Marcos Nokre e José Mareio RegO
Conversas com Filósofos Brasileiros Miguel Reale Henrique de Lima Vaz Gerd Bornheim Benedito Nunes José Arthur Giannotti Oswaldo Porchat Ruv Fausto Leandro Konder
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Bento Prado Jr. Guido Antônio de Almeida Raul Landim Filho Tércio Sampaio Ferraz Jr. Marilena Chaui Paulo Arantes Carlos Nelson Coutinho Balthazar Barbosa Filho
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“Alguns dos m elhores pensadores d o Bra sil, m arxistas c ex-m arxistas, católicos e ab ju ran tes. m uitos deles am igos e cx-am igos de F ern an d o H enrique C a rd o so , con tam a h is tó ria da filosofia no país e d ã o suas op in iões sobre p o lítica, reh gião e arte." Q uem já co n verso u com filó s o fo s , b ra s ile iro s em p a rti c u la r, im agina os arrep io s que essa c a ric a tu ra de in tro d u ç ão jorn alística p ro vo c a ria nos p erson agens destas C o n re rs js . F ilósofos são m uito ciosos das con d ições em que falam . O s m iasm as d o m undo e da língua com um podem c o n ta g ia r e estro p ia r suas idéias. N o caso b ra sileiro , o zelo típico e an im ad o ain d a pelos efeitos de um trau m a de origem . O s pion eiros da filosofia un iversi tá ria ob rigaram -se a d iferen ciar o que faziam do d iletan tism o e d o ecletism o daqueles que SC p ro p u n h am filó so fo s n o Brasil. A n tes de in iciar a v en tu ra s in telectuais d estra m b e lh a d as. devia-se fo rm a r, com disciplina m o n ás tica, o eq u ivalen te d o estu d ioso eu rop eu de filo so fia , capaz de en ten d er a relo jo a ria dos clássicos do pensam ento. Essa h istó ria de su b stituição de im p o rta ções, vivida entre os anos 5 0 e “ 0, decerto não dá co n ta do p ercu rso de to d o s os pensadores destas C o n ve rsa s, c nem o p ro jeto da filo so fia u n iversitária foi tã o ord en a d o . Padres e idéias m edievais, a escolástica, o tom ism o, puseram m uitos de nossos p erson a gens na trilha da filosofia: o m arxism o encan tou as alm as de o u tro s tan to s. A crítica so cial de esq uerd a viria a e n tra n h a r a ju v en tu de ca tó lica e d esagu ar em m o vim en tos com o a A ç ã o P op u lar, cujo m en tor era um padrefiló so fo . C o m o n o Brasil os rios intelectuais são de água p ou ca, a A P deu ta n to cm m ui tos filó so fo s destas Coiiverscis com o em q u a d ro s d o a lto tu can ato . O ca to licism o e a rev o lu çã o p areciam in gredientes que d esan d ariam a receita da filo sofia universitária. M as a disciplina se firm ou, um estra n h o sucesso n a cio n a l, que se deveu à fo rm aç ã o de um sistem a de u n iversid ad es p úblicas, a o rigor m etod ológico (um im p lan te a le a tó rio dos m od os da u n iversid ad e fra n cesa no Brasil) e o u tra s estratégias e acasos.
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Marcos Nobre e José Mareio Rego CONVERSAS COM FILÓSOFOS BRASILEIROS M iguel R eale H enrique de L im a Vaz Gerd Bornheim Benediro Nunes José A rrhur Giannotti O sw ald o Porchat R uy Fausto Leandro Konder
Bento Prado Jr. Guido Antônio de A lm eida R aul L an dim Filho Tércio S am p aio Ferraz Jr. M a r ile n a C h aui Paulo Arantes C arlo s Nelson C outinho B alth azar Barbosa Filho
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N 585c
N o bre, M arcos C onversas com filósofos b rasileiro s / M a rco s N obre e Jo sé M areio R ego — São Paulo: Ed. 3 4 . 2 0 0 0 . 4 3 2 p. ISBN 8 5 -7 3 2 6 -1 9 0 -0 Inclui b ib lio g rafia. 1. Filósofos - B rasil - Entreviscas. 2. F iloso fia. 3. Filosofia - Estudo e ensino - B rasil. 1. R ego, Jo sé M a reio . II. T itulo. CDD - 109
C O N V E R SA S C O M FILÓSOFOS BRASILEIROS
A p r e s e n ta ç ã o ............................................................................................................. A g r a d e c im e n to s .......................................................................................................
1. M
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L i m a V a z ...........................................................................................
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3 . G e r d B o r n h e i m ..............................................................................................................
45
4 . B e n e d i t o N u n e s ............................................................................................................
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5 . J o s é A r t h u r G i a n n o t t i ........................................................................................
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6.
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O s w a l d o P o r c h a t .......................................................................................
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7 . R u y F a u s t o ........................................................................................................................
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8 . L e a n d r o K o n d e r .........................................................................................................
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9 . B e n t o P r a d o J r ..............................................................................................................
199
1 0 . G uido A n t ô n io
A l m e i d a ..............................................................................
227
1 1 . R a u l L a n d i m F i l h o ....................................................................................................
251
1 2 . T é r c i o S a m p .-v io F e r r a z J r ...................................................................................
273
13. M
C h a u i ............................................................................................................
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1 4 . P a u l o A r a n t e s ...............................................................................................................
337
15. C arlos N
C o u t i n h o ..................................................................................
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1 6 . B a l t h a z a r B a r b o s a F i l h o .................................................................................
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índice Onomástico ...............................................................................................................
428
arilen a
elso n
de
A In a r a A L ú c ia S a n t a e l l a
APRESEN TAÇÃO M arcos N obre
Q uando se fala em filosofia, muitas vezes pode-se o u vir com entários com o: “ É assunto muitíssim o com plicado. Coisa de especialistas” . Nesse caso, a filosofia passa por algo muito profundo, talvez até interessante, mas reservado a poucos. O u tras vezes, o sentido da afirm ação é outro: “ Filosofia é elucubração sem nenhum sentido prático. N ão serve para n ad a” . Nesse caso, a filosofia se parece mais com o apêndice no corpo humano: existe, mas não tem qualquer função, e, vez por outra, dá apendicite. Afirm ações com o essas têm algo de verdadeiro. M ostram que a filosofia é hoje quase que exclusivam ente uma disciplina universitária. M ostram que a filosofia não resiste ao crivo da lógica da utilidade funcional. M as p or que deveríam os nos deter aí? Por que não perguntar: a filosofia sempre foi uma especialidade ensinada ex clusivam ente em universidades? E necessário que seja assim ou pode ser de outro m odo? Ou ainda: p or que m edir tudo o que existe pelo p ad rão do “ para que ser v e ” ? Por que a utilidade funcional deve ser o critério para decidir sobre o valo r ou desvalor de alguma coisa? Q uando nos colocam os essas perguntas, não dá mais para vo ltar tran q ü ila mente ao senso comum e afastar a filosofia, seja com o algo inatingível, seja com o algo dem asiado inútil. E talvez esteja aí o interesse da filosofia: ela é um estorvo, uma pedra no sapato. Nesse sentido, agarrarm o-nos ao senso com um é uma das m aneiras de rem over o incôm odo. Porque, ao sermos cham ados para d ar razões para nossas opiniões, crenças e ações, cedo ou tarde iremos esb arrar também em problem as filosóficos, para os quais a história da filosofia apresenta uma serie de form ulações e de respostas. De m odo que este livro de entrevistas pretende tam bém, à sua m aneira, colab orar para o exercício e o cultivo do estorvo. M as um livro de “Conversas com filósofos brasileiros" tem de pensar tam bém o que significa fazer filosofia num país periférico, tem de pensar com o a filo sofia se instalou por aqui e qual o seu sentido para a cultura brasileira. Cada uma das entrevistas deste livro, cada reconstrução pelos entrevistados de seus respecti vos percursos intelectuais, é também uma resposta a essas perguntas. A dificuldade de apresentar um livro com o este está justam ente aí: com o fazêlo sem tom ar posição (implícita ou explicitam ente) em relação a cada uma das en trevistas, em relação a cada um dos temas tratados? E, no entanto, tom ar posição neste caso significaria abrir mão do principal objetivo deste livro: apresentar ao leitor depoimentos — revistos e autorizados pelos entrevistados — sobre temas clássicos e contem porâneos da filosofia, sobre processos de form ação intelectual, sobre a vida cultural brasileira. Nesse sentido, o títu lo “Conversas com filósofos b rasileiros” indica já que não se trata de um livro de “entrevistas” no sentido de que haveria
Apresentação
uma efetiva discussão, um debate sobre os temas em pauta, em que o entrevistadores buscariam con fro n tar, no detalhe, os entrevistados com perspectivas discordantes. São, p ortan to , depoim entos. Vias são depoim entos dirigidos. Exemplo disso é a form ulação de uma pauta básica de perguntas (no total de dez) apresentada a todos os entrevistados. Nesse sentido, retorna de pleno direito a dificuldade acima, a respeito da tom ada dc posição dos entrevistadores em relação aos entrevistados. E a resposta é: a tom ada de posição dos entrevistadores se deu antes da realização das entrevistas, quando da form ulação das perguntas. C abe, então, explicitar os pressupostos dessa tom ada de posição, o que servirá, sim ultaneam ente, para apre sentar este livro. E, espero, servirá tam bém para dem onstrar, senão neutralidade, ao menos im parcialidade no procedim ento. C om ecem os, en tão, pela reprodução da pauta básica de perguntas que foi apresentada a todos os entrevistados: 1. Goethe dividiu a vida de seu personagem W ilhelm M eister em dois rom an ces, Os anos de aprendizado e Os anos de peregrinação. N o prim eiro, o foco está posto na form ação do indivíduo W ilhelm M eister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom m ote para que o(a) senhor(a) nos falasse de sua form ação intelectual? 2. Seria possível falar de uma “ filosofia b rasileira” ? C om o o(a) senhor(a) vê as relações entre a filosofia e a cultura brasileira? 3. Que conceito(s) de sua reflexão o(a) senhor(a) destacaria com o o(s) mais representativo(s) de sua posição filosófica? Pediríam os que o(a) senhor(a) nos con tasse com o surgiu (ou surgiram) em seu trab alho e com o o(s) vê hoje. 4. Em sua história, a filosofia m anteve uma relação estreita com as ciências e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? C om o ela se dá na atualidade? 5. Desde Hegel, no século X IX , trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecim ento do fenôm eno estético em nossa sociedade. C om o o(a) senhor(a) se posiciona em relação a esse debate? 6. É hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segun do esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíam os era um fenôm eno essencial mente nacional e, atualm ente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado N acional com o fonte e garante do D ireito e com o detentor do m onopólio do e x er cício legítimo da violência. C^omo o(a) senhor(a) vê tal diagnóstico? Na sua visão, a prim azia de que parecem desfrutar as questões m orais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias? 7. C om o o(a) senhoria) caracterizaria a sua relação com a religião e a fé? 8. C om o o(a) senhor(a) se situa em relação aos problem as de uma “ mudança de paradigm a” da filosofia, de uma filosofia “pós-m etafísica” calcada na linguagem? 9. 0 ( A ) senhor(a) utilizaria o conceito de “u to p ia” p ara descrever sua visão do futuro da sociedade hum ana? Em que consistiria tal utopia? 10 . Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos com o riscos am bientais globais, am eaças de desintegração social em larga escala e alie nação cultural em massa. C om o o(a) senhor(a) vê tais problem as?
M arcos Nobre
De saída, cabe explicitar que um prim eiro sentido do estabelecim ento dessa pauta básica foi o de perm itir ao leitor uma m elhor condição de com paração das respostas dos entrevistados, incluindo-se aí a possibilidade de percorrer o livro tam bém na trilha de uma única dessas dez questões. Ressaltc-se, entretanto, que a ap li cação de tal pauta básica vem sempre com plem entada por questionam entos espe cíficos a cada um dos entrevistados, muito em bora uma ou outra entrevista, em razão da extensão das respostas ã pauta básica, tenha contem plado relativam ente p o u cas questões específicas. Um o u tro sentido im portante desse procedim ento foi jus tam ente o de testar a possibilidade da aplicação de um questionário hom ogêneo. Pois que se trata de um elemento im portante para a avaliação mesma do que seja a filosofia no Brasil, isto é, com o instrum ento para investigar se há um conjunto de temas que podem ou não ser reconhecidos com o um estoque com um de problem as, não obstante todas as diferenças entre os entrevistados. Em segundo lugar, cabe exam in ar diretam ente o sentido das dez questões propostas. C om o prim eira observação de caráter geral, pode-se dizer que as fo r m ulações pretendiam também perm itir ao entrevistado que mesclasse a exposição de suas próp rias posições a esclarecim entos sobre a natureza dos problem as em pauta, de m odo a ap roxim ar o leitor do tema desenvolvido. Q uanto à estruturação da pauta de questões, acredito ser possível distinguir três blocos de perguntas. O prim eiro abrangeria as três prim eiras perguntas, com preendendo diretam ente os dados biográficos que se põem com o m arcos na form ação intelectual dos entrevis tados. Na lógica desse prim eiro bloco, o percurso intelectual mescla-se necessaria mente ã pergunta sobre o que seja fazer filosofia no Brasil e aos conceitos que ap a recem com o centrais para a reflexão própria de cada entrevistado. O segundo bloco com preenderia as questões 4 a 7. A tentativa aqui foi a de aporitar para questões tradicionais da filosofia, questões que uma entrevista não pode colocar em toda a sua am plitude: não parece possível nem razoável pergun tar diretam ente sobre a natureza da verdade, do belo e do bem. Sendo assim, a es tratégia (no caso das questões 4 a 6) foi a de d ar a essas questões sublimes uma form ulação que as ancorasse sim ultaneam ente na atualidade e em traços distinti vos que as tornassem em alguma medida exam ináveis. Dessa form a, as questões 4 a 6 abrem , prim eiram ente, a possibilidade de um exam e em perspectiva histórica dos temas da ciência, da arte e da política, da m oral e do direito. Em seguida, p er gunta-se pelo estatuto atual dessas tem áticas. E m arcante, portan to, a ênfase na form ulação atual de problem as filosóficos tradicionais. Já no caso da pergunta 7, a solução foi diversa, pois sua form ulação se deu em registro pessoal, o que perm i te estabelecer correspondência novam ente com o prim eiro bloco de questões. A in da assim, nada impediu que o entrevistado exam inasse o problem a em registro mais am plo do que o da sua relação pessoal com a religião e a fé. O terceiro e últim o bloco não disporia dc uma unidade com parável à dos dois prim eiros. A sua posição no conjunto, na verdade, tem o sentido de co n tro lar as respostas às questões anteriores, perm itindo ao entrevistado prolongá-las e pers pectivá-las. A pergunta 8 pede ao entrevistado que opine sobre a filosofia contem porânea a p artir de uma questão genérica sobre um m om ento m arcante da refle xão filosófica no século X X , que é a cham ada “virad a lingüística”. A form ulação
Apresentação
permite uma especificação histórica, já que abre a possibilidade do con fronto com a tradição m etafísica. Nesse sentido, a pergunta remete ao segundo bloco de ques tões. pergunta 9 pretende ab rir ao entrevistado a possibilidade de desenvolver temas de filosofia da história. Nesse sentido, permite também remissões ao segun do bloco de questões, ao mesmo tem po em que prepara a últim a questão da pauta básica. Pois enfrentar o conceito de “ u to p ia” pressupõe um determ inado diagnós tico de nossa sociedade, e vale a pena pedir do entrevistado uma especificação de tal problema. Com isso, a pergunta 10 pode significar também (potencialmente) uma transição para a teoria social, sem prejuízo de que o entrevistado tenha já analisa do toda a pauta básica de questões dessa perspectiva. Entretanto, a m arcante ênfase na atualidade que caracteriza todo o conjunto de perguntas não tem apenas o objetivo de ap roxim ar as form ulações do leitor nãoespecialista e de to rn ar — na medida do possível — respondíveis as questões p ro postas. Uma tal ênfase revela também um o u tro pressuposto im portante da pauta de questões: os entrevistados são postos na condição de filósofos. M as p or que se ria este um pressuposto problem ático, já que se trata exatam ente de "conversas com filósofos brasileiros” ? Porque um dos fulcros deste livro é justam ente o de investi gar se há filósofos brasileiros (e em quê sentido), se há filosofia brasileira (e em quê sentido). O que, certam ente, engata tam bém com problem as clássicos da reflexão sobre o Brasil, sobr_e a cultura brasileira. Justifica-se um tal procedim ento? Pode-se, no enquadram ento das perguntas, pressupor resolvido um dos problem as mais delicados dessas entrevistas, p rob le ma que só poderia ser debatido e tratado pelos próprios entrevistados? A resposta a essas perguntas em baraçosas são novas perguntas: não é exatam ente assim que procedem os quando qualificam os alguém com o filósofo? N ão é assim que procede mos quando refletim os sobre o Brasil? N ão pressupom os sempre um padrão (gre go, europeu, am ericano) a p artir do qual nos medimos' Partir dessa idéia com um, entretanto, não significa, no caso das entrevistas deste livro, que se esteja de algu ma maneira im pondo ao entrevistados qualquer conclusão, seja no sentido de que nos definim os sempre pela falta, pela carência em relação ao padrão pressuposto, seja, ao con trário, que a filosofia entre nós não tenha sequer estatuto problem ático. C]om isso, atingimos uma outra característica essencial desse conjunto dc ques tões proposto aos entrevistados. N ão obstante os pressupostos já explicitados, a pretensão é a de que as perguntas cum pram sim ultaneam ente duas tarefas: que delimitem (com a clareza mínima requerida) os temas a ser abordados e que sejam suficientemente ra^^as para perm itir não só a m aior variedade possível de perspec tivas nas respostas, mas também — e principalm ente — a m aior variedade possível de interpretações das perguntas propostas. Pois as perguntas têm form ulações que se pretendem deliberadam ente vagas, de m odo a fazer com que cada uma das res postas de cada uma das entrevistas seja já uma interpretação das perguntas p ro postas. E a idéia do “depoim ento d irigido” apresentada acima significa aqui que os entrevistadores não têm nenhum a pretensão de intervir no sentido de “c o rrig ir” as interpretações dadas às perguntas, no sentido de precisar ao entrevistado o que seria a “verdadeira intenção” da pergunta apresentada. Em term os de conteúdo, não existe uma tal intenção original.
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Marcos Nobre
C oncluída a análise da pauta básica, cabe passar agora ao exam e de o u tro pressuposto da “tom ada de p osição” prévia por parte dos entrevistadores. Nesse sentido, surge im ediatam ente a necessidade de exam inar os critérios p ara o estabe lecim ento da lista de entrevistados. O prim eiro critério de seleção foi de natureza geracional: havia que estabelecer a lista a partir de nomes nascidos por volta de 19 4 0 e antes. Decisivo para o estabelecim ento desse critério foi o fato de que a instala ção de cursos de pós-graduação, a massificação dos cursos dc graduação e o cres cim ento mais expressivo no núm ero de publicações em filosofia deu-se fundam en talmente nas décadas de 1 9 6 0 e 19 7 0 . Desse m odo, era de crucial im portância obter o depoim ento daqueles que tom aram parte — direta ou indiretam ente — nesse p ro cesso que m oldou o que hoje se costum a designar com o filosofia no Brasil. O estabelecim ento desse critério prim eiro, entretanto, não foi suficiente para dele extrair uma lista de entrevistáveis que coubesse em um único volum e. Com satisfação, constatam os que o núm ero de filósofos selecionados com base nesse critério m onta a algum as dezenas. M as a satisfação foi acom panhada do grave problem a de ser necessário escolher dentre eles apenas dezesseis nomes. O que sig nifica desde logo: este volum e só pode ser entendido com o o prim eiro de uma sé rie, mesmo m antendo o critério de tom ar apenas aqueles filósofos que nasceram p or volta de 19 4 0 e antes. Diante dessa dificuldade, cabia proceder à escolha tendo por critério não apenas a relevância intelectual e o papel desem penhado nos diversos processos de institu cionalização da filosofia no Brasil, mas também um certo equilíbrio entre m últi plas variáveis, tais com o regiões de origem e de atuação, ênfase cm determ inados aspectos e disciplinas da filosofia, presença no debate público, visões diversas so bre a natureza do trab alho filosófico (acadêmico ou não-acadêm ico. especializado ou exotérico), reconhecimento pelos pares, compreensões diversas e divergentes sobre a natureza da filosofia. Foi com base nessa pretensão de equilíbrio relativo que foi estabelecida a lista, certam ente m uito incom pleta, com o já m encionado. De q u al quer form a, para que o leitor não tivesse seus horizontes lim itados à lista aqui estabelecida, em quase todas as entrevistas foi form ulada a pergunta sobre quais seriam , na opinião do entrevistado, os filósofos brasileiros mais im portantes. Por fim , cabe apresentar ao leitor os procedim entos adotados para a reali zação das entrevistas. A idéia original deste livro foi de José M árcio Rego, que já havia realizado (com o econom ista que é) dois volum es de Conversas com econo mistas brasileiros, também publicados pela Editora 3 4 . Vinculei-m e a esse p roje to de José M árcio em maio de 1 9 9 9 , e, a p artir daí, foi estabelecida a lista de n o mes e form ulada a pauta básica de perguntas a ser submetida a todos os entrevis tados. A prim eira entrevista foi realizada em fins de setem bro de 1 9 9 9 e a últim a em abril de 2 0 0 0 . O procedim ento foi o de, a p artir do roteiro da pauta básica, estabelecer uma pauta com plem entar específica para cada entrevistado, form ulada a p artir da lei tura de seus livros, artigos e entrevistas. Em média, a pauta de perguntas m ontava a quarenta questões — sendo cada uma delas apresentada ou descartada, depen dendo dos rum os que tom avam as entrevistas — , além das perguntas produzidas no próprio curso da conversa. Todas foram entrevistas gravadas. R ealizado o tra-
Apresentação
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balho de transcrição e de edição, os textos passaram p or uma prim eira revisão na Editora 3 4 e foram encam inhados aos entrevistados para que suprim issem , m odi ficassem ou alterassem as suas respostas. Os textos definitivos aqui apresentados são exatam ente os resultantes dessas revisões feitas pelos entrevistados. As entrevistas aparecem neste livro p or ordem de data de nascim ento dos entrevistados, dos quais o leitor tem , ao final de cada entrevista, uma breve n otí cia biográfica e uma lista das principais publicações. A crescentam os também uma “ Bibliografia de referên cia” para cada entrevista, p rocurando indicar, p rio rita ria m ente, traduções em língua portuguesa e edições disponíveis em livrarias e b iblio tecas públicas.
M arcos Nobre é doutor cm Filosofia pela USP, professor de Filosofia da Unicamp c pesqui sador do Cehrap. É autor de /í dialética negativa de Theodor W. Adorno, ed. Iluminuras/Fapesp. José M areio Rego é doutor eni Economia pela FGV/SP e doutor cm Semiótica pela l’UC/SP. professor da FGV/.SP e da PUC7SP. É autor, entre outros, de Conversas com economistas brasilei ros I e II e Retórica na Economia, ed. 34.
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.Marcos Nobre
AGR AD E CIM E N TO S
Na feitura do livro, contam os com a cooperação de muitas pessoas. Antes de tudo, contam os com a assistência direta e cotidiana dos pesquisadores Fernando Costa M atto s e M aurício C ard oso Keinert, que colab oraram no levantam ento e seleção do m aterial bibliográfico, na elab o ração das pautas específicas de cada entrevista e na edição do m aterial. Se há m éritos neste livro, eles tam bém cabem a esses dois pesquisadores. M inha colaboração intelectual com R icardo R. T erra vem de longe e, também no caso deste livro , suas sugestões e críticas foram de decisiva im portância. Em específico, na preparação de três entrevistas, pudemos aprender m uito com a livre troca de idéias com os professores Franklin Leopoldo e Silva, Ernani Chaves, Samuel Rodrigues Barbosa, R oberto Barros, A ldrin M ou ra de Figueiredo, C arlos Eduardo Batalha e H enry Burnett. Tam bém a pesquisadora Inara Luiza M arim auxiliou na edição e na pesquisa de algum as das entrevistas. M as, no caso de Inara, devo mui to mais que um agradecim ento; devo-lhe o livro , que, de minha parte, a ela dedico.
Marcos Nobre
A viabilização deste trab alho só foi possível com a participação de um gran de núm ero de pessoas e instituições, impossível aqui elencar todas. A o m enos re gistro o apoio logístico da FGV/SP e a ajuda financeira do Núcleo de Pesquisas e Publicações (NPP) da FGV, bem com o a influência intelectual e o apoio de Luiz C arlos Bresser Pereira. Fernando Costa .Vlattos e .Maurício Keinert foram indis pensáveis. A gradeço p or últim o o apoio constante da professora Lúcia Santaella, da Sem iótica da PUC/SP, a quem , de minha parte, dedico o livro.
José Márcio Rego
Conversas com Filósofos Brasileiros
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Miguel Reale: "O fato dc a Filosofia tratar dos problemas universais não quer dizer que o filósofo não seja condicionado pelo seu modo de ser social c histórico, e, sobretudo, pela sua lín gua, que é o solo da cultura, que é o ponto dc interseci,'ào entre a natureza e a cultura. .-\ língua é natureza e é cultura ao mesmo tempo. E cada idioma tem as suas peculiaridades, cada língua tem os seus valores ostensivos e outros ocultos".
MIGUEL REALE (1 9 1 0 )
M iguel Reale nasceu em 1 9 1 0 , em São Bento do Sapucaí (SP). Formou-se em D ireito pela Faculdade do Largo de São Francisco, onde obteve também o título de d ou tor em D ireito e tornou-se catedrático de Filosofia do D ireito. C ria d o r do Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF) e fundador da Revista Brasileira de Filoso fia, foi secretário de Justiça de São Paulo (1 9 4 7 ; 19 6 2 -4 ) e reitor da U niversidade de São Paulo. Supervisionou a com issão elab o rad ora e revisora do C ódigo C ivil B rasileiro, cujo p ro je to se en con tra em tram itação no C ongresso N acional. F. m em bro da .Academia Brasileira de Letras e professor em érito da USP. Esta en tre vista foi realizada em o utub ro de 19 9 9 .
Goethe dividiu a vida de seu personagem Wilhehit M eister em dois romances. Os anos de aprendizado e Os anos dc peregrinação. No p ri meiro, o foco está posto na fonnação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um hom mote para que o senhor nos falas se de sua fonnação intelectual? De certa m aneira, a nossa form ação intelectual tem duas valências, uma subjetiva e a outra intcrsubjetiva. Não há dúvida de que, em prim eiro lugar, põe-se a form ação do indivíduo com o tal. Segundo os seus pressupostos genéticos e valorativos. C o s tum o dizer que o homem está condicionado, até certo ponto, por determ inadas di retrizes, uma de natureza biológica e outra de natureza ética ou espiritual. Assim com o uma pessoa nasce dependendo de determ inados antecedentes biológicos, tam bém já possui, inerente a sua mentalidade ou a sua sensibilidade, uma vocação para esta ou aquela função social. É o que eu cham o de valor polar. Assim com o há DN.A para con trolar cada individualidade, cada indivíduo também é levado a certa v o cação, que pode ser desde para a sacralidade até para as funções empíricas norm ais. Eu acho que a lem brada distinção de Cioethe corresponde no fundo a essa distin ção entre o indivíduo em si e o indivíduo para com os outros. Q uando se fala, p o rém, cm peregrinação, esra palavra corresponde mais a uma situação local, e u ro péia, sobretudo alem ã, que consistia num ideal que rinham os alem ães, rom ân ti cos, sempre de conhecer a Itália, de fazer uma peregrinação autêntica, coisa que nós hoje podem os deixar entre parênteses. Enquanto não saímos de nós mesmos, ou seja, de nosso meio am biente, não conseguim os fo rm ar uma opinião clara a respei to do m undo e da vida, de maneira que foi som ente quando andei pelo mundo, par ticipando de congressos, de atividades políticas e assim p or diante, que passei a ter uma dimensão m elhor, não só de mim mesmo, mas do próp rio país, do Brasil com o tal. É nessa correspondência interna e exterior que existe uma relação fundante.
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o senhor nos diz então qtte a sua experiência em Roma, na década de 30, foi decisivaf É, minha presença em Rom a foi decisiva, porquanto eu fui com o exilado, exilado por m otivos políticos, e lá pude ter contato com uma grande civilização, uma grande cultura e ao mesmo tem po passei a ter uma experiência diversa do próp rio fascis mo, vendo que ele era uma coisa de longe e outra coisa de perto, tal com o explico em minhas mem órias. De maneira que é m atéria à qual não vou fazer mais referên cia porque já pertence à m em ória, é m atéria que já pertence ao m em orialism o. M as a influência de Rom a foi grande, porquanto definiu claram ente a minha orienta ção no sentido da Filosofia, quer da Filosofia em geral, quer da Filosofia do D irei to em particular. Até então, eu me preocupara mais com a problem ática política e literária, ao passo que em Rom a tive, digam os assim, uma experiência pessoal mais forte, no sentido de um esclarecim ento a respeito dos problem as fundam entais que representam o quadro básico da Filosofia.
Algumas importantes referências da sua obra estão no pensamento de Kant e dos neokantianos, nas filosofias de Husserl e M a.v Scheler, bem como na obra de N. Hartmann, que, salvo engano, serve de modelo e contraponto à síntese filosófica pretendida pelo senhor. Em que circuns tâncias o senhor travou prim eiram ente contato com as obras desses pensadores e como os avalia hoje? Eu já tinha tido contato an terior com os neokantianos. C om o se sabe, havia duas grandes linhas do neokantism o, uma da escola de M arb urgo, impregnada mais por preocupações de natureza lógico-m atem ática. e outros da escola de Baden, que dava mais im portância e relevo à problem ática social e ética. O que me atraiu mais foi o neokantism o de Baden, sobretudo pela figura estupenda dc G ustavo Radbruch que, pela prim eira vez, me colocou perante a problem ática da cultura, da cultura que ele ainda via com o elem ento interm édio entre a natureza e o espírito. A posição de R adbruch a respeito da cultura, com o, de resto, a dos com ponentes da escola de Baden, era a da sua caracterização com o transição. Ele não exam inava a p rob le mática cultural com o esta veio a ser exam inada mais tarde. Ele estabeleceu a cu ltu ra com o elemento de m ediação, repito, entre a natureza e o espírito, de certa m a neira retom ando o problem a deixado em suspenso p or Fíegel, quando identificara a cultura com o p ró p rio espírito objetivo. Hegel, porém , ao identificar cultura com espírito objetivo, fazia-o adm itindo algo superior à cultura, que era o espírito absoluto, no qual ele incluía a arte, que é, convenham os, um componente natural da cultura. De maneira que Hegel deixou uma solução que era, no fundo, um grande problema. Era uma série de perguntas que emer giam da com preensão da cultura com o espírito objetivo. Foi m editando sobre essa teoria que escrevi meu prim eiro livro, mais significativo no plano filosófico, que é Fundamentos do Direito — o qual, na realidade, deveria ser “ fundam entos da cul tu ra ”, porquanto a Filosofia do D ireito não é uma filosofia especial. N ão existem filosofias especiais. A Filosofia do D ireito é a filosofia mesma enquanto o pensador tem com o objeto de estudo e de análise a experiência jurídica. De maneira que a Fi losofia do D ireito de Hegel c um m om ento da sua experiência filosófica geral. Aliás,
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aquele que mais conseqüências teve, porque foi o que mais atraiu K arl M arx e do qual este partiu para toda a sua concepção m aterialista, do m aterialism o histórico. De m aneira que houve m uita im portância na filosofia neokantiana, que c o r responde a minha fase inicial, superada depois com o advento de outras correntes de pensam ento, sobretudo através de Husserl. K ant é um ponto de partida perene e universal. Toda filosofia m oderna é crítica na medida em que herda o criticism o kantiano de uma form a mais extensa ou não. K ant é um depositário de soluções e a todo instante podem os vo lver a ele para descobrir coisas novas. De início, a filo sofia da cultura foi para mim um ponto de partida para uma m editação m aior, que iria redundar naquilo que cham o de “cu ltu ralism o” . Penso que em poucos países a m editação sobre a cultura atingiu profundidade tão extensa com o no Brasil. En quanto a cultura era, em geral, considerada de m aneira com plem entar em relação ã natureza, no Brasil essa temática teve o u tro desenvolvim ento, com conseqüências às quais poderei fazer referência ao longo desta breve correspondência de idéias. ■Mas o im portante é que Husserl veio trazer um o u tro elemento ao binôm io do conhecimento. Não poderia haver uma teoria da cultura enquanto o homem per manecesse voltad o exclusivam ente para a sua subjetividade; ou seja, enquanto fos se uma projeção da problem ática cartesiana do cogito, porquanto a cultura é um transcender da cogitação subjetiva envolvendo im ediatam ente a pessoa do outro. E, por o u tro lado, Husserl vem m ostrar que o conhecim ento hum ano não é m on o córdico no sentido da subjetividade, porque a própria consciência é consciência de algo, de maneira que ele soube reviver o velho conceito medieval da intencionalidade. A consciência com o intencionalidade leva à idéia do objeto: o eu e o outro, esse outro que pode ser uma coisa ou uma outra pessoa, um outro sujeito, com pondo, p o r tanto, uma correlação muito com plexa. Com a filosofia de Husserl, os neokantianos passaram a dar valo r ao objeto e, por conseguinte, também foi possível que se pu sesse em realce a problem ática do valor. É aí que começa a segunda fase do meu pensam ento, em que supero pratica mente a filosofia neokantiana da cultura, do culturalism o de Baden, levando em consideração a problem ática do valor. A teoria do valor é antiga, mas com o uma teoria autônom a é um problem a recente na história das idéias, é uma problem ática praticam ente do fim do século X IX e com eço do século X X , quando na realidade a p alavra “ v a lo r” passou a ser mais usada, porque antigam ente ela estava um pouco m isturada com a teoria do bem, da m oralidade e assim p or diante. O valor passou a ter um status filosófico autônom o e isso representou uma mudança de 180" no m undo da filosofia. É preciso, a meu ver, salientar que é a A xiologia que dá nova orientação à tem ática filosófica contem porânea. E me vi, então, em contato com grandes com panheiros de H usserl, que eram .VIax Scheler e N icolai H artm ann. A m bos, porém , tratavam do valo r com o um objeto ideal e esse é um problem a so bre o qual eu queria cham ar especial atenção. O v alo r é um objeto ideal? Há razão para perm anecerm os nesse platonism o? Será que o valor é algo que pode ser equi parado a um objeto m atem ático, ou a um objeto lógico? Foi nos meus livros. Filo sofia do Direito, em prim eiro lugar, e Pluralismo e liberdade, em segundo lugar, que procurei m ostrar que o valor tem um status próprio, que o valor não é um objeto ideal. E aqui, para chegar ao trato dessa m atéria, volvi novam ente a Kant, mas sob
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um ângulo diferente, que é o da distinção básica entre ser e dever ser, Sein e Solleii. E, p or o u tro lado, da correlação, desse binôm io, que é o Sein-Sollen. Então, é aí que começa a segunda fase do meu pensamento, que eu cham aria de fase axiológica, porquanto cheguei ã conclusão — e este é um ponto básico de meu pensam ento, e, se alguma contribuição trouxe ã m atéria, essa é uma delas — de que o valor não pertence ao m undo do Sein, do ser, mas pertence, ao con trário, ao m undo do de ver ser, do Sollen. Chegando ã conclusão, p or conseguinte, de que “o ser do valor é o seu dever ser” . Notem a im portância desta frase, pois ela é fundam ental: o ser do valo r é o seu dever ser. O valo r, na realidade, com o o belo ou o verdadeiro, não pode ser equiparado a uma figura geom étrica, a uma circunferência, p or exem plo, porque um círculo, um triângulo, um núm ero são objetos ideais. E mesmo quando se esta belecem relações entre eles, tem os o m undo da M atem ática, da Álgebra, o mundo da Lógica contem porânea, da nova Lógica, paraconsistente ou não. O im portante é que as relações lógicas são sempre relações de tipo ideal, desenvolvendo-se no plano do Sein, do ser. O valor, ao contrário, converte o objeto em objetivo, porque quando digo "é belo”, essa minha afirm ação de beleza implica uma tom ada de posição. N in guém tom a posição perante um triângulo ou um círculo. O valor, ao con trário, im plica a conversão do objeto em objetivo. E, por o u tro lado, enquanto no mundo da Lógica prevalece o q u antitativo sobre o q ualitativo, no m undo da .Axiologia, ao con trário, é a qualidade o elemento dom inante. É o q u alitativo que distingue um valo r de outro valor. O que permite uma gradação. Não há uma circunferência mais circunferência do que outra, mas existe mais beleza a respeito deste ou daquele dado da natureza ou do espírito. Então, o v a lo r tem uma consistência diferente, o que me leva ã seguinte conclusão: somente se pode falar numa A xiologia, no sentido pleno da p alavra, quando se tem um conceito autônom o de valor. De outra m anei ra, seremos obrigados a dizer que a A xiologia é uma parte da M etafísica, ou então que a A xiologia é uma parte da Ética etc., ao passo que eu entendo que a A xiologia é uma parte autônom a da Filosofia. A A xiologia é uma das partes autônom as, ao lado da Lógica, ao lado da Ética. Interligada sempre, porque os problem as filosó ficos não são nunca isolados, desprendidos uns dos outros, mas sempre em cone xão necessária, em linha de com plem entaridade. É essa com preensão autônom a e dinâmica do valo r que está na base do meu "historicism o axio ló g ico ” , que se distingue do historicism o hegeliano em virtude de seu sentido axiológico, do qual decorre a aplicação da dialética de implicaçãopolaridade ou de com plem entaridade, exatamente em razão de ser a polaridade uma das características essenciais dos valores, que entre si se im plicam , sem se reduzi rem uns aos outros. Esse m odo de ver veio repercutir também no cam po da Filosofia do Direito, levando-m e a dizer que não é bastante afirm ar, com o já haviam feito alguns au to res, que a experiência jurídica se com põe de fatos, de valores e norm as. Porque esse é apenas o aspecto quantitativo do problem a. O im portante é m ostrar que esses ele mentos se dialetizam , se implicam reciprocam ente, e foi aí que com eçou a teoria tridimensional do Direito. A idéia de teoria tridim ensional do D ireito com eça não quando .se diz que há três fatores com pondo a realidade jurídica, mas, sim, quando
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se analisam esses farores e se descobre o nexo finalistico que existe entre eles. E entâo, é a dialeticidade de fato, v alo r e norm a que está na raiz da teoria tridim ensional do D ireito. C om o se vê, a indagação filosófica em meu espírito m archa pari passu com a indagação jurídica. E são dois os pontos de apoio do meu raciocínio: o do ho mem enquanto hom em e o do D ireito com o experiência. Este, aliás, é o título de uma das minhas obras, O Direito como experiência, que m arca exatam ente o m o m ento culm inante dessa segunda fase, que eu cham aria de axiológico-concreta. E, com isso, foi possível m ostrar que havia certo engano por parte de Nicolai H art mann, quando fazia uma identificação entre cultura e espírito objetivo, repetindo o mesmo engano de Hegel. .A cultura é a m anifestação do homem em relação ã natureza, no instante em que ele torna a natureza diversa em razão dele mesmo: é essa intencionalidade da consciência que altera o natural para convertê-lo em algo que realiza a especifici dade hum ana. Daí o conceito de cultura que estabeleço com o um patrim ónio da espiritualidade, que a espécie humana vai acum ulando para a realização de seus fins específicos. Em virtude da radicalidade da cultura, ultim am ente eu tenho falado em j priori cultural. -Mas é claro que, enquanto indagava acerca desse ponto de vista, sempre me surgiu o problem a da ligação entre A xiologia e .Metafísica. Se, de certa m aneira, eu extraíra da .Metafísica a A xiologia, que relação havia ainda entre elas? C om o pen sar em M etafísica? E é aí que surge o terceiro período do meu pensam ento, que c o r responde propriam ente ao livro Experiência e cultura, que representa uma nova fase. Eu diria talvez que não são propriam ente fases, mas momentos de algo que vai am a durecendo à medida que a experiência filosófica vai se adensando. F. claro que isto im portava em uma nova atitude filosófica no Brasil, diferen te da que vinha dom inando, p orquanto, infelizmente, o que prevalecia nas u niver sidades era uma atitude quase que passiva diante dos textos, sem se en volver com o tratam ento da m atéria. Era uma interpretação dos grandes autores sem que h ou vesse o arro jo do pensam ento próprio, sem uma preocupação que emerge, não por vaidade pessoal, mas pelo próp rio andam ento, pelo próprio processar-se da pes quisa, no sentido de form u lar uma pergunta e tom ar uma posição distinta, o que é próprio da im aginação criadora. Então, inegavelmente, na minha experiência pes soal há algo que representa uma tom ada de posição perante o pensamento alheio, não sendo apenas um aperfeiçoam ento herm enêutico. É claro que ninguém nega o m érito das universidades ao surgirem as faculdades de Filosofia, que aprim oraram o aprendizado filosófico, exigindo método, exigindo ida às fontes, a meditação direta dos autores, e não apenas o recebim ento da inform ação através de terceiros. Essa a grande função das universidades, a de criar a m etodologia científica do aprendiza do filosófico e o quadro das idéias universais. Porém , talvez se tenha exagerado de mais a preocupação de atenção ao texto, até o ponto de não se ir além dele, em di reção a uma “ pergunta pessoal" que se insere no processo herm enêutico, no p ro cesso de interpretação. O senhor identifica essa atitude, p o r exemplo, com a produção do De partam ento de Filosofia da USP?
