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Marchionni, Antonio - A Arte do do Bom
Antonio Marchionni
Ética
A arte do Bom
pontifícia universidade católica
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Marchionni, Marchionni, Antonio - A Arte do Bom
de são paulo 2004
Índice Primeira parte PRESSUPOSTOS DA ÉTICA A arte do Bom O Bom, o Belo, o Verdadeiro A Ética torna bom o operante e o operado Ética e Moral Estudo e prática do Bom O Bom que salva Os Fundamentos da Ética A Ética e Absoluto O Absoluto é aceito por um ato de fé A procura do Absoluto Quais e quantos os Absolutos? O Absoluto é Deus? Existem algumas verdades, acredite você ou não Absoluto e Visão de Mundo Destino ou Destinação? Deus é antropomórfico ou o Homem é teomórfico? Ética e Metafísica A metafísica é uma fundação Quando o discurso sobre Ética é casa sem fundações A expulsão dos sábios pela hybris (prepotência) dos jornalistas Exemplos de metafísicas A recuperação do Ser O que é o Bom? O Bom “em si” das filosofias espiritualistas e religiosas O Bom “individual e consensual” das filosofias materialistas Como conhecer o Bom? 1o e 2o grau do conhecimento: senso comum e percepções sensíveis 3o grau do conhecimento: a razão científica 4o grau do conhecimento: o intelecto
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Marchionni, Antonio - A Arte do Bom A Paz como efeito do 3o e 4o grau do conhecimento
Quem decide o Bem e o Mal? Heteronomia moral e autonomia moral Heteronomia moral: quem como Deus? Autonomia moral: a divindade do homem é o próprio homem A natureza humana: mutável ou estável? O Homem é um rabisco na areia? Ou é eterno? A natureza humana livre A mutabilidade humana. O Devir perene A imutabilidade humana. O Mistério perene Opostos éticos inconciliáveis Distinguir-se para unir-se Valores e Virtudes Os valores são metas As virtudes são ações Moral e Nação A Moral é o ato primeiro da Nação O progresso social da Nação depende de sua mentalidade moral Coesão moral, coesão social e governabilidade Uma Nação sem valores é um povo violento Quem é responsável pela coesão moral da Nação? O papel do Intelectual laico e religioso na Universidade e na Religião Razão e Religião são o começo da Nação Um poderoso sistema público de Televisão Fundamento Cósmico da Ética O Bom é a Natureza: viva segundo a natureza! A Metafísica cósmico-espiritualista. A Natureza mãe e mestra O Logos da natureza e o Logos do homem Ética estóica Ética dos cínicos Antístenes, Diógenes Spinoza Hegel Fundamento Religioso da Ética O Bom é Deus: revista-se da Divindade! A metafísica da Religião Revestir-se da Divindade E Deus disse: é muito bom!
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Marchionni, Antonio - A Arte do Bom O mal e a vitória sobre ele Libertar-se do supérfluo A arte como reverberações do eterno A Vida acima de tudo A Ética do Trabalho. O trabalho como sinergia com Deus, serviço ao próximo, aperfeiçoamento de si Creio porque é absurdo A Ética do Sinai
Fundamento racionalista e/ou materialista da Ética O Bom é a Liberdade: seja o projeto de si mesmo! Por que a expressão “Racionalismo e/ou Materialismo” Metafísica do Materialismo Por que algumas Éticas se definem modernas Quando tudo começou Éticas modernas: novidade ou repetição? Ética do Dever Kant. O Bom é o Dever: podes, deves!
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A Metafísica racionalista e não-materialista de Kant 84 A Razão Pura 85 A Razão Prática e o Imperativo Categórico 86 Liberdade, Deus, Imortalidade 87 Pensamento fraco e pensamento forte 88 Leis físicas e Deveres morais. O céu estrelado sobre mim, a lei moral dentro de mim 89 Ética do Trabalho Marx. O Bom é o trabalho livre e associado 91 As Éticas religiosas e materialistas do Trabalho Metafísica racionalista e materialista de Marx Um jovem inteligente O fato que fez nascer o comunismo Conceito Marxista de Homem Trabalho alienado versus trabalho humano A liberdade Do trabalho humanizado a uma sociedade humana Ética niilista: Nietzsche. O Bom é Zaratustra! Sartre: O Bom é o nada! Metafísica racionalista e materialista de Nietzsche e dos existencialistas Deus está morto A vida é um absurdo num mundo sem saída Zaratustra: refaçamos todos os valores!
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Ética da responsabilidade (ecológica) Jonas. O Bom é a Vida do Planeta A metafísica racionalista e não-materialista de Jonas O ecopensamento Uma Ética em prol das gerações futuras A natureza subjugada O grito Ética do Discurso Aple, Habermas. O Bom é o consenso Metafísica da Ética da Linguagem ou do Consenso O manifesto científico do Círculo de Viena Separação de Ser e Valor Do fato vem a lei ou da lei vem o fato? Ética do Discurso Éticas do Resultado Utilitarismo: o Bom é o útil e o alegre Metafísica racionalista e materialista da Ética do Resultado Ética Utilitarista Ética da Alegria Ética da Felicidade Ética da Justiça Rawls. O Bom é a justiça nas diferenças
102 102 103 104 105 106 107 107 108 109 109 110 112 112 113 114 115 117
Metafísica racionalista e não-materialista de Rawls: é possível tornar justa uma sociedade liberal? 117 A Posição Original (original position) 119 O realismo de Rawls e as críticas contra ele 120 Ética dos Negócios O Bom é a responsabilidade social da empresa
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Perigo das Éticas Aplicadas Duas visões da Empresa Duas visões da Ética nos Negócios Tópicos de uma Ética nos Negócios A caridade começa em casa
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Bioética O Bom é a vida Temas de Bioética Manuseio de embriões Clonagem humana Matrimônio, aborto e sexo Eutanásia e pena de morte A lógica das Éticas
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Primeira parte
Pressupostos da Ética
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A arte do Bom Ethica est ars bonum faciens operatum et operantem A Ética é a arte que torna bom o operado e o operante (Autor medieval, 1150)
A Ética é a arte do Bom. É ciência e prática do Bom. É conhecimento e ação. O que é o Bom? Para alguns é Deus Criador e todas as coisas que se parecem com Ele. Para outros é a Natureza habitada por um Espírito e todas as coisas que se sintonizam com Ela. Para outros é a Liberdade do Homem e todas as coisas que levam a ela. O Bom traz à pessoa a felicidade, finalidade suprema da vida humana, chamada eudaimonía nos gregos. Realizar o Bom, para sentir-se bem e bom, é o objetivo da Ética. O Bom, o Belo, o Verdadeiro O Bom possui um estreito parentesco com o Belo e o Verdadeiro. O Bom, o Verdadeiro e o Belo são, na sabedoria dos milênios, os três adjetivos da Divindade. No Cristianismo, eles são os adjetivos da Trindade: é bom o Criador que é Pai amoroso, é verdadeiro o Filho que é Mente perspicaz, é belo o Espírito que é Fogo encantador. Por isso, as três disciplinas fundamentais do saber filosófico são: a Teoria do Conhecimento (estudo da Verdade), a Estética (estudo do Belo), a Ética (estudo do Bom). Os antigos, os medievais e os espiritualistas de hoje dizem que “o Verdadeiro, o Belo e o Bom se interpenetram nas coisas”, de forma a não poder existir um deles sem o outro. O Verdadeiro é tal se ao mesmo tempo é belo e bom, o Belo é tal se é também verdadeiro e bom, o Bom é tal se é belo e verdadeiro.
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Na escola ateniense de Platão, chamada Academia, ensinava-se que só mediante a aprendizagem do Bom e do Belo podia-se chegar à Verdade. E no frontão da Ópera de Frankfurt, cidade do humanista Goethe, está escrito, em letras clássicas enormes: “Ao Verdadeiro, ao Belo, ao Bom”. A Bondade está conexa à Beleza e à Verdade. O Bom está conexo também ao Amor . Pois o Bom se faz desejar, querer, possuir. Ele produz união. A pessoa que invade um ambiente com o perfume do Bom se faz querer. E as outras pessoas, invadidas por aquele Bom, também se fazem querer. Estabelece-se, assim, um círculo de união entre pessoas, dentro de um círculo maior, que é “o Amor que move o sol e as estrelas” (Dante Alighieri, último verso do Paraíso). A Ética realiza a Vida. Pois, engendrando o Amor, a Ética engendra a Vida. O Amor é Vida. Quem ama vive, assim como "quem não ama permanece na morte... e nós sabemos de termos passado da morte para a vida porque amamos os outros" (Novo Testamento, 1 a Carta de João). A Ética é um modo de organizar o dia para que a vida pessoal e social se torne plena. A Bondade é Verdade, Beleza, Amor, Vida. A Ética realiza a harmonia do Todo. A Ética torna bom o operante e o operado A Ética torna bom aquilo que é feito. E assim, mediante ações boas, a casa colora-se de Bom, o trabalho ilumina-se de Bom, a sociedade emprenha-se de Bom. O Bom é difusivo de si, invadindo e atraindo pessoas, animais e coisas. Uma sociedade ética é um mar de Bom, e nela o cidadão navega como peixe vivaz em água cristalina. A Ética torna boa a pessoa que faz ações boas. Assim, realizando atos bons, a pessoa realiza a si mesma como pessoa boa, cuja presença faz bem aos circunstantes, à semelhança do grãozinho de mostarda da parábola evangélica, o qual é a menor entre as sementes, mas cresce e se torna arbusto, e entre suas folhas os pássaros do céu aninham-se gorjeando. Ética e Moral A Ética, do grego éthos, é um hábito adquirido com esforço e repetição, um vestido da pessoa, um estilo de pensar e agir, um modo de ver e habitar este mundo (éthos, além de habitude, significa habitação). A Ética chama-se também Moral, do latim mos, que significa costume, caráter, valores e virtudes da tradição (mos maiorum, diziam os romanos
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na veneração aos ancestrais, costume dos maiores, dos antepassados). Alguns pensadores estabelecem uma diferença entre Ética e Moral. Para estes, a Ética estuda os princípios gerais do agir e a Moral o modo de traduzir tais princípios em ações do dia-a-dia. Outros pensadores, porém, afirmam que Ética e Moral são a mesma coisa. Com efeito, em cada ação moral está presente mentalmente o princípio geral que a norteia. Para eles, e para este livro, Ética e Moral indicam, ambas: o estudo de idéias boas a prática de ações boas
Estudo e prática do Bom A Ética é uma arte. É arte no sentido de disciplina escolar , quais eram antigamente e na Idade Média as sete artes liberais, que constituíam o programa de estudo nas escolas (gramática, retórica, oratória, geometria, aritmética, música, astronomia). Mas a Ética é arte outrossim no sentido de habilidade adquirida mediante atos repetidos, voltados, segundo Aristóteles, a progredir na imitação da perfeição divina. O pianista se torna artista e virtuoso após muita repetição da partitura. Sendo uma arte, isto é, disciplina escolar e aquisição de habilidades, a Ética requer estudo e prática. A Ética deve ser apreendida e estudada em verdadeiras escolas de ética, tanto quanto deve ser estudada qualquer disciplina do saber humano, como a matemática e o direito. Conhecemos, sim, alguns preceitos éticos gerais desde a nascença, sem estudo, por uma intuição da natureza humana. Os pensadores falam de um senso moral (moral sense), pelo qual julgamos moral o afeto, a amizade, a veracidade, e consideramos imoral a mentira, a ofensa, a ingratidão, o infanticídio. A sabedoria evangélica resume este senso moral numa máxima, que, sozinha, resolveria as questões éticas de todos os livros: “ama ao teu próximo como a ti mesmo", máxima que se traduz em: “não faças ao outro aquilo que não gostarias seja feito a ti mesmo”. Outros preceitos morais mais específicos, porém, devem ser apreendidos na escola moral, na leitura e na reflexão. Trata-se de desdobramentos numerosos dos princípios gerais, de finezas éticas não percebidas imediatamente, de aplicações por vezes delicadas dos preceitos gerais, de novos valores morais trazidos pelo evoluir da civilização, de regras a serem memorizadas.
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Além de serem aprendidos, os preceitos éticos devem ser praticados e traduzidos em ações quiçá difíceis. A prática requer treinamento, conselho, revisão, aperfeiçoamento, ajuda da comunidade, convivência com os mestres. O Bom que salva A espécie humana encontra-se, hoje como nunca, num ponto sem retorno: ou morre ou abraça o Bom. Sem falar das mortes em guerras tecnológicas e guerras moleculares da violência urbana, mortes de aborto e fome, mortes psicológicas na família por separação dos pais e revolta dos filhos, mortes culturais pela exaltação televisiva do instinto animalesco, a espécie humana pode morrer de destruição ambiental e nuclear . A herança do mal é a morte. Como se salvar da ferocidade humana, alimentada pela fantasia inesgotável? E ainda, nas últimas décadas, a humanidade vai experimentando uma rapidez alucinante na ciência e na cultura, rapidez que insinua precariedade, mudança, incerteza, individualismo, fluidez moral-social. Como evitar o desmanche daqueles valores mínimos estáveis, que protegem a natureza humana e a sociedade? Em terceiro lugar, a modernidade trouxe a liberdade total do indivíduo. A “modernidade” significa o homem livre-autônomo, deus de si mesmo, sem regras vindas de algo superior, anterior e exterior . A liberdade tornou-se o valor supremo, acima do Bem pessoal e comum. O discurso sobre o sentido da vida foi sepultado pelo interesse material e corporal do aqui e agora. Além disso, por longos milênios as idéias foram comunicadas aos homens nos livros de grandes autores e nos púlpitos das igrejas. Hoje, porém, a televisão e a Internet introduzem em nossa casa indivíduos de qualquer espécie, os quais afirmam livremente sentimentos, atos, pensamentos e alucinações. Como se salvar da geléia geral e da cultura do caos? Como liquidificar tantas opiniões e extrair delas o que interessa? Será o Bom a salvar a espécie humana. O Bom, o Belo, o Verdadeiro. Foi escrito: “A Verdade vos salvará” (João, 8). A Verdade, a Beleza, a Bondade. Os Fundamentos da Ética Existem três tipos básicos de Ética: a Ética religiosa, a Ética cósmica, a Ética materialista. Cada uma destas Éticas adota uma idéia central de Bom, que é o seu fundamento. A partir desta idéia central de Bom,
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determina-se quais são as práticas diárias que realizam aquele Bom. Observando a história dos homens, registram-se três idéias centrais ou paradigmas ou fundamentos ou modelos de Bom: o Bom é Deus Criador. o Bom é o Cosmo habitado pelo Espírito o Bom é o Homem soberano de si. Os que adotam Deus Criador como Bom acolhem as regras de comportamento dadas por Deus nos Livros Sagrados. Eles praticam ações que levam a pessoa a assemelhar-se ao Pai Perfeito. Esta é a Ética Religiosa dos fiéis das três Religiões do Livro, os quais crêem que o universo foi criado por Deus e se organizam ao redor de um Livro Revelado: Torá (Judaísmo), Bíblia (Cristianismo), Alcorão (Islamismo). Os que adotam o Cosmo habitado pelo Espírito como Bom seguem as regras de comportamento que fluem do Grande Todo e conhecidas na meditação ou no ensinamento do guru. Eles praticam ações que levam a pessoa a sintonizar-se com a “Alma do Cosmo”, segundo a expressão de Platão. Esta é a Ética Cósmica dos seguidores das filosofias cósmico-espiritualistas, os quais acreditam que há um Espírito dentro do Cosmo: Hinduísmo, Budismo, Taoísmo, Platonismo, Estoicismo, Spinoza, Hegel Os que adotam o Homem soberano de si como Bom escolhem as regras de comportamento que fluem da Razão Humana pelo exercício da Filosofia. Eles operam ações que levam a pessoa ao Gozo Estético e Social dos bens desta vida. Esta é a Ética Materialista dos adeptos das filosofias materialistas, os quais crêem que só existe a Matéria: Epicurismo, Positivismo, Marxismo, Niilismo, Freudismo, Existencialismo, Desconstrutivismo francês, Utilitarismo. Estabelecer uma idéia central de Bom significa estabelecer o Fundamento da Ética. Isto pode ser feito: mediante a fé auxiliada pela razão, nas religiões e nas filosofias cósmicas; mediante a razão, sozinha, nas filosofias materialistas. Estas três idéias de Bom, constituintes os Fundamentos da Ética, reluzem a nós na caminhada deste livro, como a estrela brilha na tempestade a orientar o navegante para águas tranquilas.
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A Ética e Absoluto Falar de Ética sem falar do Absoluto é estarmos perdidos na selva de tantas Teorias Éticas. O conceito de Bom está conexo ao conceito de Absoluto. O Absoluto é o Começo do existir de tudo. É a Origem do universo. É o Princípio, o Primeiro. É aquilo que depende de nada e do qual tudo depende. O Absoluto existe por si, Ab-solutus em latim, solto de qualquer outra coias, não sendo relativo a algo anterior ou superior. O Absoluto é aceito por um ato de fé O Absoluto não pode ser provado cientificamente, porque antes dele existe nada, nenhuma causa geradora, nenhuma relação de causa-efeito. Ele é o Princípio, e todo princípio primeiro não pode ser provado. Com efeito, diz Aristóteles, se um princípio primeiro devesse ser provado, ele exigiria uma argumentação anterior, e aí não seria mais princípio. O Absoluto é aceito por um ato de fé. Seja que se adote como princípio de tudo o Big bang, ou um Deus Criador, ou a Matéria habitada por um Espírito, tal aceitação não tem provas científicas. Ele é aceito, e basta. Para cada um deles há mil razões a favor, mil contra. Cada um de nós, consciente ou inconscientemente, possui um Absoluto, a partir do qual construimos convicções, discursos e práticas. Isto significa que todos nós, após termos adotado por fé um determinado Absoluto, formamos nossos conceitos de Deus-Homem-Ética-Morte. Toda Ética está ancorada num conceito de Absoluto. O conjunto dos conceitos de Absoluto-Deus-Homem-Ética-Morte chamase visão de mundo, que os alemães consagraram no termo Weltanschauung . Uma Filosofia nada mais é que uma visão de mundo. Há tantas visões de mundo e tantas filosofias, quantas as idéias de Absoluto.
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A procura do Absoluto Já os primeiros filósofos pré-socráticos gregos, a partir de 700 a.C., começaram a filosofar perguntando-se, antes de tudo, qual seria o elemento primordial do mundo, do qual todas as coisas derivam, princípio que eles chamavam arké. Alguns responderam que era a água, outros o infinito, outros o conjunto de terra-ar-água-fogo, outros um Ser-Em-Si, outros uma Mente Superior, outros a Matéria feita de átomos. Como se vê, “nada de novo sob o sol” (Eclesiastes, 1). As idéias atuais de Absoluto nada mais fazem, senão repetir os gregos. E os gregos nada mais fizeram, senão escrever em livros aquilo que os homens sempre se perguntaram e responderam, desde o Homo Sapiens, isto é, desde 50 mil anos antes da filosofia grega. Os gregos inauguraram a Era do Livro não por serem mais inteligentes, mas porque ao redor de 1200 a.C. os fenícios tinham inventado o alfabeto, engenhoca de consoantes e vocais, a qual permitia transpor para o papiro todos os sons fonéticos das palavras humanas. Anteriormente, desde 5000 a.C., já tínhamos uma escrita rudimentar, cuneiforme e hieroglífica, mas esta, com seus desenhos de passarinhos e casinhas, não permitia escrever livros. Somente o alfabeto possibilitou pôr no papel idéias e debates, e assim nasceu o livro, e com ele a filosofia grega. Antes do aparecimento do livro, porém, os homens pensavam, discutiam, filosofavam, namoravam, faziam contas, criavam família e dançavam. Em suma, a pergunta sobre o Princípio de tudo é a maior pergunta do homem, desde as cavernas até as nossas estações orbitais. Quais e quantos os Absolutos? Considerando o Absoluto como o elemento primeiro do universo, do qual tudo depende, ele dependendo de nada, há três possibilidades: o Absoluto é um Deus Criador , segundo as três Religiões do Livro: Judaísmo, Cristianismo, Islamismo. ⇒ Somente estas três Religiões afirmam a criação do mundo por Alguém. o Absoluto é a Natureza dotada de um Espírito, segundo as filosofias cósmico-espiritualistas: Hinduísmo, Budismo, Taoísmo, Platonismo, Estoicismo, Spinoza, Hegel. Estas filosofias espiritualistas negam a criação e afirmam que ⇒ o mundo é eterno, nele sempre coexistindo a Matéria e um Espírito.
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o Absoluto é a Matéria, segundo as filosofias materialistas: Epicurismo, Positivismo, Marxismo, Niilismo, Freudismo, Existencialismo, Desconstrutivismo francês. ⇒ As filosofias materialistas afirmam que só existe a Matéria, sem Espírito nem Criador. Alguns reduzem os Absolutos a dois, baseados nos termos transcendência (fora, antes do mundo) e imanência (dentro do mundo). Desta forma, o Absoluto das três Religiões, por estar como Criador fora e antes do mundo, é um Absoluto transcendente. O Absoluto das filosofias cósmicoespiritualista e das filosofias materialistas, por estar dentro da Matéria, é um Absoluto Imanente. Teríamos, portanto: um Absoluto Transcendente nas três Religiões um Absoluto Imanente nas filosofias cósmico-espiritualistas e nas filosofias materialistas Os cósmico-espiritualistas, porém, não se sentem confortáveis na companhia dos materialistas e, por outro lado, não gostam de serem considerados adeptos de uma Religião, preferindo sentir-se numa filosofia espiritualista. Por isso, neste livro adotaremos a divisão tripartida de Absoluto.
O Absoluto é Deus? O Absoluto é a idéia-força de cada visão de mundo. Tal Absoluto chamase também Deus, pois dirige e atrai para si todos os pensamentos e atos da pessoa. O Absoluto pode ser Algo ou Alguém. Se for Alguém, chama-se Deus em sentido estrito. Se for Algo, chama-se Deus em sentido amplo. Se for Alguém, o Absoluto chama-se Deus em sentido estrito, porque é um Ser que pensa, ama, dialoga, ou seja, é Pessoa. Estamos diante de um Absoluto-Pessoa ou Absoluto Pessoal . Isto se dá nas três Religiões do Livro, onde se invoca um Deus-Criador-Pai, que é théos em grego, donde a palavra Teísmo. Se for Algo, o Absoluto chama-se Deus em sentido amplo, pois não é Pessoa, mas sim o próprio mundo. Trata-se de um Absoluto Impessoal. Este Algo pode ser: ou o Grande Todo, como nas filosofias cósmicas, nas quais tudo ( pan) é Deus (théos), donde a palavra Panteísmo, ou a Matéria, como nas filosofias materialistas, nas quais tudo está submisso à Lei da Matéria, donde a palavra Materialismo.
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Juntando os termos de quanto dissemos até aqui, podemos formular esta ordem de idéias: Absoluto como Criador : Transcendente, Pessoal, Deus em sentido estrito, Teísmo (nas três Religiões do Livro) Absoluto como Natureza-Espírito: Imanente, Impessoal, Deus em sentido amplo, Panteísmo (nas filosofias cósmico-espiritualistas) Absoluto como Matéria: Imanente, Impessoal, Deus em sentido amplo, Materialismo (nas filosofias materialistas) Como se vê, a palavra Deus é pronunciada por bilhões de pessoas, mas em sentidos diferentes. Não é difícil constatar que todo ser humano, obrigatoriamente, cai numa destas três idéias de Absoluto/Deus. Mesmo quem diga “para mim existe o nada, o caos, o fractal”, ele está adotando o Nada ou a Matéria caótica como seu Absoluto/Deus. Teísmo, Panteísmo e Materialismo são três “religiões”. Como dissemos, cada um dos três Absolutos é aceito por fé. Quem pode provar que o início de tudo foi o Big-bang ou o Criador? Neste sentido, todos somos crentes num Deus, como afirma o filósofo Jean Guitton em Meu Testamento Filosófico. Temos, assim, uma religião teísta, uma religião panteísta, uma religião materialista. E, ao mesmo tempo, todos somos ateus: o teísta é ateu do Deus do panteísmo e do materialismo, o panteísta é ateu do Deus do teísmo e do materialismo, o materialista é ateu do Deus do teísmo e do panteísmo.
Existem algumas verdades, acredite você ou não Dir-se-á: não é dogmático demais achar que existem somente três Absolutos possíveis? Não pode, cada ser humano, tatear e escolher o seu Absoluto sob medida? Na verdade, os Absolutos possíveis são os três acima indicados, queiramos ou não, mesmo que os vivenciemos sob incontáveis nuances, interpretações, dúvidas e oscilações. Mas, a incerteza existencial não dispensa a clareza conceitual. É possível, sim, que o pobre homem mortal flutue entre um e outro Absoluto ou misture todos eles, dependendo do estado de espírito e da idade da vida. Pode nos ocorrer de pegar um pouco daqui e um pouco dali, fazer uma saladinha a gosto, mas a receita do sujeito não altera a essência dos objetos. Às vezes preferimos não pensar de forma rigorosa, para não ter que responder de forma clara. Somos ziguezagueantes à procura da Verdade. Nietsche diria que “a verdade é curva”. A dúvida, quando não é o pretexto do preguiçoso, é a noite tormentosa do sensato. Alguém disse
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que a nossa é vida de caranguejo: dois passos à frente, um atrás e outro de lado. Porém, cada um dos três Absolutos exclui na essência os outros dois. Se você crê que o início de tudo é Deus Criador, não pode afirmar que é a Matéria ou a Natureza-Espírito. Se você crê que o início de tudo é a Natureza-Espírito, nega que seja a Matéria ou um Deus Criador. Se você crê que o início de tudo foi o big-bang da Matéria, exclui que seja o Deus das Religiões ou o Prana do budismo. E se você diz que tudo é um bel Nada, está dizendo nada. Absoluto e Visão de Mundo Uma filosofia, como dissemos, nada mais é que uma visão de mundo, ou seja, um fio lógico que liga os conceitos de: Absoluto-Deus-Homem Ética-Morte. As várias Filosofias e, conseqüentemente, as várias Éticas, se distinguem entre si pelo Absoluto que escolheram. Alguns materialistas modernos, acreditando existir só a Matéria como Absoluto, afirmam que existe apenas uma Filosofia, a que estuda a linguagem dos homens e chama-se Filosofia da Linguagem ou Filosofia Analítica ou Filosofia da Ciência. Com efeito, uma vez excluída a existência de Deus Criador ou do Espírito Cósmico, só resta estudar o Homem e especificamente aquela parte do Homem, que interessa à Filosofia, ou seja, as regras do raciocínio válido, expresso na linguagem. A Filosofia se resumiria ao estudo da Lógica necessária a fazer Ciência. Por isso, dizem que a Filosofia serve unicamente para aprender a pensar. Bilhões de pessoas, porém, continuam acreditando que Deus existe e é o Absoluto. Para estas pessoas, a Filosofia serve a conhecer Deus, o Homem, qual o significado da vida e da morte, quais as melhores ações para chegar à eternidade. Muitos dizem: sempre quis estudar filosofia. Sim, mas qual? Há filosofias materialistas, há filosofias cósmico-espiritualistas, há filosofias religiosas. Qual destas filosofias lhe interessa? Qual delas é ensinada numa determinada Universidade? Há filosofias que levam ao desespero, para as quais “a vida é uma existência trágica”. Há filosofias que levam à esperança, para as quais “a vida é uma existência trágica, mas com final feliz”. Aqui vão, resumidos, os três Absolutos possíveis, com suas relativas visões de Deus-Homem-Ética-Morte.
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1. O Absoluto do Materialismo e respectiva visão de mundo: Positivismo, Racionalismo Científico, Marxismo, Freudismo, Existencialismo, Niilismo, Desconstrutivismo francês:
O Absoluto, o início de tudo, é a Matéria (Big-bang, DNA, molécula inicial, etc). Nada existe fora da matéria. A Matéria é o princípio e o fim, o alfa e o ômega. Tudo é matéria, donde a palavra Materialismo. Deus não existe, é uma criação do homem, quando este não realizou plenamente a si mesmo. ⇒A palavra Deus, quando é utilizada pelo materialista, significa o devir-da-matéria ou um ideal de vida, como a utopia de uma sociedade comunitária ou a busca de uma descoberta científica, ideal que atrai o homem quase fosse a força de um Deus. O Homem é apenas matéria. O pensamento humano ou “alma” não passa de uma função das células nervosas cerebrais. O homem é a divindade de si mesmo (Feuerbach, Marx), um ser que tateia ceticamente na procura da verdade (Hume), um sujeito movido pela vontade de poder (Nietzsche), um esforço de adaptação ao ambiente pela libido (Freud), uma paixão inútil e absurda (Sartre), um existente que vai para o nada (Heidegger). A Ética é o esforço autônomo e solitário da razão humana na procura de princípios que possibilitem ao indivíduo de conviver com outros. O julgamento ético das ações é feito na perspectiva de uma vida humana que começa no útero da mãe e acaba na morte. A Morte é uma porta que se fecha e após ela, para o homem, há o nada.
