para reerguer o Império Romano, atacado por ondas sucessivas de povos que o invadiam, o transformavam criando novas culturas, novos poderes e novas sociedades, foram inúteis. O Império do Ocidente fora partilhado em “ reinos bárbaros”, o Império do Oriente, sob pressão da expansão muç ulmana a partir do século 8º, e do Império Persa, encolherá política e territorialmente até s ucumbir em meados do século 15, quando Constantinopla foi tomada pelos turcos i slamizados. 10 0
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Foi, porém, pelo Código de Justiniano que a civilização ocidental pôde ter acesso ao acervo jurídico e institucional criado pelos romanos durante um milênio. O movimento renascentista europeu dos séculos 15 e 16 d.C. tem c omo um de seus centros irradiadores a recuperação e a releitura do Código de Justiniano. O Di reito Romano fornecerá as premissas jurídicas e políticas do combate ao Direito medieval e de a firmação da legitimidade do poder monárquico que, rapidamente se pretenderá, como na Roma imperial, de direito divino e absoluto. Não foi, porém, só o Renascimento que releu e se apropriou, via Código de Justiniano, do Direito Romano. O mundo contemporâneo foi buscar nele a grande matriz jurídica. Algumas passagens parecem sair de textos cons titucionais hoje em vigor:
Justiça é a cons tante vont ade que dá a cada um o seu d ireito ; jurisprudência é o conhecimento das coisas divinas e humanas; a ciência do justo e do injusto. Os preceitos do Direito são os seguintes: viver honestamente, não causar dano a outro e dar a cada um o que é seu. Dois são os aspectos deste estudo, o público e o privado. Direito público é o que diz respeito ao estado da coisa romana; privado, o que pertence à utilidade de cada um. Dever-se-á tratar, assim, do Direito privado, que consta de três partes; pois se formou dos preceitos naturais, dos preceitos das gentes ou dos preceitos dos civis (Bueno; Constanze, 2008).
E como afirmam Bueno e Constanze:
A herança princi pal, no entanto, é que se trata de uma razão jurídica escrit a, impossíve l d e ser ignorada ou alterada, e que já continha as regras fundamentais de que não há crime nem pena sem lei anterior que defina o crime e a pena, de que ninguém é obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa a não ser em virtude de lei e de que, em caso de dúvida na apl icação da lei, se deve favorecer o réu.
O Império Romano sucumbiu, não, porém, sua cultura, que é a herança que a té nós chegou.
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AS CIVILIZAÇÕES AMERICANAS OBJETIVOS DESTA UNIDADE • Aprofundar nossos conhecimentos da história dos povos americanos e das civilizações por eles criadas. • Demonstrar que a trajetória da construção das civilizações americanas é absolutamente idêntica à das civilizações da Ásia (Oriente Médio e Extremo Oriente) e do Mediterrâneo (Grécia e Roma). E também que esta trajetória foi bruscamen te interrompida quando os europeus “descobriram” a América. • Estudar a expressiva contribuição civilizatória dos povos americanos para o mundo.
AS SEÇÕES DESTA UNIDADE Seção 3.1 – Introdução Seção 3.2 – As dimensões c ivilizatórias da América
Seção 3.1 Introdução Quando Cristóvão Colombo, no comando de uma expedição exploratória em busca de um caminho que o levasse à Índia, navegando para o oeste – o caminho para o lest e estava reservado aos portugueses por força do Tratado de Tordesilhas – chegou, em 1492, a Santo Domingo (Dominica), pensando ter chegado ao Japão (Cipango), o fato ficou conhecido como o descobrimento da América. 103
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Na América, porém, existiam inúmeros povos, aqui chegados, segundo a hipótese mais aceita, durante a última glaciação pelo estreito de Behring, que separa a América da Ásia Oriental. Esses grupos de povos asiáticos teriam se desloc ado pelo Ártico atrás dos rebanhos de renas. Eram caçadores. Não sabemos exatament e quando chegaram os primeiros. Provavelmente, por volta de 35.000 a.C. e depois deles outros grupos os seguiram ao longo de muitos milênios. É muito provável que, mais tarde, grupos migratórios também tenha m chegado à América pelo Pacífico, como o último estágio de sucessi vas migrações e ocupações das ilhas do Pacífico Sul.
Migrações dos Povos Neolíticos e Pré-neolíticos Fonte: Disponível em: . Acesso em: 28 jan. 2009.
Esses grupos iniciais foram lentamente ocupando novos sítios até cobrir praticamente todo o território do continente. E tiveram trajetórias civilizatórias bastante diferenciadas. Os índios do México e Guatemala e os da Colômbia, Peru e Bolívia, evoluíram para sociedades internamente diferenciadas em classes sociais, com intensa divisão do trabalho, criaram Estados que, a partir de um centro, e xpandiram seu poder sobre extensos territórios. Embora de forma imprópria, essas estruturas de Estados receberam o nome de i mpérios: Asteca, Maia, Inca. 10 4
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Os demais povos da América do Norte, Caribe, América Central e do Sul, atingiram o estágio civilizatório que os arqueólogos e historiadores chamam de neolítico, isto é, povos que além de praticarem a coleta, a caça e a pesca, vivendo em comunidades quase sempre pequenas, haviam iniciado a domesticação de plantas e animais, começando, deste modo, o longo processo de sedentarização ou, pelo menos, de ocupação dos mesmos sítios por tempos cada vez mais longos. De qualquer forma, esses povos já não dependiam mai s exclusivamente da coleta, da caça e da pesca, atividades que lhes propiciaram sofisticado conhecimento, tanto em relação à sua qualidade, disponibilidade, acessibilidade ao ecossistema, como da criação de meios e instrumentos para manejá-los (Ribeiro, 1986a, v. 1, 2). Esses povos neolíticos, como os demais povos da Ásia, da Europa e África, intensificaram e complexificaram sua c ultura, sua linguagem, bem como a regulação de se us modos de vida, dando origem a sociedades altamente complexas (Ribeiro, 1986b, v. 3; Villas Boas; Villas Boas, 1976). Em 1500, há milênios encontrava-se em marcha, na A mérica, a formação de culturas e civilizações, em estágios de evolução diferenciados, em nada distintos dos mesmos processos e ocorridas ou em curso nos demais continentes. A chegada da civilização européia, militarmente mais poderosa e ideologicamente conquistadora, interrrompeu este curso civilizatório e impôs aos povos da América, àqueles que não f oram exterminados, sua civilização (Las Casas, 2000; Ayala, 1987). As conquistas das civilizações americanas são múltiplas e mudaram, com suas contribuições, as demais culturas do mundo. Algumas delas só agora se tornaram conhecidas por força de poderosos interesses econômicos dos grupos farmacêuticos transnacionais, que buscam saber dos índios as extensas propriedades fitoterápicas das plantas sul-americanas, que eles há séculos descobriram. O desenvolvimento das civilizações americanas, em virtude de seu completo isolamento das civilizações africana, asiática e européia, teve de contar apenas com suas próprias forças e não recebeu daquelas civilizações, a não se r depois de 1492 d.C., seus aportes, bem 105
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como a elas emprestou os seus. Sofreu por isso, limitações muito importantes, tais como: completa ausência de animais de carga, tiro e alimento, como cavalos, asnos, burros, bois, búfalos, elefantes, ou animais de médio porte, importantíssimos para o aporte de proteínas, fibras e couro, tais como: cabras, ovelhas e suínos. O desenvolvimento das tecnologias da roda foi por isso afetado, não apenas no transporte, que era feito apenas com força humana, como também na cerâmica. Os historiadores acreditam que esta ausência de animais de trabalho possa ter afetado o desenvolvimento da metalurgia que, na América, era incipiente mesmo entre astecas, maias e incas (Portilla, apud Bethell, 1998, p. 29). Essa diferença de ritmo de desenvolvimento civilizatório da América em relação às civilizações dos demais continentes, contudo, não parece ter afetado tanto a ocupação do espaço do continente quanto as condições de crescimento das populações, embora nunca saibamos, com certeza, quantos habitantes havia na América qua ndo da chegada dos europeus. Não havia então nada parecido com as modernas contagens e censos aos quais estamos habituados hoje. O que existe atualmente são hipóteses e proje ções oriundas das informações deixadas pelas populações indígenas e pelos invasores europeus. As dúvidas, as pesquisas e os debates continuam. Bethell (1998, p. 129) elaborou uma boa síntese das pesquisas e estudos de história demográfica. Vejamos, conforme a autora, o que nos dizem os estudos, por re gião. A região do México Central, núcleo da sociedade asteca, teria, segundo Cook, Borah e Sherburne, da Berkeley School, 25 milhões de habitantes. Este número foi aceito também por Soares (1976) e Chaunu (1969). Em contraste, p ara a mesma região, Angel Rosemblat propõe um número que gira em torno de 4,5 milhões. Já William Sanders propõe um número de 11 a 12 milhões de habitantes. He nry F. Doibyns pensa que a população mexicana seria de 50 milhões. Creio que não se trata de optar por uma ou outra cifra. A i ncerteza é grande, mas, conforme Leslie Bethell, “... pesquisa mais re cente produziu estimativas... que vão de 8-10 até 13-14 milhões” (1998, p. 129). Para a América Central os números também são incertos: Rosemblat calcula uma população de aproximadamente 1 mi lhão de habitantes. Pesquisas realizadas na década de 80 indicariam uma população entre 5-6 milhões (Bethell, 1998, p. 129). 10 6
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É muito incerto também o núme ro de habitantes das Antilhas e d o mar das Caraíbas. Aceita-se, hoje, como razoável e bem fundado, um núme ro de habitantes assim distribuídos: 1 milhão para Hispaniola (República Dominicana e Haiti) e 2 milhões para as demais ilhas, inclusive Cuba e, 1 milhão para a Venezuela. As populações indígenas da América do Sul em fins do século 15 apresentam os seguintes números aproximados: Para a Colômbia, 3 milhões. Já para o Peru os números oscilam de 2 a 3 até 12 a 15 milhões. Doibyns defende, para o Peru, uma população de mais de 30 milhões. Hoje, no entanto, parece haver algum consenso para os seguintes números: 9 milhões para o Peru e uma população total entre 12 a 13 milhões pa ra o conjunto dos Andes Centrais (território do Império Inca). Os povos da Araucânia (sul da Cordilheira dos Andes) são est imados em aproximadamente 1 milhão. Nas demais regiões do sul da América do Sul as populações eram seguramente mais rarefeitas e dificilmente chegariam a 1 milhão de habitantes. As estimati vas das popula ções indígenas que vivia m no atual território do Brasil em 1500 são também de muito difícil avaliação. Segundo John Hemming, a população seria de aproximadamente 2 milhões e meio de habitantes. Já Denevan estima um número em torno de 9 milhões, dos quais 5 milhões para a bacia amazônica (Bethell, 1998, p. 130-131). Por toda a parte os primeiros contatos com os europeus foram fatais às populações da América. As doenças trazidas por eles – gripe, varíola, sarampo, lepra, tifo – dizimaram as populações que não tinham qualquer tipo de anticorpos contra elas. Às doenças seguiram-se as guerras de conquista que, além de matarem contingentes significativos da população masculina adulta, desorganizar am a estrutura social e econômica existent e, acarretando a morte por fome e inanição de crianças e mulheres. À população sobrevivente à conquista foram impostos regimes de trabalho e privações que dificultavam sua reprodução. É por isso que para a maioria das regiões conquistadas e que foram depois integradas à economia mercantilista mundial, foi preciso importar índios de outras regiões ou populações negras da África. O padre Bartolomeu descreveu com espanto e indignação as matanças, expropriações e violências de toda a ordem perpetradas pelos espanhóis contra os índios (Las Casas, 2000). 107
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Ayala (1987) também nos conta o que aconteceu com os povos do Peru imediatamente após a conquista, escrevendo ao Rei Felipe III uma gigantesca carta de 1.200 páginas de denúncias contra padres, bispos, juízes, oficiais militares, soldados e colonos. Ele defende que nada pior poderia ter acontecido aos índios do que a chegada dos espanhóis, suas doutrinas, ganância, violência e e xploração. Nas 1.200 páginas, encontramos denúncias como esta: “... escribir es nunca acauar...”, literalmente, “escrever é nunca acabar, isto é, são incontáveis e é impossível descrever todos os males que a dominação espanhola acarretou para os índios”. Assim descreve ele a “bondade” dos padres Agostinianos:
[...] os ditos reverendos são tão bravos e coléricos, tão enfurecidos, irados contra os índios e mesmo contra as autoridades indígenas (caciques e prefeitos) que o s enchem de pauladas. E não temem nem a Deus, nem à justiça e não tem nenhuma caridade nem qualquer amor aos índios... (Ayala, p. 690, vol. B).
