Filosofia e história do nascimento da ciência moderna na Europa por Paolo RossiDescrição completa
EDIÇÃO
PEARSON
HOWARD S. FRIEDMAN M ir ia m W . S c h u s t a c k
Capítulo 1 O que é personalidade?
Personalidade e ciência Dc onde provêm as teorias sobre a personalidade?
Apresentaçãopreliminar das perspectivas Visão geral das oito perspectivas ■ Os aspectos da personalidade poderiam de fato ser separados?
Unta breve história dapsicvlocjia dapersonalidade O teatro e a auto-representação ■ Religião ■ Biologia evoluciontsia ■ Avaliação ■ Teoria moderna
Algumas ejuestões básicas: Inconsciente, self, singularidade, gênero, circunstâncias, cultura Qual é a importância do inconsciente? ■ O que ê o self? m Cada indivíduo exige uma abordagem exclusiva? ■ Existem diferenças entre homens e mulheres? ■ Pessoa versus circunstancia ■ Até que ponto a personalidade é determinada culiuralmente? ■ () conceito de personalidade é útil?
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A personalidade de acordo com o contexto
Ao saírem da aula de química, ao meio-dia, dois estudantes universitários de 19 anos de idade testemunharam um ataque terrorista. Michael ficou pálido e trêmulo, paralisado pelo medo; um sorriso amarelo estampou-se em seu rosto. Sara ofereceu socorro, pedindo aos colegas que tomassem as medidas necessárias. Por que os dois estudantes reagiram de maneira tão diferente? O primeiro, o estudante amedrontado Michael. embora nervoso e introvertido, era um rapaz simpático que estudava programação de computador. Em entrevista posterior, Michael relatou que sempre fora meio tímido, mas esse sentimento havia se intensificado aos 7 anos, idade em que tinha sido sexualmente molestado por seu tio.
A estudante que se encarregou da prestação de socorro — Sara — era uma aluna cordial e animada, cuja meta de estudos era se tornar doutora. Ela comandava o grêmio estudantil feminino. Com o membro de um gru|K> étnico minoritário. Sara sofreu certa discriminação na escola primária, mas seus pais despertaram nela forte compreensão sobre os valores morais, o que veio a estimular vigorosamente suas realizações. Michacl e Sara são igualmente inteligentes e afáveis; porém, quando enfrentam uma mesma situação emergencial, reagem de maneira sensivelmente diferente. Será que poderíamos ter antecipado qual estudante teria oferecido socorro se antes tivéssemos coletado algumas informações sobre sua personalidade? Quando temos informações corretas sobre os indivíduos, podemos predizer seu comportamento de modo razoavelmente preciso e compreender os motivos subjacentes a esse comportamento, particularmente se levarmos em conta a circunstância social em questão. Como estudantes universitários da mesma idade, que compartilham aulas na faculdade, Michacl c Sara têm muito em comum; embora também sejam distintos. Oferecemos uma breve descrição de algumas de suas características e comportamentos, mas o que de lato os diferencia? Que forças psicológicas conferem singularidade a Michael e Sara? Este livro relata o que os psicólogos pensam e sabem sobre a personalidade.
ais fundamentalmente, a psicologia da personalidade levanta a seguinte ques tão: 'O que significa ser uma pessoa?" Em outras palavras: Quão únicos somos como indivíduos? Qual é a natureza do selp Os psicólogos da personalidade respondem a essa pergunta fascinante observando, sistematicamente, como e por que os indivíduos se comportam de maneiras distintas. Os psicólogos da personalidade tendem a evitar reflexões filosóficas ou religiosas abstratas concentrando-se, cm vez disso, nos pensamentos, sentimentos e comportamentos de pessoas reais. Em geral, a personalida de não é estudada em termos de conceitos não-psicológicos, como ganhos e perdas, al mas e espíritos ou moléculas e eletromagnetismo. A personalidade é um subcampo da psicologia. A psicologia da personalidade pode ser definida como o estudo científico das forças psicológicas que tomam as pessoas únicas. Para sermos mais abrangentes, poderiamos di zer que a personalidade tem oito aspectos principais, que, reunidos, ajudam-nos a com preender a natureza complexa do indivíduo. Primeiramente, esse indivíduo é influenciado por aspeitos inconscientes, forças que não estão na consciência imediata. Por exemplo, pode ríamos dizer ou fazer coisas para outras |>cssoas, que nossos pais costumavam dizer ou fa zer para nós, sem dar conta de estarmos sendo motivados pelo desejo de ser semelhantes a eles. Em segundo lugar, o indivíduo é influenciado pelas chamadas forças do ego. que ofere cem um sentimento de identidade ou self. Por exemplo, na maioria das vezes nos esforça mos por manter um senso de domínio e consistência em nosso comportamento. Em ter ceiro lugar, uma pessoa é um ser biológico, com uma única natureza genética, física, fisiológica c temperamental. A espécie humana vem evoluindo há milhões de anos e ainda assim cada um de nós é um sistema biológico único. Em quarto lugar, as pessoas são condi cionadas e modeladas pelas experiências e pelo ambiente ã sua volta. Ou seja, as circuns-
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tâncias à nossa volta, às vezes, nos ensinam a responder de determinada forma, possibili tando nosso crescimento em diversas culturas. A cultura é um aspecto fundamental na de terminarão de quem somos. Hm quinto lugar, as pessoas têm uma dimensão cognitiva. Elas pensam e interpretam ativamente o mundo a seu redor. Diferentes pessoas interpretam os acontecimentos à sua volta de maneira também única. Em sexto lugar, um indivíduo é um conjunto de traços, habilidades e predisposições específicos. Não há como negar que cada um de nós tem deter minadas capacidades e inclinações. Em sétimo lugar, os seres humanos têm uma dimensão espiritual cm relação à própria vida, que os enobrece e os induz a ponderar sobre o signifi cado de sua existência. As pessoas não são meros robôs programados por computador. Elas buscam a felicidade c a auto-satisfação. Hm oitavo lugar, e finalmente, a natureza do indi víduo é uma interação contínua entre a pessoa e determinado ambiente. Se considerados em conjunto, esses oito aspectos nos auxiliam a definir e a compreender a personalidade; são esses os aspectos-tema deste livro.
Personalidade e ciência Os modernos psicólogos da personalidade são científicos quando procuram usar mé todos de inferência científica (lançando mão de evidências sistematicamente reunidas) para testar teorias. Embora uma pessoa possa estar apta a aprender muito sobre personali dade ao ler sobre Raskolnikov, no romance Crime e Castigo, de Dostoicvski. ou ao assistir à peça Hamlet em um festival que homenageia Shakespeare, esses insights só são considera dos científicos quando submetidos sistematicamente a testes. Como demonstraremos, os métodos científicos geraram insights sobre a personalidade não disponíveis para um ro mancista ou filósofo perspicazes. Dizem que o ex-presidente Ronald Reagan e sua mulher. Nancy. usavam a astrologia para julgar outras pessoas. Por que não deveríamos contar com os astrólogos para avaliar a personalidade? Ou por que não ir ao quirólogo mais próximo e deixar que ele fale sobre a sua personalidade lendo as linhas de sua mão? Talvez você devesse optar pela fisiognomonia — a arte de ler as feições de um indivíduo — para avaliar outras pessoas. Será que você poderia fazer inferências sobre a personalidade de pessoas cuja testa é grande? Não. abordagens como essas não funcionam. Todas essas técnicas geralmente são inválidas; elas são tão inexatas ou vagas quanto exatas. Entretanto, por meio do conhecimento proporcio nado pela psicologia da personalidade — teorias clássicas e pesquisas modernas — , respos tas significativas sobre a personalidade são viáveis. Alguns cientistas acreditam que o estudo rigoroso da personalidade deve passar a ser matemático e envolver números — por exemplo, estatísticas tais como as correlações. O coeficiente de correlação é um índice matemático do grau de concordância (ou associa ção) entre duas medidas. Por exemplo, altura e peso estão positivamente correlacionados: na maioria dos casos (mas não em todos), quanto mais alta uma pessoa é, maior é o seu peso. A extroversão e a timidez estão correlacionadas de modo negativo (inverso); saben do que em um teste de extroversão os pontos de determinada pessoa são altos, podemos predizer que ela poucas vezes agirá timidamente. No exemplo mostrado na Figura 1.1, há uma correlação negativa entre o grau de introversão de uma pessoa e a quantidade de encontros com o sexo oposto no último mês. Essas estatísticas ajudam-nos a quantificar as relações.
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Figura U______________ Correlação entre encontros com o sexo oposto e a introversão. Esses datim mostram uma correlação negativa (inversa) entre introversão e encontros com o sexo oposto: em geral, quanto mais introvertida, menos encontros a pessoa terá. No entanto, observe que Candy e muito introvertida, mas ainda assim tem uma quantidade média dc encontros. Essas estatísticas são usadas para avaliar a validade tanto da proporção quanto do constructo da introversão.
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As correlações fornecem informações sobre associações, mas não sobre relações cau sais. Por exemplo, se descobríssemos que pessoas obesas tendem a ser simpáticas, essa cor relação positiva não nos informaria por que essa relação existe. Será que há alguma pre disposição implícita que faz com que determinadas pessoas tendam a comer muito e ainda assim serem felizes? Alimentação lana e excesso de peso tornam uma pessoa mais feliz? Será que as pessoas felizes, por não se preocuparem com a aparência, ganham peso? O u será que as pessoas obesas ocultam a solidão fazendo de conta que sào simpáticas? Ou ou tras pessoas, por acreditarem que os obesos são simpáticos, aproximam-se deles cxiroverlidamente e, por conseguinte, acabam por vê-los como simpáticos? Quais são as relações causais? A investigação científica sobre a personalidade ajuda-nos a desemaranhar essa teia de associações. Explicaremos, ao longo dos capítulos posteriores, os métodos sobre personalidade usados na investigação científica. Conquanto, na realidade, estatísticas como as correlações possam ser extremamente úteis, elas são apenas ferramentas usadas para ajudar a revelar a verdade. A psicologia da personalidade nem sempre tem de ser matemática para ser científica. Neste livro, apresen tamos vários tipos de análise sistemática, além das correlacionais, incluindo estudos de caso (enfoque intensivo sobre um indivíduo), comparações intereuliurais e investigações sobre estruturas biológicas. Se reunirmos os insights dessas ou de outras fontes, poderemos obter uma compreensão profunda e válida da personalidade. Determinada pessoa entendida como sociável poderia, na verdade, estar sendo prepotente? Ela se preocupa com a atração e a satisfação sexual? Seus hábitos de trabalho são bastante adequados ou definitivamente inadequados? As inseguranças parecem origi nar-se de experiências na infância? Ainda que suas metas sejam ambiciosas, há dúvidas sobre a capacidade em alcançá-las? A psicologia da personalidade oferece as ferramentas para começarmos a compreender por que as pessoas são como são.
Dc onde provem as teorias sobre a personalidade? Muitas teorias sobre a personalidade originaram-se dc observações meticulosas c da profunda introspecçâo de pensadores criteriosos. Por exemplo. Sigmund Freud despendeu tempo considerável analisando seus próprios sonhos, que lhe revelaram a extensão dos conflitos e pulsões internos ocultos. Freud foi o primeiro a observar, em seus pacientes, o
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poder das pulsõcs sexuais reprimidas, e transformou essa ideia cm abrangente teoria sobre a psique humana. Partindo dc suposições próprias sobre o conflito relacionado às pulsões sexuais, Freud aperfeiçoou sua teoria para examinar os vários problemas anteriormente observados no desempenho de sua profissão e, concomitantemente, para abarcar os con flitos existentes na sociedade. Sua análise parte de postulados fundamentais sobre a natu reza e a mente, análise essa que pode ser considerada, principalmente, uma abordagem d e d u tiva sobre a personalidade, em que as conclusões sucedem de maneira lógica as pre missas ou suposições. Na dedução, usamos nosso conhecimento sobre "leis“’ ou princípios psicológicos básicos a fim de compreender cada uma das pessoas. Num segundo momento, as teorias sobre a personalidade surgiram direiamente de investigações empíricas sistemáticas. Por exemplo, podemos querer saber que dimensões ou traços básicos (como a extroversão) são essenciais para a compreensão da personalida de. Reunindo várias observações relevantes sobre traços, em diversas pessoas, podemos perceber quais traços são fundamentais e quais são menos importantes, vagos ou redun dantes. Podemos coletar muitos dados sistemáticos de várias pessoas e, à medida que no vos dados forem collhidos, rever, continuamente, nossas conclusões. Essa c uma aborda gem in d u tiva sobre a personalidade porque os conceitos são desenvolvidos com base no que c revelado por observações cuidadosa mente coletadas. A indução parte dos dados para a teoria. Um diagrama esquemático desses processos é mostrado na Figura 1.2. Uma terceira fonte de teorias da personalidade compreende analogias e conceitos em prestados de disciplinas afins. Atualmente, por exemplo, o conhecimento sobre a estrutura e o funcionamento do cérebro humano tem progredido de modo considerável. Vários ti pos de digitalização de imagens do cérebro têm sido empregados. A ressonância magnética (magnetk resonance imaging, M R I) e a ressonância magnética funcional (ÍM R I), por exem plo, usam campos magnéticos, e a tomografia computadorizada usa raios X para obter imagens detalhadas do cérebro vivo (consulte o Capítulo 2). A tomografia de emissão de pósitrons Ipositron emission lomography. PET) pode mostrar a atividade cerebral em anda-
Fújura 1.2_______________________ A natureza da abordagem indutiva versus abordagem dedutiva. A dedução é frequentemente caracterizada como um processo de raciocínio 'de cima para baixo", que parte de generalizações para casos específicos. Na indução, que funciona de maneira oposta, o raciocínio ocorre de 'baixo para cima'.
Quanto mais aprendemos sobre a estrutura e o funcionamento do cérebro por meio de tecnologias como a ressonância magnética (MRl). maior é a nossa compreensão sobre as contribuições biológicas à personalidade.
mento, rastreando, à medida que as pessoas pensam e respondem, os canais por onde a glicose radioativa passa. Essas técnicas, em geral, são aplicadas em pessoas cuja personali dade é anormal — como esquizofrênicos c indivíduos com lesões cerebrais — para investi gar as causas da enfermidade. Alguns modelos de personalidade irão se tornar implausíveis, se forem inconsistentes com o que conhecemos sobre a estrutura e o funcio namento do cérebro. Entretanto, as imagens do cérebro podem sugerir novas maneiras de refletir sobre sua organização psicológica. De forma semelhante, os antropólogos forneceram informações fundamentais tanto sobre a evolução humana quanto sobre as diferenças culturais. Determinados fatos dos se res humanos, como a natureza social, subsistem no tempo e no espaço; as pessoas tendem a viver em grupo — grupos familiares e grupos culturais. Contudo, outros aspectos, como a ênfase sobre a individualidade, tendem a variar sensivelmente de uma cultura para outra. Por exemplo, os americanos têm a tendência de celebrar realizações pessoais e privilégios individuais, enquanto os japoneses valorizam a harmonia e a esquiva à distinção pessoal. Qualquer abordagem bem-sucedida da personalidade deve levar em conta esses fatos an tropológicos. Na prática, quase todas as teorias sobre personalidade abrangem alguns elementos de todas essas abordagens. Todas as teorias desenvolvem-se em parte por dedução, cm parte por indução c cm parte por analogia. Às vezes, surgem mal-entendidos interessantes em decorrência de não se reconhecer esse fato. Por exemplo, mostramos no Capítulo 3 um princípio básico da teoria freudiana segundo o qual os garotos em tenra idade são motiva dos a "livrar-se" do pai e a "casar-se" com a mãe. Diz-se que a solução desse conflito tem efeito direto sobre a personalidade adulta. Prognósticos interessantes sobre a personalida de podem ser deduzidos desse princípio ou suposição. ( ) fascinante é que jovens pais. que frcqüentaram algum curso de psicologia da personalidade, geralmente se surpreendem ao ver o filho de 4 anos avançar para a cama deles, tentar subir c ordenar ao pai que saia! Os pais provavelmente responderão: “Caramba! Freud estava certo!' O comporta mento do garoto é tomado como prova de uma dedução da teoria freudiana. O que os pais deixaram de reconhecer é o uso que Preud fez dessas observações ao elaborar pela primei ra vez sua teoria; portanto, que isso venha a ser observado |>or outras pessoas não será ne nhuma surpresa. (Freud. assim como a maioria dos teóricos da personalidade, era um ob servador experiente.)
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Essa linha dc raciocínio leva-nos a uma importante questão: vários comportamentos serão prognosticados e poderão ser explicados, ao mesmo tempo, por várias teorias sobre a personalidade. Portanto, é difícil afirmar que uma abordagem está totalmente "incorreta*. Nas ciências bem estabelecidas como a física, uma estrutura ou um paradigma teórico, como a teoria da relatividade de Einstein, pode ser arquitetado de forma que ponha por terra, dc uma ve/ por todas, conhecimentos anteriores e uma nova geração de cientistas movimente-se rapidamente para adotar e aperfeiçoar essa nova teoria (K u h n , 1962). A psicologia da personalidade, contudo, não tem uma estrutura onisciente largamente acei ta. Isso quer di/er que tanto as explicações concorrentes dos fenômenos da personalidade devem ser examinadas quanto a psicologia da personalidade é caracterizada por um con junto de abordagens rivais intclectualmente estimulantes. Além disso, algumas teorias são mais aplicáveis a determinados domínios que outras. Por essas razões, mostraremos as potencialidades e as fragilidades de várias abordagens no âmbito do conhecimento da per sonalidade. Uma teoria confiável sem dúvida será abrangente (explicará vários fenôme nos). parcimoniosa (fornecerá explicações simples c concisas), testável (passível de ser tes tada para correção) e produtiva (conduzirá a novas idéias, novos prognósticos e novas investigações) (Campbell, 1988).
Apresentação prelim inar das perspectivas__________ Todo o mundo já ouviu falar das teorias dc Sigmund Frcud c você provavelmente já ouviu falar que, segundo Freud, nos sonhos, os objetos descritos a seguir podem represen tar simbolicamente o pênis: martelos, fuzis, punhais, guarda-chuvas, gravatas (objetos longos peculiares aos homens), cobras e muitos outros. Todos eles são símbolos fálicos. Você com certeza já deve ter ouvido falar que uma pessoa pode sonhar com a vagina como uma trilha através da mata, ou como um jardim, em um sonho no qual uma jovem per gunta ao jardineiro se alguns galhos podem ser transplantados no jardim dela. Se tomadas fora do contexto, essas afirmações não têm nenhum sentido, mas ainda assim Freud in fluenciou grandemente o pensamento do século XX. Tentaremos mostrar por que a teoria freudiana teve tamanho impacto. Vários outros teóricos e pesquisadores da personalidade são bastante conhecidos, mas o melhor e mais moderno entendimento da personalidade provém de uma síntese da investigação psicológica sobre matérias como natureza do self psicobiologia, teorias da aprendizagem, teorias dos traços, abordagens existenciais e psicologia social. Para degus tar o que vem pela frente, eis uma introdução aos conceitos e aos psicólogos que investi garemos. Os principais aspectos das perspectivas a serem cobertas são apresentados na Tabela 1.1.
Visão geral das oilo perspectivas No Capítulo 3. examinaremos os aspectos psicanalíticos da personalidade, concentran do-nos no inconsciente. Curiosamente, na psicologia o estudo sobre o inconsciente mais uma vez passou a ser uma área significativa da pesquisa em andamento. Hoje não há dúvi da de que no cérebro existem subsistemas complexos e ocultos, exatamente como Freud postulou. No Capítulo 4. enfatizamos os aspectos ego ou self da personalidade, reconstituindo conceitos sobre o self desde o trabalho de Alfred Adler sobre o complexo de inferioridade até, precisamente, a moderna teorização sobre personalidade múltipla. As teo-
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Tabela 1.1
O s o ito aspectos básicos d a p e rs o n a lid a d e
Perspectiva
Principal característica
Psicanalítica
Observação das influências inconscientes; importância dos impulsos sexuais mesmo cm esferas não sexuais.
Neo-analítica/ego
Ênfase no self em sua luta para lidar com emoções c impulsos no mundo interior e as exigências de outras pessoas no mundo exterior.
Biológica
Enfoque nas tendências e nos limites impostos pela herança biol<’>gica: pode ser facilmente associada com a maioria das outras abordagens.
Behaviorista
Pode compelir uma análise mais científica das experiências de aprendizagem que modelam a personalidade.
Cognitiva
Captura a natureza ativa do pensamento humano; emprega o conhecimento moderno da psicologia cognitiva.
Traço
Técnicas eficientes de avaliação do indivíduo.
Humanística
Valoriza a natuie/a espiritual da pessoa; enfatiza a luta pela autosatisfação c pela dignidade.
Interacionista
Reconhece que temos diferentes personalidades (selves) em diferentes circunstâncias.
rias sobre como c por que temos uma percepção do self continuam a fascinar os psicólogos (Higglns, 1999). Da mesma forma que as pessoas nascem de diferentes tamanhos, aspectos e cores, elas diferem relativamente entre si no que se refere aos sistemas biológicos. O Capítulo 5 investiga os aspectos biológicos da personalidade, um tópico às vezes negligenciado nos textos sobre personalidade. A característica de um indivíduo de natureza emocional c motivacional. em geral conhecida como temperamento, é influenciada significativamentc por vários fatores biológicos. Esses temas vêm atraindo a atenção de cientistas de vanguar da desde a época dc Charles Darwin. Hoje. novos avanços na teoria da evolução e na com preensão da genética humana estão sendo aplicados na psicologia da personalidade. No Capítulo 6. serão considerados os aspectos bchavioristas e de aprendizagem da personalidade. Partindo do trabalho do behaviorista radical B. F. Skinner, examinamos até que ponto a personalidade pode ser 'encontrada” no ambiente externo. O Capítulo 7 ana lisa os aspectos cognitivos da personalidade, concentrando-se na consistência entre uma pessoa e outra no que tange à percepção e à interpretação tio mundo à sua volta. Como veremos, as abordagens cognitivas estão cada vez mais se associando à psicologia social c transformando-se em abordagens sodocognitivas da personalidade, como as idéias de Albert Bandura sobre a importância da auto-eficácia. No Capítulo 8, são enfatizados os as-
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pcctos traço c habilidade da personalidade. No início do século XX, o psicólogo Gordon Allport, da Universidade de Harvard. desenvolveu quase sozinho abordagens surpreen dentes sobre traços da personalidade, enfoques que desde então passaram a dominar essa área, embora recentemente tenha ressurgido o interesse científico por essas abordagens. Hoje, idéias sobre cinco dimensões básicas de traço fornecem uma moeda única para a re flexão a respeito dos traços da personalidade. Os aspectos humanístlcos e existenciais da personalidade, concentrados na autono mia e auto-realização, são o tema do Capítulo 9. Com base na obra influente de Cari Rogcrs, examinamos o que parece tornar os seres humanos unicamente humanos. Ade mais, o que torna as pessoas satisfeitas? No Capítulo 10, são explicados os aspectos interacionistas pessoa-situação, a mais moderna abordagem sobre personalidade.
Os aspectos da personalidade poderiam de fato ser separados? Dividir o cani|H) da personalidade é a melhor solução? Alguns pesquisadores podem ser evasivos no que se refere a esse esquema de classificação porque todos os brilhantes teóricos da personalidade incluem necessariamente mais de um aspecto da personalidade em seus escritos. Por exemplo, as teorias freudianas têm várias noções biológicas, e Frcud. com certeza, levou em consideração o principal papel desenqrenhado pelas forças de socia lização. Do mesmo modo, B. F. Skinner, o mais importante behaviorista, compreendeu acertadamente a tremenda influência de outras pessoas em nossa vida. a despeito de sua pesquisa concentrar-se no condicionamento de animais em laboratório. Nossa meta neste livro não é colocar teorias complexas cm pequenos compartimentos, mas, em vez disso, fornecer exame meticuloso dos diferentes e significativos tipos de insi^lits sobre a natureza da personalidade, desenvolvidos ao longo do século XX. Qual das perspectivas sobre a personalidade está correta? As pessoas são governadas por traços, hormônios, motivos inconscientes ou nobreza de espírito? Essa pergunta é di ferente da pergunta "Qual das teorias sobre a personalidade está correta?" ou "Que hipótese é a verdadeira?" Teorias e hipóteses são testificáveis e. por natureza, podem ser refutadas. Ou seja, elas são verificáveis. Examinaremos, posteriormente. neste livro, muitas dessas teorias e hipóteses, e mostraremos quais aspectos estão incorretos ou são duvidosos. Po rém. a pergunta que importa aqui é "Qual das perspectivas sobre a personalidade está corre ta?" Essa pergunta é fácil de responder: unias as oitos estão corretas no sentido de que to das oferecem alguns itisicfhts psicológicos importantes sobre o que significa ser uma pessoa. Em outras palavras, podemos tirar proveito do aprendizado das potencialidades (e das fra gilidades) de todas as oito perspectivas. Essa resposta não é uma evasiva ou artimanha. A natureza humana é tremendamen te complexa e necessita ser examinada de várias perspectivas. Na verdade, confiar sobre maneira em uma única abordagem e ignorar os valiosos insiyhts oferecidos por outras perspectivas e investigações científicas é uma estratégia efémera. É fundamental lembrar que cada uma dessas perspectivas enriquece nossa compreensão da personalidade. Entretanto, não é apropriado perpetuar idéias que não são sustentadas por evidencias.
Uma breve história da psicologia dapersonalidade_______ Inúmeras influências científicas e filosóficas que convergiram logo no início do século XX possibilitaram o nascimento da psicologia da personalidade. Siginund Frcud, bastante cons-
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L in h a d o te m p o da histó ria d a psicologia da p e rs o n a lid a d e __________________ Os principais avanços no campo da psicologia da personalidade podem ser vistos aqui, de acordo com a relaçao histórica que tem entre si e segundo seu contexto social e cultural mais amplo.
1859 Charles Darwin publica
Ori$crti das Espécies.
1905 1919 Binet c Simon J. B. Watson funda constroem o primeiro o behaviorismo. teste válido de inteligência.
1900 Sigmund Ficud publica
A Interpretação dos Sonhos. _______________________ 1861 -1865 Década de 1880 Guerra Inicia-se a imigração Civil mactça para os americana. Estados Unidos.
1917 Inicia-se a aplkaçáo do teste de personalidade no Exército * americano. \
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1900-1921 As mulheres reivindicam o direito ao voto.
Década de 50 llcnry Murray desenvolve a pcrsonologia motivacional.
Década dc 1920 Kurt Lcwin Investiga a psicologia da Gestalt cm Berlim; cm 1955 foge dos nazistas para os Estados Unidos. __________ i Década de 20
Ro
1914-1918 Primeira Guerra Mundial.
Déi ada de 1880 Francis Galton começa a avaliar as diferenças individuais.
1906 Ivan Pavlov investiga o condicionamento do sistema nervoso.
1910-1950 Jung. Adler, Hom cy e outros aperfeiçoam a psicanálise*.
Década de 40 Guilford. Cattell e outros reíinam a forma de aplicar os testes r a análise fatorial.
DiVaild dc m o Margarct Mead investiga a personalidade em diferentes culturas.
Década de 50 Década de 40 Grande Dcprcssáo. Segunda Guerra Mundial e rápida expansio no pós-guerra.
1957 Gordon Allport propõe a teoria dos traços.
Década de 40 A filosofia existencial
enraíza-se Década de 50 B. F. Skinner investiga programas de reforço.
nos Estados Unidos. Década de 40
Os psicólogos investigam o fascismo.
ciente desses novos princípios, publicou deliberadamente um de seus principais livros, Die Tratwnicutuny |A Interpretação dos Sonhos], cm 1900 (c nàocm 1899). Por volta da década de 50. estava tomando forma a teoria moderna da personalidade. Portanto, a psicologia da personalidade existe há pouco mais de meio século, ainda que suas raízes remontem a toda a história humana. A linha do tempo mostra a sequência aproximada do marcos vu l tosos na história da psicologia da personalidade e sua relação teni|>oral com eventos m un diais importantes.
I . Ruidosos anos 20: década dc sucesso estrondoso crise.
(kootn especulativo* nos Estados Unidos seguida dc
Capitulo 1
Década dc HO A personalidade e a saúde são estudadas; é estabelecida a psicologia da saúde. Década de 50 Roge rs. Maslow c Allport fundam a psicologia humanfstica.
Década de 70 Múltiplos automonítoração e social são estudados; a teoria clássica esmorece.
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1 Década dc 50 Crescimento das universidades e da classe média.
Década de 50 lnida-sc o restabelecimento
cognitivo na psicologia experimental.
Décjilj de
Década de 70 Movimento pelos direitos das mulheres; expande-se O divórcio.
Década de ó0 As abordagens interacionistas Ipessoa-situação* passam a ser levadas a sério.
Década de 70 Aprofundamento dos estudos sobre diferenças de género,
Década de 2000 A psicologia da personalidade expande-se rapidamente, bem como os interesses por saúde, conflitos étnicos c cultura.
Década de 90 A teoria de cinco fatores torna-se tema central.
Década de H0 Modelos interacionistas modernos emergem.
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Década de 90 Os temas, metas pessoais e trajetória de vida cão estudados ã medida que as teorias tornam-se mais restritas.
i Década dc HO Reflorescimento das empresas corporativas; comercio internacional.
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Década de 80
Observação
das iníluéncia$\ culturais.
Década de 90 O genoma humano é decifrado.
Década de 90 Ressurge o Interesse pelos fundamentos genético e evolutivo da personalidade.
Década de 80 Investigações do *<7/ a partir de uma perspectiva sociocognltiva.
Década de 2000 0 w económico chega ao fim; crescem os conflitos mundiais.
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Década dc 2000 A psicologia da personalidade reúne-se continuamente com a neurodenefta, a biologia evoiurionkta e a psicologia cognitiva.
O teatro e a auto-representação Algumas das raízes da psicologia da personalidade podem ser remontadas ao teatro. Teofrasto, discípulo de Aristóteles, é um dos primeiros criadores conhecidos de esquetes de personagens — descrições resumidas de um tipo de indivíduo que pode ser identificado ao longo do tempo e do espaço, como pessoa vulgar ou metódica ou preguiçosa ou grosseira (Allport, 1961). Os atores romanos e gregos antigos usavam máscaras para mostrar que estavam interpretando personagens diferentes, c não eles mesmos. Isso revelava fascina ção pela natureza verdadeira (desmascarada) do indivíduo. Na época dc Shakespcare, as máscaras praticamente deixaram dc ser usadas, mas havia um tremendo encantamento pelos papéis que as pessoas representavam. Em As You Like li [Cí>/wt> Gostais], Shakespeare observou que 'O mundo inteiro é um palco e todos os homens e mulheres são meramente
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atores". Porém, nessa época, não se duvidava de que o papel do rei ciumento ou d«» aman te rejeitado poderia ser ocupado (interpretado) de modo semelhante por diferentes pes soas. Todo o mundo reconhece e entende os personagens básicos. Haverá, de fato. algo estabelecido por trás dos papéis que as pessoas desempenham na própria vida? No século XX. o teatro deu outro passo imaginativo quando teatrólogos como Luigi Pirandello (I8 6 7 -I9 J 6 ) brincou com a ideia de que os personagens poderiam sair de cena. Por exemplo, um ator poderia sair totalmente do palco (ou do sei de filma gem) e lazer comentários sobre a peça. De uma hora para outra, o personagem parece ter uma realidade própria — o considerado realidade é, na verdade, uma série de ilusões. Ao mesmo tempo, os filósofos sociais começaram a levar em conta a idéia do self relativo — isto é, não há nenhum self subjacente c nenhuma máscara visível, mas. ao contrário, o self “verdadeiro" consiste simplesmente em máscaras (Hare & Blumberg, 1988: G. Mea d, 1968). Em outras palavras, essas reflexões do século XX desafiaram a idéia de que há al gum self ou personalidade central a ser descoberto. Todas essas noções teatrais foram subsequentemente abordadas na psicologia da per sonalidade. em especial quando se tentou compreender a importância da circunstância so cial. Essas idéias, além disso, influenciaram os psicólogos existenciais e humanistas que es pecularam sobre o que significa ser um "ser humano". Contudo, onde o teatro oferece imijfhts temporários, a psicologia da personalidade procura princípios científicos perma nentes e universais.
Religião Outros aspectos da psicologia da personalidade podem ser reconhecidos nas idéias re ligiosas. A tradição judaico-cristã ocidental assevera que o gênero hum ano foi criado à imagem de Deus e desde o princípio enfrentou tentações e conflitos morais. As pessoas cumprem um propósito divino e lutam pelo bem e contra o mal. Nessa tradição, a nature za das pessoas é principalmente espiritual — um espírito habita o corpo enquanto ele exis te na Terra. Esses conceitos desestimulam e até mesmo impedem uma análise científica da personalidade, pois consideram as pessoas não como parte da natureza, mas como pane da ordem divina. Ao mesmo tempo, as filosolias e religiões orientais enfatizam a autoconsciência e a auto-realização espiritual por meio de técnicas como a meditação. Muita atenção tem sido direcionada igualmente aos estados alterados de consciência (como o transe). Aqui. tam bém, há pouco espaço para a objetividade. Essas preocupações orientais com a consciên cia, a auto-realização e o espírito humano passaram a desempenhar papel fundamental em determinados aspectos da teoria moderna sobre a personalidade. Essa influência é mais claramente observada no trabalho de psicólogos humanistas e existenciais como Abraham Maslow, embora o pensamento oriental também tenha influenciado psicólogos seminais da personalidade do porte de C. G. Jung. Hoje. contudo, em sua maioria, as pesquisas u ni versitárias sobre a personalidade estão mais voltadas ao campo da ciência positivista m o derna do que para temas espirituais. As influências religiosas sobre as concepções ocidentais da natureza humana começa ram a desgastar-se na Renascença, especialmente durante o século XVII. Na década de 1600, observamos, nos escritos de filósofos como Descartes, Spinoza. I.eibnitz e seus segui dores, discussões sobre a mente e o corpo, emoção e motivação, percepção e consciência. A natureza do espírito humano não foi tomada como certa, mas analisada e observada.
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Esse tema continuou a ser desenvolvido nos dois séculos seguintes. Na teoria moderna da personalidade, essas influências apresentam-se como assuntos relacionados com a integração e a unidade da personalidade individual. Elas são também observadas em expe riências de integração do conhecimento biológico e psicológico — a mente e o corpo. No Capítulo 12. tecemos considerações sobre idéias relacionadas à espiritualidade e bem-es tar, em termos do conceito sobre a personalidade que se autocura.
Biologia evolucionista As influências mais diretas sobre a moderna psicologia da personalidade podem ser re montadas aos avanços nas ciências biológicas durante o século XIX. Por que alguns animais como os tigres são agressivos e solitários, enquanto outros, como os chimpanzés, são sociá veis c cooperativos? Que características os seres humanos compartilham com os outros animais? O maior avanço no pensamento biológico, no século XIX, foi a teoria da evolu ção. Charles Darwin, baseando-se em idéias propostas por outras pessoas, afirmou que as características individuais que evoluíram foram aquelas que permitiram ao ser vivo trans mitir os genes aos descendentes. Os indivíduos que não se adaptassem bem às exigências do ambiente em que viviam não conseguiriam sobreviver para reproduzir. Um forte im pul so sexual, por exemplo, tinha valor adaptativo; naqueles que não o tinham, a probabilida de de que reproduzissem era menor. Do mesmo modo, determinada quantidade de agressividade e certo tipo de cooperatlvidade social poderiam demonstrar-se adaptativos. Os animais que pudessem dominar outros quanto à comida ou aos companheiros, e aque les que pudessem cooperar com outros para garantir sua segurança, sobreviveriam e trans mitiriam seus genes. Esse enfoque sobre a Iunção — isto é. a utilidade do comportamento — continuou sendo um importante aspecto do nosso pensamento acerca da personalidade. Entretanto, a principal contribuição da teoria da evolução darwiniana para a psicolo gia da personalidade foi a maneira pela qual ela libertou o pensamento das suposições de
Embora os animais de estimação possam ser submetidos a testes de personalidade, os donos podem descrever a ‘'personalidade' deles — a maneira pela qual eles se comportam como indivíduos, e não simplesmente como cachorros e gatos.
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Teorias da personalidade
controle divino. Sc admitirmos que uma força divina tem total controle sobre a atividade humana, poderemos concluir que há pouca razão para procurar outras influências sobre o indivíduo. Quando já não havia dúvida de que as pessoas estão sujeitas às leis da natureza, os cientistas começaram a estudar o comportamento humano sistematicamente. Por todos os aspectos, as idéias evolucionistas exerceram influência considerável sobre o estudo da personalidade no século XX. Um corolário poucas vezes mencionado da doutrina darwinista é o de que outros ani mais, especialmente outros primatas, podem ter alguns dos elementos da personalidade. Isso não c nenhuma surpresa para os que têm animais de estimação, pois com frequência eles descrevem a personalidade de seu cachorro, gato ou cavalo. Porém, até pouco tempo, os psicólogos da personalidade haviam conduzido pouquíssimas pesquisas sobre a perso nalidade dos animais. Obviamente, não podemos pedir aos animais que reflitam sobre sua própria mente, mas pesquisas nesse campo poderíam nos ajudar a pensar sobre novas for mas de avaliar e conceitualizar a personalidade humana. Esse assunto é tratado no quadro Personalidade dos Animais, o primeiro dos quadros da série D o clássico ao co n te m p o râ neo. que ilustra como os conceitos teóricos clássicos na psicologia da personalidade abri ram caminho j>ara a investigação empírica moderna.
Avaliação Atenção! O propósito deste exame é verificar quanto você é capaz de se lembrar, refletir e executar o que lhe é solicitado. Não estamos procurando pessoas desequilibradas. O intuito é ajudar a descobrir o que você está mais apto a lazer no Exército. Assim começavam as instruções para um teste administrado a mais de um milhão de jovens americanos do sexo masculino quando os Estados Unidos entraram para a Primeira Guerra Mundial, em 1917 (Yerkes, 1921). Os americanos tinham uma tarefa a realizar e acreditavam que poderiam executá-la mais adequadamente se avaliassem as pessoas da mesma forma que testavam uma máquina. Essa abordagem prática e empreendedora da psicologia americana foi responsável por uma perspectiva distintiva no estudo sobre as di ferenças individuais.
A Primeira Guerra Mundial assistiu ao primeiro uso em larga escala de lestes psicológicos gue pretendiam eliminar supostos ' indesejáveis" de posições da elite e nomear alistados ao serviço militar para unidades apropriadas ao perfil de cada um.
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bo clássico ao contemporâneo
Personalidade dos animais A psicologia cia personalidade começou a se
classificações confiáveis (que podem ser reprodu
desenvolver no fim do século XIX. depois que
zidas) e classificações válidas (que somente se con
Charles Danvin tornou pública a teoria da evolu
centram no traço em questão). Os animais podem
ção. Darwin revolucionou a biologia, bem como as concepções sobre a natureza humana, propondo
também ser submetidos a testes experimentais
que todas as espécies, incluindo os seres humanos,
circunstâncias (como cm situações de competição
teriam evoluído durante milênios, na medida em
por comida). Os especialistas acabam de fato con
que aqueles organismos que mais se adaptassem
cordando nas classificações da personalidade dos
ar» respectivo meio seriam capazes de sobreviver e
animais, cspedalmcnte em determinadas dim en
reproduzir.
sões básicas (Gosling, 2001 1.
Por muitos anos, o principal impacto que esse estudo exerceu soba- a psicologia da personalida de foi o de ter eximido os cientistas de refletir so
para codilicar como eles reagem em determinadas
Que traços são confiáveis e comumente classi ficados nas investigações sobre os animais? Uma
bre a natureza humana segundo uma abordagem
análise reconsiderou 19 estudos sobre fatores da personalidade em várias espécies não-humanas
científica. Por exemplo, Signumd Freud (que es
(chimpanzés, gorilas, macacos, hienas, cachorros,
tudou a teoria da evolução na escola de medici
gatos, asnos, porcos, ratos,
na) teve oportunidade de pôr cm discussão ins
termos de dimensões básicas comumente usadas
tintos que evoluiram, ocultos, v ib a mente cons
nas investigações humanas sobre a personalidade.
ciente. Gordon Allpori, por sua vez, foi capaz de
Os resultados desses estudos revelaram que as d i
guppia*
e polvos) ent
postular subsistemas biológicos que. de alguma
mensões básicas extroversão, neuroticismo (ansie
forma, manifestam-se em traços de personalida
dade) e amabilidade apresentam a generalidade
de comuns. Posteriormente, neste livro, veremos
mais marcante entre diferentes espécies (Gosling
que a teoria evolucionista tem várias implicações
& John, 1999). (I-:. assim como nas pessoas, a ex
na psicologia da [»ersonalidade (e é muito susce
troversão é a mais fácil de ser classificada de m a
tível de ser empregada indevidamente). Porém, para ilustrar como as teorias clássicas podem m o
neira confiável.) Além disso, os animais extrover tidos e sociáveis de fato parecem ter interações
delar a atual pesquisa sobre a personalidade,
melhores e mais frequentes com seus pares. Desse
consideremos aqui o exemplo da personalidade
modo. talvez faça sentido, do ponto de vista cien
dos animais.
tífico. descrever seu cachorro como sociável, cal mo e dócil e o cachorro do vizinho como tímido,
Nós. em geral, gostamos de falar sobre nossos cachorros, gatos e mesmo peixes usando termos como dócil, agressivo, inteligente, empático e as
neurótico c indigno de confiança. A título de observação, não conseguimos dei
sim por diante. Contudo, seria essa atitude sim
xar de mencionar que. além do Dr. Gosling (cuja
plesmente antropomorfista? Isto é. será que esta
obra nós citamos), Robin Fox e Lionel Tiger são
mos sendo tolos em ver traços humanos em a ni
dois outros eminentes estudiosos nessa área.
mais de estimação? A pesquisa moderna sobre a personalidade nos permite começar a responder perguntas como essa. Por exemplo, tendo em vista que os animais não podem lalar sobre si mesmos ou autoconccituar-sc. estudos sobre a personali dade dos animais passaram a empregar classifica ções de traço (julgamentos) leitos pelos seres h u manos. Felizmente, as pesquisas soba- a personali dade ensinaram os pesquisadores a conceber
L E IT U R A A D IC IO N A L Gosling, S. D. *Fron> Micc to Men: YVhat Can Wc I.carn about Pcrsonality from Animal Research?” /27:45-8í>.
