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estruturas sociais.10 Na Idade Média, a mais importante realidade social era a igreja e seus ritos, do batismo ao casamento e ao funeral, a igreja mediava e afirmava uma percepção de realidade. A igreja não era uma noção teológica abstrata nem uma instituição social periférica; ela esteve no centro da vida social, espiritual e intelectual da Europa Ocidental por toda a Idade Média e na época do Renascimento. A antiga perspectiva, que via o Renascimento como um intervalo entre a “era de fé” medieval e as incontroláveis paixões religiosas desencadeadas pela Reforma, nunca fez de fato muito sentido e é dolorosamente difícil de sustentar com base na evidência. 11 A esperança de salvação do indivíduo repousava em ser parte da comunidade de santos, cuja expressão visível era a instituição da igreja. A igreja não podia ser ignorada nem marginalizada em nenhum relato de redenção; conforme Cipriano de Cartago argumentou de forma tão convincente no século 3, não havia salvação fora da igreja. Esse era um ponto expresso de forma tangível e reforçado na arquitetura das igrejas. Uma excelente ilustração desse ponto é a igreja de St. Marcei les Sauzes do convento beneditino francês, fundada em 985 e extensivamente desenvolvida durante o século 20. 12 Acima da porta principal há uma inscrição com os seguintes dizeres: “Você que está entrando, que vem chorar por seus pecados me atravesse, uma vez que sou a porta da vida”. “Você que está passando, vocês que estão chegando para chorar pelos seus pecados, passem por mim, pois eu sou a porta da vida.” Os que buscavam o consolo do céu ou o perdão dos pecados não podiam garantir esses benefícios sem a intervenção e a interposição da instituição da igreja e de seus ministros autorizados. 13 A salvação fora institucionalizada. institucionalizada. Te n s õ e s e a n s ie ie d a d e s n o c r i s t i a n i s m o o c i d e n t a l
Por volta do final do século 15, para muitos, a posição da igreja na sociedade ocidental parecia uma estrutura permanente em um mundo estável. Contudo, todo esse modo de ver o mundo estava para sofrer uma mudança radical. Novas forças sociais e intelectuais começaram a desestabilizar suas fundações e a oferecer alternativas. Aumentou a pressão por reforma. Em parte, isso refletia o abuso e a corrupção na igreja, em parte, refletia também uma confiança cada vez maior por parte do clero - e de modo crescente dos leigos - de expressar suas queixas e ser ouvido. Não é difícil enumerar os muitos abusos e corrupções que nublavam a história da igreja no final do período medieval. Havia muito a criticar, do papa ao membro mais humilde do clero. O papado renascentista foi mui
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Como era de se esperar, parte da hostilidade em relação ao clero era reflexo da incompetência deles, e parte, dos privilégios que eles desfrutavam. A redução do imposto da qual o clero desfrutava era fonte de particular irritação, em especial em épocas de dificuldades econômicas. Na diocese francesa de Meaux, que se tornaria um centro das atividades reformistas no período de 1521 a 1546, o clero era isento de todas as formas de taxação, provocando considerável ressentimento nos habitantes. Na diocese de Rouen, houve ciamor popular contra o lucro repentino apurado pela igreja com a venda de grãos em um período de severa escassez. No entanto, é importante não exagerar a extensão desse anticlericalismo. Embora tenha havido áreas em que, sem dúvida, essa hostilidade era particularmente acentuada - nas cidades, por exemplo - o clero, com frequência, era valorizado e respeitado. Nas áreas rurais, em que o número de leigos alfabetizados era baixo, os clérigos permaneciam os membros mais instruídos da comunidade local. Mais importante é que muitos dos monastérios da Europa eram respeitados por conta de seu envolvimento social e de suas relevantes contribuições para a economia local. Não obstante, quando tudo isso é levado em consideração, permanecia um murmúrio de descontentamento, muitas vezes expresso no que é conhecido como
wlite-
ratura de insatisfação . Subjacente a essa crítica estava acontecendo uma relevante mudança entre os leigos. Embora o século 15 fosse visto como um período de degeneração religiosa por uma geração anterior de historiadores, uma pesquisa mais recente derrubou decididamente esse veredicto. 16 No final desse período, às vésperas da Reforma, talvez a religião estivesse mais firmemente enraizada na experiência e na vida das pessoas comuns que em qualquer outra época do passado. O início do cristianismo medieval era principalmente principalmente monástico, cujo foco era a vida, a adoração e os escritos dos monastérios e conventos europeus. No final do século 15, floresceram os programas de construção de igrejas, bem como as peregrinações e a moda de colecionar relíquias. Este século é mencionado como o “período de ascensão da literatura mística”, refletindo o aumento do interesse popular pela religião. O século 15 testemunhou a expansão da aprovação do povo das crenças e práticas religiosas, nem sempre em formas ortodoxas. O fenômeno da “religião popular”, com frequência, carrega uma relação tangencial com as mais precisas, porém abstratas, afirmações da doutrina cristã que a igreja prefere - mas que muitos consideram ininteligíveis ou não atrativas. Em partes da Europa, surgiu algo próximo de “cultos da fertilidade”