De um outro frade, da ordem dos Mercedários, dizia: “E este dito frade era juiz substituto do corregedor. Ele roubava as mulheres casadas e as filhas e irmãs dos índios...” (idem, p. 694) A denúncia da exploração sexual das mulheres í ndias pelo clero e pelos espanhóis, assim como a exploração de seu trabalho, em particular o da tecelagem, é u ma constante. Os índios viam nos espanhóis uma matilha de animais selvagens que os atacavam por todos os lados:
Pobres índios tem seis animais que os índios mais temem e que devoram os índios deste reino: – o corregedor, que é a serpente; – o tigre, são os espanhóis viajantes, hóspedes das pousadas; – o leão: o encomendero, grande proprietário, para quem os índios eram obrigados a trabalhar; – a raposa, o padre; o gato, o escrivão; o rato, o cacique principal (Ayala, v. 3, p.749).
Ayala, depois de nomear as seis pragas que assolam os índios, acrescenta: “Estes ditos animais que não temem a Deus, assolam os índios deste reino e não há remédio. Pobre Jesus Cristo...” (p. 748). E os descreve do seguint e modo:
– Que os ditos índios temem os corregedores porque são piores que as serpentes. Comem gente porque lhes comem a vida e as entranhas e lhes roubam os bens como um animal bravo. É o mais poderoso de todos e a todos vence e rouba e não há remédio. 10 8
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– O encomendero é temido porque é leão. Quanto a taca com aquelas unhas, não pe rdoa. É o mais bravo de todos os animais. Não perdoa o pobre e não agradece e age(m) como ferozes animais neste reino e não há remédio. – Dos padres missionários os índios lhes têm u m grande temor porque são manhosos e raposas e são estudados e sabem mais ardis do que a raposa e lhes roubam os seus bens, as mulheres, as filhas, usando seus saberes de manhosos, letrados, bacharéis. E d esta forma, destroem os pobres índios deste reino e não há remédio. – Os índios temem o escrivão porque é gato caçador, que v ive assediando e perseguindo e agar ra o pobre rato. Ronda os bens dos p obres índios até roubá-los e mesmo roubando-o uma vez, não deixa de rondá-lo até a garrá-lo de novo e roubá-lo e não há remédio para os pobres índios. – Dos espanhóis viajantes que se hospedam nas pousadas e que não temem nem a Deus nem a justiça, deles os índios têm medo porque são tigres, bravio animal. Ao cheg aram à pousada roubam o mitaio e a mitaia (índio obrigado a pagar tributo em trabalho), não pagam a hospedagem nem o que gastam e não interessa quem seja, prefeito, cacique principal ou pobre índio. A este s t odos enche de basto nadas e lhes rou bam q uanto te nham e levam e mbora. Assim nas hospedarias dos povoados e nas estâncias e são piores que os demais animais e não há remédio para os pobres índios. – Os índios temem também os índios que os espanhóis botaram para governá-los, sejam caciques, curacas ou mandõezinhos. A estes, os índios temem porque são ratos. Roubam os bens dos índios de dia e de noite e roubam tão furtivamente que ninguém percebe que é roubado e furtado. Além disso, vivem extorquindo os índios nas taxas, frutas, dinheiro e outras comidas e se apropriam das comidas da comunidade e das que se d estinam aos velhos, doentes e v iúva, órfãos. Ele é pequeno, o rato, mas na realidade ele é maior que todos os animais porque de dia e de noite nunca pára e não há remédio para os pobres índios deste reino (Ayala, 1987, p. 7 48750. Tradução livre – Dinarte Belato).
Não faltam relatos, crus e diretos, como os de Felipe Guaman Poma de Ayala, ou indignados como os do padre Bartolomeu de Las Casas, dos cronistas do rei, das cartas ou dos relatos de expedições punitivas que assolavam de todos os lados os índios. Nathan Wachtell (1976), em seu livro Los Vencidos; los Índios del Peru frente a la Conquista Española (1530-1570), afirma que o impacto da conquista teria produzido uma mortandade na ordem de 70% da população. O mes mo autor assegura que, a partir d e 1570, a população teria voltado a crescer. Os relatos de Guaman Poma de Ayala em sua c arta, escrita provavelmente a partir de 1600, e certamente c oncluída em 1615, revelam a existência de uma população indígena perfeitamente recuperada do impacto da conquista, mas submetida à brutalidade da exploração colonial. 109
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No Brasil, as populações indígenas submetidas ao sistema de exploração colonial rapidamente decresceram e, em mui tas regiões, foram extintas. As populações situadas distante da civilização branca mantiveram-se intactas até praticamente o século 20, quando suas terras começaram a ser apropriadas pelo latifúndio e, a p artir daí, também declinaram. O recente episódio da demarcação das terras da reserva Raposa Serra do Sol mo stra o quanto ainda hoje a pressão sobre as terras indígenas é forte e violenta, com e os índios correndo o risco de perdê-las.
Seção 3.2 As Dimensões Civilizatórias da América Os povos da América, em seus di ferentes estágios de desenvolvimento, ofereceram à humanidade contribuições civilizatórias fundamentais. Por força do isolamento da América, as culturas que aqui se desenvolveram só c ontaram, como vimos, com suas próprias forças, diferentemente das que se desenvolveram na Eurásia e África, que sempre ma ntiveram intensas trocas e mútuas influências. Embora a chegada dos europeus tenha signific ado o aporte da cultura até então acumulada na Eurásia e África, o impacto da conq uista, a dominação e exploração colonial interrompem bruscamente a trajetória das culturas indígenas, muito e mbora muitas delas se tenham mantido, transformadas pela cultura dos colonizadores, outras seguiram sua evolução pela continuidade de seu isolamento, como ocorreu com populações indígenas da América do Norte até fins do século 19 e, na América do Sul, nas vastas florestas amazônicas, até o século 20. Para dar início ao estudo das civilizações americanas, seleciono apenas alguns aspectos de seus aportes civilizatórios. Indicarei, no texto, outras fontes de estudo e pesquisa para aprofundamento das temáticas que não serão tratadas aqui, especialmente as sociedades americanas mais desenvolvidas – astecas e maias –, a respeito dos quais são abundantes os estudos em livros e em sites da Internet. Dedicarei à civilização inca a Unidade 4. 11 0
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3.2.1 – OS SISTEMAS ALIMENTARES DA AMÉRICA Tomemos nosso cardápio cotidiano. Tentemos observar que alimentos e bebidas consumimos. Identifiquemo-los e tentemos des cobrir de que região e que povos ao longo dos séculos os domesticaram. Descobriremos que nosso cardápio cotidiano é verdadeiramente mundial. Os alimentos que consumimos no dia a dia foram domesticados por povos da Ásia do Leste e do Oeste, da Europa, da África e da América. Que significa domesticar alimentos, plantas e animais? Domesticar significa tornar doméstico. Domus, em latim, significa casa. É daí que vem, por derivação, domínio, dominus (senhor). Domesticar significa estar sob o poder de alguém. Deixar de ser, de agir segundo sua vontade, para agir ou ser sob o poder de outrem. Então, domesticar plantas e animais significa obrigá-los a agir, a se comportar conforme a vontade ou a determinação da espécie humana e não de a cordo com a espécie animal ou vegetal a que pertencem. A domesticação é, em última instância, um processo secular, às vezes milenar, de seleção de determinadas espécies animais e vegetais de acordo com as necessidades humanas e não de acordo com as necessidades das espécies que, por oposição às domesticadas, nós passamos a c hamar de “selvagens”. A domes ticação de plantas e animais é, como vimos, um longo processo secular ou milenar e modifica a vida dos grupos humanos primitivos sob muitos a spectos: – abandonam suas antigas formas de busca de alimentos por meio exclusivamente da caça, da coleta e da pesca, substituindo -as pelo cultivo de plantas e pela criação de animais; – abandonam também o nomadismo, isto é, o deslocamento contínuo dos locais de moradia e refúgio para seguir os deslocamentos das manadas de animais ou ir em busca de ecossistemas ricos de frutas e grãos alimentícios. Os seres humanos “sedentarizaram-se”, isto é, passaram a morar em aldeias mais ou menos permanentes, das quais, não raro, originaram-se cidades, que são as formas mais aperfeiçoadas e permanentes de moradia humana; – criam normas, regras e formas de organização social e convivência novas e mais complexas, bem como regras de c onsumo e abstinência: não se pode comer tudo, imediatamente. É preciso distribuir o consumo ao longo do ano até a próxima colheita, nem se pode 111
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consumir as sementes e os animais destinados à reprodução. Impõe-se a organização do trabalho segundo as estações defini das pela posição da Terra em relação ao Sol, o que inicia a longa trajetória da descoberta dos calendários e dos métodos eficazes de marcação do tempo. E surgem os deuses e as deusas, não só como garantidores e justificadores da ordem e da disciplina so cial, como também da marcação dos passos civilizatórios: os deuses representam tanto os avanços da humanização quanto as realizações que propiciaram tais avanços. Os deuses são, sob este aspecto, sofisticadas simbolizações do trabalho humano de criação da sociedade e dos meios necessários à sua reprodução contínua no espaço e no tempo e são guardados na memória coletiva como narrativas míticas. Algumas de ssas narrativas são cosmogonias, isto é, mitos que c ontam a origem do mundo e dos homens. Os mitos judaicos, egípcios, babilônicos e a genealogia dos deuses gregos são exemplos de tais mitos. Outros são mitos que narram aventuras, criações, benefícios ou desgraças singulares, como o mito de Prometeu, que t eria roubado o fogo dos deuses para dá-lo à humanidade, compadecido dela porque vivia na escuridão e no frio, ou o mito de Noé, personagem que está sempre presente nas civilizações das águas, lá onde a irrigação é uma bênção, uma dádiva, mas que pode se c onverter em desgraça quando as águas, pelas cheias, fogem ao controle das represas e canais. Os mitos, invariavelmente, têm como fundo a imprescindível condição humana de trabalhar. Não há mundo, não há humanidade, não há nada sem trabalho. É o trabalho que cria o mundo. O mito da criação do mundo e do homem tal como narrado na bíblia nos conta que Javé criou o mundo trabalhando seis dias e, cansado, repousou no s étimo. Adão e Eva, por comerem o fruto proibido, receberam a incumbê ncia de trabalhar segundo uma divisão sexual do trabalho, isto é, segund o as tarefas que são próprias do homem e da mulher. Caim e Abel, filhos de Adão e Eva, trabalham: um cria gado, o outro cultiva o trigo. Eis a divisão social e técnica do trabalho, que exprime as duas formas básicas das so ciedades agrárias antigas: as sociedades agrícolas e as sociedades pastoris. Da criação do mundo a partir do nada à divisão técnica do trabalho temos duas gerações. Sabemos hoje q ue do Big Bang à divisão técnica do trabalho são 14 bilhões de anos. Há evidente contradição entre as duas versões, no entanto o que o mito nos passa é que, simplesmente, o mundo humano nasce do trabalho. E assim são todos os demais mitos, dos demais povos. 11 2
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a) O pão nosso de cada dia Voltemos ao nosso cardápio cotidiano. Observe os dois mapas a seguir: o primeiro indica os centros e subcentros de domesticação de animais e plantas e o segundo nos mostra de que forma plantas e animais domesticados se expandiram pelos contine ntes e foram sendo adaptadas cuidadosamente em cada novo ecossistema em que eram in troduzidos. A domesticação não é, portanto, um processo fechado, ele requer sucessivas domesticações e adaptações, do que resulta, de um lado, a repetição em cada sociedade dos efeitos sociais produzidos pela domesticação original e, de outro, a ampliação das espécies e variedades domesticadas.