2. O Absoluto do Espiritualismo Cósmico e respectiva visão de mundo: Hinduísmo, Budismo, Taoísmo, Xintoísmo, Platão, Estoicismo, Spinoza, Hegel
O Absoluto, o início de tudo, é a Matéria habitada por um Espírito ou Razão ou Logos. O Cosmo é um animal vivo, composto de Matéria e Espírito. Tudo ( pan) é Deus (théos), donde a palavra Panteísmo. Deus é algo, é o próprio Cosmo Inteligente e Racional, é a Lei lógica da Natureza. Trata-se de um Deus-mundo, um Grande Todo, feito de espírito e matéria. É um Deus em sentido amplo. Os nomes desta Natureza material-espiritual são vários: Brahma (hinduísmo),
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Nirvana (budismo), Tao (taoísmo), Logos (estoicismo), Mundo das Idéias (Platão), Substância (Spinoza), Espírito Absoluto (Hegel, Scheler) Esta Razão Cósmica, todavia, nos orientais é vista como algo espiritual e cultuado em rituais, mas nos estóicos, em Spinoza e em Hegel é algo mais material, é a própria Lei do universo, pensada filosoficamente, sem rituais. O Homem é matéria e espírito dentro de uma Natureza vivente, ou seja, o corpo do homem faz parte da matéria e a mente do homem é uma porção do Grande Espírito ou Alma do Mundo. A Ética é o esforço da mente humana, pela meditação contemplativa, de sintonizar-se com a Razão do Mundo, assumindo sua Lógica operacional. O julgamento ético das ações é feito na perspectiva de uma vida que nasce, palpita e se perpetua dentro do grande Espírito do Mundo. A Morte é o momento em que a matéria e o espírito do homem se diluem no grande Espírito da Matéria, como o cubo de gelo se dilui na água do oceano.
3. O Absoluto das Três Religiões e respectiva visão de mundo: Judaísmo, Cristianismo, Islamismo:
O Absoluto, início de tudo, é Deus Criador. Ele criou o universo do nada, mediante a palavra: “Faça-se”. Tudo vem de Deus e tudo volta para Deus, que é, em grego, théos. Donde a palavra Teísmo. Deus é Alguém, uma Pessoa que pensa, observa, acompanha e ama. Como genitor do mundo e dos homens, ele é Pai: “Pai nosso”. O Homem é corpo e alma num mundo criado por Deus, ou seja, o homem é filho de um Pai, que o fez a sua imagem e o destina a voltar para Ele na eternidade. A Ética é o diálogo livre e obediente com o Pai-Criador, cujo desejo está posto no Livro Sagrado. O julgamento ético das ações é feito na perspectiva de uma vida que foi pensada na Mente Eterna de Deus e vai até a eternidade A Morte é uma porta que se abre para a eternidade, onde o homem viverá na comunidade do Pai e dos bons.
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Destino ou Destinação? O Destino é um conceito próprio do panteísmo e do materialismo. O Destino é a lei do cosmo e da matéria. Lei necessária, absoluta, sem apelação. Tudo é sujeito a ela. Até Zeus, nos gregos, é sujeito ao Destino. O homem, como qualquer outro elemento do universo, não tem como fugir à lei do cosmo. A única liberdade possível é a liberdade psicológica e moral de escolher dentro da lei férrea da matéria. A Ética consiste na consonância com a lei do cosmo. A Destinação é o conceito das três Religiões do Livro. O homem tem uma destinação eterna, para a qual ele se dirige. Na escolha desta destinação, ele é totalmente livre. Ele pode escolher uma destinação eterna com Deus ou uma destinação eterna sem Deus. Nem Deus o obriga a uma ou outra. Depende exclusivamente dele. Não há lei alguma da matéria, que o escravize. O homem é, sim, criado, mas é também criador de sua destinação. Ele tem toda liberdade de opor-ser a Deus. Ele é livre, de uma liberdade não apenas psicológica, mas uma liberdade metafísica. A Ética consiste no exercício desta liberdade total. Deus é antropomórfico ou o Homem é teomórfico? Morfé significa forma, ántropos significa homem e théos significa Deus. Antropo-mórfico significa em forma de homem. Teo-mórfico significa em forma de Deus. As filosofias materialistas afirmam que qualquer idéia ou obra do homem é antropomórfica, fruto da mente ou fantasia ou desejo ou sofrimento ou medo do homem. Disto teriam nascido Deus, a religião, o além, a imortalidade, o prêmio eterno. Deus é antropomórfico. Mas, e se o Homem fosse teomórfico? Os religiosos afirmam que tudo foi criado por uma Mente Divina. Por isso, o universo é teomórfico. O homem é teomórfico, porque possui feições divinas, da mesma forma que o filho do ser humano possui feições humanas e o filho do cavalo possui feições equinas. Quando, portanto, o homem pensa Deus, a religião e a imortalidade da alma, pensa à maneira de Deus, isto é, com a razão (logos) de Deus (théos). O homem é um ser teo-lógico. Quem tem razão? Mil razões a favor, mil contra. Esta é, no homem, a encruzilhada, a decisão das decisões: considerar-se antropomórfico ou teomórfico. Lou Salomé, a mulher com que Nietzsche não conseguiu casar, escreveu uma biografia do mesmo, na qual relata que o filósofo, no
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último período da vida, foi tomado por um trágico conflito entre “ter necessidade de Deus e ter que negá-lo”. Tal encruzilhada, na qual, cedo ou tarde, cada um de nós deverá tomar uma decisão, é assim descrita pelo poeta norte-americano Robert Frost (in The road not taken): Two roads diverged in a wood, and I..... I took the less travelled one, And that has made all the difference. Duas vias bifurcaram-se na selva e eu... Eu peguei aquela menos percorrida, E isto tem feito toda a diferença.
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Ética e Metafísica Ao falar de Absoluto, no capítulo anterior, estávamos em pleno território metafísico. O Absoluto é o princípio primeiro e metafísico de qualquer filosofia. Falando de Ética, é fundamental ter alguma idéia de metafísica.. Dizíamos que todo princípio primeiro não pode ser provado cientificamente, pois, para ser provado, precisaria de uma argumentação anterior a ele, mas aí não seria mais princípio. Ele é intuído e aceito por fé ou crença. Ele, por não ser provado fisicamente, é metafísico. O grego metá fisicá significa para além das coisas físicas. É metafísico tudo aquilo que não é físico-científico. Quando você afirma, por exemplo, que “todo ser humano tem igual dignidade”, está afirmando um princípio metafísico, que não pode ser provado cientificamente. Da mesma forma, quando você diz que “a Matéria é o início de tudo”, qual certeza científica você tem de que no começo de tudo só existiu a matéria? Nenhuma. Você crê que foi a matéria. Alguém disse que é mais fácil provar a existência de Deus do que provar o materialismo. O mesmo diga-se dos princípios de que “o todo é maior que a parte” ou “A não pode ser, ao mesmo tempo, igual e diferente de B” ou “todos são iguais perante a lei” ou “existe somente aquilo que a ciência pode provar” ou “a libido é a base da psique humana”. Tais princípios são afirmados por uma certa intuição da natureza humana, e não há como prová-los cientificamente. O famoso filósofo da ciência Karl Popper (1902-1994), judeu vienense, diz que o racionalismo científico é "uma irracional fé na razão" e que a atitude cientifica “se baseia numa decisão irracional, numa fé na razão" (em A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, 1945). Materialistas como o agnóstico Heidegger e o marxista Lukács defendem a utilização da palavra metafísica, quando se quer indicar o pressuposto de qualquer ciência humana ou exata. A partir do Iluminismo de 1750, quando se achou que a razão científica seria a salvação da humanidade, a palavra metafísica ficou amaldiçoada, porque era identificada com as realidades da fé e com a abstração
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filosófica greco-medieval. Hoje, porém, esta palavra é resgatada também nas ciências, quando se quer indicar o modelo ou princípio primordial , a partir do qual se quer construir qualquer saber. A Metafísica, portanto, pode significar: o princípio primeiríssimo de onde se originou o universo; os princípios primeiros dos quais partem as várias ciências humanas e exatas. a leitura profunda de cada coisa para além dos aspectos físicos. A metafísica, atividade da intuição e da emoção, olhar profundo por trás da mutabilidade das coisas, produz o milagre de "passar da multiplicidade das sensações para a unidade organizada pelo raciocínio" (Platão).
A metafísica é uma fundação A metafísica é como a fundação de uma casa. Toda casa está assentada sobre uma fundação. Ao olhar uma casa, você não vê a fundação, mas ela existe, e sem ela o resto da casa não existiria. A fundação está pra lá (metá) daquilo que aparece aos olhos físicos (fisiká). Pense, agora, que cada teoria ou discurso ou livro seja uma casa. Este discurso ou livro deve ter uma fundação, que pode não aparecer imediatamente ao leitor, mas existe. As três visões de Absoluto do capítulo anterior representam o sedimento mais fundo e mais metafísico de qualquer maneira de pensar . Os alemães usam o termo Ur-model , isto é, modelo ou paradigma primordial. Acima dele colocamos outros estratos de convicções e comportamentos, e assim por diante, até chegarmos àquilo que somos visivelmente. Quando o discurso sobre Ética é casa sem fundações Nos últimos tempos, a Ética virou uma Fênix Árabe, ave lendária, que renascia de suas cinzas. Dela todos falam, mas ninguém sabe onde está e como é. A vertiginosa erupção de debates, livros e campanhas sobre Ética simplesmente denuncia uma perda: as comunidades dos homens não mais possuem uma regra das ações. O pluralismo cultural e o crescimento das áreas do saber, em tempos atuais, deixaram as pessoas sem aquele referencial unificador de inspiração e de comportamento, que historicamente foi exercido pelas Religiões e pela Metafísica Filosófica. Mas a falta de um paradigma ético ameaça a existência. Por isso, quando
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desaparece a confiança nas grandes narrações religiosas e metafísicas, corre-se ao discurso ético, como os náufragos à tábua de salvação, sob o signo da confusão e do desespero. Esta confusão deve-se ao fato de que se fala muito, mas apenas sobre os aspectos secundários, derivados e operacionais da Ética. Pouco se diz sobre a essência e o fim do ato humano, sobre a fonte da qual jorram os princípios éticos, sobre os Fundamentos da Ética, seu s Absolutos, seus princípios metafísicos . Psicanalistas, antropólogos, historiadores, biólogos, neorolinguistas e juristas informam sobre tudo o que intervém na dinâmica do ato humano: estímulo, resposta, desejo, impulso, motivação, interesse, individualismo, sociabilidade, instinto, educação, vontade, liberdade, responsabilidade, historicidade, mutabilidade, provisoriedade, prazerosidade. Inventam-se novas Éticas: Ética e Profissão, Ética na Sociedade, Bioética, Ética da Família, Ética na Política, Ética nos Negócios. Todavia, após tanta informação, o leitor não sabe o que a Ética é e para onde o leva.. E assim, sem fundamento, construção sobre areia, a moda ética é levada pelo vento, como voou pelos ares a casa de palha do porquinho apressado, quando veio o lobo com seu enorme sopro. A expulsão dos sábios pela hybris (prepotência) dos jornalistas A incerteza moderna sobre ética deve-se também ao banimento dos sábios como articuladores dos temas éticos. Até 1900 a humanidade era dirigida por grandes sistemas filosóficos e religiosos, no Oriente como no Ocidente. O Cristianismo, o Idealismo Alemão, o Positivismo, o Jusnaturalismo e o Marxismo constituíam imensas agências de elaboração, discussão, transmissão e ensino dos valores humanos. Os próprios pensadores a-religiosos viviam na placenta de nações cristãs. Disso resultava um conjunto integrado de inspirações e convicções normativas, quase um código comum aos povos e aos indivíduos. Estes princípios de comportamento, ou valores, eram transmitidos pelo padre, pelo avô, pelo papai e pela mamãe, pelos professores, pelo prefeito, pelo farmacêutico: pessoas que não iriam enganar as crianças. Quando, porém, começaram a aparecer, desde inícios de 1900, as filosofias do indivíduo, do relativismo, do solipsismo e do niilismo, as sociedades humanas começaram a ficar órfãs de códigos éticos comuns. O quadro agravou-se depois que Guilherme Marconi inventou o rádio, transmitindo as ondas sonoras para além do oceano em 1901 e, desde
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Roma, acendendo as luzes do Corcovado, no Rio, em 1931. Seguiu-se a televisão. Pelas ondas hertzianas rádios-televisivas, pessoas desconhecidas entram em nossas casas. Não são filósofos nem teólogos nem sábios. São jornalistas, profissionais do provisório, ávidos do cheiro do escândalo como urubus atraídos pela carniça. Eles formam, em companhia de poucos psicanalistas, economistas, figuras do espetáculo, sexólogos e políticos de carreira, a casta dos novos pontífices incensuráveis da humanidade, sempre as mesmas caras, décadas a fio entrando em nossos lares, animando o pão e o circo das multidões. Eles decidem o que falar e não falar, o que mostrar e não mostrar, o que fazer e não fazer, o que discutir e não discutir, o bem e o mal. O que você espera disso, a Paris ilustrada? Nos debates de Ética nunca deveria faltar a presença de quem possa esclarecer o público sobre o Absoluto e os dados metafísicos, que estão na base dos vários debatedores. E o leitor deveria desconfiar de um livro de ética, no qual não esteja indicado o princípio metafísico de partida do autor, sob pena de o leitor inocente ficar seduzido por belas frases, como passarinho que cai na boca da cobra. Exemplos de metafísicas Da mesma forma que existem três Absolutos, vistos no capítulo anterior, também existem três metafísicas à base das várias Éticas: a materialista, a cósmica, a religiosa. Veremos isto detidamente mais adiante, ao falarmos dos Fundamentos cósmicos, religiosos e materialistas da Ética. Aqui, como petisco ao leitor, vão alguns exemplos: Metafísica religiosa. O ponto metafísico de partida é a existência de um Deus Criador e tudo é encarado com os olhos de Deus, manifestado no Livro Sagrado. Por exemplo, a vida é sagrada porque foi produzida por Deus que a sagrou e é, portanto, intocável seja quando é embrião que quando é adulta. Metafísica cósmico-espiritualista. O elemento basilar do universo é o Lógos , ou seja, uma Inteligência ou Idéia ou Espírito ou Razão, que vive e respira na Matéria. Este Espírito vive e se manifesta na mente dos homens, que são chamados a realizar tal Razão Cósmica no decorrer da história, mediante ações e instituições racionais. Por exemplo, organizar o Estado e as instituições públicas significa realizar entre os homens a Idéia ou Lógica Cósmica. Metafísicas materialistas. O elemento metafísico de partida é a Matéria, e nela os homens, em perpétuo devir.. ⇒Metafísica marxista. Um dos elementos basilares do devir
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histórico é o Trabalho, que pode ser alienado ou humano. É boa a sociedade ou empresa, na qual o trabalho assume uma dimensão humana. ⇒Metafísica utilitarista. O princípio metafísico de partida é um dado futuro: o resultado ou útil . É boa a ação ou empresa que terá efeitos positivos. ⇒Metafísica psicanalista. O elemento metafísico da psicanálise é a libido, que não é apenas genitalidade, mas um ímpeto e esforço da pessoa em sua adaptação ao ambiente. A partir deste princípio a psicanálise julga o homem, a religião, o existir, o sexo, a culpa, o matrimônio. ⇒Metafísica positivista. O dado de partida é o fato observado nas leis naturais que governam o mundo e que dão a ordem na qual acontece o progresso: Ordem e Progresso. Fora do fato científico, tudo é superstição. ⇒Metafísica da comunicação e do consenso. O evento basilar da comunidade humana é o discurso, pelo qual se pode chegar a um acordo ético sobre o que interessa a todos. ⇒Metafísica niilista. A liberdade é livre de qualquer limite. Inexiste qualquer norma anterior ou interior ou superior . Compete ao homem fazer o que bem quiser. A recuperação do Ser Heidegger (1889-1976) disse que o drama da era científica, era da especialização, é o esquecimento do ser, ou seja, a perda do costume de contemplar as coisas em sua raiz mais funda, metafisicamente, no conjunto, por trás das aparências, por trás da vitrina, por trás da utilidade imediata, para além da instintividade do aqui e agora. Cabe à Metafísica Filosófica e Teológica ir elaborando a compreensão profunda da existência humana, visão capaz de dar fundamento, motivação, alento e norte às ações do dia. No romance Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo , transposto nas telas pela Walt Disney com o título O Corcunda de Notre-Dame, a jovem cigana Esmeralda, símbolo da interioridade e da intuição metafísica, resolve a crise: ela desmonta com a virtude a crueldade do poder político encarnado no juiz Frollo, ela resolve pelo amor apaixonado o dilema do capitão Febo, que se debatia entre aliar-se ao poder e aliar-se ao povo, ela dá ao corcunda Quasímodo razões de viver, maiores que seu defeito físico. Esta é a metafísica:
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É a mulher, a contemplação, a ternura mental. É Beatriz, o estético divino, que leva Dante Alighieri a ver Deus na Divina Comédia. É Maria , “sua mãe, que guardava todas estas coisas no seu coração" (Lucas 2, 51). É Esmeralda, que vê Quasímodo para além do aspecto físico, metá tá fisicá, para além da corcunda.
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O que é o Bom? No começo dissemos que a Ética é a arte do Bom. No Capítulo 2 fizemos a distinção entre os três possíveis Absolutos e as três possíveis visões de mundo e de Ética: 1) a materialista, 2) a cósmico-espiritualista, 3) a religiosa. No capítulo 3 vimos como toda ciência e toda Ética parte da aceitação de um Absoluto, e esta é uma atitude metafísica. Agora fica mais fácil pôr ordem no conceito de Bom. As filosofias cósmico-espiritualistas e as religiosas estão próximas entre si na adoção do conceito de Bom. Elas afirmam que o mundo é criatura de uma Mente Superior, que é Boa e transferiu seu Bom para todas as criaturas. O Bom, portanto, é algo que existe em si e está presente em Deus, no cosmo, nas coisas, nas pessoas. Existe o Bom e existem coisas boas. Em Aristóteles e Tomás de Aquino “o Ser e o Bom se interpenetram”. As filosofias materialistas, ao contrário, consideram que o Bom não existe em si. Os elementos da matéria e o homem são coisas, nada mais que coisas neutras. É o sujeito-homem que atribui a algo o termo bom, quando isto corresponde ao seu interesse ou aperfeiçoamento. O Bom é algo convencionado, combinado entre as pessoas. Temos, assim, duas posturas sobre o Bom: o Bom existe em si, está nos objetos (objetivismo ético) o Bom não existe em si, está na decisão do sujeto-homem (subjetivismo ético) As consequências são enormes em Ética. No Objetivismo Ético a lei moral brota do mundo dos objetos materiais e divinos. No Subjetivismo Ético a norma moral brota da mente do sujeito-homem. No primeiro caso o homem descobre a norma moral, no segundo caso o homem cria a norma moral.
O Bom “em si” das filosofias espiritualistas e religiosas O Bom em si, visto pelas visões cósmico-espiritualistas e religiosas do
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mundo, é assim resumido na Alegoria da Caverna de Platão: Um prisioneiro, juntamente com outros, estava acorrentado nas pernas e no pescoço desde a infância na obscuridade de uma caverna, e só podia olhar para frente, em direção à parede de fundo. Uma luz, que vinha da entrada, projetava nesta parede a sombra dos próprios prisioneiros e também as sombras de quantos passavam em frente à entrada, os quais carregavam objetos de todo tipo e conversavam entre si. Aquele prisioneiro achava que as sombras e seus sons eram a única realidade existente, confundindo o engano com a verdade. Um belo dia o prisioneiro é liberto da escuridão por um sábio, que o arrasta a força para fora, não obstante as dores articulares e os xingamentos do prisioneiro. Trazido para a luz do dia, o prisioneiro sofre muito com a claridade da luz, e tenta voltar para o fundo da caverna. Mas o sábio o segura. E assim, sustentado pelo sábio, o homem liberto começa, devagarzinho, a usar a razão científica e a ver as coisas como são na realidade: primeiro vê os objetos refletidos na água, depois as árvores, casas e pessoas, e depois as estrelas da noite. Finalmente, após muito tempo e “com muito esforço”, o homem liberto aprende a usar a contemplação ou supra-razão, e aí, com pupilas de águia, fixa seus olhos no Sol. Somente após ter contemplado o Sol o homem liberto se dá conta de que sem a luz daquele astro seria impossível distinguiras as coisas, suas substâncias, suas cores, suas finalidades. Sem o Sol, o homem tropeçaria nos objetos, maltratando-os e ferindo-se. É o Sol que ilumina as estações e o dia. A contemplação do Sol, conclui Platão, simboliza a compreensão da Idéia de Bom, e é esta idéia que devem possuir “aqueles que pretendem agir bem na vida privada e pública”. O Sol (o Bom, Deus) ilumina as coisas e sem ele esbarraríamos nos objetos, machucando-nos. Em Platão, o Bom é a Verdade (Alétheia). Nos Hindus, o Bom é o Brahma. Em Buda, o Bom é o Prana, o Nirvana.
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No mestre Lao, o Bom é o Tao. No Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, o Bom é Deus Criador. A partir deste Bom, é possível ver as coisas boas e julgar se uma ação tem parentesco com aquele Bom.
O Bom “individual e consensual” das filosofias materialistas As filosofias materialistas dizem que o Bom é aquilo que o homem livre pactua consigo mesmo e com os outros. Não é a Natureza nem Deus que decidem o bem e o mal. É o homem. É o consenso entre homens. O Bom não existe nas coisas, é uma pura convenção humana, pois as coisas, em si, são nem boas nem más. Elas são escolhidas. Nas Éticas materialistas, construídas a partir da razão humana, aparecem, como veremos adiante em capítulos específicos, vários conceitos de Bom: em Kant, o bom é o dever em Mill, o bom é o útil em Nietzsche, o bom é o poder em Freud, o bom é a libido em Marx, o bom é o trabalho em Foucault e Deleuze, o bom é a alegria do dia-a-dia em Habermas, o bom é o consenso em Jonas, o bom é a responsabilidade em Rawls, o bom é a justiça. Note-se, todavia, que alguns destes autores, como Kant e Jonas, mesmo construindo uma Ética a partir da razão humana (racionalismo), não são materialistas, pois acreditam em privado no Legislador Divino. O esforço deles visa construir uma Ética que seja válida racionalmente e tenha elementos aceitáveis pela pessoa seja materialista que espiritualista.
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Como conhecer o Bom? Platão, espiritualista cósmico, ensina que o conhecimento humano progride rumo à Verdade numa escala ascendente, composta de quatro degraus: senso comum diário, percepções sensíveis, razão, intelecto. Estes quatro graus estão ilustrados na Alegoria da Caverna, resumida no capítulo anterior. O esquema platônico é aceito também pelas Religiões. O Bom é conhecido no quarto degrau. É lá que a Verdade, existente independentemente do sujeito, se desnuda para a mente humana. Os materialistas, porém, admitem somente os primeiros 3 degraus desta escada platônica.. O Bom é conhecido no terceiro e último degrau, onde a Verdade é construída pelo homem em sua atividade racional-científica. 1o e 2o grau do conhecimento: senso comum e percepções sensíveis O primeiro grau do conhecimento é o senso comum e popular , o conjunto das idéias advindas da necessidade diária de sobrevivência biológica, o papo do dia-dia, o discurso da feira e do bar, o talk-show televisivo, o discurso sem dono, o mexerico da rua, o mundo enganador do “se diz, todo acham que, ouvi dizer que”. Este grau oferece pouco conhecimento da Verdade e do Bom. O segundo grau do conhecimento é a percepção sensível mediante os sentidos internos e externos, como quando vejo um fato, experimento o frio, sinto medo ou confiança, vivencio uma experiência gratificante. Os sentidos, todavia, costumam enganar, como quando o bastão enfiado na água aparece torto, mas não o é. Este grau oferece um conhecimento fraco da Verdade e do Bom. Estes dois degraus produzem a Opinião (doxa), que está longe do Conhecimento (epísteme). A Opinião obedece à paixão e ao interesse do momento, criando entre os homens desuniões, enganos, prepotências (hybris), guerras e irracionalidades político-sociais. Para o filósofo, a causa da injustiça violenta em Atenas ou em
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qualquer Nação está na prevalência da opinião entre os cidadãos. 3o grau do conhecimento: a razão científica O terceiro grau do conhecimento é o conhecimento racional , produzido pela razão (diánoia), que é uma função das células nervosas. Este conhecimento comanda as Ciências. A razão, relacionando e combinando entre si as idéias simples adquiridas na experiência e na leitura, produz os discursos das ciências humanas e exatas. Deste modo, com sete notas musicais a razão cria cinquenta mil novas músicas anuais e com vinte e uma letras do alfabeto escreve milhões de livros. Este terceiro grau do conhecimento oferece um conhecimento provável (belief on probability – dizia o cético Hume em 1748 – crença na probabilidade de que, tendo experimentado um certo número de ocorrências iguais entre uma causa e um efeito, creio que provavelmente aquela causa provocará, no futuro, o mesmo efeito. A ciência é uma fé). Este terceiro grau é representado na Alegoria da Caverna quando do contato físico do prisioneiro com os objetos na saída da caverna. É o grau máximo de conhecimento para as filosofias materialistas, que não aceitam o quarto grau. O conhecimento do Bom, nas filosofias racionalistas-cientificistasmaterialistas, é um esforço filosófico da razão humana, que tenta pensar a cada época os princípios universais do agir humano.
4o grau do conhecimento: o intelecto O quarto graus do conhecimento é o conhecimento contemplativointuitivo-supraracional , produzido pelo intelecto (noús), que é uma faculdade espiritual de conhecimento, posta no homem pela Divindade. Na contemplação intuitiva e supra-racional, o intelecto humano mergulha: no Espírito Cósmico (filosofias místico-cósmicas); na Mente de Deus Criador (religiões). Considerando que o intelecto é uma partícula da inteligência do próprio Deu, neste mergulho realiza-se uma identidade entre o sujeito-conhecedor (intelecto) e objeto-conhecido (inteligência divina), de forma a não haver possibilidade de erro. Por isso, dizem Platão e as Religiões, este quarto grau oferece o conhecimento certo da Verdade, que se desvela ao homem como a amante se desnuda ao amante, desvelamento parcial nesta vida e total na eternidade. O quarto grau contemplativo do conhecimento é simbolizado na
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Alegoria da Caverna pelo momento em que o prisioneiro libertado contempla o Sol. Platão e Tomás de Aquino, como todos os espiritualistas que professam a imortalidade da alma humana, consideram que o conhecimento racional-científico é a ante-sala do conhecimento intelectivo-contemplativo. Os medievais resumiam o entender (ciência) e o crer (fé) na expressão: creio para entender, entendo para crer .
A Paz como efeito do 3 o e 4o grau do conhecimento Existem, na sociedade e no indivíduo, dilacerações e guerras. Como garantir a paz? O filósofo afirma que a Paz vem não da coerção fardada, mas do conhecimento da Verdade. Na pessoa, o terceiro e o quarto grau do conhecimento produzem a virtude, a sabedoria, o sábio. Na sociedade, eles proporcionam a coesão e a paz. A paz é o sumo bem do indivíduo e da sociedade. Por isso, nos rituais cristãos a frase mais repetida é “a paz esteja convosco”. A harmonia ou paz é, em Platão, a Dike, que significa Justiça. Na Bíblia, Deus é justo e José era homem justo, isto é, santo, harmonizado com os outros e com o mundo. Há, em Platão dois tipos de Justiça (paz, harmonia): a justiça pessoal : trata-se da harmonia entre razão-vontade-instinto, alcançada mediante as respectivas virtudes de prudência-fortalezatemperânça; ⇒ Na alegoria da Biga Alada, Platão imagina um carro dirigido por um auriga (razão), puxado por um cavalo branco (vontade) e por um cavalo preto (instinto). Sem cavalos o auriga fica parado, sem auriga os cavalos se espatifam no muro, sem o cavalo branco ou o preto a biga cai no barranco. É na cooperação dos três que o conjunto chega à vitória. a paz social : é a harmonia entre governantes-guerreiros-trabalhadores, alcançada mediante as respectivas virtudes de prudênciafortaleza-temperânça. Prudência, fortaleza e temperança, produtoras da justiça, constituem as quatro virtudes cardeais em Platão. Elas são ensinadas também nas Religiões. Elas realizam o Bom. Platão sustenta que a injustiça violenta de Atenas e de qualquer
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comunidade humana pode ser vencida somente pela Verdade. É a Alétheia (verdade) que garante a Dike (justiça). A Justiça é filha da Verdade, não da economia nem da política, as quais devem ser, elas também, filhas da Verdade. A Verdade (o Bom) é como o Sol . Os raios do sol representam os cidadãos. Os raios tanto mais estão distantes entre si quanto mais estão afastados do sol, e tanto mais se aproximam entre si quanto mais se fundem no sol. Da mesma forma, os cidadãos ficam divididos entre si quando estão distantes da Verdade, mas se fundem entre si, numa unidade moral-social-nacional, quando mergulham na Verdade. O Evangelho milenar disse o mesmo: “A Verdade vos libertará”. A Verdade é parente da Ética: pela Verdade se chega a atos bons, por atos bons se chega à Verdade.
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Quem decide o Bem e o Mal? Uma das questões básicas de uma teoria ética é a fonte de onde jorram o Bem e o Mal. Quem define o Bem e o Mal? O indivíduo, o grupo, a autoridade civil, a natureza, a divindade? Os caminhos trifurcam-se: Os materialistas, que acreditam na existência apenas da matéria, afirmam que cada homem decide por si, calculando racionalmente e utilitaristicamente os riscos e as vantagens. O homem é a fonte do bem e do mal . Os espiritualistas cósmicos, que acreditam num Espírito dentro da Matéria, procuram as regras do agir moral sintonizando-se na meditação com este Espírito do Mundo. A Natureza animada pelo Espírito é a regra do bem e do mal . Os religiosos, que acreditam num Deus Criador, procuram as respostas na Mente de Deus, manifestada nas Escrituras, na Igreja e na experiência pessoal. Deus é o paradigma do bem e do mal .