Editor responsável Marcos Simas Tradução Lena e Regina Aranha
Preparação de textos Paulo Pancote
Capa Rick Szuecs
Revisão João Rodrigues Nataniel Gomes
Diagramação Clara Simas
©2012 Editora Palavra © 2007 by Alister E. McGrath HarperCollins Publishers, 10 East 53rd Street, New York, NY 10022 Título original Christianity’s Dangerous Idea
Impressão Sermograf Artes Gráficas
Ia edição brasileira Setembro de 2012
Todas as citações bíblicas foram extraídas da versão Al m e idid a R e v isi s t a e At u a l i za za d a , 2a. ed (Sociedade Bíblica do Brasil), salvo indicação em contrário. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida sem o consentimento prévio, por escrito, dos editores, exceto para breves citações, com indicação da fonte. Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados pela EDITORA PALAVRA LTDA CNPJ: 13-937-023/0001-79 CLN 203 BLOCO BL OCO C SOBRELOJA SOBR ELOJA SALA S ALA ιοί ιοί ASA NORTE BRASÍLIA-DF CEP: 70833-530 TELEFONE: (61) 3213-6999 www.editorapalavra.com.br
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ M429r McGrath, Alister E., 1953 Revolução protestante / Alister McGrath : Palavra, 2012. 536p.: 21 cm
; tradução Lena e Regina Aranha. - Brasília, DF :
Tradução de: Christianity’s dangerous idea ISBN 978-85-65158-06-0 1. Protestantismo - História. 2. Reforma protestante. I. Título. 12-5855. CDD: 280.409 CDU: 28(09) 22.08.12 27.08.12
038311
Em memória de Stephen Charles Neill (1900-1984)
Sumário
Introdução Pa r t e i : Or i g e m
1. A tempestade se avizinha 2. O revolucionário revolucionário por acidente Martinho Lutero 3. Alternativas a Lutero A diversificação da Reforma 4. A troca de poder Calvino e Genebra
5. Inglaterra O aparecimento do anglicanismo
6. Guerra, paz e desinteresse desinteresse Protestantismo europeu em crise, 1560-1800
7. Protestantismo nos Estados Unidos 8.
O século 19
A expansão global do protestantismo
Pa r t e 2: Ma n i f e s t a ç ã o
199
9. A Bíblia e o protestantismo protestant ismo
201
10. Crer e pertencer
241
Algumas crenças protestantes distintivas distintivas
11. As estruturas da fé
273
Organizaçaoy adoração e pregação
Pa r t e
12. Protestantismo e a estruturação da cultura ocidental
307
13. Protestantismo, Protestantismo, as artes e as ciências naturais
347
3 : Tr a n s f o r m a ç ã o
14. A mudança do caráter do protestantismo norte-americano 15. Línguas de fogo
381
385 409
A revolução pentecostal no protestantismo protestantismo
16. As novas fronteiras do protestantismo protestantismo
433
O sul global
17. Protestantismo Protestantismo
455
A próxima geração Notas
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In t r o d u ç ã o
m julho de 1998, os bispos da Comunhão Anglicana reuniram-se na histórica catedral inglesa da cidade de Canterbury para sua tradicional Conferência de Lambeth, realizada a cada dez anos. A intenção da reunião era tratar os muitos desafios e oportunidades que o anglicanismo tem enfrentado no mundo - como o florescente crescimento da igreja na África e na Ásia, seu lento declínio no Ocidente e os novos debates a respeito da sexualidade. Os bispos reuniram-se todos os dias para oração e estudo da Bíblia, uma afirmação poderosa do papel da Bíblia no apoio da unidade cristã, direção da igreja em tempos turbulentos e nutrição da espiritualidade pessoal. Contudo, como a Bíblia deveria ser interpretada - por exemplo, em relação a questões controversas como a da homossexualidade, principal motivo de atrito no anglicanismo naquele momento? A despeito dos melhores esforços dos organizadores da conferência, eclodiu um tempestuoso debate exatamente em torno dessa espinhosa questão nas sessões públicas da conferência, refletindo as múltiplas tensões entre religiosos liberais e conservadores, percepções de mundo moderna e pós-moderna e os contextos culturais muito distintos do Ocidente e do mundo emergente. Parafraseando Hugh Latimer, bispo de Worcester (executado em 1555), todos queriam o bem mas certamente eles não queriam a mesma coisa. 1