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O deslocamento das espécies domesticadas pelos continent es é um indicativo de como os seres humanos se deslocavam e entre si trocavam animais, plantas e sementes e enriqueciam, deste modo, seus sistemas alimentares cotidianos, embora ainda hoje seja possível identificar nos sistemas alimentares aqueles que são os originais antiqüíssimos: no Oriente Médio e Europa o trigo é o alimento básico, é o “pão nosso de c ada dia”, no Sul, Sudeste e Leste da Ásia, o arroz é o alimento básico; na África, o inhame, o arroz africano, o sorgo, e na América, o milho, a batata, a batata-doce e a mandioca. 11 4
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A partir do século 16, as viagens, as descobertas, a colonização européia na América, na África e na Ásia dão início a uma fase acelerada de deslocamentos e trocas de plantas e animais em escala mundial e sua adaptação aos mais variados ecossistemas. Processo que segue ocorrendo ainda hoje de forma cada vez mais acelerada. E nosso cardápio cotidiano é verdadeiramente global: – Nosso desjejum tem: café (da Arábia e Etiópia), manteiga, queijo, leite (do Oriente Médio), presunto, salame (da Europa), banana (da Indonésia), pão (Oriente Médio), banana e açúcar (da Nova Guiné). – Nosso almoço tem: arroz e óleo de soja (da China), carne de gado, de ovelha, de cabra (do Oriente Médio), carne de porco (da Europa), feijão (da América Central), alho e cebola (do Egito), batatinha, batata-doce, abóbora, mandioca, óleo de girassol, abacaxi e pimenta, tomate e carne de peru e uma boa sobremesa de chocolate (da América). – Nossa janta, em geral uma refeição mais leve, pode ter uma pizza com cobertura de cebola, azeitonas, queijo, tomate, presunto de porco e de peru. A pizza pode ter cobertura de chocolate com uma boa pitada de coco (que vem da Indonésia) ou banana flambada. Se, porém, desejamos uma refeição à base de frutas, o cardápio pode ter melancias, melões, laranjas, limões, peras da Ásia Central, bem como maçãs, figos, damascos, uvas, abacates, abacaxi. Como se pode ver, é possível reunir o trabalho de bilhões de pessoas, ao longo de milênios, num simples prato de comida que te mos a nossa frente em cada refeição diária. Assim visto, o prato já não é mais um simples prato de comi da. Ele resume milênios de história humana, da sobrevivência humana ori unda do trabalho multiplicado, acumulado e sintetizado num prato de comida. Parto do pressuposto de que o trabalho humano e a produção de alimentos necessários à vida estão na origem e fundamentam as civilizações. Não poucos historiadores identificam as civilizações por seu alimento básico: a civilização do arroz, a civilização do pão (e do vinho), a civilização do milho, d a batata ou da mandioca. Vejamos a contribuição dos povos da América para o sistema alimentar da humanidade. Há, em primeiro lugar, os grandes alimentos, aqueles que estão na base de ali mentação diária de bilhões, como o milho, originário e domesticado no México, a batata – conhecida 115
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como batata inglesa, mas que é originária de variados ecossistemas do Peru, da Bolívia e Colômbia –; a mandioca, da América Central. O milho e a mandioca ganharam importância suplementar porque são também componentes fundamentais na c omposição das rações dos animais. Sem milho, mandioca e farelo de soja (esta da Ásia), seria inimaginável e inviável o atual sistema de produção em escala de s uínos, aves e leite e engorda confinada de bovinos. E há, em se gundo lugar, os alimentos que embora não façam parte do noss o cardápio cotidiano, ganham importância cresce nte no sistema alimentar mundial: o abacate, o amendoim, o abacaxi, o mamão, a quinoa, a batata doce e o cacau. Em terceiro lugar, a América domesticou uma planta inebriante, capaz de produzir alterações psicológicas, sobretudo quando usada em rituais xamânicos ou celebrações coletivas: o tabaco. Os europeus rapidamente o difundiram pelo mundo, convertendo-se num hábito pernicioso por força do modo como é consumido indiscriminadamente. Em quarto lugar estão as plantas que tiveram pouca difusão inicial, mas ganham importância nos hábitos alimentares contemporâneos, seja como um modo de variar a alimentação diária, seja como meio de organizar re gimes alimentares mais saudáveis e ma is equilibrados: as abóboras, as morangas e abobrinhas (originárias do México e da América do Norte); o pimentão (e muitas pimentas), a sapota, o amaranto, a quinoa, o girassol, o tremoço; a oca, a papalisa e a isaño (variedade de batatas cultivas pelos povos andinos) e a erva mate. Em quinto lugar estão as plantas que só muito recentemente estão disponíveis para nosso consumo, mas que e ram cultivadas há milênios pelos povos indígenas da Amazônia e do Cerrado Brasileiro, como o açaí, o cupuaçu e o pequi, por exemplo. Já vimos que a dome sticação de plantas e animais inicia a sedentarização dos grupos humanos nômades, mas exatamente quando esses grupos começaram a ser efetivamente sedentarizados? Segundo Mazoyer e Roudart (1997), quando eles se tornaram capazes de produzir regularmente três fontes alimentares e de fibras básicas: um ou mais cereais para o provimento de calorias, uma ou mais fontes de p roteínas vegetais e uma ou mais plantas ou animas portadores de fibras para a tecelagem do vestuário, redes, sacos, etc. 11 6
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Na América Central, por volta de 3500 a.C.
...os agricultores indígenas dispunham de um cereal, o milho, e de uma leguminosa alimentar, o feijão, que lhes p ermita suprir suas necessidades calóricas e protéicas e d e uma planta têxtil, o algodão. É a partir daí somente que a agricultura se tornou o modo de exploração do meio ambiente senão exclusivo, pelo menos nitidamente predominante e que as populações se sedentarizaram nas aldeias que se tornam permanentes ao longo do vale do Tehuacan e de muitos outros sítios como Taumalipas, Oaxaca, etc. (Mazoyer; Roudart, 2001, p. 76-77).
Na América do Norte, na região compreendida entre as montanhas Apalaches e as grandes pradarias continentais, aí os povos indígenas, a partir de 4.000 anos a.C., domesticaram o sabugueiro do banhado, a abóbora, a abobrinha e a moranga, o giras sol e a anserina (falso morango). Só por volta de 250 d. C., porém, é que esses povos conseguiram produzir permanentemente os alimentos básicos que lhe permitiram a sedentarização: a “sempre noiva”, a cevadinha e uma variedade de milho miúdo. Segundo Mazoyer e Roudart,
[...] a agricultura da América do Norte dispunha de sete plantas cultivadas, que forneciam algo como dois terços da alimentação dos agricultores sedentários. Eles dispunham também de machados de pedra, enxadas, pedras de moer os grãos e silos. Mas tarde, chegou o milho vindo do México, que, mais tarde ainda, tornou o cereal mais importante (1997, p. 83. Tradução Belato).
Na América do Sul as sociedades indígenas evoluíram em ritmos muito diversos, mas em todos os lugares ocorreram intensos processos de domesticação de plantas e animais. Os grandes vales da Cordilheira dos Andes, bem como seus Altiplanos, em particular o da atual Bolívia, como afirmam Condori et al (2008) “... fazem parte dos oito centros mais importantes de domesticação de plantas do mundo”. Aí os agricultores domesticam a partir de 6.000 a.C. o feijão de lima, o amendoim, a batata, a oca, a quinoa, o tremoço, o porquinho da Índia, a lhama, a alpaca. Mais tarde, em data incerta, chegou da América Central o milho, que se expandiu também para o restante da América do Sul, juntamente com a mandioca e a batatadoce. 117
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Esta base alimentar dará origem à civilização andina, e inclusive, mais tarde, ao surgimento de um império s ob o comando dos índios incas. Processos civilizatórios se melhantes ocorreram na América Central e México. Veremos a seguir como tal trajetória estava também em curso por toda a parte na América do Sul .
b) A memória mítica da domesticação de plantas e animais Os povos indígenas da América, como os d emais povos, guardaram em sua memória coletiva narrativas míticas que marcaram os diversos momentos de sua existência como grupo social e as condições de sua reprodução no espaço e no tempo. As narrativas míticas são de uma extraordinária objetividade e clareza. Vejamos alguns exemplos. – Para que todos possam viver, é preciso morrer.
[...] o primeiro dos índios (da tribo Modoc, noroeste dos EUA), Kumokuns, construiu uma aldeia nas margens do rio. E mbora os ursos tivessem bons refúgios para proteger-se e dormir (no inverno), os veados se q ueixavam que fazia muito frio e que o pasto era escasso. Kumokuns então construiu outra aldeia longe daí e decidiu passar a metade do ano em cada uma. Dividiu o ano em duas partes, seis luas de ve rão e seis luas de inverno, e a lua que sobrava foi reservada para as mudanças. E muito feliz foi a vida alternada entre as duas a ldeias e se multiplicaram assombrosamente os nascimentos, porém os que morriam não queriam partir e a população cresceu de tal modo que não havia maneiras de alimentá-la. Kumokuns decidiu então expulsar os mortos. Ele sabia que o chefe do país dos mortos era um grande homem e não maltratava ninguém. Pouco tempo depois, morre a filha de Kumokuns. Morreu e partiu para o país dos mortos como se havia estabelecido. Desesperado, Kumokuns consultou o porco-espinho. “Foste tu que decidiste”, desse o porco-espinho, “agora deverás sofrer a morte da f ilha como qualquer outro”. Kumokuns viajou ao país dos mortos para buscar sua filha. Agora, tua filha é minha, desse o grande esqueleto que era o chefe aí. Ela não mais tem nem carne nem sangue. Que pode ela fazer em teu país? Kumokuns respondeu, eu a quero mesmo assim. O chefe do país dos mortos, depois de pensar longamente disse: leve-a, mas advertiu-o. Ela caminhará atrás de você. Ao aproximar-se do país dos vivos, a carne tornará a cobrir seus ossos. Tu, porém, não poderás olhar para trás antes que tenhas chegado, me e ntendeste bem? Dou-te esta oportunidade. 11 8
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Kumokuns iniciou o caminho de volta. A filha caminhava a suas costas. Por quatro vezes lhe tocou a mão e a sentiu cada vez mais recoberta de carne e quente, e não se voltou para trás. Quando, porém, já apareciam no horizonte as matas, não agüentou o desejo de vê-la e virou a cabeça para trás. Um punhado de ossos desabou diante de seus olhos (Galeano, 1990, p. 38-39).
A narrativa mítica é de uma crua beleza extraordinária, acentuada pela dimensão trágica e incontornável da morte. E nos ensina que a morte é uma necessidade social. Os seres humanos, tal como os demais seres vivos, reproduzem-se e morrem. Só não morreriam se não se reproduzissem. Os Modoc haviam sabiamente resolvido suas necessi dades alimentares alternando a exploração de dois ecossistemas, tirando proveito de ambos, pois os alimentos em um só deles não era suficiente. O resultado foi a multiplicação do grupo e a permanência dos mortos entre os vivos, com as mesmas necessidades destes. Rapidamente a socie dade entrou em colapso. Foi preciso então incorporar a morte como a condição de vida dos vivos. E justificá-la, não como maldição, mas como necessi dade e dor. Um mito muito parecido com este é narrado pelos í ndios de Huarochirí do Peru.
