AMÉRICO
TAIPA
DE
CARVALHO
Professor .da Faculdade de Direito da Universidade Católica (POrto)
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DIREITO .PENAL PARTE GERAL Questões Fundamentais Teoria Geral do Crime z»
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Coimbra Editora
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omposiçõo e impressão oimbra Editora, Limitada
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ISBN 978-972-32-1618-9
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Depósito Legal o,' 281 09112008
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Setembro de 2008
A todos os meus alunos do passado c do presente
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NOTA Em Setembro de 2003, foi publicada a L' edição do livro DIREITO PENAL - PARTE GERAL - QUESTÕES FUNDAMENTAIS; em Outubro de 2004, foi publicada a L". edição do livro DIREITO PENAL - PARTE GERAL - TEORIA GERAL DO CRIME. Esta 2.a edição, que agora vem a público através da Coimbra Editora, contém, num só volume, as matérias tratadas nos dois volumes acabados de referir. Como é natural, procurei ter em conta as alterações que - sobretudo nas matérias da "lei no tempo" e da "lei no espaço" - foram introduzidas pelas Leis D.OS 48/2007, de 29 de Agosto, e 59/2007, de 4 de Setembro.
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TÍTULO I O PROBLEMA
CRIMINAL-PENAL
1.0 CAPÍTULO
A CIÊNCIA L
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O sentido fundamental direito penal"
DO DIREITO
PENAL
actual da designação "ciência global do
§ 1. A designação "ciência global do direito penal" foi criada, em fins do séc, XIX, pelo célebre penalista Franz v. Liszt, Segundo este autor, o direito penal não se podia reduzir a uma tarefa meramente técnica, dogmática ou sistemática, de aplicação do direito penal legislado ao caso concreto. Ao lado do direito penal em sentido estrito ou dogmática jurídico-penal, deviam colocar-se a política criminal e a criminologia, À politica criminal cabia a função de propor ao legislador, numa perspectiva de eficácia, as estratégias e os meios da luta contra a criminalidade, e as consequentes reformas legislativas do direito penal positivado. Mas a eficácia da política criminal, no 'combate a criminalidade, não podia prescindir do conhecimento ernpírico da realidade dos factores sociais e psicológicos associados aos comportamentos criminosos. Assim, era considerada também como parte integrante da ciência penal em sentido amplo ou global a criminologia, dado que só esta ciência empírica permitia o conhecimento da realidade social criminal, conhecimento este indispensável à eficácia da política criminal. Todavia, na construção de v. Liszt, a "ciência global do direito penal", embora também abrangesse a política criminal e a crimínoloi
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Parte I - Questões Fundamentais
gia, O certo é que estas duas ciências criminais não passavam do estatuto de ciências auxiliares do direito penal ou dcgmática jurídico-penal, cabendo a esta o topo da hierarquia das ciências criminais. E, para 'acentuar esta primazia da dogmática jurídico-penal, o próprio v. Liszt formulou a conhecida frase de que «o direito penal (i. é, a dogmática jurídico-penal) constitui a barreira intransponivel da política criminal». Isto é, o direito penal ou dogmática jurídico-penal seria, dentro da "ciência global do direito penal", o depositário dos princípios normativos que garantiam os direitos individuais fundamentais do delinquente, entre os quais se destacam os princípios da legalidade e da culpa. Estes princípios jurídico-penais é que decidiam sobre a legitimidade ou ilegitimidade das estratégias e dos meios propostos pela política criminal para a redução ou controlo eficazes da criminalidade. Em síntese: o direito penal ou dogmática jurídico-penal operava segundo critérios de legitimidade nonnativa; a política criminal operava apenas segundo critérios pragmáticos de eficácia; a criminologia, como ciência empírica neutra, fornecia o conhecimento da realidade criminal, conhecimento necessário para a eficácia da política criminal que, por sua vez, não podia deixar de estar limitada pelas exigências e princípios normativos, sedeados na dogmática penal.
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§ 2. Com a afirmação e consagração do Estado de Direito Material, a partir do termo da TI Grande Guerra, operou-se uma alteração na relação de subordinação da política criminal a dogmática jurídico-penal. A política criminal deixou o seu estatuto de mera ciência auxiliar do direito penal em sentido dogmático para passar a ciência autónoma, face :Jct.l.-ea C,-túviv"lao direito penal, passando mesmo a ser tida como motor dinamizador da 1 dogmática penal e, portanto, a ocupar uma posição de supremacia face ao direito penal em sentido estrito. Verificou-se, assim, uma troca de posio!(yv",h~"- t .'L•.•.••. "n~ões entre a política criminal e a dogmática penal: aquela passou de ciência auxiliar a ciência fundamental e primeira, enquanto a dogmática v penal passou a ciência "subordinada" à política criminal, na medida em L-'C~ {(},•.f'
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O problema criminol-penol
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§ 3. Foi mérito de autores como C. Roxin e H. Zipf o terem, nos anos 70 do séc. XX; reelaborado esta nova arrumação, dentro da chamada "ciência global do direito penal", da política criminal face à dogmática jurídico-penal. E foi a partir daqui que se começou, com razão, a falar, relativamente ao direito penal stricto sensu, em "sistema penal aberto ". Aberto às directrizes da política criminal. Só que, há que acentuá-lo, agora a política criminal não é vista como uma mera "ciência" técnica, preocupada apenas com a eficácia da luta contra o crime, mas também como ciência normativa, preocupada com a legitimidade dos meios a utilizar nesse combate à criminalidade. E, assim, se compreende que esta nova concepção da política criminal (cujo objectivo éa eficácia da luta contra a crirninalidade, mas eficácia limitada pela legitimidade dos meios que utiliza) tenha sido assumida pelas actuais Constituições do Estado de Direito Democrático e Social. Na verdade, hoje, os principias fundamentais da politica criminal estão expressamente consagrados na Constituição: princípios da legalidade, da máxima restrição da pena, da presunção de inocência, etc., falando-se mesmo, e com acerto, de uma "Constituição político-criminal" como parte integrante da Constituição Política Geral. Como conclusão, pode dizer-se que a chamada "ciência global do direito penal" compreende a política criminal, a dogmática jurídlcopenal e a críminologia, e que estas ciências, embora sejam autónomas entre si (pois cada uma tem um objecto imediato e um método especiPois, todas elas têm ficas), são complementares e interdependentes. por objecto último e comum o crime, e todas elas são indispensáveis para uma abordagem, que se queira eficaz e justa, da delinquência. E, porque complementares e interdependentes, é correcta a designação "ciência global do direito penal" como conjunto da política criminal, da dogmática penal- e da criminologia.
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li. Política criminal, direito penal e criminologia
§ 4. A polltica criminal pode definir-se como o conjunto dos princípios ético-individuais e ético-sociais que devem promover, orientar e controlar a luta contra a criminalidade. O objectivo ou função da política criminal é a prevenção do crime e a confiança da comunidade
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Po/'te I -
Questões Fundamentais
social na ordem jurídico-penal, isto é, na afirmação e vigência efectiva dos valores sociais, indispensáveis à livre realização da pessoa de cada um dos indivíduos integrantes da sociedade. Esta prevenção do crime, esta luta contra a delinquência, não pode fazer-se a todo custo; ela tem, sim, de realizar-se no respeito dos próprios valores e princípios que visa defender. São, portanto, duas as coordenadas da política criminal: eficácia, quanto aos fins; Iegitlmídade (ético-Jurídica), quanto aos meios. Assim, entre os princípios da política criminal de um Estado de Direito Democrático e Social, podem referir-se: o princípio da legalidade, qual garantia contra a arbitrariedade judicial e administrativa; o princípio da culpa, com a consequente recusa de qualquer forma de responsabilidade penal objectiva; princípio da humanidade na definição legal 'das penas (donde, a proibição da pena de morte e das penas degradantes da dignidade humana da pessoa do recluso) e na sua execução (donde, a recusa da prisão perpétua e das consequênciasjuridicas de duração indetenninada); o princípio da recuperação social do recluso, o que obriga à criação de estabelecimentos "penitenciários" adequados, e à modelação da execução da pena de prisão em condições que possibilitem tal recuperação.
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§ 5. O direito penal em sentido estrito ou dogmátlca jurídico-penal pode definir-se como a teorização das diferentes categorias ou elementos constitutivos da infracção criminal, e das diferentes espécies de consequências jurídicas do crime. Esta teorização, que se traduz numa desconstrução-construção anaIitico-conceitual e sistemática do comportamento criminal, deve ser' orientada e dinamizada pelos princípios da política criminal e apoiada nos resultados ernpiricos da investigação criminológica. Daqui resulta a correcção da actual consideração do direito penal ou dogmática penal como "sistema penal aberto". É, portanto, de recusar, quer a dicotomia normativista, 'que autonomiza, de forma radical e antagónica, o "ser" e o "dever ser", isto é, os planos do histórico real concreto e dos valores transcendentes e imutáveis (Kant, Binding), quer o .positivismo sociológico-jurídico, que transforma o direito penal num mero instrumento de controlo e de garante da funcionalidade do sistema social (Jakobs).
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O problema criminal-penal
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§ 6. A criminologia é o ramo da ciência criminal que, baseado na observação 'e experimentação, estabelece a relação entre determinados factores (bio-psicológicos e sociais) e as diferentes espécies de delinquência. Assim, e a título de exemplo, será objecto da criminologia a investigação das conexões entre o desemprego, a perda da auto-estima, a marginalização, a toxicodependência e a crirninalidade patrimonial, nomeadamente, o furto e o roubo. Da mesma forma, caberá à investigação criminológica a influência criminógena das políticas urbanísticas que remetam determinados grupos étnico-culturais para os subúrbios das grandes cidades - guettzação. São dois os ramos da criminologia: a biologia criminal e a sociologia criminal. A primeira, a biologia criminal, contra-se, fundamentalmente, nos factores bio-psicológicos favoráveis à delinquência; a sociologia criminal tem por objecto primordial a investigação dos factores sociais (económicas, culturais, religiosos, ete.) geradores de comportamentos desviantes. Nesta introdução à visão global do direito penal, é de assinalar a importância da 'chamada 'crimínologia nova ou criminologia crítica, que, surgida na década 60-70 do séc. XX, veio reagir contra o tradicional estatuto de subordinação total da criminologia ao direito penal, afirmando a sua autonomia na determinação do seu próprio objecto, e reivindicando uma função crítica da própria organização e funcionamento das chamadas "instâncias formais de controlo do crime" (legislador, magistraturas, administração prisional). § 7. Uma vez que a política criminal e, portanto, o direito penal não pode ser um instrumento ao serviço de um qualquer sistema social, então é indispensável o conhecimento 'da realidade individual e social em que a justiça penal intervém. Por outra palavras: uma política criminal, para ser justa e eficaz, não pode esquecer as informações dadas pela criminologia, Eis a importância da críminologia para o direlto penal. O próprio princípio da culpa material jurídico-penal (i. é, o juizo de culpa que não se reduza a lU11amera fórmula abstracta de responsabilização penal) não pode deixar de ter em conta as condições em que se realizou a socialização primária (a fase infantil, que é aquela em que se estrutura a personalidade) e, portanto, não pode desatender,
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Parta I -
Questões Fundamentais
no juizo da "culpa da personalidade", as condições familiares e sociais anómicas, isto é, a inexistência das mais elementares regras axiológicas de relacionamento com o outro. Esquecer este condicionalismo é transformar a "culpa da personalidade" também num mero juízo formal, numa quase ficção, o que levaria a lançar contra esta "culpa da personalidade" a mesma crítica que, maioritária e justificadarnente, se lançou contra a tese da "culpa da vontade", alicerçada no indemonstrável livrearbítrio. . A sociedade e o estado já sabem, ou deveriam saber, que não é somente com o aumento das polícias 'e com o agravamento das penas que a criminalidade diminuirá; mas é indispensável uma atenção às políticas sociais da família, da infância, da escola, da juventude e do trabalho. Com efeito, ao lado de uma ética da responsabilidade individual, há também uma ética da corresponsabilidade social. O direito penal não pode deixar de ser assumido como a ultima ratio da política social. Não pode o Poder (estadual ou internacional) recorrer ao direito penal como meio de "resolver" problemas que só poderão ser solucionados, ou minirnizados, por políticas sociais.' E, nestes tempos de "globalização", serão vãs todas as tentativas de reduzir a criminalidade nacional e transnacional, se o actual processo de globalização seguir o rumo de um neoliberalisrno à escala mundial, absolutizando a economia de mercado, e subordinando à lógica desta as sociedades nacionais e internacionais. A economia de mercado tem de ser assumida, na prática política, como meramente instrumental em relação fi sociedade das pessoas.
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2. o CAPÍTULO EVOLUÇÃO
I.
A importância
HISTÓRICA
da história
DO DIREITO
PENAL
do direito penal
§ 8. A análise de evolução das instituições jurídico-penais, ao longo das diversas etapas da história dos povos com características sociais e culturais próximas, tem uma dupla importância: político-social e jurídico-criminal, Importância políticu-sccla], na medida em que, sendo o direito penal um dos barómetros por excelência do modo de relacionamento entre o poder político e as pessoas e os grupos sociais a ele sujeitos, bem como o melhor indicador dos valores dominantes em cada época, a história da evolução do direito penal é essencial para a caracterização política e social da respectiva época histórica. É 'na configuração do direito penal de cada época que podemos descobrir quais os 'seus valores estruturantes, qual a sua estratificação social, como se exerce o poder político, etc. E, obviamente, que também é inegável a sua importância jurídico-criminal. Pois a história da evolução do direito penal patenteianos a historicidade e a relatividade do próprio. direito penal. Revela-nos a historicidade do direito penal, quando nos comprova que O direito penal é a expressão das condições económicas; sociais, culturais, religiosas e politicas, que caracterizam cada época. Mostra-nos a relatividade do direito penal, ao nos patentear as alterações profundas que as instituições jurídico-penais sofrem com o decurso da evolução sócio-cultural dos povos. § 9. Está implícito, no que acabámos de escrever, que a história do direito penal só terá utilidade e só não se transformará num trabalho árido, estéril e fastidioso, se a procurarmos Inserir no contexto sócio-cultural da respectiva época. Acentuando esta necessidade da inserção 2-0ir. Pcn,,1
Parte I -
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Questões F u/ldamenrais
sócio-cultural da história do direito - inserção que, como parece evidente, tem uma importância acrescida, quando está em causa o direito penal -, razão tinha alto Brunner, ao considerar a tendência para isolar a história do direito da história social geral como um grave vício metodológieo e como um dos principais factores do descrédito dos estudos histórico-jurídicos. E Heinz Zipf, referindo-se à política criminal, escreveu que esta «está sempre enquadrada num determinado marco cultural e social e situa-se numa tradição à qual pode sentir-se mais ou menos vinculada, mas nunca a podendo negar como factor socialmente relevante. O homem insere-se na historicidade na qual se tem de realizar, prosseguindo a criação em cada caso, e da qual não pode desprender-se». E, sem querer maçar o leitor, não resisto fi transcrever uma passagem da vigorosa "História de Cristo" do maravilhoso escritor Giovanni Papini: «Os homens mal domados, mal jungidos à Lei, como se vêem no Mahabarata e na Iliada, no Poema de Izdubar e nos Livros das Guerras de Jehovâ, teriam sido, sem o terror dos castigos dos Deuses, ainda mais ferozes e desencadeados. Nesses tempos em que por um olho se pedia a cabeça, por um dedo um braço e por uma vida cento e vinte, a Lei de Talião, que pedia apenas olho por olho e vida por vida, era uma assinalada vitória de generosidade e da justiça, embora, hoje, depois de Jesus, nos pareça pavorosa» (I).
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O direito penal na alta Idade Média ou Reconquista
Cristã
(sécs, VIII-XII) ,§ la. Duas palavras devem ser ditas: uma sobre a divisão da Idade Média em alta Idade Média e baixa Idade Média; a segunda sobre a associação entre alta Idade Média e Reconquista Cristã. A distinção entre alta Idade Média e baixa Idade Média fundamenta-se num conjunto de fenómenos sociais que; ocorridos a partir
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(I) Sobre a historicidade do Direito Penal, 'ler AMÉRICa TAIPA os CARVALHO, "Condicional idade Sócio-Cultural do Direito Penal», Boletim da Faculdade de Direito de Coilllbra - Estudos em Homenagem aos Profs. Manuel Paulo Merêa e Guilherme
Braga da Cruz, 1983,
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O problema criminal-penal
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da segunda metade do séc. XI, e dada a sua interacção, vieram dar aos últimos séculos da Idade Média uma configuração especifica e muito diferente da que caracterizou os primeiros seis séculos da Idade Média, A seu tempo, veremos quais foram esses factores (cf. § 20 8S.). § 11. Quanto à associação entre a alta Idade Média e a Reconquista Cristã, é evidente que não esquecemos que a Idade Média e, portanto, a alta Idade Média, enquanto primeira fase da Idade Média, começa com a queda do Império Romano do Ocidente, no ano 476. Simplesmente, entendemos prescindir do período da dominação visigótica na península ibérica, e começar a análise da alta Idade Média no período da Reconquista Cristã, ou seja no início do séc, VIII, momento a partir do qual se gerou e consolidou a nacionalidade portuguesa. § 12, O período situado entre o séc, VIII e o séc. XII caracterizou-se por uma profunda instabilidade social e polftica. Pisando solo ibérico, em 711, os maometanos, num curto espaço de tempo, dominaram toda a peninsula, excepção feita ao reduto montanhoso das Astúrias, Iniciada, aqui, 'a plurissecular reacção contra a dominação sarracena, eis que se gerou toda uma nova situação económica, social, política e jurídica, A prioridade conferida à defesa militar das terras e populações já recuperadas aos árabes e à reconquista de novos territórios provocou um clima geral de insegurança na vida comunitária dos povos peninsulares. O edifício político-jurídico que os monarcas visigóticos, inspirados na Roma Imperial, que tinha acabado de sucumbir, procuraram levantar, em colaboração com os Concílios de Toledo, desmoronou-se por completo. À fraqueza do poder central segue-se a pulverização das instituições sociais, políticas e jurídicas. Em consequência, as populações sentem-se entregues a si mesmas e só com as suas próprias forças poderão contar para se opor aos seus inimigos externos e internos. § 13. Esta insegurança e isolamento, consequência da inexístência de uma autoridade pública forte e organizada e da perda do sentimento comunitário nacional, teve, por uma dinâmica de compensação, o efeito psicológico de fomentar uma intensa solidariedade entre os membros das micro-sociedades. Estava criado o ambiente psicossocíológico para que
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Parte i - Questões Fundamentais
duas instituições assumissem um papel vital nesta sociedade politicamente desestruturada, papel que o direito haveria de reconhecer. Primeiro, a família; posteriormente, o município. A solidariedade, o «um POl- todos e todos por um», naturalmente que só se pode manter e frutificar na base do sentimento e dever de fidelidade, lealdade e confiança entre os membros do respectivo grupo social. E, assim, efectivamente, aconteceu: o valor da fidelidade, interiorizado na sua indispensabilidade, é assumido como vital pelos referidos grupos SOCIais. .-: § 14. Esta consciência, individual e social, da essencialidade, para a sobrevivência pessoal e comunitária, dos valores da solidariedade e da lealdade teve a sua projecção no direito penal da alta Idade Média. No tocante à solidariedade familiar, a ofensa cometida sobre um membro da comunidade doméstica era considerada como agravo a toda a família. Assim, a obrigação de reparar as ofensas sofridas recaía não apenas sobre o directamente ofendido mas também sobre toda a colectividade familiar - eis a solidariedade penal activa .. Segundo as fontes jurídicas da época (os chamados «foros e costumes», «estatutos municipais» ou «fueros extensos», de origem predominantemente consuetudinária), o ofendido e a sua família tinha o "direito de vingança" e os efeitos de exercício desta vindicta recaíam não só sobre o agresSOl' como também sobre os seus familiares eis a solidariedade penal passiva. A partir do séc. XI, vão os municípios desempenhar um papel vital na defesa e promoção das respectivas populações. A grandeza do concelho radicava na coesão dos seus habitantes, sendo esta coesão dinamizada pela solidariedade municipal. De forma algo semelhante ao que se passou, e passava, com a solidariedade familiar, também, no cenário jurídico municipal, se pode detectar, ao lado de uma solidariedade activa, uma solidariedade passiva. Assim, quanto à primeira, várias fontes da época '(p_ ex., foros e costumes da Guarda) consagravam o dever de auxílio mútuo dos convizinhos e referem a proibição de advogar causas de estranhos (ao município) contra os conterrâneos. havia, também, uma certa responsabilidade colectiva, embora subsidiária, dos concelhos pelos delitos praticados por um dos seus membros, os "vicini" (cf. foros de Bragança, Trancoso, etc.).
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§ 15. Sendo esta uma época de isolamento, de ausência de um poder político forte e protector, de tumultos e guerras contra o inimigo mouro e dos povos peninsulares entre si (Portugal, Leão, Castela, etc.), a paz entre os membros da mesma comunidade foi tida como o bem mais preciso e a melhor garantia da subsistência individual e colectiva. Mas sente e tem consciência de que a paz só se pode alcançar através da solidariedade entre os seus membros e que esta solidariedade, por sua vez, só pode converter-se em realidade viva na medida em que for dinamizada pela lealdade e fidelídade mútuas. Efectivamente, solidariedade, fidelidade e. paz são assumidas pela consciência ético-jurídica de então como valores fundamentais. Não admira que assim tenha sido, pois que a importância de determinados valores só se reconhece quando, precisamente, tais valores se encontram em crise - tal como só nos apercebemos do bem saúde, quando estamos doentes. E, porque assim era, também natural foí que, numa perspectiva retribucionista, a pena aplicável aos víoladores da fidelidade e da paz tenha consistido, exactamente, na perda da paz jurídica. O mais grave de todos os delitos era a traição. Consistia este crime dos crimes na violação de uma especial relação de fidelidade, existente entre o criminoso e a vitima, mediante a prática do homicidio, Traidor era, pois, um homicida qualificado pela ruptura do vínculo especial de fidelidade e lealdade que ligava o infractor à vítima. Esta relação pessoal de fidelidade e solidariedade tinha por fontes o parentesco próximo ("comunidade de sangue"), a interdependência económica ("comunidade de vida" entre o senhor ou amo e o que lhe prestava serviços domésticos ou agrícolas), as relações de confiança geradas, espontaneamente, entre determinadas pessoas (o "companheiro de viagem", o convidado para um "colóquio a sós") ou, ainda, relações de lealdade impostas pela ordem jurídica, em função da defesa e promoção de interesses económicas muito relevantes para a época (a "paz do mercado"). Naturalmente que a pena aplicada ao traidor era a mais grave de todas: a perda absoluta da paz. Esta sanção tinha as seguintes consequências: o traidor ficava destituído da sua personalidade jurídica e, assim, qualquer membro da comunidade (concelho ou reino, consoante se tratasse de traição municipal ou de traição régia) O podia, impune-
Parte [ -
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Questões Fundamentais
mente, matar; a sua casa era "derribada" (a casa, nesse período de insegurança generalizada, representava .o melhor refúgio de protecção); e todos os seus bens eram confiscados.
§ 16. Numa escala de gravidade decrescente, seguiam-se como crimes muito graves e bornicldio simples, o rapto e a violação de mulheres. A pena aplicada a estes crimes era chamada inimicitia (o condenado era declarado "inimigo") ou perda relativa da paz. Pena que tinha as seguintes consequências: o criminoso tinha de pagar uma determinada soma pecuniária, denominada coima, calúnia ou multa (sendo uma parte para a vítima ou sua família e a outra para o erário público); tinha de sair do concelho dentro de um prazo fixado; não saindo, podia ser morto pelo ofendido
ou seus familiares.
§ 17. Para crimes menos graves, havia a pena chamada composíçã? pecuniária, que se traduzia no pagamento de 'uma certa importânci~ ao ofendido, Esta pena, com o decurso dos anos, começou também a ser utilizada como pena substitutiva da perda relativa da paz, no intuito de se evitarem as sangrentas lutas entre as famílias do criminoso e da vítima, em que, muitas vezes, redundava a execução da perda relativa da paz. § 18. A titulo de curiosidade, interessa referir a pena da composição corporal ou "entrar às varas". Esta pena, descoberta pelo historiador Paulo Merêa em alguns foros da região 'de Bragança, era aplicada a crimes de ofensas corporais e tinha a curiosidade de consistir em provocar no agressor um ferimento ou golpe igual ao que ele tinha causado na vítima. Daí a designação de "entrar às varas",.o que quer dizer utilizar uma vara para medir a extensão do golpe causado, pois quy a sua punição era provocar-lhe um golpe igual (retribucionisrno taliónico
puro).
§ 19. A conclusão geral é a de que o direito penal da alta Idade Média é um direito penal de justiça privada. O crime era considerado como ofensa individual (excepção feita ao delito de traição), cabendo aos particulares a efectivação da justiça penal, que assumia formas bárbaras e cruéis,
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O problema criminal-penal
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Mas, como salienta Alexandre Herculano e), era «impossível que não sucedesse assim; que os hábitos selvagens e ferozes, adquiridos 110 meio de tão precária existência, e que a falta de auctoridade nos chefes (até porque faltavam instituições civis) não fizessem com que em todas as phases da vida se manifestassem as consequencias de semelhante situação». Por outro lado, a relevância ético-jurídica concedida aos valores da paz, da solidariedade e da fidelidade não significa senão a consciência da sua imprescindibilidade face a um período histórico marcado por uma profunda insegurança individual e colectiva.
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O direito penal na baixa Idade Média (sécs, Moderna (sécs. XV-XVllI)
Xl1I-XV)
e na Idade
§ 20. A associação destes dois periodos históricos, vulgarmente tidos por muito diferentes e, por isso, autonomizados, carece de uma justificação. Para nós, são maiores as diferenças existentes entre a sociedade altornedieval e a baixomedieval (e respectivos direitos penais) do que as existentes' entre esta e a Idade Moderna. Efectivamente, se a história em geral, tal como a natureza, não apresenta soluções de continuidade na sua evolução - natura non fit saltus, diziam os. latinos -, parece não haver dúvidas de que o período que vai do séc. XV ao séc. XVIII não só não apresenta qualquer ruptura face ao período da baixa Idade Média como, até, pode ser visto, em muitos aspectos, como prolongamento natural do processo histórico iniciado nos sécs. XII-XIII. As características económicas, sociais, culturais, políticas e jurídicas da chamada Idade Moderna - ou, numa perspectiva mais político-jurídica, do período das Monarquias-Absolutas - começam a esboçar-se e a desenvolver-se, quer a nível europeu em geral quer no palco penin.sular em especial, a partir da baixa Idade Média, acabando por se revigorar e consolidar na Idade Moderna. Reportando-nos ao direito penal, pode afirmar-se que a fisionomia de que se revestiu; no absolutismo monárquico, não foi mais do que
(2)
Histõria de Portugal, 8,' ed.,
vm,
pp. 183-184,
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Farte I -
Questões Fundamentais
uma evolução na continuidade dos princípios e características mentais do direito penal, afirmados a partir dos sécs, XII-XIII.
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funda-
§ 23. O direito penal, como tónica sensível das transformações sociais, culturais e políticas, não podia deixar de reflectir os efeitos das transformações operadas a partir dos sécs. XII-XIII. De facto, o processo de centralização política, que se virá a consolidar na Idade Moderna, determinou, naturalmente, urna progressiva publí. cização dos ius puniendi: A baixa Idade Média constitui como que a charneira entre um direito penal de justiça privativa (alta Idade Média) e um direito penal público (Idade Moderna). Na verdade, o direito penal, vigente no período que vai do seco XIlI ao séc, XV, revela-se como um sistema misto: ao lado de um direito penal público que, sob a influência do direito romano e do direito canónico, atribui à autoridade real o ius puniendi, passa a considerar o crime como ofensa a toda a comumda de nacional, começa a recorrer, com frequência, à pena de morte e evolui para a consagração do processo ínquísitórío, dizíamos que, lado a lado com este direito penal oficial, sobrevive, ainda e até cerca do séc. XV, o tradicional direito de auto tutela, de cariz e influência gennânica. Compreende-se que assim tenha sido. Não seria da noite para o dia que as populações iriam abandonar hábitos enraizados ao longo de vários séculos. E assim, é que os reis, apesar de se considerarem absolutos, tiveram de condescender com certas práticas de justiça privada.
o poder central vai-se,
progressiva e firmemente, consolidando, acabando os monarcas por reivindicar para si os mesmos poderes que os imperadores romanos de tinham. À auctoritas universalis do império sucede a efectiva potestas do rei.' Este, à imitação do imperador romano cujo direito passa, agora, a ser
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§ 24. A nova teorização política (iniciada pelos "glosadores" dos sécs. XI-XII1, desenvolvida pelos "comentadores" no séc. XIV, e siste-
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estudado e a inspirar as leis nacionais, vai chamar a si a primordial tarefa de legislar para todo o território nacional, reduzindo, simultânea e consequentemente, O papel dos direitos consuetudinário e municipal. Este fenômeno de centralização e fortalecimento do poder politíco, inspirado no lema «unum imperiurn unum ius», toma-se patente, na Península, a partir do seco XIII. Basta pensar, quanto a Portugal, na actividade legislativa de D. Afonso 11 (Cortes de Coimbra, 1211), actividade que e incrementada nos reinados seguintes. Relativamente a Castela, a extensa obra legislativa (Flores das Leis, Foro Real e, sobretudo, as Sete Partidas) do rei sábio Afonso X, se, a um tempo, revela um notavelmente profundo conhecimento do direito romano justinianeu e uma técnica jurídica admirável para um autor do séc, XIII, reflecte, também e de forma inequívoca, a preocupação centralizadora da época.
§ 21. Ultrapassada a fase de natural desagregação em que a Europa Ocidental mergulhou, na sequência do declínio e queda do Império Romano do Ocidente, eis que, a partir dos sécs. XI-XII, uma interacção de múltiplos factores vai gerar uma nova Europa que, alicerçada na tradição cultural greco-latina, reencontra, na sua caminhada histórica, novos factores de progresso. A partir dos fins do séc. XI, processa-se uma profunda transformação na vida económico-social. Entre assuas principais causas há que mencionar: o incremento do comércio e do artesanato que, através da nova e dinâmica classe social dos mercadores (burgueses) e das corporações de artes e oficios (artesãos), muito contribuiu para a formação dos centros urbanos (as, agora, partes históricas das actuais cidades) e para o fortalecimento do municipalismo medieval; o aumento demo gráfico e a emigração do campo para a cidade; as cruzadas que, apesar da sua motivação religiosa de libertar os Lugares Santos, possibilitaram a descoberta de novas rotas e entrepostos comerciais mediterrânicos, para além de promoverem o intercâmbio e a aproximação de diferentes povos cujas nacionalidades estavam em formação. Paralelamente a estas transformações económico-sociais e, em certa medida, com elas relacionada, inicia-se, em Bolonha, a redescoberta do direito romano-justinianeu, que, reorientado, mais tarde (séc. XIV), por Bártolo e sua escola dos comentadores, irá ter influência decisiva na formação dos novos Estados europeus e na criação da unidade cultural europeia. É de todos conhecida a relevância do intercâmbio cultural que, desde os sécs. XlI--XII1, se estabeleceu entre os estudiosos de vários países da Europa, em tomo das ciências do direito romano e do direito canónico. No plano cultural, não pode esquecer-se ou menosprezar-se a transcendente importância do reencontro com a filosofia e o pensamento helénícos, tarefa a que a Igreja Católica prestou um contributd fundamental.
§ 22. No campo estritamente político-jurídico,
O problema criminoí-penol
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matizada pelos "tratadistas" ou "praxistas" dos sécs. XV-XV1), convertendo o rei em senhor absoluto, detentor directo de um poder divino e, portanto, responsável somente perante Deus, titular exclusivo do poder legiferante (cquod principi placuit legis habet vigorern»), colocado acima das suas próprias leis (cprinceps a legibus solutus»), administrador e juiz único e supremo, dizíamos, esta nova visão política, ao mesmo tempo que fere de morte as instituições político-sociais intermédias (municipais, senhoriais, corporativas), retira à solidariedade e à lealdade o conteúdo e a seiva psicossociológica e ético-pessoal que elas possuíam na alta ldade Média. A concepção altomedieval da fidelidade ou lealdade, entra em crise. Pois que, ao passaro monarca a considerar-se como senhor absoluto e a deter um efectivo poder absoluto sobre o seu reino e os .seus súbditos, estes já não careciam, para a sua segurança frente aos Inimigos externos e internos, de fazer apelo à lealdade reciproca dos membros do mesmo grupo a que pertenciam. Agora, essa segurança devem eles procurá-la no poder soberano absoluto do rei. Deixa, pois, a relação entre o monarca e os governados de ser uma relação de coordenação, de reeiprocidade, mas de subordinação e de sujeição. Assim, a noção e O sentimento de fidelidade pessoal são substituídos pelo conceito e pelo dever jurídico de sujeição ao rei. Posto em causa o valor da lealdade nas suas características de espontaneidade e 'pessoalidade do vínculo de reciprocidade dos deveres, em causa ficou crime de traição que na infracção daquele valor pessoal tinha a sua nota essencial. Esta crise do conceito altomediaval de traição consuma-se, nos sécs, XIV-XV, por influência da literatura jurídica italiana baixomedieval, acabando o crime de traição por se identificar com o «cri, meu Iesae maiestatis: do direito imperial romano. Traição passa a reduzir-se à traição régia e esta a ser sinónima de crime de lesa-majestade. De ora em diante e até finais do séc. XVIll, o delito de traição converter-se-à num meio de protecção do poder político personificado no rei e na sua majestade. A figura da traição formaliza-se e empobrece (J).
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Parte I - Questões Fundamentais
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§ 25. O direito penal do período em análise caracteriza-se pela sua desumanidade, crueldade, desigualdade social, arbitrariedade e, consequentemente, pela sua natureza exacerbadamente repressiva e intimidativa. A pena deixa de ter como objectivo principal o restabelecimento ' da ordem social e jurídica perturbada pelo delito, mediante a aplicação, ao infractor, de um castigo (mal) equivalente ao mal (dano) que ele causou - retribucionismo objectivo; e passa a ter uma finalidade de intimidação, muitas vezes de verdadeiro terror - prevenção geral de intimidação. ' , , O terror intimidatório era pena, pela barbaridade do modo local onde as mais graves penas centro das vilas ou cidades) ou na testa ou no rosto).
potenciado, para além da gravidade da de execução desta e pela publicidade do eram aplicadas (junto ao pelourinho, no da condenação (marcas de ferro quente
§ 26. Havia as seguintes espécies de penas: penas capitais (morte simples e morte cruel, i. é, precedida de tormentos); penas corporais (flagelação, mutilação, castração, etc.); penas contra a liberdade (degredo, desterro, servidão, galés); e penas pecuniárias (confisco e multa). No caso dos mais graves crimes (de "lesa majestade divina", p. ex., sacrilégio, blasfémia, heresia; e de "lesa majestade humana", i. é, crimes contra o rei, a corte ou o reino), havia, ainda, a pena da infâmia do condenado, a qual se transmitia aos seus descendentes, implicando, para estes, urna série de incapacidades sociais, profissionais e jurídicas (p. ex., incapacidade de herdar).
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(3) Sobre a caracterização da Alta Idade Média e da Baixa Idade Média, e do respectivo Direito Penal, ver AMÉRICa TAIPA DE CARVALHO, «Condicionalidade Sócio-Cultural do Direito Penal» (cit. na nota I).
O problema criminaí-penal
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§ 27. A partir da baixa Idade Média, O rei, detentor da plenitude do poder soberano, chama a si o direito de perdoar. Se só o rei podia fazer as leis e se só ele estava acima .das suas leis, então também só a ele pertencia o direito de agraciar. E podia exercê-lo quando, como e a' quem quisesse. Era a arbitrariedade e a voluntariedade real que caracterizavam o direito de conceder perdão (4).
C<) Sobre a história do direito de clemência, ver AMÉRICa T ArPA DE CARVALHO, «História do Direito de Clemência», in Estudos dedicados ao Prof Doutor Mário Júlio de Almeida Costa, Universidade Católica Portuguesa, 2002, pp. 111-146.
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Parte I .-. Questões Fundamentais
Titulo I -
Seguindo uma tradição, que remontava ao direito imperial romano, as medidas de clemência podiam consistir na amnistia (por motivos religiosos ou políticos), no indulto e na comutação (usada, muitas vezes, com objectivos económicas - p. ex., substituição de penas corporais ou mesmo de morte pelas penas de permanência nas colónias ultramarinas ou das galés).
IV. O direito penal na Idade Contemporânea séc. XVIll - séc. XX) e o Estado de Direito
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O problema crirninal-penal
política e jurídica do absolutismo monárquico da chamada Idade Moderna (sécs. XV-XVIII). 1. A ideologia da ilustração e Criminal
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direito penal -
o Ilumínísmo
§ 29. O séc. XVIIl assinala uma profunda viragem na história do pensamento, da cultura, da sociedade em geral. Viragem que não deve ser olhada como algo que abruptamente tivesse irrompido no espírito "iluminado" dos pensadores deste "século das luzes". Pois que os factores, que estiveram na origem deste novo ambiente cultural, político e jurídico de setecentos, já se vinham desenvolvendo de há muito, nomeadamente a partir dos sécs, XV-XVI. Entre eles, devemos destacar os Descobrimentos, o Renascimento, a Reforma Protestante, a Revolução Científica e a Filosofia Racionalista. É, todavia, no séc. XV1iI, que ganha forma e se sistematiza todo um conjunto de princípios que vão consagrar, no campo social, uma nova filosofia política, que se caracteriza pela substituição do teocentrismo pelo antropocentrismo e pela .substituição do Estado Absoluto inonárquico pelo Estado de Direito.
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§ 28. Somos chegados ao período histórico, correntemente designado por Idade Contemporânea. E, porventura, ainda correctamente denominado, apesar do propalado pós-modernismo como caracterizàdor e diferenciado!' dos tempos actuais face aos tempos anteriores, que vão dos fins do séc, XVIII até mais ou menos à década de 80 do séc. XX. A verdade, porem, é que ainda parece ninguém saber quais as matrizes culturais. consistentemente estruturantes deste dito pós-modernismo. Será a ausência ou o amolecimento das ideologias no sentido filosófico' e no sentido político-social? Será o pragmatismo imediatista? Será a renúncia agnóstica aos ideais? Será a globalização do homo oeconomicus anestesiante do homo sapiens? Será a absolutização do "corno", desprezando-se o porquê e o para quê? - Supomos e esperamos que não seja nada disto. É que, se foi criado o "forum económico mundial de Davos", logo surgiu o "forum social mundial de POlia Alegre" - ao redutor pragmatismo econornicista há-de contrapor-se uma nova ideologia com renovados valores e ideais. Feito este parêntese sobre a eventual gênese actual de um hipotético novo ciclo da evolução histórica da humanidade, digamos que, apesar dos sinais de crise, os tempos actuais ainda se podem considerar abrangidos pela ainda chamada Idade Contemporânea. Com efeito, a estrutura social, cultural e política do tempo, em que nos é dado viver, ainda é a que foi gerada pela pluralidade e antagonismo das ideias e das teorias que irromperarn entre os sécs. XVIII e XX, a que nos referiremos. No campo politico e jurídico, a consagração do Estado de Direito, a partir da 2.' metade do séc, XVIII, foi a matriz essencial da Idade Contemporânea, ao estabelecer um corte radical com a teoria e a prática
§ 30. O novo ideário filosófico-político-juridico caracteriza-se pelo individualismo, pelo jusnaturalismo e pelo racionalismo, Individualismo, ao afirmar-se o princípio da prioridade do indivíduo face ao Estado; aquele, o indivíduo passa de "sujeito" a cidadão, i. é, do estatuto de submissão ao Estado para o estatuto de autonomia individual. Jusnaturalísmo, com a proclamação de um leque de direitos que, por natureza, pertencem a todo o indivíduo e que ao Estado apenas cabe o dever de os reconhecer, legal' e praticamente. Racíonalísmo, pois se passa a considerar a razão humana como fonte e critério da verdade e da justiça. À heteronornia e transcendência da fundamentação na lei divina passa-se para a autonomia e imanência do critério da verdade teórica e prática na razão humana.
§ 31. Esta nova filosofia política não podia deixar de se repercutir profundamente no direito penal. Assim, critica-se, frontal e globalmente, o direito penal então ainda vigente. Concretamente, o alvo dos ..
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Parte I -
Ttudo I -
Ques/Ües Fundamentais
ataque; situou-se na arbitrariedade da justiça criminal, na instrurnentalização política do "ius puniendi", na ausência de quaisquer garantias de defesa-do arguido, no casuísmo, classismo e crueldade das penas. Propõe-se um novo direito penal, uma nova política criminal que assenta nos seguintes princípios: contratualismo, utilitarisrno,'secularização e legalisrno.
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Cesare Beccaria é, justamente, considerado como um dos primeiros e mais importantes dinamizadores e difusores do novo ideário político-criminal do Ilurninismo. O seu pequeno, mas histórico livro Dei Deliui e delle Pene (Sobre os Delitos e as Penas), de 1764, constitui um marco na evolução do direito penal, evolução que, no caso, assumiu o carácter de uma verdadeira revolução ou ruptura como o direito penal cruel e repressivo no seu tempo ainda em vigor. Os princípios fundamentais defendidos por Beccaria foram: a fundamentação da pena na necessidade social de prevenir o crime; a proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do crime; o princípio da legalidade dos 'delitos e das penas; o humanitarismo das reacções ao crime, propondo a abolição, salvo casos excepcionais, da pena de morte e a substituição das penas corporais pela pena de prisão; e o princípio da celeridade processual, considerando que. a eficácia preventiva da pena depende mais da rapidez na sua aplicação do que da sua severidade.
§ :32. Recusando a estratificação social do Ancien. Régime e o carácter autónomo e absoluto do poder real, o pensamento iluminista proclama, na linha da teoria de Rousseau, a igualdade de todos os indivíduos .e estabelece, como fundamento do direito de punir, o "contrato social", mediante o qual os cidadãos, detentores originários. do poder, delegam no Estado - contratualísmo - o direito de definir os crimes e de determinar as penas correspondentes, direito este que deve ser exercido e limitado pelo critério da necessidade ou utilidade social -- utílítarismo: pena justa é a pena útil, i. é, a pena que é necessária para prevenir a prática do crime. § 33. A defesa da liberdade e da igualdade de todos os Cidadãos exigiu que os crimes e as penas respectivas estivessem, prévia e claramente, descritos na lei e que o juiz estivesse sujeito e uma rígida interpretação literal - legalismo/gal'antismo.
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§ 34. A afirmação da autonomia da razão humana e do poder politico face à lei divina e ao poder religioso conduziu à exclusão dos crimes religiosos e à negação da influência do direito canónico na legislação . criminal - secularização.
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§ 35. Como conclusão pode dizer-se que vários dos princípios fundamentais do direito penal actual nasceram com o iluminismo criminal. Entre 'eles, destacam-se os principias da legalidade, da celeridade processual (em conexão' com o fim preventivo-geral da pena) e o princípio da humanidade das penas e da sua aplicação, que iria levar à substituição das penas corporais pela pena de prisão. § 36. Cabe, agora, fazer referência a alguns dos mais destacados penalistas do "Iluminismo Criminal".
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§ 37. Anselm von Feuerbach, considerado pai da moderna ciência do direito penal alemã e tendo sido o principal autor do Código Penal da Baviera de 1813, criou a chamada teoria da coacção psicológica da pena. Esta teoria parte do princípio hedonlstico de que o sentido e o fun da acção humana é a busca de prazer e, em correlação negativa, . a fuga ao sofrimento. O crime reconduzir-se-ia, pois, a urna acção que, desencadeada pelo infractor para a satisfação do seu "ego", vai, ilegitimamente, causar sofrimento a outra pessoa. Sendo esta, segundo Feuerbach, a explicação "científica" do crime, não haveria outro processo coerente de o legislador evitar o delito senão através da ameaça de aplicação de um sofrimento a quem praticasse a acção prevista na lei penal. Nesta dialéctica psicológica prazer/desprazer (prazer, ligado à pratica da infracção; desprazer, contido na pena), naturalmente que a sanção penal, se quer ser eficaz, há-de implicar um "quantum" de sofrimento superior ao prazer que O indivíduo (potencial delinquente) retiraria da conduta proibida. Eis a teoria da prevenção geral de intimidação através do mecanismo da coacção psicológica (psychologísche Zwang). O momento fundamental desta intimidação-coacção reside na ameaça contida na lei penal. . Todavia, caso esta ameaça não se revele
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Porre I -
Tltulo 1 -
Que.rtOes Fundamentais
a gravidade da pena e a gravidade do crime; proibiu a aplicação analógica e a interpretação extensiva no âmbito da incriminação.
suficientemente dissuasora, então a execução efectiva da pena reforçará o efeito inibitório da ameaça legal, acabando esta por se tomar eficaz mesmo face aos m1USrenitentes (insensíveis). 'Para Feuerbach, o princípio da legalidade era o resultado lógico da conjugação de uma dupla exigência: a necessidade da defesa do indivíduo face ao poder punitivo do Estado (garantia política) e a exigência de prevenção geral (garantia de eficácia). O efeito dissuasor da pena só se lograria na medida em que os factos prejudiciais à sociedade (os crimes) e os sofrimentos que lhe forem associados (as penas) estiverem, prévia e claramente, descritos e estabelecidos na lei: nullum crimen, nulla poena sine lege, na formulação latina criada pejo próprio Feuerbach.
2, A filosofia séc, XIX)
idealista
e a Escola
Clássica
(I" metade do
§ 40. Na L" metade do séc, XIX, afirma-se uma nova concepção do direito penal, concepção que vem 'contrapor à visão pragmática e utilitária dos autores do Iluminismo Criminal urna perspectiva filosófico-metafisica do direito penal. Esta concepção, de que apresentaremos os pontos principais, ficou conhecida por Escola Clássica e inspirou-se na filosofia idealista alemã, nomeadamente no pensamento de Kant, expresso na sua obra Metafisica dos Costumes ("Grundlegung zur Metaphysik der Sitten", 1785), mas também no de Hegel, contido na obra Fundamentos da Filosofia do Direito ("GlUnd1inien der Philosophie des Rects", 1821). Estes filósofos, com o seu racionalismo gnoseológico é com a sua antologia idealista, procuraram refundamentar, ético-filosoficamente, o direito penal.
§ 38. Em Portugal, um dos maiores arautos do Iluminismo Criminal foi Pascoal José de Mello Freire. Este autor seguiu, directamente, o pensamento do italiano Beccaria. Entre a obra de Mello Freire, destaca-se a elaboração de um projecto de Código de Direito Criminal (1789) e de umas lições de direito penal, intituladas Institutiones Iuris Criminalis Lusitani. § 39. Os princípios garantísticos do Iluminismo Criminal tiveram a sua consagração constitucional na primeira Constituição Portuguesa de 1822. Assim, O art. 10,0 desta primeira lei fundamental portuguesa declarava: «nenhuma lei, muito menos a penal, será estabelecida sem absoluta necessidade»; e o art. 11.° estabelecia que «toda a pena deve ser proporcionada ao delito e nenhuma deve passar da pessoa do delinquente. Ficam abolidas a tortura, a confiscação dos bens, a infâmia, o baraço e o pregão, a marca de ferro quente e todas as penas cruéis e infamantes». Quanto à lei ordinária, depois da elaboração de vários projectos de Código (que não chegaram a ser aprovados), entre os QU1US o já referido de Mello Freire e O de José da Veiga de 1837, foi, finalmente, publicado, em 1852, o primeiro Código Penal Português. Este Código, que revogou, definitivamente, o livro V da Ordenações Filipinas (chamado "liber terribilis") e que se inspirou nos Códigos Penais francês de 1810, brasileiro de 1831 e espanhol de 1848, deu corpo a várias das propostas do Iluminismo Criminal. Assim, consagrou: o princípio da legalidade; imputou à pena uma finalidade preventivo geral de intínúdaçâo, embora esta finalidade de intimidação fosse limitada pela proporcionaJidade entre
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O problema cruninal-penal
§ 41. Os postulados do chamado humanismo idealista, proposto por estes autores, eram: a dignidade da pessoa humana deve sempre ser considerada como um fim em si mesma, como um valor absoluto - «Age sempre de modo que a humanidade, tanto na tua pessoa como na do outro, seja sempre considerada como fim, numa como meio» (Kant); a característica essencial desta dignidade é o livre-arbítrio, i. é, a capacidade de urna decisão absolutamente livre e incondicionada; a esta liberdade ontológica e radical corresponde uma responsabilidade ética individual autónoma e absoluta; esta.liberdade deve ser exercida no respeito da norma fundamental da acção humana, norma que está inscrita na consciência moral de cada um e que é racionalmente apreendida - «O imperativo categórico é, portanto, um só, e, sem dúvida, este: age sempre segundo uma máxima tal que possas querer, ao mesmo tempo, que ela se tome uma lei universal» (Kant). § 42. Esta antropologia tão racionalista e idealista pouco tinha que ver com a concepção utilitária e hedonística da ideologia da "Ilustração",
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Parte I -
Queslões Fundamentais
Tttulo I -
Ao homem dos sentidos e dominado pela busca do prazer sensível de um Bentliam ou de um Feuerbach contrapõe-se a visão sublime e exaltante do homem kantiano, iluminado apenas pela razão e norteado pela transcendente realização da Justiça. Estes pressupostos racionalistas e idealistas provocaram uma profunda alteração da concepção do direito penal, nomeadamente nos problemas da legitimação do ius puniendi e da finalidade da pena. A Escola Clássica enfrentou a eterna e sempre recorrente questão da legitimidade da pena, num momento histórico caracterizado pelos excessos de terror cometidos durante a Revolução Francesa. Esta questão foi resolvida através do principiada retribuição ética: a pena justa é a pena retributiva, i. é, aquela que corresponde à gravidade do ilícito e da culpa do infractor. Esta retribuição 'ética, imputada à pena, é uma exigência ontológica para o mau exercício do livre-arbítrio, é um imperativo categórico da justiça. . Para a Escola Clássica, a retribuição ético-jurídica é o único e absoluto critério da aplicação e determinação da pena criminal. Para os autores desta Escola, o «se», Ó «quando» e o «como» da pena não podem ser influenciados por considerações heterónornas de utilidade social. Pois que tal dependência dos critérios pragmáticos 'da necessidade de defesa da sociedade conduziria à instrumentalízação politica da pessoa humana e à relativização do Direito. Instrumentalização e relativização que, segundo os autores da Escola Clássica, é fomentada pelas teorias da: prevenção geral (pena como meio de intimidar a cornunidade) e da prevenção especial (pena como intimidação do delinquente para que não reincida). Assim, escreveu -Kant: «A pena judicial [... } não pode nunca ser aplicada como meio para obter um outro bem, seja no interesse do delinquente ou da sociedade civil, mas deve ser sempre só aplicada ao réu porque ele delinquiu; com efeito, nunca o homem pode ser' tratado como simples meio para a realização das intenções de outro e ser incluído entre os objectos do direito das coisas, do que o protege a suapersonalidade inata». E Hegel, criticando os «superficiais pontos de vistal) das teorias da «prevenção, intimidação, ameaça, correcção», afirma, contra a teoria da coacção psicológica de Feuerbach que (\0 Direito e a Justiça têm que ter o seu fundamento na liberdade e na vontade, e não na falta de
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O problema criminal-penal
liberdade à qual se dirige a ameaça. Quando se fundamenta a pena desta maneira é como se ameaçássemos um cão com um pau, não sendo o homem tratado segundo a sua honra e liberdade, mas como um cão». E o mesmo, elevando o Direito a uma ordem absolutamente perfeita e como que transcendente, acrescenta: «o facto do delito não é um quid originário e positivo a que sobrevenha a pena como negação, mas é, sim, um quid negativo de modo que a pena é só a negação da negação» - teoria da retribuição jurídica da pena: a pena como reafirmação do Direito. § 43. Como apreciação crítica da Escola Clássica, há que registar o seu mérito, mas também o seu demérito, O seu mérito esteve em ter elevado o principio da culpa individual a principio fundamental do direito. O seu demérito esteve em ter - a partir de um pretenso bumanismo que tem tanto de idealista como de irreal -:- absolutizado a liberdade (livre-arbítrio), a culpa, o direito, o crime e a pena, negando ou, pelo menos, menosprezando a historicídade e consequente relatividade de todas estas categorias. Não pode, com efeito e contra o que radicalmente proclamava a Escola Clássica, conceber-se a punição criminal, a pena, como um imperativo ético categórico, mas, pelo contrário, tem que ser, prática e humildemente, vista como uma necessidade pragmática de prevenção, geral e individual, da prática de futuros crimes. Utilizando as expressões latinas, não se pune' quia peccatum, mas, sim, ne peccetur; ou seja, a razão de ser da pena não olha ao passado, mas sim ao futuro: pune-se como prevenção de novos crimes, embora a punição pressuponha a culpa do que infringiu, e não possa ultrapassar o "grau" da .culpa do infractor.
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3. A Escola Correcclonalista- e tir de meados do séc, XIX)
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§ 44. Inspirado no pensamento de Krause, Rõder veio defender, contra a Escola Clássica, uma concepção mais pragmática e realista do homem e do direito penal. Os princípios fundamentais do correccionalismo foram: ao lado de uma responsabilidade individual, há uma corresponsabilidade social; esta corresponsabilidadesocial vincula o estado a criar as condições para
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Questões Fundamentais
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o delinquente poder corrigir as suas tendências' para o crime e, assim, exercer a sua liberdade no respeito do direito; a pena é o meio para a correcção do delinquente ~ fim de prevenção especial; enquanto não forem esgotadas todas as possibilidades de recuperação social, todo o delinquente deve ser considerado corriglvel.
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Eduardo Correia), vai no sentido de que a execução da pena de prisão não pode ignorar os direitos fundamentais do recluso, e deve ser orientada para a criação do sentido de responsabilidade do preso e para a sua preparação para a vida em liberdade. Este Decreto-Lei também consagrou a jurisdicionalização da execução das reacções criminais privativas da liberdade, através da criação dos Tribunais de Execução das Penas (S).
. § 45.. O ideário correccionalista teve profunda influência na península ibérica e noutros países católicos (como, Bélgica e Polónia) . . Levy Maria Jordão foi o grande divulgador, em Portugal, das ideias correccionalistas. Elaborou dois Projectos de C6digo· Penal (1861-64), que, assumiam os princípios correccionalistas, e que visavam a substituição do Código Penal de 1852. Apesar de não terem sido aprovados, as suas 'ideias tiveram grande influência em várias e importantes leis penais, aprovadasna 2." metade 'do séc. XIX, Foram elas: Lei de 1 de Julho de 1867, que aboliu a pena de morte (para os crimes comuns, pois que, para os. crimes políticos, já tinha sido abolida pelo acta adicional de 1852) e a pena de trabalhos forçados, e que, no capitulo da execução da pena de prisão, acolheu O chamado "modelo penitenciário de Filadélfia"; e Lei de 6 de Julho de 1893, que criou os institutos da suspensão condicional da pena, e ·da liberdade condicional. § 46. Enquanto o Càdigo Penal de 1886 (que assumiu a Reforma Penal de 1884, e que substituiu o Código Penal de 1852) reflectiu uni. misto do retribucíonismo clássico e do humanitarismo correccionalista, já as reformas penitenciárias foram sempre no sentido de um aprofundamento da execução da pena de prisão como meio de correcção do' delinquente. Assim: a Lei de 29 de Janeiro de 1913 substituiu O "modelo peni-' tenciário de Filadélfia" (isolamento celular, nocturno e diurno) pelo "modelo penitenciário de Aubum", caracterizado pelo trabalho diurno em comum; o Decreto 11. 026643, de 28 de Maio de 1936 (cujo projecto foi da autoria de Beleza dos Santos), adoptou o chamado "modelo progressivo ou irlandês", em que a execução da prisão ia desde uma fase inicial de isolamento até à fase em que o preso podia conviver com os outros presos, e desempenhar cargos de confiança; finalmente, o Dec-Lei n. o 265/79, de 1 de Agosto (cujo projecto foi da autoria de
O problema criminal-penal
4. O cientlsmo oitocentista e.a Escola Positiva (últimas décadas do séc. XIX - primeiras décadas do séc. XX) § 47. A Escola Positiva recusou, frontal e globalmente, todos os postulados filosófico-metafisicos da Escola Clássica, apresentando uma política criminal nova e radicalmente. oposta à da Escola Clássica. § 48. O positivismo jurídico-criminal foi o resultado da transposição, para a ciência penal, da mentalidade positivista da 2.a metade do séc, XIX: substituição da razão ("deusa razão") pela experimentação científica ("deusa ciência"). Assim, o comportamento humano, individual e colectivo, e, portanto, o comportamento criminoso, passou a ser tratado como um puro fe116meno natural, explicável pelo único (para eles) critério válido de conhecimento, que era o da investigação experimental. Conclusão: contra o abstraccionismo e o dedutivismo rnetafísicos da Escola Clássica, passa-se para um reducionismo positivista-naturalista: redução do real ao empírico (positivismo ontológico), e redução do método de conhecimento à investigação experimental (positivismo epis. temológico).
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§ 49. Comte, Darwin, Marx e Freud são símbolos destacados e influentes na afirmação deste clima cientista, respectivamente, nos campos sociológico, biológico, económico-social-cultural, e psicanalítico.
f (I) Sobre a evolução hlstérica dos regimes de execução das penas privativas da liberdade (i.é, história do direito penitenciário), veja-se PAUJ..O PINTO.DE ALBUQU13RQUE, Direito Prisional Português e Europeu, Almedina, 2006.
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§ .50. A Escola Positiva proclamou, contra a trilogia da Escola Clássica "liberdade, culpa, pena", a trilogia positivista "deterrninísmo, perlgosídade, medidas de segurança". Toda a política criminal passa a dever centrar-se na perigosidade do delinquente. Pois que, -afirmadoo deterrninismo da conduta humana (não sendo a liberdade senão a ignorância da relação causal entre factores bio-psicológicos e/ou sociais e o comportamento delinquente), a perigos idade do infractor é o único pressuposto e critériojustificativo da intervenção da sociedade, através do Estado. Assim, em vez da preocupação com as tipologias dos factos (pois que estes são apenas sintomas de determinada perigosidade), a preocupação e a investigação das diferentes espécies de perigosidade, i. é, das tlpologias de delinquentes. E, consequentemente, em vez de penas (que são castigo e pressupõem uma liberdade inexistente), medidas de segurança: segurança da sociedade, e, se possível, tratamento da perigosidade do delinquente. . critério da definição dos crimes (reduzidos a meros fenômenos humanos socialmente danosos) e da determinação das suas consequências jurídicas dependeria apenas das concepções sociais do legislador: confluência do positivismo naturalista com o positivismo jurídico. Donde, a conclusão: nada de retribuição (que pressupõe a culpa), nada de prevenção geral (que pressupõe a intirnidabilidade dos potenciais delinquentes), mas só prevenção especial de tratamento da perígosídade, ou de inocuização do delinquente, no caso dos delinquentes' incorrigíveis.
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crime. Esta via explicativa sociológica também foi seguida pela sua contemporânea escola franco-belga, nomeadamente por Lacassagne e G. Tarde (6). § 52. Apreciação crítica da Escola Positiva: o grande contributo, para o direito penal, foi ter chamado a atenção para a necessidade da consideração da personalidade concreta do delinquente, o ter interpelado a doutrina e o legislador para a adopção de medidas alternativas à prisão, e ter elevado a criminologia à categoria de verdadeira ciência; os aspectos negativos foram a secundarização (e, por vezes, negação) das garantias legais e jurisdicionais do delinquente, e a negação de qualquer dimensão ética do direito penal, assim se correndo o risco de redução do direito penal a um mero conjunto de técnicas de um qualquer defensismo social.
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§ 5 L A Escola Positiva dividiu-se em duas perspectivas e em dois ramos: biologia criminal e sociologia criminal. A biologia criminal: Lombroso, com o livro "L'Uomo Delinquente" (1876), defende, inicialmente, uma explicação meramente. biológica do crime (o atavismo do "delinquente nato"). Posteriormente, acolhe, ao lado da explicação biológica do criminoso-nato, propenso à criminalidade violenta, a explicação bio-psicológica. Esta perspectiva, que se reconduz à aceitação de uma categoria de delinquentes com um carácter incapaz de resistir às influências perniciosas da sociedade, explicaria a chamada "criminalidade evolutiva", caracterizada pelo recurso à fraude e à burla. A sociologia criminal: Ferri, com o seu livro "Sociologia Crirninale" (1892), acentuou os factores sociais como principais causas do
O problema criminal-penai
5. As Correntes Mistas do direito penal (desde fins do séc. XIX até cerca da década de 70 do séc, XX)
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§ 53. Razão de ordem: acabámos de ver como o iluminismo criminal em sentido estrito, a escola clássica e a escola positiva se apresentaram como teorias claramente estruturadas em posturas filosóficas e antropológicas radicalmente demarcadas, e como, consequente e coerentemente, conduziram a concepções globais do direito penal, claras e radicais. . É também de salientar que, apesar do seu unilateralisrno radical, cada uma destas correntes ou escolas consagrou aspectos positivos fundamentais do direito penal: o ilumínismo criminal afirmou a necessidade civilizacional da defesa dos direitos fundamentais individuais frente ao poder punitivo do Estado; a escola clássica consagrou o princípio da culpa como condição irrenunciável da aplicação da pena; a escola positiva radicou a justificação do direito penal na necessidade da defesa da sociedade contra a perigosidade dos delinquentes, elevando a prevenção especial à categoria de fun principal da pena.
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(6) Sobre a perspectiva criminológíca da Escola Positiva, pode ver-se FIGUEIREDO DIAS/COSTA ANDRADE, Criminoiogia, Coimbra Editora, 1984, pp. 10-19.
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Parte J -
Q"eslões Fundamentais
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§ 54. As correntes mistas ou "terceiras-vias" resultaram do reconhecimento destes contributos positivos, e da tentativa de articulação conciliadora (síntese) destes contributos: garantias individuais, princípio da culpa, retribuição e prevenção geral e especial. Certo é que tais tentativas não podiam lograr êxito completo. Pois que: ou se aceitava o livre-arbítrio (a absoluta liberdade de decisão no momento do facto), e, então, a decisão e a determinação da medida concreta da pena deveria fazer-se em função da gravidade da culpa, imputando-se à pena uma natureza e uma função primordialmente ético-retributiva, e, assim, ficando reservada para a prevenção (geral e especial) um papel secundário ou complementar; ou, pelo contrário, se optava pela prevenção (especial e geral), e, então, tinha-se de subaltemizar o princípio da culpa, em matéria de fundamentação e determinação da pena.
§ 55. A primeira
posição foi defendida pelas teorias. étlco-retrlbutivas ou neoclássicas (p. ex., Bettiol), que conferiam à culpa o papel fundamental na determinação da pena, ao -mesrno tempo que afirmavam que a pena justa (i. é, a pena correspondente à culpa) era aquela que melhor cumpria as funções de prevenção, quer geral quer especial. Mas estas teorias, quando colocadas diante da incontornável existência da categoria dos imputáveis perigosos, ou tinham que juntar, ao lado da pena referida à culpa, a medida de segurança para fazer face à perigosidade (sistema dualista), ou, então, tiveram que recorrer à chamada "culpa pela (não) formação da personalidade" (p. ex., Mezger, Eduardo Correia), considerando que a perigos idade dos imputáveis era também culposa, e, portanto, aos imputáveis perigosos só deviam ser aplicadas penas (sistema rnonista),
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§ 56 .. Outros autores, embora sem pôr de lado o princípio da culpa, optaram pela fundamentação e consideração da pena como uma necessidade social. Assim, imputaram à prevenção especial (e à prevenção geral) o fim da pena. . Relativamente à questão da liberdade, enquanto suporte do juizo de culpa, recusavam-na enquanto livre-arbítrio ou "liberdade de indiferença", defendendo uma como que concepção psicológica da liberdade,
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o problema
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da culpa e da responsabilidade individual e social. Assim, Marc Ancel, fundador da chamada "Nova Defesa Social", escreveu: a liberdade é «sentimento íntimo e natural da responsabilidade pessoal». Este quadro de pensamento jurídico-penal também já tinha sido, anteriormente, proposto pela "Escola Moderna ou Sociológica" alemã (fundada por Franz vou Liszt, em [mais do séc. XIX) e pela "Terza Scuola" italiana (fundada por Carnevale e por Alimena, nos princípios do séc. XX). Uma vez que estas doutrinas vinham na linha da escola correccionalista e da escola positiva (embora sem o radicalismo desta), é correcto designá-las por correntes neopositivas .
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Titulo f - O problema criminol-penal
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meios preventivos e repressivos intrinsecamente ilícitos e manifestamente violadores dos mais elementares princípios emanados da dignidade da pessoa humana - dignidade que tem que se reconhecer mesmo na pessoa do mais perigoso criminoso. Assim, tem o 1t!Ú~ª,a política crimina1.~~jF.~19.JJ.~º.a1 (em sentido amplo) de reagir e de nãõCCder [tentação f~il de tentar im120ra "lei~9lSi~.çl.Q.,.Q,..,Ç~\!9.tQ,. Ceder a tal tentação é, para além de ético-juridicamente reprovável, é, dizia, .;:squece!, e de, político-criminalmente, s6 aparentemente e~, em muitos casos, que o recursq,.";o direito p~~L~ectius, à repressão penal) _I1.~?..E9i~_de~t1!..~~._~.~~?_~ltí!!E~...Q2lillgJ...QJ;jí!-J, ou seja, um recurso subsiquer no pJa~llê.~~2.l!al quer no P~i9.ual, .. diário das políticas económicas, sociais e de resgeÍto dos direitos huma~~~ ~~ .P~~ .._..~5i9.ÜQ~~s~~
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3.° CAPÍTULO AS fRlNCIfAIS QUESTÕE~ NA ACTUALIDADE
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SECÇÃO I A fROCURA DO EQUILÍBRIO ENTRE .A GARANTIA DOS DIREITOS INDIVIDUAIS FUNDAMENTAIS E . A NECESSIDADE DA DEFESA DASOClEDADE E DOS BENS JtJlÚDICOS fESSOAlS E COMUNITÁRIOS § 57. A complexidade das sociedades actuais (ditas pós-modernas, em relação, claro, ao chamado "mundo ocidental") e as novas, complexas e graves formas de criminalidade organizada, a nível nacional e transnacional (terrorismo, tráfico de pessoas e de órgãos humanos, pedofilia, tráfico de droga, de armas, e criminalidade económica), obrigam a repensar os tradicionais limites da investigação criminal (p. ex., os sigilos bancário, fiscal e profissional, ou as figuras do agente infiltrado e do agente provocador) e a acolher, como meios legítimos de investigação, fonuas que, até ao presente, eram consideradas ilícitas 0\1, no mínimo, nulas, isto é, insusceptíveis de alicerçar urna prova processual-penal (casos, p. ex., das figuras dos "arrependidos" e dos "agentes infiltrados"), § 58. Mas, se é certo que as sociedades actuais, quer a nível nacional quer no Rlano internacional, não podem deixar de se defender confuo.na,5...Ór criroinalida@, a verdade, porém, é que, tra _~~!~lli!Y..
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§ 59. Assim, e a título de exemplo, não pode aceitar-se a figura do "agente provocador", e deve a figura do "arrependido" ser objecto de um tratamento jurídico-processual e penal cuidadoso, sob pena de correr riscos insuportáveis o princípio da investigação da verdade material processual, e a justiça da decisão judicial condenatória. Ainda, como exemplo tremendamente preocupante da violação dos direitos humanos fundamentais (do suspeito, do arguido ou do recluso, que não deixa de ser pessoa), temos o caso ainda actual- do procedimento que a única (para já e para os tempos mais próximos ... ) super-potência económica e militar tem seguido relativamente aos talibãs e aos membros da Al-Qaeda, Procedimento que se tem caracterizado por uma crassa e escandalosa violação dos mais elementares princípios humanos e jurídicos, violação levada a cabo cinicamente por um Estado que, pretendendo apresentar-se como o paladino dos direitos humanos, se tem recusado, arrogantemente, a ratificar o Tribunal Penal Internacional, aprovado pelo Tratado de Roma de 1998, que entrou em vigor em I de Julho de 2002 (1). O que também, infelizmente, se com-
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(1) Uma análise do EStatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional encontra-se Católica Portuguesa, com o título O Tribunal Penal Internacional e a Transformação do Direito Internacional,
rio Volume Especial de 2006 da Revista Direito e Justiça da Universidade
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Parte I -
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Tltulo I -
Questões Fundamentais
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§ 62. As considerações acabadas, de tecer levam-nos a recusar, liminarmente, o conceito posltívísta-Iegalísta de bem jurídico. Com efeito, uma tal perspectiva reconduziria o conceito de bem jurídico à vontade do legislador ordinário; bem jurídico-penal seria todo e qualquer interesse a que o legislador decidisse atribuir protecção penal. Aqui, numa tal perspectiva, o bem jurídico não possuía qualquer conteúdo material próprio, e seria não um prius condicionante da decisão criminalízadora, mas um mero posterius ou resultado desta autocrática e, portanto, insindicável decisão legislativa. Uma tal concepção do bem jurídico-penal conduzia à afirmação de um conceito formal e positivista-legalista do crime. Estes conceitos formais e positivistas do bem jurídico e do crime só seriam compatíveis com um Estado de Direito formalista, que mais não seria que uma ditadura de uma qualquer conjuntura! maioria.
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A DEFINIÇÃO DOS' BENS JURÍDICO-PENAIS E O CONCEITO MATERIAL DE CRIME § 60. O direito penal tem a positiva função de tutela dos bens jurídicos fundamentais, isto é, dos valores individuais ·e comunitários ~~.SQ!lJe à convivência~l; por sua vez, as ~enciais à realí~ão consequências jurídicas do crime (as penas e as medidas de segurança) traduzem-se na privação ou restrição também de direitos fundamentais, nomeadamente, a liberdade. --'-Daqui resulta a importância fundamental da definição do conceito de bem jurídico-penal, e da determinação aproximada dos valores sus~tíveis da qualificação de bens jurídico-penais. A própria construção ~LÇSi da doutrina geral da infracção criminal, bem como ~Pl~ç.ão el.e~?l~t.~~..sJasm~ariadas guestões.lt0J!~ç2:P~11a.is,são iluminaçlJis pela noção e definição do bem jurídico-penaL Isto é, tanto a -;;trução dogn1~~~-"a-'~ct;Çãõ)mfdlêõ-E!?nais devem ser ·jeJeoJ6glCo~ra~i~na~~n~~.{)E~~~,ta~as pelo objecto e _razãQ..9l<...ill.Àª-.MsÜa P~!1_~cque é o bem jurídico. Assim, p. ex., é decisivo o conceito de.~ j,!:!!.~4JE
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1. 'Recusa das concepções posítívístas, jusnaturalístas, sístêmíco- fun cíonalístas
preende, embora revolte. E compreende-se, se partirmos do pressuposto real de que tal potência imperial age, de facto, como se fosse o verdadeiro e único polícia do mundo. Assim, o que lhe interessa são os tribunais penais internacionais ad 110c, pois que estes são constituídos em ft111ÇãO dos seus interesses político-económicas e estratégico-rnilitaresçjulgarn apenas determinadas e seleccionadas categorias de cri-
§ 61. Tendo em conta o referido carácter gravoso das consequêndas jurídicas do crime, a definição do ~l!!jy.rídicQ:p.~I].-ªL~~~!l}
[email protected] também o papel de critério da decisão legislativa criminalizador~_e,portãi;to:-d~-X~~i.4~1?,en.:t9.da !1preciax~-ª. d~~it~p;jl§r;;;;stituí90,
o problema
§ 63. Mas também é de recusar a aparentemente antípoda (em relação à perspectiva positivista-legalista) perspectiva jusnaturalista, que reconduziria o universo dos bens,jurídico-penais a um pré-existente conjunto de valoresimutáveis e como que transcendentes à realidade histórica humana. Não quero, com isto, negar a perenidade humana de certos valores; mas, sim, que os valores só se revelam na evolução histórica do concreto existir humano. Sinteticamente: a recusa da ultrapassada dicotornia radical ser e dever-ser, realidade histórica e valores, implica a recusa dos conceitos jusnaturalistas de bem jurídico e de crime. Diga-se, por último, que esta -perspectiva, embora possa ter um objectivo salutar, que pode ser o de impedir a visão positivista-legalista (que, como foi referido, confere ao Estado um poder incontrolável), como foi o objectivo perseguido por alguns autores na Alemanha do pós-nazismo, tem ainda contra si o facto de impedira participação e o diálogo .dernocráticos, inerentes ao Estado de Direito pluralista.
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§ 64. Num Estado de Direito Deinocrático e Pluralista, também é de recusar uma perspectiva e concepção moralista do bem jurídico.
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Q"eJrõeJ Fundamentais
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Sendo as sociedades diversamente plurais nas rnundividências religioso-morais (ou na recusa de qualquer concepção religiosa da moral, com a adesão: a uma simples moral humana), não pode um Estado de Direito pluralista assumir e impor a todos os seus cidadãos um conjunto de valores inspirados ou extraídos de uma determinada religião, por mais dominante (maioritária) que seja esta religião. A,partir do momento histórico em que se autonornizararn e separaram "Cidade de Deus" e a "Cidade do Homem", mal 'irá a Religião que pretenda servir-se do braço secular do Estado para Se impor aos membros da sociedade; e a partir do momento histórico da consagração do Estado de Direito democrático e plural, mal irá o Estado que pretenda impor aos seus cidadãos um quadro de valores inspirados numa determinada confissão religiosa. Se tal acontecesse - e, infelizmente em muitos países de "religião oficial", .ainda acontece, nomeadamente países islâmicos -, a Religião negaria a sua dimensão espiritual e o seu verdadeiro meio de difusão que é o da mensagem persuasiva das consciências; o Estado de Direito negar-se-ia na sua essencial característica da democraticidade e do respeito pelo pluralismo moral-religioso.