A Comunhão Anglicana, na percepção de muitos observadores, chegou perigosamente perto de se dividir nesse ponto em relação à interpretação do texto que os devia manter unidos. Como, muitos anglicanos se perguntam, a Bíblia pode ser o fundamento para a identidade e a união deles quando havia uma desunião tão evidente em relação a como ela tinha de ser entendida? Como um movimento baseado em um texto podia ter identidade interior coerente quando havia um desacordo claro e fundamental sobre como esse texto devia ser interpretado e aplicado a questões de suma importância? A ideia no cerne da Reforma do século 16, que trouxe o anglicanismo e outras igrejas protestantes à existência, era que a Bíblia podia ser entendida por todos os cristãos - e de que todos eles tinham o direito de interpretá-la e de insistir que as suas percepções fossem levadas a sério. Contudo, essa poderosa afirmação de democracia espiritual acabou por liberar forças que ameaçavam desestabilizar a igreja, levando por fim, à cisão e à formação de grupos dissidentes. O anglicanismo pode ainda seguir o padrão de outros grupos protestantes e se tornar uma “família” de denominações, cada um com a sua própria forma de ler e de aplicar a Bíblia. A nova ideia perigosa firmemente incorporada no cerne da revolução protestante era que todos os cristãos tinham o direito de interpretar a Bíblia por si mesmos.2 Contudo, isso finalmente provou ser incontrolável, gerando desenvolvimentos que poucos previram ou pretenderam na época. As grandes convulsões do início do século 16, hoje chamadas pelos historiadores de “Reforma”, introduziram uma nova ideia perigosa na história do cristianismo que deu origem a um crescimento e criatividade sem paralelos, por um lado, e por outro, causando novas tensões e debates que, por sua própria natureza, provavelmente repousam além de qualquer resolução. O desenvolvimento do protestantismo como a principal força religiosa do mundo é decisivamente modelada pelas tensões criativas que emergem desse princípio. A IDEIA PERIGOSA
A Reforma Protestante, para seus apoiadores, representou uma correção necessária e uma renovação muito atrasada da fé cristã, libertando-a de sua prisão à transitória ordem medieval intelectual e social e a preparando para novos desafios à medida que a Europa Ocidental emergia do feudalismo da Idade Média. O cristianismo nascia de novo, com nova potência e capacidade para se ocupar com uma nova ordem mundial emergente.
In t r
o d uç ã o
Todavia, o movimento, desde seu início, foi visto por seus opositores como um desenvolvimento ameaçador, abrindo caminho para a desordem religiosa, para a desintegração social e para o caos político. Não foi simplesmente que o protestantismo parecia rever, corromper ou abandonar algumas das crenças e práticas tradicionais da fé cristã. Algo muito mais relevante - e, em última instância, muito mais perigoso repousava sob a superfície da crítica protestante da igreja medieval. Em seu cerne, o surgimento e o crescimento do protestantismo dizia respeito a uma das questões mais fundamentais que podem confrontar qualquer religião: quem tem a autoridade para definir a fé da religião? As instituições ou os indivíduos? Quem tem o direito de interpretar seu documento fundamental, a Bíblia? 3 O protestantismo assumiu sua posição de que os indivíduos tinham o direito de interpretar a Bíblia por si mesmos, em vez de serem forçados a se submeter às interpretações “oficiais” transmitidas por papas ou outras autoridades religiosas centralizadas. Para Martinho Lutero, talvez o mais relevante da primeira geração de líderes protestantes, a autoridade tradicional das instituições clericais levara à degradação e à distorção da fé cristã. A renovação e a reforma eram urgentemente necessárias. E se a igreja medieval não pretendia colocar sua casa em ordem, a reforma tinha de vir das pessoas comuns - dos leigos. A doutrina radical de Lutero do “sacerdócio de todos os crentes” capacitou os crentes individuais. Era uma ideia radical e perigosa que deixou de lado a noção de que a autoridade centralizada tinha o direito de inter pretar a Bíblia. Não existia autoridade centralizada, não existia monopólio monopólio clerical sobre a interpretação bíblica. A reforma radical do cristianismo foi inevitável, exatamente porque as restrições à mudança - aparentemente irreversíveis - de repente foram removidas. A erupção da Guerra dos Camponeses, em 1525, deixou perfeitamente claro para Lutero que essa nova abordagem era perigosa e, em última instância, incontrolável. Se cada indivíduo pudesse interpretar a Bíblia conforme sua vontade, o resultado só poderia ser a anarquia e o individualismo religioso radical. Tarde demais, Lutero tentou controlar o movimento, enfatizando a importância dos líderes religiosos autorizados, como ele mesmo, e das instituições na interpretação da Bíblia. Mas quem, perguntavam seus críticos, havia “autorizado” essas chamadas autoridades? A essência da nova ideia perigosa de Lutero não era de que não existia essa autoridade centralizada? E que todos os cristãos tinham o direito de interpretar a Bíblia como achassem apropriado? Por fim, nem mesmo a autoridade pessoal de Lutero pôde redirecionar essa revolução religiosa que os governos ansiosos tentavam abrandar e