Cinco dias depois de sua morte, como era costume, os mortos retornavam ao Peru. Tomavam um copo de aguardente e diziam: agora sou eterno. Havia gente demais no mundo. Plantava-se até no fundo dos precipícios e na borda dos abismos, mas não havia comida para todos. Então morreu um homem em Huarochirí. Toda a comunidade reuniu-se, no quinto dia, para recepcionálo. Esperaram-no da manhã até noite alta. Esfriaram as comidas fumegantes e o sono pesou sobre as pálpebras. E o morto não voltou. Só apareceu no dia seguinte. Estavam todos muito furiosos. A que mais fervia de indignação era sua mulher que saiu gritando: vadio, sempre o mesmo preguiçoso! Todos os mortos são pontuais, menos tu. O ressuscitado gaguejou uma desculpa, porém ao mulher lhe jogou uma espiga de milho na cabeça que o deixou estend ido no chão. A alma escapuliu d o corpo e fugiu voando velo z como o zumbido de uma mosca, para nunca mais voltar. Desde esse dia, nenhum morto tornou a juntar- se a os vivos e a disputar-l he a comida” (Galeano, 1990, p. 39).
A narrativa, bastante semelhante à anterior, tem algumas caracte rísticas próprias: a primeira delas, que se trata de uma população que abandonou completamente o nomadismo, tem uma agricultura bem estruturada, capaz inclusive de cultivar terrenos difíceis. Revela igualmente uma comunidade com uma vida cultural intensa, expressa aqui nos r ituais de 119
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culto aos mortos mediante um banquete fúnebre do qual participavam todos. Finalmente revela, de um lado, a ne cessidade imprescindível da morte para o equilíbrio da comunidade e da sua reprodução continuada e, de outro, o limite numérico de membros da comunidade que está, por sua vez, associado ao trabalho e à terra cultivável disponível. É notório que nas imprecações d a mulher contra o marido ela o chame de vadio, preguiçoso, que foge do trabalho, que vive no ócio. A c omunidade não pode carregar homens sadios em suas costas. O trabalho é aqui, para o preguiçoso, castigo. É provável que o mito guarde indiretamente a prática de eliminar as pessoas inválidas, os que não querem trabalhar, e os velhos, em benefício dos que são capazes de dar continuidade física, material e simbólica à comunidade.
c) Os humanos são feitos de comida Nós lemos na Bíblia que uma vez ocorrida a sedentarização, que se fez acompanhar da divisão social do trabalho entre agricultores (Caim) e pastores (Abel), era necessário definir qual era o grupo de alimentos imprescindíveis para a sobrevivência dos homens. Nós sabemos que, neste caso, fo i a criação de gado e complementarmente, a agricultura – trigo, lentilhas, gergelim, ricos em carboidratos e proteínas, vegetais. No caso dos povos da América Central, a escolha não poderia ser outra senão o milho. A centralidade do milho na alimentação desses povos é tão enfática que ele é a matéria (e o espírito) de que são feitos os homens e as mulheres.
Os deuses fizeram de barro os primeiros mayas-quichés. Sobreviveram por muito pouco tempo. Eram molengos, sem força e se desmancharam antes de caminhar. Experimentaram então a madeira. Os bonecos falaram e caminharam, mas eram secos, não tinham sangue e substância, memória ou rumo. Não sabiam falar com os deuses e não sabiam o que dizer-lhes. Então, os deuses fizeram de milho os pais e as mães. E com milho amarelo e branco amassaram sua carne. As mulhe res e os homens d e milho enxergavam como os deuses. Seu olhar se estendia sobre o mundo inteiro. Os deuses então os envolveram numa nuvem de neblina e seus olhos ficaram nublados para sempre porque os deuses não queriam que os homens e as mulheres enxergassem para além do horizonte (Galeano, 1990, p. 32-33). 12 0
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O milho é a matéria de que são feitos os deuses e os humanos. Eis um modo de dizer onde está a centralidade absoluta, ao redor da qual gira a sustentabilidade da reprodução da sociedade, inclusive e, s obretudo, a condição de sua reprodução cultural, porque se só aos deuses cabe o poder de tudo ver e tudo conhecer, aos humanos cabe o esforço de conhecer os sucessivos horizonte s humanos. A metáfora do horizonte é sugestiva porque se é impossível abarcar todo o mundo com um só olhar, é possível caminhar de um horizonte para outro, para sempre. O mito, penso, contém e exprime a dinâmica interna da civilização maia, indubitavelmente a mais sofisticada de quantas se desenvolveram na América.
d) os alimentos básicos e as terras férteis são feitos da carne de um filho de Deus. Este mito peruano situa-se num momento em que a agricultura está bem organizada e o cultivo dos alimentos básicos bem estabelecido Pachacamac, que era filho do (deus) sol moldou um homem e uma mulher na região árida de Lurin. Como não havia comida, o homem morreu. A mulher, enquanto estava agachada escavando o chão em busca de raízes, o sol entrou nela e ela concebeu um filho. Pachacamac, ciumento, agarrou o recém-nascido e o esquartejou. Mas logo se arrependeu temendo a ira de seu pai, o sol, e espalhou pelo mundo os pedaços do corpo de seu irmão assassinado. Dos dentes do morto, brotou o milho; dos ossos e das costelas nasceu a mandioca; seu sangue tornou férteis as terras e da carne espalhada nasceram árvores frutíferas e de so mbra (Galeano, 1990, p. 32).
E há muitas outras narrativas míticas como esta que ritualizam e sacralizam o uso do tabaco: “... Os índios suplicaram ao Avô (deus) que descesse do céu... mas ele preferiu ficar lá. O Avô então enviou o tabaco para que ocupass e o lugar dele entre os homens. Fumando, os índios conversam com d eus” (p. 33-34).
A erv a-mat e, cu ltivada e consu mida la rgamen te pe los guarani s ao lon go dos grand es rios Paraguay, Paraná e Iguaçu e seus afluentes, tem também uma história mítica e a erv a-mate é uma doação da deusa lua. A lua desejava muito comer frutas e banhar-se nas águas de um rio. Uma noite, as nuvens cobriram a terra e a lua pôde descer e experimentou muitas frutas e nadou prazerosamente nas águas do rio. Foi salva duas vezes por um velho lavrador, que a livrou de um ataque do jaguar e de morrer de fome. Levou-a à sua casa e a mulher lhe disse: te oferecemos nossa pobreza, e lhe deu de comer algumas tortilhas de milho. O lavrador vivia numa cabana, numa clareira da floresta com a mulher e a filha. A lua notou que nada havia mais para comer na 121
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casa. Iluminou o lugar com sua melhor luminosidade e das nuvens desceu um chuvisco muito especial. No dia seguinte do chão haviam surgido árvores desconhecidas, de folhas escuras e flores brancas. A filha do velho lavrador nunca morreu. Ela é a dona da erva-mate e anda pelo mundo oferecendo-a a quem queira. A erva-mate desperta os homens, corrige os vadios e preguiçosos e irmana as pessoas que não se c onhecem” (p. 34-35).
Novamente a lua, deusa da noite, doa a uma família pobre – o mate sempre foi a bebida dos pobres –, que o oferece a t odos que queiram irmanar-se, bebendo-o. A transfiguração do trabalho humano, sublimado e alienado aos deuses, é constante e demarca as bases civilizatórias de um povo. O trabalho ganha as dimensões simbólicas que garantem e legitimam as relações de trabalho e a distribuição social de seus resultados, bem como todas as formas de expropriação e tributos, condição de eme rgência do Estado e das classes sociais, bem como de uma divisão social do trabalho, que dá origem a uma sociedade mais complexa. É nesta etapa que se acelera a urbanização dos que são liberados da produção de alimentos, aí concentrando a burocracia civil, religiosa e militar, bem como toda a espécie de artesãos e trabalhadores que produzem bens para os deuses, para a guerra e para o rei. O tamanho da produção de excedentes alimentares das sociedades agrárias nos dá a medida de sua amplidão civilizatória. Sob este aspecto, as civilizações agrárias do Egito, Mesopotâmia e China s ão estruturalmente semelhantes às civilizações agrárias da América: incas, astecas e maias e dos demais povos da América.
3.2.2 – OS SISTEMAS ALIMENTARES DOS ÍNDIOS BRASILEIROS: a civilização emerge na Amazônia [...] Já morando na aldeia, o mutum passou a levantar de madrugada para conversar com os cunhados; com o pessoal todo do coeme (seu sogro). Dizia que era preciso que trabalhassem bastante, abrissem roças grandes, porque sem roça não se pode viver. Trabalhar, trabalhar todos os dias, para poder viver melhor. Todas as tardes e madrugadas o mutum e o sogro dele saíam para a praça da aldeia a fim de aconselhar e ensinar o pessoal. O mutum era muito trabalhador, tinha muitas roças e plantava todas as coisas: milho, mandioca, cará, batata (doce), algodão, tudo ele cultivava...” (Villas Boas; Villas Boas, 1976, p. 144-145). 12 2
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Mazoyer e Roudart, como vimos, nos ensinam que, quando grupos humanos põem e m andamento a produção sistemática de alimentos ricos em proteínas e carboidratos e dispõem de fibras para a tecelagem, estão dando o primeiro grande passo para a sedenta rização definitiva e podem, a partir daí, construir relações sociais cada vez mais complexas. Os índios brasileiros são todos neolíticos, eram exímios agricultores e tinham à sua disposição, para cultivo, plantas por eles domesticadas que lhes forneciam a ração alimentar básica. Esses povos não dispensavam ainda nem a caça, nem a coleta, mas essas atividades se tornavam cada vez mais complementares e de pendentes da agricultura. Para ilustrar este item, pois é impossível dar conta da diversidade dos sistemas agrícolas e alimentares dos indígenas brasileiros, escolho uma área para a análise e alguns povos indígenas da Amazônia. Apoio-me nos textos recolhidos pela Suma Etnológica Brasileira, volume 1, intitulado Etnobiologia, no s estudos de Warwick E. K err, Darrell A-Posey, Claude Lèvi-Strauss, entre outros (apud Ribeiro, 1986a).
a) O trabalho de domesticação de plantas pelos índios da Amazônia A Amazônia é a região do plane ta de maior biodiversidade. As populações indígenas, há milênios, vivem dessa biodiversidade, seja como coletores, seja como sujeitos ativos na escolha e seleção das plantas que melhor atendam suas necessidades alimentares, fibras para tecelagem e trançado de cestaria, madeiras para seus instrumentos de trabalho e construção de habitações. Conheciam detalhadamente a diversidade dos nichos ecológicos e o modo como estes se constituem e operam. Como observa Kerr: “um dos aspectos mais assinaláveis da agronomia e da botânica indígena é sua preocupação em manter a heterogeneidade genética das plantas, tal como ocorre na natureza” (Kerr, 1986, p. 160). O autor descreve em que consiste e sta heterogeneidade genética, como os índios nela intervinham deliberadamente com vista à obtenção de re sultados esperados:
Como se sabe, uma alta freqüência – mais de 50% – das espécies botânicas da Amazônia tem fecundação cruzada obrigatória: dióicas (macho e fêmea) ou com mecanismos de auto-esterilidade, inclusive monóicas e hermafroditas. Isto indica a importância da produção de enormes quantidades de genótipos para ocupa r, em competição inter e intra– es pecífica, um eleva do número de nichos ecológicos. Ao lado desse mecanismo dive rsificador e inovador existe um outro, alta123
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mente conservador: a reprodução vegetativa, por meio de rizomas (ariá), brotamento do caule (pau-rosa, pupunha, açaí), brotamento das r aízes (araçá-peva, bacuri e muitas outras espécies), brotamento de manívas (mandioca, cupá) e bulbos. Essa aliança proporciona às plantas o máximo de possibilidades de preservação da espécie: p or meio de sementes, distribuindo amplamente milhares de combinações genéticas diferentes por ano, e vegetativamente, reproduzindo a planta do mesmo local em que o antigo genótipo fora bem-sucedido (Kerr, 1986, p. 160).
O milho, a mandioca e a abóbora são plantas vindas da América do Norte e da América Central. Os índios as adaptaram aos diversos ecossistemas, reproduzindo- os e multiplicando suas variedades que, a partir de poucos exemplares, se contam às centenas. De todas elas os índios guardavam o germoplasma, cultivando-as em suas roças. E observa Kerr (1986, p. 160): “O maior número de cultivares que encontrei numa t ribo foi o de mandioca. Isso se deve ao fato de exercerem os agricultores índios, nessa espécie, um perfeito controle da reprodução assexuada”. E acrescenta Kerr, mostrando como os índios operavam a seleção e, portanto, a domesticação da mandioca:
Observando as roças dos Kayapó, Yamamadí, Paumarí, Tukúna, Desana e Galibí, verifiquei que cada variedade é plantada, na quantidade desejada, em terrenos separados por troncos de árvores. Não obstante isso, elas participam, na floração, de um mesmo conjunto gênico e, conseqüentemente, há produção de novo clone em cada semente produzida (1986, p. 160).