Heteronomia moral e autonomia moral A aceitação de uma norma moral vinda de outrem se chama heteronomia moral (héteros, em grego, significa de outro, nómos significa norma, e heterononomia é lei de outro). As religiões professam a heteronomia moral. A elaboração da norma moral pela razão humana, sem aceitar normas vindas de outrem, chama-se autonomia moral (autós, em grego, significa si mesmo, e autonomia significa lei de si mesmo). Heteronomia moral: quem como Deus? Do ponto de vista das religiões, a questão de quem define o bem e o mal é tão basilar em Ética, que dela ocupa-se a primeira página da Bíblia, o livro mais lido no mundo, com dois bilhões de cópias nos últimos cem anos.
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O pecado de Adão e Eva, ao comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal , consistiu na pretensão de definir e decidir (conhecer , em hebraico) o que é bem e mal, decisão que pertence unicamente a Deus. Ao homem compete o imenso dom do livre arbítrio, que é a liberdade de escolher entre o bem e o mal, previamente definidos. Mas o homem quis pôr-se no lugar de Deus. Foi um pecado de autonomia moral . Segundo as religiões, a tentação de ser Deus, isto é, de querer definir o bem e o mal, está presente em todos os homens de todos os tempos, e por isso chama-se tentação ou pecado original . O pecado original representa uma quebra hierárquica da ordem cósmica e por esta quebra entra a desordem nas sociedades humanas. Tal advertência encontra-se também no mito bíblico da queda do anjo Lúcifer, que queria um poder igual a Deus, e no mito da Torre de Babel, quando os homens pretendiam escalar o céu e destronar Deus (note-se que o termo mito, nos estudos bíblicos, indica um revestimento literário, que transmite verdades divinas, como nas parábolas). O mesmo ensina o mito grego de Prometeu, que desafia Zeus e acaba acorrentado no monte Cáucaso, onde um abutre lhe comia de dia o fígado, que recrescia de noite: o fígado é o lugar da atitude irreverente e biliosa. Igual ensinamento é contido no mito de Ícaro, cujas asas de cera derretem perto do sol, quando ele pretende chegar a um lugar que não é dele. As Religiões e as filosofias cósmicas vêem o mundo como algo transparente, espelho e vestígio da Divindade: a natureza fala e, nos medievais, a natureza é “voz de Deus aos homens”. Autonomia moral: a divindade do homem é o próprio homem Do ponto de vista das filosofias materialistas, Deus é uma criação do homem. Deus não existe. Só existem a matéria, o homem material e a razão humana material. Nesta perspectiva, o homem só possui um instrumento para definir o bem e o mal: sua própria razão em sua autonomia moral . Ele se torna deus de si mesmo, capaz de definir o bem e o mal. A razão humana do materialista vive uma experiência de solidão diante do imenso universo, sem ajuda de ninguém, a não ser a solidariedade de outras razões humanas. Nesta solidão existencial e ética, o direito de escolha e de liberdade é a única substância do viver e quase uma condenação, pois cada escolha ética contém a renúncia a outras escolhas, que poderiam resultar melhores: “estamos condenados a escolher, a sermos livres”, diz Sartre em O Ser e o Nada (1943).
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As filosofias da modernidade dizem que o mundo é opaco, isto é, não deixa ver a verdade, não fala, não legifera sobre os nossos atos. Elas concluem que a única voz moral é aquela que o homem dá a si mesmo, definindo-se moralmente autônomo. Tal autonomia, todavia, não é tão autônoma assim: o homem decide autonomamente, mas... com base em que? Aí vemos que esta autonomia, que diz excluir qualquer paradigma ou mapa prévio, na verdade não existe. Com efeito, as éticas materialistas decidem com base em exigências anteriores, que são as exigências da natureza humana e da convivência entre naturezas humanas. A natureza material, com suas necessidades sociais, é o mapa prévio. Assim faz, por exemplo, Kant.
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A natureza humana: mutável ou estável? As infinitas formas e metamorfoses do agir humano fazem parecer difícil a reflexão sobre a Ética como arte dos princípios bons que governam as ações boas. Muitos se sentem perdidos nesta nebulosa de variedades comportamentais, e desconfiam da possibilidade de haver uma Ética. O Homem é um rabisco na areia? Ou é eterno? Ressoa nas filosofias uma pergunta fundamental: tudo é mutável no homem ou, sob a mutabilidade, existe algo sólido, uma base estável sobre a qual se assenta o vir-a-ser humano? O homem é uma figura rabiscada na areia, cancelada pela próxima onda, como dizia Foucault? Ou o homem possui um elemento eterno, como dizem os santos? Dependendo da resposta a esta pergunta, formam-se dois grupos de filosofias, teoreticamente inconciliáveis entre si: as filosofias da estabilidade, nas religiões e nas filosofias cósmicoespiritualistas; as filosofias da mutabilidade, nas filosofias materialistas. Os dois caminhos, porém, mesmo excluindo-se teoreticamente, podem coexistir operativamente nas tarefas de paz deste mundo. Assiste-se, frequentemente, a discursos e debates sobre Ética, onde é avassaladora a presença de oradores para os quais tudo é mutável e progressivo, inclusive os princípios éticos. E aí, cada um diz a sua, discursos entre surdos, ficando impossível o consenso teórico e prático. Tot capita, tot sententiae, tantas opiniões quantas as cabeças. Parece que a Ética acabou.
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A natureza humana livre Diferentemente da natureza mineral-animal imutável e sujeita às leis necessárias das coisas, a natureza humana é mutável em sua esfera criativa. Daí alguns concluírem pela impossibilidade de princípios éticos estáveis. A existência da pessoa é algo singular, irredutível à pura universalidade, "incomunicável" no dizer dos existencialistas, corporeidade individual na qual pulsa um espírito exclusivo, corpo que reclama incansavelmente seus direitos e sua presença no mundo: "eu sou meu corpo". Uma vez que o ato humano é corporeamente singular, pareceria impossível reduzi-lo a leis universais. Sabemos outrossim que a vida da consciência humana se dá na temporalidade, num tempo que é presente, mas já é passado e tem em mente o não-presente, o futuro, a meta, a finalidade. A vida humana é uma corda estendida entre o que é e o que ainda não é, é passagem, existência presente voltada ao futuro, jamais coincidindo consigo mesma. Tudo isso sugere uma fluidez inagarrável, cheia de surpresas, o carpe diem (agarre o dia!), o instante fugidio, a impossibilidade de uma fixidez normativa. A ação humana é também sujeita à historicidade, numa história que é individual e coletiva, progressiva, movimento mutável, imprevistamente revolucionária, espantosamente obediente ao ditador, instigantemente utópica ou monotonamente conservadora, onde o bom de hoje parece não ser o bom de amanhã. E ainda: há cem anos o homem adaptava-se à natureza todo-poderosa. Hoje o homem domina a natureza, transforma-a, criando fatos físicos e químicos novos, como os embriões e a energia atômica. Necessita-se de novas éticas da ciência e da vida (bioética). Onde buscar inspiração? É aí que reside o problema: o homem é livre. A existência do homem é diferente da existência das coisas. As coisas são determinadas pela física das leis naturais, enquanto a ação humana é norteada pela Ética dos valores. As leis naturais são estáveis, o agir humano é imprevisível. A mutabilidade humana. O Devir perene Nas filosofias materialistas, o universo é fluido como rio. Tudo corre (Heráclito). Tudo é dialético, isto é, movimento. Chama-se Dialética da Matéria (Engels). É problemática a unidade ética da humanidade nas filosofias materialistas,
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pois estas não possuem um elemento unificador. As Éticas dependem da cabeça cabeça de cada um e, mesmo mesmo confiand confiandoo no cosmopolitismo cosmopolitismo iluminista iluminista da razã razãoo hu huma mana na,, de fato fato mu mult ltip ipli lica cam-s m-see como como fung fungos os ao desp despon onta tarr de qualquer novo guru universitário. Entre as filosofias materialistas, há algumas mais prudentes, como o positivismo e o marxismo, que reconhecem leis na Natureza Humana, as quais podem sugerir normas éticas universais, como a cooperação, o amor ao próximo e a partilha dos bens. Mas há metafísicas materialistas e niilistas que assumem o caos e a erupção da vontade humana como princípio de compreensão e ação do mundo e do homem. Tal é a postura de Schopenhauer e Nietzsche. Assim são Deleuze, Foucault e Guattari, filósofos do desconstrutivismo francês e da chamada “nebulosa pós-moderna”. Estes pensadores famosos, com milhares de seguidores universitários, professam a defesa do instante num mund mu ndoo de li libe berd rdad adee tota totall sem sem cond condic icio iona nant ntes es mo mora rais is.. Eles Eles adot adotam am o pri princ ncíp ípio io meta metafí físi sico co de qu quee só rest restaa ao ho home mem m a sing singul ulaarida ridade de do momento fugidio, descontínuo, eternamente retornante no eterno devir das coisas, a ser vivido no instante presente de acordo com a lei pessoal do maior poder, do menor sofrimento, do máximo prazer A imutabilidade humana. O Mistério perene Se, de um lado, assistimos ao espetáculo da mutabilidade nas ações humanas, também sentimos que o homem não é só isso. Freqüentemente, o homem sente-se envolvido por forças grandiosas, sente-se com raízes fincadas em algo maior que maior que ele mesmo. É o Grande Mistério? Se este for o Mistério de Deus, perenemente estável, conclui-se que há dimensões estáveis na natureza humana. É o Um do pré-socrático Parmênides. O Mistério perene se torna o parâmetro universal do agir humano, codificado em Livros Revelados ou anunciado e atualizado por mestres e gurus. As filosofias espiritualistas e religiosas possuem uma grande facilidade de dar ao gênero humano uma unidade de ação, pois adotam princípios unificadores com autoridade espiritual, quais a Natureza espiritualizada ou Deus Criador: “Os homens vão aprendendo a amarem-se, pois se sentem atraídos por um centro, que é Espírito e Pessoa” ( Jacques ( Jacques Maritain, 1943). 1943). Opostos éticos inconciliáveis Em suma, estamos pequeninos diante do dilema. As leis do agir humano são mutáveis ou estáveis, no todo ou em parte? Ou pode e deve existir um
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nível permanente de princípios, junto princípios, junto com um nível flexível de normas do cotidiano? cotidiano? Como conjugar mutabilidade e estabilidade, indivíduo e gênero humano, singular e universal, múltiplo e um, o diverso e o mesmo, realização presente e tensão para o futuro? Estes opostos são insolúveis e capazes de destruir a humanidade, se não encontrarmos pontos em comum. É este o desafio da Ética em tempos modernos. Tomemos como exemplo o caso do aborto. A metafísica materialista diz: tudo é matéria, e o feto nada mais é que um conjunto de células materiais. Se eu decido eliminar o feto ou milhões de embriões congelados em tambores, nada mais faço senão aniquilar um punhado de elementos materiais. A metafísica espiritualista diz: a matéria é corpo de um espírito, e o feto é um corpo habitado por um espírito imortal. Se decido aniquilar o corpo ou os embriões em tambores, o espírito deles resta vivo e na minha frente, quase a dizer-me pela eternidade: por que quiseste me eliminar? Neste caso, as duas metafísicas e éticas são simplesmente inconciliáveis. E aí, o que fazer? Este é o nó górdio das discussões éticas.
Distinguir-se para unir-se Con onhe heccer as vária áriass filo ilosofi sofias as étic ticas é essen ssenccial ial para para haver ver um umaa convivência com respeito. Entre a moral das filosofias religiosas e a moral das filosofias materialistas há pontos em comum no que se refere ao bem individual e social, mas continuam inconciliáveis os pontos de vista sobre a alma, o eterno, o matrimônio e a vida (divórcio, aborto, eutanásia, embriões, clones, etc.). No livro Os graus do saber (1932), o filósofo Jacques Maritain (18891973) lança o lema “distinguir-se para unir-se”. A união em ideais sociais comuns e o respeito em princípios teóricos inconciliáveis só podem acont acontece ecerr quando quando cada cada pesso pessoa, a, aprofu aprofunda ndando ndo sua própri própriaa identi identidad dade, e, conhece bem as razões do seu ponto de vista e procura conhecer o ponto de vista do outro. Pois, um ponto de vista é apenas a vista de um ponto. Desta maneira, o homem religioso não vai exigir que o materialista pense como um santo, e o materialista não vai querer que a religião mude sua lógica divina, como se o quadrado possa virar círculo. Nas próximas páginas serão apresentados os pontos de partida das várias Étic Éticas as.. Na dist distin inçã çãoo cons consci cien ente te e resp respei eito tosa sa das das dife difere renç nças as resi reside de a
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possibilidade de estarmos juntos. No conhecimento do outro se processa o diálogo como vontade de receber a luz do outro e viver no “amor social”, expressão já usada em 1127 pelo místico São Bernardo no livro Do amor a Deus. Deus.
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Valores e Virtudes Em Ética fala-se muito de valores e virtudes: faltam valores, há crises de valores, é preciso restabelecer os valores. Os valores são metas boas, valiosas. As virtudes são ações boas, aptas a realizar aquelas metas. A palavra valor é mutuada da economia, onde a mercadoria recebe um valor, aceito livremente pelos indivíduos na hora da troca. Em Ética, a palavra valor começou a ser usada duzentos anos atrás, quando a filosofia racionalista-iluminista quis esquecer os termos bem e mal usados nas religiões. O valor começou a significar algo decidido não pela Natureza ou por Deus, mas pelo indivíduo livre. Um valor seria uma meta que o homem julgasse valiosa, individualmente ou coletivamente, com vistas à consecução de um interesse pessoal ou social. O maior valor seria a liberdade e, com ela, a derrota da dor, a paz, o cosmopolitismo das mentes, a autonomia individual, a realização profissional. Mas, de onde brotam os valores? Aqui também se acentuaram duas posições, a espiritualista-religiosa e a materialista. Sucintamente, elas dizem: O valor existe em si. Há coisas e metas valiosas em si, objetivamente, pois o Criador é valioso e colocou valores nas coisas.. O valor não existe em si. O valor é um juízo subjetivo dado pelo homem a algo, quando lhe interessa, pois a matéria existiu sozinha e é neutra.
Os valores são metas Os valores são metas valiosas, que constituem o Bem da pessoa e da sociedade. Há um certo consenso entre os espiritualistas e os materialistas sobre os valores cristãos, que fundaram o Ocidente durante dois mil anos. Tais
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valores estão indicados no Sermão da Montanha, e não faltam materialistas que os aceitam. O agnóstico Benedetto Croce, por exemplo, afirmava em artigos “não ser possível negar de sermos, no Ocidente, fundamentalmente cristãos” e o materialista Antonio Gramsci reconhecia “ser a difusão do cristianismo a base de uma revolução intelectual e moral da humanidade”. Tais valores são: Sentir-se pobre em espírito, querer o enriquecimento da mente, ir além do material, procurar novas verdades rumo à Verdade total. Opõe-se a este valor o vício capital da soberba, que se basta a si mesma e despreza a colaboração do outro. Sentir-se aflito, sensibilizado com a dor própria e alheia, solidário com o outro, responsável pelo outro. Opõe-se a este valor o vício capital da avareza, que se isola no egoísmo corporal e desconhece a presença do outro. Ser manso, contento com aquilo que a vida proporciona, de bem consigo e com os outros. Opõe-se a este valor o vício capital da ira, que se deixa tomar por fúrias maléficas e agride o outro. Ter fome e sede de justiça, sede de uma sociedade harmônica e pacífica, onde vige a partilha dos bens materiais e espirituais. Opõese a este valor o vício capital da gula, que é escrava do desejo desmedido e não divide com o outro. Tornar-se misericordioso, considerar-se parte daquilo que é humano, compreender o limite de si e dos outros, perdoar a miséria própria e alheia, alegrar-se com a grandiosidade de si e do outro. Opõe-se a este valor o vício capital da inveja, que trama o egoísmo pessoal e o insucesso do outro. Ser puro no coração, não projetar na intenção do outro nossas próprias distorções mentais, decifrar no mundo e nas pessoas os traços cristalinos da presença cósmica e divina. Opõe-se a este valor o vício capital da luxuria, que se seduz apenas com partes aparentes do outro e não lê a inteireza do outro. Ser fazedor de paz, construir a harmonia do todo, realizar a pacificação ecológica dos homens e das coisas, estar atraído por ideais sempre maiores. Opõe-se a este valor o vício capital da preguiça, que se afunda na depressão e se nega ao avanço com os outros.
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As virtudes são ações As virtudes são atos aperfeiçoados, capazes de realizar os valores. A palavra virtude vem do latim vir , que significa macho, viril, isto é, decidido, equilibrado, eficiente. Em Aristóteles, na Ética a Nicómaco, o valor máximo é a felicidade, que se alcança mediante ações excelentes, chamadas virtudes. A excelência da ação consiste na pratica do “justo meio” entre dois extremos: a virtude da coragem, por exemplo, é o meio justo entre a temeridade e a covardia. Toda ação humana pode ser virtuosa ou não, na medida em que é executada de maneira excelente e ajuda a alcançar um valor. A virtude, portanto, requer equilíbrio e excelência. Assim, o garoto possui a virtude da obediência quando a sua obediência aos pais é imediata, completa, desinteressada. O garoto consegue esta virtude mediante a repetição sempre mais apurada do ato de obedecer. O mesmo diga-se da sinceridade, do altruísmo, etc, virtudes capazes de realizar o valor da família e da Nação. Há tantas possíveis virtudes quantas as possíveis ações humanas: basta que a ação seja executada de forma excelente. Desde tempos imemoráveis, a humanidade vem listando sete virtudes, que receberam uma formulação filosófica em Platão e passaram teologicamente para a catequese das Religiões. São elas: A Prudência, virtude do governante, que faz da ação decisória um ato equilibrado. Virtudes afins: perdão em lugar da vingança, paciência. A Fortaleza, virtude do guerreiro, que faz da ação física um ato estético. Virtudes afins: gentileza, constância, determinação, compostura. A Temperança, virtude do trabalhador, que faz da ação sensitiva um ato moderado. Virtudes afins: austeridade, abstinência, humildade, obediência, pureza. A Justiça, virtude do sábio, que faz da ação pessoal um ato de paz e harmonia . Virtudes afins: respeito, tolerância, partilha, solidariedade. A Fé, virtude do santo, que faz da ação humana um ato divino. Virtudes afins: silêncio interior, meditação, oração, espiritualidade. A Esperança, virtude do religioso, que faz da ação temporal um ato eterno. Virtudes afins: bom humor, sorriso, confiança, serenidade.
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A Caridade, virtude do cidadão, que faz da ação solidária um ato amoroso. Virtudes afins: heroísmo, altruísmo, compaixão, benevolência. Um sistema moral é um conjunto de valores e virtudes. Um sistema moral, quando implantado numa Nação, com as especificidades de cada história e geografia, constitui o Sistema Moral daquela Nação ou sua Identidade Ética Nacional .
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Moral e Nação A Moral é o ato primeiro da Nação Os homens se aglutinam em famílias, cidades, Nações. O que é uma Nação? É um caminhar do passado ao futuro, um espírito heróico herdado dos antepassados, um chamado aos valores que unem milhares de pessoas para o Bem Comum. Esta é a substância espiritual da Nação. Os meios materiais para alcançar tal substância são a língua, o território, as raças, os poderes, as instituições públicas e privadas, estas últimas voltadas a garantir a educação mental, a autonomia econômica e a saúde-reprodução biológica. Era convicção da antiga sabedoria romana a de que construir uma Nação significa móres víris et ménia pónere (dar aos homens costumes e muros, em Virgílio, Eneida,1). Os móres (costumes) são os valores morais e as leis decorrentes; os ménia (muros) são o território, a língua, as instituições. Dar a um povo os costumes é função dos intelectuais, dar a um povo os muros é função dos políticos. A Nação é uma união de pessoas em direção a valores comuns, mediante virtudes comuns. União vem de un-ir , ir para o um. Valores e virtudes comuns constituem a Identidade Ética Nacional , que é o sangue vital no corpo social da Nação. Fora disso, há um aglomerado irracional de indivíduos em luta fratricida por interesses particulares e corporais, ainda que falem a mesma língua e cantem a mesma música sob a mesma bandeira. Um povo sem Identidade Moral é um templo sem divindade. A Nação sem valores comuns é um ônibus sem motor, os passageiros impacientes por estarem parados. Eles pensam que a culpa é do motorista (governo) e o problema se resolverá trocando-o na próxima eleição, quando o defeito está no ônibus (Nação) e devem ser chamados os mecânicos (intelectuais, sábios).
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O progresso social da Nação depende de sua mentalidade moral Muitos creram, durante o século XX, que a estrutura econômica é o motor da evolução social da Nação. Esta tese ficou desmentida, ao constatarmos que muitos países, gigantes econômicos em Produto Interno Bruto, permanecem anões em organização e harmonia social, até piorando seus indicadores sociais. De nada serviram as lutas sociais de décadas, porque houve um grande equívoco: o problema não estava na economia e sim na moral . Há algo anterior à economia. A racionalidade na economia e na política depende de uma ordem mental anterior, que é a ordem moral. O grau de desenvolvimento material e social de um povo é questão não tanto de dinheiro quanto de mentalidade. A democracia econômica da Nação é produto não tanto da revolução social, quanto da evolução mental. A reforma moral de uma sociedade se impõe como ato primeiro, toda vez que devem ser reformadas suas irracionalidades econômicas e sociais. A vitória social começa na cabeça dos cidadãos. Coesão moral, coesão social e governabilidade O que agrega milhões de pessoas em Nação? Em nível biológico são as necessidades naturais, em nível mental são os valores morais. A coesão moral de um povo é a convergência das mentes sobre virtudes e valores comuns. Tal coesão exige uma escola moral nacional e uma educação moral continuada da sociedade, mediante pessoas e estruturas capazes de desenvolver tal educação. Sem isso, assiste-se à desagregação e morte social. A coesão social é fruto da coesão moral. Ela comporta: a convergência das mentes nos meios de alcançar as metas comuns; a confiança recíproca entre os cidadãos na empreitada; a racionalidade na gestão das políticas públicas; a partilha dos bens mentais e materiais; a paz. Coesão moral e coesão social garantem a governabilidade da Nação, quando os cidadãos: se sintonizam com os líderes escolhidos e os amam; aceitam as reformas necessárias a cada momento histórico;
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caminham compactamente para o futuro.
Uma Nação sem valores é um povo violento Sem coesão moral, o povo é um agregado irracional de indivíduos. E aí, vicejam a desagregação social e a ingovernabilidade. Características da desagregação são: a discordância sobre as metas, cada novo governo cancelando os programas do precedente e recomeçando do zero, com perdas financeiras e humanas; a desconfiança cultural entre os cidadãos, pois ninguém conhece os princípios morais ou amorais do outro, instalando-se a suspeita e a paralisia na dinâmica nacional; a incapacidade de construir a esfera pública, quando o dinheiro existe, mas gira dentro da Nação em instituições privadas de ensino, saúde, lazer, previdência e segurança, bastando convertê-lo em dinheiro público para se terem políticas públicas iguais para todos; a acumulação de alguns e a escassez de outros, sendo a acumulação um instinto animal de sobrevivência no futuro, uma vez que faltam políticas públicas que garantam o amanhã e a velhice do cidadão; a violência mental e armada dos não-acumuladores contra os acumuladores e destes contra aqueles. A paz da Nação é filha da sua coesão moral.
Quem é responsável pela coesão moral da Nação? O papel do Intelectual laico e religioso na Universidade e na Religião “Aos políticos – diz o famoso filósofo socialista Norberto Bóbbio (19092003) – compete criar as instituições, aos intelectuais compete criar a consciência moral da Nação”. Um Intelectual da Nação é aquele que faz um uso público da razão, indica metas, reabre continuamente fórmulas sociológicas e políticas que se consideravam resolvidas, sugere à Nação escolhas morais proféticas. A França sepulta seus intelectuais no Panteão de Paris, em cujo frontão está escrito: “Aos Grandes Homens, a Pátria Reconhecida”. Quando uma Nação escasseia de virtudes e valores, significa que escasseia de intelectuais. Há duas categorias de intelectuais: Os intelectuais laicos (sem religião), que produzem intuições sobre o
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Bom a partir da razão humana, e se encontram basicamente na Universidade. Os intelectuais religiosos e espiritualistas, que ensinam o Bom a partir dos Livros Sagrados e de gurus iluminados, e se encontram na Religião ou na filosofia espiritualista. Universidade e Religião são o começo da Nação. As duas devem operar ombro a ombro. Delas e de seus livros saem os cidadãos que fermentarão moralmente e capilarmente todos os setores da sociedade: escola, família, empresa, comunicação, televisão, política. Quando a Universidade esnoba a Religião e a exila dos currículos em nome da Razão Científica, aí se têm uma Nação, que pretende voar com uma asa só. Pois o homem é maior que a Razão Científica e o cérebro não explica a mente. O fato religioso está aí aos bilhões, e não se compreende porque a Universidade deva desconhecê-lo ou combatê-lo, fechada num gueto de marfim.
Razão e Religião são o começo da Nação Um dos maiores debates mundiais, no momento, verte sobre esta dúvida crucial: consegue a Razão Científica, sem Religião, dar conta da moral dos povos? Parece que a moral laica (sem religião) vem mostrando sinais de cansaço, enquanto a moral religiosa ainda move multidões e Nações. Muitos acreditam que a Religião é inútil à Nação, afirmando ser a Razão Ilustrada capaz de dirigir os caminhos do indivíduo e da sociedade. Se diz que, questão de tempo, a ciência acabará esclarecendo e resolvendo todas as problemáticas humanas. Mas, o citado Norberto Bobbio, socialista laico aos 92 anos, olhava as obras de caridade cristã espalhadas pelo mundo e reconhecia, surpreso, que “o cristianismo possui uma força moral superior à dos laicos”. Provavelmente, ele meditava sobre a queda dos impérios socialistas e racionalistas, os quais, divinizando o Homem e a Razão (os “Absolutos Terrestres”), pretenderam esbarrar os espaços da Fé e do Absoluto Celeste. A fim de educar a Nação aos valores milenares da humanidade, as Religiões possuem recursos físicos, culturais, cultuais, simbólicos, catequéticos e humanos imensos e plurisseculares, muito acima da escola, da família, do Estado e da Razão individual esclarecida. Os muitos erros da Religião parecem menores que suas potencialidades e realizações. Olhando a história passada e o panorama mundial atual, vemos que os povos democráticos mais evoluídos em justiça social são aqueles, onde a Religião é mais organizada e estudada, em seus vários credos. Não são
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poucos os que afirmam serem as Nações filhas das Religiões. Em nome de que e de quem descartar os recursos imensos das Religiões na construção da Nação? Em nome de um Deus inexistente? E se Deus existisse, e tudo deveria ser referido a Ele? Quem decide este mistério dos mistérios? Quem pode decidir se o eterno existe ou não? Por que um carnífice monstruoso deveria dizer a última palavra sobre a vítima inocente? E os milhões de mortos, produzidos pelos gases e pelas atômicas da Razão Científica, superiores aos mortos das guerras de Religião? Mesmo que fosse provada a inexistência de Deus, quem poderia se encarregar, aqui e agora, de educar moralmente a Nação, visto que a Razão, com seus relativismos, tarda a fazê-lo? Os governantes, quando possuem a virtude grega da prudência, dão vida a um Estado laico, sim, mas não ateu, e prestigiam tanto a questão universitária quanto a questão religiosa. A idéia de que a Religião pertence à esfera privada e não interessa ao Estado é uma idéia iluminista e neoiluminista, que a história vai refutando. Pois, se o Estado deve administrar todas as necessidades dos cidadãos, deve administrar também a necessidade religiosa. A necessidade religiosa é tão pública quanto a necessidade de privadas e esgotos. Na Alemanha, e em geral nos países europeus, é o Estado que, sem deixar de ser laico, oferece sua estrutura para recolher o dízimo voluntário na folha de pagamento, entregando os proventos a cada Religião indicada pelo cidadão. Quase todas as Universidades públicas daquele país possuem Faculdades de Teologia Católica e Luterana. São inúmeras as Nações, onde os vigários e pastores recebem um salário mensal do governo. Em cartas ao Rei de Espanha desde Cuba, nos idos de 1520, o frei Bartolomé de Las Casas rogava o soberano a sustentar os missionários, mostrando ser mais conveniente à coroa investir num só frade do que em dezenas de policiais, para se obter a ordem pública. Pois, o cidadão que se autogoverna pela lei interior da consciência dispensa a coerção exterior da lei civil e fardada. Observa-se que a totalidade das Nações ocidentais desenvolvidas mantém a aula de Religião nas escolas públicas, com professores teólogos pagos pelo governo. Ainda que o debate continue. Os cidadãos laicos sustentam que a escola pública deve ser exclusivamente laica, sem Religião. Os cidadãos religiosos consideram que a escola pública, sustentada por seus impostos, deve oferecer os ensinamentos morais das Religiões para os alunos que o quisessem. Quem tem razão? E se os cidadãos religiosos, com seus impostos, fossem maioria e se negassem a sustentar as escolas laicas? Teriam direito a fazê-lo? A Razão não tem argumentos suficientes
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para excluir a Religião, sendo a recíproca verdadeira. Ambas são o começo da Nação. Um poderoso sistema público de Televisão Com o avanço eletrônico, um instrumento fundamental nas mãos dos intelectuais laicos e religiosos é o sistema público de Televisão. A maioria das nações já o organizou. As televisões privadas visam o lazer que traz o lucro. Elas oferecem pão e circo, e nelas o sábio tem pouco espaço, prevalecendo o charlatão e o animador do espetáculo. É no sistema público de rádio e televisão, preocupado com a formação da Nação, que os intelectuais podem exercer seu papel de formadores da consciência moral nacional. Um povo, que pretenda adquirir uma coesão moral e social, deve implantar, ao lado das televisões privadas, um poderoso sistema público de rádio e televisão, pago por um imposto específico, gerido pelo Parlamento, norteado pelos intelectuais, e encarregado de forjar a Alma da Nação.