Piyílu>liK)kal Bulletin.
2001.
ff
Gosling. S. D. Jonh, O. P ‘ Personality Dimcnsions in Nonhuman Animais: A Crossspccics Rcvicvv”. Stf«K*,$(1):69-75, 1999.
Current Dinctiom in Psyihoh-ykal
2. Peixe pequeno do mar das Antilhas, de colorido brilhante, que recebeu esse nome em homenagem a Lechmère Guppy. o primeiro a oferecer espécimes ao Museu Britânico (N . da T.).
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Grande parte da investigação psicológica sobre a personalidade apóia-se cm estratégias de combate usadas em tempo de guerra, ou por esforços utilizados cm tempo de paz. na de fesa de fronteiras. Ainda hoje, as forças armadas americanas empregam centenas de psicó logos para conduzir pesquisas e aplicar testes em seu contingente. O propósito continua sendo precisar e destinar soldados e marinheiros para vagas adequadas, visando uma ‘'m á quina' militar bem-ajustada. Em 1917. o Exército americano estava mais preocupado em distinguir os possíveis imbecis e em identificar candidatos com tendência a fraquejar em circunstâncias estressantes. Por exemplo, uma determinada avaliação faz a seguinte pergunta aos recru tas: 'Você se sente como se estivesse no fim da linha quando está em lugares altos?' (Woodworth, 1919). !• esse tipo de questionário que contribui para a elaboração de m o dernos testes de personalidade. ( ) desenvolvimento dos testes do Exército americano sofreu a influência dos psicó logos Lewis Terrnan, da Universidade de Stanford, e Robert Yerkes, da Universidade de Harvard, que estavam interessados principalmente no teste de inteligência. Essa foi a ocasião em que os testes mentais foram usados maciçamente. Ambos aclamaram o gran de sucesso de seus testes. Imaginaram inúmeras possibilidades de uso futuro para eles. como o pcnciramcnto cm massa de estudantes visando a identificar aqueles que se tor nariam a futura elite da sociedade. Infelizmente. esse tipo de avaliação também prepa rou terreno para o uso de testes tendenciosos. pelos aplicadores de testes, para discrimi nar de maneira injusta grupos menos favorecidos. Por exemplo, os imigrantes do norte da Europa (cuja cultura estava mais afinada com os testes americanos) foram identifica dos como os mais 'inteligentes'. Aqueles cuja pele era mais escura, que já haviam sofri do discriminação desmedida tanto educacional quanto social, foram considerados inferi ores pelos testes. Capacidades como inteligência e criatividade são, com frequência, separadas da per sonalidade. por se acreditar que estejam mais relacionadas às “aptidões", como a força físi ca, do que com 'traços', como a extroversão. Entretanto, na medida em que as capacida des intelectuais são essenciais à composição psicolé>gica de um indivíduo, elas deveriam ser consideradas parte da personalidade. Por razoes práticas, as infindáveis informações dispo níveis sobre inteligência não podem ser totalmentc incorporadas cm nossa análise sobre a personalidade. Contudo, incluímos algumas informações relevantes neste livro. O conhecimento sobre avaliação e mensuração, aplicado à personalidade por psicometristas como J. P. Guilford (Guilford. 1940). não demorou muito para ser agnipado aos insiijlus provenientes de estudos clínicos (terapêuticos) e a abordagens desenvolvidas na psicologia experimental para formara base da teoria c da investigação moderna sobre a personalidade.
Teoria moderna A teoria moderna sobre a personalidade, que começou a tomar forma na década de 30. foi grandemente influenciada pelo trabalho de três homens — Gordon Allport. Kurt Lewin e Henry M urray. Allport. exímio conhecedor de filosofia e filologia clássica, devo tou sua atenção à singularidade e à distinção do indivíduo. Ele definiu a personalidade como 'a organização dinâmica dos sistemas psicofísicos dentro do indivíduo que determi nam sua adaptação pessoal ao respectivo ambiente' (1937, p. 48). Valendo-se dos estudos do psicólogo e filósofo William James. Allport rejeitou a idéia de experimentar dividir a
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personalidade em componentes básicos (como sensação ou impulsos inatos) c procurou identificar a organização subjacente à singularidade de cada pessoa. Ktirt Lcwin destacou-se na tradição gestaltista. na Europa. Os psicólogos gestaltistas enfatizaram a natureza integrativa e ativa da percepção e do pensamento, sugerindo que o todo pode ser maior que a soma de suas partes. Por exemplo. Wolfgang Kohler. um dos pioneiros da Gesiah. oferece como exemplo a tentativa de memorizar uma relação de pares de substantivos, como lago-açúcar, porta-malas-chapa e garota-canguru. Kohler observa que essas palavras não são normalmente associadas entre si. mas que emparelhadas são mais fáceis de memorizar. A explicação da Gesialt c a seguinte: 'Q uando leio essas pala vras, posso imaginar, como uma série de imagens incomuns, a maneira pela qual um tor rão de açúcar pode dissolver-se cm um lago, um porta-malas apoia-se cm uma chapa, uma garota alimenta um canguru. Se isso ocorrer durante a leitura de uma série, conhecerei na imaginação inúmeras totalidades que, embora um tanto quanto incomuns, são bem orga nizadas" (Kohler, 1947, p. 265). Essa ênfase da totalidade imaginada pela pessoa quando se depara com uma situação exerceu tremenda influência sobre Lcw in e. subsequente mente, sobre a personalidade e a psicologia social. A abordagem de Lcwin, assim como a de Allport, era dinâmica, na medida em que procurou identificar sistemas subjacentes ao comportamento observável. Lcw in voltou sua atenção para a ‘ situação momentânea do indivíduo e a estrutura da circunstância psi cológica“ (1935, p. 41). Em outras palavras. Lewin enfatizou que as forças que influen ciam uma pessoa mudam de tempos em tempos e de uma situação para outra. As teorias modernas da personalidade adotaram essa ênfase sobre a condição atual de uma pessoa em determinada circunstância. O terceiro principal escultor da teoria moderna sobre a personalidade foi Henry Murray. Ele dedicou grande parte de sua carreira à Clínica Psicológica de Harvard. onde pôde empreender experiências para integrar questões clínicas (problemas de pacientes reais) com questões teóricas e de avaliação. O que é mais importante. M urray acreditava em uma diretriz mais abrangente, que abarcasse estudos longitudinais — sobre as mes mas pessoas ao longo do tempo. Ele optou por uma abordagem ampla da personalidade, definindo-a como o 'ra m o da psicologia que se preocupa principalmente com o estudo sobre a vida humana c os fatores que influenciam seu curso. |c) o qual investiga as dife renças individuais' (1938, p. 4). A ênfase de M urray sobre o estudo das características significativas da vida de cada pessoa levou-o a preferir o termo 'personologia' a 'personalidade"; os psicólogos moder nos, que estão se aprofundando nos princípios de Murray. na maioria das vezes se autodenominam ‘ personologistas". Murray, igualmente, enfatiza a natureza integrativa e dinâmica do indivíduo como um organismo complexo que responde a um ambiente espe cífico. Além disso, ele ressalta a importância das necessidades e das motivações, ênfase essa que se mostrou muito influente. Em resumo, Allport, Lewin, M urray e seus colegas prepararam o terreno para a teoria moderna sobre a personalidade, ressaltando que o ser humano como um todo c que deve ria ser o foco dos estudos, e não partes de sua essência ou grupos de organismos. Toda pes soa. a cada momento, em circunstâncias distintas, é um conjunto único de forças psicoló gicas relacionadas que, juntas, determinam as respostas do indivíduo. Em outras palavras, uma abordagem promissora não pode ignorar a integridade do indivíduo ou as várias for ças — conscientes e inconscientes, biológicas e sociais — operantes em um determinado instante. Esse é o ponto de vista moderno sobre a personalidade.
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Discretamcnte contrárias a essas ideias então cm desenvolvimento encontravam-se as novas teorias sobre a aprendizagem de Clark Hull e seus companheiros de estudo da U n i versidade de Yale e as teorias behavioristas de B. F. Skinner e seus colegas da Universi dade de Harvard. Essa oposição acabou levando a uma discussão estimulante, pois ajudou a refinar idéias modernas sobre a natureza humana. Na década de 50. influente — embora não tão atuante sobre a psicologia da persona lidade quanto deveria ter sido — foi o surpreendente estudo da antropóloga Margaret Mead. Em seu livro Sex and Temperawent in Three Primitive Societies \Sexo e Temperamento em Três Sociedades Primitivas]. Mead mostrou que a masculinidade não estava necessariamente associada com a agressividade, e que a feminilidade não estava necessariamente associada à coopcratividadc. Para ela, ao contrário, a personalidade era sobremaneira influenciada pela cultura. De acordo com Mead, Neste ponto, consideramos em detalhe as personalidades aceitas de cada sexo entre /.../ os pows pri mitivos Descobrimos que os Arapesh — tantos os homens quanto as mulheres — exibem uma perso nalidade que. à parte de nossas preocupações historicamente limitadas, chamaríamos de maternal no que diz respeito às suas características parentais e femininas em seus aspectos sexuais. Descobri mos que os homens, assim como as mulheres, aprenderam a ser cooperativos. responsivos às necessi dades e exigências alheias. Não identificamos nenhuma idéia de que o sexo era uma força impulsionadora poderosa tanto para os homens quanto para as mulheres. Em contraste marcante com essas atitudes, descobrimos entre os Mundugumor que tanto os homens quanto as mulheres desenvotveram-se como indivíduos cruéis, agressivos e afirmativamente sexuais, exibindo um mínimo de aspectos maternos de afeição da personalidade considerados mínimos. (1955, p. 190) As investigações de Mead demostraram, inequivocamente, que a personalidade não deveria ser estudada cm uma única cultura ou em um único contexto. Mead. além disso, pôs abaixo vários mitos da natureza do homem comparada à natureza da mulher, bem como idéias sobre a agressividade sexual inata e imutável. Infelizmente, as experiências instrutivas de Mead foram, cm geral, ignoradas por pesquisadores da personalidade. A psi cologia americana quase sempre negligenciou a importância da cultura na conformação da vida das pessoas (Hetancourt & Lopcz. 1995). Neste livro, tentamos ser especialmente sensíveis a questões culturais; essa atitude é uma prática científica saudável.
Ajuntas questões básicas: iMCcnscienfe, self, ciwju/aricfac/e, gênero, circunstâncias, cu/tura___________ Algumas questões no estudo da psicologia da personalidade surgem e ressurgem em diferentes momentos c cm diferentes teorias; elas são fundamentais à compreensão da personalidade. Várias delas são introduzidas nas seções que se seguem.
Qual é a importância do inconsciente? Você já deve ler observado que alguns amigos ou parentes do sexo masculino sentemse atraídos c casam-se com mulheres que se parecem com a mãe deles. Obviamente, os ho mens. em sua maioria, não pretendem de modo consciente encontrar mulheres que se parecem com as próprias mães. Algumas vezes, contudo, percebemos que somos in-
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fluenciados por forças internas das quais não temos consciência ou então podemos sentir impulsos internos que não entendemos. Entretanto, as pessoas em geral são consideradas responsáveis por suas ações. Com exceção do insano, esperamos que elas saibam o que es tão fazendo e por que agem de determinada forma, ou seja, que ajam conscientemente. Desse modo. deparamo-nos com o dilema dos determinantes conscientes versus inconscien tes do comportamento. A psicologia da personalidade empenha-se por compreender como e até que ponto as forças inconscientes desempenham um papel no comportamento humano.
O que é o self? Cari Jung disse que o "encontro de duas personalidades é como o contato de duas substâncias químicas; se houver uma reação, ambas serão transformadas' <1933, p. 57). Será que deveriamos conceber o self como uma substância química complexa ou (como Jung algumas vezes o chamou) como um espírito? Que importância têm as influências so ciais sobre o self? Estaria o self de fato mais afinado com a idéia de Cari Rogers. a de um conjunto de percepções sobre as características do 'e u ' que tenta satisfazer seu potencial humano? Seria o sentimento do self simplesmente um epifenómeno inconsequente, ou uma percepção secundária proveniente de outras forças (como Impulsos biológicos), que de fato importa? O que é a essência do que somos? Tinias essas perguntas são questões le gítimas na psicologia da personalidade.
Cada indivíduo exige uma abordagem exclusiva? Até que ponto podemos aplicar métodos gerais a todas as pessoas? Ou será possível, e mesmo necessário, usar uma abordagem exclusiva para as qualidades especiais de cada um dos indivíduos? A ciência, por natureza, procura leis universais. Portanto ela é, com fre quência, n o m o té tica , isto é. ela procura formular leis (do grego nómos. que quer dizer 'le i', e theric, 'form u la r'). No entanto. Gordon Allport afirmou com muita certeza que um aspecto fundamental do estudo sobre a personalidade deve concentrar-se no indivíduo e. portanto, ser idiográfico — envolver o estudo de casos individuais (do grego idio. de "par ticular, pessoal, distinto"). Certamente, faz sentido usar uma análise biográfica vigorosa para compreender uma pessoa, mas toda biografia é diferente. Portanto, como podemos generalizar? Esse dilema continua sendo um desafio significativo. Há muitos anos. Allport lamentou-se do fato de a maioria dos livros-textos introdutórios de psicologia incluir (desleixadamente) um capítulo sobre personalidade, em geral na parte final, que ignora ou deixa de capturar a individualidade vital e dinâmica de cada ser humano. Os pesquisadores estavam tão preocupados em ser científicos que ignoraram os aspectos mais interessantes (mas complexos) da personalidade. Esse problema ainda persiste.
Existem diferenças entre homens e mulheres? Quais são as diferenças existentes entre os homens e as mulheres c de onde elas pro vem? Ú óbvio que as diferenças sexuais básicas são as anatómicas, claramcntc determina das por genes antes de nascermos. De que maneira, porém, vamos interpretar as várias di ferenças psicológicas que surgem entre homens e mulheres, em nossa sociedade? Por que os homens na maioria das vezes parecem mais agressivos, dominantes, anti-sociais e aptos a executar tarefas matemáticas e espaciais? Por que, em geral, as mulheres se relacionam mais socialmente, são mais propensas à depressão e mais afetuosas e atenciosas? Quem
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tem maior impulso sexual e quem controla 05 confrontos sexuais e por que? Hssas indaga ções fascinantes são básicas para o estudo da personalidade e foram tratadas por quase to dos os teóricos da personalidade. Embora não ofereçamos nenhuma resposta simples a es sas perguntas, apresentamos um exame complexo e ponderado sobre questões relevantes.
Pessoa versus circunstância Desde o princípio da teoria moderna sobre a personalidade, no início do século passa do, inconsistências no comportamento de todos os indivíduos têm sido satisfatoriamente identificadas (W oodworth, 1934). Um indivíduo cujo comportamento c extrovertido cm determinado dia pode apresentar-se de maneira introvertida em outro, em circunstância diferente. Além do mais, desde a década de 20, estabeleceu-se que alguns indivíduos são muito mais consistentes do que outros (Hartshomc ff May, 1928). Por exemplo, algumas crianças quase sempre agem com autenticidade, mas as respostas de outras variam um bocado. Se pessoas extrovertidas podem agir como as introvertidas, ou se pessoas autênticas podem lalscar, que sentido há em se lalar sobre personalidade? Como podemos levar em conta o fato de todas as pessoas serem influenciadas, pelo menos em parte, pelas circunstâncias? Essas questões, abordadas de várias maneiras, sào consideradas ao longo deste livro.
Ate que ponto a personalidade é determinada culturalmente? O poeta Walt W hitman assim escreveu: “t: a personalidade nata, e apenas ela, que dota uma pessoa de autoconfiança para ficar diante de presidentes ou generais ou em qual quer grupo distinto — e não a cultura ou qualquer outro conhecimento ou inteligência' <1871, Democratic vistas). Essa afirmação resume a opinião de que a personalidade é inata — que nascemos com determinado temperamento e caráter c que sempre seremos dessa forma. Obviamente, há também um bom motivo para acreditar que as crianças são influen ciadas pelo ambiente e pela cultura em que crescem. Com o veremos, embora a relação nature-nurture seja tremendamente complexa, no momento temos â disposição várias respostas. Não é necessário tergiversar ou asseverar que a personalidade é parte inata e parte culturalmente determinada. Em vez disso, vamos averiguar que partes da personali dade são rclativamente fixas e quais são mais variáveis.
O conceito de personalidade é útil? O conceito científico de personalidade é vantajoso para a compreensão do comporta mento hum ano ou apenas ilusão, equívoco da causalidade? A maioria de nós provavel mente já recebeu cartões de amigos íntimos com mensagens envaidecedoras como esta: Não í por seu nome ou conhecimento Ou pelas grandes coisas que vocêfez. Não é seu amparo que 0 toma 0 melhor dos amigos que tive. Não é com a sua inteligência que conto. Ainda que você seja igualmente atencioso e virtuoso. É 0 que você í que 0 torna um amigo muito especial.
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Essas frases admitem que há alguma essência interior que nos torna o que somos. Infelizmente, idéias como “pessoalidade” são vagas e enganosas. Por exemplo, os namorados geralmente se chocam quando descobrem que seu parceiro, cuja essência eles conhecem tão hem. na verdade já se envolveu com crimes, já cometeu adultério ou já foi uma pessoa agressiva. Além disso, as tentativas de capturar essa essência íntima na maioria das vezes demonstram-se cientificamente infrutíferas. As pessoas são criaturas complexas, e é im portante evitar ilusões simplistas ou opiniões precipitadas sobre a personalidade. Isso significa que deveríamos abrir mão do estudo científico sobre a personalidade? Dc forma alguma. Com o iremos mostrar, as várias técnicas científicas usadas para inves tigar e compreender a personalidade estão entre as mais sofisticadas em qualquer ti|M> de ciência. Além dessas questões básicas da psicologia da personalidade, há várias questões inte ressantes em voga na pesquisa moderna sobre a personalidade. Os atuais pesquisadores não estão elaborando novas e grandiosas teorias sobre a personalidade. Em vez disso, estão tentando responder a questões já levantadas, como o papel desempenhado pela personali dade na saúde c enfermidade física, no casamento c no divórcio. Será que há uma perso nalidade propensa a doenças ou que se autocura? Haverá daquelas que virão a ser bons amantes ou bons parceiros conjugais? As respostas a essas perguntas, abordadas posteriormente, acabaram por se revelar extremamente complexas.
A personalidade de acordo com o contexto__________ Nas décadas dc 30 e 40, os psicólogos americanos estavam investigando a personali dade autoritária, um tipo de personalidade excessivamente masculina, fria e dominadora que tendia a se tornar fascista e perseguir membros de outros grupos. Nesse mesmo perío do, os psicólogos fascistas (nazistas) alemães estavam investigando o antítipo — pessoas que tendiam a ser fracas, liberais, espalhafatosas e efeminadas (Brovvn, 1965). O que os americanos consideravam inflexibilidade era denominado estabilidade pelos alemães. O que os alemães consideravam excentricidade era denominado individualidade pelos ame ricanos. O que os alemães consideravam perversão era para os americanos sensibilidade estética. Sem dúvida, os nazistas eram inegavelmente destrutivos e assassinos, enquanto os americanos dessa época buscavam com afinco promover a liberdade e a segurança. Além disso, é interessante notar de que forma as observações sobre a personalidade pude ram. sobremaneira, ser influenciadas pelos contextos culturais nos quais foram obtidas. Hoje, grande parte da pesquisa sobre a personalidade tem um sabor peculiar da cultu ra ocidental, no geral, e da cultura americana corrente, no particular. Os pontos de vista próprios das culturas asiática, latina, africana e ameríndia são negligenciados com muita frequência. Na sociedade americana, por exemplo, os indivíduos que decidem 'fazer as coisas do seu jeito", desafiando as expectativas convencionais das empresas para as quais trabalham, ou do governo em geral, tendem a ser vistos positivamente como assertivos e independentes (e até corajosos). Na sociedade japonesa, entretanto, o mesmo comporta mento seria considerado rude, não cooperativo, egoísta e anti-social. Em outras |>alavras. nossas explicações sobre o comportamento humano dependem do contexto cultural cm que foram tomadas. Um pouco de tendendosidade é inevitável. Neste livro, tentamos observar com atenção o contexto cultural da teoria e da pesqui sa sobre a personalidade, concentrando-nos com frequência na vida dos próprios teóricos.
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para propósitos ilustrativos. É fundamental impedir que as críticas às ideias não se tomem argumentos ad hominem, ou seja. devemos avaliar a qualidade da teoria e da pesquisa de acordo com seus próprios termos, e não segundo os termos do teórico responsável. O sim ples fato de a maioria dos pacientes de Sigmund Freud ter sido mulheres judias, européias da classe média da virada do século XIX. não quer di/er que suas descobertas não possam ser aplicadas a outras pessoas. Não obstante, é mais provável que as explicações sejam vá lidas se levarmos em conta o contexto em que surgem. Para concluir, laçamos algumas demonstrações. Suponhamos que as pessoas com as características a seguir são propensas a desenvolver sérios problemas de personalidade mais tarde: Fm gerai emas pessoas sentem solidão e às vezes questionam o próprio valor. Elas queriam ser mais populares. Fias têm pensamentos e sonhos sexuais com determinadas pessoas regularmente. Fias queriam ter um corpo mais bonito. Algumas vezes não têm certeza de quem são e por que estão vivas. Essas informações, na realidade, não são verdadeiras, embora uma descrição como essa possa caracterizar muitos estudantes universitários, isto é, vários estudantes universi tários sentiriam que essa descrição aplica-se a eles como indivíduos (e que, portanto, eles são propensos a ter problemas de personalidade), mesmo que o perfil seja absurdamente geral, como no exemplo na Figura 1.3. A tendência em acreditar em princípios gerais va gos sobre a personalidade de alguém é algumas vezes chamada de efeito de B a rn u m (re ferido pela primeira vez por Ulrich. Stachnik fr Stainton, 1963; Snyder et a i, 1977). Essa demonstração ilustra o cuidado necessário para assegurar que teorias e avaliações sobre a personalidade são específicas c foram cientificamente validadas. Embora o campo da per sonalidade seja fascinante, é uma das áreas sujeitas a usos indevidos e distorções se os res ponsáveis pela avaliação das teorias não tomarem o máximo cuidado. Entretanto, há um valor social na tentativa de compreender a singularidade de cada uma das pessoas. Segundo Blaise Pascal, grande lilé>sofo e matemático francês. 'Q uanto
Fiyura 13 Os signos do zodíaco e mensagens “ proféticas" em um horóscopo. Será que as pessoas que acreditam em astrologia são mais propensas do que os céticos a aceitar descrições generalizadas da própria personalidade? Um determinado estudo confirmou que aqueles que acreditam cm astrologia são na realidade cspccialmcntc suscetíveis ao efeito de Barnum, mas quase todos até certo ponto encontram um significado pessoal em princípios gerais imprecisos (Glick, Gottcsmaii & Jolton, 1989). Em decorrência de seu amadurecimento nos últimos tempos, est® é o momento corto para desenvolver o relacionamento especial que você vem procurando.
Capitulo 1
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0 cjue c personalidade?
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maior a inteligência de uma pessoa, mais pessoas inventivas ela identificará. As pessoas comuns não veem nenhuma diferença nos indivíduos entre si' {Pensées 1.7). A psicobiologia moderna conlirma essa asserção de Pascal e. aqui, mostramos o grande valor de com preender cada indivíduo e cada um em seu contexto. Antes de investigar em profundidade a personalidade, precisamos ter alguma idéia de como ela pode ser estudada e avaliada, iisse é o tema do capítulo seguinte.
Resumo e conclusão A psicologia da personalidade levanta a seguinte pergunta: "O que significa ser uma pessoa?' Em outras palavras, 'D e que maneira somos únicos como indivíduos?' ou "Qual é a natureza do selp" A psicologia da personalidade responde a essas questões empregando observações sistemáticas a propósito de como e por que os indivíduos comportam-se de determinado modo. concentrando-se nos pensamentos, sentimentos e comportamentos de pessoas reais. A psicologia da personalidade pode ser definida como o estudo científico das forças psicológicas que tornam as pessoas exclusivamente únicas. Para sermos abrangentes, po demos dizer que a personalidade tem oito aspectos principais, que. em conjunto, aju dam-nos a compreender significativamente a natureza complexa do indivíduo. Neste li vro. examinamos cada uma dessas perspectivas em detalhe, buscando, sobretudo, extrair as melhores descobertas de cada uma. Os psicólogos da personalidade procuram usar métodos de inferência científica para testar teorias. As técnicas variam desde avaliações matemáticas formais sobre traços e ca pacidades até o exame cuidadoso e esmerado dos pensamentos, sentimentos e comporta mentos de um único indivíduo. Por que um universitário de 18 anos. no último ano da faculdade, parece consumido por pensamentos importunos e fantasias sexuais? Seriam os hormônios? Impulsos sexuais reprimidos? Influências circunstanciais? A compreensão perfeita da personalidade requer sólido domínio sobre o significado, a validade e as impli cações dessas várias perspectivas. As teorias sobre a personalidade provêm de várias fontes. Elas se originam da obser vação meticulosa e da introspecção profunda: da mensuração sistemática e de análises es tatísticas: do escaneamento biológico do cérebro e de estudos sobre doenças mentais; da antropologia e sociologia e da economia e filosofia. Os teóricos aplicam esses diversos imights para compreender psicologicamente <> indivíduo. Algumas das raízes da psicologia da personalidade podem ser remontadas ã arte dra mática. Outros aspectos derivam da religião e de princípios filosóficos orientais e ociden tais. A biologia evolutiva darwiniana exerceu profunda influência na psicologia da perso nalidade, influência essa que hoje está sendo revitalizada. Avanços científicos na avaliação da personalidade e nos testes de inteligência ajudaram a modelar tanto as teorias quanto os métodos da moderna psicologia da personalidade, embora os efeitos significativos da cultura sobre as pontuações dos testes tenham sido na maioria das vezes ignorados. A teoria moderna sobre a personalidade começou a se configurar formalmcntc na dé cada de 30. graças ao estudo pioneiro de três homens — Gordon Allport, Kurt Lcwin c Henry M urray. Allport definiu a personalidade como 'a organização dinâmica dos siste mas psicofísicos dentro do indivíduo, que determinam sua adaptação pessoal ao respectivo ambiente". A abordagem de Lcwin foi igualmente dinâmica, na medida em que ele procu-
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Teorias da personalidade
roii identificar sistemas que fundamentam o comportamento observável. Lewin dirigiu sua atenção para a 'situação momentânea do indivíduo e a estrutura da circunstância psi cológica'. M urray acreditava em uma perspectiva abrangente que incluía estudos longitu dinais sobre as mesmas pessoas ao longo do tempo. Ele optou |>or uma abordagem da per sonalidade significativamente ampla, definindo-a como o 'ram o da psicologia que se preocupa principalmente com o estudo sobre a vida humana e os fatores que influenciam seu curso, (e) o qual investiga as diferenças individuais'. Nessa mesma época, Margaret Mead demonstrou quão intensamente a personalidade era influenciada pela cultura, mas seus estudos não foram plenamente apreciados naquele tempo. Determinadas questões básicas no estudo sobre a personalidade surgem e ressurgem em diferentes períodos c cm diferentes teorias. Dentre elas estão as seguintes: Qual c a importância do inconsciente? O que é o self? Até que ponto nossas abordagens podem ser nomotéticas (concernentes a leis univer sais). em vez de idiogrificas (estudo de casos individuais)? Quais são as diferenças entre homens e mulheres e de onde elas provêm? ( ) que mais influencia o comportamento — a pessoa ou a circunstância? Até que ponto a personalidade é determinada culturalmente? A personalidade é um conceito científico vantajoso ou apenas ilusão conveniente? Em resumo, a psicologia da personalidade abarca algumas das questões mais interes santes. embora complexas, envolvidas na compreensão sobre o significado de ser um ser humano. Como Gordon Allport afirmou, todos os livros sobre psicologia da personalidade são ao mesmo tempo livros sobre a filosofia que investiga o que é ser uma pessoa.
^ Principais teóricos Gordon Allport
Kurt Lewin
Henry Murray
^ Principais conceitos psicologia da personalidade abordagem dedutiva wrsus abordagem indutiva da personalidade oito perspectivas da personalidade teoria darwiniana da evolução ciência nomotética irrst« ciência idiográlica efeito de Barnum
^ Leituras sugeridas Allport, G. W.
The Person in Pfyehôhgy: Selected Essays. Boston: Bcacon Press, 196«.
B e n ja m in , L. T , Jr.
M cGraw-Hill, 1988.
A History of Psyxhohjfy: Original Sources and Contemporary Research.
N ova York:
Capitule t b
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0 que épersenalidade?
Fifty Year c f Personality Psychology.
Craik, K., Ilogan, R. Wolfe, R. N. (eds.). Nova York: Plénum Press, 1993 Gadlin. II. ft Ingle, G . '•Through the One-w ay Mirror: The Limits of Experimental Self-reflection*. 30:1.003-1.009, 1975. Loevinger, J. Nova York: W. H. Freeman ft Company, 1987. Murphy. G. Ed. rev. Nova York: Harcourt. Brace. 1949. Sahakian, W. S. fed.). Itasca. IL: F. K. Peacock Publishers. 1968.
American Psychologist, Paradigms of Personality. Historic*! Introduction to Modern Psychology. History of Psychology: A Sourcebook in Systematic Psychology.
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Capítulo 2 Como a personalidade é estudada e avaliada? Medindo apersonalidade Confiabilidade ■ Validade do consirucio
Tendenciosidade Conjunto dc respostas ■ Tendenciosidade étnica ■ Tendenciosidade de gênero
Variedade de medidas dapersonalidade self-reporl)
Testes de a u to -re la to < ■ Testes Q -sort (classificarão Q ) ■ Classificações e apreciações alheias ■ Medidas biológicas ■ Observações ooniportam cntais ■ Entrevistas ■ C o m p o rta m e n to expressivo ■ Análise de docum entos e histórias de vida ■ Testes projetivos ■ Dem ográficos e estilo de vida ■ Há a lgum m étodo de avaliação m e lhor?
Como não testar apersonalidade 0 plano depesquisa Estudos de caso ■ Estudos correlacionais ■ Estudos experim entais
A ética da avaliação dapersonalidade Resumo e conclusão
Quando levamos nossos dois filhos pequenos à Disneylàndia, eles toparam com um pirata de 2 metros muito parecido com o Capitão Gancho. O pirata estava em meio à multidão, cumprimentando os transeuntes com apertos de mão (ou seria de gancho?). Embora fosse grande admirador de piratas e já tivesse assistido a inúmeras exibições de Peter Pau. nosso filho mais velho, ao reconhecer o Capitão Gancho, desviou-se dele e escondeu-se atrás de sua mãe. Nosso filho mais novo. dc modo totalmente diferente, avançou em direção ao pirata, sorriu e deu-lhe um aperto de mão. Acabamos de nos deparar com um novo tipo de teste de personalidade — um estímulo padronizado que provoca reações e avaliações ao revelar diferenças individuais.
Poderíamos chamá-lo de Teste do Pirata para Crianças. Poderíamos levar outras crianças até o pirata para observar como elas reagiríam. Da forma como os testes de personalidade andam, esse não é um mau começo, mas não acaba aí. Como qualquer teste de personalidade, há determinadas potencialidades para capturar a característica que o teste procura medir, e determinadas fragilidades ou limitações que o tornam incompleto ou imperfeito.
Teste do Pirata, assim corno vários outros tipos de avaliação da personalidade, não é tão objetivo em relação à pontuação que apresenta. Em um teste aritméti co ou de salto cm altura, produzem-se resultados objetivos: uma porcentagem de respostas corretas ou a altura do salto em determinada medida. Essas medidas de capa cidade são objetivas. Alguns testes de personalidade igualmente impõem uma avaliação objetiva em que a mensuraçâo não depende do julgamento do indivíduo que está fazen do a avaliação. Esses testes |M>dem solicitar às pessoas que estão se submetendo a ele iden tificar e incorporar figuras cm desenhos complexos ou pressionar um botão assim que um som familiar for ouvido. Medidas claras surgem desses testes; nesses casos, é a porcenta gem de figuras incorporadas c o tempo de reação (ao som familiar), em segundos. Porém, o Teste do Pirata depende da interpretação dos observadores de como a criança está rea gindo. Portanto, mais uma vez. nosso Teste do Pirata permite que um observador de crian ças experiente forme impressões detalhadas c valiosas — isto é, permite uma avaliação subjetiva. A avaliação subjetiva — a mensuraçâo que se vale da interpretação — apresenta outras potencialidades e fragilidades. Esses problemas estão relacionados com o fato de di ferentes observadores poderem fazer diferentes julgamentos, e esses julgamentos serem falíveis. Esse desafio não é exclusivo da psicologia. Em várias áreas do empreendimento humano, o julgamento subjetivo de um especialista desempenha papel fundamental. Por exemplo, consideremos a apreciação de obras de arte. O pobre Vinccnt van Gogh e muitos outros pintores, no momento fa mosos, enfrentaram problemas para ven der seus quadros. Um júri formado por apreciadores selecionados na comunidade culta em voga. ou na rua, rejeitaria várias
Os apreciadores podou concordar entre si sobre a qualidade de unta obra de arte (isto í, ter certeza de sua apreciação), mas sua validade é questionável. Muitos quadros de Vincent van Goqh foram praticamente considerados sem valor no tempo em que ele viveu. Hoje. porém, são ahamente valorizados, auferindo milhões de dólares quando vendidos em leilão. A validade da apreciação dos observadores da personalidade também pode ser questionável em determinadas dimensões.
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Teorias da personalidade
obras impressionistas por não as considerar "arte verdadeira”. Esse júri poderia ter opi niões divergentes; e mesmo se os membros desse júri concordassem um com o outro, o julgamento de cada um deles poderia ser questionável. Entretanto, um grupo de especialistas, na maioria das vezes, pode perceber as com plexidades de um fenômeno valioso e obter informações elucidativas maravilhosas. O mesmo é verdade na psicologia da personalidade. Clínicos criteriosos, observando a intera ção de uma criança com o Capitão Gancho, poderiam perceber um padrão de reação indicativo de sério desajustamento ou que sugerisse um trauma de infância ou que talvez mostrasse determinada força extraordinária de personalidade adaptativa. Muitos dos testes normalmente empregados incorporam, portanto, um elemento subjetivo. Na avaliação da personalidade, devemos ter postura intermediária entre o muito objetivo, caso em que nossas informações podem se tornar improdutivas, e o muito subjetivo, caso em que nos sas observações e inferências podem acabar sendo, respectivamente, idiossincráticas e não científicas. Felizmente, há várias diretrizes e técnicas que permitem avaliação significativa e científica da personalidade. Este capítulo expõe os meios válidos c não-válidos de mensiiraçáo da personalidade.
Medindo a personalidade_________________________ Quando solicitadas a citar líderes altamente carismáticos, as pessoas em geral mencio nam figuras como John F. Kennedy, Martin Luther King Jr.. Ronald Reagan, Mahatma Gandhi, Franklin Roosevelt, Winston Churchill e Malcolm X. Esses líderes tinham a apti dão de atrair c inspirar grande quantidade de seguidores. Porém, todos os dias deparamonos com pessoas que mostram um tipo de carisma pessoal — as atraentes, influentes, ex pressivas e em geral o centro das atenções. Na realidade, em um grupo de estudos ou em outros pequenos grupos, normalmente quase todos os membros concordam, por exemplo, em que um dos participantes é o mais carismático. Como avaliar se alguém é particularmente expressivo e tem propensão a ser um líder emocional influente em determinado grupo? Como identificar essas pessoas para prosse guir os estudos c investigar mais detalhadamente o conceito de carisma, tanto no que diz respeito às pessoas carismáticas quanto no que está relacionado com o seu processo de influência social? É possível elaborar um teste simples de carisma? Uma medida simples de carisma pessoal é o teste de comu nicação afetiva (Affcctive Communication Test, A C T ) (Friedman et a!.. 1980). O A C T é mostrado na Tabela 2.1. Você pode submeter-se a esse leste agora; avalie até que ponto cada uma das afirmações é verdadeira ou falsa em relação a você, usando uma escala de - 4 a 4, onde - 4 significa 'não tem nada a ver comigo" e 4 significa "tem muito a ver comigo". Você obterá, ainda neste Capítulo, mais informações sobre esse teste sim ples e aprenderá a fa/er a contagem de pontos.
Muitas pessoas atribuem o sucesso e a fama de figuras públicas carismáticas como o presidente americano John F Kennedy a seu charme e encanto {ressoai, e não a suas diretrizes políticas
Capitulo 2 m Como a personalidade é estudada e avaliada?
Tabela ZI
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O teste d e c o m u n ic a ç ã o afe tiva____________________________________
Leia cuidadosam ente essas instruções. A seguir você encontrará uma série de afirmações indicando uma atitude ou comportamento que pode ou não ser verdadeiro em relação a você. Você precisa a|K*uas ler cuidadosamente cada uma dessas afirmações e fazer um círculo no número entre menos -1 1-4) e 4 (4) para indicar qual deles se aproxima mais da sua resposta. Quanto mais negativa sua resposta, mais você acredita que a afirmação é falsa se aplicada a você. Quanto mais positiva sua resposta, mais você acredita que a afirmação sobre você é verdadeira. Exem plo: Nâo tem nada a ver comigo
I Tem muito a ver comigo
<--------------------------> •Fico muito alegro quando vejo flores bonitas.
-4
-3
- 2 - 1
0
I
2
3
4
Se você circulasse o número 2. isso indicaria que se sente um pouco alegre quando vê flores, mas nâo tanto quanto se tivesse circulado o número 4. Se você circulasse - 4 significaria que o oposto é verdadeiro — isto é, que se sente muito triste quando vê flores. Não há respostas certas ou erradas. Circule a|R-nas um único número em cada escala. Leia cada uma das afirmações cuidadosamente e indique uma resposta para cada uma. Não tem nada a ver comigo
I Tem muito a ver comigo
<-------------------------->
-1
0
1
2
3
4
2. •Meu sorriso é terno e silencioso.
-4
-3
-2
-1
0
1
2
3
4
3. •Consigo facilmente expressar emoções ao - 4 telefone.
-3
-2
-1
0
1
2
3
4
4. •Na maioria das vezes toco as pessoas enquanto estou conversando com elas.
-4
-3
-2
-1
0
1
2
3
4
5. *Não gosto de ser observado(a) por um grande grupo de pessoas.
-4
-3
-2
-1
0
1
2
3
4
6. •Normalmente, minhas expressões faciais são neutras.
-4
-3
-2
-1
0
1
2
3
4
7. •As pessoas me dizem que eu seria um bom ator ou uma boa atriz.
-1
0
1
2
3
4
-1
0
1
2
3
4
1
-2
1 -u
-3
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8. •Gosto de permanecer sem ser notado(a) em um grupo grande de pessoas.
r* 1
-4
1
1. •Quando ouço uma música dançante, dificilmente consigo ficar imóvel.
-2
9. •Sou tímido(a) quando estou perto de estranhos.
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0
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10. •Quando quero, consigo lançar um olhar sedutor.
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11. •Sou uma lástima em pantomima e em jogos do tipo charada.
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12. •Em festas com pouca gente, sou o centro das atenções.
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13. •Mostro que gosto de uma pessoa abraçando-a ou tocando-a.
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O 1980 by Howard S. Friedman. Todos os direitos reservados. Essa eseala não pode ser fotocopiada ou reproduzida por nenhum meio sem a pnf\ ia permissão por eserito de Howard S. Friedman.
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Teorias dapersonalidade
Confiabilidade Sc você, no período da tarde, subisse cm uma balança de banheiro a cada meia hora, sua expectativa seria a de obter praticamente o mesmo peso toda vez que se pesasse. O ter mo confiabilidade refere-se â consistência numa contagem de pontos, que se espera seja a mesma. Um instrumento de medida confiável é consistente. Se sua balança mostrasse uma oscilação de peso de 68 kg para 65.5 ou 72.5 ou 54.5 em uma única tarde, você pode ria dispensá-la por ela não ser confiável. É claro que ao se pesar você poderia obter diferenças insignificantes, na medida em que a mola da balança muda levemente quando há mudança na umidade do ambiente ou quando é usada com muita frequência, lissas variações aleatórias produzem o que chama* mos erro de mensurarão ou variância de erros — variações causadas por flutuações irrelevantes e eventuais. Os melhores instrumentos de medida são altamente confiáveis; oferecem mcnsuraçâo consistente. Na avaliação do carisma, nossa expectativa seria a de que uma pessoa avaliada como “muito carismática' numa segunda-feira não obtivesse a avaliação de "não carismática" na terça-feira. A confiabilidade, além disso, contém implici tamente a idéia de precisão. Você não ficaria contente se sua balança de banheiro indicasse que você está pesando 'm ais de 45 kg".