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cuja lesão pode desencadear a aplicação de sanções que vão até à privação da liberdade, Isto é, critica-se o esvaziamento êtico-axiolôgico do bem jurídico-penal, e a acentuação quase exclusiva da dimensão eficácia ou funcionalidade do sistema social. E é esta redução, como que mecanicísta do direito penal e do bem jurídico, que leva alguns autores (p, ex., Zaffaroni) a criticar, severa e asperamente, esta perspectiva sociológico-funcionalista do direito penal e do bem jurídico. Assim, o referido Zaffaroni escreve - porventura com algum exagero - que o pensamentojurídico-penal de Jakobs (que, segundo aquele autor, remonta ao funcionalismo sistémico-social de Parsons, e se inspira, directamente, na teoria sociológico-jurídica de Luhmann) contém as seguintes heterodoxias e perigos: transforma a funcionalidade do sistema social (axiologicamente asséptico) em critério de legitimação do direito, penal e de definição-determinação dos bens jurídico-penais; subordina as decisões individuais às necessidades sociais do funcionamento eficaz do sistema, com o risco da transformação da pessoa individual em "autómato humano"; secundariza e sacrifica, tal como o positivisrno jurídico-penal dos fins do séc. XIX, as garantias individuais, conquistadas pelo pensamento penal liberal (o iluminismo criminal), no altar da funcionalidade sistérnico-social, chegando ao ponto de considerar o indivíduo como um "suo-sistema fisico e psíquico"; presta-se à sua utilização pelas perigosas "doutrinas da segurança nacional".
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§ 65. Nas últimas décadas, tem sido defendida, por alguns autores (p, ex., Jakobs), uma concepção sociológica slstérníco-funclonalista do bem jurídico-penal. Segundo esta perspectiva, a principal função do direito penal é a de garantir a funcionalidade do sistema social. Dada a complexidade dás sociedades actuais, o funcionamento eficaz do sistema social (relações ou interacções entre pessoas, entre a pessoa e os grupos sociais, entre aquela, e. estes, e o estado) constituiria a razão de ser do direito penal: garantir as condições mínimas da' convivência social.' As normas jurídico-penais visariam, por outras palavras, garantir as expectativas de cada um na sua inter-acção social, isto é, a reacção que cada um pode, legítima e confiadamente, esperar do outro, Assim, os bens jurídico-penais reconduzir-se-iam às expectativas sociais de' acção, jurídico-penalmente garantidas, ou seja, às condições da funcionalidade do sistema social. O que é de criticar, e recusar, nesta concepção do direito penal e dos bens jurídico-penais é a negação (ou, pelo menos, não afirmação) da autonomia do direito penal para definir e decidir quais são os valores ou bens ' jurídicos a qualificar como bens jurídico-penais, isto é, quais os valores
o problema
2.
A concepção ético-social do bem jurídico-penal, pela Constituição 'Democrática 2.1. Critério ciência
ético-social: ético-social
pessoa humana,
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mediatízada
social e cons-
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§ 66. Recusados os critérios positivista-legalista, ontológico-jusnaturalista e moralista como critérios válidos, numa sociedade politicamente estruturada nos princípios caracterizadores do actual Estado de Direito Democrático e Pluralista, não parece haver outro critério válido para a definição do bem jurídico-penal e, consequentemente, para a definição do conceito material de crime, senão o critério ético-social. Critério que significa que é na consciência ético-social de uma comu-
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§ 68. Não basta, contudo.para a quaEficação.de bem como bem jurídico-penal, que ele seja assumido pela consciência ético:Sõciãlcomo fundamental, isto é, que tenha ~idade penal". É, aindanecessário que o ~cursº-_ às genas criminais seja considerado indispensável e adequ~o à protecção daqueles bens jurídicos fundamentais, Indispensável quer dizer que·âtutela daqueles bens fundamentais só pode ser conseguida através do r~cUr;"ãs--p~na-;cr,;mn;is;" ou' seja: quaisqu~r~(l~~as .sanções jll!í~i<;as (civis, disciplinares, contra-ordenacionais,etc:) seriam ineficazes ou insu-
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ficientes para uma protecção, mais ou menos eficaz, desses bens. E quer, ~. 0_ iQ (i.C{~' p~S,p?R.Q ainda, dizer que, r!!.-es-mo que as outras sanções jurídicas. nã.o,penaj,~,s,eJam ineficazes para a tutela desses bens fundamentais, mesmo nesta hipótese, '1u):-eto, df não .Qenais, se estas se revelarem, inebV/iS fJ.n.dCl. ~ '---será legítimo recorrer ..às ---_sanções .. - -- ... .... --_ .... - - -,,----- ql.ü.Y9j;~!1!.e.'_~OJ:!l()_.inteiramente ineficazes para tutelar tais bens, {Y\0vV:Ú,JS Esta exigência ou dimensão pragmática, complementar mas tamSe{
unidade hjstoricame~te situada num determinado tempo e espaço (pressuposto que esta consciência se Rº§.SJil1).W1ify,s!a,rJ~y!eJ;nMte) que se há-de buscar a refêfêllci~y-;;:ay.-.9~fl~10_~~_P!.!!Ü~~1?~~()~p~~~~1..e_y'~ a ~e..t~~~Úl~xã._(LçLa~.ºº~\!t!l~,çrim41_alizAy~s, . § 67 _ Assim, só deverão ser assumidos e qualificados como bens jurídico-penais os valores considerados, pelo ethos social comunitário, como essenciais ou indispensáveis para a realização-pessoal de cáda um dõSmiúnbrõti:fa"sociedade. Esta realização pessoal implica, não ;Ó" áiúji;ç~:~o "dos-êfíí:êHos-liítr~l~,~ca!TI.ent~ ..i!l~r.ep.te.s.~l?.essoahumana individual (os chamados direitos humanos protegidos pelo tradicional direnop~nal clássico), mas também a garantia tutelada das condições sociais indispensáveis àquela realização -himali~s~o·~i:iQ.d.!yid~'~r(con: (fições"sociiils'que sã~prote~J,9;~~.R~!~c.hi@~º-ºjr~ito.--R~~!..~c~dário, administrativo 0\1 económico-social). ',u PE"sTêCiítÚió aà;"}üllaa:mentâíTdad~ou essencialidade do valor ou bem jurídico constitui o .12ressupostoirrenUl1ciável, e mínimo, ~fl~ão do bem jurídico como bem jurídiCO-Renal.,A razão deste pres--;uposto mínimo irrenunciável está relacionada com a gravidade das conseguências jurídicas dg crime;, traduzindo-se as penas e as medidas de segurança na""privação ourestriçâo de bensjurídicos funda.tll.ent.ais, nomeadamente a liberdade, tal só aparece, ético-social e ético-juridicamente, justificado, quand~ tenham sido postos em causa os bens' ou condições ftmdamelltais da vida em sociedade. .Esta componente básica e irrenunciável do bem jurídico-penal constitui a dimensão axiológica fundamental do bem jurídico-penal, dimensão esta que, na actuâljdad~,' é' fr~q~~ntemente vertid-;-pciadesignação dignidade ,penal do bem jurídico, ".
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2.2. Critério jurídico-constitucional bem jurídico-penal e do crime
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§ 69. A assunção deste critério ético-social para a definição do bem íurídico-penal e, consequentemente, para a definição do conceito material de crime, corresponde à jJerspectíva racional-tdeológica do direito penal, que é aquela que melhor se enquadra no actual Estado-de-Direito democrático, social e pluralista. É, porém, visível que um tal critério ético-social é bastante vago ~, Donde ser necessário procurar uma certa materlalização ou 4·01r.
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Parte I - QHestões Fundameltlais
Tftulo I -
sociais, explícita ou implicitamente previstos no título III da 1: parte e na z.a parte da CRP. É evidente que, como bem refere figueiredo Dias, não tem que existir entre os bens ou valores (a que correspondem direitos-deveres) consagrados na Constituição e os bens jurídicos dignos de tutela penal e, portanto, susceptíveis de fundamentarem a criminalização das condutas que os lesem ou ponham em perigo, não tem que existir, dizia, uma "relação de-identidade", bastando, sim, que entre a "ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos" exista uma "rela~ ção de analogia mãterial". Isto é, o quadro de valores constitucio~ais constitui, para o legislador ordinário, o quadro referencial dos valores susceptíveis de terem protecção penal. Por sua vez, os arts. 17.0 e 18.0-2 da CRP estabelecem os pressuRostos da qualificação legal de um bem como bem jurídico-penal. O art. !2:.~_afirmaque o regime dos direitos, liberdades e garantias se aplíca,'não só a estes di~itos"gessoais mas também aos direitos funda!?!1ftais de na!!!reza an~lo&a; Ou seja: o regime previsto no art. 18."-2 aplica-se quer aos direitos-deveres pessoais, previstos no tírulo II da ~arte 9.a CR,P e protegidos pelo direito penal tradicionall clássico ou primário (contigo globalmente no Código Penal), quer aos direitos~ da L" parte e na 2." parte da CRP, -deveres sociais, previstos no título e protegic!2.s pelo chamado (Üreit~ pen~i· administrativo, social ou secundário (contido, geralmente, em leis extravagantes, como o direito penal do ambiente, fiscal, societário, etc.), Partindo dopressu)?osto exacto de que não cabe ao direito penal (dada a gravidade das sanções que aplica) promover a consciencialização étjco,so.cial e ~tico-juridica da import~cíãiundamental de certos·bens para a existência social humana, no presente ejl.2..P.i_tl!I9,mas, sim e ao contrário, o direito penal pressuRõe essacOl:iscienciaIiz-ªy~ então parece ficar claro que não há uma distinção substancial entre os bens jurídicos I?rotegic!.2spelo tradicional direito P_~!1~J...E.-L~s~co e os bens jurídicos secundáriO. ---.----tutelados pero.?i~íf~ãisóiÚirõ~
concretízação deste critério. Ora, sendo a Constituição Democrática a projecção e expressão jurídica fundamental da concepção ..ético-social da comunidade sobre os princípios que devem estruturar o sistema social, é nela que devemos procurar a expressão e fundamento jurídico-constitucionais da definição do bem jurídico-penal (e, portanto; do conceito material de crime), e o ~ritério material da determinação das condutas susceptiveis de serem objecto de uma decisão legislativa ordinária de criminalização-penalização.
Ora, efectivamente, a Constituição portuguesa proclama, logo no seu art. 1.", que «Portugal é uma República [... ] baseada na dignidade da pessoa humana [ ... ) e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária». Daqui resulta que a pessoa. humana (com 9S direitos individuais que são inerentes à sua dignidade) é a pedra fundamental e angular do sistema social e, portanto, do sistema jurídico; e resulta, ainda, a afirmação de que O sistema social (na multiplicidade dos seus subsistemas económico, ambiental, etc.) é essencial e codeterminante da realização pessoal de cada um dos membros. do corpo social. As "Constituições Democráticas e Sociais" do pós-segunda grande guerra consideram, diferentemente das "Constituições Liberais" de fins do séc, XVIII até meados do séc.XX, que o Estado e o Direito não podem ficar indiferentes à conformação do sistema social, uma vez que este é condicionante da efectivação dos direitos humanos pessoais. E, assim e por isto, as Constituições Sociais, como, p. ex., a nossa, contêm, para além das partes dedicadas aos tradicionais 'direitos, liberdades e garantias individuais (CRP, L" parte, título lI) e à organização do Poder Político (CRP, 3.' parte), uma parte dedicada à organização económica e social e aos direitos e deveres econórnicos e sociais (CRP, La parte, titulo 1lI, e 2.a parte). A partir deste art, L" da CRP já se obtém um ponto de referência para a definição do bem jurídico-penal. Assim, só poderão ser considerados bens jurídico-penais os direitos inerentes à dignidade da pessoa humana, e os deveres essenciais à funcionalidade e justiça do sistema social. Eis o critério jurídico-constitucional a respeitar pelo legislador ordinário na concretização legal dos bens susceptíveis de tutela penal. Estes dois pilares fundamentais da Constituição, a pessoa humana e o sistema social, desenvolvem-se e concretizam-se nos direitos-deveres individuais consagrados no título II da I: parte, e nos direitos-deveres
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§ 70. Mas a não ex.istência de uma dístinção material não significa qU~.E.ª-~~j~_~!:l!.~._~ife!e1.1y'.a quanto ao $!.ll,!1._~E!.SºI:1.s..c:!!!.n.Si.l!liz.!l.Ç-ªo "da relevância dessas duas categorias de bens jurídicos .dignos de tutela penal. Esta diferença existe, pois parece evidente que está mais pro-
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Parte J -
Tirula I - O problema criminal-penal
Questões FWldaJllentais
fundamente interiorizada a consciência da gravidade da lesão dos bens pessoais do que a dos bens jurídicos sociais. Desde logo, porque esta consciência ético-social dos bens jurídicos sociais é recente e está relacionada com a crescente complexidade do sistema social. E acrescente-se que esta diferença, quanto ao grau de consciencialização, pode ter consequências no plano da dogmática jurídico-penal, por exemplo, em matéria de erro sobre a ilicitude.
jurídicos
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§ 71. O regime jurídico estabelecido pelo n." 2 do art, 18: da CRP contém o critério juddico-constitucional da definição material do bem jurídico-penal. Este critério vincula, como é evidente, o legislador ordinário na sua tarefa de determinação concreta dos bens jurídicos-penais, através da criminalização de determinadas condutas. Na verdade, o art. 18.°-2, ao estabelecer que a restrição dos direitos, liberdades e garantias só é legítima quando tiver por objectivo salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, está a consagrar o pressuposto da dignidade penal (dimensão axiológica) do bem jurídico. Isto porque, traduzindo-se as sanções penais na restrição de direitos fundamentais (a liberdade, a propriedade, o exercício de profissões ou actividades), então tais sanções pressupõem que as condutas, a que se apliquem, lesem direitos pessoais ou interesses sociais com dignidade constitucional. Não basta, porém, a dignidade constitucional-penal de um bem jurídico para que este possa transformar-se, por decisão legislativa ordinária, num bem jurldico-penal. É que, por força da referida disposição constitucional, exige-se, adicionalmente, que tais restrições dos direitos, liberdades e garantias sejam consideradas' necessárias para salvaguardar os referidos bens com dignidade penal. Esta exigência pragrnát~ da necessidade penal desdobra-se em três dimensões. São elas: inexistência ou insuficiência de outros meios sociais ou jurídicos (p. ex., civis, disciplinares ou contra-ordenacionais) para nina protecção eficaz destes bens jurídicos com dignidade penal; adequação das sanções criminais-penais a uma tutela relativamente eficaz desses bens; proporcionalidade entre a gravidade das sanções penais e a relevância pessoal e/ou social dos bens jurídicos lesados (ou postos em perigo) pejas condutas ilícitas - o que significa, por outras palavras, proibição de excesso punitivo.
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§ 72. Deste pressuposto da "necessidade penal" deriva que, teoricamente e em abstracto, seja de recusar a existência das chamadas injunções constitucionais implícitas de crímínalízaçãu. Estas injunções significariam que, dada a essencialidade ou "dignidade penal" de certos valores consagrados na Constituição, teria o legislador ordinário de necessariamente criminalizar as condutas que os lesassem ou pusessem em perigo. A recusa destas imposições constitucionais assenta no facto de, como vimos, não bastar, para a criminalização, a dignidade penal ou dimensão axiológica dos bens, exigindo-se, ainda, que, no plano pragmático, a protecção desses bens encontre no recurso ao direito penal a forma adequada e única de protecção. Ora, pelo menos em teoria (e talvez que, em alguns casos, na prática), tem de aceitar-se a hipótese de existirem valores que, apesar do seu carácter fundamental, possam' ser mais eficazmente protegidos através de medidas jurídicas não penais ou tão s6 medidas sociais do que através de sanções penais (como, p. ex., pode ser o caso do consumo de estupefacientes). Em tais casos, não se justificaria a criminalização das condutas lesivas de tais valores, pois que, apesar da dignidade constitucional desses valores ou bens, não se verificava O pressuposto da "necessidade da pena". Isto não significa que não haja bens jurídicos, consagrados na Constituição, que não tenham, forçosamente, de ser tutelados penalmente. É evidente que os há: p. ex., a vida, a integridade física e a liberdade; e, em relação a estes bens, recai sobre o legislador ordinário o dever de criminalizar as condutas que os lesem. Aliás, se é o próprio legislador constitucional que expressamente prevê a existência de crimes e de penas (CRP, art. 29.°), é porque há algumas condutas que, de facto, não podem deixar de ser criminalizadas pelo legislador ordinário. Em conclusão: o que se pretende dizer, quando se nega a existência de injunções constitucionais implícitas de criminalização, é que não é pelo facto de determinado valor ter uma essencial dignidade constitucional ("dignidade penal") que, necessariamente, terá de ser criminalizada a sua lesão; exige-se, complementarmente, que haja "necessidade penal" no sentido acabado de referir. ~ Defender o contrã'rio, parece-me que só será aceitável para quem entenda que o direito penal tem, parà além de uma função de eficaz protecção dos bens jurídicos, uma função simbólica. Ora, eu não par-
\: Parte J -
54
Titulo I -
QUeJlôes Fundamentais
III
O PROBLEMA DA RELAÇÃO ENTRE A CULPA l!~ A PREVENÇÃO NA DETERMINAÇÃO (LEGAL E JUDICIAL) DA PENA: A ADOPÇÃO DE UMA CONCEPÇÃO PREVENTIVO-ÉTICA DO DIREITO PENAL E DA PENA
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1. Breve referência à história da questão sobre os "fins da pena" § 73. Desde sempre, isto é desde que o poder politico existe, sempre se discutiu sobre qual o fim da pena: com que fim se pune quem cometeu uma infracção criminal? Se remontarmos ao Antigo Testamento, veremos que, então, vigorou um retrlbucionismo objectivo, traduzido pelo aforismo taliónico "olho por olho, dente por dente". Ou seja: tal a ofensa, tal a punição; donde a designação talião, que derivou de talis, palavra latina que significa tal.
era castigo expiatório.
55
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§ 74. Na Antiga Grécia, bem como na Antiga Roma clássica, também, inevitavelmente, os filósofos, os pensadores políticos e os juristas se debruçaram sobre o fundamento do direito de punir e sobre os fins da punição criminal, isto é, da pena. E, enquanto uns atribuíram à pena uma função ou finalidade preventiva - "punitur ne peccetur", isto é, a pena tinha por finalidade prevenir a prática de actos criminosos, isto é, olha ao futuro -, já outros imputaram à pena uma finalidade retributiva - "punitur quia peccaturn est", ou seja, a pena tinha por finaIidade retribuir o. mal do crime com o mal da pena, olhava ao passado,
criminal-penai
§ 75. Passando ao direito penal da alta Idade Média, verificamos que a pena assumiu uma finalidade acentuadamente retributlva, embora, evidente e inevitavelmente, tivesse um efeito dissuasor ou intimidatório. Basta recordar pensar nas penas da perda absoluta da paz e da perda relativa da paz: aquele que infringisse, por actos objectivamente muito graves (p. ex., homicídio), os valores da paz e da solidariedade, ficava, ipso facto, privado dessa paz e da solidariedade; logo, poderia ser morto. Demonstrativo, ainda, desde retribucionismo objectivo era a figura, a que já fizemos' referência, da "composição corporal", designada pela expressão latina "intrare in fustem" ou pela expressão portuguesa "entrar às varas": se A provocou em B um ferimento com a extensão de 5 em, também sofria uma pena igual, isto é, um golpe corporal com o mesmo comprimento, 5 em.
tilho de uma concepção simbólica do direito penal por duas razões: por um lado, acho que o mundo do simbólico está num plano de apelo cultural-espiritual muito acima do plano do' mínimo exigivel pelo direito penal; por outro lado, atribuir ao direito penal um papel simbólico é abrir as portas à aceitação de "bodes expiatórios", o que o direito em geral, e o direito penal em especial, deve evitar a todo o custo.
SECÇÃO
o problema
§ 76. Por sua vez, vimos que, na baixa Idade Média e na Idade Moderna, a tónica do fim das penas foi a de uma exacerbada prevenção geral de intimidação, por vezes, de verdadeiro terror penal. Basta recordar a publicitação do crime e da pena, e a vexatória humilhação pública do condenado, bem como a chamada "pena de morte cruel", em que a execução mortal do condenado era precedida da aplicação de públicos tormentos. § 77. Naturalmente que, em fins do séc, XVIII, com a queda dos absolutismos monárquicos a sua substituição pelo Estado de Direito liberal, verificou-se, como vimos, uma alteração na perspectivação do direito penal e na questão do fim da pena. A fundamentação e legitimação do direito penal passam a radicar na necessidade social de garantir os direitos individuais e a vida em sociedade; e a pena passa a ser vista como um mal, embora socialmente necessário, cuja finalidade é a de prevenção geral de intimidação ou dissuasão da prática do crime, mas devendo estar a sua aplicação subordinada aos princípios da legalidade e da proporcionalidade.
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§ 78. Com a filosofia idealista alemã (fins do séc. xvm e princípios do séc. XIX) e a Escola Clássica do direito penal, que naquele pensamento se alicerçou, operou-se, em matéria dos fins das penas, uma
Parte I -
56
Título J -
Queslões Fundamentais
viragem de quase 180 graus. Com efeito, a Escola Clássica veio contestar, vivamente, o então doutrinalmente dominante fim de prevenção de intimidação, advogando, ao invés, urna finalidade retrlbutíva para a pena- Kant, na sua "Metafísica dos Costumes", defendeu ~ porventura, também por ter presenciado o regime de terror punitivo que se seguiu à Revolução Francesa, e com o objectivo de impedir que a prevenção geral de intimidação conduzisse à instrumentalização da pessoa do infractor - uma teoria ético-retributive da pena: a pena tinha por finalidade a retribuição ética do crime praticado e, portanto, a gravidade da pena devia corresponder, por imperativo categórico, à gravida4e do facto ilícito praticado e à gravidade da culpa do respectivo agente. Por sua vez, Hegel, nos seus "Fundamentos da Filosofia do Direito", defendeu uma retribuição jurídica da pena. Concebendo o direito, e nomeadamente o direito penal, como que uma incarnação absolutizada e perfeita da ordenação da vida em sociedade, viu no- crime a negação dessa "ordem de liberdade" e, então, atribuiu à pena a função de negação dessa negação (que é o crime) e, portanto, uma finalidade de retribuição jurídica. A pena visava, assim, repor a vigência da norma jurídica violada, visava, por outras palavras, a reafirmação da intangibilidade
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a partir do último quartel do séc. XIX,
partia de uma concepção determinista do comportamento humano e da conduta delinquente, e, consequentemente, defendia que a pena tinha uma finalidade preventivo-especial de neutralízação OÚ inocuização do delinquente. E, nesta lógica, propunha que a categoriadas penas fosse, pura e simplesmente, substituída pela categoria das medidas de segurança
da sociedade.
2.
As teorias da "pena exacta", gem de liberdade"
do "valor
de emprego"
e da "mar.
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§ 79. A Escola Correccionalista veio, a partir de meados do séc. XIX, contrapor-se à concepção ético-retributiva da pena da Escola Cléssica, acentuando a finalidade de prevenção especial positiva da pena. Esta tinha por objectivo primeiro actuar sobre próprio delinquente, contribuindo para a correcção das tendências criminosas do infractor. Procurava-se, por outras palavras, a recuperação e integração
§ 80. JA a Escola
§ 81. Como já referimos (§§ 54 e ss. e 65), às visões radicais da Escola Clássica (finalidade ético-retributiva) e da Escola Positiva (finalidade exclusivamente preventiva) sucederam-se as correntes neoclássícas e neoposítívas, que procuraram conciliar as categorias da culpa e da prevenção na determinação da pena. As primeiras acentuaram, obviamente, a finalidade retributiva; as neopositivas (p. ex., a "Nova Defesa Social") acentuaram a finalidade preventiva.
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O problema ctiminai-penal
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§ 82. Na 2.' metade do séc. XX, bem como na actualidade, permaneceu e permanece vivo o debate sobre a relação entre a culpa e a prevenção geral e especial (positiva e negativa, isto é', de integração social e de intimidação) na escolha da pena e na determinação da sua medida concreta. § 83. Segundo alguns autores, a determinação da pena concreta, dentro dos limites mínimo e máximo da moldura penal legal, dependeria exclusivamente da gravidade da culpa do infractor: tal quanto de culpa, tal quanto de pena - teoria da pena exacta. As considerações preventivas, gerais e especiais, interviriam apenas, p. ex., na eventual substituição da pena de prisão por multa, ou na suspensão condicional da pena, quando tal fosse legalmente possível, e na fase de execução da pena. Uma tal posição é seguramente de rejeitar: é que não só as exigências ou critérios preventivos não devem deixar de intervir na pr6pria determinação judicial da pena, como, além disto, a culpa não é uma grandeza matemática. -
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§ 84. Outros autores defendem que a culpa e a prevenção intervêm em momentos diferentes: a prevenção geral realiza-se pela ameaça penal contida na lei; a culpa, e só a culpa, determinaria a medida da pena concreta, enquanto que as razões de prevenção especial decidiriam, sem qualquer intervenção da culpa, a eventual substituição judicial da pena de prisão por uma pena não detentíva, e o modo de cumprir a pena de prisão - teoria do valor de elIlprego.
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Porre I -
Questões Fundamenuiis
§ .85. Outra posição, que recebeu a designação de teoria da marpropõe o seguinte esquema para a relação entre a culpa e a prevenção na determinação da pena: dentro da amplitude penal legal, isto é, dentro dos limites mínimo e máximo da pena estabelecida pelo legislador para cada crime, o juiz estabelecerá, num primeiro momento e apenas em função da gravidade da culpa, uma nova amplitude mais estreita da pena a aplicar ao infractor; e, dentro destes novos limites minimo e máximo, que, obviamente, terão que respeitar os limites legais mínimo e máximo, serão as necessidades de prevenção, geral e especial, que determinarão a exacta medida da pena.
gem de liberdade,
§ 86. Ora, e em conclusão crítica, deve rejeitar-se qualquer uma destas três teorias sobre a relação entre a culpa e a prevenção na determinação da pena. E esta rejeição assenta, fundamentalmente, no facto de todas elas atribuírem um papel decisivo à culpa na determinação da pena, 'reservando para as finalidades preventivas um papel complementar e relativamente secundário, Assim, são teorias penais essencialmente; ético-retributivas; quando a função do direito penal e da pena não pode deixar de ser essencialmente preventiva e, portanto, as necessidades de prevenção geral e especial devem assumir a prioridade na determinação da medida da pena e na escolha da espécie de pena. Isto não significa, de forma alguma, esquecer ou menosprezar o papel da culpa nesta "questão; é evidente e irrenunciável que ela há-de constituir sempre, por exigência imperativo-constitucional da dignidade da pessoa humana, um limite, quer para o legislador quer para o juiz, na determinação (legal e judicial) da pena, § 87. E é esta razão, acabada de salientar, que nos leva a recusar também aquelas posições que, como a de Jakobs, prescindem ou negam . mesmo o papel da culpa na questão da determinação da pena, ao reduzirem a culpa (e, assim, a desvirtuarem totalmente) à maior ou menor necessidade social de "estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada". Esta construção de Jakobs, que parece não ser mais do que uma neo-hegeliana consideração da pena como reafirmação da norma jurídica quebrantada pela infracção, deixaria a sorte da pessoa do delinquente inteiramente dependente das necessidades funcionais do sistema social; o que é lirninarmente de recusar.
Titulo I -
O problema criminal.penal
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Mas também é de rejeitar posições, como a de Roxin, que diluem o princípio da culpa na categoria mais ampla da "responsabilidade" penal. Com efeito, urna tal posição, para além de colocar, sob o mesmo denominador comum (que é a proposta categoria da responsabilidade), entidades de natureza essencialmente diversa - a realidade ético-pessoal da culpa e as realidades sociais das necessidades preventivas _, acaba também por diluir o princípio da culpa nas necessidades preventivas da pena e, assim, por impedir que a culpa seja um consistente limite (máximo) à determinação da medida da pena. O que é de rejeitar, pois que também, nesta construção, a pessoa do infractor correria riscos de instrumentalízação pelas necessidade sociais preventivas,
3.
Concepção ético-retributiva, concepção ético-preventiva e concepção preventivo-ética da pena, na história recente do direito penal português
§ 88. Pretendemos, agora, analisar, esquematicamellte, a evolução do pensamento do legislador penal português sobre o fundamento e a finalidade da pena criminal, e apresentar o nosso próprio entendimento sobre esta questão do papel da culpa e da prevenção na determinação da pena, 3.1.
Da concepção -ética da pena
ético-retributi-va
à concepção
preventivo-
§ 89. O CP de 1886, após a revisão de 1954 (Dec.-Lei n. 39 688, de 5 de Junho), proclamava no seu art. 54,": «Para prevenção e repressão dos crimes haverá penas e medidas de segurança»; mais à frente, o art, 84,0 do mesmo diploma estabelecia, também por força da redacção introduzi da em 1954, que: «A aplicação despenas, entre os limites fíxados na lei para cada uma, depende da culpabilidade do delinquente, tendo-se em atenção à gravidade do facto criminoso, os seus resultados, a intensidade do dolo ou grau de culpa, os motivos do crime e a personalidade do delinquente», O
Resulta claro destas disposições legais que o CI) de 1886, revisto em 1954, consagrava uma concepção ético-retributiva da pena. Embora a pena visasse a prevenção dos crimes, não deixava o legisla-
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dor de afirmar que ela, a pena, também tinha por objectivo reprimir (retribuir) o crime praticado, e, sobretudo, era bem claro ao estabelecer que a medida da pena dependia da medida da culpa do infractor.
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Titulo I -
Parte 1 - Questões Fundamentais
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§ 90_ Posteriormente, o CP de 1982, cujo anteprojecto foi da autoria de Eduardo Correia, estabeleceu, no seu art. 72,°-1, que «A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, far-se-á em função da culpa, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes». Diante deste texto legal, parece clara uma evolução legislativa, pois que, embora continue a atribuir-se à culpa o papel fundamental na determinação concreta da pena, não deixa de se acrescentar que o juiz deve atender também às exigências de prevenção. Assim, pode dizer-se que o CP de 1982 acolheu uma concepção ético-preventiva da pena.
O problema criminal-penal
61
§ 92. Mas ainda não fica resolvida a questão dos fins da pena. Pois que, por um lado, não podemos descurar o art. 71.°-1, e, por outro lado, há ainda que ver que papel cabe à prevenção geral e que papel cabe à prevenção especial. O art. 71.°-1 afirma que «A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». Ora, diante deste teor literal, que impõe que o juiz atenda, na determinação da medida da pena, à culpa do. agente, umintérprete descomprometido seria levado a considerar que, embora as finalidades da pena sejam preventivas, todavia o legislador entende que a via mais adequada, para realizar esse fim de prevenção, é a fixação da pena «em função [da gravidade ou medida] da culpa», embora, dentro dos limites mínimo e máximo da moldura determinada pela culpa (que não é susceptível de uma determinação exacta), se façam sentir as exigências ou fins preventivos. E urna tal interpretação não era invalidada pelo capitular ali. 40. uma vez que este, se é certo que diz que as finalidades da pena são preventivas, não nega que a culpa também possa intervir na determinação concreta da pena, mas sim que a pena nunca pode ser superior à medida da culpa. Com isto, apenas pretendo dizer que mesmo o actual Código Penal, apesar do art. 40.°, não se opõe a urna concepção ético-preventiva da pena semelhante à que é defendida pela "teoria da margem de liberdade", isto é, a uma concepção em que a prevenção é a finalidade legitimadora da pena, mas em que a culpa também desempenharia uma função na determinação da medida da pena, não sendo exclusivamente seu pressuposto e seu limite máximo. Q
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§ 91. Finalmente, a Revisão de 1995 do CP de 1982 (Dec.-Lei 48/95, de 15 de Março) culminou a evolução legislativa sobre o - fundamento e as .finalidades da pena, concluindo e consagrando, numa viragem de praticamente 180 graus relativamente à concepção ético-retributiva da pena, uma concepção preventivo-ética da pena. Na verdade, segundo o ali. 40,· - colocado lógica e propositadamente à cabeça do título dedicado às consequências jurídicas do crime -, as finalidades da pena (e da medida de segurança) são exclusivamente preventivas, desempenhando a culpa somente o papel de pressuposto (conditio -sine qua non} e de limite máximo da pena. Eis o teor do art, 40,°; n." 1 _ «A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade»; n." 2 _ «Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa». Resulta, pois, do actual art, 40.", n,OS I e 2, que O fundamento legi11.0
timador da aplicação de uma pena é a prevenção, geral e especial, e que a culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto e de limite máximo da pena a aplicar, por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção. Assim sendo, é correcta a afirmação de que está subjacente ao ali. 40.0 uma concepção ,preventivo-ética da pena: pr-eventiva, na medida em que o fim legitimado!' da pena é a prevenção; ética, urna vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência
da culpa.
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3.2. O meu entendimento
sobre a relação entre
a culpa
e a
prevenção
§ 93. Não é este, porém, o meu entendimento actual sobre a relação entre a culpa e a prevenção, isto é, sobre o papel que cada uma destas categorias desempenha no direito penal e na determinação da pena. A exposição clara de uma teoria dos "fins das penas" pressupõe, como exigências metodológicas indispensáveis, que, à partida, se defina, COm rigor, o fim do direito criminal-penal e os "fins" da pena, e, ainda, que se determine qual o verdadeiro sentido da recente categoria "fim de prevenção geral de integração" (ou prevenção geral positiva).
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Porte I -
Questões FundamelHais
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O problema crímirlal-pellal
63
Efectivamente, tem sido a confusão acerca desta categoria que tem perturbado e turvado as actuais posições sobre os "fins da pena": ora, uns falam em «fim de estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na. validade da n0U11a violada» (p. ex., Jakobs, o autor que introduziu ou, pelo menos, maior influencia teve na introdução desta categoria 110 discurso do "fim das penas"); já outros atribuem a tal categoria da prevenção geral de integração a função de «tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto» (p. ex., Figueiredo Dias); como ainda outros a definem como fim de interiorização, pelos membros da comunidade, da relevância fundamental do bem jurídico lesado, para a vivência social e para a realização pessoaL·
À partida e em primeiro lugar, é de recusar a pena ético-retributiva, ou seja, é de rejeitar que a pena deva, sempre e necessariamente, ser determinada pela gravidade da culpa do agente no caso concreto. Tendo a pena uma função-meio de prevenir a prática de crimes, ela há-de atender ao presente com os olhos no futuro. Ora, nomeadamente no caso de infractores primários ou ocasionais, podem não se verificar nem a necessidade de prevenção geral, nem a de prevenção especial, e, portanto, não ser legítima a aplicação de qualquer pena. Isto nos leva a acolher a teoria da concepção unilateral da culpa: a chamada implicação univoca da culpa - toda a pena implica culpa, mas nem sempre a culpa implica pena.
§ 9f1.. Por mim, entendo que o fim do direito criminal-penal (ou, pura e simplesmente, direito penal) é o de protecção dos bens jurídico-penais. As penas (tal como as medidas de segurança) são os meios indispensáveis à realização desse fim de tutela dos bens jurídicos. Daqui resulta que, quando se fala dos "fins da pena", em rigor se está a falar de "fins't-meios, e não do verdadeiro fim ou fim-último. Ou seja: o problema, quando se fala dos fins da pena, que são "fins-meios" ou fins imediatos, é o de saber como é que a pena há-de ser escolhida (pelo legislador e, depois, dentro do permitido pela lei, pelo juiz) e determinada, em ordem a realizar-se aquela função ou finalidade (última) de protecção, no futuro, dos bens jurídicos lesados, não se esquecendo, obviamente, o imperativo constitucional da máxima restrição possível da pena, consagrado no art. 18.°-2 da CRP. Por esta razão, considero que o n." 1 do art, 40.° é incoerente, na medida em que associa e pacifica fim e meio (1. é( "fim-último" e "fimmeio"): com efeito, «a reintegração do agente na sociedade», isto é, a reinserção social do delinquente não é senão um dos meios de realizar o fim do direito penal que é a protecção dos bens jurídicos (ao contribuir esta reinserção social para evitar a reincidência - prevenção especial positiva),
§ 96. Estabelecido que a legitimidade ético-jurtdíca (e mesmo constitucional - CRP, art. 18.°-2) da pena está na necessidade de prevenção de futuros crimes, vejamos, então e agora, qual a dinâmica, quais os vectores da pena, para que esta cumpra, o melhor possível, a sua função preventiva.
§ 95. Vejamos, então, quais os critérios que, impostos pelo princípio constitucional da máxima restrição possível da pena (CRP, art, 18.°-2), hão-de orientar, quer o legislador quer o tribunal, na escolha e determinação da medida da pena.
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Titulo I -
É claro que a prevenção. se dirige em dois sentidos, isto é, tem dois objectivos e destinatários: o próprio infractor condenado e todos os outros membros da comunidade. Em relação ao próprio condenado, a função ("fim", na terminologia tradícional e corrente) preventiva da pena designa-se por prevenção especial ou individual. E qual o sentido desta prevenção especial? - É duplo: ressocialização do delinquente, traduzída pela designação prevenção especial positiva, e dissuasão da prática de futuros crimes, traduzida pela designação prevenção especial negativa.
§ 97. A função de ressocíalização não significa uma espécie de "lavagem ao cérebro", i. é, uma substituição da "mundividência" do condenado pela "mundividência" dominante na sociedade, mas, sim e apenas, uma tentativa de interpelação e consequente auto-adesão do delínquente à indispensabilidade social dos valores essenciais (bens jurídico-penais) para a possibilitação da realização pessoal de todos e de cada 1.UU dos membros da sociedade. Em síntese, significa uma prevenção da reincidência. Esta função da pena implica, como é evidente, profundas alterações das condições físicas e pessoais (como a estrutura arquitectónica dos estabelecimentos prisionais, e a ocupação do tempo em actividades
Parte
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Titulo I
Questões FIII.damelltais
;§ 98. Por sua vez, a dissuasão ("infimidação") do condenado é conatural à pena, e constitui também uma função da pena, que em nada é incompatível com a referida função positiva de ressocialização. É que não se trata de intimidar por intimidar, mas sim de uma dissuasàa (através do sofrimento que a pena naturalmente contém) humanamente necessária para reforçar no delinquente o sentimento da necessidade de se auto-ressocíalizar, ou seja, de não reincidir. E, no caso de infractores ocasionais, a ter de ser aplicada uma pena, é esta mensagem punitiva dissuasora o único sentido da prevenção especial.
de ressocialização). § 100.
Mas se toda esta gama de disposições demonstra que o legislador penal estabelece critérios (a respeitar pelo juiz nas decisões dos casos concretos) reveladores de que a pena tem uma função de prevenção especial positiva de reintegração social, também é nítido que o
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§ 101. O outro sentido da prevenção tem por destinatário toda a comunidade' social e cada um dos seus membros, os cidadãos em geral, É, portanto, um sentido e objectivo de prevenção geral. E, analogamente ao que se passa com a prevenção especial, também a prevenção geral tem uma dupla dinâmica, também ela se desdobra e desenvolve num duplo sentido: prevenção geral positiva ou de integração e prevenção geral negativa ou de díssuasão.
§ 99, Ora, este sentido ou finalidade preventivo-especial, positiva
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O problema crimillal-pellal
mesmo legislador reconhece à pena um sentido de prevenção especial negativa, isto é, de dissuasão. E, assim, é que, p. ex., no art. 43.°-1, o legislador acautela a hipótese de a substituição da pena curta de prisão por pena de multa ou por outra pena não detentiva não constituir suficiente prevenção da prática de futuros crimes, hipótese em que, então, apesar do reconhecimento (já referido) de que as penas curtas de prisão não contribuem para a recuperação social do condenado, mesmo assim o juiz deverá condenar na pena de prisão', Ora, não é a prevenção geral que, nesta hipótese, determina tal solução, mas sim a prevenção especial negativa ou de dissuasão individual. A mesma ideia de prevenção especial negativa está subjacente ao disposto no art. 49.°-1 (conversão da multa não paga em prisão subsidiária); e também me parece manifesta no art. 75.°-1, quando o juiz, no caso de reincidência, é obrigado à agravação da pena, se considerar que «a condenação ou as condenações anteriores não lhe [serviram] de suficiente advertência contra o crime». .
profissionais e culturais) em que, geralmente, é cumprida a pena de prisão; caso contrário, esta finalidade - que, repetida e nomeadamente no caso português, tem sido considerada essencial para que a pena seja verdadeiramente um meio de protecção dos bens jurídicos '- não se cumprirá, tomando-se, pelo contrário, a prisão em meio de dessocialização ou de agravamento da desintegração social do delinquente.
e negativa, da pena é tida em conta pelo legislador penal e deve ser também concretizada pelo juiz, Quanto ao legislador penal, basta pen0 sar na ideia-força da segunda parte do n." 1 do art. 40. «
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§ 102. Prevenção geral positiva ou de integração significa que a pena é um meio de interpelar, a sociedade e cada um dos seus membros, para a relevância social e individual do respectivo bem jurídico tutelado penalmente; por outras palavras, a pena serve a função posiou aprofundamento dessa ínteríorízação dos tiva de interiorização bens jurídico-penais. Ora, esta função da pena começa por se realizar com a criação da lei criminal-penal (interpelação legal) e consuma-se com a aplicação judicial da pena e sua execução (interpelação judicial e fáctica). Naturalmente que quanto mais importante for o bem jurídico, mais intensa deve ser a interpelação. E, por isto, necessariamente que quanto mais grave for o crime (mais valioso o bem jurídico a protej·Oir.l'enal
Parte [ -
66
Quesrões Fundamentais
ger) mais grave terá de ser a pena legal, e, no geral, também
maior a
pena judicial. Esta dimensão de interiorização torna-se. mais necessária relativamente às condutas lesivas de bens jurídicos que, embora merecedores da tutela penal, a consciencialização da sua importância, para a vida da sociedade e das pessoas, ainda não é suficientemente profunda e generalizada. Tal é o caso de muitos dos bens jurídicos protegidos pelo direito penal secundário ou económico-social (p. ex., direito penal do ambiente, fiscal, da. segurança social). Mas a prevenção geral positiva tem, ainda, a tivo da pacificação social ou, por outras palavras, ou revigorarnento da confiança da comunidade penal estatal dos bens jurídicos fundamentais individual. Esta mensagem de confiança cialmente, através da condenação da importância
do bem jurídico
dimensão ou objecdo restabelecimento na efectiva tutela à vida colectiva e
e de pacificação social é dada, espepenal, enquanto reafirrnação efectiva lesado.
§ 103. Mas também, da mesma fOIIDa que será irrealista considerar que a dissuasão individual não é uma função (um "fim") da pena, também não é menos irrealista afirmar que a dissuasão geral não é um dos sentidos ou (unções da pena, mas somente um seu efeito, lateral. Entendo que a pena também tem uma função de prevenção geral negativa
ou de díssuasão.
§ 104. Consideremos, agora, como intervêm e como se relacionam a prevenção especial (positiva e negativa) e a prevenção. geral (positiva e negativa) na determinação, legal e judicial, da pena, e na escolha da espécie de pena. A resposta a esta questão parece-me dever ser a seguinte: o objectivo da pena, enquanto meio de protecção dos bens jurídicos, é a prevenção especial, positiva e negativa (isto é, de recuperação social e/ou de dissuasão). É este o critério orientador, quer do legislador quer do' tribunal. E, assim, quanto ao legislador, ele deve apresentar e, efectivamente, apresenta quer molduras penais suficientemente amplas, quer urna relativamente ampla gama de espécies de penas. E, quanto ao juiz, deve este seguir o critério estabelecido no art. 40,°-1-2: parte, e nos outros arti!.,
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Titulo I -
o problema
criminal-penai
67
gos acima já referidos. Por conseguinte, a determinação da medida da pena e a escolha da espécie da pena, quando legalmente permitida, reger-se-à pelo objectivo e critério da prevenção especial: recuperação social do infractor (prevenção especial positiva), desde que tal objectivo não seja incompatível com a necessidade mínima de dissuasão individual. Ou seja: o "fim" é a reintegração social do infractor, fim este que tem, como limite mínimo, a eventual necessidade de dissuasão do infractor da prática de futuros crimes. § 105. Porém, este critério da prevenção especial não é absoluto, mas antes duplamente condicionado e limitado: pela culpa e pela prevenção geral. Condicionado pela culpa, no sentido de que nunca O limite máximo da pena pode ser superior à "medida" da culpa, por maiores que. sejam as exigências preventivo-especiais. Isto é: mesmo que a perigosidade criminal do delinquente exigisse uma pena maior do que a gravidade da culpa, em ordem a uma adequada recuperação social do delinquente e/ou a uma socialmente necessária dissuasão do mesmo delinquente, nunca a pena pode ser superior culpa. Numa palavra, a culpa constitui o limite máximo da pena determinada pelo critério da prevenção especial. Condicionado pela prevenção geral, no sentido de que nunca o limite mínimo da pena (ou a escolba de urna pena não detentiva) pode ser inferior à medida da pena tida por indispensável para garantir a manutenção da confiança da comunidade na. ordem dos valores jurídico-penais violados e a correspondente paz jurídico-social, bem como para produzir nos potenciais infractores uma dissuasão mínima. Em síntese: a prevenção geral constitui o limite mínimo da pena determinada pelo critério da prevenção especial. à
§ 106. Este limite mínimo da pena, imposto pelo fim ou necessidade da prevenção geral, coincide com o limite mínimo da moldura penal estabelecida pelo legislador para o respectivo crime em geral. Mas também, para o caso concreto, o legislador estabeleceu um limite mínimo) em nome do mínimo da prevenção geral indispensável, limite que deverá ser respeitado pelo tribunal. São precisamente os casos em que a pena concreta a aplicar seja superior a 5 anos de prisão,
Parte [ -
68
Questões Fundamentais
casos em que, mesmo que não haja nenhumas necessidades preventivo-especiais de recuperação social e de dissuasão individual' (porque não há qualquer fundado receio de reincidências), o tribunal não ·pode deixar de condenar na respectiva pena de prisão superior a.5 anos, uma vez que não é possível a suspensão 'da execução da pena (art. 50."-1), nem a sua substituição por uma outra pena (art. 43.0 S5} Isto será a regra nos casos de crimes muito graves, embora possa haver excepções; quando houver razões para a atenuação especial (art. 72.°), e desta atenuação resulte a aplicação de uma pena concreta não superior a 5 anos de prisão. Mesmo nos casos ele crimes de média ou de pequena gravidade, ou seja, de forma mais rigorosa, nos casos de penas concretas de prisão médias ou curtas, também se afirma a exigência mínima da prevenção geral. Quero dizer: nestes casos, mesmo que não se verifique a necessidade de prevenção especial (positiva e/ou negativa), a punição não deixará de existir, por força da exigência mínima da prevenção geral (de interpelação-consciencialização da comunidade da importância dos bens violados, e/ou de dissuasão dos membros da mesma comunidade). Assim, é que, se, por um lado, as penas curtas de prisão (i. é, as não superiores a 6 meses - agora, após a Revisão do CP de 2007, devendo entender-se: não superiores a 1 ano) e as penas médias de prisão (as não superiores a 3 anos - agora, devendo entender-se: não superiores a 5 anos) não devem ser aplicadas, quando não existir, no caso concreto, a-necessidade ou finalidade preventivo-especial (positiva e/ou negativa); já, por outro lado, por imposição da necessidade de um mínimo de prevenção geral (positiva e/ou negativa), elas terão de ser substituídas pela pena de multa, por "permanência na habitação", ou pelas penas de prisão "por dias livres" ou em "regime de semidetenção", ou por "pena suspensa" na sua execução (arts. 43"-1, 44.0-I-a), 45.°-1, 46.'°-1 e 50.°-1). Portanto, embora, nestes casos, se verifique a substituição por penas mais leves, não deixa, contudo, de haver punição. E tanto é assim que, se o condenado, p. ex., não pagar a multa, esta será substituída ou por prisão' (art, 49.°) ou por trabalho (art, 48."). Esta, digamos, punição mínima é fundamentada nas exigências mínimas da prevenção geraL
§ 107. Este discurso sobre a prevenção
geral (positiva e negativa) como constitutiva do limite mínimo, abaixo do qual não pode descer a pena, mesmo que não se verifique a necessidade preventivo-especial,
TItulo 1 - O problema critninal-penal
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69
positiva e/ou negativa, não é contraditado pela figura da dispensa de pena, prevista 110 art. 74."-1. Com efeito, além de se exigir, como pressuposto da dispensa de pena (prisão não superior a 6 meses, ou multa não superior a 120 dias), que a ilicitude do facto e a culpá do agente' sejam diminutas, e que não haja necessidade preventivo-especial (desnecessidade que se infere da circunstância do dano ter sido reparado), exige-se, ainda, que a tal dispensa da pena não se oponham razões de prevenção. Ou seja: é (também) pressuposto da não aplicação da pena a não existência da necessidade de prevenção geral (positiva e/ou negativa). Daqui resulta a conclusão de que as razões de prevenção geral podem impedir a dispensa da pena, isto é, a pura e simples isenção ou não aplicação da pena, apesar de não se afirmar, no caso concreto, qualquer necessidade preventivo-especial .
Conclusão: não havendo necessidade de prevenção vez que também não existe necessidade preventivo-especial, . que não deverá ser aplicada qualquer pena.
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1.
MEDIDAS
DE
Génese histórica e progressiva rança nos Códigos Penais
geral, e uma logicamente
IV SEGURANÇA
inclusão
das medidas
ele segu-
§ 108. Quando falámos (supra, § 47 5S.) da Escola Positiva, vimos que esta reagiu, frontal e radicalmente, contra o pensamento jurídico-críniinal da Escola Clássica, propondo a trilogia determinismo - perigosidade - medidas de segurança em vez da trilogia liberdade - culpa - pena. Isto é, a sociedade, através do poder estatal, só podia defender-se dos factos antissociais, chamados crimes, através de medidas de segurança, e não mediante a aplicação de penas, pois que estas, além de constituírem, para o delinquente, um castigo injusto (uma vez que ele não tinha culpa pelo facto que praticou), seriamtambém ineficazes para a defesa da sociedade (pois que as penas abstralam das causas, endógenas e exógenas, da perigosidade criminal do infractor).
Farte I -
70
Questões Fundamentais
Nesta linha positivístico-criminal, a Escola Positiva defendeu que, em y:ei das tipologias dos factos, o direito criminal devia' preocupar-se e caracterizar as tipologias dos delinquentes e respectivas perigosidades criminais, uma vez que os factos criminais praticados eram mero sintoma; ou indício da perigosidade; por outro lado, e numa sequência coerente, as consequêncías jurídicas do crime, i. é, a forma de o Estado se proteger contra o delinquente, só poderiam ser medidas de segurança. Estas tinham por objectivo principal a defesa da sociedade, e por objectivo complementar o tratamento, médico-psiquiátrico ou psicológico-social, das causas da perigosidade criminal do infractor, a não ser que estivesse em causa um delinquente incorrigível - caso em que a medida de segurança apenas cumpria a sua função principal, neutralizando ou inocuizando o delinquente incorrigível através do internamento que pode-o
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ria vir a ser perpétuo. . Urna vez que as medidas de segurança (da sociedade) também deviam, em princípio, procurar o tratamento científico do delinquente, passaram a ser designadas, também, por medidas de segurança e tratamento. § 109. Apesar da rejeição dos pressupostos deterministas (do comportamento humano em geral, e da conduta criminosa em especial) da Escola Positiva, e das consequências político-criminais que esta escola deles retirou, a verdade é que a figura das medidas de segurança não mais deixou de interessar à doutrina jurídico-penal, acabando por, progressivamente, vir a .ser acolhida pelos legisladores, nos respectivos Códigos Penais, ao lado das penas. Dado o seu carácter pioneiro, é legítimo referir Carlos Stoss, autor que, pela primeira vez, em 1893, formulou, no seu Projecto de Código Penal suíço, um verdadeiro sistema de medidas de' segurança, ao lado do tradicional sistema de penas.
2.
: O sistema
monlsta
e o sistema
dualista
das reacções
criminais
§ 110. Apesar da introdução da categoria das medidas de segurança no direito criminal, foi, desde os fins do séc, XIXlprincípios do séc. XX, entendimento dominante que aos imputáveis "normais" só deviam ser aplicadas penas, pois que, tratando-se de infractores com capacidade
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Título I -
O problema criminal-penal
7l
de avaliação da ilicitude dos seus actos e de livre decisão, eles eram culpados e, consequentemente, sancionáveis com uma pena ("castigo"); já, quanto aos ínimputáveis, a sociedade só tinha legitimidade para se defender deles através de medidas de segurança, que não de penas, pois que estas pressupõem a culpabilidade que, nos inimputávcis, não existe. Portanto, em relação aos claramente imputáveis e aos manifestamente inimputáveis, não havia problema, pois era lógico que, considerado, relativamente aos primeiros, o crime como produto' do mau exercício da sua liberdade de opção e decisão (pelo ilícito), era legítima a sua punição; e, quanto aos segundos, os inimputáveis, o Estado só tinha legitimidade para se defender, a si e à sociedade, através de medidas não punitivas, mas sim de medidas administrativas de segurança que visavam a neutralização (pelo internamento) e eventual- tratamento das causas (anomalias psíquicas ou graves perturbações da personalidade) da perigosidade criminal. § 111. o. problema complicou-se quando, a partir das primeiras décadas do séc, XX, se constatou e tomou consciência de que havia uma categoria intermédia de delinquentes que, digamos, no momento da prática do facto criminoso, nem eram plenamente imputáveis nem eram plenamente inimputáveis: não eram plenamente imputáveis, porque, diferentemente dos infractores comuns ou "normais", eram afectados por determinadas tendências para a prática de crimes, o que lhes reduzia a capacidade de avaliação e/ou de decisão; não eram plenamente inimputáveis, pois que, apesar de diminuída a referida capacidade,esta existia. Esta categoria de delinquentes passou a ser designada por imputáveis perigosos ou delinquentes por tendência. Ora, é em relação a esta categoria intermédia de delinquentes que, desde princípios do séc, XX até à actualidade, se levantou a discussão polémica sobre o monismo ou dualismo das reacções criminais: aos "imputáveis perigosos" devem aplicar-se só penas ou penasmais medidas de segurança?
§ 112. Os defensores do sistema dualista diziam e dizem, em síntese: sendo a medida da pena limitada pela medida da culpa, a pena do impu-
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Parte I -
72
Questões Fundalllernais
tável perigoso tem de ser menor do que a que seria aplicável ao imputável "normal", pois que as suas tendências para o crime, congénitas ou adquiridas, lhe diminuem a liberdade de decisão e, consequentemente, culpa; mas a defesa da sociedade e dos bens jurídicos não fica posta .em causa, na medida em que à pena, em função da culpa, há que adicionar a medida de
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segurança,
em função da perigosidade
criminal do infractor.
§ 113. A este dualismo das consequências jurídicas do crime, praticado por um imputável perigoso ou por tendência, contrapuseram e contrapõem (embora o seu número tenha vindo a diminuir) os defensores do sistema monista que, mesmo aos imputáveis perigosos ou por tendência, só devem ser aplicadas penas. Porém, uma vez que estes autores também defendem uma concepção ético-jurídica da pena, no sentido de que não há pena sem culpa e de que a medida ou gravidade desta constitui o limite máximo da pena, forarne são confrontados com a seguinte objecção politico-criminal: se a pena dos imputáveis perigosos tem de ser menor, por força da sua menor censurabilidade ou culpa, em virtude das suas tendências para o crime, então, vai ser precisamente em relação categoria dos delinquentes mais perigosos para a sociedade e para os seus bens à
jurídico-penais que a sociedade menos se pode proteger?1 Exposta a esta fundamentada e evidente contradição politico-criminal, os defensores da teoria ético-rnonista procurarn contorná-la através da criação e construção da culpa referida à personalidade, ao lado e a acrescer à tradicional figura da culpa referida e aferida 110 momento do facto. § 114. Os primeiros autores (p. ex., Mezger, Bockelmann, Eduardo Correia) apelam à culpa da vontade referida à personalidade, considerando que o imputável perigoso é culpado pelas suas tendências para o crime, urna vez que estas são o resultado de um reiterado exercício do livre-arbítrio pelo ilícito criminal. Isto é, a personalidade perigosa do imputável com tendências para o crime seria o resultado de múltiplas decisões da vontade livre do delinquente. Ou seja: a personalidade perigosa do imputável com tendências para o crime é o produto da soma de múltiplas "culpas da vontade" do delinquente. Assim, o imputável perigoso é objecto de um juizo de culpa pela não formação da personalidade adequada ao efectivo respeito pelos valores fundamentais da vida em sociedade.
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Tttulo l-O
I
problema criminal-penal
73
Por esta via, os defensores do sistema monista pensaram ter resolvido a mencionada objecção político-criminal que os dualistas lhe assacavam. É que, agora, contra-argumentavam: a defesa social não fica comprometida com a via monista da exclusiva aplicação de penas, mesmo no caso de imputáveis perigosos, dado que, se é certo que a culpa referida ao momento da prática do facto ilícito é menor e, assim, menor é a pena, não se pode esquecer que a esta menor pena há que somar a pena pela culpa pela não formação ela personalidade, acabando o tribunal por ter de aplicar ao infractor imputável perigoso uma pena que não é inferior à que caberia a um imputável não perigoso.
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§ 115. Numa segunda fase; outros autores. (p. ex., Nowakowski, Gallas, Fígueíredo Dias), inspirando-se nas diversas correntes da filosofia existencialista (p. ex., K. Jaspers, G. MareeI, Sartre, Baptista Machado), defenderam uma nova concepção da culpa referida à personalidade, concretamente: uma culpa da personalidade. Partindo de uma "abertura originária existencial", isto é, de uma plasticidade antropológica, a cuja mo delação o homem, cada homem, não pode furtar-se, cada um vai-se tornando responsável, ao longo da existência (ec-sistere), pelo "eu", pela personalidade que vai, necessariamente, construindo. Neste contexto antropológico filosófico-existencial, muitas das tendências delinquentes dos imputáveis perigosos são O resultado censurável do não cumprimento do dever existencial de "edificação" de uma personalidade consciente e respeitadora dos valores essenciais em que assenta a vivência comunitária. Excluídas deste círculo da culpa da personalidade ficariam apenas as tendências criminosas congénitas e incorrigíveis.
§ 116. A verdade, porém, é que, pese embora o bom fundamento antropológico desta culpa da personalidade, nem esta nem a culpa pela não formação da personalidade conseguem resolver o problema da categoria dos imputáveis perigosos ou por tendência, no quadro do sistema monista.
Quer a teoria da culpa (da vontade) pela não formação da personalídade quer a teoria da culpa (existencial) da personalidade não dão ,resposta suficiente ao problema dos imputáveis perigosos. Com efeito, se é certo que a vida em sociedade, que é o habitat natural do homem, faz recair sobre este o dever de educar (ex-ducere, isto é, modelar-se a
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Parte J - Queslões Fundamentais
Título J -
partir, das possibilidades múltiplas que se nos deparam, ao entrarmos na existência) a sua personalidade no respeito do "mínimo ético-jurídico fundamental", não é menos certo que a pedagogia e a psicossociologia nos demonstram que o homem, no seu modo-de-ser, é, em grande medida, o fruto das suas "circunstâncias", e que estas, nas primeiras e decisivas fases da existência de cada um, não são escolhidas por ele, mas, sim, impostas do exterior, impostas pela sociedade. Em resumo, quer-se dizer o seguinte: não nascemos determinados para o "bem" ou para o "mal", mas sim "abertos" à modelação da personalidade num sentido ou noutro; só que a rnodelação ou estruturação axiológico-existencial se realiza nas fases iniciais da infância, e, portanto, num tempo em que o ser humano, ainda em formação da personalidade, não é ele a decidir, mas sim os que o circundam, a sociedade em geral, e a família e a escola em especial. Daqui, o sempre renovado apelo à consciência da importância determinante que as instâncias de socialização primária (a família e a escola infantil) têm na formação da personalidade. Isto é, não nascemos livres mas potencialmente livres, e a passagem da potência ao acto de ser livre depende, no início da existência, mais dos outros do que de nós mesmos; pois que, quando atingimos a "idade da razão", a idade da opção consciente, já estamos relativamente definidos na estrutura da nossa personalidade e, portanto, condicionados nas nossas decisões. Em conclusão, a abertura existencial com que nascemos, responsabiliza, em primeiro lugar, a família e a sociedade. Transposto este discurso para o nosso problema das consequências jurídicas aplicáveis aos imputáveis perigosos ou por tendência, teremos de concluir que a culpa referida à personalidade não resolve O problema, pois que esta culpa, em muitos casos de tendências adquiridas, não passa de uma ficção. A conclusão não pode deixar de ser a de que o sistema monista (só penas) deixa a sociedade, e os seus bens jurídicos, parcialmente desprotegida diante dos imputáveis perigosos ou por tendência. Pois. a pena tem, necessariamente, de ser menor que a aplicável ao imputável "normal"; e este déíice de pena não pode, em muitos casos de imputáveis perigosos, ser compensado por um acréscimo de pena em função de uma perigosidade culposa, precisamente porque esta perigos idade pode não poder ser censurável ao delinquente.
3.
A positívação
do sistema
75
dualista
no Código
Penal
de 1982
§ 117.. Como já escrevi em 1990 (8), o CP de 1982, arts, 83.° a 90.0, ao consagrar a pena relativamente indeterminada para os delinquentes por tendência, isto é, para os delinquentes imputáveis especialmente perigosos, adoptou o sistema dualista. E esta afirmação fundamenta-se em duas razões ou argumentos: por um lado, o que separa o sistema dualista do sistema monista é, como já foi esclarecido, o modo como cada um enfrenta a questão dos "imputáveis perigosos ou por tendência", advogando o primeiro sistema a aplicação de pena mais medida de segurança, enquanto que o segundo, o sistema monista, persiste na aplicação exclusiva de penas; ora, e por outro lado, a nossa pena relativamente indeterminada é, real e materialmente, um misto, um compósito de pena mais medida de segurança; logo, a conclusão inevitável de que, a partir de 1982, o nosso Código Penal passou a ser dualista, apesar da "burla de etiquetas", isto é, da designação "pena" que pode enganar o menos atento à substância das figuras jurídicas. Na verdade, na "pena" relativamente indeterminada, a parte da privação da liberdade correspondente aos dois terços da pena que concretamente caberia ao crime cometido (arts. 83.°-2, 84.°-2 e 86.°-2) é, realmente, uma pena determinada pela culpa do facto. Só que, por força da tendência para o crime, esta culpa é considerada menor do que a que existiria e se afirmaria, se o crime tivesse sido praticado por um imputável "normal" ou ocasional e, por consequência, também a pena tem que ser menor, isto é, igual aos referidos dois terços. Já o acréscimo de privação da liberdade, que pode ir até 6, 4 ou 2 anos (arts. 83.°-2, 84.0-2 e 86.°-2), é uma autêntica medida de segurança, assente e justíflcada (iustificada quanto à sua existência e aplicação, mas injustificada (9), por exagerada, quanto à sua possível duração) pela perigosidade criminal do infractor, perigosidade demonstrada pela reiteração criminosa anterior (arts. 83."-1, 84.°-1 e 86.°-1).
(6) Em Sucessão de Leis Penais, 1.' ed., p. 9. (9) No sentido da excessiva e, por isso, inconstitucional amplitude da duração da pena relativamente indeterrninada, ver TAIPA DE. CARVALHO, Sucessão de Leis Penais, 3,' ed., 2008. p, 111.
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O problema criminal-penal
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Pa.rte I - Questões
76
4.
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O fim e as funções das medidas de segurança
§ 118. O fim, no sentido de verdadeiro objectivo ou "fim-último", das medidas de segurança é a protecção dos bens jurídico-criminais. Assim o refere a primeira parte do n." 1 do art, 40." Mas; diga-se, tal referência era desnecessária, pois que é evidente que, pressupondo as medidas de segurança a perigosídade crímínal(que não apenas a perigosidade social) e traduzindo-se as verdadeiras e genuínas medidas de segurança na privação ou restrição do direito fundamental e constitucionalizado da liberdade, elas só se justificam como meio ao serviço do [rol de protecção de outros bens jurídicos fundamentais, Ou seja: o princípio constitucional da proporcionalidade (CRP; art. 18.°-2) tanto se aplica às restrições da liberdade do infractor imputável (seja este perigoso ou ocasional) como às restrições da liberdade do inirnputável, pois que este não deixa de ser titular dos direitos fundamentais por ter a infelicidade de ser illimputável.
§ 119. As funções, objectivos imediatos ou "fins-meios", das medidas de segurança são de prevenção especial de recuperação social do inimputável perigoso, através do tratamento da anomalia psíquica (caso dos inimputáveis) ou da correcção da tendência criminosa (caso dos in1pl.ltáveis perigosos por tendência) e, ainda, de ínocuízação ou neurralízação da perigosidade criminal do infractor, através do internamente, enquanto aquela perigosidade persistir. § 120. Quanto à função de prevenção geral, há que distinguir o caso dos inimputáveis do caso dos imputáveis perigosos ou por tendência. § 121. No caso dos inimputáveis, a única função que a medida de segurança desempenha é a de prevenção geral positiva de pacificação social. Quebrantada ou perturbada a paz jurídica social pela prática de um ilícito típico grave, compreende-se que, independentemente do eventual desaparecimento da perigosidade criminal, haja um mínimo de tempo de privação da liberdade. Assimse compreende o disposto no art, 91.°-2: «Quando o facto praticado pelo inimputável conesponder a crime contra as pessoas ou a
Tttulo I - O problema criminal-penal
77
crime de perigo comum puníveis com pena de prisão superior a 5 anos, o internamente tem a duração mínima de 3 anos, salvo se a libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.». - Diga-se que, embora recusemos que esta disposição configure urna presunção absoluta de persistência da perigosidade (pois, se o fosse, então não poderia haver a ressalva da não imposição desse mínimo de 3 anos), não deixamos de considerar excessiva essa duração. É que, para além de haver legislações (como, p. ex., o CP espanhol) que não estabelecem qualquer mínimo, acho que é exagerada esta duração, bastando, para a comprovação desta crítica, pensar que podem estar em causa ilícitos criminais cujos limites mínimos da pena aplicável são claramente inferiores aos referidos 3 anos (cf arts, 272.°-2, 273.0-c), 277.°-1 e 280,"-a)), Portanto, embora a medida de segurança aplicada a inimputáveis tenha por primeira e principal função a prevenção especial de socialização (recuperação social) do inimputável e de neutralização da sua perigosidade criminal, ela também desempenha urna função secundária de prevenção geral de pacificação social. É secundária esta função e, por isto, é que ela só se afirma nos casos de ilícitos criminais muito graves. Donde, a conclusão final de que, nos casos em que há a necessidade social de pacificação, a respectiva dimensão da prevenção geral constitui o limite mínimo da medida de segurança privativa a liberdade. ,§ 122. Não partilho a ideia de que a medida de segurança aplicada a inimputáveis desempenha, também, a função de prevenção geral de integração no sentido de protecção da confiança comunitária nas normas, assim como rejeito que esta função esteja, patente ou latentemente, contida na mencionada disposição do n." 2 do art. 91.°, quando se refere à "defesa da ordem jurídica". . A medida de segurança aplicada a inimputáveis não tem a função ou objectivo de prevenção geral de íntegração - seja no sentido de interiorização da relevância dos bens jurídicos violados, seja no sentido de tutela ou reforço da confiança da comunidade na vigência efectiva das normas penais -, precisamente porque nem uma, nem a outra destas dimensões da prevenção geral de integração são postas em causa ou abaladas pelo ilícito criminal praticado pelo inimputável, A comunidade dos imputáveis sabe bem que o inimputável não é ético-juridicamente motivável pelas normas penais. Logo, não se sente afectada,
78
Parte I --Questões FWldamemaü
na sua consciência dos valores lesados pelo inimputável e na sua confiança na vigência efectiva das normas penais, pelo ilícito praticado pelo inimputável, A única coisa que a comunidade sente, com o ilícito grave cometido pelo inimputável, é o medo, a perturbação, o abalo social. E, por isto, é que poderá ter de haver um mínimo de duração da medida de segurança de internamente, para a respectiva pacificação social. .
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5.
§ 124. Em síntese: a duração mínima de três anos da medida de segurança de internarnento não se impõe; quando se verifiquem, cumulativamente, a desnecessidade preventivo-especial de neutralização da pcrigosidade criminal do inimputável para os bens jurídicos (desnecessidade a que se refere o art. 91.°-2, parte final, quando diz que o mínimo de 3 anos não se aplica, quando a libertação for compatível com a «ordem juridica») e a desnecessidade' preventivo-geral de pacificação social (desnecessidade a que se refere a mencionada disposição legal, quando alude à compatibilidade da libertação com a «paz social»), Conclusão: a exigência da duração mínima de 3 anos da medida de segurança de internamento desaparece, quando a libertação não constiruir perigo para os bens jurídicos, segundo um juizo de prognose, feito pelo tribunal, com apoio em parecer clínico-psiquiátrico, e não perturbar a paz social.
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Medidas de segurança imputáveis?
não privativas
da liberdade
aplicáveis
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§ 126. Que as há,há, bastando consultar-o CP, arts. 100." a 103. "; interdição de actividades, cassação da licença ou interdição da concessão de licença de condução de veículo com .motor. de segurança tanto podem ser corno a imputáveis, eis também o que resulta
Que, por outro lado, estas medidas
aplicadas a inimputáveis
da leitura dos arts, 100.°-1 e 101.°-1 e 4. Que, finalmente, não se trata de uma "burla de etiquetas", tal resulta do n." 2 do art, 100.° (para o qual remete o n." 5 do art. 101."), ao permitir que o período de interdição da actividade, da cassação da licença ou da interdição de concessão da licença, possa ser prorrogado por outro período de 3 anos, se o «tribunal considerar que aquele [o período de interdição em que foi condenado] não foi suficiente para remover o perigo que fundamentou a medida [de interdição]»,
§ 125. Já, no caso dos imputáveis perigosos ou por tendência (CP, arts. 83." a 90.°), pode reconhecer-se que a parte de privação da liberdade correspondente à medida de segurança (cf. § 117) desempenha, para além da função primária de prevenção especial (na dimensão de recuperação social, mas também no vector de neutralização da perigosidade criminal), a função secundária de prevenção geral, quer no sentido de pacificação
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o problema
É que, embora também, nestes casos, a medida de segurança pressuponha a perígosidade criminal e vise actuar sobre esta perigosidade, não se pode esquecer que estamos perante delinquentes imputáveis. Assim, apesar de se pode. e, porventura, dever considerar que tais delinquentes não são culpados dessa perigosidade, não deixarão eles de "sentir" a razão do acréscimo .da medida de segurança à pena em que (em nome da culpa do facto) também são condenados; e, nesta mesma linha, também a sociedade verá reforçada a sua confiança na eficaz protecção dos bens jurídicos-penais, bem como aprofundará a conscieucíalízação da relevância pessoal e comunitária dos bens jurídicos violados.
§ 123. E a referência do art. 91.°-2 à «defesa da ordem [urídica» não deve ser interpretada no sentido da atribuição à medida de segurança da função de prevenção geral positiva de tutela da confiança comunitária nas normas, mas sim no sentido de prevenção especial de inocuização da perigosidade do inimputável.
social, quer no sentido de revigoramento da confiança jurídica da comunidade:na eficácia da tutela estalaI dos bens jurídico-criminais.
Tttuio I -
Logo, à face do direito positivo, estamos diante de uma medida de segurança, e não de uma pena acessória.
§ 127. Sendo tudo isto verdade, no sentido de que é o que está estano CP actual, não deixa de ser questionável este regime e esta qualificação como medidas de segurança das interdições de actividades e de licença de condução, quando estão em causa crimes cometidos por imputáveis. belecido
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Thulo [ -
Questões Fundamentais
Com efeito, os pressupostos e a duração destas chamadas "medidas de segurança", quando estejam em causa imputáveis, não diferem dos pressupostos e dos critérios da determinação concreta das penas acessórias. E, quanto à prorrogação, não se vê qual a vantagem e a necessidade práticas de tal prorrogação, para além de não se ver como será viável o juizo prognóstico em que terá de se fundamentar a referida
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prorrogação.
§ 128. Sinceramente, parece que a prorrogação teve apenas a finalidade 'de "demonstrar" que tais medidas são mesmo medidas de segurança, e não penas acessórias. Salvo melhor opinião, desde que fundamentada, entendo que, no tocante aos imputáveis, a qualificação destas interdições como medidas de segurança, em vez da sua qualificação como penas acessórias, é des/lecessária, é contraditória com o princípio de que, em regra, as medidas de segurança só são aplicáveis a inimputáveis,
e parece ser artificial.
pois que os objectivos político-criminais § 129. É desnecessária, de neutralização temporária do «fundado receio de que possa vir a pra-' ticar outros factos da mesma espécie» no exercício das respectivas actividades ou na condução rodoviária, e de dissuasão do infractor-condenado da prática de ilícitos criminais no exercício da sua actividade ou na condução mOlolizada, são objectivos inerentes à ratio das penas acessórias. Também estas só devem ser aplicadas (acrescendo à pena principal), quando o tribunal, na sua apreciação discricionária mas vinculada, entender que elas são necessárias para realizar os mencionados objectivos poHtico-criminais. Por isto é que a própria Constituição, art. 30.°-4, proibiu
as penas acessórias
automáticas.
§ 130. É contrária ao princípio geral de que as medidas de segurança têm como destinatários naturais os inimputáveis, ressalvando-se apenas os cásos dos semi-imputáveis e dos imputáveis perigosos ou por tendência, em que à pena podia acrescer (caso dos semi-imputáveis) ou acrescerá mesmo (caso dos imputáveis perigosos) uma medida de.segurança. Mas repare-se que o CP, arts. 83.°-1,84.°-1 e 86.°-1, faz depender, e bem, a aplicação da medida de segurança (a parte da privação da liberdade não fundamentada na culpa - cf. § 117) da perigosidade
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"demonstrada" pela prática anterior de um ou vários crimes. Pressuposto este (a prática anterior de um ou mais crimes no exercício da actividade ou profissão, ou na condução rodoviária) que não é exigido para a aplicação. das. ditas medidas de segurança não. privativas da liberdade, tal como não é exigido para a aplicação das penas acessórias previstas nos arts. 66.0 a 69.° Mais: que razão justifica a distinção que o CP estabelece entre um crime cometido por um funcionário público ou equiparado, no exercício. da sua actividade pública, e um crime cometido por um profissional privado no exercício da sua actividade privada? Porquê estabelecer para aquele a possibilidade de aplicação adicional de uma pena acessória de proibição temporária do exercício da função (arts. 66.° e 67.°), e para este (o profissional privado) estabelecer uma medida de segurança de interdição temporária do exercício da sua actividade (art, 100.0)? § 131. Parece ser artificial, pois que, pelo que se disse, não há razões político-criminais para se qualificar estas proibições e interdições como medidas de segurança, quando estejam em causa imputáveis. Em rigor material, estas "medidas de segurança" são verdadeiras penas acessórias. E, assim, é injustificada a possibilidade, conferida ao tribunal, de poder prorrogar as referidas interdições por um período de 3 anos (art. 100.°-2). Injustificada e perigosa, uma vez que tal prorrogação, a ser decretada, não poderá deixar de depender de um juizo quase arbitrário do tribunal, na medida em que o «fundado receio» de que possa vir a reiterar é uma fórmula (um critério?!) demasiado vaga, que tudo permite. Ora, há que não esquecer que estão em causa direitos fundamentais. § 132. Conclusão: estas medidas de segurança não privativas da liberdade (arts. 100.0 a 103.°) só são razoáveis, quando estejam em causa inimputáveis; relativamente a imputáveis, elas são desnecessárias, incoerentes, e perigosas quanto à possibilidade da sua prorrogação. Tendo em conta os pressupostos e os objectivos da sua aplicação, a sua qualificação e o seu regime deviam ser o das penas acessórias.