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Segunda parte
Os Fundamentos das Éticas
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Fundamento Cósmico da Ética O Bom é a Natureza: viva segundo a natureza! Fausto quer viver abundantemente. Sonha poder, status, dinheiro, divertimento. Aparece-lhe o diabo, que lhe diz: “Te darei uma vida eletrizante, se me venderes a alma para sempre”. Fausto aceita a troca. Abraçando uma cultura do indivíduo, ele começa a desfrutar viagens, belas mulheres, hotéis de luxo, festas regadas a licores e culinárias, mansões e carros, honras. Após anos de boa vida, Fausto percebe-se sozinho no mundo. Ninguém se preocupa de como e onde ele está. Aí, melancólico, entra em si mesmo. Após longa reflexão, decide pedir de volta a alma ao demônio, que, num gesto magnânimo, lhe a devolve. Fausto escolhe a vida de jardineiro para um casal de anciãos no Norte da Europa. Aí sente como é aconchegante falar com as plantas, as cores, a chuva, o vento, os frutos, os pássaros, as pessoas, num mundo de amor: “Lar próprio e mulher boa, mais são que minas de rubis”. (Goethe, Faust ) O exemplo nos faz refletir sobre o homem moderno e seus demônios... A Metafísica cósmico-espiritualista.
A metafísica cósmico-espiritualista está presente: ⇒nas filosofias orientais: hinduísmo, budismo, taoísmo, xintoísmo ⇒nas filosofias platônicas e estóicas de Atenas e Roma e nas filosofias modernas de Spinoza e Hegel O universo é feito de matéria eterna, habitada por um Espírito ou Logos (ordem cósmica). Da mesma forma que no homem vivem as células visíveis e o eu invisível (sentimentos, pensamentos), neste universo vivem elementos materiais visíveis e um elemento
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espiritual invisível, que pode ser entendido de duas formas: ⇒uma espécie de Entidade Espiritual, reverenciada em cultos. A este grupo pertencem as filosofias espiritualistas orientais, onde o Espírito é Prana (budismo), Brahma (hinduísmo), Tao (taoísmo), Mundo das Essências (Platão). ⇒uma espécie de Energia Física ou Quântica, sem cultos. A este grupo pertencem as filosofias, cuja Lógica do Mundo é Lógos (estóicos), Substância (Spinoza), Espírito Absoluto ( Hegel). A função do Espírito é manter a harmonia da matéria, para que haja no cosmo a justiça e a paz. A matéria do cosmo estende-se pelo corpo do homem e o Espírito do cosmo vive na mente do homem. O destino do homem é o destino do universo espiritualizado. O homem é um ser especial na Natureza, pois possui a razão, onde o Espírito se faz presente de forma especial: na medida em que as mentes dos homens evoluem, o Espírito evolui. A função da mente humana consiste em fazer evoluir o Espírito do cosmo, sobretudo mediante a virtude pessoal e instituições públicas racionais. Na morte, o corpo e o espírito do homem se desfazem no grande Universo Consciente e continuam a evoluir nele, como um cubo de gelo se dilui na bacia de água. Estas filosofias estão englobadas no termo Panteísmo, onde tudo ( pan) é Deus (théos). É claro que se trata de um Deus-Mundo, diverso do Deus-Criador-Pessoa-Pai das Religiões, o qual vive antes do mundo, fora do mundo e também dentro do mundo, amando-o. Em Ética, as ações do homem devem sintonizar-se, através da meditação filosófica e da contemplação, com as idéias e os objetivos do Espírito, para realizar a paz do todo. A evolução do homem é a evolução do Espírito.
Este é o fundamento metafísico da Ética cósmico-espiritualista, que floresceu na antiguidade longínqua e é adotado por milhões de pessoas nobres na humanidade contemporânea. A Natureza mãe e mestra Já os antigos chineses seguiam uma ética baseada na ordem da natureza. Diziam: o mundo, que era caos, vira cosmos, universo organizado, onde cada coisa está no seu lugar, exercendo sua função específica para a
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harmonia do Todo. Pela harmonia dinâmica do yin e do yan realiza-se o Tao, a história do universo físico e humano. Também a Bíblia, em maneira plasticamente belíssima, conta que, no final de cada dia da criação, Deus ficava olhando aquilo que acabara de fazer e dizia a si mesmo, satisfeito: é muito bom! Os cultores da Natureza, de ontem e de hoje, dizem que o homem se torna bom e suas ações são boas quando estuda a ordem cósmica e nela se insere sem destoar. A agricultura ensina que o homem deve harmonizar-se com o curso das estações, das chuvas, da semeadura e da colheita. Homem e natureza devem viver em sintonia recíproca. O que aconteceria ao homem que decidisse desviar-se do ritmo da natureza? Não comeria e morreria. Ha pessoas que deixam de fumar observando os passarinhos sobre a janela de casa, os quais voam e cantam alegres, sem prejudicar os pulmões. Nesta perspectiva cosmológica, a Natureza é mestra de Ética. A Natureza diz ao homem o que é bom e mau. Anos atrás um homem corajoso, que vivera 14 anos numa ilha do Atlântico (Ilhabela), relatou a sua experiência num livro que começa assim: após ter vivido estes anos no meio da natureza, convivendo com plantas e animais, estou percebendo que aprendi a conviver com os homens. No século passado, os anarquistas precisaram rebater a Fábula das Abelhas de Mandeville (1729), onde se afirma que o homem, como abelha laboriosa, é por natureza individualista e deve construir em paz seu capital para a riqueza da nação. Onde buscar argumentos em contrário? Pois bem, os anarquistas recorreram às laboriosas formigas. Observando-as, viram que o instinto delas é a cooperação. Descobriram até que as formigas entrelaçam pontes fazendo as outras passarem sobre si. E aí definiram: por natureza, o homem é um animal cooperativo e altruísta. Desta maneira, os anarquistas puderam sustentar, frente ao liberalismo econômico, os princípios que regem as cooperativas operárias. O Logos da natureza e o Logos do homem Logos significa mente (nous, em grego ). O Nous governa o mundo. O Logos confere à Natureza uma racionalidade normativa, que pode ser detectada pelo Homem, porque também na mente do Homem este mesmo Logos está presente. O objeto procurado pelo Logos humano é o Logos da Natureza, como o objeto do ouvido é o som e o objeto do nariz é o cheiro. Em outras palavras, a Ética exige um contínuo esforço de correspondência entre o Logos na Natureza e o Logos da Mente Humana. Na sintonia entre o Logos da Natureza e o Logos do Homem, este se torna bom.
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Instrumento para sintonizar-se com a Natureza e seu Espírito ou Logos é a meditação. A meditação dos orientais consiste em fazer dentro de si o silêncio da carne e da mente... deixar o espírito vagar na imensidão profunda do Prana... introjetar em si a dimensão do eterno fluir do cosmo... deixar-se levar... A meditação ocidental dos estóicos gregos e romanos (e dos cristãos) consiste na reflexão silenciosa sobre conteúdos sapienciais. Os estóicos recomendavam, na meditação: a memorização dos dogmas e das regras de vida da escola, a imaginação dos eventos futuros e da maneira como enfrentá-los, o exame de consciência, feito de noite, sobre as ações do dia e sobre os pensamentos que as acompanharam, inclusive o exame dos sonhos.
Ética estóica Zenão, Sêneca, Marco Aurélio O latifundiário da era moderna se apropria da Natureza, cercando-a e registrando-a em cartório. E depois diz: é minha, porque está registrada. O capitalista esgota os recursos naturais e suas fábricas vomitam dejetos no ar. E depois diz: estou criando riquezas para todos. Qual idéia de natureza está na cabeça destas pessoas? O ideário estóico enobreceu e confortou milhões de pessoas na história antiga e contemporânea, sobretudo através dos escritos de Sêneca (Diálogos e Cartas a Lucílio, 62 d..C.) e de Marco Aurélio ( As Memórias, 177 d.C.). Os estóicos, na Grécia, foram os mestres do viver segundo a Natureza. Todos os viventes, eles dizem, tendem a conservar a si mesmos, a não fazer algo que possa prejudicar o seu próprio ser. Portanto, é bom aquilo que incrementa o nosso ser, e chama-se virtude, é mal aquilo que prejudica e diminui o nosso ser, e chama-se vício. O homem, claro, difere de todos os outros seres, porque é também racional. Portanto, no homem é bom aquilo que incrementa a mente, é mal aquilo que a maltrata. A Natureza também ensina a preservar os filhos, os parentes e todos os
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semelhantes. A ética é comunitária, pois o homem, como a Natureza, é cosmopolita. Daí os preceitos de: viver em harmonia com a natureza, exercitar o autodomínio, controlar as paixões e os desejos que provocam sofrimento, ter a imperturbabilidade do espírito frente às desventuras. O verbo estóico poderia ser resumido na fórmula: “cuidar de si”. Isto significa dedicar-se aos exercícios do espírito, fugir da ânsia do futuro, eliminar a carga de trabalhos desnecessários, saber programar aquilo que protege das doenças do viver, mimetizar-se no fluxo do Todo, tomar consciência da brevidade da vida. Desta forma, o ser humano realiza: o bom físico e mental, a saúde, a força, o vigor dos membros, o amor, a amizade, o conhecimento, a sinceridade, a dedicação, a generosidade, a limpeza, o silêncio, a ordem. a imperturbabilidade diante da dor e da morte A Natureza consciente dos estóicos é parecida com a Natureza Anímica de muitos povos primitivos e com o Grande Espírito dos Índios americanos, como se expressa o caçador siberiano Derzú Uzalá no filme homônimo, no qual o vento é gente, o sol é gente, a floresta é gente, o gelo é gente. O ideal máximo da Ética estóica é a Felicidade, entendida como curso da vida em harmonia com a natureza. A racionalidade do estóico renuncia à paixão, quando esta é deviação, excesso, tortuosidade. A filosofia estóica inspira, hoje, muitas éticas ecológicas. A Natureza Inteligente dos estóicos é, claramente, muito mais que a natureza fria dos físicos modernos, cheia de átomos e buracos negros. Todavia, os relatórios do World Watch Institut dizem que, devido à combustão de carvão e petróleo e ao efeito estufa, a Terra está com febre, sempre mais quente: as geleiras se retraem nos Alpes, a neve cai no Saara, os ventos dos furacões alcançam velocidades de 240 quilômetros por hora, a concentração de gás carbônico na atmosfera irá asfixiar a vida do planeta, a variação térmica das correntes oceânicas poderá provocar catástrofes apocalípticas. Impõese uma Ética da Natureza.
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Ética dos cínicos Antístenes, Diógenes Os Cínicos são uma variável dos Estóicos. O ideal dos cínicos é viver segundo a natureza, escondidos fora da cidade e da sociedade, pois na cidade o homem acabaria dominado pelas convenções sociais, pelo poder e pela ostentação, coisas que perturbam a simplicidade do existir. É mais importante possuir a si mesmo do que possuir os bens. “Sou como cachorro, diziam: se alguém me dá comida, lambo-o, se me recusa a comida, lato”. O termo cínico vem do grego kýon, que significa cachorro. Spinoza No livro Ética Demonstrada com Ordem Geométrica, a metafísica de Spinoza (1632-1677) é ancorada nestes princípios: O Absoluto é o Universo, que é a única Substância existente, determinada e necessária. Chama-se Deus ou Natureza ( Deus sive Natura). Tudo aquilo que acontece dentro da Natureza é bom, porque pertence à dinâmica autônoma da Substância, que é um Absoluto intocável. Nossos sentimentos e pensamentos acontecem em força do determinismo necessário deste Absoluto. Para Spinoza, mesmo uma maldade operada pelo homem é algo determinado pela lei da natureza e é, portanto, uma coisa necessária e “boa”. Nada podemos fazer contra ela, a não ser conviver “numa boa” com ela. Nem adianta criar ódio contra o criminoso, porque nada podemos fazer contra a irresponsabilidade alheia. Também não devemos ter remorso daquilo que fizemos, pois o que aconteceu foi uma necessidade natural. A Ética de Spinoza, portanto, é uma tentativa de libertar e tranquilizar o espírito do homem, aceitando a necessidade natural como força que funda e estrutura o mundo. O que, nisso tudo, compete ao homem fazer? Deixar rolar? Spinoza responde que ao homem só resta uma tarefa: limitar, por quanto possível, os efeitos danosos que a dinâmica da Natureza pode provocar, e isto pode acontecer mediante uma Ética que visa controlar e dirigir os sentimentos, a afetividade, as paixões. Nisto reside o único poder do homem: tentar limitar os danos e, no restante, ficar em santa paz com aquilo que acontece necessariamente, em
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razão do determinismo que constitui a substância do mundo. Spinoza é idolatrado pelas Éticas modernas da liberdade individual, pois para ele não existem normas vindas de alguém, as quais frequentemente foram causa de maldades na historia. Nem existem valores. Só existem as leis necessárias da natureza, nas quais estamos inseridos, como a gotinha de água está à mercê da imensa correnteza do rio. O pouco que podemos fazer é disciplinas as afeições. Spinoza aconselha, por exemplo, a fazer o bem sem imposição de normas, pelo puro amor do bem em si e pelo sentimento de alegria interior que isso dá. Muitos consideram que a lacuna desta filosofia está na declaração de não existirem normas e valores, ao mesmo tempo que Spinoza deposita um valor naquilo que diz e sugere conselhos de comportamento. Além disso, é difícil aceitar o mal como sendo algo simplesmente necessário, sem que o homem tenha autonomia alguma para evitá-lo. Tudo, para Spinoza, não passa de uma relação necessária de causa-efeito. Digamos que Spinoza elabora uma reconciliação do homem com a Natureza, uma Ética ecológica, uma fuga das regras impostas, uma disciplina dos afetos e das emoções. Hegel Em sua obra máxima A Fenomenologia do Espírito, Hegel (1770-1831) mostra assim seus princípios metafísicos: o Absoluto é o próprio universo, que é Idéia, Inteligência, Razão, Espírito. Como na unidade corpo-mente do homem os movimentos do corpo são governados pela mente, da mesma forma o Universo material é movimentado por uma Razão nele imanente. A Matéria Cósmica é uma Matéria Racional. Na Filosofia do Direito Hegel diz: tudo o que é real é racional e tudo o que é racional é real. A física quântica atual, que afirma um universo formado por partículas conscientes, nos faz entender o que Hegel queria dizer A Razão do Mundo é alcançada pelo homem quando este, superando o senso comum, faz filosofia. A Religião é apenas uma forma rudimentar e popular de Filosofia. A consciência do homem é parte da grande Consciência do Universo. A Lógica da Natureza é, para Hegel, Deus. O que significa, então, viver? Significa criar uma Natureza sempre mais Racional. A Racionalidade da Natureza fermenta, cresce e evolui mediante a evolução das obras da Razão do homem.
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O cosmo hegeliano é um movimento da Razão, que a cada instante supera a si mesma e se realiza mais plenamente, superação que Hegel chama transcendência. A função do homem na vida é sintonizar-se com a razão cósmica e acrescê-la, realizando uma história racional, ações racionais, instituições civis racionais. O Direito, por exemplo, deve realizar, na história, leis e manifestações que correspondam à Idéia, à Razão Cósmica. Tudo aquilo que o homem faz deve constituir uma realização da Idéia. A História é a realização da Razão Cósmica no tempo. O Estado, enquanto harmonia entre os grupos da sociedade civil, é uma realização da Idéia, um ingresso de Deus-Idéia no mundo. Ser homem, exercer uma profissão, significa tornar-se lugar e instrumento da Idéia-Deus-Razão-Espírito. Significa auto-racionalizar-se. Significa autodivinizar-se. Este é o compromisso ético do Homem, exposto também pelo filósofo Max Scheler (1874-1928). Quando morria de peste em Berlim, Hegel diziae aos circunstantes: “Estou voltando à Natureza, a Deus”.
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Fundamento Religioso da Ética O Bom é Deus: revista-se da Divindade! O jovem Eugênio é filho rico de pai rico. Diverte-se, viaja, faz lutas. Um belo dia encontra um velho sacerdote, com o qual entretém longas conversações diárias. Com novos ideais na mente, Eugênio decide de renunciar a toda a herança. Inclusive, visita todos os cartórios da cidade para averiguar se alguém da família deixou algum bem para ele secretamente. Aí, ele decide de viver na simplicidade e na austeridade, sem supérfluo, dedicando sua vida a ler, ser professor do primário, escrever e meditar. Quando algo faltava em casa, dizia: “esta é a perfeita alegria”. Eugênio é um ingênuo ou um sábio? A metafísica da Religião As Religiões propriamente ditas são três, que adoram um Deus Criador, o qual, sendo genitor do universo, é também Pai. As três Religiões do Livro com seus nomes de Deus e do Livro são: Judaísmo, onde o nome de Deus é Javé, revelado na Torá Cristianismo católico, ortodoxo e protestante, cujo Deus é revelado no Antigo e Novo Testamento. Islamismo, onde o nome de Deus é Alá, revelado no Alcorão Estas três religiões professam o mesmo conceito de Deus, mudando somente o nome, e possuem basicamente a mesma ética, mudando apenas as formas geográficas e étnicas. Em outras palavras, as três Religiões têm a mesma substância, mudando as formas. Elas são como a luz, que se irradia em várias cores, todas elas jorrando da mesma fonte e voltando a ela. O Absoluto das Religiões é Alguém, um Deus Criador e Pai, uma Pessoa. Chama-se Deus-Pessoa, porque pensa e projeta as coisas e
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os homens, cria o universo, acompanha os viventes, ama-os, destina a eles um lugar individual na eternidade em companhia da Família Divina. É um Deus-Pessoa Transcendente, porque é anterior ao mundo e Outro do mundo. O Homem é um filho de Deus, com direito à herança das coisas de Deus, sobretudo à felicidade na beatitude sem fim. Como filho, o homem dialoga com o Pai, e isto se chama oração, meditação, ética. ⇒ Os homens que se reconhecem como filhos de um mesmo Pai se organizam sua Fé individual em associação ou Religião, na qual estruturam organogramas e rituais, que lhes permitem viver o espírito de família. As Religiões reeditam num plano superior aquilo que acontece no plano terrestre, sobretudo reeditam a coisa mais terna que existe entre os homens, a família e o amor entre familiares (Pai-filhos). Quando alguns objetam que isto não passa de projeção antropomórfica (fazer um Deus à moda do homem), a teologia responde que o homem é que é teomórfico (o homem é feito à moda de Deus) A Morte é uma porta que se abre para o eterno, onde o Pai espera seus filhos para entregar-lhes a herança prometida, que é a felicidade do amor perfeito. A Ética é uma obediência-diálogo entre Pai e filho. O Pai entrega ao homem as regras do caminho que leva ao eterno feliz, e o filho procura seguir tais conselhos. O Livro Sagrado e as decisões da Religião constituem a cartilha dos conselhos morais.
Revestir-se da Divindade Agostinho, africano, viajou e procurou a verdade por décadas. Vivia na boemia, tendo até um filho ilegítimo. Sua mãe Mônica impetrava a Deus pelo filho angustiado, sabendo que "as armas das pessoas religiosas são as lágrimas e as orações". Um dia de agosto do ano 386, Agostinho vai à catedral de Milão e ouve um sermão do bispo Ambrósio. Volta pensativo, recolhendo-se no jardim da casa onde está hospedado. Lá sente uma voz interna, quase voz de criança, que lhe sussurra: pega, pega, lê, lê! Ele toma em mãos o Novo Testamento, abre-o, e seus olhos caem nas palavras que o convertem ao cristianismo: "Não na devassidão, na luxúria, no dinheiro e nos divertimentos encontrareis a paz, mas, revesti-vos de Cristo
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Jesus". Revestir-se da Divindade! O que significa este programa ético de Santo Agostinho na vida privada, social e pública do homem moderno? Antes de tudo, precisa conhecer a Divindade, coisa que se faz adquirindo familiaridade com o Livro Sagrado, meditando, orando. O centro da Religião é a Mística, que significa o matrimônio da alma humana com Deus. A pessoa religiosa procura conhecer Deus e mergulhar nele. Mas conhecer é amar, e amar é assimilar-se entre amantes. Em contato com Deus, a pessoa religiosa se assimila a Ele, revestindo-se das virtudes e dos atributos da Divindade, que são: beleza, bondade, verdade. O homem que esteve em contato com Deus pela contemplação intuitivo-intelectiva tornase ele mesmo verdadeiro, bom e belo. Sendo bom dentro de si, suas ações serão boas, pois, aristotelicamente, o agir segue o ser. Os judeus usavam uma linguagem plástica para descrever a mudança de uma pessoa depois de ter estado com Deus: ao voltar entre os homens, a pessoa tinha o rosto resplandecente e a fronte marcada por dois feixes de luz. Uma vez revestido da beleza divina, o homem religioso envia mensagens de bondade ao mundo, como Moisés descendo do Sinai com o rosto radiante e os Mandamentos na mão, ou como o homem da alegoria platônica retornando à caverna para libertar os demais após ter fixado o Sol. A contemplação se faz ação. Se começa na mística, se acaba na política. Isto é Ética. E Deus disse: é muito bom! No princípio criou Deus os céus e a terra. E disse Deus: seja feita a luz... Viu Deus que a luz era boa. Chamou Deus ao elemento seco terra, e ao ajuntamento das águas mares... E viu Deus que isso era bom. E disse Deus: produza a terra ervas, árvores frutíferas... E viu Deus que isso era bom. E disse Deus: haja luminares no firmamento do céu... E viu Deus que isso era bom. E disse Deus: produzam as águas cardumes de seres viventes e voem as aves no firmamento do céu.... E viu Deus que isso era
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bom. E disse Deus: produza a terra seres viventes, animais domésticos, répteis, e animais selvagens... E viu Deus que isso era bom. E disse Deus: façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança... domine ele sobre a terra... Criou, pois, Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou... Então Deus os abençoou (Gênese, 1). Você acha mesmo que o mundo é bom? O mergulho no Bom Supremo, no Ente-Bom, torna o homem bom. Mas também a harmonia, a união, o yoga com os entes bons da Natureza tornam o homem religioso bom. O Bom, segundo as religiões, está em nós, ao redor de nós, acima de nós. Estamos mergulhados no Bom, porque após cada dia da criação, Deus olhava o que saíra de sua Mente, e dizia a si mesmo, satisfeito: “é muito bom!”. O mundo é o traço da Mente de Deus, que é boa e faz o mundo bom. Segundo os medievais, Deus é a forma do Bom, forma como molde, modelo, parecida com a forma usada pelo pedreiro para fazer tijolos. Toda massa informada por aquela forma chama-se tijolo, como todo homem informado pela forma divina, que é boa, é um ser divino e bom. Esta Mente Divina, existente desde o eterno e mergulhada no mundo, é chamada também Logos. Mas é um Logos diverso do Panteísmo cósmico, que vimos no capítulo anterior. O Logos das Religiões não é apenas a Inteligência-Energia-Prana presente no universo, mas é a Mente Divina criadora do universo à sua imagem: Foi este Logos Divino, Segunda Pessoa da Trindade, Inteligência e Palavra (Verbo) do Pai, que assumiu a forma humana e habitou entre os homens com o nome de Jesus Cristo, o Emanuel, que significa Deus conosco: “No princípio era o Logos, e o Logos estava junto de Deus, e o Logos era Deus... ele se fez carne...” (João, 1). E Deus disse: "Façamos o Homem à nossa semelhança". Por isso, a Bíblia diz aos homens: "Sois deuses!", e o místico islâmico diz: "eu sou Tu!", de onde deriva toda a dignidade da Pessoa Humana e a consequente Ética das relações sócio-econômicas. O outro homem, nas religiões, é uma manifestação de Deus, é um dom de Deus para mim. Tomás de Aquino (1275) e, recentemente, Jacques Maritain (1963) são magistrais na descrição de como o Ente Supremamente Bom, ao criar o
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mundo, efundiu neste a pregnante riqueza da sua Bondade. Sabendo disso, Francisco conversava com o irmão sol, a irmã lua, a irmã morte, pregando aos pássaros e convencendo o lobo ameaçador a deixar a cidade de Gubbio, na alegria de seus habitantes, que puderam sair pelos campos. O mal e a vitória sobre ele Epicuro, na Grécia de 300 a.C., dizia: a existência do mal mostra que Deus não existe. Porque, se Deus pudesse vencer o mal e não o faz, seria mau; se quisesse, mas não pode, não seria todo-poderoso. Julgue Epicuro. O judeu Elie Wiesel, Prêmio Nobel da Paz em 1986, foi levado com a família para o campo de extermínio de Auschwitz aos quinze anos, em 1943. No dia da chegada foi separado da mãe e da irmã, que nunca mais viu. Ficou com o pai, que definhou aos poucos e morreu sob seus olhos. Único sobrevivente da família, passou anos em silêncio, até começar a escrever. Hoje, ele recomenda aos jovens de não ler apenas os livros da moda, mas sobretudo os livros que desafiaram os séculos, como a Bíblia e os Vedas. Em todos os seus escritos, após ter visto e vivido tanto mal, Wiesel propõe ao leitor a sua convicção: a força que salva a humanidade do seu mal só pode vir do Zvar Adonai, da Palavra de Deus. Julgue Wiesel . Após ter enfatizado o Bom que existe em Deus, nas coisas e no homem, aparece a grande questão: o mal. A existência do mal leva muitos pensadores, como o grego Epicuro, a negar a existência de Deus, que, se existisse, não permitiria o mal. Mas o mal também levou muitas pessoas a abraçar a Religião. A ética religiosa distingue dois tipos de mal: O mal físico, que independe da vontade do homem, como terremoto, malformação genética, doença. O mal moral , que depende da vontade e da escolha moral do homem, como guerra, traição, crueldade, injustiça.
