A jangada de Medusa, Géricault, 1816
A Importância da Obra A "Jangada do Medusa" marcou uma época. As suas repercussões abalaram a sociedade francesa do século XIX e o quadro chegou aos nossos dias como uma obra prima. Afinal, porque é este quadro tão importante? O Humanismo e a luta pela sobrevivência No pós-Revolução francesa exaltavam-se os valores da liberdade, da igualdade iguald ade e da fraternidade entre os homens. ho mens. Era o apogeu das teorias sobre o progresso e a humanidade. O episódio retratado pela "Jangada da Medusa" deita por terra muitas destas teorias. As tentativas desesperadas pela sobrevivência trouxeram à tona os aspectos mais negativos do Homem - egoísmo, assassínios, canibalismo... canib alismo... Implicações políticas Depois da queda de Napoleão, a dinastia dos Bourbons havia regressado ao trono francês, em 1814. O naufrágio da fragata "Medusa" veio abalar um regime em busca de estabilidade e consenso político. Ao leme do navio estava um capitão que havia sido nomeado não pela sua experiência marítima, mas por razões políticas. Um erro de navegação motivou a tragédia. O escândalo abalou a sociedade francesa e, como consequência, o ministro responsável e 200 oficiais foram demitidos.
Um expoente do Romantismo O autor da "Jangada da Medusa", Théodore Géricault, tem uma influência determinante no desenvolvimento do Romantismo, no panorama artístico da França do século XIX. A obra transporta a emotividade desta corrente estética. A lividez idealizada dos cadáveres, a evocação do presente histórico da nação, a monumentalidade e o retrato épico perpassam o quadro.
A Época "Quem diz Romantismo diz arte moderna, isto é, intimidade, espiritualidade, cor, ânsia de infinito, expressos por todos os meios próprios da arte", escreveu o poeta Baudelaire em 1846. Tem de se recuar até ao início do século XIX, para se assistir ao nascimento e à difusão do Romantismo. Este termo é apenas uma definição global que conjuga artistas e situações diferentes, mas unidos por uma nova atmosfera cultural, uma nova sensibilidade, um novo panorama da História. No século XIX, o artista já não tem diante de si um cliente, faz obras por sua própria iniciativa, que poderão ou não ser compradas. O artista romântico trabalha para si mesmo. É o início da época das exposições e da crítica de arte «jornalística»: o público anseia por leituras e obras que solicitem a imaginação e a fantasia, debatem-se os estilos e a moda. Os temas tradicionais da pintura-deuses e ninfas, alegorias de conceitos abstratos, cenas bíblicas, episódios da História antiga- são substituídos pelo mundo íntimo da artista. Evoca o que o emociona no presente e no passado histórico, no mito e na natureza que o rodeia, no real e no imaginário, no sonho, no devaneio fantástico. É a época da aventura napoleônica, que termina com a Restauração, a época das sublevações nacionais nos Estados Italianos e Alemães, da guerra entre os gregos e os turcos, das primeiras manifestações da luta de classes na Europa. Na América, que havia conquistado recentemente a sua independência, procurava-se a identidade nacional na política e na arte. Como na filosofia do indivíduo e da natureza de Kant e de Schelling, na poesia de Goethe, Foscolo e Leopardi, e na música de Shubert e Beethoven, também na pintura se afirma o primado do indivíduo e do sentimento. É na Alemanha que se manifesta pela primeira vez a nova estética da interioridade, que aponta a arte como o instrumento para se atingir o fulcro da criação, para se contactar com a natureza infinita, através do sentimento do sublime. Dá-se o início da pintura moderna de paisagem, encarada como género «nobre», capaz de descrever melhor do que qualquer outro certos aspectos da sensibilidade do homem do século XIX. Caspar David Friedrich é seguramente um dos maiores artistas. As suas obras aliam uma técnica realmente excepcional com a capacidade de projectar na imagem pictórica reflexões supremas acerca da natureza e do homem. Em Inglaterra, a natureza também passa a ser o centro do interesse do público e dos artistas. À imagem de John Constable que explora a matéria e as formas dos campos e do céu ou de William Turner, que transforma o que vê através da luz. O caso de Turner merece uma atenção especial. Nas suas obras, a fusão entre o indivíduo e a natureza é levada até aos limites da destruição da imagem figurativa, porque, na sua poética, a «penetração emotiva» da