Confiabilidade de consistência interna A confiabilidade de um teste de personalidade é determinada, normalmente, de duas maneiras. Primeiramente, mede-se o grau de consistência observando se subpartes ou par tes equivalentes de um teste produzem os mesmos resultados. Por exemplo, poderíamos dividir um teste escrito ao meio e, em seguida, avaliar a confiabilidade da metade dividida encontrando a correlação entre essas duas metades (quando o teste é aplicado a várias pes soas). Nossa expectativa seria a de que as metades do teste estivessem altamente correla cionadas; por exemplo, a pessoa cuja contagem fosse máxima na primeira metade do teste deveria obter uma pontuação bastante alta na segunda metade. Isso é chamado de confiabilidade de consistência interna. No teste A C T de carisma, a pontuação nos vá rios itens tende a ser semelhante, embora não idêntica. A consistência interna, na maioria das vezes, é medida por uma estatística denomina da coeficiente alfa de Cronbach. Podemos considerar alfa como a média de todos os coefi cientes de correlação possíveis das metades divididas. Quanto mais medidas relevantes fo rem usadas repetidamente, maior será a consistência da mcnsuraçâo (Roscnthal h Rosnow, 1991). Em termos estatísticos, isso significa que a consistência interna está subor dinada ã quantidade de itens e ao seu grau de correlação. Ao elaborar um teste de persona lidade, nosso objetivo é adicionar itens relevantes até que a pontuação total tome-se está vel. Porém, não é nosso objetivo acrescentar tantos itens que tornem o teste pesado ou chato. Nos testes cuja probabilidade é a de que sejam empregados em grande número, a confiabilidade do coeficiente de consistência interna deve girar em torno de 0,80. Em algumas ocasiões, o problema de consistência aplica-se a nossos experientes ob servadores. No caso do nosso novo teste, o do Pirata, gostaríamos que o julgamento de nossos observadores fosse equivalente. Normalmcnte. doze observadores são suficientes para obtermos consistência.
Confiabilidade de teste-reteste A segunda medida de confiabilidade diz respeito ao grau de consistência em diferen tes ocasiões. Ou seja, pessoas que são expressivas ou conscienciosas na segunda-feira de
Capitulo 2
Como a personalidade é estudada c avaliada ?
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veriam ter resultado semelhante na terça-feira. Ao desenvolver o A C T, os pesquisadores mediram as mesmas pessoas duas vezes, no intervalo de dois meses. Essa idéia de estabili dade temporal é denominada conf ia bilida d e d e teste-reteste. Essa confiabilidade de teste-reteste do A C T é de aproximadamente 0,90. No decorrer de períodos curtos, os re sultados do A C T permanecem quase os mesmos, embora possa haver erro de mensuração. Quando a confiabilidade de consistência interna e a confiabilidade de teste-reteste são al tas. lemos certeza de que estamos medindo algo real — isto é, estamos de posse de um tes te de personalidade confiável. É óbvio que desejamos ter a possibilidade de admitir que as pessoas podem mudar ao longo do tempo. Nosso sistema biológico amadurece e envelhece, somos modelados por experiências, temos insights a respeito de nós mesmos e dos outros e as situações com as quais nos deparamos mudam com o tempo. Portanto, faz sentido admitir que a personali dade também mude. Isso não é problema no caso de verificar quanto pesamos — todos nós sabemos muito bem que nosso peso flutua quando comemos demais ou fazemos dieta. Entretanto, a personalidade, por definição, é considerada razoavelmente estável. Posto tudo isso, resta-nos um desafio teórico e de mensuração significativo: como podemos ob ter uma avaliação confiável (estável) da personalidade se ela pode mudar? Há dois tipos de resposta, ambos complexos. Primeiramente, como Gordon Allport enfatizou várias vezes, a personalidade consiste em padrões que direcionam dinamica mente as ações de um indivíduo. Embora as ações particulares e as reações cotidianas de uma pessoa possam mudar, os padrões subjacentes fundamentais permanecem relativa mente estáveis. Na realidade, a dimensão temporal (o tempo) deveria ser incluído em muitos estudos da personalidade; isto é, deveriamos averiguar os padrões de resposta de um indivíduo ao longo do tempo (Larscn, 1989). Na maioria das vezes surgem padrões consistentes. Por exemplo, se uma pessoa oscila entre ser maníaca e ser depressiva, isso não deve ser tomado como problema de confiabilidade, se considerarmos que a personali dade é maníaco-depressiva. Entretanto, se não examinássemos os padrões ao longo do tempo, poderíamos concluir (erroneamente) que nossa mensuração é inconfiável — pri meiramente a pessoa parecia maníaca e, depois, depressiva. A segunda resposta ao desafio da mudança de personalidade é admitir que a persona lidade pode mudar a longo prazo (ou após um trauma sério) c alimentar a expectativa de estabilidade da personalidade somente durante períodos mais curtos ou talvez por alguns anos. Por exemplo, seria proveitoso se pudéssemos medir confiavelmente a extroversão aos 16 anos, se identificássemos que esse traço pudesse nos ajudar a compreender o com portamento da pessoa, na faculdade, e logo no início da idade adulta. Se, passados muitos anos, a pessoa se tomasse introvertida, isso não seria necessariamente problema para os nossos conceitos de confiabilidade. Na verdade, isso seria por si mesmo um fenômeno cu rioso: por que algumas pessoas extrovertidas tomam-se introvertidas? O estudo c a avalia ção da personalidade sempre envolvem alguns tipos de trocas. Medir sistemas biológicos conscientes (pessoas) não é a mesma coisa que medir características físicas como peso e altura. As pessoas amadurecem e mudam c até mesmo seus padrões básicos de reação po dem mudar.
Validade do constructo Suponhamos que fôssemos a um shopping center e subíssemos, de hora em hora. no período da tarde, em um instrumento de medida, obtendo resultados idênticos e confiá veis; o instrumento, um daqueles com dispositivos eletrônicos com voz. computadorizada.
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Teorias da personalidade
anuncia invariavelmente “ 11. I I , II* . Daria para rir de um peso como esse. Ocorre que esse instrumento é especialmente projetado para lojas de sapatos e, na verdade, é usado para medir o tamanho do pé (e para anunciar com precisão o tamanho do sapato). Será que o teste está medindo o que foi proposto? O que ele está medindo? Esse é o problema da validade. ( ) aspecto mais importante (e complexo) da validade é a validade d o constructo. A validade do constructo refere-se ao nível de fidelidade segundo o qual um teste mede um constructo teórico. Por exemplo, o A C T de lato mede o carisma pessoal ou estaria ele me dindo a afabilidade ou a capacidade de oferecer afeto e atenção? Para averiguar a validade do constructo, é necessário observar se as avaliações predi zem comportamentos c reações subentendidas (teoricamente) pelo constructo. As pessoas carismáticas provavelmente fazem mais do que obter pontuação alta em um teste escrito. Elas podem envolver-se em atividades carismáticas e mostrar determinado |>adráo de res posta em outras medidas. Por exemplo, elas podem ser mais extrovertidas do que introver tidas. A validação do constructo é um processo contínuo e envolve a demonstração de que
Validade do conteúdo A validade do conteúdo verifica se um teste está medindo o domínio para o qual ele foi designado. Por exemplo, um teste |>oderia ser visto como medida da capacidade criativa.
Capitulo 2
Como a personalidade é estudada c avaliada ?
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mas poderia, na realidade, medir somente a habilidade artística e ignorar o talento para a música, a aptidão para escrever e outros aspectos da capacidade criativa. Ao reunir itens para o ACT, coletamos uma extensa série de características que pareciam propensas a um estilo altamente expressivo. Os itens inconíiáveis e ambíguos foram descartados, mas a escala final inclui itens sobre expressões não-verbais (como o toque, o sorriso e as expressões faciais), atuação, relações sociais (como comportamento em festas) e comunicação interpessoal ex pressiva (como lançar um olhar sedutor). O A C T procura capturar várias das dimensões de conteúdo do carisma pessoal.
Seleção dos itens Que itens são mais apropriados para um teste de personalidade? Não há dúvida de que eles «levem ser claros, relevantes e relativamente simples, se for possível. Além disso, a escolha depende muito das suposições sobre a natureza da personalidade; a avaliação não deve ser levada a cabo se faltar uma teoria. As suposições matemáticas subjacentes à elaboração de testes de personalidade confiáveis e válidos pt>dem tornar-se extremamente complexas. Determinados pskólogos dedicam toda a sua carreira à descoberta da melhor forma de elaborar e fazer a contagem de avaliações. Por exemplo, já nos foi possível obser var que estender uma avaliação em geral melhora sua confiabilidade e validade (até certo ponto), mas isso tem um custo. A despeito da tentativa de selecionar os melhores itens e de rejeitar os inadequados, definir o que é melhor nesse contexto não é tão simples. Uma das qualidades desejáveis nos itens é sua distinção entre as pessoas que estão se submetendo ao teste; um item é considerado inútil se todos o respondem da mesma for ma. Portanto, grosso modo, cada item cm uma avaliação deveria dividir o grupo de pes soas submetidas a teste cm dois grupos, aproximadamente. Entretanto, é igualmente im portante que todos os itens estejam correlacionados entre si (ou inter-relacionados); cada item mede determinado aspecto do constructo geral. Essa intercorrelaçâo, por sua vez. tem um efeito sobre o problema da discriminabilidade — uma intercorrelaçâo muito gran de oferece nada mais que informações redundantes. A contagem total na avaliação deve ria também ter uma distribuição adequada. Ou seja. temos de ser capazes de avaliar o gru po inteiro. O ACT. por exemplo, deveria medir as |H>ucas pessoas que são extremamente carismáticas, as poucas extremamente não-carismáticas e as várias que estão entre os ex tremos. Uma abordagem matemática especial para escolher os melhores itens, que nos últi mos anos passou por um processo de aperfeiçoamento considerável, é denominada teoria de resposta ao ite m {item response theory. IRT). Por meio de técnicas matemáticas de res posta ao item. podemos examinar a probabilidade de uma resposta positiva em um item em particular, ao se considerar a opinião geral da pessoa sobre o traço fundamental medi do pelo teste (como é estimado pelas outras respostas). Alguns itens podem surtir efeito diferente para os homens c não fazer diferença para as mulheres (isto c. ser um diagnósti co apenas para um gênero) e, portanto, seriam considerados tendenciosos. Uma descrição sobre a matemática da IR T pode ser encontrada em livros e artigos técnicos atuais sobre a avaliação da personalidade (Flannery, Reise & Widaman, 1995).
Tendenciosidade Uma das questões mais espinhosas nos testes de personalidade é a possibilidade de as medidas e avaliações serem tendenciosas. Abordamos esse problema ao longo de todo este
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Teorias da personalidade
livro, mas aqui descreveremos três fontes de tendenciosidadc: conjunto de respostas, dis criminação étnica e discriminação de gênero.
C onjunto d e respostas Na contagem do ACT, os itens 2. 5, 6, 8, 9 c I I (Tabela 2.1) são enunciados no sentido inverso. A concordância com esses itens indica falta de expressividade. Isso é feito para combater um c o n ju n to d c respostas aquiesccntes. Algumas pessoas tendem mais do que outras a concordar com tudo o que você pergunta para elas. O c o n ju n to d e respos tas reíere-se a propensões, não está relacionado com a característica da personalidade que está sendo medida. Desse modo, ao tratar do conjunto de respostas aquiesccntes, é impor tante incluir itens que sejam enunciados no sentido oposto. Antes de la/er a contagem do ACT, você deve inverter as respostas a esses itens. Um desafio particularmente difícil é aquele apresentado por um c o n ju n to de res postas de desejabilidade social. Muitas pessoas desejam se apresentar de modo favorá vel ou responder dc tal maneira que agrade o experimentador ou quem está administran do o teste. Poucas pessoas concordarão verdadeiramente com uma afirmação do tipo “Já me passou pela cabeça molestar criancinhas'. Entretanto, alguém que deseje passar por doente mental pode concordar falsamente com tal declaração. Uma maneira de lidar com os conjuntos de respostas de desejabilidade social é propor itens de desejabilidade equitati va e pedir à pessoa que está se submetendo ao teste para escolher entre as duas. Do mesmo modo, algumas vezes as pessoas dão respostas totalmente aleatórias a um teste dc personalidade de múltipla escolha. Talvez elas não consigam interpretar muito bem o texto, estejam tentando subverter o estudo em questão (que está sendo conduzido por um pesquisador do qual não gostam) ou estejam cansadas de preencher os formulários que fazem parte dc um experimento dc um curso dc psicologia. Alguns testes, portanto, têm escalas falsas, que abrangem itens como 'E u já fui à lua (sim/não)'. Itens como esse ajudam a distinguir os mentirosos (mas podem confundir quando se estiver testando esse 'ra ro ' astronauta). Mesmo uma avaliação da personalidade, inteligentemente elaborada, está sujeita a variadas fontes de distorção ou tendenciosidadc. Você poderia com facilidade distorcer sua pontuação falsificando as respostas no A C T. Portanto, é valioso para os psicólogos da per sonalidade empregar vários meios de avaliação, como descreveremos mais adiante neste capítulo. Contudo, é fundamental observar que. embora as avaliações possam ser um pou co tendenciosas, elas continuam válidas; e produzem informações importantes sobre a maioria das pessoas cm várias circunstâncias. As normas do A C T são mostradas na Tabela 2.2. Para computar sua |>ontuação no ACT, primeiramente adicione 5 pontos em cada item (para eliminar os números negativos). Hm seguida, inverta os pontos dos seis itens invertidos (itens 2, 5, 6. 8. 9 e 11). de forma que I tome-se 9, 2 torne-se 8 e assim por diante. Finalmente, some todos os pontos do item.
T endenciosidadc étnica Quando, na Disneylândia, nossos filhos reagiram ao Capitão Gancho, uma outra criança teve reação muito diferente. Um pequeno garoto, asiático, estava perplexo e pare cia não fazer nenhuma idéia de quem ou o que era o Capitão Gancho. Nosso teste de personalidade, o do Pirata, provavelmente teria sido inapropriado para esse garotinho. pois faz algumas suposições sobre o conhecimento e sobre a experiência da
Capitulo 2
Tabela 2.2
Nota: Baseada
Como a personalidade é estudada e avaliada ?
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N o rm a s da escala A C T Média geral Mediana geral Moda geral Pontuação mínima obtida Pontuação máxima obtida Desvio-padrão
71,3 71,2 68,0 25,0 116,0 15.7
Media das mulheres Média dos homens
72,7 69,5
c m u m a população de teste d e 6 0 0 estudantes universitários.
pessoa que está se submetendo ao teste. Assim como muitos testes, esse e culturalmente tendencioso e deve ser usado, portanto, em determinado subgrupo da população. Embora todos os testes dependam de uma serie de suposições c. por esse motivo, pos sam ser caracterizados como tendenciosos, eles não são necessariamente ruins ou inúteis. Ao contrário, devem ser usados e interpretados de modo apropriado para serem validados. Um homem que tem várias esposas, bate nos filhos e. segundo os costumes, sacrifica ani mais em rituais religiosos, seria avaliado de maneira extremamente diferente no presente do que teria sido em tempos mais remotos (quando esses comportamentos eram comuns). A avaliação da personalidade tem significado somente dentro de um contexto. Nós deve mos nos tornar sensíveis ao contexto em todas as nossas avaliações. Com o foi observado, um dos tipos mais comuns de tendendosidade em testes é a tcn d e n cio sid a d c étnica. Com muita frequência, os testes deixam de levar em conta a cultura ou subeultura pertinente da pessoa que está sendo testada; teorias e medidas de senvolvidas em uma cultura são Inapropriadamente aplicadas em outra cultura. Por exemplo, ásio-americanos bem socializados na maioria das vezes sào criados para se com portar de modo cooperativo, com humildade c modéstia, ao passo que das crianças ítaloamericanas igualmente bem socializadas espera-se um comportamento assertivo, sociável e expressivo. Não há dúvida de que normalmente essas duas subeulturas geram adultos bem-ajustados e bem-sucedidos. Seria erro de avaliação rotular a media das crianças ásioamericanas como 'excessivamente tímidas' ou rotular a média das crianças ítalo-america nas como 'panieularmente agressivas'. Entretanto, isso pode vir a ser útil para comparar uma criança ásio-americana que parece cxagcradamente tímida com outros ásio-america nos; c isso pode se provar igualmente informativo se compararmos uma criança ítalo-ame ricana que está encontrando dificuldades com os amigos com outras crianças criadas na mesma subeultura. Às vezes, a tendcnciosidade (az com que uma característica marcante de uma cultura seja percebida como fragilidade. Por exemplo, as crianças hispano-americanas em algumas ocasiões foram vistas como desmotivadas em realizações (o que foi considerado uma defi ciência), quando de fato elas foram criadas para ser mais cooperativas com seus pares (o que é na maioria das vezes um ponto positivo). Pode ser difícil notar o preconceito étnico em nossas próprias teorias e avaliações. Por tanto, vejamos um exemplo na década de 1800. Em grande parte do século XIX. a perso nalidade criminosa foi vista como uma característica inata, lixada no nascimento (Gould. 1981). Considerava-se o crime uma consequência não de maus-tratos na infância, pressão dos pares, falta de oportunidade, falta de instrução ou pressão social. A o contrário, o crime
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Teorias da personalidade
cra visto como consequência de uma disposição nata. Com o era de esperar, as pessoas que não faziam parte da cultura dominante em voga eram particularmentc propensas a ser ro tuladas dessa forma. Esses preconceitos cegos têm longa e sórdida história na cultura americana, na qual os afro-americanos têm, em geral, sido rotulados como naturalmente propensos ao crime. Ironicamente, no período escravista americano, os escravos eram vis tos pelos amos como tendo uma personalidade dócil e típica de escravo (exceto quando eles tentavam fugir; aí eles eram considerados criminosos por natureza). É difícil enfatizar quão tênues são e. ainda, quão arraigados estão esses preconceitos em nossa sociedade. A psicologia da personalidade com muita frequência investiga amos tras convenientes — os pacientes de alguém, os alunos de alguém, os vizinhos de alguém, os filhos de alguém — e muito raramente experimenta, de modo sistemático, averiguar se essas conclusões aplicam-se a outros povos, em outros lugares e em outras épocas.
T en d encio sidade d e g ênero Suponhamos que estivéssemos desenvolvendo um novo teste para avaliar a extrover são, e que os resultados preliminares do nosso instrumento de medida tenham mostrado que a pontuação das mulheres é mais alta do que a dos homens. Como devemos proceder? Rejeitamos os itens nos quais as mulheres obtiveram a maior contagem, 'igualando' os resultados? Poderíamos proceder assim se tivéssemos um motivo teórico sólido para supor que os homens e as mulheres são igualmente extrovertidos. Entretanto, normalmente não temos esse tipo de motivo teórico; temos apenas preconceitos. Adaptamos os resultados dos testes para que se ajustem aos nossos preconceitos. Um segundo tipo de tendenciosi dade que ocorre nos testes é a tendenciosidade de gênero. Consideremos um problema frequentemente diagnosticado nas mulheres: uma per sonalidade que se anula (Tavris. 1992). Várias teorias populares e avaliações relacionadas tentam documentar e explicar por que muitas mulheres americanas confiam demasiada mente em tudo. são infelizes e frustradas e. em geral, metem-se em casamentos infelizes e cm empregos sem perspectivas. Os testes podem demonstrar que essas mulheres são ma soquistas, dependem umas das outras, amam demais, desejam demais, são devotadas aos homens ou são simplesmente depressivas. Poucas vezes os testes concentram-se no am biente — nos maridos que as maltratam, na discriminação profissional ou na falta de opor tunidades educacionais equivalentes. Consideremos ainda as expectativas em relação ao gênero, no caso de uma personali dade saudável. Se uma mulher obtiver alta pontuação nos itens "ser carinhosa e atenciosa com as crianças, extremamente cooperativa em relação aos outros, ter horror à violência, ter medo de rato, ser muito preocupada com a aparência e apaixonada por crochê, culiná ria e decoração", via de regra, será classificada como mentalmente saudável. Porém, e se um homem mostrasse exatamente o mesmo padrão? Examinaremos esse problema de tendenciosidade de gênero ao longo deste livro. Mesmo os lestes bem elaborados não deixam de ser uma ferramenta. E como ferra mentas, eles podem ser usados de modo apropriado ou desafortunadamente mal-usados. Por exemplo, embora os testes possam ser arriscados quando declaram, sem nenhum cui dado, diferenças de personalidade entre grupos étnicos, eles podem ser proveitosos para examinar diferenças de personalidade dentro de grupos étnicos específicos (digamos, entre ásio-americanos). Além do mais, os lestes podem revelar diferenças curiosas entre os gru pos que deveriam ser acompanhados por outras técnicas de pesquisa. Portanto, não deve mos excomungar os lestes por, possivelmente, serem tendenciosos, da mesma maneira
Capitulo 2
Como a personalidade é estudada c avaliada ?
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que não devemos banir as ferramentas porque elas podem ser mal-usadas. Ao contrário, devemos aprender a identificar as limitações de nossas avaliações. Essas questões são con sideradas mais adiante neste capítulo, na seção sobre a ética dos testes de personalidade. Um dos grandes triunfos dos testes de personalidade do século passado foi o desenvol vimento de vários tipos diferentes de teste. Quando usados de modo apropriado, todos es ses testes têm algo a acrescentar ã nossa compreensão da complexa questão quanto o que significa ser um ser humano. No restante deste capítulo, descrevemos diversos tipos de personalidade que permitam, de lato, começar a avaliá-la.
Variedade de m edidas da personalidade___________ Há razões teóricas e metodológicas que justificam a existência de diferentes tipos de teste de personalidade. No terreno teórico, não há dúvida de que vários tipos de teste são mais ou menos apropriados para medir o aspecto da personalidade em questão. Por exem plo, não faz sentido pedir às pessoas que falem sobre suas motivações inconscientes; por definição, essas motivações não podem ser conscientemente compreendidas e relatadas. No terreno metodológico, é fundamental ter em mão vários meios de medir a perso nalidade. pois cada um deles padece de alguma tcndenciosidadc inerente. Por exemplo, as entrevistas podem sondar com maior profundidade e de modo reativo os pensamentos e sentimentos mais íntimos de uma pessoa do que um questionário padronizado. Contudo, as observações sobre o comportamento ou a análise sobre como uma pessoa se expressa, ambas e com frequência, são melhores para capturar como uma pessoa de fato age. A fra gilidade de uma técnica de avaliação pode ser compensada por outras técnicas, ajudandonos. portanto, a compreender de modo mais íntegro a personalidade. A Tabela 2.3 relacio na os principais tipos de medida da personalidade e, além disso, oferece exemplo de cada um deles.
Testes d e au to-relato
(self-report)
Os testes de personalidade mais comuns, como o instrumento de avaliação do carisma AC T, dependem do auto-relato dos examinandos. Esses testes são fáceis de administrar, baratos e na maioria das vezes objetivos, mas sua validade deve ser cuidadosa e continua mente avaliada. Um exemplo de teste de personalidade de auto-relato abrangente é o renomado Minnesota Multiphasic Personality Inventory (M M P I). Ao responder a quase quinhentas afirmações, a pessoa deve indicar “verdadeiro", "falso" ou "não sei". O M M PI foi criado usando-se a seleção de itens com base em critérios, ou seja. os itens selecionados diferen ciam um grupo-alvo tal como pessoas depressivas de um grupo normal de controle. Esse teste, portanto, concentrou-se na avaliação psicopatológica (doença mental). Ele foi revis to em 1989 (o que gerou o M M P I-2 ) a fim de eliminar termos ultrapassados e criar normas baseadas em uma amostra que representasse melhor a população dos Estados Unidos (Butcher, 1990). Por aumentar os resultados da escala individual, o M M PI com frequência é avaliado usando-se uma figura ou um jierfil que representa, por meio de um gráfico, o padrão dos resultados da escala. Por exemplo, algumas pessoas obtêm resultado consideravelmente alto nas três escalas do M M PI denominadas hipocondria (queixas de sintomas físicos), de pressão (impressão de estar deprimido) e histeria (transformação de problemas psicológi-
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Teorias da personalidade
Tabela Z5
T ip o s d e m e d id a d a p e rs o n a lid a d e
T ip o de teste
Exem plos
Auto-relato \stlfmport)
Minnesota Multiphasic Personality Inventory (M M P I);1 Teste de Comunicação Afetiva (A C T); Millon Clinical Multiaxial Inventory; NEO-PI; Personality Research Form (PRF); Myers-Briggs Type Indicator
Q-Sort |Classificação Q)
Classificações de parentes, professores, amigos, cônjuge; apreciações de psicólogos.
Medidas biológicas
Tempo de reação; condutância da pele; eletroencefalograma (EEC); tomograíia de emissão de positrons (PET), ressonância magnética (M RI), MRI funcional ffMRI); exame pest-mortem: nível de hormônio e de neurotransmissores; análise aoniossômica e de genes.
Observações componamcniais
Amostragem de experiências; apreciações por meio de codificadores de videoteipe.
Entrevistas
Entrevista estruturada do Tipo A; entrevista sexual Kinsey: entrevista de admissão clínica (psiquiátrica).
Comportamento expressivo
Velocidade da fala; modo de olhar; postura; gestos; modo de andar; distanciamento social.
Análise de doai mentos
Psicobiografia; diário de sonhos.
Projetivo
Desenhe uma pessoa; teste de mancha de tinia de Rorschach; teste de percepção temática (Thematic Apperception Test. TA T).
Demográfico c de estilo de vida
Faixa etária; grupo cultural; tendência sexual; afiliação política.
cos em problemas físicos). Na medicina comportamental essas pessoas são particularmente interessantes, para os pesquisadores. |K>r essa tríade muitas vezes fornecer informações so bre pacientes que relatam estar passando por um processo de sofrimento crônico. Obter pontuações altas nessas três escalas significa também maior probabilidade de usar por um período bem mais longo instalações clínicas ou hospitalares e beneficiar-se do tratamento psicológico que acompanha o tratamento médico.1 2 1. Traduzido e adaptado, no Brasil, como Inventário Multifásioo Minnesota de Personalidade (MMPI) (N. do RT). 2. A generatividade corresponde à fase de maturidade humana
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Como a personalidade ê estudada e avaliada ?
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Com o comprova a tradição do uso dc testes de personalidade ao ajudar os terapeutas a proporem tratamentos, o recente M illon Clinical Multiaxial Inventory, baseado nas idéias de Theodore Millon sobre psicopatologia, é uma experiência meticulosa de avalia ção de transtornos de personalidade (Craig. 1993; Millon, 1997). Por exemplo, esse inven tário ajuda a diagnosticar síndromes clínicas, como a dependência alcoólica, e padrões de personalidade, como o assim chamado passivo-agressivo, em que as pessoas escondem a própria agressividade por meio de pretensa amabilidade (falam docemcnic com o cônjuge, mas recusam relações sexuais). Escalas como a de Millon são menos úteis quanto a forne cer respostas sobre a personalidade dc populações normais (sem problemas psicológicos c emocionais) de indivíduos saudáveis. Há diversos, modernos c excelentes inventários da personalidade que procuram me dir dimensões básicas de personalidade em adultos normais. Um deles, o NEO-PI, foi ela borado em torno da idéia de cinco dimensões básicas de personalidade (Costa & McCrae, 1992a, 1992b). Essa abordagem de mensuração da personalidade vale-se grandemente da técnica estatística denominada análise fatorial, que se inicia com as correlações entre inú meras escalas elementares e, em seguida, reduz essas informações a apenas cinco dimen sões básicas. Por exemplo, as idéias sobre ser extrovertido, ativo, afetuoso, loquaz, vigoro so, sociável c assim por diante são capturadas no fator denominado extroversão. Os precursores dessa abordagem, que utiliza uma base de dados para medir a personalidade, foram J. P. Guilford. L. Thurstone e R. B. Cattell. Os fatores, embora sejam a princípio des critivos, devem em seguida ser explicados por uma teoria. As cinco dimensões básicas da personalidade — consciência, extroversão, amabilidade, neuroticismo e abertura — são abordadas detalhadamente no Capítulo 8. Uma abordagem complementar às escalas de auto-relato é obtida pelo Personality Research Form (PRF) (Jackson & Messick, 1967). O PRF principia-se com a tentativa de medir as necessidades e motivações básicas propostas por Henry M urray (1938). Em se guida. o teste é conduzido por teorias, embora antes tenha sido desenvolvido por meio de técnicas correlacionais. Outra avaliação de auto-relato baseada diretamente na teoria so bre a personalidade é o Myers-Briggs Type Indicator ou M B TI (Hammer. 1996), elaborado com base na teoria de Carl Jung sobre tipos psicológicos. (Esse instrumento de medida é também discutido no Capítulo 8.) A avaliação da personalidade sempre está às voltas com a contenda entre as abordagens indutivas que começam com inúmeros dados e as aborda gens dedutivas que começam com uma teoria convincente. Com o veremos, ambas as abordagens provaram-se úteis.
Testes Q -sori (C lassificação Q) Um método curioso de coletar auto-relatos, mais dinâmico que os questionários, é o testo Q -S o rt (Classificação Q ). Nesse teste, a pessoa recebe um conjunto de cartas no meando várias características e pede-se a ela para classificar essas cartas em montes, em dimensão que englobe as características mínimas e máximas de alguém. Uma carta pode dizer, por exemplo, "É basicamente ansioso" ou 'É contemplativo". Instruindo a pessoa sobre quantos montes ela deve formar e quantas cartas ela deve colocar em cada um. o examinador pode assegurar que os auto-relatos formem uma distribuição estatística dese jada. (Se uma curva normal for aproximada, ela será chamada de distribuição normal força da.) Observe que as pessoas submetidas ao teste comparam as próprias características, mas não se comparam a outras pessoas. Uma vantagem peculiar do teste Q-Sort está no fato de os itens (as características) que estão sendo classificados poderem permanecer constantes, ao passo que o contexto pode
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Teorias da personalidade
ser mudado. Por exemplo, depois de se autodassificar (autodcscrcvcr). um homem pode ser solicitado a usar as mesmas cartas Q classificadas para descrever sua mulher, como ele era quando criança ou como ele idealmente gostaria de ser. As comparações entre as clas sificações Ci podem revelar muitas informações sobre o enfoque da pessoa e as característi cas em estudo (Ozer, 1993». As classificações Q também podem ser usadas para codificar o comportamento em si tuações estruturadas (Funder. Furr & Colvin, 2000). Por exemplo, o comportamento de um estudante do sexo masculino pode ser observado (tanto diretamente quanto por meio de videoteipe) numa situação em que ele se encontra com uma estudante e comparado com a que ele se encontra com um estudante. O observador pode descrever ambos os comportamentos escolhendo as cartas apropriadas cm um conjunto de vários comporta mentos básicos como “parece agradável", "porta-se irritadamente', 'laia com fluência" e assim por diante. Hm seguida, as opções podem ser escolhidas entre a maioria tias caracte rísticas e devem, no mínimo, estar relacionadas com essas características. Esses métodos ilustram uma moderna experiência, no estudo da personalidade, de capturar dados comportamentais mais objetivos.
C lassificações e apreciações alheias Em 1921, Lewis Terman deu início a uma investigação sobre mais de 1.500 jovens do sexo masculino e feminino, estudantes brilhantes das escolas da Califórnia. Terman, res ponsável pela elaboração do teste de inteligência Stanford-Binet, estava interessado em observar como era o desenvolvimento das crianças muito inteligentes. Será que elas acaba riam se tornando pessoas pedantes, esquisitas e pouco sociáveis? Altamente empreendedo ras? Líderes persuasivos? Para investigar essas questões, Terman empreendeu um estudo sobre essas crianças durante toda a sua vida — um exame não apenas da inteligência, mas também da personalidade e das habilidades sociais dessas crianças (Terman, 1921). ()s testes de personalidade de auto-relato confiáveis e válidos ainda não haviam sido desenvolvidos. Felizmente, Terman teve uma idéia brilhante, que viria a ser seguida com maior frcqiiência na atual pesquisa sobre a personalidade. Ele coletou diversos tipos dc in formações sobre essas crianças. Por exemplo, durante o ano escolar de 1921-1922. Terman usou pais e professores para classificar esses jovens (que tinham mais ou menos 11 anos) em inúmeras dimensões, dentre as quais as seguintes: prudênda/previdência
consciênda
ausência de vaidade
autenticidade
Juntas, essas classificações formaram naturalmente uma excelente escala de consciência/segurança social. Parece muito razoável esperar que os pois e professores possam identi ficar se uma criança de 11 anos é consciente e sodalmcnte segura. Foi comprovado que es sas classificações eram confiáveis: por exemplo, o coeficiente alfa dessas quatro Classificações é 0.76. Verificou-se também que essas classificações são válidas; elas predizem accrtadamcntc vários outros comportamentos que esperaríamos de crianças desse tipo. E n tretanto. o mais curioso é que as classificações consdência/segurança (de 1922) confirma ram-se como bom prognosticador da longevidade. As crianças classificadas conto mais conscientes vivem significativamente mais tempo que aquelas classificadas como pouco conscientes nessa escala (Friedman et a i. 1993). O efeito é comparável em grau aos famo sos marcadores biológicos de saúde, como os que avaliam o nível de colesterol. Obviamen-
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te, alguma coisa importante sobre o indivíduo está sendo medida por essas classificações realizadas por pais e professores, obtidas de respostas a questionários semelhantes ao mos trado na Figura 2.1. Fm resumo, as apreciações de pessoas inteligentes podem ser em algu mas ocasiões uma forma extremamente eficaz de avaliar a personalidade. O uso de classificações implica que outras pessoas podem fazer apreciações válidas so bre a personalidade de alguém. Na realidade, há muitas provas de que isso c verdade, in cluindo recentes e sistemáticos estudos sobre avaliações da personalidade que outras pes soas — amigos, conhecidos c mesmo estranhos — podem lazer (Funder & Dobroth. 1987; Funderfr Colvin. 1991; Funder & Sneed. 1993; Kenny, Horncr, Kashyfr Chu, 1992). Por exemplo, as apreciações como um todo sobre o estilo nào-verbal dos professores, feitas a partir da observação desses professores, cm fitas de sequência de menos de *0 segundos (observação de 'frações tênues de comporta m ento'), ofereceram algumas respostas sobre como eles seriam avaliados por outras pessoas (Ambady b Rosenthal. 1993). Em outras palavras, nossas primeiras impressões sobre outra pessoa em determinadas dimensões como extroversão podem, às vezes, ser bastante precisas. Traços como a extroversão são comparativamente fáceis de avaliar (mesmo por estra nhos) porque envolvem relações com outras pessoas; essas ações são prontamente observáveis. Não há dúvida de que outros aspectos da personalidade, como conflitos inter nos encobertos, são mais difíceis de observar, embora mesmo esses conflitos 'tornem-se públicos' por meio de indícios não-verbais como a gesticulação das mãos. Dicas expressi vas são analisadas mais adiante neste capítulo.
M edid as biológicas No início da década de 1800, os escritos de Franz Joseph Gall levaram milhares de pessoas a tentar avaliar sua personalidade examinando as formas e as saliências do crânio humano. Esse método loi chamado de frenoloyia (DeGiustino, 1975). A idéia por trás disso era de que diferentes características psicológicas são representadas no cérebro (uma idéia razoável), e que capacidades altamente desenvolvidas ou deficiências aparecem nas defor midades do crânio. É claro que, ã medida que mais c mais informações eram obtidas sobre o funcionamento do cérebro, essa conclusão sobre a forma do crânio mostrava-se absurda. A resposta do cérebro depende das interligações de células nervosas, e não das peculiarida des do crânio. Ainda assim, a idéia básica da frenologia influenciou o conhecimento sitbsequente sobre a avaliação biológica da personalidade. As avaliações biológicas modernas da personalidade têm por base a suposição de que o sistema nervoso (incluindo a rede neural do cérebro) é a explicação. Assim sendo, as avaliações devem tentar medir comportamentos relacionados com o sistema nervoso como tempo de reação ou condutânda da pele (transpiração), mas essas experiências fo ram com frequência malogradas. Mais estimulantes são as experiências atuais que se con centram no sistema nervoso visando principalmente ao cérebro. Na verdade, um dos maiores avanços nos últimos anos na avaliação de diferenças individuais vieram de novas medidas biológicas (Blascovich. 2000; Cacioppo. Berntson, Shcridan & McCIintock. 2000; Kirchcr e ia L 2000). Um método muito conhecido é o que mede o potencial despertado por meio de eletroencefalogramas (EHGs). Os F.F.Gs medem potenciais elétricos no couro cabeludo, causados por grande população de neurônios, que se tornam ativos simultaneamente. Um dos benefícios do EEG é a não necessidade de um grande laboratório, o que confere maior flexibilidade à pesquisa.
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Teorias da personalidade
Figura ZJ___________________________________________ Um a amostra das questões empregadas no estudo longitudinal de Term an. Por meio de questionários como esse. Terman obteve informações dos pais e professores das crianças que ele estava estudando. Essas classificações da infância mostraram-se preditivas do comportamento adulto. Travo 11. Predileção por grandes grupov IiVMÜuiti J»
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Travo 12. Liderança. Qwttdain òf li t t a v íV tw íiw t tA Ccmrnr
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Traço 15 . Descaí de sobressair-se.
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Tra ç o 17. S im p a tia c te rnura.
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Capitulo 2 m Como a personalidade ê estudada e avaliada ?
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A experiência da frenologia (mensurarão precisa do crânio), ainda que malorientada. era uma tentativa genuína de empregar ferramentas cientificas na mensurarão da personalidade. Esse elaborado instrumento mecânico poderia ter sido muito confiável na determinação dos contornos do crânio, a despeito da falta de validade. O cérebro é composto de variados subsiste mas inter-relacionados. À medida que eles fo rem mais hem compreendidos, a avaliação psi cológica futura provavelmente responderá pelo estudo do funcionamento de cada um desses subsistemas (Matarazzo. 1992). Por exemplo, o uso de potenciais elieiados — ondas cerebrais medidas por F.FG — para estudar atitudes é ra zoavelmente recente (Cadoppo et al.. 1993). A l gum dia. talvez num futuro próximo, podere mos sondar pelos menos alguns aspectos dos padrões ou das tendências gerais de reação das pessoas, monitorando o funcionamento do cérebro delas. A tomografia de emissão de pósitrons (PET) é uma técnica bastante promissora, que mostra a atividade cerebral por meio do registro do uso da glicose radioativa, pelo cérebro. (As células usam a glicose para gerar energia.) Podemos observar a atividade cerebral en quanto as pessoas pensam ou experienriam situações. ( ) resultado de um escaneamento PET é mostrado na Figura 2.2. É possível que diferenças individuais sistemáticas no pro cesso do pensamento possam ser em algum momento reveladas por essa técnica (Blascovich. 2000; Posner. Petersen. Fox &■ Raichle. 1988). Os níveis de hormônio são outra medida biológica promissora. Determinados aspectos dos princípios da personalidade sem dúvida estão ligados aos hormônios. Por exemplo, as pessoas que têm deficiência de tiroxina — horm ônio produzido pela tireóide — podem agir com lentidão e tornar-se depressivas. Talvez hormônios sexuais como a testosterona e o estrogênio sejam o exemplo mais nítido de efeitos hormonais. Esses hormônios ccrta-
Fijnra.2.2 Escaneamento P E T de um cérebro norm al durante o sono REM (rapid cyc movement ou m ovim ento rápido do olho). As imagens PET do cérebro registram o nível de atividade das áreas cerebrais em|uanto a pessoa executa determinada tareia. Os pesquisadores obtêm informações valiosas tanto sobre os padrões usuais da atividade do cérebro de um indivíduo normal quanto sobre a maneira pela qual esses padrões são alterados por vários distúrbios cerebrais. Na imagem ao lado, a cor mais fraca representa as áreas cerebrais com o nível mais alto de atividade metabólica.
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Teorias da personalidade
mente influenciam e mudam a personalidade dos adolescentes na puberdade. Entretanto, mesmo nos ratos não há nenhuma correspondência simples entre hormônios e comporta mento. Por exemplo, a atividade sexual de ratos castrados é parcialmente influenciada por suas experiências anteriores, por estímulos evocativos ao redor deles (W halen, Geary fV Johnson, 1990), bem como por seu nível hormonal. Seria simplificar demais dizer que a testosterona motiva a atividade sexual, mesmo em ratos. As relações nos seres humanos são bem mais complexas. Embora seja fundamental evitar conclusões precipitadas, dispa ratadas e simplistas sobre os hormônios e a personalidade, a deficiência sensível ou o ex cesso de hormônios e neurotransmissores. cuja detecção c possível por meio de exames de sangue, pode de fato exercer profunda influência sobre a personalidade. Para algumas doenças, a avaliação biológica pode também fornecer informações va liosas sobre a personalidade — nesse caso. uma personalidade anormal. Por exemplo, a mania ou a letargia causada por um tumor na glândula tireoide pode ser detectada |>or um teste de funcionamento dessa glândula. O envenenamento moderado do cérebro (por exemplo, o envenenamento por mercúrio ou chumbo) pode ser detectado por exames de sangue radioscópicos. Sintomas semelhantes aos da esquizofrenia podem ser consequên cia de variados tipos de veneno. Ou a mensuração de substâncias químicas encontradas no cérebro, como a serotonina, pode fornecer explicações esclarecedoras sobre personalida des depressivas. Medicamentos antidepressivos. como o remédio psiquiátrico Prozac, po dem gerar mudanças notáveis na personalidade. Além disso, algumas das principais malformações congênitas, como a síndrome de Down, que afeta a inteligência e a personalidade, podem ser identificadas facilmente por meio de análise cromossõmica. (Na síndrome de D ow n, há uma trissomia ou um filamento extra no cromossomo 21.) A atual pesquisa genética pode usar de modo cres cente análises gene-chip,* em que uma série de segmentos de DNA (genes) é rapidamente comparada com um extrato biológico (talvez um fragmento de tecido cerebral), para iden tificar qual dos genes está presente no mesmo extrato. Essas questões biológicas são discu tidas mais detalhadamente no Capítulo 5. Um resumo de medidas biológicas promissoras da personalidade é apresentada na Ta bela 2.4. Observe que o uso dessas medidas é facilitado quando a pesquisa sobre a personalidadc está intimamente ligada à pesquisa ncurodentífica. Às vezes, os questionários de auto-relato baseiam-se em teorias da personalidade deduzidas biologicamente, bem como cm inter-rclaçôes de traços observados em piri camente. Um exemplo de abordagem desse tipo é o Eysenck Personality Questionnaire (EPQ). (Nós explicamos as influências biológicas no Capítulo 5.) Por exemplo, o EPQ con ta com a dimensão do neurotidsmo, que avalia a estabilidade emocional, o neuroticismo faz sentido como dimensão básica da personalidade em termos tanto das reações do siste ma nervoso quanto dos padrões de traço descritos pela própria pessoa. As futuras melho res avaliações da personalidade (e as teorias mais úteis) provavelmente terão laços ainda mais estreitos com os fundamentos da personalidade (Strelau & Eysenck. 1987).