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Nc) D epartam ento de Filosofia da USP houve e há pensadores que procuraram e procuram ter uma atitude p ró p ria; porém nunca foi, digam os assim, um objetivo perm anente. Eles deixaram algo de próp rio ao fazerem interpretações, em seu tra balho herm enêutico, mas nunca houve a preocupação da revelação autônom a, so bretudo quando dom inou a escola estruturalista, dificultando uma nova tom ada de posição criadora. E nós podem os dizer em Filosofia o que A lb erto T orres dizia em Política: toda revolução começa com uma tom ada de posição em face dos proble mas. Q uer dizer, o problem aticism o da Filosofia está faltando um pouco na vivência universitária. Foi o que me levou a criar o Instituto Brasileiro de Filosofia, que pre tendia to rn ar a Filosofia aberta a todos, sem exigir diplom a para ser filósofo. V o lta n d o , p orém , ã exp osição que eu estava fazendo, ao ve rific a r que a A xiologia tem um status p róp rio, surgia a pergunta: e o absoluto, e aquilo que transcende a ligação intersubjetiva na teoria do conhecim ento? A quilo que se põe com o o incognoscível? A filosofia do absoluto de Hegel, a idéia com o universal concreto, isso não representa nada de fundam ental para nós? As posições são as mais conhecidas, conform e a atitude que se tem. Hegel não adm itia sequer que se pusesse em dúvida essa questão, dizendo que a pergunta sobre o conhecim ento da M etafísica não tem sentido, porque a pergunta pelo conhecer já é conhecer. De m aneira que a teoria do conhecim ento não pode ser um pressuposto da F ilo sofia, porque ela já é Filosofia de per si. M as o im portante é que aí achei interes sante vo lver a uma posição que foi p ró p ria de certos m om entos da Filosofia m e d ieval, vo lv er à posição, p or exem plo, de N icolau de Cusa, quando ele fala de conjeturas. Há graus da verdade, ou m elhor, há graus do verdadeiro. Exatam ente com o no caso do belo, em que os valores se hierarquizam , há graus do verdadei ro. A liás, a Lógica contem porânea nos dá razão quando fala em “quase-verdad e ”. A Lógica paraconsistente é a Lógica da quase-verdade. Então, tem os que en fren tar esse problem a, e me pareceu que devíam os colocar o problem a em term os conjeturais. A p alavra “con jetu ra” estava sendo m uito usada no m om ento em que che guei a essa etapa da minha experiência pessoal da Filosofia, sobretudo através das obras de K arl Popper sobre Epistemologia. Porém , m editando sobre a posição de Popper, cheguei à seguinte conclusão: Popper tem, a respeito da conjetura, uma concepção um tanto imprecisa, porque ele inclui no plano conjetural também o que se revela provável. O ra, parece-me que o provável não é conjetural, porque já se insere no q uantitativo. A meu ver, o conjetural se restringe ao plausível, ao proble m ático, ao m etafórico, àquela faixa na qual não se dá uma resposta afirm ativa, mas se põe um “com o se” , um ais oh, que dem arca a problem aticidade. M ais uma vez voltan d o a K ant, fui verificar que ele havia tratado do problem a numa fase decisi va de sua evolução espiritual. Depois de ter publicado a Crítica da razão pura, Kant escreve pequenos estudos sobre a história. N ada mais conjetural do que a história, e ele o percebeu bem. K an t tem um trab alho dedicado à conjetura no qual declara que esta é uma form a de pensar com o, p or exem plo, a de quem está num a ilha de serta cercada pela escuridão da noite e percebe que além dela existe algum a coisa, que não sabe o que é, mas existe alguma coisa que pressupõe com o existente, so bre a qual se conjetura.
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Então, o que distingue a conjetura? A conjetura não é um devaneio, a con jetura não é um sonho, não é uma invenção. A conjetura é uma suposição com base no real. K ant mesmo declara que a conjetura é com o um pássaro que voa o mais alto possível, mas ligado sempre à experiência. É algo de experienciável, pelo menos com o tentativa. É o que penso ter dem onstrado em meu livro Verdade e conjetura, que vem com pletar Experiência e cultura, onde já aludo ao pensam en to conjetural. Tam bém ocorreu aqui uma outra alteração na teoria do D ireito, que foi a de m ostrar com o, no cam po da Ciência do D ireito, opera também a conjetura. Há uma série de problem as jurídicos que só se resolvem conjeturalm ente e que não podem ser resolvidos pela Lógica tradicional, pura ou dogm ática. De maneira que o im portante é que o filósofo do D ireito não se limite ao exam e dos textos, por mais altos que sejam , ainda que se trate de texto constitucional, mas indague de seus pressupostos éticos. T om ar uma posição não p or querer tom ar, mas porque o es tudo leva a isso. Leia-se, nesse sentido, Nova fase do Direito moderno, o qual, se gundo A ntôn io Braz T eixeira, devia cham ar-se Direito e conietura.
Seria possível fa la r de uma “filosofia brasileira”? Como o senhor vê as relações entre a filosofia e a cultura brasileira? Bom, estou convencido de que hoje em dia já se pode falar numa filosofia brasilei ra, tal o núm ero de autores que tom aram posição própria perante os grandes pen sadores. E os portugueses foram além, fundando o Instituto de Filosofia Luso-Brasileira. Eles entendem que existe uma filosofia de língua portuguesa. O problem a é muito delicado e diz respeito ã existência ou não das cham adas filosofias nacionais. Eu estou convencido de que não há filosofia que não seja, até certo p onto, nacio nal. O fato de a Filosofia tra ta r dos problem as universais não quer dizer que o filó sofo não seja condicionado pelo seu m odo de ser social e histórico, e, sobretudo, pela sua língua, que é o solo da cultura, que é o ponto de intersecção entre a n atu reza e a cultura. A língua é natureza e é cultura ao mesmo tempo. E cada idioma tem as suas peculiaridades, cada língua tem os seus valores ostensivos e outros ocu l tos. Há palavras alem ãs que são intraduzíveis para o português, assim com o até no próp rio italiano, que é uma língua irm ã, há palavras que não encontram uma tra dução rigorosa. Q uer dizer, a nossa língua é uma condicionante do nosso ser pes soal e do nosso ser filosofante, da nossa própria capacidade de pensar e de filo so far. Há, hoje em dia, uma filosofia brasileira, mas não no sentido, evidentem ente, de uma autarquia, o que seria uma tolice. Som os uma continuação do patrim ônio do pensam ento ocidental. Por mais que o Brasil possa progredir e os Estados Uni dos possam avan çar na linha do tem po, a A m érica será sempre idealm ente uma projeção da Europa. Nós som os uma projeção do Ocidente. Nós falam os grego e falam os latim. E, com isso, tiramos desse patrim ónio, que vem de milênios, um resultado para poder pensar, mesmo porque, toda vez que encontram os uma solução, essa solução põe logo em seguida um novo problem a. O problem aticism o é inerente ã própria inda gação filosófica. É nesse sentido am plo que falo em filosofia brasileira. É fácil re conhecer que a filosofia alem ã não é igual ã filosofia francesa, não é igual à filoso-
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fia anglo-am ericana. D iferença de temas, predileções por assuntos, atitude na m a neira de colocá-los, tendência a responder num sentido ou em o u tro , tudo isso nas ce num cenário diferente para o pensador deste ou daquele o u tro país. Enquanto o Brasil se limitou passivamente a ser influenciado, não havia filosofia brasileira, havia apenas a história das influências recebidas. M as, desde o m om ento em que passa mos a perguntar: na m aneira de ser influenciado, não existe algo de próprio.^, co meçamos a tom ar consciência daquilo que é nosso. Então se pode falar na filosofia brasileira, que significa a tom ada de posição do brasileiro perante a Filosofia.
Quais são, em sua opinião, os filósofos brasileiros mais importantes? Temos, na Lógica — e a Lógica para mim é uma parte fundam ental da Filosofia — , o N ew ton C arn eiro A ffon so da C osta, criad o r da Lógica paraconsistente, trazen do uma contribuição de repercussão universal. Temos, no passado, alguns pensa dores que, por mais que tenham tido com preensão pouco original, apresentam algo de próprio. Lem bro sobretudo o nome dc Tobias B arreto, que nos apresentou uma intuição prim ordial da cultura, em função das conjunturas do N ordeste. Por que a cultura surgiu em seu espírito com o o “ antagônico da n atureza” ? Porque o n o r destino vive em função da natureza am arga e adversa, aquela natureza que, com o dizia José Am érico de Alm eida, é para o N ordeste menos mãe do que m adrasta. O nordestino sente a necessidade dc superar a natureza e dc dom iná-la através da cultura. Então, para Tobias Barreto, a cultura é um meio, um m odo de dom inar e ajeitar a natureza para poder torná-la m enos agressiva. Se O rtega diz que o homem é a sua própria condição, então essa condicionalidade geral não pode deixar de existir no mundo filosófico. D entre os pensadores nacionais atuais, eu lem braria A ntônio Paim, que tem dedicado m uita atenção ã problem ática da cultura e também à his tória das idéias no Brasil. O seu livro sobre a história das idéias no Brasil veio sis tem atizar a m atéria e m udar o ângulo, alterar a orientação dos estudos. A liás, uma das minhas preocupações m aiores foi a de fazer com que os brasileiros tomassem consciência do que lhes é próprio, muito em bora sempre no contexto do pensamento universal. Antes do Instituto Brasileiro de Filosofia e da atuação que este exerceu, estudava-se a Filosofia no Brasil partindo-se do pressuposto de que o brasileiro não produzira nada de p ró p rio , sendo mero rep ro d u tor do pensado alhures. E, depois, quando se queria avaliar o pensador, parece que se tom ava a medida do certo e do errad o conform e se estava perto ou distante de K ant, perto ou distante de São T o más de A quino, perto ou distante de Hegel, e assim p or diante. Q uer dizer, segun do parâm etros e.xternos, sem uma avaliação íntima. O IBF veio trazer nova linha m etodológico-herm enêutica, e é a que vem sendo seguida pelos que pertencem ao Instituto Brasileiro de Filosofia e que, hoje em dia, felizmente, já está prevalecendo em várias universidades brasileiras. Penso que na Unicamp os senhores já seguem uma orientação aberta e não a de fidelidade exclusiva a determ inadas diretrizes, em uma com preensão abstrata do fenôm eno hum ano.
Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade?
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Eu sempre rive a preocupação de colocar os problem as filosóficos levando em con ta o aspecto científico. E tive uma grande alegria quando, no evolver do meu pen sam ento, cheguei, p or exem plo, à conclusão de que somente o fninctpio de com plementaridade poderia servir de parâm etro para a problem ática ética e jurídica. E a minha alegria foi grande ao constatar que o princípio de com plem entaridade tam bém dom ina nas ciências físicas. Encontrar um princípio com o esse de com plem en taridade, com o base de pesquisa e de referência, tanto para o pesquisador da física com o para o das ciências hum anas, foi um grande avanço, uma espécie de prova de verdade. O u, pelo menos, prova de verossim ilhança, dessa possibilidade de um novo princípio ser aplicado em um cam po e em o u tro do conhecim ento hum ano, no m undo da natureza e no m undo da cultura. N ão digo que o filósofo deva sempre ter vocação científica, porque seria pre tender que todo filósofo tivesse o mesmo feitio. O meu feitio é de respeito ã ciência e de uma preocupação sempre muito ativa no sentido, por exem plo, de correlacionar a Filosofia do D ireito com a Ciência do D ireito positivo, de não fazer uma Filoso fia do D ireito abstrata, perdida na estratosfera, mas, ao con trário, de fazer uma Fi losofia do D ireito que diga respeito ã atividade do juiz, do advogado, daquele que tom a parte no processo em defesa dos seus interesses. É uma atitude m inha, com o é de grande núm ero de juristas atuais. M as não exagerem os. O neopositivism o, por e.xemplo, considera que tudo aquilo que não tem vinculação com a ciência não tem sentido, é nteaningless. C onsidero essa atitude exagerada. Com preendo, p or exem plo, um filósofo que seja puram ente m etafísico, que não dê im portância ab so lu ta mente ã problem ática científica, porque ele transcende esse aspecto da ciência para pôr os problem as apenas no plano do ser, da problem ática do ser em si, e assim por diante. De m aneira que não vejo razão alguma para optar por uma filosofia segundo m odelos determ inados e inflexíveis.
Desde Hegel, no século XIX, trava-se unt debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda de. Como o senhor se posiciona em relação a esse debate f .Mas quem é que teria dito que a Estética está em risco de desaparecer? A tribui-se a Hegel essa afirm ação? Eu a considero errônea. Hegel tinha antes tem or de que isso pudesse acontecer. Porque uma das partes mais belas da filosofia de Hegel é e x ata mente a Estética. A sua Estética é, no fundo, a continuação daquilo que considero a concepção m aior de K ant, a Crítica do jiiizo. Porque a Crítica do juízo de Kant tem um va lo r au tô n om o, é co n jetu ral. E Hegel p artiu dessa visão estética para tran sform á-la em visão do absoluto, a arte é superada apenas pela visão do abso luto. De m aneira que algo que é superado só pelo absoluto, é inferior, por assim dizer, diante da idéia do absoluto, mas é válido enquanto m om ento dos mais altos do espírito. De maneira que não creio que o belo desapareça. Pode haver uma m aior ou m enor com preensão do belo, um sentido diferente do belo, podem os adm itir até um belo horrível e outras deform ações desse tipo. Eu prefiro m anter a linha tra d i cional. A beleza, para mim, é uma coisa, e a feiúra, outra. Eu poderia ser conside rado um conservador, mas prefiro conservar certos parâm etros e paradigm as que são com o que projeções do passado, m om entos de uma continuidade histórica.
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£ hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar.
Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como o senhor vê tal diagnóstico? Na sua visão, a prim azia de que parecem desfrutar as questões m orais no debate ptiblico atu al tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias? N ão creio que a política somente atualm ente, som ente hoje em dia, tenha uma p o sição dc prim azia ou de excelência. Já os gregos tinham a noção fundam entai da vida política. A vida política foi coeva com a vida filosófica. Sócrates tinha, a seu m odo, a sua política, assim com o tinha a sua ética. O im portante é dar ã política a sua posição própria. A política sempre esteve presente no homem, porque o homem é um ser político p or natureza, por ser um ser histórico. O homem é um ser histó rico, portanto traz sempre um problema a ser resolvido. E onde há problemas a serem resolvidos na sociedade, há uma política a ser realizada. A política de .VIaquiavel, p or exem plo, foi um m om ento fundam ental na história do hom em , quando a p olí tica deixou de ser parte da ética para passar a ser uma ciência autônom a, uma o r dem de estudos dotada de significação própria. Assim com o a A xiologia é dotada de significação própria, a política também é ordem de estudos de significação p ró pria. Essa foi a grande novidade de M aq u iavel, mais do que o m aquiavelism o que, às vezes, é uma falsa atribuição a ele do que ele não disse e não pensou. De m anei ra que a política está sempre vinculada à situação do homem. Diz-se que, neste m om ento, não há mais um Estado N acional, porquanto p re valeceria a globalização. Parece-me ser essa a finalidade última da pergunta. A globa lização é um fenôm eno, é um fato que está aí, resultante do progresso tecnológico, da inform ática, das telecom unicações, da cibernética, em suma. M as isso não sig nifica que os Estados N acionais tenham desaparecido, p orquanto, por mais que se universalize, há sempre uma tom ada de posição a respeito do que é próprio. M es m o porque o Estado tem m últiplas funções. E. uma tolice, no meu modo de enten der, afirm ar que o Estado, em econom ia, deixou de ter um papel p róp rio para ser m ero receptor de choques e conflitos de capitais estrangeiros ou externos. N ão, o Estado tem sempre uma função de controle, de gerenciam ento, quando mais não seja, de preservação do que é próprio. Temos visto a todo instante o Estado brasi leiro sendo obrigado a tom ar posição perante crises de vários tipos, com o a asiáti ca, a russa e assim por diante. F. no m om ento de crise que a força do Estado ap are ce, e o Estado N acional subsistirá sempre, com o subsistirá tam bém a política lo cal, a m unicipal, a regional, conform e as circunstâncias e conjeturas. Porque isso é uma dim ensão do hom em. Dim ensão universal, dim ensão nacional, dim ensão re gional, dim ensão local, mas sempre a expressão de m odo dc ser da vida humana em determ inadas conjunturas.
Como o senhor caracterizaria a sua relação com a religião e a fé? Bom, esse é um problem a íntim o, fundam entalm ente. Já escrevi sobre o assunto, até um artigo que teve uma grande repercussão, escrito quando perdi minha espo
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Conversas com Filósofos Br.isileiros
sa, em que tratei da problem ática da m orte. No meu modo de entender, a questão se põe da seguinte maneira: há muitos cam inhos para a fé. Segundo a filosofia tra dicional, com o a escolástica, por exem plo, a razão em si mesma já é bastante para se chegar à fé, com a prova da existência de Deus, da im ortalidade da alm a e assim p or diante. Eu entendo que a fé pode ser atingida p or outras vias, com o, p or exem plo, a do am or. Em lugar de dizer “creio, logo existo” , posso dizer “creio, logo Deus é ” , ou então “am o, logo Deus é ” . São cam inhos m últiplos, que não estão sujeitos a uma explicação racional, lógica, nem tam pouco lógico-dialética. M as isso não quer dizer que esses problemas não existam. O incognoscível tem sido reconhecido sempre com o algo de que se tem de falar, e até mesmo o silêncio tem alguma significação diante do incognoscível.
Como o senhor se situa em relação aos problemas de uma “mudança de paradigm a” da filosofia, de uma filosofia “pós-m etafísica” calcada na linguagem? Não estou muito de acordo com aqueles que querem esvaziar a filosofia de seu con teúdo tradicional para nos aterm os apenas aos aspectos lingüísticos. A redução da filosofia ã teoria da linguagem é um empobrecimento da filosofia. É claro que a teoria da linguagem é im portantíssim a. Eu mesmo acabei de dizer que a língua é o ponto de contato entre a natureza e a cultura, é o ponto em que o natural se converte em cultural. É onde se encontra a raiz de tudo, com o, por exem plo, no m om ento em que o homem fala, o homem canta, e, cantando, surge o estético. Q uer dizer, a fala, a linguagem está na raiz de tudo, tanto da beleza com o da verdade. M as isso não quer dizer que devam os ficar adstritos ao conhecim ento da linguagem e, bem mais do que isso, à teoria da argum entação, da com unicação. A com unicação é a pala vra de ordem contem porânea. N ão há dúvida nenhum a de que nós estamos cada vez mais enriquecidos do poder de com unicar. Penso, porém , com o A pel, que, ã m edida que cresce a com unicação, cresce a ética, a responsabilidade do que se co munica e da necessidade de saber o u vir antes de falar. De m aneira que a teoria da linguagem é im portantíssim a, mas ela será só um dos tantos cam inhos do filo so far. A beleza da filosofia está nisso, no seu pluralism o, na sua m ultiplicidade de posições e de respostas que produzem sempre novos problem as. C) senhor utilizaria o conceito de “utopia " para descrever sua visão do futuro da sociedade hum ana? Em que consistiria tal utopia? N ão uso a palavra “ u to p ia” . Prefiro usar a palavra “ horizon te”. “U top ia” é uma palavra vazia de significado, mera abstração, em função do querer e da aspiração de cada um. Com o m ultiplicar-se da com unicação, form a-se um horizonte en vol vente, o “grande en volven te” a que se referia Jaspers. Esse “grande en volven te” , que abrange tudo, é que permite que tudo tenha significado. As coisas não valem somente pelo que elas são, mas também pelo m odo com o se situam aqui e agora, em determ inado m om ento. Sendo o ser hum ano um ser histórico de natureza inter subjetiva, põe-se a idéia de horizonte com o o ponto ideal que devem os alcançar, e que recua à medida que o viajo r avança. De m aneira que nunca poderem os ab ran ger o horizonte, mas também sabemos que nada poderem os ser se não tiverm os ho-
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rizonte. Essa dupla função da idéia de horizonte é a que me parece básica para uma com preensão existencial. De todas as form as existenciais a que mais me atrai é a jasperiana, exatam ente por ter ele visto o horizonte com o pontos de reflexão e de inspiração. Pensar que há algo que procuram os alcançar e que, quanto mais che gam os perto dele, mais ele se projeta para frente, significa a consciência infinita do indivíduo. O senhor acredita que há progresso na história? O progresso é uma idéia relativa. É claro que, se perguntarem se há progresso no plano da com unicação, a resposta é afirm ativa. M as progresso é uma expressão aberta. O que nós podemos dizer é que o hom em avança e vai conseguindo sempre novas soluções. M as a ciência nos dem onstra que, toda vez que ela atinge uma so lução, coloca no lugar dela um novo problem a. Não im porta que haja retrocesso. A s vezes, vo ltar a certos pensadores, com o, p or exem plo, a Platão, significa um avanço im enso; v o ltar a A ristóteles pode signi ficar uma conquista. De maneira que o problem a do espaço e do tem po tem que ser levado em conta. O tem po cultural não é igual ao tem po cronológico, ao tem po do relógio. Cada época vê Platão a seu m odo. É possível que hoje estejamos vendo Platão m elhor do que os gregos.
Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos como riscos am bientais globais, ameaças de desintegração social emlarga escala e alienação cultural em massa. Como o senhor vê tais p ro blemas? Essa questão é mesmo uma questão de fecho, de conclusão, porque é o problem a que atorm enta a hum anidade. Enquanto atingim os o m áxim o de expressão cien tífica, ao mesmo tempo nos vem os diante da m áxim a expressão de violência. A vio lência sempre existiu na história e sempre se procurou con trolá-la, mas hoje pouco têm podido as leis, as regras jurídicas, de m aneira que o m undo de hoje me a to r menta. Eu sou um hom em preocupado com o toda a gente. V ivo em perene p reo cupação. Preocupação com igo, com os que me cercam , com o p róxim o, sem saber com o é que vam os superar essa crise. Disseram que é um problem a puramente econôm ico, mas não o creio. São p ro blemas que transcendem o econôm ico e que revelam bem a fase de transição em que nós estam os. Eu não sou m ilenarista, mas o fato de estarm os term inando um milênio num m undo de preocupação infinita dem onstra que algo há de obscuro em tudo isso. A cho que é difícil d ar uma resposta a essa pergunta sobre o destino hu m ano no m om ento atual. A única esperança é saber que ao longo da história tive mos m omentos iguais e eles foram superados. N ão tenho nenhuma perspectiva com relação ao fim próxim o da violência. O im portante é que o homem de boa fé acre dite em si mesmo e procure esparram ar o exem plo da com preensão, porque a crise é fundam entalm ente de ordem m oral. É som ente através da com preensão espiritual que poderem os vencer uma época trágica com o esta que estam os vivendo.
Quais seriam os instrumentos dessa reforma interior do homem?
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Conversas com Filósofos Brasileiros
A través de um diálogo universal, que está sendo necessário. Ainda há pouco se fa lou do Estado, ora, o Estado também tem uma função cultural e ética, cooperando para o entendim ento universal. Sobretudo quando verificam os que as Igrejas estão, às vezes, esquecidas da sua função fundam ental, pensando no social apenas, qu an do se esquecem de que o seu problem a é o problem a espiritual. E no m istério que talvez esteja a solução para a verdade. De maneira que esperamos que surjam inicia tivas de corporações, de grupos hum anos, no sentido da “ revolução m o ra l” neces sária. Porque não bastará o Estado, não bastará a Igreja. É um dever coletivo, dc todos, para o esclarecim ento da opinião pública. E, para isso, é preciso uma c o rre ção ética dos meios de com unicação. Tenho p avo r da televisão, com a sua força m odeladora da opinião pública, muitas vezes feita apenas com a preocupação do populisme), daquilo que tem repercussão im ediata e fascinante. Tenho a im pressão de que a responsabilidade dos meios de com unicação é m uito, muito grande, imensa, e nós irem os chegar ao ponto de reclam ar um controle. O term o poderá parecer um pouco forte, mas uma certa “ polícia da com unicação” será necessária diante dos abusos enormes que se verificam . Essa idéia de que os próprios órgãos televisivos e de com unicação colocarão para si próprios os seus limites, parece-me otimista de mais. É necessário com binar a boa vontade dos com unicadores com a boa vontade do poder público. O senhor acabou de dizer que talvez o mistério seja o caminho para a
verdade, e eu então perguntaria o seguinte. Como o senhor escreve em Introdução à Filosofia, a M etafísica é a “parte prim eira da Filosofia, empenhada em fundar o conhecimento do universo e da vid a”, sendo que a reflexão metafísica tem um caráter conjetural (“A M etafísica, dizemos nós, é conjetural, e, mais ainda, uma conjetura inevitável”). A inda em Introdução à Filosofia, o senhor atribui um caráter p arad o xal ao pensamento conjetural, pois este projeta algo “que emana indi retamente da experiência, mas que também obedece à vis atractiva de algo que a transcende”. O que confere consistência a esse paradoxo e como ele se estrutura? Não creio que seja possível falar em consistência, porque a consistência é uma pa lavra de natureza rigorosam ente positiva. Tenho a im pressão de que as afirm ações referidas se põem por si mesmas. Elas se justificam pelo simples aparecer, são res postas a perguntas que surgem a qualquer hom em, mesmo aos mais infensos à .Me tafísica. M esm o aquele que se apega de corpo e alm a ao que é científico, em um certo mom ento depara-se com o inexplicável, com o incognoscível, e não pode deixar de reconhecer que “algo há p or trás da energia”, com o dizia Einstein. Enquanto houver esse estado de espírito, haverá M etafísica, com o conjetura e conjetura inevi tável, que não se confunde com p arad oxo, no sentido de argum ento con trad itório.
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Principais publicações: 1940 1949 1953 19 6 3 19 6 8 1968 19 7 7 1980 1983 1987 1987 1988 1990
Fundamentos do Direito (São Paulo: Revista dos T ribunais, 19 7 2 ) ; Doutrina de Kant no Brasil (esg.); Filosofia do Direito (São Paulo: Saraiva); Pluralismo e liberdade (São Paulo: Saraiva); Teoria Tridimensional do Direito (São Paulo: Saraiva); O Direito como experiência (São Paulo: Saraiva); Experiência e cultura (Barcelona/São Paulo: Grijalbo/Edusp); O homem e seus horizontes (São Paulo: C onvívio); Verdade e conjetura (Rio de Jan eiro: N ova Fronteira); Memórias, vol. 1: Destinos cruzados (São Paulo: Saraiva); Memórias, vol. 2: A balança e a espada (São Paulo: Saraiva); Introdução à Filosofia (São Paulo: Saraiva); Nova fase do Direito moderno (São Paulo: Saraiva).
Bibliografia de referência da entrevista: A pel, K.-O . Transformação da filosofia, Loyola. Barreto, T. Estudos alemães. Record. ___________ . Estudos de Direito, Record. C osta, N. A. C. da. Ensaio sobre os fundamentos da lógica, Hucitec/Edusp. ___________ . O conhecimento cientifico. Discurso Editorial. Descartes, R. Meditações, coleção Os Pensadores, A bril C ultural. H artm ann, N. Principes d ’une métaphysique de la connaissance, Paris: Aubier. Hegel, G. W . F. Ciencia de la Lógica, Buenos Aires: Solar. ___________ . Estética, Lisboa: Guim arães. ___________ . Princípios da Filosofia do Direito, M artins Fontes. Husserl, E. Investigações lógicas, coleção Os Pensadores, A bril C ultural. ___________ . Meditações cartesianas. Porto: Res. Jaspers, K. Introdução ao pensamento filosófico, C ultrix. K ant, I. Crítica da razão pura, coleção Os Pensadores, A bril C ultural. ___________ . Crítica da razão prática, Lisboa: Edições 70. ___________ . Crítica da faculdade do juízo. Forense. M a rx , K. Manuscritos econômico-políticos, Lisboa: Edições 7 0. Paim, A. História das idéias filosóficas no Brasil, Barcelona: G rijalbo. Popper, K. A lógica da pesquisa científica, Edusp. R adbruch, G. Filosofia do Direito, C oim bra: A rm énio Am ado. Scheler, M ax. Ética, M adri: Revista de Occidente.
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HENRIQUE DE LIM A V A Z ( 1 9 2 1 )
Henrique Cláudio de Lima Vaz nasceu em 1 9 2 1 , em O uro Preto (M G ). Sa cerdote jesuíta, graduou-se em Teologia e obteve o título de d ou to r em Filosofia pela Universidade G regoriana de Rom a. Foi professor do Instituto Santo Inácio, em N ova Friburgo (RJ), até 1 9 6 4 , quando se retirou para Belo H orizonte (M G) e in gressou na U niversidade Federal de M inas Gerais, da qual é professor titu lar ap o sentado. É editor da revista Síntese. Esta entrevista foi realizada em outubro de 19 9 9 .
Goethe dividiu a vida de seu personagem W ilhelm M eister em dois romances, Os anos de aprendizado e Os anos de peregrinação. No p ri meiro, o foco está posto na form ação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que o senhor nos falas se de sua form ação intelectual? Tam bém eu, com o qualquer professor, passei por duas fases: a form ação e a ativi dade docente. M inha form ação obedeceu a um padrão tradicional. Estudei filoso fia de acordo com a sistem atização aristotélico-tom ista, vigente naquela época nas faculdades eclesiásticas. Tendo entrado para a C om panhia de Jesus em 1 9 3 8 , fui aluno da Faculdade de Filosofia dos jesuítas, então sediada em N ova Friburgo, Rio de Janeiro. A form ação aristotélico-tom ista foi de grande utilidade para mim. Le vou-m e a um prim eiro contato e a uma razoável fam iliaridade com os textos clássi cos, os latino-m edievais, sobretudo Tom ás de A qu in o, e os gregos, sobretudo A ris tóteles. Deu-me tam bém uma visão orgânica da Filosofia, pois o nosso curso era organizado sistem aticam ente, com preendendo as disciplinas: lógica, teoria do co nhecim ento, filosofia da natureza, antropologia filosófica, teologia natural e ética. Em 1 9 4 5 , logo após o térm ino da guerra, fui destinado a prosseguir os estu dos na Europa, na U niversidade G regoriana de R om a. Ali recebi o licenciado em Teologia e iniciei o curso de doutourado em Filosofia. Tive a sorte de ter nesse curso excelentes mestres: F. C opleston, au tor de uma conhecida H istória da Filosofia em 6 volum es, Johannes B. Lotz, professor de M etafísica e ex-discípulo de Heidegger, René x\rnou, especialista em PIotino e na filosofia grega, e que foi meu diretor de tese. M inha tese de dou tou rad o versou sobre a dialética e a intuição nos diálogos platônicos da m aturidade. Foi escrita em latim , a língua que me era mais fam iliar entre as adm itidas para a redação da tese. Permaneceu inédita, mesmo porque a sua publicação dificilm ente encontraria editores no Brasil de 19 5 4 . M eus anos goetheanos de peregrinação com eçaram p or volta de 19 5 3 . Um pequeno roteiro de peregrino: permaneci dez anos com o professor em N ova Fri burgo, em seguida vim para Belo H orizonte, depois para o Rio de Jan eiro e nova-
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mente Belo H orizonte. M inha saída de N ova Friburgo, em 1 9 6 4 , esteve ligada aos acontecim entos políticos daquele ano e aos contatos que então m antinha com a Juventude U niversitária C atólica [JUC] e, posteriorm ente, com a A ção Popular na sua prim eira fase. V im para Belo H orizonte, não só p or ser a sede da província jesuítica à qual pertencia, mas também p or encontrar aqui um ambiente favorável no D epartam ento de Filosofia da FAFICH [Faculdade de Filosofia e Ciências H u manas! da UFM G, no qual fui acolhido pelo então diretor, professor A rth u r Versiani Velloso. Homem independente e acima das conveniências políticas do m om ento, o professor V elloso recebeu-me não obstante as suspeitas que cercavam meu nom e. De resto, durante os 2 2 anos de perm anência na UFM G meu trab alho intelectual não sofreu nenhum a restrição e, ao con trário , recebeu todos os estím ulos. As con vocações que recebi durante os prim eiros anos para com parecer ao D ops, ã Polícia Federal ou ao Com ando M ilitar em nada interferiram na minha tarefa de professor. Iniciei meu m agistério na FAFICH dando cursos no cam po da história da fi losofia e, mais tarde, ministrei as disciplinas antropologia filosófica e ética. Em 1 9 7 0 meu trab alho intelectual recebeu um novo rum o. N aquele ano ocorria o segundo centenário do nascim ento de Hegel. N osso departam ento com em orou essa data im portante e essas com em ora ções levaram -m e a uma aproxim ação m aior com a filosofia hegeliana. A té então meu conhecim ento de Hegel estivera condicionado ã leitura de M arx nos tempos da JU C , tendo em vista a poderosa atração do m arxism o sobre a juventude univer sitária da época. O encontro, ou reencontro, com Hegel em 1 9 7 0 fez-me perceber uma p rofunda afinidade das minhas preocupações filosóficas com alguns aspec tos do pensam ento hegeliano. A partir de então dediquei-m e, juntam ente com um grupo de alunos e alguns professores, a um estudo sistem ático e a uma leitura li near dos textos principais de Hegel. Esse estudo passou a fazer p arte da área “Idealism o alem ão” no C urso de P ós-G raduação quando este foi instalado, em 1 9 7 2 . Percorrem os a Fenometiologia do espírito, a Ciência da Lógica, a Enciclo pédia das ciências filosóficas e a Filosofia do Direito. C) estudo dos textos hegelianos dilatou meus horizontes filosóficos, ainda circunscritos basicamente ao uni verso aristotélico-tom ista. Essa ab ertura se deu sobretudo na direção do m étodo com uma m elhor inteligência da D ialética, na direção dos problem as da história e da sociedade, particularm ente do Estado m oderno e sobretudo na direção do in tento hegeliano que mais me seduziu: a releitura da metafísica clássica nos q u a dros da Ciência da Lógica. As vicissitudes da minha peregrinação (para ficar fiel ã história de W ilhelm M eister) a partir da década de 7 0 foram tranqüilas. M eu problem a com os órgãos de segurança estava resolvido com o habeas corpus que havia recebido do Superior T ribunal M ilitar em 1 9 6 8 . Em 1 9 7 5 fui para o Rio, cham ado a ensinar novam ente na Faculdade de Filosofia dos jesuítas, que para ali se transferira. C ontinuei, no entanto, meu m agistério na UFM G, vindo todo mês a Belo H orizonte para dar mi nhas aulas. Na U FM G permaneci até me aposentar, em 1 9 8 7 . Em 1 9 8 2 , a Facul dade dos jesuítas, tam bém peregrinante, veio fixar-se em Belo H orizonte para inte grar-se ao Centro de Estudos Superiores (CES) do Instituto Santo Inácio. Assim voltei à minha cidade de adoção, pois sou, com muito orgulho, n atu ral de O uro Preto.
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Henrique de Lima Vaz: “A história tem seus desertos, assim como a geografia. Um dos de safios mais antigos das civihzaíjões é ousar a travessia de desertos, seja geograficamente, seja his toricamente, desertos que muitas vezes o ser humano inesmo criou”.
Em artigo de 19 6 3 (“La jeunesse chrétienne à l ’heure des décisions”), o senhor escreveu: “£ necessário inicialmente que o leitor europeu se deixe convencer: é verdadeiram ente de uma hora decisiva que se trata. A fase pré-revolucionária parece já tocar seu fim na m aioria das na ções da América Latina e são agora as correntes revolucionárias irresis tíveis e profundas que levam esse continente imenso e essas populações que trazem a etiqueta de cristãs para destinos desconhecidos. Eis o que parece evidente e é preciso que os ocidentais da Europa e da América do Norte se decidam a olhar de frente essa realidade, pois é também sua própria sorte que está em jo go ”. Como o senhor avalia hoje essa caracterização form ulada no calor da hora no início da década de 60? Trata-se, de fato, de uma avaliação influenciada pelo clima da época. Era uma hora de efervescência político-social, de polarizações e de engajam ento, com o se dizia então. Esse clima fazia-se sentir particularm ente na juventude universitária e dele participavam os militantes da JU C . Eu era relativam ente jovem e minha visão esta va condicionada pela exacerbação ideológica que a todos en volvia, esquerda e d i reita, e esse condicionam ento refletia-se também na minha linguagem. Nossa an á lise, hoje devem os reconhecê-lo, estava ingenuamente equivocada no que diz res peito às forças em con fro nto. Isso ficou p ro vad o nos acontecim entos de 6 4 , e o radicalism o da reação m ilitar m ostrou que também a direita estava persuadida da iminência de uma revolução social conduzida pelos com unistas. E nesse contexto que deve ser entendido meu texto citado.
Na década de 1960, o senhor foi uma figura de referência para os mi litantes cristãos de esquerda, tendo elaborado um program a de refle xão que conta com textos capitais, como “Cristianismo e consciência histórica ”, de 19 6 1. Como o senhor vê, hoje, os rumos que tomaram as organizações católicas de esquerda após o golpe de 64? Depois da minha vinda para Belo H orizonte, em princípios de 1 9 6 4 , meu trab alho com a JU C cessou e não tive condições para acom panhar de perto os rum os segui dos pelas organizações católicas. Entre aquelas com as quais tivera um contato maior, a JU C deixou de existir em 1 9 6 5 e o M ovim en to de Educação de Base [MEB] aca bou integrado no .Ministério da Educação. Os texros a que a pergunta se refere fo ram elaborados numa perspectiva de reflexão teórica de caráter geral e não se refe riam diretam ente à situação brasileira. Eram roteiros dc reflexão, não de ação, e a sua contribuição situou-se, p ortanto, no cam po das idéias.
Num texto de 1984, o senhor afirm a ter tido alguma participação “no que se poderia denom inar a pré-história da Teologia da Libertação e que vai dos fins da década de 5 0 até Medellín (19 6 8 )”. Em que medi da a Teologia da Libertação significou uma ruptura em relação ao pr gram a de reflexão que o senhor propôs? Como o sen h o ra avalia hCham o de pré-história da Teologia da Libertação o período de polarizai gica e engajam ento político descrito até aqui e durante o qual as orga Igreja reunidas na A ção C atólica, sobretudo a JU C , passaram a part^- S .r.
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mente da atividade s<')cio-política e a definir-se em face das suas expressões ideoló gicas. Para essas organizações tratava-se, então, de uma atividade sob a responsa bilidade imediata do laicato, em bora ligada estruturalm ente à hierarquia eclesiás tica. Após 19 6 4 , no clim a de repressão cada vez mais severa, esse tipo dc atividade tornou-se inviável. Segundo uma análise que julgo plausível, uma das conseqüên cias da Conferência de .Vledellín. eni 1 9 6 8 , foi a passagem de uma m ilitância leiga relativam ente independente, própria da Ação C atólica, e que era alvo fácil da re pressão política, para um tipo de atividade sob a tutela imediata da Igreja e sob sua responsabilidade, o que assegurava um espaço de segurança relativa ao trabalho que passou a denom inar-se "p astoral” . Do ponto de vista da minha análise, a Te ologia da Libertação, que surge naqueles anos, veio oferecer a esse novo estilo de pastoral um horizonte teórico e, se assim se pode falar, um instrum ento ideológico que se pretendia eficaz. C om o o nome indica, teoria e ideologia permaneciam den tro do âm bito da reflexão eclesial; pretendiam ser uma teologia. Nesse sentido ela situava-se num plano distinto do que fora nossa reflexão pré-M edellín, que trab a lhava com categorias filosóficas e, explicitam ente, com análises sócio-econôm icas. Na minha opinião, o problem a inicial da Teologia da Libertação, e que perm ane ceu ao longo da sua história, form ulava-se em term os de uma situação teórica am bígua; com o fazer da teologia o instrum ento de uma práxis social e, eventualm en te, política, cujo objeto exigia um tipo de análise econôm ica e sócio-política que a teologia, por definição, não pode fornecer? Foi a p artir desse problem a que, a meu ver, form aram -se diversas correntes dentro da Teologia da Libertação, tendo algu mas delas optado por uma cham ada “análise m arxista” então vulgarizada na A m é rica Latina. Tratei desse tema num texto intitulado “ Cristianism o e u to p ia”, pu blicado com o “A nexo V ” no livro Escritos de Filosofia I (São Paulo, L oyola, 19 8 6 , pp. 2 9 1 -3 0 2 ) . No fundo, foi essa situação teórica ambígua que me m anteve afasta do da Teologia da Libertação. O debate cristão das décadas de 19S 0 e í 9 6 0 nos parece m arcado por autores como J. M aritain, Teilhard de Chardin e E. Mounier. Como o senhor caracterizaria as diferenças que separam a sua reflexão da de senvolvida po r esses importantes autores? Jacques .VIaritain foi talvez o intelectual católico mais influente do seu tem po. O valo r e im portância do seu pensam ento podem ser medidos pelo fato de que essa influência continua viva, com o atestam os Institutos Jacques M aritain em vários países do m undo, inclusive no Brasil, fundado em São Paulo pelo saudoso Franco .Víontoro. Foi um filósofo tom ista rigoroso e, ao mesmo tem po, aberto a rodos os horizontes da cultura. Tive o privilégio de encontrar-m e com ele em Roma quando era em baixador da França junto ao V'aticano. Para nós, na década de 6 0 , o aspecto discutível do pensamento político m aritaineano era a idéia de uma nova sociedade vitalm ente cristã, uma nouvelle chrétienté, mas que guardava vários traços de uma imagem até certo p onto idealizada da cristandade m edieval. D iferente era nossa posição diante de Teilhard de ('hardin. Do ano da sua m orte, 19 5 5 , até mais ou menos 19 6 5 , ã medida que eram publicadas as suas obras, Teilhard conheceu uma enorm e audiência na França e em quase todos os países. Seu pensam ento exercia
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uma grande atração por representar uma tentativa audaciosa de síntese que abrangia ciência — ele era um paleontólogo dc profissão — , filosofia e religião. Esse pensa m ento era caracterizado por um grande otim ism o cósm ico e histórico regido pela idéia de uma evolução universal, p or uma visão de extraord in ária am plitude e pelo lugar central que atribuía ao C ristianism o na história e no destino final da hum ani dade. Era, p or outro lado, transm itido num estilo vibrante, de grande intensidade poética, que prendia e seduzia o leitor. Nossa geração leu avidam ente Teilhard e eu mesmo li praticam ente todas as suas obras. M as minha form ação estritam ente filosófica e os problem as de natureza especificamente filosófica que me ocupavam caracterizavam um estilo de pensamento diferente do pensamento teilhardiano. Creio que a presença dc M ounier, cujos livros eram também leitura quase obrigatória, foi, antes de tudo, a presença de um m odelo. Ele soube unir reflexão e ação sob a inspiração de uma doutrina ao mesmo tem po com unitária e personalista, e aqui residia, parece-m e, o segredo da atração p or ele exercida sobre a juventude univer sitária cristã. No ensaio “O Absoluto e a H istória”, que encerra o livro O ntologia e H istória, de 19 6 8 , a sua reflexão sobre o homem tem como ponto de partida e eixo central a noção de consciência. J á na A ntropolog ia filo sófica, de 19 9 3 , essa noção não parece ter uma importância tão gran
de. O senhor diria que há a í alguma guinada conceituai relevante? Convém dizer inicialmente uma p alavra sobre a origem do livro Ontologia e His tória. Sua publicação deve-se ã iniciativa de alguns estudantes dominicanos que então trabalhavam na Livraria Duas Cidades. Reúne artigos publicados entre 19.53 e 19 6 3 . C om o o título indica, alguns desses artigos tratavam de problem as de O ntologia (1"' parte), outros de problem as de filosofia da H istória (2'* parte). O capítulo “ O A bsoluto e a H istória” foi escrito ad hoc, com o fecho do livro. Na época trab alh á vam os intensamente com a categoria de “consciência h istórica” , que é o conceito central da segunda parte do livro. A ênfase na noção de “consciência” com o prin cípio provinha também do confronto crítico com uma certa concepção m arxista da cham ada “consciência-reflexo” . De Ontologia e História a Antropologia filosófi ca há um bom cam inho andado. Para mim o clim a intelectual havia m udado e o diálogo com Hegel tornara-se p rio ritário. Na Antropologia filosófica a noção de consciência cede lugar ã noção mais abrangente do Eu (em sentido fenomenológicodialético, não psicológico) enquanto m om ento m ediador entre o que nos é dado com o natureza e o que é p or nós significado com o forma. Em outras palavras, o Eu opera no ser hum ano a passagem dialética entre o que ele simplesmente é e a sua auto-expressão, ou seja, a significação com que ele se anuncia na sua identida de propriam ente hum ana, na sua ipseidade, para fa lar com o Ricoeur. O conceito de expressividade, cuja origem se deve a J. Ci. H erder e foi retom ado por Hegel e recentemente posto em circulação por Charles T aylo r, é o conceito propriam ente fundacional da Antropologia filosófica (ver vol. 1, pp. 16 2 -7 ). A idéia de consciên cia reaparece aqui com o uma das vertentes constitutivas da categoria do espírito {ibid., pp. 2 1 1 - 2 ) , integrada na dialética mais am pla da auto-expressão do ser hu m ano com o espirito.