§ 133. Diga-se, para terminar, que, assim, cai por terra o argumento que Roxin pretende retirar da "medida de segurança" de inibição de 6-0it. Pe.ofli
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criminal-penal
Parte
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I -
Quescões FUlldamenrai:r
Túulo I -
conduzir (ou de exercer determinada actividade) para fundamentar a sua afirmação de que também as medidas de segurança em geral têm uma f1U1Çãode prevenção geral de integração e de dissuasão. Com efeito, se é evidente que, p. ex., a inibição de conduzir «tem, na maior parte dos casos, um efeito mais intimidante sobre a comunidade [dos condutores] do que apena aplicável ao delito de tráfico», isto é, do que a pena de multa, a verdade é que esta inibição de conduzir só, por uma troca de "etiquetas", é que se pode chamar medida de segurança. Ela é, em rigor; uma pena acessória que, de facto, quando acresce "li uma pena principal de multa, é mais dissuasora, quer individual quer cotectivamente, do que esta. ::1.:
§ 134 .. Se, em nosso entender, há pouca razoabilidade teórica e político-criminal nestas medidas de segurança não privativas da liberdade aplicáveis a imputáveis, também padecem de falta de razoabüídade prática. Vejamos: o art. 103.°-1 diz o seguinte: «Se, decorridos os prazos mínimos das medidas previstas nos artigos 100,° a 102.", se verificar, a requerimento do interdito, que os pressupostos da. aplicação daquelas deixaram de subsistir, o tribunal declara extintas as medidas que houver
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decretado». Isto nos obriga a rever quais são" as medidas e os seus pressupostos, pois que desaparecidos estes, devem extinguir-se aquelas. E, desde já, se diga que,selldo os pressupostos a "causa" e as medidas o "efeito", só haverá lógica na extinção destas, se puder fazer-se a constatação de que os presaupostos-causa
já não existem.
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§ 135. A verdade, porém, é que, tendo em conta a natureza e a duração das medidas e as causas da sua aplicação, causas que precisamente as medidas visaram eliminar, jamais é possível- afirmar que estas, as medidas de segurança não privativas da liberdade, eliminaram as causas-pressupostos da sua aplicação. E isto porque é evidente que não
há oualquer conexão materia/luncional postos legais da sua aplicação.
entre as medidas e os pressu-
Vejamos:
§ 136. No caso das medidas de interdição de actividades (art, 100."), o pressuposto
da sua aplicação
é o «fundado
receio de que possa vir
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o problema.
criminal-penal
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praticar outros factos da mesma espécie», isto é, o fundado receio de que o condenado venha a cometer novos crimes no exercício da respectiva actividade; e, com base neste receio, proíbe-se o condenado de exercer, durante um certo período, essa actividade. Ora, como é que é possível afirmar, depois de cumprida uma parte do tempo da interdição, que já não existe o perigo de ele repetir crimes no exercício da sua actividade profissional ou comercial, se precisamente a medida de segurança consistiu em impedi-lo de exercer essa actividade? - Não é possível e, por isto, a eventual extinção da medida, antes do seu cumprimento total, só pode fundar-se numa ficção e, portanto, não pode deixar de ser arbitrária, pois não há qualquer critério com um mínimo de objectividade que possa fundamentar tal decisão. Conclusão: não há qualquer relação lógica e funcional entre a natureza da medida. e a sua finalidade de eliminar o perigo de reiteração criminosa. E, assim, do mesmo passo que esta ausência de conexão. material-funcional retira qualquer sentido teórico e prático à extinção referida no art. 103.°, igualmente reforça a convicção e afirmação de que esta rotulada, pelo CP, medida de segurança não privativa da liberdade não é senão uma verdadeira pena acessória, e assim devia ser qualificada e tratada. § 137. Diferente, como já o referimos, é o caso da prática de ilícitos típicos praticados, no exercício de actividades, por alguém que . veio a ser considerado como inimputável. Aqui, já tem sentido a medida de interdição e a sua eventual extinção, logo' que se prove que a causa da interdição (que é a inimputabilidade) deixou de subsistir.
§ 138. No caso da cassação ou da interdição da concessão do título de condução (art. 101.°), o raciocínio é idêntico, e idêntica deve ser a conclusão da írrazoabilidade do disposto no art, 103." e da qualificação da respectiva medida como medida de segurança, em vez de pena acessória. Em resumo, basta dizer, sob a forma de pergunta: como é possível que, sendo a medida fundada no receio de reiteração criminosa no exercício da condução de veículo a motor, e consistindo a medida na proi-bição de conduzir ou de obter título, ou novo título, de condução, se possa afirmar e fundamentar a extinção da medida, antes do termo da interdição,
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Parte [ - Questões Fundamentais
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se, precisamente até à decretação da extinção condenado esteve impedido de conduzir?!. ..
da medida,
§ 140,
Repare-se, ainda, no seguinte aspecto: enquanto que os ' arts, 100.° e 101.° ainda falam em «fundado receio ... ou inaptidão ... (o que é muito vago para justificar a aplicação de uma medida de segurança, pois que esta deve ter sempre como pressuposto uma perígosidade crimi.nal), este art. 102.° nem sequer refere a exigência de que haja esse receio, apenas condicionando a aplicação das "regras de conduta" à sua adequação para «evitar a prática de outros factos ilícitos típicos da mesma espécie» ...
O problema criminal-penal
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§ 141. E, se alguém pretender contra-argumentar, dizendo que a perigosidade está demonstrada pela reincidência que o artigo refere e que
o condutor
§ 139. Olhando para o actual art, 102.°, fica-se perplexo: o que pretende este artigo? Desde logo, é legítima - face à imperfeição descritiva do artigo e tendo em conta que quer o art. 100.° quer o art. 101.° exigem, como pressuposto da aplicação das respectivas interdições, a condenação numa pena princípala pergunta: a aplicação destas "regras de' conduta" pressupõe que o infractor seja condenado como reincidente? Partindo do suposto (suposição que,em direito penal, é sempre de evitar, mas em que, quando é inevitável, a responsabilidade é do legislador que não cumpriu o mandato constitucional e político-criminal da descrição rigorosa dos pressupostos da restrição de direitos individuais) de que a aplicação destas regras de conduta pressupõe a condenação numa pena principal, permanece a mesma pergunta: urna vez que estas regras de conduta (previstas no art. 52.0 para o caso da suspensão da execução da pena de prisão .. .) visam prevenir «a prática de outros ilícitos típicos da mesma espécie», e traduzindo-se elas na proibição de frequentar lugares, acompanhar certas pessoas, etc., pois que aquela frequência ou este acompanhamento constituirão perigo de reiteração criminosa, com que fundamento (que não seja o da arbitrariedade, que não é critério ... ) pode o tribunal considerar que deixou de existir perigo na referida frequência ou acompanhamento, se, até à decisão de extinção, o condenado estava proibido de frequentar esses lugares ou de acompanhar essas pessoas, sob pena de desobediência punível como tal? .. Em minha opinião e conclusão, não tem sentido, mais uma vez, o art. 103.°, ea qualificação de tais regras de conduta como medidas de , segurança é arbitrária.
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fundamenta a aplicação destas medidas, então ter-se-á de ripostar, dizendo: se assim é, então temos, por uma lado, uma dupla valoração da circunstância reincidência (pois, é fundamento da agravação da pena e, ainda, fundamenta a aplicação de medidas que restringem o direito fundamental da liberdade de frequentar lugares ou acompanhar pessoas), e, por outro lado, temos uma medida de segurança não privativa (mas restritiva) da liberdade fundamentada na culpa (considerada mais grave) do reincidente... '
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Se uma tal contra-argumentação fosse assumida pelo direito penal positivo (e não se considerasse estes desvios à dogmátíca e à politica criminal das medidas de segw'ança, que, efectivamente, o nosso CP, nestes arts. 100.° a 103.", contém, como .enomalias resultantes de uma imprudência censurável do legislador), teríamos uma subversão dos . principios jurídicos das medidas de segurança e respectiva dogmática. Subversão, diga-se, teórica e politico-criminalmente, rejeitável, e, praticamente, desnecessária e perturbadora da própria actividade judicialdecisória.
§ 142. Conclusão final: relativamente a imputáveis, estas medidas de segurança não privativas da liberdade deveriam ser consideradas como penas acessórias e ter o correspondente regime.
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§ 143. A medida de segurança.de·-intemamento· constitui, obviamente, uma forte restrição do direito fundamental do inimputável à liberdade, direito que merece a mesma protecção constitucional e.juridico-penal que é reconhecida ao imputável. Compreende-se, pois, que tal restrição esteja sujeita também - e na mesma medida que a restrição da liberdade dos imputáveis - aos princípios da legalidade, da proporcionalidade (quer na dimensão da proibição de excesso, quer na de indispensabilidade), da igualdade (de tratamento em relação ao imputável) e da juriSdicionalidade, quer na
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Parte I - Questões Fundcuneruais
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aplicação quer na execução da medida de segurança. Ou seja: os mesmos princípios constitucionais e jurídico-criminais, que regem a aplicação e a execução de uma pena, também valem para as medidas de segurança aplicáveis a inimputáveis, . § 144. Daqui resulta que não tem justificação o disposto no art. 30.°-2 da Constituição e no art. 92"-3 do Código Penal, ao expressamente permitirem medidas de segurança privativas da liberdade perpétuas, através de prorrogações por períodos sucessivos de 2 anos. É que o facto de as prorrogações terem de ser por decisão judicial não evita a manifesta violação do princípio da igualdade, princípio não só consagrado constitucionalmente (CRP, art, 13.°) mas, já antes, princípio inerente ao Estado-de-Direito, baseado na dignidade da pessoa humana, dignidade que é comum tanto ao imputável como ao inimputável.
§ 145.
Objectar-se-á, porventura, perguntando: mas, quando terminado o período "normal" da medida de segurança, se se mantiver a perigosidade criminal, hão-de a sociedade e os bens jurídicos ficar expostos à perigosidade criminal do inimputável? A resposta é a de que - apesar da relatividade ou falibilidade do juizo de prognose psiquiátrica sobre a probabilidade de o inimputável vir a reincidir em ilícitos criminais graves, e apesar de hoje haver variados fármacos com potencialidades neutralizadoras dessa perigosidade - pode haver necessidade, em nome da defesa social, de manter o internamente do inimputável; só que, já não através da prorrogação sucessiva da medida de segurança, que é uma consequência jurídica da prática de um ilícito criminal, mas sim através de um lnternamento compulsivo, com base na Lei de Saúde Mental (Lei n." 36/98, de 24 de Julho). Portanto, urna medida não criminal, mas administrativa ou prédelitual, embora, evidentemente, por decisão judicial, suportada pela avaliação clínica de, pelo menos, dois psiquiatras, nos termos do art. 16." ss. da réferida Lei de Saúde 'Mental,
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'§ 146. São dois os pressupostos
da aplicação da medida de segurança: a prática, pelo inirnputável, de um facto ilícito típico e a perigosidade criminal do infractor inirnputável (art. 91.°-1).
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O problema criminal-penal
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§ 147. Relativamente ao pressuposto «facto ilícito típ íco» , é de registar que esta designação. foi introduzida pela Revisão Penal de 1995 (Dec.-Lei n." 48/95, de 15 de Março), substituindo a designação constante da redacção primitiva do CP de 1982, que era: «facto descrito num tipo legal de crime». Esta substituição teve o objectivo de tomar claro que não basta que o facto praticado pelo inimputável seja apenas formalmente típico, exigindo-se, ainda, que seja ilícito. Donde que, agora, é indiscutível que, se O facto praticado for típico mas não ilícito por estar coberto por uma causa de justificação, não poderá ser aplicada qualquer medida de segurança. Diga-se, aliás, que, já na vigência do texto primitivo de 1982, o entendimento correcto não podia deixar de ser aquele que· a redacção. actual expressamente impõe. Com efeito, a opinião, que se bastava, face à redacção de 1982, com a mera tipicidade formal da conduta, violava o princípio da igualdade, ao considerar irrelevantes para o inimputável (no sentido de não impedirem a aplicação de medidas de segurança) circunstâncias que, para o imputável, impediam a aplicação de qualquer pena, por excluírem a ilicitude do facto descrito num tipo legal de crime. Num exemplo: que justificação poderia haver para negar ao inimputável o direito de legítima defesa?! § 148. Questão diferente é a de saber se, também em relação ao inimputável, se aplicam as causas de desculpação, corno, p. ex., o excesso de legítima defesa por perturbação ou medo não censurável. Não é este o local próprio para tentar resolver esta questão. Mas sempre se adiante que uma posição, que defenda a ínaplicabilidade das causas de desculpação ao inimputável, com base no argumento de que quem não. pode ser culpado também não pode ser desculpado, não será necessariamente procedente ou inquestionável. Bastará pensar, contra o eventual tom absoluto de uma tal opinião, que um inimputável não é necessariamente uma pessoa irascível ou vingativa E, assim, p. ex., pode o inimputável ter-se excedido na sua acção de defesa contra o agressor, em consequência de um medo ou perturbação tão compreensível e, portanto, tão não censurável como não censurável seria se o agredido fosse um imputável.
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§ 149. Mas, para a aplicação de uma medida de segurança, exigese, além da prática de um facto ilícito típico, a perigosidade criminal
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Questões Fundamentais .
futura. Isto é, exige-se que, no momento da aplicação judicial da medida de segurança, pennaneça o receio sério, e fundamentado num' prognóstico clínico-psiquiàtrico, de que o inimputável «venha a cometer outros factos da mesma espécie» (art. 91.°-1, parte final). Portanto, a lei, ao falar em «factos da mesma espécie», está a exigir uma prognose (uma probabilidade) favorável a uma "reincidência" específica. § 150. Passemos
à questão dos limites da medida de segurança pri-
vativa da liberdade. Em regra, não há qualquer limite mínimo. Pois: sendo pressuposto da aplicação e da duração da medida de segurança a perigosidade criminal futura, desaparecida esta, extinta deve ser a medida de segurança (art. 92. -l). Esta é a consequência lógica e político-criminal da natureza e das finalidades das medidas de segurança aplicáveis a inimputáveis (cr § 119). Q
; § 151. Exceptuam-se desta regra os casos em que «o facto praticado pelo inimputável corresponder a crime contra as pessoas ou a crime de perigo comum puníveis com pena de prisão superior [no limite máximo] a 5. anos». Nestes casos, em princípio, a medida de segurança (o internamento) terá um limite mínimo de 3 anos (art. 91.°-2), excepto se não houver a necessidade preventivo-geral de pacificação social, nem a necessidade preventivo especial de neutralização da perigosidade criminal do infractor (ali. 91.'-2, parte final) (lO). Como já referi, embora seja aceitável que, nos casos de ilícitos criminais graves, e em nome da necessidade de pacificação social, haja um tempo mínimo de internamento, parece, contudo, manifestamente excessivo este limite mínimo, tendo em conta, além do mais (isto é, além de, clínico-psiquiatricamente, não haver urna prognose de "reincidência"), que podem estar em causa ilícitos cuja pena máxima (limite máximo) seja de 6 aDOS de prisão. § 152. Quanto ao limite máximo da medida de segurança, esta «não pode exceder o limite máximo da pena correspondente crime cometido pelo ínímputével» (art. 92.°-2).
(10)
Cf. §§ 121 a 124.
ao tipo de
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Deve observar-se que, sendo a medida de segurança uma consequência e uma reacção criminal àperigosidade documentada no facto ilí- . cito típico praticado pelo inimputável (portanto, olha ao passado e ao presente, embora seja aplicada em vista do futuro), os princípios constítucíonais da proporcionalidade (no seu vector de proibição de excesso) e da igualdade (de tratamento do inimputável e do imputável) deveriam ter levado o legislador a estabelecer. como limite máximo o tempo de internamento correspondente à pena que concretamente seria aplicada, se estivesse em causa um imputável.
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§ 153. Por maioria de razão, é crtticável, como já o anotámos (§ 144), que o legislador ordinário (art. 92.°_3), aliás na sequência da disposição constitucional (art. 30.'-2), tenha estabelecido a possibilidade de a medida de segurança privativa da liberdade do inirnputável ser perpétua, quando ao facto ilícito praticado corresponder uma pena de prisão de limite máximo superiora 8 anos. § 154. Embora o Código Penal não refira a obrigatoriedade de as decisões judiciais (do Tribunal de Execução das Penas) sobre as prorrogações serem precedidas de avaliações clíníco-psíquíâtricas sobre a manutenção, ou não, da forte probabilidade de o inimputável vir a "reincidir", tal obrigatoriedade é imposta pelo CPP, art. 504.° § 155. Merecem uma breve referência crítica os arts. 28.o~1 e 29.0-1 da Lei de Saúde Mental (Lei' n." 36/98), ao estabelecerem que, na «pendência de processo penal em que seja arguido portador de anomalia psíquica», «o tribunal que não aplicar a medida de segurança prevista no artigo 91.0 do Código Penal pode decidir o internamento compulsivo do ínímputâvel». Na verdade, se o tribunal de julgamento, em processo penal, do inirnputável, que cometeu um ilícito criminal, se decide pela não aplicação da medida de- segurança de intemamento, tal decisão só pode ter por fundamento a consideração-avaliação (feita pelo tribunal) de que, apesar do facto ilícito típico praticado (que não pode ter sido muito grave, pois, se o for, o internamento é, em regra, obrigatório, por força do art, 91.°-2) e apesar da anomalia psíquica, não se verifica a perigosidade criminal futura, isto é, «o fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie».
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Questões Fundamentais
Por outro lado, o ali. 12." da Lei de Saúde Mental estabelece, como pressuposto da medida administrativa pré-delitual de internamento compulsivo, que a anomalia psíquica grave constitua «uma situação de perigo para bens jurídicos, ele relevante valor, próprios ou alheios, ele natureza pessoal ou patrirnonial». Orá, sendo isto assim, pois que é a própria lei (CP, art. 91.°-1; Lei de Saúde Mental, art. 12.°-1-1." parte) que o estabelece, que sentido tem a possibilidade atribuída ao tribunal de, em processo penal, aplicar a medida administrativa pré-delitual do internamente compulsivo? .. Mais: com que legitimidade constitucional e politico-criminal pode ser decretada a privação da liberdade de um inimputável (através do internamente compulsivo) que não manifesta um perigo sério para os bens jurídicos? - A resposta é: nenhuma, devendo acrescentar-se que tal possibilidade viola o princípio constitucional da proporcionalidade, quer na exigência de proporcionalidade em sentido estrito quer na sua exigência de indispensabilidade (CRI', art, 18.°-2).
§ 156. Embora a prática do facto ilícito típico seja um pressuposto, no sentido de conditio sine qua 110/1, da aplicação da medida de segurança privativa da liberdade do inimputável, é a sua perigosidade criminalfutura que constitui o verdadeiro fundamento desta medida de segurança. Mas esta perigosidade é um estado que pode, nomeadamente através do tratamento, desaparecer ou diminuir. Daqui resultam duas exigências: A primeira é a da revisão, pelo tribunal de execução' das penas e medidas de segurança, do estado de perigosidade do internado. Neste sentido, o CP, art. 93.°-2, estabelece a obrigatoriedade da revisão oficiosa (I. é, independentemente de ser, ou não, requerida) de 2 em 2 anos, Ora, em minha opinião, trata-se de um prazo excessivo (embora o texto primitivo de 1982 estabelecesse um prazo ainda maior para o primeiro período de internamente - 3 anos). Entendo que o prazo da revisão obrigatória devia ser de 1 ano. E esta redução do prazo para 1 ano', creio poder considerar-se adequada, por duas razões: em primeiro 'lugar, em nome do princípio da indispensabilidade (ou restrição máxima possível) da privação da liberdade do inimputável; em segundo lugar, pela necessidade pragmática de evitar a inércia dos serviços médicos psicológicos e psiquiátricos penitenciários, e da administração penitenciária.
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A segunda exigência, também derivada do principio da proporcionalidade e da índispensabilidade, é a da substituição (nos casos em que ainda permaneça uma certa perigosidade) da privação da liberdade pela sua mera restrição, ou seja, a substituição do internamento pelo regime aberto ou tratamento ambulatório, logo que uma prognose clínico-psiquiátrica seja compatível com tal substituição (art. 94.0).
7.
A semi-imputabilidade do Código Penal?
ou imputabilidade
diminuída:
uma lacuna
§ 157. O art, 20."-2 estabelece que «pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída». E o n." 3 do mesmo art. 20.0 acrescenta que um dos indícios dessa diminuição da imputabilidade, por causa de anomalia psíquica, pode ser «a comprovada incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas», Por outro lado, constata-se que, no título III do Código Penal, dedicado às «consequências jurídicas do facto», não se encontra qualquer disposição sobre o tratamento ou reacção criminal à infracção cometida por um semi-imputável. Daqui resulta a seguinte questão-pergunta: como deverá ser resolvido, em termos de _consequêncías jurídicas, O crime praticado pelo semi-imputával? - A resposta, em termos teóricos e práticos, tem, necessariamente, de se reconduzir à uma destas quatro hipóteses: só lhe deverá ser aplicada uma medida de segurança; deverá ser aplicada uma pena e uma medida de segurança; só deverá ser aplicada uma pena especialmente atenuada; ou, pura e simplesmente, absolvê-lo. § 158. Consideremos, em primeiro lugar, a única hipótese que o CP, art. 20.°-2, prevê: a declaração do semi-imputável como ínimputáveI. Trata-se, obviamente, de uma ficção jurídico-penal, -que pode, numa perspectiva político-criminal, até ser razoável, justificar-se.
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Questões Fundamentais
Uma tal ficção-declaração de inimputabilidade tem, desde logo, como consequência necessária que ao arguido só pode ser aplicada, no máximo, uma medida de segurança. Passar-se-à, neste caso da efectiva declaração judicial de inimputabilidade de quem é realmente imputável, embora diminuído, algo de análogo ao que, por via geral e abstracta, o legislador estabelece relativamente aos menores de 16 anos (art. 19.°); pois que, embora o legislador, no caso destes menores, diga que «são inimputáveis» (em vez de dizer que «são declarados inimputáveis»), é evidente que, em relação a muitos menores de 16 anos mas, por exemplo, maiores de 14, não há dúvidas que tal inimputabilidade não passa de uma ficção, que pode ser aceite por razões poHtico-criminais relacionadas com os eventuais efeitos negativos de uma condenação penal e da respectiva execução da pena. Mas a possibilidade de aplicação somente de uma medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade não deixa de colocar problemas que têm que ser resolvidos e fundamentados político-criminalmente. E o principal está na determineção da duração máxima da medida de segurança, que não pode ultrapassar o tempo da pena concreta que seria aplicada ao infractor, se ele fosse "plenamente" imputável. Admitir que o limite máximo da medida de segurança pudesse ultrapassar a medida dá pena concreta, traduzir-se-ia numa "convolação" (da imputabilidade diminuída em inimputabilidade) em desfavor do agente, e constituiria um excesso sancionatório violador do princípio constitucional da proporcionalidade. § 159. Outra hipótese de resolução seria a da aplicação de uma pena e de uma medida de segurança. Uma pena, que teria de ser sensivelmente atenuada, em função da diminuição sensível da imputabilidade e, consequentemente, da redução substancial da culpa; mais uma medida de segurança, em função da perigosidade baseada na anomalia psíquica cujos efeitos não domina. Só que, das duas uma:
Ou se verificam os pressupostos objectivos do art. 83."-1 ou do art. 84.°-1, e, então, estamos diante de um delinquente por tendência, cabendo ao tribunal aplicar a respectiva "pena" relatívamente índeter-
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Tuulo I -
O problema criminal-penal
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minada, que, como já o demonstrámos (§ 117), é um misto ou soma de pena mais medida de segurança. Na verdade, se se verificarem os pressupostos objectivos (os dois ou mais crimes dolosos anteriormente praticados ... ), também o pressuposto subjectivo se verifica, pois que a «acentuada inclinação para o crime» do art. 83.°-1 (inclinação que até pode ser congénita) é análoga à «anomalia psíquica grave, cujos efeitos [i. é, cujas tendências para o crime o semi-imputável] não domina» do art. 20.°-2; Ou não se verificam os pressupostos objectivos da delinquência por tendência, e, então, não é possível aplicar uma pena e uma medida de segurança. E esta impossibilidade jurídica resulta do facto de o Código Penal não prever, fora do caso dos delinquentes por tendência e dos delinquentes alcoólicos ou equiparados, qualquer medida de segurança privativa da liberdade a acrescer à pena em função da culpa. Logo, neste caso, não podia ser aplicada qualquer medida de segurança, sob pena de violação do princípio constitucional e jurídico-penal da legalidade (CRP, art. 29.°-1; CP, art. 1.°-2). § 160. A terceira hipótese de resolução é a da aplicação exclusiva de uma pena (cf art. 104.°). E, neste caso, por imposição do princípio da culpa como limite máximo da pena, esta tem de ser substancial ou especialmente atenuada. Mas parece relativamente claro que esta solução, nomeadamente quando estiver em causa um semi-imputável reincidente ou habitual, não satisfaz as necessidades político-criminais de prevenção do crime. § 161. Uma quarta hipótese de solução é a de o tribunal declarar inimputável o imputável diminuído, ·epura e simplesmente absolvê-lo, não lhe aplícando, portanto, qualquer pena ou medida de segurança. Esta solução estará indicada para o caso do semi-imputável ter praticado um ilícito criminal não grave e, apesar da sua anomalia psíquica, não haver um sério e fundado receio de reiteração criminosa. E é, em meu entender, esta a solução mais adequada, quando, além da verificação destes· dois pressupostos (ilícito criminal não grave e inexistência de uma forte probabilidade de reincidência), estiver em causa um serniimputável primário ou ocasional.
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Parte I -
Titulo J -
Questões Fundamentais
O sistema do vicariato na execução da pena e da medida de segurança privativas da liberdade
§ 162. Vimos (§ 111 S5.) que o sistema dualista (também chamado de "dupla via") é, político-criminalmente, mais adequado a enfrentar. o problema dos imputáveis perigosos ou por tendência do que o sistema monista (também designado por sistema de "via única" - só penas). Também referimos e procurámos demonstrar que as penas e as medidas de segurança têm o mesmo fim (verdadeiro fim ou "fim-último") de protecção dos bens jurídico-criminais (§§ 94 e 118). Para conseguir realizar este fim, o direito penal atribui às penas uma dupla função: de prevenção especial positiva, ou seja de ressocialização, 'e negativa, isto é, de dissuasão individual do infractor; e de prevenção geral positiva, quer dizer de integração axiológica e de confiança comunitária na vigência efectiva das normas penais, e negativa, isto é, de dissuasão ou intimidação dos cidadãos em geral (§ 96 S5.) E O mesmo direito penal, para conseguir o referido fim de protecção dos bens jurídicos, também se serve de medidas de segurança que, no caso dos imputáveis perigosos, desempenham a função primária de prevenção especial de ressocialização e de neutralização da sua perigosidade, e a função, embora secundária, de prevenção geral positiva de pacificação social e de confiança da comunidade na tutela efectiva dos bens jurídico-penais (§§ 119 e 125). .
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§ 164. Esta convergência prática, isto é, na fase da execução, convergência a que a doutrina chama monísmo prático, é, em prímeirolugar, o resultado da substituição da concepção ético-retributiva pela concepção preventivo-ética da pena (§ 89 ss.). Portanto, este monismo prático não é algo que tenha sido "imposto do exterior"; isto (:
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é, pela necessidade pragmática de evitar uma descontinuidade no processo de execução da pena e da medida de segurança, mas é um corolário natural da mutação substancial da concepção ético-rétributiva pela concepção preventivo-ética da pena. Pois que, se, naquela concepção, esta descontinuidade na execução era profunda e inevitável, já, na nova concepção da pena, tal descontínuidade não existe ou é substancialmente atenuada.
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§ 163. Assim, vemos que tanto à pena como à medida de segurança se atribui, hoje, uma função de ressocialização ou recuperação social do delinquente. Donde resulta que, embora 'pena e medida de segurança se diferenciem claramente na sua fundamentação e na decisão judicial dá sua aplicação, elas aproximam-se na sua execução, pois, em ambos os casos, o seu efectivo cumprimento deve orientar-se para a ressocialização do intemado.
O problema criminal-p enal
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§ 165. O principal problema que, agora, se coloca é o de saber qual das duas reacções criminais deve ser cumprida em primeiro lugar: a pena ou a medida de segurança? A resposta deve ir claramente no sentido da medida de segurança. E assim deve ser porque, embora tanto a execução da pena como da medida de segurança deva ser orientada para a recuperação social do delinquente, todavia, na modelação da execução da medida de segurança, sempre se faz sentir, de uma forma acrescida, esta preocupação prática com a correcção .das tendências criminais do imputável perigoso ou do serni-imputáve], Pois não é em vão que às medidas de segurança também se chama "medidas de segurança e tratamento".
§ 166. Este problema; no direito positivo português actual, só se coloca no caso do concurso de crimes. E são duas as hipóteses possíveis: o delinquente comete um dos crimes num momento em que se encontrava num estado de inimputabilidade, e pratica o outro crime num momento em que se encontrava num estado de imputabilidade; ou trata-se de um delinquente que é imputável em relação a um dos crimes, sendo, porém, inimputável em relação ao outro crime (inimputabilidads relativa). Ou seja: quando o mesmo arguido cometeu dois (ou mais) ilícitos criminais, mas em que a um deles -só pode ser aplicada uma medida de segurança, por força da inimputabilidade, e a outro dos ilícitos criminais cometidos deve ser aplicada uma pena, pelo facto de, em relação a este ilícito, se afirmar a imputabilidade do infractor. É a esta hipótese (de concurso de crimes) que se refere e aplica o disposto no art. 99.0 § 167. As duas outras possíveis hipóteses, em que também se colocaria este problema do sistema do vicariato, seriam os casos dos
Parte f -
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Q"estões Fundamentais
delinquentes senil-imputáveis e dos delinquentes por tendência ou alcoólicos e equiparados. Todavia,' em relação a estas duas categorias de delinquentes, a questão, face ao direito constituído, não se coloca. Não se põe, relativamente aos semi-imputáveis ou imputáveis diminuídos, porque, como vimos (§ 159), a estes não é possível aplicar uma pena mais uma medida de segurança. Também, em relação aos delinquentes por tendência ou alcoólicos e equiparados, a questão não se coloca, uma vez que o legislador, ao unificar ou tratar unitariamente a pena e a medida de segurança, através da figura da "pena" relativamente indeterminada (§ 117), estabelece também um regime específico e unitário para a sua execução;regíme previsto no CP, art. 89." S., e no CPP, art. 509." § 168. Assim, o regime do vicariato estabelecido 'no art. 99.° (e no Cl'P, art. 507.°) só se aplica, segundo o direito vigente, à hipótese de concurso de crimes (§ 166). Segundo o referido art. 99.°, primeiramente é executada a medida de segurança. E a duração desta é descontada na pena de prisão (art, 99.°-1). É esta substituição-desconto, no tempo da pena de prisão, do tempo efectivamente cumprido da medida de segurança que leva a queo sistema do monismo prático também seja designado por sistema
Tttulo I - O problema criminal-penal
de segurança deve cessar imediatamente. Pois, desaparecida a "causa", extinto deve ficar o "efeito". Terceira: uma vez cessada a medida de segurança, resta, para o recluso, a alternativaseguinte: ou é posto em liberdade condicional, ou prestará trabalho a favor da comunidade, ou terá de cumprir parte da pena em que foi condenado. § 170. Cessada a medida de segurança, por ter cessado a correspondente perigosidade criminal, o agente é colocado em liberdade condícíonal, se o tempo da medida de segurança cumprido equivaler a metade da pena, e a libertação condicional não for incompatível com a paz social (art. 99."-2). § 171. N O caso de ter cessado a medida de segurança, por ter cessado a perigosidade criminal, mas o recluso ainda não poder ser posto em liberdade condicional, seja porque o internamente ainda não atingiu a metade da pena (nesta metade incluindo o "trabalho a favor da comunidade"), seja porque a tal libertação condicional se opõe a paz social, então terá de cumprir a pena de prisão até ao máximo de dois terços desta, embora, também, nesta hipótese, possa um ano ser cumprido em liberdade, com prestação de trabalho a favor da comunidade (art. 99."-4).
vlcar'lal. § 169. Mas existe uma outra questão que é a seguinte: se, ao longo ou no termo do cumprimento da medida de segurança, o recluso der .mostras, pela sua conduta, de já poder, razoavelmente, ser considerado corrigido, isto é, socialmente recuperado, deverá iniciar o cumprimento da pena? A resposta passa pelas seguintes considerações: Primeira: é evidente que, se foi cumprido tacto o tempo da medida de segurança, esta extingue-se e, portanto, cessa. Segunda: se, antes de terminado o período de duração da medida de segurança, a perigosidade criminal do internado tiver, segundo o prognóstico clínico-psiquiátrico, desaparecido, a medida
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SECÇÃO V
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DIREITO
PENITENCIÁRIO
direito penal e o direito penitenciário
§ 172. Acabámos de ver (Secções III e IV) que a política criminal, que orienta e estrutura o nosso direito penal, é uma política criminal humanista. Humanista, 'no sentido e na medida em que atribui ao direito penal a função positiva de protecção dos valores fundamentais' da pessoa humana e das condições sociais indispensáveis à realização destes valores (cf Secção Il, § 66 ss.); burnanista, pois que assume a 7·Oir. tcnl!!
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Parte I -
QII€sCéies Fundamentais
pena exclusivamente como. um mal que só se legitima, quando indispensável para prevenir a prática dos crimes, i. é, para evitar Os comportamentos humanos lesivos daqueles valores ou bens jurídicos - a pena como ultima ratio da politica social e da política jurídica; humanista, ainda, na medida em .que a pena mais grave, que, entre nós, é a da privação da liberdade, só deve ser aplicada, quando as penas não detentivas (p. ex., multa, trabalho a favor da comunidade) forem insuficientes ou inadequadas à efectivação da função preventiva, geral e especial, da -,pena; humanista, finalmente, quando assinala-à pena, nomeadamente de prisão, e à medida de segurança privativa da liberdade, o objectivo primordial de recuperação social do delinquente. § 173. Toda esta positividade do discurso jurídico-penal, todos estes. princípios político-criminais estruturantes do direito penal1egislado são claramente de. louvar. Mas há que reconhecer que tudo isto não passará de uma flagrante hipocrisia prática, se o sistema penitenciário continuar ignorado; e imune às implicações práticas decorrentes destas exigências .pclitico-criminais. E, infelizmente, a realidade dos estabelecimentos penitenciários tem demonstrado esta hipocrisia, esta contradição entre a proclamação da finalidade ressocializadora da pena (e da medida de segurança privativa da liberdade) e a realidade dessocializadora e criminógena dos estabelecimentos prisionais, ao ponto de estes serem considerados, em muitos casos e com fundamento, verdadeiras "escolas do crime". § 174. O direito penltenciário, enquanto modo de execução da pena de prisão e da medida de segurança privativa da liberdade, não pode ser visto como um apêndice secundário e estranho ao direito penal. Bem pelo contrário, é nele que se joga e se realiza, ou 'não, o sucesso ou o fracasso da política criminal, especialmente quando esta acentua a função ressocializadora da pena (11).
. (11) Sobre estes problemas e neste sentido, ver PAULO Direito Prisional Português e Europeu, Almedina, 2006.
PINTO
DE ALBUQUERQUE,
Titulo 1 - O problema cnnunal-pena!
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Breve-referência à história do direito penitenciário: da sua concepção meramente administrativa à actual. autonomia e integração normatíva no âmbito da política criminal
§ 175 .. Até meados do séc. XIX, ou seja, enquanto o infractor foi v:isto como' um inimigo da sociedade e à pena foi atribuída uma finalidade de retribuição-expiação ou de intimidação, o recluso não passou' de um objecto da execução punitiva, não lhe sendo legalmente reconhecida.a titularidade dos direitos fundamentais. Encontrando-se num como que estado de sujeição, visto como um banido da sociedade, pelo menos durante o tempo da prisão, a .administração penitenciária podia decidir discricionariarnente, ou mesmo arbitrariamente, sobre o modo ou regime da execução da pena. § 176.
A partir da segunda
metade do séc. XIX, a Escola Corda corrigibiíidade do delinquente e, coerentemente, ao atribuir à pena de prisão um sentido de' recuperação social, veio salientar a necessidade de a execução da pena ser modelada-em ordem à preparação do recluso para a vida em sociedade (cf. § 445.).
reccionalista, ao afirmar o princípio
Este pensamento implicava, e progressivamente implicou, a estruturação do cumprimento da pena de prisão em ordem à criação, no recluso, de um sentido de responsabilidade, o que implicava ver o preso não apenas como um objecto de obrigações mas também como. titular de direitos humanos fundamentais'.
§ 177. Relativamente a Portugal, pode dizer-se que esta preocupação com uma regulamentação da execução da pena de prisão, que fosse' adequada à correcção e à reinserção- social do delinquente, manteve-se uma constante, desde meados do séc. XIX até à actualidade (cf. § 45 s.). ..Em 1 de Agosto de 1979, foi publicado o Dec.-Lei n," 265/79, cujo projecto foi da autoria de Eduardo Correia, e que se caracterizou pela consagração expressa dos prmcíptos fundamentais penitenciários. O primeiro princípio é o de que o recluso (seja imputável ou inimputável) mantém a titularidade e o exercício de todos' os seus direitos fundamentais, só sendo legítimas as. restrições inerentes à própria
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Parte I - Q,"eSlões
Fundamentais
condição de preso ou internado, e aquelas que sejam indispensáveis à ordem interna penitenciária e à necessidade de evitar a fuga. Um segundo princípio é o de que a execução da prisão deve ser orientada para a socialização do recluso. O terceiro pri.ncípio é o da jurisdicionalização da execução da prisão e da medida de segurança de internamento. Esta função cabe aos tribunais de execução, que constituem o garante dos direitos dos reclusos.
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Título J -
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O sentido da evolução do direito penitenciário português actual
§ 178. Está, actualmente, em curso um processo de revisão do sistema de execução das penas de prisão e das outras medidas privativas da liberdade (medidas de segurança, prisão preventiva, etc.). O projecto de proposta de lei, elaborado por uma comissão presidida por Anabela Rodrigues, propunha uma reformulação do regime penitenciário actual, que consta do Dec-Lei n." 265/79, As linhas de força deste projecto eram as seguintes; reforço do estatuto jurídico do recluso, concretizando, pormenorizadamente, os seus direitos fundamentais, quer individuais (liberdade de consciência, liberdade religiosa, recusa do tratamento coercivo, etc.), quer sociais (direito à assistência médica, direito às condições de educação intelectual e de aprendizagem profissional, etc.); reafirmação do objectivo da socialização, considerando, realisticamente, que o primeiro objectivo é evitar a dessocialização, que é algo de conatural a uma pena que separa o condenado da sociedade, embora se devam criar as condições prisionais que possibilitem a recuperação social do delinquente (neste sentido, propunha-se a criação de um "conselho de socialização"); clarificação das competências do tribunal de execução e da direcção do estabelecimento prísíonal; reformulação fisica dos estabelecimentos prisionais, em ordem a uma necessária separação das diferentes categorias de reclusos (comuns, jovens adultos, prena ventivos, reclusos com perturbações psíquicas, etc.j.abertura, medida do possível, da prisão à sociedade e da sociedade à prisão, a fim de se eliminar a imagem e o estigma social de que o estabelecimento prisional é um mundo de banidos,
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O problema criminol-oenal
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§ 179. É evidente que a concretização desta concepção político-criminal, norteadora da execução das penas de prisão e das medidas de segurança privativas da liberdade pelo objectivo da socialização do recluso, implica, a curto prazo, custos económicas elevados, na criação de novos edifícios prisionais e na adaptação dos já existentes, bem corria em pessoal especializado para as novas funções e actividades a realizar 110 âmbito prisional. Mas a verdade é que tais custos serão compensados, a médio ea longo prazo, por uma possível (e que nunca pode deixar de ser tentada) diminuição das taxas de reincidência, Além desta razão político-criminal, o Estado e a Sociedade não podem fugir do seguinte dilema, sob pena de hipocrisia institucionalizada: ou assumem, ou não assumem, a função socializadora da execução da pena de prisão; e, se a assumem, como é o caso de Portugal e de muitos outros países, então não podem adiar as condições materiais e pessoais que, em primeiro lugar, evitem a dessocializaçâo e que, em segundo lugar, possibilitem uma efectiva recuperação social do delinquente dessocializado; ou não assumem, e então, para além de se negárem como Estado de Direito Social, devem deixar de, hipocritamente, proclamar o objectivo da ressocialização, aceitando, então, como normal a sobrelotação das prisões, a promiscuidade dos reclusos, a pena de privação da liberdade como expiação cujo castigo é potenciado pelas condições desumanas em que a pena é cumprida, mas, neste caso, não se podendo lamentar das nefastas consequêncías sociais que urna tal realidade penitenciária, tão dessocializadora e criminógena, necessariamente provocará.
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1 4.° CAPíTULO A DISTINÇÃO ENTRE O DIREITO E OUTROS RAMOS DO DIREITO
PENAL AFINS
SECÇÃO 1 A NATUREZA PÚBLICA DO DIREITO PENAL E A ·NATUREZA. PRIVADA DO DIREITO CrVIL
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A natureza pública e autónoma do direito penal
§ 180. A tese de que o direito penal constitui um ramo do. direito públicoé, hoje, aceite por quase toda a ciência jurídica, nomeadamente pela doutrina penalista. Efectivamente, o direito criminal-penal é direito público por excelência. Pois, seja qual for o critério que se eleja para fixar a fronteira entre o direito público e o direito privado (critérios da natureza dos interesses, da força imperativa das normas ou da posição dos sujeitos na relação processual), sempre o direito penal ter-se-à de incluir no direito público. § 181. Como já referimos (§ 67), o direito penal tem por função proteger os valores ou bens jurídicos assumidos pela consciência éticosocial como indispensáveis à realização pessoal e à convivência comunitária, possibilitadora daquela realização pessoal-individual. Por outras palavras, cabe ao direito penal defender e promover a estrutura axiológica fundamental da interacção social, condição necessária (e mesmo constitutiva) da sua existência cultural. ;Deste modo, a violação desse núcleo fundamental de valores protegido pelo direito penal constitui uma ofensa a toda a comunidade
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social, e não apenas em relação à pessoa em que se tenha concretizado a lesão do bem juridico. Por exemplo, no crime de furto ou no crime de violação, os bens jurídicos lesados, e cuja tutela o direito penal assume, não estão no valor patrimonial da -coisa furtada e na concreta e individual autonomia sexual da pessoa violada, mas sim no interesse de toda a comunidade social no respeito da propriedade alheia e da autodeterminação sexual de todos e cada u!D dos membros da sociedade. § 182. Cabendo 'ao Estado, enquanto representante da sociedade politicamente organizada, a tutela dos valores comunitários, ele torna-se, face a qualquer crime, o titular único do ius puniendi. Na relação punitiva gerada entre o Estado e o infractor criminal, .aquele aparece sempre. dotado da .soberania, É de recordar que, no decurso da história política dos povos, sempre o "direito de punir" as infracções consideradas corno- ofensas a toda a colectividade foi considerado como exclusivo e expressão máxima da soberania. Este "direito de punir" não se toma nos termos civilísticos ~de um direito subjectivo; a que corresponderia um dever jurídico do Criminoso, mas sim como uma função que vincula o Estado à efectivação da justiça criminal. E é assim que, mesmo contra a vontade expressa do particular' ofendido, o Ministério Público não pode, em regra, deixar de exercer a acção penal (CPP, art. 48."). E, mesmo quando a promoção da acção está condicionada (em razão da menor gravidade do crime ou de razoáveis interesses pessoais da vitima) à prévia apresentação de queixa (CPi', art. 49.°) ou à acusação particular (CPP, art. 50.°), ainda, nestes casos, éao Ministério Público que cabe a titularidade da acção penal. § 18J. Da irrecusável autonomia dos valores protegidos pelo direito penal deriva a autonomia deste ramo do direito. De facto, a valoração jurídico-criminal expressa nas normas penais tem por objecto aquelas condutas (activas ou omissivas) que, segundo a consciência ético-jurídica da comunidade social, lesam ou põem em perigo os bens jurídicos tidos como fundamentais à convivência social e à pessoa humana (cf. § 66 ss.).
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Parte 1 - Questões Fundamentais
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A conclusão é a de que a valoração jurídico-criminal é autónoma dos juizos de valor formulados nas normas jurídicas pertencentes a outros ramos do direito. A ilicitude criminal não se confunde com a ilicitude civil, administrativa, etc. § 184: De refutar são, portanto, aquelas concepções que imputavam ao direito penal uma natureza ou função meramente sancionatória, como, p. ex., Binding (Die Normen und ihre Übertretung). Movendo-se nos quadros do positivismo voluntarista, este autor reduzia a norma jurídica penal a um mero imperativo ou manifestação da vontade do legislador e a essência do Direito a um dever de obediência dos destinatários das normas. Ao direito penal não cabia outra função que não a de estabelecer as sanções para a desobediência à norma ou comando jurldico. Isto é, as normas penais' continham apenas o momento ou elemento sancionatório; seriam exclusivamente normas de determinação, em vez de normas de valoração e de determinação. § 185. Já outros autores, como Grispigni (Ull caractere sanzionatorio del diritto penale", in Rivista di diritto e procedura penaie, 1920, p. 225 35.), embora considerassem que tanto o momento preceptivo (proibição ou imposição) como o momento sancionatório faziam, estruturalmente, parte da norma penal, negavam, todavia, qualquer autonomia à valoração jurídico-penal, isto é, à ilicitude criminal, afirmando que O direito penal se traduz e se resume a um mero reforço da tutela conferida pelos outros ramos do direito. Assim, o direito penal teria apenas natureza secundária ou complementar, funcionando como uma "superprotecção" dos bens jurídicos próprios de outros ramos do direito, quando a protecção conferida pelas sanções específicas destes sectores do direito se revelasse insuficiente. Também esta concepção complementar ou secundária do direito penal é de recusar. Pois, como já se referiu, o direito penal tem autonomia axiológica, a responsabilidade penal tem pressupostos próprios e fmalidade preventiva específica, além de que há muitas normas jurídico-penais que prevêem condutas (p. ex., tráfico de 'droga) que não estão contempladas em nenhuma norma dos outros ramos do ordenamento jurídico.
Tttulo I -
O problema crtminaí-penal
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Distinção entre o direito penal e o direito civil
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§ 186. Do exposto quanto ao objecto e função do direito penal (§ 67) e a propósito da natureza pública e autónoma deste ramo do direito sobressai, bastante nítida, a distinção entre o ,direito penal e o direito civil. Distinção que, como já se dirá, se manifesta em vários aspectos dos respectivos regimes jurídicos, os quais se fundamentam e arrancam da diferença entre a natureza eminentemente pública dos bens jurídicos tutelados pelo direito penal em contraposição à dimensão fundamentalmente privada dos interesses protegidos pelo direito civil. Em síntese: enquanto os valores ou bens jurídico-penais são reconhecidos como suporte axiológico de toda a comunidade social, já os bens ou interesses jurídico-civis são assumidos como particulares; isto é, como interesses do respectivo titular individual.
§ 187. Inteiramente diferentes também são as sanções penais e as "sanções" civis: aquelas olham ao presente (momento da prática do e do respectivo julgamento) e ao futuro, isto é, têm uma finali'f;' crime dade exclusivamente preventiva do crime (§§ 91 ss. e 118 ss.); já as ':.e:; .. "sanções" civis (as aspas significam que o termo sanção não é inteiramente correcto, pois esta palavra contém uma ideia de punição, que inexiste nas consequências civis) olham ao passado {momento da prática :·~i.:-I do facto ilícito civil) e ao presente (momento da efectiva reparação do :~~~~: ,.~~. dano causado), isto é, têm uma finalidade reparadora dos danos causados. Assim, a medida da pena deve reduzir-se ao indispensável à prevenção, geral e especial, de futuros crimes, mas já a medida ou o quanto da "sanção" 'civil (reconstituição especifica, indemnização ou compensação dos danos não patrimoníais) deve, em regra, corresponder ao dano .~;;'!~.:. ou prejuízo causado (CC, art. 483.°-1).
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§ 188. Em consequência da diferente natureza e finalidade das sanções penais e das "sanções" civis - aquelas, nomeadamente a prisão, são um mal em si mesmas, e têm natureza punitiva, embora uma finalidade preventiva; as civis, são um "mal" para o lesante mas um bem para o lesado, e têm uma finalidade reconstitutiva, em nome da justiça comutativa -, diferentes são os pressupostos da responsabíll-
Parte f -
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Questões Fundamentais
dade penal e da responsabilidade civil (extra-contratual: "delitual" ou por factos ilícitos, que é aquela que, obviamente, está em causa). Enquanto a responsabilidade penal pressupõe a-prática de um facto ilícito típico (isto é, tipificadonuma lei penal) e a culpa dolosa do agente (embora, em vários. crimes,também seja punível a-culpa negligente.- art, 13.°), já a responsabilidade civil se basta com a prática de um facto Ilícito (que não tem que estar legalmente tipificado - cf., p. ex., CC, art. 8. -1) cometido com "mera culpa", isto é, com simples negligência. Mais: em nome da justiça comutativa ecdas -cada'vez mais numerosas fontes de risco para interesses jurídicos alheios; são cada vez mais numerosos os casos de responsabilidade civil obje-ctiva (nem exigência de culpa, nem de ilícito). E até há casos de obrigação de indemnização por factos justificados (factos lícitos), como, p. ex., os praticados em estado de necessidade (CC, art, 339.°). 0
3.
A questão da reparação .: ilícito
dos danos causados à vítima do facto
:§ 189. Ocorre, frequentemente, que um mesmo facto naturalisticarnente entendido (p. ex., subtracção de coisa alheia com intenção de apropriação, 'ofensas corporais, difamação, emissão de cheques sem provisão) fundamenta e determina a aplicação de sanções penais (prisão ou multa, etc.) e de sanções .civis (restituição, indemnização ou compensação patrimonial). . Tal situação verifica-se, quando. o mesmo comportamento humano constituir, de .acordo- com o critério de valoraçâo e ·os pressupostos específicos do direito civil) um ilícito civil, e, também, por outro lado, constituir, segundo a especlficavaloração jurídico-penal, um ilícito criminal. Nesta hipótese, levantam-se duas questões diferentes, que são; qual a natureza e os critérios dadetemiínação da responsabilidade civil; que relevância deve atribuir-se à reparação espontânea do dano por parte dolesante? - Como se verá, a primeira é uma questão jurídico-civil; a segunda é uma questão político-criminal, conexionadacom a teoria dos fins da pena e coro a protecção que o direito penal deve conceder à 'vítima do crime ..
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Tttulo L- Oproblema cruninal-penai
.3.1. A responsabilidade
107
civil "emergente
de crime"
§ 190. Como acabámos de ver, um mesmo facto humano pode originar, simultaneamente, responsabilidade penal e responsabilidade civil. Esta pode traduzir-se na. obrigação .de.restituição ou reconstituição natural (p, ex., num caso de furto ou roubo), na obrigação de indemnização (p. ex., num caso de crime de dano) e na. obrigação de compensação petrimoníal de danos não patrimoniais (p. ex., num caso de difamação, de.violação ou de homicídio). § 191.- Dada a conexão dos dois tipos de responsabilidade com. um mesmo. facto (acrescida da circunstância de, em muitos países, a codificação oitocentista penal ter sido anterior à elaboração dos primeiros códigos civis), tradicionalmente discutiu-se se a "obrigação de indemnização de perdas e danos" (que, normalmente, era decidida no processo penal - princípio da adesão) tinha natureza civil ou natureza penal. Refira-se que, consoante a opção pela natureza penal ou pela natureza civil, o montante da indemnização também podia ser muito diferente. Desde logo, a opção pela natureza penal implicava que quanto. mais grave fosse o crime, tanto mais elevada devia ser a indemnização. § 192. Mas, se, mesmo já então, o entendimento correcto, porque mais conforme com os pressupostos, natureza e finalidade da responsabilidadecivil, era o da natureza civil da indemnização arbitrada em processo penal, hoje. é inequívoca uma tal posição.· E indiscutível, quer essencialmente por força dos já referidos específicos pressupostos e fimção da responsabilidade civil, quer à face da lei. Assim, -estabelece o art, 129.° que- «A indemnização de perdas e danos emergentes de-crime é regulada pela lei civil». O facto de o nosso CPP, art. 71.°, estabelecer como regra o príncípio da adesão (<
::~r Tttulo I -
Parte I - Questões Fundamentais
108
§ 193. Conclusão: mesmo que corram no mesmo processo penal,
as questões da responsabilidade penal e da responsabilidade civil são autónomas. Assim, a extinção da responsabilidade penal (p. ex., por morte do .arguido, ou por amnistia) ou a absolvição penal (p. ex., o facto, enquanto crime, exigia o dolo, e o tribunal considerou que houve apenas negligência consciente) deixam intocada a questão da responsabilidade civil. Não se termine, sem chamar a atenção para a incorrecção da tradicional e ainda corrente designação "responsabilidade civil ou obrigação de indemnização derivada do crime". É que, como vimos, do crime, enquanto tal, só pode derivar responsabilidade penal; o que pode acontecer é que o mesmo facto pode constituir crime e, como tal, gerador de responsabilidade penal, e, simultaneamente, constituir ilícito civil e, como tal, gera responsabilidade civil. 3.2. A reparação
dos danos como questão político-criminal
§ 194. Esta concepção da natureza exclusivamente civil da reparação dos danos é comum à generalidade das legislações penais dos diferentes países, e corresponde à tradicional estrutura essencialmente bipolar do direito penal (Estado e infractor) e do processo penal (Estado, representado pelo Ministério, e arguido). § 195. Porém, nas duas últimas décadas, a doutrina tem chamado a atenção para a necessidade da consideração da vítima nos próprios quadros do direito e processo penais, nomeadamente em matéria do ressarcimento dos danos que lhe foram causados pelo crime de que foi vítima. Esta consideração e elevação da vítima a um corno-que agente ou interventor no processo penal, tenderia, eventualmente, para uma tripolarização destes direito e processo penais: Estado, infractor e vitima. . § 196. Devemos, aqui e agora, restringir-nos à questão da relevância político-criminal e jurídico-penal da reparação, pelo infractor, dos danos (patrimoniais e não patrimoniaís) causados à vítima e às pessoas dela economicamente dependentes (pessoas em relação às quais a vítima tem ou tinha, no caso de morte, "obrigação .de alimentos").
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O problema criminal-penal
109
Duas vias existem para, numa perspectiva político-criminal, dar a satisfação possível às necessidades' da vitima na reparação dos danos sofridos: a consideração-qualificação da reparação do dano como uma consequência jurídica do crime, a incluir, no sistema punitivo-penal, ao lado da pena e da medida de segurança; ou a continuação da consideração-qualificação da reparação do dano como uma "sanção" exclusivamente civil, mas com a atribuição à efectivação de tal reparação de significativa relevância jurídico-penal, em matéria de exclusão ou de atenuação da pena. 3.2.1. A reparação do 'dano como sanção criminal, i. é, como medida substitutíva ou redutora da pena
§ 197. Certos autores, nomeadamente alemães (entre os quais, defendem, de iure condendo, a qualificação da reparação do dano como consequência ou reacção .juridico-criminal, qual "terceira via", a seguir à pena e à medida de segurança. Teríamos, assim, uma trípartição das consequências jurídicas do crime: penas, medidas de segurança e reparação dos danos. Esta reparação dos danos, embora visasse e fosse determinada pelo montante dos prejuízos ou danos causados, não deixaria de ter natureza penal e, portanto, pública. Os argumentos invocados em favor desta proposta são, segundo a minha leitura, de dupla natureza: pragmática e político-criminal. Roxin),
§ 198. As razões pragmáticas consistem na justiça e na necessidade de os interesses da vítima, lesados pelo facto criminoso, serem, o mais rapidamente possível, satisfeitos.. Interesses que a política criminal e, portanto, o direito penal não devem-desourar. Ora, segundo os proponentes desta opção, em muitos casos de pequena crlminalidade (p. ex., difamação) e de pequena ou média críminalidade patrimonial (sem violência), a condenação em prisão ou em multa impossibilita o infràctor de reparar os interesses da vitima: se vai preso, fica sem poder ganhar para pagar a indemnização; se tem de pagar a multa, poderá ficar sem dinheiro para pagar a dita indemnização. Daqui, proporem, na pequena. criminalidade, a substituição da multa ou prisão pela reparação do dano; e, na crirnínalidade média, a atri-
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Parte f -
Questões Furvdantentais
buição, à reparação do dano, do efeito suspensivo da execução da pena de prisão ou de multa, ou da eficácia de atenuação especial' obrigatória da pena, § 199, As razões político-criminais, invocadas em favor desta consideração da reparação do dano como uma espécie de "pena de substituição", reconduzern-se ao princípio .da subsidiariedade das verdadeiras penas e' à adequação da reparação (espontânea) do dano à realização dos fins das penas. Com efeito, segundo esta proposta, a função ressocialízadora (prevenção especial positiva) é conseguida através da reparação dos danos, na medida em que contribui para conscienoializar o infractor dos justos interesses da vítima e da reprovabilidade do seu acta. Também a função de pacificação social (prevenção geral positiva) será .curnprida através da reparação do dano, uma vez que esta elimina, ou reduz substancialmente, a perturbação social causada pela infracção. . Sendo assim, então, concluem os defensores desta proposta que, por força.do princípio da subsldíariedade do recurso às penas, a reparação do dano deve incluir-se no direito penal como uma terceira espécie de reacção criminal, depois, ou ao lado, da pena e da medida de.segurança, §'200. Diga ..se que uma tal proposta não é de rejeitar..m limine, pois que, além lhe estar subjacente uma motivação político-criminal razoável, tem aspectos positivos. Todavia, penso o seguinte: por um lado, tais objectivos positivos podem ser conseguidos por outra via que não esta da consideração da reparação do dano (i. é, da consideração da responsabilidade civil). como uma conseqüência ou reacção criminal, ao lado da pena' e da medida de segurança; por outro lado, além de aspectos positivos, esta concepção jurídico-penal da reparação do dano não deixa de merecer objecções nos planos-político-criminal e jurídico-penal. .. Vejamos, hic et nUIlC, as objecções, deixando para a exposição danossa; posição a prova de que tais objectivos (satisfação dos interesses da vítima, ressocialização do infractor e pacificação .socíal da vitima e da comunidade) também podem ser realizados, sem ser necessário deixar de considerar a natureza da reparação dos danos como exclusivamente juridico-civil.
Titulo
I -
O problema
crir"ilcal-pel!(l!
§ 20 L As principais
objecções
111
são:
Primeira: a qualificação da reparação do dano. como sanção penal teria de implicar que, quanto mais grave fosse o .crime, maior deveria ser o montante da reparação, independentemente dos danos ou prejuízos efectivamente causados. Ora, uma .tal conclusão não parece estar na mente dos defensores da concepção.juridico-penaj da reparação do dano, nem, diga-se, tal seria aceitável.
§ 202, Segunda; a aceítaçãode urna. tal proposta deveria impor que, no caso de morte -do infractor, antes da reparação do dano,. se extinguisse a obrigação de reparar o dano. Pareceque deveria passar-se-o mesmo que acontece no caso de .condenação, p. -ex., na pena substitutiva de "trabalho a favor da comunidade", pois que as situaçôes são, neste aspecto, análogas.
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Assim, tal como na hipótese de trabalho a favor da comunidade, se infractor condenado morre, esta pena extingue-se, também, no caso da reparação.do dano como reacção criminal, a morte, antes da efectiva reparação, deveria extinguir o correspondente dever. -E, então, a v.ítima ficaria privada- da reparação, injustiça que não acontece no -caso de a reparação .do dano ser considerada e juridicamente tratada como obrigação jurídico-civil, -Pois que, neste caso, a morte não extingue a obrigação de reparar o dano, uma vez. que esta obrigação "acompanha" a herança deixada Pelo infractor .. Ou .seja: a concepção jurídico-penal da reparação do dano, em vez . de "beneficiar", prejudicaria a vítima lesada,
§ 203. Terceiraconsiderar a reparação do dano como sanção penal e, simultaneamente, estabelecer como critério .do montante da indemnização os danos efectivamente provocados implicaria um tratamento penal igual de ricos ,e pobres, violando-se" assim, o princípio político-criminal e, jurldico-pena] de que as sanções penais pecuniárias devem ter em conta a situação económica.do condenado. É que, a gravidade da pena deve ccrresponder.à gravidade, do. crime; ora, uma indemnização de, p. ex., 1.000 euros..a cargo de um pobre, constitui um "castigo" maior do que se recair sobre um rico. Digamos que a mesma, objecção, que foi invocada contra o. antigo regime da pena de, multa fixa e que levou à sua substituição pelo actual regime dos dias-multa (cf art, 47.°-2 - em que o número de dias de.
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112
Quesrões Fundamentais
multa deve ser proporcional à gravidade do ilícito e da culpa, mas já o correspondente a cada dia-multa deve ter em conta a situação económica do infractor), também, aqui, tinha cabimento. § 204. Quarta: os defensores da natureza penal da reparação do dano referem que os fins preventivos de ressocialização (prevenção especial positiva) e de. pacificação social (prevenção geral positiva) são realizáveisatravés desta inclusão da reparação do dano no âmbito das reacções criminais, ao lado da pena e da medida de segurança. Podendo isto ser verdade, eles esquecem, porém, a função de intimidação ou dissuasão da pena (quer geral, em relação a todos os potenciais infractores, quer especial, em relação ao infractor lesante e potencial reincidente). Ora, esta função dissuasora, que não pode ser banida do conjunto dos fins da pena, desaparecia em relação aos casos de crimes patrimoniais, em que ao empobrecimento da vítima correspende um enriquecimento do infractor (casos, p. ex., dos crimes de furto, abuso de confiança, burla, usura). Se, além da :reparação do dano (que se traduzirá, na prática, em entregar à vítima aquilo que lhe foi criminosamente retirado), não houver a possibilidade de aplicação de uma verdadeira pena, então o potencial infractor será motivado a pensar: vale a pena experimentar (i. é, p. ex., furtar ou burlar); e o potencial reincidente também pensará: vale a pena repetir (o furto ou a burla); pois o máximo que me poderá acontecer é ter de devolver o que criminosamente subtraí à vítima.i.
3.2.2.
A natureza jurídico-civil da reparação do dano, embora com relevância jurídico-penal
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§ 205, Como já o referimos (§ 195), a política criminal actual tem vindo a chamar a atenção para a necessidade e justiça de o direito penal ter em conta os legítimos interesses da vítima, nomeadamente no aspecto da reparação dos danos ou prejuízos provocados pelo .crime. Mas esta preocupação político-crim.inal com os interesses da vítima e das pessoas dela economicamente dependentes não tem, de modo algum, de levar a uma como que privatização do direito penal, nem sequer precisa da conversão da reparação das "perdas e danos" de sanção civil em sanção penal.
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Tttulo J -
O problema criminai-penol
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Entendemos que o direito e o processo penais devem manter a sua natureza pública (cf. § 180 5S.) e a sua estrutura essencialmente bipolar (o Estado com, o seu ius puniendi e o infractor) e que a obrigação de reparação dos danos deve manter a sua natureza [urídíco-cívil e o respectivo regime jurídico (cf, § 190 ss.). E este entendimento é perfeitamente compatível com a satisfação dos legítimos interesses da vítima e, por outro lado, compatível também com uma razoável política criminal lmputadora de relevância jurídico-penal à reparação (espontânea, o que não quer dizer desinteressada ou altruísta) do dano. Ou seja, compatível com os interesses jurídico-civis da vitima, e com os "interesses" jurídico-penais do infractor. § 206. Este foi, adequadamente, o caminho seguido pelo nosso sistema penal, Caminho que, repetimo-lo, acautela os interesses da vitima e atribui a devida relevância jurídico-penal (exclusão ou atenuação da pena) à reparação do dano, sem cair nos inconvenientes apontados à posição dos que defendem, para a reparação do dano, uma metanóia da sua natureza civil em natureza penal ou quase-penal (cf. § 201 S5.). Vejamos, sem preocupação exaustiva, algumas disposições do nosso CP e uma ou outra lei penal extravagante. § 207. O art, 71.°-2-c) estabelece: «Na determinação concreta da pena, o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente [... ], considerando, nomeadamente [... ] a conduta [... ] posterior [ao facto J, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime». - Eis uma atenuação da pena, que constitui-uni estímulo à reparação do dano e que se justifica político-criminalmente. Que constitui um estímulo à reparação do dano e, portanto, à satisfação dos interesses da vítima, eis o que é evidente. Que, na perspectiva do infractor, é político-criminalmente justificada, tal resulta de a reparação (espontânea) do dano tornar menor a necessidade preventivo-geral de pacificação social e de confiança comunitária na norma violada, e também reduzir a necessidade preventivo-especial de ressocialização e de dissuasão individual, 8-0ir. Penal
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Parte J -
Qllescões Fundamentais
. § 208. Logo a seguir, o art, n."-2-c) impõe a atenuação especial da pena, quando existirem circunstâncias posteriores ao crimeque diminuam, acentuadamente, a necessidade da pena, considerando esta mesma disposição legal que uma dessas circunstâncias é «ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados». '. Eis, novamente, como o cumprimento (nesta caso, necessariamente, espontâneo, pois, caso contrário, não é sinal de arrependimento sincero) da obrigação civil de reparar o dano constitui uma causa da atenuação substancial e obrigatória da pena. Também esta significativa atenuação da pena, com base na verdadeiramente espontânea reparação dos danos (patrimoniais e não patrimoniais), constitui um forte estímulo para que o infractor os repare e, assim, fiquem satisfeitos os interesses da vítima lesada; e tal atenuação justifica-se, político-criminalmente, uma vez que tal reparação é sinal de uma menor necessidade da pena, quer na perspectiva preventivo-especial, quer na perspectiva preventivo-geral.
. § 209. Por sua vez, o art. 74.0-1-b) e 2, referindo-se à pequena criminalidade (crimes puníveis com pena de prisão não superior a 6 meses ou com multa não superior a 120 dias), condíciona a dispensa da' pena à reparação do dano. - Eis, novamente, um razoável e adequado estimulo à satisfação dos interesses da vítima, estímulo que é, político-criminalmente, justificado. E é de registar que esta preocupação com a vítima levou o legislador a permitir (mas permissão que o tribunal deve utilizar) o adiamento da sentença por. um ano, quando a reparação ainda não tiver sido realizada, mas houver razões para crer que está em vias de se verificar. § 210. Relativamente aos crimes exclusivarnentepatrimoniais (i. é, em que não haja violência pessoal - casos do furto, abuso de confiança, apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada, dano, alteração de marcos, burla, infidelidade, abuso de cartão de garantia ou de crédito, receptação), o art. 206.°-2 estabelece a atenuação especial obrigatória da pena, se o infractor tiver restituído a coisa ou reparado integralmente o prejuízo causado, até ao início da audiência de julgamento em l." instância. E o n." 3 deste mesmo artigo atribui ao tribunal a faculdade de atenuar especialmente a pena, se a restituição ou' reparação do prejuízo forem parciais; mas, na hipótese de a não restituição
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O problema crimillal-pe1lãl
115
ou reparação integrais resultarem de uma impossibilidade do infractor, dever-se-à entender que o tribunal deve (e não apenas pode) proceder à atenuação especial da pena. Ora, vê-se que, também neste caso dos crimes patrimoniais, o nosso CP teve em conta os interesses da vítima através do mecanismo jurídico-penal da atenuação especial da pena, mecanismo este que é corolário do princípio político-criminal de que, sendo menores as necessidades preventivas da pena, menor esta deve ser. § 211. Estes princípios e o correspondente regime jurídico-penal, fundamentados político-criminalmente e orientados para a satisfação dos interesses da vítima lesados por um facto criminoso, também se manifestam na legislação penal extravagante. A título meramente exernplificativo, vejamos o Dec-Lei n." 454/91, na redacção que lhe foi dada pelo Dec-Lei n." 316/97, de 19 de Novembro. O art 11."-5 estabelece a extinção da responsabilidade penal, se o infractor (o emitente do cheque sem provisão) regularizar a situação (i. é, depositar.ina instituição de crédito sacada, ou pagar directamente ao portador do cheque o montante deste), no prazo de 30 dias, a contar da notificação feita pela respectiva instituição de crédito. No caso de a regularização da situação ser posterior aos referidos 30 dias, mas se efectuar até ao início da audiência de julgamento em P instância, prevê o n." 6 do mesmo art. 11.° a possibilidade de atenuação especial da pena. § 212. Nesta mesma linha de estímulo do infractor à reparação do dano, a Lei n,? 57/98, de 18 de Agosto (lei da identificação e registo criminais), art. 16.°-2, estabelece, como uma das condições para o cancelamento provisório da sentença condenatória.'o cumprimento da obrigação de indemnização da vítima, ou a prova da impossibilidade deste cumprimento.
§ 213. Conclusão: o facto de o nosso CP considerar - e bem que a obrigação de reparar os danos (patrimoniais e não patrimoniais) tem natureza civil e, como tal, deve ser regulada pela lei civil (art, 129.°), não implica, como se demonstrou, que não tenha na devida atenção os interesses da vítima lesada por um facto que constitui, simultaneamente, .um crime e um ilícito civil. Logo, não é necessária a transmutação da
Porte [ - Questões Fundamentais
116 -------------_.---
obrigação -criminal,
de reparação dos danos de "sanção" civil em sanção jurídicoao lado da pena e da medida de segurança (12).
§ 214. O legislador contemplou, ainda, as situações em que o infractor não tenha possibilidades de reparar os prejuízos causados .: E dividiu estas situações em dois grupos: o dos crimes de homicídio e ofensas corporais graves, e o dos restantes crimes. O primeiro está referido no art. 130.°-1 do CP e descrito no Dec.-Lei n." 423/91, de 30 de Outubro, e na Lei n." 10/96, de 23 de Março; ao segundo grupo se referem os n.os 2 e 3 do mencionado art. 130.°, os quais também estabelecem o respectivo Em ambas as situações, infractor
reparar
regime jurídico. o Estado, dada a impossibilidade
os danos, assume
de o
ele próprio o dever de o fazer.
§ 215. Nos casos de homicídio ou de ofensas corporais o Estado assume, directamente, o dever de conceder, segundo
graves, critérios
(IZ) A Lei n." 21/2007, de 12 de Junho, criou - para já, a título experimental o chamado "regime de mediação penal", que permite que, verificados determinados pressupostos, o processo penal possa ser substituído pelo "processo de mediação". Também a Lei n," 59/2007·que procedeu à revisão do Código Penal - previu, no n." 1 do art. 206.", em certas hipóteses de furto e de abuso de confiança, a exrinção da responsabilidade penal. no caso de haver «concordância do ofendido e do arguido». 'Estas possibilidades. acabadas de referir, não permitem, contudo, a qualificação da "reparação do dano" como uma espécie de "terceira" sanção criminal" I a acrescer à pena e à medida de segurança. Contra uma tal qualificação estão •.em síntese, estas duas razões: por um lado, o facto de a "mediação" s6 ser admissivel relativamente a crimes cujo procedimento criminal dependa de queixa ou de acusação particular (art, 2."1); por outro lado, a exigência de acordo entre o ofendido e o arguido (arts. 3.·, 4.· e 5."). Significa isto que, no procedimento de mediação penal, não se trata senão de uma como que formelização daquilo que, na prática, já é corrente ocorrer entre o ofendido e o infractor, nos crimes cujo procedimento criminal depende da apresentação de queixa pelo ofendido. Ora. tal como no acordo (à margem de qualquer intervenção do Ministério Público) entre o ofendido e o infractor - acordo que leva a que aquele não apresente queixa e, assim, não haja lugar a responsabilização penal deste -, também. no processo de mediação. as consequências resultantes do acordo não têm natureza penal. Donde a conclusão de que, também no .procedimento de. mediação, a reparação da vítima não tem natureza penal, não se podendo, assim. considerar uma tal reparação como umaoutra espécie de consequência jurídico-penal, isto é. como uma sanção criminal, a acrescer e
30
lado da pena e da medida de segurança.
117
Titulo [ - O problema criminal-penal
de equidade, uma indemnização (restrita aos danos patrimoniais, directos e indirectos) à vítima lesada, ou, no caso de morte, às pessoas que tinham o direito de alimentos, segundo a lei civil. Segundo o art, 1.°-2 do Dec.-Lei n." 423/91, o direito de indemnização a cargo do Estado, «mantém-se mesmo que não seja conhecida a identidade do autor dos actos intencionais de violência ou, por outra razão, ele não possa ser acusado ou condenado».
§ 216. Nos restantes casos, ou seja, quando os danos tiverem sido causados por um qualquer crime (exceptuados o homicídio e ofensas corporais graves dolosas), é o próprio tribunal que, segundo o art. 130."-2, pode atribuir ao lesado os objectos utilizados na prática do crime, ou deste resultantes, e o valor das vantagens provenientes do crime e transferidas para o Estado; e, segundo o n." 3 do mesmo artigo, no caso de o dano ir ao ponto de deixar o lesado sem meios de subsistência, o tribunal atribuirá a este o montante da multa, «no todo ou em parte e até ao limite do dano». Logicamente, que tanto neste caso como no caso de homicídio ou ofensas corporais graves dolosas, o Estado fica sub-rogado no direito do lesado à indemnização, até ao montante que tiver sido prestado.