O bservações co m p o rtam entais Francis Gallon, cientista britânico do século XIX, abriu caminho para várias afamlagens a fim dc compreender as diferenças individuais, dentre as quais se incluem técnicas
A tecnologia genc-dtip analisa célula (N. da T.i.
o padrão d c atividade d c m ilhares de genes n o in te rio r de qu a lq u e r
Capitulo 2
Tabela 2.4
Como a personalidade é estudada c avaliada ?
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M ed id as b io ló g ic as/n eu ro cie n tífica s d e d iferen ça s in d iv id u a is
Medida
Descrição
Condutància da pele, batimento cardíaco e pressão sanguínea
Refletem a atividade do sistema nervoso autônomo; em geral são muito genéricas para serem consideradas medidas úteis da personalidade.
Tomografia de emissão de pósitrons (PHT)
Usa moléculas marcadas radioativamente para investigar o funcionamento do cérebro, como a atividade da glicose radioativa, c, dessa maneira, examinar mudanças no metabolismo de energia associado com essa atividade. Outros compostos também podem ser marcados radioativamente e usados para examinar outros processos cerebrais. Porém, as alterações metabólicas podem ser vagarosas e retardadas.
Ressonância magnética funcional (f.MRI)
Usa campos magnéticos significativamente amplos para sondar os movimentos das moléculas. 0 f.MRI beneficia-se das diferenças nas propriedades da hemoglobina oxigenada e desoxigenada, produzindo, portanto, um sinal que se relaciona com a atividade cerebral (a atividade neural usa oxigénio).
Eletroencefalograma (EEG)
Mede os potenciais elétricos no couro cabeludo, produzidos por uma grande população de neurônios que se tornam ativos simultaneamente. A onda PJOO ocorre em resposta a novos estímulos e pode provar-se útil no estudo sobre as diferenças nas reações a inovações.
Enccfalografia magnética (M EG)
Embora seja semelhante ao EEG. em vez de registrar os potenciais elétricos, registra os campos magnéticos produzidos pelas correntes elétricas no cérebro.
Exames neuroquímicos
Procede a análises químicas que investigam a presença de determinados neurotransmissores, metabólitos transmissores ou hormônios. O local a ser examinado pode ser o fluido cérebroespinhal ou o sangue. Nos esttidos cm animais, os exames podem ser realizados diretamente no cérebro (por microdiálisc).
Exame posl-morion
Estudos sobre genes candidatos
Examina diferenças individuais de anatomia (tanto geral quanto celular), da quantidade e do local dos neurorrcoeptores (após a morte). Investigações sobre genes específicos que se correlacionam com personalidades específicas, embora vários genes provavelmente contribuam com qualquer traço da personalidade. Tendo em vista o bem-sucedido esclarecimento sobre o genoma, essa abordagem biológica tende a ganhar lugar de destaque nos anos vindouros.
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Teorias da personalidade
O cientista inglês Sir Francis Galton (1822-1911) concentrou-se na mensurarão das diferenças individuais sob diversas variáveis, usando instrumentos simples.
de observação comportamental. Em seu laboratório antropometrico. Galton reuniu todos os tipos de medida física de pessoas e, em seguida, começou a investigar suas reações em circunstâncias controla das (Galton. 1907). Por exemplo, o assobio de Gal ton eliciava as reações dos sujeitos da experiência a níveis elevados e os instrumentos mediam seu po tencial de compreensão. Ele projrôs o uso de um manómetro escondido embaixo da cadeira na qual as pessoas se sentavam, para medir o grau de “incli nação", e usou seu sextante para medir discreta mente as dimensões de "generosidade" nas mulheres. Inteligente como era. Galton também foi sem dúvida influenciado pelas atitudes pre valecentes de sua época e de sua classe social; por exemplo, ele falava com certo racismo sobre "o caucasiano mais superior" e o "selvagem mais inferior". No século passado, vários importantes pesquisadores da personalidade foram igualmente vendados pelos preconcei tos raciais que penetraram nos respectivos meios intelectuais. Na moderna investigação sobre a personalidade, a observação comportamental pode ser tão simples quanto enumerar as experiências das pessoas (por exemplo, quantas ve zes elas gaguejam, ou se coçam, ou quantos drinques elas tomam). Ou. então, pode tornar-sc extremamente complexa â medida que os pesquisadores tentarem compreender as interações de um indivíduo com outras pessoas. (O videoteipe pode ser empregado nesse caso.) A disponibilidade de bipes eletrônicos permitiu tirar uma amostragem mais conclusi va do comportamento. O experimentador determina os intervalos de tempo a serem amostrados e envia uma mensagem eletrônica por meio do bipe. Quando o bipe da pessoa que está participando soa. ela entra em contato com o experimentador, ou faz anotações diárias sobre uma atividade que está ocorrendo naquele momento, ou, talvez, até mesmo processos de reflexão (Stonc, Kcsslcr & llaythomthwaite. 19911. Isso às vezes é chamado de método de avaliação de amostragem de experiências. (É surpreendente a quantidade de estudantes universitários que. inesperada mente, foram pegos tendo devaneios sobre ativi dades sexuais.) O uso da observação comportamental presume que o comportamento presente é um prognosticador confiável e válido do comportamento futuro. Quando uma amostra ade quada do comportamento presente é coletada, essa suposição geralmente se comprova verdadeira.
E n trev istas Uma forma aparentemente óbvia de obter informações sobre a personalidade de deter minada pessoa é conduzir uma entrevista. Uma entrevista clássica na psicologia é a entre vista clínica, em que o cliente (paciente) fala sobre partes importantes ou problemáticas de sua vida. Na psicanálise, esse paciente, na maioria das vezes, dcita-sc de fato em um divã.
Capitulo 2 m Como apersonalidade é estudada c avaliada?
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A validade dc uma entrevista de avaliação é difícil de averiguar. Certamente, há vá rias razões por que algumas pessoas talvez não queiram ou não possam falar sobre seus pensamentos, sentimentos e motivações mais profundos. Uma forma de apreciar a valida de da entrevista clínica é observar os resultados da terapia. Presumivelmente, uma entre vista diagnóstica que resulte em um tratamento claramente eficaz tende a estar mais cor reta do que um diagnóstico que resulte em um tratamento falho. Muitos outros fatores concorrem |>ara esse resultado. Além disso, as entrevistas, com frequência, revelam-se fer ramentas de avaliação valiosas. Nas décadas dc 40 e 50. Alfred Kinscy (Kinsey, Pomeroy & Martin. 1948) usou entre vistas para investigar a sexualidade humana. Estabelecendo um sentimento de confiança entre os entrevistados, Kinscy podia eliciar manifestações que aquelas pessoas jamais se comprometeriam a declarar por escrito. Kinsey também sabia como levantar perguntas relevantes e como estabelecer uma sequência de perguntas coerentemente até obter in formações que causassem alguma impressão. As entrevistas talvez sejam extremamente vagas e subjetivas, mas um entrevistador habilidoso pode revelar infonnações surpreen dentes não obteníveis por nenhum outro meio. Por exemplo, vários dos participantes de Kinsey em algum momento acabaram falando sobre suas experiências homossexuais, re lações sexuais com animais e relações extraconjugais. Nos últimos anos, as entrevistas de avaliação acabaram se tornando mais sistemáticas e estruturadas. Em vez de seguir os meandros do entrevistado, o entrevistador segue um plano definido. Nesse sentido, espera-se que tipos semelhantes de informação possam ser eliciados de cada entrevistado e a avaliação possa se tornar mais válida. Uma das entrevis tas investigadas e mais bem estruturadas é aquela que costuma avaliar o padrão de com portamento Tipo A. Na década de 50, dois cardiologistas propuseram que determinadas pessoas — carac terizadas como tensas e competitivas — são particularmentc propensas a desenvolver doenças coronarianas. Eles chamavam tais pessoas (em sua maioria homens) de "Tipo A*. Hoje já há entrevistas padronizadas que se revelaram muito confiáveis para avaliar a per sonalidade Tipo A. A propósito, os mais recentes dados sobre saúde sugerem que as pes soas avaliadas como particularmente competitivas e hostis são dc lato mais propensas a desenvolver doenças cardiovasculares, embora as causas relacionadas ainda não sejam co nhecidas. Na entrevista estruturada do Tipo A, o entrevistador laz uma série de perguntas desa fiadoras (Chesney & Rosenman, 1985). Várias dessas perguntas dizem respeito a circuns tâncias em que há competição com outras pessoas: “O que você faz quando, em uma auto estrada, está colado atrás de um motorista lento?' Curiosamente, o Tipo A é diagnosticado com base nas respostas verbais e não-verbais a essas perguntas. Um motorista que respon de com irritação e palavras curtas, voz alta e os dentes cerrados — 'E u praguejaria contra essa lesma!' — provavelmente seria considerado um Tipo A. Um dos homens do Tipo A mais característicos que já entrevistamos, ao ser perguntado se jogava para ganhar respon deu gritando: 'E u jogo para exterminar!" Avaliar o padrão Tipo A também traz à tona o problema 'tipo »vrsus traço', um quebro-cabeça de longa data na teoria da personalidade. A tipologia é um esquema categórico em que as pessoas ou estão em um grupo ou estão em outro. Por exemplo, feminino e masculino são um tipo. Todo mundo, com raras exceções, é uma coisa ou outra. Entretan to, o que dizer da masculinidade — ter características psicológicas (como a agressividade), normalmente atribuídas aos homens? Isso não é um tipo, mas um traço, porque as pessoas (tantos os homens quanto as mulheres) podem ser mais ou menos masculinas. As aborda-
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Teorias da personalidade
gcns sobre traço são muito mais comuns do que* as abordagens sobre tipo na atual pesquisa sobre a personalidade. O Tipo A, que surgiu de pesquisas médicas, foi originalmente elaborado tendo em vis ta o tipo: você tem ou não essa característica, da mesma forma que você tem ou não tuber culose. Alguns defendem que ele. na verdade, deveria continuar sendo um tipo (Strube, 1989) por haver descontinuidades envolvidas. Nos últimos anos, entretanto, o Tipo A tem sido compreendido mais em termos de uma agressiva competitividade e hostilidade — tra ço cm que todos podem ser classificados. Observe que nossas técnicas de mensuraçâo têm implicações nas nossas teorias e nossas teorias têm implicações nas nossas técnicas de mensuraçâo. Em geral, as entrevistas têm a grande desvantagem dc estarem sujeitas à tendenciosidade do comportamento do entrevistador. Um entrevistador que espera um cliente (ou um paciente, candidato ou estudante) 'problemático'' pode com frequência induzir o entrevistado a falar livremente sobre o comportamento esperado. Além do mais, da mes ma maneira que nos questionários de auto-relato o entrevistador pode muito bem recor dar informações que o entrevistado conhece e deseja revelar. Contudo, como foi observa do, um bom entrevistador pode averiguar dinamicamente fatos e sentimentos que sào difíceis de identificar dc qualquer outro modo.
C om p oriam en to ex pressivo No caso da entrevista estruturada Tipo A. a avaliação da personalidade baseia-se em parte nas respostas verbais e cm parte cm respostas não-verbais vocais como a sonoridade e a velocidade da fala. As dicas não-verbais da forma de expressão sào de fato e por si pró prias uma maneira interessante de avaliar a personalidade. O estudo moderno sobre estilo e personalidade expressivos sofreu grande impulso na década dc 30. com o estudo dc Gordon Allport e P. E. Vernon (1953). Na maioria das vezes, o modo pelo qual as pessoas fazem as coisas é mais informativo do que o que fazem. Algumas pessoas falam em voz alta. outras suavemente; algumas riem muito e são bastante expressivas, «nas outras parecem irritadas ou depressivas. Com frequência podemos reconhecer uma pessoa ao telefone pela forma como ela fala "alô' e em geral podemos reconhecer nossos amigos, ao longe, no campus da escola, apenas pelo modo como andam. A expressão, em especial a emocional, parece intimamente ligada a aspectos dinâmicos e motivacionais da personalidade. O estilo e personalidade expressivos são abordados posteriormente no Capítulo 8. (Cabe salientar que a observação da forma de expressão, embora considerada parte da "observação comportamental', tem seu pró prio sabor.) A forma de expressão é uma excelente maneira de avaliar o carisma pessoal — embo ra tenha maior validade, ela exige mais do examinador do que os questionários de autorelato, como o ACT. Por exemplo, as pessoas carismáticas parecem menos nervosas, têm gestos firmes e tendem a ter um discurso mais fluente e estimulador. Na verdade, tendem a atrair a atenção e o interesse de estranhos. Por avaliar esses aspectos da personalidade, a forma de expressão sem dúvida está entre as melhores técnicas. Assim como outros instrumentos de medida, a forma de expressão muitas vezes é in fluenciada por fatores culturais. Por exemplo, os americanos do sul tendem a falar mais vagarosamente, de acordo com a fala arrastada sulista. Seria um erro igualar essa fala va garosa com a fala de um nova-iorquino que se expressa pausadamente; no caso do novaiorquino, a fala incomttm (vagarosa) provavelmente revela sua personalidade, mas no
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Algumas pessoas lim habilidades expressivas extraordinárias, que lhes permitem representar com êxito diferentes personagens; elas podem usar emoções, condutas, posturas e estilos amplamente variados.
caso dos sulistas a fala arrastada reflete a cultura re gional. Além disso, observe as diferenças do olhar atento — a maneira como as pessoas fitam algo. Em uma conversa, os americanos brancos tendem a olhar para o interlocutor enquanto escutam, mas desviam o olhar enquanto estão falando; os afro-amcricanos olham relativamente mais para o interlocutor en quanto estão lalando e relativamente menos enquan to estât) escutando (LaFrance fr Mayo, 1976». Se esses padrões culturais nào forem levados em conta, ocorre rão erros na avaliação da personalidade. Por exemplo, uma pessoa branca pode avaliai uma pessoa negra como menos cooperativa do que ela de fato é. É provável que alguns avaliadores não tradicionais, como os adivinhos, se valham, na maioria das vezes, do modo de expressão para fazer seus prognósticos. Por exemplo, ima gine que uma jovem obesa e escrupulosa se aproxime de um cartomante e pergunte sobre seu futuro usando voz mole e estridente, acompanhada de uma risada exaltada e em posi ção corporal de submissão. O cartomante responde: 'Você provavelmente tem dificuldades de sair com homens por causa de sua timidez...' e assim por diante. É claro que o carto mante, que fez. uma avaliação válida, mas vaga, não está lendo a mente nem a palma da mão dela; cm vez disso, ele está lendo seu modo de se expressar.
A nálise d e d o cu m en to s e h istó rias d e vida Talvez nào seja nenhuma novidade a constatação de que os diários e outros tipos de anotação pessoal são fonte valiosa de informações sobre a personalidade, mas esses recur sos raramente são empregados na psicologia da personalidade. Gordon Allport considera va as cartas e os diários excelente fonte de informações no estudo sobre a mudança de per sonalidade (desde que tenham continuidade) e defendia-os como um bom teste do valor de uma teoria sobre a personalidade. Segundo Allport. os 'psicólogos estão em um terreno seguro contanto que falem da personalidade de modo abstrato e geral', mas o verdadeiro teste tem seu lugar quando o psicólogo experimenta explicar a vida de uma única pessoa real. Em 1965. Allport publicou Letters front Jenny [Cartas de Jenny\, uma coletânea de mais ou menos trezentas cartas escritas por Jenny Gove Masterson ao longo de uma década an tes de sua morte, bem como sua 'explicação' sobre Jenny, na qual ele usa a teoria sobre a personalidade para lazer uma leitura das cartas. Jenny levou uma vida frustrada e pessimista. A tentativa de explicar Jenny com base em sua correspondência revelou-se um desafio difícil para Allport. Por exemplo, em uma das cartas. Jenny assim escreve: 'Quase sempre acho que sou a mulher mais solitária da face da Terra" (1 5 de outubro de 1955). Será que deveriamos levar esses comentários ao |K; da letra ou deveríamos considerar a possibilidade de terem sido moldados por uma vari edade de forças? Pelo fato de termos apenas as cartas, c difícil saber como proceder. Em
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Teorias da personalidade
vista dessas dificuldades, fica claro por que poucos psicólogos da personalidade empreen deram. a partir daí. algum trabalho desse tipo. Ainda assim a análise de documentos é uma das poucas maneiras de alcançar uma compreensão abrangente de um indivíduo ao longo do tempo. (C) método de observação comportamental de amostragem de experiências é outro.) A análise de documentos pode também concentrar-se em perguntas mais estreitas. Fm uma interessante análise arquivística da inteligência de Galton. Lewis Terman, usando principalmente suas cartas, afirmou que o Ql de Galton deve ter sido de no mínimo 200 (Terman, 1917). Por exemplo, antes dos 5 anos. Galton escreveu uma carta gabando-se de que ele tinha aptidão |>ara ler qualquer livro cm inglês, conhecia muito bem o latim, sabia a tabuada e conseguia ler razoavelmente em francês. Em torno dos 6 anos. Galton teve seu primeiro contato com os livros Ilíada e Odisséia e, por volta dos 7. leu Shakespeare |>or puro prazer. Além disso, aqueles que o conheciam descreviam-no como uma criança distinta, afetuosa e altruísta. Ao comparar as realizações de Galton com a de crianças com o dobro de sua idade. Terman pôde avaliar e documentar a genialidade de Galton. Os diários podem fornecer dados panicularmcntc úteis sobre a personalidade de pes soas que viveram em outros lugares e épocas. A Figura 2.3 mostra uma página do diário escrito, cm segredo, por Annc Frank, durante o holocausto nazista. Uma das conclusões mais interessantes que podemos extrair de uma análise desse documento é que, mesmo em um dos mais assustadores e terríveis ambientes já imaginados, Anne ainda assim se preocupava predominantemente com problemas normais dos pré-adolescentes e adoles centes — sua aparência física, sua independência dos pais. a formação de sua identidade e sexualidade. Muitos biógrafos criteriosos contam com a documentação pessoal deixada por pes soas historicamente célebres. É claro que é possível justificar por que documentos tais
Um a página do diário de Anne Frank. A análise de documentos permite obtermos informações elucidativas sobre a personalidade de um indivíduo por meio de seus escritos, particularmente autobiográficos como diários e cartas. Aqui, apresentamos uma página do diário de Anne Frank, que viveu com a própria família em um esconderijo, em Amsterdã, na década de 40, em sua última tentativa malsucedida de evitar ser assassinada pelos nazistas. Esse fragmento, escrito cm holandês, foi o último que Anne escreveu. Alguns dias depois, ela foi descoberta e enviada para um campo de concentração, onde morreu.
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como cartas dc amor, formulários dc requisição de emprego ou autobiografias não podem ser indício totalmente honesto de pensamentos e sentimentos, mas o padrão desses docu mentos pode. entretanto, comprovar-se revelador. A análise de documentos é particular mente útil quando o objetivo é compreender a grande/a psicológica da vida de determi nado indivíduo. A consecução desse objetivo em geral se dá com estudos psicográficos de indivíduos complexos sobre os quais temos informações abundantes provindas de outras fontes. Por exemplo, insights excepcionais podem ser encontrados nas obras de Erik Erikson Yoiuy Man Luther (u m estudo sobre Martin Luther) e Gandhi's Truth (uma pesqui sa sobre Mahatma Gandhi). Os escritos pessoais são muito úteis quando nossas avaliações (iodem ser confirmadas por outras fontes de informação.
Testes projetivos Quando uma criança passa por experiências traumáticas como abuso sexual, aciden tes de trânsito trágicos ou campos de batalha (como uma guerra civil ou um ritual religio so violento), os psicólogos e psicanalistas frequentemente são solicitados a avaliar os efei tos de longo prazo sobre o desempenho da criança. Uma técnica de avaliação gcralmente usada nessas circunstâncias é pedir à criança para desenhar uma figura ou uma série de figuras. O uso de figuras como parte da avaliação psicológica remonta à década de 20. A idéia subjacente é de que a criança (ou o adulto) pode estar querendo transpor para uma figura determinadas coisas cuja discussão é muito desconfortável. O u acredita-se que as figuras podem, às vezes, revelar coisas que estão até mesmo fora do âmbito da consciência, como as motivações inconscientes. Se uma criança desenhar a figura do pai com um pênis extremamente grande, sem os traços faciais ou circundado por serpentes, o desenho pode indi car um problema psicológico. As técnicas de avaliação que solicitam às pessoas o desenho são subjetivas. (As expe riências que buscaram torná-las objetivas tentando descobrir vínculos entre determinadas características nas figuras e aspectos particulares da personalidade foram malsucedidas.) A utilidade dessas técnicas, portanto, depende da habilidade do interpretador, que normalmente é um terapeuta. Porém, como foi observado, as figuras permitem a obtenção de in formações potcncialmcntc elucidativas sobre esse 'artista*. Um exemplo de teste desse tipo é apresentado na Figura 2.4. As técnicas de avaliação que procuram estudar a personalidade usando estímulos, ta refas ou situações relativamente nào-estruturados são denominadas testes pro je tivo s por possibilitar à pessoa que 'projete' as próprias motivações no teste do avaliador. Além do desenho de figuras, os testes projetivos incluem atividades como narrar uma história, completar sentenças ou associar palavras.
Figura 2.4 Resposta de uma criança a um teste "desenhe uma pessoa". Os testes projetivos permitem que um indivíduo determine o conteúdo de uma resposta. Essa figura foi desenhada por uma criança de 9 anos, cm resposta ao que lhe foi pedido: *Desenhe uma pessoa*. Alguns psicólogos acreditam que |>odcmos obter informações elucidativas sobre a personalidade de uma criança analisando as características de uma figura desenhada por ela.
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Figura Z5______________ Um a mancha de tinia do tipo Rorschach. O teste de Rorschach pede ao examinando para descrever cada uma das imagens de uma série de manchas de tinta As manchas de fato usadas no teste Rorschach não puderam ser reproduzidas aqui. mas a mancha de tinta mostrada ao lado, em termos de consistência, é semelhante aos originais.
Os lestes projetivos parecem parti* ctilarmenie valiosos para proponentes de teorias psicanalíticas, porque as teorias basciam-se cm motivações inconscientes e na aplicação de testes projetivos a fim de capturar essas motivações. (A teoria psicanalítica é explicada detalhadamente no Capítulo 3.1 No início do século XX, o psiquiatra suíço Hermann Rorschach começou a mostrar manchas de tinta a seus pacientes e a pedir que eles as descrevessem. O Rorschach. desde então, tornou-se um dos testes projetivos mais amplamente utilizados. Um exemplo do tipo de mancha de tinta usado é mostrado na Figura 2.5. Assim como outros testes projetivos, o teste de Rorschach apresenta estímulos indefinidos e ambíguos e observa as respostas do examinando (Exner, 1986). À medida que a pessoa cm teste examina e res ponde a uma série de dez manchas de tinta, o examinador do Rorschach registra o que é dito e. posieriormente, anota se a pessoa está olhando para ioda a mancha de tinta ou para partes dela. se está 'v e n d o ' um objeto em movimento, se está reagindo ao sombreado e assim por diante. O examinador pode. portanto, fazer um acompanhamento com pergun tas como "O que o levou a di/er que você viu nesta figura uma bola saltitante?" Pelo fato de as pessoas na maioria das vezes nào terem consciência dos fatores que motivaram seus atos, a investigação dessas motivações, embora não seja tema fácil, é es sencial se quisermos compreender o comportamento. Os testes projetivos, usando tarefas e estímulos indefinidos e. em seguida, sondando a resposta emocional ou motivacional do participante, tenta obter a fundo o modo de cada um ver o mundo. O Teste do Pirata para Crianças tem alguns aspectos projetivos, tendo em vista que os piratas podem eliciar res postas interessantes nas crianças e nào há nenhuma resposta aparentemente correta. Por exemplo, podemos supor corretamente que uma criança que solta um grito forte de pirata quando se encontra com o Capitão Gancho e que. por iniciativa própria, caminha em tor no da casa com uma espada e uma handana, tem um aspecto agressivo cm sua personali dade. O Rorschach tem um problema significativo em comum com outros testes projetivos, denominado classificação. As interpretações pessoais do examinador podem nos oferecer algumas informações elucidativas e interessantes para seguir de perto, mas não havería nenhuma confiabilidade. Ou seja, examinadores diferentes, ou ate o mesmo examinador em diferentes ocasiões, podem chegar a interpretações diferentes (classificação). Esse pro blema pode ser solucionado treinando os classificadores em um sistema de classificação padronizado; por exemplo, as pessoas que vêem um cenário cinzento na maioria das man-
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chas de tinta podem ser classificadas como depressivas. Infelizmcntc, para a maioria das pesquisas que usam o Rorschach, ele não se provou bastante válido, mas ainda permanece potencialmente útil. em particular para obter informações clínicas elucidativas (Exner, 1986; Peterson. 1978). Na avaliação projetiva, a pessoa recebe a instrução de que não há nenhuma resposta correta, e de fato não há. Um dos testes projetivos mais comumcnte usados é o Teste de Percepção Temática ou T A T (Bellak, 1993). A o administrar o TAT. o avaliador simplesmen te instrui o participante a compor uma história sobre uma figura que será mostrada, in cluindo um prognóstico sobre o que ocorrerá em seguida. Depois disso, o avaliador mostra a primeira figura (que pode ser um jovem contemplando um violino). Às vezes, o avalia dor toma nota da história; às vezes, os próprios participantes são que tomam nota. O TAT. portanto, procura mostrar como uma pessoa dispõe um estímulo indefinido. Por exemplo, se o participante conclui que o garoto está angustiado porque acabou de deixar o violino cair na escada e teme apanhar de seu pai. o avaliador pode começar a procurar pistas de agressão latente. I: importante observar que os testes projetivos, assim como todos os testes de perso nalidade. fazem suposições sobre o tipo de personalidade e o comportamento. Os testes projetivos pressupõem padrões motivacionais básicos c profundos c esses padrões mos tram-se no modo como respondemos aos estímulos perceptivos. Testes como o T A T foram considerados particularmente valiosos por Hcnry Murray, porque sua teoria sobre a perso nalidade baseou-se na ideia de necessidades inconscientes que se esforçam para serem sa tisfeitas (Sm ilh. 1992).
D em ográficos e d e eslilo d e vida Não c tão incomum ouvir alguém fazer o seguinte comentário: "Não suporto capricomianos. Gosto mesmo é de arianos". O enunciador dessa frase está se valendo da astrologia — está usando corpos celestiais e os signos do zodíaco (um cinturão imaginário dos poderes celestiais) — para falar sobre indícios da personalidade. A astrologia teve iní cio há bem mais de 2.500 anos, quando vários povos antigos acreditavam que seu destino estava escrito nas estrelas. Hoje. a astrologia normalmente mapeia a posição do Sol, da lua e dos planetas no momento do nascimento da pessoa, a fim de predizer as características e o destino dela. Não é impossível que acontecimentos celestiais influenciem o comportamento hum a no; por exemplo, a lua influencia as marés, a radiação solar influencia os campos magnéti cos da Terra e a posição da Terra influencia o tempo. Porém, a astrologia valeu-se em gran de |>arte da superstição e da fé, em vez de alguma análise científica rigorosa. Ela não tem nenhuma validade científica. A obstinada popularidade da astrologia lembra-nos da dispo sição de muitas pessoas a aceitar praticamente qualquer explicação sobre a personalidade. Ni) entanto, para compreender um indivíduo cm geral é útil averiguar, se não as in formações astrológicas, os variados tipos de informação demográfica — faixa etária, locali dade cultural de nascimento, religião, tamanho da família e assim por diante. Todas essas informações correspondentes a estatísticas da população ajudam a fornecer uma estrutura para compreender melhor o indivíduo. A avaliação de uma pessoa de 20 anos geralmente deve ser diferente, no que se refere à conduta e à interpretação, da avaliação de uma pes soa de 18 anos. Contudo, por si sós, as informações demográficas podem ser mal-empregadas. como no caso de irmãos gêmeos que compartilham de todas as características estatísti cas. mas tem personalidade complctamcntc diferente.
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Teorias da personalidade
bo clássico ao contemporâneo
O TAT Quando Sigmund Freud e seus colegas psica nalistas descobriram o inconsciente, enfrentaram um problemático desafio em suas pesquisas. As motivações inconscientes, por definição, não são acessíveis aos processos de reflexão conscientes. Elas estão escondidas. Portanto, é claro que não podemos esperar que uma pessoa esteja apta a nos falar diretamente sobre essas motivações incons cientes. Como veremos no Capitulo 5. Freud va leu-se em grande parte de investigações sobre a li vre associação durante entrevistas terapêuticas e em análises de sonhos. Entretanto, seus discípulos buscaram outros métodos. Os testes projetivos permitem que uma pes soa ‘ projete* suas motivações internas no teste do avaliador. Esses testes, portanto, coletam in formações elucidativas sobre pensamentos e sen timentos que não estão ao alcance da consciência do examinando. Um dos testes projetivos mais comumente usados é o de percepção temática (Thematic Apperception Test, TAT), desenvolvido por Henry Murray. O avaliador ou clínico instrui o participante a compor uma história sobre uma figura que será mostrada, incluindo um prognós tico do que ocorrerá em seguida na história. De pois disso, o avaliador apresenta a primeira figu ra (por exemplo, a figura de uma jovem agarrada aos ombros dc um jovem», que pode revelar vari adas associações psicológicas que correspondem à vida do examinando. 0 TAT, portanto, busca observar como uma pessoa dispõe um estímulo indefinido. Ele é amplamente usado por clínicos de orientação psicodlnâmica como principal fer ramenta em questões relativas ã personalidade e motivação interior. Infelizniente. o TAT há muito tem sido cerca do por controvérsias, c essas contendas continu am. Há pouco tempo, o psicólogo Scott Lilienfeld e seus colegas reviram cuidadosamente a evidên cia dessa pesquisa e levantaram sérias dúvidas sobre a validade do TAT e de testes correlator particularmente no que se refere à maneira como são usados (Lilienfeld, Wood & Garb. 2000). Um
dos problemas é que no TAT estão sendo usados vários sistemas de classificação padronizados e muitos clínicos simplesmente preferem valer-se de suas próprias impressões clínicas. Um segundo problema tem a ver com as discrepâncias entre resultados do TAT e escalas de auto-relato; a dis crepância é um problema de validade ou é um resultado esperado da discrepância entre motiva ções conscientes e inconscientes? De modo geral, as contendas científicas giram em torno de ques tões sobre confiabilidade e validade — ou seja. a classificação de uma pessoa é aproximadamente a mesma quando é testada uma outra vez. em outra ocasião, por examinador diferente? E a classificação da pessoa é associada e confirmada por outros indicadores que predizem determina dos resultados? Ainda não há respostas absolutas a essas indagações. O ponto crucial da controvérsia, na maioria das vezes, reduz-se ao propósito do TAT (Dawes. 1998: Woíke, 2001). Se um cliente em psicoterapia estiver experimentando um tipo de ansiedade crônica, e se o TAT puder oferecer ao clínico e ao cliente informações elucidativas sobre experiên cias ou conflitos que podem estar causando essa ansiedade, o teste terá valor, mesmo se porventu ra contiver algum erro. Entretanto, se o propósito for avaliar a adequação de uma pessoa para ser professora ou para testemunhar ent um tribunal contra alguém que foi acusado de abusar de uma criança, qualquer erro que decorra da pouca confiabilidade e validade do teste teria consequên cias muito sérias. Além disso, se testes projetivos como o TAT forem administrados a uma grande quantidade de pessoas saudáveis como forma de proceder a um tipo de triagem e forem interpreta dos |Kir clínicos que costumam tratar pessoas com problemas mentais, a falta de validade segura pode dar lugar à tendência de 'superpatologizar'. isto é. considerar pessoas saudáveis como pertur badas. Para aqueles que estudam a personalidade, es sas questões são também importantes no âmbito
Capitula 2 m Cama a personalidade é estudada e avaliada? prático, na medida cm que é possível deparar com uma controvérsia sobre a avaliação no local de trabalho, no tribunal ou no consultório médico. Com alguma compreensão sobre como as avalia ções da personalidade são elaboradas, sobre seus limites e potencialidades, sobre os propósitos pe los quais elas são mais bem utilizadas e sobre as teorias em que se baseiam, você poderá fazer uma apreciação mais inteligente sobre se a avaliação é apropriada e perfeita para o contexto específico cm que ela está sendo usada.
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L E IT U R A A D IC IO N A L Dawes. R. M . 'S ta n d a rd s lo r Psycothcrapy*.
In
It.
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G a rb . H . N . T h e
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2000. W oike. B . 'W o r k in g w ith Free Response Data: Let's Not G iv e U p H o p e '. Psychological Inquiry. 12:1 5 7 -1 59, 2001.
Para compreender melhor um indivíduo, precisamos conhecer o ambiente cultural e a identidade cultural da pessoa em questão. Isso é partieularmente verdadeiro se a cultura dessa pessoa não é a que está em voga. Muitas teniativas disparatadas foram empreendi das para avaliar a personalidade dos afro-americanos, sem que houvesse algum esforço para compreender a cultura afro-americana. Por exemplo, os Panteras Negras, que surgi ram do movimento pelos direilos civis da década de 60, na maioria das vezes foram vistos pela cultura dominante como rebeldes problemáticos c agressivos, embora raras vezes fos sem violentos e estivessem intimamente envolvidos cm programas sociais que beneficia vam suas comunidades. Da mesma maneira, nos Estados Unidos, os gays (homossexuais e lésbicas) são cada vez mais influenciados pela cultura gay. em particular em grandes cida des como San Francisco, Los Angeles e Nova York. O padrão de comportamento incomum (não em voga) de um gay pode erroneamente ser atribuído à sua personalidade, se sua cul tura não tiver sido levada em conta. Essas disposições demográficas c culturais não são psicológicas. Portanto, não se en caixam tranquilamente na maioria das teorias sobre a personalidade. Entretanto, os psicó logos da personalidade frequentemente negligenciam essas influências sociais. Por exem plo, o fato de ter havido tantos comunistas na Rússia na década de 20. tantos hippies na Califórnia na década de 60 e tantos divórcios nos Estados Unidos na década de 70 é mais bem explicado em termos de fatores sociais do que por meio de opiniões segundo as quais esses indivíduos tinham uma personalidade comunista, ou uma personalidade rebelde, ou ainda uma persona lidade propensa ao divórcio.
A cantora e estrela de cinema Jennifer lopez descende de uma família porto-riquenha do Bronx. Além de ser um sucesso como a mais bem paga atriz latina de todos os tempos. Jennifer já manteve álbuns e compactos nas paradas de sucessos. Sua detenção e prisão após uma pancadaria em uma casa noturna e sua perseguição em alta velocidade peta policia parecem destoar de sua imagem. Será que poderiamos compreender as contradições na vida de Jennifer Lopez dispondo as características exclusivas de sua personalidade no contexto do ambiente cultural dos rappers e de Hollywood?
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Teorias da personalidade
Há algum m étodo d c avaliação m elho r? Qual o melhor método de avaliação? A resposta depende cm parte da pessoa, do ava liador e do propósito da avaliação. Por exemplo, se estivermos interessados em observar que aspectos da personalidade predizem doenças coronaríanas, devemos empenhar-nos por refinar e utilizar técnicas de avaliação que de lato prognostiquem precisa e proveitosa mente doenças cardíacas. Se estivermos interessados nos motivos inconscientes subja centes à agressão, deveremos usar testes projetivos ou observações comportamentais em vez de testes de personalidade de autorelato. E assim por diante. O mais importante é nos mantermos sempre bem focalizados na avaliação da validade. Algumas das vantagens e li mitações de medidas comuns da personalidade são mostradas na Tabela 2.5. Além disso, é fundamental lembrar que a validade de quase todas as técnicas de ava liação da personalidade são desafiadas pelo fenômeno da supergeneralização, em excesso, do efeito de Barnum — a tendência de indivíduos e clínicos de aceitar prontamente descri ções vagas da personalidade como se fossem válidas e específicas (Cash, Mikulka fr Brown. 1989; Prince & Guastello, 1990). Uma avaliação de valor mostra o que é peculiar ou dife rente na pessoa que está sendo avaliada.
Como m o testara personalidade______________ fi surpreendente a quantidade de tempo e dinheiro que algumas pessoas gastam ten tando empregar formas de avaliação da personalidade que são. na melhor das hipóteses, marginalmente válidas. Muitas são sem dúvida enganosas ou ilusórias. Discutiremos bre vemente algumas delas aqui. Como observado, um dos métodos mais antigos c disparatados é a astrologia, estudo da personalidade segundo os astros. Vários jornais ainda hoje publicam horóscopos, dando conselhos indistintos como "Sua sorte está |>or v ir'. Eles são praticamente tão valiosos quanto os biscoitos da sorte, com a exceção de que não são tão gostosos. Outro conjunto de métodos inválidos são os que empregam a mensuração do corpo. Como foi mencionado antes, um deles — a frenologia (também chamada de cranioscopia) — vale-se da teoria incorreta do século XIX de que a forma da cabeça fornece indícios do cérebro e a forma do cérebro fornece indícios da personalidade. Quando foi proposta pela primeira vez. essa idéia não era totalmente ridícula porque pouco se sabia sobre o funcio namento do cérebro. Entretanto, é curioso que métodos semelhantes e igualmente inváli dos e obsoletos continuem existindo ainda hoje. Além disso, existem os métodos de avaliação usados em parques de diversão, em saletas particulares ou j»or falsas religiões. Tradicionalmente, nesses métodos incluíam-se a quiromancia e a numcrologia, mas hoje eles abrangem disparates qualificados, falsamcntc classificados como de alta tecnologia, como análise do cabelo ou interpretação da voz. por computador. Mais problemáticas ainda são as técnicas dc avaliação que englobam aspectos da for ma de expressão: elas são problemáticas porque a forma de expressão (em particular a emocional) pode ser um indicador válido da personalidade. Uma dessas técnicas duvidosas é a grafologia ou análise da escrita. As análises de escrita, em geral, são vendidas a empre sas para seleção dc pessoal. Embora não haja nenhuma evidencia razoável que justifique as detalhadas avaliações oferecidas pelos grafologistas, talvez de fato algumas informações sejam reveladas jn-la caligrafia dc uma pessoa (veja a Figura 2.6). Por exemplo, é provável que a caligrafia masculina na maioria das vezes possa ser diferenciada da escrita femini-
Capitule 2
Tabela 2.5
Como a personalidade é estudada c avaliada ?
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V antagens e lim ita çõ e s d e m e d id a s da p e rs o n a lid a d e
Tip o de teste
Vantagens e limites
Auto-relato
Pode ser diretamente padronizado, é fácil de administrar, confiável e captura bem pontos de vista sobre o íc //; porém, é limitado em termos de riqueza de informações; é fácil de ser falsificado e depende do autoconhedmcnto.
Q-Sort (Classificação 0 )
(■ mais dinâmico (há maior envolvimento do respondente) que os questionários, pode produzir uma classificação de características e itens idênticos e pode ser usado para classificar diferentes objetivos; porém, tem as mesmas limitações que os testes de autorelato.
Apreciações alheias
Oferecem um ponto de vista isento da tendenciosidade dos autorelatos dos indivíduos e sem dúvida revelam traços "visíveis"; podem ser usadas para classificar crianças (ou animais); contudo, não são válidas quando os classificadores (outras pessoas) não têm conhecimento ou são parciais.
Biológico
Pode revelar reações individuais sem se valer de auto-relatos ou da avaliação do classificador; entretanto, sua aplicação pode ser difícil e cara. c as relações entre substratos biológicos c padrões de comportamento complexos nem sempre são simples.
Observações comportamentais
Capturam o qut* o indivíduo dc fato fa/; porém, no que tange à personalidade, podem ser difíceis de interpretar ou não ser representativas dc todos os comportamentos de uma pessoa.
Entrevistas
Podem fazer uma sondagem profunda e usar perguntas de acompanhamento e são muito flexíveis: contudo, estão sujeitas ã tendenciosidade do entrevistador ou respondente, são caras e consomem tempo.
Comportamento expressivo
Captura o estilo comportamcntal real e peculiar, hem como sutilezas e emoções; entretanto, sua apreensão, codificação e interpretação tendem a ser difíceis.
Análise de documentos
Pode ser usada para avaliar um indivíduo ao longo do tempo (se houver continuidade no acesso aos escritos), ser detalhada e objetiva e ser usada mesmo para pessoas falecidas; contudo, talvez mostre apenas determinados aspectos da pessoa, não seja totalmente honesta e inaplicável a épocas e eventos importantes.
Testes projetivos
Uma das poucas maneiras de aprofundar e avaliar aspectos que a pessoa talvez não esteja apta a revelar, os testes projetivos podem oferecer informações elucidativas para estudos posteriores; porém, na maioria das vezes, apresentam sérios problemas de confiabilidade e validade.
Demográfico c de estilo de vida
Mostra a estrutura c a disposição na qual c segundo a qual o indivíduo atua (idade, gênero, ocupação, cultural; entretanto, sozinho, pode ser pouco informativo sobre a pessoa como indivíduo.
Teorias da personalidade
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Figura Z6_________________ A assinatura de Haas Eysenck. Será que você poderia dizer, com base na assinatura ao lado, se esse escritor científico é introvertido ou extrovertido? (Usado com permissão.) no; o caligrafia de uma pessoa idosa cujas mòos são trêmulas é distinguível do escrita de um jovem saudável; e talvez algumas outros dimensões sejam usualmente discerniveis. Porém, essas informações são mais óbvias em uma entrevista! Há grande distância entre observações leigas como essas e afirmações absurdas como esta: 'A maneira como ela cor to o t indica que não ficará muito tempo nesse emprego'. Isso não quer dizer que o grafologia não poderia, em princípio, significa algo sobre a personalidade. Na realidade, deveríamos perguntar qual é a teoria que fundamenta a grafologia. Elo é consistente com o que conhecemos sobre o biologia humano e o compor tamento humano? Quais são os estudos confiáveis? Quais são os estudos válidos? As evi dências foram confirmadas por um estudo científico independente. Em outras palavras, foram aplicados todos os padrões usuais? No caso das análises de escrita, isso não foi feito. Uma das principais vantagens do estudo aprofundado da personalidade é que ele nos pre para mais adequadamente para chegar a conclusões semelhantes ao longo da vida.