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Seria possível fa la r de uma “filosofia brasileira”? Como o setthor vê as relações entre a filosofia e a cultura brasileira? Tratei desse tema em artigo intitulado “ O problem a da filosofia no Brasil”, na re vista Síntese 3 0 ( 1 9 8 4 , pp. 11-2 5 ). Inspiro-me ali num topos hegeliano conhecido. filosofia não nasce por geração espontânea no seio de um m undo cultural. Uma cultura nacional não produz filosofia por decreto. O nascimento da filosofia obedece a condições culturais que foram justam ente descritas por Hegel e que se traduzem por uma ruptura no m undo da cultura, até então relativam ente hom ogêneo no que diz respeito às suas certezas fundam entais. O caso paradigm ático é o do nascimento da filosofia na Grécia do século V’l a.C ., am plam ente estudado. A filosofia passou a ser uma prática cultural que vem caracterizando a história da cultura do Ocidente nesses 2 6 séculos que nos separam da sua origem. Nas sociedades ocidentais trad i cionais, a filosofia passou a ser uma form a privilegiada de e.xpressão dos problem as da cultura, e foi assim que veio a tornar-se com o que o centro da enciclopédia dos saberes superiores. Nos países periféricos com o o Brasil a filosofia não podia de início articular-se organicamente com a cultura, que não com portava ainda esse tipo de ex pressão da sua vida, ainda em estágio pouco desenvolvido. Nessa espécie de pré-história, a filosofia entre nós era apenas um ornam ento literário ou objeto de curiosida de de alguns intelectuais. C reio que essa situação começa a m udar, juntam ente com as mudanças da p róp ria sociedade brasileira, a p artir da década de 2 0 . Hoje a p rá tica da filosofia parece integrada no exercício norm al da nossa cultura superior, isso porque sociedade e cultura atingiram um nível de desenvolvim ento e com plexidade que oferece à reflexão filosófica um am plo cam po temático. No artigo a que me refe ri, enum ero três desses temas que com portam e, mesmo, exigem um tratam ento fi losófico. O prim eiro é o tema da tecnociência, im plicado no desenvolvim ento cien tífico e tecnológico da sociedade. A reflexão filosófica sobre a ciência e a técnica sob o ponto de vista lógico-epistemológico, ético e político responde a uma exigência do estágio histórico da nossa sociedade. Em segundo lugar cito o tema da sociedade e do Estado, ou seja, os problem as da filosofia social e política que respondem, sem dúvida, a situações concretas vividas pela sociedade brasileira nessas últimas décadas e que oferecem um conteúdo real ao exercício da reflexão filosófica entre nós. Em terceiro lugar menciono os temas éticos propriam ente ditos, ou seja, que dizem respei to a fins, valores, norm as de conduta, em suma, a form as de agir especificamente éticas. C om o é notório, as sociedades ocidentais vivem , nesse fim de século, uma ge neralizada crise ética que se traduz em form as anômicas de com portam ento, num permissivism o sem limites de atitudes e condutas, denotando uma grave perda de refe rências éticas nos indivíduos e na sociedade com o um todo. Esse tipo de crise recla ma o exercício de uma reflexão centrada sobre o problema dos valores e sobre a idéia de uma práxis correspondente a uma escala dc valores racionalm ente estabelecida. Essa a lição que nos ficou da crise de Atenas no século V a.C., e da iniciativa socrática ao fundar a Ética com o ciência. Mutatis mutandis nossa situação tem muitas an alo gias com a situação da Atenas de Sócrates, e a reflexão sobre os problem as éticos é, para os nossos filósofos, com o o foi para Sócrates, um im perativo eminentemente ético. Podemos concluir que a filosofia no Brasil de hoje não é um hobby para intelec tuais. É uma form a im portante e mesmo necessária de participação social e política.
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o senhor nos mostra que a filosofia não pode estar entre os hens de con sumo de massa, corriqueiros na nossa sociedade. No entanto, para o senhor, a posição da filosofia no interior da instituição universitária é paradoxal, pois a universidade está ela própria irremediavelmente vin culada à cultura de massa. Significa isso, na sua visão, que a filosofia em sentido pleno desapareceu ou está em vias de desaparecer? Tratei do problem a da relação entre Filosofia e U niversidade na conclusão de uma aula inaugural no IFAC, da U niversidade Federal de O uro Preto (ver “C ultura e F ilosofia”, Escritos de Filosofia 111, São Paulo, L oyola. 1 9 9 7 , pp. 8 1 -9 9 ), e na qual a pergunta se inspirou. Ali distingo dois aspectos da presença da Filosofia na U ni versidade: o aspecto institucional, que assegura a legitimidade social da prática da filosofia com o fazendo parte da enciclopédia dos saberes superiores reconhecidos pela instituição universitária; e o aspecto crítico, que, de algum a m aneira, confere à filosofia um lugar singular dentro da universidade, na medida em que ela se cons titui, pela sua própria natureza, com o instância crítica na qual são — ou devem ser — perm anentem ente avaliados os fins e o desem penho da Universidade com o ge radora de cultura. F.ssa atividade da filosofia, essencialmente o ato mesmo de filo sofar, não é regida pelos parâm etros de utilidade social imediata como o são os outros saberes universitários. M as é nessa gratuidade do filosofar que reside sua significa ção, inclusive social. Com efeito, a cultura tem uma dim ensão de livre criação que tem em si mesma sua razão de ser. Na U niversidade, assim penso, essa dim ensão está representada principalm ente pela Filosofia — e pelas Artes.
Que conceito(s) da sua reflexão o senhor destacaria como o(s) mais representativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que nos contasse como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje. Eis uma pergunta que dificilm ente poderá ser respondida em poucas palavras. Ini cialmente devo dizer que não acredito numa filosofia, no fundo, de cunho empirista, que seja apenas um com entário, por mais sofisticado que seja, dos eventos de uma realidade sempre em mudança, sejam esses eventos de natureza político-social, cien tífica, ou mesmo eventos de alguma moda cultural. Ligo-me a uma tradição para a qual a filosofia eleva-se, com o que p o r um m ovim ento inato à sua natureza, sobre o tran sitório e o événementiel t procede ã busca de princípios que são também fun damentos. Em outras palavras, só entendo a filosofia com o “ fundacionista”, para usar um term o hoje em moda. Nesse sentido, os conceitos representativos da m i nha posição filosófica, ao longo da sua evolução, são conceitos “ fundacionais", se assim posso falar. Eis alguns: inicialmente o conceito de “ ato de ex istir” (esse) re cebido de Tom ás de A quino e de alguns dos seus com entadores recentes (E. Gilson e outros), e que para mim é a pedra angular da .Metafísica, ã qual tenho voltado em textos recentes. Em seguida citarei o conceito fundam ental da A ntropologia fi losófica, ou seja, o “ato de e x istir” do ser hum ano enquanto capaz de significar-se a si mesmo ou do ser hum ano enquanto expressividade. A M etafísica e a A n tro p o logia filosófica abriram -m e o cam inho para a Ética, disciplina que tenho ensinado nos últim os anos. O conceito fundam ental aqui, recebido de Platão e A ristóteles, é o conceito de Bem, que se apresenta com o conceito m etafísico, sendo um conceito
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transcendental coextensivo com o ser, e com o conceito an tropológico, definindo com o Fim a estrutura tcleológica do ser hum ano com o ser que se autodeterm ina para o Bem. Esses dois conceitos fundam entais, antropológico (Eu com o expressi vidade) e ético (Bem), guiaram -m e na redação dos dois textos. Antropologia filo sófica (2 vols.) e Introdução à Ética filosófica (2 vols.), que publiquei recentem en te. Penso que os conceitos que cham o “ fundacionais”, presentes já desde o início no núcleo básico das idéias filosóficas nas quais fui fo rm ad o , foram sendo e x plicitados e adquirindo uma estrutura form al mais definida ao longo do meu m a gistério e do trab alh o da p rep aração dos meus cursos. Aqui está realm ente o roteiro da form ação das minhas idéias filosóficas fundam entais.
Segundo sua opinião, a enorme e crescente produção bibliográfica no campo da Ética surge como contrapartida ao relativismo universal e ao hedonismo que não conhecem limites e que são “os padrões de a v a liação do comportamento hoje dominantes e cujos efeitos devastado res na vida dos indivíduos e das sociedades nos surpreendem e inquie tam ”. Na sua visão, quais as causas que nos trouxeram a tal situação? Segundo uma análise que me parece fundam entalm ente correta, na raiz da situa ção acima descrita está o fenôm eno, já entrevisto p or Bergson, de um desequilíbrio ou descom passo entre o que cham am os a produção m aterial da sociedade e seu universo sim bólico. Temos de um lado o crescim ento vertiginoso da tecnociência, e, na sua esteira, a produção incessante e exponencialm ente crescente de objetos que passam a ocupar quase totalm ente o m undo humano, tornando-o cada vez mais um m undo de artefatos. A essa invasão do artificial corresponde, nos indivíduos e na sociedade, o aparecim ento de mecanismos sempre mais aperfeiçoados de utili zação. O útil erige-se em categoria prim eira e quase exclusiva da prática social. O ra, o útil não pode, p or definição, sendo condicionado pelo objeto por ele visado, de sejado ou possuído, presidir ao universo sim bólico do ser hum ano onde estão pre sentes fins, norm as e valores irredutíveis ao critério da simples utilidade. Negá-lo seria fazer do ser hum ano apenas o sujeito inquieto de desejos sem fim , ap rision a do ã lógica do consum o e da satisfação e sem outra finalidade superior na sua exis tência. Regido pela categoria do útil, o universo sim bólico no qual se exprim em nossas razões de viver seria apenas a versão ideológica do universo m aterial dos objetos oferecidos ao consum o. E essa a face mais visível do nosso m undo “g lo balizado” e é para ela que se voltam as reflexões de filósofos, m oralistas e de todas as pessoas lúcidas que se preocupam com o fu tu ro da civilização. Essas reflexões são necessariamente de natureza ética e daí a atualidade onipresente da Ética.
Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade? A permanência dessa relação está atestada pela im portância da filosofia das ciências no currículo das disciplinas filosóficas e pelo fato de que os mais conhecidos filó sofos da ciência se encontram entre os grandes nomes da filosofia contem porânea. A relação filosofia-ciência adquiriu nova feição com relação ao que fôra nos tem
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pos pré-kantianos, quando o positivism o clássico evoluiu para a Epistemologia, nos fins do século passado, desta procedendo o im pulso que levou ao desenvolvim ento da Lógica, da teoria dos fundam entos da M atem ática, em suma, de todo um es pectro de metaciências que mantêm estrita relação com a filosofia.
Desde Hegel, no séctdo XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda de. Como o senhor se posiciona em relação a esse debate? D evo dizer inicialmente que a Estética e a Filosofia da Arte não entram no meu campo de estudos e interesses, mesmo porque não reconheço em mim quaisquer dotes a r tísticos. As Lições de Estética perm aneceram fora da minha exp loração sistem áti ca da o bra de Flegel. No entanto creio ter fundam ento a visão hegeliana sobre o destino da arte nas nossas sociedades. Flá uma diferença radical entre o estatuto social da produção artística nas sociedades antigas e o que é, hoje, o m undo das artes. A arte antiga estava organicam ente integrada a algum as das necessidades sociais básicas, a serviço, por exem plo, da religião, da política ou do prestígio social, com o no mecenatismo. A arte m oderna foi, de alguma m aneira, cooptada pelos me canismos de produção e consum o da sociedade industrial e, portan to, posta a ser viço de necessidades subjetivas do consum idor individual. Esse não é um juízo sobre o conteúdo estético da obra de arte ontem e hoje, mas sobre a sua relação com a so ciedade. Só o futuro dirá qual será a situação da arte nas sociedades do século X X I. E hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fenômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evi dente o pressuposto de um Estado N acional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violên cia. Como o senhor vê tal diagnóstico? Na sua visão, a prim azia de que parecem desfrutar as questões m orais no debate público atu al tem re lação com esse novo estatuto da política em nossos dias?
.\ pergunta refere-se a um problem a que com eçou a delinear-se nas sociedades oci dentais a p artir do século XVIII. A paz universal e perpétua implica um Estado uni versal? C om o é sabido, a dialética do Espírito objetivo em Hegel descreve o desen volvim ento do Espírito na história, culm inando no Estado N acional pós-revolucionário sob a form a da m onarquia constitucional. Daqui as reticências hegelianas com relação a um Estado universal. A história recente parece não d ar razão a Hegel, no sentido de que vem os acum ularem -se os fatores que apontam na direção de um Es tado m undial e que dizem respeito sobretudo à crescente interdependência entre as nações e ao correspondente enfraquecim ento do perfil institucional das identida des nacionais. C om o conseqüência, é natural que se m ultipliquem insrãncias ju rí dicas supranacionais, com o vem os atualm ente, e que a adm inistração da justiça e o exercício legítimo da coação dei.xem de ser privilégio do poder nacional. T anto mais que aspirações de conteúdo ético indiscutível, com o as que se referem aos di reitos hum anos, à justa distribuição dos recursos naturais, à participação eqüitativa nos benefícios do progresso e outras, postulam organism os supranacionais que
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velem sobre a eficaz satisfação dessas aspirações. Eis porque, segundo me parece, a discussão sobre os problem as políticos dc uma possível com unidade mundial esta belecida juridicam ente em analogia com os Estados nacionais dá prim azia atu a l mente aos problem as ético-jurídicos. De qualquer m aneira penso haver ainda um longo cam inho a andar para chegarm os a um Estado mundial autêntico, se ele um dia vier a realizar-se. Os ensaios presentes de união das nações, com o na União Eu ropéia, dão ênfase aos laços econôm icos. Será esse o m elhor com eço para se che gar a um Estado supranacional eticamente saudável? As avaliações sobre o relativam ente longo pontificado de João Paulo II
variam entre dois extremos. De um lado temos uma avaliação segun do a qual João Paulo II teria salvado a Igreja de um processo destruti vo de dessacralização então em curso, repondo o sagrado na devida distância exigida pela fé. De outro lado, uma avaliação oposta enten de que o pontificado de João Paulo II representou um recuo nocivo dian te do movimento em ancipador que pretendia uma sólida e saudável união de fé e política. Q ual a sua posição diante desses diagnósticos? D evo dizer, em prim eiro lugar, que não disponho da soma de inform ações neces sária para uma avaliação objetiva, em term os históricos, dos 2 2 anos desse p on ti ficado, avaliação, aliás, que deve levar em conta a personalidade excepcional de João Paulo II. Seja com o fo r, creio que a dicotom ia enunciada pela pergunta supõe uma visão simplista e, no fundo, equivocada. Com ecem os pela pessoa de Jo ã o Paulo II, um homem que reúne a herança religiosa e cultural das suas origens operárias e a fo rm ação de alto nível de um professor de Filosofia numa das mais respeitadas universidades polonesas. C om o filósofo de filiação fenom enológica (escreveu tese sobre M ax Scheler), Jo ã o Paulo II possui uma vasta cultura filosófica de conteúdo m oderno, além da cultura teológica da sua form ação eclesiástica. C om o papa, seu ensinam ento e sua ação não podem ser encerrados no dilema simplista da pergun ta. C reio que um princípio mais acertado de análise levaria a considerar o pontifi cado de João Paulo II nas suas duas faces: a face voltada para a vida interna da Igreja e a face voltad a para os problem as do m undo: ad intra e ad extra, com o se dizia no latim escolástico. Pois bem: em nenhum desses cam pos consigo ver um retrocesso. No prim eiro, o que Jo ã o Paulo II fez foi retom ar e dirigir firmemente o processo dc atualização (aggiornamento) das estruturas e da vida da Igreja iniciado pelo C o n cílio V aticano II e que fora continuado p or Paulo \T em meio a tendências desagregadoras que se m anifestavam aqui e ali. Quem vive a vida interna da Igreja sabe que não houve retrocesso a não ser, evidentem ente, do ponto de vista dos protag o nistas daquelas tendências. Com relação à sua atividade ad extra, a presença de João Paulo II no m undo do nosso tem po é, indiscutivelm ente, uma presença de e x tra o r dinária significação. Nenhum o u tro papa, talvez, esteve tão pre.sente em cam pos tão diversos da história do seu tempo quanto o atual pontífice, e provavelm ente ne nhum dos grandes atores políticos contem porâneos alcançou uma visão tão uni versal, tão rica e tão realista do nosso m undo quanto esse papa itinerante que visi tou os cinco continentes. Por o u tro lado ele é, sem dúvida, o m aior artífice do m ovim ento atual do diálogo das religiões, m ovim ento que tem não apenas uma
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significação religiosa, mas um alcance histórico de extraord in ária im portância. Em suma, Jo ã o Paulo II é uma das m aiores figuras do século X X , e assim, tenho certe za, o consagrará a história futura. O senhor nos apresenta o conflito ético como “fenômeno constitutivo do cthos”. Constitutivo a ponto de podermos afirm ar que “somente uma personalidade ética excepcional é capaz de viver o conflito ético nas suas implicações mais radicais e tom ar-se anunciadora de novos paradigmas éticos, como foi o caso na vida e no ensinamento de Buda, de Sócrates e de Jesu s”. Podemos esperar o surgimento de uma nova personalidade ética como a de Jesus? Ou nossa condição de “Antigonas” modernas veio para ficar? O fato de ser o ethos um fenôm eno histórico-social inerente à própria estrutura do grupo hum ano, impõe-lhe essa condição própria de toda realidade histórica que é estar submetida à ação corrosiva do tem po. No caso do ethos essa ação se faz sen tir sobretudo na perda ou enfraquecim ento da credibilidade e da eficácia da sua função n orm ativa. Daqui a crise do ethos e o aparecim ento do conflito ético, que não é um problem a dos indivíduos tom ados isoladam ente, mas um estado espiri tual da sociedade. V iver esse conflito e atingir suas raízes é próp rio dessas persona lidades éticas excepcionais, com o as que foram lem bradas. Do ponto de vista da fé e mesmo talvez de uma análise histórico-cultural, o caso de Jesus é único. N ão creio que uma nova personalidade ética com o a de Jesus possa surgir. Ele é um ephápax, segundo a expressão grega usada pelo N ovo Testam ento, ou seja, “o que acontece uma só vez” . O que é possível depois de Jesus é a observância radical do novo ethos por ele proposto — o ethos evangélico — , o que permite o aparecim ento de perso nalidades éticas que se aproxim am daquele M odelo único: com o Francisco de A s sis, no século XIII, e Teresa de C alcutá, em nosso tem po. Esses exem plos m ostram que não é necessário que nos resignem os ã condição de Antigonas m odernas.
Como o senhor descreveria a sua própria vivência do conflito ético? Como ela surge na vida sacerdotal que o senhor abraçou? Nosso tem po, vam os repetir mais uma vez, é um tem po de crise ética generalizada e, por conseguinte, de agudos conflitos éticos. No conflito ético, a vivência individual é, de certa maneira, irrelevante. O que conta é a capacidade de descer até suas raízes, não puramente por uma análise teórica, mas por uma form a de experiência criadora que permite a proposição de um novo ethos, isto é, de um novo sistema de valores, normas e fins. Evidentemente, não é essa minha vivência dos conflitos éticos do nosso tempo. Posso dizer que esses conflitos éticos não se apresentaram a mim sob a form a de um questionam ento da minha opção de vida com o sacerdote católico. Situo-me, aqui, ou procuro situar-m e na linha da criação ética de Jesus — do seu Evangelho — , que para mim tem um v a lo r perm anente, e isso não som ente em virtude da sua origem divina reconhecida pela fé mas tam bém da sua eficácia histórica. M inha participação nos conflitos éticos da sociedade em que vivo assumiu duas form as: na linha da ação, com o foi o caso, p or exem plo, da m inha presença, aliás m o destíssima, na conflitiva situação brasileira pré-64; e na linha da reflexão, que prosse
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gue até hoje no exercício do m agistério e nas investigações com que me ocupo, sobretudo no campo da Ética, e que procuro traduzir e com unicar em artigos e livros.
Como o senhor caracterizaria sua relação com a religião e a fé? Permito-me observar que não se trata propriam ente de relação, pois a religião e a fé não são para mim algo e.xtrínseco, com o qual me relacione, \ e la s vivo e delas me ali mento espiritualm ente. A pergunta tem em vista, naturalm ente, a com patibilidade entre as minhas convicções religiosas e a minha profissão de filósofo e professor de filosofia. Posso afirm ar que não experimentei conflitos interiores a esse respeito, pois desde o início guiei-me pela diretriz de Santo Agostinho, que conheci ainda estudante de filosofia e que João Paulo II repete na sua encíclica Fides et Ratio: “crê para enten deres e entende para creres”. Essa dialética agosriniana entre fé e razão assegurou para mim uma convivência fecunda entre a fé que professava e a razão que praticava. Meu trabalho filosófico mantém-se rigorosam ente dentro das exigências metódicas e dou trinais da razão e todas as vezes em que atinge as fronteiras onde a razão se encontra com a fé essa linha divisória é explicitamente traçada. Convém ainda acrescentar que, não obstante um estereótipo corrente, a liberdade intelectual dentro da Com panhia de Jesus é, atualm ente, bastante grande, ü m exem plo é a encíclica Fides et Ratio, que veio atender a questões com as quais me ocupava recentemente, por exem plo quanto às relações entre fé e metafísica e que, no entanto, sofreu restrições por parte de outros jesuítas, entre eles o padre Joseph .VIoingt, considerado o mais im portante teólogo jesuíta francês atual. Essa temática guiou-me, de resto, na organização do meu livro Escritos de Filosofia I: problemas de fronteira (1"’ ed., São Paulo, L oyola, 19 8 6).
Como o senhor se situa em relação aos problemas de uma “mudança de paradigm a” da filosofia, de uma filosofia “pós-m etafisica” calcada na linguagem? A pergunta suporia uma discussão prelim inar sobre o uso da noção de “ paradigm a” na historiografia filosófica, que evidentem ente não cabe aqui. De qualquer m anei ra, não vejo com o as recentes filosofias da linguagem possam constituir um novo paradigm a filosófico em substituição à M etafísica. Em prim eiro lugar porque a própria M etafísica pode ser interpretada com o uma filosofia da linguagem, não no sentido óbvio de que tudo é linguagem, mas enquanto constitui uma form a especí fica de linguagem com seu código sem ântico próp rio e as regras definidas do seu uso, e isso pelo menos desde Aristóteles. Seria necessário que se provasse que a lin guagem metafísica com o tal é destituída de sentido ou tneanmgless. Na minha opi nião o positivism o lógico, que se propôs fornecer essa p rova, não o conseguiu ape sar dos esforços de Carnap. Em segundo lugar porque à filosofia da linguagem com o ersatz da M etafísica aplica-se o mesmo argum ento de “re to rsã o ” que A ristóteles em pregou no Protrético contra os negadores da Filosofia: não se substitui a M e tafísica senão com outra M etafísica. A expressão "pós-m etafísica” tem pois, essa sim, todas as chances para ser uma e.xpressão meaningless. De resto, é visível na filosofia contem porânea, mesmo entre os cultores da filosofia da linguagem, um reaparecim ento de problem as de natureza metafísica que som ente um pensamento metafísico que se reconheça com o tal pode equacionar corretam ente.
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o senhor utilizaria o conceito de “utopia” para descrever a sua visão do futuro da sociedade hum ana? Em que consistiria tal utopia? O conceito de utopia não pertence ao meu universo filosófico e, por isso mesmo, julgo-m e dispensado de discorrer sobre o que seria minha visão utópica do futuro. Nesse ponto sigo a lição de Hegel: a filosofia trata do que é; o que será fica para os profetas. Reconheço que o conceito de utopia tem sido, na história intelectual e política do O cidente, uma m atriz fecunda de m odelos ideais de sociedade que cum prem uma im portante função histórica com o alim ento dessa reserva de esperança sem a qual dificilm ente a hum anidade prosseguiria seu cam inho rum o a um futuro que se espera m elhor. Talvez possam os pensar a utopia em analogia com a “ idéia reg u la d o ra” kan tian a: necessária p ara o rien tar a m archa da história, mas inalcançável por definição. No contexto atual da m undialização, a situação da idéia de utopia parece problem ática. De um lado ela continua alim entando o que se pode denom inar a “reserva utópica”, provavelm ente indispensável em meio às distorções de todo tipo que se observam nessas nossas sociedades em acelerado processo de m udança. De outro lado, a p róp ria com plexidade do corpo social e o núm ero de problem as e desafios cuja face m uda rapidam ente tornam m uito difícil a fo rm u la ção de utopias que conservem uma relação qualquer, seja ela negativa ou positiva, com as sociedades m odernas extrem am ente com plexas. Esse talvez seja um aspec to não devidam ente considerado pela Teologia da Libertação ao p rop or aquela que considero sua utopia político-religiosa. O senhor vê no marxismo um desenvolvimento histórico concreto em que os elementos utópicos acabaram p or sufocar a raiz hum anista do pensamento de M arx. Essa é uma caracterização que pode ser aplica da a outros fenômenos históricos? O preço a pagar pela pretensão de realizar utopias é necessariamente o Terror? C reio que as lições da história não deixam dúvidas a esse respeito. O ideal utópico, p or definição — autodefinindo-se um "sem lu gar” na história real — , deve neces sariam ente ab rir seu cam inho pela violência sem norm as, pois uma norm a suporia uma certa aceitação da realidade existente. Assim, a utopia é historicamente a matriz do T erro r, com o confirm am exem plos recentes e, de m odo paradigm ático, o caso do Cam boja.
Há progresso na história? Num sentido linear ou simplesmente cronológico, o progresso na história é evidente. T anto no sentido da cultura m aterial quanto no da cultura sim bólica. Há uma dis tância imensa, que os antropólogos, entre eles o nosso D arcy Ribeiro, tentam o r denar em sucessivos estágios, entre nossos antepassados que iniciavam o cam inho para a hom inizaçào biológica e a hum anização cultural, e o homem da civilização científico-tecnológica. M as, p or convenção historiográfica, a história propriam en te dita tem início com a invenção da escritura, há cerca de 3 .0 0 0 anos a.C . A partir desse evento inaugural da história a hum anidade passa a dispor de um parâm etro privilegiado, prim eiro instrum ento da ciência histórica, para m edir, através da me m ória escrita das civilizações, seus avanços, estagnações e decadência, em suma o
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ritm o do seu progresso. Com o quer que seja, participo da idéia-base do otim ism o de T eilhard de Chardin de que, sem a consciência do progresso, há m uito a hum a nidade teria perdido suas razões e seus estím ulos para viver, isto é, para sob revi ver. Acrescento, com Hegel, que o conteúdo m aior dessa consciência do progresso é a liberdade, no sentido de que, em face dos obstáculos que se levantam no curso da sua história, o ser hum ano experim enta a capacidade de responder ao desafio a p artir de um am plo leque de alternativas em que ele afirm a, em prim eiro lugar, o senhorio de si mesmo (o livre é “em razão de si mesmo", diz Aristóteles) e, em se gundo lugar, sua transcendência sobre a natureza.
Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos co mo riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em lar ga escala e alienação cultural em massa. Como o senhor vê tais problemas? Não tenho com petência para avaliar os aspectos técnicos desses fenôm enos, sobre tudo o com plexo e desafiador problem a das drogas, mas vejo-os com a inquieta ção profunda que deve tom ar conta de toda pessoa consciente ao considerá-los nos seus efeitos mais visíveis e devastadores. N ão devemos nos esquecer, p or outro lado, que já a pré-história nos atesta a presença do ser hum ano com o anim al gratu ita mente agressivo e depredador. A história tem seus desertos, assim com o a geogra fia. Um dos desafios mais antigos das civilizações é ousar a travessia de desertos, seja geograficam ente, seja historicam ente, desertos que muitas vezes o ser hum ano mesmo criou. Nossa civilização dispõe de todos os recursos, técnicos, políticos e éticos, e é capaz de fo rm u lar estratégias que conjurem um triste destino de criado ra de desertos. Às sociedades e aos seus responsáveis cabe decidir. i\ 'o
ensaio “Filosofia e Cultura: perspectiva histórica” o senhor afim ta;
“Pensar a Liberdade ou unir dialeticamente Liberdade e Razão, eis a
única tarefa da filosofia”. O senhor poderia explicar essa afirm ação? C reio que essa afirm ação pode ser explicada seja do ponto de vista histórico, seja do ponto de vista teórico. H istoricam ente, sabemos que toda a história da filosofia é atravessada por uma tensão profunda e de certo m odo elem entar entre a tendên cia a d ar prim azia ã razão e a tendência oposta, que privilegiava a liberdade. Para sim plificar diríam os que a tensão entre intelectualismo e voluntarism o constitui uma das chaves historiográficas clássicas para a classificação dos sistemas ao longo da história da filosofia. A descoberta grega da razão dem onstrativa m anifestou logo na atividade racional os dois predicados da necessidade e da universalidade, de sorte que toda a realidade ficasse a eles submetida numa nova form a de destino, um des tino lum inoso. M as a esse novo destino, com o ao antigo destino cego, a liberdade m ostrou-se irredutível. C om o encontrar um lugar para a liberdade no universo da razão? Eis o desafio m aior e, dc certo m odo, a tarefa única da filosofia, pois tratase de um problem a que tem repercussões imediatas e decisivas na antropologia fi losófica, na ética, na política, nas concepções, em suma, do universo, do ser hum a no e de Deus. Para o C ristianism o, esse torn ou-se, a p artir sobretudo de Santo A gostinho, um problem a fundam ental para a reflexão teológica, pois a fé se ap re senta com o uma “geratriz de ra z ã o ” , no dizer de E. G ilson: Crede ut intelligas. Ele
Henrique de Lima Vaz
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encontrou uma solução genial em Santo Tom ás de A quino, no qual nos inspiram os na nossa Antropologia filosófica, vol. 1. Pensar a liberdade foi, talvez, o leitmotiv m aior do filo sofar hegeliano, com o procuram os m ostrar no capítulo sobre a Ética de Hegel, na Introdução à Ética filosófica I (pp. .3 7 1-40 0 ). Assim, penso estar ex plicada a afirm ação citada na pergunta.
Principais publicaç(3es: 1968 19 8 6 19 9 1 19 9 2 1993 1997 1999 2000
Ontologia e História (São Paulo: Duas Cidades); Escritos de Filosofia 1: problemas de fronteira (São Paulo: Loyola); Antropologia filosófica I (São Paulo: Loyola); Antropologia filosófica II (São Paulo: Loyola); Escritos de Filosofia II: Ética e cultura (São Paulo: Loyola); Escritos de Filosofia III: filosofia e cultura (São Paulo: Loyola); Escritos de Filosofia IV: introdução à Ética filosófica I (São Paulo: Loyola); Escritos de Filosofia V: introdução à Ética filosófica II (São Paulo: Loyola).
Bibliografia de referência da entrevista: Agostinho. Confissões, Vozes. A quino, T. de. Suma teológica. L ivraria Sulina. ___________ . O ente e a essência. Vozes. A ristóteles. Metafísica, M adri: Editorial Credos. ___________ . Ética a Nicômaco, coleção Os Pensadores, A bril C ultural. Bergson, H. Dos fuentes de la m oral y de la religion, .VIadri: Tecnos. C arnap, R. C oleção Os Pensadores, A bril C ultural. C hardin, T. de. O fenômeno humano, C ultrix. G ilson, E. e Boehner, Ph. História da filosofia cristã. Vozes. Hegel, G. W . F. Ciencia de la Lógica, Buenos A ires: Solar. ___________ . Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio, L oyola. ___________ . Estética, Lisboa: Guim arães. ___________ . Fenomenologia do espírito. Vozes. ___________ . Princípios da Filosofia do Direito, M artins Fontes. Kant, 1. Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, Brasiliense. M aritain , J. A filosofia moral: exame histórico e crítico dos grandes sistemas. Agir. ___________ . Por um humanismo cristão, Paulus. .Vlarx, K. O Capital, coleção Os Econom istas, A b ril C ultural. M ounier, E. Sombras de medo sobre o século X X , Agir. Platão. A República, Lisboa: Fundação Calouste G ulbenkian. ___________ . Diálogos, coleção Os Pensadores, A bri! C ultural. R icoeur, P. Le Soi-Même comme un autre, Paris: Seuil. T aylo r, Ch. Sources o f the self: the making o f modern identity, H arvard Universit}' Press.
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GERD BORNHEIM (1 9 2 9 )
Gerd Bornheim nasceu em 1 9 2 9 , em C axias do Sul (RS). G raduou-se em Fi losofia na U niversidade Federal do Rio G rande do Sul, onde obteve também o títu lo de livre-doccnte em Filosofia. Professor cassado em 1 9 6 9 , fixou-se no Rio de J a neiro depois de tem porada na Europa. É professor titu lar aposentado da U niversi dade Federal do Rio de Janeiro. Esta entrevista foi realizada em janeiro de 2 0 0 0 .
(joethe dividiu a vida de seu personagem W ilhelm M eister em dois romances, Os anos de aprendizado e Os anos de peregrinação. No p ri meiro, o foco está posto na form ação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que o senhor nos falas se de sua form ação intelectual? Eu sou gaiicho. Na época da universidade, reinava um tipo de filosofia que hoje está quase esquecida aqui no Brasil — o tom ism o. Isso me deu uma base medieval e grega bastante sólida. C laro que para mim o tom ism o está totalm ente ultrapas sado, mas, com ele, tive a vantagem de ter uma espécie de form ação clássica, e a desvantagem de ter um tipo de ensino com pletam ente alheio aos problem as con tem porâneos. O senhor chegou a freqüentar sem inário? Como foi o seu contato com o tomismo? N ão. Na verdade, a minha intenção prim ordial era fazer psiquiatria, e, antes disso, queria adquirir cultura. No entanto, a form ação que se tinha na universidade era m uito especializada: era necessário estudar línguas, inclusive o grego, um pouco de literatura, e, evidentem ente, eu lia tudo o que podia. Q ueria com plem entar essa form ação com uma consciência social — digam os assim — voltad a para o pensa m ento sociológico. M as os cursos de sociologia da U niversidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, não aconteciam todos os anos, devido a terem pouca procura. Então, descobri que havia uma cadeira de sociologia no curso de filo so fia, entrei na filosofia e fiquei. De fato, a liberdade de escolha é uma coisa muito peculiar ao indivíduo, a gente escolhe m uito menos do que pensa, e as coisas vão acontecendo de um m odo m uito inusitado. Esse tipo de form ação clássica que tive em Porto A legre tem lá as sua van ta gens, só que, em geral, a tendência é alienar um pouco o indivíduo. T alvez eu não tenha me alienado tanto, na medida em que li muita sociologia brasileira, os clás sicos com o Gilberto Freyre, O liveira Vianna etc. Naquela época, já havia muita coisa no Brasil. Aliás, foi justam ente nessa época que, através de G ilberto Freyre, houve
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uma influência m uito forte do pensam ento sociológico am ericano, e isso, cie certa m aneira, foi definitivo no Brasil. M as eu não me queixo dessa form ação.
Quando o senhor foi pela prim eira vez à Europa? Em 19.53, fui pela prim eira vez a Paris, onde estudei na Sorbonne com o bolsista do governo francês. E isso foi m uito im portante para mim, porque foi lá que comecei a descobrir o pensam ento contem porâneo. De Paris fui para O x fo rd fazer um cu r so de q uatro meses e, depois, fiquei ainda oito meses na A lem anha. Paris foi muito im portante, porque foi lá que conheci e estudei com a nata do pensam ento francês do início do século — com exceção de Sartre, que não dava aula. A Sorbonne era m uito rica nessa época. Além disso, ter conhecido M erleau-Ponty valeu a pena. Eu assisti tam bém ao últim o curso de Bachelard sobre a vida filosófica, uma coisa his tórica e fantástica, pois a sua experiência filosófica foi posta em aula. Estava tudo escrito, mas não sei o que aconteceu com esse texto. Na A lem anha, estudei com o meu am igo M ax M üller, que queria me levar para conhecer Heidegger. M as não cheguei a conhecê-lo, porque fui convidado para lecionar na Federal de P orto A legre e não podia me d ar ao lu xo de perder essa oportunidade, pois estava precisando de dinheiro. Então voltei para o Brasil.
Como foi a diferença entre o ambiente cultural francês, de meados da década de Í9S0, e o ambiente no Rio Grande do Sul? Na França, tive dois professores m uito bons: Jean W ahl e Jean H yppolite. Tinha também [M artial) (ju é ro u lt, [Jean] Piaget, enfim, m uita gente. Vi tudo o que havia de m elhor, sem ter preocupação com exam e, p rovas e coisas do tipo — pois não queria fazer tese para ficar “ m u rad o” em hotéis baratos. Então fiquei assistindo a vários cursos. W ahl e H yppolite estavam dando curso sobre Heidegger. No Brasil, Heidegger era transm itido sobretudo p or um cônego argentino que, quando falava da “ náusea” de Sartre e da “angústia” de Heidegger, virava a própria náusea, ta m anho o nojo que tinha [risos]. E foi através de Jean W ahl e de Jean H yppolite que conheci o Fleidegger au têntico. Foi através deles que a questão o ntológ ica em Heidegger com eçou a me preocupar e a se to rn ar uma das minhas m aiores influên cias. Nessa época, ter entrado em con tato com o pensam ento contem porâneo foi uma revelação para mim, e causou uma abertura extraordinária em meu pensamento. E verdade que isso também me custou inimigos em Porto Alegre: a Congregação M ariana de Jesuítas caiu em peso em cima de mim. M as toda essa aventura foi muito interessante.
Como o senhor avalia a figura de Em ani Eiori no Rio Grande do Sul? Ele era um catedrático. Tive dois professores catedráticos: Fiori e A rm ando C âm a ra, que não é conhecido no Rio de Jan eiro. Foi C âm ara quem me convidou para dar aula. Era um hom em venerando, uma belíssima figura e um grande orad o r. No entanto, eu preferia o Fiori, que tinha mais m étodo de trab alho, e passei para a sua cadeira. D aí com eçaram as brigas filosóficas, porque Fiori era tom ista. Para am e nizar de certa m aneira o seu tom ism o, com eçou a estudar Lavelle, um pensador ca tólico m uito estranho. Certa vez, eu lhe disse: “ Desculpa, Fiori, mas em Paris Lavelle
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Gerd Bornheim: “Fala-se hoje em globalização, mas tem de se tom ar cuidado com esse ter mo ao torná-lo sinônimo de neoliberalismo. A globalização já está presente em M arx, pois foi ele o primeiro a dizer que o capital é, por definição, internacional”.
não existe” . Fiori subiu pelas paredes quando percebeu que eu estava me tornando heideggeriano, com os temas da angústia e da náusea. E assim eu tui também me al'astando dele. A cabam os brigando feio, e respondi às suas provocações fazendo a livre-docência. M as Fiori era um homem de respeito e tinha um excelente nível. Na época, as coisas eram muito provincianas, a universidade era m uito p ro vinciana, e eu consegui rom per com tudo isso. T inha de se fazer m uita política. Q uando fui chefe de departam ento, eu tinha três assistentes, um bispo e dois p a dres. Eram amigos meus, mas tinha de fazer esse tipo de jogo político. Q uando perdi o meu lugar no departam ento, lecionei literatura alem ã p or dois anos, e, quando voltei para a filosofia com o livre-docente, aproveitei para dar cursos mais livres, que eram m uito mais interessantes para mim. E foram um sucesso fantástico: eram “m ultidões” que vinham me ouvir. O seu livro Introdução ao filosofar, publicado em 1969, originalmente
tese de livre-docência defendida em 1 9 6 1 , pode ser considerado como uma descrição do seu caminho para a filosofia? Pode, do ponto dc vista existencial, porque, de fato, a grande carga da minha fo r mação cultural, de um m odo geral, foi dada pelo rom antism o alem ão, com as idéias de experiência negativa, de nostalgia e do tema da distância. Essa form ação do rom antism o foi muito im portante para mim. Foi a p artir dela que a noção de e x periência negativa com eçou a to m ar form a de sistema, e foi nessa época que com e cei a 1er Hegel. N ão tinha um plano delim itado para escrever a tese, comecei a es crever e saiu assim. Publiquei exatam ente com o tinha escrito a p rova. Em con cu r so, a gente fica meio ton to com a gente mesmo, mas a prova saiu perfeita do ponto de vista form al. Depois, só traduzi as notas para o português. E o livro já está na nona edição, com um sucesso que me deixa espantado. N ão sei nem mais se pensa ria o livro do mesmo jeito hoje.