SECÇÃO
o E O DIREITO
Il
DIREITO PENAL DE ORDENAÇÃO
SOCIAL
§ 217. Mais discutida e dificil se apresenta a distinção entre o direito penal e o direito de ordenação social. Difíêil, desde logo no campo teórico ou dos princípios, pelo facto de, tanto num como noutro destes ramos do direito, estarem em causa valores ou bens jurídicos sociais; e difícil, também no campo prático dos respectivos regimes jurídicos materiais e processuais, uma vez que li realidade da evolução legislativa recente tem ido no sentido oposto à ideia histórica inicial da quase total autonomia e separação entre estes dois sectores do direito público sancionatôrio. Na verdade, se já O diploma fundador do direito de mera ordenação social português, o Dec-Lei 11. o 232/79, de 24 de Julho (substituído, com
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Parte [-
Questões Fundamentais
base na sua inconstitucionalidade orgânica, pelo Dec-Lei 11. o 433/82, de 27 de Outubro, que manteve praticamente o conteúdo norrnativo daquele), não continha um regime jurídico geral claramente distinto do regime geral do direito penal, então a revisão do regime geral das contra-ordenações, operada pelo Dec-Lein. o 244/95, de 14 de Setembro, aproximou, ainda mais, do direito penal o regime geral do direito de mera ordenação social. Exemplos desta, teórica e praticamente,' indesejável aproximação são: os casos da punição do concurso de contra-ordenações (art. 19.°), em que, em vez da razoável adopção do critério da acumulação material, se optou pelo cúmulo jurídico; a gravidade das sanções acessórias contra-ordenacionais (art, 21.°) que não ficam a dever nada à gravidade elas penas criminais acessórias; a proibição da refortnatio in peius (art. 72.o-A), tal como no processo penal, Mas comecemos por uma breve referência à história do direito de mera ordenação social.
Titulo { -
O problema criminal-penal
119
E porque o objecto e o objectivo era a protecção dos interesses da Administração Pública e, por outro lado, as sanções aplicáveis eram penas (de multa ou pena de prisão curta), a doutrina passou a qualificá-las como ilícito penal administrativo por contraposição ao crime que era designado por ilícito penal de justiça. § 220. Alguns autores (p. ex., Ferri) defendiam, para a distinção entre contravenção e crime, ou, por outras palavras, para a distinção entre o ilícito penal administrativo e o ilícito criminal de justiça, um critério meramente quantitativo: até' determinada pena, a infracção constituiria ilícito penal administrativo ou contravencional; daí para cima, tratar-se-ia de um ilícito penal de justiça, isto é, de um crime. § 221. Outro autores (p. ex., Goldschmidt, Das Verwaltungsstrairn Strafrechts system", in Frank- Festgabe, li, 1930) advogaram uma distinção material entre o ilícito penal administrativo ou contravenção e o ilícito penal de justiça ou crime. Enquanto o primeiro consistiria na violação dos comandos administrativos destinados a promover o bem-estar social (i, é, violação dos "interesses ou objectivos da administração pública"), já o ilícito criminal traduzir-se-ia na violação do valor justiça, i. é, na infracção das normas cujo objectivo era o da tutela dos direitos subjectivos ou bens jurídicos individualizados. Sobre este critério, que contrapunha "bem-estar social" (servido pelas respectivas normas administrativas) a "valor da justiça" (servido pelas normas jurídicas que tinham por objectivo proteger os direitos subjectivos individuais), há que dizer o seguinte: não satisfaz plenamente, uma vez que não existe uma antinomia ou, sequer, uma total autonomia entre "interesse da administração pública" e "valores da justiça", uma vez que os interesses da administração não podem ser alheios ao valor da justiça.
frecht, 1902, e Wolf, "Die Stellung der Verwaltungsdelikte
1.
Antecedente remoto do direito de ordenação social: as contravenções
§ 218. No séc. XVIlJ, o Estado-Polida, correspondente ao chamado despotismo iluminado e à última fase do absolutismo monárquico, caracterizou-se por um acentuado intervencionismo na economia e na sociedade. Deste intervencionismo resultou a criação de uma ampla gama de normas jurídicas regularnentadoras dos mais variados aspectos da vida económica e social. Dada a ausência de qualquer preocupação com os direitos individuais, o sancionamento das transgressões às normas regulamentadoras administrativas cabia às diversas autoridades policiais, § 219.
Com o aparecimento do Estado-de-Direito,
em fins do
séc. XVIII/princípios do séc. XIX, e as correspondentes consagrações
constitucionais dos direitos, liberdades e garantias individuais, e do princípio da legalidade da Administração Pública, as sanções contra os transgressores das normas regulamentadoras administrativas passou a ser da competência dos tribunais. Surge, então, a figura das contravenções, ao lado crime. Assim, embora consideradas menos graves que este, também passaram a ser tidas como infracção penal.
§ 222. E, com esta minha objecção, já vai uma discordância face à posição daqueles autores (13) que, actualmente, afirmam que a distin-
(IJ) Por exemplo, tora, 2007, pp. 161-l62.
FIGUEIREDO
DIAS, Direito Penal, torno
J,
2.'
ed., Coimbra Edi-
~ ')?' Pane 1 -
120
ção material entre ilícito penal e ilícito de mera ordenação social está no facto de a conduta, configurada pelo legislador como contra-ordenação, ser axiológico-socialmente neutra, enquanto que a conduta, qualificada legalmente como ilícito penal, ser em si mesma ilícita. Discordo destes termos de distinção, pois, apesar de, incorrectamente, se ter aposto o adjectivo "mera", não se pode dizer que as condutas 'qualificadas como ilícito de mera ordenação social são em si mesmas (i. é, antes da proibição legal) axiológico-socialmente irrelevantes. Basta um exemplo: a condução automóvel com excesso de velocidade (sem tal atingir o patamar da qualificação como crime), ou com um índice de 0,7 g/l de alcoolémia, é irrelevante segundo a valoração social?l - É claro que não. Mais: se fosse exacto que as condutas, qualificadas como contra-ordenações, são em si mesmas axiológico-socialmente neutras ou irrelevantes, então teríamos de concluir que as decisões legislativas de qualificação como ilícitos de mera ordenação: eram inteiramente desvinculadas, i. é, eram inteiramente discricionárias,
ou até arbitrárias.
pre punida a negligência» - (o itálico é nosso, obviamente). Sobre estes artigos, assim comentava Levy Maria Jordão (14): «para existir contravenção basta unicamente que haja o facto material da deso-
bediência às prescrições das leis ou regulamentos administrativos». E, de seguida, observava: «As contravenções correspondem ao que se chamavam crimes de polícia correccional». O mesmo autor, na mesma linha ,de contraposição entre "interesses administrativos" (protegídos
Commcntário ao Código Penal Portuguet, (orno
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r, Lisboa,
1853. pp. 10 e 11.
Tttulo I -
O problema criminal-penal
-..
§ 224. Conclusão: o ilícito penal administrativo ou contravencional (contravenções) gerou-se para proteger os interesses da administração pública na ordenação da sociedade. Hoje, estes interesses, cuja violação constituia a infracção penal chamada contravenção, são protegidos pelo direito de ordenação social, cuja infracção configura uma contra-ordenação.
2.
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Factores político-sociais de ordenação social
e político-criminais
da criação
do direito
§ 225. O direito de ordenação social resultou dos efeitos convergentes de dois fenómenos de diferente natureza: por um lado, a consagração e efectivação do Estado de Direito Social; por outro lado, a afirmação de uma nova política criminal que procurou reconduzir o direito penal a um verdadeiro último recurso da política social e da política jurídica, 2.1.
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pelo direito das contravenções) e "direitos subjectivos" ou "interesses de justiça" (protegidos pelo direito criminal), comentava, desta forma, o art. 1.0 do referido CP de 1852: o crime é «o facto violador dos direitos individuais ou sociais».
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§ 223. No mesmo sentido de que a figura jurídico-penal da contravenção é o antecedente remoto (antecedente que, hoje, é uma parte do grande universo das contra-ordenações) do actual ilícito de mera ordenação social, ia o art. 3. v do nosso primeiro CP de 1852, que definia a infracção penal chamada contravenção nos seguintes termos: «considera-se contravenção O facto voluntário punível, que unicamente consiste na violação, ou na falta de observância das disposições preventivas das leis e regulamentos, independentemente de toda a intenção maléfica»; e O a.rt. 4.° do mesmo CP que estabelecia: «Nas contravenções, é sem-
(14)
·I~··
Questões Fundamentais
Factores
político-sociais:
o Estado
de Direito
Social
§ 226. Como é do conhecimento geral, durante o séc. XIX e primeiras décadas do séc. XX, vigorou o Estado de Direito Liberal. Os pilares filosófico-políticos deste Estado foram os dogmas do individualismo e do naturalismo, ou seja: preocupe-se o Estado apena.s com a defesa externa e com a ordem intema.-pois que o indivlduo, entregue a si mesmo e relacionando-se livremente com os outros, será o motor do progresso económico e social. A realidade, porém, veio a contradizer este optimismo liberal e individualista. Com efeito, as consequências económicas e sociais foram desastrosas: em vez da livre concorrência, assistiu-se à criação de oligopólios e de cartéis; em vez da satisfação das necessidades básicas dos trabalhadores, assistiu-se à exploração do trabalhador e a uma injustiça social clamorosa, ao ponto de, pela primeira vez na história da
122
Parte [ ~ QueSlões Fundamentais
Igreja. Católica, o papa Leão XIII ter publicado, em 1891, a célebre encíclica Rerum Novarum, onde denunciava a exploração do trabalhador pelo capital e defendia o valor pessoal e económico do trabalho. §; 227. Progressivamente, a consciência social e política, nomeadamente na Europa Ocidental, evolui no sentido de que a simples proclamação dos direitos individuais não' é suficiente para a promoção de urna ordem social minimamente justa. A democracia política não é um fim, mas um meio para a progressiva democratização económica, social e cultural. E cabe ao Estado promover uma tal democratização. Neste contexto, o social é assumido como um pilar fundamental da organização política; agora, i. é, a partir do termo da 1 Grande Guerra, mas, de forma mais acentuada, a partir da 11 Grande Guerra, as Constituições passam a ter uma estrutura e um conteúdo tripolar - indivíduo, sociedade e estado -, em vez da estrutura bipolar - indivíduo e estado - característica das constituições liberais oitccentistas .. Efectivamente, as Constituições posteriores à Il Grande Guerra registam e consagram os traços característicos do Estado de Direito Social: a "igualdade de oportunidades", que implicam uma cornplernentação da igualdade perante a lei com a igualdade material; a afirmação dos "direitos :fundamentais positivos" (direito à educação, à assistencial social, etc.), ao lado dos tradicionais "direitos fundamentais . negativos" (os direitos, liberdades e garantias individuais); a consagração da função (direito-dever) estadual de intervenção reguladora e promotora do processo económico e do processo social global, qual condição da realização da referida igualdade de oportunidades e dos mencionados direitos fundamentais positivos. § 228. Esta nova concepção da sociedade e do Estado levou, necessariamente, à criação de uma multíplicidade de normas jurídicas nos mais diversos sectores do social: normas económicas (societárias, fiscais, etc.); normas sobre as subvenções sociais; normas urbanísticas; normas sobre o ambiente, pois que, nesses meados do séc, XX, começa a tornar-se consciência dos graves riscos, para as gerações presentes e vindouras, da industrialização desordenada e da hiperconcentração urbana. Diante desta enormemente crescente produção legislativa, levanta-se, à doutrina e ao legislador, a questão: que tipo de sanções aplicar aos
Tetulo J ~ O problema crtnünot-oeno;
123
destinatários infractores?; a quem deve ser atribuída a competência para julgar as respectivas infracções?; em que ramo do direito incluir estas normas? A resposta foi: inclul-las no direito civil, nãol, pois que estas normas protegem interesses sociais.. incluí-las no direito administrativo, também não, pois que, embora caiba à administração pública promover e fiscalizar 6 cumprimento destas normas, estas protegem interesses sociais que não coincidem com os interesses tradicionalmente tutelados pelo direito administrativo, para além de à infracção destas novas normas deverem corresponder sanções punitivas, que exorbítam do quadro sancionatório especifico do direito administrativo; incluí-las no direito penal? - de forma alguma, pois tal implicaria uma hipercriminalízação que asfixiaria os tribunais penais, para além de muitas destas normas e correspondentes infracções não terem a dignidade penal exigível para a sua criminalização (cf. § 66 s.), Restou Como alternativa adequada-a criação de uma nova figura - a "contra-ordenação" ---"a ser incluída num novo ramo do direito, chamado "direito de ordenação social", com um regime jurídico material e processual próprio. 2.2. Factores político-criminais § 229. A estes factores político-sociais vieram somar-se novos factores político-criminais. Com efeito, em quase simultaneidade com esta intervenção estadual normativo-conforrnadora da ordenação social, surgiram razões político-criminais que convergiam na mesma conclusão da necessidade, teórica e prática, da criação de um novo sector jurídico público e sancionatório. Estamos a referir-nos aos fenômenos seguintes: o aparecimento, nos anos sessenta/setenta, das novas, complexas e graves formas de crlmínalidade organizada, como o terrorismo (nomeadamente, em Itália e na Alemanha) e o narcotráflco; a críminalidads económica grave, resultante da consciencialização social e política de que o chamado "crime do colarinho branco" é gravemente corrosivo do sistema social e político, e muito mais danoso do que muitas'das infracções criminais individuais contra o património alheio (p. ex., furto, abuso de confiança); finalmente, o . movimento político-criminal da descriminalização, baseado muna refor-
Parte I - Queslões Fundamentais
124
çada consciência de que O direito penal deve, realmente, ser assumido como o último cios recursos da política social e jurídica. Na .verdade, o movimento da descríminalízação opunha-se a que estas novas infracções à ordenação social fossem incluídas no direito penal. É que este movimento, baseado 00 princípio da intervenção mínima do direito penal, só podia aceitar a criminalização'das condutas, que fossem, por um lado) ético-socialmente muito graves (tivessem a chamada "dignidade penal") que, por outro lado e além disso, não houvesse outros meios sancionatórios, além das penas, susceptíveis de proteger tais 'valores sociais (i. é, em relação às quais se afirmasse a .charnada "necessidade penal"). Ora, em relação à generalidade destas novas infracções sociais, não se verificavam estes pressupostos da crirninalização. Logo, deveriam ficar fora do direito penal. Por sua vez, as novas formas de crlminalidade grave e organizada (terrorismo, narcotráfico, etc.) não podiam deixar de ser incluídas no direito penal. Ora, tendo em conta a grande complexidade desta nova criminalidade, a investigação e o julgamento destes novos crimes passaram a exigir dos órgãos de justiça criminal uma atenção e um tempo redobrados. Portanto, também este foi um factor impeditívo da inclusão dos referidos ilícitos de ordenação social no direito penal. Caso contrário, os órgãos de investigação criminal e os tribunais.ficariam saturados e bloqueados no seu funcionamento.
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3.
Conclusão: a inevitabilidade da criação de um novo e especifico ramo do direito público sancíonatérío: o direito de ordenação social
§ 230. A conjugação dos fenómenos, acabados de referir, não podia deixar de levar à criação de um novo ramo do direito, que se veio a chamar, com propriedade, direito de ordenação social. Pois; por um lado, estes novos interesses da ordenação social precisavam, para serem eficazmente protegidos, de uma tutela jurídica punitiva; e, por outro lado, embora estes novos interesses começassem a ser assumidos como socialmente relevantes (cf. § 222), a verdade é que, relativamente a uma parte deles, entendia-se, e entende-se, que a sua lesão não põe directamente em causa a estrutura axiológica fundamental da sociedade, indispensável à realização pessoal individual, e/ou ainda não tinham
Titulo I -
O problema criminol-penni
125
adquirido a suficiente ressonância ético-social que justificasse a crirninalização das respectivas infracções (cf. § 66 ss.).
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§ 231. Ao decidir-se O legislador, por influência da doutrina, pela criação do direito de ordenação social, como ramo jurídico punitivo específico e autónomo do direito penal, foi natural que o antigo ilícito penal administrativo, i. é, as contravenções passassem também a ser incluídas neste novo ramo do direito. É que, paralelamente à já referida tendência descriminalizadora, ia a consciência de que a maior parte das contravenções não possuíam a suficiente "dignidade penal" para que fossem consideradas infracções penais, ao lado dos crimes. Assim, o novo direito de ordenação social passou a incluir as novas infracções dos novos "interesses sociais" (fiscais, ecológicos, etc.) e a maior parte das antigas infracções contravencionais (p. ex., as infracções rodoviárias). 4.
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A autonomia do direito de ordenação social face ao direito penal
§ 232. O Dec-Lei 11." 433/82, que contém o regime geral das contra-ordenações, dá, no art. 1.°, a seguinte definição de ílícito de ordenação social: «constitui contra-ordenação todo o facto ilicito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comineuma coima». Trata-se, pois, de uma definição formal, consequenciaI: define-se o ilícito (que, tal como o crime, tem que estar tipíficado) pela sanção. Logo, positivo-formalmente, a contra-ordenação distingue-se do crime porque àquela corresponde uma colma enquanto que a este se aplica uma pena. . 4.1. A autonomia material do ilícito contra-ordenacional § 233. Mas, uma vez que pena e coima são sanções punitivas de diferente natureza, e, eventualmente, com finalidades não coincidentes, natural e razoavelmente que também os respectivos ilícitos (criminal e contra-ordenacional) hão-de ser diferentes. Tem-se discutido se entre o ilícito contra-ordenacional e o. ilícito penal existe uma distinção qualitativa (material) ou somente uma distinção quantitativa (formal). .
Pane
J26
r -
Questões Fundamentais
Parte da doutrina alemã nega que entre crime e contra-ordenação 'haja uma diferença material ou qualitativa. Entre nós, o entendimento largamente maioritário vai no sentido da distinção qualitativa. Assim, p. ex., Eduardo Correia - o grande impulsionador da criação legislativa do direito de "mera" ordenação social e autor do respectivo projecto legislativo - afirma que o ilícito de ordenação social é um aliud e não um minus, em relação ao ilícito penal; isto é, a contra-ordenação é um ilícito de natureza substancialmente diferente do crime. E, provavelmente para acentuar esta distinção material, resolveu, injustificadamente, acrescentar à designação "direito de ordenação, social" o adjectivo mera, passando a denominar-se este novo ramo jurídico por "direito de mera ordenação social". Assim, também, no preâmbulo do Dec.-Lei n." 232/79, lia-se: «a contra-ordenação é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direi -crirn inal»,
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§ 234. Também Figueiredo Dias vai nesta mesma linha da autonomia material e consequente distinção qualitativa, arguinentando - contra os que negam a possibilidade de uma distinção material entre estes dois ilícitos, com base na impossibilidade da existência de um ilícito que seja ético-socialmente indiferente, mesmo que ele seja de mera ordenação social - que, embora seja evidente que não há nenhum ilícito que seja ético-socialmente indiferente (pois, a partir da valoração-proibição legal, qualquer conduta adquire, necessariamente, ope legis, relevância ético-jurídica e ético-social), o certo é que, consideradas as condutas em si mesmas, antes da proibição legal, há umas que são "axiológico-socialmente relevantes" e outras que são "axiológico-socialrnente neutras, i. é, irrelevantes". Ora, segundo este autor, «É este o critério decisivo que está na base do principio normativo fundamentador da distinção material entre ilícito penal e ilícito de mera. ordenação social» (15).
(IS)
FIGVélREDO DIAS, Direito Pellal,
tomo I, Coirnbra Editora,
2007,
pp. 161-163.
!!!::!.o I - O problema critninal-p enai
127
Como exempiificação da validade desta sua argumentação - e de que, mesmo naqueles casos em que parece, prima fade, que há apenas uma critério quantitativo a distinguir crime e contra-ordenação, há, realmente,um critério qualitativo -, Figueiredo Dias apresenta o caso da "alcoolémía ao volante", Sobre este caso, diz o seguinte: o facto' de a condução com uma alcoolémia entre 0,5 e 0,8 g/l constituir uma contra-ordenação grave, e se for entre 0,8 e 1,2 gll configurar contra-ordenação muito grave, mas já se for igualou superior à 1,2 g/I constituir crime, não significa que esteja em causa um critério puramente formal-quantitativo, mas sim que conduta de condução com 1,2 gll, ou mais, de álcool no sangue «toma-se ~tico-socialmente relevante e passa a constituir substrato susceptível de a ele se ligar a respectiva cri.ll1inalização - atento o salto "qualitativo" 'que naquele limite sofre a perigosidade social da conduta e a sua "censurabilidade ética", .
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§ 235. A minha posição também vai 110 sentido de uma diferença qualitativa entre o ilícito criminal e o ilícito contra-ordenacional e, portanto, entre o direito penal e o direito de ordenação social, Mas recuso o critério que contrapõe condutas "axiológico-sociahnente ou ético-socialmente relevantes" (aquelas que poderão ser configuradas como crime) a condutas "axiológico-socialmente ou ético-socialmente irrelevantes" ou neutras (aquelas que nunca poderão ser configuradas como crime, mas somente corno "mera" contra-ordenação). Com efeito, não é verdade que a contra-ordenação ou ilícito de ordenação social tenha por substrato urna conduta axiológíca-socialmeme ou ético-socialmente irrelevante ou neutra. Nãol; basta compulsannos qualquer categoria de contra-ordenações (sejam fiscais, ambientais, urbanísticas, rodoviárias, etc.), para vermos e constatarmos que as respectivas condutas não são proibidas por proibir, mas, sim, que se trata de condutas que são, em si mesmas, socialmente desvalíosas e censuráveis. Esta minha afirmação é válida para toda e qualquer infracção contra-ordenacional, e não apenas em relação àquelas condutas que se situam naquela zona cinzenta, entre o ilícito de ordenação social e o ilícito penal, e que, portanto, tanto poderão ser qualificadas, legalmente, como contra-ordenação ou como crime, tudo dependendo da apreciação discricionária do legislador num ou noutro sentido.
128
Título f -
Parte f - Questões Fundamentais
; § 236. E O argumento apresentado por Figueiredo Dias, em minha opinião, não só não é procedente, como até contradiz o critério que apresenta. Vejamos: quem poderá dizer que a condução automóvel, com um grau de alcoolérnia de 0,5 a 1,1 g/1, não é uma conduta axiológico-social e ético-socialmente (negativamente) relevante, só o passando a ser quando for igualou superior a 1,2 gfl?! - Parece evidente que; com razão, ninguém o poderá afirmar, . Mais: será que podemos considerar arbitrária a distinção que, adentro das contra-ordenações, o legislador estabelece entre a condução com urna alcoolérnia de 0,5 a 0,7 g/l (contra-ordenação grave) e a condução com uma alcoolémia de 0,8 a 1,1 g/l (contra-ordenação muito grave)? - Parece evidente que não. E não porque, embora tanto uma como outra sejam ético-socialmente censuráveis (e, por isto, possam ser configuradas. como ilícitos de ordenação social), a verdade é que a segunda é socialmente mais perigosa e, nessa medida, mais censurável e, consequenternente, considerada contra-ordenação muito grave.. sendo mais severamente punida que a primeira. § 237. É claro que, com esta crítica, não estou a negar que, no exemplo da alcoolémia ao volante, haja um ponto, a partir do qual a reprovabilidade ético-social e ético-jurídica dá um "salto qualitativo", em conexão com o "salto qualitativo" da conduta, que de perigosa (e, como tal, considerada contra-ordenação) se converte em tão perigosa que passa, justificadamente, a ser considerada crime. O que se refuta é que, enquanto contra-ordenação, a conduta (conduzir com um Indice de alcoolémia entre 0,5 e 1,1 g/l) seja, em si mesma (i. é, antes da proibição legal), irrelevante ou neutra, segundo a valoração ético-social. E estará, aqui, a razão por que eu afasto o adjectivo "mera", enquanto os autores referidos (Eduardo Correia e Figueiredo Dias) pare.cem aceitar como normal e adequada a junção deste qualificativo à suficiente e correcta designação direito de ordenação social ou illcito de ordenação social. Este (desnecessário e equivocante) adjectivo terá pretendido salientar a diferença substancial entre o direito penal (e o crime) e o direito de ordenação social (e a contra-ordenação). Ora, digamos que a intenção foi boa, só que, além de desnecessário, tal adjectivo pode contribuir para iludir ou contornar a realidade.
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o problema
criminai-penai
129
§ 238. A realidade é que o direito de "mera" ordenação social não protege uma qualquer ordenação social, como que segundo o "capricho" do legislador, mas sim tutela valores sociais. Valores que, por um lado, é função do Estado proteger e, através das respectivas sanções punitivas contra-ordenacionais, levar a que os cidadãos e as pessoas colectivas se consciencializem da sua relevância social (mesmo que se trate de "simples" valores de estética urbanística); mas valores sociais ou individuais, que não são considerados, num dado momento histórico-cultural, como fundamentais ou indispensáveis às exigências mínimas da vida comunitária elou da realização pessoal individual (cf § 67); ou, então, valores sociais ou individuais (p. ex., nos casos do conswno de droga, ou do não uso do "cinto de segurança") que, embora tidos por fundamentais, o legislador entenda como suficiente e adequada a sua inclusão no âmbito da tutela do direito de ordenação social, e, assim, qualifique a sua infracção como contra-ordenação, tendo em conta o principio basilar da subsidiariedade do direito penal (cf § 68). § 239. Conclusão: também o direito de ordenação social protege valores ou interesses sociais; e também as condutas qualificadas como contra-ordenações são, em si mesmas, axiológico-socialmente e ético-socialmente, relevantes e censuráveis. Só que, diferentemente do direito penal, uma grande parte dos valores ou bens jurídicos, protegidos pelo direito de ordenação social, não pertencem à estrutura axiológica fundamental da vida comunitária e da realização pessoal Ci. é, não atingem a categoria da chamada "dignidade penal"), estrutura que é '0 'objecto próprio do direito penal. E é nisto, e só nisto, que eu vejo e defendo a distinção material ou qualitativa entre o direito de ordenação social e o direito penal, entre a contra-ordenação e o crime. Mas dissemos que esta diferença qualitativa se verificava em relação a uma grande parte do direito de ordenação social; portanto, não vale para a totalidade das contra-ordenações, o que, por outras palavras, significa que o critério qualitatívo ou da distinção material é apenas teudencialmente verdadeiro. E isto porque, como o já referimos, por força do princípio da subsidiariedade do direito penal, pode haver condutas que, apesar de lesarem ou porem em perigo os tais valores fundamentais, i. 9·0it. Penal
Parte
130
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QuesróeJ
Ttudo I -
F Ulldal1lenlais
e ético-social
é, apesar de terem "dignidade penal" (poderem ser criminalízadas), não são qualificadas como crime, mas sim como contra~ordenação, pelo facto de o legislador entender como suficiente e adequada a sua punição contra-ordenacional. Logo, nestes casos, olhando para as condutas em si mesmas, estas até podiam ser qualificadas como crime, em vez de contra-ordenação. E este aspecto pode ser relevante para efeitos da consideração como censurável de uma eventual falta de consciência da ilicitude contra-ordenacional, mesmo que haja um desconhecimento da proibição
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contra-ordenacionais
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4.2.1. As finalidades
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: § 240, Vários autores (p. ex, Figueiredo Dias), partindo do pressuposto inexacto, e que não corresponde à realidade (cf, §§ 221 s. e 234 55.), de que as condutas contra-ordenacionais são axiológico-socíal e ético-socialmente irrelevantes, negam às sanções aplicáveis aos ilícitos de ordenação social os sentidos positivos da prevenção geral e especial. Isto é, uma vez que as condutas (acções ou omissões), que constituem a matéria da proibição legal, não são valoradas negativamente pela sociedade, nem são assumidas como desvaliosas pela consciência ético-social, então não cabem às respectivas sanções as [unções preventivo-geral positiva de pacificação social e de consciencialização-interiorízação da relevância social dos valores ou interesses protegidos pelas normas jurídicas contra-ordenacionais, nem a função preventivo-especial positiva de socialização ou ressocialização -funções estas que, como vimos (§§ 89 S5. e 118 55.), são inerentes às penas e às medidas de segurança criminais. Concluem, então, que as sanções contra-ordenacionais têm uma função de "mera advertência ou reprimenda" pela não observância das proibições 01.1 imposições legislativas. Ou seja, só têm uma finalidade preventiva negativa: geral, no sentido de dissuadirem a generalidade dos-destinatários das respectivas normas; especial, na medida em que dissuadem o infractor da prática reincidente. .'
crimiltal:pe/ta.l
131
das condutas que constituem
o objecto da valoração-proisocial (cf § 235 58.). Em primeiro lugar, não cabem nas finalidades das sanções contra-ordenacionais as ideias de retribuição. Em segundo lugar, há que afirmar que as funções principais destas sanções são de dlssuasão geral (prevenção geral negativa) e de díssuasão individual (prevenção especial negativa): dissuasão de todos os destinatários das respectivas normas; dissuasão do, infractor condenado em relação à reincidência. Logo: funções de prevenção negativa. Mas, tendo em conta a relevância social dos interesses, valores ou bens jurídicos tutelados pelo direito de ordenação social, as sanções contra-ordenacionais desempenham, adicionalmente, a função de promoção ou aprofundamento da conscíencíalízação social da importância comunitária elou individual daqueles valores (e, correlativamente, da negatividade e reprovabilidade das 'condutas .que lesam ou põem em perigo estes valores), e a função de conscíeucíalízação do próprio infractor condenado. Isto é, embora adicionalmente e de forma menos intensa do que as sanções criminais, as sanções contra-ordenacionaia também desempenham funções positivas de prevenção .
bição contida nas normas do dii'eito de ordenação
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legal.
;4.2. As sanções
O problema:
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4.2.2. As categorias
de sanções
4.2.2.1. A sanção principal: coima
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§ 241. A minha posição é diferente. E esta diferença resulta e está conexionada com a minha posição quanto à relevância axiológico-social
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§ 242, Tal como no direito penal, também o direito de ordenação social estabelece duas categorias de sanções: a coima e as sanções acessórias. A coima é a sanção principaL Segundo o Deu-Lei 0.° 433/82, art. 17.°, os limites máximos das colmas são diferentes, consoante o infractor é urna pessoa singular ou uma pessoa colectiva, sendo, porém, igualo limite mínimo. Assim, tratando-se de uma pessoa individual, a coima pode ir de € 3,74 a € 3740,98 - art, 17.°-1. Já, no caso de o infractor ser uma pessoa colectiva, a coima pode ir de € 3,74 [I] a € 44.891;81 - art. 17,°-2. De acordo com o n." 3 deste mesmo artigo, estando em causa uma contra-ordenação praticada com negligência, os limites máximos são iguais a metade dos referidos, que são os aplicáveis às infracções dolosas, Este mesmo artigo ressalva a hipótese de uma qualquer lei estabelecer, para determinada contra-ordenação, um limite máximo superior aos
estabelecidos neste Dec.-Lei n." 433/82, que contém o regime geral das contra-ordenações, Todavia, há que não esquecer que este regime geral esta constitucionalmente incluído nas matérias de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (CRP, art, l65,"-1-d)); donde resulta que um decreto-lei só poderá estabelecer Um limite máximo superior ao previsto no referido art. 17.°, desde que esteja suportado por uma lei de autorização legislativa, sob pena de inconstitucionalidade formal-orgânica.
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§ 243. É necessário comparar e distinguir acoíma e a multa. Sendo embora ambas sanções pecuniárias, elas têm, porém, uma natureza e um regime jurídico diferente .. Enquanto a pena tem natureza penal,' a coima, embora tenha uma natureza punitiva, não tem essa natureza penal, .Daqui deverá resultar que a gravidade da culpa desempenhe um papel maior na determinação da pena-multa (sem que tal signifique a defesa de. uma concepção ético-retributiva da pena - cf § 93 55.) do que na sanção-coima. Esta a razão por que, embora, tanto na determinação concreta..da multa como na da coima, o legislador mande ter em conta a situação económica do infractor (CP, art. 47.°-2; Dec.-Lei n." 433/82, art. 18.°-1), todavia, a pena de multa, diferentemente da coima, é, primeiramente, determinada em dias de multa e, só depois, estabelecido o quantitativo correspondente a cada dia de multa. Ora, os critérios para a determinação dos dias de multa são os mesmos que os da determinação da pena de prisão; o que significa que a gravidade da culpa do agente é factor importante na determinação da multa final (CP, art. 47,°-1). Diferença prática muito importante é também a do regime jurídico, no caso do não pagamento: estando em causa a multa, se esta não for paga, voluntária ou coercivamente, pode ser convertida em prisão (CP, art. 49.°); já a coima nunca pode ser substituída por prisão, mas apenas, . no caso do não pagamento voluntário, ser objecto de execução (Dec-Lei n." 433/82, art, 89.°). . 4.2.2.2. As sanções acessórias
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Parte I - Questões Fundamentais
132
§ 244. O elenco das sanções acessórias aplicáveis às contra-ordenações vem no art. 21.° do referido Dec-Lei n." 433/82. E ele é tão
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o problema
criminal-penal
133
amplo e prevê sanções tão graves que faz o leitor espantar-se com a afirmação (verdadeira) de que a contra-ordenação é um ilícito menos grave que o ilícito criminal, Mas deixemos, por agora, a apreciação critica. Estas sanções acessórias podem ir da perda de objectos até ao encerramento de estabelecimento, passando pela interdição do exercício de profissões, privação. do direito a subsídio, etc.
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4.3. Competência para o julgamento § 24. Segundo o art, 33." do Dec.-Lei n." 433/82, a competência para o.processamento das contra-ordenações e para a aplicação. das coimas e das sanções acessórias é das autoridades administrativas. Esta atribuição da competência às autoridades administrativas é um corolário lógico da já referida (§ 228 s.) necessidade de "libertar" os tribunais para o julgamento das infracções mais graves, que são os crimes. § 246. Mas, uma vez que as sanções aplicáveis às contra-ordenações podem ser muito gravosas, a necessidade de acautelar os direitos e as liberdades fundamentais (p. ex., o direito de propriedade, a liberdade profissional, etc.) implicou que a decisão administrativa possa ser objecto de ímpugnação judicial junto do tribunal de L" instância (arts, 59.0 e 61.0). Em certos casos, nomeadamente quando a coima aplicada for relativamente elevada ou quando, além da coima, for aplicada uma sanção acessória, pode, ainda, haver recurso. da decisão judicial do tribunal de La instância para o tribunal da relação (art, 73.°). Em princípio, a competência da Relação está limitada à matéria de direito (art. 75.0). Das decisões da Relação. não há recurso.
§ 247. É compreensível a possibilidade da ímpugnação judicial das decisões das autoridades administrativas. Por duas razões: por um lado, vimos já que, não. só as coimas podem atingir montantes muito elevados, como as sanções acessórias se traduzem na afectação de direitos e liberdades fundamentais; por outro lado, as autoridades administrativas, embora estejam sujeitas, nas suas decisões, ao princípio da legalidade, não deixam, contudo, de estarem integradas na estrutura orgânica da administração pública, faltando-lhes, portanto, aquele estatuto da independência que caracteriza a função judicial.
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5.
Competência
Título 1 - O problema criminal-penal
Q"estões Fundamentais
legislativa
§ 248.
Segundo a CRP, art. 165.0-1-d), a definição do regime. geral, material e processual, das contra-ordenações é da competência exclusiva da Assembleia da República, embora esta possa autorizar o Governo a legislar sobre esta matéria - reserva relativa. Já, relativamente à qualificação legal de determinadas condutas como ilícitos de ordenação social, a competência tanto pertence à Assembleiada República como ao Governo - competência legislativa concorrente (e mesmo a outras entidades, nomeadamente regionais ou locais), É lógica a atribuição desta competência também ao Governo; é O .corolário da necessidade de eficácia e celeridade na qualificação legal de determinadas condutas como contra-ordenações. Celeridade, que a via parlamentar não realiza, e celeridade.que é, muitas vezes, exigida pela rápida alteração das condições económicas e sociais conjunturais. § 249. Mas esta competência legislativa do Governo não lhe permite que ele converta um crime em contra-ordenação, i. é, o Governo não. pode qualificar como contra-ordenação uma conduta que esteja qualificada como crime, quer esta qualificação tivesse sido feita por uma lei, quer tivesse sido feita por um decreto-lei, baseado numa lei de autorização da Assembléia da República. ; E é assim, porque a conversão de crime em contra-ordenação é uma descriminalização da conduta respectiva; ora, só tem competência para descriminalizar quem tem competência para criminalizar. E esta competência é da Assembléia da República (CRP, art, Hi5.Q-c). Logo, só com base numa lei de autorização, é que o 'Governo pode "fazer passar" uma conduta de crime a contra-ordenação. E é óbvio que, por maioria de razão, não pode converter uma contra-ordenação em um crime.
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6.
Apreciação crítica de alguns aspectos do regime jurídico geral das contra-ordenações
§ 250. Uma vez que, como se viu (§ 228), a figura jurídico-punitiva da contra-ordenação surgiu como uma alternativa ao crime, alternativa
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dotada de autonomia material e processual, então o seu regime jurídico devia ser substancialmente diferente do regime jurídico-penal. Não é isto, porém, o que verifica. Na verdade, se já o regime constante do diploma fundador do direito de ordenação social, o Dec.-Lei n." 433/82 (que reproduziu, praticamente, o Dec.-Lei n." 233/79) se aproximava bastante do regime material do direito penal, esta aproximação agravou-se com as alterações introduzidas, no referido Dec.-Lei n." 433/82, pelo Dec.-Lei n." 244/95, de 14 de Setembro.
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§ 251. Entre outros aspectos (p. ex., a possibilidade da punição da tentativa - art, 13.°), são, nomeadamente.vcrítícâveís os seguintes pontos: - A gravidade das sanções acessórias. contra-ordenacionais (art, 21.°) que, contraditoriamente com a menor gravidade do ilícito de ordenação social relativamente ao ilícito criminal, chega a superar a gravidade das penas acessórias (CP, art, 66.0 ss.) e das medidas de segurança não privativas da liberdade aplicáveis a imputáveis (CP, art. 100.° ss.). Tal é o caso da «perda de objectos' pertencentes ao agente», bastando que estivessem «destinados a servir para a prática de uma contra-ordenação», não se exigindo sequer que tivessem efectivamente sido utilizados (art. 21.°-1-a) e art. 21.°-A-l); ou o caso do «encerramento de estabelecimento» (art. 21.°-1:0 e art. 21."-A-6). § 252. A gravidade destas sanções contra-ordenacionais acessórias merece o seguinte comentário: esta severidade poder-se-ia justificar, em relação às pessoas colectivas. se estas não fossem susceptíveis de responsabílização criminal-penal. Mas, a partir do momento em que o Código Penal de 1982, art. 11,°, veio salvaguardar a responsabilidade criminal das pessoas colectivas (e a Revisão do CP de 2007 veio mesmo estabelecer, no n." 2 ss. do art, 11.°; a responsabilidade das pessoas colectivas relativamente a vários crimes previstos no Código Penal). deixou de haver razão para que as sanções acessórias contra-ordenacionais pudessem revestir a gravidade que. agora e já desde a entrada em vigor da redacção original do Dec.-Lei n." 433/82, efectivamente têm. Como é sabido, uma das razões que estiveram na gênese da criação do direito de ordenação social foi a necessidade político-criminal de preencher a injustificada lacuna punitiva das pessoas colectivas. Injustificada, sob o ponto de vista social, na medida .em que, através das
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Parte I - Questões FII/~anlen(aiJ
empresas c de outros tipos de associações, são, muitas vezes, cometidas infracções gravemente danosas de importantes interesses ou valores económicos, ambientais, ete. Ora, a responsabilização punitiva apenas dos órgãos ou dos membros dos órgãos da pessoa colectiva, para além de, por vezes, ser, na prática, dificil de fundamentar, era, em muitos casos, considerada insuficiente, em termos de prevenção das infracções cometidas pelas pessoas colectivas. , Assim sendo, enquanto permaneceu como absoluto o tradicional (desde fins do sêc. XVIII) princípio societas delinquere non potes! (a sociedade não pode cometer crimes, porque a responsabilidade penal é individual), compreendia-se que as sanções acessórias contra-ordenacionais aplicáveis às pessoas colectivas pudessem ter uma gravidade semelhante à das penas criminais acessórias. Por estavia, nem se violava o referido princípio da natureza pessoal-individual da responsabilidade penal, nem deixavam de se realizar as necessidades práticas da punição (contra-ordenacional) adequada das pessoas colectivas. Síntese: enquanto não foi aceite a responsabilidade penal das pessoas colectivas (16), compreendia-se e, de certa forma, justificava-se a aplicação, às pessoas colectivas, de sanções contra-ordenacionaís acessórias tão graves como as que constam do referido art. 21 ..c ' do Dec.-Lei n." 433/82, apesar da tal menor gravidade da contra-ordenação relativamente à infracção criminal-penal. A partir do momento (anos 70/80) em que, em vários países europeus, entre os quais Portugal, se venceram as compreensíveis resistências (em nome 'da incapacidade de culpa jurídico-penal e da natureza e funções da responsabilidade penal) à consagração da responsabilidade penal das pessoas colectivas, deixou, em nosso entender, de haver razões para estabelecer, para as contra-ordenações das pessoas colectivas, sanções acessórias tão graves como as previstas no referido art. 21.° Sanções tão graves como estas parecem só ter justificação como penas acessórias, ou seja, só serão aceitáveis, quando estiver -em causa uma infracção criminal praticada pela pessoa colectiva. Assim, várias das sanlá
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(16) Contra a responsabilidade penal das pessoas colectivas - e nomeadamente contra o disposto no n," 2 do art. l l ,? do CP - ver TAIPA De CARVALHO', Sucessão de
Ldis Penais. 3.' ed., Coimbra Editora, 2008, p. 39 ss.
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Titulo I - O problema criminal-penal
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ções contra-ordenacionais acessórias, estabelecidas no art. 21.°, poderão eventualmente, ser consideradas inconstitucionais, por violação do princípio da proporcionalidade.
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§ 253. Reservas também merece o art. 8.°_1 do referido Dec.-Lei n." 433/82 que consagra, em matéria da punibilidade da negligência na prática de contra-ordenações, o mesmo regime que o CP, art. 13.°, estabelece para os crimes: «Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência», Esta transposição, para o domínio da responsabilidade contra-ordenacional, da regra da exigência do dolo (que, no âmbito criminal-penal, é razoável) é, em minha opinião, de rejeitar. . A razão fundamental é a seguinte: tendo a generalidade das normas jurídicas contra-ordenacionais destinatários específicos (p. ex., empresas, condutores), é-lhes exigível uma especial diligência nas suas actividades. Donde resulta que o seu descuido, negligência ou violação do dever objectivo de cuidado deve-lhe ser sempre censurado e, portanto, o respectivo facto deve sempre ser punível (a título de negligência), embora, é certo, menos gravemente do que se houver dolo. . Ora, restringir-se, em princípio, a punibilidade à existência de dolo, conduzirá a uma de duas situações: ou o legislador, na sua actividade de definição das específicas contra-ordenações, estabelecerá, quase sempre, a expressa punibilidade da negligência, ou só o fará em casos excepcionais. Na primeira hipótese, a excepção transformar-se-á, na realidade, em regra, contradizendo o princípio geral estabelecido no referido .art. 8.°-1; na segunda hipótese, ter-se-à como resultado prático uma eventual impunidade generalizada, pondo-se, assim, em causa a.eficácia prática preventiva das normas jurídicas contra-ordenacionais. § 254. Nesta segunda hipótese, esta critica sai reforçada com o facto de o legislador, num domínio onde a relevância axíológico-social e a ressonância ético-social não são tão profundas como no domínio das infracções criminais, também ter atribuído ao erro sobre a proibição legal o efeito de exclusão do dolo (art, 8.°-2). Em resumo: o erro sobre a proibição legal, como causa de exclusão da culpa d0108a, tem um campo de aplicação milito maior no direito de ordenação social do que no direito penal; ora, juntando a esta cir-
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Parte I - Questões Fundamentais
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cunstância a circunstância de, em regra, segundo o art. 8.°-1, não ser punivel a culpa negligente nas contra-ordenações, resulta um grande leque de situações de impunidade no domínio das contra-ordenações. Esta larga impunidade parece contrariar a filosofia político-jurídica subjacente e norteadora do direito de ordenação social.
§ 256. Observe-se, ainda, que, inexplicavelmente, o regime da punição do concurso de contra-ordenações é ainda mais favorável. que o regime da punição do concurso de crimes. É que,' diferentemente do CP, art. 77.°-2, o Dec-Lei n." 433/82, art. 19.°-2, estabelece que o limite máximo da coimaaplicável «não pode exceder o dobro do limite máximo mais elevado das contra-ordenações em concurso». Logo, o limite máximo pode ser inferior à sorna das coimas concretamente aplicadas às várias infracções.
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§257. Exemplo da indesejável mistura entre dois ramos do direito público sancionatório, o direito penal e o direito de ordenação. social _: que, na sua motivação político-criminal, deviam, e devem, ter regimes jurídicos, material e processualmente, autónomos e diferenciados -, é também o art. 20.° elo mencionado Doe-Lei n." 433/82.
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§ 255. Também não parece aceitável o regime do cúmulo jurídico estabelecido, no art. 19.°, para o concurso de contra-ordenações. As razões subjacentes ao regime do cúmulo jurídico, no caso de concurso de crimes (CP, art. 77.1, não procedem no caso das COlmas. Essas razões são, especialmente, as seguintes: a um determinado aumento da duração da pena de prisão corresponderá um aumento muito maior do sofrimento que é conatural a esta pena de privação da liberdade (poder-se-ia dizer: a um aumento aritmético do tempo ele prisão corresponde um aumento geométrico do sofrimento); sendo conatural à pena de prisão um efeito de dessocialização, quanto mais longa for esta pena, maiores são os riscos de desintegração social do recluso. Logo, com base nestas razões, compreende-se que vigore, no direito penal, o regime do cúmulo jurídico. Mas, como nenhuma destas razões se verifica em relação à aplicação de coirnas, é meu entendimento que, aqui, deveria vigorar o regime do cúmulo material, em que a coima final seria igual à soma das coimas concretamente aplicadas ao conjunto das contra-ordenações praticadas.
Tttulo f - O problema. criminal-penal'
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Com efeito, não me parece razoável que a um mesmo facto, que, simultaneamente, constitua crime e contra-ordenação, se aplique, como sanção principal, a pena criminal, e, como sanção acessória, a sanção contra-ordenacional acessória. Segundo o rejeitável texto legal do referido. art. 20.°, poder-se-à chegar ao cúmulo de aplicar as penas criminais, quer a principal quer a acessória, se ao facto enquanto crime couber uma pena acessória, mais a sanção contra-ordenacional acessória, se esta .for diferente da pena acessória.
§ 258. Outro artigo que acentua a promiscuidade entre o direito de, ordenação social e o direito penal é o art. 89.0-A, que veio permitir a possibilidade de substituição da· coíma pela "prestação de trabalho a favor da comunidade".
É caso para perguntar ao legislador: mas então como é?!; então, a "prestação de trabalho a favor da comunidade" deixou, ainda tão jovem, de ser uma pena criminal de substituição ela pena de prisão para passar a ser uma medida incolor, ou, melhor, policromática, que serve para tudo: tanto para substituição da prisão como da coima? - Será que o legislador de 1995 se esqueceu que a pena de trabalho a favor da comu'cidade tem uma especial função preventiva de socialização?; ou será que ~ uma vez que a pena de trabalho a favor da comunidade pode substituir a pena de multa (CP, art, 48.") - o legislador confundiu coima com pena de multa? .. § 259. Finalmente - o que não quer dizer que não haja, ainda, mais aspectos criticáveis no regime geral elas contra-ordenações _, o o art, 72. -A, também introduzido pela revisão operada pelo Dec.-Leí n." 244/95 (revisão que Fígueiredo Dias apelida, com fundamento, de "contra-revolução contra-ordenacional"), veio estabelecer a proibição da reformatio in.peius, transpondo, assim, para o processo contra-ordenacional mais um princípio do processo penal (cf. CPP, art. 409.0). Ora esta transposição é acrítica, injustificável e pode ter efeitos perversos. Acrltica e injustificável, na medida em que contraria uma das razões que foram determínantes da criação do direito de ordenação social: a simplificação e a celeridade do processo contra-ordenacional.
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Parte [ -
Na verdade, o relatório preambular do Dec.-Lei n." 433/82 declara que, para o julgamento do ilícito de ordenação social, se deve adoptar «um processo extremamente simplificado e aberto aos corolários do princípio da oportunidade». Ora, a consagração da proibição do agravamento das sanções contra-ordenacionais, 110 caso de impugnação judicial da decisão administrativa condenatória, vai contra 'estes objectivos de simplificação e celeridade do processo, pois, inevitavelmente, os infractores condenados são "motivados" a impugnar, mesmo que considerem justa a decisão da autoridade administrativa. Pode ter efeitos perversos, uma vez que a autoridade administrativa, ao ver que, na prática, a 'sua decisão não passará de uma mera fase "preliminar" do processo contra-ordenacional, pode ser induzi da a não ter a exigivel consideração dos direitos de defesa do "arguido", nesta fase administrativa do processo, remetendo o respeito destes "direitos para a fase judicial. E poderá, ainda, a autoridade administrativa ser tentada a aplicar sanções mais severas, em claro prejuízo da justiça da decisão.
7.
Direito penal comum, direitos penais especiais e direito de ordenação social
§ 260. Podemos começar por afirmar que há uma nota ou denominador comum ao direito penal comum, aos direitos penais especiais e ao direito de ordenação social: todos protegem valores sociais, i. é, interesses com relevância social. Se, relativamente ao direito penal (comum ou especial), tal relevância comunitária é unanimemente aceite, já, quanto ao direito de ordenação social, tal unanimidade não se verifica. Mas; como o procurámos demonstrar (§ 235 ss.), em nossa opinião, também o direito de ordenação social tutela, inequivocamente, valores ou interesses sociais; por outras palavras, as condutas, objecto de proibição legal.contra-ordenacional, também são axiológico-social e ético-socialmente relevantes. :\
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Tltulo I - O problema criminal-pena]
Quesfões Fundamentais
§ 261. A diferença qualitativa entre o direito penal (comum ou especial) e o direi.to de ordenação social está, como também já o referimos (§ 238 5.), no facto de os bens ou valores. tutelados pelo primeiro serem, num d'ado momento histórico-cultural, assumidos pela:
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consciência ético-social como fundamentais ou indispensáveis às exigências mínimas da vida comunitária e à realização pessoal individual, enquanto que os interesses protegidos pelo direito de ordenação social, embora sejam socialmente relevantes, não se revestem, no geral, desta característica de fundamentalidade ou essencíalidade. § 262. Resta-nos, pois, averiguar se há alguma diferença entre o direito penal comum e os direitos penais especiais ou, pura e simplesmente, direito penal especial. Digamos, desde já, que aquele sector do direito penal, a que chamamos direito penal comum, é por vários autores designado por direito penal tradicional, clássico, primário ou de justiça; e o sector, a que chamamos direito penal especial (ou direitos penais especiais) é pelos mesmos autores designado, em contraposição ao primeiro (direito penal tradicional, etc.), por direito penal secundário, administrativo ou extravagante . Ora, tal como nós, também estes autores consideram que, diferentemente do que acontece entre o direi to penal em geral e o direito de ordenação social, não existe uma diferença qualitativa ou substancial entre o direito penal. comum e o direito penal especial: tanto um como outro tutelam valores ou bens jurídicos considerados fundamentais para a vida social e para a realização ético-pessoal individual. § 263. Mas, então, porquê a diferente designação, ou seja: existirá alguma razão para a, digamos, bípartíção penal em direito penal primário ou comum e direito penal secundário ou especial? A resposta, quer no meu entendimento quer no dos autores que contrapõem direito penal primário e direito penal secundário, é a de que, embora ambos os sectores protejam bens jurídico-penais (valores com a chamada "dignidade penal" e que carecem da protecção penal, i. é, em relação aos quais se afirma a denominada "necessidade penal" - cf § 71), todavia o direito penal clássico ou comum tem por objecto de protecção os tradicionais direitos, liberdades e garantias individuais, enquanto o direito penal secundário ou especial tutela os valores sociais que, num dado momento histórico-cultural e social, são considerados indispensáveis a.uma ordenação social, condicíouante da ordenação justa da sociedade e, em última análise, condicionante da realização individual e social, de cada pessoa (cf. § 69).
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Quesrões Fundamentais
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problema criminoi-pena!
cíal: tanto são bens jurídico-penais corno os protegidos pelo segundo.
Isto é, o direito penal clássico ou comum tem a sua referência e objecto no quadro axiológico já consagrado pela primeira geração de Constituições - as Constituições Políticas Liberais de fins do séc, XVIII até meados do séc. XX, que, como é sabido, tinham uma estrutura bípolar, o indivíduo e o Estado; já o direito penal secundário ou especial tem a sua referência no quadro axiológico-social consagrado pela segunda geração de Constituições - as Constituições Políticas Sociais, aprovadas a partir da II Grande Guerra, que passaram a ter uma- estrutura tripolar: o indivíduo, a sociedade e o Estado. §. 264. Afirmados, constitucionalmente, ao lado dos tradicionais direitos fundamentais individuais, os novos direitos sociais (direito à educação, à assistência na doença, à segurança social, etc.), cuja realização função do Estado promover, necessariamente que sobre os cida- . dãos recai, simultaneamente, os deveres económicos e sociais (deveres fiscais, deveres de fidelidade ou verdade nas declarações determinantes da concessão de subvenções, etc.), que possibilitem o cumprimento das funções sociais que cabem ao Estado. Olhando para a nossa Constituição, poder-se-à dizer que o quadro de bens protegidos pelo direito penal tradicional ou comum encontra-se, globalmente, 110 título II da 1." parte da Constituição (direito à vida, integridade física, honra, etc.); e que o quadro de bens tutelados pelo dlreíto penal secundário ou especial se encontra referendado no título III da 1.3 parte (valores relacionados com o trabalhoço consumo, a segurança social, a saúde, o ambiente, a educação) e na 2." parte (valores a promover pelo Estado, nos campos económico, fiscal, cultural, etc.) da Constituição. Estes interesses ou valores sociais correspondem, tal como os tradicionais direitos individuais, a direitos (e correspondentes deveres) também fundamentais. E é assim que o legislador constitucional os reconhece, quando, no art, 17 .0, os qualifica como "direitos fundamentais de natureza 'análoga" (aos direitos, liberdades e garantias individuais) e declara que fi restrição destes direitos está submetida ao mesmo regime que se aplica às restrições dos direitos individuais, ou seja, o regime da indispensabilidade e da proporcionalidade das suas limitações. Conclusão: .não há uma diferença qualitativa ou substancial entre o direito penal tradicional ou comum e o direito penal secundário ou espe-
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os valores
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§ 265. A distinção entre um e outro destes sectores do direito penal é meramente de grau de ressonância ético-social (§ 70), de grau de durabilidade das normas jurídico-penais que os protegem, e de ordem sistemática. De facto, a ressonância, i. é, a sedimentação, na consciência ético-individual e ético-social, da relevância axiológica dos bens tutelados pelo direito penal tradicional ou comum é, globalmente, mais profunda do que a ressonância dos bens protegidos pelo direito penal secundário ou especial. .Exemplo: está mais entranhada na consciência individual e social a importância da necessidade de cumprir os deveres de respeito pela integridade física ou pela honra alheias do que os deveres de pagamento dos impostos (p. ex., Lei u." 1512001, de 5 de 0 Junho, art, 103. - crime de fraude fiscal) ou do abate de animais para consumo público só após a competente inspecção sanitária (cf Dec.-Lei n." 28/84, de 20 de Janeiro, art, 22.o-l-a). § 266. Mas observe-se que esta maior ressonância ético-social dos bens protegidos pelo chamado direito penal tradicional ou comum não significa, necessariamente, que todos os bens abrangidos por este sector do direito penal são, objectivamente, mais valiosos que os protegidos pelo direito penal secundário ou especial. Basta pensar num furto simples (CP, art, 203.°) e num crime de abuso de confiança fiscal de montante superior a 25.000 euros (Lei n." 1512001, de 5 de Junho, art, 105.°), para vermos que é mais grave esta infracção do que um simples furto. Portanto, o critério do grau de "ressonâncía êtíco-socíal'' só, tendencialmente, é sinónima de um maior grau de gravidade objectiva dos crimes abrangidos pelo direito penal tradicional ou comum. . E esta é a razão por que eu não acho muito adequada a designação. "direito penal secundário". Pensemos nos crimes contra o ambiente. Se fosse válido corno critério decisivo da distinção entre direito penal primário e direito penal secundário a circunstância de a norma penal protectora do respectivo bem jurídico estar incluída no Código Penal ou numa lei extravagante, então nós portugueses teríamos de considerar que os crimes ambientais pertencem ao direito penal primário, clássico ou de justiça, uma vez que, actualmente, os crimes de "danos contra a
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Parte I -
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Titulo I -
Questões Fundamelltais
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natureza" e de "poluição" estão inseridos no Código Penal (arts. 278. e 279."). Ora, a verdade é que os crimes ambientais ou ecológicos são considerados como constituindo um ramo especial do direito penal _ o direito penal do ambiente. E é seguro que, dada a ainda recente consciência ecológica, que levou à (neo) criminalizaçãc dos "atentados" ao meio ambiente, de forma alguma podemos considerar este sector do direito penal como pertencente ao "direito penal Clássico, primário ou tradicional". E os nossos vizinhos espanhóis, ao incluírem, no CP de 1995, título XlII, capo Xl, arts. 270.0 a 288.°, várias infracções económicas, não mudaram li categoria do direito penal.económico: este continua a ser considerado
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§ 267. Isto nos conduz à consideração de um outro factor de distinção: a maior ou menor durabilidade das normas jurídico-penais. Segundo este critério - que não coincide, necessariamente, com a maior gravidade das condutas, isto é, com a maior relevância dos bens jurídicos protegidos -, deverão ser incluídas no Código Penal as normas penais que protegem interesses ou valores que são dotados de uma relativa perenidade ou intemporalidade. Ou seja: as normas que revistam estas duas características: que protejam bens jurídicos que se mantenham merecedores e carecidos de tutela penal, independentemente das naturais mutações sócio-culturais; e cuja estrutura típica resista a essas alterações sócio-económico-culturais. Já as normas jurídico-penais, mais sensíveis às. referid.~s alterações, devem constar de leis extravagantes. Deve ser este o critério da sistematização, i. é, da inclusão, ou não, no Código Penal. Por estas razões não considero adequada a designação "direito penal primário" em contraposição a "direito penal secundário". É que tal distinção pode dar a ideia de que os crimes que constam de leis extravagantes são, necessariamente, menos graves. O que, como vimos, ne~ sempre é verdade.
§ 268.
Também
não partilho
das designações
"direito
penal
de
justiça" em contraponto a "direito penal administrativo". Por duas razões: em primeiro lugar, porque tal parece sugerir que o chamado "direito penal administrativo" (direito penal societário, fiscal, ambiental, etc.), diferentemente do direito penal tradicional (aqui, designado por
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"direito penal de justiça"), é estranho a critérios de justiça, e apenas protege interesses avaliados por meros critérios (discricionários) da administração pública; em segundo lugar, porque tais designações e ccntraposição podem sugerir a reposição do critério, já ultrapassado (cf § 221), da distinção entre "ilícito criminal de justiça" e "ilícito penal administrativo", ilícito este que, como vimos (§ 223 s.), é um antecedente histórico, não do que, hoje, é chamado, por muitos, de direito penal secundário - e que eu designo por direito penal especial -:-, mas sim do actual direito de ordenação social. § 269. Restam, em minha opinião, como mais correctas e adequadas as designações "direito penal clássico ou direito penal comum" por contraposição às designações direito penal económico-soclal ou direito penal especial. E dentro deste direito especial, há diferentes ramos, como o direito penal económico, o direito penal fiscal, o direito penal do ambiente, etc. Estes direitos penais especiais, tendencialmente contidos em leis extravagantes ou avulsas, estão sujeitos à generalidade dos princípios, das regras e dos métodos do direito penal clássico ou comum. Acrescente-se apenas que, dada a especialidade de muitos dos destinatários (nomeadamente, empresas) destes direitos penais especiais, estes são os sectores do direito penal onde mais aplicação tem a responsabilidade penal das pessoas colectivas.
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SECÇÃO
O DIREITO
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PENAL
DISCIPLINAR._
1.
A autonomia
material
III
E O DIREITO P'ÚBLICO
e a caracterização
do ilícito disciplinar
§ 270. Vimos que, apesar da autonomia material existente entre o direito penal e o direito de ordenação social (§ 233 ss.), tanto um como outro protegem valores que interessam, directamente, à comunidade social (§ 238 s.). Já, diferentemente, o direito disciplinar público tem IO-Dir. Penal
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Questões Fundamelttais
I
Título I -
sigilo, correcção,
assiduidade
e pontualidade.
§ 272. A violação de um destes deveres funcionais constitui ilícito disciplinar. Mas repare-se que, embora se trate de infracções de dever, tal infracção ou ilícito pressupõe um fado concretizado r dessa violação. Esta exigência de objectividade fáctica constitui uma garantia do funcionário contra possíveis arbitrariedades do superior hierárquico, pois que faz recair sobre este o ónus da prova do facto ilícito e possibilita a (eventual) eficácia do recurso hierárquico e do recurso contencioso (impugnação judicial). Neste sentido; vai o referido Estatuto Disciplinar, art. 3.°-1; «Considera-se infracção disciplinar o facto, ainda que meramente culposo, praticado pelo funcionário ou agente com violação de algum dos deveres gerais ou especiais decorrentes da função que exerce».
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Mas, diferentemente da responsabilidade penal, em que a regra é a da exigência de culpa dolosa (CP, art. 13.°), já a responsabilidade disciplinar basta-se com a "mera culpa", i, é, com a culpa negligente (Estatuto Disciplinar, art. 3.°-1: «considera-se infracção disciplinar o facto, ainda que meramente culposo ( ... )>».
por objectivo imediato os interesses específicos da boa orgClIlização e do eficaz funcionamento dos serviços da Administração Pública. : § 271. Para garantir o bom e eficaz funcionamento dos serviços públicos, - objectivo imediato do direito disciplinar e condição para o progresso e justiça sociais, através da satisfação das necessidades dos cidadãos, individualmente ou organizados em associações (cf. CRP, art. 269°-1) -, o direito disciplinar público promove e estabelece os deveres de obediência e de lealdade dos funcionários e agentes da administração pública aos respectivos superiores hierárquicos, bem como todos os deveres inerentes à dignidade, justiça e eficácia da função que exercem. . Deixando' de lado os deveres especiais de determinadas categorias de funcionários públicos (contidos nos respectivos estatutos específicos _ p. ex., o Estatuto dos Magistrados Judiciais), o Estatuto Dtsctplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local (aprovado pelo Dec.-Lei n." 24/84, de 16 de Janeiro) estabelece, no art, 3.°-4, os seguintes deveres gerais: isenção, zelo, obediência, lealdade,
o problema
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§ 274. Diferente do direito penal, e até do direito de ordenação social, o direito disciplinar utiliza, na definição das infracções disciplinares, a técnica da cláusula geral com enumeração exemplíflcativa, excepto no caso da menos grave das infracções disciplinares em que há apenas a cláusula geral (ED, art. 22.°: «A pena de repreensão escrita será aplicável por faltas leves de serviço») . Assim, por exemplo, o art. 23.°-1 do ED estabelece que «A pena de multa será aplicável a casos de negligência e má compreensão dos deveres funcionais»; e, logo a seguir a esta cláusula geral, vem, no n." 2, a enumeração exemplificativa: <
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~ 273. O direito disciplinar público é direito sancionatório ou punitivo, tal como o direito penal e o direito de ordenação social. Daqui resulta a exigência da censurabilidade ético-individual do funcionário infractor como pressuposto da sua responsabilização disciplinar, bem como, no âmbito processual disciplinar, a consagração das garantias de audi.ência e defesa (CRP, art.269.0-3).
2.
As sanções
disciplinares
e as suas finalidades
§ 275. O Estatuto Disciplinar estabelece, no art. 11.°, as seguintes sanções disciplinares: repreensão escrita, multa, suspensão, inactividade, aposentação compulsiva e demissão.
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Parte J -
-I
Questões Fundamentais
Título I - O problema criminal-pellal
Dada a gravidade de algumas destas sanções, compreende-se que, até por imperativo constitucional, a responsabilidade disciplinar tenha na culpa um seu pressuposto irrenunciável, E, embora baste a culpa negligente (art. 3°-1), a escolha e a medida da sanção disciplinar não pode deixar de atender e ser influenciada pela espécie (dolo ou negligência) e pela gravidade da culpa (art. 28.0 S5.).
de demissão ou aposentação compulsiva. Assim, discordo da posição de Eduardo Correia (17), quando declarava que «os fins das penas criminais são de todo em todo diferentes dos fins das penas disciplinares». Tal como não partilho da posição de Figueiredo Dias (18), quando afirma que «a medida disciplinar esgota a sua função e finalidade - diversamente do que sucede com a pena criminal - no asseguramento da funcionalidade, da integridade e da confiança do serviço público». Diga-se que esta afirmação de Fígueiredo Dias confunde funções ou "fins-meios" com o fim. último ou razão de ser das sanções disciplinares. No sentido pOI mim defendido, também, p. ex., Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, I, 2,' ed., Editorial Verbo, 2001, p. 145.
§ 276. Como já o referimos (§ 271), os interesses tutelados pelo direito disciplinar público reconduzem-se à boa organização e eficácia dos serviços públicos, e à confiança dos cidadãos nestes serviços. Daqui resulta que o fim último ou razão de ser da aplicação das sanções disciplinares é a preservação destes interesses administrativos, análogamente ao que se passa no direito penal, em que o fim último das penas é a protecção dos bens jurídico-penais (§ 94).
§ 277. Também, de forma análoga com o que acontece no direito penal, as sanções disciplinares são os meios que o direito disciplinar utiliza para realizar o referido fim último de protecção dos mencionados interesses administrativos. É, aqui, que surge o problema dos fins ou funções das sanções disciplinares. Ora, sernelhantemente ao que se passa com as penas (sanções criminais - cf § 96 ss.), também as sanções disciplinares públicas têm uma dupla função: prevenção geral e prevenção especial. Têm uma função preventivo-geral positiva e negativa: positiva, na medida em que, PO'rum lado, visam a manutenção ou recuperação da confiança da comunidade dos cidadãos nos respectivos serviços públicos, e, por outro lado, alertarn e consciencíalizam os outros funcionários para a importância e necessidade sociais de os serviços públicos funcionarem adequadamente; negativa, ao dissuadirem outros funcionários da prática de ilícitos- disciplinares. Mas também têm uma função preventivo-especial positiva e negativa: positiva, ao interpelarem o funcionário infractor para a relevância social da sua acção "pública" e, assim, o motivarem para a não reincidência; negativa, na medida em que a sanção disciplinar, sendo um mal para O' funcionário condenado, visa- dissuadi-lo da prática de novas infracções disciplinares. Esta prevenção especial negativa pode ir ao.ponto da própria neutralização 0\1 inocuização do funcionário infractor, no caso das sanções
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Competência Ieglslaríva
§ 278. Tal como no direito de ordenação social (§ 248), também, no direito disciplinar público, há que distinguir a definição do regime geral (material e processual) das infracções disciplinares e a definição das concretas infracções disciplinares. Assim, enquanto o «Regime geral da punição das infracções disciplinares» constitui matéria da rés erva relativa da competência legislativa da Assernbleia da República (CRP, art. 165.o-l-d), já a definição-qualificação de determinadas condutas como infracções disciplinares é da competência (concorrente) quer da Assembléia da República quer do Governo. Compreende-se esta reserva de competência legislativa da Assembleia da República, posto que relativa, tendo em conta a gravidade de certas sanções disciplinares e, consequentemente, a necessidade de garantia dos cidadãos funcionários. 4.
Outras considerações avulsas sobre o direito disciplinar público e sobre eventuais conexões entre este e o direito penal
§ 279. Dada a já. referida (§ 270) autonomia material entre o ilícito disciplinar e o ilicito penal e a consequente autonomia dos proce:,:
(17) Actas das Sessões da Comissão Revisara da Código Penal Il, p. 111. (") Direito Penal. tomo I, 2." ed .. Coimbra Editora, 2007, p. 170.
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Parte J -
150
Questões Fundamentais
Titulo 1 -
nada obsta, em psincípío, à aplicação e da sanção disciplinar, .quando o simultaneamente, crime e infracção disciplinar.
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§ 280. Mas, na hipótese de à infracção em causa ser aplicável a sanção disciplinar de demissão CED, art. 26.°) e a pena acessória de proibição do exerclcio de junção pública por um período entre 2 e 5 anos (CP, art, 66.°-1), quid iuris'l
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dimentos
disciplinar
e criminal,
cumulativa da sanção criminal (pena) mesmo
facto constituir,
, No plano teórico, poder-se-à dizer que, sendo autónomas e, portanto, cumuláveis as responsabilidades penal e disciplinar, poderão ser aplicadas, pela autoridade disciplinar e pelo tribunal, as respectivas sanções. Mas, no caso de o tribunal, que julga a infracção enquanto crime, não aplicar a pena acessória (que é, registe-se, menos grave que a sanção disciplinar da demissão, urna vez que é temporária, enquanto esta é definitiva), poderá a autoridade disciplinar aplicar, no respectivo processo disciplinar, a sanção da demissão, ou, no caso de esta já ter sido aplicada, poderá manter-se a. condenação disciplinar? - Parece-me dificil unia resposta inequívoca, embora me incline para a solução que dá a prevalência à decisão judicial criminal. Pois que, se o tribunal entende que nem sequer a pena acessória de proibição temporária do exercício da' função deve ser decretada, com que razão há-de manter-se ou ser aplicada a demissão pela autoridade disciplinar administrativa? Já é diferente o caso em que o tribunal aplica a pena acessória de proibição temporária do exercício de função. É que podem existir fundamentos para a autoridade disciplinar decidir-se pela demissão, E até o próprio tribunal criminal podia também ter este entendimento; só que ele não pode aplicar tal pena acessória da demissão, 1.UTIavez que ela não existe. Assim, impedir a autoridade administrativa de aplicar a pena de demissão faria com que, absurdamente, o funcionário infractor fosse beneficiado com a aplicação da pena acessória, no procedimento criminal. § 281. O Estatuto Disciplinar, art. 6.°-1, estabelece que o despacho de pronúncia, em processo criminal, transitado em julgado, «determina a suspensão de funções e do vencimento de exercício até à decisão final absolutória, ainda que não transitada em julgado, ou à decisão final condenat6ria».
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O problema criminal-penal
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Esta disposição legal merece algumas observações, pois que, pelo menos à primeira vista, ela parece contrariar o princípio constitucional da presunção de inocência do arguido até ao trânsito em julgado da sentença condenatória (CRP, art. 32.0-2Y Consideremos, em primeiro lugar, a suspensão de junções. Ora, parece-nos criticável o tom absoluto desta disposição legal. E criticável porque pode estar em causa um crime que em nada afecte as funções públicas que o arguido (em processo penal) exerce, nem a confiança dos cidadãos na actividade pública exercida pelo funcionário. E, na medida em que assim for, não há qualquer razão para que o funcionário seja suspenso das suas funções. E, mesmo que o cidadão, que profissionalmente é um funcionário público, venha a ser efectivamente condenado por um crime que não afecte a credibilidade do exercício das suas funções públicas, nem, em tal hipótese, deverá ser prejudicado o seu estatuto de funcionário público. Exceptua-se, obviamente, o caso de urna condenação em pena de prisão: nesta hipótese, não pode .exercer as suas funções, durante o tempo de privação da liberdade, nem, consequenternente, terá direito ao correspondente vencimento. Aliás, o efeito indiscriminado, atribuído pelo referido art. 6.°_1 ao despacho de pronúncia, está em contradição com o art. 13.°-11 do mesmo Estatuto Disciplinar, quando este artigo distingue entre a sanção disciplinar de demissão que impede o funcionário de exercer qualquer função pública e a sanção disciplinar de demissão que, embora impedindo o funcionário de continuar a exercer a actividade que até então exercia, não o impede, todavia, de passar a exercer outra função pública, desde que para esta possua as «condições de dignidade e de confiança» que Q novo lugar exija. Em síntese: há que separar as chamadas vestes pública e privada do funcionário, só devendo repercutir-se no seu estatuto os crimes que, praticados fora do contexto da sua actividade pública, afectem', significativamente, a sua imagem e credibilidade de funcionário público. Daqui resulta a crítica ao referido art. 6.°-1: esta disposição devia distinguir entre despacho de.pronúncia por crime que afecta acredibilidade e a confiança nas funções que o arguido exerce, e despacho de pronúncia por crime que não afecta tal credibilidade e confiança. Se assim fosse, poder-se-ia dizer que, embora tal suspensão de funções contrarie o princípio da presunção de inocência, tal se justificaria como medida cautelar, analogamente com o que passa com a prisão preventiva.
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Parte I -
152
Questões Fundamentais
§ 282. Relativamente à suspensão do vencimento de exercício (que corresponde a um sexto do ordenado- cf art. 5.° do Dec.Lei n," 353-A/89, de 16 de Outubro, e art. 16.0 do Decreto n." 19478, de 18 de Março de 1931), concordamos com Faria Costa (19), quando argumenta que urna tal suspensão viola o princípio da presunção de inocência e o princípio da proibição de excesso. E isto porque, diferentemente da suspensão de funções, não se vislumbra, na suspensão do "vencimento de exercício", qualquer razão válidá para que ao despacho de pronúncia criminal se atribua um tal efeito.
§ 283. Uma última referência deve ser feita à questão do eventual conflito entre o dever de obediência do funcionário ao 'seu superior hierárquico e o dever geral de não praticar crimes. Uma vez que debateremos, desenvolvidamente, esta questão no contexto das causas de justificação (infra, § 765 5S.), fique, Me et I1Imc, apenas a ideia geral. E esta reconduz-se ao seguinte: enquanto que, num Estado autoritário, se defendia e eventualmente se defenderá a "obediência cega" às ordens de superior hierárquico e, em consequência desta absolutização do dever de obediência, se fazia prevalecer o dever de obediência sobre o dever de não cometer crimes, já, num Estado de Direito Democrático, o dever de Obediência deixa de ser absoluto (pois que o funcionário deixa de ser visto. como um mero instrumento nas mãos do seu superior hierárquico) e, em caso de conflito entre o dever de obediência e o dever de não cometer ilícitos criminais, prevalece este dever, ou, mais rigorosamente, cessa o dever de obediência. Na linha deste pensamento, a nossa cRI> de 1976, art. 271.°-3, veio, adequada e correctamente, estabelecer que «cessa o dever de obediência sempre que o cumprimento das ordens ou instruções implique a prática de qualquer crime». E, na sequência desta prescrição constitucional,tanto o CP, art. 36.°-2, corno o ED, art, 10. -5, acolheram esta mesma prioridade do dever de não cumprir ordens criminosas, transcrevendo a referida disposição constitucional: «Cessa o dever de obediência sempre que o cumprimento das ordens ou instruções implique a prática de qualquer crime» (ED, art. 10.0-5; texto este que é materialmente idêntico ao do CP, ali. 36."-2).
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5.° CAPÍTULO O PRINCÍPIO
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Génese histórico-política: Estado de Direito
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(19) Noções Fundamentais 2007, pp. 65-66.