paisagem implica a perda da razão e de qualquer referência cognoscitiva. Na América, os pintores mais jovens também se consciencializam de que a natureza local é o melhor tema para adquirirem uma identidade diferente da tradição europeia. As imagens íntimas aparecem no repertório romântico, ao lado do mito moderno da natureza marcada pela subjectividade. O artista moderno, que pinta à luz do sentimento, prolonga a sua reflexão até às zonas mais íntimas do eu, até ao território do sonho, do fantástico, do inconsciente, do irreal que transparece na realidade. Em França, onde a cultura neoclássica tinha sido forte e se integrara na Revolução, também ocorre essa modificação das formas. Na obra de Théodore Géricault, constata-se o horror das cabeças dos executados, das carcaças dos matadouros. Inspirando-se num episódio trágico (o naufráfio da Jangada da
"Medusa", durante o qual ocorreram cenas de canibalismo), exprime a sua condição existencial, a sua atraçcão pelos marginais, pelos pobres, pelos escravos negros e pelos doentes mentais. Eugéne Delacroix afirma outros aspectos da personalidade romântica: a participação no presente, com o seu quadro sobre a revolução de 1830. Outro elemento do mundo romântico é a recuperação da Idade Média, vivida como uma época de religiosidade pura, contrapondo-se à Antiguidade pagã e ao presente materialista. Daí a corrente neogótica, no romance, no teatro, na arquitectura e na arte figurativa
O Autor A personalidade atribulada de Géricault sempre marcou a sua forma de encarar o mundo. Em 1818, o ano que o inscreveu na história da pintura, teve uma relação com a mulher do seu tio da qual nasceu uma criança que foi dada ara adopção. Géricault nada fez para evitar os acontecimentos, mas a verdade é que os remorsos destruíram-no. Afastouse dos amigos, rapou o cabelo e autoflagelou-se com dezoito meses de trabalho árduo. Dezoito meses que lhe ermitiram pintar a obra que projectou: "A Jangada da Medusa". Jean Louis Andre Théodore Géricault nasceu em 1791 e é considerado um dos expoentes da arte francesa do século XIX. No percurso académico destaque-se a companhia de Carle Vernet e as lições de Pierre Guerri, um dos seus professores. As pinturas militares de Antoine Jean Gros influenciaram os seus primeiros quadros, pintados entre 1812 e 1814. Sob essa mesma influência retratou o ambiente trágico inerente às derrotas napoleónicas. Os estudos prosseguiram em Roma, onde Géricault levou a cabo alguns trabalhos sobre temas clássicos e contemporâneos. Também em Roma e depois de assistir a uma corrida de cavalos, no Roman Carnival, realiza muitos estudos sobre cavalos tendo em vista a concretização de uma obra prima monumental que nunca chegaria a realizar. O ano de 1818 inscreve o autor na galeria dos grandes artistas franceses. É o ano da sua obra prima: "A Jangada da Medusa". Uma obra que viria a ter um extraordinário impacto político. No entanto, é crível que as razões de ordem pessoal tivessem jogado mais forte na pintura deste quadro. O pintor envolveu-se com a mulher do seu tio. Uma relação que abalou a família e, da qual, viria a nascer uma criança que foi dada para adopção. A jovem mulher foi forçada a abandonar a cidade e Géricault, que nada tinha feito para evitar o sucedido afogou-se num mar de remorsos. Abandonou a vida social, desligando-se de todos os amigos, rapou o cabelo e enclausorou-se, durante ano e meio, dedicando-se apenas ao trabalho. Um trabalho forçado que culminou com a concretização da obra que o imortalizou. Este enclausuramento é interpretado como uma analogia com a atitude do capitão da "Medusa" que também abandonou os seus quando mais precisavam dele. Apesar das longas horas de trabalho e de distância com o mundo e mesmo depois de ter pintado "A Jangada da Medusa", Géricault nem assim conseguiu expiar todos os remorsos e culpa. Viajou até Inglaterra, em 1820, onde bebeu as influências de John Constable e, por isso, pintou cenas da vida urbana inglesa. Um ano mais tarde pinta outra das suas obras mais conhecidas, "corridas em Epson". Uma personalidade complicada e as lembranças de um passado sempre presente fazem-no regressar a Paris onde continuou o processo de autopunição e autod estruição. Andava a cavalo a grande velocidade e tentou o suicídio por várias vezes. Acabou por cair e a morte ceifou-o, em 1824, quando tinha apenas 32 anos. No Louvre ficará para sempre a obra que o consagrou: "A Jangada da Medusa" .