O sistema agrícola indígena como um todo obedece a duas lógicas básicas: o conhecimento e o manejo do ecossistema existente e a intervenção deliberada sobre o ecossistema existente para o controle da reprodução das espécies básicas para provimento da alimentação da comunidade. Tomemos o exemplo dos Kayapó, agricultores-produtores de milho, mandioca, batatadoce e uma variada fruticultura. Os Ka yapó estudados por Kerr vivem no sul do Pará. Eles cultivam 11 variedades de milho. O método de c ultivo deste germoplasma é muito c uidadoso: “Os Kayapó escolhem, em geral, as 20 melhores espigas para sement e de cada espécie. O terço mediano dessas espigas é se co ao sol e guardado numa cabaça (porongo) tapada com cera. Esse depósito é colocado sobre o fogão, no interior da casa, para evitar o ataque de caruncho”. 12 4
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E acrescenta Kerr: “Os Kayapó demonstram grande interesse por sementes de tribos vizinhas...” (1986, p. 160). Antes do plantio das sementes os Kayapó aplicam-lhes um tratamento com os bulbos macerados de “costos warmingi”, uma planta aparentada ao gengibre, que protege e fortifica as sementes. A batata-doce é, para muitos povos da Amazôni a e do Cerrado, seu alimento básic o. Os Timbira e os Kayapó cultivam 22 variedades de batata-doce. E multiplicam suas varied ades mantendo as batateiras por até quatro anos, algumas apresentando flores. Esta circunstância e mutações somáticas explicam o aparecimento de novas variedades. No sistema de plantio os índios inventaram um método eficiente para eliminar os vírus que atacam a batata: enterram a batata no solo entre 9 e 15 cm e a s eguir põem fogo na roça. Hoje os a grônomos recomendam aos cultivadores de batatas-doces que as submetam a 48ºC durante 45 a 60 minutos. O calor destrói os vírus que atacarão as ramas e os frutos. O efeito é o mesmo daquele obtido pelos índios com seu método. A mandioca, outro alimento básico dos índios da Amazônia, se distingue pela grande quantidade de variedades que são simultaneamente cultivadas. Os índios Desana cultivam 40 variedades; os Kayapó 21; os Yamamadí 17; os Polikur, Qalibi, Tukuna 14 e os Paumari 12. Algumas variedades recebem, entre os Desana, nomes curiosos: mandioca não-tem-pai; estrume-de-abelha; tatu; gato-branco; de paca; de tucunaré; ovo-de-tartaruga, etc. (Kerr, 1986, p. 167). O cará é também muito cultivado pelos índios, que de le selecionaram 21 variedades. A prática de seleção dos índios consiste em plantar duas variedades em cada cova, promovendo a competição entre elas, da qual resulta a seleção continuada e permanente d as melhores variedades e boa produtividade. Cultivam e selecionam também o ariá, um bulbo da espécie das marantáceas, de elevado teor de proteína (6,6 %) e de amido (13%), rico igualmente em metionina e ácido glutâmico. O cupá é um cipó da família das vitáceas, domesticado pelos índios há cerca de mil anos. É conhecido também como mandioca aérea. Os frutos da variedade selvagem não ultrapassam 1 cm de diâmetro, já melhorada e selecionada pelos K ayapó, Xerente e Timbira alcança até 8 cm de diâmetro. Contém 1,2% de proteína, 18% de carboidratos e 1% de gordura. 125
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Cultivam também o amendoim que, juntamente com a castanha-do-pará, é a fonte principal de proteína e gordura vegetal. Cultivam em suas hortas uma variedade grande de vegetais: três variedades de fava e diversos temperos, como: pimentas, gengibre, sei s variedades de urucu e uma de algodão. Cultivam e consomem o tabaco, mas, segundo Kerr
... é menos tóxico que o dos brancos. Isto porque além de ser fumado através de um pito (cigarro) longo, é feito de folhas de pelo menos cinco espécies: de fumo, de amendoim, de gengibre, de guando e de casca de uma planta da família das canáceas... Para melhorar o odor misturam ao tabaco sementes de cumaru (1986, p. 170).
O pomar das tribos de índios agricultores-horticultores é extenso e resultou de um secular processo de seleção e adaptação. Todas as espécies e variedades cultivadas tiveram como efeito da intervenção humana o aumento do tamanho dos frutos, de sua polpa e de suas qualidades organolépticas. Examinemos algumas dessas plantas, a partir dos dados do etnobiólogo Kerr (1986). O abiu (Pouteria Caimito) selvagem tem frutos que pesam cerca de 30 gramas. As árvores selecionadas pelos índios produzem frutos que chegam a pesar até 1.800 gramas. O mapati selvagem (também conhecido pelos nomes de puramã, cucura ou uvilha) tem frutos em cachos, como a uva. Na natureza são pequenos e a e spécie é pouco produtiva. Os índios Tukuna e Tukano selecionaram variedades que chegam a produzir, com frutos maiores, até 1.200 cachos. A sapota, dome sticada pelos índios Tukuna do Alto Solimões é um caso certamente espetacular:
A planta selvagem produz frutos medindo apenas 9 a 12 cm de comprimento por 3 a 5 cm de diâmetro. As seleções feitas pelos índios Tukuna, produziram árvores carregadas com 3.000 a 8.000 frutos, quase esféricos, de 10 a 15 cm de diâmetro, pesando entre 700 e 1300 gramas (Kerr, 1986, p. 162-163).
A pupunha é uma árvore tão importante quanto a mandioca para muitas tribos , entre elas os Yanomami, May-ongong, Tukano, Desana e várias outras. 12 6
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Sua utilização para a alimentação humana depende de um rigoroso processo de seleção com vistas a obter frutos sem espinhos, não fibrosos, frutos em baixa altura, precocidade, facilidade de descascar, bem como dotados de alto valor nutricional: vitamina A, proteínas, gordura. O método de seleção adotado pelos índios Desana obedece aos seguintes procedimentos para a obtenção dos caracteres desejados das plantas: número de cachos, tamanho do fruto, eliminação das plantas que produzem frutos com manchas pretas ou rachaduras.
Já os índios Tukuna adotam um método quase carte siano de sele ção da pupunha: p ara se obter uma planta sem espinho deve-se colher só sementes sem espinho; entre as árvores que produzem 2, 3, 4 cachos e as que produzem 10, 11, 16, escolhe-se as últimas; o tamanho do fruto deve ser levado em conta; plantas cujos frutos caem do cacho não devem ter se us frutos plantados; plantas que apresentam frutos podres devem ser desprezadas (Kerr, 1986, p. 163-164).
Os Kaiapó e outros povos indígenas da região cultivam e submetem a métodos de seleção a banana, o mamão, a castanheira, graviola, araticum, beribá, pequi, tucumã, bacaba, babaçu, inajá, cajá, taperibá, uxi, cajuí e marmelo (Kerr, 1986, p. 161-166).
Esta amostra de um grupo muito pequeno e localizado de povos indígenas da Amazônia nos revela um poderoso e secular processo civilizatório, aqui expresso na complexa atividade de seleção de plantas, de sua identificação, de seus ecossistemas e da conseqüente organização social. Os antropobiólogos que contataram com as comunidades que mantinham intactas suas estruturas sociais nunca viram ninguém desnutrido ou faminto. A floresta é superabundante de alimentos, mas elas só são tais pela ação ininterrupta do trabalho humano.
No entanto, observa Ker r,
... na medida em que os grupos tribais entram em contato com a sociedade nacional diminui, às vezes de maneira d ramática, a diversidade e a qualidade dos alimentos (p. 170), e perdem-se os conhecimentos agronômicos, botânicos e zoológicos acumulados ao longo de milênios.
E acrescenta Kerr:
Os agentes da civilização ao destruírem os mitos e as crenças religiosas indígenas, afetam também aquelas vinculadas ao remanejo da natureza, uma vez que ambas se entrosam indissoluvelmente (1986, p. 170). 127
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E ainda;
A etnobiologia (Posey, 1985, p.16) não nos dá tão-somente uma visão clara do modo como os povos indígenas proviam seus alimentos. A botânica, a etnobotânica, nos ensina também como os povos indígenas utilizavam os recursos vegetais para fins místicos e inebriantes. Entre estes, o mais importante é o tabaco, do qual cultivavam muitas espécies, todas elas pertencentes ao gênero nicotiana. E o utilizavam para fins místicos, curativos, para aguçar a sensibilidade, para estabelecer acordos, etc. Era consumido puro ou misturado em inúmeras fórmulas com sementes, folhas, cascas e raízes de outras plantas. Fumado em cachimbos, cigarros, charutos, ou aspirado, sob a forma de rapé. Fortemente marcado por um caráter místico-cerimonial, seu uso implicava um severo controle social (Cooper, 1986, p. 101ss).
Desta forma:
O consumo de bebidas alcoólicas entre os povos indígenas é menos difundido do que o uso do tabaco. As bebidas eram obtidas a partir da fermentação do milho, da mandioca, do suco das frutas, seiva ou fruto de várias espécies de palmeira, sendo as mais conhecidas a chicha, o massato, o caxiri, o cauin, o vinho de palmeira, de a bacaxi e de banana. Os indíge nas conheciam e manejavam adequadamente a fermentação dos amidos e açúcares e sua transformação em álcool. A regra para a escolha da planta para fabricar a bebida mais consumida era da planta de maior consumo na alimentação local e, certamente, quando houvessem excedentes dela (p. 108ss).
Duas outras bebidas estimulantes foram se lecionadas e domesticadas pelos índios: o mate, a Ilex paraguariensis, e o guaraná, também conhecido como yoco ou cupana, cujo princípio ativo é a cafeína. De ambas os índios selecionaram, entre muitas espécies, as plantas que até hoje são cultivadas. Segundo Cooper (1986, p. 117), o hábito de consumir bebidas alcoólicas só está presente em povos agricultores . Povos nômades caçadores e coletores não podem ter semelhante hábito por falta de matéria-prima para elaborar as bebidas. É preciso c ultivar o milho, a mandioca, o abacaxi ou qualquer outro fruto ou cereal para fabricar o álcool e é preciso ter deles excedentes para que possam ser usados para esse fim. Não se conhecem casos em que esses povos tenham bebido s ua comida. Bebidas alcoólicas e fumo s ão, sem dúvida, os dois inebriantes mais consumidos pe los povos da América do Sul. 12 8
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Os índios igualmente conheciam grandes quantidades de plantas que utilizavam para tratar de doenças que incidiam normalmente na população, tais como disenterias, febre, malária, picadas de insetos, tosse, infecção ocular, lesões da pele, reumatismo, inflamações diversas, dor de garganta, fungos da pele, lesões de leishmaniose, vermes, queimaduras. Conheciam também contraceptivos através dos quais controlavam os nascimentos em cada família (Prance, 1986, p. 124-125).