Ao contrário do seu livro sobre Sartre, de 1 9 7 1 , esse seu livro Introdu ção ao filo sofar não parece ter sido retomado pelo senhor em nenhuma obra posterior. Isso procede? Isso é mais ou menos norm al em mim. Tenho esse livro sobre Sartre, mas nunca fui sartreano, em bora tenha uma adm iração m uito grande p or ele. Foi um livro que fiz com p aixão, achando Sartre uma m aravilha. M as sempre gostei mais de H ei degger, tanto que a crítica que faço a Sartre, na segunda parte do livro , é toda de inspiração heideggeriana. excessiva hegemonia da dicotom ia sujeito-objeto em Sartre é uma lim itação muito grande, e eu aceito ainda hoje a crítica de Heidegger a essa questão. dicotom ia é uma exacerbação m uito grande, há sujeito ou ob je to . e não há um terceiro term o possível. Essa exacerb ação mereceu a crítica de Heidegger, em bora eu não concorde inteiram ente com essa crítica. M as Satre era vítim a disso, era um cartesiano de fato, e sujeito e objeto eram os pilares do seu pensam ento. C ritico justam ente isso. M uita gente pensa que sou sartreano, talvez pelo fato de nunca ter escrito um livro sobre Heidegger, mas apenas textos esparsos. Tam bém me afastei um pouco de Heidegger. Em Dialética: teoria práxis, por e.xemplo, há um com entário bastante
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extenso a Heidegger, em que faço a seguinte crítica: eu o acuso pelo esquecimento do ente. Com o não-esquecim ento do ser, ele acaba esquecendo-se do ente, quer dizer, ele desresponsabiliza demais o ente, a participação do homem na história, justam ente porque ele é radicalm ente contra a subjetividade, contra a interpreta ção m oderna da subjetividade a p artir de Descartes. Então, p or esse cam inho, aca bei afastando-m e de Heidegger. Mas confesso que agora estou lendo alguns de seus textos póstum os, que são fantásticos. Na ética, Sartre é fundam ental, porque todo o seu pensam ento é uma ética de ponta a ponta, em que a questão da liberdade é fundam ental. Ele m ostra o dram a da liberdade no homem contem porâneo. Radicaliza m uito bem a tese de Descartes e mostra a liberdade com o uma síndrom e negativa, uma coisa brutal e pesada, com o se estivesse perguntando a si mesmo: com o é possível me libertar da liberdade? E Sartre tem o m érito de ter feito a crítica à hipocrisia, ã m entira. Ele é um dos p rin cipais responsáveis pelo descalabro da m entira. .Acho que a m entira praticam ente não existe mais. Com muito m arxism o, muita psicanálise, tudo ficou m uito tran s parente, de modo que a m entira, hoje em dia, está desm oralizada [risos]. Sartre diz: "Há de surgir um dia cm que todos os hom ens serão transparentes” . N ão se pode exagerar nessa transparência absoluta, mas, de qualquer m aneira, ele tem razão. O processo de autoconhecim ento do homem está chegando, está levando a hum a nidade a esse limite extrem o de transparência. Nesse particular, Sartre é fundamental: a denúncia da hipocrisia em todos os níveis. O predom ínio do ensino tomista na faculdade foi um dos fatores que levaram o senhor a passar para a escola de teatro? N ão, na verdade isso foi um acidente. Sempre gostei m uito de teatro e de música. O rganizaram um curso de arte dram ática em Porto Alegre, e convidaram Ruggero Jacobi para ser professor. Nós ficamos m uito am igos. Ruggero, na parte prática, não era tão bom , mas era um teórico m aravilhoso. Comecei a assistir a umas aulas suas à noite e depois saíam os para tom ar uma cervejinha, com er uma m acarronada, e fui gostando daquilo. Ele m ontou o Egnumt de G oethe e Cacilda Becker levou M ana Stuart. Tudo foi feito concom itantem ente: a escola e as m ontagens. Ruggero obrigou-m e a fazer uma série de conferências sobre G oethe e Schiller, e, com isso, fiquei ligado também ao teatro. Logo comecei a escrever uns ensaios menores so bre teatro. Aí aconteceu uma fatalidade; Ruggero simplesmente desapareceu do Brasil sem se despedir de ninguém, sumiu. Entâo a coisa sobrou para mim, porque ele dava teoria do teatro. Fui obrigado a dar teoria do teatro e acabei d iretor da escola. Isso foi um desvio muito interessante e muito bom para mim.
Em 1969, o senhor foi cassado... Fui cassado em novem bro de 19 6 9 , e, a p artir de então, não podia mais dar aula em universidade. Fiquei dois anos dando aula em um curso pré-vestibular. Aquele tempo foi terrível, havia policiam ento m ilitar nas ruas, e eu era cham ado todos os meses para depor na Polícia Federal iVlilitar de Porto A legre — uma coisa hum i lhante. Nessa época, a Universidade de Frankfurt tinha uma política interna de fazer intercâm bio com professores am ericanos, que já estava funcionando há alguns anos.
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Estenderam isso também para a Am érica Latina, e, com o sei alem ão, convidaram me para ir. Foi uma sorte incrível, independentemente da questão política. Fui p ro fessor durante um semestre em F rankfurt. Até queriam que eu ficasse lá, oferece ram-me uma ótim a bolsa, mas, naquele tem po, eu detestava a A lem anha. A chava Frankfurt e Freiburg horríveis. Aliás, só me reconciliei com a Alem anha há dez anos, quando fui convidado para ir a Berlim. Fiquei dois meses e me apaixonei pela cida de — que, do ponto de vista cultural, está muito superior a Paris. Term inado esse semestre em Frankfurt, em que dei um curso sobre Sartre a pedido deles, fui imedia tam ente para Paris, onde fiquei q uatro anos. N o com eço, dei aulas de alem ão para sobreviver, e um am igo francês m uito rico, dono de um jo rn al, convidou-m e para organizar uma galeria de arte. Eu me “ atirei” nesse projeto e fiz um acervo para a galeria. Isso foi m uito interessante com o experiência. Daí voltei para o Brasil, de vido ã doença de meu pai. Fiquei três anos em C axias do Sul cuidando de meu pai, que não podia trab alhar, e escrevi O idiota e o espírito objetivo.
Q ual era a diferença entre o ambiente de meados da década de 19 5 0 e o do começo dos anos 1 9 7 0 na França f T oda aquela efervescência dos anos 19.50 desapareceu, a Sorbonne ficou muito apática e o pós-m odernism o não tinha ninguém com o Sartre e M erleau-Ponty, que tinham um nível m uito elevado, uma seriedade m uito grande. Am bos tinham um nível de produção, de energia e de pensam ento extraord in ário . Na Inglaterra, em O xfo rd , assisti a aulas de filosofia política e literatura inglesa contem porânea. M as em filosofia os ingleses realmente não são bons, e a filosofia política era o estudo dos program as dos partidos, enfim , não se fazia filosofia [risos]. M as, no curso de literatu ra, eu assisti a uma palestra m aravilhosa sobre C on rad , que era um tratado de sociologia. F. por meio da literatura que eles são bons para pensar a política. Q uan do têm de fazer filosofia, não a fazem , ficam na linguagem, na política prática e efetiva, no em pírico. M as quando fazem literatura, a crítica literária “v o a ” que é uma m aravilha. Entâo aprendi muito e acabei interessando-m e pela parte mais fi losófica. Então, esse desvio também foi muito interessante. Na Alem anha, era aquela coisa germânica de cidade pequena, concentradíssima nos estudos. M as também havia coisas m aravilhosas que não vejo mais na Europa. Havia um alem ão, já falecido, chamado Hans Jantzen, que foi possivelmente o m aior especialista do século X X em estilo gótico. Estava em Freiburg, onde deu o seu ú l tim o curso. O tema foi uma das grandes paixões da minha vida: a catedral gótica de Chartres. Ele dissecou o tema e isso foi uma das grandes experiências da minha vida, porque eu tinha paixão p o r essa catedral. Q uando fui a C hartres, a prim eira visão que tive da catedral foi um choque cultural m uito grande. Eu estava dentro de um daqueles carros am ericanos, cheio de brasileiros, sentado atrás, junto ã p o r ta. Q uando o carro parou na catedral, nós estávam os discutindo algum a coisa, eu abri a p orta, vi a catedral, e tive a sensação de estar sem pernas. Daí eu entendi su bitam ente o que é, para nós brasileiros, não ter vivido a Idade .Média. F. impossível para nós ter a experiência do gótico, mesmo p or via indireta, pois é um dado cul tu ral. Isso foi uma experiência muito forte para uma pessoa com o eu, que era da colônia alem ã e, de repente, estava em Paris. E eu aproveitei esses anos, pois a mi
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nha política era a de assistir aos cursos mais im portantes e não abandonar o tea tro, os concertos, as boates etc. Eu pude refazer na Alem anha e, sobretudo, em Paris, aquilo que no Brasil não podia fazer. A minha preocupação de base era me educar com a experiência européia. Tive uma form ação superficial, mas européia.
Em fins da década de 19 70, o senhor volta para C axias do Sul para cuidar do seu pai, durante três anos, e escreve O idiota c o espírito ob jetivo. Depois vem para o Rio de Janeiro. O que motivou essa mudança? A necessidade de trabalho. Se São Paulo tivesse antecipado um pouco mais o inte resse, eu teria ido para São Paulo. Não queria ficar em Porto Alegre, porque os meus inimigos estavam todos dentro da universidade. Eu tinha sido chefe de departam ento e ficaria numa situação muito desagradável. Então eu tinha de trabalhar, e vim para o Rio.
Q ual a diferença do ambiente intelectual gaúcho em relação ao carioca? Eu fui m uito bem recebido no Rio de Jan eiro. É interessante porque eu sempre fa zia conferências em São Paulo. Nunca tinha recebido convite para fazer conferên cias no Rio. Eu dizia: “ Que cidade estranha essa, que não convida a gente para fazer conferência, enquanto São Paulo faz num erosos con vites” . E, de repente, estava dando aula para um ótim o público. E comecei com o pé direito. Evidentemente, quando acabou o período da ditadura, houve uma espécie de reação interna, uma espécie de reivindicação a fa vo r de um espírito crítico mais acentuado. Então saímos daquelas trevas, o tom ism o foi em bora, e houve uma es pécie de faxina gerai a favo r de um espírito mais ventilado, acentuando-se o espíri to crítico. H ouve uma transform ação m uito forte na universidade. O aspecto reli gioso começou a ,se diluir, algumas universidades católicas perderam sua importância e deixaram de ser “católicas” .
Na década de 1960, três paradigm as teóricos m arcaram o ambiente intelectual: estruturalismo, existencialismo e marxismo. Como o senhor avalia a evolução desses paradigm as até os dias de hoje, e que balanço o senhor faria da sua relação com eles? Nunca fui muito fã do estruturalism o, que na filosofia foi representado por Guéroult. E aí é que está o problem a, porque eu assisti a essa m etodologia de G uéroult com muito respeito em seu curso sobre Descartes, “A ordem das razões” , na Sorbonne. M as, no fundo, percebi a deficiência do m étodo. G uéroult estudou na A lem anha, onde havia um hegeliano cham ado K uno Fischer que havia escrito uma história da filosofia m oderna — eram dez volum es em tipo gótico. Com prei parte desses livros num sebo em Porto Alegre. Q uando ouvi o curso de G uéroult sobre Descartes, eu disse: “ .Mas issoé Kuno Fischer” . Daí surgiu a minha crítica a ele, porque G uéroult, no fundo, reduzia Descartes, Espinosa e Fichte a um objeto. Ele não fazia filosofia, mas dissecava uma filosofia ã m aneira de um lab orató rio . Pensando bem, mesmo não querendo inferiorizá-lo, pode-se dizer que um homem com o G u éroult nunca teve uma idéia, nunca foi um filósofo. Heidegger chama essa filosofia de Wissenschaft, a ciência filosófica. No fundo é isso: essa secura do estruturalism o não me
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agrada. E, pensando bem, a Poética do velho A ristóteles é um h vro estruturalista, em que há apenas a descrição da estrutura. E com o é a interpretação dele? É muito fraca. Eu tenho a im pressão de que falta um rigor filosófico m aior na Poética. Eu gostei demais do existencialism o. M as, logo de saída, fui p ara a questão ontológica, que me preocupava mais do que o existencialismo. E fui me aproxim ando mais lentam ente do m arxism o, através da dim ensão política tam bém . T anto é que sou meio m arxista, meio hegeliano, heideggeriano e sartreano. Faço um jogo ã minha m aneira. A gente vai desenvolvendo certo espírito crítico, e eu não posso dizer hoje que sou heideggeriano, pois critico Fleidegger. M esm o M a rx tem uma posição es pecial, pois ele é m uito mais lido do que parece, e os problem as postos p or ele es tão todos aí. A cho, inclusive, que M arx foi pioneiro em relação a certas dimensões do pensam ento político contem porâneo. Fala-se hoje em globalização, mas tem de se tom ar cuidado com esse term o ao torná-lo sinônim o de neoliberalism o. A glo balização já está presente em M arx, pois foi ele o prim eiro a dizer que o capital é, por definição, internacional. Ele disse isso, se não me engano, baseado na experiência do patriarca dos R othschild, que enviou cada um de seus cinco filhos para um cen tro financeiro do m undo. M arx fundou a Primeira Internacional, não a prim eira nacional. Isso é muito im portante e está esquecido, porque a esquerda ficou muito contagiada pelo espírito nacionalista, que é uma coisa toda cheia de contradições, que é de direita e de esquerda. O fascism o, pelo m enos, era nacionalista. É o caso de Heidegger, que era um homem de esquerda no final dos anos 1 9 2 0 e entrou no m ovim ento nacional-socialista, não no nazism o. M as foi o velho M arx o prim eiro a dizer que o capital é internacional, e que a internacionalização é uma fatalidade, uma questão de tem po. E ele estava certo, porque isso está se realizando. Só que hoje tudo está concentrado nesse tipo de capitalism o que está tod o ap oiad o no m undo das finanças e tecnológico, com o se fosse um espírito absoluto que conduz o capital. E ninguém sabe onde isso tudo vai parar. M as a idéia de globalização é de M arx , foi ele quem entendeu realm ente o problem a e a necessidade do transnacionalism o. Com toda essa transform ação, pela prim eira vez M arx está sendo considera do um filósofo. Essa é a grande vantagem , porque, no passado, tudo era m uito dogm ático e stalinista, tudo fazia parte de um catecism o político. Os com unistas eram pessoas meio estranhas, meio separadas, não se m isturavam nunca e eram m uito dogm áticos — uma coisa muito curiosa. Dc fato, davam -se a pequenas fo r mas de adultérios. M ário Pedrosa e M á rio Schemberg, p o r exem plo, ad oravam pintura abstrata — que, em geral, era considerada com o uma decadência burguesa pelos m arxistas. De qualquer m aneira, eles m antinham o dogm atism o. Eu adorava M ário Schemberg, mas uma vez tive uma briga com ele sobre a minha tese, pois ele ficou h orrorizad o com ela. Dizia que tinha excesso de Hberdade, muita subjetivi dade, que só tinha sujeito e que não tinha objeto. O pessoal que saiu da Fundação Getúlio Vargas foi uma geração dc tecnocratas m uito violenta e despreocupada com a política, que esqueceu aquilo de que M arx falava tanto, ou seja, que a econom ia é política — esse é o meu m odo de interpre tar a proposta. M as isso m ostra tam bém aquilo de que estava falando: que essa re dução de tudo é p róp ria da época, porque aquilo que estava presente nos m arxis
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tas clássicos, com o M ário Schemberg e M ário Pedrosa, está presente hoje nos eco nom istas, ou seja, a questão do objetivism o. H oje, estam os em um tipo de cultura em que tudo é sujeito ou objeto. E o fantástico é outra coisa: há uma espécie de intercâm bio entre sujeito e objeto, que vai muito mais longe do que parece, pois esse problem a dos nossos econom istas e políticos no fundo expressa esse intercâm bio. Essa é uma experiência radicalm ente nova na história do homem. A prim eira análise sobre isso foi feita por Hegel na “D ialética do senhor e do escravo ” : o es cravo é reduzido à condição de objeto pelo senhor e depois essa relação se inverte, mas, com isso, o estatuto de subjetividade e de objetividade pela prim eira vez entra em crise. E isso, evidentem ente, vai ser fundam ental para M arx . .Mas aí é que está: há uma inversão na situação, o sujeito passa a ser objeto, e o objeto passa a ser sujeito. Q uer dizer que essa idéia do intercâm bio permite entender a frase de Sartre que diz: “H oje, a m elhor situação para se entender o hom em é a do sadom asoquism o” . Pensando bem, parece que ele tem razão, porque é a form a de sujeito e objeto anu larem-se. É o sujeito perm eado de objetividade e vice-versa: um é sempre o objeto do outro, com patologia ou sem patologia. Heidegger, por exem plo, passa p or cima desse problem a. A relação com a m áquina, p or exem plo, também é assim. Eu acabei de escre ver um pequeno ensaio, “A educação pela m áquina” , que saiu num livro em h o menagem a C arn eiro Leão. Procuro m ostrar nesse ensaio que o século X X caracteriza-se pelo conflito entre o homem e a m áquina. M arx não percebeu esse p rob le ma, pois fez o elogio da m áquina, e até chegou a dizer que o jovem operário tem de trab alhar, acostum ar-se e assim ilar a m áquina, para produzir mais e aum entar o poder do corpo. Ele viu o problem a do capitalism o, mas não viu esse conflito. E a m áquina é fundam entalm ente capitalista, está dentro do processo histórico. É no século X X que surge o conflito entre o homem e a m áquina, que m uito cedo foi percebido por C arlitos [Charles C haplinj, em Tempos modernos. Pode-se pensar em [Herbert] M arcuse, que, em 19 6 4 , escreveu o Homem unidimensional. Esse li vro , para mim, está totalm ente superado, já que hoje não há mais o conflito com a máquina apresentado por ele. N ão tem sentido dizer que o com putador “ m aquiniza” o homem. A o con trário , o com putador é um instrum ento de trab alho fantástico. Eu tenho de ’-etomar esse tem a, mas é necessário pensar a máquina enquanto c o r po, porque dc certa maneira a relação que o homem tem com seu corpo é am bí gua: em certo sentido eu sou o meu corp o, mas, em o u tro sentido, eu tenho o meu corpo, ele se torna um objeto. Isso eu comecei a entender através de um pastor, personagem do expressionism o alem ão, que, numa peça, fazia experiências com seu p ró p rio corp o, reduzindo-o à condição de objeto. Foi a prim eira vez que vi isso acontecer na literatura. Então o corpo é um objeto, e o o u tro também pode ser um objeto para mim. Essa relação vai m uito longe. E essa é a am bigüidade invertida que o homem tem com a m áquina, porque, num certo sentido, eu tenho a m áqui na, que está à minha disposição, mas, em outro sentido, eu sou a m áquina — in clusive se se pensar as próteses e coisas do gênero. De fato, há um intercâm bio en tre o homem e a m áquina, e M arx tinha razão quando dizia, com o se falasse den tro da tradição da Revolução Industrial, que de fato a máquina não se entende apenas m ecanicamente, mas se entende biologicam ente, ou seja, é um prolongam ento do
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corp o do hom em. E, p or definição, ele dizia que tem de haver uma espécie de inti m idade m uito m aior entre o homem e a m áquina. Vlarcuse que me desculpe, mas nós temos de repensar esse medo que temos das m áquinas. Isso não funciona mais. Pelo con trário , o homem está dom inando a m áquina. C laro que há sempre um perigo, com o diz Heidegger, com o futuro da medicina, por exem plo, mas é uma transform ação. O que se quer? A doença do pas sado? A peste? Numa época em que o hom em com eça a c on trolar a doença, é ne cessário co n tro lar o sistema im unológico, pois a AIDS está aí. O utra coisa é a lon gevidade. Eu não farei parte dessa geração longeva, mas o meu neto vai fazer parte com certeza, vai passar dos cem anos de idade. Essa transform ação é fantástica. C om o as pessoas podem ter medo disso? Temos de desmistificar isso tudo. Será uma vida muito superior, sem doenças e com tudo cada vez mais sob o controle do h o mem. O m edo, a vergonha em relação à tecnologia, no fundo, é o medo em relação ao fu tu ro, que é um buraco negro. Estou reconciliando-m e com a m áquina. Isso é muito interessante. O pessoal de vez em quando ri de mim , mas acho que essa questão tem de ser pensada e leva da a sério. A m áquina, na R evolução Industrial, foi fundam ental, e, com ela, o p ro cesso de libertação do homem é extraord in ário .
Seria possível fa la r de uma “filosofia brasileira”? Como o senhor vê as relações entre a filosofia e a cultura brasileira? Elas não estão muito boas, e resolvem -se muitas vezes em term os de ironia, com o diria o meu amigo [Roberto] Schwarz. G ostaria que houvesse, de um lado, um maior intercâm bio com a política e as ciências sociais, e, de outro lado, com a crítica lite rária. M as não vejo isso no Brasil, porque a cultura filosófica é também meio rara entre nós. .Vias há uma atividade filosófica m uito intensa no Brasil. A m anhã, por exem plo, particip arei da banca de uma tese m uito bem -feita, acadêm ica, sobre Benedetto Croce. Isso é muito interessante, porque ressuscita o Croce e o “ põe em cima da m esa” . Acho muito boa essa cultura acadêm ica entre nós, porque se não tivesse m estrado e d ou to rad o, Croce estaria m orto. Então a tese é fundam ental, porque trata desses autores esquecidos. Tam bém é im portante falar das traduções que estão sendo feitas, porque, no Brasil, tradução sempre foi um problem a, e, de repente, surgiu uma tradução que já está em sua sétima edição — O ser e o nada de Sartre, publicada pela Vozes. Eu não entendo isso até hoje. O sucesso deve ser para encher prateleira. Acom panhei de perto essa tradução, dei muitas sugestões, e, até a quinta edição, ela foi revista e reexam inada, para ver se estava tudo certo. Q uer dizer, há mais m aterial à disposi ção. Estou aceitando até traduções com o tese de m estrado para incentivar a parte de tradução, que sempre foi uma lacuna m uito grande neste país. É curioso: as gran des editoras norm alm ente possuem estantes filosóficas, o que é uma novidade para mim, porque, antigam ente, isso não existia. A atividade filosófica, entretanto, está bastante diversificada, e todas as orien tações estão mais ou menos representadas. Eu só im plico um pouco com a filosofia analítica, nós não nos dam os muito bem [risos]. Vias essa implicância está ligada àquele problem a do objeto, é apenas uma outra versão: reduz-se tudo, a com eçar
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pela linguagem, a objeto. Com isso, não se vai muito longe, pois não é uma possi bilidade de criação do pensam ento. N ão posso passar a minha vida inteira dando aula sobre Descartes. E hoje fazem isso: e Descartes, Espinosa e mais um ou o u tro que absorvem as preocupações dos analíticos. E eles fazem o que? Fazem ativid a des policiadas. Flá m uito policialism o nessas filosofias da linguagem, e há uma o b sessão excessiva pelo m étodo. Uma coisa a que nunca dei im portância foi o m éto do. O m étodo tem de ser inventado na hora, pois, dependendo do que se está pen sando, tem de se inventar uma m etodologia. .Mas não é possível partir de um mé todo a priori, estabelecido com o camisa de força, para prender tudo lá dentro. Aliás, isso é uma característica do século X X .
Como o senhor vê o processo de instalação das faculdades de filosofia nas universidades federais? i\cho que têm o mesmo vício de base, o tom ism o. Porque foram os padres que co meçaram a dar aula. E os cursos funcionavam muitas vezes com o uma espécie de prolongam ento dos sem inários, pois os professores eram fundam entalm ente os mesmos. Isso felizmente acabou. Naquela época, o tom ism o o rto d o x o era de uma violência incrível, não havia alternativa nenhuma. A gora a situação se inverteu: vaise a um sem inário e constata-se que tem muito padre que é m arxista, hegeliano, heideggeriano — não são mais tom istas. Isso foi uma transform ação m uito violen ta que ocorreu no Brasil e que tem os seus m éritos. Não creio que haja grandes fi lósofos no Brasil, mas temos uma atividade filosófica m uito intensa. Pela p rolife ração de teses, o nível geral está subindo, está cada vez m elhor. A atividade filo só fica no Brasil já está intensa, em bora isso não esteja acontecendo em relação aos pensadores, que estão faltando no país. .Mas a filosofia tem muito público hoje. Quem faz conferência com o eu faço, percebe que em qualquer lugar do Brasil há público. A tualm ente, fazer filosofia no Brasil é uma coisa m uito gratificante.
Em seu artigo “Filosofia e realidade nacional”, o senhor menciona o positivismo e o neotomismo como duas correntes de grande im portân cia no cenário da filosofia brasileira, apontando aspectos positivos na prim eira e negativos na última. Além dessa caracterização histórica do nascimento da filosofia, quais outras correntes o senhor apontaria como importantes no cenário da filosofia no Brasil? Como o senhor avalia a atividade que é praticada nas faculdades de filosofia? M arx é im portante, e sempre foi estudado com um espírito filosófico mais eleva do, com preocupações políticas e sociais. Infelizmente Hegel ainda é pouco estuda do, talvez p or causa das traduções de seus textos. .Vlarx tem muito mais público e gente em penhada em estudá-lo. G ostaria que isso acontecesse também com Hegel. Há [Henrique C láudio de] Lima Vaz, há M arcos M üller, que está trab alhan d o se riam ente. O estudo de Hegel está cam inhando. Acho que todo o positivismo brasileiro deveria passar por uma revisão. Aqueles católicos, Jackson Figueiredo, aquela turm a do com eço do século vilipendiou o positivism o. Pensando bem, de uma certa perspectiva, é possível dizer que a lei dos três estados estava errada? N ão, pois, do ponto de vista do pensar a realidade cientifi
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camente, estava correta. £ Com te foi o prim eiro a fazer a grande crítica sobre a con cepção metafísica do homem, porque pensou a função do engenheiro. Foi o prim eiro que acabou com a idéia do anim al racional e, ao mesmo tem po, fez uma ponte com essa idéia. O engenheiro é o indivíduo, o operário, que estudou física e m atem á tica. A teoria e a prática estão ligadas. Ele fica dentro da tradição do anim al racio nal, mas com uma revolução m uito grande. Toda relação da vida contem plativa, do artesanato, digamos assim, pôde ser transform ada não p or causa de Com te, mas p or causa da R evolução Industrial. Com te foi o prim eiro que cham ou a atenção para essas coisas todas, e tem de ser revalorizad o, pensado corretam ente. Dessa form a, sou a favor de uma revisão sobre a im portância do positivism o no Brasil.
Como o senhor avalia, p o r exemplo, a produção do Departamento de Filosofia da USP? A cho que ainda é a m elhor do Brasil. A segunda eu diria que é da UERJ. A USP tem muita gente boa, em bora diversas pessoas tenham se aposentado. Há poucos dias, Scarlett M arton esteve aqui para participar de uma banca da qual eu era o presidente. Gostei m uito de con versar com ela. Os Cadernos Nietzsche são uma preciosidade. A USP tem essas coisas e sabe com pô-las m uito bem.
Quais são, em sua opinião, os filósofos brasileiros mais importantes? Renato Janine R ibeiro é muito bom e m uito sério. A cho também interessante o tra balho feito p or M arilena Chaui, que é meio apressadinha, às vezes. O seu livro so bre Espinosa, que não li e não vou 1er, é muito im portante. E se o livro de índices e notas fo r bem -feito — não pude ainda 1er com atenção — , então o seu livro deve ser muito bom , porque remete para toda a obra. Aqueles índices e aquelas biblio grafias têm de estar m uito bem realizados. Eazer um livro desses sobre Espinosa no Brasil é m uito bom. N ão posso esquecer Scarlett [M arton] também. Lima Vaz é um hegeliano que está em Belo H orizonte, e tem diversos livros sobre Hegel. Seus escritos são im portantes porque dinam itam as bases da igreja. .Aqui, no R io, há diversas pessoas tam bém : C arn eiro Leão, que está se aposentan do, e uma geração nova que está com igo. Jovens que fazem tese sobre Espinosa — que está na m oda. Há um rapaz cham ado R icardo Barbosa de quem eu gosto m ui to. Tem uma tese sobre o jovem Lukács que é muito interessante. Ele acabou escre vendo um “ensaio sobre o en saio” , e está nessa linha de pesquisa ainda hoje. É um rapaz bem sério, bem jovem , e bom escritor — o que é raro na filosofia brasileira, pois o pessoal ou não escreve muito bem, ou escreve bem, mas em alem ão. N ão posso esquecer-me de R oberto M achado tam bém , que é m uito bom. Eu dou muita im portância a escrever bem, e isso é um traum a na minha vida. Sou um “ alem ão”, e não sei até que ponto consegui recuperar o tempo perdido em relação à língua portuguesa. N orm alm ente, o meu estilo é mais elogiado em rela ção à clareza, então procuro 1er padre Bernardes, Rubem Braga e M achado de Assis. N ão me interessa o que eles dizem, interessa-m e o m odo com o eles escrevem. Leio com o lápis na mão para dom inar a língua. Isso é um problem a que não tem fim, porque a língua tem de ser criada, tem de ter um envolvim ento criativo quando se vai escrever algum a coisa. A té certo ponto consigo fazer isso, mas é muito difícil.
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o senhor é um leitor dos escritos de Benedito Nimes? Ele é um grande am igo meu. A gente o esquece, porque está lá no Pará, e o Brasil é imenso. M as é um heideggeriano. com o C arn eiro Leão também o é. Quem in tro duziu Heidegger no Brasil, com o professor, fui eu — o Heidegger ontólogo. C a r neiro l.eão veio logo depois de mim, chegou a estudar com Heidegger, e só com e çou a publicar depois que eu já tinha aberto a boca. E o Benedito “ passeia” muito bem por esse assunto.
Que conceito(s) de sua reflexão o senhor destacaria como o(s) mais representativo(s) da sua produção filosófica? Pediríamos que nos contasse como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o senhor o(s) vê hoje. Um tem a-chave para mim, e sobre o qual escrevi muito pouco, é o conceito de di ferença. Não a velha distinção de A ristóteles do ser diferente, mas, em última an á lise, a idéia da pluralidade e da multiplicidade. Foucault, p or exem plo, é im portan te para esse tema porque não fez exatam ente aquilo que eu acuso Heidegger de ter feito: o esquecim ento do ente. Lam ento Foucault largar a base ontológica e ficar no ôntico, em bora sempre nos planos das diferenças, nas margens da sociedade. .Aquilo que no passado não era pensado, de repente com eça a ser assim ilado pelo pensamento, e isso é e.xtremamente positivo. A diferença ontológica, ainda criticando Heidegger, é o cerne e a base do pensamento filosófico, porque é a única maneira de conciliar o pensamento ontológico com uma base não-metafísica, de que há muito se precisava para pensar o real que está aí. Ela é um alargam ento m uito grande da realidade. Do século passado para cá, a proliferação da ciência é uma coisa fantás tica. E incrível a liberdade m etodológica da antropologia científica e a descoberta do outro. No meu livro O conceito de descobrimento, analiso esse tema da dife rença, da alteridade. F. um livro bem -bolado — em bora eu não goste muito da sua parte final — , em que m ostro a questão da alteridade com o uma crítica essencial ã m etafísica tradicional da identidade, e com o essa questão não é precipuam ente fi losófica, ou seja, introduz-se p o r dentro da evolução do pensam ento da cultura m oderna. A busca da alteridade, o m apeam ento da alteridade, é o cerne da ques tão do descobrim ento.
Em seu livro Dialética: teoria práxis, de 19 77, o senhor afirm a que “o problema crucial da metafísica está no modo como ela recusa a finitude do fin ito ”. Numa atitude pós-metafísica como a sua, como então acei ta r a finitude do finito? Na específica estrutura dela mesma, enquanto, por exem plo, um jorro de alteridade. O que eu quero indicar nesse livro é justam ente a idéia da realidade em form a de jo rro , que é algo heraclitiano, no sentido do cosm os com o a m odalidade de jorro. É a idéia de vem e vai, de alto e baixo, superior e inferior, que é um jo rro — é uma harm onia que tem essa dim ensão de jo rro. Isso está presente em certos pensadores atuais e fascina-me muito: em .VIerleau-Ponty, por exem plo, que chegou a essa idéia do jo rro. C’om essa idéia, não se pode mais falar em sistema. N ão é que não exista mais sistema — o que acaba por criar também uma análise — , pois ele ainda é fo r
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te demais na sociedade, tudo é sistema na sociedade contem porânea. Então, tem de se p rocurar um o u tro cam inho mais com patível com o não-sistem atizável, se é que isso existe. De qualquer m aneira, o cam inho parece ser por aí: a questão da alteridade, da diferença, do jo rro.
Em Introdução ao filo sofar o senhor escreveu: “Quem se resolve, ou se sente condenado a fazer filosofia, assume, pelo simples fato dessa re solução, uma certa responsabilidade. Um compromisso que como todo compromisso impõe determinadas condições, as quais coincidem e ao mesmo tempo transcendem o que possa haver de arbitrário e redutivel em uma existência individ ual”. No que consiste esse compromisso do filósofo? O senso de responsabilidade não é simplesmente algo de in terior, mas rem ete, em prim eiro lugar, à sociedade. E o sentir-se responsável dentro da sociedade na qual a gente vive — essa é a grande responsabilidade. Tem de haver, algo que para mim sempre foi meio deficiente, uma espécie de consciência política no sentido am plo da p alavra, não no sentido estrito. F o pertencer de fato ã cultura. Esse com p ro misso com a cultura não se revelava, por exem plo, no tom ism o, que antigam ente não tinha com prom isso com nada, era uma teoria descom prom issada e abstrata. A minha geração aprendeu; tem os de ter com prom isso com a cultura e participar dela. Sempre me sinto em déficit com a cultura brasileira, porque, quando toco nesse assunto, é sempre meio de passagem, de raspão, um artigo mais curto que escrevo. M as eu não fui educado para isso, e é esse o problem a todo. No entanto, tem a parte de participação mais efetiva na vida cultural do país. Isso eu faço bastante.
Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade? Permanece, porque o conceito de ciência é de uma riqueza im pressionante. .Aquela revisão do positivism o, de que falei anteriorm ente, tem de passar por essa questão também. No fundo, a limitação do velho Com te foi ter entendido a ciência dc m odo m uito unívoco. Hoje a ciência é um cabedal de conhecim entos de uma am plidão extraord in ária, o reino das diferenças está hoje nas ciências. T odos os velhos es quemas desm oronam com muita facilidade, e isso tudo é de uma riqueza, de um enriquecim ento im pressionante. E m uito difícil fazer ciência e filosofia. E tem a parte da arte e da literatura, que também é essencial, mas a gente tem de fazer um esforço para saber o que está acontecendo com o ram o da ciência, e isso varia m uito. H oje, é a questão da ele trônica, e, querendo ou não, temos de estar conscientes disso. N ão é preciso se es pecializar, mas é necessária uma certa dose de inform ação, para saber a quantas se cam inha, porque há uma cisão muito grande não só da filosofia com a ciência, mas da ciência consigo mesma, internam ente. Hoje é impossível um físico saber sobre toda a física; ele sabe, se m uito, apenas um capítulo. Quem faz filosofia está mais aberto à possibilidade de desrespeitar certos lim ites e com eter certas heresias. En tão, é necessário to m ar muito cuidado. Eu evito falar de ciência com o escritor.
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C om o é que se pode julgar K ant. por exem plo? Para mim, ele fez uma inter pretação do m odo pelo qual funcionava, na época, a cabeça de N ew ton. Ele só ti nha uma ciência, que era a física matemática, ou seja, Galileu e N ewton. Então aquele tipo de saber científico era o saber científico. M as não faz sentido ter uma atitude dessas, pois é uma lim itação fantástica. Prefiro então deixar a ciência dc lado.
Desde Hegel, tto século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda de. Como o senhor se posiciona em relação a esse debate? Isso simplesmente é um tema hegeliano. Fala-se m uito em m orte da arte, contra a m orte da arte, mas isso é um falso problem a. Porque Hegel tem toda a razão qu an do põe essa questão, mas apenas para a arte do passado, a cham ada arte da im ita ção, que é sempre teológica e político-religiosa. Essa arte m orreu, não por causa de Hegel, mas a partir do Barroco. Depois do Barroco, não há mais arte religiosa, ela acabou de vez. Existe apenas p or razões de econom ia privada e dom éstica, mas mesmo isso é m uito raro . O que existe hoje é, em prim eiro lugar, a criatividade. E essa idéia está muito enraizada no século X X com as escolinhas de arte. O utro dia dei uma aula inaugural para uma escola de arte aqui do Rio, onde se discutia o seguinte problema: parte-se da idéia de que a criança tem originalidade e criatividade, então põe-se a criança sozinha, sem m odelo na frente, com lápis e papel à vontade, e é uma festa. O ser hum ano é criativo, e isso já está na criança. C laro que isso é um exagero brutal, mas parte-se do pressuposto de que a criatividade pertence ã condição hum ana. Na análise que fiz, procurei m ostrar que o prim eiro au to r que cham ou a atenção para esse fato foi M a rx , para quem a criatividade, a invenção do n ovo, da novidade, pertence à condição hum ana. Porque no passado era Deus quem fazia a novidade, eram os gênios com o Da Vinci. Foi no século X VI que su r giu a p alavra gênio na sua acepção m oderna; quer dizer, só o gênio, por delegação especial de Deus, era criador. Isso caiu com pletam ente, e a criatividade, hoje, p er tence ã cozinheira. Q ualquer pessoa tem capacidade de criar. Isso ocorre também por causa da influência das diferenças, essa abertura da criação do novo. C om o dizia .Vlarx: "O homem tem de suprir suas necessidades, e, com isso, ele cria a novidade, ele faz o n o v o ” . E isso não é um acidente para V larx , é um tema belíssimo que ele não chegou a explorar em sua totalidade. Tem um ensaio meu que é exatam ente sobre o adjetivo " n ovo ” em M arx . De fato, esse é um ponto de partida com pletam ente novo para uma antropologia. Procurei isso em Hegel, mas ele não fala em novo. Ele é, no entanto, o prim eiro filósofo que fez referência à m oda. Percebeu que a moda já estava presente na R evolução Industrial, e que sua força já estava perdendo estabilidade. Já em M a rx , a idéia do novo é uma revolu ção, porque ela já está aí. A novidade é uma dim ensão natural do hom em , e não há nada de religioso nisso.
Nesse sentido, como o senhor vê o trabalho de W alter Benjamin? Em especial A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. Não gosto m uito dos fran k fu rtian o s, porque escreviam m uito mal. A Dialética negativa, a Teoria estética... o que é aquilo? A gente tinha que fazer sem inários para
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decifrar o que A dorn o queria dizer realm ente. Por que não escreveu direito? A go ra, o seu livro sobre M ah ler é bom , mas é aquela sinfonia: a prim eira, a segunda, a terceira. Tem coisas em que às vezes os frankfurtianos acertam . E Benjamin tem aquele livro ilegível sobre a tragédia alem ã. Ele tem umas coisas que eu não consi go “en golir” muito bem, a questão da au ra, por exem plo. N ão dá para aceitar isso, porque essa noção tem ranço religioso. E essa crítica à m áquina parece ser difícil de aceitar tam bém , é deficiente e não tem sentido. Acho que as reproduções hoje são tão perfeitas, podem ser colocadas em qualquer casa. D eixa a gente viver com isso! Nós tem os de ter em casa uma pequena pinacoteca em livro, porque é neces sário conhecer as obras. A cho que Benjamin tinha um pouco de medo, essa aura era uma espécie de nostalgia que não consigo entender muito bem.
Quais são os artistas plásticos brasileiros de que o senhor gosta? No Brasil, ponho em prim eiro lugar Iberê Cam argo. Ele queria que eu escrevesse sobre suas obras. M as era muito difícil, porque ele m orava aqui, eu m orava em Porto A legre, e ficava difícil assentar as idéias. De P ortinari eu não gosto m uito. Ele tem coisas interessantes, mas era mau desenhista.
Segundo uma afirm ação do senhor, em Páginas de filosofia da arte, a missão da crítica consiste em to m ar visível o fundamento invisível da arte, em “p ôr de manifesto os vasos comunicantes que fazem com que a arte contemporânea diga a verdade do homem de hoje”. O senhor poderia nos fa la r um pouco sobre esse papel da crítica? Seria possível m encionar alguns traços desse “homem de hoje” que a arte contempo rânea veicula? Esse processo é a superação da dicotom ia sujeito e objeto, e é uma verdade que não diz mais respeito ao juízo de adequação, mas diz respeito ao desvelam ento. D aí eu volto bastante para Heidegger. C) quadro é esse processo dc desvelam ento, e eu só consigo atingir esse desvelam ento se me puser na raiz criativa do quadro. Dessa form a, tenho de desm ontar o quadro, e é isso que me preocupa. N ão é seguir sem pre o que já está feito, o que está construído com o objeto, mas desm ontar para pegar essa raiz e tentar cam inhar com ela. C laro que isso, radicalm ente, é impossível, mas tenho de fazer esse esforço. C om o é que me aproxim o de um quadro? Não vejo o quadro com o objeto, vejo com o uma linguagem, e escrevo com o se pudesse cam inhar paralelam ente em relação à linguagem do quadro. Então recrio o quadro na palavra. C laro que isso é im possível, mas procuro cam inhar nesse sentido. Dessa form a, eu não faço crítica, porque a crítica sempre repousa no objeto, procuro fazer um outro tipo de a b o r dagem das artes plásticas.
Seria essa a diferença entre crítica de arte e estética filosófica? Eu diria que sim. A crítica de arte é sempre objetivante. Nunca fiz isso e não me interessa fazer. Escrevi um ensaio sobre Vasco Prado, um grande am igo meu, para a Folha de S. Paulo. Foi uma coisa linda — e é isso o que me interessa. A liás, esse artigo assemelha-se muito com o livro que escrevi sobre Brecht. T anto Vasco com o
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Brecht são “ P C ” [Partido C om unista] inconform ad os. E a m aneira com o eles re solveram superar essa inconform idade foi através da pesquisa form al. É preciso saber co m o V asco , por m eio de suas esculturas, faz essa pesquisa form al, através de quais cam inhos exato s. E eu enum eraria várias form as; ele tinha, por exem plo, técnicas que usava para form alizar o seu trabalh o sem sair de um certo realism o social. M as, ab rin d o o seu tra b a lh o com um a certa d efo rm ação , há um senso de m onum en talidade, inclusive em suas ob ras pequenas, que B recht tam bém tem. Foi a partir disso que parti para o estudo de B recht, dessa questão da linguagem form al.
Em Páginas de filosofia da arte, o senhor se refere à “perplexidade em que se move o teatro atual e que deriva daquele fulcro fragmentário, obrigando o teatro a ‘escolher’ entre a diversão e o pedagógico, entre o psicológico e o social, entre o literário e o espetáculo absoluto”. Tendo em vista tal circunstância, com o o senhor vê a situação do teatro hoje? Em que medida seria possível falar na “necessária atualidade” de Brecht — para usar os seus termos — , levando-se em conta que um dos prin cipais pontos d o teatro brechtiano é o papel de despertar o espectador para uma tarefa que ele deve assumir, conduzindo assim à produção de m odificações sociais? A atualidade de B recht, em meu entender, prende-se essencialm ente a o caráter p ro fundamente fragm entário dc sua obra. Ele chegou a ter intolerância, porque o modelo da Mãe coragem era para ele uma coisa sagrada e inam ovível. Isso já não tem sen tido, não leva a nada e já acab ou . xVlas o que quero dizer é que essa fragm entação de Brecht o fo rça a se m odificar sem pre, tan to que no fim de sua vida, no tal “ tea tro d ialético ” , não se sabe m uito bem o que ele estava propond o — já estava b o lando uma ou tra coisa. C onheci o Berliner Ensem ble há doze anos, um pouco a n tes da queda do m uro de Berlim . Ele estava ficando m uito rígido, e H einer M üller m elhorou um pouco essa situ ação. T en h o a im pressão de que B recht, nos últim os anos, já estava se sentindo sufocad o com essa rigidez. Ele queria ir para a Suíça, sentia-se sufocad o em Berlim , não agüentava mais aquilo. M as tem toda essa ques tão p rática, que estava dentro de um com prom isso partid ário, da organização de um trabalho. E sua situação era m uito delicada, já que nunca foi bem -visto na Rússia. Ele tinha que cam in h ar sobre ovos. T en h o a im pressão de que se ele não tivesse m orrido, teria ido para Z urique.