O Quadro
A emotividade do romantismo e o imediatismo do realismo são os pilares da obra prima monumental de Géricault. 491x716 cm são as dimensões finais de um quadro que Géricault queria realista mas que é muito mais a grandiosidade sofisticada numa escala monumental. A
"Jangada da Medusa" denunciou um naufrágio e a corrupção do regime mas, o que o pintor pretendia era o reconhecimento. E conseguiu-o, claro está. O quadro começou por chamar-se "Cena de um Naufrágio". Um título sem importãncia, sem implicações políticas mas que, por isso, teve entrada no Salon de Paris, em 1919. Aí realizavam-se essencialmente exposições com fins políticos mas também artísticos. Os Bourbon haviam regressado ao trono de França, em 1814, com a queda de Napoleão e usavam este salão para demonstrar a prosperidade e a estabilidade da nação depois do regresso ao trono dos seus governantes "legítimos". Assim os critérios de selecção para participar na exposição determinavam que os artistas tivessem de ser próregime ou pró-igreja (a grande aliada dos Bourbon) e realizassem obras que enaltecessem o poder vigente. Dois terços dos quadros tratavam cenas da vida dos santos enquanto os restantes prestavam tributo aos monarcas franceses. Curioso é o facto destes artistas, alguns anos antes, terem prestado tributo a Napoleão. Sem bajulações ao regime, o quadro de Géricault, servia muito mais para tornar presente um escândalo (o naufrágio da "Medusa") que a corte preferia esquecer, embora o pintor não se tivesse norteado por razões políticas. A prova disso é que ficou surpreendido por o rei não ter comprado o quadro e tinha, aliás, outras opções para tema do quadro que nada tinham a ver com política. A obra não foi comprada pelo rei porque os critérios dos críticos foram mais políticos do que artísticos. O objectivo de Géricault era realizar uma pintura em grande escala, com efeito tremendo, que permitisse atingir o reconhecimento.
Tentativa falhada de realismo Para realizar "A Jangada da Medusa", Géricault socorreu-se de várias fontes. Conversou com dois sobreviventes (Savigny - médico, Corréard - cartógrafo) e leu também o livro que ambos escreveram sobre o naufrágio. Os objectivos realistas levaram-no a alguns preciosismos como a construção de uma pequena maquete da jangada, para melhor a representar. As dimensões do quadro (491x716 cm) obrigaram ao aluguer de um estúdio maior. Curiosamente, perto de um hospital porque Géricault foi autorizado a fazer esboços de doentes e de moribundos. Um desejo de realismo exponenciado ao ponto do pintor levar para casa membros de pessoas mortas para observar a sua coloração nos primeiros dias de putrefacção. A morbidez ao serviço do realismo, num quadro que acabou por não obedecer aos cânones realistas. A análise da obra revela pormenores em nada coincidentes com o sucedido:
Jean Charles, o negro que acena no ponto mais alto do quadro, tem os músculos bem vincados nas costas aparentando boa alimentação. Nada mais falso porque depois de treze dias sem comer os músculos ficam reduzidos e notam-se as saliências dos ossos na pele; Por outro lado, nos relatos de Savigny e Corréard sublinhava-se que a pele dos homens estava queimada do sol e, para além disso, estava coberta de crostas e feridas. Não há sinais disto no quadro. Os cadáveres também não se apresentam azulados mas evidenciam, sim, uma lividez idealizada; Outra antinomia verificada é a barba feita e o cabelo cortado tanto dos mortos como dos vivos. Os relatos falam de cabelos longos e desgrenhados.