0
piam de pesquisa_____________________
Como os psicólogos da personalidade estão escolhendo planos de pesquisa para in vestigar a personalidade? A pesquisa sobre a personalidade normalmente não é um pro cesso linear, que parte da hipótese para a prova final. Ao contrário, na maior parte das vezes há muito retrocesso c rodeio enquanto os conceitos são testados e refinados. Além disso, há uma determinada progressão de inferências que. pode-se dizer, fundamenta o processo de pesquisa. Os elementos básicos são estudos de caso. estudos correlacionais e estudos experimentais.
E stu do s d e caso Vamos supor que queiramos compreender o poder da influência interpessoal de um líder carismático como o reverendo Martin Luther King Jr. O que há de especial na perso nalidade carismática? Devemos em primeiro lugar voltar para um estudo aprofundado de indivíduos desse tipo. tanto explícita quanto implicitamente. Devemos examinar entrevis tas, verificar o que ele pensava sobre si mesmo e sobre os outros. Devemos examinar do cumentos pessoais, como discursos, escritos e trabalhos de escola. Poderíamos coletar a opinião daqueles que o conheceram, tanto casual quanto profundamente. Poderíamos analisar a expressividade de seus gestos e tons de voz. Poderíamos observar suas reações em lace de algum desafio, suas interações com subordinados e superiores, sua relação com as mulheres, sua política e seu estilo de vida. Esse estudo flexível e profundo ilustra as vantagens do plano que utiliza estudos de caso. Esses estudos de caso geralmente são uma solução para reunir conceitos c hipóteses sobre a personalidade, mas essas hipóteses necessitam de estudo mais sistemático para que se tornem científicas. Os estudos de caso não podem ser facilmente generalizados para ou tras pessoas. E eles não nos fornecem muitas informações sobre as relações causais.
Capitulo 2
Como a personalidade ê estudada c avaliada ?
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E stu do s correlacionais N on estudos correlacionais, avaliamos o grau de afinidade entre duas variáveis c. em seguida, entre mais variáveis. For exemplo, devemos reunir uma amostra de líderes, tanto carismáticos quanto não-carismáticos, c averiguar se o carisma tem alguma relação com ser extrovertido (e sentir prazer em estar rodeado de pessoas). Depois disso, devemos observar se o carisma está relacionado com gestos dinâmicos e voz expressiva. Entáo, de veríamos verificar se o estilo expressivo está associado com a extroversão. Em outras pala vras, deveríamos reunir uma serie de associações entre as variáveis c avaliar quais delas estáo associadas (ou não estão associadas) umas com as outras. Como foi observado, pri meiramente usaríamos coeficientes de correlação e, em seguida, análises fatoriais (aná lises de conjuntos de correlações). Entretanto, as correlações não nos esclarecem sobre as causas das associações. Por exemplo, elas não nos explicam se pessoas motivadas para serem líderes bem-sucedidos utilizam gestos expressivos, ou se pessoas com gestos expressivos são escolhidas para líde res; ou se a liderança e os gestos expressivos são resultado de uma terceira variável subjacente, como tendência biológica de ser ativo e procurar estimulação. Para compreen der melhor esses padrões causais, necessitamos atentar para o planejamento das pesquisas experimentais e quase-experimentais.
E stu d o s ex p erim en tais A maneira mais direta de chegar a uma inferência causal válida é projetar um experi mento verdadeiro (Campbell & Stanley, 1965). Em um projeto experimental verdadeiro, as pessoas são encaminhadas aleatoriamente a um grupo de tratamento e a um grupo de controle e, cm seguida, ambos os grupos são comparados. Por exemplo, digamos que seja nosso desejo observar se ensinar gestos expressivos às pessoas pode torná-las carismáticas. Poderíamos fazer o seguinte: reunir um grupo de pessoas c aleatoriamente encaminhar a metade para receber instruções sobre gestos expressivos, enquanto as pessoas do grupo de controle recebem instruções sobre um tópico relevante, como nadar no estilo crawl. Em seguida, fazemos o acompanhamento de todas as pessoas e observamos se aquelas que re ceberam instruções sobre gestos e treinamento são mais propensas a se tornar (ou a ser percebidas como) carismáticas. (A determinação de 'm ais propensas' e feita estatistica mente.) Se sim. teremos uma noção segura de que a intervenção causou o efeito. Em decorrência de a atribuição a determinadas situações ser aleatória, o projeto expe rimental protege-nos da possibilidade de o grupo de tratamento e o grupo de controle ter diferido inicialmente de alguma forma despercebida. Porém, mesmo em um projeto expe rimental como esse. pode haver problemas de inferência. Primeiramente, não sabemos se o resultado pode ser generalizado para outras pessoas cujas características são diferentes daquelas que foram estudadas. Em segundo lugar c por conseguinte, não sabemos que fa tores moderadores podem ser importantes; por exemplo, nossa intervenção pode funcio nar bem para pessoas mais velhas, mas não ser adequada para jovens. Em terceiro lugar, pode ter havido problemas (tcndenciosidade) nas formas pelas quais nosso elaborado pro jeto foi conduzido: isto é, o experimentador pode ter cometido erros. Finalmente, de fato não sabemos como outras intervenções funcionariam, nem qual delas é a melhor. Embora um experimento real tenha essas várias limitações, as conclusões extraídas são superiores àquelas baseadas apenas em estudos de caso ou correlações, em particular se forem fundamentadas em estudos correlacionais. Na medicina, os experimentos reais
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Teorias da personalidade L in h a d o te m p o da histó ria da ava lia çã o da p e rs o n a lid a d e __________________
Os principais avanços no âmbilo da avaliação da personalidade podem ser visios aqui. de acordo com a relação histórica que têm entre si e segundo seu contexto social e cultural mais amplo.
Evolução da avaliação da personalidade
Contexto social e científico
Poucas tentativas sistemáticas para medir a personalidade.
antes d c 1800
Os seres humanos são vistos prindpalmente em termos religiosos e filosóficos.
Francis Gallon, primo de Darwin. monta laboratórios para medir as diferenças individuais.
década d c 1880
A atenção se volta cada ve/ mais para a evolução e a variação individual.
Período dc grande imigração para os Estados
Testes mentais começam a sei aplicados, concentrando-se na inteligência, mas só começaram a ter êxito tom o trabalho de Alfred Binet.
1890-1910
Robert Yerkes. Lewis Tcrman c outrus trabalham com o Exército americano para selecionar e lazer a triagem de soldados; essas experiências foram responsáveis
1910-1920
Tecnologia e industrialização crescentes; grandes exércitos cspccialmenic treinados: Primeira Guerra M u n d ia l 1914-1918.
década de
fkvm económico e
Unidos: estatísticas matemáticas comccam a ic irlK T atenção cada vez maior.
pelo aumento maciço de avaliações ln»riain-se as investigações sobre calmes individuais e interesses vocacionais: a natureza biológica do indivíduo d ia ma a atenção
20 ò d c )0
posterior colapso: progresso na estatística matemática.
Allport c outros fazem uma relação de traços: análises estatísticas sobre traços seguem-se ao desenvolvimento de novas técnicas estatísticas; os neo-analistas começam a usar testes projetivos
década d c 30
Fascismo e guerra mundial iminentes: depressão econômica, propaganda polítka; crescimento dc grandes corporações.
Estudos sobre o autoritarismo e o etnoccntrismo são realizados c na maioria das vezes são mensurados de várias formas.
década de 40
Reações intelectuais contra o fascismo.
Entrevistas sJk> empregadas por Kinsey para investigar a sexualidade e por pesquisadores de mercado para investigar os padrões dc cx>mpra; idéias emergentes da psicologia cognitiva abrem caminho para avaliações cognitiva
década de 40 à d c 60
Novos papéis para as mulheres, tvo trabalhe» c nas relações sociais; bocmeconómico c uma nova e imensa classe média; habytwmf o mjrkctirhi toma-se um estudo dentífico.
A forma dc expressão é avaliada. ao mesmo tempo que a comunicação nãoverbal recupera a atenção.
década de 70 à d c 80
Dcdínio do ttthaviorísmo; ênfase sobre a comunicação nos relacionamentos c na família: ascensão da televisão na política.
1 9 90 i década d c 2000
Período económico próspero e melhor compreensão do indivíduo no local de trabalho.
As medidas de traço retomam um lugar de destaque, ao mesmo tempo que as teorias sobre fatores são apreendidas.
são normalmcnte chamados de "experiências clínicas aleatórias". Na psicologia da perso nalidade, eles em geral são chamados de "métodos experimentais*’.
4. G ra n d e a u m e n to repentino da taxa de natalidade p rin c ip a lm c n tc nos listados U n id o s, após a Segunda G u e rra M u n d ia l (N . da T .).
Capitulo 2 m Como a personalidade é estudada e avaliada?
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Infclizmcntc, na maior parte das pesquisas sobre a personalidade, somos limitados a ponto de não podermos usar a designação ou atribuição aleatória. Não podemos designar fá cil e aleatoriamente 10.000 adolescentes |>ara receber instruções sobre gestos, durante cinco anos; designar 10.000 outros adolescentes a um grupo de controle e, cm seguida, observar qual grupo produz mais líderes adultos carismáticos. Portanto, valemo-nos de pesquisas quase experimentais ou de experimentos de ocorrência natural para verificar que influênci as e componentes aumentam a probabilidade de um líder carismático surgir. Por exemplo, podemos comparar adolescentes de colégios mistos com adolescentes que estudam cm colé gios exclusivos para homens ou mulheres. Para praticar, tente encontrar exemplos de evi dência que seria útil reunir, para compreender a origem e os componentes do carisma.
Os primeiros testes psicológicos com alguma validade substancial têm apenas 100 anos, aproximadamente. Alfred Binet abriu caminho para uma avaliação válida da inteli gência no fim do século XIX. em Paris. Sua meta era nobre: seus testes poderiam ser usa dos para identificar estudantes do fato muito inteligentes, mas que haviam sido classifica dos erroneamente como estúpidos em função de problemas como debilidade na capacidade auditiva ou na fala. Em outras palavras. Binet almejava ajudar as pessoas que haviam sido negligenciadas pela sociedade (Binet & Simon, 1916). Os mesmos tipos de argumento de avaliação aplicam-se a pessoas com outros proble mas psicológicos ou de relacionamento. Para ajudar pessoas com esses problemas, é pro veitoso realizar um diagnóstico preciso de seus problemas e potencialidades. Portanto, tes tes justos e válidos podem ser benéficos para todos. Sempre há o risco de os resultados de um teste serem incorretos em decorrência de inúmeras limitações. Os testes imprecisos se rão um sério problema, se a avaliação estiver sendo leita para identificar pessoas menos 'dignas". Nesse caso, um erro ou tendcnciosidade é particularmente trágico. Infclizmcntc, da mesma maneira que os primeiros testes de inteligência foram rapida mente deturpados no sentido de identificar "débeis mentais' e "idiotas", hoje a avaliação psicológica às vezes é usada para propósitos de discriminação e perseguição. Por exemplo, os testes podem ser legitimamente projetados para fazer a triagem de candidatos a um em prego. Porém, um teste desse tipo poderia facilmente ser parcial (de modo intencional ou não) contra pessoas pertencentes a grupos que por tradição são empregados com menor frequência. É como se um diagnóstico médico tivesse sido usado não para ajudar a proce der a um tratamento médico bem-sucedido, mas para determinar quem deveria ser margi nalizado por ser considerado "enfermo". Em seu livro The Mimeasurc of Man. o paleomologlsta Stevcn Jay Gould (1981. 1996) descreve a triste saga do racismo científico. Concentrando-se na inteligência, Gould relata como até mesmo os mais eminentes cientistas foram vendados por seus preconceitos, pen sando que estavam comprometidos com uma avaliação puramente científica. Por exem plo, em meados do século XIX, o respeitado médico francês Paul Broca usou a medição do crânio (craniomctria) para "provar" que os homens são mais inteligentes do que as m u lheres e os caucasianos, mais inteligentes do que os africanos. Broca, assim como vários dos bem-intencionados cientistas que o seguiram no século XX. provavelmente não tinha consciência das distorções existentes em seus dados. Ele simplesmente estava sendo in fluenciado por suas convicções. Não há dúvida de que essas tendenciosidades também aflijem os testes de personalidade modernos, mas. sem o benefício da percepção tardia, elas são difíceis de ser reveladas.
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Teorias da personalidade
Hm decorrência do mau uso das avaliações, algumas pessoas afirmaram que os lestes deveriam ser declarados ilegais. Essa é uma reação extremista. Isso equivale a dizer que devemos declarar a ciência ilegal porque os avanços científicos foram responsáveis pela criação de armas terríveis. Ou que devemos declarar a cirurgia ilegal porque muitas pes soas morreram na mesa de operação. O problema real é que alguns testes de personalidade são inadequadamente elaborados, inapropriadamente usados e erroneamente emprega dos. A solução é assegurar que pessoas Instruídas tenham a experiência necessária para compreender o que é válido e quais são as limitações graves dos testes de personalidade. Esse não c um problema insignificante. As asserções da comunidade psiquiátrica ten dem a ser aceitas pelo público leigo e desinformado. Portanto, os estudiosos da personali dade tem a responsabilidade de avaliar continuamente a validade e o caráter conclusivo de suas descobertas e as implicações sociais dela decorrentes.
Resumo e conclusão Os testes de personalidade envolvem confrontos padronizados que instigam e avaliam diferenças individuais reveladoras nas reações. Os testes objetivos têm respostas corretas que são facilmente medidas e definidas, mas podem não compreender os aspectos mais sutis da personalidade. Os testes subjetivos valem-se de interpretações feitas por observa dores ou por aqueles que aplicam os testes, mas podem gerar desacordos no que se refere às interpretações. A melhor avaliação conta com vários instrumentos de medida para pin tar o retrato de um indivíduo. Os testes de personalidade devem ser confiáveis. A confiabilidade refere-se à consistên cia das classificações; as pessoas devem receber classificações semelhantes no mesmo teste, em diferentes ocasiões porque se presume que a personalidade é relativamente estável. As boas avaliações levam em conta que os padrões básicos permanecem estáveis, mesmo que respostas cotidianas pareçam mudar. (Entretanto, a personalidade pode mudar a longo pra zo ou em resposta a acontecimentos traumáticos.) A confiabilidade de consistência interna examina as subpartes de um teste de personalidade. A confiabilidade teste-reieste compara as classificações em diferentes ocasiões, normalmcntc várias semanas depois. Será que um teste está medindo o que se propôs a medir? O que ele está medindo? Es sas são questões de validade. O asj>ecto mais importante da validade é a validade do constructo. Ela é verificada observando se a avaliação prediz comportamentos e reações im plicados (teoricamente) pelo constructo. Será que o constructo está relacionado com o que se presume deva estar relacionado? Se sim, ele tem validade convergente. Contudo, a ava liação deve ser distinguível; isto é. não deve estar relacionada com constnictos teoricamente irrelevantes. Isso se chama validação discriminante. A validade de conteúdo refere-se ao teste estar medindo o domínio que se supõe deva ser medido. Uma das qualidades desejáveis nos itens do teste é que eles possam diferenciar os que estão sendo submetidos ao teste. Além disso, os itens devem estar intercorrelacionados (isto é, estar relacionados entre si) porque cada item está medindo algum aspecto do constructo geral. Finalmente, os itens devem produzir uma distribuição vantajosa de for ma que o teste possa avaliar grande quantidade de indivíduos. Os conjuntos de respostas são tendências que não estão relacionadas com a caracterís tica da personalidade que está sendo avaliada. As pessoas que têm um conjunto de respos tas aquicsccntcs tendem mais do que as outras a concordar com qualquer coisa que você pergunte. Um desafio particularmente difícil é colocado por um conjunto de respostas de
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Como a personalidade é estudada e avaliada ?
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desejabilidade social. Ou seja, várias pessoas tendem a querer passar uma imagem favorá vel de si mesmas ou tentar agradar o experimentador ou administrador do teste. C o n quanto todos os testes valham-se até certo ponto de um conjunto de suposições e, portan to, devam ser considerados tendenciosos, eles nào sào necessariamente ruins ou inválidos. Ao contrário, eles devem ser elaborados, usados e interpretados de maneira apropriada para serem validados. Um dos tipos mais comuns de tendendosidade em lestes é a étnica. Os testes na mai oria das vezes nào levam em conta a cultura ou subeultura da pessoa que está sendo testa da, e as teorias e medidas desenvolvidas cm uma cultura são aplicadas inapropriadamente em outra cultura. As crianças hispano-americanas em algumas ocasiões foram vistas como não tendo motivação para a realização quando de fato elas foram criadas para ser mais co operativas com seus pares. A psicologia da personalidade estuda com muita frequência amostras de conveniência — pacientes, alunos, vizinhos — e com frequência tenta de ma neira sistemática averiguar se as conclusões aplicam-se a outras pessoas, em outros lugares e cm épocas diferentes. A tendendosidade de género é um tipo prevalecente de tendendosidade. Os testes podem demonstrar que há determinados 'problemas' com as mulheres sem voltar a aten ção para o ambiente — marido, discriminação profissional ou falta de oportunidades edu cacionais equivalentes. Um dos maiores triunfos da avaliação da personalidade no século passado foi o desen volvimento de vários tipos diferentes de testes válidos. Os testes de personalidade mais co muns e fáceis de administrar dependem do auto-relato das pessoas que estão sendo testa das; dentre eles estão o M M PI, o IVrsonality Research Form, o Millon e o N EO -PI. Uma técnica de auto-relato mais dinâmica que os questionários é o Q-Sort. em que a pessoa classifica um conjunto de cartas nomeando várias características em montes, em dimen sões como ‘’características mínimas* e 'características máximas' de si mesma. Uma vanta gem peculiar dessa técnica sào os itens (as características) que estão sendo classificados poderem ser mantidos constantes, enquanto o contexto é alterado. Várias avaliações importantes da personalidade não se valem de auto-relatos. O uso de classificações de outras pessoas mostra que amigos, familiares c mesmo estranhos po dem fazer apreciações válidas da personalidade. As avaliações biológicas modernas da per sonalidade baseiam-se na suposição de que a resposta está no sistema nervoso. As atuais e excelentes experiências de avaliação nessa área concentram-se no cérebro, medindo o po tencial eliciado por eletroencefalogramas (E E G ). e no metabolismo da glicose (por meio da tomografia de emissão de pósitrons. PET). A observação componamental. como enumerar as experiências ou os comportamentos de uma pessoa, é outra técnica que se mostrou va liosa. O experimentador que telefona ou envia mensagem por meio de um bipe a uma pessoa, para que ela faça anotações diárias sobre a atividade que está praticando naquele momento ou sobre processos de reflexão, está empregando o método de avaliação de amostragem de experiências. A entrevista clássica da psicologia é a entrevista clínica, na qual o cliente fala sobre partes importantes ou problemáticas da própria vida. Nos últimos anos, em geral, as entre vistas de avaliação tornaram-se mais sistemáticas ou estruturadas. Em vez de acompanhar os meandros do entrevistado, o entrevistador segue um plano definido. No caso da entre vista estruturada Tipo A, a avaliação da personalidade baseia-se em parte nas respostas verbais e em parte nas respostas vocais não-verbais, como a sonoridade e a velocidade da fala. Os indícios não-verbais da forma de expressão são na realidade uma maneira interes sante e subutilizada de avaliar a personalidade. Por exemplo, a forma de expressão é uma
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maneira excelente de avaliar o carisma pessoal. Km contraposição, cartas e diários (que contêm indícios não-verbais) podem ser excelente fonte de informações para o estudo so bre a mudança de personalidade porque fornecem dados de várias épocas. Os testes projetivos, como o Korschach. apresentam um estímulo desestruttirado e possibilitam que a pessoa "projete" suas motivações internas no teste do avaliador. Nesses testes, incluem-se atividades como desenhar uma figura, narrar uma história, completar uma frase ou fazer associações entre palavras. O principal inconveniente dos testes projeti vos é o problema de classificação. As interpretações pessoais do examinador podem ofere cer-nos informações elucidativas interessantes para fazer um acompanhamento, mas não há nenhuma confiabilidade. Isto é. diferentes examinadores, ou o mesmo examinador mas em outra ocasião, podem ter interpretações diferentes. Esse problema pode ser parcialmen te solucionado treinando os classificadores em um esquema de classificação padronizado. Por fim, se quisermos compreender com precisão determinado indivíduo, precisamos conhecer seu meio cultural e sua identidade cultural. Isso é particularmente verdadeiro quando a cultura desse indivíduo não é a que está em voga. Por exemplo, experiências dis paratadas foram feitas para avaliar a personalidade dos afro-amcricanos sem que houvesse algum esforço para compreender a cultura afro-americana. A avaliação da personalidade pode c tem sido empregada incorretamente. Em virtude do uso inadequado das avaliações, algumas pessoas defenderam que os testes deveriam ser banidos. Porém, o problema real é que alguns lestes de personalidade são elaborados de forma errônea, usados de maneira não apropriada ou empregados indevidamente para fi nalidades políticas ou outros programas de trabalho. A solução resume-se a que as pessoas compreendam com exatidão os usos considerados válidos c as sérias limitações dos testes de personalidade, no contexto das teorias sobre a personalidade.
^ Principais conceitos avaliação objetiva versus avaliação subjetiva confiabilidade validade do construcio conjunto de respostas tendenciosidade testes de auto-relato testes Q-Sort (Classificação Q ) classificações e apreciações alheias medidas biológicas
observações comportamentais método de avaliação de amostragem de experiências entrevista clínica comportamento expressivo análise de documentos testes projetivos informações demográficas e sobre estilo de vida
^ Leituras sugeridas Ptrsonaluy Asscssment: Sicthcds and Practicet.
b
Aikcn. L. R. cd. Scattlc. W A: Ilogrcfc Hubcr Publishcrs. 1999. Campbell. D. T. 'RecommetulaiioitN for lhe APA Test St.iml.mU Regarding Construa, Tiait, and DUcriminant Validity*. /5:546-55). 1960. Fiskc. D. W. Chicago: Aldinc. 1971. Gould, S. J. cd. Nova York: W. W. Norton, 1981/1996 foriginalmcntc publicada cm 1981 Pervin. L. A . John, O . P. (cds.). 2. cd. .Nova York: Guillord 1990.
American Psychohjftíi. Mcasurinjt tht Conapts of Pcrwnatity. Tht Mismeasur* of Xian. 2. b
Hatutfwk cf Pmewality: Thcoryand Research.
Capítulo
5
A perspectiva psicanalítica da personalidade Conceitospsicanaliticos básicos Inconsciente c técnicas terapêuticas ■ A estrutura da mente
besenvolvimentopsicossexual Fase oral ■ Fase anal a Fase fálica Período de latcncia a Fase genital
Masculino versus feminino Mecanismos de defesa Repressão ■ Formação reativa ■ Negação ■ Projeção ■ Deslocamento ■ Sublimação ■ Regressão ■ Racionalização
Estudos interculturais Principais contribuições e limitações dapsicanálise freudiana Novos avanços da psicologia experimental Emoção e motivação inconscientes a Hipermnésía a Amnésia infantil a Percepção subliminar a Memória a Amnésia
Resumo e conclusão
Em 1882, o Di. Sigmund Frcud apaixonou-se por uma jovem e esbelta mulher chamada Manha Bernays. Infellzmente, para Frcud, ele não tinha nem dinheiro nem status social para se casar de imediato, e suas pulsõcs sexuais não puderam ser satisfeitas prontamente. Coerentes com a época e a cultura austro-judaica, Freud e Martha, nessa ocasião na casa dos vinte anos. não se aventurariam em relações sexuais pré-maritais. Eles tiveram de esperar quatro longos anos para se casar, durante os quais Freud, um jovem cientista perspicaz, refletiu profunda e freqüeiuemente sobre a pressão que seus desejos sexuais exerciam sobre outros aspectos de sua vida. Dez anos depois, na década de 1890, Freud começou a desenvolver suas teorias psicossexuais sobre a psique humana.
Sigmund Freud, ainda jovem, com sua venerada mãe. Amalie.
A mãe de Frcud era a terceira esposa de seu pai, Jacob Freud, vinte anos mais velho que ela. Ela cra muito atraente, c o jovem Freud. assim como os outros, adorava a mãe. Tempos depois, Freud se lembrou da impressão que teve quando, ainda bem pequeno, viu sua mãe nua. Ele incorporou as relações de amor e de amor frustrado nas fundamentações de suas teorias. Quando Freud estava com dois anos e meio, surgiram algumas dificuldades familiares: sua mãe deu ã luz a sua irmã, o que suscitou a admiração pela reprodução humana e instigou várias preocupações sérias sobre a rivalidade entre irmãos no pequeno e inteligente Sigmund. Para complicar ainda mais esse quadro, os dois meio-irmãos adultos de Freud (filhos do casamento anterior de seu pai), que moravam na vizinhança, pareciam muito afeiçoados à sua Jovem mãe. Por que seu meio-irmão flertava com sua mãe? Anos mais tarde, Freud lembrou-se bem de como foram confusas as relações eróticas em sua infância (Gay, 1988; Jones, 1955). Conquanto Freud fosse judeu e sua mulher. Manha, tivesse sido criada como judia ortodoxa, ele era veementemente anti-religioso e recusava-se a permitir que Manha praticasse grande parte dos rituais de sua religião. Ele era muito defensivo em relação a isso, embora o anti-semitismo losse um fator significativo na vida de todos os judeus europeus, mais do que a cor da pele é na vida dos afro-americanos. Freud estudou medicina, mas era fundainemalmentc um biólogo tocado pelos escritos e pelas influências de Charles Darwin, que. há pouco tempo, havia revolucionado o pensamento científico propondo que as pessoas não eram criadas por Deus. no Jardim do Éden, mas que haviam evoluído de éons de outras formas de vida. Embora fossem animais altamente Inteligentes, elas ainda assim eram animais — criaturas biológicas. O próprio Freud desjrendeu vários anos no início de sua carreira estudando a evolução biológica do peixe. Assim como muitos intelectuais de sua época, Freud considerava a religião uma muleta irrelevante para pessoas ignorantes, algo com que ele não tinha nada a ver. É importante compreender esse aspecto do trabalho de Freud: ele era fundamentalmente um biólogo — um cientista, empenhando-se (com todas as suas capacidades) para compreender as estruturas e as leis biológicas subjacentes às respostas psicológicas (Bernstein. 1976; S. Freud. 1966; Gay. 1988; Jones. 1953).
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ssa exposição sobre a vida de Freud quando ainda criança deu a entender que. na infância, as experiências, os sentimentos eróticos reprimidos e os conflitos in conscientes podem influenciar o comportamento adulto. Esse tipo de análise pa rece perfeitamente razoável para a maioria dos atuais estudantes universitários, mas isto era muito incomum antes do início do século XX. A naturalidade de uma interpretação de Freud sobre a personalidade é testemunho distinto do sucesso e da influência de várias das idéias de uma abordagem psicanalítica freudiana da personalidade. Freud visitou os Estados Unidos, em 1909, a convite de G. Stanley Hall, influente psicólogo infantil, nessa época presidente da Clark Univcrsity. Freud foi acompanhado por Cari Jung (então na casa dos trinta anos; Freud estava na casa dos cinqüenta). Ne nhum dos dois ainda era famoso, mas suas ideias sobre a sexualidade inconsciente eram intrigantes para os americanos que já haviam lido a seu respeito. Eles foram visitados na Clark University por muitos psicólogos influentes, dentre eles William James, filósofo e psicólogo da Universidade de Harvard e um dos fundadores da psicologia americana. Freud, embora ansioso diante de platéia tão distinta, fez um belo trabalho ao apresentar suas idéias. Esse foi o início da significativa propagação das idéias psica na líricas na Am é rica do Norte. Hoje, o trabalho de Freud é o mais amplamente citado em todas as áreas da psicologia, além de ser intensamente consultado em vários campos das ciências h u manas. Sigmund Freud às vezes é apresentado como curiosidade histórica por pesquisadores modernos da personalidade, cujos estudos são conduzidos em laboratório, porque algumas de suas idéias foram desaprovadas por modernas pesquisas levadas a efeito na biologia e na psicologia. Essa atitude é uma interpretação equivocada da influência de Freud e pode fazer com que esse campo negligencie informações elucidativas que a teoria psicanalítica pode acrescentar à nossa compreensão da personalidade. Neste capítulo, mostramos o quanto as surpreendentes idéias de Freud estão vivas, e ainda hoje altamente influentes. Examinamos também as limitações e falhas da abordagem psicanalítica.
Conceitos psicanalíticos básicos Assim que sua carreira médica começou a dcslanchar, Sigmund Freud passou a se in teressar mais e mais por neurologia e psiquiatria. Quando ele se viu diante da necessidade de desenvolver habilidades médicas para tratamento clínico que pudessem aumentar seus rendimentos, passou a dar menos atenção às suas pesquisas em biologia e a se empenhar mais nos problemas que afligiam os pacientes. Em 1885, Freud foi estudar com o famoso neuropatologista J. M . Charcot. em Paris. Charcot estava estudando a histeria. Embora a histeria hoje seja um mal raro, era um problema sério há um século. Pode-se dizer que era a doença da moda. Muitas pesso as, em particular mulheres jovens, sofriam com várias formas de paralisia para as quais nenhuma causa orgânica podia ser identificada. Às vezes, quase por milagre, elas podiam ser curadas por influências psicológicas e sociais. Por exemplo, Charcot e Pierrc Janet (Janet. 1907) usaram com êxito a hipnose para curar a histeria. A idéia por trás da tera pia era de que, sem que o paciente soubesse, influências psicológicas sobre sua mente causavam indisposições físicas. Desbloqueando a tensão psicológica interna, o corpo exte rior podia ser libertado.
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Inconsciente c técnicas terapêuticas Freud começou a empregar hipnose, mas acabou por considerá-la inadequada para traiar vários do seus pacientes. Então, influenciado pelo colega médico e (isiologista Josef Breuer, Freud passou a fazer experiências, partindo da hipnose e outras formas do suges tão intensa para técnicas do associação liv re — associações espontâneas o do fluxo livro do idéias e sentimentos; e, finalmente, passou para os sonhos (Breuer fr Freud, 1957). Para Freud, cada vez ficava mais claro que a maioria dos pacientes não tinha contato cons ciente com os conflitos internos que causavam visíveis problemas mentais e físicos. Porém, os sonhos poderiam ser a chave para a revelação de seus segredos mais íntimos. Os sonhos vêm sendo interpretados desde os tempos bíblicos e até mesmo antes disso. Eles frequentemente foram vistos como profecias ou revelações divinas. Contudo, para Freud, biólogo evolutivo, os sonhos eram produto da psique do indivíduo. Para ele. os so nhos eram fragmentos c sinais do inconsciente — parte inacessível da mente ao pensa mento habitual e consciente (Freud. 1915). Freud, para compreender o inconsciente, chamou os sonhos de "caminho real". Diga mos que você sonhe repetidamente que está subindo uma escada em perseguição a seu chefe. Você corre cada vez mais rapidamente e vai ficando mais e mais frustrado, sem nunca chegar ao pico. Freud interpretou esse* ato como a representação de uma relação sexual, relação essa que nunca é consumada. Por que alguém teria um sonho desse tipo? Porque seria muito ameaçador, psicologicamente falando, admitir pensamentos como esse. Seria ameaçador ao casamento de alguém, ao autoconceito de alguém e à compreen são de moralidade de alguém admitir esses impulsos lúbricos. Esses impulsos, portanto, são representados por símbolos não ameaçadores — subir correndo uma escadaria. Nos sonhos, quase todos os objetos semelhantes ao falo — de uma clarineta a um guarda-chuva — podiam representar <> pênis, isto é, ser um símbolo fálico. E qualquer es paço circundante, como um pátio cercado de muros, uma cavidade peluda ou uma caixa, podia representar a genitália feminina. Entretanto, dizem que Freud, fumante inveterado de charutos, comentou que às vezes um charuto é apenas um charuto. (A propósito, o há bito de fumar foi o que pôs fim à sua vida; ele morreu em decorrência de câncer na boca e na garganta em 1959.) Porém, o que dizer das pessoas que de fato sonham que estão tendo relações sexuais com o chefe ou um colega de trabalho? Por que a motivação sexual, nesse caso, não está oculta? Em geral, o problema dos pacientes de Freud consistia cm algum tipo de conflito interior ou tensão. Isso era partieularmente verdadeiro na puritana sociedade vitoriana de um século atrás, em que os assuntos sexuais eram escândalo. Os so nhos lascivos explícitos raramente eram observa-
Consultório de Si^mttnd Freud em Viena. Seus pacientes recostavam-se no divã e deixavam fluir associações li\res.
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dos nos pacientes; c, se fossem, eram interpretados como representação de algum outro conflito ainda mais profundo. Seria fascinante poder ouvir o que Freud diria sobre a sexua lidade liberal, descontraída e autêntica. Será que ele diria que a nossa sociedade ainda não é. de fato, uma sociedade sexualmente aberta e descontraída? De acordo com a teoria psicanalítica. os sonhos (na realidade a maior parte dos aspec tos da experiência psicológica) têm dois níveis de conteúdo — c o n te ú d o m a nife sto e c o n te ú d o latente. O conteúdo manifesto é aquilo de que a pessoa se lembra, c sobre o que ela conscientemente reflete. O conteúdo latente é o significado encoberto. Podería mos comparar os sonhos com os icebergs — uma pequena parte flutua na superfície, mas a maior parte está escondida sob as águas. Essa ê a marca da abordagem psicanalítica da per sonalidade — o conceito de que o que vemos na superfície (o que é manifesto) é apenas representação parcial da vastidão que está por baixo (o que é latente). A implicação disso para a compreensão da personalidade ê qualquer ferramenta ou teste de avaliação que se valha da resposta ou do auto-relato consciente das pessoas ser necessariamente incomple to; essas ferramentas ou testes captam apenas o conteúdo manifesto. O inconsciente pode manifestar-se simbolicamente em um sonho (veja a Figura 5.1). Algumas vezes a explicação psicanalítica da personalidade resulta em um círculo vicio so (tautologia). Digamos, por exemplo, que a tosse nervosa intensa, o estrabismo c a parali sia parcial de uma jovem mulher sejam atribuídos a um conflito inconsciente com o abuso sexual por ela sofrido. Na psicoierapia, o problema é gradativamente trazido à tona e cuida dosamente investigado — sua energia emocional é liberada. Contudo, a paciente continua a sofrer de vários problemas nervosos ou histéricos. Sendo assim, seria nossa conclusão a de que a explicação psicanalítica está totalmcnte errada? Não, o psicanalista deve investigar aspectos do problema ainda mais profundos e não-manifestos. Portanto, não há nenhum meio lógico e científico de avaliar a explicação. Outra maneira de expor esse problema é afirmar que as investigações psicanalíticas raramente tem um grupo de controle; ou seja. não há nenhuma comparação ou padrão que se possa usar para avaliar com critério a teoria ou a terapia. No filme Noivo Neurótico. Noiva Nervosa (Aintie Hall), o personagem de Woody Allen (A lv y) confidencia a Annie que ele frequentou um psicanalista 'durante quinze
O inconsciente manifesta-se simbolicamente. Um sonho com a extração de um dente poderia simbolizar o medo de castração.
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Quando as torres gêmeas do World Tradc Ccntcr sofreram o ataque de terroristas e foram destruídas, alguns psicólogos especularam (em noticiários) que uma das razões de eles terem escolhido esse alvo foi porque as torres eram símbolos fálicos. Esses comentários em geral foram encarados com sorrisos afetados pelos noticiaristas. Além disso, um dos sequestradores, o que pilotava o avião, deixou para trás um desejo, que assim dizia: "São quero que nenhuma mulher vá ao meu funeral ou ao meu túmulo. E não quero também que nenhuma mulher grávida vá para dizer adeus". Ao procurar compreender as complexidades da motivação, a abordagem psicanalítica enfatiza o papel que a disfunção sexual e as relações sexuais anormais desempenham nos recônditos da mente.
anos, exatamente'. Ao constatar o espanto de Annle, A lvy retruca que vai se dar mais um ano e então irá a Lourdes (o centro da cura pela fé. na Franca). A comparação da psicanálise com o milagre religioso é apropriado nos casos em que as idéias de Frcud não passaram por um exame crítico minucioso como as outras teorias psicológicas.
A estrutura da mente Todas as teorias sobre a personalidade concordam em que os seres humanos, assim como outros animais, nascem com um conjunto de instintos e motivações. Os recém-nas cidos sem dúvida vão chorar em resposta a estímulos que lhes causem dor e vão sugar o leite até que estejam saciados. No nascimento, as influências motivadoras internas obvia mente ainda não foram modeladas pelo m undo externo. Fias são básicas e não socia lizáveis. Freud referiu-se a essa essência indiferenciada da personalidade como id. Em ale mão. essa palavra correspondia literalmente ao pronome "isto'. O id contém a força e as motivações físicas básicas, as quais com freqiiência são chamadas de instintos ou pulsões. O id opera de acordo com as exigências do p rin c íp io de prazer, isto é. esforça-se unicamente para satisfazer seus desejos c, por conseguinte, reduzir a tensão interna. Por exemplo, o bebê é pulsionado a mamar, obter prazer e relaxar. A necessidade de comida desencadeia a pulsáo de mamar e obter alívio. Contudo, até mesmo as crianças têm de enfrentar a realidade. Há um mundo real lá fora — mães cansadas, fraldas sujas, camas frias — ao qual em breve devem reagir. A es trutura da personalidade que se desenvolve para lidar com esse mundo real foi chamada por Frcud dc ego ou. litcralmcnic. "eu". O ego opera dc acordo com o p rin c íp io d c realidade; ou seja, é necessário solucio nar problemas reais. Apenas desejar o peito ou um afago não é suficiente para realizar o desejo, f: necessário planejar e agir, respondendo à coação do mundo real. Os bebês logo aprendem a exagerar o choro para trazer a mãe para perto deles, mas não a exaurir. Por toda a vida. o id da busca de prazer lutará constantemente com o ego, o avaliador da realidade. Os indivíduos nunca superam o id. mas a maioria dos adultos mantém-no sob controle. Em algumas pessoas, contudo, a busca de prazer exerce um domínio
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Figura 5.2____________________________________________________ V id o psicanaiítica da estrutura da mente. O ego (representado aqui pela prefeitura) e o superego (representado pela igreja) têm suas raízes e alicerces no id (representado pelo mar), da mesma forma que essa ilha vulcânica emerge e é circundada pela água.*
inapropriado ou muito frequente. A representação gráfica da função do id é mostrada na Figura 3.2. Há ainda uma serie de outros problemas. C) bebê simplesmente náo consegue apren der as formas mais genuínas de satisfazer pulsões internas. Não conseguimos ser totalmen te autocentrados. Ao contrário, somos moldados e forçados jw>r nossos pais e pelo resto da sociedade a seguir regras morais. A estrutura da personalidade que surge para internalizar essas regras sociais é denominada superego. Literalmente. Freud o concebeu como o 'superou* porque ele domina o ego ou o "eu'. O superego é semelhante a consciência, mas vai mais longe. Podemos refletir sobre o que a nossa consciência, nosso conjunto in terno de preceitos éticos, está nos instruindo a fazer, mas porções do superego são incons cientes. Isto é, não estamos sempre conscientes das forças morais internalizadas que pres sionam e inibem nossos atos individuais. Quando o ego e em particular o superego não cumprem sua função de modo apropri ado. fatores do id podem escapar e serem vistos. Vejamos o caso do professor de anatomia, citado por Freud, que diz: "No caso da genitália feminina, a despeito da tentação, quer di zer. da tentativa". Freud considera as explicações linguísticas sobre esses lapsos inadequa das e atribui esse erro a pulsões inconscientes (Freud, 1924». Esse náo é simplesmente um problema da fala; uma motivação bem mais profunda está sendo revelada. Fsses erros psi cológicos cometidos na fala ou na escrita vieram a ser chamados de lapsos fre udianos.1 Esquecer, por um momento, o nome de um amigo não c examinado à luz de uma teoria da aprendizagem da memória ou de uma simples fadiga, mas é considerado evidência de um conflito inconsciente com esse amigo. Da mesma maneira, se uma mulher jovem bate de leve ou toca cm seu anel de noivado com os dedos enquanto conversa com um homem atraente que acabou de conhecer, esse ato indica uma preocupação inconsciente com o seu noivo.