Pensando ainda no teatro atual, com o o senhor vê o quadro brasileiro, tanto em termos das encenações feitas com o das obras teóricas produ zidas? Que grupos teatrais o senhor destacaria com o mais relevantes? O s paulistas, pois São Paulo tem um “ la b o ra tó rio ” m uito grande. N o R io tam bém há coisas boas. O que é fan tástico no teatro brasileiro de hoje é que reflete mais ou menos com fidelidade a situação internacional. Então há um experim entalism o muito rico, com diversas linhas de fu ncionam ento que são de certo m odo m undiais. As preocupações de base são idênticas. T od os têm certas m atrizes que são fundam en tais: a palavra e o corp o — duas coisas que se com portam uma em relação ã ou tra. Pensando bem , B recht já era assim , Antunes [Filho] é assim , Z é C elso jM artin ez
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C orrêaI é assim e G erald T h o m as é assim . V ê-sc por aí a fantástica diversidade de posições. ( ) que me encanta é justam ente isso, essa falta dc m onotonia — já não dá mais para agüentar o teatro ch a to , aquelas fórm ulas pisadas e repisadas. E ntão a gente tem de ver o panoram a do teatro m ais a reja d o , mais criativo e com m ais téc nica, pois o teatro n ão pode ficar nas m ãos de am adores.
Com o o senhor avalia os escritos de Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi? São grandes am igos meus. .\cho que fazem parte de um m om ento im portante da evolução do pensam ento sobre teatro no Brasil. Foi por m eio do Estadão e do T B C que o teatro com eçou a apresen tar uma m aior m aturidade profissional e produziu tam bém esse tipo de crítica profissional. Eles tiveram um papel m uito im portante d entro dessa evolução do te a tro brasileiro. O tra b a lh o de S áb ato sobre N elson Rodrigues foi im portantíssim o. N ã o sou um grande fã de N elson R odrigues, em bora sua linguagem tenha sido fundam ental para o teatro brasileiro. M as quando vejo uma de suas peças, penso: “ Esse cara é um ‘c a to lic ã o ’ ” . Ele tinha de co lo ca r sentim ento de culpa na gente? .A grande tarefa da cultura contem porânea, com M a rx, com Freud etc., foi errad icar o sentim ento de cu lpa, e N elson quer co lo ca r o sen ti m ento de culpa. É um catolicão! R ecordo-m e de um artigo de G ustavo C o rção sobre N elson R odrigues que dizia: “ Esse é um dos n o sso s” . Por m eio desse artigo é que com ecei a entender esse m ecanism o de culpa em N elson: ele tem o sentim ento do pecado e não vai além disso, cultua o pecado, que é a grande realidade para ele. N elson Rodrigues pode ser ateu e tudo o que ele quiser, mas essa realidade do pe cad o teológico é forte em sua ob ra. E n tão não tem m uito futuro, é um lim ite de sua ob ra, pois não consegue ultrapassar essa teologia do pecado. E uma coisa fantas m agórica de sua cab eça.
Em Páginas de filosofia da arte, o senhor afirm a: “Hoje, ponho-m e a imaginar um cinema outro, os albores de uma nova arte, que nem im a gino p or onde andarão. Fica a promessa: se tudo passa, o cinem a con segue colocar esse problem a m aior — o do próprio futuro da arte”. O senhor poderia nos falar um pouco sobre essa idéia de uma “nova arte” e sobre a sua relação com o cinema f É um exag ero falar assim , mas diria o seguinte: h oje, as artes da representação es tão com pletam ente dissociadas. N o passado, sem pre tivem os uma unidade m uito grande. M as, com essa questão, voltam os novam ente ã questão da m áquina, por que a m áquina no teatro grego, medieval e até no b arro co era fundam ental, pois tinha uma função teológica. Ela fazia repetir, por exem plo, os m ilagres de C risto. E o povo gostava do fabricante da m áquina, p orqu e, de repente, via-se São Pedro cam inhand o sobre a água sem afundar. Isso era sim plesm ente um truque. E n tão, até o b arro co , havia essa ju n çã o entre a palavra e a m áquina. Vi há pouco o Orfeu de M onteverdi. N o fim, há a cena de O rfeu e seu pai A p oio, que salva o filho e o conduz para o céu. E eles sobem ao céu can tan d o — uma cena belíssim a. Sobem e a m áquina é necessária para a suspensão. Dessa form a, a m áquina existia com uma força m uito grande. H oje, n ão há mais isso, quer dizer, houve uma dissociação muito
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C o n versas co m F iló so fo s B rasileiros
grande. Tivem os a radionovela, passam os pela televisão, teatro e cinem a, e está tudo dissociado. E lógico, por uma espécie de coerên cia interna, im aginar que isso vá se fundir de algum a m aneira, pois, no p assad o, sem pre houve essa fusão. E quem percebeu isso m uito bem foi B recht, que trab alh ou com P iscator e foi o prim eiro que ficou fascinad o pelo cinem a dentro do teatro. Ele viu um espetáculo em Paris, m ontagem de B arrau lt, que coloco u com o cen ário uma vela de navio. De repente, voa uma pom ba, o Espírito San to , que foi film ada e projetad a na vela. Isso, segun do B recht, foi a prim eira experiência de cinem a em teatro . Ele detestava C.laudel, evidentem ente, mas ficou im pressionado com aquilo. B recht, co m o B arrau lt, tinha essa preocu pação em fazer a síntese. Ele gostava da m áquina porque ela ficava a p a rente para o público. E legítim o im aginar que m ais cedo ou mais tarde vão ser fei tas coisas assim . N ão sei co m o vai ser, mas o norm al é que h aja essa síntese. Inclu sive uma síntese pela qual o esp ectad or pudesse participar mais diretam ente.
Nessa imagem, com o ficaria a música? Aí o problem a é com a literatura — com a literatura cod ificad a. Ela adquiriu uma espécie de solenidade nos últim os séculos que não tinh a, que nunca teve. O texto na G récia, por exem plo, era todo conhecido, com histórias conhecidas. N ão se podia m exer! O que está escrito na B íblia, por e.xemplo, está escrito, e é sacrilégio m exer n aquilo. E isso foi substituído por uma g lorificação da língua, o que é m uito nega tivo. .Vias essa situação está se transform an do. Se você pega N elson R odrigues, por exem p lo, não há nada de solene em sua linguagem . E a m elhor coisa de seu teatro é a linguagem , aliás, o que todo m undo fala e está certo. M as ele não tem preten sões de alta literatu ra, tem apenas um lingu ajar cotid ian o m uito saudável e muito bonito. Q uer dizer, as coisas estão se transform ando. A tendência é a síntese, e quem m ais se aproxim ou disso foi C haplin. Chaplin tam bém teve uma capacidade de sín tese fan tástica, pois reabilitou a m ím ica, a pantom im a, coloco u texto quando pôde co lo car e procurou uma reflexão do cinem a dentro do cinem a, na sua própria téc nica. Já me ocorreu isso, mas nunca ouvi ninguém afirm ar. .Aqueles film es mudos do início de sua carreira eram todos quebrad inhos, eram pulinhos. .Vlesmo a m a neira co m o fez Tempos m odernos é assim , tudo cm ped acinhos, e ele com eça a cam inhar assim , porque essa é a técnica do cinem a. E ntão ele inventa uma técnica de atu ação física que imita a técnica cinem atográfica. C arlitos foi um hom em de síntese, de associar todas as coisas.
Chaplin seria o Brecht do cinema... C laro , Brecht era m aníaco por cinem a e gostava m uito dos film es de C haplin. M as tenho a im pressão, em bora não saiba quando ocorrerá isso, de que surgirão ten ta tivas de síntese. H á um processo de fragm entação, e de d issociação, que é e x tra o r dinário, que vem já do século X V II. Será norm al que uma pessoa faça a síntese. As coisas estão m uito estruturadas. Nesse sen tido, quero uma espontaneidade mais saudável. £ hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar.
Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíam os era um fe-
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nômetto essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado N acional com o fonte e garante do Direito e com o detentor do m onopólio do exercício legítimo da violência. Como o senhor vê tal diagnóstico? Na sua visão, a prim azia de que parecem desfrutaras questões m orais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias? T em o que o Estado hoje esteja passando por uma crise m uito forte, e há a necessi dade interna de transform ação. O problem a é saber com o pensar hoje uma sociedade sem o E stado. N o fundo, são certos tipos de organ ização que têm de ser reestru turados. C laro que não se deve confund ir E stado com governabilid ade, a gover nabilidade é um co n ceito m uito mais am plo, e o E stado m oderno m uitas vezes é confund ido com ela. A análise de Hegel sobre isso é fan tástica, mas é uma “ sin fo n ia ” . E n tretan to , tan to no Manifesto comunista, q u anto no Capital, M a rx fala do Estado e o associa à violência. Já Hegel fala no “ terreno d iv in o” , na soberania di vina em última instância, quer dizer, ele elogia o Estado. E há uma ou tra im p lica ção nessa questão: o cap italism o. O E stado está por detrás do cap italism o, m an i pula o cap italism o, daí a violência. M as podem os pensar o E stado sem o cap italis mo.^ Isso é praticam ente im possível. Pode haver, no m áxim o, uma certa tran sfo r m ação interna. Sim plesm ente superar o E stado não é possível, porque daí vira uma esculham bação universal e absoluta. O curioso é que M a rx era m uito otim ista, dizia que só tinha de se estatizar duas coisas: o banco central e o tran sp orte, para g a ra n tir a lo co m o ção do povo na R evolu ção . E isso tudo tem de durar o m ínim o na di tadura popular. T em de durar pouco tem po para se reestruturar tudo. Q uer dizer, M a rx parte da possibilidade de que se pode reestruturar tudo com o se fosse um jogo de xadrez, que se pode fazer um ou tro tipo de distribuição da riqueza. M as, hoje, já se sabe que as coisas não são bem assim , e que tudo e m ais com plicad o. E que o desvio do m arxism o feito por Stalin e Lênin, no fundo, foi uma necessidade h istó rica. O velho M a rx era m uito ingênuo, pois não é fazendo um castelo de cartas que se vai tran sform ar o capitalism o. Eu não vejo saída. E tem mais uma coisa: nós não tem os m ais grandes p olíti co s, com o não tem os grandes filósofos, co m o não tem os um novo Picasso ou um novo B recht. Isso é uma coisa m uito séria, tem os de to m ar m uito cuidado para não cair em uma situ ação m eio fascistóide. M as, até a m etade do século, na direita ou na esquerda — isso não interessa — , havia política e havia políticos que d om ina vam o m undo. H oje é tudo m uito ruim e tudo m uito fraco . E n tão, co m o é que fica a política? Q uem faz uma reform a? Tem de surgir um p o lítico forte. Por que não surge um P icasso novo? Isso é um p ro blem a, pois n ão posso fazer um clone de Picasso. M as eu a ch o que o m undo está precisando de política e de gente que saiba ter as rédeas na m ão. N ão estou faland o de ditadura de esquerda ou de direita. N o passado, tinha H itler, tinha Stalin, tinha C hurchill e R oosevelt. Esse era um grupo de gente que tinha as rédeas na m ão. Pode-se pensar em G etú lio, Perón, M ussolini, Fran co , Salazar, todo um nacion alism o de direita ou dc esquerda. H avia a van ta gem de uma diretiva, de uma o rien tação. N ão tenho nostalgia dessa política, mas faltam política e p olíticos que saibam ter as rédeas na m ão. Isso está faltand o. Está tudo m uito óbvio, Fernando H enrique pensa com o se o capital fosse cam in hand o
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sozinho, não há p ro jeto para nada, não há necessidade. Assim não se pode gover nar, e ele não governa mesm o. Cowio o setthor caracterizaria a sua relação com a religião e a fé f Eu sou ateu conv icto. Isso não quer dizer que eu desrespeite a rehgião. Para m im , a questão de Deus é essenciahnente histórica; quer dizer, tudo o que a fé, a rehgião. Deus, a divindade, a política, no passado, fizeram para prejudicar o hom em faz parte de um princípio de alienação m uito violento. Isso foi danoso, e acho que a Igreja foi a m aior assassina da história, pois destruiu culturas inteiras com uma facilidade bru tal. Essa história do descobrim ento é um fenôm eno m uito am bíguo, porque a alteri dade vem para cim a. e com o é que se “en g ole" a alteridade? Tem de m atar e acab ar com tudo. Eu espero que a fé e a religião desapareçam . Pela prim eira vez na h istó ria, o hom em está fazendo a experiên cia do ateísm o coletivo. N ós, no Brasil, ainda tem os religião, porque estam os num país subdesenvolvido, mas na França, na .Alema nha, tem pouquíssim a religião. Uma psicanalista da antiga A lem anha O riental es teve aqui há pouco tem po e eu lhe perguntei co m o , depois da queda do m uro, esta va a situação da religião. Ela falou que não há m ais. .\s vezes surge um ou ou tro caso patológico. N esse sen tid o, a experiência da A lem anha O riental foi fantástica. Foram três gerações de experiências socialistas que desm oronaram , e, com isso, todos os ideais e todas as crenças desapareceram . Eles não voltaram para a religião, e esse fato é e xtrao rd in á rio . Esse tipo de experiên cia é im portan te, porque não se restrin ge só ã classe cu lta, mais elevada, mas ã classe popular tam bém . Se se pega toda uma sociedade, uma cidade co m o Berlim , ninguém mais pensa em voltar para a re ligião. Simplesmente acabou. E ntão, tem de se inventar uma religião m uito diferente. Se eu tivesse de escolher uma religião, sabe qual escolheria? A grega, porque é a m ais hum ana. O s deuses não têm nada a ver com o am or cristão e essas b o b a gens. É sim plesm ente o pensam ento que pensa a si próprio. A poio é o deus do Sol, da cabeça e do pensam ento. T o d o s põem em prim eiro lugar o pensam ento na m i tologia e na filosofia, e deus sem pre é o pensador principal. E n tã o , acho m uito mais interessante a filosofia com o ciência. .A ciência pode m odificar as estruturas sociais, ela é essencialm ente revolu cionária. Por isso é que a questão da m entira tam bém se torna im portante. T u d o se liga, tudo form a um co n ju n to , e trata-se de um proces so de libertação. Pode ser m eio ingênuo, mas há um processo de tran sform ação em curso, e o hom em tem medo disso, pois não é fácil aceitar essas coisas.
Como o senhor se situa em relação aos problem as de uma “mudança de paradigm a” da fdosofia, de uma filosofia “pós-m etafísica” calcada na linguagem? T em de aparecer o filósofo. Eu não con cord o com o que fazem hoje com a lingua gem , na medida cm que se cai numa o b jetiv ação generalizada. C o m o é que vai ser a filosofia? .Vias agora eu ach o que há uma espécie de crise. A coisa está indo num tom m enor, mas logo surge alguém. A gente está m uito acostu m ad o com a filo so fia m oderna, que dura do século X V I até hoje — é muita filosofia. E n tã o não dá para saber que tipo de pensam ento vai de fato ocu p ar a sociedade. Esse pensam en to terá de estar voltado para a tecn olog ia, para a com p u tação , eletrônica etc.
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o senhor utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do futuro da sociedade humana f Em que consistiria tal utopia? U topia no sentido dos soniios. C^laro que a gente sem pre vai sonhar com uma socie dade ideal e coisas desse tipo. M as acho que a utopia se com plica no século X X — e isso não está no meu livro — , porque surge, de um lado, toda uma literatu ra antiutópica, com o O admirável mundo novo, de Aldous H uxley, que esvazia a idéia de utopia. E essa utopia tem uma linha que vem de T h o m a s M o o re , passa pela experiência socialista do século passado e chega ao esvaziam ento no século X X . Há tam bém uma nova utopia que deve ser pensada — e ninguém está pen sando isso — , que é a utopia cientificista, das histórias em quadrinhos. C o m o é essa utopia das histórias em quadrinhos? O s autores fazem que tip o de p ro jeção? Q ual é o im aginário (e utopia é im aginário) que está na base? Tem uma evolução? C a m inha de que m aneira? Porque o nosso im aginário está hoje form ad o por essas histórias. E é essa a utopia de h o je, a tecnológica. Por exem plo: a fan tástica lo co m oção das naves que fincam os céus e os universos. N ós estam os apenas no p rincí pio disso. M as aí eu gostaria de saber porque surge esse no\'o tipo de utopia ju sta m ente na história em quadrinhos? Por que surgiu nesse m eio? E tem futuro: o avião já é uma coisa a n acrô n ica, o autom óvel é execrável, tem de se a cab ar com essas coisas. E n tão eu fico perplexo, pois a utopia acom panha o pensam ento m oderno. .Acho que a intervenção que faço deve estar correta, porque não tem nada de P la tão , S. A gostinho, coisas antigas. F. a capacidade reflexiva do hom em , de auto-refletir, de criticar-se, que está presente na utopia. E aí voltam os para a questão da tran sp arência, pois a sociedade m oderna é transparente dem ais. C om o é que, de repente, o hom em se torna tão transparente? Quem tentou fazer isso foi o velho Aristóteles, que queria colocar tudo em conceitos. Foi o único na G récia, na terra da filo so fia, a fazer isso. Para nós, h o je, isso é um h áb ito cotid ian o, (,'om m uito m arxism o, muita psicanálise, surgiram as técnicas da tran sp arência. E isso afeta a org an ização da sociedade. H á um esfacelam ento m ui to grande do Estado, para o qual ninguém está vendo a saída, e que tem de ser acom panhado por uma exigência de reflexão m uito forte. .Vias a coisa está fervendo, essa transparência é uma das coisas mais im pressionantes que existem hoje em dia, e teria de ser analisada do ponto de vista sociológ ico para ver a sua relação com a utopia.
Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos com o riscos am bientais globais, am eaças de desintegração social em larga escala e alienação cultural em massa. Com o o senhor vê tais pro blemas? \'ejo com o o horror, mas o cam inho é clássico: pedagogia. E através dessas experiên cias negativas que vam os poder construir um novo regime. N ão se pode apenas tapar os buracos. N o passado, tapavam -se os buracos, mas hoje em dia não dá mais para fazer isso, tem de se enfrentar os problem as. E a questão ecológica está aí, é um tem a p o lítico. E xiste a parte tecn ológ ica, que é fundam ental, mas tem de se ver o processo de con scien tização que está havendo. Aqui no R io , por exem plo, é m uito forte. Em São Paulo tam bém deve ser, em qualquer cidade da Europa tam bém . O s bandidos podem ser m ais facilm ente d esm ascarados nessas questões. É com o esse
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problem a da P etrobrás, que ocorreu agora: esse tipo de problem a o co rre por pura negligência, e deve haver punição séria, pois não se pode com eter esses crim es. Nunca conseguiram despoluir essa Baía da G u an abara!
Nessa entrevista, o senhor levantou alguns temas sobre os quais tem trabalhado atualmente, com o a antropologia e a questão da alteridade, a máquina e o organismo, e mesmo a m oral da finitude. Com o o se nhor vê esses temas em sua produção futurai Eu sou m uito fragm ento. N ão planejo as coisas, tenho diversos livros na cabeça que estão por ser escritos, mas n ão tenho tem po, devido a ser sem pre convidado para me ocu par disso e daquilo — e não é possível recusar tudo, senão fico tran cado dentro de casa. Estou plan ejan d o um livro sobre antinom ias que pode ser m uito interessante. Parto do princípio de que o nosso m undo estaria povoado por an ti nom ias, co m o , por e.xemplo, a questão entre sujeito e o b je to — essa questão é uma antinom ia que se com p lica. O u então, uma ou tra questão an tin ôm ica, a linguagem de cálcu lo e a linguagem de cria çã o — uma antinom ia que tam bém se com plica. O u tra, ainda, é a antinom ia presente na relação entre sistema e fragm ento, pois hoje som os sistema e fragm ento ao m esm o tem po. D escobri que há umas dez antinom ias [risos]. Q u eria, en tão, fazer uma análise que passasse pela questão da linguagem , da org anização social, uma espécie de ensaio para analisar tipos de antinom ias — e não a lógica de antinom ias. Deve sair em breve uma reedição de Metafísica e finitude, em que acrescentei m ais dois ensaios. H á ainda m ais uma coletân ea de ensaios para sair. Eu quero tam bém reeditar a Dialética: teoria praxis, mas sem correção nenhum a, porque não dá tem po de fazer.
Principais publicações:
1969
Os filósofos pré-socráticos (São Paulo: C u ltrix, 1 9 8 5 ); Introdução ao filosofar: o pensamento filosófico em bases existenciais {Porto
1969
Alegre: G lo b o ); O sentido e a máscara (São Paulo: Perspectiva);
1967
1971 1973 1977 19 8 0
Sartre: metafísica e existencialismo (São Paulo: Perspectiva); Metafísica e finitude (São Paulo: Perspectiva, reedição no prelo); Dialética, teoria praxis: ensaio para uma crítica da fundamentação onto lógica da dialética (P orto .Alegre: G lo b o ); C) idiota e o espírito objetivo (P orto Alegre/ R io de Ja n e iro : Globo/Uapê, 19 9 8 );
1983 1993 1998 1998
Teatro: a cena dividida (P orto .Alegre: I.& P M ); Brecht: a estética do teatro (R io de Ja n e iro : G raal); Páginas de filosofia da arte (R io de Ja n e iro : Uapê); O conceito de descobrimento (R io de Ja n e iro ; Eduerj).
G erd B orn heim
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B ib liografia de referência da entrevista: Aristóteles. Metafísica, M ad ri: E ditorial G redos. ____________. Poética, coleção O s Pensadores, Abril Cultural. C'omte, A. Curso de filosofia positiva, coleção Os Pensadores, Abril Cultural. Fou cault, -M. As palavras e as coisas, M artin s Fontes. Freyre, G . Casa grande e senzala, Jo sé O lym pic. H egel, G . W . F. Estética, Lisboa: G uim arães. ____________. Fenomenologia do espírito. Vozes. H eidegger, M . Ser e tempo. Vozes. ____________. Chemins qui mènent nulle part, Paris: G allim ard. ____________. C o leção O s Pensadores, Abril Cultural. K ant, L Crítica da razão pura, coleção O s Pensadores, Abril Cultural. ____________. Crítica da faculdade do juízo. Forense. M a rx , K. O capital, coleção O s E conom istas, .Abril C ultural. M a r x . K. e Engels, F. Manifesto do Partido Comunista, in Ohras escolhidas. Alfa O m ega. .M erleau-Ponty, M . Fenomenologia da percepção, M artins Fontes. Sartre, J.-P . O ser e o nada. Vozes. ____________. Crítica de la razón dialética, Buenos Aires: Losada. ____________. Cahiers pour une morale, Paris: G allim ard. ____________. C oleção O s Pensadores, Abril Cultural.
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B E N E D IT O N U N ES (1 9 2 9 )
Benedito N unes nasceu em 1 9 2 9 , em Belém (PA). F orm ad o em D ireito , foi ed itor da revista Norte. C riou o cu rso de F ilosofia da Universidade Federal do Pará, da qual é hoje professor em érito. Esta entrevista foi realizada em fevereiro de 2 0 0 0 .
Goethe dividiu a vida de seu personagem Wilhelm Meister em dois romances. O s anos de aprendizado e O s anos de peregrinação. N o pri meiro, o foco está posto na fon nação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que o senhor nos falas se de sua fon nação intelectual? Sou um au tod id ata, talvez o liltim o representante dessa espécie em e xtin çã o . Formei-me em direito, e passei a lecionar filosofia com 19 anos — desde cedo, já es crevia sobre questões filosóficas e literárias. Flavia um suplem ento literário m uito bom aqui, que durou de 1 9 4 6 a 1 9 5 1 , ch am ad o Suplemento Literário da Folha do
Norte, que não só publicava m atérias locais, de escritores locais, com o publicava tam bém escritos de D rum m ond, de Cecília M eireles etc. C om o se filiava a um ser viço de d istribuição de m atérias jo rn alísticas, o Suplemento recebia sem analm ente um envelope com artigos de O tto M aria C arpeaux, Álvaro Lins etc. Publiquei muitos textos nesse suplem ento. O u tro dia eu contestei uma biografia m inha que dizia que eu era form ad o em filosofia. Sou form ado em D ireito. Eu tinha um tio que m orava em São Paulo, C arlos A lberto N unes, que era tradutor. Ele estava disposto a me receber em sua casa para eu estudar filosofia na USP. .Meu estudo seria custeado por um outro tio, irm ão dele, que naquela época era banqu eiro. M as esse meu tio banqueiro faliu. F o que eu ia fazer? E ntrar para m edicina? Para farm ácia? O d on to log ia? A cabei entrand o em direito, onde se ensinava bem teoria do conh ecim ento. T rab alh áv am os m uito o li vro de Flartm ann: Metafísica do conhecimento. G rande parte desse livro era dado no curso de d ireito. Essa parte foi m uito boa, mas o resto eu ab om in ava, principal m ente a parte de legislação e de direito positivo. E isso foi bom porque, nessa ép o ca, com ecei a n am orar minha mulher — que era m inha colega — e, com o não g os tava do cu rso, tínham os m uito tem po e cond ições para nam o rar [risos]. Havia bons professores aqui, com boa form ação. T o d o s eram autodidatas. N ão tive um professor que tenha feito cu rso de pós-grad uação. C laro que todos tinham a fam osa tese. M esm o para o curso ginasial era exigida a defesa de uma tese. T inham de escrever com os próprios m eios, não havia bolsa, não havia orientad or. Editava-se a tese e apresentava-se a uma banca constitu ída por ou tros autod id atas.
B en ed ito N u nes
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D eixa eu m ostrar um texto que fala da tese de Francisco M endes, Raízes românti cas, escrita em 1 9 4 4 : “ N aquela época, exigia-se da parte dos que lecionavam no curso médio uma tese co m o d em onstração de sapiên cia, escrita sem orientad or ou b olsa, mas que por força das cirscun stâncias tinha de ser invenção do can d id ato , com as ob ras apontad as na bibliografia de sua exclusiva propriedade. À falta de bibliotecas locais atualizadas, o candidato era o dono real dos livros que citava. T inha de os possuir guardados em sua ca sa ” . Eu tive de com p rar os meus próprios livros, porque aqui não havia livros. H avia som ente o de Estevão Cruz — uma história da filosofia — e o de um senhor cham ad o L ars, que era esco lástico , editado pela M e lhoram entos. D epois surgiu T eo b a ld o de M iran d a Santos. Q uand o com ecei a dar aula na Faculdade de Filoso fia, eu traduzia certos textos do francês, do inglês, e passava para os alunos — isso foi um ótim o exercício . C om ecei ensinando no gi násio, no tem po em que havia filosofia no ginasial, que era um pouco de p sicolo gia, de história da filosofia, um pouco de ética. O s alunos gostavam m uito quando eu falava sobre psicanálise — que era um novidade e despertava m uito interesse.
Com o se deu a decisão de seguir uma carreira acadêm ica em filosofia? B om , teve aquela história de entrar na filosofia, que gorou por causa do meu tio banqu eiro. D aí eu fiz uma espécie de autod id atism o sistem ático e m etódico [risosl. I.ia Hegel durante m eses, toda a Fenomenologia do espírito, a Filosofia da história etc., e ia anotando num caderno. Passava em seguida para H usserl, lia as Idéias para
uma filosofia fenom enológica, as Investigações lógicas. N a verdade, eu estou m ui to nesses cad erninhos que estão atrás de vocês, nesse arm ário. H á dezenas de pe quenos cadernos. Li sistem aticam ente tam bém Heidegger. Prim eiro li em espanhol, que foi a prim eira trad u ção de Heidegger, anterior ã trad u ção fran cesa. A trad u çã o francesa foi tard ia, com o tam bém a brasileira. Em relação a esta últim a, não gosto da trad u ção do term o Dasein por “ p resen ça” . É aquela história shakespeareana: um defeito põe tudo a perder. Escrevi um artig o, que não publiquei porque adm iro m uito a M árcia — a trad u tora — , em que há um trecho de H eidegger que diz: “Dasein não é presença. A presença é con ta das coisas e dos o b je to s ” . Alguns ainda separam “pre-sença” : “ sen ça” com o verbo ser. Esse etim ologism o é “ b ra b o ” .
Em sua Aula Inaugural do ano de 1999, na UFPA, o senhor diz que a partir da geração de 1870, uma parcela da intelligentsia paraense com posta de médicos, advogados e professores, “a m aioria sem fon nação acadêm ica especializada, realizou a conquista de sua identidade inte lectual à custa de afincado autodidatism o, que ainda se prolongou por muitos anos em um bom número de seus herdeiros, já quando partícipes do magistério universitário”. E o senhor lembra que “Jo sé Veríssimo foi o m elhor e mais competente autodidata dentre os expoentes paraenses das idéias novas”. Na sua visão, o que distingue a sua geração daque la de Jo s é Veríssimo e da imediatamente posterior? O autodidatism o da g eração de Jo sé V eríssim o tinha as .suas enorm es falhas, mas fez com que ele se encam inhasse para a an trop olog ia, escrevendo trab alh os n o tá veis. A m inha geração, em grande parte, foi alcançada pela preparação dos cursos
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Benedito Nunes: “ Enfim, fazer filosofia é descobrir um novo ângulo não só para analisar as doutrinas passadas, a própria história da filosofia, mas para colocar sob nova angulação o co n creto, o real. a história, a sociedade etc. Quer dizer: fazer filosofia é pensar de novo aquilo que é com u m ".
de pós-grad uação. É isso que distingue a nova g eração: é beneficiada — e às vezes prejudicada — pelos cursos de pós-graduação. Digo prejudicada porque muitas vezes esses cursos levam a uma ro tin a, uma rotina m uitas vezes de escrita. E são raros os trab alh os que dão o prazer da leitura, pois, na sua m aioria, são uma espécie de relatórios aborrecidos. H á, no entanto, exceções notáveis. Certa vez recebi uma tese de Jo aq u im Brasil Fontes, de C am pin as, que queria que eu participasse de sua b an ca de tese. O trab alh o era m uito honroso. C om ecei a ler, e foi um deslum bram en to, era um trab alh o m agnífico, um tra b a lh o de um helenista sobre Safo. Ele partia de Baudelaire, chegava a Safo e, depois, traduzia os seus fragm entos. São essas sur presas que com pensam . E n tã o , pode-se dizer que Jo a q u im tem uma fo rm ação re gular no velho estilo, e tem um com ponente hum anista m uito grande em sua fo r m ação. E é esse com ponente que, no cu rso de ciências hum anas, falece um pouco a cada dia, pois está faltand o o conh ecim ento de línguas. Até m esm o a leitura em voz alta de certos estudantes é penosa, é gaguejada. Isso é uma deficiência que a fo r m ação regular deixa. N ã o estou critican d o com isso os cursos de g rad u ação, estou critican d o essas deficiências que não são supridas. N a verdade, essas deficiências dependem de um esforço pessoal que recua até esse fundo de reserva que cham ei de autod id atism o. Se você não se em penha realm ente, se você não é um pouquinho ap aixo n ad o pelo que faz, n ão há je ito ... O senhor vê então uma linha de continuidade entre a geração de Jo sé
Veríssimo e a sua? Sim . Fran cisco M endes era um au tod id ata, e era form ado em direito tam bém . Foi ele quem com eçou a me ensinar literatu ra. C laro que hoje o M E C não d eixaria que esse tipo de coisa acontecesse |risosJ. Eu ensinei filosofia porqu e, naquele tem po, o M E C tinha um con cu rso feito nos estados cham ad o Exam e de P roficiên cia, e era isso que dava a au torização para lecionar.
Também em sua Aula Inaugural de 1999, na UFPA, o senhor enfatizou a importância da existência de uma intelligentsia, que precedeu a cria ção da Universidade do Pará, “e que já form ara uma cultura erudita sem a qual a nossa Universidade não teria existido. E também verda deiro que, criados esses estabelecimentos de ensino superior, surgia em 1957 algo novo, a form ação universitária, que no Brasil foi uma tar dia floração da terceira década deste século, próspero no Sul e no Nor deste, entre 1934, data da fundação da Universidade de São Paulo, e 1946, data do aparecim ento da Universidade de Pernambuco. A do Distrito Federal, depois da Universidade do Brasil e da Bahia, a p a recidas respectivamente em 1936 e 1946. E evidente que a cultura eru dita, já antes desenvolta, vai radicar-se na universidade como fonte institucionalmente forte em ensino superior de técnicas, artes, letras, ciên cias e filosofia”. O senhor considera que esse enraizamento da cultura erudita local também se verificou na fundação de outras universida des, ou seria essa uma peculiaridade daquela que viria a ser mais tar de a UFPA?
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Se nós adm itirm os o autodidatism o co m o gerai, isso pode ter oco rrid o em outras universidades. .Vias não tenlio base para afirm ar isso. C o n lieço a situ ação m uito peculiar daqui, não só porque tive c o n ta to com pessoas da g eração passada, com o tam bém devido ã minlia própria experiência de autod id ata. N ão posso generalizar isso para toda parte, mas é possível que sim. D ado que a universidade surgiu tard ia mente entre nós, e dado que a produção intelectual, m esm o com grandes falhas, não cessou, essa form ação extra-universitária sem pre ocorreu. Isso nós vemos mais na literatura e menos na filosofia. M as a filo sofia, a meu ver, já exige uma espécie de ap ro p riação da trad ição antiga, quer dizer, sem P latão e A ristóteles não há filo sofia. O P latão da universidade é uma coisa singular. De qualquer m odo é uma co n trib u ição extra -u n iv ersitá ria , porque da universidade propriam ente dita não surgiu isso. Isso veio de fora. Certa vez, em São Paulo, o meu tio C arlo s A lberto disse-me que estava disposto a ceder os direitos autorais de Platão para quem q ui sesse assum i-los. porque a M elh o ra m en to s já havia pu blicad o os d iálogos mais com uns — os pequenos diálogos. Isso com eçou a ser publicado na época da ad m i n istração de .Aluísio Chaves — são onze volum es no to tal. Agora estão tratan d o de reeditar, com eçando por A Repiiblicd. M as falta dinheiro à universidade, aliás, acho que falta vontade de fazer algum a coisa. O trab alh o do meu tio era m onum ental: ele escrevia ã m ão, d atilografava e encadernava. Eu tenho todos os cad ernos. Precisava de uma disciplina m uito g ran de para realizar isso. Antes ele traduziu a OíiisséIíJ e a Ilíadii de H om ero, de que .Viário Faustino gostava m uito. M eu tio foi um dos meus grandes fornecedores de livros. Q uase todo mês eu recebia um pacote de livros vindo de São Paulo, com rom ances, livros dc filosofia. Por exem plo: a edição de 1921 que tenho de K an t, de Berlim , foi presente dele. A edição original de Schelling tam bém . A la recherche du temps perdu, de Proust, na ed ição da G allim ard do tem po da G u erra, feita no C^anadà em doze volum es, foi ele tam bém que me forneceu. Vlas ele era en graçad o, um pouco arcaizante. Ele sabia m uito a respeito de Platão, de .Antiguidade em gérai, mas não prezava literatura m oderna. Até os d ra m as que ele escrevia eram em versos. Eu não gostav a, e ele sabia disso. A m inha entrada no m odernism o foi para valer. O senhor escreveu o “Prefácio” à reunião dos poem as de M ax Martins, N ão para consolar. Esse “Prefácio” pode ser considerado também como
um documento de balanço geracional. O senhor afirm a que o grupo de intelectuais a que estava ligado teve com o uma de suas experiências decisivas a reunião em tom o do Suplem ento Literário da Folha do N orte, fundado e dirigido por Haroldo M aranhão, também ele um membro destacado desse circulo de intelectuais. Nas sttas palavras: “o encarte dom inical da F olh a do N orte, que durou de 1946 a 1951, também direcionou a convivência intelectual que nos ligava. Por m eio do nosso atualizadíssimo mestre Francisco Paulo Mendes, ligatra pessoas mais velhas ou apenas menos jovens do que nós. Por fim, criou-se um espí rito comum na maneira de sentir e de pensar o mundo real e a literatu ra”. No que consistia esse espírito com um i
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Esse espírito com um era o cu ltivo dos m esm os au tores, poetas e filósofos, m uitos dos quais M endes apontou para nós. Ele dizia: “ Leia Ju lien G reen, leia François M au riac, ou então leia R ain er M aria R ilk e ” , pelo qual ele era ap aixo n ad o. E ntão surgiu esse espírito com um que, com o todo espírito com um , era um p ou co fa ccio so, pois nós culti\'ávamos esses autores e detestávam os ou tros. Esse grupo era fo r m ado por duas gerações diferentes: uma geração mais velha, da qual participavam Francisco Mendes, Rui Barata — que era poeta — , Paulo Plínio Abreu — que morreu cedo — ; e a outra geração, que era form ada por mim, .Viário Faustino, M ax M artins, Cauby Cruz — que tam bém m orreu novo e era poeta. Essas duas alas se uniram em to rn o do professor VIendes, numa mesa do C afé C entral — o qual desapareceu há m uito tem po. N aquela ép oca, havia ainda relações que se form avam em to rn o de m esas de café. O golpe de m isericórdia foi dado em 1 9 6 4 , porque todos esta vam sob suspeita de ser com unistas. C laro que nós éram os m ais de esquerda do que de direita — óbvio! T ín h am o s as nossas sim patias, tínham os am igos com unistas, mas não pertencíam os a nenhum partid o, o que fazia parte desse espírito com um . Encontrei uma frase em um livro de U nam uno, que eu usava m uito naquela época, co rro b o ran d o as posições de M endes, que dizia: “ hom em de partid o, hom em p ar tid o ” . E, assim , esse grupo durou m uito. VIendes, depois, continuou a debater idéias e exp o r seus pontos de vista na casa de um am igo mais velho, que não freqüentava o Café C en tral, V lach ad o C o elh o. Essa fase foi m uito im portante, porque daí c o m eçam os a conh ecer certos autores, e eu com ecei a con h ecer certos filósofos com o Heidegger, Sartre, Paul Landsberg.
Com o esses autores chegaram ao senhor? Através de alguém, ou foi descoberta solitária? .Vluitos eu descobri sozinho, co m o U n am uno, por exem plo. Landsberg e Sartre foi .VIendes quem d escobriu. Ele era o elem ento catalisad or, dava inform ações e ju lg a va os poetas. Eu tentei ser poeta. Até essa fase, ach o que não havia brasileiro com fo rm ação literária que n ão tentasse ser. E o crítico Francisco Mendes matou o poeta Benedito Nunes... Ele agiu ce rto , viu que eu não era poeta. Q uand o eu apresentava meus poem as, percebia que ele não gostava m uito, em bora fosse sem pre m uito delicado. E foi ele quem me encam inhou para o ensaio. O prim eiro ensaio que fiz, em que citava Paul Landsberg, cham ava-se A morte e o cotidiano em Ivan Illitch — ensaio que eu não publicaria hoje. Ivan c a personagem de T o lstó i. D ep ois, escrevi um ensaio sobre M ário Faustino, e um sobre Fernando Pessoa.
A leitura do “Prefácio” a N ão para con so lar indica que a sua geração não recebeu imediatamente o impacto modernista da Semana de 1922, nem da passagem de M ário de Andrade p or Belém em 1927, de m odo que a recepção da Semana viria já am algam ada à da cham ada gera ção de 194S. Mas o senhor afirm a que isso não pode ser computado simplesmente ao isolamento, aliás, bastante relativo. O que havia a mais, além do isolamento? A leitura do m encionado “Prefácio” suge
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re-nos, parece, que saltara etapa da Semana foi, antes de tudo, um golpe de sorte para a sua geração. É assim mesmo? Como o senhor avalia esses dois momentos do modernismo brasileiro — o da Semana e o da gera ção de 194.5? N ós perdem os a Sem ana, e essa perda foi m uito negativa, porque nós tínham os um fundo acad êm ico terrível, p arn asian o, ao qual ficam os grudados durante m uito tem po com a “A cadem ia dos N ov os” . E essa academ ia prosperou. Lem bro-m e bem que, antes de fundarm os a A cadem ia, H arold o M a ra n h ã o escreveu um artigo a ta cand o a poesia m oderna. E a A cadem ia foi fundada para defender a boa lingua gem , os clássicos e, conseqüentem ente, o parn asianism o. E n tão, fez falta o con h e cim en to acerca da arte m oderna. Em 1 9 4 5 , .Mário de Andrade m orria e nós está vam os saindo da Academ ia. É bem verdade que entram os na academ ia m uito cedo, eu devia estar no terceiro an o ginasial — devia ter meus 14 ou 15 anos. Em um trab alh o que vou publicar sobre o professor M endes, vou co lo ca r um apêndice cham ad o “ C rôn ica de uma acad em ia” , m ostrand o com o as pessoas p ro cediam , co m o falavam — enfim , vou falar sobre o ritual acadêm ico. Isso era m uito engraçad o, principalm ente pensando h oje, com a distância do tem po. Foi m uito im portante ter conh ecid o a Sem ana por interm édio da g eração de 1 9 4 5 . Essa geração fez uma forte crítica ã Sem ana, talvez um pouco exagerada, mas, de qualquer modo, salutar. Houve um balanço, e nós ficam os com os melhores; lemos m uito D rum m ond e C ecília M eireles. M á rio Faustino, quando entrou em co n tato com tudo isso, assum iu-se co m o um poeta adulto. Salvo alguns poem as que publi cou em jo rn al, o d om ínio que ele tinha sobre a palavra era m uito grande. A princí pio, escrevia apenas crô n icas no estilo de Rubem Braga. Ele tinha uma prosa m ui to fina, m uito interessante, destinada para o leitor de jornal do bonde, do ônibus — eram m uito rápidas.