Apesar da imensidão real do mar, a tela atribui-lhe pouca importãncia. Nos primeiros estudos Géricault seguiu o costume ordinariamente utilizado nas cenas marítimas: grandes áreas dedicadas à água e as pessoas e barcos com dimensão reduzida. No entanto, à medida que o trabalho foi avançando, Géricault foi dando mais proeminência à jangada, de tal forma que na versão final sente-se que quase se pode entrar a bordo. Assim, a parte atribuída ao mar foi sendo marginalizada, ganhando ênfase a estrutura piramidal da composição. Durante o episódio que deu origem ao quadro aconteceram cenas de canibalismo embora essa certeza não esteja documentada no quadro. Nos estudos preliminares, apareciam dois homens nus a alimentarem-se de um cadáver mas, na época, o canibalismo era tabu. Apesar disso, a obra comporta uma referência a esse nível: uma figura paternal segura o cadáver de um jovem, o que simboliza a figura do conde Ugolino, objecto de múltiplas representações em pinturas contemporâneas. A lenda de Ugolino conta que ele foi preso pelos seus inimigos, juntamente com os filhos e netos, numa torre. Quando as crianças morreram ele tentou manter-se vivo ao alimentar-se da sua carne. Na lenda como na jangada a fome sobrepõe-se ao humanismo.
Obra monumental mas não histórica Quando Géricault terminou o quadro e o levou pela primeira vez para fora do seu estúdio, achou-o demasiado formal, com pouca "força". Relatos dizem que, trabalhando a uma velocidade estonteante, acrescentou cadáveres a ambos os cantos inferiores do quadro, alargando a base da pirâmide dos corpos, estabilizando a composição e reforçando o cariz
monumental da obra - o grande desejo de Géricault. A monumentalidade, tanto em formato como em execução, é uma das características estilísticas da pintura histórica, um género bastante louvado na época. Era encarada como uma espécie de prova de fogo. A pintura histórica "demonstrava" se um artista era realmente talentoso ou não. No entanto, a fluência estilística e a concentração temática (acontecimentos dramáticos ou famosos da história nacional, Cristo ou a Antiguidade) eram os principais requisitos da pintura histórica e "A Jangada da Medusa" não os preenchia. Era demasiado contemporânea. Sem a concretização do realismo idealizado pelo autor, "A Jangada da Medusa" é um testemunho poderoso do estado de alma do ser humano em sofrimento.
Detalhes O primeiro relato sobre o naufrágio da "Medusa" foi publicado por Henri Savigny, médico e um dos 10 sobreviventes. Géricault pintou-o ao lado direito do mastro com um outro sobrevivente, o cartógrafo, Alexandre Corréard.
O canibalismo está simbolizado no gesto paternal de um dos sobreviventes que segura um jovem morto. É uma analogia de Géricault em relação à lenda do Conde Ugolino, que depois da morte dos filhos e netos, comeu-os para sobreviver.
O pintor mostra um pequeno barco na linha do horizonte - o barco que os havia de salvar. Géricault pintou os barris e as caixas que serviam de suporte aos homens que acenavam, entre eles Jean Charles, o negro que acena no ponto mais alto, para assim chamar a atenção do barco que passava ao largo. Jean Charles obedecia a ordens. A sua "função" era atirar as vítimas ao mar.