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Quanto ao mal moral , este é fruto do livre arbítrio do homem, e Deus não pode ser responsabilizado. Aliás, a teologia vê nisso a grandeza de Deus, que dá ao homem o maior dos bens: a liberdade do livre arbítrio. Por isso Deus não tapa o canhão, quando o homem quer bombardear. A questão do mal moral levou muitos pensadores a crer em Deus, argumentando que a causa do mal moral é humana, mas a libertação do mesmo é uma obra humano-divina dentro de uma Religião. A história nos diz que o homem, sozinho, é quase impotente a libertar-se de escolhas morais trágicas e animalescas. Com efeito, a Razão ilustrada do iluminismo positivista mostrou-se incapaz de evitar guerras e destruições com milhões de mortos e lançamento de bombas atômicas. O marxismo, por exemplo, ofereceu uma certa libertação do mal, mas faliu, depois que o muro de Berlim caiu e o marxismo foi reabsorvido pelo sistema burguês, seu inimigo primitivo. Do mesmo modo, a promessa libertadora do liberalismo estaria sendo engolida pelo despotismo da técnica. Quem liberará o homem? A questão do mal físico é mais difícil de entender: por que Deus o permite? A filosofia aristotélica e a teologia dizem que o mal físico não existe. O mal é uma ausência de bom. Com efeito, se considerarmos que a criação está em evolução, uma mão com quatro dedos ao invés de cinco é a ausência de uma perfeição, mas o resto do corpo já alcançou bilhões de perfeições. Uma inteligência menos capaz que outra possui inúmeras perfeições, mesmo que ainda lhe faltem as perfeições que outra pessoa já alcançou. É difícil explicar isto aos pais que perderam o filho querido, mas é exatamente aqui que intervém a fé religiosa: creio, porque me conforta. A fé me diz que meu filho está vivo. Pois a morte, o mal último e mais feroz, foi derrotada, segundo o cristianismo, pela vitória da Ressurreição de Cristo. Libertar-se do supérfluo A “pequena grande mulher”, Teresa de Calcutá, passa de trem ao longo da favela indiana e decide: “farei dos pobres a minha vida”. Não teoriza sobre grandes projetos para vencer a fome no mundo: “cada pobre e doente que encontro na rua – ela diz – é o meu grande projeto”. Nascida de família abastada, assume o estilo de vida dos pobres, recolhendo os corpos sofredores nas calçadas. Seu corpo se curva com a idade e das rugas do rosto emana uma beleza que vem do íntimo. Quando
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alguém lhe monstra apreço por suas pequenas grandes caridades, ela responde: “sou um lápis na mão de Deus”. Recebe o reconhecimento dos homens, no Prêmio Nobel de 1887, e recebe as honras da Igreja, pela Beatificação de 2003. Neste dia, na Praça de São Pedro em Roma, estavam em primeira fila, lado a lado e com igual privilégio, os potentes da terra e dois mil pobres. Todos admiradores da “mulher enamorada de Deus”. Como a ética da religião vê o corpo e o espírito? O que significa, na ética religiosa, o cuidado com o corpo? O Cristianismo, em sua singularidade, proclama a ressurreição da carne, conceito pouco claro no Judaísmo e no Islamismo. Ou seja, o espírito fica órfão e incompleto no paraíso, até reaver a companhia do corpo no fim dos tempos. Aparentemente desprezador do corpo, como acusa a psicanálise, o cristianismo possui uma mística do corpo. Um dos preceitos da Ética religiosa é a disciplina do corpo como instrumento de evolução do espírito. Ascetas e místicos de todas as religiões até mortificaram o corpo com flagelo e jejum, quando as vozes do corpo, usualmente ruidosas e agressivas, queriam sobrepor-se às razões do espírito. Os ginastas das Olimpíadas fazem do corpo uma oportunidade para o espírito voar, e apontam, com mãos e dedos estendidos, um ponto longínquo no ar, muito além do corpo, para o qual sentem-se atraídos, quase querendo superar o corpo. Nesta vontade do espírito de voar, o homem religioso escolhe para seu corpo o essencial, tirando pesos supérfluos impedidores do vôo, como Moisés tirou as sandálias ao aproximar-se da Sarça Ardente. Ter a sabedoria de distinguir o necessário do supérfluo é a maior preciosidade do homem moderno, semi-intoxicado por uma avalanche de necessidades descartáveis. Em seus tratados, os medievais costumavam dizer que existe uma música, harmonia de intervalos, entre a alma e o corpo. Música feita de amor recíproco, austeridade, substancialidade, temperança, controle do instinto, cuidado sem obsessão. A arte como reverberações do eterno
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Perguntaram a um teólogo islâmico, amante da arte, o que ele sentia quando visitava uma igreja cristã famosa ou observava uma pintura. Respondeu: “Quando entro numa igreja geométrica e antropocêntrica de Florença, sinto-me na Toscana, quando entro na catedral gótica de Toledo, sinto-me no universo. Quando olho o Grito de Munch, sinto-me no tempo, quando contemplo a Sepultura do Conte Orgasz de El Greco, sinto-me no eterno”. Explique a ética da arquitetura moderna, que sepulta os templos sob avenidas, arranha-céus e lojas. Partindo dos pressupostos acima enunciados, até a arte recebe o seu estatuto por parte do pensamento religioso. A verdadeira arte é aquela que reverbera a Divindade e leva o espectador até o Divino. Este tipo de arte distingue-se da arte que reflete apenas o drama humano, as problemáticas do profundo freudiano, a alma dilacerada. Platão chegou a dizer que os artistas deveriam ser expulsos da cidade, pois eles, representando e reforçando apenas as coisas visíveis, afastam o espectador das coisas invisíveis do Mundo Inteligível. A arte humana distingue-se da arte humano-divina como uma igreja geométrico-renascentista distingue-se da catedral gótica. A Vida acima de tudo Caim disse a seu irmão: "Saiamos". E, logo que estavam no campo, Caim lançou-se contra seu irmão Abel e o matou. Deus disse a Caim: "Onde está o teu irmão Abel?". Caim respondeu: "Não sei. Acaso sou o guarda de meu irmão?”. Disse-lhe Deus: "O que fizeste? O sangue de teu irmão grita da terra por mim. Por isso serás maldito sobre a terra". Então Caim disse ao Senhor: "O meu pecado é tamanho que não mereço perdão. Esconder-me-ei do vosso olhar e quem me encontrar me matará". Disse-lhe Deus: "Quem matar Caim sofrerá a vingança sete vezes". E marcou-o com um sinal para que ninguém ousasse matá-lo (Gênese, 4)". Julgue a pena de morte
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Celebração de uma Ética da Vida, a partir da fundamentação religiosa, é a Encíclica Evangelho da Vida de João Paulo II (1995). Compreende-se porque as Religiões são defensoras extremas da vida: Deus é Vida. É Deus , cioso de sua criação, que abomina a eutanásia, o aborto, o manuseio arbitrário dos embriões, a violência econômica e física contra o corpo. A pena de morte, admitida durante séculos pela moral católica, hoje é reprovada pela Religião, que evolui com o evoluir da humanidade. Se o assassino se manchou de sangue, o mesmo não deve fazer o Estado, que usará outros meios, entre eles o ensino da moral e a justiça social, para coibir o assassinato. Nesta defesa suprema da vida, dizem as Religiões, o aborto deve ser evitado em qualquer caso: é melhor uma mulher ficar com o fruto indesejado do estupro do que introduzir na humanidade a idéia de que em algum momento um homem possa pôr as mãos sobre a vida de outro ser humano. Pois, uma vez que a lei suprema da vida é arranhada, o caminho fica aberto a outros milhares de razões para ofender milhões de vidas. Veja, por exemplo, como os países campeões em abortos são também campeões em assassinatos diários de rua e em humilhação econômica de milhões de seres viventes. Uma vez instaurado o círculo da morte, a vida fica golpeada em todos os níveis. A Ética do Trabalho. O trabalho como sinergia com Deus, serviço ao próximo, aperfeiçoamento de si Os empregados adoecem de infelicidade no escritório. Este é o resultado de uma pesquisa de 2004 na Europa. De todos os empregados existentes em escritórios, 63% adoecem por relações frias ou hostis com chefes e colegas, rotina de tarefas, ambiente nu e sem cores, luzes artificiais. Sem contar a insuficiência salarial e até a comunicação impessoal via internet. Os mais infelizes encontram-se entre pessoas cultas ou médio-cultas, dos 36 aos 45 anos, 56% mulheres e 44% homens. Quando se faz a estatística da infelicidade por profissões, os empregados vêm em primeiro lugar, com 27%. Seguem domésticas e pensionistas (20%), operários (14%), desempregados (13%), profissionais liberais (5%) e outros.
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Qual o remédio eficaz para a doença da infelicidade no escritório? O trabalho, nas religiões, é o lugar e o tempo mais extenso do dia, destinado à santificação de si na imitação de Deus, que trabalha sempre. Na antiguidade greco-romana havia um preconceito áulico sobre o trabalho das mãos. Era digno o homem dedicado à contemplação filosófica. Era instrumento de trabalho, se bem que instrumento animado, o homem dedicado às tarefas manuais. O Cristianismo, fundado por um operário filho de uma pobre operária, revolucionou o conceito de trabalho intelectual e manual. Isto escandalizava escritores aristocratas, como o romano Celso em 200 d.C. São Paulo, fazedor de redes, relembra aos Corinthios o dever do trabalho, porque Deus trabalha sempre e “nós somos cooperários de Deus” na edificação do mundo (1 Cor., 3). Agostinho escreve, em 400 d.C., um livro sobre o trabalho dos monges. São Bento, em 540, declara o trabalho irmão gêmeo da oração na ascensão a Deus: ora et labora, reza e trabalha. Todos os Padres da Igreja, do século I ao século VII, além de constituírem-se em defensores dos operários ( patroni causarum), insistem sobre as três finalidades do trabalho honra de Deus, solidariedade ao próximo necessitado, aperfeiçoamento e santificação de si, exercitando a disciplina, os horários, o cuidado com os instrumentos, a moderação no esforço, a fuga da vaziez de espírito, a cura do corpo companheiro da alma. Na efervescência intelectual do século XII, em plena Idade Média, o mestre Hugo, frade agostiniano da Escola de São Vítor na Paris de 1120, pela primeira vez na história situa as artes mecânicas manuais na divisão da filosofia, definindo o trabalho como uma imitação e recriação (transformação) das formas presentes na Natureza por obra da Mente Divina Criadora. Emanuel Mounier (1935), entre os escritores cristãos recentes, denuncia a “desordem estabelecida” na escala de valores do capitalismo. O capitalismo põe: 1) no topo o lucro, depois 2) a produção que dá lucro, depois 3) a criação artificial de necessidades humanas voltadas a fazer aumentar a produção, depois 4) o homem imolado às necessidades artificiais. Mounier considera que esta ordem deve ser invertida
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totalmente, pondo no topo o homem, depois suas necessidades reais, depois a produção voltada a satisfazê-las, por fim o lucro possível. Ultimamente, multiplicaram-se as encíclicas papais e os documentos das igrejas sobre o trabalho. Vários movimentos cristãos nasceram, os quais tem como regra a santificação de si no trabalho profissional. Finalmente, a encíclica Laborem Exercens (Exercendo o Trabalho, 1987), de João Paulo II, após resumir dois mil anos de escritos cristãos sobre o trabalho humano, ressalta alguns itens: O trabalho deve mostrar a vocação de domínio do homem sobre a natureza, após a missão dada no Gênese: “dominai a terra”. Por isso, nenhum homem será sujeitado por outro homem no trabalho, fato que, extensão da escravidão, acontece na empresa capitalista. A luta entre capital e trabalho deve ser resolvida mediante o conceito de pessoa, conceito que acontece quando é realizado o primado da pessoa sobre as coisas e o primado do trabalho sobre a lógica do capital. Tudo isso exige que se chegue a uma co-propriedade dos meios de trabalho na empresa, “associando o trabalho à propriedade do capital”. “A finalidade do trabalho, de todo e qualquer trabalho realizado pelo homem - ainda que seja o trabalho mais humilde e o mais monótono e até o mais marginalizador - permanece sempre o próprio homem”.
Creio porque é absurdo Muitos pensadores deixaram de crer em Deus, porque acharam que a vida é absurda, e um Deus, se existisse, não a teria feito assim. Em Meu Testamento Filosófico, o filósofo Jean Guitton imagina de estar morrendo, e recebe a visita de Pascal. Este lhe pergunta porque acredita em Deus. Guitton tergiversa, mas Pascal insiste. Por fim, responde: “Pascal, vou usar as palavras que você mesmo escreveu. Creio em Deus, porque é absurdo”. Aspectos absurdos da existência humana afastam ou aproximam o homem do Mistério Divino? Milhões de pessoas, analfabetos e doutores, vão atrás de uma mulher que é virgem e mãe, filha e mãe de Deus, no Catolicismo. Isto, em pleno século
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XXI. O materialismo científico e racionalista francês de 1800 e 1900 fez o diabo a quatro para acabar com o santuário da Imaculada Conceição em Lourdes, nos Pireneus, e fez um buraco na água. A cada ano, em pleno terceiro milênio, aumentam as pessoas que acorrem àquele santuário. O que as move? Após o vendaval materialista-racionalista-cientificista e anti-religioso, que assolou o Ocidente iluminista nos últimos duzentos anos, registra-se no mundo o retorno ou “vingança” do Sagrado. O que move essas mentes? O Catolicismo é a religião mais numerosa e unida do planeta. Mas é também a religião com maior número de dogmas e mistérios. Em plena era do racionalismo agressivo contra a Religião, o Catolicismo declarou, em 1879, que o Pontífice é infalível. Declara que toda Missa é um milagre pelo qual o pão se transforma no corpo de Cristo-Deus. Declara que Deus é uno e trino. Declara que Maria subiu ao céu em alma e corpo. Declara que cada pessoa viverá na eternidade em corpo e alma. Milhões de pessoas cultas e incultas vibram em pleno século XXI com tantos dogmas e mistérios. O que as move? A resposta veio de Tertuliano (200 d.C.), quando estabelecia contrapontos entre razão e fé na pergunta: “o que tem a ver Atenas com Jerusalém?”. E acrescentava: credíbile, quia impossibile est , é crível, porque é impossível. A resposta veio de Descartes: dubito, ergo Deus est , duvido, logo Deus existe. A resposta veio das “razões do coração” do rigoroso Pascal, que traduzia Tertuliano: credo, quia absurdum, creio porque é absurdo. Há, no homem, um fascínio pelo Mistério. O homem não se contenta com aquilo que é igual a ele. Procura histórias, pessoas e realidades diferentes da sua mesmice cotidiana. O próprio ateu Nietzsche foi à procura de heróis até encontrar Zaratustra e, quando devia descartar algum deles, dizia: ‘É humano, demasiado humano!”. O homem comum gosta dos feitos de grandes homens, quais Alexandre, César, Napoleão. E, quase não lhe bastando isso, quer mais, vai além, se adentra no desconhecido, sente-se atraído por algo maior que as coisas, pelo Mistério. Por que? De onde vem esta alucinação? É doença? E por que uma doença tão recorrente? Ou é uma saudade da casa, uma casa que realmente existe, esperando seus ocupantes?. A Ética do Sinai A Palavra do Sinai, o Sermão da Montanha e o conjunto dos Livros Revelados constituem as tábuas da Ética Religiosa no Cristianismo. Suas
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regras, comuns ao judaísmo, ao cristianismo e ao islamismo, construíram o Ocidente. Mas Moisés apenas escreveu os Dez Mandamentos, que a humanidade inteira foi forjando e apurando durante cinquenta mil anos, desde o Homo Sapiens. Essas regras respondem às necessidades básicas de uma vida e de uma sociedade em paz. São elas (Êxodo, 20): manter um centro espiritual e unificador das metas humanas: “eu sou o Senhor teu Deus” evitar alucinações idolátricas que desviam do caminho reto: “não terás outros deuses diante de mim” praticar rituais de agregação humana: “guardar o domingo e dias santos”. honrar pais, professores, superiores e chefes da sociedade: “honrarás pai e mãe”. ter cuidado com a vida de si e dos outros: “não matarás” ter cuidado com a família, base da integridade pessoal: “não cometerás adultério”. garantir o necessário a cada um mediante a partilha dos bens: “não roubarás” cultuar a verdade dentro de si e nas relações humanas: “não levantarás falso testemunho” respeitar os afetos do próximo: “não cobiçarás a mulher do outro” respeitar os bens do outro: “não cobiçarás as coisas do outro”. Da Ética do Sinai as Religiões extraem norma diárias de cunho espiritual e material. Além dos valores e virtudes pessoais apresentados no capítulo Valores e Virtudes, as Religiões contemplam obras, que realizam o amor ao próximo e, consequentemente, o aperfeiçoamento de si. Tais são os Sete Conselhos de Misericórdia Espiritual (Isaias, 61): aconselhar os duvidosos, ensinar os ignorantes, admoestar os pecadores, consolar os aflitos, perdoar as ofensas,
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suportar com paciência os molestos, rezar pelos vivos e pelos mortos. Tais são as Sete Obras de Misericórdia Corporal (Mateus, 25): dar de comer aos famintos, dar de beber aos sedentos, vestir os nus, abrigar os peregrinos, cuidar dos enfermos, visitar os presos, sepultar os mortos. O julgamento final, ao qual estará submetido o homem religioso, será um julgamento sobre o amor. No julgamento, o Sumo Bem considerará as ações dirigidas aos outros como dirigidas a Ele mesmo: “Estava com fome e me destes de comer, estava com sede e me destes de beber...” (Mateus, 25) Com isto, tudo estaria dito sobre a Ética.
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Fundamento racionalista e/ou materialista da Ética O Bom é a Liberdade: seja o projeto de si mesmo! Por que a expressão “Racionalismo e/ou Materialismo” Neste capítulo estão esboçados os princípios metafísicos que norteiam as Éticas baseadas apenas na Razão Humana. Por que a expressão “Éticas materialistas e/ou racionalistas”? Porque nem sempre um racionalista é também materialista. O Racionalismo afirma que existe uma Razão cerebral comum a todos os homens e esta é capaz de elaborar um discurso filosófico-ético, que todos possam entender e aceitar, exista Deus ou não. O Materialismo afirma que existe somente a Razão humana cerebral e esta é capaz de dar conta dos problemas do homem, sem recorrer à hipótese de Deus ou de um cosmo espiritualizado, que não existem. Isso posto: há autores de Ética que são racionalistas e materialistas, pois, além de aceitar somente a Razão Humana biológica como base do discurso ético, negam Deus ou a dimensão espiritual do cosmo. Tais são Comte, Marx, Mill, Nietsche, Freud, Foucault, Habermas. mas há autores de Ética que são r acionalistas sem serem materialistas, pois crêem pessoalmente no mundo supra-material, mas o põem metodologicamente entre parêntese, a fim de oferecer um raciocínio filosófico-ético comum a todos os mortais. Tais são, por exemplo, Kant, Jonas e Rawls. Por isso, quanto será afirmado nas próximas linhas é aplicável no todo às éticas racionalistas-materialistas, mas nem tudo às éticas racionalistas nãomaterialistas.
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Metafísica do Materialismo As Éticas materialistas começam suas argumentações com os seguintes princípios, que, por serem assumidos sem provas cabais e por uma certa fé (belief ), ), são metafísicos e, em sentido amplo, “religiosos”. Tais Tais princ princípi ípios os consti constitue tuem m a chamad chamadaa Modernidade, Modernidade, qu quee signi igniffica ica a cultura cultura racionali racionalista-ma sta-materia terialista lista dos últim últimos os dois séculos, séculos, a qual professa professa que a razão (e a vontade) vontade) do homem homem é a única e mais alta instância instância de pensamento e de decisão moral, num mundo totalmente material . Estes princípios são: O Absoluto, origem de tudo, é a Matéria com seu big bang. Desta crença deve partir qualquer discurso dos humanos. O mundo é matéria e só existe este mundo. O Homem é matéria sem espírito ou alma e suas leis são as leis da matéria. A Ética deve fundar-se sobre a Razão Razão material material e é um exercício de autonomia do homem. A Relig ligião, fundada na fé, não é uma Ética. A Relig igiã iãoo é superstição, atraso, imposição, heteronomia, e faz mal ao homem A fé religiosa é uma ilusão do homem fraco, que procura um pai (Freud), que suspira contra a miséria (Marx), que ignora a ciência (Com (Comte te), ), qu quee teme teme o cast castig igoo relig religio ioso so (Der (Derrid rida, a, Fo Fouc ucau ault lt), ), qu quee possui o espírito de escravo (Nietzsche). Acabo cabouu a meta metaffísic ísica, a, po pois is aca acabara baram m as narr narraç açõe õess mít ític icaas e religiosas. Só resta a Filosofia da Ciência. Tudo é movimento, mudança, provisório, incerteza, diante deste imenso fluxo desafiador, que é a matéria. O indivíduo é livre de decidir o bem e o mal no meio de outros indivíduos livres. O Homem é um ser que se faz a si próprio, no aqui e agora. Devemos pensar novos fundamentos da Ética a partir da razão, para pôr de acordo milhões de indivíduos autônomos e salvar nossa vida num planeta.em perigo de destruição
Por que algumas Éticas se definem modernas As Étic Éticas as dita ditass modernas adqu adquir irem em este este adje adjeti tivo vo po porr perte pertenc ncer erem em à modernidade. modernidade. Como Como diss dissem emos os,, a mo mode dern rnid idad adee excl exclui ui (ou (ou põ põee entr entree parêntese ) o mundo espiritual e reconhece unicamente a razão humana .
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Mas, “modernidade” não significa que as Éticas milenares deixaram de existir em tempos modernos. Pelo contrário, a maioria da população atual do planeta, culta e inculta, se deixa direcionar por Éticas religiosas e cósmico-espiritualistas, as quais jorram de uma Vontade Divina, acima do homem. O termo modernidade representa a convicção de uma vertente parcial de pensamento atual. Mas, ironia da história, a chamada modernidade já ficou velha aos olhos daqueles que pensaram uma pós-modernidade uma pós-modernidade,, e estes, por sua vez, já estão desafiados por um retorno às Religiões e ao Sagrado. Gozada a história dos homens!”. As éticas modernas têm seus méritos, porém. Se, de um lado, elas se consideram uma reação à religião e à antiguidade, do outro, elas possuem o gran grande de méri mérito to de cria criarr um inst instru rume ment ntal al étic éticoo raci racion onal al,, qu quee acab acabaa auxiliando as próprias éticas religiosas, liberando-as do animismo, da magia e do fanatismo. Quando tudo começou Até o século XVIII, tínhamos quase somente as éticas orientais, grecoroma romana nass e reli religi gios osas as,, as qu quaais supõ supõeem, como como vimo vimoss no noss capí capítu tulo loss anteriores, a existência de um Espírito do Mundo (orientais e gregos) ou de um Cria Criado dorr do Mund Mundoo (jud (judaí aísm smo, o, cris cristi tian anis ismo mo,, isla islami mism smo) o).. Esta Estass Éticas tem como centro a figura de um Ser Superior , que se manifesta em Livros e sábios. Eram exceções, na antiguidade, o relativismo ético dos Sofistas (o homem é a medida de todas as coisas) e o materialismo ético dos Epicureus (a natureza é só átomos). A part partir ir do Ilum Ilumin inis ismo mo de 17 1750 50,, as cham chamad adas as filo filoso soffias ias mo mode dern rnas as destronaram Deus e puseram no centro a figura do homem. homem. Por isso, chamam-se Éticas Éticas Materialis Materialistas tas ou Antropológicas ou Subjetivas ou Racionalistas, Racionalistas, porque o fundamento da Ética é o sujeito-homem, que prescinde do Alto e se utiliza da Razão, apenas. Claro laro,, aconteceram muitos “ilu lum minismos” na história ria, como o aparecimento da escrita em 5.000 a.C., a invenção do alfabeto e do livro em 1200 a.C., o começo da filosofia grega, o advento do cristianismo, a renascenç renascençaa carolíngia carolíngia de 800 d.C., a criação criação da Universida Universidade de por obra da Igreja em 1100, o renascimento de 1500. Somos filhos de todos estes iluminismos, que continuam a viver no mundo moderno, pois nada se perde e tudo se transforma. Mas, o Iluminismo de 1750 caracteriza-se por uma ousadia frontal contra a figura de Deus e da Natureza-Espírito e pelo esmigalhamento das visões
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de mundo. Fazendo ciência e criando tecnologias, o homem se sentiu um deus, o deus de si mesmo, capaz, com sua própria razão, de definir seu próprio destino e as maneiras de alcançá-lo. Os cientistas do Instituto Pasteur de Paris acha achara ramm-se se deus deuses es ao redo redorr de 19 1930 30,, qu quan ando do desc descob obri rira ram m a pílu pílula la anestésica, que finalmente venceria a dor no mundo. A confissão “não terás outro Deus senão o Criador” mudou para “não terás outro deus senão a Razão Científica”. E assim, as filosofias começaram a criar suas éticas fundadas na Razão, as quais, faltando uma autoridade superior e central, se despedaçaram em infinitas Éticas, que estudaremos nos próximos capítulos: kantiana, marxista, niilista do resultado da responsabilidade, do discurso da justiça da felicidade e alegria da vida ou bioética dos negócios E novas éticas virão. Qual, entre tantas Éticas, será como feno florido de manhã e ceifado à tarde? Qual, entre as Éticas, desafiará os séculos e milênios?
Éticas modernas: novidade ou repetição? As Éticas modernas têm um mérito incalculável, o de achar fundamentos universais da Ética a partir da Razão, tais que possam ser adotados por todos os homens, crentes e não-crentes. Com quais resultados resultados,, porém? porém? Com tantos livros, cursos e congressos, congressos, as Éticas modernas conseguem, sim, iluminar com a razão os fundamentos do agir moral, mas mostram também de fazer longos percursos para chegar ao mesmo lugar de antigamente. Por exemplo: diz a Ética Kantiana: “aja de maneira que a tua decisão seja válida, ao mesmo tempo, para toda a humanidade”. Não disse o mesmo a Escritura, quando ensinou ( Levítico, 19, Lucas, 10): “ame o próximo com omoo a ti mesmo esmo””? Não Não acon aconse selh lhaa o Evan Evange gelh lhoo a “ama “amarr os
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inimigos” (Mateus, (Mateus, 5) e morrer pelo outro? (João, 15). diz a Ética Marxista: “na sociedade comunista, cada um trabalha de acordo com sua capacidade, a cada um será dado conforme a sua necessidade”. Não estava já escrito nos Atos dos Apóstolos (4,32): “vendiam suas propriedades e suas casas, depositavam aos pés dos apóstolos o dinheiro, que era distribuído conforme a necessidade de cada um”? diz diz a Étic tica da Just Justiç içaa: “us “usa um mí míni nimo mo de rac racion ionalid alidad adee na organização da sociedade para que, nas possíveis adversidades do futuro, a sociedade te garanta o mínimo de sobrevivência”. Não estava já escrito nos Provérbios (21, 21): “quem pratica a justiça e a misericórdia encontrará a vida e a glória”? diz a Ética da Responsabilidade: “devemos responder às gerações futuras sobre a ecologia que lhes entregamos”. Não tinha já falado com os passarinhos Francisco de Assis em 1200, não tinha ele convencid convencidoo o lobo a abandonar abandonar a cidade de Gubbio, Gubbio, não tinha tinha ele cantado “meu irmão sol, minha irmã a lua, meu irmão vento”? Para os crentes na Divindade, a Ciência é correlativa à Religião ou assimétrica respeito à Religião, as duas podendo conviver, como duas asas que elevam o homem para o seu destino eterno. Assim diz a Encíclica Fé e Razão de João Paulo II em 1998: "Razão e Fé constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da Verdade". Para os adeptos da modernidade materialista, materialista, a Ciência exclui a Religião.
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Terceira Parte
Éticas racionalistas e/ou materialistas
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Ética do Dever Kant. O Bom é o Dever: podes, deves!
Num Estado totalitário, um jovem pertencente a uma organização secreta e revolucionária é descoberto num certo lugar e perseguido pela polícia. Ele foge por becos e ruelas, e finalmente chega a esconder-se na casa da mãe dele. A polícia bate na porta da mãe e pergunta: “Seu filho está escondido aqui?”. A mãe poderá mentir ? A Metafísica racionalista e não-materialista de Kant Immanuel Kant é racionalista, mas não-materialista. Isto é, ele pensa uma Ética a partir apenas da Razão e passível de ser aceita universalmente pelo crente e pelo não-crente, mas pessoalmente acreditava em Deus como Legislador Divino. Peito deformado e 1,50 de altura, sempre doentio, Kant nasce a Königsberg em 1724 e morre quase cego e solitário em 1804, pronunciando estas últimas palavras: “Isto é bom”. São quatro, em Kant, as maiores perguntas da Filosofia: o que posso saber (Razão), o que devo fazer (Ética), o que posso esperar (Religião), o que é, afinal, o Homem. É importante tentar compreender um pouquinho da metafísica de Kant, pois ele é o iniciador da era da subjetividade moderna, isto é, da afirmação de que toda idéia cognitiva e ética é um produto do sujeitohomem. A metafísica de Kant está expressa em dois livros famosíssimos: Crítica da Razão Pura (1781) e Crítica da Razão Prática (1788): a Razão Pura é aquela que deve entender . Ela só pode dar conta das
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coisas sensíveis, e destas a razão pura só conhece o fenômeno (aquilo que lhe aparece), não o númeno (a coisa como é em si); a Razão Prática, é aquela que deve agir . Ela estabelece as regras da Ética. Ela também nos possibilita deduzir as realidades não-sensíveis e metafísicas: Liberdade, Imortalidade, Deus.
A Razão Pura A razão humana, em seu ato entender, só pode entender as coisas sensíveis. Destas, a razão não pode saber como são em si mesmas, mas apenas como aparecem na mente após serem formatadas pelas categorias a priori. Kant explica: Primeiro momento. As coisas sensíveis se apresentam à mente humana, elas são dadas a nós, e a mente as "formata" mediante as categorias a priori de tempo e espaço, da mesma forma que o programa Word no computador formata os dados digitados. Por exemplo: assim que a imagem de Pedro é captada, a mente lhe atribui um espaço (na minha cidade) e um tempo (hoje). O resultado desta formatação chama-se fenômeno, isto é, aparição, e indica a coisa como aparece, formatada e filtrada, à nossa mente. A coisa fora da mente chama-se númeno. Pela Razão Pura conhecemos o fenômeno, mas não o númeno: não sabemos como os objetos são fora da nossa mente. ⇒ dando mais importância à mente que ao objeto, o Racionalismo de Kant acredita ter feito uma revolução copernicana em relação ao Realismo de Aristóteles e Tomás de Aquino. O Realismo afirma que um objeto se imprime fielmente na mente como se esta fosse uma máquina fotográfica. Para o Realismo, dada a feitura do universo por uma única Mente Criadora, todos os seres criados possuem as estruturas inteligíveis daquela Mente. A mente humana, portanto, pode conhecer tudo, pois a alma é, em certo sentido, tudo: anima est quodammodo omnia, no Comentário de Tomás ao “Da Alma” de Aristóteles, III, 8, lect.13). a verdade, no Realismo, consiste na correspondência entre o ⇒ objeto exterior e a imagem dele na mente (verdade objetiva). Para Kant, ao contrário, a verdade não pode ser estabelecida, pois o objeto em si nunca pode ser conhecido. Apenas, podemos garantir de termos usado de forma válida a Lógica,
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ou seja, as regras do pensamento (verdade lógica subjetiva). Este conceito de verdade passará para as filosofias modernas, especialmente as filosofias da linguagem ou analíticas. Segundo momento. Os fenômenos presentes na nossa mente constituem idéias simples. Como combiná-las entre si e formular uma proposição ou fazer um discurso? Para tanto, a mente submete as idéias simples a uma segunda formatação, relacionando-as entre si mediante as categorias de qualidade, quantidade, relação, modalidade. Por exemplo: Pedro e João são um alto e o outro médio (qualidade), são dois e não três (quantidade), o primeiro é filho e o outro é pai (relação), poderiam existir ou não existir (modalidade). Desta forma, mediante a Lógica, o Pensamento constrói uma visão articulada e científica do mundo. Tudo isso constitui o “Eu penso” ( Ich denke). Tudo, porém, é fenomênico, isto é, formatado pela razão e algo que aparece à consciência. As coisas podem ser pensadas por nós, mas não efetivamente conhecidas como são em si. ⇒As categorias a priori, em Kant, são idênticas em todas as pessoas. Por isso, chamam-se transcendentais, ou seja, não individuais, e isto possibilitam a ciência, que é constituída por princípios universais Kant, todavia, sabe que existem outras realidades não sensíveis e, portanto, metafísicas. Para entrar nelas, Kant usa outro barco, que é a Razão prática.