Nesse mesmo “Prefácio”, o senhor escreveu o seguinte: “dois fatos re levantes, em nossa vivência geracional, contribuíram para o desenvolvimento da poesia de Ma.v ulteriormente à publicação de O estranho; a convivência intelectual com Robert Stock, e o im pacto do livro de Mário Faustino O hom em e sua h o ra ”. Qual foi a contribuição desses dois fatos para o seu desenvolvimento intelectual? A diferença de idade entre .Mário e mim era de apenas um ano — eu era um ano m ais velho. N ós éram os m uito am igos, e ele me ensinava inglês. Ele era um tipo exu berante que falava m uito bem e m uito, mas não era um falastrão. N ós tín h a m os uma intim idade m uito grande. Ele tam bém foi cronista de cinem a, tinha c rô nicas m uito boas. Na época, passou no cinem a daqui o Hainlet de Law rance O livier, e ele escreveu cinco ou seis crôn icas sobre esse film e. D epois, foi aos Estados U ni dos e com eçou a 1er os poetas em inglês. Q uand o voltou dessa viagem , R o b ert Stock já estava por aqui. Stock foi o prim eiro beatnik. Era um m isto dc ingenuidade com inteligência, e só pensava em literatura. Era um sujeito m uito generoso, que certa vez fez a seguinte proposta, que revela bem o seu grau de ingenuidade e de argúcia; “N ós podem os fazer alguma co isa, podem os ir para os EUA , nossas m ulheres trab alh am , e nós ficam os o dia
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inteiro len d o” [risos]. E ele fazia isso realm ente. .Morava num b airro m uito pobre — o b airro da M atin h a — , num casebre de ch ão de terra, e era conh ecid o com o o “ hom em da m atin h a ” . Ele era filho do dono de uma grande cadeia de frigoríficos, mas repudiou essa vida. V eio para cá atrás de um am igo que ia fundar uma c o lô nia anarquista — eles eram “ anarquistas esp iritu alistas” — na Ilha do B ananal. D aí ele chegou ao Brasil e o cam arad a não veio. Ele, a m ulher e a filha pegaram não um ita no N o rte, m as um ita no Sul, e foram subindo pela co sta. C h egaram ao M a ranhão, onde estava acon tecen d o uma eleição m uito disputada, e ele foi baleado, tendo de ficar hospitalizado por algum tem po. N aquela época, eu tinha uma revista literária cham ada Norte. Ele se mteressou por essa revista e foi me p rocurar. C^hegou aqui em 1 9 5 0 . T o d o sábad o ele ia me visitar, só não me visitava quando sua mulher lavava a sua única calça [risos]. Vias tinha um dos mais gigantescos Webster’s que já vi, e uma arca com todos os poe m as de D rum m ond traduzidos para o inglês. Ele fez das traduções a sua o b ra , pois considerava a tradução com o um trabalho de recriação. Eu ainda tenho muitas notas do B ob . Ele se em penhava em dar à gente con h ecim ento de coisas com o sonetos de Shakespeare. Ele traduzia um por um, palavra por palavra, exp licand o as acepções de cada palavra. Algo notável. Ele era um grande filólogo e se m antinha dando aulas de inglês. Anos depois, eu o revi em N ova Y o rk . Já falava m uito mal o português, mas m antinha as m esm as posições anarquistas de antes: era co n tra o governo am e ricano, adotava um enorm e sím bolo da paz e fazia questão de m o rar num b airro negro, em Long Island. Ele trab alh ava co m o free-lancer em publicidade. Q u anto a V iário Faustino, posso dizer que era m uito crítico , e isso me sacudia m uito. Ele me deu uma dica que até hoje aceito e acato : a necessidade de escrever com clareza. Q u an d o eu m andava os artig os para o Jornal do Brasil, ele dizia: “ Ó tim o , ninguém escreve coisas tão im portantes. M as é m uito to rtu o so, é preciso to rn ar as idéias cla ra s ” . Ele se elogiava, rindo de si m esm o, em tom de ridículo. É difícil co n ciliar nele tantos ângulos co n trá rio s e op ostos. Ele criticava m uito ta m bém. Um dia, pediu para o meu sogro, que era desem bargador aqui, uma carta de recom endação para ir aos Estados Unidos. Víeu sogro pediu para ele escrever a carta. Ele fez a carta dizendo que tinha tais predicados, que conhecia isso e aq u ilo, e que “ sabe inglês com o a sua própria língua” [risos]. Nesse p o n to, M á rio com eçou a e.scapar das influências do professor M endes, que tinha uma influência m uito b oa, mas fran cesa. M á rio tro u xe esses poetas de língua inglesa e deu sua con trib u ição para o grupo, porqu e, a partir disso, o p ro fessor VIendes passou a se interessar tam bém por esses poetas. M ário era m uito esfuziante, m uito rison ho, sabia dar gargalhadas. C erta vez. uns estudantes p ro cu raram -m e porque queriam fazer um recital dos poem as de V iário. M as o estilo que eles en con traram era o de um hom em to rtu o so , ensim es m ado, e eu disse: “ m as o .Mário não é nada disso, vocês não podem recitar dessa m an eira” . Eu fiquei com os livros dele, que vieram do R io . A m ãe dele pediu que eu os dividisse com nossos am igos. C]hamei os am igos para escolherem o que quisessem . O que sobrou ficou com igo, inclusive a ob ra com pleta de Pound. É engraçad o, pois •Viário não era poundiano do ponto de vista p o ético, era poundiano co m o crítico.
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o senhor colaborou com o Suplem ento D om inical do Jo rn a l do Brasil na década de 1950, que era então um ponto de referência nevrálgico para o debate cultural brasileiro. Com o o senhor avalia essa experiên cia? Que diferença o senhor vê entre o Suplem ento D om inical e o Su plem ento L iterário de O E stado de S. Paulo, que seria, p or assim dizer, o seu “correspondente paulista” naquele período, e que era anim ado principalmente p or autores ligados à revista C lim a? Foi a p artir de 1 9 5 9 que com ecei a p u blicar em ü Estado de S. Paulo, a con v ite de D écio de Almeida Prado. Por sinal, foi por aí que surgiu a iniciativa de um dos meus prim eiros livros. N essa época, ,Antonio C ândido estava orientan d o a C o le ção Buriti. Foi por eu co la b o ra r com o Estado que ele me encom endou livros para essa coleção. M ais do que ver d iferenças entre eles, eu tendo a ver diferenças entre esses dois suplem entos e os suplem entos atu ais, m esm o em relação àqueles que surgi ram logo depois. A distância é m uito grande, hoje em dia obriga-se a escrever ta n tas páginas e ta n ta s linhas sob re “ fu la n o de t a l” . É q uase um a resen h a, uma recensão — com o dizem os portugueses. E n qu an to que, naquela ép o ca, o Jornal do Brasil, por exem p lo, publicava artig os enorm es, de dez, doze, até quinze pági nas. O Estado de S. Paulo tam bém , m as era m uito m ais n ortead o pelo D écio, que gostava de fazer edições tem áticas. C erta vez, fez uma ed ição sobre K a fk a , e pe diu para cada qual escrever sobre um aspecto da obra desse au tor — foi m uito interessante. H avia uma liberalidade na im prensa, que aceitava até m esm o m atérias que não eram encom endadas. Se eu tinha um escrito na gaveta, podia m andar para um desses jornais. O Jornal do Brasil publicava “ Poesia e exp eriên cia” , e outras seções, em páginas inteiras. Havia tam bém uma seção cham ada “ Livro de en sa io ” , que era uma página grande subdividida em pequenas seções, com o se fossem páginas de um livro. A intenção do jornal era que seus leitores recortassem essa página e fizessem um caderno. Um a vez escrevi um trab alh o que foi publicado em cin co páginas in teiras, sobre um assunto que hoje é inabsorvível: o pensam ento de Sócrates.
Com o o senhor se posicionou em relação à disputa entre cariocas e paulistas em tom o do concretismo, que teve com o um dos seus fóm ns mais importantes exatam ente o Suplem ento D om in ical do J B ? Seria possível entendê-la como uma reedição das disputas entre cariocas e paulistas no primeiro m odem ism o brasileiro? Isso nunca me passou pela cab eça. Eu me dava com todos eles: com os C am pos e com Ferreira G u llar, que freqüentava a redação do JB, onde trabalh ava tam bém esse rapaz que publica m uitos rom ances hoje cham ad o Assis Brasil. O s paulistas estavam aliados com Gullar. A polêmica já foi a posteriori. D epois, esses m ovim entos deram a volta por cim a: hoje, a gente vê os concretistas escrevendo versos e G ullar escrevendo uma ótim a poesia, com o nesse seu últim o livro, Muitas vozes. São as m etam orfoses dos autores e dos m ovim entos. M as cessou o vanguardism o no país, cessou tam bém o revolu cionarism o, cessou a utopia, de tal form a que nós estam os m uito d esfalcados. Ainda não conseguiram substitutos.
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Na década de 1960, três paradigm as teóricos m arcaram o am biente intelectual: o estruturalismo, o existencialismo e o marxismo. Com o o senhor avalia a evolução desses paradigm as até os dias de hoje, e que balanço o senhor faria da sua relação com eles? A m inha relação mais profunda e constan te foi com a filosofia da existên cia, e isso se localizou sobretud o em H eidegger. N o e n ta n to , escrevi sobre L cvi-Strau ss, A margem do estruturalismo, quando estava ainda na França. N esse m om ento, I.éviStrauss ocupava o m esm o lugar que M erleau -P onty ocupara antes na França. N a verdade, foi pelo estruturalism o, con firm ad o pela ob ra de Fou cault, que entram os na questão da linguagem. O estruturalism o teve essa grande virtude: ch am ar a aten ção para a linguagem . Les mots et tes choses é um livro fundam ental, em bo ra F ou cau lt tendesse a d esvalorizá-lo, achand o que era circunstan cial. C erta vez, ele passou por Belém a cam in ho da Ilha de M a ra jó . Estava na casa de um am igo. M ach ad o C o elh o, e m andou me cham ar. N aquela época, eu gostava m uito de prom over conferências, e perguntei a Fou cault: “ O senhor faria uma c o n ferência a q u i?” . Ele disse que faria e, na volta de M a ra jó , fez a con ferência. Ficou um a sem ana, mas a Universidade não pagou um to stã o a ele. A quilo foi em 19 7 0 , era um tem po duro. Para garantir a presença das pessoas aqui eu fazia listas — quem quisesse se inscrevia. D epois consegui uma boa q u an tidade de pessoas representativas, professores etc. Um dia, fui ch am ad o pelo dire to r dizendo que havia recebido um pedido do serviço de segurança para enviar a m inha lista. Eu disse para ele não enviar. N aquele tem po, havia o serviço de segu rança na Universidade que tinha co n e x ã o com o serviço secreto do E xército. Até Fou cault foi investigado. Beneficiei-m e m uito da obra de Lefèvre, da sua interpretação do m arxism o. N ão só da flexibilidade com que o lê, mas por um tópico a que ninguém ainda prestou aten ção: a m etafilo sofia, que é a retórica da filosofia. Essa m inha preocu pação de relacionar filosofia e poesia se aproveitou m uito dessas idéias de Lefèvre, não da parte da poética, mas da parte da retórica. H á uma diferença entre a poética e a retórica: na poética é preciso en trar nas m etáforas, nas figuras de linguagem ; já na parte da retórica é preciso reparar nos m eios de persuasão. Um a é atinente ao dis cu rso, e a o u tra é atinente às im agens faladas. Em determ inada época, devido à atividade na E scola de T e a tro , por acharem que eu não era “ vead o” , achavam que eu podia ser com unista. H ouve doze inqué ritos aqui. .A própria Universidade era obrigada a ter uma com issão de inquérito. E houve um outro inquérito que chegou à Segunda Seção. Eles usavam o seguinte ardil: eles cham avam as pessoas para ser testem unhas em processos já abertos.
No ensaio “Cultura e política: 1964-69”, Roberto Schwarz defende a idéia de que, no período m encionado no título do artigo, a direita de tinha o poder, mas a esquerda conseguiu a hegemonia cultural. O se nhor considera correto esse diagnóstico? Com o o senhor avalia esse período da história brasileira? Eu tenho uma idéia diferente. A cho que de 1 9 6 4 a 1 9 6 9 a esquerda foi d esb arata da. D etinha a hegem onia intelectual, mas sua atu a çã o foi anulada. Pelo m enos o
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grupo do C afé C entral acab ou . As ob ras que solicitavam mais aten ção , as de M en des talvez, eram obras de esquerda, ob ras de cará ter insurrecional, literariam ente faland o. Nessa ép oca, até houve uma m elhora na prosa. M u itos rom ances foram escritos. xVlas a hegem onia era da d ireita, em bora as coisas fossem m uito m istura das no Brasil. Sartre dizia que todos os brasileiros pareciam ser de esquerda. N a verdade, brasileiro é bom dc papo.
Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Com o o senhor vê as relações entre a filosofia e a cultura brasileira? Se pensarm os em uma filosofia com características brasileiras, com o uma con cep çã o do m undo que só o Brasil proporciona por ser o Brasil, a minha resposta é não. A m enos que visem os filosofia no sentido lato: pensam ento social, h istórico e polí tico. Nesse sentido. O liveira V ianna e seu livro A evolução do povo brasileiro tem filosofia, Casa grande e senzala, de G ilb erto Freyre, tam bém . Adm ito o term o “ fi losofia b rasileira” com o filosofia feita no Brasil, mas a partir de uma reapropriação da trad ição filo sófica, da história da filosofia e das ob ras-fo n te. O u con tinu am os o d iálogo com P latão, A ristóteles, D escartes, K ant e Flegel, ou não há filosofia. As cond ições da cultura brasileira, até certo m om en to, não foram propícias ã filosofia nesse sentido. Q uer dizer, os autodidatas que nos precederam eram um tanto desavisados. C ito o m ais ilustre deles: Farias B rito , o qual li m uito. H á um peque no livro m eu, da Editora .Agir, sobre ele. Farias B rito estudou m uito C om te, mas sem pre do ponto de vista da degenerescência da ép oca, das idéias que estim ulavam o censo de ordem , que estava sendo prejudicado. Nes.se caso, o autodidatism o é infil trado com o uma espécie de ideologia conservadora. E n tão, acho que o esquerdism o me salvou.
Com o o senhor avalia o ensino de filosofia no Brasil hoje? O ensino dc filosofia no Brasil, com o acontece em geral com todo ensino universi tário, está m uito prejudicado no sentido quantitativo que ele assum e. É uma espé cie dc grande arm azém de horas-aula. C om isso, devido a essa carga h orária, falta m uitas vezes ao professor uma disponibilidade para enfrentar os textos com o alu no. Lê-se pouco. As vezes, aos estudantes falta o con h ecim ento de línguas estran geiras, e tem os de traduzir. O u então recorrer a uma trad u ção. .A coleção O s Pen sadores prestou, desse ponto de vista, uma grande aju d a, e são bons os trad u tores, gente qualificad a. O Husserl traduzido por |ZeljkoJ L oparic é m uito bom . .Aliás, é engraçad o: L oparic com eçou com filosofia analítica e hoje está heideggeriano — faz um trab alh o m uito rico sobre a ética heideggeriana. T o d o s os anos nós tem os um co ló q u io , que com eça na U nicam p e term ina na PUC de São Paulo. N a PUC é p atrocin ad o pelo D ep artam en to de Psicologia C línica.
Salvo m elhor juízo, a estética sempre foi entre nós um ramo da filoso fia bem menos explorado do que, p or exemplo, a epistemologia, a moral ou a política. Essa situação mudou? -Mudou por portas transversas, porque a estética no Brasil sem pre foi praticada por vias transversas, por interm édio da crítica. F, a crítica literária e a crítica de arte que
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vêm conduzindo a estética. D iretam ente são poucas as tentativas consistentes. U lti m am ente nós tem os visto coisas interessantes, co m o essa série de Evaido C outinh o — um autor interessantíssim o. Ele faz uma interpretação meio fenom enológica, meio existen cial, de tipo husserliana, mas escreve com grande clareza e precisão. N ão é só em estética, mas em ou tros d om ínios, filósofos que não tinham ne nhum a ap ro xim ação con o sco passam agora a interessar. O trab alh o de M arilena Chaui sobre Espinosa, os trab alh os de (îia n n o tti sobre W ittgenstein... O senhor vê um cruzamento desses trabalhos com suas preocupações? Sim , principalm ente a questão da linguagem em W ittgenstein. Prim eiro, aquele tra tam ento rígido da linguagem , a linguagem com o lim ite do m undo em form ato de proposições que podem ser verdadeiras ou falsas. Indaga-se o que é linguagem, podese separar a linguagem de form as de vida. O que é a linguagem ? A cu ltu ra, a p ro núncia, a palavra. Ainda não tive tem po de 1er o livro de M arilena Chaui, que é uma enorm idade.
Em A filosofia c o m ilênio, o senhor estabeleceu uma diferença de na tureza entre filósofo e professor de filosofia, afirm ando que “nem todo professor de filosofia foi filósofo, e, inversamente, nem todo filósofo foi professor de filosofia”. Tal afirm ação valeria para caracterizar a dis tinção corrente entre fazer filosofia e fazer história da filosofia? Sim , fazer história da filosofia e um cam in ho fácil, pois é só continu ar o que em grande parte já está feito. Fazer filosofia é igual a fazer boa filo sofia, é preciso es tar em uma perspectiva diferente, em uma perspectiva própria, cm uma perspecti va inédita. Enfim , fazer filosofia é d escobrir um novo ângulo n ão só para analisar as doutrinas passadas, a própria história da filo sofia, mas para co lo car sob nova angu lação o co n creto , o real, a história, a sociedade etc. Q uer dizer: fazer filosofia é pensar de novo aquilo que é com um . C ostum o dizer que filo sofia, de certo m odo, correspond e a uma trivialidade. Porque se trata da mesma linguagem , a linguagem com um , com um distanciam ento que a gente exige na arte, isto é, um distanciam ento feito não para ficar a cavaleiro das coisas, mas que as co lo ca sob uma perspectiva diferente.
Há aquele dito de Heidegger: “ O pensador diz o ser. O poeta nom eia o sagrado”, que surge em diversos momentos da sua obra. Seria esse dito a senha para a distinção entre filosofia e arte? É preciso pensar, porque H eidegger recua ao m ais “ p rim itivo” , quer dizer, recua ao sagrado e não fala em religioso. O sagrado seria o e xtra o rd in á rio , o supra-individual, aquilo que eu não posso dom inar, ou seja, nenhuma técnica e nenhum a ciên cia são capazes de conh ecê-lo. Ele está sem pre fora de m im, está sem pre fora dos o u tro s, e, com isso, chegam os ã idéia de terror e estrem ecim ento. Ju stam ente esse estrem ecim ento, na poesia, é subm etido ao ritm o e à form a. Pode haver o pensa m ento do sagrado. H eidegger fala no sagrad o, que não é o religioso, e, a o m esm o tem po, adm ite o dito nietzscheano da m orte de Deus. O sagrado é algo que se a fa s ta de Deus e dos deuses. Em com p en sação . H eidegger tem uma n oção m uito enig
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m ática (e no meu livro Crivo de papel há dois trab alh os a respeito) do últim o Deus. Ele diz que se nós podem os alcan çar uma últim a con cep ção do ser, e se essa c o n cepção é um m odo de vida, en tão nós alcançarem os tam bém uma nova noção de Deus. E n tretanto, Heidegger diz tam bém que toda a filosofia é atéia. Heidegger não escrevia com o pensador, escrevia com o poeta. Ele pensa o ser c escreve o sagrado [risos].
Que conceito(s) de sua reflexão o senhor destacaria com o o(s) mais representativo(s) da sua produção filosófica? Pediríamos que nos con tasse com o ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e com o o senhor o(s) vê hoje. O tema m ais con stan te e mais presente em m inha reflexão filosófica é o da relação entre poesia e filosofia. Surgiu quando escrevi um artigo sobre Fernando Pessoa: “ Fernando Pessoa: poeta m etafísico ” . N esse te x to , eu dizia que ele “ tom ava liber dades” com a m etafísica, que ele devia m udar de m etafísica com o quem muda de gravata. Essa liberdade lúdica em relação ã filosofia teve m uita im portância para a com preensão desse nexo entre a filosofia e a poesia, quer dizer, o fundo poético da filosofia. Esse nexo não pode sem pre ser pensado da m esm a m aneira, porque nem sem pre a filosofia e a poesia se relacionam da m esm a form a. Isso quer dizer que a fam osa passagem de A República de P latão , da expu lsão dos p oetas, não pode ser tom ada co m o uma imagem exem plar. P latão afeiçoava-se pelos poetas que eram possuídos, os poetas possessos. E ntão a relação entre filosofia e poesia não é even tual, ela é uma relação h istoricam ente forte, no sentido próprio da palavra. Porque m uito da filosofia se config u rou a p artir de uma reação co n tra a p oesia, co m o , m odernam ente, m uito da poesia se configu rou filosoficam ente. A poesia m oderna em grande parte é alim entada pela reflexão filosófica. E ntão essa é a principal tri lha que venho seguindo, com os estudos sobre Jo ã o C abral de M elo N eto , da fen o m enologia, da form a das coisas e do m isticism o de C larice L ispector. E tenho pro cu rado tratar isso de uma m aneira mais geral, em tese, co m o no “ E nsaio sobre o pensam ento p o ético ” que está em Crivo de papel.
Escrevendo sobre a relação entre filosofia e literatura, o senhor alerta que “o primeiro risco a evitar é a busca de conceitos instrumentais na Filosofia para o exercício de uma pretensa Crítica Filosófica, que ten taria estudar a obra com o a ilustração de verdades gerais. No prim ei ro estudo que escrevi sobre Clarice Lispector, c a í na sedutora arm adi lha dessa Crítica redutora”. E que redundou “em apresentar a ficção da romancista jem A p a ixã o segundo GHj com o ilustração do pensa m ento sartreano". O senhor poderia nos fa la r um pouco sobre essa evolução na leitura de Clarice Lispector? Entre o prim eiro livro. Leitura de Clarice Lispector, e o segundo, O drama da lin guagem, C larice soube que o segundo livro estava sendo escrito e perguntou a a l guém (que depois me con tou ): “ Será que ele ainda vai me con sid erar uma escritora e xisten cialista?” . E n tão tive cuidado de tom ar com o lim iar de toda reflexão a n ar rativa de C larice, a sua fo rm a, o seu desenvolvim ento, o em prego de certas figuras
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dc retórica — com o a rep etição, por exem plo — , enfim : estudar em prim eiro lugar a linguagem , isto é, a con fig u ração da narrativa. F. estudando essa con fig u ração, poderia chegar a uma ap reciação da filo sofia, a uma con cep ção de m undo. E n tão foi graças a essa m ediação da form a que eu consegui ultrapassar o p o n to de vista m uito sim plificado do meu prim eiro livro. Ela tinha razão cm desconfiar. D epois de co n statar que não era mais considerada uma existen cialista, ela olhou para mim e disse, elogiand o-m e: “ V ocê não é um c rítico , você é uma ou tra coisa que não consigo d efinir” .
Com o evitar esse risco no caso de poetas em que a “musa filosófica” é particularmente presente, com o é o caso de Fernando Pessoa, referên cia constante de seu trabalho? D o ponto de vista do problem a que estam os tratan d o , esse é um aspecto mais p ar ticular a Fernando Pessoa. A sua atitude em relação à filosofia é a de um poeta no período da crise da m etafísica. N a verdade, o que Fernando Pessoa pensa é que a m etafísica pode se erigir em várias form as, que podem passar de umas para as outras, co m o m udam os de cam isa e de gravata. C om o a gente sabe que ele conviveu muito com filósofos, leu m uitos filósofos com o D escartes, K ant c até mesmo N ietzsche, aquilo traduz o peso que a filosofia teve. E n tão a m etafísica era encarada com o uma im possibilidade, do ponto de vista do con h ecim en to, m as, ao m esm o tem po, com o um pendor ã poesia. E n tão, é impossível desvencilhar isso de Fernando Pessoa. Isso é fácil em L)«ão) C ab ral, sem que, en tretan to , um fundo fenom cnológico d esapareça, pois esse fundo é sem pre m uito patente. A sua poesia é toda descritiva no sentido de descrever essências, fica no âm bito da fenom enologia. N o caso de Clarice Lispector, eu tinha tom ado somente a figura da náusea, a história da verdade, da m oral etc. A própria C larice Lispector devia ach ar isso tudo m uito estranho.
A noção de “niilism o”, surgida na linhagem de Nietzsche e Heidegger, é central na sua reflexão, o que p ode ser atestado pelo título de seu li vro N o tem po do niilism o e outros ensaios. O que é o “niilism o” que caracteriza o nosso tempo? A n oção mais expedita é a de N ietzsche: “ transvalorização de todos os valores e tc .” . Falta o topos. O individualism o m oderno prescindiu dc Deus. O niilism o é p ara d o x al, pois nessa época em que não há o ser, mas apenas o ente, ele projeta a poe sia co m o uma exigência e uma necessidade. E, por ou tro lado, a arte ganha mais volum e em contraste com esse pessim ism o. É um dos parad oxos do nosso tem po. M as tam bém podem os perguntar: Hegel não declarou a m orte da arte? É quase um bruto contraste, não fosse Hegel o filósofo das contrad ições. A mesma doutrina que defende a idéia da arte com o produto do esp írito, defende a sua e.xtinção, o seu fim, o seu Ende. Isso se deve à própria função da filo sofia, quer dizer, a filosofia que fo rja a idéia da arte e que vai desintegrar essa mesma idéia, absorvend o-a. Isso é da econom ia do sistema hegeliano: estabelece uma classificação das artes com o ta m bém uma classificação que é ainda mais im portante, a das con cepções do m undo: a con cep ção sim bólica, a con cep ção clássica e a con cep ção ro m ân tica. O ro m an tism o caracteriza-se pelo prim ado da subjetividade — o eu. C om esse prim ado dá-
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se a con ceitu alização que, através da poesia, causa a m igração da arte para o seio da filosofia. É m uito bem engendrado. E isso não acontece apenas com a pintura e a escu ltura, que operam essa tran sição, m as com a poesia, no sentido que se dava ã poesia na época. É cu rioso que o Ende da arte, o Verfallen, a sua decadência, não impede Hegel de traçar cam inhos para a arte na época em que vivia — uma época de decadência que, no en tan to , oferecia uma obra diante da qual Hegel se cala, que é o Fausto de Goethe. Então o rom ance é uma form a degenerescente, mas o rom ance é filo sofia. O hum or contrib u i para essa passagem , no en tan to , o hum or dá um Sterne. Para Hegel é essencial a m orte da arte, no próprio relacionam ento entre a filosofia e a arte.
Habitualmente, ao reunir ensaios em livro, o senhor não os faz prece der de uma introdução ou apresentação. A que se deve isso? Qual é o sentido do titulo Crivo dc papel, de 1998, que enfeixa os seus escritos mais recentes? Crivo de papel não traz uma introd u ção por uma razão curial: porque perderam |risos|. Q uand o vi o livro, perguntei ao editor: “ E a in tro d u çã o ?” . Ele disse que o rapaz que organizou o livro havia esquecido de incluí-la.
Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên cias e o saber cientifico. Tal relação perm anece até hoje? Com o ela se dá na atualidade? Esse nexo não pode ser pensado sem pre da mesma m aneira, porque as ciências e a filosofia têm m udado desde a .Antiguidade. A teologia de que fala A ristóteles não é a mesma teologia de Santo A nselm o e de Santo T o m ás de A quino. Para D escartes, a física que se originou da m etafísica não é a mesma física de A ristóteles — a física cartesian a é m atem atizada. Entre as próprias ciências da época moderna varia o re lacion am ento, dependendo das diferenças de perspectiva: m atem atização e evolu ção. A soberania das ciências no século X I X firmou-se por intermédio do positivismo. Ela se torna problem ática com o aparecim en to das ciências hum anas, que introdu zem o ponto de vista da com preensão em face da exp licação causalista.
Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenôm eno estético em nossa socieda de. Com o o senhor se posiciona em relação a esse debate? A m orte da arte, a sua d issolução {Auflösen), a sua decadência {Verfallen) ou o seu fim {F.nde), é tem atizada na Estética de Hegel com o a doutrina do ca rá ter passado da arte e a sua suprem a d estinação. E isso entra em co n flito com a n oção aí ex p o s ta de arte com o produto da atividade do espírito. .Ao relacionar a arte com o absoluto, Hegel preparou-lhe a dissolução. A pergunta de Heidegger, "se arte é ainda um modo essencial e necessário de nossa atual existên cia” , resolve-se no m om ento do R o m an tism o, com a predom inância da poesia. As ob ras de arte exprim em visões do m un do {Darstellung). O pensam ento e a reflexão ultrapassam as belas-artes. H avia tam bém em Hegel a posição relativa ao juízo estético, um prolonga m ento de sua crítica a Kant. A dm itindo que não havia arte sem visão do m undo,
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Hegel aceitava que havia sem pre um nexo de p articip ação, diferentem ente do que ocorre com o juízo estético, em que se aprecia por m eio de um ju lgam ento, ou seja, passa-se a ju lgar uma coisa que se recebe entre o conh ecim ento e o n ão-con hecim ento. Em K ant existe o p rático, o teórico e o estético. H egel não aceitava essa divisão, e, se n ão houvesse um a envolvência, não haveria a recepção da arte. E essa envolvência corresp o nd e ã cap acid ad e da visão do m undo, produto do esp írito com um . Isso evoca, de certa m aneira, G ad am er, em Verdade e m étodo, quer dizer, se n ão se retom a a história da o b ra , a obra cai no terreno da a b stra çã o . E n tão , podese falar aqui, com o em W alter B en jam in, em uma verdade da o b ra, na sua fo rm a çã o , na sua função de engendrar uma sociedade. Isso tudo o ju ízo estético perde. T e n h o a im pressão de que o problem a não m orre com o fato de H egel ter decretado a m orte da arte, com o a parte do espírito ab so lu to que tem de soço brar. A final, quem m ata é a filosofia. Esse problem a se aguça quando percebem os as li m itações da arte atu alm ente, e pela pergunta do que fundam enta a arte hoje. A arte não se apóia mais num a con cep ção de m undo, hoje é apenas uma atividade da in timidade dos museus — as pessoas já produzem para museus. Nesse sentido, o ponto de vista hegeliano é m uito rico. E há ainda a a ssociação que sobressai entre a arte e a tecn olog ia: a in stalação , por exem p lo, é algo tecn ológ ico na arte. A técnica c o r responde ju stam ente a esse poder de in stalação do co n ju n to . Só sobrou uma form a de representar, em bora Hegel não usasse essa palavra, mas Darstellung. M orreu uma espécie de arte, uma form a que não existe m ais, que é a cena do m undo. A arte não se faz m ais para o m undo, mas a partir do m undo, lim itada ao horizonte do museu.
No seu ensaio “Música, filosofia e literatura”, o senhor esboça uma imagem da arte futura nos seguintes termos: “Se, na época presente, pintura e escultura tendem a desaparecer em proveito do objeto plásti co, e a poesia propende a estabelecer um tipo de apreensão plástica, sonora e visual ao mesmo tempo (a unidade verbo-voco-visual dos con cretistas): p o rq u e não se poderia legitimar uma música dram ática ou um dram a musical?”. Esta imagem da arte que se desenha seria então submetida cada vez mais a imperativos da técnica em vez de ser lugar de “eclosão da verdade”? Isso seria adm itir que a verdade não pode eclodir em uma óp era. N essa cita çã o eu me refiro a com o poder pensar uma a ssociação entre m úsica e dram a fora dos p a drões op erísticos do século X I X . O p ró p rio Schön berg tentou fazer esse dram a musical em M oses und Aaron. N ã o se pode suprim ir essa possibilidade do dram a m usical, ou da música que não está am arrada à trad ição do século X I X , o dram a realista, verista etc. P or que não eclode a verdade num tipo de dram a co m o aquele de Schön berg e em Penderecki?
Qual é, na sua opinião, a diferença entre “crítica de arte” e “estética”? De acordo com m uitos, a crítica de arte deveria ser uma estética aplicad a, mas acho que não é assim . A crítica dc arte pode ser mais do que a estética, no sentido
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de que envolve: a relação de quem recebe a obra com a o b ra ; a relação de quem faz a prim eira leitura com a o b ra ; e toda a história, que acode a crítica de arte. \ esté tica tende a eternizar os valores, enqu anto a crítica de arte segue o fluxo do dia-adia, do que está sendo produzido. £ , dadas as cond ições da arte atu al, ela tem sido exercida com m uita dificuldade. A não ser que se faça aquilo que certas pessoas aconselham , ou seja, que a crítica de arte crie os con ceitos da própria arte que está sendo estudada. E isso é o que vem acontecend o: cria-se às vezes adequadam ente, às vezes arbitrariam ente. Esse d om ínio é difícil de estabelecer, e isso me angustia m uito. C om o se legitim a a op inião sobre as ob ras de artes plásticas hoje? O s pa drões não mudaram tanto. É que a linguagem é um instrum ento, e a linguagem verbal tem suas m etáforas, suas p antom im as, e pode entrar no elem ento plástico de c o n figuração num recorte diferente do trad icion al. M as a poesia, no sentido am plo, que tem m udado m ais em sua con cep ção , é aquela que con tinu a sendo acessível. O senhor acredita que a noção de “catarse” é hoje ainda válida para apreender a experiência estética? É difícil pensar nisso depois de B recht. M as um autor pode, com o d istanciam ento, criar o im pacto. Se há im pacto, pode haver catarse. Uma orquestra sin fônica gera catarse , e pode, de certo m o d o , ser c a tá rtica . Eu assisti a uma ap resen tação da O rquestra de V iena na E stação Jú lio Prestes de São Paulo, e era, sem dúvida ne nhuma, um espetáculo catártico. M as não me lem bro de nenhum espetáculo de teatro em que isso tenha acon tecid o. N o cinem a, sim: os filmes de Kurosavva, Bresson, Eellini.
Com o o senhor vê o atual panoram a da literatura no Brasil? Sem entusiasm o. E. co rreta , há bons glosadores, mas não se encontram m ais aq u e les que causavam estrem ecim ento e adesão. A ntigam ente, nós ficávam os esp eran do os livros de D rum m ond, pensando no que ele ia dizer, no que ele ia fazer. £ hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar.
Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíam os era um fe nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado N acional com o fonte e garante do Direito e com o detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como o senhor vê tal diagnóstico? Na sua visão, a prim azia de que parecem desfrutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias? A política era um fenóm eno n acional. Pode-se aceitá-la porque era, antes de tudo, um fenóm eno dependente do conh ecim ento histórico e das leis da história. Em pri m eiro plano, a revolu ção ou o progresso, robustecidos pelas tran sform ações h istó ricas, afetavam ou configu ravam os povos co n stitu íd o s cm n ação . Só as nações ingressariam no ciclo histórico da revolução ou do progresso. O aperfeiçoam ento indefinido no futuro e o rom pim ento com o passado na conqu ista do novo. E stare m os sob o tirânico im pério da m udança. Adm ite-se uma razão universal uniform e atu and o do m esm o m odo em toda parte.
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É certo que K an t, em Id éú de uma história universal de um ponto de vista
cosm opolita, postula um prop ósito da natureza para o desenvolvim ento das dis posições hum anas. E procura co n tirm á-lo recorrend o à exp eriên cia, que não lhe oferece senão certos sinais co m o aceitação das liberdades civis e as vantagens do esclarecim ento. N ad a, pois, de superfície para e la b o ra r uma história universal, e sim para considerá-la com o possível. O ra , essa possibilidade, para K ant, é mais uma exigên cia da razão do que um atestad o de que a razão governa o m undo. Um a exigência prática d em andando o com prom isso da vontade autônom a para instituir os im perativos m orais, visando com isso a form a de universalidade ética. O hom em é o sujeito dessa universalidade, que só pode vingar quand o, ao agirm os, to m ar m os cada indivíduo e nós m esm os sem pre com o um fim , e jam ais com o um meio. Esse fim de um ser racion al, capaz de instituir im perativos m o rais, é a sua dignida de. R econ h ecer essa dignidade, e agir em conform id ad e com tal reconhecim ento, é estendê-la a cada hom em em sua hum anidade. O m aior problem a para a espécie hum ana, cu ja solução a natureza ob rig a, é a lcan çar uma sociedade civil que adm i nistre universalm ente o d ireito. C onseqüentem ente, a questão da unidade da espé cie é p rática, ética e p o lítica, e, não ob stan te, teórica.
Com o o senhor caracterizaria a sua relação com a religião e a fé f A religião im plica em p articip ação social ou coletiva, independentem ente do indi víduo. A fé im plica no convencim ento e na crença. E n tã o a religião precede o indi víduo, já está feita quando se nasce, entra-se nela. ju sta m e n te a fc é uma postura de ad esão, uma cren ça: crer naquilo que se apresen ta. O ra , a possibilidade oposta ã crença é a descrença. A o m esm o tem po, ela é a a firm ação do indivíduo, da sua possibilidade. E n tão a substância das coisas que esperam os é a esperança, a e.xpectativa em relação ao futuro. Por isso, acho interessante a opinião de M arcelo Cíauchet acerca da op inião w eberiana do d esencantam ento do m undo. Ele aplica essa n o çã o à religião. M o stra que, prim eiram ente, essa religião é de ad esão, de inerência etc. Q uand o o cristianism o traz a noção de fé, a firm e conv icção das coisas que não se vêem, nós estam os diante de uma religião que, ao m esm o tem po, m ostra a saída da religião. O cristianism o é a religião co m o saída da religião, ele possui todas as possibilidades de ceticism o, de heresia. Eu sou de fam ília cató lica e tentei ser ca tó lico . C om ecei a me afastar quando, por volta dos anos 19.50, o papa concedeu a G rã-O rd em de C risto ao F ran co . Isso foi de arrepiar. Passei tam bém pela fase ilum inista, em que via a religião com o o engano ao qual as pessoas se subm etem — ou seja, a religião é sem pre produto de um logro que é provocad o por alguém . Isso me ocorre revendo o passado, quando me lem bro da m inha tese sobre Papai N oel, que dizia o seguinte: assim co m o me enganaram durante m uito tem po dizendo que havia Papai N oel, do m esm o m odo a religião pode ser um grande engano — a noção de salvação etc. Eu ultrapassei essa tese iluminista. I loje, o cristianism o ainda é prolífico, goza de uma força inercial e continua produzindo essas pequenas religiões que vão surgindo — as religiões do cristianism o rentável, onde as pessoas aprendem a ganhar dinheiro. E stão se insur gindo na França contra a igreja de Edir M aced o. Ciostaria de ouvir o que essas igrejas dizem , mas devem ser m uito ch atas. Seria interessante fazer um estudo de p sicolo
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gia a respeito do cristianism o hoje. Tem um Hvro m uito interessante, publicado no C an ad á, sobre as razões do pentecostalism o no B rasil. Esse assunto me interessa m uito: a religião de m odo geral, o princípio do cristianism o etc. Até com ecei a es crever uns trab alh os novos a respeito disso.
Com o o senhor se situa em relação aos problem as de uma “mudança de paradigm a” da filosofia, de uma filosofia “pós-m etafísica" calcada na linguagem? F. preciso buscar esse decalque, porque a filosofia já está calcada na linguagem. E, co m o d em on stração desse decalque, nós tivem os a reviravolta que se verificou acentuadam ente em Heidegger, na segunda fase de seu pensam ento. E tam bém nos dois W ittgensteins, o do Tractatus logico-philosophicits e o das Investigações filo
sóficas. Por ou tro lado, N ietzsche diz que o pensam ento, a filosofia, está à mercê de um bando de m etáforas, de m etoním ias, de palavras sem elhantes e de repetições. Talvez daí venha o meu grande interesse pela relação entre filosofia e poesia. Em P latão isso é evidente, pois ele é um poeta antes de tudo. Apenas condenou os poetas com o im itadores. .Vlesmo K ant, que parece o mais estranho a isso, foi considerado com o um “pensador de p en a” (Federdenker), que pensava escrevendo. Em H eideg ger, mais acintosam ente no Ser e tempo, é grande o uso de paronom ásias, de palavras sem elhantes usadas repetidam ente. E na segunda fase, a linguagem , o di/er, está em ligação direta com o ser. Há uma diferença entre a con cep ção dc Ser e tempo e a con cep ção posterior. Isso quer dizer então que a linguagem não é um simples instru m ento, mas já é uma cam ada constitutiva do próprio pensamento. Essa função instru mental é criticada por Heidegger, que, por ou tro lado, critica tam bém a lingüística com o m eio de ap ro xim ação da linguagem . Ele critica a diferença entre significante e significado, e introduz a n oção de escuta: o escutar os texto s etc. F. há ainda o veio herm enêutico, a cond ição im anente da linguagem . P ortan to, essa reviravolta para a linguagem não foi um acidente con tem p orân eo, é um fato essencial e consum ado.
Segundo o senhor, em seu livro N o tem po do niilismo, Nietzsche anteviu a ascensão da linguagem “ao primeiro plano da reflexão filosófica". Mas o “significado dessa transição não se esgota na ‘guinada lingüís tica’ de que fala Habertnas, da fdosofia da consciência, originariamente fenom enológica, para a filosofia da linguagem. (...) Terá havido, sim, uma guinada, mas com o reviravolta irônica da destituição platônica da poesia: a literatura considerada com o filosofia e, inversamente, a filosofia tratada com o literatura". A cham ada “guinada lingüística” seria, a seu ver, uma restauração da metafísica? N ão seria uma restau ração, porque essa guinada lingüística acentua o que ch a m a mos de finitude do hom em . N ão é só a lim itação do conhecim ento, não é só a m orte, m as a contingência de um pensam ento que nunca está acim a da con d ição hum ana. Este pensam ento que está ligado ao que se escreve, ao que se fala e, p o rtan to , ã lin guagem . O ra , é essencial para a m etafísica o sentido da infinitude do pensam ento, não com o uma lim itação, mas com o a capacidade do pensam ento de sobrevoar por meio de conceitos.
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Com o o senhor avalia a obra de Jacqu es Derrida? G osto de certos estudos de D errid a, m ais especificam ente do prim eiro D errid a, o au tor de Diferença e repetição. E xiste um pensam ento m uito denso nesse livro so bre a diferença, mas, depois, sofre uma espécie dc diluição, ele se autodilui. De m odo que não é um dos meus pensadores prediletos, mas isso não quer dizer que eu não o ache im portante. Um amigo m uito engraçado que tenho em Brasília, de tan to ouvir falar de D errida nos colégios, resolveu m udar a palavra: ele diz em português o “ D errid a” [risos]. O senhor utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do futuro da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia? Eu procuro reform ular a idéia de uma unidade da história, de ter um desenvolvi m ento histórico que não seja uma utopia. Para mim é m uito interessante o princí pio de responsabilidade, que faz justam ente a crítica ã utopia. Porque essa é a era da abund ância, obtida às custas da destruição da natureza. E n tão eu pego a idéia de K ant, em Idéia de uma história universal do ponto de vista cosmopolita, em que o problem a da história se torna um problem a m aior. N ão usaria o con ceito de utopia porque essa n oção im plica em uma exp an são ilim itada do hom em , em que o futuro sempre traria a possibilidade de um aper feiçoam ento indefinido. N ão só um ap erfeiçoam ento, m as, se nós acrescentarm os esse ponto de vista, a utopia seria a pletora de bens, a pletora de consu m o. Ao in vés de utopia, co lo co no futuro a afirm ação ética da qual fala K ant em Idéia de uma
história universal de um ponto de vista cosmopolita. K ant não tem a pretensão de fundar a história. .Vias o ponto de vista k an tian o, que critica a m etafísica, é o pon to de vista da finitude, ou seja, a com unidade do d ireito, o fato de não to m ar o hom em com o m eio, mas sempre com o fim. E ntão, aceitaria para o futuro não a uto pia, mas a m elhor vida feliz possível — a eudemonia. T em os de ter uma conversão da humanidade pela história. N ós podem os revolucionar a concep ção que o homem tem de si m esm o, não podem os revolu cionar a sua vida, de tal m odo que pudesse haver uma conversão.
Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos com o riscos am bientais globais, am eaças de desintegração social em larga escala e alienação cultural em massa. Com o o senhor vê tais pro blemas? Esses problem as podem ser focalizados por interm édio da grande hybris do hom em m oderno, que é a d om inação da natureza. H eidegger é o prim eiro pensador que favorece uma filosofia com acen to ecológ ico , justam ente na sua postulaçâo da téc nica. N ão é um antim aquinism o à sem elhança daqueles ingleses do século X V III, que destruíam as m áquinas. É um absurdo d eixar a técnica de fo ra, pois é por m eio dela que pode vir a nossa salvação (Rettung). M as, além da técn ica, existem outros aspectos correlato s. Eu os enumerei uma vez: a devastação da terra, a m assificação, a perda de vínculos dos hom ens e a cham ada fuga dos deuses, uma outra fórm ula para a m orte de Deus.
C onversas com F iló so fo s B rasileiros
Principais publicações: 1966 19 6 8 1971 1979 1 986 1988 1989 1993 1998 1999
Introdução j Filosofia da Arte (São Paulo: Á tica, 1 9 8 9 ); O dorso do tigre (São Paulo: Perspectiva); Jo ã o Cabral de Melo Neto (esg.); Oswald Canibal (São Paulo: Perspectiva); Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger {São Paulo: Ática); O tempo na narrativa (São Paulo: Á tica); O drama da linguagem; uma leitura de Clarice Lispector (São Paulo: Á tica); N o tempo do niilismo e outros ensaios (São Paulo: Á tica); Crivo de papel (São Paulo: Á tica); Hermenêutica e poesia: o pensamento poético (B elo H orizonte: Editora U F M G ).
Bibliografia de referência da entrevista: D errid a, j . Diferença e repetição. Perspectiva. Fou cault, M . A5 palavras e as coisas, M artin s Fontes. G ad am er, H . G. Verdade e método. V ozes. H artm an n , N. Principes d'une métaphysique de la connaissance, Paris: A ubier. Hegel, G . W . F. Estética, Lisboa: G uim arães. ____________. Fenomenologia do espirito, V ozes. Heidegger, M . Ser e tempo. V ozes. ____________. Chemins qui mènent nulle part, Paris: G allim ard. ____________. C oleção O s Pensadores, Abril (Cultural. H usserl, E. Investigações lógicas, coleção O s Pensadores, Abril Cultural. ____________. Meditações cartesianas. Porto: Res. K ant, 1. Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, Brasiliense. N ietzsche, F. C o leção O s Pensadores, Abril C ultural. P latão. A República, Lisboa: Fundação C alouste G ulbenkian. ____________. Diálogos, coleção O s Pensadores. Abril Cultural. W ittgenstein, L. Tractatus logico-philosophicus, Edusp. ____________. Investigações filosóficas, coleção O s Pensadores, Abril Cultural.
B ened ito N u nes
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José Arthur Ciiannotti: “A idéia de construir visões imaginárias do que poderia ser nosso futuro me rcpugna. O que me interessa, acima de tudo, é verificar, dentro do espaço em que se trabalha, quais os vetores que ultrapassam o cotidian o” .
JO S É A R T H U R G IA N N O T T I (1 9 3 0 )
Jo sé Arrhur G iannotti nasceu em 1 9 3 0 , em São C arlos (SP). G raduou-se em Filosofia pela Universidade de São P aulo, onde obteve tam bém os títulos dc d ou to r e livre-docente em Filosofia. Professor cassado em 1 9 6 9 , foi um dos fundado res e é presidente do C entro B rasileiro de Análise e P lanejam ento (C ebrap) e p ro fessor da Pontifícia Universidade C atólica de São Paulo. É professor em érito da USP. Esta entrevista foi realizada em abril de 2 0 0 0 .
G oethe dividiu a vida do seu personagem Wilhelm Meister em dois romances. O s anos de aprendizado e O s anos dc peregrinação. N o pri meiro, o foco está posto na fon n ação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que o você nos falasse de sua form ação intelectual? C om o sou meio disléxico, inverti essa relação: fiz primeiro a peregrinação, e só agora estou me form and o [risos]. Peregrinei de São C arlos para São Paulo; em São Paulo peregrinei da B iblioteca Infantil para a B iblioteca .Viário de A ndrade, e dela para a Faculdade de F iloso fia, Letras e C iências H u m anas, ainda na Praça da R epública e depois na M aria A n tônia — no início co m o aluno ouvinte em Letras C lássicas, de pois com o aluno regular de Filosofia. M eu prim eiro interesse era estética, mas a ca bei me encantand o pela lógica; depois da lógica, me encantei pela história da filo sofia, no início, graças a G u éroult. Enfim , ao longo de vários anos eu fiz tudo que podia fazer exp loran d o o universo de São Paulo. Aos poucos, porém , as coisas fo ram se sedim entando, e com eçou m inha fo rm ação. E m bora com eçasse pela lógica e pela epistem ologia, creio que acabei me form and o em m etafísica — do ser social, evidentem ente. No discurso de saudação à entrega do seu título de Professor Emérito da USP, Ricardo Terra fez a seguinte afirm ação a respeito de sua for m ação: "Não podem os nos esquecer de que o adolescente Jo sé Arthur Giannotti freqüentava os círculos de Oswald de Andrade e discutia filosofia no gnipo de Vicente Ferreira da Silva. Ao tom ar-se aluno de Gilles-Gaston Granger no curso de filosofia, volta-se contra a anterior ausência de rigor na leitura dos textos, mas sem nunca abandonar seja os impulsos estéticos recebidos, seja o compromisso com a realidade brasileira”. Isso procede? Com o você vê essas influências do círculo de Oswald de Andrade, p or um lado, e de Vicente Ferreira da Silva, por outro, sobre sua fonnação?
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C onheci Rudá de A ndrade, filho de O sw ald, quando tinha 17 anos. N ós estávam os preparando o segundo C ongresso Infanto-Juvenil de E scritores — uma inven ção de Sérgio M illiet, que, dois anos antes, em 1 9 4 5 , incentivara o prim eiro congres so. Esta foi uma experiên cia im portante porque nos levava a refletir e discutir so bre o que estávam os lendo. C erto dia, R udá me convidou para ir à casa de seu pai e, lá chegand o, deparei com uma cena que me m arcou bastante: A ntonio Cândido sentado numa poltrona em baix o de um quadro de Picasso e rodeado por boa parte da intelectualidade paulista. Para mim uma form a de convivência a que não estava h ab itu ad o . C onvivência que sig n ificou , ad em ais, um a ruptura g rad ativa com a form ação pequeno-burguesa recebida em casa. Lem bro-m e de que minha mãe ficava m uito preocupada com o fato de freqüentar alguém que já tinha tido sete mulheres! Foi nesse co n tex to que O sw ald de Andrade me apresentou ao M od ernism o, am pliando meus horizontes. C om ecei a freqüentar sistem aticam ente a Biblioteca M u n icip al, co m o intu ito de exp lo rar seu acervo de livros de arte. N ós íam os à B ib lioteca, fuçávam os tudo o que podíam os, depois nos reuníam os nas p ro xim id a des do P aribar, encontrávam os a turm a e acab ávam os todos indo ao cinem a — foi isso que me deu uma boa form ação nessa arte. N o final da noite corria para pegar o último ônibus para a Aclim ação. C erto dia, Oswald me avisou que Vicente Ferreira da Silva estava organizand o, num a garagem que ele e seu irm ão tinham na rua General Jard im , sem inários sobre P latão. Eu passei a freqüentar essas reuniões e, po rtan to , a ler P latão. Foi en tão que me deparei, por volta dos 18 anos, com o li vro Paidéia, de Jaeger. Por conta própria, passei a ler a llíada, a Odisséia etc., sem pre co n fron tan d o em seguida com o capítu lo correspondente desse livro. Foi uma aventura extrao rd in ária, que durou m ais de um ano. Ao m esm o tem po, com ecei, por recom end ação de uma b ib liotecária da B iblioteca In fantil, a freqüentar com o ouvinte o curso de L etras C lássicas na Faculdade de F iloso fia, ainda na Praça da R epública — lem bro-m e de um curso m aravilhoso que Fidelino de Figueiredo deu sobre [Alexandrej H erculano. E, além disso, eu estudava um latim nada instrum ental, aband onand o o grego, do que me arrependo até hoje. N os anos 5 0 , finalm ente, prestei vestibular para entrar regularm ente na F a culdade de Filosofia. Q uand o fui ver o resultad o, porém , percebi que tinha sido reprovado — tinha tirad o zero em português. A princípio não cheguei a me espan tar, pois m inha nota em português costum ava ser dez ou zero. M as colegas meus já tinham percebido que havia erro de tran scrição da nota: na verdade eu tinha ti rado oito. Consegui então que m udassem a nota e entrei na Faculdade pela porta da com p licação. O início prefigurou o tipo de carreira que teria. C om o já disse, meu interesse inicial era pela estética, m as, quando deparei com aquele b aix in h o faland o francês, tudo mudou — a com eçar por ter de ap ren der francês e lógica sim ultaneam ente. O curso de lógica de [G illes-G aston] G ranger fascinou nossa turm a — eu sem pre estudo em turm a — c lhe pedim os mais dois anos de cursos com plem entares. Além disso, cheguei até a fazer, co m o m até ria optativa — naquele tem po as m atérias eram de fato op tativas, e não “ op tató ria s” — , um cu rso de “ A nálise I I I ” no cu rso de M a tem á tica . O que foi m uito engraçad o, porque ninguém nesse curso conseguia entender o que eu estava fa zendo lá, ainda mais para cursar “ .'\nálise IH” sem ter feito “ Análise I ” e “ 11” . M as
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C o n v ersas co m F iló so fo s Brasileiros
term inei o cu rso sob re teoria dos co n ju n to s, e, graças a F arah , nosso professor, consegui aco m p an h á-lo , já que ele procurava me dar exem plos e exercícios que eu pudesse com preender. D epois disso, me form ei. N a época eu não pensava m uito em com o iria ga nhar dinheiro. Q u and o G ranger foi para a F ran ça, recom endou meu nom e para substituí-lo, e assim entrei para o D epartam ento com o professor assistente, chegando a ter Bento [Prado Jr .] com o aluno, o que h o je m uito me honra. .Mas nessa função não era rem unerado, obrigando-m e a fazer bicos, quer dando aulas particulares, quer prestando serviços a um tio deputado, V icente B o tta , en tão eleito. C erto dia passou por m inha casa R od olfo Azzi com a idéia de prestarm os concu rso para as vagas de sociolog ia da ed u cação , que estavam disponíveis nas esco las norm ais. Prestei, passei e escolhi uma vaga na cidade de Ibitinga, onde tive p o rtan to meu pri meiro emprego fixo. [João] Cruz C osta apoiava a idéia, im aginando nos com issionar para a Faculdade o m ais depressa possível. N o en tan to , o novo governador, Jâ n io Q uad ros, proibiu qualquer tipo de com issionam ento, o que me obrigou a o p tar por perm anecer em Ibitinga. De ou tro m odo, con tin u aria gloriosam ente com o profes sor da Faculdade de F iloso fia, sem rem uneração e me virando para sobreviver. É interessante lem brar que, em 1 9 5 8 , quando devia voltar para o B rasil, depois da estadia na Fran ça, escrevi a Cruz C o sta , perguntando-lhe se então teria em prego, pois me era possível perm anecer na França. Por ca rta , recebi um sabão enorm e, já que era de praxe to m ar a p restação de serviços na Universidade com o uma honra. Term inei voltan do, no lugar de G ilda de M ello e Souza, que tirara licença. M as voltem os a Ibitinga, onde tive meu prim eiro em bate com a bu ro cracia. Fizem os uma coleta pelos fazendeiros da região e arm am os um núcleo de b ib liote ca. M e lem bro, até com bons livros de arte. M as o d iretor da escola se assustou porque naturalm ente eu tinha com prado um e.xemplar do Manifesto comunista. N ão foi por isso que ele foi substituído, só sei que pensaram em me co lo ca r no lugar dele, desde que prestasse hom enagem ao político local. Enfim , depois de um an o e m eio saí de Ibitinga vexado com a política local, com m uitos alunos reprovados pela ap licação de um padrão que lhes era incom preensível e até com os fu ncionários da esco la, que não entendiam meu m odo de op erar. M as tam bém fiz ótim os am igos, tive alunos e.xcelentes, e passei o resto do tem po estudando K an t e alem ão com um fab ricante de queijos, mas ob rig and o -o a seguir os m anuais do Instituto G oethe. Em 1 9 5 5 , houve um co n cu rso para professor de filo so fia , e por m eio dele consegui voltar para São Paulo — para dar aulas no C olégio B rasílio M ach ad o — e assim voltar tam bém para a Faculdade de Filosofia. Logo em seguida, porém — em 1 9 5 6 — , consegui uma bolsa da Capes para ir ã F ran ça, onde fui estudar com G ranger, em R ennes. Lá passei o prim eiro ano escolar, tive o im enso privilégio de conhecer [V ictor] Gold.schmidt, e com ecei a praticar, na linha de [M artial] G uéroult, uma história da filosofia que me distinguia claram en te do núcleo dom inante da fi losofia francesa da época, m ergulhada no existen cialism o. M as isso não me im pe diu de, graças a L efo rt, p articip ar tam bém do grupo Socialisme et Barbarie — o que me im unizou co n tra qualqu er espécie de stalinism o. Foi nesse grupo que c o nheci C astoriadis e ou tros. Ao m esm o tem po, continuei a seguir, na É cole N orm ale de Saint-C lou d , os cu rsos de G u éroult, e, na É cole N orm ale da rue D 'U lm , segui
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cursos de Vuillem in. Em Rennes e em Paris fiz um círculo de am igos, dos quais ainda conservo Claude Im bert. Tam b ém ia, sistem aticam ente, assistir aos cu rsos de M erieau-Ponty no C ollège de France — depois dos quais m uitas vezes íam os tod os, inclusive M erleau -P on ty , para o apartam en to de L efort, onde continu ávam os as discussões. M e foram dadas, p o rtan to , grandes oportunidades. C reio que vivi na França uma situação única, pois não fui sim plesm ente, com o a m aioria dos bolsis tas, jog ad o sem rum o na massa de estudantes da Sorbon ne.
Nessa época você pensava em trabalhar Husserl? Já em São Paulo, antes de ir para a F ran ça, estava m uito interessado em Fíusserl, pois era uma form a de com bin ar as m inhas inquietações com a lógica fo rm al, as questões m etafísicas e a história da filo.sofia. Q uem me deu a trad u ção das Investi gações lógicas — meu alem ão na época era péssim o — foi Cruz C o sta, apesar de achar que eu estava traindo a linha de investigação positivista da história da filo sofia brasileira que ele tinha iniciad o, e de dizer abertam en te que o seu verdadeiro discípulo era Ruy Fausto. M as cabe lem brar que Cruz C osta exerceu sobre mim uma influência profunda, me ensinando a desconfiar das elu cubrações m etafísicas e a co lo car o pé na realidade brasileira. D urante vários anos freqüentei sistem ati cam ente sua casa e sua b iblioteca. De qualquer m odo, quand o fui para a F ran ça, im aginava escrever uma tese de d ou torad o sobre a n oção de co n ceito na lógica form al. N um a discussão com G old schm idt e G ranger, no en tan to , eles me disseram que eu estava querendo refa zer a obra de P latão na m odernidade e foi assim que mergulhei profundam ente em H usserl. N o en tan to , logo que saiu o livro de Suzanne Bachelard sobre a lógica de H usserl, descobri que meu problem a era bem m ais com plicad o do que im aginava. Era preciso lidar com a toda a lógica con tem p orân ea, o que escapava de m inha com petência. Por esse m otivo resolvi circunscrever mais ainda o meu tem a e pre parar um dou toram en to sobre Stu art .Vlill.
Com o você avalia hoje esse seu doutoramento, Jo h n Stu art M ill: o psicologism o e a fu nd am entação da lógica? C om o um ensaio canhestro do que veio a ser Apresentação do mundo. A final, qual era o meu problem a naquele m om ento? G irava em to rn o da idéia de sign ificação: entender por que ela não podia seguir o esquema em pirista de L ocke, verificar com o ela funcionava no esquem a husserliano da intencionalidade — em bora eu já sou besse que este esquem a ia en co n trar seus lim ites em M erleau -P onty e assim por diante. O u seja, estava tentand o desenhar o prim eiro esboço de com o a idéia de significação precisava ser posta em cheque. E o Tractatus [logico-philosophicus] é uma contrapartid a que não aparece nesse meu prim eiro tex to . Sob a influência de G ranger, não tinha uma visão clara do que era a revolução w ittgensteiniana a par tir dos anos 3 0 , e acabei lim itado a H usserl. Im aginem vocês que chegara a propor a Círanger o p ro jeto de fazer uma trad u ção e uma análise da Lógica de P ort R oy al, e ele me d esencorajou por consid erá-lo de pouco interesse. M as meu problem a era esse: com o a idéia de significação estava sendo questionada e o que isso acarretava numa revisão da história da filosofia.
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C o n v ersas co m F iló so fo s B rasileiros
Quando vocé voltou da França, começou a participar do célebre “Se minário M arx”. Em artigo sobre ele, publicado na revista N ovos E stu dos, « “ 5 0 , você salienta “a vocação cientifica do grupo, pois todos nós, sociólogos, economistas, historiadores e até mesmo filósofos, todos lia mos M arx com o objetivo explicito de entender o estágio em que se encontravam as relações sociais de produção capitalistas, para situar nelas as dificuldades do desenvolvimento econôm ico e social brasilei ro, com o intuito muito preciso de poder avaliar as políticas em cur so". Tendo em vista esta perspectiva, com o você avalia a experiência do seminário? Esse sem inário se tornou um m ito e, em função disso, foram esquecidas suas lim i tações e suas im precisões. O ra , tratava-se sim plesm ente de um grupo de estudos. Q uand o voltei da F ran ça, a gente costum ava ir aos sábados à casa do Fernando Flenrique (Cardoso| e, com o eu m esm o já estava m uito interessado em ter uma vi são crítica do m arxism o — sem d eixar de ao m esm o tem po absorvê-lo — , propus que arm ássem os uma análise geral dos texto s m arxistas con tem porân eos. Ao que Fernando N ovais replicou, lem brando que até agora nenhum de nós tinha lido M arx direito. C ab ia ler o próprio M a rx e foi o que fizem os. Com ecei com a análise do prim eiro capítu lo d’0 capital e me lem bro que ela já foi m otivo de uma polêm ica com Bento, pois ele. co m o bom sartrean o , queria en con trar ali uma antropologia fundante. Eu criticava essa antropologia e puxava a interpretação para o plano da lógica. O sem inário era variado, som ando pontos de vista diferentes, cada um tra zendo sua própria experiên cia. D epois do sem inário, jan távam os e discutíam os p o lítica brasileira.
Em artigo recente sobre Lebrun, p or ocasião de seu falecimento, você narra o seguinte episódio: “Se o golpe de 64 espalhou a droga pela universidade, 68 afetou as relações amorosas. Preocupado, na direção do Departamento de Filosofia, alertei meus colegas sobre o perigo de sermos acusados de corrupção de costumes, o que agravaria a pecha de subversivos. Lebrun se calou. (...) Naquela época, era comum assis tir às aulas uns dos outros tão logo corresse o boato de que um de nós iria desenvolver tema interessante e novo, e assim fom os a uma esplên dida aula de Lebrun, para ouvi-lo comentar um texto de Nietzsche sobre a necessidade de esgotar a transgressão até a última gota. Aprendi a lição”. Como era o seu diálogo com Lebrun, e qu al a importância dele para sua trajetória intelectual? Lebrun veio para o D ep artam ento co m o professor de lógica. E logo descobri que eu sabia m uito m ais lógica do que ele [risos]. M as descobri tam bém que ele co n h e cia a história da filosofia m elhor do que ninguém. Continuei com ele discutindo a especificidade dos sistem as filo sóficos, m antendo o interesse despertado na França pela influência de G oldschm idt e V uillem in. N o fundo, queria pensar nossa posi çã o de esquerda incorporand o um diálogo com uma filosofia cu jos m eandros eram m uito mais com plicad os do que se im aginava. N ão era possível aceitar a vulgata m arxista ainda em voga nem as novas interpretações do m arxism o, em particular
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o althusserianism o, cu jo form alism o recusava. M as tam bém devo lem brar a pre sença crítica de L ebru n, que, no fundo, escreveu La patietice du am cept tam bém para nos esp icaçar. E hoje ainda preciso con sid erar um d iálogo, que com eçara mas foi cortad o com meu afastam ento da universidade, com o jovem Rubens Rodrigues T o rres Filh o , meu prim eiro orientand o. Ele percebera que havia m uito mais coisa im portante no idealism o alem ão além de Flegel, e resolvera estudar Fichte. C om isso punha em xeque certos pressupostos hegelianos com os quais eu trabalh ava e que podiam ser pensados de ou tra m aneira. M as to d o esse d iálog o foi por água a b a ix o . A ca ssa ç ã o teve, no D e p a r tam ento de Filoso fia, conseqüências m uito m ais profundas do que se im agina. Ela não se resumiu sim plesm ente a b otar dois ou três professores para fo ra ; in terrom peu um processo de aju stam en to de idéias incrivelm ente im portan te. N a época, ainda envolvido com as m inhas obsessões pela lógica, estava estudando e trad u zindo o Tractatus, adem ais com a doce ilusão de que traduzir dava d in h eiro, na esperança de fazer econ om ia e preparar-m e para a perda de em prego que já esta va no horizonte.
Ainda com relação a Lebrun: que papel ele desempenhou nesse diálogo? Lebrun sem pre foi aquele que, ao to m ar conh ecim ento de um tem a que algum de nós estivesse trab alh an d o , o retom ava, ia até o limite e nos dizia “ não está d an d o” . Ele nos obrigava a repensar sem fim e a recom eçar do zero. E cla ro que cada um seguia seu próprio cam inho. Bento dava seus prim eiros passos em direção a Bergson, recriando a form a do ensaio, da qual eu d escon fiava; P orch at com eçava de novo, aband onand o A ristóteles para m ergulhar na lógica form al — variação dos com e ços que o levou ao ceticism o; os jovens, Rubens [Rodrigues T orres Filho], M arilena ]C haui] e tantos ou tros, criaram um novo pad rão dos estudos h istóricos em São Paulo. M as, para mim e para o B en to, tod o esse processo foi interrom pido quando veio a cassação. N a época, G ranger, m uito gentilm ente, me convidou para dar aulas em A ix -en -P rov en ce, mas logo F ern an d o Flenrique me convenceu de que havia cond ições para criarm os um centro aqui m esm o. E havia a op osição de Lupe [C otrim ], m inha m ulher, que não im aginava ficar fo ra do país por m uito tem po e es crevendo poesia em português. De fa to , fom os aposentad os cm m arço de 1 9 6 9 , em m aio o C ebrap (C entro B rasileiro de Análise e Planejam en to) foi fundado e em se tem bro chegou o prim eiro grant da F un dação Ford. £ com o você avalia essa experiência do Cebrap? Desde os ensinam entos de G ranger e o conselho a ele dado por Bachelard , eu tinha clara a idéia de que não se pode fazer epistem ologia sem se casar com uma ciência. Se, naquele m om en to, eu estava me casand o com a m atem ática e a lógica, agora eu p rocuraria me valer dos conh ecim entos que já tinha de sociologia e aprofun dá-los. Além disso, todos nós fizem os um cu rso de E statística com Elza B erqu ó — éram os eu. Paul Singer, Fernando Flenrique, O ctáv io lanni e ou tros tom and o nota e fazen do exercícios. Um a tentativa de unificar nossa linguagem por m eio do aprendiza do de técnicas. M a s, nesse m om en to, a nova e grande experiên cia era o cham ad o “m esão” : não havia tex to no C ebrap que não fosse discutido por tod os nós, senta-
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C o n versas com F iló so fo s B rasileiros
dos em torno de uma m esa; discussão franca e freqüentem ente violenta, com xingamentos e tu do, mas logo depois estávam os todos juntos tom and o chope. O qtte tom ava isso possível? C reio que o principal vínculo era a solidariedade política: tínham os consciência de que, se não aprofundássem os o espírito crítico , estaríam os perdidos. E esse ap ro fundam ento tinha dois ob jetiv o s: um deles era a d esm istificação dos chavões da esquerda; o outro, tom ar consciência do que estava realm ente acontecendo no Brasil. Rapidam ente percebem os que não estávam os sim plesmente diante de um golpe, que o novo regime tinha um alcance muito mais profundo na vida brasileira do que outras quarteladas, e que, p ortanto, precisávam os com preender o que mais tarde Fernando H enrique cham aria de novo m odelo político. N ós com eçam os en tão a trab alh ar dentro dessa perspectiva, cada um com seu estilo próprio. •Sem dúvida Fernando Henrique era, nesse m om ento, o grande líder do Cebrap, fo rjand o novas idéias e desenvolvendo-as. Às vezes eu lhe recom endava que ap ro fundasse m ais um novo co n ceito , com o aquele de “ anéis b u ro crá tico s” , que, em bora m uito fru tífero, me parecia vago. .Vias ele me respondia que o m ais im portan te então era jogar idéias no debate e ver o que acontecia com elas. De meu lado, preferia ficar parafusando com mais calm a meus p roblem as, m inhas obsessões. N a periferia do C ebrap, Fernand o N ovais buscava resum ir todos os seus e os nossos conhecim entos de história para desenhar o “ sistem a co lo n ia l” , o grande livro que ele acabou publicando, .^lém disso, no Cebrap se reuniam econom istas de São Paulo, da U nicam p, do R io , para discutir numa visão mais geral o que estava ocorrend o na econom ia brasileira. Assim, ficávam os m uito antenados com as enorm es tra n s form ações que o golpe m ilitar estava produzindo, percebendo ainda q u anto o pen sam ento de esquerda dom inante estava fora da realidade. Para nós estava a b so lu tam ente cla ro , por exem plo, que o m ovim ento guerrilheiro ia “ dar com os burros n ’âg u a” — recom endávam os a nossos alunos que n ão entrassem nessa aventura m aluca, em bora nunca lhes faltand o nas horas decisivas. Era uma loucura com p le ta im aginar que a revolução viria do cam p o , quando este estava passando por um processo de tran sform ação capitalista.
Na orelha de seu livro O rigens da d ialética do trab alh o, Lebmtt escre veu o seguinte: “É pena que o livro de Jo sé Arthur Giannotti, pronto há mais de um ano, somente seja entregue ao leitor brasileiro depois da publicação da última obra de Althusser sobre Marx; é pena além do mais que o público francês só venha a conhecê-lo ainda mais tarde. De fato, é uma pena; pois se me pedirem para citar, dentre os livros recen temente dedicados a Marx, os dois que me parecem ao mesmo tempo mais inovadores e mais rigorosos, responderia: Althusser e Giannotti”. Tendo em vista tal afirmação, como você avalia hoje essa sua obra? Que balanço você faria da polêm ica contra Althusser, tom ada célebre em seu artigo “Contra Althusser”? Em prim eiro lugar, há um problem a: o trab alh o intelectual brasileiro tende a ser m ovido pelas “grandes vagas” , com o dizia Cruz C o sta , que vinham , e que c o n ti
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nuavam a vir, de fo ra. O que a genre tentava fazer, aqui em São Paulo — de m anei ra talvez um pouco cega, já que sem qualquer co n ta to com o R io de Ja n e iro ou o R io G rande do Sul, onde havia trab alh o intelectual de qualidade — , era realizar uma leitura rigorosa da obra de M ar.x. De repente, porém , veio a vaga althusseriana e todo o m undo com eçou a pensar nos novos term os. E isso nos m ostrou com o era difícil o d iálogo no B rasil, pois nossos interlocutores eram de certo m odo ro u b a dos pelas correntes que vinham de fora. M in h a intenção era progredir na investi gação que, form ulada em term os kan tianos, seria a seguinte: com o era possível uma dialética m arxista? A com panhava Fernando N ovais funcionando m uito bem e co m pondo seu sistem a, Fernando Flenrique jogand o com certos con ceitos e tendo su cesso na com preensão do que estava acontecen d o de novo, mas ao m esm o tem po percebia que faltava a todo esse esforço um a épura racion al. C o m o encontrá-la? De qualquer m odo, porém , o meu livro não teve, na ép o ca, nenhum a pene traçã o m ais profunda, ele foi engolido pelos eventos. Antes de 6 8 , até que se estava conseguind o d eitar algum as raízes na A m érica L atin a — lem bro-m e de m anter co n ta to regular com uin grupo de Buenos Aires e o u tro do M é x ic o , com os quais dialogava. M as tudo isso foi por água ab aixo depois de 6 8 . Recentem ente, na França, uma exilada argentina que por lá ficou me disse: “ N os anos 6 0 você era um autor que precisava ser lid o ” . Lem brei-m e de que, nessa época, saíra um núm ero da re vista Pasado y Presente, do grupo da Universidade de C ó rd o b a , envolta numa fita em que se lia: “ M a rx , Sartre e G ia n n o tti” [risos]. Im aginem m inha surpresa, achei en graçad o, pois sem pre tive consciên cia de meu tam an h o, mas isso indica que o debate estava em curso. M as esse d iálogo se quebrou. M eu livro chegou a ser pu blicado na Espanha e na F ran ça, às vezes até hoje en con tro pessoas que se lem bram dele, nada m ais. D escobri que não ad ianta publicar livro na Europa se não se p ar ticip a intensam ente do debate que está havendo por lá. Se você vem de um país periférico, ou você se muda para lá e en tra no debate deles, ou precisa escrever um livro tão m onum ental que não possa passar despercebido. M inha op çã o , ao c o n trário , foi con cen trar todo meu esforço no sentido de form ar um pú blico brasileiro no qual se possa ouvir os ecos daquilo que se faz. £ você sente hoje a form ação desse público? O que mudou da década
de 1960 para cá? N ão mudou nada. Sempre que vem uma grande vaga da E uropa ou dos Estados U nidos, som os levados a desconhecer o trab alh o de form iga que está sendo feito por aqui. Basta acom panhar as evoluções da última m oda, a escuderia haberm asiana, que trab alh a com o se isso aqui fosse terra arrasad a.
Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Com o você vê as re lações entre a filosofia e a cultura brasileira? Ju stam en te pelo que acabei de falar, não é possível. A filosofia brasileira sign ifica ria esse d ebate sendo feito: lan ço um livro, o ou tro o lê, o digere e rebate, e assim por diante. C om o nós con tinu am os na situ ação de ser interrom pidos pelas ondas cultu rais, a filosofia con tin u a sendo m ero epifenôm eno do pensam ento brasileiro. É bem verdade que se form ou hoje uma massa razoável de gente trab alh an d o com
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íllo so íla , mas não p ercebo a realização desse debate. P ercebo, ao co n trá rio , o enquistam ento do grupo do R io de Ja n e iro , o enqu istam ento do grupo de Porto A le gre, o definham ento do grupo de M inas G erais e o ensim esm am ento do grupo USPU nicam p. O que fazem os é trein ar, além de p rofessores, alguns intelectuais que, treinados em filosofia, passarão a ocupar um lugar no espaço público. O u seja, não é a própria filosofia que ocupa o espaço p ú blico, m as pessoas que, ao discutir as suntos diversos, os tem peram no m olho da filosofia e, assim , conseguem ter uma determ inada audiência.
Pessoas como... C om o M arilena C haui, Paulo A rantes, Bento Prado Jr . Eles são intelectuais que têm im portância não pela filosofia que fazem , mas por participar de um certo debate cu ltu ral e p o lítico . O cu rio so é que, qu an d o a gente ocu pa um lugar no esp aço pú blico, acab a atingindo ou tros públicos mais restritos. O fato , por exem p lo, de Trabalho e reflexão ter tido duas edições e uma venda de seis mil exem plares é algo extrao rd in ário . E tenh o certeza de que ele não teve esse sucesso por causa de suas teses filo sóficas, mas pelo fato de eu ser uma figura pública, aparecer no jo rn al. Pessoas que vêem no jornal com pram o livro, dão uma olhada nele e o guardam na estante. Isso não sedim enta n ad a, apenas fustiga curiosos.
Qual a avaliação que você faz do livro Um d ep artam ento francês de ultram ar, de Paulo Eduardo Arantes, particularmente no que diz res
peito à caracterização dos seus escritos? C reio que Paulo, inegavelm ente um grande intelectual, possui uma con cep ção fo r mal e dedutivista do processo capitalista, e a sua intenção é me encaixar dentro desse esquem a. M inha função é gritar e dizer: “N ã o caibo no seu esqu em a” . De um m odo geral, o livro é m uito inteligente, m uito bem escrito , mas não é, nem pretende ser, um livro sobre história da filosofia no B rasil, já que não fala nada sobre os ou tros cen tro s filo sóficos. N o en tan to , na tentativa de nos tran sform ar em reflexos do m ovim ento do cap ital, retira de nossos texto s suas am bigüidades, o esforço de c a m inhar nessa ou naquela d ireção, dialogando com a fenom enologia, com o existen cialism o, com a filosofia an a lítica , enfim a própria estru tu ração de um pensam en to que se quer ob ra. N isso, a despeito de n ão haver d iálogo, tam bém é preciso c o n siderar o inim igo o cu lto , a produção do ISE B , ou os filósofos do existen cialism o teuto-gaú cho etc.
Ao falar desse diálogo surdo, você está pensando também no IBF (Ins tituto Brasileiro de Filosofia)? Com o você vê as diferenças entre a Faciddade de Filosofia da USP e o IBF? N ã o , não estou pensando no IB F. E m bora a op osição entre direita e esquerda fosse m uito polarizad a, havia m uita conivência (de m em bros da classe dom inante.') en tre os grupos mais jovens; os ressentim entos ainda não estavam solid ificad os. D a das as nossas raízes francesas, nós desenvolvem os a tática de não nos envolver di retam ente em debates com as coisas brasileiras: seríam os d iferentes, faríam os o u tro tipo de filo so fia, e esse o u tro tipo iria se esp alhand o co m o m ancha de óleo.
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P ortan to, passam os sim plesm ente a ignorar publicam ente o que eles faziam — não tan to por desprezo, mas por essa diferença de estilo, precisam ente para m arcar e consolid ar nosso m odo de ser. De vez em quando chegávam os a “ trocar uns tap as” , mas isso não produzia m aiores conseqüências em nenhum dos lados. Aliás, faland o de tapas, me lem bro de um episódio curioso. Q uand o ainda era estudante, uma vez, ao assistir a uma conferên cia de H aro ld o Barbuy, na B ib lio te ca M u nicip al, sobre H egel, na qual o tem a do sob erano (Fiirst) era tratad o com o se esse fosse o Fiihrer; a certa altu ra, gritei lá do b alcão: “ E m e n tira !” . A o sair um policial me pegou pelo braço e me levou até a saída, mas meus colegas, que esta vam na platéia, foram bloqueados por uma turm a da Faculdade de D ireito e alguns socos foram tro cad o s. N o dia seguinte saía em m anch ete: “T a p a s por cau sa de H egel” [risos]. O pobre do Ennes [Silveira M ello], ainda estudante secundário, teve seu prim eiro co n ta to com a filosofia m unicipal, com o dizia Cruz C osta. A gente tinha o gosto de dem olir alguns m itos. Além do B arbuy, me confrontei com Euríolo C an abrav a. Participei do III C ongresso B rasileiro de Filoso fia, do IB F. Q u an d o dei com o te x to do C an abrav a, uma tentativa de co n trap o r form alm ente ã n oção de conseqüência uma ou tra, aquela dc seqüência, percebi que era uma loucura to tal. ( ) texto falava num processo de “ ta rsk iz a çã o ” . C onsultei o livro de T arsk i e logo m atei a charad a: seu sistem a de axiom as duplicava a d efinição axio m á tica de c o n seqüência, em pregando variáveis diferentes. Achei tão inverossím il que consultei G ranger, que estava por aqui. N a m anhã do dia seguinte, fom os os dois para as “ .-Arcadas” . D epois da con ferên cia, pedi um quadro negro a M iguel R eale, que di rigia o congresso e a sessão, e com ecei a escrever o sistem a de T arsk i e o sistem a correspond ente de C an abrav a, indicando a d uplicação e apenas me contentand o em dizer em voz alta o que escrevia. C an abrav a não se agüentou e exclam ou : “ Está me acusando dc p lá g io ?” — “ E sto u ” — e fui me sen tar, pedindo que o sistem a de T arsk i fosse reproduzido nos anais. M a rio C asan o va, que era professor na F acu l dade e trabalh ava no Estadão, interessou-se pelo assunto; fom os para a redação e pu blicam os, no dia seguinte, os dois “ sistem as” . Foi a única vez, creio eu, que um sistem a ax io m ático foi publicado num jo rn a l. Só sei que C an abrav a abandonou a lógica para se dedicar ã estética.
Tendo em vista a conhecida polêm ica existente entre vocês, o que você teria a dizer sobre a obra e a trajetória intelectual de Ruy Fausto? Em prim eiro lugar, quero desde logo salientar que Ruy Fausto foi meu aluno. P or tan to , se um de nós teve mais oportunidades de beber da água do ou tro , foi ele e não eu. Em segundo lugar, lem braria que, dispondo nós dois de instrum entos inte lectuais semelhantes e interesses próxim os, era natural que houvesse certa confluência em nossos resultados. M as exam in and o de perto os textos de Ruy Fausto, co n sta to um abism o entre nós. T u d o se passaria com o se enqu anto ele pretende ex a m i nar a questão da identidade no plano da lógica funcional de prim eiro grau, eu pre ciso co lo ca r a questão no segundo grau. N o caso da co n trad ição , ele tom a a co n trad ição real com o algo existen te, porque isso é admissível para a lógica d ialética, en qu an to não vejo com o possam existir duas lógicas, a d ialética e aquela da iden tidade. M as em outra o casião vou acertar as co n tas com ele.
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Em seu livro A universidade em ritm o de b arbárie, você afirm a: “Ape sar de todas as tendências que a emperram, a universidade ainda é o local do novo conhecimento, ou simplesmente do conhecimento, pois o garim po do saber antigo não valeria uma hora de pena se não apon tasse para o diagnóstico das vicissitudes do presente e para os lances do futuro. Isto posto, ela é o espaço do diálogo intelectual, d o debate, da reflexão, da troca de idéias e de experiências, da divulgação e da conquista de um público interessado tanto no saber com o saber, quanto naquele que resulte em tecnologias capazes de m elhorar as condições de vida de cada ser humano". Para você, a realização dessas tarefas depende de dois fatores: o respeito às normas de bom funcionamento desses processos e indivíduos engajados. Com isso, você define a idéia de um p oder acadêm ico que parece central na articulação de sua críti ca à universidade. Pensando nisso, como você avalia a universidade hoje e qual é, a seu ver, o futuro dessa instituição? Prim eiro, gostaria de me referir a um m al-entendido com relação à crítica que fiz à universidade. Eu sem pre disse que ela estava b u rocratizad a, sindicalizada, o que, p o rtan to , estava em perrando o diálogo acad ém ico. Eu nunca disse que a ciência e a tecnologia d eixariam de ser feitas na universidade — tanto é que 8 0 % da pesqui sa científica brasileira atual é feita nela. Segundo, não acred ito ser possível fazer pesquisa sem um corp o de intelectuais que con trole internam ente o flu xo de idéias e o debater universitário. P ortan to, em bora eu ache que a universidade privada seja essencial para o desenvolvim ento do ensino e da pesquisa no Brasil atualm ente, não creio que ela possa ser inteiram ente livre na sua investigação, pela sim ples razão de que não há dono de universidade ou fundação que vá delegar a esse corp o de inte lectuais o con trole dos trab alh os. T iro o chapéu para todo o tra b a lh o que a univer sidade privada está fazendo h oje, mas é necessário privilegiar a pesquisa na univer sidade p ú blica, desde que, ob viam ente, esta tam bém se renove. M as para isso é preciso d eixar de lado certas bobagens, com o achar que a universidade pública não pode e nem deve, em nenhum a hipótese, co la b o ra r com o cap ital. Ela tem de estar aberta às necessidades do país, d ialogar com a dem anda que vem de todos os luga res e, ao m esm o tem po, desenvolver uma crítica desse m odelo de sociedade em que estam os em barcando. Assum indo essa p osição, eu me indisponho com a universi dade privada na medida em que afirm o que ela dificilm ente vai fazer pesquisa no sentido am plo da palavra, me indisponho com a universidade con fession al na m e dida em que não acred ito num a universidade em que um cardeal possa interferir diretam ente no curso de filo sofia, e me indisponho ainda com o M inistério da Edu ca çã o , q uand o não dá a devida aten ção a esse potencial inventivo da universidade pública. A gora, com os novos fundos vindo das grandes em presas, tudo indica que haverá m uito mais recursos para a pesquisa, em bora não saiba ainda qual será o ap oio à pesquisa b ásica, fonte de idéias e fo rm ad ora de pesquisadores. V ejo , p o rtan to , uma situ ação m arcada pela tran sição, na qual o capitalism o selvagem impera nas universidades privadas, e a luta bu ro crática, nas universida des públicas. C om o d esatar esse nó, sinceram ente não o sei, pois só uma prática política repu blicana, isto é, dc incentivo a instituições públicas e doce con trole das
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privadas, poderá ir descobrind o novas soluções. Até agora fiz o que pude, mas a tarefa é da nova geração. N o m om ento de minha velhice, prefiro me recolher e cuidar de meu jard im , finalizar o que tenho para escrever.