As tecnologias de pesca dos povos amazônicos, grandes consumidores de peixes, além de anzóis, compunham-se de redes, arcos e flechas, cestos, armadilhas e p lantas venenosas para imobilizar os peixes. O princípio ativo de muitas dessas plantas venenosas, segundo Prance, são as retenonas, que também são usadas como i nseticidas (Prance, 1986, p. 130). A retenona produz baixa toxidez em organismos de sangue quente, mas é muito tóxica para peixes e insetos. Intoxica por contato e ingestão. Se voltássemos ao Egito, à Mesopotamia e à China – grandes centros de domesticação de plantas e animais – 4 ou 5 mil anos antes de Cristo, descobriríamos povos ativamente selecionando as plantas dos respectivos ecossistemas em grande número e delas se alimentando, produzindo cervejas e vinhos e bebendo- os, como fez Noé, cultivando plantas medicinais e inebriantes e depois cons truindo grandes civilizações. Na América, a partir de 3 ou 4 mil anos antes de Cristo, povos do México, Guatemala, Peru e Bolívia repetiram a mesma trajetória e as pirâmides, templos e palácios que ergueram continuam em pé. Há dois o u três milênios do presente, índios da Amazônia, do Cerrado e do litoral iniciaram uma trajetória de domesticação de plantas de seus e cossistemas e criaram uma sólida base alimentar para suas populações, domesticando inúmeras espécies e variedades de cereais, leguminosas, tubérculos e raízes. Possuíam sofisticadas tecnologias de construção de casas e viviam em aldeias que podiam chegar a mais de mil habitantes. Dese nvolveram tecnologias de caça e pes ca e elaborada arte cerâmica utilitária e ritual, bem como um vasto repertório da arte de tecelagem de fios e fibras e a arte de trançado da cestaria. Se a essas civilizações indígenas, terrivelmente impactadas pela chegada dos europeus no século 16, pudéssemos conceder um ou dois milênios, t eriam fundado civilizações do porte do Egito ou Mesopotâmia. Embora a hipótese não mais possa ser verificada, ela serve para visualizar os povos indígenas na América no momento universal da construção das civilizações. 129
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Unidade 4
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AS CIVILIZAÇÕES AVANÇADAS DA AMÉRICA OBJETIVOS DESTA UNIDADE • Aprofundar nossos conhecimentos da história das civilizações avançadas da América. • Estudar a grande contribuição civilizatória dos povos americanos para o mundo.
AS SEÇÕES DESTA UNIDADE Seção 4.1 – A Geografia do Império Inca Seção 4.2 – Os Deuses e Divindades Seção 4.3 – A Polêmica da Escravidão no Império Inca Seção 4.4 – Códigos e Regulações
Incas, astecas e maias são grupos étnicos que por meio da força militar, das alianças políticas com outros grupos étnicos e aproveitando-se dos avanços civilizatórios alcançados e acumulados até então, impuseram aos demais agrupamentos étnicos seu poder e a autoridade de um Estado teocrático e fortemente centralizado, sob muitos pontos de vista seme lhante aos antigos Estados despóticos do Oriente Médio. Sob muitos outros aspectos, porém, eram mui to diferentes. Na América, como vimos, não havia animais de carga: asnos, burros, mulas, cavalos, camelos, elefantes, nem barcos para navegação a distância. O transporte era todo ele feito às costas, e impedia o desenvolvimento das trocas entre as três civilizações e mesmo entre as unidades político-administrativas dos Estados. Os índios do Peru domesticaram o lhama, um camelídeo incapaz de transportar mais de 50 quilos. Maias e astecas não contavam sequer com um animal de carga tão modesto. 131
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A metalurgi a igualmente era apenas medíocre e eram raros os instrumentos de trabalho em bronze. Desconheciam o ferro. Não conheciam a enxada, nem o arado. Mazoyer e Roudart (2001, p. 194) destacou que:
Os instrumentos de trabalho de que a sociedade inca dispunha são rudimentares e pouco potentes: pau de cavar melhorado, maço para partir os torrões, enxadinhas de sachar (de madeira), para fazer regos ou escavar canais, facas para ceifar, cestos para os homens transportarem os gêneros às costas, albarda (selas) de transporte para os lhamas, cerâmicas diversas, etc... Essas ferramentas correspondem de fato ao final da época neolítica e a princípios da idade do bronze. A socie dade inca desconhecia a roda, a atrelag em e o ferro.
A ausência de animais de carga e tiro não impôs a necess idade da descoberta da roda ou a teria retardado em vários séculos. O artesanato da cerâmica, do qual a roda é um componente dinamizador e produtivo, era todo executado à mão e mo ldado com os dedos. As sociedades asteca, maia e inca, por força dessa composição tecnológica ainda pouco desenvolvida, apresentavam baixos índices de produtividade do trabalho agrícola. Mazoyer e Roudart (2001, p.194) nos informam que “... a superfície cultivada por trabalhador é inferior a um hectare de cultura pluvial (irrigada por chuva) e inferior a meio hectare de cultura irrigada”. E acrescentam: “... os ren dimentos não ultrapassam vinte quintais (2.000 kg) de equivalente-cereal de cultura irrigada e estrumada e não atingem dez quintais (1.000 kg) de cultura pluvial...” A ausência de animais de carga obrigava os camponeses a gastarem muito tempo e energia no transporte às costas da produção. Em razão disso, “...a produção agrícola não podia exceder muito às necessidades dos produtores e das s uas famílias” (Mazoyer; Roudart, 2001, p. 194). Esta fraqueza relativa da agricultura num império ag rícola é certamente paradoxal se levarmos em conta que a administração de tal unidade política requeria re cursos de grande vulto. A originalidade do império inca está no fato de não cobrar qualquer tipo de imposto, taxa, requisição em espécie ou e m dinheiro, ou seja, não há impostos ou tributos no império inca. O principio básico de tal política é: “ não tocar na cozinha do camponês”. 13 2
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O Estado então organizou uma “e conomia paralela” para prover os recursos alimentares de que necessitava e a execução das obras e empreendimentos de infra-estrutura: estradas, canais e represas para irrigação, cidades, palácios, templos, fortificações, mineração, defesa, exército e burocracia ci vil e religiosa. Para tais empreendimentos e para produzir os alimentos e outros bens ne cessários, o Estado requisitava o trabalho dos membros da comunidade camponesa. Trata-se de tributo em trabalho e exclusivament e em trabalho. Este tributo denomina-se mita. E o que executava ou prestava este tipo de trabalho chamava-se mitaio. Todos os convocados para a mita e enquanto prestam o trabalho são mantidos com os recursos próprios do Estado. A peculiaridade do sistema está em que o trabalho circula e não, ou em menor medida, a produção. O tributo, se se quiser a imagem, é semovente. E considerando que a população camponesa é o objeto mesmo do tributo, o governo exercia s obre ela um controle detalhado e preciso, de baixo para cima, permitindo, desta forma, mobilizar rapidamente grandes contingentes de pes soas. A população masculina e feminina é, para tal fim, classificada em dez categorias:
[...] bebês de berço; crianças de 1 a 5 anos que ainda brincam; crianças de 5 a 9 anos empregadas em tarefas acessórias; crianças de 9 a 12 anos encarregadas de afugentar as aves dos campos cultivados; os adolescentes de 12 a 18 anos q ue conduzem os lhamas ou aprendem a lidar com eles; jovens d e 18 a 25 anos, que colaboram com os seus pais em todos os trabalhos; adultos de 25 a 50 anos, que trabalham, sujeitos a corvéias e ao recrutamento para serviço militar; homens de 50 a 60 anos, que prestam ainda serviços; velhos trôpegos (sic) de mais de 60 anos que realizam ainda pequenos trabalhos e dão conselhos; finalmente, os doentes e os e nfermos, incapazes de trabalhar (Mazoyer; Roudart, 2001, p. 197).
O império inca, portanto, se funda sobre os exc edentes de trabalho das comunidades nos diversos empreendimentos do Estado, distribuídos sobre o território. A articulação entre as unidades sociais e econômicas, que antes do império constituíam reinos indepe ndentes, é operada por uma rede de estradas que unifica o império – que em língua guechua, a língua dos incas, se chama Tahuantinsuyo – a partir de Cuzco, a capital, nos quatro quadrantes, chamados de Suyos (ou províncias em língua latina), que p or sua vez se desdobravam em comunidades aldeãs chamados a ylus. 133
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Fonte: Disponível em: . Aces so em: 23 jan. 2009.
Tanto nas províncias quanto nos aylus os incas cooptavam a antiga classe di rigente e a mantinham no poder, seja concedendo-lhe privilégios, seja promovendo casamentos com mulheres incas. Só nas províncias ou regiões re beldes é que o Estado impunha uma nova classe dirigente. Dependendo, porém, do grau de perigo que a região ou grupo étnico representavam, populações inteiras rebeladas podiam ser deportadas para outras regiões e/ou punidas com pena de morte de seus chefes:
[...] se algum senhor étnico – esta era a designação que davam aos antigos chefes tribais ou de clãs e que f oram mantidos no p oder pelos incas – tentasse opor-se e rebelar-se, eles (os incas) o matavam e a toda a sua linhagem, de modo que não r estasse ninguém... (Murra, 1998, p . 87).
De maneira geral os governantes incas tratavam, de todas as formas, de obter a fidelidade e a obediência dos chefes étnicos. O c astigo mais corrente constituía na perda pessoal do cargo, que passava para o filho mais velho e se não tivesse filhos, para o parente mais próximo. Mesmo assim, só seria deposto depois de se ter confirmado sua incapacidade, incúria 13 4
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ou desobediência em seis faltas graves: desobediência às ordens do representante do rei; pretensão ou intenção de rebelar-se; negligência no recolhimento e remessa do q ue era devido; não ter realizado os sacrifícios exigidos três vezes ao ano; ter desviado as tecelãs a serviço do rei para seu próprio serviço; ter deixado de fazer ou mandar fazer coisas i ndispensáveis para a realização de outras atividades, por exemplo, não ter mandado consertar as represas a tempo para a coleta das águas do degelo, o que impedirá os cultivos irrigados (Murra, 1998, p. 86). A peculiaridade do siste ma político e econômico inca nos fica mais compree nsível se descrevermos o seu sistema agrário de múltiplos ecossistemas e o modo como o sistema inter-relaciona suas partes.
Seção 4.1 A Geografia do Império Inca O império inca expandiu-se a partir de seu c entro, Cuzco, para o norte até Quito (no Equador), para o sul até o Chile e o pampa argentino, para o oeste até o Pacífico e para o leste até as bordas da floresta amazônica. De norte a sul 4.000 quilômetros por 300 a 400 quilômetros de largura, em média, pondo sob seu poder e obediência 70 grupos étnicos diferentes. As montanhas dos Andes repres entam um quarto do territóri o do império e é composto, em boa parte de sua extensão, de duas cordilheiras, paralelas, com orientação nordeste/ sudoeste. A paisagem daí de corrente é muitíssimo movimentada, feita de altas montanhas com seus planaltos frios e secos, vales profundos com suas vertentes encachoeiradas e planícies aluviais de altitude (cf. Mazoyer; Roudart, 2001, p. 184). A paisagem no interior da cordilheira também pode ser lida pelas formações ecológicas que lhe dão origem e que, segundo Mazoyer e Roudart, são os seguintes:
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– A formação quéchua, que compreende os fundos de vales e as suas vertentes até 3. 600 metros de altitude, e a f ormação Suni q ue vai de 3. 600 a 4. 200m de altitude, duas formações ecológicas cuja vegetação espontânea atual se reduz a formações herbáceas e arbustivas muito dispersas e degradadas. – A formação puna, acima de 4.200 metros de altitude, coberta de relvas e estepe. – Para além de 4.900 metros estão os desertos frios e os glaciares... que chegam até seis mil metros (p. 184).
Em cada lado da cordilheira a paisagem apresenta características contrastantes: a oeste, a costa do Pacífico, desértica. A fixação aí de grupos humanos e a prática da agricultura dependem do represamento e canalização das águas dos degelos das montanhas. A leste estão as densas florestas da Amazônia, muito úmidas, pouco drenadas e por isso de difícil cultivo, com clima permanentemente quente. Esses três grandes sistemas e cológicos representam, cada um a seu modo, dificuldades, limitações para os cultivos e criação de animais e fixação das comunidades aldeãs. “Trata-se de um universo agrário descontínuo, de um arquipélago composto de ilhas e ilhotas povoadas e cultivadas, dispersas ao longo da costa e dos cursos de água andinas e amazônicas ou dos vários patamares da montanha...” (p. 185). De que modo os povos desta vasta região, antes da constituição do império, organizavam sua produção? O método adotado, secular, consiste em explorar todos os nichos que reúnam as condições de exploração, distribuídos nas várias altitudes em que se constituem os ecossistemas, bem como a diversificação das culturas e das variedades vegetais numa mesma parcela. Tiravam partido, desse modo, dos diferente s patamares do relevo e da diversificação de culturas. Reduziam, assim, os riscos de más colheitas. Associavam também às culturas a criação de animais que se constituíam tanto em fonte de carne, lã e esterco (adubo) quanto em moeda de troca. Ainda segundo Mazoyer e Roudart (2001), o sistema como um todo pode ser assim visualizado:
– Sistemas de culturas irrigadas à base de milho, feijão e de algodão nos oásis da planície costeira; 13 6
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– Sistemas de culturas irrigadas à base de milho, feijão, tremoço e quinoa na zona quéchua (incas); – Sistemas de cultura à base de batata na zona suni; – Sistemas de criação de gado pastoril na zona puna; – S istemas de c ulturas nos terrenos de florestas abatidas-queimadas, de mandioca, milho e coca na amazônia (p. 186).