A Razão Prática e o Imperativo Categórico A Razão não apenas pensa. Ela deve agir, senão o homem ficaria parado e morreria. A Razão impulsiona a Vontade a agir. Estamos na Ética, tratada também na Metafísica dos Costumes (1797). Agir, sim, mas como? Como dar uma regra firme e plausível às decisões da Vontade? O que pode mover a Vontade a escolher x ou y? Kant afirma que a Vontade só deve ser movida por uma regra, quando esta é imperativa e categórica. Nasce o famoso conceito de Imperativo Categórico: imperativo, porque você não pode subtrair-se a ele, por não ser um conselho, e categórico, por não admitir o contrário daquilo que está mandando. Uma norma é categórica (deves!) e não admite o contrário quando é: racional , isto é obra da razão humana autônoma (se bem que Kant, como dissemos, acredita no Legislador Divino e, neste sentido, vive disfarçadamente uma heteronomia moral),
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universal , necessária. Ora, uma norma da vontade é necessária e universal (imperativamente categórica) quando se enquadra na seguinte exigência: “atua sempre de maneira que o princípio da tua vontade seja válido, no mesmo tempo, como princípio de uma legislação universal ”. Ou, “são válidas aquelas normas universalmente capazes de consenso”. Ou, “atua de forma a considerar a humanidade, seja na tua pessoa como na pessoa do outro, sempre como finalidade, e nunca como simples meio”. Ou, “aja de forma a que a vontade, com sua máxima, possa considerar-se como universalmente legisladora a respeito de si mesma”. No fundo, os fundamentos últimos da Ética kantiana são dois: a natureza humana, com suas necessidades de vivência e convivência. A ação é moral se a consideramos como lei de um mundo social, no qual somos obrigados a viver. Por exemplo, se eu minto para salvar um interesse pessoal, devo perguntar-me se seria possível viver num mundo, onde todos mentissem. a universalidade da norma moral: olhando a tua ação na ótica da totalidade dos homens, entendes se a ação é boa ou não. A decisão moral da vontade não deve obedecer a outra força, que não seja a pura luz categórica da vontade movida pela razão, quando esta diz: deves! E, se deves, podes! Devem ser excluídos sentimentos e interesses. Se, por exemplo, faço a caridade ao pobre por dever, minha ação é moral; se o faço por compaixão, minha ação é apenas legal. A Moral é superior ao Direito: nenhuma lei civil consegue obrigar um marido a amar a esposa. Por isso, a Ética de Kant é uma Ética do Dever, cuja voz ressoa peremptória e categórica na consciência
Liberdade, Deus, Imortalidade O discurso sobre Ética ou Moral, todavia, seria incompreensível sem a existência de realidades ulteriores, quais a liberdade, o mundo, a imortalidade, Deus. Isso leva Kant à Metafísica das Idéias psicológicas (alma), cosmológicas (mundo), teológicas (Deus). Trata-se de realidades fora de mente humana, do númeno. Vimos que a Razão Pura não tem condições de ir além da experiência e de abordar a
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metafísica. Se o fizesse, ela seria uma pomba voando sem a existência do ar, e produziria apenas erros ou antinomias. Quando abandonamos o fenômeno (coisas formatadas na mente pelas categorias a priori) e nos aventuramos no oceano do númeno (coisas fora da mente), precisamos de outro barco, que é a Razão Prática. A Razão Prática, diz Kant, nos conduz às verdades metafísicas sobre liberdade, alma e Deus. Estas verdades ou Postulados se impõem e são postuladas pela Moral, porque, sem elas, todo o discurso moral seria incompreensível . Vejamos: Liberdade. Se deves, significa que podes. És livre. A lei moral não existiria se não fôssemos livres diante das leis da natureza. Sem liberdade, não passaríamos de seres sujeitos às leis físicas, como a minhoca. Deus. Ele deve existir, pois a virtude da lei moral deve merecer a felicidade. Mas vemos a cada dia que a felicidade não é possível neste mundo físico das leis mecânicas. Logo, deve existir um mundo, onde Deus dê uma felicidade igual aos méritos da virtude. Se não pudéssemos alcançar a felicidade e Deus, seria incompreensível a obrigação moral. Para que agir moralmente? Imortalidade. A adequação progressiva da vontade à lei moral constitui a santidade. Mas a santidade não pode ser alcançada plenamente neste mundo sensível, pois exige um processo infinito de aperfeiçoamento da pessoa. Logo, a pessoa deve ser imortal. O conceito de pessoa ou personalidade exige o conceito de imortalidade, pois seria impensável que com a morte termina abruptamente todo o esforço de aperfeiçoamento almejado durante toda a vida. Como se vê, Kant não fecha a Razão em si mesma, numa prisão perpétua, na soberba prometéica. Enquanto teórico do saber fundamentado na razão sensível, ele é considerado o pai da filosofia moderna, patrono do saber racional e de uma ética racional. Mas ele voou bem mais alto. A Razão Pura de Kant sabe que não possui meios lógicos (mentais) para sulcar o mar das grandes questões existenciais do homem, e deixa via livre ao campo da experiência religiosa.
Pensamento fraco e pensamento forte Como se vê, Kant chega a Deus não pela razão pura, mas pelo caminho indireto da razão prática. Aos olhos da filosofia aristotélico-tomista, Kant inaugura o “pensamento fraco”, isto é, uma razão fraca. Kant foi até
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acusado de ateísmo, e isto o fez sofrer muito, por ele considerar-se, sim, filósofo da razão sensível, mas não exclusivamente isso. O Realismo aristotélico-tomista, como acenamos acima, considera que a razão humana, sendo criatura da Razão Divina, pode entender as outras criaturas e, a partir das coisas visíveis, ascender às invisíveis ( per visibilia ad invisibilia, dizia Tomás). O tomismo professa uma razão forte, um “pensamento forte”. O caminho utilizado por Kant será muito utilizado na modernidade pelo psicologismo religioso, que fala de Deus a partir das necessidades psicológicas do ser humano. A Teologia, ao contrário, crê em Deus porque ele se mostrou e, não tendo esquecido a sua criatura, falou. Leis físicas e Deveres morais. O céu estrelado sobre mim, a lei moral dentro de mim Na natureza há leis, na ética há deveres. A existência do Dever me diz que sou necessariamente livre. E Kant dá um exemplo: se um tirano obriga alguém a testemunhar o falso contra um inocente, a testemunha pode ceder e dizer o falso, mas depois teria remorso. Ou seja, você sabia que devia e podia dizer a verdade: sabia, devia, podia. O Homem é livre. A liberdade significa que a vontade não está sujeita às leis físicas da natureza. A pedra lançada ao ar deve necessariamente cair, mas o homem com cobiça da mulher alheia pode livrar-se deste instinto. Nos átomos do corpo o homem é sujeito às leis físicas, mas na escolha moral da vontade é livre: ele pode escolher ser bom ou mau, comportar-se deste ou daquele modo. Existe no homem uma dupla grandeza. Ele é grande em seu corpo físico como é grande a Natureza física de Newton e Kepler. Mas ele é maior que a Natureza, na medida em que, na vontade, é livre da mecânica causal do mundo físico e finca suas raízes no mundo metafísico. Assim Kant termina a sua Crítica da Razão Prática: "Duas coisas me enchem o ânimo com sempre novo e crescente estupor e veneração: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim... o primeiro me diz que sou uma criatura ínfima e animal, que deverá devolver aos planetas a matéria de onde veio... a segunda eleva infinitamente o valor da minha personalidade, que tende para o infinito...". O grande Kant é o protótipo da coerência e da nobreza moral. Conta-se que não casou, porque, após ter listado numa folha as razões para casar e
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numa outra as razões para não casar, estas últimas superaram as primeiras. Era tão minucioso, correto e metódico, que todas as manhãs o sapateiro regulava o relógio pela hora em que o Professor Kant passava na calçada em frente à loja, para ir à Universidade de Königsberg. Aquela rua chamase hoje Caminhada do Filósofo.
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Ética do Trabalho Marx. O Bom é o trabalho livre e associado
Uma Empresa de Serviços recebe um guru em administração, o qual recomenda um bom aumento salarial aos funcionários para melhorar a produtividade. De fato, a empresa produz melhor. Na empresa, porém, as relações continuam frias, hierarquizadas e fechadas. Os funcionários se enxergam uns aos outros como competidores numa possível demissão ou promoção, e ostentam uma dedicação servil aos chefes. Andam de terno e gravata, o convênio médico é bom, e se permitem uma visitinha ao bar para um uísque depois do expediente. O senhor X é um executivo médio e, tendo vestido com sucesso a camisa da empresa, à qual devota toda a sua submissão, seu salário foi aumentado para US$ 7.000. Em que o senhor X melhorou como pessoa depois daquele aumento?
As Éticas religiosas e materialistas do Trabalho Nos últimos duzentos anos de industrialização ferveu o discurso sobre o trabalho humano. Foi sobretudo em ambientes marxistas e católicos que apareceu uma ampla literatura sobre o tema. No capítulo sobre os Fundamentos Religiosos da Ética (pg. 76-78) acenamos brevemente à Ética do Trabalho de um ponto de vista religioso. Lá apresentamos alguns tópicos do último entre os maiores documentos religiosos sobre o trabalho do homem: a encíclica papal Laborem Exercens, de João Paulo II. Neste capítulo nos deteremos sobre a Ética Marxista do trabalho humano.
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Metafísica racionalista e materialista de Marx Marx (1918-83) é racionalista e materialista, pois não acredita em Deus. Os princípios metafísicos das teses de Marx são estes: O Absoluto, do qual tudo começou, é a Matéria em movimento evolutivo (dialética). Os homens materiais fazem parte deste devir da matéria e o movimento dos homens se manifesta sobretudo nos enfrentamentos entre classes sociais no devir da história (dialética materialista e histórica). As situações materiais e os interesses materiais movimentam a história dos homens. O maior fato material, que provoca as lutas entre as classes sociais (livres e escravos, senhores e servos, capitalistas e proletários), é a propriedade, pois alguns são proprietários, outros não. Esta distorção de propriedade, além de causar sofrimentos, produz monstros jurídicos nas Constituições e nas Leis, e acaba criando nas mentes de todos, proprietários e não-proprietários, distorções filosóficas, éticas, sociais, políticas e religiosas. O secreto de uma nova sociedade e de uma nova mentalidade consiste na superação da propriedade capitalista, onde um homem subjuga outros homens, por uma propriedade socialista, onde todos são proprietários de seu trabalho.
Um jovem inteligente Karl Marx é um campeão de uma Ética fundada no Homem, ele, tão amado-lido-desconhecido-odiado-idolatrado. Nascido na Alemanha em 1816, o inteligentíssimo jovem é enviado pelo pai a Bonn, em 1835, para estudar Direito. Aqui Karl percebe que o estudo do Código Civil pouco lhe diz sobre o Homem: farreia, curte as cantinas do vinho renano, chega a ser ferido em duelo por disputa de meninas. Finalmente o pai, desesperado, o envia a estudar Filosofia em Berlim em 1836, onde cinco anos antes havia morrido o famoso Hegel: até as paredes da universidade falavam do grande Mestre. Aqui o jovem Karl passa as noites estudando Hegel, até adoecer. Ele é líder do movimento estudantil, cujos compromissos eram o ateísmo, a defesa da liberdade de imprensa e a revolta contra as prepotências do governo prussiano. Em 1841 é doutor em Filosofia. Dirige-se à Universidade de Bonn, em 1842, para ser professor, mas o governo prussiano chega antes dele com a proibição de contratar "esse Sr. Marx". Tendo que comer e demonstrar à jovem namorada Jenny, "a rainha dos bailes de Trier", que sabia ganhar a vida, alista-se como jornalista na
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Gazeta Renana, jornal de Colônia. Seus ensaios cáusticos e argutos começam a ser lidos em toda a Alemanha. O jornal triplica as cópias e em outubro do mesmo ano Marx já é, aos 24 anos, diretor do maior jornal do país. Até aqui o senhor Marx é mais um jovem brilhante, filosoficamente alinhado às posições do Idealismo Hegeliano ("as Idéias constroem a História"). O fato que fez nascer o comunismo Mas aí acontece um fato. Obrigado pela profissão a acompanhar os debates do parlamento renano, Marx apercebe-se de uma queixa de proprietários de terras contra alguns camponeses. Tinha acontecido o seguinte: aproximava-se o inverno de 1842-43 e, necessitando de fogo para não morrerem de frio, alguns camponeses pobres foram cortar lenha nos bosques do Rio Mosela. Mas os bosques tinham donos, os quais denunciaram os camponeses. Aí se acendeu a discussão: os camponeses pobres tinham o direito de cortar lenha em propriedade alheia para cozinhar a comida e defender-se do frio? Marx , claramente, põe lenha na discussão através do jornal. Chega o dia da votação. Resultado: os camponeses são condenados por apropriação indevida da propriedade alheia. No dia seguinte, a Gazeta Renana sai com esta frase: As árvores estão protegidas pela lei e os homens morrem de frio. Nascia o materialismo dialético e a filosofia comunista. Não entrava na cabeça de Marx como as árvores pudessem ser, na Alemanha, mais importantes que os homens. Em poucas palavras, Marx apercebeu-se que a história não depende apenas do progresso das Idéias (dialética idealista de Hegel), mas sobretudo de situações materiais, como o trabalho e a propriedade, representadas nas Constituições e nos Códigos de Direito (dialética materialista). Um Código Civil não passa de formulação jurídica de situações materiais. Foram tais situações materiais e suas formulações jurídicas que forçaram as vontades dos deputados a condenar os camponeses e escrever uma página vergonhosa da história, não obstante os deputados fossem a favor dos camponeses. O materialismo histórico, portanto, é formulado por Marx assim: a matéria comanda a história, os fatos materiais determinam as vontades dos homens. Precisamos mudar as situações materiais, primeiramente as formas de trabalho e de propriedade, para mudarmos as leis e as constituições, as idéias e os cérebros.
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Conceito Marxista de Homem A partir daí, Marx elabora o Marxismo, que nada mais é do que uma Proposta Ética baseada numa Filosofia do Homem e do Trabalho. Toda a obra de Marx gira ao redor de duas perguntas: o que é o homem? como o homem torna-se livre? Ao ter que decifrar o Homem, Marx nada inventa, servindo-se daquilo que o mundo inteiro sempre disse. Inclusive, ele conhecia a Bíblia, e Erick Fromm, em Conceito Marxista de Homem (1961), chega a falar de uma Teologia do Homem em Marx. A novidade de Marx consiste em mostrar o Homem a partir de situações concretas, sobretudo a partir do trabalho na empresa capitalista (ele e Feuerbach tinham ojeriza das incontáveis teorias sobre o Homem, dizendo que as teorias constituem o anti-humanismo teórico). Primeiramente, Marx elenca as qualidades essenciais (constituintes da essência) do homem, que chama também de "poderes vitais": inteligência, consciência, liberdade, sociabilidade, estética. Em seguida, ele mostra como a organização e a mentalidade da empresa capitalista incapacitam o Homem a adquirir e exercer essas capacidades. Consequentemente, na empresa capitalista o homem perde a possibilidade de ser Homem. Esta perda é uma alienação (como quando digo que alienei, vendi a casa, não mais a possuo). A alienação do Homem no capitalismo é exposta por Marx nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844.
Trabalho alienado versus trabalho humano Não podendo exercer suas capacidades essenciais na empresa capitalista, por não ser dono do seu trabalho e dos produtos, o Homem perde a si mesmo e perde a possibilidade de ser um homem inteiro com os outros. Desta forma, impedido de tomar-se Homem, o trabalhador estagna no estágio animal, fazendo as funções de um "gorila amestrado" (a imagem será de Gramsci em 1926), e se toma tanto mais pobre-animal quanto mais enriquece o patrão. O capitalista, dono da fábrica - Tio Patinhas e Irmão Petróleo - ele também não passa de um pobre-diabo-rico, na medida em que, incpaz de ser homem para o outro homem, é apenas um bruto insensível e de-generado (no sentido de não possuir as citadas qualidades, que distinguem o gênero humano do gênero animal). Os homens (operários e seus donos) se libertam deste estágio animal
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quando é eliminada no mundo a possibilidade de um homem apossar-se do trabalho de outro homem. Isto é possível através da co-propriedade do trabalho em empresas-cooperativas, que são associações livres de trabalhadores livremente associados. A liberdade Com relação à liberdade , Marx é extremamente didático. A liberdade é ser livre das necessidades biológicas, para dedicar-se a exercitar as qualidades essenciais do Homem. É sobretudo no Trabalho que está em jogo a realização da liberdade humana, pois um terço da vida dormimos, um terço vagamos por aí e um terço construímos nossa relação com a natureza das coisas e dos homens, pelo Trabalho. Assim, você não é livre quando o seu trabalho obedece à necessidade biológica de comer, dormir, morrer, vestir-se, pagar o aluguel. Os animais da floresta já resolveram isso há milênios. Tudo isto constitui o reino da necessidade. Somente quando as necessidades biológico-animais estão resolvidas através de uma organização comunista e comunitária da sociedade, você trabalhará pelo prazer de exercer as capacidades essenciais do homem, que o distinguem do animal, e alcançará o reino da liberdade. As qualidades essenciais, cujo exercício projetam o homem no reino da liberdade, são: inteligência: pensar, programar, decidir dentro da empresa; consciência: pensar sobre seus próprios pensamentos; liberdade: definir o porque, como, o que, a favor de quem produzir; sociabilidade: produzir pela alegria de fazer os outros felizes; estética: produzir o belo no produto e nas relações entre trabalhadores. Se a empresa não proporciona ao trabalhador o exercício destes “poderes vitais”, ele será sempre um escravo animalizado. Mesmo no caso de um aumento brutal dos salários, o trabalhador permanecerá, diz textualmente Marx, “um escravo bem remunerado, mas sempre escravo... o humano torna-se animal”.
Do trabalho humanizado a uma sociedade humana Eliminada a Alienação no Trabalho, diz Marx , mudarão as relações políticas, econômicas e civis, pois os cérebros dos trabalhadores estarão
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vivendo na empresa uma experiência diária de liberdade e fraternidade, experiência que eles transferirão para todos os campos do viver em sociedade e na família. Quer dizer, a liberdade no trabalho significa a libertação também da alienação política, econômica, jurídica e educacional. Assim, saindo do reino da necessidade animal, vive-se no reino da liberdade humana. E a liberdade, crescimento nos poderes vitais humanos, é uma construção diária, individual e comunitária. É ético, em Marx, tudo aquilo que concorre para este crescimento da liberdade. Não tem sentido dizer, burguesmente, que "a minha liberdade termina onde começa a liberdade do outro". Ser Homem significa estar livre das cercas que me separam do outro. Não sou livre se ao meu lado há um só homem que ainda não o é. O meu ir ao cinema não é uma ação livre, se há uma só pessoa impedida, por causas sociais (portanto, também minhas), de ir ao cinema. O meu comer um MacSandwich não é uma ação livre, nem humana, nem social, nem natural, se há um só menino pobre com o nariz esmagado no vidro da lanchonete. Marx pode ter morrido em suas teorias econômicas, políticas e revolucionárias, que continuam entusiasmando quantos “nada tem a perder além das correntes”. Mas ele não morreu em sua filosofia do homem. A proposta ética de uma sociedade de trabalhadores livres livremente associados será a próxima fase pós-capitalista da humanidade. Nisto, Marx vive.
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Ética niilista: Nietzsche. O Bom é Zaratustra! Sartre: O Bom é o nada!
Um jovem universitário lê os livros de Nietzsche habitualmente e, curtindo o aspecto aparentemente anárquico da filosofia nietzschiana, acha que tudo é permitido e é proibido proibir. Ele, na verdade, não entende que Nietzsche propõe valores novos e diversos. Mas, jovem qual é, o nosso protagonista se sente amparado por aquelas leituras e, em rodas de amigos, chega a dizer que gosta mesmo de considerar-se “meio cafajeste”. Os amigos riem e se divertem. Com incrível facilidade, o nosso jovem flerta com as namoradas de todos eles. Um belo dia, porém, um amigo casado e com filhos o surpreende em sua casa com sua própria mulher. O amigomarido, pasmado, lhe pergunta como ele pensou de poder fazer aquilo, pondo em risco a integridade de uma família inteira. O outro responde: “me veio a vontade de fazê-lo, e achei bom”. No que aquele jovem se equivocou?
Metafísica racionalista e materialista de Nietzsche e dos existencialistas Nietzsche e os existencialistas racionalistas/materialistas iniciam suas argumentações com estes princípios: O Absoluto, do qual tudo começou, é a Matéria, e o homem é um ser material. O homem é uma explosão de querer e poder. Ele é totalmente autônomo e singular na sua consciência e nas suas decisões. Fora da vontade do homem, há o Nada.
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As Éticas até então existentes engaiolaram em regras a vontade dos homens fortes, tornando-os decadentes e fracos. Precisamos criar novos valores para que cada homem se torne excelente e único, como Zaratustra.
Deus está morto Contra os fundamentos cósmico-espiritualistas e religiosos da Ética, Nietzsche afirma que o fundamento da ética é o indivíduo, com seu instinto de poder e interesse. Deus? É quimera, está morto. As palavras bom e mau - diz Nietzsche em seus escritos cáusticos como ácido sulfúreo - são palavras que atribuímos a pessoas e situações por costume, por conveniência, por simpatia, por interesse ( Para Além do Bem e do Mal, 1886). Não existe o mundo bom. Somo nós que criamos em nossa mente representações cômodas do mundo das coisas, para sentir segurança na vida insegura, dominada pela Éris, a Discórdia. A moral é um conjunto de elementos espúrios, sóciodarwinísticos. “Há uma antiga ilusão – ele diz – que é chamada bem e mal”. O mundo, acrescenta Schopenhauer em O Mundo como Vontade e Representação (1819), é um puro acaso, sem inteligência organizadora, caprichoso, imprevisível, vulcão de vontades, de instintos, de manias, de sensualidade, de poder. O mundo é dor e angústia, um devir turbilhoso e cego. A vida é um sofrer, uma vontade que nunca se sacia e sempre sofre de falta. E o homem é um animal selvagem, amansado pela civilização, o qual, deixado solto, mostra aquilo que realmente é, o único que tortura o outro pelo prazer de ver como ele sofre. Em termos de moral, diz Schopenhauer, a única coisa a fazer é praticar gratuitamente a justiça e a bondade para não ser devorado pelos outros, para compartilhar com os outros as agruras da vida. A Ética consiste em compadecer (com-paixão) com os outros e entregar-se à arte, pois, no momento da arte, o indivíduo esquece a sua dor, que fica projetada fora de si, na pintura, na peça teatral. A vida é um absurdo num mundo sem saída O Sr. Meursault, protagonista de O Estrangeiro de Albert Camus (1942), por acaso faz visita a uma amiga na praia africana. Por acaso, após fazer amor, decide dar um passeio ao
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longo do mar. Por acaso, enfia no bolso um revólver de precaução. Por acaso, embate-se em alguém desconhecido e vê diante de seus olhos uma lâmina de punhal brilhando no sol obcecante da areia em brasa. Por instinto, extrai a arma e dispara. No tribunal, sentado na cadeira de homicida, assiste ao espetáculo surrealista dos promotores públicos, que o acusam, esbravejam, inventam, interpretam a sua vida. Ouve distraído o veredicto à guilhotina. Acasos, puros acasos sem sentido, perante os quais Mersault se vê estranho e estrangeiro. “Culpa do sol”, ele repete sempre. Uma hora antes da execução, recebe a visita do capelão. O diálogo é áspero. Diz ao capelão que a única companhia agradável, naquele momento, é a lembrança da bela Maria, morena e sensual. Os carrascos se aproximam. Ele dispensa o capelão, dizendo-lhe que tinha poucos minutos de vida, e não queria gastá-los com um Deus que não lhe interessava. Pensa na mãe. Qual ética desponta deste roteiro de Camus? Neste mundo cruel entre as duas grandes guerras entrará em cena, a partir de 1930, o existencialismo ateu de Jean-Paul Sartre, da sua companheira Simone de Beauvoir e de Albert Camus. Em Sartre, o mundo é um absurdo, a vida é um absurdo, pois quero encontrar nas coisas um sentido, que não existe. Quero entender e minha mente pára, quero amar e encontro o ódio, quero a fraternidade e vejo a guerra, quero a vida e me deparo com a morte. Estou sozinho neste universo absurdo, tendo à minha defesa um único alívio: a minha liberdade total de escolher o que melhor me convier. Também a liberdade é um absurdo e uma condenação, pois cada escolha exige a renúncia a outras escolhas talvez melhores: “somos seres condenados a escolher”. O outro? Os outros, diz Sartre em Portas Fechadas (1944), são para mim o inferno, com seus olhos que me espiam, me limitam, me julgam. Todo homem é um torturador do outro: " L'enfers, c'est les autres, O inferno, é os outros" . Nem a luta política e feminista, na qual Sartre se engajou, redime uma vida sem sentido (os adversários da Beauvoir dirão que a máquina de lavar libertou a mulher mais que todas as passeadas feministas). Esta vida – conclui Sartre - não passa de um andar sem fim em círculos dentro de uma cloaca espessa e repugnante, cheia de animais imundos, até a loucura, à
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procura de uma saída, que não há. Haveria, neste deserto do Nada, algum ideal ético? Há, sim. Nietzsche o vê na realização zaratustriana do indivíduo superior. Schopenhauer na prática da arte. Camus na solidariedade com os outros homens absurdos. Sartre no exercício de uma liberdade atenta a não criar problemas aos outros e, conseqüentemente, a si mesmo. Zaratustra: refaçamos todos os valores! Cometi a grande loucura... fui para a praça pública, e como falava a todos, não falava a ninguém. Aprendi então a dizer: “Que me interessa a praça pública e a populaça? Homens superiores! Aprendi isto comigo: na praça pública ninguém acredita no homem superior. ”Homens superiores – assim diz a populaça – não há homens superiores. Perante Deus todos somos iguais”. Perante Deus! Mas agora esse Deus morreu; e perante a populaça nós não queremos ser iguais. Homens superiores, fugi da praça pública! Perante Deus! Mas agora esse Deus morreu! Homens superiores, esse Deus foi o vosso maior perigo. Ressuscitastes desde que ele jaz na sepultura. Só agora torna o Grande Meiodia; agora torna-se senhor o homem superior (Nietzsche, Assim falou Zaratustra). Qual é a ética do Homem Superior em Nietzsche? Para Nietzsche , a Ética do aperfeiçoamento e da hominização, isto é, a ética das Religiões, de Sócrates e de Platão , é um equívoco, é uma decadência, é uma doença, faz parte das "mentiras dos milênios", pois nega os instintos e a vida, torna doente e envenena tudo aquilo que toca. O Bom da religião é um retrocesso, um perigo, uma sedução, um veneno: é o bom do escravo, do gregário, do submetido ao outro. O cristianismo é um vício, que destruiu a grandeza greco-romana. A moral é um erro, e a voz da consciência é "a voz do rebanho em nós". A moralidade é uma conspiração de ovelhas, as quais querem convencer o lobo de que é imoral usar a força contra elas. É indigno do Homem dobrar-se ao sobrenatural. O erro da moral deve ser sepultado pela Verdade. Zaratustra arremessou flechas contra o moralista.
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Sejamos Zaratustra, o homem que passa do animal ao Super-Homem, o homem perfeito oposto ao homem frio positivista e científico, o homem que gosta de conhecer, que realiza invenções, que não espera recompensa nem aqui nem no além, que não trapaceia, que desafia a toda hora o seu próprio gênio, que é indiferente aos perigos, que inunda os outros com sua própria alma profunda! Zaratustra procura companheiros! Viva o homem que cria novos valores, a saúde física, a vontade forte em lugar dos deveres, o amor à vida e à terra, a ebriedade dionisíaca, o virtuosismo, a virilidade, o espírito guerreiro, o orgulho de ser homem, aliás, de ser além-homem, acima da mediocridade geral! "O mundo gira ao redor dos inventores de novos valores"..
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Ética da responsabilidade (ecológica) Jonas. O Bom é a Vida do Planeta
Em 1997 os países do mundo se reuniram no Japão para assinar o Protocolo de Kioto. Este pacto pretende regular as emissões de gases poluentes na atmosfera, como o dióxido de carbono, por fábricas e carros. Esses gases são responsáveis por provocar o aumento da temperatura ou febre do planeta, enchentes e secas, novos fenômenos atmosféricos devastadores. Os Estados Unidos se recusam a ratificar o Protocolo, alegando que isto poria na rua dezenas de milhões de trabalhadores, diferentemente de outros países, onde a industrialização, a ciência e as descobertas científicas são menores ou mínimas. Mais tarde, outro colosso industrial, a Rússia, se recusa com as mesmas alegações. Tais alegações são, na verdade, pesadas, pois o Protocolo impõe a certos países mudanças, que em outros países são menores ou mínimas. Em quais bases discutir o problema?
A metafísica racionalista e não-materialista de Jonas Em seu livro O Princípio da Responsabilidade (1979), o filósofo alemão Hans Jonas (1903-1993), racionalista não-materialista, reabilita a metafísica do ser. Por isso, as culturas laicas e iluministas, avessas à metafísica antiga, lhe dedicaram escassa atenção. “Eu tentei manter viva a chama da metafísica – ele diz – a qual parecia ter-se apagado na nossa época moderna”. Assim progride Hans Jonas na fundamentação de sua Ética: O princípio objetivo e último, isto é, metafísico, que possa fundar
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uma Ética, deve ser procurado no âmago do Ser, atualizando algo que Aristóteles e Tomás de Aquino já tinham dito: o ser é melhor que o não ser . O Bem do ser é ele existir e não ficar aniquilado. O Bom, portanto, não depende de uma decisão convencional da razão humana, como rezam as filosofias da liberdade total e do consenso pela linguagem, pois o Bem está enraizado na própria constituição do ser, como em Platão o Bom está plantado no Mundo das Essências e no cristianismo na Bondade do Criador. Deus é despojado de sua onipotência e é incapaz de intervir na liberdade do homem, quando este a usa no mal (No livro O Conceito de Deus após Auschwitz, onde perdeu a mãe, Jonas se pergunta: onde estava Deus em Auschwitz? Poder-se-ia acrescentar: onde estava o Homem em Auschwitz?) Mesmo assim, Jonas atribui à vida do homem e do planeta um finalismo. “A pergunta sobre Deus é uma pergunta sem resposta, que, todavia, tem direito de existir”.