I . E m português, utili/a-se a expressão "atos falhos*
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Um lapso freudiano pode ler ocorrido até mesmo na redação desse livro-texto, caso em que a simples omissão da letra n faz sensível diferença em um rascunho. A o preparar um esquema das diferenças entre homens e mulheres, uma estagiária pretendia dizer que 'é cvolucionariamente importante para os homens2 ter o máximo possível de contatos se xuais a fim de perpetuar seus genes'. Mas. em vez disso, para seu embaraço, ela escreveu que *é cvolucionariamente importante para mim ter o máximo possível de contatos se xuais'. É desnecessário dizer, mas as pessoas que viram essa frase acharam-na urn tanto quanto engraçada. Freud admite que os lapsos da língua ou da escrita são mais comuns quando uma pes soa está cansada ou distraída, mas sustenta que nesses momentos baixamos a guarda, e, com menor resistência, as pulsôcs inconscientes podem mais facilmente vir à tona. Freud era um observador extremamente astuto e perspicaz, que não se satisfazia com explicações superficiais sobre a personalidade. (Fie presumivelmente acharia engraçado mas não fica ria surpreso com o fato de um importante ativista antitabaco se chamar Randolph Srnoak.) Freud procurava significado até mesmo nos pensamentos e comportamentos mais banais. Hoje sabemos muito sobre a estrutura e o funcionamento do cérebro humano, mas, cem anos atrás. Freud e seus colegas sabiam muito pouco. Atualmente temos ciência de que o cérebro sem dúvida não é dividido entre os compartimentos id. ego e superego. Na realidade, há vários níveis e estruturas no cérebro humano. Alguns são mais primitivos c assemelham-se aos encontrados no cérebro dos animais. Outros parecem ter evoluído para gerar emoção e motivação. E as camadas corticais superiores contêm redes comple xas de nervos que possibilitam níveis superiores de inteligência. Freud estava correto em concluir que determinadas partes da mente não estão sob o domínio do conhecimento consciente. É um exercício interessante observar atentamente durante algum tempo seus lapsos e sonhos. Você pode se lembrar de seus sonhos com maior facilidade se mantiver caneta e papel ao lado do travesseiro, permanecer deitado depois de acordar (com os olhos fechados) e tentar recordá-los. Em seguida, escreva tanto quanto possível o que lembrou. (O processo vai ficando cada vez mais fácil com a prática.) Apõs algumas semanas, procure ternas co muns e experimente relacioná-los com suas aflições, conflitos e amigos. Esse exercício pode ou não eliciar insights, mas fornecerá prova do tipo auto-análise à qual Freud se dedicou durante muitos anos.
Desenvolvimento psicossexual Frcud considerava o mundo psicológico uma série de tensões, como a existente entre o egoísmo e a sociedade, e tensões internas que lutam pelo alívio. Subjacente a essas ten sões, afirmou ele, encontrava-se a energia sexual ou libido. Antes da experiência de Frcud em estruturar a sexualidade cientificamente, as pulsões sexuais e o comportamento sexual fora do casamento não eram considerados sau dáveis ou normais. Além disso, no fim do século XIX. vários médicos e cientistas, dentre eles Richard von Kraífl-Ebing e Havelock Ellis <1913; 1899/1936), começaram a escrever livros investigando a sexualidade humana c o desvio sexual. Frcud ficava intrigado com a
2. N o original e m inglês, esse lapso na escrita oco rre e n tre o substantivo p lu ral p ro n o m e me (m im ), o qu e , e m português, nã o ta ria sentido
mtn
(h o m e n s ) e o
ampla variedade de experiências sexuais sobre as quais ele lia c encontrava em seus pa cientes. Por que algumas pessoas desejam ter relações sexuais com crianças, cadáveres e animais de criação; com chicote e algemas, sapatos, em grti|M>. na frente de outras pessoas, obsessiva mente etc.? Freud, agindo como cientista e nào como moralista e juiz. tentou descobrir por que a energia sexual podia ser direcionada de tantas maneiras.
Fase oral Os bebês, impulsionados a satisfazer suas pulsôes de fome e sede, procuram o peito da mãe ou a mamadeira, bem como a segurança c o prazer que a amamentação proporciona. Felizmente, ou infelizmente, em algum momento (na sociedade americana em geral aos 12 meses de vida), o l>el>é tem de parar de mamar e ser desmamado. Isso cria conflito entre o desejo de permanecer em um estado de segurança dependente e a necessidade biológica e psicológica de ser desmamado ("crescer*). Esse é um exemplo de conflito entre o id e o ego. Alguns l>el>és resolvem facilmente esse conflito e redirecionam sua energia psicossexual (li bido) para outros desafios. Algumas crianças, porém, têm dificuldade para fazer essa transi ção; talvez por terem passado a ser alimentadas com comida sólida antes que estivessem preparadas. De acordo com a teoria psicanalítica. tais crianças permanecem preocupadas em ser cuidadas ou em cuidar de, conservando sempre na boca a substância desejada. Tec nicamente. diz-se que elas ficaram fixadas na fase oral. À medida que a personalidade desenvolve-se. os indivíduos fixados na fase oral são absorvidos por problemas de dependência, apego e "ingestão" de substâncias e, talvez, até de idéias atraentes. A fixação é a estrutura para o seu desenvolvimento. Como adultos, eles sentem prazer em morder, mastigar, chupar balas duras, sorver o alimento ou tragar o cigarro. Analogamente, eles sentem prazer psicológico em falar, em estar perto (muito per to) de outras pessoas e na constante busca de conhecimento. Pesquisas modernas confir mam a importância desse senso inicial de segurança. A receptividade da mãe é um dos melhores prognosticadores dos padrões de apego das crianças e. posteriormente, do ajusta mento social (Pederson et a i. 1990; Sroufe & Flecson, 1986).
Fase anal Se hoje alguém fosse classificado como tendo um caráter do tipo anal, provavelmente pareceria um in sulto ou um rótulo psicológico popular. Isso se deve ao fato de o contexto e o significado das idéias de Freud terem sido perdidos. Freud usou um aconteci mento importante do início da infância para explicar padrões arraigados que alicerçam a personalidade posterior.
Um garoto de 2 anos que tem prazer em expulsar as fezes e fica fixado nessa fase pode desenvolver um padrão de personalidade de criatividade e franqueza. fazendo o que deseja.
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Jackson Pollock (1912-1996) afirmou que a inspiração para seus grafamos era o inconsciente. Ele foi precursor de formas heterodoxas de usar a pintura, na maioria das vezes abandonando o pincel para empregar a técnica de gotejamento ou derramar a tinta diretamente na tela.
Na cultura americana, todas as crianças de 1 ano usam fraldas, mas quase todas com 5 anos usam o toalete. Por volta dos 2 anos, a criança tem de se acostumar a usar o toalete. Embora a maioria das pessoas não se lembre de ter sido educada para isso, os pais geralmente se lem bram muito bem da dificuldade que enfrenta ram para ensinar os filhos. A criança de 2 anos, seguindo as pulsões do id, sente prazer no alívio — na diminuição da tensão — proporcionado pelo ato de defecar. Os pais, entretanto, querem controlar quando e onde a criança urina e defeca. Em outras pala vras. os pais querem a proscrição da sociedade contra a defecação desenfreada representa da no superego da criança. Algumas crianças aprendem prontamente a adquirir esse autocontrole e isso se torna um aspecto saudável de sua personalidade. Outras exageram o aprendizado e começam a ter prazer em reter as fezes para manter algum controle sobre os pais. Elas soltam as fezes apenas quando estão seguras e dispostas. (A retenção de fezes por parte de algumas crian ças chega a ameaçar tão seriamente sua saúde que elas precisam tomar laxantes.) Além disso, outras crianças lutam contra o esforço de controlar o ato de urinar e defecar, tentan do manter lil>erdade total de ação. Segundo a teoria psicanalílica, esses padrões prosse guem durante toda a vida (A . Freud, 1981; S. Freud, 1908; Fromm, 1947). Quando adultas, essas pessoas que se fixam na fase anal podem ter grande satisfação com a motilidade do intestino grosso. Psicologicamente, as pessoas fixadas na fase anal po dem apreciar piadas de banheiro ou gostar de fazer desordem — até mesmo de atrapalhar a vida dos outros. Ou podem ser extremamente preocupadas com asseio, parcimônia e or ganização. Ou seja, educar de modo austero uma criança a usar o toalete pode levá-la a ter grande prazer em controlar as fezes, o que (teoricamente) manifesta-se como obstinação na fase adulta ("Eu vou quando eu quiser.") e mesquinhez ("E u vou ficar com isso para m im .*). Embora esse simples mecanismo não tenha sido confirmado por pesquisas empíricas, e conquanto a psicanálise não seja o melhor tratamento para pessoas com dis túrbios obsessivo-compulsivos, a idéia de que esses padrões e conflitos emocionais preco ces podem exercer enorme influência no desenvolvimento da personalidade, geralmente, tem sido aceita. Como foi observado, as pessoas fixadas na fase anal (que aprendem a reter as fezes de modo exagerado) talvez sejam mesquinhas na fase adulta e são também, e com frequên cia. passivo-agressivas. Por exemplo, elas podem não fazer nada detestável abertamente, mas agredir de forma passiva — por exemplo, ficando por algum tempo completamente
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mudas. Isso equivale a reler as fezes na infância — “Eu nâo faço nada errado publicamcnle, mamãe; nenhuma porcaria”. Voltar a atenção para a maneira como uma criança loi ensinada a usar o toalete é a melhor forma dc compreender um adulto mesquinho ou passivo-agressivo? Se acreditar mos que um modelo aprendido com êxito na infância é reproduzido de diversos modos ao longo da vida de uma pessoa, essa abordagem na maior parte das vezes lará sentido. Entre tanto, se afirmarmos que a fixação da libido na fase anal é causa fisiológica decisiva dos padrões comportamcntais do adulto, ultrapassaremos, cm muito, o que é sustentado pela teoria c pesquisa modernas. Em geral, as tentativas de associar a personalidade adulta diretamente com a amamentação e a sua suspensão, ou com a idade c a forma dc ensinar uma criança a usar o banheiro, mostraram-se malsucedidas. Em circunstâncias extremas, uma experiência significativamente traumática nesse aprendizado poderia estabelecer um padrão que per siste ao longo da vida. Porém, para a maioria das pessoas, suas primeiras experiências, to madas em separado, não têm efeitos simples e diretos sobre a personalidade posterior. Contudo, muitos dos grupos de características são válidos. Com o observou Freud. e pes quisas modernas confirmam, asseio, obstinação e mesquinhez de fato parecem ser caracte rísticas relacionadas, e talvez esses padrões resultem de uma série dc pressões que certos pais e alguns aspectos da sociedade exercem sobre determinadas crianças (Fisher & Greenberg, 1996; Lewis, 1996).
Fase fálica Por volta dos 4 anos. a criança entra na fase fálica, estágio em que a energia sexual concentra-se nos órgãos genitais. As crianças podem examinar o próprio órgão sexual e masturbar-se, mas a masturbação em público não é socialmente aceita. Da mesma forma, em várias famílias, a masturbação em lugares reservados é proibida pelos pais, o que pode ameaçar os filhos e desencadear consequências terríveis. A partir dessa fase. as crianças passam também a se concentrar nas diferenças entre garotos e garotas. Por volta dos 6 anos. a maioria já tem boa percepção de sua identidade dc gênero. O que c central nessa fase da teoria freudiana é o c o m p le x o d e Édipo.
Complexo de Édipo Na primeira década do século XX. os conceitos psicanalíticos desenvolveram-se e flo resceram rapidamente. Um estudo dc caso particularmente influente foi o do pequeno Hans, tema do trabalho de Freud denominado Analysis of a Phobia in a Five-Year-Old Boy (Análise de Fobia Num Garoto dc Cinco Anos) (1909/1967). Hans era filho de um dos amigos e admiradores de Freud. O garoto sofria dc fobia — medo exagerado e incapacitanie. No caso de Hans, ele tinha medo de cavalos. (Essa foi a fase anterior ao medo de automóveis.) Ele temia que o cavalo pudesse lhe morder, medo esse que por pouco não fez. com que temesse sair de casa. Diferentes teorias explicam esse tipo de fobia de diferentes maneiras. A explicação de Freud abordou-a do ponto de vista do conflito sexual inconsciente. Fie observou que o pai de Hans tinha um imenso bigode e era um homem alto e imponente; da mesma forma, os cavalos usavam focinheiras e eram grandes c imponentes. Assim como os símbolos eram importantes nos sonhos, Freud considerava que na mente dc Hans o cavalo simbolizava <> pai. Porém, por que Hans, inconscicntcnicntc, tinha tanto medo do pai?
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0 pequeno Hans tinha um medo excessivo de cavalos, que. na opinião de Ireud. representava o medo de ser castrado pelo pai.
Freud observou que Hans, como muitos outros garotos pequenos, era muito preocu pado com o pênis — o próprio pênis, o pênis do pai, o grande pênis do cavalo. Além disso, preocupava-se muito com pessoas (como sua irmã) que não tinham pênis. Ele foi ameaça do quando brincava com o próprio pênis. Freud concluiu que Hans estava se esforçando violentamente para lidar com o intenso amor que sentia pela mãe c a») mesmo tempo sabia que poderia não conseguir sobrepujar o poderoso pai. A origem de sua fobia a cavalos era essa luta. Seu medo inconsciente ê chamado de ansiedade de castração. Hans temia que o pai se vingasse dele c o castrasse, tomando-o, portanto, igual à irmã. De acordo com a lenda grega, Édipo, rei de Tebas, involuntariamente mata o próprio pai e casa-se com a mãe. Lendas semelhantes sobre parricídio surgiram em toda a história, em várias culturas. Freud, grande leitor de literatura clássica, acreditava que lendas e nar rativas como essa não eram apenas diversão; ao contrário, capturavam os princípios da natureza humana. Freud, portanto, adotou o termo c o m p le x o d e É d ip o para descrever os sentimentos sexuais de um garoto pela mãe e a rivalidade com o pai. Esses sentimentos de garoto e suas defesas psicológicas contra pensamentos c sentimentos ameaçadores são extremamente importantes, porque formam os padrões básicos de reação usados por toda a vida; isto ê, eles formam a personalidade. Um garoto de 5 anos não pode matar o próprio pai e casar-se com a mãe. Para solu cionar o conflito inconsciente entre o medo e o desejo erótico, o garoto que amadurece de forma positiva passa a se identificar com o pai. Assume, principalmente, as características do pai e lenta ser como ele. Além disso, para diminuir o perigo da castração, essa identifica ção permite que o pequeno garoto, de modo vicariante — ou seja, por meio de seu pai — , 'obtenha' a própria mãe.
Inveja do pênis E as garotas, como ficam? Freud acreditava que as meninas ficam um tanto decepcio nadas quando reconhecem que não têm um pênis como os meninos c os homens adultos. Essa não é uma suposição desarrazoada em lugares ou épocas em que é conferido um status bem mais alto aos garotos do que às meninas. Uma menina, ao tentar entender por
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que da tem menos valor, provavelmente visará a única diferença física observável, isto é. que ela não tem pênis. Observe também que. por Freud ter elevado a sexualidade à condi ção de modeladora da personalidade, faz sentido às meninas ficarem muito preocupadas com o fato de nào terem órgãos genitais que sejam facilmente visíveis. Pensando dessa maneira, as meninas desenvolvem sentimentos de inferioridade e ciúmes, fenômeno de nominado inveja do pênis. Assim como os meninos, as meninas desenvolvem primeiramente uma ligação sexual com a própria mãe. Entretanto, pelo fato de a mãe ter permitido que a filha nascesse sem pênis ou talvez (pensa a menina) tenha lhe cortado o pénis, ela transfere seu amor para o pai. tentando obter um pênis. Aqui. Freud aponta para os sentimentos conflitantes de uma menina que sem dúvida ama a mãe. mas responde ao afeto c à força do pai. Essa idéia nào seria controversa se Freud não tivesse ligado propensões sexuais ocultas a essas relações. (O conflito da menina é, ãs vezes, denominado complexo de Electra. nome da virgem na mitologia grega que convenceu seu irmão, Orestes, a matar a mãe. Clitemnestra; porém. Freud não gostou desse termo.) Da mesma forma que um garoto não pode se casar com a própria mãe. uma garota não pode se casar com o pai. Portanto, supondo um desenvolvimento normal, a menina chega rá à conclusão dc que, embora não possa ter um pênis, pode ter um bebê quando crescer, tornando-se, então, completa. Em outras palavras, para Freud. o desenvolvimento da per sonalidade da menina fundamenta-se nos sentimentos psicossexuais iniciais, formadores de sua identidade genital. Segue-se a isso que uma mulher adulta saudável provavelmente vai querer encontrar um homem desejável como o próprio pai e ter um filho. Não é raro conhecermos homens que parecem estar procurando namoradas que se as semelhem à própria mãe. ou que sejam exatamente o oposto. Conhecemos também m u lheres que estão procurando namorados que se pareçam com o próprio pai, ou o seu oposto. Todas essas motivações são diretamente deduzíveis da teoria psicanalítica. Vários tipos de prova, recentes, confirmam que muitos aspectos e problemas do noivado e do casamento giram em tomo de questões relacionadas com os pais de ambos os parceiros, embora nem sempre do modo como Freud tivesse previsto. Os adultos podem repetir conflitos de infân cia nào solucionados (Snydcr, Wills 6- Grady-FIctcher, 1991; Sullivan Christensen, 1998).
Período de latência Está claro para qualquer observador que as pulsões sexuais acabam se tornando uma influência significativa na puberdade. Porém, e quanto ao período entre a solução do com plexo de Édipo tpor volta dos 5 anos) e a puberdade (por volta dos 11 anos)? Freud não observou nenhum desenvolvimento psicossexual importante durante esse período e, por tanto. cham ou-o de p e río d o de latência. Nessa fase, em virtude de as pulsões sexuais nào poderem ser expressas diretamente, a energia sexual é canalizada cm atividades como frequentar a escola e fazer amigos. O fato de a teoria freudiana ter pouco a dizer sobre o período escolar revela a conside rável fragilidade dessa abordagem como um todo. O período escolar é a época em que a criança aprende a fazer amigos, a se tornar líder ou seguidor, a cooperar com os professo res e outras autoridades e a desenvolver o hábito de estudar e trabalhar. Essas questões nào são facilmente explicadas em termos de motivações e pulsões sexuais inconscientes. Para compreender essas questões, precisamos ter mais conhecimento sobre autoconceito e sobre traços e capacidades, temas considerados em capítulos posteriores deste livro.
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Conquanto Fremi nào soubesse, segue-se que isso de modo algum é um período de latência do desenvolvimento biológico. Nos anos que antecedem a puberdade (entre os 6 e 11 anos), as glândulas supra-renais estão amadurecendo e há um súbito crescimento e igual mudança dos hormônios produzidos por elas. Nào é raro haver atração sexual na quarta série, bem antes de os indivíduos atingirem a maturidade sexual (McCIintock & llerdt, 1996).
Fase g enital Se uma pessoa vencer os vários desafios da primeira infância e ainda assim tiver ener gia sexual (isto é. não tiver fixações significativas), podemos supor que lerá uma vida ra zoavelmente bem ajustada, dominada pela fase genital. Em outras palavras, Freud acre ditava que. se uma pessoa não tivesse caído em armadilhas ou adiado alguma coisa nesse percurso, a adolescência poderia marcar o começo de uma vida adulta normal em termos sexuais, de casamento e de criação de filhos. Freud tinha razão em propor que experiências da infância que se desviam dos padrões podem gerar idiossincrasias ou problemas de personalidade. Na verdade, essa suposição é a base de grande parte da psicoterapia dos dias de hoje. segundo a qual o ambiente inicial estabelece o padrão da vida posterior (Horowitz, 1998). Contudo, parece que Freud estava no caminho errado ao assumir que são as pulsões sexuais da infância que surgem repentinameme na adolescência. Hoje, não há dúvida de que ocorrem mudanças surpreendentes na puberdade e o adolescente luta para se tornar independente. Muitos conflitos surgem na puberdade, mas não parecem intimamente ligados ao desenvolvimento psicossexual de bebês e crianças de 1 anos. Além disso, hoje está ainda mais claro que há várias questões da sexualidade e do comportamento adultos a serem considerados por si sós, em vez do contexto de um modelo psicossexual e psicanalítico onisciente. Na fase genital, supõe-se que a atenção vá se desviar da masturbação para as relações heterossexuais. Qualquer desvio
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No entanto, pesquisas mais recentes confirmam o valor preditivo c talvez as in fluências causais do temperamento e da personalidade durante os primeiros cinco anos de vida. O ajuste e o temperamento de crianças pequenas estão confiavelmente relacio nados com a personalidade e comportamentos sociais dessas crianças no início da fase adulta (Caspi, 2000). Ou. como o poeta William Wordsworth afirmou, 'a criança é o pai do homem".
M asculino versus fem inino_________________ Por se concentrar na sexualidade como a principal força da natureza humana, não é surpresa que as teorias de Freud muito frequentemente tenham lidado com o pênis. Ao elaborar teorias sobre as mulheres, parecia lógico examinar as implicações da falta do pênis. Freud observou o significado de minimizar a importância do clitóris a uma menina. Mesmo nas sociedades amplamente al>ertas do presente, em geial. às meninas não é ensi nado o nome do clitóris e raras vezes são instruídas a examiná-lo ou a estimulá-lo. Voltar a atenção apenas para o clitóris poderia diminuir a importância dos homens para as expe riências sexuais das mulheres. Hoje, na realidade, geralmente são as mulheres mais femi nistas que enfatizam a educação sobre o clitóris. Nessa perspectiva, é compreensível a Freud propor que o desenvolvimento sexual maduro de uma garota envolve a transferênria da busca dc prazer para a vagina. Freud. portanto, postulava o 'orgasmo vaginal", psi cológica e biologicamente superior ao "orgasmo ditorial". O orgasmo vaginal supostamen te resulta da estimulação "natural" pelo pênis, enquanto o orgasmo clitorial poderia resultar da estimulação "artificial*. Pesquisas modernas sobre a resposta sexual humana, encaminhadas por Masters e Johnson (1966) e outros, não confirmaram esses tipos diferentes dc orgasmo. Um orgas mo é um orgasmo. As especulações de Freud centradas no homem e socialmente influ enciadas, tal como desenvolvidas por seus seguidores, causaram muita aflição nas m u lheres, na medida em que várias delas foram submetidas a tratamento por terapeutas por não terem o orgasmo vaginal 'correto". Esse é outro exemplo das boas idéias que Freud teve, mas também da inadequação de seus dados. Faz sentido (na época e agora) conside rar madura uma pessoa que consegue alcançar satisfação sexual em uma relação íntima com o parceiro. Entretanto, não faz sentido postular, biologicamente, que o orgasmo fe m inino resultante da estimulação vaginal pelo pênis é diferente do que resulta da estimulação direta do clitóris. (Na verdade, a estimulação da vagina pelo pênis estimula o clitóris.) Freud. assim como muitos outros da cultura ocidental do fim do século XIX. conside rava os homens inerentemente superiores às mulheres. Suas teorias, portanto, viam o comportamento masculino como normal, e o feminino como desvio. Um dos argumentos de Freud era de que as mulheres têm um desejo inconsciente de sofrimento (e obtêm um prazer inconsciente com esse sofrimento). Freud observou que as mulheres envolvidas em relações desconfortáveis e injuriosas com homens ain da assim permaneciam nessas relações c explicavam por que as preferiam. Freud mos trou a que extremo as pessoas chegam para racionalizar sua condição de vida. As paci entes de Freud foram envolvidas nessas relações porque as mulheres da época tinham poucas oportunidades de realização social, educacional ou económica próprias. Freud
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considerava essas mulheres masoquistas. Hoje. época de tremendas mudanças sociais, tende-se mais a acreditar que tais mulheres sofreram lavagem cerebral, se auto-anularam ou foram vitimizadas. Entretanto, vê-las como vítimas era praticamente impossí vel para os homens da época de Freud, porque todas as instituições da sociedade — religiosas, políticas, educacionais, jurídicas, familiares — consideravam-nas subser vientes aos homens. Nessa área, assim como em várias outras. Freud alcançou informações elucidativas fundamentais, cujas implicações foram distorcidas por aqueles que vieram depois dele. Meninos c meninas, na realidade, demonstram padrões diferentes de desenvolvimento. A medida que os direitos das mulheres vêm sendo reconhecidos, o valor e a importância das tendências “femininas" são cada vez mais apreciados. Hoje, a maioria dos psicólogos, den tre eles os feministas, concordam que há inúmeras diferenças nas tendências psicossociais dos homens e das mulheres. (Isso é investigado no Capítulo 11.) Porém, as implicações dessas diferenças estão no momento invertidas. A propensão das mulheres à afetividade e à família é vista atualmente como uma tendência saudável de oferecer amor e atenção c ser cooperativa, ao passo que a valentia e a independência dos homens são vistas como agressividade e falta de intimidade. As escritoras feministas das décadas de 70 c 80 com frequência condenavam os as pectos sexistas do “freudismo" — a pseudo-religião em que em alguns círculos a psicaná lise se transformou. Segundo elas, Freud era meramente um diagnosticador do que o fe minismo pretende curar e a própria psicanálise tornou-se a moléstia que o feminismo pretende curar (Firestone, 1970; M ilieu, 1974). Essas discussões mostraram novas dire ções para o pensamento moderno, na medida em que as várias influências biológicas e culturais sobre o desenvolvimento da m ulher e do homem foram examinados m inucio samente.
M ecanismos de defesa____________________ Os desafios do ambiente externo e de nossas pulsões internas, que nos ameaçam por meio da ansiedade, podem ser conflitos com pessoas íntimas ou ameaças à nossa autoestima (constrangimento, culpa, aulodecepçâo e assim jmh diante). O ego, governado pelo princípio da realidade, tenta lidar realisticamente com o ambiente. Entretanto, às vezes precisamos distorcer nossa realidade para proteger o ego contra as pulsões dolorosas ou ameaçadoras que provêm do id. Os processos que distorcem a realidade para proteger o ego são chamados de m ecanism os de defesa. Um dos insights mais interessantes e in fluentes da abordagem psicanalítica de Freud diz respeito aos mecanismos de defesa.
Repressão Não faz muito tempo, um homem aposentado foi processado por ter assassinado uma garota de 8 anos. Surpreendentcmenie, o assassinato havia sido praticado 21 anos antes. Por que esse homem fora acusado tanto tempo depois? A nova prova foi o testemunho re pentino de sua filha, então com 29 anos. Segundo ela. depois de mais de duas décadas, uma situação presenciada de repente veio à mente. Ela se recordou de que, aos 8 anos, viu o pai molestar e em seguida espancar até a morte sua colega de classe. De acordo com Freud, a repressão é o mecanismo de defesa do ego que repele os pensamentos ameaça dores. enviando-os de volta ao inconsciente.
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O Sr. George Franklin foi processado e condenado por assassinato com base no testemunho de sua filha adulta de que ela havia, há pouco tempo, se lembrado de tê-lo visto molestando e matando sua colega vinte anos antes. Seria essa uma memória real. de há muito reprimida devido ao medo e ao horror da filha, que se revelou à consciência? (O veredkto posteriormente foi anulado.)
Poderia uma memória tào importante quanto essa permanecer reprimida durante 21 anos? Será que podemos acreditar que uma memória possa ser recuperada com precisão, quando se rompe na consciência, décadas mais tarde? Será que cada um de nós pode hoje estar abrigando memórias recônditas como essa? Provas interessantes, do mesmo teor dessa, são apresentadas pelo que acabou sendo chamado de estresse p ó s-tra u m á tico (doença ou transtorno de estresse pós-traumático). Após a Guerra do Vietnã, percebeu-se que milhares de veteranos americanos começa ram a ter pesadelos, ansiedade, dificuldade para dormir c a ver o próprio casamento falir (Jaycox fr Foa, 1998). O único indício desses problemas eram as memórias diurnas repen tinas (flash back)de experiências de guerra relatadas por alguns veteranos, sobre as quais eles persistentemente tentavam evitar pensar. Como Frcud postulou, é como se a mente consciente não pudesse enfrentar memórias opressivamente estressantes c horríveis; nes se caso corpos queimados e mutilados e crianças massacradas. Os veteranos de guerra com transtorno de estresse pós-traumático tendem em geral a conter suas reações emocionais (Roemer, Litz, Orsillo & Wagner, 2001). Grupos de autoajuda com outros veteranos e psicoterapia focalizada na discussão sobre acontecimentos traumáticos frequentemente se mostraram benéficos como tratamento (como Freud pro pôs). Observe que, se o veterano tem consciência de que seus problemas são consequência das experiências vividas na guerra, a defesa não é considerada repressão porque não é in consciente. Entretanto, em muitos casos, as pessoas que já enfrentaram traumas anteriores superam o choque inicial e aparentemente continuam vivendo, mas as memórias escondi das as perseguem e atormentam. Esses casos parecem comprovar a existência da repressão. Seguindo a análise de Freud sobre a sexualidade reprimida, outra área na qual a re pressão é discutida com frequência no exercício moderno da psicologia é o incesto. A teoria freudiana sustenta que a violação sexual por pane do pai ou da mãe seria tão angustiante psicologicamente que poderia muito bem ser reprimida. O próprio Freud, entretanto, alir-
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mou que a maioria dessas atividades sexuais entre pais c filhos não era real. mas imaginada (Masson. 1984). (Algumas feministas acusam Freud de sucumbir às suas tendências sexis tas ao negar o abuso sexual frequente a meninas pequenas.) Essas questões atualmente chamam muita atenção nos tribunais (Loltus & Ketcham. 1991; Crcws. 1996). Filhos adul tos podem processar os pais por abuso supostamente ocorrido muitos anos antes. Interes sante é a descoberta feita por um estudo empreendido junto a uma população, em St. Louis, de que as pessoas mais propensas a sofrer de transtorno de estresse pós-traumático eram os veteranos de guerra e as mulheres que haviam sido vítimas de agressão lísica (Hclzcr, Robins fr McEvoy. 1987). Se não houver nenhuma prova objetiva de abuso, exceto a memória da criança, outrora reprimida, resultará dai uma situação legal extremamente lamentável. A suposta vi tima. que nesse momento pode ser uma mulher de 2 0 anos que sofre de ansiedade, acusa o próprio pai, o tio ou um vizinho de incesto, molestamento ou até mesmo de outros cri mes. O réu, presumivelmente inocente perante a lei, talvez um homem casado de 55 anos, é forçado a defender-se contra atos escandalosos que su|>osiamenie foram praticados m ui tos anos antes. Por falar nisso, sobre o caso do pai acusado de homicídio, supostamente testemunha do e reprimido |>or sua filha, então pequena, ele de fato foi para a prisão depois de ser con denado. Foi, porém, solto em seguida, pois apelações federais anularam a condenação. Embora sua filha ainda esteja convencida de que o pai é culpado, ninguém tem certeza, exceto o próprio pai. (Essas questões são abordadas mais adiante neste capítulo, no quadro Autoconhedm cnto.) Com relação a problemas complexos, psicotcrapeutas bem-intencionados podem, às vezes, plantar a idéia de abuso na memória do cliente. Por exemplo, se uma jovem u ni versitária procurar terapia porque está deprimida, tem pesadelos e não consegue se rela cionar bem com homens, o terapeuta pode dizer: 'Q uando criança você por acaso sofreu abusos sexuais? Esse abuso, mesmo em tenra idade, pode gerar sintomas como os que você está apresentando". Esse comentário pode fazer com que essa cliente pense que ela provavelmente sofreu abusos sexuais. Depois disso, ela talvez tente lembrar-se de algu ma evidência ou pista. N o atual ambiente social, em que muitas mulheres remontam seus problemas ao abuso sexual na infância, a m ulher pode chegar a se convencer de que de fato foi molestada. Pesquisas modernas sobre a memória demonstram que às vezes memórias lalsas podem ser "implantadas”, da mesma maneira que podem ser induzidas, por melo de influências sociais sutis, preferências por determinados estilos de roupa ou convicções políticas. Podemos acabar acreditando em histórias e experiências recordadas que na realidade nunca nos ocorreram (Appclhaum . Uychara & Elin. 1997; Loftus & Ketcham. 1991). No outro lado da moeda encontra-se a questão inevitável da prevalência do moles tamento de crianças, incesto e outras formas de abuso (Herman. 1992: Koss & Harvey, 1991). Quando Freud começou a investigar a infância de seus pacientes, descobriu que um número surpreendente deles parecia estar em luta com conflitos sexuais cuja origem provável seria molestamento na infância. Isso foi um tanto quanto chocante numa época tão recatada quanto a de Freud, mas ele persistiu cm sua linha de investigação. Na verda de. a atenção que ele direcionou à influência da sexualidade sobre a personalidade é uma de suas maiores e mais duradouras contribuições. Contudo, como observamos, Freud não podia ou não queria acreditar que ocorriam tantos abusos sexuais contra crianças. Desse modo, segundo a teoria freudiana, os conflitos sexuais, em sua maioria, são imaginados; as
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Autoconhecimento M e m ó r ia s r e p r im id a s d e a b u s o s e x u a l Em 1993, o cardeal Joscph Bernardin. de Chicago. íoi puhlicamentc ofendido quando acusa do por um homem, chamado Steven Cook. de tc-lo molestado havia dezessete anos. Esse padre católico negou com ímpeto as acusações, mas Cook afirmou ter se lembrado do molcstamento depois dc supostamente ser tratado por um hipnoterapeuta. Posteriormente, depois de investiga ção psicológica e jurídica mais extensa. Cook retratou-se c reconheceu que sc equivocara ao acu sar o cardeal. Suas memórias haviam-no traído. Em muitos casos, pode ser que o terapeuta, vo luntariamente ou não, seja a fonte das 'memórias*. Mais ou menos na mesma época, a comediante de televisão Roseanne Barr afirmou no noticiário que havia sido molestada sexualmente por seu pai; seus pais negaram vigorosamente as acusações. Casos semelhantes surgiram, envolvendo milhares de pessoas (em geral, m ulhe res >. Hoje. a mulher que estiver enfrentando problemas psicológicos ou sexuais vai procurar psicoicrapia. Durante a terapia, os problemas são remontados ao abuso sexual na infância, m e mória essa até então reprimida. Será que essas acusações deveriam merecer crédito? Será que as memórias são precisas? Como é possível avaliar as "memórias' remotas dc uma pessoa? Não existe uma resposta simples a essas perguntas, porque dois fenómenos constatados estão cm conflito. Ironicamente, ambos foram o centro de interesse nas investigações de Freud. Em primeiro lugar, é sabido que memórias dc sentimentos dolorosos de fato podem ser apartadas na mente. Uma experiência traumática pode gerar sofrimentos emocionais como insônia, pesade los. ansiedade, ao passo que a mente consciente recusa-se a pensar sobre uma imagem horren da. Em segundo lugar, é sabido que as pessoas são sugestionáveis; elas podem distorcer as pró prias memórias e ser influenciadas pelo terapeuta. Na maioria das vezes, não se pode dar crédito á memória. Memórias de uma infância conturbada geralmente não são eidéticas — elas não são como a fotografia. Se uma criança for molestada refletidas ve/es entre os 3 c 5 anos, quando adulta, suas memórias serão influenciadas por todos os eventos subsequentes de sua vida. Portanto, devemos suspeitar quando um adulto, angustiado, de repente começa a atribuir a culpa de todos os seus problemas à sua infância, sem confirmar as evidencias. Não é provável que memórias nítidas de um molcstamento que se repetiu ergam-se repentinamente das profundezas do inconsciente. Uma pessoa inocente poderia ser lesada. Entretanto, é alarmante a quantidade de crianças que de fato são molestadas. Contudo, a memória de uma única cena chocante talvez seja de fato reprimida de maneira a que possa ser quase totalmente recuperada. A pessoa, criança ou adulto, que testemunhar um assassinato sangrento, uma mutilação ou mesmo um erro de conduta social extremamente em baraçoso. pode carregar essa memória por m u i tos anos. escondida da consciência.
O falecido cardeal Joseph Bentardin foi acusado de abuso sexual em um caso de ' recuperação de memória O denunciante posteriormente retratou suas acusações, negando tais memórias.
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crianças começam a ter medo de que o pai fira seus órgãos genitais. Porém, afirmou cie, o perigo mora apenas na imaginação delas. Entretanto, sondagens modernas de fato indi cam que muito mais pessoas (em especial mulheres) são molestadas do que geralmente se imagina. Portanto, várias questões atuais sobre culpa e inocência, abuso e justiça, dependem da compreensão do fenômeno que Freud chamou de repressão. Infelizmente, ainda não há nenhuma resposta simples. Não há nenhum teste de tomassol que possamos usar para de terminar se um pensamento que surge repentinamente é memória genuína há muito tem po reprimida ou falsa conclusão resultante de sugestão ou outros processos de influência. Apenas uma análise criteriosa da evidência cm cada um dos casos, aliada a compreensão perspicaz e do mais alto nível da forma como a mente funciona, pode ser empregada legiti mamente. Esse é um exemplo claro de como o estudo da psicologia da personalidade pode acabar se mostrando fundamental para a vida cotidiana das pessoas. A repressão ainda é um conceito importante em várias áreas da psicologia. Além da importância de estudar a saúde mental, parece indispensável às nossas relações com o u tras pessoas e à nossa saúde física como um todo (Emmons, 1992; Blatt, Comell í> Eshkol, 1 9 9 3 ).
Formação real iva Os televangélicos — os religiosos evangélicos que pregam na televisão — podem al cançar milhões de telespectadores usando expressões de santidade e suas exortações para que as pessoas sigam princípios religiosos. Talvez seja uma experiência interessante falar de modo apaixonado sobre sentimentos religiosos profundamente pessoais paia um públi co tão grande. O que motiva esses televangélicos? Na maioria dos casos, parece que esses pregadores têm o desejo sincero e insofismável de ajudar outras pessoas a alcançar dádivas espirituais. Entretanto, a teoria psicanalítica propõe um tipo bem diferente de explicação. Jim Bakker era um televangélico extrema mente popular, que parecia personificar a reti dão c convencer milhões de telespectadores a enviar-lhe dinheiro para que desse continuida de à obra do Senhor. No devido tempo soube-se que Bakker estava envolvido em inúmeras ati vidades anti-éticas e imorais. Quando captura do. caiu em lágrimas, e por fim foi preso. Jim m y Swaggart foi outro renomado televangélico que
Jim Bakker, um franco pastor protestante, da televisão, que dirigia um império religioso multimilionário e pregava a integridade moral, demitiu-se após ter sido revelado que estava cometendo adultério com uma secretária da igreja e usando o dinheiro do ministério para comprar o silêncio dessa mulher. Condenado por fraude e conspiração por ter empregado fundos do ministério para uso pessoal. B*tkker foi sentenciado a cumprir pena e a pagar uma multa altíssima.
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O congressista americano Gary Condit. democrata conservador que promoveu um programa de 'valores familiares", cresceu no Bible Bell como filho de um pastor batista em uma regido em que o fundamentalismo protestante i amplamente praticado. Como cristão evangélico, ele foi co-responsável pela legislação que defendia a afixação dos Dez Mandamentos em prédios públicos. Além disso, repreendeu publicamente o presidente Clinton por reter informações sobre seu caso amoroso com Monica Lewinsky. 0 misterioso desaparecimento de uma jovem, que fazia residência médica em Washington, trouxe a público que Condit tivera um caso com ela (e talvez com outras mulheres também); e não foi de imediato que ele cooperou com as autoridades na investigação sobre o desaparecimento dessa jovem.
arengou e ralhou contra a imoralidade sexual. Ele se demitiu da Igreja depois de ter sido fotografado com uma prostituta de New Orleans. Swaggart também fez sua confissão cm pranto. Seu ministério, depois disso, desmoronou. Posteriormente, na Califórnia. Swaggart foi indiciado por três infrações de trânsito com uma mulher que dizia ser — adi vinha? — prostituta. De acordo com a teoria psicanalítica. as pulsõcs básicas, internas, de pessoas como es sas (as forças do id) incitam-nas a se envolver em comportamentos — atos sexuais de va riados tipos, avareza, fraudes — incompatíveis com sua crença religiosa. A percepção que elas têm do self é, portanto, severamente ameaçada, e o self (o ego) distorce esses impulsos inconscientes e transforma-os em seus opostos. Desse modo, em vez de pôr para fora os próprios desejos sexuais, essas pessoas acabam pregando veementemente contra “peca dos" sexuais. A form ação reativa é o processo de afastar pulsõcs ameaçadoras superenfatizando o oposto cm nossos pensamentos c atitudes. A formação reativa c uma ideia controversa, porque sugere que muitas pessoas aparentemente "morais" estão de fato lutando, de ma neira desesperada, contra a própria imoralidade. Será que alguns pastores estão agindo de modo respeitoso porque realmentc se sentem perversos c ímpios? Será que uma pessoa que orgulhosamente se recusa a servir bebidas alcoólicas em casa. na realidade, está sendo motivada por seu próprio desejo de relaxar e ficar bêbada? Será que aqueles que criticam os gays na verdade estão se sentindo inconscientemente ameaçados por suas próprias pulsõcs homossexuais latentes? A formação reativa é um conceito fascinante raras vezes submetido a avaliações siste máticas por pesquisadores modernos da personalidade. Ocasionalmcntc. quando c estuda da, de fato há quem a defenda. Por exemplo, um estudo sobre heterossexuais assumidos comparou homens homofóbicos (aqueles que têm percepção muito negativa sobre ho mossexuais) com homens nâo-homofóbicos no que se refere à excitação experimentada quando assistem a vídeos muito eróticos de casais hetero e homossexuais. Apenas nos ho mens homofóbicos a ereção do pênis aumentou quando assistiam a cenas de estímulo ho mossexual masculino (Adams. Wright b I.ohr. 1996).