A História da "Medusa" Os erros de navegação motivaram a tragédia. A luta dos sobreviventes, que ficaram na jangada, conduziu ao canibalismo. O desespero justificou o corte de cadáveres e a lei do mais forte permitiu que os mais doentes fossem lançados ao mar. A urina chegou a ser utilizada como bebida. O primeiro relato sobre o naufrágio da fragata real "Medusa" foi publicado por Henri Savigny, que viajava a bordo como médico do barco e por
Alexandre Corréard , o cartógrafo. A fragata real "Medusa" deixou o seu porto, em França, a 17 de Junho de 1816, em direcção a Saint-Louis, no Senegal. Apontada como uma das mais modernas embarcações da época, a sua missão era tomar posse da colónia do Senegal, na África ocidental, que havia passado para a tutela francesa. A bordo seguia o novo governador do Senegal, com a sua família, soldados e a equipa da marinha. Corréard, o cartógrafo, era um dos 60 cientistas que viajou na "Medusa", num total de 400 pessoas, seguramente mais do que as condições do barco permitiam. Apesar de estar prevista a companhia de três embarcações, a "Medusa" seguiu sozinha para uma longa viagem. Ao comando da "Medusa" estava Hugues du Roy de Chaumareys, um capitão que durante 25 anos esteve longe das águas por imposição de Napoleão. Mas com o regresso ao trono dos Bourbons, foi compensado com este comando. Uma escolha onde jogaram mais os factores políticos do que a competência marítima. A arrogância deste capitão e as consequentes discussões com os oficiais motivaram a 2 de Julho, um dia de águas calmas e boa visibilidade, a catástrofe. Um episódio que se deveu a um erro de navegação e incompetência, e que aconteceu numa zona de perigo, entre as Canárias e Cabo Verde. A forma como foi ordenada a evacuação do barco gerou egoísmo, pânico e brutalidade. O governador, o capitão e grande parte dos oficiais ocuparam seis salva-vidas enquanto 147 tripulantes não encontraram lugar. Os que partiram prometeram trazer socorro mas nunca apareceram.
A lei do mais forte Iniciou-se a luta pela sobrevivência. A única caixa de biscoitos acabou no primeiro dia e as reservas de água na primeira noite. Alguns barris de vinho era tudo o que restava para beber. No entanto, não era pela fome nem pela sede que se lutava a bordo, mas sim pela conquista de uma posição segura na jangada de 8x15 m, uma vez que os extremos ficavam frequentemente submersos. Os oficiais que ficaram na jangada ocuparam o centro, inclusive Corréard e Savigny. Estavam armados enquanto que os marinheiros e os soldados tinham sido desarmados antes de subirem a bordo. Destes últimos, 20 desapareceram durante a noite. Na segunda noite, a luta acentuou-se e durante um motim os oficiais, que foram atacados, mataram 65 homens. Pensa-se que aproveitaram esta oportunidade para se livrarem do maior número de concorrentes por espaço e vinho. Ao cabo de uma semana restavam 28 sobreviventes, mas segundo os relatos de Savigny "apenas 15 pareciam aptos a resistir porque todos os outros, cobertos de grandes feridas, tinham perdido a razão. Depois de longa deliberação, resolvemos atirá-los ao mar". Foi o próprio Savigny que seleccionou as vítimas. Savigny, nos seus relatos, conta os episódios de canibalismo: "Aqueles que a morte tinha poupado atiravam-se raivosamente aos cadáveres que cobriam a jangada e cortavam-nos em fatias, que alguns quase instantaneamente devoravam. Um grande número de nós, ao princípio recusaram-se a tocar nessa horrível comida, mas por fim, cedendo a uma vontade mais urgente que a humanidade, vimos nesse terrível repasto o único e deplorável meio de prolongar a existência".