Corte Esquemático dos Sistemas de Cultura e de Criação de Gado da Costa do Pacífico dos Andes e da Vertente Amazônica da Época Inca Fonte: Mazoyer; Roudart (2001, p. 187).
A complementaridade entre os sistemas se dava medi ante a troca de produtos: animais, agrícolas, minerais. Os produtos de cada grande ecossistema e patamar desciam ou subiam conforme sua localização e produção típica aí dominante. O sistema, conforme Mazoyer e Roudart, é muito antigo, antecedendo em muito a unificação efetuada pelos incas, embora estes lhes tenham dado uma dupla dimensão: de um lado, ampliaram a circulação dos produtos em todo o espaço do império, de outro, por meio do trabalho imposto às c omunidades, criou a infra-estrutura de e stradas, açudagem, 137
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construção de patamares, bem como a produção nas terras do Estado dos alimentos e bens necessários à manutenção das burocracias civil, religiosa e milit ar, e da alimentação e vestuário dos mitaios. O sucesso do império inca, p ortanto, está em ter submetido a seu controle e unificado um sistema diversificado, porém localmente c oeso, que lhe permitiu dispor em grande quantidade de trabalho, de alimentos, minérios e animais – estes dois últimos erigidos em moedas universais de troca – tanto para a defesa e a segurança do Estado quanto de contínua ampliação de terras agricultáveis e de obras de i nfra-estrutura. Percebe-se agora melhor a função estratégica da rede de e stradas. O mapa anterior mostra o sistema e a inter-relação das partes do império, constituídas de ecossistemas heterogêneos. O trabalho humano converteu as imensas dificuldades e empecilhos em vantagens. Embora o i mpério inca seja um Estado de tipo teocrático, centralizado e despótico e sob este aspecto em nada diferente dos império s egípcio, mesopotâmico e persa, seus governantes, ao cobrar tributos unicamente em trabalho, não esgotaram as energias de suas populações apropriando-se de seus alimentos e dos demais bens que para si produzia a comunidade aldeã. Embora o império sempre tivesse se u poder e legitimidade contestados por povos singulares ou grupos deles, nunca foi seriamente a meaçado graças a seu exército e si stema de defesa eficientes e cooptação dos chefes étnicos. Por que, então, o império sucumbiu tão facilmente ao ataque de um minúsculo exército espanhol comandado por Pizzaro, em 1532? O padre Bartolomeu de Las Casas, mais tarde bispo de Chiapas, contemporâneo dos acontecimentos – ele chegou à América em 1515 – era amigo e confidente do bispo de Charcas, frei Domingo de Santo Tomás, autor do primeiro dicionário e gramática quéchua, que era também membro do Conselho das Índias, nos conta, bem informado, que os espanhóis perpetraram traições, assassinatos, terrorismo e aterrorização continuada à população com execuções sumária s, incêndio e saqu es (cf. Murra, 1998, p. 80; Las Casas, 2000, p. 3). 13 8
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E mesmo que no momento da conquista estivesse em curso um conflito dinástico pelo trono, ou que os índios por razões religiosas tivessem confundido os espanhóis, brancos, montados a cavalo, portando armas de ferro e de fogo, com divindades, e mesmo que os espanhóis tivessem contado com a ajuda dos índios que ne gavam legitimidade ao império, mesmo que isso não tivesse acontecido, teriam derrotado o império. Mazoyer e Roudart (2001) argumentam que: “...nessa época nenhuma sociedade da América, da África ou da Ásia pôde resistir à cavalaria couraçada e às outras armas de fogo européi as, visto todos estarem desprovidos delas” (p. 200).
Seção 4.2 Os Deuses e Divindades Os incas adoravam o Deus Sol, que eles cons ideravam o ancestral dos governantes. A monarquia e seus reis foram divinizados e adorados. Prestavam também culto a outras divindades da natureza: a lua, o trovão, a terra, o mar, as estrelas, as montanhas, fontes, colinas, etc... A elite governante adorava um deus criador do universo chamado Vira-Cocha. Os incas impuseram o culto e a propiciação dessas divindades, com sacrifícios, a toda a população do império, mas não proibiram nem tentaram suprimir os deuses étnicos de cada povo (cf. Aquino et al, 1990, p. 80). John Murra (1998, p. 84) observa que Cuzco, além de c entro político-administra tivo, era também
...um centro cerimonial, onde eram sacrificadas, diariamente, uma centena de peças de roupas finas e um grande número de sacerdotes jejuava enquanto observava, de seus observatóriospalácios, os movimentos do sol. Seus calendários oficiais não são tão bem compreendidos quanto os dos maias, porque os resultados das observações não foram registrados em pedra, mas muito provavelmente tecidos em material têxtil, perecível (p . 84).
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Guaman Poma de Ayala (1987), 70 anos após a conquista, transcreve dois calendários, um religioso e outro de trabalho. Ele não conservou o sistema de meses utilizado pelos incas, adaptou as práticas religiosas e e conômicas dos incas ao calendário cristão. De minha parte, que fiz a tradução dos textos, fundi os dois calendários para ter deles uma visão de conjunto. As i lustrações de cada mês são do próprio Ayala (Belato, 2000, p. 14-22).
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Fonte: Belato (2000, p. 14-22). 14 8
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Seção 4.3 A Polêmica da Escravidão no Império Inca Mazoyer e Roudart (2001, p. 196-197) afirmam que:
[...] as comunidades camponesas fornecem à administração servidores perpétuos, os yanaconas, espécie de servos utilizados como domésticos, como pastores ou operários pelo Inca, pelos nobres e p or alguns curacas (antigo chefe local q ue foi mantido em seu cargo pelos incas).
E acrescentam: “Essa forma d e trabalho servil estava pouco espalhada na véspera da colonização, mas desenvolveu-se muito mais tarde”. John Murra (1998, p. 97) nos informa, de forma detalhada, que os yanaconas ou yanas eram os homens – as mulheres eram chamadas aclas, as escolhidas –, que, removidos de suas aldeias de origem pelas autoridades, passavam a viver em comunidades sob a supervisão direta do poder central. Podiam casar e ter família, contrariamente às mulheres, que não podiam fazê-lo. E trabalhavam, em tempo integral, nos negócios do rei como artesãos, pastores e agricultores. As mulheres , as Aclas, dedicavam-se em tempo integral à tecelagem nos teares do Estado. Os incas, conforme a tradição oral dinástica, afirmavam que o sistema de tr abalho de yanas e aclas fora inovação sua. Isso parece não ser verdade, porque há registros orais da prática muito tempo antes do império inca. E não há provas convincentes que a condição de yana fosse hereditária. Relatos antigos e confiáveis, segundo Murra, afirmam que o f ilho (mais velho) do yana, se fosse apto, poderia sucede r ao pai. É muito difícil, portanto, provar a condição escrava dos yanas. Eram antes funcionários públicos especializa dos, contratados de forma permanente, na execução de tarefas ligadas à agricultura ou ao artesanato. Murra acrescenta que aclas, vem de aclai, que significa escolher, selecionar. Yanas, por sua vez, é uma palavra oriunda de yanahay que significa, em quéchua, assistir completamente, ajudar alguém sem qualquer cálculo de ret ribuição. Yanas e aclas i nseriam-se num sistema produtivo de deve res mútuos, próximo portanto de 149
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relações de reciprocidade. Murra defende que o crescimento desse t ipo de trabalhador, que não mais guarda relações de parentesco e de pertencimento étnico ao seu grupo de origem, dá lugar ao nascimento de uma categoria de trabalhadores de tempo i ntegral a serviço do governo. Essa tendência, não fora o império destruído pelos e spanhóis, teria desvinculado todo o trabalho do império dos senhores étnicos e talvez do tributo em trabalho das comunidades (1998, p. 98-99). Certamente havia escravos, mas estes, como nas demais soci edades desse tipo, eram prisioneiros de guerra. Em duas ou três gerações acabavam absorvidos na população local.
Seção 4.4 Códigos e Regulações Guaman Poma de Ayala recolheu um c onjunto bastante significativo de “lei s e ordenações” que revelam, ao menos em parte, aspectos importantes dos códigos civil, religioso, social, político e econômico (Ayala, 1987, p.176-184). Aqui, com o em s ociedades antigas do Oriente e do Egito, a pena de morte e castigos corporais severos são recursos do poder com vistas a dissuadir e coibir práticas que atentem contra a ordem estabelecida e o Estado. Eis o texto: a) Prólogo:
Topa(tupac) Inca Yupanqui, os de mais príncipes, grandes senhores, dignatários do rei no, (membros do) conselho assim dizem: orden amos e mandamos neste reinos e s enhorios que se guarde e que se cumpra, e sej am condenados à morte os que não cumpram, eles e seus filhos e descendentes porque serão castigados e serão mortos e condenados à morte e se acabará toda a sua geração e serão queimados seus povoados e se semeará neles e virarão animais: veados da montanha, pumas, raposas, gatos monteses, condores e falcões... Para estes crimes não haverá apelação (p. 176). 15 0
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b) Estabelece-se o ordenamento sacerdotal do império:
Ordeno e mando (que) nesta grande cidade, cabeça destes reinos (Cuzco) haja um pontífice feiticeiro maior, (bem como haja sacerdote em cada província) um no Chinchay– Suyo, outro no Anti-Suy o, outro no Cola- Suyo e outro no Conti-Suy o” (p. 177).
Ayala informa que havia sacerdotes no templo do (Deus) Sol e em muitos templos e santuários existentes no reino. Diz também que a hierarquia sacerdotal se assemelhava à católica: havia sacerdotes como bispos, cônegos, sacristãos, que exerciam as funções de confessores, enterravam os mortos. E que ess es sacerdotes estavam nos templos e lugares sagrados de todo o reino. c) Estabalece-se a estrutura dos cargos e funções administrativas e de governo:
Ordeno e mando que nesta cidade haja um conselho real (assim composto): dois incas (um do) Hanan Cuzco e (outro de) Lurim Cuzco e mais quatro grandes representantes ( d a província de) Chinchay-Suyo, dois do Anti-Suyo, quatro d e Cola-Suyo e dois de Conti-Suyo.