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Teorias dapersonalidade
Negação Quando ocorre uma tragédia, ía/, parte do trabalho de determinados policiais ou de outros funcionários públicos ir à casa das vítimas informar os pais que, por exemplo, sua filha ou seu filho morreu em acidente ou homicídio. Às vezes, a resposta dos pais é sim ples: 'Não, não é possível. Eu estava indo exatamente agora encontrar meu filho.*’ Os pais negam enfaticamente o terrível fato. Da mesma maneira, uma garota adolescente no está gio avançado de uma gravidez indesejada talvez negue, para si mesma e para os outros, que esteja grávida, embora todas as evidencias mostrem o contrário. Quando os terroristas destruíram o World Trade Center, em Nova York. matando mais de 3.000 civis, muitas das vítimas evaporaram-se em decorrência da elevadíssima tempe ratura da queima do combustível do avião, ou foram esmagadas pelo desmoronamento dos arranha-céus. Nesse caso, cm particular, não havia corpo a “encontrar', mas parentes e amigos começaram a procurá-los. de hospital em hospital, infrutiferamente. Quando, dias depois, os repórteres começaram a perguntar para esses parentes consternados se ha viam perdido a esperança de achar os entes queridos, a resposta mais comum era a afirma ção calma de que ainda acreditavam que teriam êxito e de que tudo acabaria bem. Era ex tremamente difícil de acreditar, era demais para a mente humana compreender que cônjuges, irmãos e irmãs ou filhos jovens e cheios de vida haviam sido destruídos em um ataque terrorista, encabeçado por fanáticos religiosos. Pesquisas sobre a reação a dores e ferimentos físicos revelam um fenômeno semelhan te. Por exemplo, um trabalhador escorregou e acidentalmente enfiou uma chave de fenda na mão. Ele não havia sentido nem um i m h i c o de dor até que abaixou a cabeça para ver o que havia ocorrido e viu o sangue: em seguida, a verdade começou gradativamente a 'pene trar-lhe no espírito*. Os soldados feridos em guerra ou mesmo os jogadores de futel>ol que se ferem cm campo, com frequência, sentem a dor do ferimento apenas várias horas depois. A mente tem um meio de manter suas próprias sensações fora do limiar da consciência. A negação — recusa em reconhecer um estímulo que provoca ansiedade — é um mecanismo de defesa comum (Baumeister, Dale fr Sommer, 1998). Conquanto a nega ção seja observada em adultos, em circunstâncias de extremo estresse, em algumas oca siões as pessoas podem também distorcer alguns aspectos de dada situação dizendo a seus amigos, por exemplo, que uma terrível discussão com o cônjuge foi na verdade uma bri ga de amor. Nesses casos, elas mentem para si mesmas. Assim como a repressão, a nega ção é um mecanismo que tem recebido a atenção constante dos pesquisadores que inves tigam o estresse, o enfrentamento e a saúde (Fernandez 6 Turk, 1995), temas cobertos no Capítulo 12.
Projeção A projeção é um mecanismo de defesa em que o indivíduo exterioriza as pulsòes que provocam ansiedade, depositando-as ou projetando-as em outras pessoas. As ameaças in ternas sentidas por esse indivíduo são atribuídas àqueles que estão ã sua volta. Suponhamos que um político conservador extremista, excitado a lutar agressivamen te contra pessoas que praticam sexo antes do casamento, filhos ilegítimos, homossexuais e professores que ministram educação sexual nas escolas, afirme: "Esses comunistas subver sivos estão arruinando nossa estrutura moral.* Seria esse político um vaticinador nobre e digno, que está possibilitando uma vida melhor a todos, ou uma personalidade perturba da. que adiou sua sexualidade indefinidamente e tem medo de as forças emergentes do id
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surtarem? Fremi queria aplicar suas teorias aos principais problemas existentes na socie dade. como a causa do preconceito e da guerra. De certo modo, as verdadeiras motivações de nossos políticos extremistas (ou de qual quer u m ) não podem ser cientificamente provadas. Hssa é uma das fragilidades desse as pecto da teoria freudiana e da teoria psicanalítica em geral. Por exemplo, as fontes freudianas tradicionais de 'evidência' — descobertas durante a psicoterapia e melhora psi cológica após essas descobertas, ou após a terapia — podem com certeza resultar de outros fatores. E se os padrões continuarem após a psicoterapia, talvez se afirme que as pulsõcs inconscientes estão até mesmo mais profundamente escondidas; essa descoberta é impro vável. Entretanto, se um político conservador mostrar determinados comportamentos, aí parece mais provável que esteja ocorrendo uma disfunção psicosscxual. No extremo opos to, se descobrirmos que um político conservador casado, que está sempre defendendo os valores familiares, veio a ter uma amante secreta durante longo período podemos supor convenientemente que esse político estava lutando com sua libido por meio da formação reativa (agir de maneira oposta às pulsões) e projeção (atribuir as próprias pulsões a outras pessoas). Isso poderia sor confirmado se esse político mostrasse outros sinais de instabilida de. Outros exemplos são mais sutis. Vejamos o caso de uma ativista da comunidade feminina que se reúne com o conse lho de diretores para ter a certeza de que as crianças não estão recebendo informações so bre sexualidade e contracepção nas escolas públicas. Pelo fato de ser também extrema mente contra o aborto, ela afirma que a sexualidade e a contracepção são assuntos que a família deve discutir em casa (ou na igreja) com os filhos. Se essa fosse a sua motivação real, ela estaria apta a fornecer informações correspondentes a seus filhos; deveria se sen tir bastante confortável e informada sobre assuntos como ereção, lubrificação vaginal, or gasmos e assim por diante, e sobre problemas sexuais como ejaculação precoce, vaginismo e doenças transmitidas sexualmente, como aids e clamidíase. Isso pode ser constatado em discussões íntimas entre adultos. Se essa mulher discute inteligentemente esses assuntos, talvez no contexto de suas convicções religiosas, a interpretação freudiana parece não ser aplicável. Entretanto, se ela fica enrubescida, extremamente hostil ou traz à tona assuntos irrelevantes quando fatos fundamentais sobre a sexualidade humana estão sendo discuti dos. um freudiano poderia se atrever a dizer o que motiva os comportamentos conserva dores dessa mulher. Um tipo análogo de análise poderia ser aplicado a um político liberal ou ativista que parecesse particularmente preocupado com idéias de amor livre ou a expressão pública de artes eróticas. A perspectiva de Freud permitiria a um observador averiguar se esse é um conjunto racional e lógico de convicções, ou a adaptação irracional dc forças sexuais incontroláveis e instintivas. As discussões e pesquisas sobre projeção defensiva não perde ram seu fascínio ao longo de todo o século passado c foi constatado pelo menos algum apoio para os pontos de vista de Freud (Allport, 1954; Newman, Duíf h Baumelsier, 1997; Vaillant, 1986). Muitos estudos modernos documentaram a existência de preconceitos inconscientes, em particular, de preconceitos raciais. Por exemplo, em um experimento foi apresentada aos participantes uma série dc faces aíro-americanas e brancas, emparelhadas com um ad jetivo negativo ou positivo. Os brancos cujo preconceito contra afro-americanos fosse in consciente ficariam predispostos quando vissem a face de um afro-americano. A tarefa do participante era pressionar rapidamente uma tecla para indicar se a palavra apresentada era positiva ou negativa. A latência da resposta às palavras negativas emparelhadas com
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uma face afro-amcricana deveria, portanto, indicar um preconceito inconsciente. Na reali dade, os resultados mostraram que essa avaliação de diferenças individuais em relação ao preconceito previu se a cúmplice afro-americana (dos experimentadores) posteriormente considerava os participantes favoráveis e confiantes quando ela os interrogava sobre o es tudo (Fa/io, Jackson, Dum on fr Williams, 1995).
D eslocam ento No caso do menino Hans, lembre-se de que ele tinha medo de ser pisado pelo cavalo, mas na realidade seu medo era de que seu pai, alto c forte, fosse castrá-lo. Esse c um exemplo de deslocam ento. O deslocamento ocorre quando alguém desvia o alvo de me dos ou desejos inconscientes. Um exemplo clássico de deslocamento é o de um homem que. quando humilhado pelo chefe, vai para casa. bate nas crianças e chuta o cachorro. Esse exemplo é interessante porque há alternativas teoricamente interessantes de explicação. Deslocar a raiva para o cachorro sugere que os sentimentos inaceitáveis de alguém que quer matar o chefe são li berados, de uma maneira mais aceitável, no pobre cão. Esse é um m o d e lo de desloca m e n to hidráu lico , típico das explicações freudianas. A pressão aumenta, como o vapor cm uma caldeira, e deve ser liberada. Além disso, outras explicações não-freudianas focali zariam mais a situação que libera o ato agressivo ou o histórico de aprendizado anterior, a agressividade do homem ou sua percepção de self ou sentido de propósito, a explicação é importante porque há diferentes implicações quando se impede a agressão (Neubauer, 1994; Mclhurg fr Tcdcschi. 1989). De acordo com a explicação do deslocamento hidráuli co, alguma válvula de escape deve ser encontrada para os impulsos agressivos refreados, que são então desencadeados pela frustração e humilhação. Em geral, há boas evidências fornecidas por pesquisas que apoiam o fenômeno da agressão deslocada (M arcus-Ncwhall. Pedersen, Carlson & Miller, 2000). Além disso, quanto mais o alvo se parecer com o provocador, maior será a agressão deslocada.
Sublimação A sublim ação é a transformação de pulsõcs perigosas em motivações |>osiiivas e socialmente aceitáveis (Loewald. 1988). Por exemplo, pulsõcs anais retentivas, fundamen tadas na retenção de fezes, podem desencadear um desejo de controlar e mandar na vida de todos os familiares e cole gas de trabalho. Por meio da sublimação, essas pulsõcs po dem ser transformadas no desejo de organizar atividades infantis e de limpar áreas locais ã margem de um rio.
Freud fez uma análise do artista italiano Michelangelo (14751564), com base em dados arquivísticos. Identificou que Micltelangelo era um homossexual reprimido, dominado pela própria mãe. e que havia sublimado sua energia sexual em notável criatividade como escultor, pintor, arquiteto e poeta. Essa é a estátua esculpida por Michelangelo do bíblico matador de gigantes. Davi.
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C) empenho artístico com frequência é atribuído à sublimação. Hm uma análise psicohistótica de Leonardo da Vinci, Freud (1947) afirmou que a genialidade de Leonardo ha via sido, a partir da sublimação da energia sexual, despertada em uma paixão pela criatividade e descoberta científicas. Não há dúvida de que é necessário também um talen to inato; nem todo mundo que já sublimou sua energia sexual pode tornar-se um Leonar do da Vinci. Freud fez uma análise semelhante com Michelangelo. Freud via a sociedade como um meio de afastar a energia sexual de finalidades se xuais e direcioná-la para metas sociais. Desse ponto de vista, a sociedade não teria o que temer senão os impulsos sexuais retornarem à sua finalidade original — a satisfação se xual. Pode-se afirmar que a sociedade moderna está sempre oferecendo um teste da teoria freudiana. Desde a época puritana de Freud, houve a revolução sexual c uma sensível li beração. Tendo em vista que as pessoas tornaram-se mais e mais liberadas sexualmente, a psicanálise prevê que a arte, a criatividade e mesmo a própria civilização sofrerão e em al gum momento vão se desintegrar.
Regressão Na regressão voltamos jvira estágios iniciais e mais seguros da vida. Esse mecanismo de defesa é mais perceptível nas crianças. Uma criança que há pouco foi desmamada pode tentar retornar à mamadeira ou ao peito. Uma criança ameaçada, que está começando a ir para a escola, pode passar a agir como uma que está começando a andar. Pode haver re gressão, cm particular, no estágio em que lenha fixação prévia. Nos adultos, a regressão é difícil de documentar. Dentre os exemplos clássicos cncontra-se o adulto ansioso que começa a choramingar como uma criança, procurando prote ção maternal. Ou então um homem agitado, que pode tentar aninhar-se no sei«) da espo sa, ou uma mulher estressada que pode pular no colo do marido. A defesa da regressão lembra-nos que a teoria psicanalítica é uma teoria de estágios: o desenvolvimento psicossexual prossegue a passos fixos e bem-delineados.
Racional i/ação A racionalização é um mecanismo que abrange explicações lógicas post hoc ('após o fato"), de comportamentos que na realidade foram pulsionados por motivos internos in conscientes. A psicanálise reconhece muito bem que as explicações dadas aos nossos com portamentos não estão necessária nem mesmo remotamente relacionadas com as causas verdadeiras. Hm vez «fe admitir que atravessamos o país para ficarmos perto de uma pessoa sexualmente atraente, é provável que expliquemos (não apenas para os outros, mas para nós mesmos) que estávamos procurando uma oportunidade melhor de trabalho ou novos desafios. Os perigos da racionalização (indução de componamcntos il«')gicos) foram tam bém enfatizados por muitas abordagens da personalidade; entretanto, se a defesa não for percebida como proteção contra puls«>es ameaçadoras provenientes do inconsciente, ela não será considerada mecanismo de defesa psicanalítico. De modo geral, o conceito de mecanismo de defesa não foi objeto de muitos estudos científicos, diretos, na psicologia da personalidade moderna em voga. Porém, alguns inte ressantes estudos empíricos sobre mecanismos de defesa psicanalíticos foram conduzidos nos últimos anos, empregando-se amostra de homens de meia-idade e mais velhos, que foram acompanhados desde a sétima série (Valllant eial.. 1986). As descrições de como es ses homens reagiram a desafios na vida foram transformadas em uma estrutura de meca-
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nismo do dolosa. Esso trabalho sugere, fundamentalmente, que o estilo defensivo é um as pecto permanente da personalidade. Identificou-se. também, que a maturidade dessas de fesas está associada a índices da maturidade psicológica dos homens, medidos independen temente — melhor saúde mental como um todo. Em uma abordagem mais experimental, interessante estudo investigou as circunstân cias nas quais um casal de namorados pode ser motivado inconscientemente a cometer er ros ao julgar as opiniões e sentimentos um do outro (Slmpson, Ickes fV Blackstone, 1995). Em primeiro lugar, os 82 casais de namorados preencheram questionários que avaliavam a intimidade do relacionamento, opiniões ou inseguranças quanto a permanecer ou não na relação. Em seguida se sentavam e, juntos, assistiam a uma série de ilides durante o que o parceiro classificava possíveis namoradas de acordo com a atratividade física e sensualida de. e assim também procedia a parceira, classificando os possíveis namorados. Os slides de incentivo mostravam namorados e namoradas em potencial, tanto atraentes quanto nãoatraentes. Enquanto confabulavam, os casais eram gravados cm videoteipe. Em seguida, em salas separadas, os parceiros assistiam às respectivas ponderações, in dicando em que momento, durante a interação, eles experimentaram determinado pensa mento ou sentimento, que pensamento ou sentimento era esse e se era positivo ou negati vo. Depois disso, foi solicitado a cada parceiro que assistisse à interação novamente c tentasse deduzir o que o parceiro ou a parceira estava pensando ou sentindo em cada um desses momentos. Seguiu-se a isso que os casais de namorados que tinham uma relação mais íntima eram inseguros quanto à relação, e achavam pessoas do sexo oposto muito atraentes (isto é, ameaçadoras); revelaram menor conformidade empática quando tenta ram deduzir os pensamentos e sentimentos reais um do outro, assistindo ao videoteipe. Em outras palavras, a capacidade de compreender os sentimentos do parceiro era prejudi cada quando havia ameaça à relação. Até certo ponto, eles não queriam saber a verdade. Esse estudo é um bom exemplo de como os pesquisadores da personalidade modernos tentam usar experimentos para investigar conceitos inicialmente propostos |n>r Freud.
Estudos iutercultum is Freud investigou o inconsciente de modo primoroso, mas era relativamente despreo cupado das possíveis variações culturais. Embora tivesse muito interesse em aplicar a psi canálise para compreender a cultura, acreditava que idênticas e essenciais forças psicodinámicas alicerçam todas as culturas, em particular, a dinâmica que circunda o complexo de Edipo. Em seu livro Totem innl Tabu ( Totem e Tabu], Freud (1952) remontou a origem da civilização ao tempo em que irmãos se juntavam e assassinavam o pai. chefe da tribo, cooptando seu poder e suas esposas. Na opinião de Freud, isso teria deixado traços em to das as civilizações, na forma de tabus culturais como <> incesto. Também a religião, para ele. surgiu de forças psicodinâmicas; ele não levou em consideração a possibilidade de a religião ter criado determinadas lorças psicodinámicas. Freud envolveu-se também com psicobiograíia; na verdade, ele e seus colegas criaram esse campo de investigação. Quando voltou a atenção para Leonardo da Vinci, deduziu, com base cm uma análise de dados arquivísticos, que ele era um homossexual reprimido, dominado pela mãe. e que havia sublimado sua energia sexual. Freud, reiteradas vezes, afirmou que os fenômenos que ele havia descoberto eram universais. Os princípios da psicanálise deduzidos no século XIX. na Áustria, podiam ser
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diretamente aplicados para compreender a vida de uma pessoa no século XV. na Itália. Nesse contexto, os antropólogos culturais da primeira metade do século XX ficaram intri gados com a idéia de que as variações de uma cultura para outra, na forma de criar os fi lhos. poderiam gerar variações sistemáticas na personalidade — isto é. de que cada socie dade produz um tipo básico de personalidade (U n io n . 1945). Por exemplo, se uma sociedade permitisse uma proporção hem maior de brincadeiras sexuais entre as crianças (do que a severa Europa vitoriana de Freud), estas poderiam desenvolver personalidades sistematicamente diferentes. É sabido que os alemães tem hábitos mais severos de punir as crianças do que os ame ricanos. Portanto, será que podemos deduzir que disso resulta uma personalidade alemã inerentemente rígida (Rippl fr Boehnkc, 1995)? Analogamente, são os cientistas america nos inovadores (ganhando tantos prêmios Nobel) por serem criados em uma sociedade mais liberal e centrada na criança que desenvolve uma personalidade independente? Pro duzem as escolas japonesas (que enfatizam a uniformidade), em grandes conglomerados impessoais, adultos com personalidade adequada ao trabalho cooperativo? Conquanto essa generalização possa, à primeira vista, parecer brilhante, há sério erro lógico em tirar conclusões desse tipo. Por que atribuir comportamentos adultos a uma per sonalidade culturalmente influenciada, quando a própria cultura funciona como explica ção óbvia? Os alemães bebem muita cerveja, mas não há nenhuma razão para pressupor que exista uma personalidade alemã "bebedora de cerveja"; eles simplesmente vivem em uma cultura na qual beber cerveja é comum. Poderíamos afirmar que a personalidade dos judeus é propensa a comer bagel1 e salmão defumado? Ou que os italianos têm personali dade propensa a comer massa? Faz mais sentido dizer que as pessoas de determinada cul tura apreendem determinados comportamentos da família c dos amigos. Esses comporta mentos não são consequência da personalidade delas; se elas mudassem para um lugar diferente e fizessem novos amigos, o comportamento mudaria. Hábito não é a mesma coi sa que personalidade. A personalidade deve estar relacionada legitimamente com varia ções individuais dentro de uma cultura. No entanto, para testar esses conceitos sobre personalidade e cultura, os antropólo gos recorreram a testes projetivos como o Rorschach. Eles concluíram que esses lestes (que usam manchas de tinta c. portanto, não têm idioma específico) seriam aplicáveis (válidos) em todas as culturas. Infelizmente, os estudos imerculiurais foram prejudicados por falhas metodológicas sérias e suposições falsas (Lindzcy. 1961). No fundo, a busca de traços básicos e profundamente assentados de personalidade, característicos de uma cul tura, era em si tendenciosa. Os pesquisadores tinham conceitos preconcebidos sobre a personalidade cultural da qual se ocupavam, usavam instrumentos de medida inadaptados e invalidados em diferentes culturas e. na maioria das vezes, não selecionavam amostras dc pessoas verdadeiramente representativas para o estudo. Além disso, se forem usadas medidas clínicas projetivas de psicopatologia em uma pesquisa sobre diferentes culturas, a cultura estrangeira como um todo |H>de acabar sendo (e às vezes c) classificada como patológica. Isso não quer dizer que determinados padrões de personalidade não sejam mais comumente observados em dadas culturas, mas que esses padrões ainda não foram devi damente documentados. Por meio de técnicas de pesquisa mais recentes e mais sensíveis às características singulares de cada cultura, a probabilidade de uma pesquisa viável so-*
$. P io em forma de anel .
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brc a personalidade em diferentes culturas é grande (Sega II. Dascn, Berry b Poortinga, 1 9 9 0 ).
Principais contribuições e limitações da psicanálise freudiana___________________ Antes do século XX e antes do trabalho de Sigmund Freud, não havia psicologia da personalidade. Sem dúvida havia explicações sobre diferenças individuais. Os grandes teó logos acreditavam que o comportamento humano era determinado pela influência divina, por um Deus todo-poderoso que controlava ou inspirava tudo. Os teólogos mais seculares atribuíam a culpa de determinadas fragilidades ao demônio. Para os modelos médicos me cânicos, as pessoas eram influenciadas por fluidos internos. Porém, até que Freud, seguin do o exemplo de Darwin. começou a investigar os fundamentos — as funções — da mente humana, não havia uma psicologia da personalidade e do comportamento humano. E não havia psicoterapia.
Lo rena Bobbitt Era apenas ruais um dia na
se isso tivesse continuado por mais quatro anos.
vida de Lorcna Bobbitt.
o que seria diferente em relação a essa noite em
Seu marido, John Wayne
particular?
Bobbitt, chegou em casa
Lorena disse que naquela noite, depois de ser
tarde c. de forma grossei ra. a abordou scxualmentc. Dessa ve/ ela o recu
agredida, começou a ter lembranças de todos os outros momentos em que seu marido a havia
sara por estar bêbado. Embora ela o tenha recusa
aterrorizado. Disse que. a partir daquele momen
do, John dominou o seu 1,55 m de altura e a es
to, havia perdido a noção da realidade e que, no
tuprou. Às quatro horas da madrugada. Lorcna,
instante em que atacou o marido, não estava
de posse de uma faca de cozinha trinchante, muti
controlada. John, então com 26 anos. negou ha
lou o marido enquanto d e dormia. Em seguida,
ver molestado a própria mulher, embora tenha
colocou o pênis, com gelo, dentro de um saco com
admitido casos extraconjugais. Estava Lorena
fecho de correr e saiu de carro, levando-o na mão.
apenas se vingando de sua infidelidade e certifi-
enquanto dirigia pela cidade. Por fim, acabou jo gando o saco |>cla janela do carro e seguiu cm di
cando-sc de que ele nunca mais pudesse traí-la
reção à casa de uma amiga.
se estivesse vivo?
Lorcna, uma manicure, então com 24 anos.
sexualmente? O que diria Freud sobre tudo isso De acordo com a teoria psicanalílica. há muito mais coisas ocorrendo na nossa frente do que nos
ate essa noite parecia viver uma vida normal c monótona. O que poderia tê-la levado a praticar
sos olhos podem ver: o comportamento de Lorena
um ato tão agressivo? De acordo com o que
provavelmente teria sido atribuído a motivos in
Lorena relatou posteriormente. John a havia
conscientes. influenciados por conflitos sexuais
maltratado emocional, física e sexualmente d u
internos. Ela não era necessária e totalmente uma
rante todo o tempo em que estiveram casados.
vítima porque, afirmam os freudianos, muitas
Em algumas ocasiões ele a surrou, obrigou-a a
mulheres têm o desejo inconsciente de sofrer
ter relações anais e chegou a iorçá-Ia a praticar
(como
aborto. Ela reclamou, também, que ele nunca, jamais, a esperou chegar ao orgasmo. Contudo.
machucadas, que permanecem em relacionamen
comprovado
pelas
várias
mulheres,
tos deteriorados). Explicação mais provável seria
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Frcud revolucionou ainda mais a psicologia quando enfatizou que a sexualidade era o principal elemento da personalidade. Pergunte a jovens de ambos os sexos, cujos hormônios estão borbulhando, se a sexualidade exerce influência significativa sobre o comportamento deles — se gostam de arrumar namorados ou namoradas. Com certeza não haverá espaço para discussão. Freud deu um passo adiante ao estender sua idéia de motivação dinâmica às crianças — o conceito de sexualidade infantil — e ao generalizi-la a uma força motivadonal difundida. Ele, portanto, ressaltou a importância das primeiras experiências da infância para a personalidade adulta. Essa suposição foi quase totalmente aceita nos círculos científicos, assim como pela cultura |>opular. Poucas pessoas, hoje, duvidam de que o tratamento ne gligente ou ofensivo a uma criança pequena — cm particular o abuso sexual — pode gerar influências devastadoras ao longo de toda a sua vida. Freud, além disso, afirmou que a es sência da personalidade era formada por volta dos 5 anos, idéia também amplamente acei ta. A importância dos primeiros anos na vida futura é pouco discutida, embora a aborda gem de Freud sobre o desenvolvimento tenha sido estendida para a vida toda por outros estudiosos.
a de que o problema de Lorena consistia na inca
homem sem valor e inferior. Além disso, esse gol
pacidade de controlar o próprio id. o qual estava
pe de vingança indiretamente lhe permitiu obter
procurando liberar a sua tensão libidiual.
um pênis só seu.
Em poucas palavras, Lorena estava sofrendo de inveja do pênis, sentimento comum à maioria
Lorena foi julgada e absolvida porque suas pulsõcs foram consideradas irresistíveis. O júri
das garotas, mas poucas agem diretamente. Sc
chegou ã conclusão de que ela não poderia ter to
Lorena tivesse podido ter seu bebe, isso poderia
mado precauções para impedir que ela mesma
ter sido evitado. Dar à luz é uma das formas por
praticasse esse ato. Portanto, de certa forma, a so
meio da qual o ego tenta satisfazer o desejo da
ciedade moderna aceita a idéia de conferir dema
mulher quanto a sentimentos de força e auto-esti-
siado pwfer a motivações inconscientes. Freud te
ma. que os homens têm em virtude da anatomia
ria dito que o ego e o superego de Lorena deixa
masculina. Em vez disso, ela foi compelida pelo
ram de controlar suas pulsões internas, e o id
marido a abortar. Talvez, por isso, ainda tenha
venceu a batalha pelo que ele mais desejava. Na
procurado recapturar o pênis que lhe havia sido
verdade, a teoria freudiana foi objeto de discus
negado no nascimento. Esses sentimentos de de
sões acaloradas sobre a teoria do ponto de vista
sejo ajudam a explicar por que ela preservou cui-
legal. Aos olhos da lei, se às vezes somos controla
dadosamente o órgão do marido em um saco fe
dos pelo id. como podemos ser considerados res ponsáveis por nossas ações?
chado com gelo — o pênis era valioso para ela. O que é muito incomum nesse caso é Lorena ter sido de fato totalmente influenciada pela preo cupação com o pênis do marido. De acordo com a teoria freudiana, esses conflitos são inconscientes e. portanto, em geral, se apresentam de outras formas. Lorena afirmou que ela "queria apenas que ele desaparecesse*. Mas é interessante que a m a neira como ela o tirou da sua vida foi pela remo ção do pênis, tomando-o, na visão freudiana, um
0 cato Bobbitt i um bom exemplo para abrir uma discussão sobre os pomos positivos e asfragilidades das teorias de Freud. Por um lado. é quase impossível, al gum dia. revelar, de maneira francamente científtea, as verdadeiras motivações de Lorena. Por outro, a tre menda fascinação por esse caso no mundo inteiro indi ca que algo muito importante do comportamento hu mano — algum segredo profundamente sombrio — foi tocado, da mesma maneira que o doutor de Viena teria previsto.
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Teorias da personalidade
Pelo tato dc as pessoas cm geral não terem consciência de suas pulsòcs c conflitos in ternos, Freud foi levado a investigar e a desenvolver uma outra contribuição influente — o conceito de inconsciente. A veracidade dos lapsos freudianos e a possibilidade de analisar os sonhos são amplamente aceitas. Isso, por sua vez, abriu caminho para a investigação de diferentes estruturas da mente. Freud mostrou, também, que a doença mental desenvolvia-se em um cotttinuum com a doença lísica e podia ser abordada cientificamente. Qual quer pessoa que procura orientação psicológica deve algo a Freud. Pesquisas modernas so bre o cérebro e a psicologia cognitiva confirmam várias das observações de Freud, mas negam as estruturas postuladas por ele, baseadas em conhecimentos rudimentares sobre o cérebro. Na medida em que a psicanálise considera o comportamento uma função dos confli tos internos, a abordagem passa a ter uma visão pessimista e determinista da personalida de. Além disso, ela segue uma orientação que busca compreender a patologia. (Veja o qua dro Personalidades Famosas.) Para contrapor o que foi ressaltado, vários teóricos originalmente formados em psicanálise passaram a adotar abordagens existenciais c humanísticas; elas são explicadas no Capítulo 9. A confiança dc Freud em um modelo h i dráulico da energia psíquica foi também exagerada. Pesquisadores modernos dão maior atenção às abordagens cognitiva c da estrutura do cérebro. Geralmente, é difícil avaliar as abordagens psicanalíticas da personalidade como teo rias científicas. Na maioria das vezes elas não são refutadas porque sempre é proposto um outro mecanismo oculto, apto a explicar qualquer tipo de observação. Estudos controlados são raras vezes empregados. Isso é lamentável porque a falta de estudos controlados faz com que muitos pesquisadores modernos ignorem os valiosos insights fornecidos por Freud. Ao longo deste livro, tentamos apontar o valor e a fragilidade dc cada uma das abordagens da personalidade. A teoria psicanalítica pode ter imperfeições, mas dificilmen te será inútil. Alguns psicanalistas modernos reverenciam Freud quase como o autor de uma bíblia; a psicanálise tem alguns aspectos efêmeros e não-científicos, e muitos 'adeptos'. Seria jus to culpar Freud pelas idiossincrasias de seus seguidores? Quando ele começou a se prepa rar para estudar a personalidade e o inconsciente, considerava seu trabalho como avalia ção temporária dc sobre como o cérebro funcionava. Contudo, cm alguns casos, a teoria psicanalítica foi interpretada como teoria da estrutura física do cérebro, o que produziu re sultados desastrosos. A psicocirurgia — cirurgia cerebral destinada a tratar problemas dc personalidade — tem uma história longa e repugnante. Na década de 40, utilizava-se a técnica da lobotomia pré-frontal. Os cirurgiões perfuravam o crânio, inseriam uma lâmina e cortavam os lobos cerebrais até que o paciente (no qual se aplicava apenas anestesia lo cal) parecesse totalmente desorientado. O propósito dessa cirurgia era. de acordo com a teoria psicanalítica, cortar as conexões nervosas entre os centros superiores do cérebro c os 'centros' inferiores de instintos animais (como o tálamo). Se o paciente sobrevivesse à o|>eraçào e não ficasse cm estado vegetativo, na maioria das vezes, ele podia dc fato agir menos ofensiva e agressivamente do que antes da cirurgia. Sem dúvida há outras explica ções para os efeitos da cirurgia além daqueles que consistem em literalmente cortar as pulsòcs inconscientes. Freud foi treinado como neurologista e dentista biólogo. Poderíamos oonjccturar que. se ainda estivesse vivo, seria um neurodcntisia. Assim, |>or vários motivos, é injusto rejeitar uma série de aspectos do trabalho de Freud porque algumas de suas suposições provaram-se incorretas. Entretanto, ele gostava de ser o centro das atenções e não aceitava críticas indul-
Capitulo 5
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A perspectiva psUanalitcM da personalidade
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Embora nas pesquisas modernas sobre a personalidade pouca atenção seja dirigida ao papel das forças psicodinàmicas e pskossexuais na natureza humana, exemplos do poder dessasforças complexas surgem regularmente nos noticiários. Veja o caso de John C. Schmitz. legislador estadual uhraconservador. da Califórnia. Schmitz era famoso por defender impetuosamente valores familiares e por se opor ardentemente à educação sexual nas escolas. Contudo, sua carreira chegou ao fim em um escândalo, quando foi descoberto que ele linha uma amante e que ela estava grávida. Mais interessante, ainda, era o Senador Schmitz ser pai de Mary Kay LeTourneau. Em 1997. LeTourneau. uma professora casada, de 35 anos. foi condenada por ter-se envolvido sexualmente (e ter tido um filho) com um garoto de l i anos na escola em que lecionava. Tempos depois ela ficou grávida novamente de um garoto adolescente e voltou para a prisão para cumprir longa pena.
gememenie. Sua postura, como fundador e mestre inquestionável da abordagem psicanalíti* ca. estimulou grande parte da sinuosidade nào-cicnlífica lançada cm seu nome. Ele pressupôs diferenças imperiosas, fundamentadas psicanaliticamente entre ho mens e mulheres, assunto que retomaremos ao longo de todo este livro. Pelo fato de as meninas nào experimentarem o complexo de Édipo, Freud sustentou que elas não desen volvem caráter moral forte; essa idéia radical foi, sem dúvida, lotalmcnie descreditada. Ao contrário, as mulheres, cm sua maioria, desenvolvem forte sentimento de culpa, geral mente zelam pelos fracos, sào empáticas e preocupam-se muito com a justiça tBlock, 1984: Eagly, 1987; Friedan, 1963; Hall, 1990; Tangney et al.. 1996; Tangney & Fischcr. 1995). Por fim, a principal crítica à psicanálise residia em Freud ser relativamente desinteres sado das relações interpessoais ou da identidade e adaptação do indivíduo ao longo da vida. Essas questões foram retomadas tempos depois pelos neo-analistas e os psicanalistas do ego: elas são abordadas no Capítulo 4.
Novos avanços da psicologia experim ental__________ Durante muitos anos, a psicologia experimental prevalecente ignorou ou até mesmo ridicularizou as idéias centrais às abordagens freudianas. No período em que o dominou todo o reino da psicologia experimental (década de 20 à década
behaviorism o
de 50), qualquer exame sobre o papel das influências inconscientes era sumariamente excluído. As abordagens behavioristas restringiam de forma explícita os dados admissíveis àquelas ações que podiam ser observadas externamente c restringiam as teo rias permissíveis àquelas que relacionavam aspectos observáveis da ambiência de um ser vivo, com aspectos do comportamento desse ser vivo. Essa abordagem não abriu nenhum espaço legítimo para o exame dos processos inconscientes ou da motivação e emoção in conscientes. nem para a investigação do conteúdo dos sonhos e das memórias das pessoas (os quais, por sua natureza, impossibilitam uma observação direta). Na verdade, os behavioristas até mesmo excluíram o exame de idéias, memórias e processos dos quais os sujeitos de determinada experiência tinham consciência de que sabiam, considerando as-
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Teorias da personalidade
pcctos conscientes e inconscientes 'da m ente' como dados igualtncnte inadequados para estudo científico. Observe que o movimento psicanalítico, lora da psicologia pre va lente, sempre leve periódicos especializados e sociedades científicas particulares. Contudo, esse trabalho, na maioria das vezes, era executado à margem de seu próprio curso, divorciado de vários de partamentos acadêmicos da psicologia. Por exemplo, o trabalho psicanalítico raras vezes aparece nos principais periódicos de psicologia, como o Journal of Pcrsonaliiy and Social Psychology. Nas últimas décadas, entretanto, na medida cm que o bchaviorismo cedeu posição para abordagens alternativas ao estudo do comportamento humano, muitas das idéias de Prend voltaram à tona na psicologia mais influente (não psicanalítica). embora um tanto transformadas. Por exemplo, as idéias de Freud eram tremendamente influentes na mode lagem de abordagens humanísticas da personalidade; esses assuntos são analisados ponto por ponto no Capítulo 9. ( ) impacto de Freud também voltou à tona na psicologia cognitiva moderna (Cohen & Schooler, 1997). Tendo em vista que a cognição humana transformou-se em campo de estudos seguro e rigoroso, os pesquisadores nesse domínio acabaram se deparando com a própria necessi dade de examinar os processos inconscientes. A despeito do lato de as metodologias, abor dagens e metas da psicologia cognitiva serem vastamente diferentes das dos psicanalistas, os cognitivistas acabaram examinando muitos dos mesmos aspectos do comportamento humano que chamaram a atenção de Freud, lisse interesse pelos processos inconscientes não era incomum na psicologia experimental; ao contrário, era a redescoberta de um do mínio que permaneceu intransponível durante anos, mas que chamava a atenção antes de ser banido pelo behaviorismo. Logo nos primeiros anos do desenvolvimento da psicologia, mesmo os experimentalistas mais rigorosos viram a necessidade de postular processos in ternos que ocorriam fora do escopo da consciência. Por exemplo. Hermann von Helmholtz, pioneiro do estudo da percepção humana do século XIX, sustentou que a per cepção visual exigia que se fizessem inferências inconscientes (1866/1925). Vejamos, a seguir, o exemplo de sensação inconsciente. As pessoas, em geral, não caem da cama toda noite. Contudo, se você estivesse em um estado de sono profundo, não saberia dizer se alguém entrou de mansinho cm seu quarto, olhou para você c saiu. Nós nos mantemos na cama. mas não temos consciência dos acontecimentos ao redor. Além disso, de manhã, não nos lembramos dos momentos em que quase caímos da cama por que conseguimos segurar a tempo. Esse simples exemplo sugere que alguns sistemas sensoriais não param de funcionar, mesmo quando não temos consciência deles. Entretanto, uma pessoa hospitalizada, que esteja em coma ou sedada, pode de fato cair da cama; as camas dos hospitais têm proteção para evitar esse tipo de acidente. Portanto, provavel mente há diferentes formas de estar consciente ou 'inconsciente". Pesquisas modernas le varam avante muitas das idéias de Freud sobre processos inconscientes, embora nem sem pre da forma que ele esperava.
Em oção e m otivação inconscientes Há alguma evidência de que parte da mente, repleta de forças emocionais, está fora do alcance da consciência? (> conceito de motivação inconsciente é sem dúvida apoiado por pesquisas sobre as emoções, o que indica que estados emocionais e motivacionais como a raiva podem existir independentemente do pensamento. Algumas dessas pesqui-
Capitulo 5 m A pcrspeetivapsieana/itiea dapersonalidade
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sas valcm-sc d r estudos sobre o cérebro que revelam sistemas neurológicos distintos (Panksepp, 1991). Em outras palavras, ao longo da evolução, desenvolveram-se circuitos nervosos no cérebro humano relativamente independentes de funções corticais superiores envolvendo o pensamento. Esses circuitos podem desencadear emoções mesmo se não fo rem precipitados por um nível superior (cortical) de pensamento. Uma outra pesquisa sobre determinadas emoções revela que elas são inatas, univer sais. Estão associadas neuronalmente a expressões faciais e podem ser induzidas de modo independente do pensamento (cognição). Todas essas pesquisas são compatíveis com a opinião de Freud dc que podemos experimentar um despertar interno de sentimentos e emoções que não compreendemos ou não avaliamos cognitivamente. Freud pode nào ter conhecido as estruturas biológicas precisas que abrangem o cérebro, mas muitas dc suas conjecturas estavam na direção certa (Izard, 1992).
Hipermnésia Reunidos com uma amiga de infância, descrevemos uma experiência que curtimos juntos há muito tempo — preparar sundaes. De repente, a memória de nossa amiga come ça a fluir e a transbordar, à medida que se recorda de várias experiências associadas das quais não se lembrava há trinta anos. A hiperm nésia (literalmente, "memória exagera da") está relacionada com uma situação em que uma tentativa posterior de recordação de algo desencadeia informações que não haviam sido relatadas em tentativa anterior. A hipermnésia, fenômeno fundamental no conjunto de obras psicanalíticas, também tem sua contrapartc nas obras dc psicologia dc pesquisa cognitiva dos dias de hoje (por exem plo, Madigan & O'Hara. 1992). Em geral, a memória humana tende a enfraquecer ao longo do tempo; â medida que o acontecimento original fica mais distante, menos esse acontecimento é lembrado. Portanto, a característica identificada nos experimentos de memória é as pessoas lem brarem-se mais de um evento quando são indagadas logo após a sua ocorrência; a m e mória delas dim inui (a princípio rapidamente e depois lentamente), conforme o tempo passa. Um explicação tradicional da psicologia dc estímulo-resposta ("teoria dc aprendi zagem") é a memória ou associação extinguir-se ou desaparecer com o tempo; ela se des gasta. Entretanto, a história sobre a faculdade humana de recordação não se resume a isso. Muitos outros fatores, além da simples passagem do tempo, atualmente se mostra ram determinantes fundamentais do que pode ser relatado. Na psicanálise, a associação livre é usada como principal método para revelar memó rias que a princípio não são alcançáveis pela consciência dos pacientes. Após anos de análi se, as pessoas, com frequência, relatam informações previamente "esquecidas" (não relata das): eventos traumáticos da infância ou desejos maldosos e pensamentos aterrorizadores do passado. Essas memórias recuperadas são consideradas dentro da psicanálise como fru to do esforço conjunto do paciente e do terapeuta para superar os mecanismos de defesa que inicialmente conseguiram manter as memórias reprimidas. Há duas perguntas funda mentais que um cético (ou um psicólogo cognitivo dos dias de hoje) levantaria. Primeiramente, essas memórias são verídicas, isto é. esses acontecimentos, desejos e pensamentos passados que atualmente o paciente relata de fato ocorreram? Em segundo lugar, essas memórias vieram à consciência exatamente agora, sendo antes inacessíveis, ou o analista e o ambiente de análise ajudaram a eliciar o relato dessas memórias? (Veja o quadro Autoconhedmento, na página 8 J.)
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Teorias da personalidade L in h a d o te m p o da histó ria das ab ord age ns psicanalíticas da p e rs o n a lid a d e ______________________________________________
Os principais avanços no âmbito da abordagem psicanalítica podem ser vistos aqui. de acordo com a relação histórica que têm entre si e segundo seu contexto sociocultural mais amplo.
Contexto social e científicc
Avanços nos aspectos psicanalíticos da personalidade Poucas experiências para imcstigai o inconsciente, com excedo dc algum a práticas tlc exorcismo
a n te s d e 1800
Os seres humanos são vistos prinripalmcntc em termos religiosos c filosóficos.
Charcot c Janct estudam a histena e a hipnose; são consuliados por Frciid.
década d e 1880
A atenção se volta cada voz mais para a evolução c o funcionamento do cérebro; comparações entre os seres humanos c os outros animais.
Freud dese nvolve conceitos sobro inhns.
18901910
Período de mudanças industriais c tecnológicas; era vitoriana de famílias patriarcais, respeitabilidade e submissão religiosa
Os neo-analistas começam a romper suas relações com Freud; há discussões
1910-1930
Tecnologia c industrialização crescentes; grandes exércitos espcdalmcnic treinados; Primeira Guerra Mundial, 1914-1918: surgimento «lo behavvorisvno na psicologia americana.
sobre impulsos e mecanismos dc dclesa e é proposto o instinto «k morte.
Freud escajia dos nazistas, na Áustria, c morre, na Inglaterra
década d e 50
Depressão económica, agitação social, propaganda política, crescimento da psiquiatria nos Estados Unidos.