O ecopensamento Por isso, todos, universalmente, somos chamados a responder (responsabilidade) ao direito à vida da biosfera e das gerações vindouras, ameaçadas em sua existência pela irresponsabilidade da técnica enlouquecida. A técnica, já filha obediente da ciência universitária, está se tornando autônoma, inquieta e inquietante. Como domesticá-la? Como disciplinar o uso da técnica no que concerne a energia atômica, a biologia, a manipulação dos genes, o prolongamento da vida, a intervenção nos cérebro via elétrons, a clonagem, a eutanásia? A técnica não respeita a natureza, mas a torna objeto e a manipula. E com a natureza, também o homem tornou-se um ser objetificado pela técnica manipulante. Ora, a técnica não se disciplinará sozinha. Isto será feito por uma nova ética. As éticas até hoje existentes são inadequadas, pois todas elas baseiam-se em três pressupostos: o alcance do agir humano é circunscrito no lugar e no tempo; a condição humana é estável e dada uma vez por todas; nestas bases pode-se determinar o que é o bem. Os últimos eventos da técnica, que já pode destruir o planeta dezenas de vezes e pode clonar-mudar o ser humano, subverteram o primeiro
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pressuposto, e com isso anularam os outros dois. Já Weber, no começo de 1900, havia falado de uma ética da convicção centrada sobre os princípios que valem por si, independentemente das conseqüências - e de uma ética da responsabilidade - centrada sobre as conseqüências das nossas escolhas -. Mas a tecnologia, na época de Weber, ainda não tinha mostrado seu poder de destruição. Jonas retoma com força o tema. Da Ética da Responsabilidade nascerá a Engenharia Ambiental e a Ética Ambiental ou, seja, o ecopensamento. Uma Ética em prol das gerações futuras As éticas da modernidade, afirma Jonas, tem nada a dizer sobre o futuro da humanidade, por uma razão: elas não dialogam com as gerações futuras, com a posteridade. Com efeito: Kant dialoga com o indivíduo e baseia a ética na pessoa, Marx preocupa-se com o poder atual das massas, Adam Smith confia no mercado e na vantagem do agora, Habermas e Aple estão interessados ao consenso entre os presentes, desconhecendo os pósteros. Nenhuma destas éticas interroga os nossos descendentes longínquos, todas elas preocupando-se com o aqui e agora. Do lado político-econômico, os movimentos social-democráticos não estão dando conta do ambiente, nem a economia liberal está mostrando interesse na incógnita ecológica. Do lado científico, as ciências não parecem querer renunciar à sua febre criacionista e à tentação prometéica. Nem as categorias do sagrado nos ajudam muito, pois elas limitam-se a declarar a fixidez religiosa da natureza humana, enquanto as mudanças biogenéticas sucedem-se vertiginosas. Urge construir uma nova ética metafísica, que tenha um fundamento universal na universalidade do ser. É esta: todo ser é destinado a existir e tem direito a existir, pois ser é melhor que não ser, o existir é melhor que o nada. Nossa missão ética é dizer sim à vida. Somos responsáveis perante a vida presente e futura. Como o pai sente-se responsável pela vida dos filhos e pelo mundo no qual os filhos habitarão, sem pedir nada em troca, nós somos responsáveis pelas gerações futuras e pela biosfera do futuro, sem
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querer nada de volta. É urgente passar de uma ética antropocêntrica a uma ética planetária, de uma ética da contemporaneidade a uma ética da posteridade, onde o imperativo categórico, kantianamente, soe assim: “aja de tal modo, que as consequências da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida autenticamente humana sobre a terra”. A natureza subjugada No passado, a natureza governava a si própria, mas hoje a natureza aparece em toda a sua vulnerabilidade. Por isso, devemos falar dos direitos da natureza. Os antigos viviam conforme a natureza com seus arados e foices, mas o cristianismo introduziu o conceito de domínio do homem sobre a natureza. De lá para cá, multiplicaram-se as filosofias do poder do homem sobre as coisas. Francis Bacon disse que saber é poder e abriu caminho para a voracidade humana sobre a terra. Marx e seus seguidores prometeram ao homem novo a felicidade utópica do poder total sobre as forças naturais, esquecendo que o homem “novo” sempre existiu e sempre existirá, pois o homem sempre foi e sempre será um ser realizado e um ser carente, um ser de resultados e um ser de desejo, desejo de coisas ausentes. O marxista moderno Ernst Bloch, com seu “Princípio da Esperança”, lança a humanidade para um futuro utópico e fictício, que já existe faz milênios, pois ontem, hoje e “também no futuro cada satisfação engendrará sua insatisfação, cada ter seu desejo, cada paciência sua impaciência”. Gunter Anders, com seu “Princípio do Desespero”, apenas constata que a bomba atômica, com suas consequências holocáusticas, é o fruto mais acabado da sociedade da técnica, onde a cegueira e o analfabetismo dos sentimentos eclipsaram totalmente o pensamento e o intelecto. Mas, e as gerações futuras? Para Jonas, em suma, as filosofias éticas até hoje deram pretexto ao domínio sobre a natureza, a técnica chegando a ponto de mudar a própria natureza e voltar-se contra o homem do presente e do futuro, quando uma usina nuclear perpetua seus venenos por centenas de anos e a imissão de gases carbônicos na atmosfera modifica o ar até o indefinido.
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O grito Hans Jonas representa um grito. Uma ética da responsabilidade, fundada também sobre o medo da catástrofe total, pode salvaguardar a vida. Pode-se pedir a Jonas se este medo não é demasiado emocional para, sobre ele, fundar uma ética metafísica. Pode-se pedir a Jonas se ele não é visionário e utópico quanto os outros, ao acreditar que os homens irão ajoelhar-se diante de sua metafísica do ser e da vida, base de sua ética. Pode-se pedir a Jonas se é possível, realmente, criar um consenso universal entre os homens, prescindindo de uma autoridade divina. Mas é louvável sua reação à mania moderna de fundar a ética sobre as areias movediças das filosofias consensuais pela linguagem. Jonas fixa a âncora moral bem no fundo, no coração do ser.
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Ética do Discurso Aple, Habermas. O Bom é o consenso
Num bairro pobre, distante das pessoas do centro da cidade, um grupo de cidadãos famintos invade um supermercado e carrega mantimentos para casa. Os telejornais da noite demoram sobre a imagem de um cidadão, que leva para casa uma garrafa de uísque. Interrogado por um jornalista, o vigário da paróquia responde que considera moral aquela retirada de comida, mas o noticiário fala de furto ilegal e mostra cenas de policiais atacando aqueles cidadãos. No outro lado da cidade, famílias de sem-teto entram num terreno, dormem nele, e falam que estão ocupando a área, não invadindo. Mas o telejornal diz que o juiz já ordenou à polícia de expulsar os invasores, coisa que iria acontecer na manhã seguinte. Como julgar o vocabulário e os juízos de valor sobre estas ações? Metafísica da Ética da Linguagem ou do Consenso Propulsores da Ética do Consenso ou do Discurso são os alemães Aple e Habermas. Os princípios de partida destas Éticas, cujos autores são geralmente racionalistas e materialistas, podem ser assim resumidos: o Absoluto, do qual tudo começou, é a Matéria, e o homem é um ser material. a razão humana não consegue entender o mundo como ele é realmente na sua objetividade e totalidade no máximo, podemos entender o que falamos por isso, estudemos a nossa linguagem, e basta. Isto é Filosofia. no ato da comunicação pela linguagem, cada interlocutor possui o direito de falar e detêm a responsabilidade por aquilo que diz. Este
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direito e esta responsabilidade constituem a base metafísica sobre a qual entabular um discurso ético para se chegar a um consenso. As Éticas do Consenso são derivações da Filosofia da Linguagem do começo do século XX, também chamada Filosofia Analítica, teorizada principalmente pelo austríaco Wittgenstein e pelos professores do Círculo de Viena. Estas filosofias, em suas formas mais ardorosas, negam a existência de um fundamento cosmológico-naturalístico, mais ainda religioso, da Ética. O manifesto científico do Círculo de Viena Todas as tardes de quinta-feira, um grupo de matemáticos e filósofos positivistas costumava se reunir num café próximo à Universidade de Viena, ao redor de 1920. Tendo eles conhecido o Tractatus Lógico philosóphicus de Wittgenstein, publicado naqueles anos, elaboraram e lançaram o Manifesto da Ciência, no qual declarava-se que só devia ser considerado científico aquilo que, na natureza, podia ser provado, mensurado, quantificado, falsificável. O resto, sobretudo a metafísica, a teologia e a religião, deviam ser lançadas ao fogo. Tal Manifesto ainda hoje influencia muitas universidades. Em suma, segundo estes neo positivistas, os filósofos e teólogos deveriam comer no prato da ciência e contentar-se de suas migalhas. O autor do Tractatus não pensava totalmente assim. Para Wittgenstein, é verdade que a ciência era aquilo que o Manifesto dizia. Mas a ciência e a sua lógica não eram tudo. Wittgenstein costumava afirmar que, após termos conhecido todas as ciências, nada saberíamos sobre o homem. O escritor austríaco, considerado por muitos o maior filósofo do século XX, achava que sobre a moral e a religião não podemos falar cientificamente, mas estas duas dimensões podem mostrar-se e constituem o terreno onde se decide o que importa realmente para o homem. Muitos, referindo-se a isto, falam de uma Ética do Silêncio de Wittgenstein. A natureza, nestas filosofias, é apenas uma sucessão causal de engrenagens mecânicas. Portanto, a natureza é, eticamente, insignificante. É o famoso "desencantamento do mundo", de Max Weber . Dizem: não existe a pessoa boa ou má, mas existem apenas as palavras "bom" e "mau", com as quais expressamos um nosso estado de espírito e tentamos convencer os outros a aceitar o nosso ponto de vista. As coisas em si não têm valor de bom e mau. Em suma, a ética é uma questão subjetiva de gosto, de desejo, de costume, de moda, de linguagem.
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Separação de Ser e Valor De acordo com esta tese, há uma separação entre Ser (as coisas) e Valor (bom e mau). Valor é algo valioso, precioso, útil, válido, como explica a Filosofia dos Valores. Não existindo, eles dizem, valores preestabelecidos na natureza, devemos admitir uma certa "anarquia dos valores", pois cada pessoa forma na sua mente alguns pontos de vista, uma espécie de esquema de valores, com o qual julga os acontecimentos e toca a vida para frente. Os valores, portanto, são uma contínua criação e recriação ditada por fatores como índole, sociedade, tempo, lugar e circunstâncias. É o Relativismo Ético. Estas filosofias diferem das filosofias espiritualistas e religiosas, porque nestas últimas o valor de uma pessoa ou coisa foi passado pela Divindade para dentro daquela pessoa ou coisa, independentemente daquilo que eu penso sobre aquela coisa ou pessoa: Ser (coisa) e Valor (bom e mau) estão juntos nos seres. Por exemplo: esta criança é boa e gosto dela; aquela outra quebra tudo, irrita os outros e tenho vontade de bater nela; o valor de uma e outra criança existe dentro dela, não depende da minha vontade, não é questão de linguagem. Separando Ser e Valor, e deixando os juízos de valor exclusivamente às intenções subjetivas das pessoas, cresce o risco de perder-se no Niilismo Ético: é bom aquilo que passa pela minha cabeça, como dirá o ditador de turno. Do relativismo e niilismo à delinquência o passo não é tão longo: aí, um certo senhor seduz a sua esposa, ameaçando a estabilidade de sua família; você lhe pergunta porque fez aquilo e ele responde: "porque tive vontade e achei bom". Do fato vem a lei ou da lei vem o fato? A separação entre ser e valor esconde uma grossa questão em Ética. Isto é, as leis derivam dos fatos bons e maus, ou os fatos são declarados bons e maus a partir da lei? Expliquemos: uma coisa é boa ou má por que nós a declaramos pela linguagem boa ou má, ou por que ela é boa ou má em si mesma? Por exemplo: uma pessoa faminta rouba comida no mercado: fez uma coisa boa ou má, deve ser presa ou não? A lei diz: é mal pegar coisas alheias no mercado. O problema está exatamente em saber se roubar comida quando estou com fome é um crime porque a lei disse que é crime (da lei deriva a criminalidade do fato), ou roubar comida alheia quando estou com fome é sempre um crime em si e isto levou a escrever uma lei que proíbe tal crime (do fato deriva a lei). Qualquer manual de boa moral diz que pegar comida no mercado quando se está com fome não é crime.
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No nosso querido sistema social, porém, não somente a lei sanciona que o faminto e o sem-terra são invasores criminosos, mas no telejornal da noite se dirá que saqueadores e invasores maus avançaram contra o supermercado e roubaram até whisky. Como se somente o jornalista da televisão tivesse direito ao saboroso licor . Ética do Discurso Nesta liberdade sem limite, onde cada um decide o que chamar de bom e mau, os filósofos da Ética do Discurso procuram descobrir algo que possa fundar um acordo moral entre as pessoas. O importante é os homens encontrarem consensos significativos, que permitam estabelecer algumas regras para vivermos juntos e sobrevivermos às ameaças de destruição do planeta. Mas, na hora de os homens se reunirem para estabelecer um consenso, existem normas que possam regular aquela reunião? Se existem, quem as estabeleceu? Pois, se alguém as estabeleceu anteriormente, adeus liberdade de cada indivíduo! E aí, Aple e Habermas têm uma invenção. Analisando a prática humana, eles descobrem em cada discurso entre pessoas um a priori, que consiste nisto: o homem se apercebe de ser um ser que fala, não teria sentido ser um ser que fala, se não existisse com quem falar, o homem se apercebe de ser membro de uma comunidade de comunicação, todos os indivíduos daquela comunidade de comunicação se dão conta, como num insight , que possuem dentro de si um a priori, isto é, o sentimento de que cada um da comunidade pode falar livremente e com responsabilidade liberdade e responsabilidade no discurso constituem o fundamento da Ética, voltada a definir consensualmente o que é bom e mau. Poderíamos pedir a estes pensadores qual garantia nos oferecem de que todos possuem o mesmo direito de liberdade e a mesma responsabilidade numa comunidade de comunicação. Sempre haverá alguém que se considera “mais igual que os outros”. E aí, quem tem razão? O falibilismo é o traço professado por estes filósofos. As decisões consensuais dos homens, dizem, podem ser revistas a qualquer momento, pois todas elas, fundando-se no momento fugidio do consenso entre as
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Éticas do Resultado Utilitarismo: o Bom é o útil e o alegre Nos anos 1970-80, quando se falava de distribuição de renda nos países pobres, dizia-se que primeiro precisava produzir e fazer crescer o bolo, para depois todo mundo comer. Esta tese vinha de economistas liberais e utilitaristas anglo-saxões, e eram copiadas pelos economistas do terceiro mundo. Aconteceu que os anos se passaram, o bolo cresceu e.... quem o comeu? Melhor, quem o está comendo? Se formos ver, quem está comendo o bolo crescido são os mesmos que comeram o bolo anterior: uma classe média e uma classe alta, adeptas do utilitarismo. O que poderia superar este pensamento ético-econômico equivocado? Uma outra ética pensada por economistas? Ou uma Ética pensada por sábios? Qual ? Metafísica racionalista e materialista da Ética do Resultado Os princípios de partida destas Éticas, cujos autores são geralmente racionalistas e materialistas, podem ser assim resumidos: O Absoluto, início de tudo, é a Matéria, e o homem é um ser somente material A vida presente é a única de que o homem dispõe e o maior preceito ético é o amor a si mesmo e à reputação pessoal. Deixe que o homem exerça seu egoísmo na economia, para que aumente a produção e outros venham a ficar beneficiados. Diante das agruras de que é feita esta vida, o melhor a fazer é tirar dela o máximo de proveito em tranqüilidade, utilidade, impassibilidade, prazer, felicidade. Não querer e esperar da vida aquilo que ela não pode dar.
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Há dois tipos de utilitarismos: o utilitarismo da felicidade (eudemonista) e o utilitarismo do prazer (hedonista). Ao primeiro corresponde o positivismo utilitarista de Mill, onde o bom é o útil, ao segundo o utilitarismo da alegria e da felicidade de Foucault e Misrahi. Ética Utilitarista Os utilitaristas adotam como princípio basilar do agir humano a inexistência de qualquer regra vinda do passado. O elemento de partida é um dado futuro e teleológico, o resultado. É boa a ação que terá efeitos positivos. Será o resultado a dizer-nos se esta ação é boa ou má, verdadeira ou falsa, justa ou injusta. Foram Jeremy Bentham (1748-1832) e Stuart Mill (1806-1873) os pensadores que desenvolveram esta ética baseada no princípio da utilidade. Chamam-se éticas do pragmatismo ou utilitarismo. Em Princípios de Economia Política (1848), Mill afirma: é bom aquilo que se converte em útil para o maior número possível de pessoas. Se, por exemplo, a religião é útil, tudo bem: a sabedoria nos vem mais dos atos e menos das contemplações, que são tão fictícias quanto a pergunta da criança que pede ao pai onde está o vento quando não sopra. As ações são justas se tendem a promover a felicidade, são injustas se tendem a promover o contrário da felicidade. Em educação, Mill escrevia: “Não aquilo que o menino ou menina aprenderam de cor, mas aquilo que aprenderam a amar e admirar forma seu caráter”. As ações humanas, portanto, são morais e aceitáveis quando as consequências são boas para quem as executa e quem as recebe. É bom aquilo que proporciona o Bem Comum e o bem-estar de todos. O homem é naturalmente egoísta, mas tal egoísmo pode tornar-se benéfico para a maioria, quando é usado na ambição social e no aumento da produção. Não existe altruísmo na economia e, se vierem vantagens para os outros, isto é apenas um efeito do egoísmo. Diante da tese utilitarista do máximo bem-estar possível para o maior número possível de pessoas, ficam umas perguntas: o que fazer quando o útil do indivíduo contrasta com o útil da coletividade? O que fazer quando o útil da coletividade contrasta com o útil do indivíduo? O que fazer com aqueles que ficam fora do maior número possível de pessoas? A esta última pergunta o utilitarismo parece responder: se arranjem.
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Ética da Alegria Na década de 1960 houve a revolução dos estudantes contra os valores belicosos de seus pais, que fizeram a 2 a guerra mundial, e houve a revolução sexual contra a moral religiosa e burguesa. Dizia-se: “não faça a guerra, faça amor”, ou “ponha uma flor na boca do canhão”. Ópio na cabeça, cocaína nas veias e uísque no estômago, foi proclamada a vitória da imaginação contra a razão: “ L´imagination au pouvoir! A imaginação no poder!”. Proclamou-se o amor livre e a mudança de todos os valores. Parecia que Epicuro e Nietzsche estavam finalmente triunfando, o mundo estava mudando. Poucos anos depois, porém, veio a conta. Os corpos, provados por tanta química nas veias e por tantas bactérias adquiridas na promiscuidade sexual, entraram em pane e o sistema imunológico endoideceu, não conseguindo organizar suas defesas. Começou a haver mortos. A juventude posterior mergulhou no medo das doenças. Escreva uma carta a Epicuro, dizendo-lhe o que deu errado e o que deu certo. A Ética da Alegria tem sabor grego, quando o espírito dionisíaco convivia com o espírito apolíneo. Dionísio era o deus do vinho e da dança, Apolo era o deus das formas corporais perfeitas e da estética do viver. A estética da vida era o ideal também do hedonista Epicuro (300 a.C.), que ensinava um prazer inteligente e moderado, tal de não acarretar posteriormente complicações desagradáveis. Epicuro transcorria a vida com amigos fora da cidade, longe da multidão caótica e barulhenta, em jardins, passeando entre pomares em vestes de seda após banhos balsâmicos, discursando sobre a prática da suma virtude, que era a fraternidade em privado e na política. Sua escola chamava-se Escola do Jardim. Esta Ética da alegria e da estética tem também sabor romano, quando o helenismo triunfou após as campanhas bélicas de Alexandre Magno, que transportou a cultura grega ao redor do Mediterrâneo, chamado pelos romanos “o nosso mar - mare nostrum”. Chegam até nós as imagens felinianas do filme Satyricon, com senadores, jovens e bacantes entretidos em banquetes, termas, sexo e jogos.
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Mas não era só isso. A estética do viver romano incluía também a reflexão silenciosa, o exame de si, o culto das belas letras, o ócio dedicado às artes. Estas atividades estavam contidas na famosa expressão estóica exercícios espirituais, expressão ironicamente retomada em 1548 pelo fundador dos Jesuítas, Inácio de Loyola, que fez dos exercícios espirituais uma sequência de silêncio de um mês a cada ano, momento máximo da ascese católica. A Contemporaneidade pós-moderna, liberada de qualquer interdição, retoma este ideal de exercício alegre das artes e da vida estética sobretudo com Michel Foucault. As forças que nos plasmaram nos séculos, diz Foucault, nos abandonaram, porque não há mais ninguém que nos diga o que devemos fazer: estamos não apenas num campo de proibição, mas também no campo das oportunidades, que devemos desfrutar. O conceito de fundo é a “cura de si” ( A Cura de Si, 1984). Ter cura de si significa, em moldes epicureus, possuir-se a si mesmo, dar forma a si mesmo, plasmar-se, esculpir-se como uma estátua, dar a si mesmo sua própria lei, evitar prostituir-se aos ditados das mercadorias tecnológicas, fugir das proibições tradicionais, sobretudo religiosas, as quais ferem a totalidade do viver orgástico no aqui e agora. “Nos preocupamos tanto – diz Foucault – de ter em casa um lustre criado por um designer, e depois nos esquecemos de nós mesmos”. Trata-se de um orgasmo da carne e do espírito, um estilo requintado de moradia e relações sociais, uma orgia de ações belas e de pensamentos apurados, uma liberação do corpo e do estro mental, uma ode existencial a Dionísio e Apolo. Ética da Felicidade Robert Misrahi escreveu um Tratado da Felicidade (1983), que pretende resgatar a grande esquecida de tantas éticas modernas complicadas: a felicidade. Por que não falar de felicidade? Não é dela que falavam os antigos, desde Aristóteles, a eudemonia? Ultimamente, diz Misrahi, tivemos filosofias do nada, do absurdo, do desespero, do caos, da hecatombe ecológica, de um existencialismo feito de angústia, náusea, medo, solidão malsã. Que é isso? Falemos da Felicidade no aqui e agora! Anteriormente, tivemos religiões que ainda hoje prometem a felicidade bem longe, lá pelas bandas da eternidade. Tivemos filosofias panteístas que ainda hoje prometem a felicidade na reconciliação futura com a Natureza. Tivemos filosofias marxistas e utópicas que prometem mais
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adiante um mundo melhor, onde todos se abraçariam. Todas elas recomendam no presente a austeridade, a revolução, o sacrifício, a renúncia. Que é isso? Falemos da Felicidade aqui e agora! O que é, então a felicidade do aqui e agora? É a qualidade de vida. E o que é uma qualidade de vida? É organizar um estilo de viver, feito de relações sociais, de amizades, de encontros, de eventos, no Estilo de Epicuro. Ter qualidade de vida significa: a) reconciliar-se com seu próprio físico, tratando-o com os cuidados de uma odalisca, b) reconciliar-se com suas próprias qualidades mentais, alimentando-as de leitura e descobertas, c) reconciliar-se com sua própria sensibilidade estética, em solidariedade com o mundo das flores e das cores. Se a alegria é o momento, a felicidade é um estado de vida e de ânimo. Ela é uma distância do mal, uma fuga do feio, uma impassibilidade ( ataraxia) frente às desventuras. É uma irradiação de forças positivas em diálogo com as irradiações vindas de outrem. É o passeio irrenunciável pelas colinas na manhã de sol de domingo. Uma versão trágica desta felicidade de Misrahi é o Tratado do desespero e da beatitude de Comte-Sponville (1988). A felicidade é um desengano. É a astúcia de saber conviver com a dimensão trágica do existir. É saber esperar da vida aquilo que ela pode dar, e nada mais. É ausência serena de esperança falaciosa. É saber denegar o horror, para não ficar aprisionado por ele. É fazer do desespero uma ironia, da esperança uma apatia. É a penúria dos cínicos gregos, que se faz serenidade diante do espetáculo das coisas que fluem, cada qual para o seu destino. É, como diz o poeta romano Gioacchino Belli, a sabedoria do cafeteiro filósofo: “Os homens deste mundo são iguais a grãos de café no moedorzinho, um antes, um depois e outro atrás todos eles vão a um destino A miúdo trocam lugar e empurra amiúde o grão grande o grão pequenininho e se acotovelam todos no ingresso Do ferro que os tritura em pózinho”.
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Ética da Justiça Rawls. O Bom é a justiça nas diferenças
O candidato Y chega à presidência de uma república do Terceiro Mundo, após lutas sindicais, persecuções e prisão, após ter sacudido a consciência operária do país, após ter organizado uma central sindical nacional e um novo partido com metas socialistas. Seu currículo de ações em prol do país é notável. O povo vê nele as credenciais para fazer reformas de vulto e debelar as diferenças salariais astronômicas, que assolam o país e condenam 70% da população à miséria. Os colegas de partido pressionam para que ele promova o socialismo. Mas ele não conseguirá fazê-lo, porque as resistências de muitos cidadãos na Nação são mais fortes que ele. O que lhe poderia ser aconselhado a fazer ?
Metafísica racionalista e não-materialista de Rawls: é possível tornar justa uma sociedade liberal? John Rawls (1921-2002), racionalista não-materialista, é o teórico que exerce atualmente a maior influência sobre os dirigentes das maiores nações do mundo em questões de Filosofia Moral e Política. Rawls tornou-se também o sucedâneo de Marx junto das novas esquerdas mundiais, órfãs dos regimes comunistas. Ele relança em bases realistas e modernas o debate sobre a justiça e a filosofia política. Situando os desavantajados na base de sua argumentação ética, Rawls procura um equilíbrio entre as três grandes palavras de uma sociedade liberal moderna: liberdade, diferenças, justiça. Estadunidense austero e simples, professor tímido que lia suas aulas para
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não gaguejar, já combatente do exército americano nas regiões do Oriente, Rawls é famoso por ter encontrado um argumento racional, chamado Posição Original , para dar uma conotação universal à sua ética da justiça. No livro Teoria da Justiça (1971), estudado em 27 línguas e considerado por muitos o maior livro de ciências humanas nas últimas décadas, estes são os pontos metafísicos de partida de Rawls: A pergunta fundamental: é possível tornar justa uma sociedade liberal ? É possível haver justiça, mantendo as diferenças sociais? Um “liberalismo igualitário” consiste no ajuste entre as idéias de liberdade, diferença, justiça. A justiça possível exige o abandono dos ideais ingênuos do igualitarismo utópico. A Ética Política não pergunta “qual é o bem comum da sociedade”, e sim “como uma sociedade deve ser estruturada para ser justa”. “A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade é a primeira virtude dos sistemas de pensamento”. É justo aquilo que corresponde à necessidade de todos. Este princípio metafísico está inscrito no fundo de cada ser humano. As Instituições Justas e a Virtude Pessoal do cidadão vão de mãos dadas, nenhuma sendo pressuposto da outra, pois de nada adianta os cidadãos terem um senso de justiça ( sense of justice), se as instituições não são justas e de nada adianta revolucionar as instituições, se o cidadão não tem o senso de justiça.