TÍTULO II
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§ 284. No capitulo dedicado à evolução histórica do direito penal, vimos que o direito penal do absolutismo monárquico (Allcien Régime) se caracterizou por uma verdadeira sujeição do indivíduo ao poder absoluto do Estado. Neste período das monarquias absolutas, período que atingiu o seu clímax com o 'despotismo iluminado do chamado EstadoPolicia, aos indivíduos não eram reconhecidos quaisquer direitos e liberdades naturais fundamentais, e a lei penal era tida como instrumento da efectivação do poder absoluto do rei. Por sua vez, os poderes de soberania (legislativo, executivo e judicial) eram considerados prerrogativas do monarca e, como tal, concentrados na pessoa deste. Numa tal concepção política totalitária, natural foi que o direito penal tivesse sido caracterizado pela arbitrariedade, pelo tenor punitivo ao serviço da manutenção do poder político real, pelo classismo e pela inexistência de quaisquer garantias individuais (cf. § 20 5S.).
§ 285.
Paralelamente ao crescendo da absolutização
do poder
rnonárquico, vai-se desenvolvendo numa nova consciência e teorização política caracterizada pelo individualismo (afirmação de um conjunto de direitos e liberdades que, por natureza, são inerentes a todo o cidadão),
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Parte I -
Questões Fundamentais
pelo contratualisrno (o poder de soberania radica nos cidadãos que, por razões de praticabilidade, o delegam nos seus representantes políticos), pelo, racionalismo e pelo Icgalismo (o exercício dos órgãos de soberania está subordinado à lei, sendo a generalidade e a abstracção desta a garantia da igualdade de tratamento dos cidadãos), Esta nova teoria política está na origem do Estado deDireito, que se afirma, em substituição do Estado Absoluto, a partir de fins do séc. XVIII, com a Revolução. Francesa (1789),
§ 286.
Sendo o direito penal o ramo do direito cujas sanções, as penas, mais directa e gravemente afectam os direitos e as liberdades individuais, foi e continua a ser compreensível que o princípio da legalidade tivesse assumido, relativamente ao direito penal" uma importância acrescida e radical, e que tivesse obtido dignidade constitucional, logo nas primeiras Constituições Liberais (do Estado de Virgínia, em 1776, da Constituição Francesa, em 1791, da nossa Constituição, em 1822, ete.). O louvável objectivo de pôr fim às arbitrariedades judiciais e governativas, cometidas durante o absolutismo monárquico, conjugado com a ingenuidade racionalista própria dos precursores, levou a um exacerbado e utópico entendimento do princípio da legalidade penal. Assim, . para prevenir qualquer risco de arbitrariedade judicial, a lei penal devia . ser .exaustiva na enumeração e descrição do facto criminal e estabelecer uma pena fixa para cada tipo de crime, ficando para o juiz o mero papel de aplicador automático da lei ao caso concreto: na expressão de Montesquieu (1748), o juiz é apenas «a boca da lei», e na de Beccaria (1764), o juiz é um «autómato da subsunção: do caso concreto à lei.
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Fundamentos
do princípio
§ 287. Como claramente se deduz do que acabámos de referir, os fundamentos originários do princípio da legalidade penal foram jurfdíco-políticos, Efectivamente, a matriz deste princípio foi, e continua a ser, a de garantia do cidadão frente ao poder punitivo do Estado. Neste sentido, é correcta e adequada a frase com que Franz von Liszt, em finais do séc. XlX, cunhou o principio da legalidade como
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Título [[ - A Lei Penal: criação e aplicação
155
«magna charta do delinquente». Pois que, ao exigir-se urna lei escrita, precisa e anterior ao facto, o infractor estava protegido contra intervenções punitivas arbitrárias. Esta garantia política viu-se reforçada com a consagração constitucional do princípio da separação dos poderes, ao atribuir aos representantes directos do povo (ao parlamento) a competência exclusiva para definir os crimes e estabelecer as penas.
§ 2.88. A estas razões de natureza jurídico-política vieram somar-se fundamentos polítícc-crhnínaís. O iluminismo criminal (cf § 29 S8.), ao atribuir à pena uma função pragmática de prevenção geral de dissuasão, veio reforçar a exigência de que a lei penal fosse clara e anterior ao facto. Se a lei penal tem a função de levar os cidadãos a que não pratiquem factos criminosos, então ela deverá indicar com precisão o que é crime e qual a pena que a este é aplicável, bem como tem que ser anterior à prática do facto. Portanto, o princípio da legalidade penal é exigência lógica da função de orientação e de dissuasão geral imputada à pena. Feuerbach (1801), autor a quem é atribuída a formulação latina do princípio da legalidade - nullum crimen, nulla poena sine lege -, viu este princípio, simultaneamente, como garantia política do cidadão e como condição da eficácia da sua teoria da coacção psicológica (cf § 37) .
IIL Dimensões
ou exigências. do princípio
da legalidade
§ 289. A ratio de garantia jurídico-política do. indivíduo contra as eventuais arbitrariedades punitivas por parte dos tribunais ou dos governos determinou e continua a determinar a consagração constitucional do principio da legalidade penal. Assim, a nossa Constituição, arr, 29.0-1, estabelece que «Ninguém . pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior»; e os n.OS 3 e 4 esclarecem que «Não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior» e que não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança mais graves do
Parte I -
156
Tttulo II - A Lei Penal: criaçei!>e aplicação
Questões FWldalllenraiJ
que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos. Estas disposições constitucionais (cujo conteúdo é idêntico ao do CP, art, 1°_1 e 2 e art. 2.°-1) consagram, pois, o princípio nullum crünen, nu/la poena sine lege prévia e a conexão entre a pena e o crime correspondente. 1. A exigência de lei em sentido formal -
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nulluni áimen sine
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lege scripta
§ 290. Desde as origens do Estado de Direito, tanto a doutrina constitucional como a penal entenderam que a separação dos poderes de soberania era um meio de garantir os direitos e as liberdades individuais fundamentais. E também esteve (e está) sempre presente que' a definição dos crimes e a estatuição das penas deviam ser da competência exclusiva do Parlamento. Este, como órgão directamente emanado da "vontade geral" da comunidade social, e enquanto órgão do debate político plural e órgão não comprometido directamente com a eficácia da acção govemativa, era o poder que mais garantias dava contra eventuais e conjunturais tentações de criminalizações e penalizações arbitrárias. Assim o entende a nossa Constituição, tal como a 'generalidade das o Constituições democráticas. E, nesta linha estabelece a CRP, art 165. -1-c}: «É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo: Definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos». Daqui resulta que a única fonte do direito criminal-penal é a lei em sentido formal ou orgânico, embora a Assembleia da República possa, mediante uma lei de autorização, delegar no Governo esta competência: desde que o objecto, o sentido e a extensão da autorização estejam definidos na respectiva lei de autorização. É a chamada reserva relativa de competência legislatíva da Assembleia. da República, prevista no referido art. 165.o-l-c) e 2. § 291. Do que acaba de dizer-se resulta que O corolário do princípio da legalidade do nullum. crimen, nulla. poena sine lege scripta significa que a única fonte de direito penal é a lei formal, ou seja a lei da Assembleia da República. Esta, a Assembleia da República é sempre a
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fonte última: directa, quando é este órgão político-legislativo a definir os crimes e a estatuir as correspondentes penas; indirecta, quando, através de uma lei de autorização, delega no Governo esta competência. Observe-se, porém, que o significado originário da exigência de lei escrita (que, em si, apenas exigiria que a definição dos crimes e das penas contasse de diploma legislativo escrito, independentemente do órgão de soberania que O aprovasse) foi, principalmente, o de afastar o costume como fonte de direito penal e a figura dos chamados "crimes naturais", "crimes" estes que não implicavam, durante as épocas anteriores ao Estado de Direito, a sua expressão escrita legal. A exigência, coeva ao Estado de Direito, de lei escrita visou, portanto, excluir o costume e a figura dos "crimes naturais" das fontes do direito penal. É que, tanto o apelo ao costume como a figura dos "crimes naturais" tinham sido, no Ancien Régime, fonte de grande insegurança jurídica do cidadão e de graves arbitrariedades judiciais. § 292. Tendo sido este o objectivo principal da exigência de lei escrita, natural foi que, uma vez consagrada a separação dos poderes, se visse no poder legislativo o órgão mais adequado à garantia dos cidadãos frente ao direito punitivo estatal, e, assim, lhe fosse atribuído, desde os prim6rdios do Estado de Direito, a competência exclusiva para a criminalização das condutas e para a responsabilização penal dos respectivos agentes. Sendo, portanto, razões de garantia que estão na base da atribuição da competência legislativa à Assembleia da República, poder-se-á perguntar se o Governo não tem competência concorrente (com a Assembleia da República) para a descrimínalização e para a redução das penas e das medidas de segurança, uma vez que, nestes. casos, o cidadão infractor não ficaria prejudicado, mas, pelo contrário, beneficiado. A minha opinião vai, inequivocamente, no sentido de que o Governo não tem competência para descrímínalízar ou reduzir as sanções ,criminais (penas ou medidas de segurança) definidas e estabelecidas quer por lei formal quer por decreto-lei sob autorização Iegislativa. É certo que esta minha posição (aliás partilhada pelo nosso Tribunal Constitucional) não se fundamenta directamente na ratio de garantia do princípio da legalidade. Mas há dois fundamentos constitucionais para recusar uma tal competência negativa: descriminalizar ou reduzir a pena
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Parte
r -
Questões Fundamentais
ou medida de segurança. Um, que é estritamente constitucional e parece de meridiana evidência, é o de que o princípio da separação de poderes seria afectado, e mesmo violado, se, atribuída a competência legislativa exclusiva em determinada matéria à Assembleia da República, pudesse o Governo (que em relação a urna tal matéria é um órgão subordinado) vir legislar negativamente, i. é, pudesse "desdizer" o que a Assembléia "disse". Seria uma incoerência e mesmo contradição intraconstitucional. Na verdade, um tal poder o Governo só o tem 'em matérias de competência legislativa concorrente; que são aquelas que não constam dos arts. 164." e 165,0 da CRP. Um segundo argumento já é de natureza jurídico-constitucional penal. E consiste no seguinte: sendo, como já o referimos (§ 69 58.), matéria da exclusiva competência da Assembleia da República a definição dos bens jurídico-penais (CRP, arts, 17.°, 18.° e 165.0-1-c}), competência esta que não deve ser vista como um poder ou faculdade arbitrária, mas 'sim como uma função (legislativa) na determinação dos bens que ela (a Assembleia) considera essenciais à vida individual e social e carecidos de uma determinada 'tutela penal, então não teria qualquer razoabilidade atribuir ao Governo competência para vir "dizer" que tais bens não têm "dignidade penal" ou, se a têm, não devem ter uma protecção penal tão intensa como a que a Assernbleia da República lhe confere. § 293. Problema complexo e de difícil resolução, quanto à sua compatibilidade ou não com o princípio da legalidade na sua exigência de lei formal, é o das normas penais em branco. A extensão do direito penal a novas e tecnicamente complexas áreas, como o ambiente, o urbanismo, etc. obrigaram o legislador penal a recorrer à técnica da lei penal em branco. .Terão sido, fundamentalmente, duas as razões que "obrigaram" a esta técnica: por um lado, a complexidade técnica da regulamentação de certas actividades, regulamentação cujo não cumprimento pode lesar ou pôr em perigo. bens jurídico-penais, como a vida, a saúde, a confiança em actividades financeiras, etc., e cuja complexidade só pode ser lida devidamente em conta pelo poder executivo ou até pelas organizações profissionais, que não pelo poder político-legislativo; por outro lado, a mutabilidade desta regulamentação, resultante das inovações tecnológicas ou das conjunturas económico-sociais, aconselhava a que as res-
Titulo 1/ - A Lei Penal: criação e aplicação
159
pectivas normas regulamentadoras constassem de instrumentos n011l1ativos, que pudessem ser alterados por um processo mais expedito que O processo parlamentar. Por estas razões, tem-se vindo a assistir a um crescendo de normas penais em branco, sobretudo. nos direitos penais especiais (cf. § 268 s.), também designados globalmente por direito penal secundário ou administrativo. .. (." j;
§ 294. A resposta à questão da constitucionalidade, ou não, das normas penais em branco exige que, previamente, se defina o que se entende por norma 'penal em branco.
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Embora haja divergências doutrinais 'sobre o conceito de lei ou norma penal em branco, entendo que é uma norma que contém a sanção penal e que, quant? ao facto típico, remete, total ou parcialmente, para a descrição feita por uma outra norma extrapenal do ordenamento jurídico. Portanto, a nonna penal em branco determina, directa e expressamente, a pena, e define, indirectamente ou por remissão, a matéria da proibição penal, isto é, a conduta a que é aplicável a sanção estabelecida pela dita norma penal em branco. O problema da (in)constitucionalidade coloca-se, obviamente, em relação- à norma extrapenal complementar, implementadora ou integradora da norma penal em branco, uma vez que esta tem, necessariamente, de constar de lei ou de decreto-lei autorizado pela Assembléia da República. Ora, desde que a norma complementar extrapenal (jurídico-civil, admiillstrativo-regulamentar ou técillco-profissional) respeite as exigências de deterrninabilidade ou tipicidade, também decorrentes do princípio da legalidade penal, não vejo razões para considerar inconstitucional a norma penal em branco. Pois que é o próprio legislador penal a definir, embora por remissão, a matéria da proibição penal e, portanto, a norma para que remete também assume, por força da remissão legal penal, natureza penal. Tomada a norma penal em branco neste sentido estrito (em que a totalidade, ou parte substancial, da factualidade típica consta de uma norma extrapenal), o que se exige é que a remissão-conexão entre a norma penal e a extrapenal seja clara e inequívoca e que esta seja precisa na descrição da conduta. E, por outro lado, é claro que a alteração do conteúdo normativo da norma extrapenal determinará a revogação tácita da norma
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Quesfões
Título fi - A Lei Penal: criação e aplicação
Fundaruentais
fosse o correcto e adequado, então teriamos a conclusão inevitável de que a maioria das normas penais, tanto do chamado direito penal especial ou secundário como do direito penal clássico contido no Cócligo Penal, seriam normas penais em branco, passando o que deve ser considerado excepção a regra. - Penso que não se deve confundir norma penal em branco (que é aquela cuja [actualidade típica consta de uma norma extrapenal) com norma penal que, entre os seus vários elementos típicos, contém um ou mais elementos normativos, cuja determinação conceitual é realizada por nOImas extrapenais, sejam jurídicas, consuetudinárias ou técnicas.
penal em branco. Exemplo: se a norma penal em branco estabelece que é punível com determinada pena de prisão ou de multa quem praticar o facto descrito na norma extrapenal x, é evidente que a alteração da hipótese legal desta norma, implicará a ineficacia da norma penal em branco. Diga-se, por último, que, em minha opinião, as normas penais em branco com o sentido estrito, que lhes atribuo, devem evitar-se ao máximo, só sendo admisslveis quando tal for técnico-Iegislativamente indispensável. Pois a regra é que a norma penal seja completa: contenha o tipo legal e a estatuição
penal.
§ 295. Acrescente-se, finalmente, que vários autores 'como, p. ex., Teresa Beleza e Frederico Costa Pinto ('-0), alargam o conceito de norma penal' em branco ao ponto de a fazerem coincidir com toda e qualquer norma penal que contenha qualquer elemento normativo cujo significado seja dado por uma norma extrapenal ou pelos conhecimentos ou regras técnicas de urna determinada actividade profissional. Assim, Teresa Beleza e Frederico Costa Pinto davam, como exemplos de normas penais em branco, os arts. 150.° (devido ao elemento «o estado dos conhecimentos e da experiência da medícína»), 204.° (por ter como urna das causas da qualificação do furto, o «valor elevado ou consideravelmente elevado» ou o «importante valor 0 científico, artistico ou histórico» da coisa furtada), 224. (<
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§ 296. Uma breve referência deve ser feita à relação entre a legislação comunitária e o díreito penal de cada um dos Estados da União Europeia. E sobre isto há que dizer que os actos normativos da Comunidade Europeia não são fonte de direito penal. Não são, nem nunca o poderão ser enquanto o Parlamento Europeu não tiver poderes legislativos, E, como as coisas correm, parece que tão cedo não será viável que a União Europeia possa ser fonte de direito penal. O que pode acontecer - e está acontecendo - é que a União Europeia obrigue .os Estados membros a criar normas penais para tutelar determinados bens jurídicos ou determinados interesses da Comunidade Europeia, mediante directivas vinculativas de cada um dos seus Estados. Urna tal situação é evidente que, sob o ponto de vista formal, não belisca o principio da legalidade, pois. que continua a lei formal estadual a ser a fonte directa da criminalização ou agravação da responsabilidade penal; mas, uma vez que tais directivas não são da competência do Parlamento Europeu (único órgão cujos membros são directamente eleitos pelos povos da União), também ter-se-á de reconhecer que, sob o ponto de vista material, o princípio da legalidade é, de alguma forma, afectado na sua exigência de que fonte do direito penal só pode ser o poder legislativo, directamente representativo dos cidadãos. Problema diferente é o da exclusão da ilicitude. Pois que, estando em causa não a fundamentação da responsabilidade penal, mas o inverso, e uma vez que os regulamentos comunitários fazem parte do direito de cada Estado membro, eventuais condutas permitidas por tais regulamentos, terão de considerar-se justificadas, mesmo que formalmente previstas por uma lei penal estadual. lI-Dir. Penal
Parte [ - Q'
162
§ 297. As Convenções e os Pactos Internacionais sobre os.direitos' humanos tConvençõo Europeia dos Direitos Humanos, de 1950, Pacto Internacional sobre os Direitos Civis, Políticos e Sociais; de 1966, etc.) também não são fonte de direito penal, mesmo após a sua ratificação e publicação no Diário da República, porque, embora possam prever ilícitos, não estabelecem penas. Tal não significa que não desempenhem uma função materialmente inspiradora e mesmo cogente da adopção do seu conteúdo norrnativo pelas leis dos Estados que as ratifiquem.
2. A exigência de determínabílidade men sine lege certa
ou tipicidade
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§ 298. Postulado ou corolário nuclear da função de garantia jurídico-política do cidadão frente 'ao poder punitivo estadual é a exigência feita ao legislador penal de que, na criação da lei penal, descreva o facto p1.UÚvel da forma o mais possível precisa. É necessário e constitucionalmente imposto que a conduta qualificada como crime seja objectivamente determinável pelos destinatários da norma penal, os cidadãos, em primeiro lugar, e O julgador, no segundo momento da aplicação da lei penal. Na verdade, sendo importantes a exigência de que a crirninalização conste de lei formal e a proibição da aplicação analógica desfavorável, é. ainda mais decisiva, no sentido do cumprimento ou efectivação da .garantia do cidadão; a exigência de determinabilidade da conduta punível, bem como a proibição da aplicação retroactiva da lei penal. Acresce a esta fundamental razão jurídico-política a razão político-criminal da função preventiva e, portanto, de orientação e motivação das condutas. Visando a lei penal prevenir a prática de condutas lesivas ou susceptiveis de lesar os valores fundamentais para a vida pessoal e comunitária, através da motivação e dissuasão da prática de tais condutas, então a lei penal . deve caracterizar estas condutas de modo a que não haja dúvidas sobre a "matéria da proibição", i. é, sobre os factos que constituem crime. § 299. Ao serviço desta exigência de determinabilidade está precisamente a específica e adequada categoria jurídico-penal do tipo legal. É que, diferentemente dos outros ramos do direito, no direito penal o legislador tem que descrever as características do facto, que é pressuposto
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da aplicação da pena, da forma o mais completa possível. Assim, é natural que a hipótese legal (previsão normativa ou preceito primário) assuma, direito penal, uma maior complexidade do que noutros sectores do ordenamento jurídico.
no
Esta exigência e correspondente técnica Iegislativa de tipificação ou precisão implica a recusa da utilização de cláusulas gerais na definição das condutas proibidas. Uma tal utilização frustraria, dada a incerteza e indeterminação que lhes é inerente, a ratio de garantia subjacente à consagração constitucional do principio da legalidade e, portanto, seria inconstitucional. Seria o caso, por exemplo, de uma norma penal que estabelecesse uma determinada pena para quem "praticasse uma acção gravemente lesiva da economia nacional" ou' "do ambiente", ou, ainda, "quem praticasse actos terroristas". § 300. Já, relativamente aos elementos normativos ou minados, o desejável e exigível é que a sua inclusão, no tipo factualidade típica, seja reduzida ao mínimo indispensável, eles afectam, em maior ou menor escala, o objectivo ideal transparência, legal das condutas que o tipo legal abrange.
índeterlegal ou pois que da plena
Mas, na realidade, é inevitável, em muitos tipos legais, a utilização de elementos normativos ou indeterminados. Basta folhear o Código Penal para vermos como são relativamente frequentes tais elementos e para vermos a indispensabilidade da sua utilização. Eis alguns dos muitos exemplos de elementos normativos: "dever jurídico que pessoalmente obrigue" a evitar o resultado (art. 10.°-2), "bons costumes" (art. 38."-1), "motivo torpe ou fútil" e "meio insidioso" (art. 132.°-2), "censurável" 0 (art, 154. -3-a)); e como exemplos de elementos normativos indeterminados, mas determináveis segundo critérios objectivos, jurídicos ou extrajurídicos: "estado dos conhecimentos e da experiência da medicina" (art. 150.°), "valor elevado" e "valor consideravelmente elevado" 0 (art, 204. -I-a) e 2-a), "documento autêntico" e "testamento cerrado" (art. 256.°-3), "prescrições da autoridade competente" (art, 275.0-1).
3. A proibição da aplicação analégíca lege stricta
nullum crimen sine
§ 301. Além das suas exigências de lei formal e precisa - exigências feitas ao legislador e, portanto referidas à "criação" da lei penal _, que
Parte I -
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acabámos de analisar, o princípio da legalidade tem, ainda, uma terceira exigência feita ao legislador, que é a da proibição de este atribuir eficácia retroactiva à lei criminalizadora ou agravante da responsabilidade penal, exigência que se verte na fórmula latina nullum crimen sine lege praevia. Mas, uma vez que esta matéria da ;'aplicação da lei penal no tempo" tem uma multiplicidade de questões a tratar, considero mais adequado dedicar-lhe wn capítulo próprio, que será o seguinte. Assim, passamos, agora, à consideração da quarta exigência do principio da legalidade, exigência que tem por destinatário o aplicador da lei penal e que se traduz na proibição da aplicação anãlógica da lei penal.
§ 302. Já referimos que os autores do chamado Ilumínismo Criminal (cf § 286) procuraram configurar o princípio da legalidade penal de forma que este constituísse um obstáculo intransponível pelas eventuais, e sempre possíveis, arbitrariedades não só do poder legislativo como também do poder judicial. Relativamente ao poder judicial, p'ensaram que o meio de impedir qualquer arbitrariedade ou discricionariedade judicial, em matéria penal, era a vinculação do juiz a uma estrita interpretação literal, ou seja reduzir o aplicador da lei penal a um mero instrumento mecânico de aplicação da lei. Neste sentido iam as célebres expressões de Montesquieu e de Beccaria: o juiz é apenas a "boca da lei"; o juiz é somente um "autómato da subsunção" do caso concreto à lei penal. Isto é, a lei penal seria como que urna moldura geometricamente' bem delimitada, cabendo
ao juiz verse
o caso concreto nele cabia, ou não.
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§ 303. Como evidente, pese embora a boa intenção destes defensores de uma rigorosa interpretação literal da lei penal, a verdade é que, desde logo, se entendeu que uma tal posição era irrealista, pois que nem o texto legal é uma construção geométrica, nem o caso concreto é uma realidade linearmente definida. O texto da lei penal, como o de qualquer lei, é constituído por um conjunto de palavras, E cada uma destas palavras não tem um único significado, mas uma plul'alidade de signiflcados. E, se cada palavra é em mesma polissémica, saber qual o signiflcado que lhe deve ser atribuído ôepende do próprio contexto li:teral em que ela se insere como pedra ele um edifíci.o, como elemento de um todo unitário. :Por sua 'lei, a determinação do sentido e a\cance normativo do texto kgal, em que se maWi)'
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Titulo II - A Lei Penal: criação e aplicação
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rializa a norma, depende da finalidade ou teleologia desta. Determinar qual a finalidade e quais as condutas que são abrangidas pela norma é precisamente o objectivo e o objecto da interpretação jurídica. Esta determinação da finalidade e do âmbito normatívo do texto legal não é uma operação abstracta, intuitiva ou desvinculada de critérios, directrizes ou factores concretos, pois que, se o fosse, correr-se-ia o risco de uma insuportável incerteza jurídica nas decisões judiciais e, consequenternente, a segurança jurídica dos cidadãos seria mortalmente ferida.
§ 304. No sentido de evitar interpretações judiciais discricionárias ou mesmo arbitrárias, o nosso Código Civil, art. 9.°, indica os critérios ou factores de interpretação. De acordo com 'este artigo, cujas disposições são válidas não apenas para o direito civil mas para todos os ramos do direito, incluindo o penal, o intérprete-aplicador deve procurar descobrir qual é "o pensamento Iegislativo", isto é, qual é a finalidade e o âmbito normativo da lei: as situações fácticas ou os casos concretos abrangidos pela norma jurídica. Para conseguir este objectivo, o intérprete deve atender quer às circunstâncias históricas em que a lei foi elaborada quer às circunstanciais actuais em que a lei é chamada a ser aplicada, bem como à ratio ou teleologia da norma. Mas há um outro factor" da interpretação que não pode ser esquecido: o texto legal ou enunciado linguístico, pois que é este o meio de comunicação entre o legislador e os destinatários da norma jurídica, é este o mediador da normatividade jurídica sobre a realidade fáctica. Ora, o Código Civil, art. 9.', atribui, correctamente, ao texto legal ou teor literal duas funções essenciais: por um lado, e logicamente, o texto legal é o ponto de partida da interpretação (art. 9.°-1); por out.ro lado, e também correctamente, o texto legal impede uma interpretação que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal (art. 9.°-2). § 305. Quando, porém, o intérprete chegue à conclusão de que o caso concreto a decidir não é abrangido por nenhuma das interpretações que texto legal comporta, então estamos diante de uma "lacuna da lei" ou eventualmente de uma "lacuna do direito", consoante exista, ou não, norma jurídica que se aplique a um caso análogo (Código Civil, art. 10.°). No primeiro caso, a lacuna será preenchida pela aplicação analógica (an.alogia legis); no segundo caso, será preenchida pelo apelo aos prin-
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Parte f - Questões Fundamentois
cípios jurídicos fundamentais subjacentes às normas que regulam o sector jurídico em que a questão concreta se insere (analogia iuris). Podemos, então, concluir que a distinção prática entre analogia e interpretação está no facto de, na primeira, se aplicar uma norma jurídica a uma situação ali conduta que não se encontra abrangida por nenhum dos possíveis sentidos do texto legal, enquanto que, na interpretação, por mais extensiva que o seja, a decisão jurídica é ainda a concretização de um sentido nonnativo que o teor Iiterário comporta.
. § 306. É certo que, para além das objecções metodológicas à distinção entre analogia e interpretação,é difícil a distinção prática entre a ana-o logia e a interpretação extensiva. Com efeito, definindo-se esta como' um processo hermenêutico que consiste em alargar o sentido do texto legal de forma a fazê-lo coincidir com a finalidade da norma jurídica (ou com o "pensamento legislativo", na expressão do nosso Código Civil, art. .9."), e utilizando ela os argumentos da igualdade e da maioria de razão (a pari ou a fortiorõ - argumentos ou processos lógico-metodológicos estes que, em minha opinião, parecem ser materialmente idênticos aos utilizados no procedimento de aplicação analógica -, então não se vê qual a distinção material entre a interpretação extensiva e a .aplicação ana- . lógica de lima norma. E, por esta razão, não sei se terá quaisquer consequências metodológico-práticas a eliminação, operada pelo CP de 1982, da proibição da interpretação extensiva incriminadora, proibição que constava do CP de 1886, art.. 18.°, ao lado da proibição da aplicação analógica (CP de 1886, art. 18.°: «Não é admissivel a analogia ou indução por paridade ou maioria de razão para qualificar qualquer facto como crime, sendo sempre necessário que se verifiquem os elementos essencialmente constitutivos do facto criminoso que a lei expressamente declarar»). Com efeito, quando se diz que, na interpretação extensiva, o caso decidendo não está abrangido pelo "teor literal" mas está abrangido pelo "espírito da lei" e, portanto, há que alargar o âmbito (dos sentidos possíveis) do texto legal, parece estar, implicitamente, a dizer-se que o caso concreto vai ser decidido com base num sentido imputado à norma, sentido este que exorbita do texto legal; isto é, que vai para além dos sentidos literais possíveis. § 307 .. As breves impressões e dúvidas, que acabo de expor, não significam que eu pense que não deve manter-se a proibição da analogia
Título II - A Lei Penal: criação e aplicação
167
in malam partem. Entendo que deve e que tal é uma exigência e conseil,~ .-1;
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quência da ratio de garantia política inerente ao princípio da legalidade. Só que me parece que as mesmas razões de garantia levam a que também a chamada interpretação extensiva in. malam partem deva ser proibida. O mesmo raciocínio me parece aplicável à chamada redução teleológica (ou interpretação restritiva) do teor literal das causas de justificação, nomeadamente das previstas no Código Penal. É que também aqui o processo ínterpretativo redutor do âmbito do permitido pelo texto legal redunda na qualificação como não 'justificada (não excludente da ilicitude penal) de uma situação que o teor literal considera como justificadora. Ou seja, a redução teleológica, com fundamento na ideia de que o legislador "disse" (justificou) mais do que o que queria "dizer" Gustificar),acaba por, em nome do "espírito da lei" mas contra a "letra da lei", vir a qualificar como crime uma conduta que, segundo o texto legal, estava justificada. § 308. Sem deixar de reconhecer as objecções metodológicas e as dificuldades práticas da distinção entre a analogia proibida e a interpretação permitida, o que me parece decisivo é que a razão de certeza e segurança jurídica do cidadão frente ao poder punitivo estadual proíbe a aplicação de urna norma penal a uma situação que não esteja expressamente abrangida por um dos (eventuais) vários sentidos compatíveis com o texto legal em que a norma se materializa e se manifesta. O objectivo da interpretação é a descoberta: da ratio da norma -.:....interpretação teleológica -, i. é, a descoberta de qual o bem jurídico que ela visa tutelar e de quais as situações fácticas a que se deverá aplicar, tendo em conta a sua teleologia normatíva. O texto legal constituí, porém, um limite às conclusões inlerpretativas teleológícas, no sentido de impedir a aplicação da norma a urna situação que não seja abrangida pelo teor literal da norma, isto é, por um dos vários significados da(s) palavra(s) do texto legal. Poder-se-à dizer que, assim, ficarão, por vezes, fora do âmbito jurídico-penal situações tão ou mais graves do que as expressamente abrangidas pela norma penal, isto é, comportamentos que, por identidade ou até por maioria de razão, também são abrangidos pela ratio da norma e, portanto, deveriam ser também puníveis .. Responde-se que assim é, e tem de ser, quer em nome da tal garantia política do cidadão quer na linha do carácter fragmentário do direito penal.
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Parte { - Questões Fundamentais
Por estas mesmas razões, que são específicas do. direito penal e que estão relacionadas com a gravidade, natureza e finalidades das sanções criminais, é que, contrariamente ao que se verifica noutros ramos do direito, não existe, no direito penal, a figura da proibição da denegação de justiça, que está prevista no art, 8.° do CC. § 309. Como já foi referido, a proibição da aplicação analógica fundamenta-se na razão de garantia política do cidadão frente ao ius puniendi estataL E foi esta razão que levou o legislador constitucional a consagrar implicitamente, no art, 29.°-1 da CRP (elei que declare punível a acção ou ornissão»), a proibição da analogia, proibição que O legislador ordinário explicitou no CP, art. 1.°-3: «Não é permitido o recurso à analogia para qualificar um facto como crime, definir um estado de perigosidade ou determinar a pena ou medida de segurança que lhes corresponde» . Desta finalidade fundamentadora da proibição da analogia resulta claro que fi proibição abrange só a analogia in matam partem, isto é, a analogia desfavorável ao agente, e não a analogia "in banam partem ", ou seja, a favorável ao agente. Deste modo, é proibida a analogia incriminatória e a agravante da responsabilidade penal, quer estejam em causa normas da parte especial da CP ou normas constantes de leis penais extravagantes, que descrevam tipos legais de crime, quer se trate de normas da parte geral 'do CP, quando a sua aplicação analógica se traduza em fundamentação ou agravamento da punibilidade. Esta proibição também abrange as normas extrapenais complementares das leis penais em branco, pois que as razões determinantes da proibição da analogia desfavorável assim o impõem, Estas normas extrapenais, para as quais as leis penais em branco remetem, assumem, por força de tal remissão, natureza penal enquanto integradoras da lei penal em branco. § 310. Vejamos alguns exemplos de analogia desfavorável ou contra reum e, portanto, proibida. . Partindo da hipótese de que O art. 132.° do CP continha uma enumeração taxativa (o que não é o caso) das circunstâncias qualificativas do. homicídio, e de que estas circunstâncias se referiam, constitutivamente, ao ilícito e não à culpa (o que também não é o caso), a aplica-
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Ululo 11 - A Lei Penal: criação e aplicação
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ção da circunstância "adoptado" (art. 132.o-2-a)), a um adolescente morto por uma pessoa que o tinha facticaroente acolhido como filho, desde os primeiros meses de vida, constituiria uma aplicação analógica proibida, uma vez; que, por real que seja a identidade material entre esta situação de "adopção" fáctica e a situação de adopção jurídica, aquela exorbita do conceito desta, Um outro exemplo, que foi objecto de decisão pela jurisprudência portuguesa e pela jurisprudência alemã, foi o caso de saber se, para efeitos do crime de furto, a energia eléctrica devia considerar-se "coisa móvel". A resposta dada pelos tribunais portugueses foi, no geral, afirmativa, enquanto a dos tribunais alemães foi negativa. Ora, tendo em .conta que o conceito de coisa móvel (e o contexto literário do tipo legal de furto) implica uma corporalidade ou materialidade, isto é, algo que pode ser objecto de uma apreensão manual, parece que a razão esteve com a jurisprudência alemã.
Titulo II - A Lei Penal: criação e aplicação
cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior» (n." 1); «Não podem ser aplicadas penas. ou medidas de segurança que não estejam expressamente corninadas em lei anterior» (n." 3); «Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos» (n." 4, l.'parte). Estas disposições constitucionais estão, obviamente, incorporadas no CP, arfo 1.0_1 e 2 e art, 2.°-1,
6.° CAPÍTULO
A EFICÁCIA
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principie '"orável -
TEMPORAL
da proibição
DA LEI
da retroactividade
PENAL da lei penal desfá-
nulluni crimen, nutla poena slne lege praevia (21)
§ 311. A exigência jurídico-política
de garantia
do cidadão
frente
ao poder punitivo do Estado, exigência conatural ao Estado de Direito (cf. § 28455.), e a função preventivo-geral de dissuasão atribuída à pena (cf § 288) determinaram, desde fins do séc, a consagração constitucional da. proibição da aplicação retroactiva da lei penal desfavorável, Assim, quer a lei criminalizadora, quer a lei que viesse estabelecer uma pena mais grave do que a prevista pela lei em vigor no momento da prática do facto, só poderia ser aplicada aos factos come-
xvm,
tidos depois da sua entrega em vigor. § 312. Esta proibição da retroactividade da lei penal desfavorável foi logo acolhida, como referimos, pelas primeiras "Constituições Liberais':' de fins do séc. XVIII e princípios do séc, XlX (caso da nossa pri0 0 meira Constituição política de 23 de Setembro de 1822, arts, 9. , 10. e 11.°) como um princípio constitucional estruturante do Estado de Direito e continua a ser assumido pela geração das actuais "Constituições Sociais" como princípio constitucional fundamental. Assim, estabelece a nossa Constituição, art. 29.": «Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida de segurança
(lI) A multiplicidade d3S questões, que a sucessão de leis' penais levanta, é, desenvolvidarnente, tratada no meu livro Sucessão de Lés Penais, 3.' ed., Coimbra Editora,
2008.
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§ 313. Foram e continuam a ser, essencialmente, dois os fundamentos da proibição da eficácia retroactiva da lei penal: a razão jurídico· -política de garantia do cidadão face ao ius puniendi. estatal e a função preventivo-geral de intimidação ou dissuasão imputada à pena. Mas deve registar-se que foi e continuaráa ser a perenidade do fundamento jurídico-político de necessidade .de garantia e segurança do cidadão a âncora firme e inamovível da proibição da: retroactivi· dade penal desfavorável. É que, por maiores que sejam as mutações político-criminais sobre o fim da pena, sempre aquela necessidade jurídico-político-constitucional constituirá um intransponível travão à aplicação retroactiva da lei penal desfavorável. Foi precisamente esta consciência ético-política que impediu que este princípio da irretroactividade desfavorável fosse postergado em nome da concepção político-criminal da Escola Positiva (cf. § 50) que pretendeu substituir o direito penal dos factos pelo direito "penal" dos delinquentes e que advogou a substituição da categoria das penas pela categoria das medidas de segurança (da sociedade) e tratamento (dos delinquentes). Ou seja: em vez de penas, com uma função de prevenção geral, dever-se-iam somente aplicar medidas de segurança com uma mera finalidade de prevenção especial de actuação sobre a perigosidade dos delinquentes. E assim, isto é, se as medidas de segurança são apenas um meio de a sociedade se defender dos delinquentes, e· de tratamento da perigosidade destes, então a conclusão lógica político-criminal teria de ser a de que se · deveriam aplicar aos agentes de ilícitos criminais as sanções (medidas de segurança) que estivessem em vigor no momento do julgamento, independentemente de a lei, que as criou, ser posterior à prática dos respectivos factos, e mesmo que elas fossem mais graves dos que as previstas pela lei em vigor no momento da prática dos respectivos ilícitos criminais.
Parte I -
172
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Quesrões
FundamenC(lis
A verdade, porém, é que, apesar da importância que a Escola Positiva teve, nunca a sua tese da abolição da i.rretroactividade da lei penal desfavorável prevaleceu. E o obstáculo a que tal proposta tivesse vingado foi precisamente a fundamental e perene necessidade de garantia do cidadão, mesmo que delinquente, contra as sempre possíveis arbitrariedades do poder punitivo estatal Esta a razão que levou mesmo alguns autores, que aderiram entusiasticamente às teses da Escola Positiva (como, P: ex., o nosso Henriques da Silva), a continuarem a defender a irrenunciabilidade do princípio da proibição da retroactividade da lei penal desfavorável.
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A determinação
do tempus dellcti
§ 314. A funcionalidade e o pleno cumprimento das exigências éticas jurídico-política e político-crimjnal, que fundamentam a proibição da retroactividade da lei penal desfavorável, estão dependentes da determinação do chamado tempus delicti, i. é, do momento em que se deve considerar cometido o crime. Ora, uma vez que o crime é uma realidade complexa, que se decompõe em vários elementos, nomeadamente a acção e o resultado, e sendo ce110 que, por vezes, estes elementos ocorrem em tempos muito distantes entre si, torna-se indispensável determinar o elemento que constitui o critério decisivo para averiguar da anterioridade ou posterioridade da lei penal em causa.
§ 315. Embora já tivesse havido quem defendesse que decisivo era o momento do resultado, é, hoje, entendimento unânime, na doutrina e na julisplUdência, que o momento de referência é o da conduta, sendo irrelevante o momento em que se produz o resultado. E também é este o momento que o CP, art. 3.°, consagra como critério exclusivo do "tempo do crime", dizendo: «O facto considera-se praticado no momento em que o agente actuou ou, no caso de omissão, deveria ter actuado, independenterrlente do momento em que O resultado típico se tenha produzido», Observe-se que, por imperativo das já referidas razões de garantia, imanentes ao princípio da legalidade penal em geral e à proibição da retroactividade desfavorável em especial, não podia o legislador ordinário deixar de consagrar
o critério
unilateral
da conduta.
Titulo II - A Lei Penal: criação e aplicação
173
Conclusão: a proibição da aplicação retroactiva da lei criminalizadora e da lei agravante da responsabilidade penal significa que estas leis não podem aplicar-se ao agente de uma conduta praticada antes do seu inicio de vigência, mesmo que o resultado dessa conduta (p. ex., a morte) venha a produzir-se quando essa lei já está em vigor.
§ 316. A razão essencial da fixação do tempus delicti 110 momento da conduta (acção ou omissão) é, como vimos, a jurídico-política de garantia do cidadão. . Acrescem ainda razões suplementares em favor deste critério unilateral da conduta. São elas: a função de orientação das condutas que cabe à norma penal, a concepção subjectiva do ilícito penal e o fim preventivo-geral de dissuasão que a pena realiza. Relativamente à função de orientação da lei penal, há que dizer que, pressupondo a norma penal uma valoração de determinados bens juridicos, ela visa, consequentemente, determinar os seus destinatários, os cidadãos, a não praticarem (norma de proibição) ou a praticarem (norma de imposição) determinadas acções. Daqui a conclusão de que a violação da norma se concretiza na conduta e não no resultado, embora seja evidente que a razão da proibição ou da imposição é a de prevenir os resultados, i. é, a lesão dos bens jurídicos. Quanto ao argumento extraído da concepção subjectiva do ilícito penal, pretende-se acentuar uma ideia próxima da retirada da norma penal como norma de determinação das condutas, que é a de que a essencialida de da infracção penal radica no desvalor da acção (ou omissão) e não 110 desvalor do resultado. Na verdade, não há ilícito penal sem desvalor de acção, mas já pode haver ilícito penal sem desvalor de resultado. Finalmente, quanto ao fundamento político-criminal da fixação do tempus delicti no momento da conduta, fundamento derivado dafunção de prevenção geral da pena, há que dizer que a ameaça penal, contida na norma, visa dissuadir o agente da prática de determinadas condutas, pois que estas é que dependem do destinatário da norma, enquanto que os resultados, uma vez; praticadas aquelas, são muitas vezes inevitáveis. § 317, Estabelecido que o momento decisivo é o da conduta, não ficam, porém, resolvidos todos os problemas. É que, se em grande número de casos, a conduta tipificada na lei se realiza num determi-
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Parte 1 - Queslões FlIl1cfamel1caiJ
nado momento, há casos em que a conduta se protraí por um tempo mais ou menos longo: dias, meses ou até anos. Pensamos, especialmente, nas hipóteses dos tipos legais de crime duradouros, dos tipos de crime habituais, nos crimes de omissão e, ainda, nos casos de crime continuado, de comparticipação e da actio libera in causa. Em tais hipóteses, como claramente se intui, pode, entre o início da conduta e o seu termo, surgir uma lei criminalízadora ou uma nova lei que venha "simplesmente" alterar a pena (ou a medida de-segurança). - E, então, é inevitável a pergunta: no caso de a lei ser criminalizadora, devem ser tidos em conta os actos, ou a "parte" da conduta, praticados antes da sua entrada em vigor, uma vez que, segundo a referida lei, tais actos, sob o ponto de vista jurídico-penal, formam, juntamente com os actos praticados depois da entrada em vigor da referida lei, uma só unidade ou conduta criminosa"; e, no caso de a nova lei alterar a pena, qual _é-a que deve ser aplicada, já que tanto a antiga como a nova lei estiveram em vigor no tempo que durou a conduta? Apesar da diversidade das hipóteses referidas (crimes duradouros, crimes de omissão, etc.), há um denominador comum e relevante em todas elas: a inevitável ou possível "distribuição pelo tempo" da conduta ou condutas que são assumidas, jurídico-penalmente, como uma só unidade Cou continuação) criminosa.
§ 318. Vejamos como resolver esta questão. Tratando-se de lei crímínalízadcra, não há qualquer -dúvida: só podem ser consideradas as acções que foram praticadas depois do seu início de vigência; as anteriores (ou o tempo de duração da acção, anterior à entrada em vigor da lei) são, evidentemente, irrelevantes sob o aspecto jurídico-penal, já que o contrário constituiria uma violação da proibição constitucional da retroactividade da lei criminalizadora. Problema também não há, quando a lei nova é favorável, quer porque descriminaliza quer porque diminui a responsabilidade penal (lex miiior'[: Nestes dois casos, há claramente, lugar à aplicação retroactiva da lei, porque mais favorável, . Dificuldades só existem quando a alteração legislatíva se traduz numa agravação da pena. Embora já tenham sido defendidas outras propostas, creio que a solução mais conforme com as razões da proibição da retroactividade da
Titulo II - A Lei Penal; criação e aplicação
175
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lei penal desfavorável, sem menosprezar a função preventivo-geral da lei nova, é a seguinte: deve aplicar-se a lei antiga, excepto quando a totalidade dos pressupostos típicos .da lei nova se tenham verificado na vigência desta.
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Assim, p. CX., no caso do furto continuado, o tribunal não poderá aplicar a lei nova mais grave, se, na continuação criminosa de furtos simples (art. 203.°) e de furtos qualificados (art, 204.°), nenhum furto qualificado tiver sido cometido durante a vigência da lei nova, que agravou a pena do furto qualificado . O mesmo se diga p8.I1l a hipótese de a .lei nova, que vem agravar a responsabilidade penal pelo crime, p. ex., de usura habitual (art. 226.o-4-a), ter entrado em vigor quando, tendo já sido feitos vários empréstimos usurários antes do seu início de vigência, apenas tiver sido feito um depois deste momento. Nos crimes de omissão, decisivo é o último momento em que o omitente ainda tinha podido praticar eficazmente (i. é, com probabilidades de impedir o resultado) a acção imposta. Assim, a lei nova só se aplicará, quando entrar em vigor antes de esgotada a última possibilidade de uma intervenção adequada a impedir o resultado (trate-se de crimes de mera omissão ou de crimes de comissão por omissão). Nos casos de comparticipação (autoria mediara, coautoria, instigação e cumplicidade), decisivo será o momento de cada uma das condutas consideradas autonomamente. Assim, p, ex., se, posteriormente ao momento da "promessa" feita por A a B, mas antes da prática, por este, do crime X (para O qual tinha sido "determinado" por A), entrar em vigor uma lei que agrave a pena do crime X, esta lex severior só se aplicará a B. Finalmente, no caso da chamada actio libera in causa (art. 20.°-4), determinante é o momento em que o agente se coloca no estado de inimputabilidade, não o momento (posterior) em que ele (já transitoriamente inimputável) pratica facto tipificado na lei penal.
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A imposição
o
da aplicação
retroactiva
§ 319. Vimos que a ratio originária manecerá como fundamental - da proibição
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da lei penal
favorável
e que permanece da retroactividade
e perda lei
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Parte I -
176
Titula lI-li
Questões Fundamentais
penal desfavorável foi jurídico-política: segurança do indivíduo diante da possível arbitrariedade legislativa no exercício do ius puniendi estadual. . Esta proibição da aplicação retroactiva da lei penal apenas visava a lei penal desfavorável. Portanto, o princípio do nullum crimen, nulla poena sine lege praevia em nada interferiu com o problema da retroactividade da lei penal favorável: nada tinha contra, nem a favor desta retroactividade in mellius. Tanto assim foi que, apesar de .constitucionalrnente proibida a retroactividsde, logo os primeiros códigos penais estabeleceram a aplicação retroactiva, quando a lei nova fosse mais favorável, isto é, quando descriminalizasse a conduta ou reduzisse a pena.
a aplicação retroactiva actividade favorável.
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§ 320.
A razão fundamental histórica da aplicação retroactiva da lei penal favorável foi a atribuição, à pena, de uma função essencialmente preventiva geral e/ou especial. É que, se o legislador entende que o facto não deve continuar a ser considerado crime ou que, embora o deva continuar a ser, todavia entende que é suficiente, para serem satisfeitas as necessidades sociais da prevenção geral e especial, uma pena menos grave, então deixa de ter sentido a aplicação da lei antiga, devendo, sim, aplicar-se retroactivamente a nova lei. Na realidade, o debate, ocorrido no séc, XIX, sobre a retroactividade, ou não, da alteração legislativa in tnellius revela, precisamente, esta fundamentação político-criminal da aplicação retroactiva da lei penal favorável. Com efeito, se os adeptos da Escola Clássica, ao-defenderem uma rigorosa concepção ético-retributiva da pena (cf § 40. 55.), coerentemente também consideravam que se deveria aplicar sempre e só a lei do tempus delicti (pois que era a pena estabelecida por esta lei a que correspondia à gravidade da culpa do infractor), já. os adeptos do Correccionalisrno e os autores da Escola Positiva (§ 44 55.) defendiam a aplicação retroacti va da lei nova, quer esta fosse favorável ou desfavorável, com fundamento no facto de a pena dever ser determinada exclusivamente pelas necessidades preventivas, máxime especiais, ede estas necessidades serem melhor realizadas pela lei em vigor no momento do julgamento. É certo que, como já o referimos (§ 313), muitos dos autores (p. ex., Henriques da Silva, Franz von Liszt), que imputavam à pena uma fundamentação e função exclusivamente preventiva, foram suficientemente lúcidos para rejeitarem, em nome da segurança e das garantias individuais,
Lei Penal: criação e aplicação
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da lei penal desfavorável,
177
só defendendo
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§ 321. Este fundamento político-criminal (i. é, relacionado com a finalidade preventiva da pena) da aplicação retroactiva favorável foi, posteríormente, com a passagem do Estado-de-Direito "formal" ao Estado-de-Direito "material", fortalecido com o. princípio. constitucional da restrição mínima dos direitos fundamentais da pessoa'. Este princípio conduziu, no plano jurídico-penal, ao principio da indispensabilidade ou da máxima limitação possível da pena: a pena e o seu quanto só se justificam, jurídico-constitucionalmente, na medida do indispensável à protecção dos «direitos ou interesses constitucionalmente protegidos» (CRP, art, 18.°-2). Um tal princípio constitucional, projectado na «aplicação da lei penal no tempo», vincula à retroactividade da lei favorável: se o legislador entende que uma pena menos grave e, portanto, menos limitadora dos direitos fundamentais, especialmente da liberdade, é suficiente para realizar as funções político-criminais de prevenção geral (de integração e de dissuasão) e de prevenção especial (de reinserção social e de dissuasão do delinquente), então esta terá de aplicar-se retroactivamente. O contrário seria aplicar uma pena que, no momento do julgamento (ou mesmo da execução), é tida como .desnecessária e, portanto, seria inconstitucional. Os princípios político-criminais e jurídico-constitucionais acabados de referir encontraram adequada e. expressa consagração na nossa Constituição de 1976. Com efeito, se a CRP, no art, 18.°, consagra o princípio da restrição mínima da liberdade e dos outros direitos fundamentais, o art. 29.0-4-2." parte, visando directamente a sucessão de leis penais, faz a concretização deste princípio geral, estabelecendo a retroactívidade das «leis penais de conteúdo mais favorável». Por sua vez, O CP, art, 2.°.2 e 4-1." parte, assume estes princípios, estabelecendo: «O facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções»; «Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente». 12·0ir.
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178
IV.
O princípio
da aplicação
da lei penal
Qllestões Fundamentais
Título JJ -
trição mínima dos direitos fundamentais. .~~ ;~.
Consequências 1.
Sucessão
do princípio de leis penais
da aplicação em sentido
da lei mais favorável
amplo e em sentido estrito
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§ 323. Antes de analisarmos as consequências jurídico-práticas da aplicação do princípio da lei penal favorável, convém fazer uma breve referência à distinção entre sucessão de leis penais em sentido amplo (ou impróprio) e sucessão de leis penais em sentido estrito (ou rigoroso). Tomada em sentido amplo, a designação tanto abrange uma sequência de duas ou mais leis penais (criminais) como uma sequência de uma lei penal e de uma lei contra-ordenacional, ou de uma lei contra-ordenacional e de uma lei penal. Tomada em sentido estrito ou correcto, a designação «sucessão de leis penais» implica que todas as leis que se sucederam, desde o momento da prática do facto até à completa extinção da responsabilidade penal, eram leis penais. § 324. Convém, ainda, chamar a atenção para o facto de que, uma vez eliminada do nosso sistema jurídico-penal a categoria das contravenções, lei penal passou a ser sinónimo de lei criminal. A partir de então, passou a haver uma só categoria de infracção penal, que é o
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crime, infracção que é punível - e é a única que é punível - com uma pena (ou medida de segurança criminal). Daqui resulta que o termo despenalização coincide rigorosamente com o termo descriminalização: despenalizar é o mesmo que descriminalizar. Pena, em sentido exacto, pressupõe, lógica e materialmente, o crime, e só a este pode ser aplicada.
favorável
§ 322. Do que acaba de expor-se resulta a conclusão de que, em matéria de sucessão de leis penais ou, segundo a designação tradicional, de aplicação da lei penal no tempo, vigora o princípio da aplicação da lei penal favorável. E também resulta que, hoje, é incorrecta a classificação da proibição da retroactividade como principio geral e da retroactividade da lei mais favorável como excepção. Incorrecta, quer na perspectiva jurídico-constitucional do Estado-de-Direito Democrático e Social, quer na perspectiva jurídico-penal, visto que, hoje, o direito penal não pode deixar de se abrir aos princípios politico-crimínais consagrados na Constituição (cf. § 3), sendo este - O da aplicação da lei penal favorávelum deles, o qual, precisamente, decorre do princípio da res-
V.
A Lei Penal: criação e aplicação
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§ 325. É certo que há outras categorias de ilicitos (não criminais-penais) que também são puníveis com diferentes sanções. É o caso do ilícito disciplinar, punível com sanções disciplinares; do ilícito contraordenacional, ·punível com coimas; ou ainda de um simples ilícito contratual, que pode ser punível com base na chamada "cláusula penal". Mas, em nenhum destes casos, é, jurídico-sistemática e jurídico-materialmente, correcto falar-se em penas. E, assim, é incorrecto dizer-se que determinada conduta, que era considerada contra-ordenação, e que, por força de uma determinada lei, deixou de o ser, foi despenalizada. Nãol; não foi despenalizada, mas sim despunibilízada, isto é, deixou de ser punível. E não foi despenalizada, pela simples razão de que só pode ser despenalizada uma conduta que, antes, era punidacom uma pena, ou seja, que, até então, era considerada crime. A circunstância de, por força da tradição, se manter, ainda, no direito disciplinar público, a designação de "penas disciplinares", em nada afecta esta argumentação. Trata-se, pura e simplesmente, de uma designação incorrecta. Se a designação fosse correcta, então também teríamos de considerar o ilícito disciplinar como um ilícito penal!... E até o próprio ilícito civil contratual poderia ser qualificado como ilícito penal, pois também lhe pode ser aplicada uma "cláusula (sanção) penal'']..; - É evidente que não. Mas também é evidente que não écorrecto chamar-se à despunibilização de uma conduta, que deixou de ser considerada como contra-ordenação, despenalização, visto que uma coíma não é uma pena. Dizer-se, quando o consumo de droga passou de crime a contra-ordenação, que esta conduta foi descriminalizada, mas não foi despenalizada, é incorrecto. Pois, se foi descrirninalizada, necessariamente (dado que, hoje, infracção criminal é igual a infracção penal) que foi despenalizada . Despenalízada, pois que deixou de ser punível com uma pena; embora não despunibilizada, pois continua a ser punível, Só que com uma sanção de natureza diferente da pena, que é acoima.
Parte I - Qltestões Fundamentais
180
§ 326.
Hoje, só teria sentido distinguir despenalização e descriminalização, se se considerasse que o ilícito de mera ordenação social é também uma infracção penal, ao lado do crime, à semelhança do nosso sistema antigo em que havia duas categorias de infracções penais, o crime e a contravenção. - Mas é evidente e sabido que não é esta a nossa actual realidade jurídico-positiva. Pois, quer a história da criação legislativa da figura das contra-ordenações, quer o entendimento quase unânime da doutrina, quer, sobretudo, a distinção jurídico-material entre a pena e a coima, e a distinção entre as respectivas entidades com competência julgadora (para ·as contra-ordenações, autoridades administrativas; para os crimes, os tribunais -. nulla poena sine judicio], demonstram que o ilícito contra-ordenacional não é um minus, mas, sim, um aliu d, relativamente ao Ilícito penal (cf. § 217 ss.). 2. A eficácia temporal da lei que converte Uma conduta de contra-ordenação em crime ou, inversamente, de crime em contra-ordenação § 327. É evidente que estas duas hipóteses não configuram uma verdadeira sucessão de leis penais. Pois o que temos, nestes dois casos, são duas leis de natureza jurídica diversa; uma lei penal (ou lei criminalizadora) e uma lei contra-ordenacional (que, obviamente, não é uma lei penal ou criminalizadora). Logo, não funciona, nestas situações, o princípio da aplicação da lei penal mais favorável (CRP, art. 29."-4; CP, art, 2.°_4) e, portanto, não há que fazer a ponderação da gravidade objectiva das sanções contra-ordenacionais e das sanções penaisIp, ex., dos montantes pecuniários da coima e da multa). § 328. Na hipótese. de a lei nova passar a qualificar a conduta contra-ordenacional (i. é, anteriormente qualificada legalmente como 'contra-ordenação) como crime, í. e, como infracção penal, estamos diante. de uma lei crímínallzadora (penalizadora). .Corno tal, por força do princípio constitucional (CRP, art. 29.°-1 e 3) e jurídico-penal (Cl', arts. 1.°-1 e 2.°-1), da proibição da retroactividade da lei crirninalizadora, tal lei só pode aplicar-se aos factos praticados depois da sua entrada em vigor. .
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Título II - A Lei Penal: criação e aplicação
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§ 329. Mas, relativamente aos factos praticados durante a vigência da lei antiga (que os considerava como contra-ordenações) e que ainda não tenham sido julgados ou, se julgados e condenados, as respectivas sanções contra-ordenacionais (coimas e eventuais sanções acessórias) ainda não tenham sido cumpridas, perguntar-se-à: deverão ser julgados segundo a lei em vigor no momento do seu cometimento, apesar de, agora, tal lei já estar revogada?; e, se já foram julgados, mas as respectivas sanções contra-ordenacionais ainda não foram inteiramente cumpridas, deverão estas, apesar da revogação da respectiva lei, ser efectivamente executadas? Não sendo esta uma questão jurídico-penal, a resposta não cabe ao direito penal, mas sim ao direito de ordenação social. - Então, o que nos diz o Regime Geral das Contra-Ordenações (Dec.-Lel n." 433/82)? O art. 2." estabelece que «Só será punida como contra-ordenação o facto descrito e declarado passível de coimapor lei anterior ao momento da sua prática.». Ora, na hipótese configurada e em análise, efectivamente existia lei anterior contra-ordenacional. Porém, há que ter em contao art. 3.°_2 do referido Dec.-Lei n," 433/82, após alteração do Dec-Lei n." 244/95, que determina que «Se a lei vigente ao tempo da prática do facto for posteriormentemodificada, aplicar-se-á a lei mais favorável ao arguido, salvo se este já tiver sido condenado por decisão definitiva ou transitado em julgado e já executada». Ora, a realidade é esta: a lei contra-ordenacional em vigor, 110 momento da prática do facto, não foi modificada, mas, pura e simplesmente, revogada. Assim, uma vez que o disposto, no referido n." 2 do art. 3.°, directamente apenas se refere às hipóteses de sucessão de leis contra-ordenacionais, parece que ficamos sem solução legal para estes casos de uma lei que converte uma conduta de contra-ordenação em crime. Mas, na realidade, não ficamos sem solução legal. Pois que a lei, que passa a qualificar o facto como crime e que revoga, expressa ou tacitamente, a lei anterior que O qualificava como contra-ordenação, é, reiativarnente ao direito de ordenação social, uma lei descontraordenacionalizadora e, como tal, favorável ao autor da contra-ordenação. Donde resulta a sua aplicação retroactiva, deixando O respectivo agente, ainda não condenado ou, se condenado, ainda não executadas as respectivas sanções, de poder ser condenado contra-ordenacionalmente ou de contra ele poderem ser executadas as respectivas sanções.
182
Porte I -
Questões Fundtunentais
Tltulo f[ -
Na verdade, tendo, por força do art. 2.°_3, de se aplicar retroactivamente uma nova lei contra-ordenacional, que estabeleça sanções contra-ordenacionais mais leves, então, por maioria de razão se terá de aplicar retroactivamente uma lei nova que, pura e simplesmente, deixa de considerar como contra-ordenação a respectiva conduta:
§ 330. Objectar-so-á que, precisamente quando o legislador quer agravar a responsabilidade jurídica por determinadas condutas, passando a qualificar estas como crime e, portanto, substituindo a responsabilidade contra-ordenacional por responsabilidade penal, vão precisamente ser irresponsabilizados juridicamente (nem por crime, nem por contra-ordenação) muitas pessoas que praticaram tais factos. - A resposta é esta: é verdade, é isso mesmo que se passa. Mas passa-se ou poder-se-à passar por duas razões; e ambas da responsabilidade do legislador. São elas: o facto de o legislador, no Regime Geral das Contra-Ordenações, não ter previsto esta hipótese (o que revela negligência quase grosseira, pois a experiência destes, polltico-jurídicarnente, indesejáveis "hiatos" não é nova), estabelecendo que os factos anteriores à lei que converteu o facto de contra-ordenação em crime permanecem puníveis como tais, isto é, como contra-ordena. ções (ultra-actividade da lei contra-ordenacional), A segunda razão destes "hiatos" está no facto de o legislador, que cria a lei que muda o facto de contra-ordenação em crime, não incluir uma norma transitória que estabelecesse que' as contra-ordenações, anteriormente cometidas, permaneciam puníveis como contra-ordenações. - Uma tal norma, uma vez que as sanções contra-ordenacionais são (e desde que, efectivamente, o sejam ... ) menos graves que as sanções penais, não padeceria de inconstitucionalidade material. Mas teria, sob pena de inconstitucionalidade formal-orgânica, de se apoiar numa lei de autorização (no caso de constar de um decreto-lei), visto que implicava uma alteração, para aquela conduta, do Regime Geral das Contra-Ordenações, especificamente consagrado no n." 2 do art. 3.° (cf. § 248). § 331. A outra situação é aquela em que a lei nova converte o facto de 'crime em contra-ordenação. Nesta hipótese, a lei nova é uma lei descrímínalízadora ou despenalizadora, o que, como já o vimos (§ 324), significa o mesmo.
A Lei Penal: criação e aplicação
183
Sendo descrirninalizadora, então todos os factos, praticados durante a sua vigência, deixam de ser puníveis penalmente, por força da imposição da aplicação retroactiva da lei nova despenalizadora (CRP, art, 29.°-4-2.~ parte; CP, art. 2.°_2). -Portanto, se ainda não se iniciou o procedimento criminal, jamais se poderá iniciar; se já está em curso, extinguir-se-à, com a entrada em vigor da lei nova; mesmo que já tenha ocorrido o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, «cessam a execução e os seus efeitos penais» (CP, art. 2.°_2) ..
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§332. E, perguntar-se-à: sendo certo que os factos praticados durante a vigência da lei antiga foram descriminalizados e, portanto, não podem ser punidos penalmente, todavia não poderão ser punidos contra-ordenacionalmente, com base na lei nova, uma vez que as novas sanções (contra-ordenacionais) serão menos gravosas que as sanções penais estabeleci das pela lei antiga? - A resposta passa pelas seguintes considerações: em primeiro lugar, há que reafirmar que estamos diante de uma sucessão de leis de diferente natureza jurídica, sendo a lei antiga uma lei criminal-penal e a lei nova uma lei contra-ordenacional; em segundo lugar, o CP, art. 2.°-4, refere-se apenas às verdadeiras sucessões de leis penais, enquanto que o Dec.-Lei n." 433/82, art. 3.°_2, se refere exclusivamente a uma sucessão de leis contra-ordenacionais; donde a conclusão de que a questão nem pode ser resolvida pelo CP, art. 2.°-4, nem pelo art. 3.°-2 do Regime Geral das Contra-Ordenações. Como já o. dissemos, a lei nova é, simultaneamente, uma lei descrirninalizadora e uma lei ccntra-or'denacionalizador a, Que os factos anteriormente praticados deixam de poder ser tratados como crimes, já o dissemos que era evidente. Mas também não podem, por força do Dec.-Lei n." 433/82, art. 3.°-1, ser, retroactivamente, tratados e punidos como contra-ordenação, pois que é princípio da aplicação no tempo da lei contra-ordenacional que esta só vale para o futuro, i. é, só se pode aplicar aos factos praticados depois do seu início de vigência. § 333. A única hipótese de evitar que os respectivos agentes não sejam puníveis contra-ordenacionalmente é a inclusão, na lei nova que vem qualificar o facto como contra-ordenação, de uma norma transi-
Parte 1 -
184
Questões Fundamentais
tória que estabeleça a punição como contra-ordenação dos factos pra-
ticados na vigência da lei antiga penal. Uma tal solução, desde que apoiada numa lei de autorização da Assembléia da República (uma vez que contraria o regime geral das contra-ordenações), não seria ínconstitucional, uma vez que, e na medida em que as sanções contra-ordenacionais fossem, realmente, menos graves que as sanções penais da lei antiga. - Cumprido este pressuposto (pois, caso contrário, havia inconstituciona1idade material, na medida em que a atribuição de eficácia retroactiva materializava uma verdadeira fraude à norma constitucional do art. 29."-4-P parte), parece que não haveria inconstitucionalidade na atribuição de eficácia retroactiva à lei nova que passa a qualificar como contra-ordenação uma conduta então qualificada como crime. E parece não ser inconstitucional, porque, formalmente, tal retroactividade não cai no âmbito da proibição da CRP, art. 29.°-1 e 3, e porque, materialmente, não havia qualquer afectação retroactiva dos direitos, liberdades e garantias individuais. E acrescente-se que uma norma deste tipo podia, e devia, ser incluída 110 Regime Geral das Contra-Ordenações. § 334. Como conclusão final, temos que, a não existir uma tal norma transitória (ou incluída, 110 futuro, no Regime Geral das Contra-Ordenações), os factos anteriores têm, necessariamente,. que ser tratados como factos descriminalizados, e também não podem ser tratados como contra-ordenações. Numa palavra: perderam, com a entrada em vigor da lei, relevância penal e relevância contra-ordenacional. Esclareça-se, por último, que isto, que acabámos de referir, quanto à possibilidade de atribuição de eficácia retroactiva à lei que converte uma conduta de crime em contra-ordenação não se aplica, de forma alguma, a uma lei que, ex novo, viesse qualificar e punir como contra-ordenação uma conduta que, antes, não era considerada crime .. Uma tal atribuição de eficácia retroactiva seda claramente inconstituciona1. 3. Lei penal íutermédia § 335. Lei interrnédia
é a lei penal cujo início de vigência é pos-
terior ao momento da prática do facto e cujo termo de vigência ocorre
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Título II - A Lei Penal: criação e aplicação
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antes do julgamento, rectius, antes do momento em que transita em julgado a sentença. Tratando-se de uma lei que não está em vigor em nenhum dos momentos referenciais - o momento da conduta e O momento do trânsito em julgado da sentença -, o problema da sua aplicabilidade só se levanta, e só se levantou historicamente, quando a lei interrnédia é mais favorável que as duas outras leis penais em confronto: a lei do tempus delicti e a lei do momento em que se forma o caso julgado. Sendo mais favorável, aplicar-se-á. Ora, porque se aplica a uma conduta praticada antes da sua entrada em vigor, é retroactiva; e porque é aplicada já depois de ter cessado a sua vigência geral, é ultra-actlva,
S 336. Hoje, é inquestionada, quer pela doutrina quer pela jurisprudência, a aplicabiUdade da lei penal íntermédía mais favorável. Costuma referir-se, e bem, que tal entendimento encontra a sua projecção legal na expressão «leis posteriores» do art. 2."_4. § 337. Uma vez que, como dissemos, é, hoje, unanimemente reconhecida a sua aplicabilidade, quando mais favorável, baste-nos meramente indicar as razões que fundamentam a sua aplicação. Reconduzern-se elas aos já tratados princípios jurídico-político da segurança individual (§ 313) e político-criminal da máxima restrição da pena (§ 320), intervindo, ainda e de forma decisiva, o princípío da justiça relativa ou igualdade de tratamento de casos idênticos. Foi, precisamente, esta razão da igualdade de tratamento que levou a que o Relatório da Proposta de Lei da Nova Reforma Penal de 1884 defendesse a aplicabilidade da lei penal intermédia, Diz o Relatório: «Se O réo fosse julgado antes de revoga da a segunda lei, ter-lhe-ia sido applicada pena menos grave e a demora no julgamento não deve ser causa de applicação de pena de maior gravidade, tanto mais que essa demora pode provir, não de negligencia ou de fraude do criminoso, mas da ·observancia das formalidades legaes, ou de facto ou de culpa imputável às autoridades e mais representantes legítimos da sociedade». 4. Determinação
da lei penal mais favorável
§ 338. Verificando-seuma verdadeirasucessãode leis penais (cf. § 323), há que determinar qual das leis sucessivas é mais favorável ao infractor.
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Porre I - Quesrües Fundanieruais
186
Levantam-se, aqui, dois problemas: ponderação creta?; ponderação unitária ou diferenciada?
abstracta
ou con-
Quanto à primeira questão, pode afirmar-se que, desde há muito, a opção vai, razoavelmente, para a ponderação concreta: é relativamente ao caso sub iudice que se deve determinar qual das leis mais favorece o infractor. Tal decisão pressupõe que o tribunal realize todo o processo de determinação da pena concreta (art. 71.°), segundo cada uma das, leis, a não ser, como é óbvio, que seja evidente, numa simples consideração abstracta, que uma das leis é claramente mais favorável que a outra. Assim, se a L.A. estabelecia urna pena de 8 a 16 anos de prisão, enquanto a L.N. se limitou a alterar esta pena para 5 a 12 anos de prisão, é; logo ab initio, evidente que a L.N. é mais favorável. Dificuldades já podem surgir, quando a pena estabelecida pela L.A. e a estatuída pela L.N. são heterogéneas (prisão - multa ou o inverso), e mesmo quando, embora homogéneas, urna tem o limite mínimo da pena superior ao limite mínimo da pena prevista na outra lei, mas o limite máximo inferior, ou o inverso: p. ex., a L.A. estabelece pena de 1 a 10 anos de prisão, enquanto a L.N. estabelece a pena de 3 a 8 anos de prisão. Ora, nestas hipóteses, há que proceder à determinação concreta da pena, pois, só depois desta operação judicial, se pode saber qual das leis é mais favorável ao arguido, qual, portanto, é a lei que tem de ser aplicada.
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§ 339.
§ 340.
Há, ainda, um outro aspecto que não deve ser descurado: a possibílidade, que deve ser concedida ao arguido, de, rios casos de dúvida sobre qual das penas concretas é a mais favorável ao arguido, ser este a dizer qual a pena que prefere lhe seja aplicada. Permanecendo a decisão como decisão do tribunal, compreende-se e é justo que, nos casos duvidosos, deva ser atendida a opção do mais interessado na aplicação da lex mitior. ; Uma tal situação, que não será frequente, poderá ocorrer numa hipótese em que uma das leis estabeleça pena de prisão até 1 ano, pena esta não substituível por pena de multa, e a outra lei estatua pena de multa até 100 dias. Suponhamos que, nesta hipótese, o tribunal determina, segundo a primeira lei, a pena concreta de' 2 meses de prisão, e,
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mula II - A Lei Penal: criação e aplicação:
187
pela segunda lei, a pena de 30 dias-multa a 50 euros. Sucede, porém, que, embora para a quase totalidade das pessoas fosse preferível a pena de multa, já o concreto arguido prefere ser condenado na pena de 2 meses de prisão; e prefere-o pelo facto de, embora sendo proprietário de uma pequena casa térrea que habita, se encontrar desempregado. Não se vê qualquer razão válida para, num tal caso, o tribunal não aceitar a opção do arguido. Assim, deveria ser aplicada a lei que estabelece a pena de prisão e não a que prevê a pena' de multa. Donde que o arguido deveria ser condenado em prisão por 2 meses, e não em multa de 1.500 euros.
§ 341. Discutida é a questão de se a ponderação deve ser unitária ou diferenciada. Esclareçamos, previamente, o que se entende por ponderação unitária ou global e por ponderação diferenciada ou discriminada. A primeira significa que a lei deve ser aplicada na totalidade das suas disposições sobre a pena principal, sobre as penas acessórias e sobre os pressupostos processuais; a ponderação diferenciada defende que deve proceder-se ao confronto de cada uma das disposições das leis em causa, devendo aplicar-se as disposições, contidas nas duas leis, que sejam mais favoráveis.
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Embora a generalidade da doutrina e da jurisprudência tenha optado pela ponderação unitária ou global, entendo que a ponderação deve ser diferenciada.
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Para além do princípio político-criminal § 321), a ponderação diferenciada baseia-se
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da intervenção mínima (cf. nas diferentes fundamentações e teleologias das penas principais, das penas acessórias e dos pressupostos processuais. Na verdade, a pena principal é determinada pelo legislador principalmente em função da gravidade do crime, enquanto a pena acessória esta relacionada especialmente com a personalidade e actividade do agente, em cujo exercício ele cometeu o crime (cf. § 129); já os pressupostos processuais (p. ex., a exigência de queixa), embora, muitas vezes, estejam relacionados com a menor gravidade do crime, outras há em que a sua exigência se fundamenta nos eventuais interesses da vítima em não se ver "exposta" num processo (público) penal, ou nos interesses pragmáticos da funcionalidade do sistema judiciário penal, isto é, na redução do número de processos, a que, sociologicamente, conduz a exigência de queixa ou de acusação particular. O mesmo se
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Parte [ - Questões Fundamentais
188
diga sobre eventuais .causas extintivas do procedimento criminal, como a prescrição. Isto nos leva à conclusão, em nome do princípio da mínima restrição possível dos direitos e liberdades fundamentais e da autonomia teleológico-rnaterial das disposições nonnativas sobre a pena principal, as penas acessórias e os pressupostos processuais, mesmo quando incluídas no mesmo texto legal, de que devem ser aplicadas as disposições mais favoráveis ao arguido, mesmo que constem de leis diferentes. Neste sentido, vai a posição, entre outros, de Jakobs, que vai ao ponto de afirmar que a ponderação-aplicação unitária (isto é, a alternatividade das leis) viola o princípio da vinculação à lei, sendo, portanto, exigível que o juiz proceda a uma avaliação particularizada, isto é, a uma ponderação das diferentes componentes da responsabilidade penal: pena principal, penas acessórias e efeitos penais da condenação.