E acrescenta: “A estes lhes chamaram de Conse lho do Tuanty-Suyo, isto é, conselho do reino” (p. 177). d) A seguir são definidos os demais cargos do reino e das províncias: “Mando que haja um assessor” (grande senhor que fala em nome do inca, seu porta-voz). “Mando que haja (um) vice-rei que seja a segunda pessoa do reino”. Ayala explica que ele representava o inca em suas viagens às províncias e recebia as mes mas honrarias do inca. Chamavam-no yancap-rantin, aquele que vai em lugar do inca (p. 177). “Mandamos que haja em cada província um corregedor para que se admini stre a boa justiça (do inca)”. Este cargo estava reservado à etnia inca de Cuzco e Lurin (p. 177). “Mandamos que haja alcaides da corte, que sejam anta-inca (da etnia inca) para prender os principais (dignatários) e capitães e grandes se nhores e cavaleiros deste rei no”. Estes, segundo Ayala, executavam a prisão de membros da elite a mando do inca (p. 177). 151
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“Mandamos que haja uma alcaide ordinário em c ada repartição”. Estes são chamados de “aqueles que ouvem os mandatos, ordens do inca”. E as executam. “Mandamos que hajam regedores”. Ayala explica que se chamavam também administradores-despenseiros; provavelmente encarregados da gestão dos recursos alimentares do reino e sua distribuição (p. 178). “Mandamos que haja um alguacil maior e menor (ofic ial inferior de justiça)”. “Mandamos que haja um secretário do Inca”. Trata-se do “contador” do inca. O cargo equivale ao de ministro da economia (p. 178). “Mandamos que haja um s ecretário do Conselho real”, cuja função era a de mi nistro da economia do Conselho. Os incas nomeavam para o governo dos muitos grupos étnicos que compunham o império os governantes tradicionais destes povos, a não ser, como vimos, quando ocorre ssem rebeliões. Completa-se deste modo a estrutura da burocracia civil e religiosa do império. A burocracia militar estava sob o comando direto do inca, da qual ele era chefe e comandante supremo. e) Os códigos relativos à vida cotidiana dão conta de punir comportamentos e ações proibidas ou inadequadas. Eis algumas, que transcrevo em tradução livre: – que ninguém blasfeme contra o Sol e a Lua – pai e mãe do inca –, nem contra as estrelas, nem contra o luzeiro (Vênus), nem contra as divindades locais, nem contra mim, o inca, nem contra a rainha; – que não se blasfeme contra nenhuma pessoa, nem contra o conselho, os governantes e nem contra os índios pobres; – que nenhum pobre seja testemunha para evitar que seja subornado; – que nenhuma árvore frutífera ou de madeira, a não ser a que se destine à lenha, seja derrubada sem licença. Quem o fizer sem a devida licença será punido de morte e castigos; 15 2
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– que é proibido caçar e matar veados, guanacos, vicunhas, gansos andinos, para que se reproduzam e aumentem, mas devem caçar e matar o leão e a raposa pelos danos que causam; – que a viúva cubra seu rosto por seis meses e não saia de casa, que guarde luto por um ano, que crie seus filhos e não case mais e que seja honesta; – que os defuntos sejam enterrados em túmulos ou em construções funerárias e que é proibido enterrá-los dentro de suas casas e que sejam enterrados com suas roupas, apetrechos, comidas, bebidas; – que as crianças e jovens desobedientes a seus pais, mães, aos velhos e anciãos, aos senhores, e aos dignatários do reino, sejam açoitados na primeira vez, e des terrados às minas de prata e ouro se não se e mendarem: – que os ladrões e salteadores rece bam na primeira vez castigo de 500 açoites e que sejam apedrejados e mortos na segunda e que seus corpos não sejam enterrados e sirvam de alimento às raposas e condores; – que quem ache um objeto perdido o devolva e que, por isso, não seja acusado de ladrão; – que ninguém cobre as dívidas deixadas pelo morto, nem pode cobrá-las de nenhum parente seu, se for pobre, nem mesmo quando deixou em vida testamento obrigando-se a pagar; – que os punidos por desterro sejam obrigados a trabalhos forçados e que ass im sirvam de exemplo e paguem seus crimes; – que é proibido o uso de veneno ou de poções, bem como as práticas de feitiçaria para matar as pessoas. Os que assim matarem serão condenados à morte, esquartejados e jogados despenhadeiro abaixo; – que o crime de rebelião e traição contra o inca ou os dignatários do reino seja punido com morte e que de sua pele se faça tambor, dos ossos se façam flautas, colares de seus dentes e de s eu crânio uma caneca para beber chicha (bebida fermentada de milho). 153
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Esta é a pena dos rebeldes e traidores: que todo o assassino morra do mesmo modo como assassinou a outrem. f) Regulamentos e normas para as mulheres e para a família. – que as mulheres me nstruadas não entrem no templo e nem assis tam ao sacrifício aos deuses e se entrarem, sejam castigadas; – que mulher que aborta, se for menino, seja morta, se for me nina, receba 200 açoites e seja desterrada; – que a mulher violentada ou estuprada ou que consentiu que a violentassem ou fosse puta (sic) que seja amarrada pelos cabelos ou pelas mãos no alto de uma pedra e que a í morra; o que cometeu o crime de estupro re ceba 500 açoites e que lhe soltem do alto uma pedra pesada nas costas. Se ambos são cúmplices, ambos devem ser enf orcados; – que a viúva não se case novamente, se tiver filho, que ele seja herdeiro de todos os bens e casas e lavouras e se tiver filha, seja ela herdeira da metade dos bens e que o restante seja herdado por seu pai o u sua mãe (da viúva) ou seus irmãos; – que o número de filhos por família seja assim rec ompensado: • quem tiver um filho, que seja honrado;
• quem tiver dois, que seja feita mercê (concessão gratuita de terra); • quem tiver três filhos, que re ceba terra para cultivo e pasto para criar gado; • quem tiver quatro filhos, que receba “estância”, se forem cinco filhos, que um seja o chefe
dos cinco; e se forem dez filhos, que seja senhor de terras e se forem 30 ou 40, ou 50 filhos, que possam constituir povoados onde solicitassem e que do povoado sejam chefes. – que os preguiçosos e sujos como porcos e que tenham suas roças, casas, pratos de comer sujos ou que tenham a cabeça e as mãos sujas, sejam lavados e que se jam obrigados a tomar a água em que foram lavados. 15 4
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– que sejam desterrados os que s epultarem seus mortos dentro de suas casas. – que o número de mulhere s que cada homem pode ter para seu serviço e para esposas obedeça a um critério de chefia, hierarquizado pelo número de famílias que estão sob seu comando. E obedeça também à velha lógica da reprodução intensiva da população, necessária tanto para a produção básica de alimentos quanto para a contínua expansão do império. O poder político, militar e econômico do império se me dia também, e talvez sobretudo, pelo numero de seus habitantes, que o império inca via principalmente como tributo em trabalho. Chefes de muitos milhares de famílias podem ter 50 mulheres; chefes de mil famílias, 30; chefe de 500 famílias, 15; chefe de 100 famílias, 8; chefe de 50, 7; chefe de 10, 5; chefe de 5, 3; um índio pobre pode ter duas mulheres, e os soldados de guerra (sic) conforme a vitória lhe davam mulher(es) para o aumento (da população); – que ninguém case com sua irmã, sua mãe, nem com sua prima-irmã, tia, sobrinha, nem com nenhum parente, nem com sua comadre sob pena de castigo, tendo seus olhos arrancados, seu corpo esquartejado e as partes abandonadas nas montanhas, para exemplo e castigo, porque só o inca pode casa r com sua irmã, por lei; – que os capitães sejam de bom sangue, boa casta e fiéis e que os soldados sejam fiéis e não traidores, de idade entre 30 e 50 anos, que sejam índios (sic), vigorosos e fortes, suficientes (em número) e ricos para ir à guerra e à batalha; – que ninguém desperdice o milho, batatas, nem outros alimentos, nem os descasquem (as batatas); – que em tempo de epidemias ou de realização de sacrifícios (às divindades), de tempestades, de tempos de caresti a (fome) ou sede, ou morte do inca ou de algum sen hor ou de rebelião, não dancem, cantem, toquem instrume ntos, nem toquem tambor, flautas, nem tenham relações sexuais, nem e m tempo de jejum e penitência, nem consumam sal ou pimenta, nem carne nem frutas, nem bebidas alcoólicas (chicha), nem qualquer outra comida à exceção de milho branco e cru; 155
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– que em te mpo de gelo (geadas) e de granizo ou em tempo em que o milho morre por causa da seca peçam todos a Deus, criador do homem, água, todos cobertos de luto, com os rostos pintados de negro..., que andem pelos montes; (junto aos santuários) chorando e pedindo água a Deus, todos os índios adultos, homens e mulheres, rapazes, cantando uma variante das preces da chuva:
Ai, ai , vestidos de pranto ai, ai, vestidos de vermelho teus filhos de orelhas furadas, te imploramos chorando tua água tua água Mande-a até nós Mande-a a teus pobres, tua gente mande-a ao povo que tu mesmo criaste.
Esta “prece das águas” contém dois elementos estruturais da cultura religiosa no todo iguais às concepções egípcias, judaicas ou mesopotâmicas. Em primeiro lugar, temos a proclamação segundo a qual os pedintes são o povo de deus, criaturas e filhos seus. Es te é o princípio das divindades étnicas, isto é, os deuses são sempre deuses de um povo e exclusivos dele. Em segundo lugar, os deuses dos povos do império i nca já haviam evoluído para formas humanas, antropomórficas. Este modo de concepção e de representação da divindade, que certamente indica um grau avançado de c ivilização, permite afirmar a filiação divina dos seres humanos sob a variante pai-filho na qual, de um lado, é possível pedir ao Deuspai favores, bênçãos, dádivas e, de outro, o Deus-pai exigi r de seus filhos dádivas, sacrifícios, preces, penitências, reparações pelas ofensas. A “prece das águas” toma então pleno sentido: “Manda até nós (a água), mande-a a teus pobres, tua gente, mande-a a teu povo que tu mesmo criaste”. 15 6
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g) Divisão social do tra balho O texto nos dá aqui uma visão muito ampla da divisão social do trabalho e de suas correspondentes profissões, com seus deveres e, sobretudo, a imposição de uma disciplina e zelo pelo e no trabalho, combater a preguiça e a ociosidade. Exorta para que nunca faltem os profissionais necessários à produção múltipla dos bens de que a sociedade necessita. – que todos os oficiais (os que exercem os of ícios) não sejam ociosos e preguiçosos; que todos os que exercem cargos para o bem comum: governadores, pontífices, sacerdotes e senhores grandes que mandam a terra (sic); os que são artífices como pintores, que pintam paredes ou vasos, decoradores, e oficiais sábios ; os que são carpinteiros, pedreiros, oleiros, artesãos da prata, bordadores e artesãos da seda, lavradores, pastores, tecelões, sapateiros,... padeiras, cozinheiras, mordomos, encarregados dos depósitos dos bens comuns (da comunidade), administradores, escrivães de quipos, de c ordel, cantores e músi cos, dançarinos, flautistas e guerreiros. Que (nunca) faltem aos ditos oficiais neste reino porque senão serão castigados por preguiçosos e ladrões; h) Organização do sistema alimentar do império para que os a limentos sejam abundantes Podemos entrever aqui quais eram as bases alimentares da população, e que cuidados tomar para que os alimentos se conservem e co mo se deve prover os alimentos para os pobres e desvalidos da comunidade. – e que haja abundância de comida no reino; e que se semeiam muitíssimo milho e batatas e ocas (tubérculo) e que façam a desidratação dos diversos tipos de batatas, e que sequem bem o milho e a quinoa, o ullaco e a masua (tubérculos), todas as comidas, inclusive sequem as ervas aquáticas para que tenham o que comer durante o ano; que semeiem as roças da comunidade com milho, batatas, pimenta e verduras, algodão, flor coxan e outras folhas para delas extrair tintas para tingir tecidos finos e comuns e que prestem contas disso e se os corregedores não o fizerem, que sejam crue lmente castigados. i) Fiscalização periódica da produção Recomenda-se que os fiscais façam duas visitas por ano às comunidades e às famílias a fim de inspecionar a produção: 157
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– que todas as casas, vestes, panelas, a produção que realizaram o u a criação de coelhos e cada roça seja visitada duas vezes por ano (Ayala, 1987, p. 176-180). Embora no conjunto da obra da qual retiro este sofisticado e abrangente corpo de leis e ordenações contenha inúmeras outras informações que ampliam e detalham estas ordenações, elas são suficientes para nos dar uma idéia de como o império inca pôde impor, à diversidade dos povos que o constituía, um conjunto de regras que, em boa medida, reforçam os poderes locais exercidos pelos senhores étnic os, bem como regras comuns abrangentes de todos os aspectos fundamentais das relações s ociais. É certamente uma peça marcante das civilizações que se des envolveram ao longo da cordilheira dos Andes e é p erfeitamente equiparável ao Código de Hamurabi, à codificação judaica da Torá ou da “confissão negativa” dos egípcios (Belato, 2008a, p. 46-63).
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