A teoria de Rawls representa um exemplo típico de intuição moral profunda, um tipo de imperativo categórico kantiano, um moral sense escrito no fundo do ser humano, uma incursão metafísica dentro da consciência humana, um ajustamento genial entre liberdade, diferença e justiça. Ele foi corajoso num ambiente norte-americano que, tendo reduzido a Filosofia à Lógica e à Teoria da Ciência, desprezava as questões de moral e metafísica. Rawls também pretende dar uma estocada ao utilitarismo, que, ao proclamar “a maior utilidade possível para o maior número possível de cidadãos”, se desinteressa daquelas minorias que, porventura, não venham a fazer parte do maior número possível de cidadãos. Rawls quer também se distanciar de Robert Nozick (1938-2002), teórico do “Estado mínimo” e professor coetâneo de Rawls em Harvard. O Estado, escreve Nozick em Anarquia, Estado e Utopia (1974), deve limitar-se à proteção do cidadão contra as violências externas e internas, deixando ao indivíduo a total iniciativa econômica e pessoal. Para Nozick,
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defensor supremo da liberdade da pessoa, um bem é justo se foi adquirido legalmente conforme o direito civil, mesmo que isto comporte desigualdades ( justiça de aquisição). Rawls, ao contrário, sustenta que a justiça é superior à liberdade e define justo aquilo que corresponde à necessidade de todos ( justiça de distribuição). A Posição Original (original position) Para construir o seu argumento inicial, Rawls monta um joguinho, que fez a fortuna de seus escritos. Imagine, ele diz, um grupo de pessoas que, como num jogo, estão reunidas numa sala para estabelecer as leis básicas de uma sociedade, na qual irão viver. Estes atores compartilham uma posição original (original position), que é a seguinte: eles têm conhecimentos gerais sobre a vida de uma sociedade; cada jogador vive na ignorância daquilo que ele será no futuro (veil of ignorance). Isto é, cada jogador não sabe qual será seu talento, status social, sucesso, profissão, convicção. Esses jogadores deverão basear-se na pura razão e fazer uma escolha racional prudente sobre o tipo de organização sócio-política na qual viveriam, não sabendo de antemão quem, entre eles, será rico ou pobre, bem ou mal sucedido, doente ou sadio. Isto evita que eles sejam disturbados por uma pluralidade de interesses individuais. Nessa posição original de ignorância, cada jogador procurará exercer o máximo de racionalidade pessoal para garantir a todos um mínimo de racionalidade político-social, de forma que, qualquer que seja sua condição pessoal no futuro, lhe será possível sobreviver razoavelmente. Rawls está convencido que tais pessoas chegariam a um consenso sobre dois princípios: 1. princípio de liberdade: cada pessoa tem igual direito à mais extensa liberdade fundamental, compatível com uma igual liberdade dos outros 2. : princípio de justiça nas diferenças: as desigualdades econômicas e sociais só são justificáveis quando sua ausência prejudicaria os menos avantajados. As diferenças sociais devem ser: ⇒ para o benefício dos menos avantajados abertas e possíveis a todos. ⇒ O primeiro princípio sanciona que em caso algum é admissível atentar contra a liberdade da pessoa, mesmo quando se trata de reduzir as
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diferenças. Nisto, ele se diferencia dos regimes comunistas, que sacrificam o indivíduo ao Estado e ao Partido. O segundo princípio reza que as diferenças sociais gozam de um estatuto relativo, enquanto o bem mínimo dos desavantajados goza de um estatuto absoluto. Isto é, as diferenças são justificáveis somente se trazem um bem aos menos sucedidos. Nisto, ele se aproxima do socialismo. Uma igualdade geral não seria auspiciosa, por impedir os incentivos que garantem a criatividade e o progresso em favor dos desavantajados O realismo de Rawls e as críticas contra ele O método equilibrado de Rawls visa evitar que as pessoas tenham belos princípios, mas inaplicáveis, como seria o caso do igualitarismo total e utópico, ou tenham ideais aparentemente bons, como os do comunismo, mas em contraste com outros princípios, como o da liberdade individual. Alguns criticam a posição original de Rawls, alegando tratar-se de um puro artifício, de uma assembléia fictícia, uma vez que tais tipos de jogadores são irreais. Só existem, objeta-se, homens dentro de um determinado ambiente, calculadores, carregados de interesses, de condicionamentos e de instintos. Mas é uma crítica vazia, por ser materialista, pois de fato Rawls refere-se a uma intuição metafísica dos seres humanos. Para outros, Rawls quer mascarar a iniqüidade da sociedade liberal, que é intrinsecamente desigual e injusta. Com as palavrinhas da justiça possível, Rawls quer apenas eternizar o conservadorismo liberal. Também esta crítica é frívola, pois Rawls é consciente do limite da sociedade liberal, mas a sua teoria traz os melhores resultados possíveis nas circunstâncias existentes. E o que fazer, alegam outros contra Rawls, quando uma sociedade não chega ao consenso sobre estes dois princípios? Rawls, que retrata muitos problemas de geopolítica mundial em A Lei dos Povos (1999), responde que há sociedades decentes e sociedades fora-de-lei. Nas sociedades decentes, hierarquizadas de forma aceitável, não é difícil que haja mentes razoáveis, capazes de chegar ao consenso sobre um mínimo de justiça e realizar a Razão Pública. Quanto às sociedades fora-da-lei, demasiadamente agressivas e autoritárias, espera-se que elas sejam ajudadas pelas sociedades dotadas de maior racionalidade. Trata-se de pensar uma utopia realista.
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A sociedade pensada por Rawls, todavia, é um conjunto liberal de pessoas, não uma comunidade solidária baseada na virtude. Ele reconhece isto e se diz teórico apenas da justiça possível no estágio atual da humanidade, contra as teses ingênuas dos socialismos e dos igualitarismos.
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Quarta Parte
Éticas aplicadas
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Ética dos Negócios O Bom é a responsabilidade social da empresa A Fábrica de papel expulsa dejetos que envenenam as águas do rio. A prefeitura exige depuradores, mas estes são caríssimos. A fábrica diz que deveria subjazer a empréstimos com juros altíssimos, e isto provocaria 20% de demissões, com problemas sociais gravíssimos para a prefeitura, que deverá sofrer a pressão e a subsistência de tantos desempregados e suas famílias famintas. A Fábrica e a Prefeitura decidem dar um tempo. Qual solução eles pensarão? A Ética nos Negócios vê a Empresa entre o Lucro e o Bom, entre a Eficiência e a Honestidade, entre o Business e a Virtude. O Bom, na Empresa, é: O bom do Trabalho, que deve superar o estágio de trabalho alienado e tornar-se trabalho humano. O Trabalho é tanto mais alienado quanto mais é executado pelo trabalhador em absoluta dependência ao dono da empresa. O Trabalho é tanto mais humano quanto mais o trabalhador se torna dono de seu trabalho (confira o capítulo XII). O bom da finalidade da própria Empresa, que deve olhar as necessidades humanas integrais e não apenas mercantis da sociedade como um todo. Em outras palavras, a Ética nos Negócios reflete sobre: o papel do profissional dentro do Business a relação do Business com a sociedade. Os termos Ética e Negócio parecem contraditórios, se, como se diz, nos negócios tudo é permitido e o furto é a alma do comércio. Dir-se-ia que a ética nos negócios é uma tentativa fracassada antes do tempo. Há uma verdade nisso, se considerarmos que negócio é uma negação do ócio. O
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otium (ócio) dos clássicos greco-romanos e dos medievais produzia artes, letras, vida comunitária, ações do Espírito, festas. O negócio da era industrial, ao negar o otium, produz apenas coisas. Perigo das Éticas Aplicadas As Éticas Aplicadas mais famosas são a Ética nos Negócios e a Bioética, as quais serão tratadas, respectivamente, neste e no próximo capítulo. Diante do desconhecimento e do refluxo das Grandes Éticas do Bem e das Religiões, que seriam suficientes a nortear qualquer atividade do ser humano, vieram a faltar parâmetros morais nas empresas e nas profissões. Observou-se que as empresas começavam a pôr os interesses particulares acima do interesse comum, corrompendo, mentindo, espiando, roubando, criando uma legislação paralela à do Estado. A empresa começou a praticar a evasão fiscal para diferenciar-se nos preços e minar as condições de igualdade no mercado, elaborando balancetes fraudulentos nas bolsas, travando guerras de guerrilha contra a concorrência. Mas, da mesma forma que existem códigos mínimos de guerra entre os povos, a Ética dos Negócios acha que devem ser estabelecidos códigos mínimos na guerra do mercado e na sociedade do dinheiro. Começaram a aparecer, assim, desde 1970, éticas aplicadas ou deontologias (deveres do profissional), com o intuito de, no vazio deixado pelo decréscimo das éticas religiosas, dar regras de comportamento aos vários tipos de profissionais Os filósofos e teólogos, porém, desconfiam da conveniência de ditas éticas aplicadas. Muitos livros de Éticas dos Negócios não passam de manuais jurídicos elaborados por advogados ou de regrinhas para cada profissão. Considerando que existem no mundo 20 mil profissões, deveríamos ter 20 mil éticas aplicadas. Em suma, uma babel de éticas. A Filosofia e a Teologia consideram o Negócio como mais uma atividade humana, entre as centenas existentes. O mundo dos negócios estaria bem servido pela Ética Geral e pelos Dez Mandamentos de Moisés, que regulam todos os tipos de relações entre os seres humanos. Bastaria um folheto adicional, para dar conta de cada profissão. Uma ética específica nos negócios contém o perigo de fazer esquecer ao operador econômico a Ética Maior, válida para tudo e sempre. Duas visões da Empresa A empresa tem uma finalidade apenas técnica ou também moral? Sobre a
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questão registram-se duas concepções da finalidade da Empresa: A empresa é uma atividade técnica de produtos e lucros. A empresa é uma atividade técnica e moral, visando produtos e lucros dentro de uma responsabilidade social extralegal. Representante da primeira concepção é o liberal e Prêmio Nobel em Economia Milton Friedman. A empresa, ele diz, não é uma associação de caridade e sim uma unidade produtiva. Tal concepção chama-se também fordismo: a produção pela produção. Se aos Institutos de caridade cabe resolver situações sociais na falta de um Estado eficaz, à Empresa compete somente produzir o lucro. Basta que a Empresa pratique um Standard Moral Mínimo, que consiste em não fazer mal aos outros. Em suma, cada macaco no seu galho. A segunda concepção considera que as relações da empresa com seus funcionários internos e com a sociedade externa (clientes, fornecedores, consumidores, stakeholders) devem ser concebidas em termos não apenas técnicos, mas também morais. Não se pode ser prisioneiros da “razão de empresa” (os negócios são negócios), como as ditaduras o são da “razão de Estado”. Quer dizer, a eficiência não exclui a excelência e a virtude, e a competição não impossibilita a cooperação. Além do mais, decresceu a fé na “mão invisível” hipotizada por Adam Smith no seu Riqueza das Nações (1776), a qual, longe de harmonizar automaticamente as forças do mercado, esconde interesses escusos. É esta segunda concepção que criou a Ética nos Negócios.
Duas visões da Ética nos Negócios Entre os que defendem a existência de uma Ética específica dos Negócios ou da Empresa ou da Economia ou do Mercado , registram-se duas posturas: A postura utilitarista-contratualista em vista do sucesso econômico. Neste caso, os deveres econômicos da Empresa não são olhados como exigência do dever kantiano, desinteressado e decidido pela mente pura, mas como conveniência econômica. Considera que o sucesso da Empresa depende de seu matrimônio com a Ética. A postura filosófico-teológica, que funda a Ética dos Negócios sobre razões antropológicas e religiosas, numa palavra, sobre a Virtude. Considera-se que a Empresa deve contribuir, como qualquer outra atividade humana, a construir o homem e a sua felicidade. ⇒ Registra-se, no mundo, uma experiência nascida no Brasil e chamada Economia de Comunhão no Âmbito do Movimento
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dos Focolares. Esta experiência, a partir do Cristianismo e com altos índices de produtividade, professa a primazia do dar sobre o ter e destina os lucro em três direções: 1) divisão équa entre os trabalhadores da empresa, 2) investimentos sociais nas comunidades vizinhas, 3) formação de um centro mundial para uma nova mentalidade empresarial. A visão utilitarista-contratualista da Ética dos Negócios considera que: a Empresa é uma permissão da sociedade e está imersa nela, portanto, deve gratidão e reciprocidade à sociedade que a faz existir; a Empresa gasta a curto prazo com projetos de responsabilidade social, mas é recompensada a longo prazo com lucros maiores no mercado; a Empresa cria efeitos desestabilizadores no mercado, se não tem códigos éticos. Os bons negócios derivam de uma boa ética. A visão filosófico-teológica da Ética dos Negócios considera que: a Empresa é uma comunidade humana feita de pessoas, uma comunidade-empresa, e, como tal, um lugar de atitudes e responsabilidades da pessoa. A ação econômica supõe um agente, um trabalhador, um homem, que necessita vivenciar em todo lugar suas necessidades humanas; a Empresa representa a vida e o senso do existir para seus membros, com atividades também afetivas. A empresa é meio para os fins maiores da pessoa. É um lugar onde a pessoa pertence a um grupo. Ela não é um território, mas uma rede de relações; a Empresa é o lugar onde o homem se constrói como homem, exercendo as qualidades essenciais de inteligência, consciência, liberdade, sociabilidade, estética. É lugar de paz e amizade; a Empresa é uma prática (desumana ou humana) de ver e viver a vida; a Empresa é lugar onde acontece o exercício das virtudes, do caráter, da prudência e da felicidade; a Empresa é um exercício de sociabilidade, na medida em que o produto e o lucro são encarados como meios de tornar felizes os outros; a Empresa é o lugar onde o homem se torna co-operário de Deus na criação do mundo. É de se notar que esta visão filosófico-teológica do trabalho humano na Empresa é partilhada por filosofias seja religiosas que materialistas. Nas
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páginas 145-49 apresentamos a filosofia do trabalho em Marx, para o qual o ato de produzir ou negociar está a serviço da realização da essência humana seja do trabalhador seja do destinatário do produto. Nas Páginas 67-68 esboçamos a filosofia-teologia do trabalho na encíclica Laborem Exercens de João Paulo II, onde o trabalho é visto no contexto maior da Pessoa Humana. As filosofias e teologias consideram que o lucro alimenta o estômago, enquanto a co-propriedade do trabalho na empresa nutre a mente. Como cerne filosófico-teológico de uma Ética dos Negócios pode ser assumido o conceito de sociabilidade: somos todos sócios de uma rede de relações e cada sócio deve atuar em vista da felicidade dos outros, atitude que redundará em sua própria satisfação e realização. Tópicos de uma Ética nos Negócios Nos livros de Ética nos Negócios são discutidos vários itens, que neste compêndio apenas citamos, deixando com o leitor o aprofundamento em manuais apropriados. Em geral, as recomendações básicas de uma Ética dos Negócios são as de cultivar a verdade e a integridade contra a mentira, não buscar o lucro além de todo limite. Entre os vários itens, recorrem estes: 1. Relações com Clientes: Competência managerial Propaganda e marketing Venda e pós-venda Favores e aliciamentos Conflitos jurídicos 2. Relações com a Concorrência Atentados à livre Concorrência Relações entre concorrentes 3. Relações com Fornecedores Seleção e julgamento de propostas Cumprimento de pactos Propriedade industrial 4. Relações com Empregados Participação na gestão
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Profissionalismo e mérito Preconceito de sexo e raça Abuso de autoridade Transparência Ambiente de trabalho Amizade entre os trabalhadores 5. Relações com o Estado 6. Relações com a ambiente 7. Responsabilidade das empresas globalizadas 8. Deveres do Terceiro Setor no-profit (sem fins lucrativos).
A caridade começa em casa A Filosofia e a Teologia estão interessadas em livrar o leitor das ilusões. É uma ilusão pensar que a integridade ética do profissional possa brotar da leitura de um manual ou de palestras organizadas na Empresa. A aquisição de uma postura ética requer muito mais. O agir moral da pessoa vem de convicções fundas, longínquas, metafísicas, que se sedimentam nos ossos da pessoa mediante longa reflexão silenciosa e longo exercício prático. Diz-se que “a caridade começa em casa”. Uma pessoa boa em casa e na alma é boa em qualquer lugar e também nos negócios.
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Bioética O Bom é a vida
Uma mãe médica tem uma grave complicação de gravidez: ou ela morre e a criança nasce viva ou os médicos sacrificam a criança. A mãe, católica fervorosa, conhece as práticas dos hospitais e pede aos colegas médicos de não fazer com ela brincadeira alguma: ela quer que a sua filhinha nasça, custe o que custar. Passaram-se 35 anos e, em 1997, num Maracanã de Fé, Rio de Janeiro, diante do Papa João Paulo II, que viera concluir o Ano da Família, uma moça de 35 anos conta ao mundo pela televisão como a sua mãe tinha morrido no seu nascimento. Ovações se elevaram de todos os cantos do planeta para aquela mãe, viva. O que você poria numa carta àquela mãe? Os avanços em biologia, medicina e genética põem ao homem de hoje perguntas dramáticas, que chamam em causa seja a religião como a razão. Defrontamo-nos com medos e suspeitas anteriormente inexistentes. A Bioética, do grego bíos (vida) e éthos (comportamento), abrange a conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde. Historicamente, os itens relativos à vida humana sempre foram tratados na Ética Geral. Hoje, a questões biomédicas, bem mais prementes, começaram a receber um nome novo: a Bioética. Temas de Bioética Aqui apenas enumeramos os temas de Bioética, reenviando o leitor para escritos específicos de aprofundamento. Tais temas são:
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Controle da reprodução, fertilidade, contracepção, preservativos Morte, suicídio assistido, pena de morte Aborto Eutanásia, verdade aos doentes, obstinação terapêutica Eugenismo, esterilização de deficientes Sexualidade, homossexualismo, transexualismo Genética, controle dos genes e experimentação sobre homens Manuseio de embriões Clonagem Controle do sistema nervoso Doação e transplante de órgãos Relação profissional-paciente Código do médico e Comitês de Ética Questões políticas e sociais inerentes à vida Bem-estar dos animais
Tais temas são respondíveis somente dentro dos grandes paradigmas tratados em capítulos anteriores. Os temas da bioética vivem o mesmo estatuto de qualquer outro aspecto da vida humana. Em outras palavras, todos os temas da bioética devem defrontar-se com as visões de Absoluto tratadas no capítulo 2 deste livro. É este, na realidade, o debate em curso no planeta, quando a Bioética se defronta com: os fundamentos cósmicos da ética (pág. 77-91) os fundamentos religiosos da ética (pág. 91-108) os fundamentos racionalistas e/ou materialistas da ética (pág. 108115). Para cada uma destas visões de mundo há uma resposta particular a um problema bioético. E as posições são freqüentemente inconciliáveis. Limitar-nos-emos a alguns exemplos, nos quais poremos a confronto o paradigma materialista e o religioso.
Manuseio de embriões As Éticas materialistas não vêem dificuldade no uso de embriões e de suas células estaminais em pesquisa científica e em fins terapêuticos para o mal de Alzheimer, Parkinson, diabete, patologias hereditárias e outras. O embrião, na perspectiva materialista, é um evento material, como o nascimento de uma ameba. O embrião pode ser usado pela razão
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científica, como é usado qualquer outro elemento natural. Alguns admitem a produção direta de embriões para pesquisa. Outros se limitam ao uso dos embriões produzidos a mais na fecundação em vidro. Trata-se de milhões de embriões congelados em tambores. De alguma maneira – dizem - tais embriões seriam, um dia, destruídos. É razoável, portanto, destinar fundos públicos para a experimentação com eles. Nas Éticas religiosas, o começo de toda discussão é a definição de quando o embrião começa a ser uma Pessoa com alma. Para algumas religiões, isto acontece no ato da fecundação, para outras, em momentos sucessivos ou progressivos: A Ética Católica considera que já na fecundação o embrião é dotado de um código humano diverso do código de outros seres e é, por isso, uma pessoa com alma. No momento da fusão do espermatozóide com o óvulo se inicia um desenvolvimento que não pára mais. Portanto, cada embrião é uma criatura de Deus e uma pessoa, que se desenvolve em todos os estágios subseqüentes da vida. E a pessoa é inviolável. A Igreja Católica é favorável somente à experimentação com células estaminais tiradas dos adultos. Há católicos que consideram o início da vida humana em outros momentos, por exemplo, na fixação do embrião ao útero ou depois da chamada fase de “pré-zigote”, mas a Academia Pontifícia de Ciências considera falaciosas estas opiniões. O Cristianismo Protestante adota posições variadas, havendo desde teólogos que deixam ao indivíduo a definição moral do manuseio dos embriões até teólogos inflexíveis sobre a inviolabilidade do embrião desde o começo. No Judaísmo há posições diversificadas sobre o momento ou os momentos sucessivos em que se constitui a alma humana, alguns chegando a crer que o processo de infusão da alma termina com o nascimento. No Islamismo as posições são também diversificadas, dependendo da interpretação dos textos alcorânicos. Alguns consideram que o embrião torna-se pessoa e recebe a alma a partir do quarto mês; antes disso, a experimentação com embriões seria moral. Outros consideram que a alma existe no embrião desde a concepção.
Clonagem humana A clonagem do ser humano coloca interrogações de ordem humanitária,
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ecológica e religiosa. A perspectiva é tão assustadora, que a proibição da clonagem humana foi adotada praticamente por todos os parlamentos mundiais. Ninguém conhece os efeitos desta bomba biológica, que pode inserir novos elementos na estrutura genética do homem. Fala-se também de cruzamento entre homens e animais. Quanto à clonagem de animais e plantas, há reservas éticas sobre os efeitos desconhecidos que isto provocaria ao eco-sistema e na escala natural dos seres: humanos, animais e vegetais. A “vaca louca” foi um aviso. Alguns querem que as vacas se tornem animais carnívoros. Mesmo assim, são muitos aqueles que se perguntam em nome de que a clonagem humana deveria ser proibida. É o caso de pais, que gostariam clonar um filho único jovem, destinado a morrer. Na Ética Materialista, a clonagem da pessoa humana é uma decisão do homem e, como tal, está sujeita à regulamentação decidida pelos homens. Na Ética Religiosa, cada homem é uma criatura possuidora de um projeto pessoal pensado por Deus. Brincar de Deus sobre a vida humana é considerado uma grave afronta ao destino eterno da pessoa, considerando-se que a alma imortal é dada por Deus ao homem, e não se vê como o clone humano possa tê-la. As ciências devem estar a serviço da integridade do Ser Humano, que não é objeto de curiosidade e de mercado.
Matrimônio, aborto e sexo O sexo do casal é freqüentemente causa de separação matrimonial em pessoas que não esperam da vida outra coisa que não os bens sensíveis e individuais. Em pesquisa de 2002, na Califórnia, a psicóloga Judith Wallerstein traz números objetivos que fazem pensar, pois mostram que as consequências negativas do divórcio são piores na idade adulta dos filhos. A pesquisadora, especialista em estudos sobre o divórcio, refuta os mitos e a cultura do divórcio, descobrindo que, entre os filhos de pais separados, 25% são depressivos e não terminam o ensino médio (contra 10% dos filhos de pais unidos), 60% precisam de tratamento psicológico (contra 30%), 50% tem problemas com drogas e álcool antes dos 15
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anos. Quando adultos, eles vêem a vida de forma diferente. Entre aquele que chegaram aos 32 anos de idade, somente 30% casaram, e destes, 50% já se separaram. A psicóloga conclui que é melhor repensar as leis da família e os pais permanecerem unidos, ainda que de forma precária, ao invés de se separar, pois a família e a integridade dos filhos são bens maiores que a satisfação dos pais. Julgue a separação matrimonial à luz destes números e as conclusões da pesquisadora americana. Quanto ao namoro e matrimônio: a ética materialista é incapaz, na crise, de propor ao cônjuge uma felicidade diversa da separação, uma vez esgotados todos os meios racionais e humanos de reaproximação; a ética religiosa, ao contrário, vê o cônjuge de forma espiritualizada: ele é um dom de Deus para o outro cônjuge. O matrimonio é expressão do amor divino e se prolonga na eternidade. A Religião confia na ajuda espiritual da divindade e da comunidade, acredita no valor do sofrimento e, com isso, oferece ao casal recursos a mais para superar a crise e reencontrar a harmonia.
Quanto ao aborto (DIU e pílula do dia seguinte, abortivos): Do ponto de vista materialista, o embrião ou feto é um puro elemento material, sobre o qual a mãe tem poder de decisão. Nos movimentos estudantis de 1968 era freqüente o refrão feminista: “o útero é nosso, e ai de quem o toca”. Do ponto de vista religioso, o embrião ou feto possui um espírito, que é propriedade de Deus e não da mãe. O espírito do embrião continua vivo depois do abor to e a ele a mãe deverá prestar conta em algum momento. O aborto não elimina a pessoa; portanto, é ilusão, uma contradição em si, um non-sense. ⇒ A dificuldade econômica e o preconceito familiar-social são geralmente aduzidos como justificativa do aborto. A Religião considera que, antes de logo correr para a eliminação da vida, o problema econômico pode ser resolvido mediante um amparo financeiro específico (menos pesado que eliminar vidas) e o preconceito pode ser substituído por uma nova cultura de acolhimento, por parte da família e dos colegas, com quem sofre a gravidez indesejada.
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Quanto ao aborto por estupro, a Religião, além dos motivos traçados, considera que é melhor ficar com o produto da violência do que introduzir entre os homens a idéia de poder matar, idéia que provoca lácrimas bem mais catastróficas.
Quanto ao preservativo para evitar doenças: o Estado laico e as organizações não governamentais materialistas recomendam o uso do preservativo, mesmo que tal recomendação, além de ter eficácia discutida, possa estar conexa a uma mentalidade de “liberou geral”, com outras conseqüências prejudiciais em termos morais, familiares e sociais. a Religião possui um sistema próprio, barato e eficiente para diminuir as doenças sexualmente transmissíveis: a fidelidade no amor e a espiritualidade do sexo. Ainda que muitas pessoas “religiosas” não pratiquem a recomendação da Religião, esta nunca deixará de indicar tal caminho, sob pena de perder a doutrina que a constitui, da mesma forma que o Estado, diante do inundar do assassinato, nunca irá eliminar a lei contra o homicídio.
Quanto ao homossexualismo: a ética assentada em princípios materialistas não tem alternativa a oferecer ao homossexual, quando este acredita não haver outra vida além da presente. A pessoa não vê em troca de que deveria se abster da relação homossexual, e seria problemático exigir isto a ferro e fogo. a ética religiosa ordena, sim, de abster-se do amor homossexual, mas ela dá algo maior em troca, isto é, o amor eterno.
Eutanásia e pena de morte No filme Invasões Bárbaras um senhor com doença terminal, que já vivera os vários ismos do século XX (existencialismo, marxismo, niilismo...), é tirado do hospital e ajudado pelos amigos e pelo filho, executivo de sucesso, a ficar numa casa de campo e morrer tranqüilamente mediante várias doses de cocaína. Faz oito anos que uma moça sobrevive com um cano no nariz. O pai, cansado de ver a filha assim, pede à Justiça a permissão para suspender as curas. Pedido negado.
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Um jovem ajuda um amigo caríssimo e doente terminal a pôr fim à vida, mediante uma forte dose de insulina. Os pais do morto definem o gesto “um ato de amor”. O jovem é condenado a 15 anos de prisão. Organizações religiosas escrevem manuais para grupos de atendimento afetivo e terapêutico aos doentes terminais nos hospitais e a domicílio. Elas se especializam em cuidados humanos e em curas paliativas no acompanhamento cristão dos doentes, sem que estes precisem recorrer à eutanásia. Opine sobre estes dados A eutanásia vem do grego eu, que significa bom, e thánatos, que significa morte: é uma boa morte. Fazem-se estas distinções: Eutanásia passiva, quando o médico se abstém das curas que poderiam prolongar a vida do doente terminal. Eutanásia ativa, quando o médico causa diretamente a morte do doente sem ele saber. Eutanásia ativa voluntária, quando o médico causa a morte do doente a pedido deste. ⇒ Uma variável desta eutanásia é o suicídio assistido, que é o ato autônomo da pessoa em pôr fim à sua vida na presença de um médico e com meios fornecidos por ele. ⇒ Correlativo a estes conceitos é o chamado consenso informado, que entrou na ética médica e significa o direito do paciente a decidir sobre as curas que deverá receber. A ética baseada em princípios metafísicos materialistas, sintetizados em “fugir da dor e buscar o prazer”, considera que é direito do sujeito dispor de sua vida como melhor entender. Os antigos gregos e romanos tinham em estima o suicídio estóico. No último século nasceram inúmeras organizações pelo Direito de Morrer e alguns países reconhecem o direito da eutanásia, enquanto na maioria a eutanásia é crime. A ética baseada em princípios metafísicos religiosos considera que a dor é um meio de purificação para merecer a felicidade eterna. Além disso, a vida é de Deus, e o homem não tem poder sobre ela. A mística da dor, no cristianismo, funda-se no fato que Cristo passou pela dor para ressuscitar e vencer definitivamente a dor. A dor é uma “dor que salva”, título de um
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documento pontifício da Igreja Católica (1987). Por isso, a Religião assiste a dor do doente terminal, deixando que a natureza faça o seu curso. Não faltam, porém, igrejas protestantes que delegam ao indivíduo o direito à eutanásia. ⇒ A Religião, todavia, discorda da distanásia ou obstinação terapêutica, que é o uso exagerado de remédios para aumentar de algum tempo a vida do doente. A morte faz parte da vida, como porta necessária para ter mais vida. Quanto à pena de morte, a Religião, particularmente a Católica, evoluiu de uma aceitação jurídica da mesma nos séculos passados a uma condenação na atualidade. Hoje, seja nas éticas materialistas que nas religiosas é comum o conceito de que, se o assassino matou, o Estado não deve exercer o mesmo instinto, sob pena de arranhar o direito à vida nas sociedades modernas. O Estado possui outros meios para coibir os crimes, entre estes, a evolução para uma maior racionalidade na renda social e nas políticas públicas, fato que exige anteriormente um investimento na formação moral dos cidadãos como um todo.
A lógica das Éticas Como se vê, cada Ética possui uma lógica interna, situada dentro de uma lógica maior, que, no início do livro, chamamos visão de mundo. A visão materialista de mundo considera a vida humana num arco que vai do útero materno à morte. Nesta visão, a dor e a abstinência não têm valor e devem ser substituídas pelo prazer de viver, tendo como limite ético o respeito ao outro e evitar o mal ao outro. A visão religiosa de mundo considera a vida humana num arco que vai da mente eterna de Deus para a eternidade com Deus. A vida terrestre é antesala de uma vida sem fim Neste horizonte, o adepto da visão religiosa aceita as normas reveladas pela Divindade no Livro Sagrado. A dor possui um valor salvífico e purificador, a morte é uma passagem para a vida, a abstinência sexual comporta um prêmio maior que o sacrifício, a ética da vida é uma homenagem ao Criador da vida. Os racionalistas materialistas alegam que a postura religiosa é aceita por fé e, portanto, não pode considerar-se universal. Os religiosos alegam que a postura materialista é uma fé na matéria como início de tudo e tal fé, por não ser aceita em bilhões de mentes religiosas, tampouco pode ser considerada universal.