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mes cometidos na vigência da L.A e cuja queixa ainda não tenha sido apresentada, quando entrou em vigor a L.N., continuará a exigir-se a queixa, mas, se esta vier a ser apresentada, o tribunal, em caso de condenação, aplicará a L.N. 5. O caso julgado e a aplicação retroactíva favorável
da lei penal mais
5.1. A história do caso julgado e da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável § 344. Devemos começar por fazer uma breve referência à história do caso julgado penal como limite ou obstáculo à aplicação retroactiva da lei penal favorável. }~~-,
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§ 343. Deste modo, se, p. ez., a LA estabelecia apena (principal) de 6 meses a 3 anos de prisão e a pena acessória de suspensão do exercicio de determinada profissão durante 1 ano, enquanto. a L.N. estatui somente a pena (principal) de 1 a 5 anos de prisão, deveria o tribunal aplicar, quanto à pena principal, a L.A, mas já, quanto à pena acessória, aplicar, retroactivamente, a L.N., ou seja, não aplicar a pena acessória prevista na L.A Raciocínio análogo se deverá aplicar no caso de, p. ex., a L.A estabelecer a pena de 1 a 4 anos de prisão e fazer depender o procedimento criminal de queixa, enquanto a L.N. estatui a pena até 3 anos de prisão e elimina a exigência de queixa. Aqui, relativamente aos cri-
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§ 342. Discordo, assim, do argumento formal do Supremo Tribunalde Justiça, que se reduz à inócua circunstância de o n." 4 do art. 2.° utilizar o termo «regime», em vez de «normas». Este argumento é inócuo, pois o legislador penal fala em «disposições penais», «normas» ou «regime» (art, 2.°_4) como sinónimos. E pode até dizer-se que, mesmo sob o praticamente irrelevante aspecto formal, a palavra «regime», em vez de lei, poderá tomar-se até como sugerindo o contrário do sentido que STJ lhe atribui, ou seja, sugeriria precisamente que se devia aplicar o regime (ou conjunto normativo) formado pelas disposições jurídico-penais mais favoráveis contidas nas diferentes leis sucessivas.
Tardo 11 - A Lei Penal: criação e aplicação
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O princípio do caso julgado penal, na sua dimensão negativa do ne bis in idem, afirmou-se, constitucionalmente, a partir dos fins do séc. XVlIl, no contexto da consagração do Estado-de-Direito, como instrumento da garantia política do cidadão contra a arbitrariedade da perseguição criminal.· A preocupação com esta garantia levou, nesta primeira fase, a uma então compreensível absolutízação do caso julgado penal. Esta absolutízação levou à proibição da retroactividade da lei penal, mesmo que esta fosse descríminalizadora. § 345. Numa segunda fase, correspondente ao crescendo, no séc, XIX, das correntes penais que. atribuíam à pena uma finalidade preventivo-geral e especial (Correccionalismo e Escola Positiva), inicia-se o processo de relativização do caso julgado penal, a partir da consideração da verdadeira função de garantia deste instituto. A partir desta reposição do caso julgado na sua ratio de garantia individual, passou a discutir-se e a pôr-se em causa a referida absolutização: se a razão de ser do caso julgado penal é a de impedir decisões legislativas e judiciais desfavoráveis ao infractor, então não tem sido utilizar a figura do caso julgado, quando a lei nova, mesmo que posterior ao caso julgado, não agrava mas favorece o cidadão infractor. § 346. E, assim, logo em meados do séc, XIX, alguns códigos penais extraíram todas as consequênclas lógicas e político-criminais desta rela-
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190
Parte [ - Questões Fundamentais
tivização do caso julgado penal, i. é, desta perspectivação desta figura como meio ou instrumento ao serviço da protecção do cidadão infractor, e não como um valor absoluto que valesse por si mesmo. Esteve neste caso, p. ex., o código penal espanhol de 1870, que logo consagrou a retroactividade da lex tnitior (lei que estabelece uma pena mais leve), mesmo que já tivesse ocorrido o trânsito em julgado da sentença condeitatória, não restringindo tal retroactividade ao caso de a lei nova ser descriminalizadora. Esta plena retroactividade da lei penal favorável (portanto; quer seja descrirninalizadora, ou mesmo que reduza tão só a pena) manteve-se, ininterruptamente, no direito penal espanhol até ao actual CP de 1995. Acrescente-se que também o direito penal brasileiro consagrou, pelo menos desde o CP de 1940, art. 2.°, § único - Código que se mantém ainda em vigor, embora a sua Parte Geral tivesse sido revista e actualizada em 1984 -, a retroactividade da lex mitior, mesmo que já haja caso julgado. Lê-se; no referido § único: «A lei posterior que, de qualquer modo, favorecer o agente, aplica-se aos factos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado». Retroactividade plena esta da lei penal, quando favorável, que, aliás, tem consagração expressa e clara na Constituição Brasileira de 1988, art. 5.°, XL: «A lei penal não retroagirá, 'salvo para beneficiar o réu». § 347. É certo que a generalidade dos países, desde meados do sêc. XIX, não extraíram todas as consequências jurídico-constitucionais e político-criminais do princípio da máxima restrição possível da pena e da função preventiva desta. Entre eles, esteve o Código Penal português que, desde 1852, manteve o caso julgado como obstáculoâ retroactívidade da lex mitior, só o afastando, no caso de lei nova descriminalizadora, § 348. Mas registemos que esta manutenção sempre teve a oposição, baseada em sólidos argumentos, de muitos e destacados culto-. res da ciência jurídico-penal. Entre estes autores, contam-se Jordão, Luciano de Castro, Henriques da Silva, Beleza dos Santos, .Cavaleiro de' Ferreira, e, na actualidade, eram claramente maioritários os autores que defendiam a eliminação, por inconstitucional, do limite do caso julgado previsto no CP, art. 2.o-4-parte final, antes da Revisão Penal de 2007. Levy Maria Jordão,em 1861, no Relatório da Comissão para a elaboração do Projecto do Código Penal Portuguez, propôs a seguinte
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A Lei Penal: criação e aplicação
191
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Parte J -
[92 se renuncie respeitar
a obter esse resultado
uma igualdade
com a aplicação
Questões Fundamentais
Titulo II - A Lei Penal; criação e aplicação
da lei nova só para
Este STJ invocou (p. ex., no Acórdão de 10 de Julho 1984), fundamentalmente, três argumentos em favor da não inconstitucionalidade do obstáculo do caso julgado penal à aplicação retroactiva da la mitior, obstáculo constante do CP, art. 2.0-4-parte [mal. Foram eles: a intangibilidade do caso julgado penal constitui um princípio constitucional.iconsagrado no n." 5 do art. 29.0 da Constituição, que proíbe o duplo julgamento, ou seja, que consagra o tradicional princípio do ne bis in idem; a necessidade social de segurança, estabilidade e certeza das decisões, mesmo que penais, transitadas em julgado, sob pena «da insegurança, da inquietação, da anarquia»; a inevitabilidade de situações de desigualdade de tratamento, apesar de os casos serem idênticos, dizendo que «a desigualdade é mesmo irremediável em certos casos».
ilusória».
5.2. A situação entrada
anterior a 15 de Setembro de 2007, data da em vigor da actual 2.' parte do n." 4 do art. 2.°
do CP e do art. 371.°-A do CPP § 349. Vejamos, resumidamente, os princípios constitucionais que determinavam a conclusão de que o limite do caso julgado à aplicação retroactiva da lei penal mais favorável (lex mítior), estabelecido na parte final do n." 4 do art. 2.° do Código Penal [«[ ... ]salvo se estejá tiver sido condenado por sentença transitada em julgado»], era inconstitucional. Este limite violava o princípio constitucional da igualdade perante a lei (CRP, art. 13.°-1-2." parte), sendo fonte de injustiças materiais relativas e de desigualdades evitáveis na aplicação da lei penal mais favorável. Era, ainda e por outro lado, inconstitucional na medida em que, sem quaisquer válidas razões jurídico-penais materiais, restringe o âmbito de uma norma constitucional protectora dos direitos fundamentais, maxime da liberdade (CRP, art. 29.°-4-2" parte), norma esta que é a projecção directa e coerente, na questão da sucessão de leis penais, de um outro princípio constitucional fundamental de que «as restrições dos direitos, liberdades e garantias» devem «limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos» (CRP, ali. 18.°-2-2: palie) .. Ora, impor um obstáculo à aplicação retroactiva de' uma lei que considera como necessária e suficiente, para a tutela dos bens jurídico-penais, uma pena mais leve significa restringir, desnecessariamente, um direito fundamental. Logo, era irrefutável-
a afirmação
da inconstitucionalidade
deste
limite do caso julgado. § 350. Por último, façamos uma breve (22) referência à posição que, até há alguns anos atrás, era. defendida pelo Supremo Tribunal de Justiça.
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(22)
Breve, pois que, na minha monografia Sucessão de Leis Penais, 3: ed., 2008,
pp. 275.344. trato, desenvolvidamente.
esta matéria.
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§ 351. Tendo sido breve a referência à argumentação do STJ em favor do limite do caso julgado, também será breve a crítica à inconsistência jurídico-penal e jurídico-constitucional destes argumentos do STJ . § 352. Quanto ao argumento da intangibiUdade do caso julgado, intangibilidade que teria dignidade constitucional, uma vez que a CRP, art. 29.°-5, consagra o princípio ne bis in idem, i. é, a proibição de duplo julgamento pela prática do mesmo crime, há que dizer (para além do que já, acertadamente, disseram os vários autores referidos no § 348) que a proibição constitucional do duplo julgamento (o chamado principio ne bis in idem) constitui, como sempre, desde a consagração . do Estado-de-Direito, urna garantia individual contra uma (eventual e arbitrária) dupla punição pelo mesmo crime. Assim, nunca pode funcionar contra o cidadão infractor, mas sim a seu favor. Logo, esta pretendida, pelo STJ, absolutização do caso julgado penal era, constitucionalmente, inaceitável. A proibição de duplo julgamento significa proibição de dupla punição e, portanto, em nada afecta a exigência político-criminal, constitucionalmente assumida (CRP, art, 18.°-2 e art. 29.o-4-2.a parte), da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, mesmo que já haja caso julgado. Aliás, hoje, nem sequer no direito de ordenação social (onde, a elevação do caso julgado, pelo menos em relação às coimas, à categoI)·Dir. Penal
I· 194
Parte f -
Questões Fundamentais
ria de obstáculo à aplicação retroactiva não seria inconstitucioual) O caso julgado é obstáculo à retroactividade da. lei mais favorável (Dec.-Lei 11.° 433/82, art. 3."-2-parte final).
§ 353. Tomemos, agora, o argumento dade social e certeza jurídica.
da segurança,
estabili-
.
Sobre este pretenso argumento, façamos apenas duas observações: não tem o menor sentido falar de «insegurança, anarquia e inquietação» a propósito da reforma de uma sentença, posto que transitada em julgado, quando o que está em causa é somente a ré-determinação da pena concreta por força da entrada em vigor -de uma lei penal mais favorável; o STJ, no Acórdão em recensão, incorria numa recusável e acrítica perspectiva pancivillstica do caso julgado, esquecendo que há entre o caso julgado penal e o caso julgado civil uma autonomia e distinção material, distinção que resulta da especificidade dos pressupostos, da natureza e dos fins das "sanções" civis e das sanções penais. § 354. Relativamente ao argumento de que casos de desigualdade de tratamento sempre os haverá, basta retorquir, dizendo que este Acórdão servia-se da impossibilidade de uma realização absoluta da justiça relativa para concluir pela irrelevâncía da justiça relativa possível. Ou seja: é um raciocínio, humana e juridicamente, absurdo afirmar a irrelevância da efectivação da justiça relativa ou igualdade de tratamento, nos casos em que tal é possível, com fundamento 'na impossibilidade de uma realização da justiça em todos os casos. Pois é evidente que o princípio constitucional da justiça relativa ou da igualdade de tratamento pressupõe e, portanto, só é violado, quando as. situações de injustiça podem ser evitadas. Em relação ao que é inevitável (no nosso caso, porque a sentença penal condenatória já foi inteiramente cumprida), não há qualquer injustiça relativa ou tratamento desigual. Ressalvado todo o respeito que o STJ merece, era caso para dizer que esta afirmação do acórdão tem tão pouco sentido como aquele capitalista que raciocinasse assim: uma vez que Jesus Cristo disse que «pobres sempre os tereis ~:ntre vós», então porquê preocupar-nos em diminuir o número deles? I
Título Jf - A Lei Penal: criação e aplicação
5.3. A situação a partir de 15 de Setembro de 2007, data entrada em vigor da actual 2." parte do n." 4 do art, do CP e do art, 371.°-A do CP)?: aplicação retroactiva lei penal mais favorável, mesmo que já tenha transitado julgado a sentença condenatóría
195
da 2.°
da em
§ 354-A. Até 15 de Setembro de 2007, o Código Penal, art. 2.°-4, estabelecia o seguinte: «Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicável o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada emjulgado». ALei n. o 59/2007 substituiu esta parte final (que pusemos em itálico) pela redacção seguinte: «se tiver havido condenação, ainda que
transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior». Como parece evidente, esta alteração, conquanto pusesse em causa o (inconstitucional) obstáculo do caso julgado, só evitava o absurdo dos absurdos político-criminais, que levava a que alguém tivesse de permanecer na prisão, apesar de já ter sido ultrapassado o tempo máximo de prisão que o legislador, através da nova lei, considerava como político-criminalmente aceitável. Isto é; esta alteração da parte final do n. o 4 do art. 2. o não eliminava a inconstitucionalidade do obstáculo do caso julgado à redeterminação da pena principal (nomeadamente, a
pena de prisão) com base na lei nova mais favorável. § 354-B. Foi a Lei n: o 48/2007 que, efectivamente, eliminou o inconstitucional obstáculo do caso julgado à aplicação retroactiva da lei penal maisfavorável. Na verdade, esta lei acrescentou, no Código de Processo Penal, o art, 371."-4-, artigo que consagra a plena retroactividade da lei penal mais favorável, ao estabelecer: «Se, após a trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, ·0 condenado pode requerer a reaber{um da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime» (23). Con-
Para uma apreciação crítica de alguns aspectos desta alteração (como, p. ex., de requerimento do condenado), ver TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de Leis Penais, 3 .• ed., 2008, pp. 326-3~9. (2)
a exigência
Parte I -
196
Titulo fI - A Lei Penal: criação e aplicação
Questões Fundamentais
clusão: a partir de 15 de Setembro de 2007, o caso julgado de sentença condenatoria deixou de impedir a aplicação retroactiva da lei penal mais
favorável.
6. Alteração
enquanto que a L.N. substitui este. elemento pelo elemento «estar armado». Tendo B praticado, na' vigência da L.A., um roubo (
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dos elementos
do tipo legal stricto sensu
§ 355. A situação
em análise é aquela em que a L.N. altera a estrunua do tipo legal de crime, acrescentando, retirando ou substituindo algum(ns) elemento(s) que constava(m) da L.A, i. é, da lei em vigor no tempus delicti. Este fenómeno da alteração típica do crime é frequente, especialmente quando o legislador procede a revisões globais do Código Penal. A questão, que é, em muitos casos, complexa, reconduz-se a saber se determinado facto, praticado na vigência da L.A, foi descriminalizado pela L.N. ou se continua a ser considerado crime por esta lei. Na prímeira hipótese, aplicar-se-à o art. 2.°_2; na segunda hipótese, aplicar-se-à oart. 2.°-4, no caso de também ter sido modificada a pena, rectius, os termos da responsabilidade penal (p. ex., os pressupostos processuais).
§ 356. A complexidade da questão faz com que, naturalmente, haja divergências, na doutrina e na jurisprudência, sobre a teoria ou critério mais adequado à resolução da diversidade das situações que se colocam: casos de adição de novos elementos, casos de eliminação de elementos constantes da lei anterior, e casos de troca de elementos típicos, Alguns exemplos: A L.N suprime o elemento típico «que constituam perigo para a saúde», que constava da L.A., lei esta que descrevia, assim, o tipo legal: «A venda de bens impróprios para consumo, que constituam perigo para a saúde» é punida (.:.). Tendo A pra-' ticado o facto previsto na L.A. e na vigência desta, pergunta-se se o facto de A continua a ser punível após a entrada em vigor da L.N., isto é, se, relativamente ao facto praticado, há uma verdadeira sucessão de leis penais, caso em que, se tiver havido alteração da pena, se aplicará a lex mitior (art. 2.°-4). A L.A. considerava como elemento do crime de roubo qualificado a circunstância de o roubo ser praticado
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§ 357. Nos três exemplos apresentados, temos que,. no momento em que as condutas foram praticas, a respectiva lei os considerava como crimes. Mas, 110 momento do julgamento, ou mesmo já durante a execução da pena, uma L.N. alterou a constituição do respectivo tipo legal de crime. A questão é, portanto, a de saber se a nova lei determinou a despenalização (descriminalização) do facto praticado na vigência da L.A. (aplicando-se o art. 2."-2) ou se, apesar da alteração dos elementos do tipo legal, o facto continua a ser considerado crime (caso em que se aplicará o art. 2.°-4, se também tiver havido alteração da pena).
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§ 358. O critério defendido pela doutrina e jurisprudência tradicionais - e, ainda, assumido por muitos - era o critério linear, que foi designado por teoria do facto concreto; e que foi traduzido pelo brocardo latino: prius punibile, posterius punlbile, ergo punible. Segundo esta teoria, o facto praticado na vigência da L.A continuava punível pela L.N., desde que tal facto fosse formalmente subsumível a ambas as leis. Isto é, se o facto, no momento em que foi praticado, era crime, e, se fosse praticado na vigência dá L.N., também seria considerado crime, então tal facto devia continuar a ser tratado como crime, independentemente das alterações dos elementos do respectivo tipo legal. Estar-se-ia, portanto, diante de uma verdadeira sucessão de leis penais,
198
Parte I -
Tltulo lf - A Lei Penal; criação e aplicação
QlleS((Íes FU/ldam,ntais
relativamente ao facto concreto em causa, havendo somente que ponderar as respectivas penas, no caso de terem sido também alteradas, para se aplicar a mais favorável (art, 2. ·A). . Pensamos que este critério da chamada teoria do facto concreto é de recusar. E, de facto, tem vindo a ser recusado.
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§ 359.
Com efeito, contra ele procedem
várias objecções.
Permite que sejam, retroactivamente, valoradas como tipicamente ag7'avQlltescircunstâncias que, na L.A., só podiam ser consideradas como agravantes gerais. Assim, no exemplo do roubo qualificado, o agente continuaria a ser punível por este crime, apesar de a L.N. ter substituído a circunstância
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§ 360. Uma segunda objecção contra a teoria do jacto concreto é a de que ela menospreza a função de orientação e de previsibilidade que
199
cabe à lei penal, função que tem como corolários, nomeadamente, a proibição da retroactividade penal desfavorável e a determinabilidade da conduta (proibida ou imposta) sancionada penalmente. Esquecer esta função implicaria, em certos casos, a manutenção de uma punibilidade que afrontaria as mais elementares exigências de justiça e de política criminais. Assim, no exemplo do aborto, C continuaria, .segundo a teoria do facto concreto, a ser punida, uma vez que ela abortou numa clínica privada e, segundo a L.N., a interrupção da gravidez fora de hospital público continua a ser punida como crime de aborto. Mas uma tal solução seria injusta, pois que, se, no momento do aborto, já estivesse em vigor a L.N., provavelmente que optaria pelo hospital público. Diga-se que não parece haver qualquer fundamento razoável para valorar, retroactivamente, como típica (como fundamentadora da responsabilidade penal) uma circunstância (o provocar o aborto fora do hospital público) não descrita no tipo legal da L.A, quando, precisamente, a condição (circunstância) excludente da punibilidade - e mesmo da sua tipicidade - não podia ter sido cumprida, pois não só a L.A. não lhe atribuía essa eficácia excludente da punibilidade como até mesmo tal (a prática do aborto no hospital público) era proibido, tanto disciplinar como penalmente, aos serviços hospitalares. A conclusão parece não poder deixar de ser a seguinte: sentido politico-criminal (prevenção geral e especial) da pena, o princípio da máxima restrição da pena e a função de orientação das condutas que à lei penal cabe - orientação que a L.N. contém mas que, evidentemente, C não pôde ter em: conta -, conduzem a que a L.N. deva ser considerada, relativamente à conduta de C, como lei despenalizadora e, portanto, seja aplicada retroactivamente.
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§ 361. O critério mais defensável, nesta matéria em que a L.N . altera os elementos do tipo legal de crime, parece ser o critério da continuidade normativo-típica. De acordo com este critério, há unanimidade, entre os autores que o defendem, sobre a hipótese em que a L.N. alarga a punibilidade por supressão de elementos especializadores constantes da L.A, e sobre a hipótese em que a L.N. troca elementos do tipo legal.
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Parte J -
Questões Fundamentais
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. § 362. As divergências, no seio dos defensores da teoria da CODtinuidade normativo-tipica, surgem relativamente à hipótese de redução da puníbílldade por adição de novos elementos típicos. Segundo uns autores (Jakobs, Padovani), o facto praticado na vigência da L.A. (que é menos exigente que a lei nova, pois esta exige mais elementos para que o facto seja crime), mantém-se punível, desde que revista as características exigidas pela L.N., havendo somente que ver qual a pena mais leve (se a da L.A ou da L.N.), que será a aplicada, Segundo outros autores (Schroeder, Rudolphi), a entrada em vigor da L.N. determina a despenalização da conduta praticada, na vigência da L.A., mesmo que esta conduta revista as características que a L.N. passou a exigir para haver crime,
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punibilidade era estar a valorar, retroactivamente, como típica uma circunstância que, na altura em que o facto foi praticado, não era. Ora, sempre que manutenção da punibilidade da conduta pressuponha a retroactividade da valoração como típica de uma circunstância que o não era, tal manutenção tem de recusar-se, pois que violar-se-ia a proibição da retroactividade desfavorável. , § 364. Mas pode haver casos em .que a aplicação da L.N. (desde que, obviamente, a pena seja mais leve) - apesar de esta restringir a punibilidade - não implica uma valoração retroactiva típica. E, nestes casos, afirmar-se-à a manutenção da punibilidade da conduta praticada na vigência da LA. . Assim, se a L.N. viesse estabelecer que só era crime o furto de coisa de valor superior a 10 euros, manter-se-ia punlvel o furto de 12 euros, cometido na vigência da L.A. (que punia o furto de coisa de qualquer valor), apesar de a L.N. restringir o âmbito da punibilidade do furto. Portanto e em conclusão, a tese, que afirma que, quando a L.N. restringe o âmbito da punibilidade, as condutas anteriores ficam despenalízadas, tem apenas valor tendencial, 7.
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No caso de supressão de elementos típicos da L.A., há acordo em que o facto praticado na vigência da L.A (lex specialis em relação à L.N.) e a esta subsumível (i. é, por esta punível) continua a ser punível, depois da entrada em vigor da L.N. Esta é a solução aplicável ao primeiro exemplo acima (§ 356) apresentado. Se forem diferentes as penas da L.A e da L.N., há que aplicar a mais favorável. No caso da troca de elementos típicos (fundamentadores ou medificativos), há concordância em que não existe uma relação (entre a L.A e a L,H) de continuidade normatívo-típica, e, assim, o facto praticado, na vigência da L.A e a esta subsumível, fica despenalizado (estando em causa "tipos de crime fundamentais") ou é desqualificado penalmente, passando a ser punido pelo crime fundamental (tratado-se de crimes qualificados), ou continua a ser punido como crime privilegiado (no caso de permuta de circunstâncias privilegiantes).
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§ 363. Em minha opinião, acho que está mais conforme com os princípios político-criminais, que regem esta matéria da sucessão de leis penais, a segunda posição. Assim, entendo que, quando L.N. vem acrescentar novas exigências (novos elementos), aumentando, portanto, a compreensão típica e diminuindo a extensão da punibilidade, a sua entrada em vigor determina a despenalização das condutas praticadas na vigência da L.A, mesmo que tais condutas preencham os pressupostos que passaram a constar da L.N, Com efeito, aceitar a continuidade da
Título II - A Lei Penal: criação e aplicação
Alteração
das causas
de justificação
§ 365. O tipo-de-ilícito é constituído pelo tipo legal em sentido estrito (24) - de que acabámos de falar - e pela (inexistência de urna) causa de justificação. Significa que a punibilídade depende, desde logo, também das causas de justificação ou causas de exclusão da ilicitude. Assim, as razões juridico-pcliticas de certeza e garantia do cidadão, frente às possíveis alterações legais também não podem deixar de se repercutir na sucessão de leis (penais ou não penais) que se refiram às causas de justificação. Acrescente-se
que o mesmo vale para as alterações
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ciaís, que tenham força vinculativa das futuras decisões dos tribunais, o que
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(24) Sobre o tratamento - nesta perspectiva da sucessão de leis penais - das condições objectivas de punibilidade, ver a minha monografia Sucessão de Leis Penais, 3." ed., 2008, pp. 234-241.
Pane I - Qllestões fUlldamentais
202
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Título II - A Lei Penal: criação e aplicação
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se verifica quando c?nstam5I,,~ M(',(aCÓrdãode fixação de jur~spll.ldência" (CPP, art. 437.° 5S.). E que, a~r de a Revisão do CPP de 1998 ter, como se impunha, retirado vinculatfy:ldade absoluta a estes acórdãos (que, até então, mantiveram a natureza dos anteriores e inconstitucionais Assentos), eles: não deixam de ser relativamente obrigatórios nas decisões futuras. Ora, na medida em que as alterações das causas de justificação se traduzem em alterações da punibilidade dos factos descritos nos tipos legais de crime, necessariamente que tais alterações têm de ser regidas, quanto à sua eficácia temporal, pelo princípio da aplicação da lei mais favorável: proibição da retroactividade da alteração desfavorável e aplicação retroactiva da alteração favorável.
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§ 366.
As causas de justificação operam, como é sabido, numa situação de conflito de interesses, cabendo precisamente à norma de autorização, i. de justificação dizer qual é o interesse juridicamente preponderante. E é precisamente, ao dizer qual o interesse juridicamente assumido como mais valioso, que a respectiva norma desempenha uma fun-
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ção de orientação da conduta na concreta situação de conflito.
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A criação ou alargamento do âmbito de uma causa de justificação implica, simultaneamente, um efeito (imediato) "descrimi-. nalizador" de uma conduta que, antes, não só era formalmente típica como ainda materialmente ilícita, mas também (em muitas situações) um' efeito (mediato) de "crirninalização" de uma conduta que, antes, embora formalmente típica, não era materialmente ilícita, isto é, não constituía um ilícito penal. Inversamente, a eliminação ou redução do âmbito de uma causa de justificação implica, simultaneamente, um efeito (imediato) "criminalizador" de uma conduta que, antes, apesar de formalmente típica, era justificada, e também (em muitas situações) um efeito (mediato) de "descrirninalização" de uma conduta que, antes, era considerada ilícito penal e, agora, passou a ser considerada justificada, § 368.
Do exposto resultam
as seguintes
conclusões:
A L.N., criadora ou arnpliadora de urna causa de justificação, aplica-se, retroactivamente, ao agente cuja conduta concreta-
mente típica, apesar de considerada ilícita pela lei do tentpus delicti (LA.), passou a ser considerada justificada (foi, portanto, "descriminalizada" e, assim, deixou de ser punível); mas o (eventual) efeito mediato "criminalizador" da conduta ("contrá-acção"} típica, que pela L.A. estava justificada mas pela L.N. passa a ser considerada ilícita, só pode afirmar-se em relação às condutas praticadas a partir da entrada em vigor da L.N. A L.N. eliminadora ou redutora do âmbito de uma causa de justificação não se aplica às condutas anteriormente praticadas, que, apesar de típicas, estavam justifícadas pela L.A. (proibição de retroactívidade desfavorável), continuando estas a ser tidas como justificadas; mas já se aplica, rett:oactivamente, às condutas típicas que, sendo pela L.A. consideradas ilícitas, passaram com a posterior L.N. a ser consideradas justificadas (imposição da retroactividade favorável).
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8. Medidas
de segurança
§ 369. A nossa Constituição de 1976 e, na sequência desta, o CP de 1982 estabeleceram que, tal como as penas, também as medidas de segurança estão sujeitas aos princípios da legalidade e da jurisdi-
clonalídads,
Não só' os pressupostos da declaração judicial da perigosidade criminal (os factos criminalmente ilícitos) como. também as correspondentes medidas de segurança têm de.ser posteriores ao início de vigência da lei (CRP, art. 29. -1 e 4; CP, arts, 1."-2 e 2."_1). Eis a proibição da retroactividade desfavorável, Já, se a lei, que entre em vigor posteriormente à prática dos factos-pressuposto da aplicação da medida de segurança ou mesmo à decisão judicial de aplicação da medida de segurança, descriminalizar tais factos ou estabelecer urna medida de segurança mais favorável (quer reduzindo a duração do internamente, quer substituindo por uma medida de segurança menos gravosa), aplicar-se-à retroactivamente. Pois que, embora a CRP, art, 29.°-4, e o CP, art. 2.0_2 e 4, não mencionem, expressamente, as medidas de segurança, parece evidente que tais disposições legais abrangem as medidas de segurança e os seus pressupostos. Com efeito, tendo as medidas de segurança uma exclusiva função de defesa social e de tratamento do delinquente Q
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Título fl - A Lei Penal: criação e aplicação
Parte I - Quesrões Fundamentais
(no caso das verdadeiras medidas de segurança, que são as aplicáveis a inimputáveis - cf. § 127 58.), necessariamente que, se a L.N. é mais favorável, ter-se-à de aplicar retroactivamente. ".?:':"
§ 370. A razão da proibição da retroactividade desfavorável das medidas de segurança aplicáveis a inimputáveis é exclusivamente jurídico-política. É que, o facto destas medidas de segurança não terem uma fundamentação ética, nada retira à sua gravidade e ao perigo da sua utilização abusiva ou mesmo persecutória. Daqui resultou a consciência jurídico-política, ligada ao aprofundamento do Estado-de-Direito, da necessidade da sujeição das medidas de segurança ao mesmo regime das penas.
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§ 371. Embora discordando da aplicação a imputáveis de medidas de segurança nâo privativas da liberdade (cf. § 127 ss.), é evidente que também a estas se aplica o princípio da lei mais favorável.
VI. Leis temporárias § 372. O n," 3 do art, 2.° do CP estabelece que, «Quando a lei valer para um determinado período de tempo, continua a ser punível o facto praticado durante esse período». .É um facto que, prima fade, as leis penais 'temporárias colocam problemas de compatibilização com o princípio constitucional e político-criminal da retroactividade da lei mais favorável. Necessário se torna, portanto, proceder com o máximo de ordem e rigor possível. § 373. Comecemos pela definição material de lei 'penal temporária: é a lei penal que, visando prevenir a prática de determinadas condutas numa situação de emergência ou de anormalidade social, se destina a vigorar apenas durante essa situação, pré-determinando ela própria a data da cessação da sua vigência. A especialidade do regime da lei temporária reside no facto da sua aplicabilidade a todas as condutas nela previstas e praticadas durante a sua vigência, independentemente de, no momento do julgamento, a lei temporária já não estar em vigor.
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Exemplo: lei que, dados os riscos de uma epidemia de "pneumonia atípica", criminaliza, durante o período de seis meses, o aparecimento, em lugares públicos, de pessoas afectadas pela síndrome respiratória aguda, às quais tenha sido imposto pelas autoridades sanitárias competentes, um determinado tempo de isolamento. § 374. Do exposto resulta que são dois os pressupostos da legitimidade constitucional e polítíco-crimínal do regime especial das leis temporárias: um pressuposto material e outro formal. O pressuposto material é a situação de emergência ou de anormalidade, situação esta que é a condição necessária da legitimidade material político-criminal da lei temporária. Sem a verificação deste pressuposto, a lei temporária estaria ferida de inconstitucionalidade, pois violaria o princípio da retroactividade favorável, ao manter uma ultra-actividade desfavorável. Significa isto que não depende do arbítrio do legislador a criação de leis temporárias. Mas é, ainda, exigido um pressuposto formal: é necessário que, em nome da certeza jurídica e da segurança dos cidadãos, a própria lei - que visa impedir a prática de actos que, na excepcional situação de emergência, adquirem uma gravidade potenciada para determinados bens jurídicos - estabeleça, formalmente, o seu termo de vigência. E se, atingida a data que a lei temporária tinha estabelecido como limite da sua vigência, ainda perdurar a situação de anormalidade, o que O legislador deverá fazer é aprovar uma nova lei que fixe nova data para a cessação da vigência da lei temporária. § 375. Nem sempre será possível calendarizar o termo de vigência de uma lei penal temporária. Mas sempre o seu teimo de vigência tem de ser formal e inequívoco. Tal impossibilidade de fixar um determinado dia para a cessação de vigência dá lei temporária nem sempre será possível, nomeadamente no caso das leis penais em branco (cf. § 193 ss.) Exemplo: devido a obras em determinado troço da via pública, é colocada uma placa indicadora da proibição de velocidade acima de 30 km/h. Neste caso, a norma integradora da lei penal em branco
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Porte I -
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Q,uSlões Fundamentais
Tttuio fi - 11 Lei Penal: criação e aplicação
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(p. ex., CP, art. 291 -1-b) é uma norma temporária cujo termo de vigência, embora não podendo, porventura, ser determinado à partida, coincidirá com a retirada ela placa sinalizadora. 0
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§ 376. Contra o que alguns autores ainda afirmam, há que repetir que o regime especial da lei temporária não pode considerar-se uma excepção ao princípio da retroactividade da lei despenalizadora, Na verdade, se de verdadeira excepção se tratasse, tal seria, ncordenamento jurídico português, inconstitucional, por violação da CRP, art. 29.0-4-2." parte. Efectivamente, excepção só haveria se a ratio político-criminal da retroactividade despenalizadora se afirmasse também DO caso da caducidade das leis temporárias. Mas, precisamente, no caso das leis temporárias, tal ratio - que se traduz na alteração da valoração da ilicitude do facto, que, segundo o legislador, deixou de ter dignidade penal (cf. § 67) - não se verifica. Pois que: os factos praticados, na situação de emergência ou de anormalidade social de terminante da lei temporária, continuam a ser valorados, pclítico-criminalmente, como merecedoras e carecidos de punição penal; sucede apenas que a alteração da situação no sentido da sua normalização retirou àqueles factos abstractamente considerados a sua potenciada perigosidade para os bens jurídicos que a lei temporária visou tutelar. Há, como a doutrina cosnnnareferir, uma alteração da situação fáctica e não uma alteração da valor ação político-criminal. Digamos, em conclusão: não se afirmando a razão de ser da retroactividade da lei despenalizadora, não se afirma a eficácia retroactiva da caducidade (auto-revogação) da lei temporária - ubi cessat ratio, cessat eius dispositio. Eis o verdadeiro e único fundamento .da compatibilidade do regime especial da lei temporária com o princípio constitucional da eficácia retroactiva da despenalização de uma conduta .. § 377. Até agora, falámos das leis temporárias como se elas fossem, sempre e necessariamente, leis criminalizadoras (penalizadoras). A verdade, porém, é que a lei temporária pode ser uma lex severior; isto é, uma lei que, por força da situação de anormalidade, se limita a agravar, temporariamente, a responsabilidade penal pela prá-
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tica de um facto que já é, na situação normal, considerado crime. Sirva de exemplo a agravação da pena (estabelecida no art. 275°-1) por porte de arma de fogo sem licença, durante determinado período de tempo e por causa de uma situação de grave perturbação da ordem pública.
§ 378. Refira-se, ainda, que também pode haver uma verdadeira sucessão de leis penais temporárias. Pode o legislador, com o objectivo de tentar debelar, rapidamente, a situação de anormalidade, aprovar uma lei que, depois de entrada em vigor, verificou que era excessivamente dura, mesmo tendo-se em conta a gravidade da anormalidade da situação .. E, então, decide aprovar uma nova lei temporária que reduz a pena estabelecida na lei anterior. Numa tal situação, é evidente que estamos perante uma verdadeira sucessão de leis penais temporárias, pois que há identidade da situação fáctica (anormal) assumida por arnbas as leis e determinante do regime especial destas. Numa hipótese destas, ter-se-ia de aplicar, retroactivamente (em relação aos crimes cometidos na vigência da primeira lei temporária), a segunda lei temporária, por ser mais favorável. Aqui, na relação entre a primeira e a segunda lei temporária, houve uma alteração da valoração político-criminal da mesma situação fáctica de anormalidade social.
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7.° CAPÍTULO
A· EFICÁCIA
r.
ESPACIAL
DA LEI
PENAL
A designação "direito penal internacional"
§ 379, Tradicionalmente, contrapõem-se as designações "direito penal internacional" e "direito internacional penal", A expressão direito penal internacional compreendia, qua.se exclusivamente, as disposições jurídico-penais de cada Estado sobre o âmbito da aplicação das suas normas penais aos crimes praticados no seu próprio território e aos cometidos num Estado estrangeiro. Relativamente ao direito português, o direito penal internacional (português) reduzia-se, praticamente, às disposições constantes do art. 53, o do CP de 1886. E estas disposições reconduziarn-se, por sua vez, à consagração do princípio da territortalidade como princípio fundamental, ao qual acresciam, como princípios subsidiários ou complementares, relativamente a crimes cometidos no estrangeiro, o princípio da defesa dos interesses econotnico-financeiros e politicos do Estado Português e o princípio da nacionalidade activa, Este último baseava-se no princípio do direito internacional comum ou das "gentes" do punire aul dedere, que quer dizer: é dever de um Estado ou .extraditar um seu cidadão, que noutro Estado tenha praticado um crime, ou, então, puni-lo, Ora, como, então, sé afirmava o princípio absoluto da proibição da extradição de cidadãos nacionais, a alternativa era julgá-lo e, eventualmente, puni-lo. Além destes poucos princípios, vigorava, ainda, o princípio da aplicação da lei penal portuguesa a crimes que lesassem interesses universais (comuns a todos os "Estados civilizados"), desde que à protecção de tais interesses Portugal se tivesse vinculado pela adesão aos tratados ou convenções internacionais que visavam a tutela desses interesses, Portanto, tradicionalmente, durante a vigência do C1' de 1886, a cooperação penal entre os Estados e, nomeadamente, entre Portugal e outros Estados, reduzia-se à obrigação de cada Estado julgar, pelos seus tri-
Tttulo II - A Lei Penal: criação e aplicação
209
bunais, crimes praticados pelos seus nacionais num Estado estrangeiro, desde que fossem encontrados em Portugal e não tivessem sido julgados no Estado estrangeiro ou, tendo-o sido, não tivessem cumprido a totalidade da pena em que foram condenados. Vê-se que, então, um Estado nunca aplicava wna lei penal estrangeira, e muito menos reconheceria e executaria as sentenças penais estrangeiras, Assim, no CP de 1886, art. 35,0_§ 4,°, estas nem sequer contavam para efeitos de reincidência. O único efeito que tinham, no Estado Português, era um efeito fáctico negativo, que, baseado no tradicional princípio ne bis in idem, se traduzia no seguinte: se tivesse sido julgado e absolvido por tribunal do respectivo Estado estrangeiro, não podia voltar a ser julgado por tribunal português; se foi condenado e cumpriu parte da pena, o tribunal português teria, no caso de sentença condenatória, de descontar, na pena aplicada, o tempo de prisão efectivamente cumprido no estrangeiro,
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§ 380. A designação direito internacional penal compreendia e compreende o conjunto das normas jurídico-penais (materiais e processuais) constantes de tratados ou convenções internacionais a que um Estado tenha aderido (como parte outorgante ou como posterior aderente), Pertencem a este chamado direito internacional penal, p, ex. as Convenções de Genebra sobre os Crimes de Guerra, de 1949, a Convenção Internacional para a Repressão. da Falsificação de Moeda, o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Este Estatuto de Roma (25) - aprovado em 17- de Julho de 1998 e entrado em vigor em 1 de Julho de 2002 - foi, quanto a Portugal, aprovado, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n." 3/2002, e publicado no Diário da República em 18 de Janeiro de 2002,
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§ 381. Cabe-nos, aqui, tratar apenas do chamado direito penal internacional português actual, i, é, como já o dissemos, das disposições jurídico-penais portuguesas sobre a aplícabilidade, no espaço, da nossa
.:~{rl) Para uma análise do direito material e processual constante do Estatuto de Roma, veja-se o volume especial da Revista Direito e Justiça da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, 2006, com o título O Tribunal Penal Internacional e a Transformação do Direito Internacional, Ie-Dlr, Pen:\l
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Parte I -
QueJtões Fundamentais
lei penal, sobre a eventual aplicabilidade, pelos tribunais portugueses, da lei penal estrangeira e, ainda, sobre a cooperação judiciária internacional penal das autoridades portuguesas com as estrangeiras, Mas, antes de analisarmos estas normas jurídico-penais portuguesas, convém fazermos urna breve referência à evolução, ocorrida nas últimas décadas, em matéria de cooperação entre os Estados na resolução das questões penais, bem como às causas dessa evolução, A partir do termo da segunda Grande Guerra e, especialmente, a partir dos anos 60170 do séc.. XX, os povos e os seus respectivos Estados começaram a ter a consciência de que era indispensável uma cooperação entre eles nos mais variados domínios, desde o económico ao da luta contra certas formas de criminalidade grave, complexa e, sobretudo, transnacional, passando pela protecção do ambiente, etc, Esta consciencialização política da interdependência dos Estados, em múltiplos dominios, e da consequente indispensabilidade da cooperação entre eles, foi reforçada com o aparecimento, a partir da década de sessenta, de organizações criminosas transnacionais, altamente perigosas e sofisticadamente complexas, dedicadas ao tráfico de pessoas, de droga, de armas, ao terrorismo, etc. Acresceram a esta como que progressiva globalízação do crime grave dois outros fenômenos sociais mundiais que, embora positivos em si mesmos, não deixavam, contudo, de obrigar os Estados a cooperarem entre si: um destes foi, e é, o fenómeno das emigrações, em massa, de pessoas em busca de emprego e de melhores condições de vida; o outro foi, e continua a ser, o fenómeno do turismo. Ambos, como é óbvio, determinaram uma grande mobilidade inter-estadual das pessoas, passando cada pessoa a ser, ou poder ser, cidadão de dois mundos: cidadão do seu Estado e cidadão do mundo. Esta progressiva globalização, que faz com que o mundo se transforme numa aldeia comum, aprofundou-se na última década com a globalizaçâo da informação e da comunicação, através da Internet, e com a transnaclonalização do capital e das empresas, . '. § .382. Esta real interdependência dos Estados e a consciência política, que neles provocou, sobre a inevitabilidade da cooperação entre si, não podia deixar de se repercutir na reforrnulação do conceito de soberania estadual e do exercício do ius puniendi.
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Tttuto 11 - A Lei Penal: criação e aplicação
Assim, o tradicional conceito de soberania (teorizado a partir da baixa Idade Média e consagrado no séc. XVI) perdeu o seu carácter absoluto, E esta relativização manifestou-se também no próprio direito penal estadual. Assim, compreendia-se que, enquanto a soberania de um Estado era, no plano externo, definida como um poder absoluto e, portanto, absolutamente indiferente ao poder dos outros Estados, cada Estado exercesse, no seu território, os seus poderes soberanos, com total indiferença pelo modo como os outros Estados os exerciam sobre os seus territórios, Ora, sendo o ius puniendi estatal. considerado como uma das principais manifestações da soberania, natural que fosse rejeitada qualquer cedência (por recíproca que o fosse) a outro Estado, em matéria penal. E, assim, é que, como já referimos, até há 'poucas décadas, a generalidade das legislações penais recusavam-se a aceitar a aplicação, pelos seus tribunais, da lei penal do Estado estrangeiro, onde o crime tivesse, sido praticado e, a fortiori, recusavam a execução de sentenças penais proferidas por tribunais estrangeiros. Porém,' com a relatívízação do conceito de soberania estadual, também passou a relatívízar-se o poder punitivo estatal, passando-se 'de um isolacionisrno penal a uma progressiva cooperação judiciária dos Estados em matéria penal. Esta nova atitude dos Estados teve repercussões, não apenas a nível do incremento da celebração de convenções e tratados internacionais (bilaterais e multilaterais) sobre questões penais (cujo último exemplo, foi a criação do "Tribunal Penal Internacional" permanente, sedeado em Haia), mas também nas próprias legislações penais nacionais relativamente ao âmbito espacial da lei penal estadual, e à cooperação judiciária internacional em matéria penal. É a estas 'nonnas jurídico-penais portuguesas f'direJ.tQ'penal internacional") que vamos dedicar os §§ seguintes. Il.
Princípios sobre o âmbito de aplicabilidade penal portuguesa 1. O princípio fundamental
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no espaço da lei
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§ 383. No passado, discutia-se sobre qual o princípio que, nesta matéria da "aplicação da lei penal no espaço", devia ser considerado
Tttulo li -'- ti Le j Penal: criação e aplicação
Parte I - Questões Fundamentais
212
como princípio geral: o da nacionalidade (activa) ou o da territorialidade? Apesar de, sobretudo então, poder haver algumas razões em favor da elevação do princípio da nacionalidade a princípio geral - nomeadamente, a consideração de que, se um 'Estado tem de' proteger os seus cidadãos mesmo quando se encontram no estrangeiro, também estes devem estar sujeitos às leis penais do seu Estado mesmo quando se encontrem em território de outro Estado -, a verdade é que a generalidade dos Estados, desde há muito, optou pelo princípio da territorialidade como princípio fundamental. § 384. E, na verdade, há razões decisivas em favor do princípio da territorialidade: razões materiais e razões processuais. As razões materiais são de natureza político-criminal e estão relacionadas com fundamentos e as finalidades preventivas da punição penal. É no território do Estado, onde foi praticado o crime, que mais se fazem sentir as necessidades de prevenção geral positiva de pacificação social e de reafirmação da ordem jurídico-penal e da importância dos bens jurídicos por esta protegidos, e de prevenção geral negativa de dissuasão dos potenciais infractores. Com efeito, se um chinês pratica um crime grave em Portugal, é aqui, e não na China, que haverá o "alarme social" e que se toma necessário "advertir" os potenciais infractores. Mas também são detenninantes as razões processuais: pois é no território, onde o crime foi praticado, que a investigação e a prova do crime é mais fácil de realizar-se e, portanto, são maiores as garantias de uma decisão eficaz e justa. Assim, o nosso CP, art, 4,O-ll), estabelece que, «Salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é aplicável a factos praticados em território português, seja qual for a nacionalidade do agente».
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§ 385. Mas, tendo em conta que O crime é uma realidade complexa onde se destacam os elementos estruturais conduta e resultado, há que determinar se ambos, ou só um deles, devem ser considerados decisivos para a fixação do locus delicti, i. é, do Estado onde o crime deve ser considerado praticado, para este efeito do principio da territorialidade.
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A ratio, que deve presidir à determinação do locus delicti, é a de evitar conflitos negativos de competência, evitando-se, assim, a impunidade do infractor. Ora, para evitar esta impunidade, o critério mais adequado é o critério bilateral alternativo, considerando-se o crime praticado em Portugal, quando a conduta ou o resultado cá se verifica. Poder-se-á dizer que, com este critério alternativo e uma vez que ele é adoptado pela generalidade dos Estados, se gerarão conflitos positivos de competência. A resposta a esta eventual objecção é a de que assim é, mas que tais conflitos positivos (mais de um Estado a considerar o crime cometido no seu território e, portanto, a afirmar a sua competência para o julgar) não têm qualquer relevância prática, uma vez que O que cada Estado concorrente pretenderá é que o crime não fique impune. Que seja o Estado A ou o B a julgá-lo, é secundário, é relativamente indiferente. § 386. E é este o critério que o nosso CP, art. 7,'·1, consagra, ao estabelecer que «O facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forrna de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, como naquele em que o resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo de crime se tiver produzido». Portanto, consideram-se praticados em Portugal e, portanto, puníveis pela lei penal portuguesa, com base no princípio da territorialidade, os crimes em que a conduta (acção ou omissão) foi, total ou parcialmente (6) praticada (quer sob a forma de autoria ou de cumplicidade) em Portugal, ou cujo resultado (típico ou não) cá se tenha produzido. O n." 2 do art. 7,° estabelece que, «No caso de tentativa, o facto considera-se igualmente praticado no lugar em que, de acordo com a representação do agente, o resultado se deveria ter produzido», Portanto, são também considerados cometidos em Portugal os crimes tentados cuja acção, apesar de praticada no estrangeiro, visasse produzir o resultado em Portugal.
(26) Assim, p. ex., nos chamados "crimes em trânsito", de que pode ser exemplo o sequestro, considera-se cometido em Portugal o sequestro. em que a vftima que foi sequestrada em França, foi libertada na Espanha, tendo passado por Portugal. Também, no "crime continuado", este considera-se cometido em Portugal, desde que tão s6 uma das múltiplas acções "parcelares" tenha sido praticada no nosso país.
214
Pane [ -
Q«eSlaes Fundamentais
Trata-se, como parece óbvio, de um conceito muito amplo do iocus delicti; em rigor, trata-se de uma ficção. Mas diga-se que tal amplitude parece justificada, pois está de acordo com a teleologia do critério do locus delicti, que é, como vimos, a de evitar situações de impunidade. Pois que, como parece claro, quer o Estado do local onde foi praticada a acção, quer o Estado do local onde, contra a intenção. do agente, se venha a produzir resultado, também são, a jortiori, considerados competentes para o respectivo julgamento e aplicação da sua própria lei penal, com fundamento no principio da territorialidade,
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§ 387. Uma palavra sobre a evolução do direito português nesta matéria do locus delicti. O CP de 1886 não continha nenhuma disposição sobre ~sta questão, tendo a doutrina defendido, com base nanecessidade de evitar situações de impunidade, a posição correcta do critério da conduta ou do resultado. O CP de 1982 estabeleceu, no art. 7.°, o critério da conduta ou do "resultado típico". Ora, ao exigir que o resultado fosse típico (i, é, constituísse um elemento do tipo legal de crime), excluía aaplicabilidade da lei penal portuguesa aos crimes formais (aqueles em que o resultado não é elemento constitutivo do tipo legal) cuja conduta tivesse ocorrido no estrangeiro, embora o resultado se tivesse produzido em Portugal. A Revisão de 1995 não alterou a redacção originária do CP de 1982. Foi a Lei n." 65/98, de 2 de Setembro, que conferiu ao art. 7.° a sua redacção actual. Esta lei não só alargou o locus delicti aos crimes cujo resultado, mesmo que não típico (27), se tenha produzido em Portugal,
Uma palavra sobre as condições objectivos de punibilidode: estas condições são elementos do tipo legal; logo, se a c. o. p. consistir num resultado (da acção respectiva que constitui O ilícito típico), estarnos diante de um resultado típico (i.é, pertencente ao tipo legal, posto que não integrante do ilícito) e, portanto, o respectivo crime também ~, para este efeito da "aplicação da lei 00 espaço", considerado cometido em Portugal. Assim, mesmo antes de o art. 7.' fazer referência ao "resultado não compreendido' no tipo de crime", já um crime, cujo resultado. posto que configurando uma mera c. o. p., se verificasse em Portugal, era um crime que devia considerar-se cometido em Portugal. Assim, a tal crime era aplicável a lei penal portuguesa, com base no princípio da territorialidade. Sirva como exemplo o incitamento ao sr.iddio (aI1. 135."); se a "instigação" é feita no estrangeiro, mas o resultado "suicídio ou tentativa de suicídio" ocorre em Portugal, este crime tantb se considera praticado no país onde foí praticada a "instigação" como em Portugal, (27)
Tilulo II - A Lei Penal: criação e aplicação
215
como ainda ficcionou como locus delicti o lugar onde, no caso de tentativa cometida no estrangeiro, o agente queria que o resultado se produzisse em Portugal. § 388, A al. b) do art: 4.° estabelece que, para além dos crimes praticados em território português (aI. a)), a lei penal portuguesa é também aplicável a crimes cometidos «A bordo de navios ou 'aeronaves portu.gueses», Ora, uma vez que e.sta disposição não distingue entre navios ou aeronaves de guerra, i. é, militares, e navios ou aeronaves comerciais, a conclusão parece dever ser a de que abrange as duas categorias.' § 389. A outra questão, que se levanta, é a de saber se a disposição também abrange os casos dos navios ou aeronaves portugueses que se encontrem em portos ou aeroportos estrangeiros. ou nas águas lerritoriais ou espaços aéreos .estrangeiros, ou se, diferentemente, apenas se refere às águas e aos espaços aéreos internacionais' ,', A solução mais razoável deveria ser, pelo menos relativamente aos .navios ou aeronaves comerciais, considerar a lei penal portuguesa aplicável, com base no alargamento do princípio da territorialidade, somente aos crimes cometidos nas águas ou espaços aéreos internacionais, excluindo os praticados a bordo de navios ou aeronaves comerciais, quando circulem em águas territoriais ou sobrevoem ~spaços aéreos estrangeiros, e quando se encontrem em portos ou aeroportos estrangeiros. Porém, a verdade é que o art. 4.o_b) não distingue e, assim, parece que a solução que se impõe é a de considerar aplicável a lei penal portuguesa também nestas hipóteses de crimes praticados a bordo de navios ou aeronaves comerciais portugueses, .mesmo que se encontrem em espaço marítimo
ou aéreo estrangeiro ou em portos ou aeroportos estrangeiros. Mas, assim sendo, então parece que, por uma questão de reciprocidade, também deve considerar-seaplicável a lei penal do estado estrangeiro, a que pertence o navio ou aeronave comercial, quando o crime for cometido a bordo de navio ou aeronave que se encontre em águas ou espaço aéreo por- . tugueses, ou se encontre num porto ou aeroporto português. § 390, Do exposto retiro a conclusão de que a al, b) do art. 4.° abrange os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves portugue-
'i; .~ Porte I - Questões Fundamentais
216
ses (militares e comerciais) quer se encontrem em águas ou espaço aéreo internacionais, quer se encontrem em portos ou aeroportos estrangeiros. Esta solução, estabelecida pelo nosso direito positivo, não cria dificuldades práticas indesejáveis político-criminalmente. Com efeito, também aqui o que pode acontecer é que a leI penal do país, em cujas águas ou espaço aéreo seja praticado o crime, ou e!U cujo porto ou aeroporto se encontre o navio ou a aeronave portuguesa, se considere também aplicável. Mas, como já o referimos (§ 385), o que interessa, fundamentalmente, é evitar a impunidade, evitando, com tal objectivo, os conflitos negativos de competência. Que, havendo um conflito positivo de competências, dois Estados se considerem competentes, é questão .secundária.
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§ 391. Nestas considerações, não me referi às águas terrítoriais
ou ao espaço aéreo portugueses, pois que tanto as primeiras como o segundo são, segundo o direito internacional público, território português. Assim, os crimes cometidos a bordo de navio ou' aeronave comerciais estrangeiros, quando em águas ou espaço aéreo portugueses, ou em portos ou aeroportos portugueses, são considerados praticados em território português e, portanto, são abrangidos pela al. a) do. art. 4.°
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§ 392.
Já que, segundo o direito internacional público, os navios
ou aeronaves de guerra são considerados território do Estado a que pertencem, então a lei penal portuguesa não pode ser aplicada aos crimes praticados 110 interior de navios ou aeronaves de guerra estrangeiros, quando se encontrem nas águas ou espaço aéreo portugueses ou em portos ou aeroportos portugueses. Pois esta situação nem é abrangida pela al. a), uma vez que os navios ou aeronaves de guerra estrangeiros não são considerados território português; nem é abrangida pela al, b), pois que tais navios ou aeronaves não são portugueses. 2. Os princípios complementares
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§ 393. O CP, art, 5.°, consagra vários princípios que tomam a lei penal portuguesa aplicável a crimes cometidos no estrangeiro. , O conjunto destes princípios pode englobar-se na designação comum de "princípios complementares ou subsidiários". Comple-
Tiuúo li - A Lei Penal: criação
e aplicação
217
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mentares, na medida em que vêm acrescentar às situações abrangi das pela eficácia positiva absoluta do princípio da territorialidade (a lei penal portuguesa é aplicável a todos os crimes praticados em território português, a não ser que haja convenção ou tratado em contrário) novas situações de crimes cometidos no estrangeiro. Subsidiários, uma vez que tais principios só funcionam em relação a situações que, mesmo que afectem os interesses por eles protegidos, não ocorram em Portugal. Logo, subsidiários em relação ao princípio da territorialidade. São diferentes os interesses e os pressupostos da aplicação de cada um destes princípios e, assim, é correcto que se procure designar cada um deles pela expressão mais adequada à respectiva teleologia e conteúdo. § 394. Como nota final desta breve introdução, cabe dizer que a ordenação destes princípios obedecia, tradicionalmente a um certo critério. A sua ordenação parecia obedecer a duas razões: a relevância dos bens jurídicos e a ordem histórica da sua consagração. Assim, antes da Revisão do Código Penal, operada em 2007, Unhamos esta sequência: 1.0 - princípio da protecção dos interesses nacionais (interesses do Estado); 2.° - princípio da universalidade; 3.° - princípio da nacionalidade activa; 4." - princípio da nacionalidade passiva; 5.° - princípio da nacionalidade activa e passiva. A Revisão do Código Penal, operada em 2007, embora não tenha menosprezado o critério da importância dos bens jurídicos, procedeu a um escalonamento dos princípios em função também, e prioritariamente, da não exigência ou exigência da dupla Incrímínação. Assim, o princípio da nacionalidade activa e passiva (cujo objectivo é o de evitar a chamada fraude à lei penal portuguesa) que, antes, vinha na al. d) passou para a al. b}. Ora, tendo em conta o disposto no n." 3 do art. 6.°, vemos que são precisamente este princípio e o dos interesses nacionais aqueles cuja aplicação não depende da dupla incriminação. Continua, portanto, a ser correcto dizer que, quando a wn determinado crime praticado no estrangeiro for abstractamente aplicável mais que um destes princípios, a solução correcta é fundamentar a aplicação da lei penal portuguesa no princípio que tem precedência na ordenação estabeleci da pelo art. 5.° E é esta ordem que seguiremos na exposição destes princípios.
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Parte f - Queslões Fundamentais
218
.1..1. Princípio
da protecção
de interesses
nacionais
(art, S.o-l-a))
§ 395. O primeiro principio complementar, previsto na al, a) do n." 1, é O principio da tutela cios mais relevantes interesses do Estado Português. Neste principio, é indiferente a nacionalidade do infractor. A referida alínea contém uma enumeração taxativa dos artigos da parte especial do código penal, onde vêm descritos os respectivos crimes. Pela leitura destes artigos (221.°, 262.° a 271.°,308.° a 321.°,325.° a 345.") vê-se, claramente, que o critério do legislador para delimitar o âmbito deste princípio foi o da natureza fundamental; para o Estado e para a sociedade no seu conjunto, dos bens jurídicos a proteger. Com efeito, os bens jurídico-penais, protegidos pelos diversos artigos referidos, reconduzem-se a quatro categorias: os alicerces e o funcionamento do Estado-de-Direito Democrático (arts. 325.° a 345.°, onde, p. ex., se incluem os crimes de "alteração violenta do Estado de Direito", de "coacção de órgãos constitucionais", de "fraude em eleição"); os interesses do Estado na confiança da circulação Iíduciárla (arts. 262.a 271.", onde, p. ex., se encontram os crimes de "contrafacção de moeda", de "falsificação de títulos equiparados a moeda"); os interesses da independência e da integridade nacionais (arts. 308.° a 321.°, onde, p. ex., se descrevem os crimes de "traição à pátria", de "ajuda a forças armadas inimigas", de "espionagem"); e os interesses da segurança das comunicações (art, 221.°, onde se inclui o crime "burla informática e nas comunicações"). Anote-se que deixou de se fazer referência aos arts. 300.° (organi. zações terroristas) e 301." (terrorismo), uma vez que estes dois artigos foram revogados pela Lei n." 5212003, de 22 de Agosto. Lei esta que descreve e pune estes crimes de "organizações terroristas" e de "terrorismo"; e que, no seu art, 8.°, estabelece a aplicabilidade da lei penal portuguesa a estes dois crimes, quando cometidos no estrangeiro (salvo, obviamente, tratado ou convenção internacional em contrário), e que, à semelhança dos crimes a que se referem as als. a) e b) do n." 1 do art. 5." do CP, exclui a aplicação da lei do país onde foi cometido o crime (exclui a aplicação da lex loei), mesmo que esta seja mais favorável. § 396. Tendo em conta a relevância nacional e estadual dos bens jurídicos em causa, compreende-se que a aplicação deste princípio não
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A Lei Pelta/: criação e aplicação
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dependa da presença do agente em Portugal, tal como é razoável que, nestes casos, seja sempre aplicada a lei penal portuguesa, mesmo que a lei do país onde o crime foi praticado seja mais favorável. E é isto que, precisamente, o n." 3 do art. estabelece. Portanto, aos crimes referidos na al. a) é, em regra, sempre aplicável a lei penal portuguesa, quer o facto não seja considerado crime no Estado onde foi praticado, quer, sendo considerado crime, a lex loci seja mais favorável. Disse que o regime aplicável era, em regra, o português: em regra, mas não necessariamente, pois que entendo que há que distinguir, dentro dos artigos referidos na al. a), aqueles cujas disposições visam, directa e exclusivamente, a tutela penal de interesses do Estado Português (as chamadas "normas espacialmente autolimitadas" -- arts. 308. a 32l.°; crimes contra a soberania portuguesa; arts. 325.° a 345:: crimes contra a realização do Estado de Direito português e crimes eleitorais) e aqueles cujas disposições, embora visem a tutela penal de interesses portugueses, também estendem esta tutela aos interesses estrangeiros (caso dos arts. 262: a 27l.": crimes de falsificação de moeda e de títulos de crédito). A competência para o julgamento da primeira categoria de crimes cabe aos tribunais portugueses, a titulo principal (e exclusivo, quando tais factos não constituírem crime face à lex loei, i. é, face à lei do Estado onde foram praticados - o que pode acontecer), sendo, obviamente, aplicada a lei penal portuguesa. Já, relativamente à segunda categoria de crimes, dever-se-à distinguir a situação, em que o crime lesa, directamente, os interesses portugueses (p. ex., contrafacção de euros ou falsificação de títulos de crédito nacionais), dos casos em que O crime lesa, directamente, interesses estrangeiros (p. ex., contrafacção de dólares ou falsificação de títulos de crédito canadianos). A competência penal internacional para o julgamento dos primeiros cabe, a título principal, aos tribunais portugueses, que aplicarão, sempre e necessariamente, a lei penal nacional; já, relativamente aos segundos, a competência dos tribunais portugueses é subsidiária e a lei aplicável (pelos tribunais portugueses) é a que for concretamente mais favorável ao infractor. Isto significa que é preciso fazer urna interpretação teleolágica restritiva da ai. a) do n. o 1 do arfo 5. ~ e do n. o 3 do art. 6.· Restrição esta perfeitamente possível, pois que é favorável ao infractor; e restrição que é razoável e teleologicamente imposta, dado que não teria qualquer sentido aplicar a lei penal portuguesa a quem, no estrangeiro, falsificou
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220
Tttulo Il - A Lei Penal: criação e aplicação
Fundamentais
moeda estrangeira, se no país onde foi praticado tal crime, a respectiva lei penal estabelecer uma pena mais leve que a prevista pela lei portuguesa. Num caso destes, o julgamento, a realizar-se em Portugal, seria com base nos princípios subsidiários da nacionalidade activa (al. e)-l! parte) ou da aplicação supletiva da lei portuguesa (a1.,O),aplicando-se a lei penal concretamente mais favorável (art. 6.°-2). '
cão, continua a sua justificação e finalidade a ser a de evitar a "fraude" à lei penal portuguesa; isto é, este princípio visa impedir que um cida-
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2.2. Principio da nacionalidade
activa e passiva (art. S.o-l-b))
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, § 397. O segundo princípio complementar do principio da territorialidade é o principio da nacionalidade activa e passiva, estabelecido na aL b) do n." I do art, 5: e assim designado por assentar. no critério da nacionalidade portuguesa, quer do agente quer da vítima. A especificidade deste princípio estava, originariamente, na cir. cunstãncia de o facto em causa não ser considerado crime pela lei do Estado onde foi praticado, prescindindo-se, portanto, da exigência da dupla incriminação (28). Assim, se um português se deslocasse ao estrangeiro para ai praticar contra um português um facto que também aí era considerado crime, só que com uma pena claramente 'inferior à estabelecida na lei portuguesa, o princípio, com base no qual ele podia ser condenado em Portugal, era o princípio da nacionalidade activa; e o tribuna! português tinha de aplicar a lei penal estrangeira, pois que era mais favorável. Era assim que se passavam as coisas antes da Revisão Penal de 2007. Actualmente, após esta revisão do CP;o disposto no n." 3 do art. 6.0 implica que o princípio da nacionalidade activa e .passiva abrange não só a tradicional hipótese em que o facto não é considerado crime no país onde foi praticado, mas também a hipótese em que é considerado crime, embora com uma pena inferior à estabelecida pela lei portuguesa. § 398. Apesar de, agora, O princípio da nacionalidade activa e passiva não pressupor, necessariamente, a inexistência da dupla incrimina-
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dão português se desloque ao estrangeiro para ai praticar, contra um outro. português, um facto que, sendo crime segundo a lei penal portuguesa, não o é pela lei desse Estado estrangeiro, ou que, sendo aí também considerado crime, é, todavia, punido menos severamente. Como exemplo da aplicação da lei penal portuguesa, com fundamento neste princípio - que foi introduzido pelo CP de 1982 -, temos o caso da mulher portuguesa que se dirija a uma clínica estrangeira para al realizar o aborto, em condições que, segundo a lei portuguesa, é crime (cf CP, art. 140.°-3 e art.' 142.°-1), mas não o é segundo a lei do. referido. Estado. A este exemplo, que foi referido pelo Prof. Eduardo Correia, nas reuniões da Comissão Revisora do Anteprojecto do CP de 1982, podiam acrescentar-se outros, como o do português, que se deslocasse a um país estrangeiro, para praticar actos sexuais com um português de 13 anos (CP, art. 171.0-2), país onde tais actos não fossem puníveis criminalmente, ou, sendo também puníveis, o fossem com uma pena muitíssimo inferior aos três a dez anos de prisão. estabelecidos pelo nosso código. penal. § 399. Para além dos já referidos pressupostos da nacionalidade portuguesa do infractor e da vítima e da não punibilidade ou menor punibilidade do facto segundo a lei do iocus d.elicti, são ainda pressupostos da aplicabilidade da lei penal portuguesa: a residência habitual do. infractor em Portugal; que este seja encontrado em Portugal; e que haja "fraude" à lei penal portuguesa. .
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§ 400. Embora só os dois primeiros estejam .expressamente referi, dos na al. b), entendemos que a fraude' à lei penal portuguesa é um pressuposto implícito, com um significado próprio e com consequências jurídico-penais práticas. Na verdade, aquilo que o legislador quer evitar é a impunidade' ou menor punição do português que, para fugir à aplicação. da lei penal nacional, se desloca, propositadamente, ao estrangeiro para ai praticar facto. Assim, se compreende a exigência da residência habitual em Portugal. Se a finalidade deste princípio fosse apenas a de proteger a vitima portuguesa contra actos praticados no estrangeiro, então não teria sentido o pressuposto da residência habitual em Portugal.
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Parte l-Questões
222
Fundamentais
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Ao mencionar e considerar a residência habitual em Portugal como pressuposto da aplicabilidade deste princípio, o legislador está a exigir, implicitamente, que o português se desloque ao estrangeiro com o objectivo principal de ai praticar o facto, É esta preordenação ("criminosa") da deslocação ao estrangeiro - que configura uma fraude ou forma de contornar a lei penal nacional - o que constitui a ratio e determina o âmbito da eficácia normativa deste princípio. Daqui resulta que não cai no âmbito deste princípio e, portanto, não é aplicável a lei penal portuguesa, O caso em que O agente, embora resida habitualmente em Portugal, decide passar uma férias no estrangeiro e, quando já se encontra nesse país, decide praticar um facto q1le é punível pelá lei portuguesa (ou é-punido mais severamente), mas não o é pela lei do Estado (oué menos severamente punido) onde ele está a passar férias ou 'está de passagem, no decurso de uma viagem de negócios. 2.3.
Princípio da universalidade
(art, S."-l-c))
§ 401. O terceiro princípio complementar é o da universalidade ou da 'protecção dos bens jurídicos considerados como valores éticos comuns a toda a humanidade. Também, neste principio, é irrelevante a nacionalidade do infractor. A respectiva al. c) faz uma enumeração taxativa dos crimes que o legislador português considerou porem em causa os valores fundamentais da comunidade internacional. Assim, determinam a aplicabilidade da lei penal portuguesa, com base neste princípio da universalidade, os crimes de "escravidão" (ali. 159.°), de "tráfico de pessoas" (art. 160.°), de "rapto" (art. 161.°), de "abuso sexual de crianças" e de "menores dependentes" (arts, 171.0 e 172.°), de "lenocinio de menores" e de "pornografia de menores" (arts, 175.0 e 176.°), de "danos contra a natureza" (art, 278.°), de "poluição" (art, 279.°) e de "poluição com perigo comum" (art, 280.°). § 402. São pressupostos da aplicação da lei penal portuguesa que o infractor seja encontrado em Portugal e que não possa ser extraditado. O primeiro pressuposto é claramente razoável, pois tendo o crime sido cometido no estrangeiro, seria inútil (e, se o infractor fosse um estrangeiro, quase que não teria sentido) iniciar em Portugal um prece-
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Título /I - A Lei Penal: criação e aplicação
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dimento criminal, encontrando-se O infractor noutro Estado. Aproveite-se para dizer que, contrariamente ao que tradicionalmente se afirmava, este pressuposto não é urna condição objectiva de punibilidade, mas sim uma condição ou pressuposto de procedibilidade. Relativamente ao segundo pressuposto, há que dizer o seguinte: em primeiro lugar, em regra todos os crimes são susceptíveis de fundamentar a extradição, excepto quando esta, embora o extraditando tenha praticado um crime, é pedida com uma motivação polltica (i. é, o Estado requerente visa, principalmente, a perseguição política do infractor - cf CRP, art, 33.°-6-1." parte); em segundo lugar, tendo em conta que estão em causas bens jurídicos considerados universais, deve interpretar-se a expressão «não possa ser extraditado» como abrangendo não só a hipótese em que a extradição (29) foi solicitada e negada, como também aquela em que a extradição não foi pedida.
§ 403. É de referir que o objecto principal deste princípio da universalidade eram - e continuam a ser - os chamados "crimes contra a paz e a humanidade", A razão de, agora, a al. c) não se referir a estes crimes está no facto de Portugal ter aderido ao Estatuto de Roma que criou o Tribunal Penal Internacional cuja competência é precisamente o julgamento deste tipo de crimes, A Lei n." 31/2004, de 22 de Julho, revogou do Código Penal os artigos referentes a estes crimes e passou a integrá-los (crime de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra), O art, 5." desta lei estabelece: «I - As disposições da presente lei são também aplicáveis a factos praticados fora do território nacional, desde que o agente seja encontrado em Portugal e não possa ser extraditado ou seja decidida a sua não entrega ao Tribunal Penal Intemacional. 2 - Não é aplicável o disposto no n." 2 do artigo 6,° do Código Penal», § 404. A Resolução da Assembleia da República n." 2/2002, de 20 de Dezembro de 2001 (ratificada pelo Decreto do Presidente da Repú-
(29) Após a Revisão Penal de 2007, à extradição foi equiparado o "mandado de detenção europeu" ou outro instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado Português.
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Parte 1 - Questões Fundamentais
blica n." 2/2002, de 18 de Janeiro) faz, no seu 8.11. 2.°, a seguinte "declaração interpretativa": «Portugal manifesta a sua intenção de exercer o poder de jurisdição sobre pessoas encontradas em território nacional indiciadas pelos crimes previstos 110 n." 1 do artigo 5.° do Estatuto, com
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observância da sua tradição penal, de acordo com as Suas regras constitucionais e demais legislação penal interna» (itálico meu).
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Ora, uma morte, prevê a tradição penal extradição de geiro, um dos Internacional?
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vez que o Estatuto do TPI, embora recuse a pena de pena de prisão perpétua, pena esta que é rejeitada pela portuguesa, quid iuris se o TPI pedir a Portugal a uma pessoa que tenha cometido, em país estrancrimes da 'competência julgadora deste Tribunal
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§ 405. Segundo o ar-t. 5."-1 do Estatuto do TPI, «A competência do Tribunal restringir-se-à aos crimes mais graves que afectam a comunidade internacional no seu conjunto. Nos termos do presente Estatuto, O Tribunal terá competência para julgar os seguintes crimes: a) crime de genocídio; b) os crimes contra a humanidade; c) os crimes de guerra; d) o crime de agressão». Enquanto que os arts. 6.°, 7.° e 8.° tipificam as três primeiras categorias de crime, já o crime de agressão (30) não ficou descrito, ficando, portanto, segundo o n." 2 do art. 5.°, suspensa a competência do Tribunal para julgar este crime até à sua tipificação, de acordo com os termos estabelecidos pelos arts. 121.° e 123.° do próprio Estatuto.
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2.4. Princípio
A resposta parece dever ser a seguinte: uma vez que a jurisdição do TPI é subsidiária das jurisdições penais nacionais (art, 1.0 do Estatuto) - pois o que a criação do TPI visou foi evitar a impunidade dos crimes graves contra a paz e a humanidade -, estando em causa um cidadão português, é inequívoco que ele não pode ser entregue ao TPI, devendo ser julgado em Portugal, onde, obviamente nunca poderá ser aplicada a pena de prisão perpétua, mas sim urna das penas previstas no nosso Código Penal, cujo limite máximo é 25 anos de prisão. Já, tratando-se de um estrangeiro, a solução poderá não ser tão liquida. Todavia, parece que, estando em questão um crime ao qual possa ser aplicada, pelo TPI, a pena de prisão perpétua, também não poderá Portugal extraditar o infractor estrangeiro (que, repita-se, tenha cometido o crime também no estrangeiro). E a razão desta posição radica no seguinte: por um lado, na "declaração interpretativa", feita no já referido 8.11. 2.° da Resolução da Assembleia da República, não se faz qualquer distinção entre cidadãos portugueses e cidadãos estrangeiros; em segundo lugar, a CRP, 3.11. 33."-5, só admite a extradição de cidadãos estrangeiros, com base em crimes a que corresponda a pena de prisão perpétua, «desde que o Estado requisitante ofereça garantias de que tal pena [ ... ] não será aplicada ou executada». Ora, independentemente de o TPI não ser um Estado, o certo é que o art. 120.0 do Estatuto estabelece- que «Não são admitidas reservas a este estatuto). Donde parecer resultar a conclusão de! que, mesmo tratando-se de cidadão estrangeiro, Portugal não poderá extraditá-lo. Obviamente que, não o extraditando, tem de o julgar.