As idéias psicanalíticas influenciam várias teorias sobre impulso, motivação. apego, conflito, amnésia, doença e muito mais
década d c 2 0 à d e 40
As idéias de Freud aparecem na arte, na literatura, nos filmes, na medicina, na comédia e em toda a cultura ocidental
As abordagens psicanalíticas clássicas lonodoxas) scparam-sc da psicologia da personalidade prcvalcnte.
década d c 50 à d e 60
A psicanálise toma-se um instrumento mais clinico e média», com menor interesse direto para os pesquisadores da personalidade.
A psicologia moderna experimental e cognitiva
década de 6 0 à d c 90
Grandes avanços nas ciências do cérebro; progresso nas avaliações e na psicologia do desenvolvimento.
d é ca d a d e 20 0 0
Técnica cientifica de formação dc imagem do cérebro; a complexidade das patologias sociais é reconhecida.
c a linguística oferecem novas explicações sobre os fenómenos freudianos. As idéias dc Freud são reinterproladas a luz do conhecimento moderno.
Na psicanálise, a difícil tarefa de comprovar memórias da infância normalmente náo é sequer experimentada. Porém, sob a perspectiva de compreender a memória humana, é questão de importância crucial. No dia-a-dia. as pessoas, na maioria das vezes, relatam memórias vívidas que acabam se revelando imprecisas à luz de informações factuais obje tivas. Por exemplo, a testemunha ocular de um crime tem certeza de que reconheceu o suspeito, que. tempos depois, veio a se saber, estava fora do país; um estudante relata vivi damente que estava tendo aula de espanhol no momento em que ouviu a explosão do
Capitulo 5
b
A pcrsputiva psuanalitica da personalidade
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ônibus espacial Challenger, mas seu histórico escolar mostra que ele não teve aula de espa nhol nesse ano; e assim por diante (Harsch & Neisser, 1989). Várias são as fontes de imprecisão e distorção na memória e todas elas podem influen ciar de maneira independente, tanto o que é a princípio codificado de experiência quanto o que posteriormente é recuperado da memória a respeito dessa experiência. A sensação subjetiva de certeza nem sempre é correlacionada com a precisão verdadeira do que é lem brado. A técnica psicanalítica é apresentada como método de revelação das memórias re primidas que estão interferindo na boa saúde psicológica, mas, se as informações que sur gem com a terapia não forem precisas (no sentido dc serem pelo menos o que a pessoa original mente experimentou, quando não o que objetivamente ocorreu), toda essa linha de argumentação vai por água abaixo. A investigação científica séria sobre essa questão está apenas começando (Conway. 1996: Pezdek & Banks. 1996). Esse tema ainda é inade quadamente compreendido. A segunda dúvida decisiva — se as informações foram recém-lembradas ou recém-reiatadas — é uma das questões que têm sido investigadas no experimento de memória. Uma descoberta de peso é a dc que a quantidade de informações recuperadas varia de acordo com os diferentes métodos usados para investigar a memória de uma pessoa sobre um acontecimento (Baddeley. 1990). Por exemplo, suponhamos que dois grupos dc parti cipantes estudem uma relação de palavras. Os participantes de um grupo recebem, em se guida, folhas de papel em branco e são solicitados a escrever o máximo possível de palavras dessa relação que se lembrarem (procedimento conhecido como recordação liv re ). Os participantes do outro grupo recebem pares de palavras e têm de responder qual palavra dc cada par aparece na relação (procedimento conhecido como reconhecim ento p o r esco lha forçada). Não surpreendentemente, as respostas dos participantes são mais precisas nas situações em que são forçados a escolher; é mais fácil selecionar correiamente a pala vra estudada em um par apresentado do que descrevê-la sem nenhuma sugestão. Pode isso significar que a intensidade ou precisão das memórias subjacentes diferem entre os g ru pos? Na medida cm que os grupos não foram diferenciados até o momento do teste, so mente o método de avaliação pode ser a causa da aparente diferença dc memória. A dispo nibilidade ou acessibilidade de uma memória pode ser melhorada |x>r meio de sugestões, dicas c perguntas apropriadas (Tulving. 1968). No cenário psicanalítico, interrogatórios fei tos diretamente pelo terapeuta ou conversas sobre eventos relacionados com a memória, antes inacessível, podem permitir ou induzir a recuperação dessa memória. Nesse sentido, a psicologia cognitiva validou esse aspecto dc recordação do método psicanalítico. Uma outra descoberta no campo da memória humana está particularmente relacio nada com o ceticismo acerca do poder da técnica psicanalítica de que a probabilidade de recuperação de uma memória varia não apenas de acordo com a disponibilidade ou inten sidade da própria memória, mas também segundo as recompensas c punições de um relato preciso e impreciso. Essas influências foram ostensivamente estudadas sob o conceito de nominado teoria de detecção de sinal (Swets, 1996; Commons, Ncvin & Davison. 1991). Vejamos uma vez mais um exemplo dc estudo controlado sobre o processo de aprendizagem em uma relação de palavras. Podemos investigar a memória apresentando uma palavra de cada ve/ a um participante; para cada palavra, ele deve responder sim, se a palavra estiver na lista, e não. se não estiver. As palavras que de fato estavam na lista po dem ser acertos (o participante responde sim ao detectar corretamente uma palavra estu dada) ou erros (o participante responde incorretamente não para uma palavra estudada). As palavras que não estavam na relação podem ser rejeições corretas
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Teorias da personalidade
ponde não para uma palavra não estudada) ou alarmes íalsos (o participante responde in corretamente sim para uma palavra não estudada). O nível aparente de memória de um participante nessas tarefas vem a ser sensível à estrutura de recompensa e punição da tare fa. Se eles receberem uma grande recompensa pelos acertos, com pequenas punições para erros e alarmes lalsos, e pequenas recompensas por rejeições corretas, responderão sim para mais itens. Se a punição por alarmes falsos for alta tem relação ãs consequências dos outros três resultados possíveis), eles responderão não para mais itens. Quando houver al guma dúvida sobre a lembrança de algum item, os participantes 'adivinharão' de acordo com a matriz de compensação: quanto mais alarmes falsos, mais alto o nível de acertos, c quanto mais rejeições corretas, maior a quantidade de erros. Quais são as implicações para a psicanálise? É possível conjccturar que os pacientes em psicoterapia que estão tentando recuperar memórias significativas encontram-se nessa situação de detecção de sinal. Para cada pensamento que lhes vem ã mente, eles têm de decidir (não necessariamente de maneira consciente) se devem ou não relatá-lo. Na psica nálise. pode dizer-se que a recompensa por acertos é grande (tanto o paciente quanto o terapeuta podem constatar um 'progresso'), com poucas punições para alarmes falsos (as memórias falsas podem ser um 'm aterial' tão bom para a terapia quanto as memórias ver dadeiras). grande punição para erros (as memórias verdadeiras não são investigadas) c pouca recompensa para rejeições corretas. Nessas circunstâncias, os pacientes tendem a ser menos críticos para fa/er a distinção entre memória e confabulação. Os erros na me mória relatada, que resultam nessa entrevista acrítica. são uma fragilidade significativa da psicanálise aplicada. A hipnose pode ajudar? Os interrogadores da polícia deveriam usar hipnotizadores para ajudar a cliciar memórias há muito tempo reprimidas no caso de molcstamcnto cri minoso? Quando começou a desenvolver a psicanálise, Freud e seu colega Josef Breuer usaram a hipnose — sugestões intensas do terapeuta — para tentar acessar memórias en cobertas em seus pacientes. Na moderna pesquisa da psicologia experimental, isso seria chamado de hipermnésia hipnótica (Kihlstrom, 1998). Experimentos feitos em laboratório demonstram que a hipermnésia hipnótica às vezes ocorre — a hipnose algumas vezes é eficaz — , mas não é mais eficaz do que outros efeitos de intensificação da memória, como o uso de sugestões relevantes para eliciá-la. Na realidade, a hipnose parece um pouco m e nos eficaz (Kihlstrom & Bamhardt. 199)); em outras palavras, a pesquisa experimental apóia a supremacia da associação livre e de outros processos relacionados de investigação c sugestão além da hipnose. Freud agiu corretamente ao abandonar a hipnose logo no início do desenvolvimento da psicanálise.
Amnésia infantil De acordo com Freud, grande parle da motivação humana provem de desejos no iní cio da infância que são inaceitáveis na sociedade adulta, como o desejo de um garoto de ter relações íntimas com a própria mãe. Vimos que as neuroses do adulto são consideradas consequência de conflitos internos reprimidos. Para apoiar essa idéia. Freud observou compreensivamente que os adultos, em sua maioria, não conseguem se lembrar muito de seus primeiros anos de vida, einbora consigam se lembrar do período em que frequenta ram a escola primária — fenômeno esse denominado amnésia in fa n til. Essa observação de que os adultos e outras crianças não se lembram muito do que lhes ocorreu antes dos ) ou 4 anos foi confirmada em inúmeros estudos (Pillemer it White. 1989). Contudo, o índi-
Capitulo J i A persputiva psuanalítiea da personalidade
101
òo clássico ao contemporâneo
Os insights psicanalíticos ainda são úteis? Sigmund Frcud e seus colegas desenvolveram as principais idéias da abordagem psicanalítica um século atrás. As pesquisas modernas sobre a perso nalidade tornaram essas idéias tão extintas quanto os dinossauros e propensas a serem despejadas no monte de intelectos fossilizados? Ou essas idéias, como as de Charles Danvin. ainda vibram na ciên cia moderna? A resposta se divide. Em um artigo denominado The Sdentifie Ugacyef Sigmund Fremi: Toward a PsyíhodynamicaOy Informed Psfdiotogkal Sdettor. Drcsv Western (1988) afirma que os insights psicanalítici» estão vivos c passando bem. Embora muitos dos postulados específicos de Frcud tenham sido ultrapassados por descobertas na biolo gia e neurodênda moderna, muitos dos imights e das discussões de Freud permanecem aluais. Rumores sobre a extinção de suas idéias são prematuros. Para sermos justos, precisamos levar em conta a evolução dos insights [»sicanalítkos e não nos valermos apenas das exalas formulações primeiramente apresentadas por Freud. O principal insight de Freud foi ser grande [tar te da vida mental — incluindo pensamentos, sen timentos e motivos — inconsciente. Em outras pa lavras. as pessoas, às vezes, fazem coisas por moti vos que elas mesmas não compreendem. Wcstcn salienta que o inconsciente psicológico atualmen te é um Importante tópico na psicologia da perso nalidade. psicologia cognitiva e neurodênda cognitiva, na medida em que os dentistas estão tentando a todo custo compreender como algu mas [tartes do cérebro algumas vezes processam c reagem a sensações c informações sem envol vimento direto dos processos superiores de autoconsdênda do ncocórtcx ou isocórtcx. Como ob servamos. há uma percepção, uma memória e uma motivação implícitas. Algumas vezes 've mos* coisas sem saber conscientemente o que estamos vendo; em outras, aprendemos e nos lembramos de coisas sem saber conscientemente como ou até mesmo chegamos a aprendê-las; e em alguns momentos agimos por razões escondi das bem no fundo de nosso complexo sistema motivadonal. Por exemplo, algumas vezes preju
dicamos ou aumentamos nosso desempenho por motivos dos quais não temos consciência. Em segundo lugar, grande pane das pesquisas modernas documenta que as pessoas podem ter sentimentos inconscientes e agir de acordo com eles, como quando vão sulihnente hostis ou de fensivas com membros de grupos étnicos minori tários ou com estranhos (*de fora'). Decorrem dis so. geralmente, relações interpessoais inamistosas entre grupos. Os clínicos psicanalíticos há muito desejam prestar atenção aos sinais das emoções secretas, observando o comportamento não-ver bal (como expressões faciais, mudança de postura) e comportamento verbal (evasivas exaltadas, falta de encadeamento na narrativa). Como propôs Freud, esses conflitos internos normalmente são manifestação dos mecanismos de defesa, um constructo psicodinámico básico. Por exemplo, es tudos experimentais que procuram conscientizar mais as |>essoas sobre sua mortalidade (solicitando que cias respondam por escrito a um questionário sobre mortalidade ou dispondo sinais de um fune ral nos arredores) frequentemente as levam a res ponder defensivamente, embora de forma alguma elas tenham consciência dos sentimentos que es tão influenciando essas respostas ou dos efeitos sobre seu comportamento. Admite-se que isso seja ansiedade pela possibilidade de morte (Strachan. Pyszczynski. Greenberg & Solomon, 2001). Ou então as pessoas podem alentar a própria auto-estima depreciando pessoas pertencentes a outros grupos (conquanto nâo saibam por que estão fa zendo isso). Como pudemos observar neste capí tulo, um corpo considerável de evidências com provou a existência de vínculos entre as primeiras experiências na infância, como maus-tratos, negli gência e rupturas familiares, e problemas interpes soais e distúrbios de personalidade posteriores dos quais não se tem consciência. Embora algumas idéias de Freud. como seus pontos de vista sobre a inferioridade da mulher, sem dúvida tenham sido influenciados pelo ambiente social de sua época, muitos dos seus imights estão refletidos nas mais modernas pesquisas psicológicas.
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St ra d ia n , li., Pyszc/ynski. T ., Greenberg. J. b Solom on. S. 'C o p in g w ith the Inevitability ol
ce de aprendizagem de crianças pequenas durante esse período é sem dúvida muito alto e elas parecem ler boas memórias dessa época. Uma criança de 3 anos pode ter um desem penho notável ao descrever sua última visita ao zoológico. Serão mais tarde essas memó rias reprimidas? Assim como em grande parte do trabalho de Freud. esse fenômeno é aceito, mas a explicação sofreu mudanças. Um problema identificado nas idéias de Freud é a sua teoria explicar somente o motivo por que as memórias remotas ameaçadoras são esquecidas, mas praticamente todas as memórias remotas são esquecidas, não apenas as traumáticas. Por tanto, há pouco tempo o interesse voltou-se mais para a estrutura cognitiva da memória. Talvez o cérebro das crianças pequenas seja muito imaturo e desorganizado para memórias de longo prazo. Porém, as pesquisas indicam que as crianças pequenas têm pelo menos al gumas memórias bem organizadas semelhantes às dos adultos (Nelson, 1993). Um traba lho recente (Newcombe, Drummey, Fox, Lie & Ottinger-Alberts, 2000) propõe que méto dos alternativos de investigação sobre memórias remotas são mais promissores do que pedir às pessoas que se lembrem de algo e relatem o que lembraram. Nesse estudo, o resul tado da avaliação da memória de colegas de classe na pré-escola, testada por um método direto c explícito (selecione seus colegas de classe nessas fotos), foi muito insignificante. Mas outras medidas que não exigem que o colega informe quem era aquele mostrado na foto foram, até certo ponto, familiares. As memórias existem, mas nós não temos acesso fácil a elas, para relatá-las explicitamente. é possível que as crianças pequenas não tenham desenvolvido ainda a capacidade de pensar sobre sua própria história ou compartilhar suas memórias com outras pessoas de maneira convencional. Por exemplo, as crianças mais velhas podem falar sobre como tive ram sorte em suas férias prediletas e, portanto, exercitar (relatar detalhadamente) a me mória e incorporá-la em uma idéia sobre a maneira como elas pensam sobre si mesmas (Nelson. 1993). Depois, o evento será mais fácil de ser lembrado. No entanto, essa explica ção sobre a amnésia infantil não foi comprovada nem mesmo muito investigada. Observe também que essa explicação está associada com a idéia de formação de identidade, exatamente o que Freud sustentou. Considerando tudo isso, os motivos por que esquecemos nossos primeiros e mais importantes anos de vida ainda são em grande medida um misté rio. Contudo, aqui também, Freud procedeu a um exame significativo.
Percepção su b lim in a r Você deseja melhorar sua auto-esiima. |>erder peso e ficar sexy ou então ter melhor desempenho esportivo sem gastar tempo e despender nenhum esforço? Deseja aprender tudo isso enquanto dorme? Milhões de dólares são gastos pelos consumidores todos os
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«mos n«is famosas fitas do áudio subliminares que prometem influenciar miraculosamente suas motivações inconscientes (enquanto você dorme ou assisto à tele visão). Essas técnicas funcionam? Existe a possibilidade de elas terem alguma validade científica? Essas técnicas de percepção subliminar podem parecer plausíveis e convencer pessoas que conhecem muito pouco a teoria freudiana. As pessoas, em grande parte, acreditam que as coisas continuam ocorrendo na mente delas sem que haja o conhecimento cons ciente, de forma que parece sensato tentar mudar essas forças inconscientes. Essas fitas subliminares seriam a solução para isso? Gustav Fechner. criador da psicofísica, acreditava que o sistema perceptivo humano era constituído de tal maneira que estímulos muito sutis podiam, na verdade, ser percebi dos e processados sem o conhecimento consciente de todos os estímulos até mesmo já ocorridos — isto é, essa percepção su b lim in a r podia e de fato ocorria. Pesquisas subse quentes confirmam que às vezes não temos conhecimento consciente dos estímulos que a despeito disso estão sendo processados por algumas partes do nosso cérebro (Reder & Gordon, 1997). Porém, esse fenômeno é muito diferente do que os vendedores ambulan tes de fitas de aprendizagem subliminar gostariam que acreditássemos. Há duas imperfeições sérias na técnica de aprendizagem subliminar. A primeira e mais problemática é muitas das fitas conterem mensagens que simplesmente não podem ser percebidas pelos humanos. Essas mensagens são muito sussurrantes ou muito rápi das ou então imperceptíveis. Alguns experimentos indicaram que não é possível distin guir essas mensagens de ruídos de íundo. Na realidade, algumas dessas fitas dispendiosas contêm apenas ruídos de fundo! Se as mensagens não conseguirem alcançar o cérebro, certamente não conseguirão exercer nenhuma influência sobre nós (M oore fr Merikle, 1991). A segunda falha da aprendizagem subliminar é a força ou o poder dessa influência. Suponhamos que algumas dessas mensagens sejam de fato ouvidas. Por exemplo, digamos que uma fita de áudio fosse audível c ao longo do dia reproduzisse brandamente o lembre te: "Você vai perseverar em seu regime. Você vai perseverar em seu regime*. A maioria das pessoas que fazem dieta para perder peso reahncntc está tentando, antes de mais nada. perseverar em seu intento, mas acha isso muito difícil de cumprir. Por que uma fita de áudio entediante podei ia conseguir isso, quando várias outras fontes de motivação mais poderosas (como a opinião de um namorado ou namorada) não conseguem? Em resumo, a fita de áudio não funcionará. Além disso, as pessoas às vezes ficam preocupadas com a possibilidade de os anun ciantes as estarem influenciando por meio de mensagens subconscientes incorporadas nos filmes, nos programas de T V ou nos discos. Um maquiavélico produtor de cinema poderia convencê-lo a votar no candidato dele a presidente inserindo cm seu filme um fotograma com o candidato sorrindo? Enfatizamos uma vez mais que. se não for percep tível, não será eficaz. E. se for perceptível, sua influencia provavelmente será mínima. Ironicamente, as pessoas se preocupam menos com a interdição de anúncios explícitos e intencionais que de fato as estão influenciando! Elas, além disso, preocupam-se menos com filmes ou documentários de T V dramatizados {docudramas) que distorcem a história intencionalmente a fim de manipular o público. Na verdade, essas são as ameaças mais perigosas. Observe que as famosas fitas de áudio subliminares vão diferentes de outros tipos de influência sutil. Por exemplo, um anúncio do jeans Calvin Klein enquanto líamos o jornal
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da manhã; a TV. na sala ao lado, transmitindo um comercial da Calvin, c um outdoor com um anúncio da Calvin Klein a caminho da escola. Talvez, conscientemente, não prestemos atenção a esses anúncios. Se alguém nos perguntasse se vimos determinado anúncio da Calvin Klein, provavelmente diríamos: 'N ão que cu me lembre". Mas esses anúncios po dem ter de (ato exercido uma influência cumulativa em nós. Observe, contudo, que esse tipo de influência sutil está longe de ser subliminar. ( ) anúncio, o comercial, o outdoor sem dúvida existem para possivelmente chamar nossa atenção. A percepção subliminar deve ser diferenciada dos fenômenos que chamam a aten ção. Já está mais do que comprovado que nossa consciência é influenciada pelas coisas a que dirigimos a atenção tanto interna quanto externamente. Por exemplo, as pessoas que sofrem de distúrbios de ansiedade na maioria das vezes prestam demasiada atenção às sensações corpóreas (como dores ou espasmos), tentando identificar sinais de que es tão doentes. Daí, elas sentem uma dor ainda maior. Além disse», essas pessoas ansiosas podem ficar procurando obstinadamente ameaças no ambiente externo. Um estudo so bre esse tema empregou uma tarefa de percepção auditiva (dicótica) em que as pessoas usavam fones de ouvido e tinham de repetir (responder) as palavras ouvidas em um dos ouvidos (Mathews & MacLeod, 1986). No outro ouvido, que não estava em observação, os pesquisadores apresentavam palavras ameaçadoras como 'em ergência'. Descobriu-se que as pessoas com transtornos de ansiedade (que não eram pacientes supervisionados regularmente) tiveram problemas com a tarefa prescrita no momento em que as pala vras ameaçadoras foram apresentadas, embora não houvessem relatado que as tivessem ouvido. Observe que, cm casos como esse, os estímulos ameaçadores estão fora do dom í nio da consciência porque a atenção da pessoa é desviada para outro lugar, mas os estí mulos ameaçadores não são inacessíveis à consciência. Ou seja, se os estímulos desvias sem a atenção para o outro ouvido, os participantes sem dúvida ouviriam as palavras ameaçadoras.
Memória O estudo direto sobre a memória humana oferece muitos bons exemplos de como as descrições cognitivas cruzam com as psicanalíticas. A abordagem da aprendizagem verbal — aprendizagem de listas de palavras — deu origem a milhares de experimentos já publi cados sobre como a memória posterior dos participantes em relação às palavras estudadas é influenciada pela maneira como as informações são apresentadas. Essa pesquisa concen trou-se principalmente na importância de variáveis como a velocidade com que a lista foi apresentada, o número de palavras na lista, a extensão das palavras, a relação entre as pa lavras na lista, quantas outras listas foram estudadas antes ou depois da lista cm questão, o tempo transcorrido entre a memorização da lista e o teste e a forma como a memória das palavras foi testada. Dois fenômenos observados repetidamente nessa pesquisa são pertinentes à interpre tação cognitiva das idéias de Freud. Em primeiro lugar, o que é lembrado sobre um acon tecimento não é idêntico ao próprio acontecimento, mas, ao contrário, c a representação personalizada, interpretada e internalizada desse acontecimento. Se duas pessoas forem expostas a um evento idêntico, não necessariamente terão memórias idênticas sobre esse evento. Fm vez disso, cada uma experimentará um acontecimento de perspectiva única c individual que depende de suas necessidades, metas, suposições e demais experiências, tanto no momento do evento quanto antes de sua ocorrência. Mesmo no caso de um
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acontecimento aparentemente trivial e sem ambiguidades como a apresentação de uma palavra comum e familiar, haverá variabilidade na experiência individual. Os itens dos quais os participantes se lembrarem corretamente e os erros que cometerem neles quando não forem lembrados de maneira correta serão diferentes para cada um dos participantes. Quanto mais complexas forem as informações originais, maior será a variabilidade do que for lembrado. Uma narrativa complexa requer lembranças mais variadas do que uma simples lista de palavras. Ou seja. a memória é a integração ou a fusão de informa ções sobre o evento real c as expectativas e convicções de uma pessoa (Bartlett, 1932; Owens, Bower Fr Black, 1979). Essas descobertas comprovam as ideias de Freud de que fatores externos distorcem a memória, mas nas pesquisas modernas a ênfase está voltada mais para as estruturas complexas da mente c menos para as delcsas contra pensamentos indesejáveis. Em segundo lugar, até mesmo a memória individualizada não é uma entidade única e cristalizada que deva ou não estar ao alcance da pessoa que assistiu ao acontecimento; ao contrário, ela é uma representação complexa, multifacetada e em constante mudança. O que é relatado sobre o acontecimento (mesmo que absolutamente nada seja relatado) va ria sobremaneira das circunstâncias sob as quais essa memória é investigada. Descobertas empíricas indicam reiteradamente que uma memória cuja "existência" é possível ser com provada por vários meios talvez não seja relatada por um panicipanie indagado em m o mentos diferentes ou por um método distinto. No jargão moderno, uma memória pode estar disponível, mas nem sempre ser acessada. Por exemplo, observamos que as sugestões ou dicas que podem ser recuperadas — algo associado com a memória — são extremamente úteis à recordação. Essas descobertas são pertinentes à visão freudiana porque exemplificam uma abor dagem metodologicamente rigorosa de aspectos da consciência e do inconsciente, essen ciais no trabalho de Freud. Na psicanálise, o terapeuta estimula várias vezes o paciente a recuperar memórias importantes da infância, a se recordar do contexto dos acontecimen tos (como a casa em que ocorreram), as pessoas envolvidas e os sentimentos experimenta dos. Todas essas estratégias estão consistentes com o que as pesquisas modernas demons tram que é útil lembrar (por exemplo, William Fr Hollan, 1982). A maioria das pessoas que se submete a terapias desse tipo relata que está conseguindo compreender melhor impor tantes influências em sua própria vida. influências essas que nunca havia levado em con ta. Tudo isso é compatível com a visão básica de Freud de que grande parte do que consti tui a personalidade encontra-se subjacente ao conhecimento consciente. Embora a literatura em psicologia cognitiva utilize terminologia um pouco diferente, muitas outras idéias de Freud sobre a existência e a importância do inconsciente espelhamse em abordagens cognitivas modernas. Por exemplo, determinados experimentos pude ram demonstrar a lembrança sem a consciência. Em geral, sempre pensamos na memória como m e m ó ria explícita — podemos lembrar ou reconhecer alguma coisa. Porém, há também a m e m ó ria im p lícita — podemos mudar a forma como pensamos e nos compor tamos em consequência de alguma experiência da qual não nos recordamos consciente mente (Schacter. 1992). As pessoas normais podem 'esquecer' (isto é, podem não conse guir demonstrar nenhuma evidência de memória explícita sobre) experiência anterior, como resolver um quebra-cabeça ou aprender alguma habilidade motora, mas. ao mesmo tempo, quando estão de lato realizando uma tarefa, mostram que já a praticaram antes. Em outras palavras, a pessoa em estudo não consegue se lembrar conscientemente de al gum acontecimento que o experimentador sabe que ocorreu pelo fato de ele ter acontecido
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no ambiento do experimento, mas o participante sem dúvida estava consciente disso no momento de sua ocorrência. Contudo, mais tarde, embora o participante não possa se lem brar conscientemente de que teve essa experiência, ele ainda assim executa a tarefa me lhor do que um principiante a quem a mesma tarefa foi proposta pela primeira vez. fcssa dissociação entre a memória explícita e a implícita demonstra que as experiências de uma lembrança não consciente podem continuar influenciando nosso comportamento. Hoje. o fenômeno da memória implícita é. em geral, interpretado segundo uma pers pectiva estritamente cognitiva (não-freudiana). Os cognitivistas tendem a considerar isso uma prova de que o código rcpresentacional. em que as habilidades são propensas a ser codificadas no cérebro, não é necessariamente compatível com o relato verbal. A repre sentação da própria habilidade pode ser apresentada na memória (de forma não alcançá vel pela consciência), mesmo se não houver a memória consciente do evento durante o qual essa habilidade foi adquirida. Na terminologia cognitiva, a m e m ó ria processual (a memória de como realizar uma tarefa) é distinta da m e m ó ria declarativa (memória de fatos sobre determinada tarefa ou evento) e ambas podem existir uma sem a outra (Schacter. 1987). Se alguma vez você já se viu falando "Eu sabia fazer isso" (como saber jogar um jogo, dar um laço. andar de monociclo, tocar um instrumento), você exprimiu implicitamente que seu conhecimento declarativo sobre algumas experiências sobreviveu, embora o conhecimento do procedimento correspondente tenha desaparecido. Se, ao con trário, você algum dia se viu falando sobre alguma atividade que envolve habilidade, como "Não sei te dizer como eu faço isso. mas posso mostrar como", você está afirmando que há alguma representação dessa habilidade em sua memória, de forma não compatível Com a descrição verbal manifestada.
Amnésia Interessantes e semelhantes pesquisas cognitivas sobre todo o fenômeno da memória sem consciência concentram-se não em pessoas comuns, mas em pacientes com algum tipo de amnésia em que nenhuma memória nova consciente pode ser recuperada com êxito mesmo minutos depois da ocorrência de uma experiência. Você poderia ter uma lon ga conversa com uma pessoa desse tipo e então sair da sala e retornar cinco minutos de pois — e o amnésico diria que nunca o viu antes! Contudo, o que é fascinante nesses pa cientes é eles poderem aprender novas habilidades. Por exemplo, um 'amnésico anterógrado' como esse recebeu instruções, repetidas vezes durante vários dias. sobre como achar a saída em um complicado labirinto. Com o tempo, sua habilidade de traçar o caminho correto no labirinto melhorou da mesma forma que melhoraria em uma pessoa cuja memória é normal. O curioso é que. mesmo tendo se tornado extremamente profi ciente na execução dessa tarefa, todos os dias o amnésico afirmou nem ao menos ter visto o labirinto (M i In cr, 1962). Seu desempenho sem dúvida mostrou a influência de expe riências para as quais ele não tinha nenhuma memória a relatar. A principal preocupação das pesquisas sobre memória em pacientes amnésicos desse tipo é apresentar-lhes categorias de experiência (como aprender novas habilidades motoras, escutar novas canções, assistir a novos acontecimentos, encontrar novas pessoas, explorar novos ambientes físicos, ler a respeito de novos fatos e assim por diante), e procu rar princípios que diferenciam as experiências que podem ser caracterizadas como "lem bradas" das experiências que influenciam o desempenho mesmo quando não são "lembra das". Nessas pesquisas, a grande descoberta foi a de que a capacidade de relatar
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experiências conscientemente lembradas não tem a ver com o grau segundo o qual essas experiências 'esquecidas' influenciam o comportamento (Warrington & Weiskrantz, 1978; Gral, Mandler & Squire, 1984). Portanto, há evidências consistentes de dissociação entre as memórias conscientes de pacientes amnésicos e os acontecimentos que de fato os influenciaram. Na medida em que essa descoberta é aplicável a uma outra população, além da clinica, isso quer dizer que muitas experiências que infuenciam nossa vida psico lógica presente não são alcançáveis de imediato pela consciência, como Freud já havia proposto. Uma outra grande meta na atividade de pesquisa sobre amnésia é compreender me lhor a memória normal. Se o exame minucioso de várias pessoas com problemas de me mória mostrar que determinados grupos de capacidades de memória tendem a ser perdi dos ao mesmo tempo, é provável que as capacidades dentro de cada agrupamento dependam de algum importante processo subjacente compartilhado (Kihlstrom & Glisky. 1998). Em outras palavras, essa recente pesquisa admite (e encontra provas para isso) que diferentes sistemas operam no cérebro de modo independente, sem o conhecimento cons ciente, e que há comunicação ocasional entre esses sistemas. Esse é precisamente um dos conceitos mais importantes da visão de Freud. A despeito dessa evidência adicional na psicologia cognitiva de que muitos eventos psicológicos importantes ocorrem sem o nosso conhecimento consciente, os |>ontos de vis ta de Freud sobre o inconsciente diferem das idéias cognitivas mais modernas em aspectos significativos. Freud não apenas propôs que os processos inconscientes desempenham pa pel preponderante no funcionamento psicológico humano; ele acreditava também que o inconsciente contém o que há de mais fundamental na vida das pessoas e cogitava que o conteúdo do inconsciente tende a permanecer nele ao longo de um processo intenso de repressão. Como foi observado, para Freud convicções, sentimentos e desejos aparecem como erros na fala (ou escrita) que distorcem o que a pessoa conscientemente pretende dizer. Uma perspectiva da psicolingüística experimental (o estudo da psicologia da lingua gem) explica os mesmos erros sem mencionar mecanismos psicodinâmicos. Alguns exem plos são mostrados na Tal»ela 3.1. Além disso, Freud considerava o inconsciente como o repositório da libido — a pulsào mais ameaçadora, mais scxualmcnte carregada, mais socialmente inaceitável e mais irracional. Os psicólogos cognitivos vêem o inconsciente de modo muito mais favorável, como um conjunto de informações (memórias, conceitos, processos) em geral fora do al cance limitado do conhecimento consciente, tanto porque é irrelevante quanto porque é indistintamente representado para ser trazido â tona ou porque, por natureza, é represen tado de maneira incompatível com o conhecimento consciente. Por exemplo; ■
Você provavelmente não se lembra de modo consciente da primeira namorada ou do primeiro namorado, na adolescência, quando está para sair ou espera sair com alguém. Isso ocorre porque essas memórias não são relevantes para o que você tem em mente no momento ou porque há algum impulso sexual não resolvido?
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Você provavelmente não consegue se lembrar de imediato de todos os professores da segunda série do ensino fundamental se for solicitado a citá-los. embora tenha conhecido todos nessa época. Isso ocorre porque a representação dessas m em ó rias é muito tênue para elas serem recuperadas sem dificuldade e com sugestionamento apropriado ou porque você foi molestado scxualmcnte mais ou menos nessa época?
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Tabela 3.1
R e in te rp re ta n d o os lapsos d e lin g u a g e m ( e d e escrita)
O que foi dito ou escrito
Interpretação psicanalítica
Explicação pstcolingimtica
Senhoras e senhores, observei que já temos a quantidade mínima de membros e, portanto, declaro fechada a sessão.
O locutor pretendia abrir a sessão, ntas inconscientemente desejava que a reunião não prosseguisse, {lissa é a interpretação Je Freud sobre esse exemplo.)
As palavras aberta e fechada estão intimamente associadas do ponto de vista semântico; a palavra não intencional fechada foi significativamente ativada pela intenção de dizer alterta.
/ have a snore neck. (Meu pescoço ronca.)
O locutor acredita inconscientemente que o problema do pescoço dolorido (sore neck) está relacionado com o ato de dormir.
Sore (dolorido) é trocado por snore (ronco/roncar) por antecipação fonológica: o som de n é movido para a palavra precedente, sore. í: mais provável que esse erro seja cometido porque forma uma palavra real.
I'm allergic to lasses... glasses. (Sou alérgico a moças... óculos.)
O locutor revela seu medo e aversão a mulheres liasses) ou uma associação inconsciente entre um par de lentes redondas (glasses) com os seios femininos.
O conjunto consonantal gl é reduzido. Isso pode ser justificado pela preservação do som inicial da sílaba tônica anterior {LER em allertjic).
1 worry about testes all week. (Fico apavorado com testículos toda semana.)
ü estudante está Inconscientemente preocupado com sua identidade sexual. Talvez ele tema a infertilidade ou esteja preocupado com a possibilidade de ter engravidado sua namorada.
As palavras tests (provas) e testes (testículos) são escritas quase identicamente. O que difere é apenas o e (que na maioria das vezes é mudo nessa posição).
Fernão de Magalhães foi o primeiro homem a circuncidar o globo.
O estudante tem uma severa complexidade de castração.
Ao buscar a palavra correta em seu léxico mental, o estudante procurou um verlw) incomum que começasse com o prefixo circum. Quando encontrou, ele o pronunciou.
(A Revolução Industrial instituiu | um estuprador (raper) mecânico que podia la/er o trabalho de dez homens na metade do tempo.
O estudante considera o estupro um caminho Comum por meio do qual a sexualidade masculina é expressa.
Ao escrever uma palavra não familiar para um conceito não familiar o esforço cognitivo exigido torna os erros mais prováveis. Nessa situação, a letra e é acidentalmente omitida (de reaper. ceifadora).
Nota: Esses exemplos (oram extraídos de Hansen . Freud <1974), Jaeger (1992) e Dell (1995).
Seres humanos como um conjunto de pulsões agressivas e sexuais refreadas pela civilização.
Enfatiza os efeitos dos padrões estabelecidos no início da vida sobre o desenvolvi mento da personalidade. Busca compreender as forças inconscientes. Examina impulsos inotivadonais básicos tanto sexuais quanto agressivos. Considera os mecanismos de defesa aspecto essencial da personalidade. A d m ite m últiplos níveis de operações n o cérebro.
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Limitações Superenfatiza de modo pessimista experiências da infância e pulsões internas destrutivas. É relativamente desinteressada pelas relações interpessoais ou pela identidade e adaptação individual ao longo da vida. Ú. difícil de ser testada empiricamente. Muitas de suas idéias sobre estrutura foram desacreditadas por pesquisas mais re centes sobre o cérebro. Pressupõe que qualquer desvio da relação heterossexual c patológico. Evidencia o comportamento masculino como norma e o comportamento femini no como desvio.
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Visão sobre livre-arbítrio O comportamento 6 determinado por pulsões e conflitos internos.
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Técnicas comuns de avaliação Psicoterapia, associação livre e análise dos sonhos.
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Implicaçõespara a terapia Pelo fato de os problemas de personalidade serem consequência de profundos conflitos internos, a mudança de fato deve ocorrer por meio da psicoterapia de longa duração orientada pelo insyht. em que você investiga seu eu interior por meio da hipnose, da livre associação ou da análise dos sonhos, guiado ou guiada por um terapeuta altamente bem pago. A psicoterapia psicanalftica tradicional pode durar anos. mas psicoterapias mais recentes, de menor duração, norteadas pela percepção, tentam criar uma aliança terapêutica entre o terapeuta e o cliente em que este último ê conduzido a insiyhts significativos.
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m Você não consegue explicar o motivo cie sua grande aversão polo gosto da azeitona ou mesmo como você identifica o seu gosto. Isso ocorre porque esse ti|x> de pro cesso nunca pode ser trazido ã consciência ou por causa de alguns sentimentos re primidos, relacionados com testículos? Pesquisas cognitivas recentes sobre o uso da capacidade de discernimento na solução de problemas concentram-se na questão de a captação mental, que mostra o caminho da solução bem-sucedida e eficaz de um problema, tem de ser conscientemente alcançada antes de ser aplicada. Um conjunto de estudos (Siegler, 2000) cronometrou o tempo que as crianças levam para resolver problemas de aritmética c, depois de cada problema, reco lheu o relato verbal dessas crianças sobre sua estratégia. Esse experimento empregou al guns problemas elaborados inteligentemente, os quais podiam ser solucionados empre gando-se inúmeros cálculos ou um insight simplificativo. Por exemplo. 18 + 24 - 24 pode ser solucionado tanto pela adição seguida da subtração ou compreendendo-se que o se gundo e terceiro números anulam-se reciprocamente. Se as crianças usassem o cálculo, demorariam bem mais tempo para chegar à resposta do que se usassem a compreensão súbita. Uma descoberta curiosa foi a de que elas começaram a usar a compreensão vários problemas antes de lhes informarem isso — ou seja, durante vários problemas sucessivos, 'decifraram' esse iiniyhi de maneira aproveitável mas não tão bem para informar verbalmente que a estavam usando. As crianças utilizaram esse insijjht inconscicntcmcnte para solucionar o problema. Contudo, uma explicação cognitiva sobre esse fenômeno vale-se de conceitos como níveis de ativação e não abrange nenhuma referencia a idéias psicanalíticas sobre ameaça ou repressão. Segundo a visão cognitiva sobre o inconsciente, não há nenhum processo ativo de proteção com base no conteúdo potencialmente doloroso e pernicioso do inconsciente (Kihlstrom. 1987). Não há nenhum paralelo cognitivo amplainente aceito com o conceito de Frcud sobre o inconsciente dinâmico. Ainda não foi confirmado se Frcud generalizou ou interpretou exageradamente suas observações sobre processos inconscientes e memó ria ou se os psicólogos cognitivos modernos estão negligenciando um fenômeno de tama nha importância.
Resum o e conc/usâo Embora Sigmund Frcud às vezes seja tratado como curiosidade histórica por pesqui sadores da personalidade, os quais se baseiam cm pesquisas de laboratório, a interpretação errônea de sua influência pode fazer com que sejam negligenciados inúmeros imighis da teoria psicanalítica que podem ser somados à nossa compreensão da personalidade. M u i tas das suas surpreendentes idéias foram refutadas ou suplantadas por pesquisas recentes na área da biologia e da psicologia, mas muitas outras estão vivas e ainda hoje são altamente influentes (Wcsten. 1998). Este capítulo ressalta as contribuições intelectuais signi ficativas da abordagem psicanalítica, mas também menciona suas limitações e falhas. Já bem no início de sua carreira. Frcud começou a desenvolver suas teorias sobre a importância do inconsciente, a princípio usando a hipnose para alcançar superficialmen te essa área da mente, mas logo passou a usar a associação livre e a análise dos sonhos. Ele acreditava que os sonhos e outros pensamentos são formados por imagens que po dem ser prontamente lembradas (ou manifestadas), mas essas imagens são. na maioria
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ilas vezes, representações de problemas e tensões inconscientes (ou seja, elas têm um sig nificado latente). Com o Freud escutava os sonhos e os problemas de seus pacientes — e como se recor dava da própria infância — . ele desenvolveu as teorias sobre a estrutura da psique c sobre o desenvolvimento psicossexual pelas quais é mais conhecido hoje. De acordo com a teo ria freudiana, os indivíduos têm um ser essencial, denominado id. que é a parte mais pri mitiva da psique e é pulsionado a obter prazer. Na camada seguinte, encontra-se o ego. cuja finalidade é encontrar formas práticas de satisfazer as necessidades do id. Finalmente, o superego, semelhante cm conceito à consciência, mas com um aspecto inconsciente, que internaliza normas sociais e orienta o com|M>riamento a sempre buscar concretizar metas para atividades socialmcntc aceitáveis. A teoria psicossexual de Freud sobre desenvolvimento propôs que os indivíduos de param-se com fases em sua trajetória de desenvolvimento em que determinadas metas são mais importantes. Posteriormente, ele postulou que, se o conflito associado com determi nada fase não fosse solucionado, o indivíduo fixar-se-ia nessa fase. A primeira fase (a oral) é o período durante o qual os impulsos para satisfazer a lome e a sede são de suma impor tância; os indivíduos que se fixam nela são demasiadamente absorvidos por problemas de dependência c consumo. A segunda lase
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