A esperança no horizonte Passados treze dias apareceu um barco. Como a jangada tinha pouca elevação acima da água tornava-se difícil ser avistada. Por isso, para serem identificados penduraram lenços de várias cores e empilharam barris. O homem que acena no topo do quadro é Jean Charles, provavelmente o único "homem comum" entre os 15 sobreviventes. Os restantes eram oficiais, cientistas e funcionários públicos. Cinco dos sobreviventes, entre eles Jean Charles, acabaram por morrer no Argus, o barco que os salvou, por comerem muito e depressa demais.
Ecos na imprensa A imprensa atacou a história com todas as armas e a primeira reportagem do naufrágio da "Medusa" foi publicada em Setembro de 1816, pelo jornal parisiense Journal des Débats. As investigações sobre as causas e as circunstâncias exactas do desastre ocuparam os jornais franceses durante meses. Uma história de infortúnio que desencadeou um escândalo político. Apenas 10 dos 147 ocupantes da "Medusa" sobreviveram. As tentativas do governo para dissimular o verdadeiro alcance da catástrofe foram denunciadas pela oposição, o que levou à oposição do ministro responsável assim como de 200 oficiais da marinha. O livro de Savigny e Corréard pretendia conseguir indemnizações para as vítimas. Todos os apelos anteriores tinham sido rejeitados e, ainda por cima, a sua insistência junto das autoridades tinha-lhes custado os seus empregos e mesmo uma breve passagem pela cadeia.
A balsa da Medusa Óleo sobre tela Géricault
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Théodore
Antes do Titanic, houve um naufrágio que, tragicamente, entrou para os anais dos grandes desastres marítimos. Foi a notícia mais terrível de 1816: a fragata Medusa naufragara quase no fim da sua viagem entre a França e o Senegal. A tragédia, ocorrida na ensolarada manhã de 2 de julho, deveu-se à superlotação e à imperícia do Comandante Hugues Chaumareys, um protegido de Luís XVIII, rei da França. Sabe-se que aproximadamente quatrocentos passageiros estavam à bordo, na então considerada a mais rápida e moderna embarcação de todos os tempos. As 147 pessoas que não conseguiram lugar no botes salva-vidas amontoaram-se em uma pequena jangada construída precariamente com tábuas, cordas e partes do mastro no qual ainda tremulavam pedaços da vela. Chamaram-na "A balsa da Medusa". Esfomeados e sem água para beber, muitos brigaram por um único pacote de biscoitos. Na escuridão da primeira noite, vinte dos que se equilibravam nas bordas da jangada desapareceram no oceano.
No segundo dia, 65 dos sobreviventes foram mortos a tiros pelos oficiais: aparentemente haviam enlouquecido e, furiosos, tentaram destruir a jangada. Dentre os náufragos famintos, desidratados e queimados pelo sol, estava o médico JeanBaptiste Henry Savigny, que assumiu a liderança dos desesperados e, de imediato, mandou que todos bebessem água do mar diluída com urina, para diminuir os efeitos da desidratação. O Dr. Savigny começou, então, a dissecar os corpos dos que iam morrendo e a dependurar as tiras de carne para secar ao sol e depois serem consumidas como alimento. O tabu do canibalismo desfez-se como nas palavras de Dante, no canto XXXIII do Inferno, ao descrever a cena em que o Conde Ugolino, preso numa torre, com os seus filhos pequenos e sem alimento, tentou manter-se vivo comendo a carne dos que haviam morrido: “Dois dias após a sua morte ainda os chorava, depois a fome foi mais forte do que o luto.” Decorridos 13 dias à deriva, os quinze sobreviventes restantes da “Balsa da Medusa” foram resgatados pelo Argus, um pequeno navio mercante. Inspirado nas narrativas dos sobreviventes da “Balsa da Medusa”, o pintor francês Théodore Géricault (1791-1824), pintou, em 18 meses de trabalho ininterrupto, o que veio a ser a sua obra prima, em óleo sobre tela: “A balsa da Medusa.”