Thuio If - A Lei Penal: criação e aplicação
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da protecção
de menores
(art.S."-l-d)
§ 405-A. A Revisão Penal de 2007 acrescentou, à lista dos princípios complementares ou subsidiários, uma nova disposição que está na alo d) e diz o seguinte: «Quando' constituírem os crimes previstos nos artigos 144.°, 163.° e 165.°, sendo a vitima menor, desde que o agente seja encontrado em Portugal e não possa ser extraditado ou entregue em resultado de execução de mandado de detenção europeu ou de outro instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado Português». O que terá levado o Legislador a acrescentar esta nova disposição? - Uma vez que na lei, que procedeu à revisão penal, não há a técnico-legislativamente exígível "exposição de motivos", temos de ver qual terá sido o objectivo desta disposição e, de seguida, verificarmos se tal objectivo foi, ou não, alcançado. §·405-B. Tendo em conta que o legislador acrescentou, na alo b) do art. 144.° do CP, a supressão ou afectação da capacidade de fruição sexual, parece-nos que um dos factores principais da consagração deste novo princip ia foi o combate às práticas de mutilação genital feminina que, infelizmente, ainda perduram em certas etnias, nomeadamente africanas. Estas práticas são toleradas em certos países, com base no cos-
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(30) Sobre o crime de Agressão, ver PAUl,A EsCARAMEIA, «O Tribunal Penal Internacional e o Crime de Agressão», ia Direito e Justiça - O Tribunal Penal Internacional e a Transformação do Direito lnternacional - volume especial, 2006, pp. 17-39. IJ·Oir. Pcnll
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Porre I -
Questões Fundamentais
Titulo fI - A Lei Penal: criação e opiicação
tume. Embora a mencionada disposição, além de se referir a todo o art. 144.°, também refira o art. 163,· (coacção sexual) e o art. 164.° (violação), parece-nos que foi a necessidade de combatera horrível prática da mutilação genital feminina a grande motivação do. legislador.
2,5. Princípio
activa (art, 5.·-I-e)-1.' parte)
§ 406. O quinto principio complementar é o princípio da nacionalidade activa, Está previsto na primeira parte da al. e) do n." 1 do art. 5." O critério é o da nacionalidade portuguesa do infractor. E o fundamento, já tradicional, é o de que, em princípio, um Estado não extradita os seus cidadãos. Donde que, de acordo com o velho aforismo dedere aut punire, recai sobre o Estado, que não extradita um seu nacional, o dever intemacional de o julgar.
§ 405-C, Mas será que esta disposição realizará tal objectivo? - A resposta passa pela análise dos pressupostos da aplicação desta disexpressos na al. d) são três: que a vítima posição. E os pressupostos seja menor; que o agente seja encontrado em Portugal; que não possa ser extraditado ou entregue. Mas há que não esquecer o pressuposto geral e implícito que exige - para que a lei penal portuguesa possa ser aplicada a um facto praticado no estrangeiro - a dupla incrirninação, i, é, que o facto também seja considerado crime pela lex Zoei, ou seja, pela lei do país onde foi praticado. Ora, o n, o 3 do art. 6,.0 não refere a al; d); logo, para que uma mutilação genital feminina, praticada no estrangeiro, possa ser punida em Portugal, é necessário que tal prática também seja considerada crime pela lei do país onde ela ocorreu; não o sendo, não pode ao respectivo agente ser aplicada a lei penal portuguesa, Donde resulta a conclusão de que. o objectivo do legislador não parece ter sido alcançado com esta nova disposição, Tê-lo-ia sido, se tivesse sido incluída, 110 11.· 3 do art. 6.·, a referência à al, d) do art. 5,°; mas não o foi .. , Deste modo, se, p. ex., um casal guineense promove a mutilação genital da sua filha (não tendo nem os pais nem a filha nacionalidade portuguesa), na Guiné, (antes de vir para Portugal ou deslocando-se à Guiné com o objectivo da mutilação), não pode ser julgado em Portugal, se naquele país tal prática não for considerada crime ou, sendo-o, for considerada justificada com base no costume de certas etnias, Conclusão: parece-me que a motivação e um dos principais objectivos da nova al, d) acabaram por sair frustrados. Só não saldam frustrados, se tivesse sido incluída, no n." 3 do art. 6.", a al, d) do art. 5."; pois que O n," 3 do art, 6." não só afasta a aplicação da lei penal estrangeira mais favorável, como também exclui a exigência geral da dupla íncriminação. § 405-D. Tal como está, a ál, d) parece-me ter sido quase inútil: pois, bastava eliminar, na al.j), a exigência ciopedido de extradição - exigência que, como veremos, deveria ser, efectivamente, eliminada - para que as situações a que se aplica a a1. d) fossem abrangidas pela al. j),
da nacionalidade
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§ 407, São três os pressupostos da aplicação deste princípio: que o infractor se encontre em Portugal; que o facto seja também considerado crime pela lei do país onde foi praticado; e que O crime admita extradição mas esta não possa ser concedida, Relativamente à exigência de que o.português infractor se encontre em Portugal, já o dissemos (§ 402) que é razoável. Quanto ao pressuposto da punibilidade do facto também pela lei do Estado onde foi praticado, também é perfeitamente compreensível, quer por razões político-criminais relacionadas com as finalidades preventivas da pena (que se fazem sentir sobretudo no lugar onde o crime é praticado), quer porque tal exigência é uma decorrência lógica de a lei penal portuguesa reconhecer o princípio da territorialidade como princípio fundamental nesta matéria, Mas, relativamente a este pressuposto, o CP acautela a hipótese de haver um (porventura pouco provável, mas possível) lugar onde tenha sido cometido o crime, mas onde não se exerça o poder punitivo. Numa tal hipótese, a lei penal portuguesa é também aplicável.
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§ 408. O terceirfi..pressuposto é que se trate de «crime que admita extradição e esta ntft':possa ser concedida ou seja decidida a não entrega [... J», '}~: Esclareçamos que;'i\té à Revisão Constitucional de 1997, a CRP, IlO então n." 1 do art. 33f;proibia, em absoluto, a extradição de cidadãos portugueses. Porém, ;9ill esta Revisão, embora a. regra continue a ser a da proibição da extradição de cidadãos nacionais, passou a admitir-se, em casos restritos, a extradição de portugueses, desde que se verifiquem os pressupostos estabelecidos na CRP, arfo 33. -3, Em relação a 0
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Parte I -
Questões Fundamentais
esta condição, também (cf. § 398) se poderá levantar a seguinte questão: é necessário que haja um pedido de extradição e a correspondente recusa, ou não é necessário que haja tal pedido? § 409. Em favor da posição que não exige um pedido de extradição, está o facto de o legislador, ao referir-se ao pressuposto da punibilidade segundo a lei do lugar onde o facto foi praticado, dizer que a lei penal portuguesa se aplica, mesmo que, no lugar do crime, não funcione a justiça penal. Ora, se não funciona a justiça penal; como poderá pensar-se num pedido de extradição?' Acresce um outro argumento, que é o seguinte: confrontando este n." III da al. e) com a al.j), vemos que, enquanto na'primeira disposição se lê: «crime que admite extradição e esta não possa ser concedida», já na aI. f) lê-se; «cuja extradição haja sido requerida [... ) e esta não possa ser concedida». Logo, parece que, diferentemente da situação prevista na aI. j), no caso do princípio da nacionalidade activa, não se exige que tenha sido pedida a extradição para que 0- infractor possa ser julgado em Portugal. Digamos que este argumento era decisivo, se o legislador não ziguezagueasse na utilização de expressões diferentes, quando, se calhar, até está a querer dizer a mesma coisa. Na verdade, vejamos a causa da perplexidade ou dúvidas do intérprete e do julgador: na al. c) escreveu: «não possa ser extraditado ou entregue»; na al, -e) disse: «admita extradição e esta não possa ser concedida ou seja decidida a não entrega»; e na aLj) remata: «cuja extradição haja sido requerida [... ] e esta não possa ser concedida ou seja decidida a não entrega». Mas há, ainda, um terceiro e forte argumento em favor da tese da não exigência de um pedido de extradição. Vejamo-lo. Esta al. e) contém dois princípios e toma a sua aplicação dependente dos mesmos pressupostos. São eles o princípio da nacionalidade activa, que estarnos a analisar, e o princípio da nacionalidade passiva, que analisaremos em breve. ' Ora, considerando o princípio da nacionalidade passiva (crime cometido, nurn Estado estrangeiro, por um cidadão estrangeiro contra um cidadão português), não tem sentido fazer depender o julgamento, em Portugal, do cidadão estrangeiro de um pedido de extradição formulado pelo Estado onde um seu nacional (ou um nacional de um qualquer outro Estado, que não o português) cometeu um crime contra um por-
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Sendo, como o diremos mais à frente, a razão de ser do principio da nacionalidade passiva a protecção dos interesses dos cidadãos portugueses, seria inteiramente ilógico que a efectivação desta protecção penal ficasse dependente da vontade do Estado estrangeiro. Do exposto resulta a conclusão, lógica e teleologicamente cogente, de que a aplicação da lei penal portuguesa (ou da lei penal estrangeira, se mais favorável- art. 6.°-2) não depende da formulação de um pedido de extradição. Um exemplo: um sul-africano mata (ou viola, etc.), na África do Sul (ou, p. ex., em Moçambique), um português; passados vários meses ou anos, sem que tenha sido julgado no seu pais, é encontrado e detido em Portugal; a África do Sul não formula qualquer pedido de extradição. Pergunta-se: uma vez que não 'é pedida a extradição, ficam os tribunais portugueses impedidos de julgar o criminoso? - É evidente que não ficam impedidos; é mesmo seu dever julgá-lo. Conclui-se, pois, que também o princípio da nacionalidade activa não pressupõe que tenha sido formulado um pedido de extradição. Ainda, e por hiperabundância, se pode invocar um quarto argumento, sob a forma de pergunta: abrangendo o principio da nacionalidade activa também a hipótese dos crimes cometidos no estrangeiro (excluídos os referidos nas als, a) e b) do n." 1 do art. 5.° em análise - cf. § 394) por portugueses contra portugueses, que sentido teria o ter de esperar por um pedido de extradição (que até, na generalidade, se não sempre, seria recusado) para se poder julgar em Portugal o infractor português, que cá se encontra? - A resposta é, obviamente, não tinha qualquer sentido. tuguês
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§ 410. Diante desta panóplia de argumentos, o único argumento em favor da exigência do pedido de extradição toma-se inofensivo. E este inócuo argumento segue este raciocínio: uma vez que a al, j) tem como pressuposto da aplicabilidade da lei penal portuguesa a um estrangeiro que, no estrangeiro, cometeu um crime contra outro estrangeiro, a existência de um pedido de extradição, então também, em relação a um português que, no estrangeiro, comete um crime contra um estrangeiro, também deveria exigir-se um pedido de extradição. Diante da força dos argumentos em favor da não exigência do pedido da extradição, este argumento não é suficiente para os abalar.
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Parte ( - Questões Fundamentais
§ 411. A conclusão final é a de que o pedido de extradição, quer estando em causa o princípio da nacionalidade activa ou 9 da nacionalidade passiva, não é pressuposto da aplicabilidade da lei-penal portuguesa (se mais favorável que a do Estado do locus delicti - art. 6.°-2). § 412. E sendo esta a única conclusão, lógica e político-criminalmente, razoável, não se vê o porquê e o para quê deste n." III da al. e): a lei penal portuguesa é aplicável, quando, além dos pressupostos dos n.OS I e ll, os factos «Constituírem crime que admita extradição e esta não possa ser concedida ou seja decidida a não entrega». Quero dizer que este (aparente) pressuposto é inútil e, sendo-o, gera dúvidas cuja resolução faz o intérprete e aplicador perder tempo (embora, ao ter de se desconstruir uma inutilidade legislativa se ganhe sempre algo com o esforço argumentativo ... ), E é inútil porque o n." I do art. 5." não diz que a lei se aplica, mas sim que é aplicável, isto é, que pode ser aplicada, se se verificarem os pressupostos que o próprio art. 5." refere, para além dos que, obviamente dizem respeito à extradição. Ora, quanto a esta, rege a CRP,_ art, 33."-3, 4 e 5, e a lei ordinária sobre a extradição (Lei n." 144/99). Portanto, parece-me que o art. 5," do CP só devia referir a extradição, quando entendesse que o pedido de extradição e consequente recusa devia ser considerado como um pressuposto (que o não devia ser, como já o referimos) da aplicabilidade da Lei penal portuguesa, como o faz na al. f).
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§ 413. Em resumo: para a lei portuguesa poder ser aplicada a crimes cometidos no estrangeiro, é necessário que se verifiquem os pressupostos especiais estabelecidos no art, 5," e que -o infractor em causa não seja extraditado. Mas os pressupostos da extradição estão fixados na legislação, constitucional e ordinária, sobre a extradição e mandado de detenção europeu, Se há pedido e estes pressupostos se verificam, . é extraditado ou entregue e, logicarnente, não será julgado em Portugal. Se não há pedido ou, havendo-o, os respectivos pressupostos se não verificam, será julgado em Portugal, se os pressupostos específicos da aplicação da lei penal portuguesa a crimes cometidos no estrangeiro se verificam, Portanto, a alternativa que o legislador devia utilizar seria: mesmo que não haja pedido de extradição ou, havendo, seja recusado, no caso
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A Lei Penal: criação e aplicação
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é, ~~~{ que ~E': pedido de extradição ou mandado de detenção europeudesdee tenha sido
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da lei penal portuguesa dependente da existência de um pedido de extradição ou de detenção que foi recusado. -
2.6. Princípio da nacionalidade passiva (art, 5.·-1-e)-2." parte) § 414. O sexto princípio complementar é o princípio da nacionalidade passiva. Está consagrado na 2." parte da al. e) do ri." 1 deste art, 5.°: «crimes cometidos por estrangeiros contra portugueses». Este principio foi introduzido, pela primeira vez, no nosso direito, com o CP de 1982. A sua finalidade foi, e é, proteger os interesses dos portugueses relativamente a crimes cometidos, no estrangeiro, por estrangeiros contra portugueses. A consagração, em 1982, deste princípio terá sido motivada pela massiva emigração de portugueses, nomeadamente para França e Alemanha. Como a tutela dos bens jurídicos dos cidadãos portugueses, no estrangeiro, não era totalmente conseguida pelo princípio da nacionalidade activa (até então, compreensivelmente chamado, pura e simplesmente, princípio da nacionalidade), na medida em que este pressupõe a nacionalidade portuguesa do infractor, surgiu, então, este princípio da nacionalidade passiva.
§ 415. Do exposto resulta que o critério desde princípio é, simultaneamente, a nacionalidade estrangeira do infractor e a nacionalidade portuguesa da vítima, Além destes dois pressupostos-critério, a aplicabilidade da lei penal portuguesa, com base neste princípio, depende dos mesmos pressupostos do princípio da nacionalidade activa (cf. § 407 S5.): que o infractor estrangeiro se encontre em Portugal; que o facto seja também punível pela lei do Estado onde foi praticado; e que o infractor não seja extraditado, seja porque nem sequei' houve pedido da extradição, ou porque, embora tenha sido formulado tal pedido, este tenha sido indeferido,
Parte I - Questões Fundamentais
232
2.7. Princípio da aplicação supletiva da lei penal portuguesaa crimes cometidos por estrangeiros contra estrangeiros (art. 5.0-1-.m § 416. Este princípio foi introduzido pela Lei ri:" 65/98, de 2 Setembro. Com este princípio, o legislador português procura evitar a impunidade em situações não abrangidas por nenhum dos anteriores princípios complementares, impunidade que seria profundamente criticável, sob o aspecto político-criminal, e que poderia afectar o saudável relacionamento entre Portugal e os outros Estados. . Exemplos de crimes graves praticados, no estrangeiro, por estrangeiros contra estrangeiros, e que poderiam ficar impunes: homicídio (art, 131.°), sequestro (art. 158.°). Bastava que o infractor fugisse para Portugal e que, apesar de ter sido pedida a extradição, esta não pudesse ser judicialmente autorizada, por se verificar algum dos obstáculos (constitucionais ou legais) à extradição (cf § 428), Ora, se pode justificar-se que, mesmo se tratando de um crime grave, a extradição seja recusada, já, porém, não seria razoável, riem político-criminalmente nem internacionalmente, que o Estado português não só negasse a extradição como ainda se recusasse a julgar em Portugal o.referido crime, Assim, com base neste princípio, já pode ser julgado em Portugal China ou nos um, p. ex., chinês ou americano que tenha cometido, Estados Unidos, um homicídio qualificado na pessoa de um chinês, americano ou de um qualquer estrangeiro (em relação a Portugal).
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§ 417. Os pressupostos deste princípio são: que o infractor seja encontrado em Portugal e que a extradição ou a entrega tenha sido requerida e recusada. O primeiro pressuposto é lógico. Já, quanto ao segundo, não me parece razoável que se exija o pedido de extradição. Pois, se em relação aos crimes referidos nas als, c) e d) (e também tendo em conta a ai. e) que abrange qualquer crime) não se exige que tenha havido O pedido de extradição ou de entrega, não há razão para que, p. ex., estando em causa um crime de homicídio, se exija este pedido. 2.8. Crimes cometidos
por pessoas colectivas' (art. 5.0-1-g)
§ 417-A. Pela revisão penal de 2007 foi introduzida, no art. 5.°, a seguinte disposição: «[crimes cometidos] For pessoa colectiva ou contra pessoa colectiva que tenha sede em território português».
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Titulo II - A Lei Penal: criação e aplicação
2.9. Princípio da aplicação convencional da lei penal portuguesa (art, 5."-2) § 418. Sobre este princípio há que dizer apenas o seguinte: é evidente que o Estado Português se pode vincular, por tratado ou convenção internacional, a aplicar a lei penal portuguesa a factos cometidos no estrangeiro, que não estejam abrangidos pelos princípios complementares anteriores.
§ 419. Do mesmo modo que, como refere o corpo do art. 4.", o Estado Português pode, por tratado ou convenção internacional, vincular-se a aceitar a aplicação da lei penal estrangeira a factos praticados em Portugal (desde que a Constituição o permita). 3. Restrições à aplicação da lei penal portuguesa cometidos no estrangeiro (art, 6.°)
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a crimes
§ 420. O n." I do art. 6.° acolhe o princípio constitucional (CRP, art. 29.°-5) ne bis in idem, segundo o qual ninguém pode ser duplamente punido pelo mesmo crime (cf § 352); «A aplicação da lei portuguesa a factos praticados fora do território nacional s6 tem lugar quando o agente não tiver sido julgado no país da prática do facto ou se houver subtraí do ao cumprimento total ou parcial da condenação». Daqui resulta a exclusão de novo julgamento em Portugal 110 caso de o agente (português ou estrangeiro) ter sido absolvido pelo tribunal do Estado onde foi praticado o facto e no caso de ter sido condenado e ter cumprido a respectiva pena. Deve observar-se que não pode haver novo julgamento em Portugal, mesmo na hipótese de o agente ter sido julgado e ter ficado absolvido ou condenado (tendo cumprido toda a pena) por um tribunal de um país que também tenha, segundo a lei portuguesa, competência jurisdicional subsidiária. Exemplo: um alemão que, na Itália, cometa um crime contra um português, tendo sido detido e julgado na Alemanha. § 421. No caso de o agente não. ter sido julgado 110 país do locus delicti (ou noutro pais que tenha, segundo a lei portuguesa,
234
Parte I - Questões Fwtdamenr.ats
competência jurisdicional subsidiária), então poderá ser julgado em Portugal. E, de acordo com a primeira parte do n." 2 do art. 6.0, serlhe-á aplicada a lei penal portuguesa, a não ser que a lei do locus delicti sej a concretamente mais favorável, caso em que será esta aplicada - princípio da aplicação da lei penal concretamente mais favorável. § 422. Só na hipótese de estarem em causa os crimes referidos nas als: a) e b) do n." 1 do art. S." - crimes estes abrangidos pelo princípio da protecção de interesses nacionais e pelo princípio da nacionalidade activa e passiva - é que será sempre aplicada a lei penal portuguesa, por força do n." 3 do art. 6.° § 423. A 2: parte do n." 2 estabelece que, na hipótese de o tribunal português dever aplicar a lei penal estrangeira, por ser mais favorável, a pena prevista pela lei estrangeira deve ser convertida naquela que lhe corresponder no sistema português; e' que, no caso de não haver correspondência entre as duas penas (p. ex., multa em quantia fixa e dias-multa), será aplicada a pena prevista na lei portuguesa, Nesta segunda hipótese, embora se aplique a pena da lei portuguesa, o tribunal não deixará de a reduzir em termos proporcionais á mesma gravidade material da pena estabelecida na lei penal estrangerra,
§ 424. Finalmente, consideremos a hipótese em que o agente, que cometeu um crime no estrangeiro, foi julgado e condenado por um tribunal estrangeiro, mas subtraiu-se ao cumprimento total ou parcial da condenação, hipótese prevista na 2.a parte do n." 1 do art, 6," Nesta hipótese, são possíveis três situações. § 425. Urna situação é aquela em que o Estado, cujo tribunal proferiu a condenação, nem pede a extradição para efeito de execução da pena no seu território, nem pede ao Estado Português a execução, em Portugal, da pena aplicada pelo tribunal estrangeiro. Neste caso, funcionará a 2: parte do n." I do art, 6.° O que significa que, verificando-se os pressupostos de algum dos princípios com-
Título 11 - A Lei Penal .. criação e aplicação
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plementares ou subsidiários estabelecidos no art S.", será um tribunal português a julgar, novamente, o infractor. De acordo com o CP, art. 82.°, e a Lei n." 144/99, art. 13.°, é descontado na pena, que vier a ser aplicada, o tempo de privação da liberdade (prisão-pena ou prisão preventiva) que o agente já tiver sofrido no estrangeiro, ou, no caso de pena de multa, a importância que haja pago - é chamado princípio da imputação ou desconto, fundamentado no princípio ne bis in idem.
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§ 426. Outra situação é aquela em que o Estado, cujo tribunal proferiu a sentença condenatória, pede a extradição para efeitos do cumprimento, total ou parcial, da pena no seu território. Neste caso, se se verificarem os pressupostos da concessão da extradição, para efeitos da execução da pena já aplicada, o infractor será extraditado, cumprindo a pena, ou a parte desta que falta cumprir, no Estado requerente, . Na hipótese, de recusa da extradição, então, de acordo com a Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, Lei n." 144/99, de 31 de Agosto, art. 32.°-5, «é instaurado [em Portugal] procedimento penal pelos factos que fundamentam o pedido, sendo solicitados ao Estado requerente os elementos necessários». Todavia, por força da Lei n." 144/99, art. 31."-2 e 4, nem poderá haver extradição nem novo julgamento em Portugal, quando ao crime, que fundamenta o pedido de extradição, for aplicável pena de prisão de limite máximo inferior a um ano, e quando a pena que falta cumprir for inferior a 4 meses. § 427. Refira-se que, embora a partir da 4." Revisão Constitucional, em 1997, seja possível a extradição de cidadãos portugueses (com base em convenção internacional, nos casos de terrorismo e de criminalidade internacional organizada - eRP, art, 33.°-3), tal, segundo o art. 32.°·2 e 3 da Lei n." 144/99, só é permitida para fins de procedimento penal, Logo, na situação, que estamos a tratar, não é possível a extradição do condenado por tribunal estrangeiro, se for cidadão português. § 428. Estando em causa um cidadão estrangeiro ou apátrida, a extradição pode ser concedida, desde que se verifiquem os pressupostos referidos nos arts. 31."·1 e 33." da Lei n." 144/99, e não se verifiquem
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Parte I - Questões Fundamentais
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os impedimentos à extradição descritos nos arts. 6.° a 8.0·e 32.o-1-a) da referida Lei n." 144/99 (p. ex.: pedido de extradição com motivações políticas, étnicas, etc.; falta de garantias de um processo justo; crime punível com pena de morte ou prisão perpétua, ou, inversamente, crime (leve) punível com pena cujo limite máximo seja inferior a 1 ano de prisão; tempo de prisão por cumprir inferior a 4 meses).
§ 429. Há duas categorias
de extradiçãorextradição
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activa e extra-
dição passiva. A extradição activa consiste no pedido formulado por um Estado a outro Estado, para que este lhe entregue determinado cidadão, a fim de ser julgado por um seu tribunal ou de cumprir a pena em que já tenha sido condenado no seu Estado. A esta extradição activa, com o respectivo processo administrativo, se refere o art. 69.0 da Lei n." 144/99. A extradição passiva corre no Estado a que é feito o pedido de entrega de um determinado cidadão. Esta extradição passiva fi os correspondentes processos (administrativo e judicial) estão regulamentados na Lei 11.0 144/99, art. 31.0 ss. É nesta extradição passiva (dita passiva apenas pelo facto de o Estado,onde se encontra o cidadão, ser o Estado requerido) que se coloca a necessidade de acautelar os direitos, 'as liberdades e as garantias individuais do cidadão reclamado por um outro Estado. Desta necessidade de acautelar os direitos e as liberdades individuais do cidadão resultou a garantia jurisdicional da CRP, art. 33.°-6, segundo a qual «A extradição s6 pode ser determinada por autoridade judicial».
§ 430. Na extradição passiva, há duas fases: a primeira é administrativa, a segunda é judicial (Lei n." 144/99, art, 46.").. Nos termos do n." 2 do referido ali. 46.0, a fase administrativa «é destinada à apreciação do pedido de extradição pelo Ministro da Justiça para o efeito de decidir, tendo, nomeadamente, em conta as garantias a que haja lugar, se ele pode ter seguimento ou se deve ser liminarmente indeferido por razões de ordem política ou de oportunidade ou conveniência». Se a decisão do Ministro da Justiça for de indeferirnento do pedido de extradição, o processo termina aqui, sendo arquivado (Lei n." 144/99, art. 48:-3). , Se a decisão do Ministro da Justiça for de aceitação (deferimento administrativo), o processo de extradição passa à fase judicial,
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Titulo fl .- A Lei Penal: criação e aplicação
237
Como é referido pela Lei n." 144/99, ali. 24.°-1, é óbvio que «a decisão do Ministro da Justiça que declara admissivel o pedido não vincula a autoridade judiciária». A competência para o processo judicial de extradição é do tribunal da Relação «em cujo distrito judicial residir ou se encontrar a pessoa reclamada ao tempo do pedido». Da decisão final é possível recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça (Lei n.? 144/99, art. 49.0).
§ 431.- Retomando as situações possíveis (referidas no § 424), no caso do agente que cometeu um crime no estrangeiro e, aí, foi condenado, tendo, porém, se subtraído ao cumprimento total ou parcial da pena, vejamos a situação em que o Estado, cujo tribunal proferiu a condenação, pede a Portugal a execução, cá, da sentença penal. Neste caso, a sentença penal estrangeira pode ser executada em Portugal desde que se verifiquem as condições estabelecidas no art. 96.0 da Lei n." 144/99. Destaco, de entre as várias condições, as previstas nas ais. i) e j) do n." I e no n," 6. São as seguintes: que a duração da pena ou da medida de segurança, impostas pela sentença estrangeira, não seja inferior a um ano ou, tratando-se de pena pecuniária, o seu montante não seja inferior a quantia equivalente a 30 unidades de conta processual; que, tratando-se de pena ou medida de segurança privativa da liberdade, o condenado dê o seu consentimento; sendo português o condenado (pelo tribunal estrangeiro), há lugar à execução da sentença, independentemente do seu consentimento, se, previamente, tiver sido concedida a extradição (para efeitos de procedimento penal, uma vez que, como já referimos, não pode haver extradição de portugueses para efeitos de execução de sentença penal estrangeira). § 432. Como é natural «a força executiva da sentença estrangeira depende de prévia revisão e confirmação, segundo O disposto no Código de Processo Penal e C> previsto nas alíneas a) e c) do 11.° 2 do artigo 6: do presente diploma» (Lei 11.° 144/99, art. 100.0-1). Segundo o CPP, art. 235.°, a competência para a revisão e confirmação 'cabe ao Tribunal da Relação do último domicílio ou, na falta deste, do lugar onde for encontrado o infractor. Caso não seja possível determinar os referidos domicílio ou lugar, a competência é do Tribunal da Relação de Lisboa,
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TÍTULO I
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INTRODUÇÃO
E PROBLEMAS
FUNDAMENTAIS
8.o CAPíTULO OBJECTO, MÉTODO E FUNÇÕES DA TEORIA GERAL DO CRIME
I.
Objecto
§ 433. Uma teoria geral do crime tem por objectivo a determinação e definição das características,elementos ou categorias essenciais e comuns a todo e qualquer crime (homicídio,roubo, poluição, fraude fiscal, ete.), bem como a caracterização da relação recíproca entre estas categorias.
rr, Método § 434. O ponto de partida para a construção de uma teoria geral do crime tem, lógica e metodolcgicamente, que ser o direito penal positivo, i. é, a multiplicidade dos singulares crimes previstos e descritos nas normas jurídico-penais vigentes. Uma teoria geral do crime, que se queira útil, teórica e praticamente, não pode "esquecer" a realidade normativa jurídico-penal existente; tem, pelo contrário, que partir dela, e ter presente, na elaboração . da correspondente teoria geral, os princípios político-criminais que estão subjacentes e que inspiram o direito penal positivo.
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§ 435. A causa das "lacunas" das teorias gerais do crime, elaboradas pelas escolas positivista-naturalista, normativista e finalista, terá sido 16·Dir. Penal
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242
Porre ff - Teoria Geral do Crime
Tiudo I - Introdução
o vício metodológíco de terem optado por partir de uma determinada mundividência ideológica, científico-natural ou filosófica, e, a partir dos respectivos pré-juízos ou pressupostos sobre a realidade humana, terem tentado moldar esta realidade humana e a realidade normativo-social e jurídico-penal. § 436. Tendo como ponto de partida O direito penal positivo, O método a utilizar na construção de uma teoria geral do crime deve ser o método categorlal-classíflcatõrío e sequencial: a partir de um conceito básico (o conceito de acção ou comportamento humano) proceder à .determinação das categorias que este substrato fundamental deve ter, para que possa ser qualificado como crime e, consequentemente, o seu autor possa ser punido com uma pena. Este procedimento categorial-classificatório deve respeitar uma ordenação lógica e teleologicarnente orientada pela junção da teoria geral do crime, que é a de servir de instrumento à decisão penal justa do caso concreto. Assim, deve começar-se pela categoria com maior extensão e menor compreensão até se chegar à última categoria que, necessariamente, terá maior compreensão e menor extensão. Pois que, a 'categoria ou característica posterior pressupõe, necessariamente, a categoria lógico-conceitual e material anterior, acrescentando a esta uma nova especificação; daqui resulta que as sucessivas especificações jurídico-penais da conduta humana, ao mesmo tempo que aurnentam a sua complexidade conceitual ou compreensão, necessariamente que reduzem a sua extensão, i. é, o âmbito ou número das condutas abrangidas pela nova exigência especifica. Assim, p. ex., a categoria da ilicitude da conduta pressupõe, necessariamente, a categoria da tipicidade: pois, uma acção que não seja típica jamais poderá ser penalmente ilícita; e a categoria da culpa pressupõe as categorias ou caracteristicas da tipicidade e da ilicitude da conduta (acção ou omissão), pois que, se a conduta, apesar de típica, não é ilícita por existir uma causa de justificação, excluída fica a possibilidade metodológica da categoria da culpa, dado não ter sentido falar-se de culpabilidade do agente relativamente a um facto justificado e, portanto, não ilícito. Deste modo, é adequada a utilização da metáfora da pirâmide como símbolo geométrico da elaboração construtivo-dogmática da infracção criminal.
e problemas fundamentais
243
lU. Funções
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§ 437. As funções ou vantagens da teoria geral do crime são várias. No plano prático da aplicação do direito penal ao caso concreto, é factor de certeza e segurança jurídica, evitando a mera intuição, a improvisação e a eventual arbitrariedade nas decisões judiciais; é 'também condição da igualdade )10 tratamento de casos criminais "idênticos"; e contribui, ainda, para a economia na análise, de casos práticos. No plano didáctico, tem a vantagem de propiciar. uma visão de conjunto das características essenciais da infracção criminal, logo no início da disciplina sobre a Parte Geral do Código Penal. É evidente, corno é óbvio e comum a todas as Introduções, a impossibilidade de, logo no início do estudo do direito penal, os alunos conseguirem uma plena compreensão do sistema da infracção criminal.
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TÚulo [ - Introdução
BREVE REFEMNCIA À HISTÓRIA DA EVOLUÇÃO DA TEORIA GERAL DO C~E ou:"clássica"
1. Exposição § 438. A primeira grande elaboração dogmático-sistemática do crime surgiu nos finais do séc. XIXlprincípios do séc. XX Os seus principais construtores foram Liszt e Beling. . Como primeira, clara e bem estruturada teorização da infracção criminal, compreende-se a razão por que passou a ser designada por teoria clássica do crime. Esta teoria foi o ponto de referência e o ponto de partida de todo o processo histórico de desenvolvimento e aprofundamento da dogmática ou doutrina da infracção penal.
2. Crítica
§ 439. Por outro lado, esta teoria surgiu num contexto históricocultural dominado pelo positivismo .e pelo naturalismo. Nesta segunda metade do séc. XIX, a crença, quase absolutizada, nas ciências naturais levou à' transposição, para as ciências e, portanto, p.ara o direito, dos critérios, conceitos e métodos científico-naturais. E, ~omo já foi referido, quando procurámos caracterizar a chamada "Escola Positiva" (cf § 47 ss.), a este positivísmo naturalista juntou-se o positivismo juridico. Assim, natural foi que os primeiros grandes teorizadores da infracção criminal tivessem sido influenciados por esta reinante rnundividência; como natural e adequada foi, e é; a designação 'de positivista-naturalista aplicada a esta primeira teoria geral do crime. § 440. Segundo esta teoria, o fenômeno criminoso; i. é, o crime era constituído por quatro categorias: a acção, a tipicidade, a ilicitude e a culpa.
245
A acção era o elemento-base ou denominador comum a todo e qualquer crime (homicídio, furto, injúria, etc.). Esta acção era definida como movimento corporal, dependente da vontade e causador de uma modificação do mundo exterior, perceptível pelos sentidos. A típlcidade da acção reduzia-se à descrição exclusivamente externo-objectiva da realização da acção. Donde que a tipicidade não envolvia qualquer juizo de valor (negativo) sobre a acção. Acção típica era aquela cuja conformação objectivo-naturallstica coincidia com a descrição formal-objectiva contida no tipo legal. A ilicitude reduzia-se a um mero juizo formal de contrariedade à ordem jurídica positiva, pois que se resumia à inexistência de uma qualquer causa de justificação, ou seja, de uma norma jurídica que autorizasse a:realização da acção típica (junção da perspectiva juspositivista à perspectiva naturalista). A culpa consistia na mera relação psicológica existente entre o agente e o seu facto objectivo (concepção psicológica da. culpa).
9.° CAPíTULO
1 A teoria geral do crime positiva-naturalista
e problemas fundamentais
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§ 441. Apesar da simplicidade e clareza linear desta primeira construção ou teoria geral do crime, ela é, todavia, inaceitável, como inaceitáveis são os 'pressupostos positivístico-naturalistas e jurídicos de que partiu. 'Quanto ao seu conceito de acção, ao reduzi-lo ao movimento corpóreo e à modificação do mundo exterior, necessariamente deixava de fora a omissão, não cumprindo assim a sua função de denominar comum a toda e qualquer modalidade de crime. Este conceito não servia, portanto, para os crimes de omissão. Relativamente à tipicidade, também não podia aceitar-se a sua exclusiva natureza formal-objectiva e sua completa neutralidade axiolágica. E ao excluir quaisquer elementos subjectivos do âmbito do tipo legal, levaria à parificação típica da acção do cirurgião e da acção do faquista. Reduzir a ilícltude à mera inexistência de uma norma de autorização (causa de justificação) da modificação do mundo exterior equivalia à afirmação' de um conceito objectivista do ilícito (relevando apenas o desvalor de resultado) e à definição positivista-legalista da ilioitude como mera antinormatividade. ou antijuridicidade formal.
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246
Parte /I - Teoria Geral do Crime
Também a redução da culpa à conexão psicológica entre o agente e o seu facto não podia vingar, pois que uma tal concepção faria com que os próprios inimputàveis pudessem ser considerados culpados, e deixaria, por outro lado, fora do âmbito da culpa a negligência inconsciente, pois nesta espécie de negligência não há, pelo menos no momento da prática do facto, qualquer conexão psicológica.
II.
A teoria geral do crime normativísta
ou "neo clássíca"
1. Exposição § 442. A reacção normativista contra a concepção naturalista do crime e das suas componentes fundamentou-se na filosofia dos valores neokantiana, desenvolvida, nas primeiras décadas do séc. XX, nomeadamente pela chamada escola do sudoeste alemão ou escola de Baden (Rickert, Lask, etc.), Defendendo esta filosofia a autonomia dos valores face à realidade empírica, afirmava que esta só adquiria sentido quando referida e aferida pelos valores. Considerando o direito como pertencente ao mundo dos valores ou do dever-ser, entendia que as categorias jurídicas não podiam deixar de ser nonnativas ou valorativas. Esta concepção norrnativista ou "neoclássica" (em que se destacou Mezger) não pretendeu, nem operou uma alteração radical da concepção positivista-naturalistà; poder-se-à dizer que apenas procurou normativizar, isto é, atribuir um sentido ou conteúdo valorativo às categorias do crime consagradas pela escola positivista-naturalista, § 443. Assim, relativamente ao conceito de acção, os norrnativis- . tas mantiveram a concepção causalista da escola positivista-naturalista, continuando a considerá-la como comportamento humano modificador da realidade exterior, embora tal modificação passasse a ser assumida como negadora de valores. Só que, constatando a impossibilidade de reconduzir a este denominador (causalista) a omissão, alguns autores (p. ex., Radbruch) propuseram a substituição do conceito de acção pelo de realização do tipo legal.
Titulo I - Introdução e problemas fundamentais
247
Os conceitos de tipicídade e de ílicitude deixaram de ser vistos como meramente objectivos, iniciando-se o processo de subjectivização e normativização do tipo legal e do ilícito: ao lado dos elementos objectivos, começa a afirmar-se a existência de elementos subjectivos (p. ex., a intenção de apropriação no tipo de furto), e a ilicitude passa de mera antijuricidade formal ou antinormatividade a antijuridicidade ou ilicitude material, isto é, a lesão dos bens jurídicos protegidos pelos tipos legais. Por sua vez, a concepção psicológica da culpa é substituída pela con. cepção normativa da culpa, consistindo esta num juizo de censura ou reprovação do agente por ter optado pelo ilícito quando podia e devia ter optado pelo lícito. Esta culpa normativa pressupunha a irnputabilidade do agente e a não verificação de uma situação de "inexigibilidade" (categoria esta donde viriam a irradiar as causas de exclusão da culpa). 2.
Crítica
§ 444. Apesar dos avanços .da teoria normativista na concepção do tipo legal, ao neste incluir também elementos subjectivos, e na concepção da ilicitude como danosídade social (lesão dos bens jurídicos protegidos pelo tipo), o certo é que o ilícito permaneceu, essencial ou principalmente, definido pelo desvalor de resultado (concepção objectivista da ilicitude) e· a culpa, embora passasse a ser concebida em termos normativos, misturava em si componentes psicológicas, como o dolo natural ou psicológico e a violação do dever objectivo de cuidado, com componentes normativas, como a imputabilidade e a "exigibilidade".
lH. A teoria geral do crime finalista 1. Exposição § 445. Se a concepção normatívista rejeitou várias das proposições da escola positivista-naturalista, já a teoria finalista, criada por We1zel, veio, no pós-Il Grande Guerra, enfrentar e negar, radicalmente, todo o edifício da escola naturalista.
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o objectivo de Welzel foi o de encontrar umfondamento ontolàgico e, portanto, pré-juridico e mesmo pré-social, que vinculasse o direito e o legislador lias suas próprias decisões. § 446. Segundo Welzel, o comportamento humano' é, por essência, a realização de uma finalidade: toda a acção humana é uma supra determinação final de um processo causal. Numa palavra, a característica ontológica da acção humana é a sua intrínseca finalidade. A primeira conseqüência deste conceito (pretensamente) ontológico da acção foi a de passar-se a considerar o dolo como elemento essencial do tipo legal, uma vez que o dolo é a finalidade referida aos elementos objectivos do tipo. Até .então, quer a escolanaturalista quer a normativista consideravam o dolo do tipo ou dolo natural como um elemento da culpa. Relativamente à ilícítude, esta passou, logicamente, a ser definida apenas pelo desvalor de acção. Também em matéria de autoria, esta concepção finalista teve influência, pois que, segundo ela, é autor quem tem o domínio final do facto, e não apenas o que execute materialmente o facto, 2. Apreciação § 447. Se parece indiscutível que a teoria finalista con trib ui u decisivamente para o avanço da teoria do crime, nomeadamente na aquisição do conceito de ilícito pessoal, ao trazer para o âmbito do ilícito a negligência (enquanto violação do dever objectivo de cuidado) e o dolo (enquanto dolo da factualidade típica), também não deixa de ser verdade que tal teoria, na sua ortodoxia, é passível de várias críticas. Entre outros pontos, é de destacar o facto de a teoria finalista não conseguir explicar os crimes negligentes, onde, por definição, não existe a tal característica da finalidade, nem os crimes de omissão, pois que nestes não existe qualquer actividade causal, finalisticamente orientada.
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10.0 CAPÍTULO
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O CONCEITO NORMATIVO-SOCIAL DE ACÇÃO E AS SUCESSIVAS CATEGORIAS JURÍDICO-PENAIS CONSTITUTIV AS DO CRIME
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I.
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O conceito normativo-social
de acção
1. A dupla função do conceito de acção: negativa e positiva § 448. Só pode servir e ser assumido, como conceito base da teoria geral do crime, um conceito de acção que desempenhe, simultaneamente, uma função negativa ou de exclusão e uma função positiva ou de ligação. Em primeiro lugar, o conceito de acção há-de poder funcionar como critério de exclusão dos factos que devam ser considerados, jurídico. -penalmente, irrelevantes. Isto é, que não podem ser objecto de uma valoração jurídico-penal e, portanto, não podem ser tipificadas legalmente. Estão, neste caso, as meras decisões interiores, os actos reflexos, os actos executados em estado de absoluta inconsciência e os actos. realizados sob força irresistíve1. Em segundo lugar, um conceito de acção, que pretenda constituirse como substrato autónomo, genus proximum e denominador comum de todo e qualquer um dos crimes da parte especial do Código Penal e da legislação penal avulsa, tem de ter um sentido que, embora pré-jurídica, seja comum tanto aos tipos de crime dolosos como aos tipos de crime negligentes, tanto aos tipos de crime activos como aos. tipos de crime omissivos. § 449. Como se viu (cf § 438 ss.), nem o conceito causalista de acção (comum à teoria positivista-llaturalista e à teoria normativista),
Parte lf -
250
Teoria Geral do Crime
nem o conceito finalista de acção desempenhavam esta dupla função, nomeadamente a função positiva ou de ligação. Com efeito, o conceito causal deixava, claramente, de fora os crimes de omissão, enquanto o conceito finalista não só não abrangia os crimes de omissão (pois nestes não há um processo causal) como também não podia constituir o substrato dos crimes negligentes, pois que nestes falta, por definição, a finalidade. 2, O conceito normativo-social
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Título I -
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exclusão da reprovação social exclui que jamais esta omissão possa ser,' jurídico-penalmente, considerada como típica. O mesmo se aplica aos casos de acções absolutamente incontroláveís pela vontade, como os puros actos reflexos, os actos praticados em estado de total inconsciência (p. ex., sonambulismo) e os actos sob coacção absoluta ou força irresistivel (vis phisica absoluta). Tanto naquelas "omissões" como nestas "acções", pode dizer-se, utilizando a terminologia da filosofia escolástica, que se trata de "actos de homem" e não de "actos humanos", ou seja, não estamos diante de comportamentos humanos.
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de acção
§ 450. Pensamos que esta dupla função - negativa ou de exclusão e positiva ou de ligação - é realizada pelo conceito normativo-
social de acção ou conduta humana. . A sociedade não considera relevantes, isto é, não valera negativamente os actos que são absolutamente incontroláveis pela vontade humana, tal como não censura os actos praticados pelos animais ou os danos causados por fenômenos naturais. Apenas lamenta os seus eventuais resultados socialmente nocivos e procura remediá-los e prevenir a sua repetição.
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§ 451. Em segundo lugar, as normas jurídicas, nomeadamente as penais, têm uma função de motivação e de determinação das condutas humanas (proibindo umas acções e impondo outras). Ora, esta função de orientação "coactiva" das condutas humanas só tem sentido na medida em que pressupõe uma capacidade mínima de acção. Ou seja: o que é absolutamente incontrolável pela vontade não é objecto da norma jurídica de determinação, não pode ser objecto da norma jurídico-penal. Assim, p. ex., aquele que.não sabe nadar (nem tem a obrigação de saber) não incumpre a norma que manda salvar do afogamento a criança (mesmo que seja filha), que se encontra em risco de morrer afogada. Socialmente, só é reprovada a omissão de salvamento, quando O emitente sabe nadar (ou tinha a obrigação de saber). Portanto, a incapacidade absoluta de acção exclui a reprovação social da omissão. E excluída a reprovação social (i. é, a reprovação segundo os critérios éticos-sociais), excluída fica, a priori, a reprovação jurídica em geral, e jurídico-penal em especial, da omissão, Quer dizer: a
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Introdução e problemas [undamentais
251
§ 452. Um terceiro argumento em favor da relevância e prestabilidade do conceito normativo-social de acção ou conduta humana, como conceito pré-jurídico que constitui o denominador comum próximo ou substrato das qualificações jurídico-penais da tipicidade, ilicitude e culpabilidade (quer se trate de crimes activos ou ornissivos, quer de crimes dolosos ou negligentes), é-nos dado pela figura ou principio da adequação social. Este princípio - seja considerado como causa de exclusão ou, rectius, de negação da tipicidade, ou como critério de interpretação restritiva do alcance formal-objectivo do tipo legal - significa e demonstra que não podem ser consideradas como abrangidas pela norma penal e, portanto, não podem ser qualificadas como típicas as condutas (acções ou omissões) que não tenham relevância social negativa. Ou seja: é pressuposto mínimo da tipificação jurídico-penal (da tipicidade) a inadequação social da conduta (activa ou omissiva), i. é, a sua reprovação social. Donde que o conceito normativo-social desempenha a função negativa ou de exclusão, do âmbito do jurídico-penal, de todas as acções ou omissões, que não sejam socialmente. inadequadas, i. é, que não-sejam ético-socialmente reprovadas.
§ 453, Por 'outro lado, este conceito social de acção em sentido amplo (que é sinónimo de conduta ou comportamento humano e, portanto, compreende também a omissão) é aplicável a qualquer modalidade de crime (de acção ou de omissão, doloso ou negligente), e, portanto, cumpre.a função positiva ou de ligação que se exige a um conceito pré-jurídico de acção, para que possa ser considerado e assumido como conceito básico da construção categoria! da infracção penal ou crime.
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Parte li - Teoria Geral do Crime
252
A inadequação social da conduta é pressuposto e denominador comum da qualificação-tipificação jurídico-penal de toda e qualquer conduta e, portanto, realiza a função positiva ou de ligação tanto nos crimes de acção como nos de omissão, tanto nos crimes dolosos como nos 'negligentes.
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§ 454. Em quarto lugar, o próprio princípio polítíco-críminal da exigência da "dignidade penal" (dimensão axiológica) do bem, interesse
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ou valor, para que este possa ser qualificado como bem jurídico-penal (cf
§ 455.
Assim, em minha opinião, parece haver uma certa contraquando, na sequência de Gallas (La teoria dei delitto en SII momento actual, 1959), se nega a existência de um autónomo conceito de acção.ique possa servir de fundamento a toda a construção do conceito de crime, afirmando-se que, ao invés, «a doutrina da acção deve, na construção do conceito de facto punível, ceder a primazia à doutrina da acção típica ou da realização do tipo de ilícito», e, na sequência dição
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Título I -
Introdução e problemas fundamentais
253
desta inversão teleológica, se atribui à acção apenas grar;no âmbito da teoria do tipo, o meio adequado espécie de actuação da conduta típica» (31).
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Disse que estas afirmações me parecem envolver uma certa contradição. Pois que, se o conceito de acção não tem qualquer autonomia (só a tendo o tipo ou a "acção típica"), então como pode o conceito de acção servir para determinar o alcance normativo do tipo legal? O próprio Fígueiredo Dias, ao reconhecer ao princípio da adequação social o papel de critério interpretativo restritivo do âmbito do tipo legal, está, em minha opinião, a reconhecer, pelo menos implicitamente, que o critério social da acção tem autonomia e consistência prê-jurídíca, prê-típíca, Pois: o que não tem consistência própria, o que não tem autonomia não pode funcionar como critério de interpretação; não pode, por outras palavras, ser critério de valoração (ou seja, de decisão sobre Q que deve, ou não, ser considerado abrangido pelo tipo legal), mas apenas objecto de valoração.
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§ 456. Em quinto lugar, a afirmação de que a primazia cabe ao tipo legal, negando-se, ao mesmo tempo, qualquer autonomia e consistência ao conceito nonnativo-social de acção, parece-me poder gerar o equivoco de se aceitar um conceito positivista-Iegalista de crime. Ora, em minha opinião, o tipo legal nem é completamente autónomo ou desvinculado do conceito social de acção ou comportamento humano, como o prova a figura da (in)adequação social, nem é um posterius ou mera expressão ou rnostração do ilícito. Pois não pode esquecer-se que a decisão criminalizadora de uma conduta e, portanto, o tipo legal pressupõe, não apenas a "dignidade penal" do bemjurídico e da respectiva conduta (que o lesa ou põe em perigo), mas também a "necessidade penal", isto é, a consideração da indispensabilidade do recurso à sanção penal para a tutela do respectivo bem jurídico e para a punição da correspondente conduta que O lese ou ponha em perigo. Donde resulta que a decisão legislativa criadora do tipo legal é co-constitutíva do ilícito penal. Isto é, não basta a ilicítude in se
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Assim, FlGUElREDO DIAS, Direito
PelWI, 1..' ed.,
Colrnbra Editora, pp, 259-260.
254
Titulo I - Introdução e problemas fundamentais
Parte fI - Teoria Geral do Crime
da relevância típica da omissão. Isto é, a tipificação legal da omissão (de uma determinada acção) pressupõe que, no plano e critério normative-sociais, fosse exigivel a prática da respectiva acção. Quer a acção quer a omissão (de urna determinada acção socialmente esperada e imposta) são condutas ou formas do comportamento humano. É, portanto, de discordar da afirmação de que a relevância social da omissão se fundamenta e resulta da imposição jurídica da acção (32). Em minha opinião, éprecisamente o contrário, ou seja: só porque a omissão de determinada acção é socialmente relevante (é valorada negativamente) é que pode também ser jurídico-penalmente relevante e, portanto, típica. Que a omissão de determinada acção, socialmente desejada ou imposta, venha, ou não, a ser jurídico-penalmente imposta e, portanto, tipificada, é algo que depende da importância do bem jurídico em perigo, da relação entre o omitente e o titular do bem em perigo e, obviamente, da decisão do legislador sobre a "necessidade 'penal" e também-da consideração de que uma excessivamente alargada criminalização das omissões de acções (posto que socialmente desejáveis) poderia causar maiores danos do .que aqueles que o direito penal visa prevenir. Diga-se que, em minha opinião, esta última válida consideração não justifica que se afirme que as normas jurídico-penais impositivas de determinadas acções (adequadas a evitar a lesão de bens jurídicos em perigo) desempenham um papel político-criminal "secundário ou subordinado", como, p. ex., o qualifica Figueiredo Dias (33). Se assim fosse, então teria. mos de considerar descabida a equiparação geral, nos crimes de resultado, da omissão (da acção adequada a evitar o resultado) à acção (adequada a produzi-lo), estabelecida no n." 1 do art. 10.0 do Código Penal.
("dignidade penal") de uma conduta, mas é ainda necessária a decisão legislativo-tipificadora da conduta que, implicitamente, significa a inexistência de alternativas à criminalização. Esta decisão legislativo-tipificadora, conquanto não possa ser arbitrária, é, todavia; discricionária, embora vinculada a critérios políticos-criminais, nomeadamente ao principio da intervenção mínima do direito penal. § 457. Pr imeira conclusão: o tipo legal ou "acção típica" não é autónomo, não é independente do conceito social (pré-juridico) de acção, mas é condicionado pelo. critério ético-normativo-social da reprovação da acção ou conduta humana. Segunda conclusão: o tipo legal não é apenas turra mera expressão formal-legal do ilícito penal (ao qual coubesse apenas uma função de garantia do cidadão), mas é também co-consitutivo do ilícito penal. Portanto, o tipo legal (a decisão legal-tipificadora) nem é apenas a ratio cognoscetidi da ilicitude penal (como afirmava a "teoria do tipo indíciador"), nem é a ratio essendi da ilicitude (como o afirmava a "teoria dos elementos negativos do tipo"), mas é co-constitutivo do ilícito penal, Neste sentido, além das considerações já feitas, vai a própria afirmação de que, em teoria ou princípio, não há injunções constitucionais de crirninalização. § 458. São duas, portanto, as componentes do tipo legal:. a ilicitude material in se da conduta (socialmente desvaliosa) e a tipificação legal dessa conduta. Estas duas componentes ou categorias (a material e a legal) contribuem igualmente pata a criação do ilícito penal: arnbas são pressupostos e elementos ou categorias constitutivas do ilícito penal. Esta a razão porque não partilho as afirmações de que o tipo legal desempenha apenas uma função jurídico-política de garantia individual do cidadão, ou de que o tipo legal é um posterius relativamente ao ilícito, ou de que o tipo se reduz à mera "tipicização" ou "mostração" do ilícito.
§ 459. Como já foi referido, também a omissão pode constituir urna conduta ou comportamento humano socialmente relevante. A relevância norrnativo-socialmente negativa da omissão radica, como é óbvio, não na omissão em si mesma, mas na não prática da acção ético-socialmente imposta. Ora, a relevância socialmente negativa da omissão, i. é, a reprovação normarivo-socíal da omissão da acção é a condição pré-jurídica
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§ 460. Conclusão final: .considero que o conceito normativo-social de conduta ou comportamento humano (que compreende tanto a acção como a omissão) é um conceito pré-jurídico, que desempenha, adequadamente, as funções negativa de exclusão e positiva de ligação. É, portanto, o conceito base de toda e qualquer modalidade de crime (activo
(l2) Assim, FIOUEIRWODIAS, Direito Penal, cit., 2007, p. 256: «a acção "esperada" só o é através de uma 'imposição jurídica de acção que nasce do tipo". (ll) Temas Básicos, 2001, p. 218.
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Parte 11 -
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Teoria Geral do Crime
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ou omissivo, doloso ou negligente), susceptível das qualificações jurídico-penais da tipicidade, ilicitude e culpa. . H.
Tlplcidade, 1.
ilícítude
e causas
entre
tlpicidade
A relação
de justificação e ílicltude
§ 461. Como já referi, o tipo legal não desempenha apenas uma função de garantia do cidadão (tipo-garantia, exigido pelo principio- da legalidade penal e, em última análise, pelo Estado de Direito), mas cumpre também a função político-criminal de protecção dos bens jurídico-penais, através da motivação proibitiva (de determinadas acções) ou impositiva (de certas acções adequadas a evitar a lesão de bens jurídicos). E o tipo legal (decisão legislativa tipificadora) é ainda, sob o ponto de vista dogmático, co-constítutivo do illcito criminal.
§
462. Nesta linha, dissemos que o tipo legal nem era um posterius relativamente ao ilícito penal, como também não é um prius em relação ao ilícito. É que são pressupostos da criminalização de uma conduta, isto é, são pressupostos da criação de um tipo legal a "dignidade penal", i. é, a ilicitude material in se da conduta lesiva de um relevante bern jurídico, e a "necessidade penal", ou seja, a decisão discricionária dolegislador sobre .a inexistência de alternativas jurídicas não penais à crirninalização-tipificação da conduta, Com efeito, a partir da consagração do Estado de Direito, não mais são possíveis os "crimes naturais", os crimes in se proibidos. A partir de, então, a decisão legislativa criadora do tipo legal (i. é, criminalizadora) é, também por força do princípio polltico-criminalda "necessidade penal" ou da intervenção mínima do direito penal, co-constitutiva do ilícito penal. Assim, em abstracto, uma conduta (acção ou omissão) típica é também ilícita. 2,
A complementaridade material tipo incriminador) e das causas
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Tttulo I - Introdução e problemas fundamentais
257
existe para se aplicar às concretas situações da vida social. E estas situações ou .casos concretos podem apresentar-se como relativamente simples ou como realmente complexas. Assim, p. ex., a destruição da montra de um estabelecimento de produtos anti-mcêndio tanto pode ser um acto de puro vandalismo (tipo deilícito de dano - CP, art. 212.°), como, opostamente, pode ser um meio de salvamento solidário de um edifício (ou de uma pessoa encarcerada num automóvel que se incendiou) que corre o risco de ser devorado 'pelo ·fogo. Quer isto significar que um facto que, em principio, i. é, em abstracto,. constitui um tipo de ilícito, pode, em concreto, por força das circunstâncias em que é praticado, transformar-se num facto justificado, aprovado pela ordem jurídica e, portanto, não illdto. Tal acontece, sempre que o facto "formalmente típico seja praticado numa situação a que uma norma' jurídica (penal ou não penal) atribua eficácia justificante. Seja o caso, p. ex., da norma sobre a legítima defesa (CP, art, 32.°) ou sobre o direito de necessidade (CP, art. 34.°). 3.
A autonomia dogmática, político-criminal, sistemática tico-processual da tipícidade face à ilicitude
e prá-
.§ 464. A circunstância de o juízo de ilicitude criminal sobre um facto concreto obrigar à consideração quer da tipicidade do facto (da sua .'1:
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e funcional do tipo legal (ou de justificação (ou tipos jus-
tificadores)
§ 463. Sucede, porém, que o direito penal não é uma ciência abstracta, mas concreta: o direito penal, como qualquer ramo do direito,
subsunção ou coincidência com a factualidade típica) quer das causas de justificação (i. é, da inexistência destas) em nada se opõe à afirmação da autonomia dogmática, político-criminal, sistemática e jurídico-processual da tipicidade face à ilicitude. § 465. Sob o ponto de vista dogmático e político-criminal, parece claro que a primeira qualificação jurídico-penal da conduta é a sua tipicidade. Na verdade, o legislador, ao criar os tipos legais, está a seleccionar, de entre as condutas socialmente danosas', aquelas que quer evitar, através dos meios reforçados ou mais graves, que são as penas. E, nesta medida, está, simultaneamente, a "indicar" à sociedade e a cada pessoa quais os valores ou bens jurídicos que são considerados fundamentais para a realização pessoal e para a vida social. I1~Dir.PClIal
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-I: Parte Jl - Teoria Geral do Crime
258
Assim, conduta (acção 0\1 omissão) típica é, necessariamente, uma conduta que lesa ou põe em perigo um desses valores fundamentais (um bem jurídico-penal). § 466. Segundo o critério sistemático, também a característica ou categoria da tipicidade tem prioridade lógica e metodológica sobre a da Ilicltude. Com efeito, só depois de se analisar e concluir pela tipicidade da conduta é que tem sentido averiguar da eventual exclusão da ilícitude da conduta que, no plano formal 0\1 abstracto, é uma conduta típica. A averiguação da causa de justificação só tem sentido depois da conclusão de que a acção praticada é subsumível a um tipo legal de crime. Parafraseando Welzel (embora sem aderir às suas posições em matéria de erro sobre os pressupostos das causas de justificação), praticar uma acção não descrita num tipo legal (p. ex., matar uma mosca) não obriga à consideração de uma eventual causa de exclusão da ilicitude, enquanto que praticar uma acção típica (p. ex., matar uma pessoa) pode obrigar à consideração da eventualidade da existência de uma causa de exclusão da ilicitude do homicídio (a legítima defesa). Por outro lado, enquanto que os tipos legais (e, portanto, a tiprcidade) só podem constar de uma lei penal, já as causas de exclusão da ilicitude penal podem constar de normas jurídicas extra-penais, e, portanto, não sujeitas, na sua criação, ao princípio da reserva de lei (nem aos postulados da "precisão descritiva" e da "proibição de aplicação analógica"). § 467. No plano prático-processual, a questão da (exclusão da) ilicitude do facto só é apreciada depois de se ter analisado e concluído pela tipicidade ela conduta. Tal como não tem sentido abordar-se a questão da culpabilidade do agente sem, previamente, se ter concluído pela ilicitude do facto, também seria irrazoável analisar-se a eventual exclusão da ilicitude penal do facto antes de se saber se o facto em causa é, jurídico-penalmente, típico: 4.
Desvalor
de acção e desvalor
de resultado
§ 468. Vimos que, para a teoria posítívísta-naturalísta e também para a teoria normatívísta, a ilicitude era definida pelo "desvalor
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Tttulo { - Introdução
259
e problemas [undamentais
de resultado" e O ilícito era constituído pelo resultado desvalioso, Defendiam, portanto, uma concepção objectivista da ilicitude. Esta concepção teve consequências práticas importantes, p. ex., em matéria de. legitima defesa, em que foi, durante muito tempo, afirmada a legítima defesa mesmo contra investidas ou ataques de animais!
§ 469. Com a teoria' finallsta, operou-se uma alteração radical, passando a ilicitude a ser. definida apenas pelo "desvalor de acção" e o ilícito penal a ser reduzido à acção desvaliosa, O resultado desvalioso seria considerado como mera condição objectiva de punibilidade e, portanto, como estranho ao ilícito que era constituído apenas pela acção desvaliosa, Defendia, portanto, uma concepção subjectivista da ilicitude, iniciando o processo da consideração do ilícito penal como ilícito pessoal. Na sequência desta inversão, operada pela teoria finalista de Welzel, alguns autores (p. ex., Zielinski) chegaram ao extremo de identificar o desvalor de acção com desvalor da intenção .
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§ 470. O entendimento correcto é o de que tanto o desvalor de acção como o desvalor de resultado pertencem ao ilícito, são componentes do ilícito. Na verdade, quando o legislador, através dos tipos legais, proibe ou impõe determinadas condutas, fá-lo- com o objectivo de prevenir, evitar determinados resultados (lesões ou colocação em perigo de lesão determinados bens jurídicos). Isto não significa que não possa haver um ilicito ou tipo de ilícito sem haver desvalor de resultado. Pois que, na verdade, o legislador, por vezes, com a preocupação de conceder uma protecção reforçada e antecipada de determinados bens jurídicos.rconstrói os tipos legais sem exigir a ocorrência do resultado (cuja evitação continua a ser a razão do tipo legal). Tal é o caso dos chamados crimes formais ou de mera conduta . (mera acção ou mera omissão). O que nunca pode haver é ilícito sem desvalor de acção ou de omissão, i. é, sem· acção ou omissão dolos as ou violadoras do dever objectivo de cuidado. Donde a conclusão: sem desvalor de acção não há ilícito, embora possa haver ilícito sem haver desvalor de resultado.
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Parte II - Teoria Geral do Crime
260
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A culpa jurídico-penal
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§ 471. A terceira e última categoria jurídico-penal da teoria geral do crime é a culpabilidade do agente do facto típico e ilícito (tipo de ilícito). Para que haja crime é necessário que a conduta, que constitui um tipo de ilícito (seja activo ou omissivo, doloso ou negligente), possa ser censurada, ético-pessoalmente, ao seu autor a título de culpa. § 472. Este juizo de culpabilidade jurídico-penal pressupõe a capacidade de o agente avaliar a ilicitude (a negatividade ético-social) da sua conduta e de se decidir de acordo com essa avaliação (CP, art. 20.°-1). Por sua vez, esta capacidade de avaliação e de decisão pressupõe um determinado desenvolvimento e maturidade psicológica, mental e sócio-cultural. E, assim, se compreende que, no geral," os códigos penais estabeleçam uma presunção (absoluta) de insusceptibilidade de culpa relativamente aos menores de certa idade (no nosso Cl', art. 19.°, os menores de 16 anos). § 473. Esta capacidade de avaliação da ilicitude do facto e de decisão constitui apenas o pressuposto do Juizo de culpa jurídico-penal, e não o conteúdo material desta. O conteúdo material da culpa jurídico-penal e, portanto, aquilo que se censura ao agente do facto típico-ilícito é a sua atitude ético-pessoal de oposição, indiferença ou de descuido perante o bem jurídico-penal lesado ou posto em perigo pela sua conduta. § 474. Consoante a atitude pessoal do agente perante o tipo de ilícito cometido, são duas as espécies ou tipos de culpa: a culpa dolosa e a culpa negligente. A culpa dolosa é constituída pela atitude ético-pessoal de oposição ou indiferença perante o bem jurídico-penal lesado ou posto em perigo pela conduta. É manifesto que esta culpa dolos a (ou dolo ético) pressupõe o dolo psicológico ou dolo do facto típico, i. é, pressupõe e coenvolve a representação e vontade de realização do facto descrito no tipo legal de crime. A culpa negligente consiste na atitude ético-pessoal de descuido na prática de factos que contêm o risco de lesarem ou porem em perigo bens . . jurídico-penais.
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TItulo [ - Introdução e problemas [undanientais
§ 475. Esta concepção pessoal da culpa jurídico-penal (defendida por Figueiredo Dias) torna compreensível a exclusão da culpa nas situações tradicionalmente designadas e englobadas na figura da "inexigibilídade", nomeadamente no estado de necessidade desculpante . Na verdade, no estado de necessidade desculpante, não pode dizerse que o agente não optou "livremente" pelo ilicito, i. é, não exerceu mal o seu livre-arbítrio ou liberdade da vontade. Pois que, colocada a questão da culpa no plano da liberdade da vontade, ou seja da opção consciente pelo facto não justificado (logo, ilícito), ele decidiu-se, efectivamente, por este facto, quando podia não ter feito tal opção. Só que,
colocada a questão da culpa jurídico-penal na posição ou atitude pessoal do agente perante o bem jurídico-penal lesado (que era tão ou mais importante que O bem salvaguardado), não pode dizer-se que o agente, nessa situação de necessidade, tenha revelado urna atitude pessoal de indi-: ferença perante o bem jurídico sacrificado.
§ 476. Diga-se, porém, que, embora se considere razoável a exclusão da culpa, nestas situações de estado de necessidade desculpante (bem como nos casos de excesso de legítima defesa asténico não censurável ou de conflito de deveres desculpante), já não me parece adequada a designação de "inexigíbilidade ", bem como os termos utilizados pelo CP, art. 35.°.1: «quando não 'for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente». É que, por um lado, o juizo de ilicitude penal sobre um facto é um juizo que não pode deixar de ter em conta as circunstâncias concretas do caso, e que pressupõe que estas circunstâncias não têm a relevância para excluírem a ilicitude penal do respectivo facto. Logo, se as circunstâncias concretas, em que o facto foi praticado, forem tais que levem a que se considere razoável a práticado facto típico, então o que se excluiria não era apenas a culpa mas, já antes, a própria ilicitude do facto. Daqui a conclusão de que o CP, art. 35.°-1, em vez de dizer «não for razoável exigir-lhe [... ] comportamento diferente», devia estabelecer «não for censurável [... ) o comportamento adoptado». Dizer que o facto praticado é ilícito e ao mesmo tempo afirmar que não era razoável exigir um facto diferente é uma contradição. Pois que é o mesmo que dizer que um comportamento razoável é ilícito.
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262
Parte 11 - Teoria Geral do Crime
IV. Os. "pressupostos
adicionais da punibilídade"
§ 477. As características ou categorias jurídico-penais de todo e qualquer crime são a tipicidade, li ilícitude e a culpa, Assim, uma conduta (activa ou ornissiva, dolosa ou negligente) que seja típica, ilícita e culposa é, no geral, punível. Pode, contudo, suceder - e sucede que, em certos casos, o legislador estabeleça que, além dos pressupostos essenciais, comuns e (no geral) suficientes para a punibilidade do facto (que são a tipicidade, a ilicitude e a culpa), se tenham de verificar determinadas circunstâncias. É a estas eventuais circunstâncias que se costuma chamar "pressupostos adicionais da punibilidade". Porém, em nosso entender, estes eventuais pressupostos nãojustificam que se possa construir uma nova categoria dogmática do crime (e, portanto,
da teoria geral
do crime)
que seria
a da punibilidade.
Categoria que, para o ser, teria de ter consistência, autonomiae de ser comum a todo e qualquer crime. Pois, só na medida em que for comum a todo e qualquer crime é que se pode configurar como categoria da teoria geral do crime. § 478. A decisão sobre a existência, ou não, de uma tal categoria da punibilidade pressupõe que se analisem quais são os referidos pressupostos adicionais da punlbilídade que levam a que alguns autores (p. ex., Figueiredo Dias) falem e defendam a criação da categoria da punibilidade, que acresceria à categoria da culpa e que, portanto, constituiria mais um (novo) pressuposto da susceptibilidade de ao agente do facto (típico, ilícito e culpas o) ser aplicada uma pena. § 479. À partida, devemos excluir os pressupostos processuais ou de procedibilidade (p. ex., a exigência de apresentação de queixa), pois que é evidente que tais pressupostos são apenas condições da efectivação da responsabilidade penal dos agentes de factos puníveis (crimes), através do respectivo processo. Também é de excluir a exigência de que, no caso de crime cometido no estrangeiro, o agente se encontre em Portugal (art. 5."-l-a) 5S.), uma vez que, contrariamente à sua tradicional qualificação como condição objectiva de punibilidade, do que se trata é. de um pressuposto ou condição de procedibilidade (cf § 398). condições
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II 11
11
Thulo I ~ lntrodução e problemas [undatneruals
263
§ 480. Folheando o Código Penal (e a legislação penal avulsa, como, p. ex., o Dec.-Lei n." 316/97, art. 11."-5), verificamos que há determinadas circunstâncias a que a lei penal atribui o efeito de condicionar a punibilidade de determinados factos. Mas há que não descurar que este efeito condicionante tanto pode ser positivo como negativo: isto é, umas vezes a circunstância, referida no tipo legal, é condição (positiva) da punibilidade; outras vezes, a circunstância é obstáculo (condição negativa) à punibilidade, § 481. Ora, relativamente às condições negativas ou obstáculos à punibilidade do facto, há que ter em conta que o legislador utiliza a expressão «o facto não é punível» -nurn sentido muito amplo: umas vezes, no sentido de uma mera exclusão da punibilidade do facto (ilícito e culposo); outras, no sentido de exclusão da culpa; outras, ainda, no sentido de exclusão da própria ilicitude. Assim, no caso da prova da verdade dos factos que, embora lesivos da honra, foram imputados com o objectivo .da realização de um interesse público (art, 180.0-2-b)), do que verdadeiramente se trata é de urna causa de exclusao da ilicitude da divulgação, e não de uma circunstância que apenas exclua a puníbilidade, permanecendo a divulgação como ilícita e culposa. Isto, apesar de a lei dizer: «o facto não é punível». O mesmo se' aplica à coacção com o fim de evitar o suicídio (art. 154.0-3-b)), onde a expressão «o facto não é punível» não significa apenas a exclusão da punibilidade, mas' deve ser entendida como exclusdo da própria ilicitude da coacção. E também o mesmo se verifica na situação prevista rio art .. 151.°-2: «A participação em rixa não é punível quando [... ] visar separar os contendores»,
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§ 482. Por sua vez, no crime de. favorecimento pessoal, a circunstância de a lei (art. 367.o-5-b) dizer que não é punível o favorecimento pessoal realizado por cônjuge, etc., não' significa que não se possa e deva entender que a relação matrimonial constitui uma causa de desculpação, em vez de uma mera exclusão da punibilidade. § 483. Consideremos, agora, os casos da desistência da tentativa (art, 24."-1) ou do arrependimento activo (art. 24."-2 e art. 25.°) e do pagamento do valor do cheque dentro de determinado prazo (Dec.-Lei n." 316/97, art. 11."-5).
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Parte Jl -
Teoria Geral do Crime
No caso da desistência da tentativa ou do arrependimento activo, o Código Penal estabelece que a tentativa deixa de ser punível; no caso do pagamento do valor do cheque, a lei estabelece a extinção da responsabilidade criminal da emissão do cheque sem provisão. Ora, em minha opinião, a razão que leva à não punibilidade da tentativa e à extinção da responsabilidade criminal do crime de emissão de cheque sem provisão é a razão político-criminal pragmática de protecção dos bens jurídicos (ou da reparação da sua lesão). Em ambos os casos, o que o legislador pretende é que, apesar da ilicitude criminal do facto e da culpa do agente (do crime tentado e do crime consumado de emissão de cheque sem provisão), o bem jurídico acabe por ser preservado (ou, pelo menos, no caso de cornparticipação, o agente se esforce por preservá-lo) ou o dano acabe por ser espontaneamente reparado (no caso da emissão de cheque). Acresce a este objectivo a consideração, também político-criminal, de que, apesar de os factos praticados (a tentativa e a emissão de cheque sem provisão) não poderem deixar de ser considerados ilícitos, culposos e, portanto, em si puníveis, todavia o comportamento posterior (a desistência, o arrependimento activo e o pagamento do valor do cheque) torna desnecessária a efectiva aplicação da respectiva pena. É que, com este comportamento posterior, deixou de se afirmar a necessidade preventivo-geral e especial da pena. Donde a minha afirmação e conclusão de que a não "puníbllidade" (rectius, em meu entender, a não responsabilização penal do agente), nestes casos, fundamenta-se na não verificação da necessidade penal e não numa como que negação retroactiva da dignidade penal das referidas condutas (a tentativa e a emissão de cheque sem provisão). Logo, não pode partir-se destes casos ou de casos análogos para se afirmar a existência de uma categoria jurídico-penal autónoma e específica que acresceria às categorias da tipicidade, ilicitude (ou tipo de illcito) e culpa,
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/ § 484. Como se vê, a maioria dos casos qualificados por alguns autores (34) como condições da punibilidade - condições estas que acresceriam às categorias da ilicirude do facto e da culpa do agente,
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Titulo I - Introdução e problemas [undamentais
para que o facto fosse punível - e, a partir das quais, pretendem erigir mais uma categoria geral do crime (que seria a categoria da punibilidade), não são, na realidade, quaisquer condições ou pressupostos da punibilidade e, portanto, não podem servir de base e de argumento para a criação de uma nova, categoria do crime' (ou "facto punível"): a categoria da punibilidade. Que não se trata de condições ou pressupostos da punibilidade, eis o que parece evidente. Efectivamente, não se trata de condições cuja verificação ou ocorrência seja necessária para que a conduta ilicita e culposa seja punivel, mas, pelo contrário, trata-se de situações ou con-
dutas que negam a "punibilidade ", isto é, a responsabilidade penal, ou porque excluem a própria ilicitude ou a culpa, ou porque, embora deixem intacta a dignidade penal "total" (i. é, quanto à conduta ilícita e quanto à existente culpa do agente), todavia o legislador; por razões político-criminais relacionadas exclusivamente com o fim das penas e com o objectivo da preservação do bem jurídico (como é o caso da desistência da tentativa) ou da reparação do dano causado pela conduta ilícita e culposa (caso do pagamento do valor do cheque), entende atribuir a essas condutas (posteriores à prática da conduta ilícita e culposa, e, portanto, em si punível) o efeito de exclusão (não aplicação) da pena. Considera, em síntese, não haver a "necessidade penal". § 485. Discordo, portanto, da posição de Figueiredo Dias, quer quando considera a desistência da tentativa como um exemplo paradigrnático e demonstrativo da existência e necessidade de se considerar a punibilidade como uma categoria autónoma (dentro da teoria geral do crime) a acrescer às categorias da ilicitude e da culpa, quer quando, depois de afirmar que a «irnpunibilidade dá desistência» (esclareça-se que o que está em causa não i a impunibilidade da desistência, mas sim a "impunibilidade" - rectius, a não punição ou não responsabilização penal - da tentativa por força da desistência) se fundamenta na desnecessidade de punição do ponto de vista da prevenção, geral ou especial, diz que a esta desnecessidade de pena «deve justamente chamar-se
a falta de dignidade penal do facto» (35). '.'
(34) Por exemplo, FIGUlllRBDO DIAS, Direito Penal, cit., 2007, p. 671 58,
265
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Direito Penal, cít., 2007, p. 673.
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Parte 11 -
266
Teoria GeraL do Crime
§ 486. E também considero que o paralelo (a favor da sua tese de quê a categoria da punibilidade se reconduz ou coincide com -a categoria da "dignidade penal") entre a categoria da "dignidade penal" e a da "exigibilidade" não é procedente. Segundo Figueiredo Dias (16), tal como o facto de o princípio da "exigibilidade" ser «principio regulativo de todas as categorias do crime, nomeadamente a do tipo de ilícito, não deixa de precipitar-se de forma específica e autónoma, enquanto princípio normativo ou decisório, na categoria da culpa jurídico-penal; assim também se deve aceitar que a ideia da dignidade penal, sem prejuízo da sua ubiquidade .e imanência, se assuma como elemento fundamentador e compreensivo par excellence da categoria dos pressupostos de punibilidade». ~ Que eu não partilho- da punibilidade ou dignidade penal como categoria autónoma, face à categoria do tipo de ilícito (i. é, da ilicitude penal da conduta) e da culpa do agente, eis o que já o afirmei (cf., p. ex., § 462). Mas do que também discordo é da afirmação de que a categoria da exigibilidade constitui mil princípioregulativo de todas as categorias do crime, nomeadamente da do tipo de ilícito, bem como da-conexão feita entre o princípio da "exigibilidade" e a velha máxima ad impossibile
nemo tenetur. É que, na minha opinião, a figura
geral da exigibilidade, ou mais adequadamente da não exigibilidade, tem aplicação somente no âmbito da culpa, funcionando como o denominador comum às diversas causas de exclusão da culpa (nomeadamente ao estado de necessidade desculpante, mas também ao excesso de legítima defesa asténico não censurável, conflito de deveres desculpante, etc.). É certo que, como já há muito o digo, o termo- "não exigibilidade" (de outro comportamento) é inadequado e incorrecto para exprimir o sentido que lhe é atribuído, e com que é utilizado, que é o de não censurabilidade (i. é, de negação ou, exclusão da culpa) do agente do facto tlpico-ilicito, Na verdade, quando, correntemente, se diz não exigibilidade está-se a querer dizer não censurabilidade, isto é; a considerar que, embora o agente tenha agido ilicitamente, todavia, por força das circunstâncias em que este facto típico foi praticado, ele não deve ser considerado culpado. Mas, como
(36)
Direiro Penal, cit., 2007, p_ 672.
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Tttulo J - Introdução e problemas fundamentais
267
parece evidente, a dita "não exigibilidade" (isto é, não censurabilidade do agente) de outro comportamento, pressupõe, necessariamente, a ilicitude do facto (ou comportamento) praticado. Ora, diante de um facto qualificado, jurídico-penalmente, como ilícito (o que pressupõe, pelo menos, um "desvalor de acção"), não tem sentido dizer-se que não era exigível outro comportamento. - Pois que, se não fosse exigivel outro comportamento, então como é que - respeitando-se. um mínimo de razoabilidade jurídícase poderia dizer que o facto é ilícito? - Para mim, é evidente que não tem sentido.
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§ 487. A utilização deste termo "exigibilidade" (como pressuposto da culpa) ou "não exigibilidade" (como negação da culpa) ainda poderia ter alguma razoabilidade nas épocas- em que predominou uma concepção objectivista da ilicitude, sendo esta, então, definida apenas pelo "desvalor de resultado" (cf. § 438 85.). Nestes tempos, poder-se-ia "identificar", jurídico-penalmente, não exigibilidade com não culpabilidade. Pois que, desde que houvesse um "desvalor de resultado" (resultado juridicamente desvalioso), já se afirmava a ilicitude do respectivo facto. Mas tal não impedia que se considerasse excluída a culpa, exclusão que se afirmaria sempre que não fosse razoável, não fosse exigível outro comportamento. Ou seja, a inexigibilidade de outro comportamento (de outra acção) significava a inexistêncía de "desvalor de acção"; mas a inexistência (a negação) do "desvalor de acção'tnão afastava a ilicitude do facto, pois que este era definido apenas pelo "desvalor de resultado"; porém, a inexistência do "desvalor de acção" já excluía a culpa do agente. Neste quadro e contexto, teríamos que, em relação a um facto lesivo de bens jurídico-penais, se poderia afirmar, sem contradição, que o facto era ilícito (desde que houvesse "desvalor de resultado"), embora não fosse razoável exigir outro facto, outro comportamento (o que se verificaria, quando não houvesse "desvalor de acção"); e, não sendo razoável exigir outro comportamento, ter-se-ia de excluir a culpa.
§ 488. Mas, a partir do momento em que se afrrmou e consagrou a concepção subjectiva da ilícítude, então jamais tem sentido equiparar "não exigibílidade" a "não censurabilidade". Pois que, se não era exigível outro comportamento (se não há "desvalor de acção"), então o facto praticado não pode sequer ser considerado ilícito (pois esta qua-
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Parte li - Teoria Geral do Crime
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Iificação pressupõe, necessariamente, um "desvalor de acção", não bastando o "desvalor de resultado"). E, não sendo ilícito, fica sem sentido colocar-se a questão da culpa do agente. Conclusão: o termo "não exigibilidade" é, actualmente (no estádio
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para significar uma realidade, político-criminalmente, justa, que é a de que há situações que, embora não excluam a ilicitude do faéto:( e, portanto, onde era, jurídico-penalmente, -exigível outro comportamerito), todavia devem excluir a culpa porque o facto, conquanto que ilícito, não é revelador duma atitude ético-jurídica pessoal de oposição ou de indiferença perante o bem jurídico-penal lesado ou posto em perigo.
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§ 489. E, assim, também não partilho a afirmação' de que a cate-
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goria da "não exigibilidade" (designação, como disse, incorrecta, embora seja correcto O significado que se lhe atribui, que é o de não censurabilidade) remonte à velha máxima ad impossibile nemo tenetur, e tenha algo que ver com a categoria do tipo de ilícito. Pois que, nunca o Direito pode exigir o humanamente impossível; portanto, se é impossível não pode ser ilícito, ou seja, se outro comportamento diferente do adoptado era humanamente impossível, então o comportamento adoptado (o facto praticado) jamais pode ser considerado ilícito. Quanto à relação entre a exigibilidade (agora, não no sentido de censurabilidade, mas, digamos, no sentido etimológico e jurídico: aquilo que pode ser, humana e juridicamente, exigido, imposto) e as categorias da tipicidade e da ilicitude, há que dizer que parece evidente que o legislador só pode exigir aquilo que é razoável. (poderíamos dizer: aquilo que é exigível) e, portanto, é pressuposto da própria tipicidade (da própria qualificação de uma conduta como típica) a exigibilidade de não praticar a acção (ou, no caso dos tipos de omissão, de praticar a acção) descrita no tipo legal. O que quer dizer que a exigibilidade nada tira ou acrescenta à categoria da típicidade, pois que esta pressupõe aquela. Relativamente à categoria da ilicitude, também é claro que é pressuposto do juizo de ilicitude a possibilidade e a exigibilidade de o agente ~ não ter praticado a acção (ou, 110S tipos de omissão, de o omitente ter praticado a acção referida no tipo legal). É que, se não for possível e
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Introdução e problemas fundamentais
não for de exigir conduta diferente da praticada, jamais esta pode ser qualificada de ilícita. E precisamente esta a razão que me levou a considerar incorrecta a expressão "não exigibilidade de outro comportamento" para significar a desculpação do agente. Pois que, se não era exigível (se não era razoável exigir) outro comportamento, então o comportamento verificado não só não pode ser censurado ao agente como nem sequer, já lógica e metodologicamente antes, pode ser considerado ilícito. Diga-se que, em minha opinião, esta referida contradição lógica e metodológica existe no art. 35.°-1; quando afirma que: «Age sem culpa quem praticar um facto ilícito [... ], quando não for razoável exigir-lhe [... ) comportamento diferente». Conclusão: também a exigibllidade de não praticar o facto descrito no tipo legal (e não ancorado numa causa de justificação) é pressuposto do [uízo de ílicltude, Portanto, a exigibilidade não é principio regulativo do juizo de ilicítude, pois que ela é imanente a esta categoria do crime.
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§ 490. Consideremos; por fim, as duas únicas circunstâncias ou situações (ou outras situações análogas, eventualmente existentes ou que poderão vir a existir) que, à primeira vista, poderiam constituir um ponto de apoio à tese da autonomização da punibllidade .corao categoria geral do crime, com um conteúdo específico e diferente dos conteúdos normativos jurídico-penais inerentes às categorias da tipicidade, ilicitude e culpa. Estou a referir-me a dois dos casos, apresentados por Figueiredo Dias, e que são a "consumação tentativa de suicídio" no crime de incitamento ou ajuda ao suicídio (art. 135.°), e a "prática do ilícito típico" no crime de embriaguez e intoxicação (art. 295.°). Segundo Figueiredo Dias (37), estas circunstâncias (e outras porventura existentes e análogas, como o caso, também referido por este Autor, do não reconhecimento judicial da insolvência, no crime de insolvência dolosa ~ art. 227.°) constituem pressupostos da punibilidade de um facto que, apesar da sua ilicitude e. da culpa do respectivo autor, ainda não tinha a suficiente dignidade penal para merecer, na perspectiva polítíco-criminal do legislador, urna pena e, portanto, ainda não era Í71 se punível. Segundo
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(17) Direito Penal, 2007, pp. 673-674.
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Parte 11 -
Teoria Geral da Crime
Ttudo [ - Introdução e problemas fundamentais
das apenas com a consequência jurídico-penal, não deve ser aplicada a pena. Logo, o que inexistirá é somente a "necessidade penal", apesar de permanecer a "dignidade penal" das respectivas condutas. Assim, tais circunstâncias O' que constituem são pressupostos adicionais da punibilidade, no sentido de que punível já o é a conduta em si mesma, só que o legislador decidiu acrescentar outra exigência à "punibilidade" da conduta que, em si, já era punível. Esta a razão por que entendo que a designação tradicional "pressupostos adicionais da punibílidade" o que pretende, verdadeiramente, significar é que são condições de que a lei faz depender a responsabilização penal do agente e não a punibílidade da conduta.
o referido Autor, verifica-se, assim, uma «embrincação dos conceitos de dignidade penal e de carência de tutela penal, na sua acepção tradicional». § 491. Não partilho uma tal tese, pelas razões que, sinteticamente, passo a expor. Em primeiro lugar, é discutível que estes pressupostos da punibilidade (a consumação ou tentativa de suicídio e a prática do ilícito típico) sejam verdadeiros pressupostos ou condições objectivas de punibilidade, ou seja, é duvidoso, como o comprovam as divergências doutrinais (38), que tais factos-pressupostos da punibilidade não tenham qualquer conexão com os ilícitos das condutas do incitamento ou ajuda ao suicídio e da autocolocação em estado de completa inimputabilidade e/ou com a culpabilidade dos respectivos agentes. Ou seja, é duvidoso que constituam um pressuposto da punibilidade totalmente estranho às categorias da ilicitude e da culpa do crime de incitamento ou ajuda ao suicídio e do crime de embriaguez ou intoxicação completa. § 492. Mas, e em .segundo lugar, independentemente de terem ou não terem qualquer conexão com as referidas categorias da ilicitude e da culpa dos crimes em causa, a conduta de incitamento ou ajuda ao suicídio e a perigosidade criminal (que pode ser elidida) da embriaguez ou intoxicação completa já têm (pelo menos no caso do incitamento ou auxílio ao suicídio) a suficiente "dignidade penal", isto é, já são, em si mesmas, punlveis. Pelo que, mesmo para quem considere que se trata de verdadeiras condições ou pressupostos objectivos de "punibilidade", há que observar que não são estas condições (a "consumação ou tentativa de suicídio" e a "prática do. ilícito típico") que determinam, que atribuem a característica (a categoria) da punibilidade às referidas condutas (de incitamento ou ajuda ao suicídio, e de embriaguez ou intoxicação completa) - pois que estas, por força da ilicitude do facto e da culpa do agente, já a possuem -, mas apenas que condicionam a efectiva responsabilização penal. Isto é, trata-se de circunstâncias que, se não se verificarem, o legislador entende que, por razões político-crimínais relaciona-
(38) Cf. COSTA ANORADE, Comentário Conimbricense do Côdigo Penal, tomo I, art. 135.·, § 30 SS.; TAIPA De CARVALHO, ibidem, tomo Il, art, 295.·, § 18 SS.
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§ 493. Aliás, diga-se que seria estranho e, político-criminalmente, inaceitável que a punibilidade, a dignidade penal de uma conduta pudesse basear-se na ocorrência objectiva (e aleatória) de um determinado facto ou circunstância. Donde a minha conclusão de que a designação "pressupostos adicionais da punibilidade" deve ser tomada como pressupostos adicionais da responsabilidade. penal. Adicionais, pois que, em regra, a responsabilidade penal basta-se com a punibilidade da conduta, isto é, com a ilicitude desta e a culpa do seu autor.
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§ 494. Finalmente, em terceiro lugar, mesmo que existam alguns pressupostos da punibtlidade (relacionados com alguns crimes) que acrescentem "alguma dignidade penal" à dignidade penal já inerente ao tipo de ilícito e/ou ao tipo de culpa, não me parece aceitável, nem sob o ponto de vista lógico nem sob o ponto de vista metodológico, que se atribua a tais pressupostos o valor de uma categoria autónoma e geral do crime. Pois que, se o que está em causa (o que é objecto e objectivo), numa teoria geral do crime, é a análise e a sistematização das características ou categorias comuns a todo e qualquer crime, como é que se pode elevar a categoria da teoria geral do crime uma característica ou pressuposto que só se verifica em relação a um lírnítadísslmo número de crimes?! - Como o próprio Figueiredo Dias (39) reco-
(39)
Direito Penal, 2007, p. 673.
Parte f1 - Teoria Geral do Crime
272
nhece, «O facto ilícito-típico e culposo é também, em regra, facto digno de pena. Mas pode suceder excepcionalmente que o não seja, se nele se não verificarem também pressupostos de punibilidade; pressupostos que têm que ver directamente com a dignidade penal do facto, com exigências de prevenção, geral e especial, que nele radicam mas não esgotam o seu significado no tipo de ilícito .ou no tipo de culpa» (40).
TÍTULO II O TIPO
DE ILÍCITO
Observações preliminares
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O itálico de em regra foi posto por mim.
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§ 495. O paradígrna da infracção criminal é o crime de comissão por acção dolosa. Na verdade, foi a partir desta modalidade de crime que se desenvolveu toda a dogmática jurídico-penal, todo o esforço científico de racionalização-sistematização dos elementos ou categorias constitutivas do crime, em ordem à elaboração de uma teoria geral do crime. Por outro lado, os Códigos Penais, quer na Parte Especial, onde se tipificam os vários crimes, quer na Parte Geral, onde se estabelecem os princípios, os critérios e as normas fundamentais e indispensáveis à interpretação e aplicação das normas da Parte Especial (os tipos legais de crime) aos casos concretos, também partem da figura do crime de comissão por acção dolosa. Acresce, ainda, uma terceira razão, para que a primeira modalidade de crime a estudar seja o crime de resultado por acção dolosa: o facto de ser esta a modalidade de crime mais frequente na prática, aliás na linha das próprias limitações estabelecidas pelos Códigos Penais à punibilidade da omissão e da negligência (cf., quanto ao nosso, os arts. 10.°.2 e 13.0). Em quarto lugar, pode dizer-se que o crime de comissão por acção dolosa é o ponto de partida, quer doutrinária quer legalmente, para a "construção", quer dos crimes negligentes quer dos crimes de omissão, podendo, neste sentido, dizer-se que aquele é assumido como o "crime fundamental" ou geral, sendo estes, os crimes de omissão e os crimes negligentes, corno que "crimes derivados" ou especiais. Ou seja: a estrutura fundamental do crime está no crime de resultado por acção dolosa, sendo as especificidades ou singularidades dos crimes negligentes e dos crimes de omissão estabelecidas e caracterizadas por 18-0it. Pena!
274
Parte II -
Teoria Geral do Crime
referência àquela estrutura fundamental do crime de comissão por acção dolosa. Assim, ele acordo com o art. 10.·-2 e 3, só pode existir um crime ele comissão por omissão, quando, além da existência de um dever de garante que recaia sobre o emitente, existir um tipo legal de crime de comissão por acção, que visa evitar a produção do mesmo resultado que o emitente não evitou. Além disto, a pena para o crime de comissão .por omissão (omissão imprópria) pode ser objecto de uma atenuação especial da pena estabelecida, na Parte Especial do Código Penal ou em Lei Avulsa, para o crime de comissão por acção. E quanto aos "crimes't-tfactos) negligentes, para além de só serem puníveis nos casos especialmente previstos na lei (art, 13.°), a pena, que lhes é aplicável, é determinada, tendo por ponto de referência a pena aplicável ao correspondente crime doloso (cf., p. ex., art. 228.0 insolvência negligente; e art. 227.· - insolvência dolosa).
§ 496. Embora, nos Títulos li, Ill .e IV, tenhamos directamente em vista o crime de comissão por acção dolosa, a verdade é que muitas das questões neles tratadas dizem também respeito aos crimes negligentes e aos crimes de omissão. Nos títulos seguintes, V e VI, abordaremos, respectivamente, as especificidades destes crimes. § 497. Relativamente às categorias dogmáticas da tipicidade e da ilicitude e à relação entre estas categorias, já a expus (cf § 461 ss.). Em resumo, defendemos o seguinte. O tipo legal é, sob o ponto de vista dogmático, co-constitutivo do ilícito criminal, para além de, obviamente, no plano jurídico-político, desempenhar urna função de garantia do cidadão face ao jus puniendi do Estado, e de, através da proibição ou imposição (de determinada acção), que contém, realizar efunção político-criminal de protecção dos bens juridico-penais. Quanto às relações entre a tiplcidade e a ilicítude, defendemos que . entre o tipo legal (ou tipo incriminador) e as causas de justificação (ou tipo justificador) havia, relativamente ao juízo de ilicitude sobre um facto concreto, uma cornplementaridade material e funcional; mas que esta complementaridade material e funcional não impedia a autonomia dogmática, político-criminal, sistemática e prático-processual da tipicidade face à ilicitude.
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§ 498. Acabámos de recordar que, entre as funções do tipo legal, tipo de ilícito ou tipo incriminador, se destacam a função político-criminal de protecção dos bens jurídico-penais e a função jurídico-política de garantia do cidadão diante do poder punitivo-penal estadual. É esta função de garantia do cidadão, decorrente do principio da legalidade penal (cf § 298 8S.), que levou von Liszt a apelidar o princípio da legalidade penal de magna charta do delinquente, e que leva a doutrina a designar o tipo legal como tipo-garantia. Esta função de gararitia políticaimpõe que o legislador descreva, da forma o mais clara e pormenorizada possível, as condutas que qualifica como crimes. Daqui resulta a grande complexidade constítutíva de muitos tipos legais. Vejamos, a título de exemplo, a manifestação desta complexidade. Descreve O art. 162.°-1 (crime de tomada de reféns): «Quem, com intenção de realizar finalidades políticas, ideológicas, filosóficas ou confessionais, sequestrar ou raptar outra pessoa, ameaçando matá-la, infligir-lhe ofensas à integridade física graves ou mantê-la detida, visando desta forma constranger um Estado, uma organização internacional, uma pessoa colectiva, um agrupamento de pessoas ou uma pessoa singular a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade [ ... ]1). E o art. 375."-1 contém a seguinte descrição legal do crime de peculato: «O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou
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Porre II - Teoria Geral do Crillle
particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções [... ]». '
lI. Conteúdo:
a natureza
dos elementos do tipo legal
§ 499. A análise da constituição e da estrutura dos diferentes tipos legais de crime cabe, obviamente, ao estudo da Parte Especial do Código Penal. . Aqui, numa teoria geral do crime, compete apenas referir a natureza dos múltiplos elementos constitutivos dos diferentes tipos legais da Parte Especial do Código Penal e da Legislação Penal Avulsa, bem como proceder à classificação dos referidos tipos legais.
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§ 500. Quanto à sua natureza, os' elementos dos tipos legais podem ser objectivos, subjectivos, descritivos e normativos, 1, Os elementos objectivos e os subjectivos. § 501. Como já foi referido (cf. §§ 443 e 445), a partir da teoria normativista do crime começou a afirmar-se que o tipo legal ou tipo de ilícito continha, ao lado de elementos objectivos, elementos subjectivos (p. ex., a intenção de apropriação 110 tipo de crime de furto). E, na mesma altura, vimos que o processo de subjectivização do típo de ilícito aprofundou-se com a teoria finalista, quando esta, com base no seu conceito "ontológico" de acção humana como acção final; fez do dolo um elemento essencial do tipo legal. Assim, hoje, costuma falar-se da divisão do tipo de ilicito em tipo .objectivo e tipo subjectivo. § 502. O tipo objectivo de ilicito é formado pelos 'elementos do tipo legal dotados de materialidade, de consistência e de autonomia face ao próprio agente do crime. Com efeito, o agente do facto típico também é sempre um elemento objectivo, independentemente de, p. ex., por força de uma eventual paranóia, se auto-considerar como um ser super ou infra-hurnano. Sendo o direito penal moderno um direito penal do facto, naturalmente que a estrutura básica e irrenunciável do tipo legal há-de ser objectiva.
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O ripa do ilIciro
277
Como exemplos de elementos objectivos, temos o agente (seja, como no geral é, urna pessoa humana, ou uma pessoa colectiva ou uma mera associação de facto - cf. CP, art, 1L°, e; p. ex.j.Dec-Lei n." 28/84, de 20 de Janeiro, art. 3.°-1), a conduta (a acção praticada, nos crimes de acção, ou a acção omitida, nos crimes de omissão), o objecto da conduta (a pessoa ou coisa sobre que recai a acção, ou, no caso de crimes de omissão, que não foi objecto da acção que, apesar de imposta, foi omitida), o meio utilizado pelo agente para a execução da acção (p, ex., a violência física), o bem jurídico protegido pelo respectivo tipo legal (a vida, a integridade física, a propriedade, etc.). §503. Como já referimos, a partir da teoria normativista e, especialmente, depois da teoria finalista (que esteve na origem da chamada concepção pessoal do tipo de ilícito), o tipo legal ou tipo de ilícito não contém apenas elementos objectivos, mas também elementos subjectivos. E, embora a palavra "tipo" tenba uma aplicação mais rigorosa relativamente ao conjunto dos elementos objectivos; o certo é que, actualmente, ela também é utilizada para significar o conjunto dos elementos subjectivos do tipo de ilícito. Assim, paralelamente à designação tipo objectivo de ilícito, também se fala em tipo subjectivo de ilícito. § 50, Quando se fala em tipo subjectivo de ilícito, tem-se em conta o crime doloso, e não o crime negligente. A razão é simples e natural: caracterizando-se o crime negligente pela causação de um resultado jurídico-penalmente desvalioso, devido a descuido ou desatenção do respectivo agente, obviamente que no respectivo tipo de ilícito não há lugar para qualquer intenção ou motivação do agente relativamente ao facto praticado. Apenas na negligência consciente (art. 15.0-a) se pode considerar existir um elemento subjectivo, que é a representação da possibilidade da criação de uma situação de perigo (p. ex. art. 295.°; quando o que ingere bebidas alcoólicas, ao fazê-lo, representar que pode vir a ficar num estado de inimputabilidade) ou da possibilidade de a sua conduta (p, ex. a condução com excesso de velocidade) causar um determinado resultado (p. ex., matar uma pessoa). § 505. No tipo de ilícito doloso, há que distinguir entre o "elemento" subjectivo comum a todo e qualquer tipo de ilícito, que é o
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Parte J[ -
Teoria Geral do Crime
dolo, e os elementos subjectivos específicos de vários (que não todos) tipos legais. O dolo, enquanto representação e vontade psicológica de realização 'do facto (dolo do tipo ou da factualidade típica - cf. §§ 585 e 593) é o' elemento subjectivo que abrange todos os elementos objectivos do tipo legal (acção, objecto, resultado, ete.). § 506. Além do dolo (do facto), há, em muitos tipos legais, elementos subjectivos específicos. São eles: as intenções, as motivações e, eventualmente, determinadas atitudes interiores. . A intenção, como elemento subjectivo específico de certos tipos legais, não se confunde com o chamado dolo intencional ou directo (CP, art. 14.u-l), que é uma modalidade do dolo do tipo, e que se verifica quando o agente tem por objectivo imediato a realização do facto , descrito num tipo legal. Enquanto elemento subjectivo de certos tipos legais, a intenção é um elemento que, tal como 'os outros elementos objectivos ou os outros eventuais elementos subjectivos (p. ex., motivações), é integrante do tipo legal, De modo que, não se verificando, no caso concreto, este elemento "intenção", oagente não pode considerar-se como tendo praticado O respectivo tipo de ilícito - o 'que, obviamente, não significa que não possa ter cometido outro tipo de ilícito; do qual não faça parte a referida intenção. Exemplos de intenção como elemento subjectivo específico podem ver-se no tipo de crime de furto - a intenção de apropriação (art, 203.°-1); no tipo de crime de burla - a intenção de obter enriquecimento ilegítimo (art. 217.u-l); no tipo de crime de rapto - a intenção de extorsão, de resgate, ete. (art, 161.°-1). , ,
§ 507. Actualmente, por influência da doutrina germânica, a estes' crimes, em que o agente -pretende, com a sua acção, produzir um resultado que não faz parte do tipo legal (p. ex., raptar com a intenção de conseguir um resgate) se aplica a designação "crimes de resultado cortado". Mas acrescente-se que, na minha opinião, a designação é pouco feliz, é pouco adequada. Porventura, uma vez que, pelo menos no geral dos casos, estão em causa tipos de crime de resultado (i. é, em que O resultado directo da conduta é elemento do tipo legal), melhor seria a
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O tipo de ilícito
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designação "crimes de duplo resultado": o resultado típico (que é elemento do tipo legal e que, portanto, tem de ser abrangido pelo dolo do agente); e o resultado extra-típico, que é o que agente pretende vir a obter com a prática do tipo de ilícito, e resultado este que não faz parte do tipo legal, sendo, portanto, irrelevante que tal se venha, ou não, a produzir, ou seja, que' a intenção do agente se venha, ou não, a concretizar. Assim, p. ex., nos tipos de crime de rapto e de tomada de reféns, necessário, para que os crimes se considerem consumados, é que a vítima tenha sido efectivamente privada da liberdade (raptada ou sequestrada) - resultado típico -, sendo irrelevante que a intenção do agente se venha, ou não, a concretizar, L é, que o resultado "obtenção do resgate" ou o resultado "prática de determinada acção" (p. ex., libertação de membros da organização a que pertence o agente) se verifique, ou não - resultado atípico. Decisivo, para que o tipo de crime de rapto ou de tomada de refém se considere realizado ou consumado é apenas que o agente tenha praticado a conduta de privação da liberdade com a intenção de que tais resultados extra-típicos se venham a produzir. E, já que fizemos referência critica à designação "crime de resultado cortado", que entendemos ser inadequada e equívoca (até parece sugerir que o verdadeiro resultado, que, sob o ponto de vista do tipo, é o que interessa - o resultado típico -, se não produz), então façamos também uma breve nota sobre outra designação, utilizada por. vários autores alemães (p. ex., Roxin), para uma, outra espécie de tipos de crime, em que também a intenção é um elemento especifico. Estamos a referir-nos à designação "crimes mutilados de dois actos" (ou "crime de acta cortado "), por analogia formal com a designação "crime de resultado cortado". Segundo parte da doutrina alemã, dentro dos "tipos de crime de intenção" (que são aqueles em que a intenção é elemento específico do tipo legal), haveria que distinguir duas espécies; os, já referidos, "crimes de resultado cortado" e os "crimes mutilados de dois actos". A distinção, segundo Roxin (41), reside no seguinte: enquanto nos primeiros, o resultado adicional, i. é, o resultado extra-típico, é provocado pela própria acção típica praticada pelo agente (p, ex., o resultado "entrega do
(41)
Derecho 'Penal, 1999, p. 317.
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Teoria Geral do Crime
resgate" por um familiar do raptado, em consequência do rapto) já, nos "crimes mutilados de dois actos", o resultado adicional extra-típico (que constituiu o objectivo ou intenção do agente) não deriva da acção típica praticada pelo agente, mas sim de uma segunda e ulterior acção a praticar também pejo agente. Como exemplo, o crime de contrafacção de moeda (art. 262."): aquele que pratica contrafacção, fá-lo com a intenção de pôr a moeda em circulação; mas a concretização desta intenção exige a prática de uma nova acção por parte do contrafactor, que é a 'passagem da referida moeda. Também há que dizer que esta designação "crimes mutilados de dois actos" é pouco feliz; mais adequada parece ser a designação "crimes de dupla acção". § 508. Também as motivações podem, em alguns crimes, constituir um elemento subjectivo específico do respectivo tipo de ilícito. O que significa que, inexístindo, no facto concreto, essa motivação, o respectivo tipo de crime. não se verifica. É o caso, p. ex., do tipo legal de tomada de refém, previsto no art. 162."-1. Da leitura desta disposição legal vê-se que são e1ementos subjectivos específicos do tipo de crime de tomada de refém, não apenas uma determinada intenção, mas também uma determinada motivação. Com efeito, de acordo com o respectivo texto legal, para se afirmar o tipo de crime de tomada de reféns é necessário que a conduta de rapto ou de sequestro tenha sido praticada, não só com a intenção de coagir um determinado Estado ou organização internacional a adoptar determinado comportamento, mas ainda que a prática dessa conduta, com essa intenção ou objectivo, tenha tido uma motivação política, -ideológica, filosófica ou confessional. Na verdade, o termo "intenção" (de realizar finalidades políticas, etc.) tem, neste artigo, o sentido de motivação, enquanto o gerúndio "visando" (constranger um Estado, etc.) significa a intenção ou objectivo imediato que o agente pretende com a sua acção de rapto ou sequestro (42).
, . § 509. Também a atitude interior constituir
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do agente pode, em casos raros, especifico do tipo legal.
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Assim acontecia no antigo tipo de crime de maus tratos (CP de 1982, redacção primitiva, art. l53.n-l) que continha, entre os seus elementos típicos, o elemento-exigência de que os maus. tratos fossem devidos a «malvadez ou egoísmo» do agente mal tratante. Foi, com base neste elemento subjectivo, que a jurisprudência, apelidando-o de "dolo específico", realizou uma interpretação demasiado restritiva, e injusta, do crime de maus tratos. A Reforma Penal de 1995 eliminou, justificadamente, esta referência à "malvadez ou. egoísmo". Diga-se, porém, que as atitudes interiores (como, p. ex., malvadez, egoísmo, sadismo, ódio racial, frieza de ânimo) devem ser consideradas, por regra, como características da personalidade, e não como características do facto concreto praticado. E, assim, deverão, por princípio, ser assumidas como características pessoais a relevar em sede da culpa, e não como elementos do tipo de ilícito. E esta qualificação das atitudes interiores como características da' personalidade e, portanto, como factores a incluir no juizo de culpa, tem, .desde logo, a consequência de, no caso de comparticipação, não poderem agravar (ou fundamentar) a responsabilidade penal dos agentes que não manifestem tais atitudes. Isto porque, de acordo com arts. 28.° e 29.°, só as qualidades relacionadas e valoradas no juizo de ilicitude é que poderão determinar a aplicação da pena do crime, que pressupõe essas qualidades, mesmo aos comparticipantes que as não possuam (art. 28.°-1); já as' qualidades pertenceutes à culpa nunca poderão comunicar-se aos outros comparticípantes que as não .possuam, 'onerando, portanto, apenas o agente que as tenha revelado na prática do facto ilícito (art. 29.°).
os
2.
Os elementos
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de ilícito
descritivos
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normativos
§ 510. Elementos descritivos são aqueles cujo significado é susceptível de ser apreendido pelos sentidos. Noutra formulação, porventura mais simples e adequada, são os elementos cujo significado típico (i. é, 110 contexto do tipo legal), coincide, globalmente, com o que lhe é atribuído pela linguagem comum. É o caso de pessoa, animal, subtrair, destruir, ete. § 51 L cujo sentido
Elementos normativos podem definir-se como aqueles nos obriga a recorrer a valorações constantes de outras
J.
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Forte 11 - Teoria Geral do Crime
ordens normativas, jurídicas ou sócio-culturais, ou a outras linguagens científico-técnicas. Exemplos: documento autêntico e testamento cerrado (art, 256.°-3), funcionário público (art. 375.°-1), "bons costumes (art. 149.°-2), "leges artis" (art. 150.°-2). Por vezes, é o próprio legislador que, por razões de certeza jurídico-penal, define os elementos norrnativos ou precisa os elementos descritivos, esclarecendo e estabelecendo o exacto sentido em que eles devem .ser tornados pelo aplicado r da lei penal. Tal é o caso do art. 202." que, colocado no início do título que descreve os, crimes contra o património, dá a definição de vários elementos utilizados em diversos tipos legais de crimes contra o património (valor elevado, arrombamento, chaves falsas, etc.); e dos arts. 255.°, que defme alguns elementos típicos dos crimes de falsificação (documento de identificação, moeda, etc.), e 386.°, que determina o âmbito do conceito de funcionário, para efeitos j~~ico-penais.
lU. Estrutura:
as classificações
1. CLassificações
segundo
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do autor
§ 512. Tomando como ponto de referência o autor, temos duas classificações dos tipos legais: uma, segundo o critério da quantidade de autores ou agentes; outra, segundo o critério da qualidade dos autores ou agentes. a quantidade
de autores
§ 513. Os crimes dividem-se em singulares ou unissubjectivos e plurais, plurissubjectivos ou de cornparticipação necessária. Os primeiros, que são a generalidade, são os que podem ser praticados por uma sÓ pessoa. Os segundos são aqueles cujo tipo legal exige a intervenção' de mais do que lima pessoa (p. ex., o crime de participação em rixa, art. 151.°, e o motim, art, 302.°). 1.2.
Segundo
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§ 51"6. A distinção dos tipos de crime em comuns e específicos, bem como a divisão destes em próprios e impróprios tem relevância jurídico-prática, nomeadamente nos casos de comparticípação (em que algum dos agentes não possua a qualidade exigida pelo respectivo tipo legal - cf. art. 28.") e nos casos de erro sobre o objecto da conduta. aos chamados
"crimes
de mão própria"
§ 517. A designação "crimes de mão própria" foi criada por Bindíng, E a problemática destes crimes tem sido tratada especialmente pela doutrina alemã, Com destaque para Roxin, na sua importante obra Tãterschaft und Tatherrschaft. § 518. Jakobs (43) caracteriza os "crimes de mão própria" como aqueles em que «o tipo de ilícito consiste na realização fisicade uma acção reprovável, e em que a essência do ilícito radica numa atitude
defeituosa do agente relativamente aos seus deveres pessoalisstmos» (itálicos meus). E prossegue, dizendo que é esta natureza pessoallssima que faz com que os "crimes "crimes de dever".
dos autores
§ 514. Os crimes são comuns ou específicos. Os prímeiros podem ser praticados por qualquer pessoa (p. ex., os crimes de homicídio, art. 131.°;
§ 515. Os crimes específicos dividem-se em crimes específicos próprios ou puros e crimes específicos impróprios ou impuros. Nos primeiros, a qualidade, estatuto ou dever especial fundamenta a ilicitude criminal e, portanto, também a responsabilidade penal (p. ex., a recusa de médico, art. 284.°; a prevaricação, art. 370."; falsidade de testemunho, art, 360.°-1). Nos segundos, a qualidade, estatuto ou dever especial apenas agrava a ilicitude e a responsabilidade penal (p. ex., a coacção por funcionário, art. 155.°-1-<0; o peculato, art.: 375.°-1, em confronto com o abuso de confiança, art. 205.°-1).
1.3. Referência
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1.1. Segundo
283
de furto, art. 203.°). Os específicos são os que só podem ser cometidos por quem possua determinada qualidade ou estatuto, ou sobre quem recaia um dever especial.
dos tipos legais de crime o critério
O tipo de ilicito
de mão própria"
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(43) Derecho Penal - Parte General, 1997, p. 731 5S.
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Título 1/ -
Parte li - Teoria Geral do Crime
284
§ 519. Com o objectivo de salientar a justeza das' objecções de Jakobs (de que partilho) à figura dos "crimes de mão própria", quer quanto ao critério (rectius: ausência de critério) de determinação-delimitação destes crimes quer quanto à legitimidade político-criminal das consequências jurídico-práticas da qualificação de um crime como "crime de mão própria'.', é de interesse transcrevermos algumas .passagens de R. Maurach e H. Zipf (45). Escrevem estes Autores: «Há determinados tipos que são necessariamente concebidos, de acordo com o seu conteúdo de ilícito, de tal modo que só pode ser autor deles quem esteja em condições de levar a cabo, por si e imediatamente, fi acção proibida. Os crimes de mão própria não são ,em regra, de resultado mas simples crimes de actividade, nos quais o desvalor da acção se encontra em primeiro plano: o resultado é, predominantemente, neutro face ao direito; o desvalor é constituído, precisamente, pelo facto de ao autor estar proibida a acção».
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Parte General. I, 1994, p. 368 s.
285
palavras, dizer-se que há ilícito (ou ilícito mais grave) porque aquele autor concreto estava proibido de praticar aquela acção típica, isto é o que se diz e o que caracteriza os "normais" crímes específicos, próprios. ou impróprios.
Depois de mencionar vários dos crimes que têm sido considerados, por sectores da doutrina penal alemã, como "crimes de mão própria" (o perjúrio, o incesto, a prevaricação, a deserção militar, a autocolocação em estado de inimputabilidade), observa que «o fundamento e a determinação da natureza dos crimes de mão própria são' extremamente polémicos», e -conclui, com toda a razão, que «é muito duvidosa a legitimidade para fazer dos chamados crimes de mão própria um grupo especial de crimes» (44).
:§ 520. Esta definição e fundamentação demonstram, claramente, a inaceitabllidade jurídico-penal desta categoria dos "crimes de mão própria ''. Com efeito, como pode aceitar-se uma categoria de. crimes em que o desvalor de resultado (isto é, a lesão ou perigo de lesão do bem jurídico, cuja protecção é a ratio do próprio tipo de ilícito) seja considerado irrelevante para o direito? Por outro lado, dizer-se que os crimes de mão própria são aqueles que só podem ser praticados por quem esteja em condições de realizar, por si, a acção proibida, ou, por outras
O tipo de iltcíto
§ 521. A seguir, Maurach e Zipf apresentam casos que, segundo eles, constituem crimes de mão própria e que, portanto, fazem com que eventuais comparticipantes só possam ser punidos como participantes (isto é, como cúmplices 01.) como instigadores, dado que, diferentemente do nosso direito, no alemão os instigadores não são considerados autores). Eis os crimes que indicam: crimes sexuais, como o incesto e o abuso sexual de incapaz de resistência, o perjúrio e o motim de presos. E dão as seguintes explicações que, em minha opinião, nada convencem. Quanto ao incesto, apenas dizem que só podem .ser autores deste crime determinados parentes que realizem os actos sexuais. Embora este caso não tenha qualquer interesse prático para nós.pelo facto de o incesto não ser crime, cabe objectar, dizendo que não há qualquer 'razão para, p. ex., não se considerar como autor deste crime, a título de omissão, o pai ou mãe de A e B, que, sabendo que estes são irmãos, embora estes o desconheçam, não informam os seus filhos, A e B, de que são irmãos, procurando, assim; evitar as relações sexuais entre eles. Relativamente ao caso de crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, os próprios autores alemães referidos mencionam a divergência de opiniões na doutrina alemã. Quanto ao perjúrio, também se limitam a dizer que só pode cometer este crime, só pode ser autor a pessoa que presta as declarações. Contra esta afirmação, há que dizer que não se vê qualquer razão para negar a autoria, por instigação (no caso português, em que a instigação é uma forma de autoria), no caso, p. ex.; de um advogado que, mediante uma oferta pecuniária, "compra" uma pessoa para prestar falsas declarações num processo; nem há razão para negar a autoria mediata, no caso de, p. ex., o advogado coagir, mediante ameaça séria e grave (de morte, lesão corporal ou despedimento), à prestação de falsas declarações .. E, portanto, não era necessário o nosso art. 363. o para um tal comportamento ser punível, Mais: este artigo não afasta as regras gerais da comparticipação, isto é, não impede as autorias, na forma de instigação ou mesmo de autoria mediara, dos crimes de perjúrio dos arts. 359." e 360. mas, pelo contrário, até 0
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Parte II -
286
Tflu{o li -
Teoria Geral do Crime
obriga à sua aplicação. E obriga, na medida em que, prev~ndó e punindo os i:nstigadores cujos instigados acabem por não prestar. as falsas declarações (pois se, efectivamente, as prestarem, já não cometem o crime de suborno do art. 363"), por maioria de razão hão-de ser puníveis os instigadores, quando os instigados tenham prestado as falsas. declarações, isto é, tenham, de facto, lesado o bem jurídico realização da justiça. Relativamente ao motim de presos, também não se vê razão para negar a possibilidade da autoria por instigação ou a autoria mediata.
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§ 522. Na verdade, se se pretende centrar a essência e a gravidade destes "crimes de mão própria" na atitude defeituosa ou desvaliosa do agente, em vez de a centrar 110 facto praticado e lesivo de determinados bens jurídico-penais, é caso para dizer que, nestes crimes, há uma perigosa e rejeitável excepção ao princípio do "direito penal do facto ", princípio que é uma das traves-mestras do direito penal moderno, que veio recusar, definitivamente, um direito ~enal do agente ou direito penal da atitude interior.
§ 523.
Na doutrina portuguesa, a questão dos ditos "crimes de mão própria" não tem sido especialmente tratada, havendo, contudo, algumas referências e tomadas de posição. , Teresa Beleza (46) dá a seguinte definição dos "crimes de' mão própria": «são aqueles cuja definição legal torna impensáveis em qualquer forma de autoria que não seja directa, imediata, material, dado que a acção descrita só é susceptível de ser praticada por "mão própria", isto é, com o próprio corpo». E, de seguida, trata alguns crimes usualmente considerados como "crimes de mão própria" (perjúrio, bigamia e alguns crimes sexuais), parecendo-me que, embora em tom dubitativo, é da opinião de que, pelo menos no nosso Código Penal, não há crimes de mão própria: Com efeito, escreve Teresa Beleza: «É discutível que o nosso Código contenha definições susceptíveis de enquadrarem "crimes de mão própria"».
§ 524.
Germano Marques da Silva (47) define estes crimes como SeJ1dO «aqueles que só podem ser praticados pela própria pessoa que
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287
reúna as qualidades que a lei exige como elemento do próprio crime». E considera que nada impede a cornunicabilidade das qualidades exigidas pelo tipo legal, como o prevê a regra estabelecida na L" parte do n," 1 do art. 28.", excepto se a interpretação do tipo legal em causa se opuser à referida comunicabilídade. § 525. Sobre esta posição, penso duas coisas. Em primeiro lugar, acho que a noção de "crimes de mão própria", dada por este Autor, não espelhaaquilo que; tradicionalmente, se tem entendido por "crimes de mão própria"; na verdade, a noção, que dá, coincide com a de crimes específicos. Em segundo lugar, entendo, tal como Germano Marques da Silva, que a figura dos ditos "crimes de mão própria" não deve ter qualquer autonomia dogmática face aos crimes específicos, e penso que o regime que . se pretende atribuir aos denominados "crimes de mão própria" é politico-criminalrnente inaceitável. Que possa haver um ou outro tipo legal cuja constituição e ratio típicas impliquem a impossibilidade jurídico-penal de serem cometidos, a título de autor, por quem não possua determinada qualidade, ou que só possa ser praticado pelo autor directo, é possível. Só que, tal impossibilidade de comparticipação (a título de autoria mediata, coautoria ou instigação), tal incomunicabilidade das qualidades específicas, exigidas pelo tipo legal, há-de resultar, inequivocamente, do próprio tipo legal. Mas tais casos serão rarissimos, E tanto se podem verificar nos tradicionalmente ditos "crimes de mão própria" corno nos normais crimes especificos. Até porque, como já o sugeri (§ 518 5.), entendo
que esta espécie de "crellça" tradicional na autonomia dogmática dos "crimes de mão prôpría'' não tem razão de ser e é político-criminalmente insustentável. Estes ditos "crimes de mão própria" integram-se nos normais crimes específicos
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e como tal devem ser tratados.
§ 526, Figueiredo Dias definia, em 1976 (48), os crimes de mão própria como «aqueles crimes que tipicamente exigiriam a execução corporal. do crime pela própria pessoa do agente (v. g., incesto, pederastia, vadiagem, e talvez a bigamia, uso de estupefacientes, etc.)», E, em 2004 (49),
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(4&) «Ilicitamente Cornparticipando», AAFD, 1988, p. 63 55. (") Direito Penal Português, II, 1998, p. 273 5.
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Sumdrios das Lições, p. 54. (49) Direito Penal - Parte Geral, tomo I, 2004, p. 288. (48)
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288
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Teoria Geral do Crime
Titulo li - O tipo de ilícito
ricação e o crime de deserção militar.
escreveu: «OS crimes de mão própria, isto é .: os tipos de ilícito em que o preceito legal quer abranger como autores apenas aqueles que levam a cabo a acção através da sua própria pessoa, não através de outrem; quer abranger apenas pois, em princípio, os autores imediatos, ficando excluída a possibilidade da autoria mediata; e mesmo da co-autoria relativamente àqueles cornparticipantes que não tenham chegado a executar por próprias mãos a conduta típica, não podendo por isso, nestes casos, verificar-se a "comunicabilidade" a que se refere o art. 28." (cf. a parte final do n." I: "excepto se for outra a intenção da nonna incriminadora")». E dá como exemplos de "crimes de mão própria" que, porque tais, seriam, necessariamente, abrangidos pela "proibição" da comunicabilidade das qualidades ou relações especiais do agente, constante da ressalva da parte final do n." 1 do art. 28.', os arts. 165.' (abuso sexual de pessoa incapaz de resistência), 166.° (abuso sexual de pessoa internada) e 295." (embriaguez e intoxicação). Ou seja, só poderá ser autor destes crimes aquele que possua a qualidade referida no tipo legal e/ou que execute ele próprio a respectiva acção típica, Diga-se que, na 2." edição da sua obra Direito Penal, de 2007, p. 305, embora rnanteIlha a definição que acabei ele transcrever, já parece colocar certas reservas ao tal regime especial que, tradicionalmente, era atribuído aos chamados "crimes de mão própria". 'Com efeito escreve: «Todavia, a necessidade e a justificação político-criminais desta categoria dogmática encontra-se
opinião,
própria é coautoria nosso CP final), só
político-criminalmente
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inaceitável.
§ 528. Comecemos por recapitular os pontos essenciais desta figura. Autor destes crimes só pode ser a pessoa que, por si mesma, tenha executado a respectiva acção típica. Entre os crimes que, tradicionalmente, têm sido considerados como· "crimes de mão própria", destacam-se certos crimes sexuais (como o abuso sexual de pessoas sob custódia), o crime de perjúrio ou falsas declarações, o crime de preva-
O regime destes crimes de mão o seguinte: exclusão da possibilidade de autoria mediata, da e da instigação (pois que, diferentemente do direito alemão, o considera a instigação como autoria - cf. CP, art. 26.o-pmte sendo possível a cumplicidade.
§ 529. Jakobs refere que a origem histórica dos "crimes de mão própria" remontará aos tempos em que predominava um direito penal de autor, em que O desvalor de uma acção não residia nos resultados de lesão ou de perigo de lesão para determinados bens jurídicos que a acção podia causar, mas antes na deformação pessoal do agente, manifestada no facto praticado. Assim, a gravidade do falso testemunho não estava no risco deste para a realização da justiça, mas sim na inveracidade pessoal do declarante perante Deus e a sua consciência. E, ainda a título de exemplo, o crime de deserção não era visto como um perigo para a defesa nacional, mas como uma deslealdade pessoal para com a pátria.
hoje, cada vez mais, em questão».
§ 527. Vejamos, agora, qual é a minha posição, posição que já, na l ." edição do meu Direito Penal, vol. Il, de 2004, p. 88 ss., defendi nos exactos termos que se seguem: considero que esta figura dos "crimes de mão própria", com as consequências dogmáticas e jurídico-práticas, que lhe associam, é, no mínimo, questionável e, em minha
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§ 530. Independentemente destas ·possivelmente certas origens históricas transcendentes (Deus, natureza, justiça, pátria) dos crimes de-mão própria, penso que a "teoria" destes crimes tem passado. de "mão em mão", de forma acritica. Na verdade, não tenho encontrado argumentos, muito menos consistentes, que lhe confiram uma fundamentação dogmática aceitável. Mas, o que é mais grave, é que esta pretensa teoria tem consequências político-criminais inaceitáveis. E, no nosso direito, ainda mais inaceitáveis do que aquelas (já reconhecidas por vários autores alemães) que se verificam no direito penal alemão, uma vez que, sendo, face ao nosso art. 26.°, a instigação uma forma de autoria, nem sequer é possível a punição do instigador à prática destes crimes de mão própria; o que já é possível, no direito alemão, pois que este' não qualifica o instigador como autor, mas sim como participante, ao lado do cúmplice. § 531. Procuremos, agora, demonstrar a inaceitabtlidade político-criminal da autonomização dogmática desta figura dos "crimes de mão própria ", Embora já tenhamos feito várias considerações contra a autonomização dogmática desta figura dos "crimes de mão própria", completemos essas considerações com a análise dos três crimes que, segundo Figueít9·0ir.
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Parte J[ -
Titulo li -
Teoria Geral da Crime
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tes crimes no acto físico (cópula ou outro contacto sexual) e não, como
redo Dias, constituem (ou, pelo menos, constituíam, em 2004) exemplos de crimes de mão própria com as consequências práticas jurídico-penais respectivas (cf. § 528). Estão em causa os crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência (art. 165.°), de abuso sexual de pessoa internada (art. 166.") e de auto-colocação em estado de inimputabilidade através da ingestão ou consumo de bebidas alcoólicas ou de substâncias. tóxicas. § 532. Devemos, antes da análise dos três tipos de crime apresentados por Figueiredo Dias como exemplos de "crimes de mão própria", fazer uma observação. Este Autor dizia, ou pelo menos sugeria, que a proibição da aplicação da regra da cornunicabilidade "das qualidades ou relações específicas" tem por objecto os chamados crimes de mão própria. Mas, dos três exemplos que apresenta, a verdade é que apenas um constitui um crime específico, que é o do abuso sexual de pessoa internada (art, 166."), sendo os outros dois (abuso sexual de incapaz de resistência, art. 165.°, e embriaguez ou intoxicação, art. 295.') crimes comuns, Ora, pressupondo a referida regra (a comunicabilidade) e a correspondente excepção (a incomunicabilidade) que estejam em causa crimes específicos, resulta, desde já, a seguinte conclusão: ou, contrariamente a uma ideia difundida, a excepção, constante da parte final do n," 1 do art, 28.", pouco ou nada tem que ver com os "crimes de mão própria", uma vez que tal excepção pressupõe, necessariamente, que esteja em causa um crime específico, e dos' três exemplos apresentados por Figueiredo Dias apenas lU11 é específico; ou a referida excepção tem, de facto, por objecto os tradicionalmente designados "crimes de mão própria" (incesto, prevaricação, perjúrio, abuso sexual da pessoa internada), mas então estes crimes terão, necessariamente, de pertencer à categoria dos crimes específicos, pois que todo o art. 28.°-1 (tanto a regra como a excepção) tem por objecto os crimes específicos. E, assim, não poderiam ser considerados como "crimes de mão própria", nem o crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência (art. 165.°), nem o crime de embriaguez ou intoxicação (art. 295.°). Complete-se este §, referindo que, na verdade, a generalidade dos tradicionalmente designados "crimes de mão própria" eram, e são, crimes específicos ("crimes de dever": prevaricação, perjúrio, etc.), a que acresciam os crimes sexuais, numa altura em que se via a essência des-
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hoje se defende, na liberdade de autodeterminação sexual, Por tudo isto é que eu entendo que, se, no passado (quando, como refere Jakobs, a essência desses crimes estava na infidelidade à veracidade pessoal para com Deus e para com a própria consciência, etc. - cf § 529 -, e quando a gravidade do crime sexual se centrava no acto físico), poderiam estes "crimes de mão própria" ter alguma autonomia dogmática, hoje, com a centralização do direito penal no facto e nos concretos bens jurídicos, não há lugar para a formação de uma qualquer categoria dogmática, com regime próprio, a partir dos tradicionais e ultrapassados "crimes de mão própria". § 533. Analisemos, agora, os três crimes referidos por Figueiredo Dias como "crimes de mão própria", nos quais, segundo este Autor, só haverá lugar para a autoria directa (só poderiam, pois, ser imputados ao que, por si mesmo, pratica a acção descrita no respectivo tipo), ficando excluídas as outras formas de autoria (autoria mediara, coautoria e instigação), e só podendo qualquer outro comparticipante nestes crimes ser punido como cúmplice (no facto praticado por outrem, .i. é, pelo autor directo).
Relativamente ao crime de abuso sexual. de pessoa incapaz de resistência (art. 165,', que é um crime comum, pensamos que é perfeitamente possível, não apenas a instigação, mas até a própria autoria mediata e a coautoria, bem como a imputação deste crime, a titulo de omissão, a alguém que, tendo um dever jurídico de garante relativamente à pessoa incapaz de resistência, e podendo impedir o abuso sexual sobre esta praticado, nada fez para o evitar. Pois: que razão haveria para que A não pudesse ser considerado e, como tal, condenado como autor mediato ou como instigador deste crime, no caso, p. ex., de prometer a B (que é um adulto inimputável) ou a C (que é imputável) uma determinada quantia monetária, se estes praticarem (porventura na presença do A) actos sexuais de relevo com D, que é uma criança ou um adulto inimputável? - A resposta é: não havia nenhuma razão, nem dogmática nem político-criminal. E o mesmo vale para uma hipótese de coautoria, tal como para um caso de omissão. Só que, neste caso de omissão, é, obviamente, necessário que sobre o omitente recaia o dever jurldico de garante e, de acordo com um sector da doutrina, de que partilho, estar-se-à
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Parte li - Teoria Geral do Crime
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Titulo fI -
diante de uma autoria directa, por omissão. Acrescente-se que, na hipótese de alguém coagir a pessoa - sobre a qual recai o dever de garante relativamente ao incapaz a não impedir que este seja sexualmente abusado por uma terceira pessoa, esse alguém poderá ser considerado como instigador ou até como autor mediato deste crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência. =;
§ 534.
Também, no crime especifico de abuso' sexual de pessoa internada (art. 166. "), é perfeitamente possível a' autoria medíata, a coautoria e a instigação, afirmando-se a comunicabilidade das qualidades ou relações especiais, a que se refere o art. 28."- 1'. Assim, se um director prisional ou o chefe clínico de um hospital, abusando das suas funções, faz com que um preso ou um doente tenha relações sexuais com um seu (do director ou do chefe) amigo, comete o respectivo crime (tal como um patrão, quando se serve da sua superioridade económica para "obrigar" uma sua empregada a praticar actos sexuais com um amigo do patrão - art. 166.°-2). E se os mesmos director prisional ou chefe clínico "obrigassem" uma qualquer pessoa ou mil colega da vítima a praticar actos sexuais com esta, naturalmente que lhe deveria ser imputado este crime como instigador ou, na hipótese de O "obrigado" ser um inimputável, como autor mediato. O mesmo se diga para o caso de os referidos director ou chefe clínico não impedirem que uma outra pessoa (internada ou exterior ao estabelecimento) abuse sexualmente da pessoa internada. Neste caso, director ou chefe clínico (ou qualquer outra pessoa da instituição, sobre a qual recaia o instítucional dever de cuidado para com os internados) seria considerado autor, por omissão, do crime de abuso sexual de pessoa internada, § 535. O caso do crime comum de auto-colocação em estado de inimputabilidade (art. 295°) é mais complicado, na medida em que o respectivo tipo legal exige, naturalmente, uma acção reflexa, i. é, que a acção de beber álcool ou de consumo de drogas se reflicta. no próprio agente, .produzindo a inimputabilidade deste. Por outro lado, exigindo o tipo legal que tal acção (e o consequente resultado de inimputabilidade) seja da responsabilidade (pelo menos, a título de negligência) do agente, é difícil .conceber-se a possibilidade de autoria mediara, pois que esta pressupõe
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293
que o agente directo não tenha o domínio ético-social da acção que pratica - domínio este que, como já o dissemos, o agente tem, pois, caso contrário, a acção de embriaguez ou de intoxicação não seria típica. Daqui resulta que só poderá ser considerado autor aquele que «se colocam em estado de inimputabilidade. Relativamente a este crime, uma vez que, no direito português, a instigação é considerada uma espécie de autoria, parece não ser possível senão a autoria directa. Diferentemente, !lO direito alemão já é possível a instigação, dada esta não ser considerada como forma de autoria, mas de participação, ao lado da cumplicidade. Assim, nos países em que a instigação não seja considerada uma modalidade da autoria, é possível e verosímil, na prática, haver a punição, como instigador, de quem, dolosamente, incentivar a que outrem se embriague ao ponto de ficar em estado de inimputabilidade. Já nos Estados cujos códigos penais (como o nosso) qualifiquem a instigação como uma forma de autoria, o instigador não poderá ser punido como 'tal, pois que isto implicaria considerá-lo como autor de um crime que, por força do tipo legal (que diz «Quem se colocar», e não «Quem se colocar ou for colocado»), só pode ter por autor aquele que a si mesmo se embriaga ou intoxica. Mas o facto de aquele que instiga outrem a que se coloque em estado de inimputabilidade não poder ser punido como instigador (autor-instigador) não impede a sua punição a título de cumplicidade. Esta conclusão fundamenta-se no facto de a instigação ser, sob o ponto de vista material, uma espécie de cumplicidade qualificada (donde parecer mais correcta a posição dos Códigos Penais' que consideram a instigação. como uma modalidade da participação, ao lado da cumplicidade, em vez de a considerarem como uma espécie de autoria); logo, a fortiori, o instigador poderá ser punido como cúmplice deste crime, que só pode ter como autor o autor directo (desde que, por força do art. 27.°-1, haja dolo do instigador-cúmplice e do autor directo). É certo que esta solução, que defende a punibilidade do instigador como tal (nos países onde a instigação não é uma modalidade de autoria, mas de participação) ou como cúmplice (como no caso português), levanta a questão da punibilidade da autoria mediata. Isto é: se' se considera punível o instigador (enquanto tal ou como cúmplice) e o cúmplice, então não é, político-criminalmente, exigível, por maioria de razão, que também deva ser punido o autor medíato que, p. ex., tenha, sub-repticiamente, lançando na bebida
Pane II - Teoria Geral do Crime
294
.de outra pessoa uma substância adequada a colocá-la num estado de inirnputabilidade (durante o qual veio a cometer um tipo de ilícito)? A resposta, sob o ponto de vista político-criminal, é a de que é evi'dente que é mais' merecedor de pena este "autor mediato" do que o simples instigador ou o mero cúmplice. Porém, a verdade é que, tendo .em conta o teor literal do art. 295.° e as exigência do principio da legalidade, a referida pessoa não pode ser punida como autora mediata, pois que neste crime só é possível a autoria directa; nem pode ser punida como cúmplice (ou como instigadora, nos países em que a instigação não é uma forma de autoria), urna vez que o tipo legal do art. 295.° não foi :cometido pelo próprio "autor directo", i. é, por aquele que ingeriu a bebida, dado que, em relação a este, não se pode afirmar qualquer.negligência na "sua autc't-colocação em estado de inimputabilidade, Na verdade, ele não se auto-colocou, mas, sim, foi colocado em estado de inimputabilidade. Logo, este tipo de crime do art. 295." não se verificou .. E, como o CP não prevê o crime de alguém colocar outrem em estado de inirnputabilidade, a conduta deste "autor mediato" ficará impune. Dir-se-á que esta solução coenvolve uma lacuna de punibilidade. O que é verdade; mas é a solução que o respeito pelo princípio da legalidade impõe. Como nota final, diga-se que, relativamente ao crime (cdlícito tipico» praticado pelo que se auto-colocou em estado de inimputabilídade, já é possível, não apenas a cumplicidade, mas também a autoria mediata e a coautoria (50). =:
§ 536. A conclusão final é a seguinte: os chamados "crimes de mão própria" não constituem uma categoria autónoma de crimes; se, no passado, houve razões para autonomizsr e atribuir um regime específico, em matéria de cornparticipação, a determinados "crimes de dever", hoje, a partir da centralização do direito penal no facto e na tutela de concretos bens jurídicos, deixa de haver razão para tratar esses tradicionais "crimes de mão própria" com um regime diferente dos normais crimes específicos; assim, a comunicabilidade das «qualidades ou relações espe-
(50) Cf. TAJPA art. 295.·, § 38
DE. CARVALHO;
Comentário
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tomo II (1999),
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Tuulo fI - O tipo de illcito
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ciais do agente» referida no art, 28,°-1, também é defensável e aplicável aos tradicionais "crimes de mão própria", desde que, obviamente, estes sejam crimes específicos; pode suceder, embora raramente, que a estrutura típica de determinado crime, que tanto pode ser comum como especlfico, não permita a cornparticipação por autoria mediata ou coautoría; mas esta impossibilidade resultará da estrutura formal do. tipo legal, e não da natureza material da própria acção ilícita.
2. Classificação segundo o critério do resultado material
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§ 537. Segundo este critério, os tipos de crime dividem-se em crimes de resultado, comissivos ou materiais e crimes de mera conduta (mera acção ou mera omissão) ou formais .. Nos primeiros, o resultado é elemento do tipo de ilícito (p. ex., homicídio, art, 131.°; furto, art, 203."); donde que o crime só esteja consumado, quando o resultado se produza; em relação a estes tipos legais de crime, levanta-se o importante problema da imputação objectiva do resultado à conduta, que será tratado no capitulo seguinte. § 538. Nos crimes de mera conduta (acção ou omissão) ou crimes formais, o resultado não é elemento do tipo (p. ex., condução de veículo em estado de embriaguez, art. 292.°; omissão de auxílio, art. 200.°). Há que não confundir esta classificação com a classificação dos crimes de dano e de perigo. País, embora, no geral, um crime de resultado ou material (em que é atingido um objecto material) seja também, segundo o critério do bem jurídico, um crime de dano (cujo objecto é o bem jurídico), pode acontecer que um crime material não seja também um crime de dano, mas sim de perigo, como é, p. ex., o caso do tipo legal da contrafacção de moeda, art. 262.°
3. Classificação
segundo
§ 539.
este critério, os tipos de crime distinguem-se
Segundo
o critério
do processo
causal em
crimes de processo típico ou de execução vinculada e crimes de pro~ cesso atípico ou de execução livre. Nos primeiros, o tipo legal descreve a modalidade que a acção tem de assumir (p. ex., crimes de coacção, art. 154.°-1; burla, art. 217. condução perigosa de veículo, art. 291.°). Q
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Teoria Geral do Crime
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O tipo de illcito
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4. Classificação
segundo de acções ilícitas
o critério
da unidade
ou pluralidade
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§ 540. Segundo este critério, há que distinguir entre crimes simples e crimes complexos. Os primeiros são constituídos por .uma só acção ilícita (p. ex., o furto, art. 203.°; o abuso de confiança, art. 205.°). Os segundos são constituídos por mais que uma acção ilícita .. Por exemplo, o roubo, art. 210.°, que é constituído pela acção de subtracção - tal como o furto - ou de constrangimento, e pela acção de violência ou ameaça de violência; a violação, art. 164.°, onde, além da acção .de cópula, etc., contra a vontade da vítima, tem de haver a utilização de violência ou de ameaça. De notar que esta classificação coincide, pelo menos em regra, com a classificação dos tipos de crime em uní-ofensívos e plurlofensívos, classificação esta que é feita com base no critério da unidade ou pluralidade de bens jurídicos protegidos pelo respectivo tipo legal e lesados pela correspondente conduta criminal. Assim, p. ex., no tipo de roubo, art. 210.°, não só está presente e protegido bem jurídico propriedade alheia de coisa móvel, mas também a integridade física ou a liberdade da vítima da lesão do bem patrimonial, ou de terceiro. Também se poderá dizer que, em muitos caos, os tipos de crime complexos (cuja classificação, como vimos, assenta no critério da unidade ou pluralidade de acções) coincidem com os crimes de processo típico ou de execução vinculada (cujo critério é, como se viu, a exigência de determinado processo causal ou modalidade da acção) e com os crimes pluri-ofensivos (critério da pluralidade de bens jurídicos). Assim, p. ex., o tipo de crime de coacção é, simultaneamente, crime de processo típico ou de execução vinculada, críme complexo e
segundo
o critério
da reiteração
ou repetição
§ 541. Segundo este critério, os crimes dizem-se habituais e profissionais. Nestas duas categorias de crimes, é elemento 'comum a prática reiterada de uma mesma acção (p. ex., usura repetida, art. 226.°-4-a)); o elemento típico diferenciador está na circunstância .de, nos crimes profissionais, o agente fazer da reiteração da acção modo de vida, ou seja, uma fonte de rendimentos correntes (ex.: a usura habitual, art. 226.o-4-a)). 6.
Classificações
segundo
o critério
do bem jurídico
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Segundo jurídico
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da intensidade
do "ataque"
ao bem
§ 542. Segundo este critério, os crimes dividem-se em crimes de dano e crimes de perigo. Nos primeiros, é elemento do tipo legal a efectiva lesão do bem jurídica. Exemplos: homicídio, arts. 131.0 e 132.0; ofensas corporais, art, 143.· 5S.; furto, art. 203." s.; coacção, art. 154.° Nos crimes de perigo, o tipo legal apenas exige a colocação em perigo do bem jurídico. § 543. Os crimes de perigo dividem-se em crimes de perigo concreto e crimes de perigo abstracto. Nos primeiros, o tipo legal exige que o bem ou bens jurídicos tutelados tenham sido, efectivamente, postos em perigo, Exemplos: condução perigosa de veículo rodoviário, art. 291.0 Deste -modo, o perigo efectivo é elemento do tipo legal (da. factualidade típica) e, portanto, tem de, no respectivo processo penal, se fazer a prova-de que a conduta pôs, de facto, em perigo o bem jurídico tutelado . Nos crimes de perigo abstracto, o perigo não é elemento do tipo legal e, portanto, não tem de se fazer a prova de que a conduta descrita no tipo colocou em perigo o bem jurídico. O legislador, baseado na elevada perigosidade da conduta, demonstrada pela experiência, considera que tal conduta contém sempre o risco sério de poder lesar ou pôr em perigo o importante bem jurídico protegido pelo tipo. Exemplo: a COl1-
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Parte fi - Teoria Geral do Crime
dução de veículo rodoviário em estado de embriaguez, art. 292." É esta experiencialmenle elevada perigosidade da conduta, juntamente com a grande importância do bem ou bens jurídicos protegidos, que conferem legitimidade constitucional e político-criminal à figura dos tipos de crimes abstractos (á protecção "antecipada" que estes conferem). § 544. Relativamente aos crimes de perigo abstracto, poderão eles descrever condutas que, não sendo em si mesmas consideradas necessariamente reprováveis, podem, quando praticadas num determinado condicionalisrno, não ter a perigosidade que quase sempre têm. Numa tal hipótese, a perigosidade associada, tipicamente, à conduta pode ser objecto de um juizo negativo. Nestes casos, estar-se-à diante de um crime de perigo abstracto-concreto, de que poderá ser exemplo o crime de embriaguez, previsto no art, 295.° Acrescente-se que a comprovação de que, no caso concreto, a conduta não continha a perigosidade pressuposta pelo tipo não constituí um ónus de "contra-prova" a recair sobre o arguido, mas é um poderdever do tribunal incluído no princípio-dever de investigação da verdade material, poder-dever que, obviamente, só existirá nos casos em que se suscitarem dúvidas sérias. 6.2. Segundo o critério da duração da lesão do bem jurídico § 545 .. Segundo este critério, os tipos de crime dividem-se em
instantâneos e duradouros ou permanentes. Os primeiros são aqueles crimes cuja lesão do bem jurídico ocorre num momento, num instante (p. ex., homicídio, art, 131.° 55.; fi.u1q, art. 203.° s.), Os crimes permanentes ou duradouros são aqueles cuja lesão do bem jurídico se pode prolongar por um tempo mais ou menos longo (p. ex., o sequestro, art. 158.°; violação do domicílio, art. 190.°-1). Pode' dizer-se que os bens jurídicos protegidos pelos respectivos tipos legais são indestrutiveis: podem ser afectados (lesados) mas não destruidos. Assim, embora a consumação do crime ocorra com o inicio da lesão do bem jurídico, todavia só termina com a cessação _dalesão. E as consequências jurídico-práticas são importantes: quanto à prescrição do procedimento criminal, o prazo só se conta a partir da cessação da consumação; relativamente à legitima defesa, esta é possível até que cesse
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tipo de ilícito
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a consumação; a comparticipação é possível mesmo depois do inicio da consumação e até à cessação desta; o crime (p. ex., no caso de sequestro) considera-se cometido em Portugal, mesmo que só parte da duração da lesão se tenha verificado em Portugal, etc. § 546. Segundo o critério da unidade ou pluralidade de bens jurídicos protegidos pelo tipo: crimes uni-ofenssivos e plurí-ofenstvos (cf § 540). 6.3. Segundo o critério da natureza pessoal, ou não, dos bens jurídícos
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§ 547. Segundo este critério, os crimes dividem-se em crimes emínentemente pessoais e crimes não eminentemente pessoais. Nos primeiros, o respectivo tipo legal protege, directamente, os bens jurídicos que se reconduzem aos chamados "direitos da personalidade" (vida, integridade fisica, liberdade, honra, etc.). Estes tipos de crime encontram-se no Título I ("Dos crimes contra as pessoas") da Parte Especial do Código Penal. Os tipos de crime não eminentemente pessoais (apesar desta designação parecer residual) protegem uma diversidade de bens jurídicos: patrimoniais (exs.: furto, roubo, burla, dano, insolvência), que constam do Título li ("Dos crimes contra o património"); comunitários (exs.: bigamia, falsificação de documentos, contrafacção de moeda, poluição, atentado a segurança de transporte), que formam o Título IV ("Dos crimes contra a vida em sociedade"); estaduais (exs.: traição à pátria, alteração violenta do Estado .de Direito, coacção de eleitor, suborno, prevaricação, corrupção, abuso de autoridade) que constam do Título V ("Dos crimes contra o Estado"); e universais (exs.: discriminação racial ou religiosa, tortura), contidos no Título III ("Dos crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal") da Parte Especial do Código Penal.
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6.4. Segundo o critério da autonomia ou dependência existente entre os tipos legais que protegem o mesmo bem jurídico
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§ 548. Segundo este critério, temos a divisão em crimes fundamentais e crimes derivados.
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Os primeiros, cuja factualidade típica é menos complexa, constituem como que a estrutura da Parte Especial dos Códigos Penais (exs.: homicídio, art. 131."; ofensa à integridade física, art, 143.°; sequestro, art. 158.°; furto, art. 203.°; burla, art, 217."). Os tipos de crime derivados formam-se, mediante a adição, aos elementos do tipo fundamental, de novos elementos ou circunstâncias, que aumentam ou diminuem o ilícito e/ou a culpa do crime fundamental e, consequenternente, agravam ou atenuam a correspondente pena. Se agravam, chama-se crimes qualificados (p. ex.: homicídio qualificado, art. '132.°; furto qualificado, art. 204.°); se atenuam, chamam-se crimes privilegiados (p. ex.: homicídio a pedido da vítima, art. 134."; ofensa à integridade
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art. 146.").
12." CAPíTULO A IMPUTAÇÃO
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A situação,
DO
À CONDUTA
RESULTADO
a importância
prática
e o sentido
do problema
§ 549. A situação:' corno já foi referido (§ 537), esta questão da imputação objectiva do resultado à conduta (acção ou omissão) tem que ver com os crimes de resultado, nos quais o resultado material é elemento do tipo de ilícito. § 550. A importância prática: dentro da multiplicidade dos tipos de crime de resultado, a questão assume relevância prática sobretudo em relação aos crimes de homicídio e de ofensas corporais. Assim o demonstram os casos jurisprudenciais e os exemplos construidos pela doutrina . § 551. O sentido do problema: determinar a relação que tem de existir entre o resultado típico e a conduta humana (acção ou omissão) para que possa atribuir-se (normativamente) o resultado à acção (ou à omissão, no caso de sobre o emitente recair o "dever jurídico de garante"), de forma a poder afirmar-se que o agente cometeu o tipo de ilícito de resultado e, consequentemente, no caso de acrescer ao ilícito de resultado a culpa do agente, este poder' ser responsabilizado, jurídico-penalmente, pelo respectivo tipo de crime consumado, Está, portanto, em causa, no problema da imputação do resultado, uma questão da ilicitude nos tipos de resultado.
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li.
História
1. A teoria
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das teorias
da causalidade,
sobre
esta questão
das condições
equivalentes
ou da
conditio sine qua non
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da evolução
1.1.
Breve
exposição
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§ 552, Esta teoria surgiu no contexto do positivismo naturalista de oitocentos, tendo sido iniciada por Julius Glaser e' desenvolvida por von