Que conceito(s) de sua reflexão você destacaria com o mais representativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que você nos contasse com o ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e com o o(s) vê hoje. N ão prego nenhum a posição filo sófica. Sou apenas um reator: eu reajo às m inhas paixões. Eu me apaixonei pela fenom enologia e tentei, por m eio do estudo de intencionalidades noem áticas, entender melhor o que era a Lebenswelt (o mundo da vida) de H usserl. Isso me predispôs a aten tar para os nexos do cap ital na vida cotid ian a. D epois me ap aixo nei por M a rx e quis ver com o essas intencionalidades podem ser con trad itó rias e ocu ltar ao m esm o tem po as atividades visadas individualm ente. Term inei me ap aixo n an d o por W ittgenstein na medida em que ele estoura a noção de p ro p osição e am plia a própria idéia de expressão. E assim por diante. A firm ar que possuo p o sição filo só fica seria falsear a perspectiva co rreta , pois o filó sofo brasileiro é sim plesm ente alguém que luta co n tra vagas, é um “ an tiv ag a” ou um “ an tiv o g a” . Nesse sentido, o traçad o da minha vida é aquele de um professor, que vê na boa fo rm ação de seus alunos uma form a de incentivar a resistência a pensa m entos que não têm raízes em nossa exp eriên cia cotid ian a. D aí essa m istura de investigação própria e de polêm ica. Estou sem pre pensando por m eio de alguém co n tra alguém . V ocê abre o livro A p resentação do m undo: consid erações sobre o pen sam ento de W ittgenstein, de 1 9 9 5 , com o seguinte pensam ento: “Seria
m al com preendido se não indicasse com o este novo texto se vincula a outros anteriores, notadamente T ra b a lh o e reflexão. Por certo tenta ser uma monografia sobre as aventuras filosóficas de Wittgenstein, mas a escolha dos temas e o próprio movimento do trabalho somente se justi ficam se o leitor tiver em mente que essa escavação de uma obra alheia dá continuidade à minha própria investigação, por mais modesta que pretenda ser”. Quais as rupturas e continuidades entre T ra b a lh o e re flexão, de 1983, e o livro de 1995? U m a vez. Bento me disse que sou um obsessivo que só pensa nas m esm as coisas. Isso é verdade. Cada vez m ais me convenço de que tenho um ou dois problem as em to rn o dos quais venho girando ao longo de m inha tra jetó ria . A .sensação que tive ao term inar, recentem ente, meu novo livro sobre M a rx , cam inhou m uito nes sa d ireção: cada capítu lo é um livro no qual tento fechar uma idéia, mas acab o ten do de estou rar novam ente a idéia e recom eçar no capítu lo seguinte; e, quando fui escrever a con clu são , percebi que a con clu são precisava ser o livro to d o , e me vi sem solução. T en h o ganas dc com eçar tudo de novo. .Mas o que me interessava no m arxism o? Sem pre me interessei m ais por M a rx do que pelo m arxism o. Andei atrás da idéia de com o é possível encontrar parâm etros de conduta que sejam ao m esm o tem po identitários e con trad itó rio s. Isso im plica pensar, de uma m aneira m uito cu id ad osa, a d istinção feita por M a r x , en passant,
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entre a história contem porânea das categorias, seu d esdobram ento form al, e a his tória do vir-a-ser: dc um sistem a. De um lado, com o as categorias se repõem através de com p ortam en tos, particularm ente o processo de tra b a lh o , cu jos parâm etros são reafirmados e adaptados no fim do ciclo produtivo; de outro, com o a história vai cons truindo situações e instituições determ inadas — o dinheiro, o trab alh o livre etc. — que passam a ter novo sentido quando se integram num novo sistem a. E xiste nessa passagem uma invenção, uma liberdade, que não está configurada no m ero d eco r rer do tem po. M as isto abre uma cesura entre a regra e o processo efetivo de seguila, pois só assim a repetição da regra pode desenvolver sentidos que, se são roubados para que ela possa ser reposta, deixam rastro cu jo significado vai ser aproveitado num novo sistem a norm ativo. Isto não era possível com preender nem com os ins trum entos hegelianos, nem com os instrum entos m eram ente form ais. N ão foi à toa que passei quase dois anos estudando Skinner na tentativa de exam in ar co m o os com p ortam en tos se generalizam pela m ediação de estím ulos especiais, até chegar ã conclusão de que a solução por ele proposta simplesmente é uma petição de princípio. M as aqui está a fonte que me permitiu entender o dinheiro com o um hieróglifo, no sentido que M a rx lhe em presta. N a mesma linha, precisava com preender com o as expressões das trocas se generalizam , estabelecem um cam po em que certas ações se tornam corretas e outras falsas do ponto de vista do sistem a econ ôm ico , d eixan do sempre ã margem elementos que fogem dele. C^ontradiriam tais elementos as iden tificações gerais do sistem a, isto é, suas leis, ou se poriam apenas com o seus m o m entos antagônicos? N o prim eiro caso, haveria no próprio sistem a uma força in terna que o levaria ã im plosão e ã sua superação; no segundo caso , o futuro não estaria inscrito no passado, pois os elem entos antagôn icos não estariam vincula dos a uma força interna única responsável pela superação. N o esforço de enfrentar esses d esafios, W ittgenstein foi de toda valia. N ão vi.sei sim plesm ente co lo ca r M a rx na nova m oda. V isto que m inha questão é sem ikantiana — co m o é possível enten der, do ponto de vista das ações con cretas, sem o espírito ab so lu to, sentidos que são con trad itó rio s e que levam à reposição de certas identidades, em bora pondo outras que fogem desse processo de to talização — , eu precisava am pliar a n oção de expressão. O ra , se, em Trabalho e reflexão, eu já tinha elab orad o a n oção de esquem as op eratórios, W 'ittgenstein me perm itiu jo g ar essa n oção para o plano da linguagem , da expressão, e entender a relação dc tro ca com o uma form a de pensa m ento, um juízo prático se exprim ind o no interm ediário dinheiro.
Você poderia então >tos falar um pouco sobre o que era o conceito de “esquem a operatório” tto quadro de T ra b a lh o c reflexão? O que me interessava no esquem a op eratório era m ostrar que a reiteração de um com p ortam en to im plica uma relação de tran sform ação dos o b jeto s que estão sen do m anipulados e uma tran sform ação da relação de alteridade. Se você com eça a jo gar uma bola na parede, o fato de jogar a bola na parede im plica não pensar mais a bola e a parede co m o dois entes, e sim co m o um processo no qual certas d eterm i nações da bola e da parede se integram num esquem a de op eração . N o caso da relação de trab alh o , o ente se põe com o um produto, cu ja rein trod ução no sistema — já que o o b je to se transform a em m eio de produção — im plica neutralização da
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interferência no outro. Se, quando o cam ponês produz o trigo, uma parte desse trigo não for preservada para a próxim a colh eita, acab ou a produ ção de trigo. É preciso co lo ca r no nível da própria relação de op eração tan to as alterações nas d eterm ina ções dos o b jeto s m obilizados com o as alterações do ou tro , o qual precisa reconhe cer uma certa regra de propriedade — seja ela de p arentesco ou , com o n o cap italis m o, a regra de propriedade vigente no m ercado. A reiteração de um processo social, portanto, faz com que ele não seja tão-só processo sim plesm ente orientado para um fim — con form e a trad ição aristotélica e w eberiana — , mas um processo em cu jo interior se integra a finalidade de toda um a form a de sociabilidade. F. a refle.xão, nesse sentido, se to rn a , ela m esm a, interna a esse processo — con clu são que não im plica cair na ilusão hegeliana dc que esse m ovim ento de con stru ção e destruição das entidades pudesse chegar a uma espiritualização de todas elas. E por isso a idéia da ilusão necessária se tornou central na investigação em que estou m etido atu al m ente, pois uma identidade co m o a de valor só se fecha na base de uma to taliza çã o im aginária, a despeito de constitu ir-se num êm bolo social. O ra , é nesse co n tex to que se torna fundam ental entender com o se podem se guir regras co n trad itó rias, e co m o , no ato de segui-las, os sentidos visados são tritu rados. N ão me interessa apenas saber com o a ação tem conseqüências involuntárias, mas com o essas conseqüências são de certo m odo reintegradas num sistem a sincrônico de m anu tenção de relações sociais de produ ção, que nega a m aneira pela qual as pessoas se colocam nelas. Desse ponto de vista, há um ganho muito grande quando se passa de uma análise m eram ente lógica das relações de com p ortam en to para as relações efetivas do seguir a regra, levando-se cm conta tanto o que se faz com o a maneira pela qual se criam , ao lado, processos de ordenação e de guarda das regras. Podem os en con trar ao m esm o tem po, no processo mais elem entar do m etabolism o do hom em com a natureza, relações de tran sform ação e relações de dever-ser: o que é e o que deve ser se am algam am em bora sejas aspectos diferentes do m esm o m o vim ento. \ relação social, p o rtan to , deve ser pensada não co m o uma relação entre “eu ” e “tu ” , mas co m o uma relação entre, de um lado, “eu ” , “ tu ” , e, de o u tro , in term ediário sim bólico, o vigilante da norm a. Isto é algo que sem pre me fascinou.
Em T ra b a lh o e reflexão, você escreve: “as propriedades de uma coisa não nascem propriamente de sua relação com outra, mas, com o elucida Marx, nela apenas se exercem ("sich b etãtig en j. De nossa parte, procu ramos mostrar que esse exercido é mais radical do que parece à pri meira vista, sendo responsável pelo m apeam ento das coisas, por um logos prático em que as coisas encontram os princípios de suas indivi duações”. O que é o conceito de ‘lo g o s prático” e com o se vincula ele ao novo quadro teórico de A presentação do m undo? A história dessa n oção de logos prático já foi indicada. Ela com eçou quando me encantei pela n o çã o de referências noem áticas no últim o FlusserI — co m o , num a mesa posta, a faca se reporta ao garfo, o garfo se reporta ã colher, e assim por diante, para form ar um sistem a cham ad o couvert. Se você vai a um restaurante, não pensa esp ecificam ente no garfo ou na colher, mas no sistem a do couvert — e, cla ro , na conta que vai pagar depois pelo couvert [risos]. O que me interessava era m ostrar
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com o essas relações são m antidas no sistem a de produ ção, co m o o seu equ ilíbrio é reposto. N o caso do restaurante, tudo bem : o sistem a é form ad o, você vai lá, paga por ele e, quando voltar, en co n tra-o novam ente da m esm a form a. M as e no caso do sistem a de produção? Q uem paga a conta? O ra , essa con ta tem de ser paga pe las próprias pessoas que colocam o g a rfo , a colher e a faca. Eu precisava, então — e por isso W ittgenstein foi tão im portante — , d escobrir co m o se podem articular as forças produtivas num sistem a de expressão. Se alguém produz arcos e flechas, por e.xemplo, e tem m uito mais arcos do que flechas, haverá arcos que não irão fun cion ar, pois é preciso haver uma p rop orção entre um arco e tantas flechas para que am bos possam cum prir suas funções — flechar um pássaro, flechar uma pessoa... N o caso do cap italism o, essa a rticu lação é feita graças ao fato de que cada um desses o b jeto s se exprim e sob a form a de valor; a articu lação do valor é uma expressão dessa articu lação das forças produtivas. Isso é algo que eu não conseguia entender antes de com preender com o determ inados o b jeto s são tran sform ad os em signos — co m o se pode pegar uma flecha e co lo cá -la numa encruzilhada, escreven do São Paulo na sua ponta, de tal m odo que eu possa com portar-m e de agora em diante de m aneira correta ou incorreta conform e eu queira ir ou não para São Pau lo. Enfim , con stru o uma bipolaridade, um pensam ento a partir do ato de exp o si çã o da flecha. M as é preciso n otar que transferi para o nível da expressão um c o nhecim ento m uito mais elem entar; o con h ecim ento de que o sentido da flecha vai das plum as para a p onta da seta, e não o co n trá rio . O ra , a n oção m arxian a da com p osição orgânica do cap ital, que diz que as forças produtivas são expressas em term os de valor, refere-se, a meu ver, a esse processo pelo qual os o b jeto s passam a ser significativos, uns em relação aos o u tro s. N o nível da expressão cap italista: eles são avaliados co m o m om entos do tra b a lh o geral da sociedade para co n tin u a r a produzir. E essa é uma que.stão que a lógica hegeliana não consegue exp licar, pois parte do pressuposto de que a expressividade se dá no nível do co n ceito , da rela çã o silogística da regra com seu caso. Desse m odo, é a atividade inscrita no silogis m o, com o expressão do A bsolu to, que resolve a articu lação da flecha e do arco. O ra, para poder pensar uma dialética m aterialista é preciso inverter esse m ovim ento de con stitu ição , exam in ar co m o a p ro p orção tecnológica se expressa em term os de valor, desde que cada fator de produção seja pensado com o m om en to da produ ção cm geral. Esta foi a prim eira tarefa que deveria enfrentar. A segunda, exp licar com o o desenvolvim ento tecnológ ico altera esse proces so de medida e expressão das articu lações das forças produtivas em term os de va lor. Sem uma am p liação do con ceito de exp ressão, acab aria caindo na besteira de im aginar que existe, de um lado, uma lógica form al e, de ou tro , uma lógica da c o n tradição, e de achar que esta última consiste em ver os objetos com o ao mesmo tempo iguais e con trad itó rio s. O ra , isso é uma piada, a piada intrínseca ao m arxism o vul gar, que confundiu o problem a com sua solução. E sta, para quem pensa nos seus term os, consiste em antep or ã lógica form al uma lógica da co n tra d içã o e dizer; “ pronto, com o há duas lógicas, nós, os dialéticos, pensam os diferentem ente” . A con tece que é preciso legitim ar essa duplicidade. .Vias para mim existem sistem as fo r mais e lóg ica, o estudo de várias gram áticas. A despeito de todas as conqu istas so ciais que pôde trazer, o com unism o não foi apenas uma ilusão que se entranhou
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no século X X , foi tam bém uma m aneira de as pessoas se em burrecerem , óp io dos intelectuais, com o dizia R aym ond A ron, a perda da capacidade de distinguir p ro blem as por m eio de um discurso esclerosad o. A firm ar a existên cia da con trad ição real não equivale a afirm ar a existên cia da luta e dos antagonism os, im plica ainda tran sform ar o real num logos, numa form a de expressão. E nqu anto isso não for explicado de um ponto de vista distante da especulação hegeliana sobre o A bsolu to , a crítica de M a rx ã econom ia política e ao capital deixa de ter sentido, pois toda ela se ancora na idéia de que capital e trab alh o se contradizem .
Em A presentação do m undo, você atribui grande importância à distin ção wittgensteiniana entre “modos de representação” e “meios de apre sentação”. No que consiste esse par conceituai e qual a importância dele para a sua reflexão? C o m o disse, quando os o b jeto s se tran sform am em signos, o nível m ais elem entar das relações de vigilância da regra já está presente, necessitando apenas m udar o asp ecto, para exp o r seu caráter de dever ser. C onsid ero uma bobagem essa idéia de que existe todo um sistem a de com p ortam en tos e, depois, um déficit norm ativo. D éficit norm ativo em relação a quê? Se A se relaciona socialm ente com B, há uma regra e um terceiro cu id and o dessa regra. O d éficit n orm ativo aparece já aí, na própria relação . N esse ponto M a rx é genial, pois ele diz que, se tiverm os uma rela ção de tro ca entre A e B e as pessoas passarem a op erar efetivam ente por m eio do d inheiro, elas se reconhecem com o proprietários de algo que deve circu lar. Se vem um desgraçado, pega o dinheiro e o leva para casa, pronto: acabou-se esse tipo de relação de tro ca. O nde está o d éficit norm ativo? Está aí m esm o. O u seja, não exis te diferença essencial entre a relação e o con trole da norm a. N ão se precisa apelar para E stado, Deus ou A bsoluto para que os hom ens regulem suas n orm as, as o u tras instituições vêm depois. T o d a norm a pú blica, pela sua sim ples reiteração , im plica instituições que são guardiãs da n orm a, de sorte que é no nível da própria sociedade civil que se dá esse entranham en to entre efetividade e guarda da norm a. C om preender isso é fundam ental para com preender as outras instituições n orm a tivas, que se vão m ultiplicando a partir — vou ser bem m arxista aqui — da infraestrutura. B asta 1er o segundo cap ítu lo d’0 capital: as pessoas que tro cam não são apenas tro cad o ras, atuam co m o agentes que respeitam a relação de propriedade e assim por diante. A norm atividade está no nível m ais elem entar das relações sociais. P o rtan to , é preciso p arar com essa brincad eira de Faktizität und Geltung*, cu ja op osição se baseia numa análise m uito estreita do que significa a p roposição.
Mas qual a relação disso com a distinção entre “m odos de representa çã o ” e “meios de apresentação”? Para fazer com que este isqueiro chegue até um cig arro deste m aço, ten ho que se guir certas regras: vou pelo cam inho mais cu rto, não vou jogar o isqueiro lá do outro
* “ Facticidade e validade” , título do livro de Jürgen H aberm as, de 1 992, traduzido no Bra sil com o título
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lado para depois pegá-lo e trazê-lo ao cigarro. Isto é, há uma relação entre o isqueiro e o cigarro que pressupõe uma série de coisas: por exem p lo, que o isqueiro tenha uma certa identidade, que não seja feito de sorvete, que funcione etc. Se ele fosse de cera e derretesse quando aceso , não poderia sequer op erar dentro daquela rela ç ã o , seria impossível levá-lo ao cigarro pelo cam inho m ais cu rto. Em outras pala vras: há aí dois tipos de necessidade diferentes entre si. A o afigurar-m e o cam inho m ais cu rto entre o isqueiro e o cigarro articu lo um m odo de representação que diz respeito a uma faticidade possível. .Mas esta só vem a ser segundo suas regras, se forem pressupostas outras existên cias fixa s, outras necessidades para a efetuação desse jo go de linguagem , cu ja expressão diz respeito aos m eios pelos quais os o b je tos e os fatos se apresentam com o objetos representados pelas regras do jogo. É genial esse duplo sistem a de necessidade, que retom a a d istinção m arxista entre história catcgorial e história do vir-a-ser. Desse m odo, há uma inter-relação entre Faktizität e Geltung operando no nível das próprias regras conform e sua m udança de aspecto.
Apesar da inspiração wittgensteiniana de A presentação do mundo, você afirm a neste livro que “é preciso tomar enormes distâncias do traba lho realizado p or Wittgenstein, e tentar mostrar que os erros dos m eta físicos, em que necessariamente cai o pensamento ao longo de seu per curso, podem servir de base para form as alienadas de sociabilidade”. Com o é possível se servir de Wittgenstein ao mesmo tempo em que o problem a que você se p õe exige uma tom ada de distância em relação a ele num ponto tão decisivo? W ittgenstein tem uma teoria m uito p articu lar da con trad ição . De acord o com ela, se digo “ isto é b elo ” c você diz “ isto é fe io ” , nós estam os entrand o em con trad ição — o que, para a lógica form al, não é o caso. C ab e então tentar entender o que esse filósofo está querendo dizer com “ co n tra d içã o ” , e o m esm o acontece com M a rx . M as quando o cálcu lo das proposições form aliza a co n trad ição , os problem as es senciais de seu sentido foram expu rgad os, pois as proposições foram tom adas uni cam ente sob o aspecto de com o podem se vincular por seus valores de verdade. Isso não explica com o a co n trad ição é usada. A questão é saber com o é possível operar com con ceito s, ou com representações, que aparecem co m o identidades, e, no ope rar, os objetivos vão sendo inteiram ente subvertidos — subvertidos não por um Deus que vem de fora, mas por um processo pelo qual ocorre uma espécie de alteração dos próprios o b jeto s. E todos nós som os enredados pelo m esm o processo. O u seja, o problem a da validade da regra im plica a in stitu cion alização do guardar a regra, o que por sua vez pode subverter o sentido da regra tal com o é apenas visada.
Em um artigo de 1990, “A sociabilidade travada”, você afirm a: “Creio que diante da encruzilhada entre socialism o e barbárie, os homens es colheram a barbárie, pois até mesmo aqueles que lutaram bravamente pelo socialism o e por um novo homem viram seus esforços se perderem pela desm edida da sociedade civil que tenninaram criando. E se hoje os novos líderes tratam de introduzir relações mercantis em suas eco nomias, convém ficar à espera da form a de m ercado que terminarão
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por implementar. No entanto, se a contradição entre capital e traba lho se esfuma precisamente para permitir tremendos desequilíbrios da distribuição da riqueza social, ela deixa todos nós, assalariados ou não, diante da questão crucial de saber o que fazer com o próprio trabalho”. Esse travamento da sociabilidade persiste? Em que sentido podem os falar de uma “escolha” da barbárie pelos homens? N ós não escolhem os a barbárie; nós estam os metidos nela. O problem a é saber com o sair desse buraco. O que tento descrever é o fato de estarm os num m undo em que a con stru ção dos signos pelos quais pautam os nossa sociabilidade rouba os senti dos elem entares pelos quais com eçam os a agir. C o m o , além disso, esses sentidos estão sendo com pletam ente subvertidos por um capitalism o que, além de estabele cer as regras, aprendeu a guardá-las, e guardá-las ad hoc conform e seus próprios interesses, tam bém estam os m etidos na barbárie no sentido bom da palavra — isto é, não no sentido de um estado prim itivo sem regras, mas no de uma utilização da regra de acord o com determ inados interesses. Esses interesses não são apenas indi viduais ou em presariais; são interesses que dizem respeito ao sistema com o um todo, que afetam nossas próprias individualidades sociais. M eu problem a não é, pois, im aginar com o sair desse m undo fetichizad o, cu jo fetiche não é apenas aquele da m ercad oria, mas sobretud o do capital com o finalidade em si m esm o. C ab e-m e, em prim eiro lugar, ap ontar com o se articula um sistem a produtivo cu ja racionalidade é a irrazão de um crescim ento .sem fim, sem eira nem beira. Em segundo lugar, minha tarefa é denunciar essa irracionalidade que se entranha do próprio processo de ra cion alização do processo produtivo e perguntar quais as instituições políticas que vão ser capazes de pôr em xeque esse m esm o processo de racionalizar pela irra cio nalidade vigente no plano do com p ortam en to dos próprios atores. (Considerem o m ito do progresso: progresso para quem , para quê? De que vale o progresso sem fim do crescim ento econ ôm ico se abre o abism o entre os ricos e os pobres? M as que tipo de instituições políticas vão ser capazes de detectar esse fenôm eno e pro por rem édios para saná-lo? Isso sem querer ã força suprim ir a co n trad ição , já que é por ela que a produção da riqueza não se esclerosa.
Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade? D iria que não fiz filosofia nem fiz ciência. L og o, não sou bom filósofo nem bom cientista. Sou apenas uma espécie de in terruptor de luz que, ao ver as ciências hu m anas cam inhand o autom aticam ente num a certa d ireção, vem e diz: "O lh a , cu i dado! Levem -se em con sid eração os constrangim en tos e os com prom issos que es tão sendo assum idos tacitam ente com o uso de tais co n c eito s” . N a filo sofia, não assum o esta ou aquela posição. Se estam os pensando de determ inada m aneira, pro cu ro calcu lar o preço que estam os pagando por pensar assim . O cam in ho que te nho perseguido é o cam inh o do cam aleão e do ch ato .
Certa vez você afirm ou; “para mim, ler Marx, e ao mesmo tempo apro fundar minha fam iliaridade com as ciências sociais, eqüivalia a obe-
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d ecera o conselho que G. Bachelard tinha dado a G.-G. Granger e este a mim: se pretende estudar epistemologia, case-se com uma ciência. Mas desde logo manifestei minhas tendências poligam as, pois eram todas as ciências sociais que pretendia abranger”. Pensando nessa afirm ação, com o você vê as ciências sociais no Brasil hoje? N ão sou um profissional da sociolog ia, leio a esm o o que me cai nas m ãos. D iante da avalanche das pu blicações, sem pre me pergunto: “ Será que vale a pena 1er tudo isso ?” — e fico angustiado com medo de perder coisas essenciais. P rocu ro n ão se guir m odas e d eixar que os textos se assentem . E.xceção feita à produção dos am i gos — pois tendo cada vez m ais a seguir a frase de M o lière: Nul a de l’esprit hors
nous et nos amis (Ninguém é dotado de espírito, à parte nós e nossos amigos). Pareceme que o que está sendo feito por aí im ita, de m odo em pobrecid o, o debate m un d ial, que tam bém não me entusiasm a. Provavelm ente por desconhecim ento. M as estam os sendo capazes de traduzir as nossas experiências, de traduzir a experiência de uma sociedade periférica tentando situar-se no con tex to do capitalism o mundial?
Com o você avalia a Teoria da Dependência, e com o você pensaria essa teoria no contexto da inserção atual do Brasil no mundo globalizado? C reio que a T e o ria da D ependência, a despeito das m últiplas form ulações que lhe foram dadas, representou um passo im portante no pensam ento da esquerda latino-am erican a. Pois viu-se que não se trata apenas de pensar a invasão im perialista, mas igualm ente de exam in ar co m o as estruturas sociais internas nacionais reagem a ela, isto é, se com prom etem e se repõem por m eio de políticas próprias. M as de pois que se instala sem co n testação a paz am ericana, o problem a do im perialism o desaparece da discussão, substituíd o pela questão da d em ocracia. O fato de um im portante teórico da dependência chegar à presidência da república não ajuda a m arginalizar o tem a da dependência? O que restou foi a con cep ção form al do sr. [R obert] Kurz, que deixa pouca margem para a política. O ra , me parece que, se o p róp rio cap ital n ão se repõe a não ser por m eio da in ten sifica çã o das p o líticas em presariais — o que é uma em presa m ultinacional senão uma fonte de políticas? — o âm bito das políticas públicas se am plia em vez de dim inuir. O capital de hoje está de olh o nas tax as de ju ro determ inadas pelo Federal Reserve. Estam os m ergu lhados na política, que tam bém se globaliza. M as política para quem?
O seu livro T ra b a lh o e reflexão, de 1983, teve uma vendagem e uma repercussão bem m aiores do que A p resentação do m undo, de 1995. A que você atribui tal diferença de repercussão, e com o se posiciona em relação a isso? Se foram vendidos por volta de seis mil exem plares de Trabalho e reflexão, creio que isso se deve ao fato de eu estar, na ép oca, m uito exp o sto pela m ídia. N os ú lti mos tem pos eu venho me tornand o um professor acantoad o — aqui em minha casa e numa institu ição, o C ebrap, que perdeu m uito a sua visibilidade. E eu creio que no Brasil os livros se expandem m uito m enos por sua qualidade do que pela e x p o sição pública de seu autor.
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Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecim ento do fenôm eno estético em nossa socieda de. Com o você se posiciona em relação a esse debate? N ão sou m uito bom para falar de arte, que para mim tem m uito da experiência íntim a. M as a arte que, desde m uito ced o, m ais me faz refletir é a pintura — não à toa o meu filho virou pintor. T en h o a im pressão de que o que se faz hoje em arte tem m uito pouco a ver com o que se fazia até o m eio do século. A diferença essen cial está em que, até esse m om en to, os o b jeto s de arte tentavam construir um código que pudesse ser percebido não num único o b je to , m as num a ju stap osição de vários deles. Pensem os, por exem plo, em R o th k o : se vários quadros são observados, acabase por perceber um cód igo que os alinhava. D epois de D ucham p e Beuys, o código saiu da ob ra e se refugia na etiqueta ou na in d icação do crítico . A idéia de que se possa interagir com a ob ra de arte talvez nunca tenha sido tão verdadeira com o hoje, mas não se pode mais ficar sozinho no museu: vê-se o quadro por m eio de uma nova in form ação que não vem m ais por ele. N a últim a exp o sição que vi no museu W hitney, sobre a arte am ericana — uma retrospectiva m uito b oa, por sinal — , era im possível acom p an h ar a parte m ais con tem p orân ea sem as instruções de um m o nitor. Este inform ava que tal fotografia apanha a jan ela de um trem a toda veloci dade, revelando en tão uma cena íntim a que se passava no seu interior, ou tra era um d epósito de arm as atôm icas sendo tratad as co m o se fossem ob jetos cotid ian os, e assim por diante. Só assim as fotos faziam sentido. Isto significa que foram reti rad as, da factura da o b ra de arte, a reflexão e a idéia de que sua repetição pudesse con stru ir seu próprio sentido. Agora este vem da m era ju staposição. D aí a d ificu l dade de o au tor ser identificado. A ntigam ente se dizia: “ isto é um V an G o g h ” , “ isto é um C ézanne”, “ isto é um Stravinsky” . M as às vezes já era difícil distinguir Braque de Picasso. T u d o indica, porém , que oco rre de fato aquela m orte das artes precon i zada por H egel, sua substituição pela filosofia. M as tam bém a filosofia não virou p lástica, isto é, de plástico? £ hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar.
Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíam os era um fe nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado N acional com o fonte e garante do Direito e com o detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como você vê tal diagnóstico? Na sua visão, a prim azia de que parecem des frutaras questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias? Estou sublinhando que a regra social se exerce ju n to de processos de sua vigilân cia, o que im plica no nível do fato uma dim ensão norm ativa. A guarda da regra é uma atividade política que passou a encontrar seu fulcro no Estado N acional e agora o extravasa. L em bro ainda que a vigilância da regra im plica aten tar para as d istân cias entre o padrão pressuposto pela regra, a medida do que é feito por m eio dela, e o que de fato resulta desse m ovim ento. M a s essa vigilância m ensurante só ganha legitim idade se for exercida em nom e da m anu tenção do to d o , da nação na qual os grupos se reconhecem com o integrantes ou parcialm ente incluídos. D aí o m o n o
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pólio da violência, que nada m ais é senão o ou tro aspecto da necessidade de se in tegrar numa identidade de que todos querem fazer parte, m esm o quand o parecem ser indiferentes a ela. M as essa medida do E stado não sobrevive sem o exercício da medida da riqueza so cial, que ele pode c o n tro la r de fo ra, com m aior ou m enor sucesso, m as que extravasa seu d om ínio e seu territó rio , em bora não se exerça fora de qualquer d om ínio e de qualquer território. O fluxo do capital financeiro pode circular ad oidado pelo m undo afo ra , m as sem pre está entrand o e saindo das fro n teiras fiscais postas pelos Estados nacionais. E cada E stado ou parte do E stado luta a partir de suas vantagens e desvantagens estratégicas. Parece-m e que o que mudou foi a natureza da guerra e da paz existen te entre os Estados, as empresas e assim por diante. É evidente porém que uma medida posta pelo E stado, que nunca fala na linguagem das classes, só pode ser exercida se c o lo car a p roblem ática da justiça social, da validade da diferença dentro do todo, para encob ri-la ou para exercê-la, reforçan d o a medida antiga ou propondo novas. Em sum a, desde o início se tem um critério para distinguir entre defensores do status quo e defensores da m udança. Se desde o início o processo de n egociação da m edi da da riqueza social tam bém se co lo ca no plano de uma p o lítica, é preciso levar em con sid eração com o os agentes vão se reportar a essa d istinção entre m anter a regra e m udar a regra.
Isso distingue para você direita e esquerda? É evidente. O critério é claro. Se o governo Fernando Henrique C ardoso, por exem plo, term inar restaurando as regras trad icio nais da exclu são social no B rasil, será um governo de direita — seja lá com o vem pintad o, de verde e am arelo, verm e lho, e assim por diante. Se, ao co n trá rio , for um governo que, ao longo dos seus dez anos de hegem onia no processo político brasileiro, consiga alterar essa medida, será um governo de esquerda. Este é um fato que se está con stru in d o. N ã o se tra ta de algo que pode ser verificado neste ou naquele lance, nesta ou naquela estraté gia, mas no circu ito de seu todo. De certo m odo, a história é o tribu nal de uma p o lítica, em bora o julgam ento feito esteja sem pre sendo refeito a partir da som bra que ele cria. Q u anto ao lugar da política, cabe lem brar o seguinte: se, já nas estruturas mais elem entares do com p ortam en to hum ano e do m etabolism o do hom em com a n atu reza, podem os descobrir ao m esm o tem po aspectos de ser e aspectos de dever-ser, não é preciso cingir-se à idéia de que somente o Estado pode ser a Zusammenfassung, a compreheusio, a to talização do dever-ser de tudo o que acontece nas sociedades contem porâneas. Se o processo de produzir a riqueza social se exerce a partir de focos políticos em luta, a política tam bém passa a ser exercida em vários níveis. É bem verdade que um deles depende da intervenção de acion istas, o u tro , do b a ix o clero , ou tro ainda de cidad ãos, e assim por diante. M as me parece que a política de hoje nasce do cruzam ento de instituições e práticas de soberania relativa, de sorte que o grande desafio é assegurar um terreno de n eg ociação dessas instituições em luta. D aí a enorm e im portância do Estado regulador que coloca seu capital em função dessa regulação social. Por isso estam os assistindo a uma refu ndação do exercício da sob eran ia, ao m esm o tem po mais com partilhad a e mais insidiosa.
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Q u an to, por fim , ao revival das questões éticas, há nele, creio eu, um lado que me preocupa. G esta-se uma nova form a de política que não logra, todavia, enfren tar efetivam ente o problem a da exclu são. N ad a mais natural que as boas con sciên cias apelem para a indignação m oral. iMas a que isso serve? Ao vir a ser pública converte-se em arm a p o lítica, tão manipulável e m anipulada co m o qualquer outra. M ais ainda, a pregação m oral tende a negar a p o lítica, em particular aquela zona cinzenta em que op era, suponham os, meu representante. Eu o encarrego de acuar meu inim igo, em pu rro-o a agir con tra sua vontade m ais profunda. Espero tam bém que, quando se distribuem bens escassos, ele trate de privilegiar nossos am igos em prejuízo de meus adversários. Se essa distribuição fosse m eram ente técnica não se ria política. Suponham os um m édico que deva distribuir pacotes de rem édio c o n tra a Aids, que haja m ais pacientes do que doses, e que, p o rtan to , ele deva selecio nar aqueles que têm m ais chances de m orrer e aqueles ou tros que têm mais ch a n ces de viver. Até agora sua escolh a foi técnica. M a s, digam os, quando se defronta com dez pacientes com as m esm as chances de sobrevida e lhe restam apenas cinco doses, com o deve proceder? D aí em diante age p oliticam ente, não há com o evitar. T ran sferir a questão para o plano das boas intenções, im aginar que se deve agir levando em conta tão-só os estados de coisas considerados possíveis e d eixar na som bra os m eios pelos quais m ontam os os quadros dessas possibilidades, no fundo, significa esquecer com o os sentidos são roubados, isso é extrem am ente conserv a dor, pois reforça a ilusão de que a m era reform u lação ou refu ndação da ética pos sa dar solução a uma questão que é prática, uma questão que diz respeito a com o se opera a fim de que um sistem a de regras seja reposto. Isso é uma form a de ocu l tar co n flito s irresistíveis. Cada vez m ais sou antidedutivista e an tifu n d acion ista, porque não me interessa legitim ar esta ou aquela regra m oral, mas exam in ar com o devo ser e todos nós devem os ser para que sejam os dignos de uma regra m oral que se apresente com o um im perativo, seja lá qual for seu conteúdo.
Você enxerga isso na discussão atual sobre os direitos humanos? Sim , desde que se m arque a diferença entre form u lar uma regra e segui-la. N ão vão pensar que eu n ão seja defensor intransigente dos direitos hum anos, mas ap e nas essa defesa significa m uito pouco diante da tarefa de m odificar certas estrutu ras sociais que os tornem efetivos. O desafio é saber que tip o de regra precisa ser m udada. A sim ples asp iração por um m undo m elhor não distingue a esquerda da d ireita, pois isso não c o lo ca um lim ite no ca rá te r relativo dessa o p o siçã o . Bill C lin ton está à esquerda do esp ectro p o lítico n o rte-a m erica n o . E daí? T am b ém G oeb bels n ão estava m ais ã esquerda do que G õring? Por isso seria este m erece dor de algum aplauso?
Falando sobre a relação entre m oral e política numa entrevista para a revista R epública, você afirm ou; “parto do pressuposto de que existem regras morais se apresentando como imperativos categóricos. Elas se dão com o tais, vale dizer, no seu significado está incluído que constituem o lugar onde a procura do fundam ento estanca. Isso me basta, pois agimos de acordo com as regras tais como aparecem para nós, não como
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são para todos. Pergunto então o que as pessoas devem fazer para es tar preparadas para seguir regras morais. Ora, nesse quadro, ou quero a pessoa antes da regra ou a regra antes da pessoa. No primeiro caso, se tece uma m oral da intimidade, onde as regras vão se form ando e reflexionando conform e o respeito entre nós se firma. No segundo caso, a regra desde logo é fon na de sociabilidade, colocando-se o problem a de com o pode valer para uma dada com unidade e a hum anidade em geral. Isso significa que a m oralidade moderna está travejada por três pontos de fuga: a intimidade, a eticidade e a am izade, já que esta últi ma configura um colchão de conivência entre as du as”. Com o pensar esta moral da perspectiva antifundacionista de que você nos falava f Esse meu aparente kantism o de pensar o juízo prático é, no fundo, m uito aristotélico, pois recorre à idéia de um ethos. Estou subiiniiando que qualquer relação so cial tem a co n trap artid a do guard ião da regra. T ra to en tão de perguntar: com o funciona essa relação de guarda e de representação da regra para os indivíduos nas várias esferas da sociabilidade? C o n stato en tão, com o já fez M cin ty re, que vive mos num m undo de poucas virtudes, ou m elhor, de virtudes con trad itó rias: e m b o ra isso não nos im peça de agir m oralm ente. N ão são mais as virtudes trad icionais que ao fim e ao ca b o organizam nossas sociedades. É preciso, p o rtan to , en con trar, no nível m ais elem entar dos com p ortam en tos hu m anos, os pontos de fuga a partir dos quais as norm as se organizam , pois essas regras não deixam de existir ainda que para d om ínios restritos. Percebe-se en tão que num a relação de intim idade se quer m enos as regras, porque a existência do ou tro é o alvo m aior da vontade. M as esse ou tro não se dá com o um personagem , m as com o angústia, co m o fissura no m undo. N esse plan o, a regra parte do respeito pelo ou tro posto com o uma nãoessência. N a esfera pública, entretanto, querem os, antes de tudo, que as pessoas ajam de acord o com certas regras — pouco im portand o se são estas ou aquelas regras. A fu nd am entação não im porta, as pessoas sim plesm ente querem essas regras, e isto basta para instalar aí o d om ínio de uma m oralidade pública. M as há, por fim , o terceiro pólo, o acoch am bram ento da am izade, um colchão im portantíssim o na vida con tem p orân ea, pois cria uma zona cinzenta que atenua os rigores da intim idade e da m oral pública. Am izade, por conseguinte, m uito diferente da philia grega, pois esta e.xclui a relação com alguém não-virtu oso. Im aginem se fôssem os h o je em dia peneirar os nossos am igos som ente segundo o critério da virtude... C ertam ente te ríam os pouquíssim os am igos [risos]. N o en tan to , essa reflexão sobre a m oralidade pública ficou bloqu ead a, p o r que eu precisava entender com o as pessoas podem querer regras algum as delas c o n trad itórias, isto é, cu jos efeitos negam certos parâm etros no início pressupostos — e não tinha ainda os instrum entos necessários para pensar essa situação. Agora creio que os tenho. Q uando nós elegem os p olíticos, não estam os m esm o pressupondo que eles devam , para poder nos representar satisfatoriam en te, suspender certos p arâ m etros m orais? Há um jogo entre a m oralidade e a política no qual a moral desenha um espaço em que os juízos políticos serão m orais ou im orais de acord o não tan to com sua eficácia em vista de um ob jetiv o d eterm inad o, mas sobretud o porque c o r ro boram para d esenhar um tipo p o lítico a quem se perdoam certo s pecad ilhos.
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E n qu anto era vivo, T a n cred o N eves era consid erad o um grande m anipulador; de pois de sua m orte, do sacrifício de sua vida para assegurar a tran sição d em ocráti ca , converteu-se num grande estadista, e a m anipu lação, na m arca de sua astúcia. Segundo o nosso juízo de hoje, ele era um grande astucioso da política que conse guia organizar um esp aço de n egociação graças ã sua habilidade e à sua caracterís tica de estadista. N ap oleão era um grande can alh a, mas depois de tudo o que fez para a E uropa, palm as para ele.
\ocê menciona três esferas; intimidade, m oralidade pública e am iza de. E há, entre elas, uma tendência de invasão de umas nas outras. É o caso, p or exemplo, de toda essa legislação que pretende regular a inti midade. Com o você pensa, então, a relação entre intimidade e m ora lidade pública, se uma tem o direito de in vadira outra? D ireito ela n ão tem ; ela sim plesm ente invade. M as eu não diria que se trata de uma invasão ilegítim a. Por exem plo: a partir do m om ento em que alguém resolve to r nar-se hom em público, ele se co lo ca num lugar em que suas ações íntim as devem ser visíveis e perm eáveis. Espero de meus representantes que, obviam ente, ajam de acord o com suas inclinações e interesses pessoais, m as que se conservem no plano da publicidade. Esta é uma con trad ição inevitável na vida do p olítico, que cada um vive a seu m odo. O representante tratan d o de d eixar na som bra suas inclinações, o eleitor fazendo de con ta que o eleito só age no interesse público e o adversário e x plorando ao m áxim o essa con trad ição e com isso co la b o ra n d o para que se firme a fronteira entre o público e o privado. Se não quero vivê-la, não vou fazer p o lítica, se n ão desejo a invasão da m inha intim idade, fico em casa. Se alguém resolve ser presidente da R ep ú blica, é com o se ele d eclarasse: “ Estou abd ican d o da m inha in tim id ad e” . E toda sua fam ília entra nessa d ança, cad a um tratan d o de se defender co m o pode. N ote-se que essa fronteira do público e do privado resulta de uma luta e se fixa nos costum es. V eja-se co m o dona R uth C ard o so, por exem plo, tem c o n seguido resguardar a sua intim idade a despeito da exp o sição do m arido.
Com o você caracterizaria a sua relação com a religião e a fé? Até os 17 anos ap roxim ad am ente, eu fui cristão . E me preocupava m uito com a questão da existência de Deus. Até quando me perguntei: “ Em que a existên cia de D eus vai m udar o meu com p ortam en to? Em n ad a” . E deixei de pensar no assunto. O que nunca me impediu de ter crises m ísticas — lem bro-m e de certa vez quand o, viajando pela Bourgogne com alguns colegas, passei por uma crise mística atéia muito profunda, sentindo nos poros e nos vinhos a a tra çã o da transcend ência. Será que sou um sujeito religioso? Talvez. M as diria que a m inha religiosidade é m uito m ais uma religiosidade da philia, da relação co m o o u tro , da solidariedade com a ale gria dele... Se um dia estiver no juízo final, sei o que responderei quando Deus me perguntar se eu tive fé: “ N ão im porta se tive fé ou n ã o ; o que im porta é que segui T eu s m andam entos m ais estritam en te do que se tivesse tido fé, pois desse m odo nenhum padrão m oral me foi im posto de fo ra, nenhum padrão que não tenha sido querido por mim m esm o” .
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Com o você se situa em relação aos problem as de uma “mudança de paradigm a” da filosofia, de uma filosofia “pós-m etaftsica” calcada na linguagem? N ão acred ito nisso. O ra , n ão me venham com essa! Linguistic turtt'; Isso mais pa rece uma tournure sofistica! Estou passando por uma experiência fascinante: vol tei a dar aulas no prim eiro ano da Faculdade de Filosofia. Isto me leva a reler di versos textos clássicos por sem ana. N a diversidade das filosofias, há uma tal per m anência de questões, de questões que m udam de asp ecto, que se tran sform am ... V ocês acreditam realm ente que a m etafísica term inou com Kant? M as cada vez mais estou convencid o de que as form as de fazer filosofia mudam m uito m enos porque o ser é dito de outra m aneira e m uito mais porque se desenvolve uma técnica de se pensar esse dizer.
C oloquem os então a pergunta de outra fortna. Você afirtnou que, a partir da década de 60, verifica-se uma ausência de grandes pensado res na filosofia. Você vincularia isso a esse linguistic turn? N ão. A filosofia nos Estados Unidos não possui a im portância que possui na F ran ça ou na A lem anha. A utores co m o Q u in e, Ravvls etc. interferem m enos, por exem plo, do que o cin em a, que é uma m áquina de crítica poderosa do “ am erican vvay o f life” . C reio que a decadência, ou m elhor, o enervam ento do pensam ento filo só fico nos últim os tem pos se deve sobretudo ao m odo de produção dos textos filo só ficos, que se dissem inou nas universidades e nos institutos de pesquisa: para cada
paper uma idéia, uma idéia em cada paper, já que im porta pu blicar, ocu par a sua p osição no m ercado de trab alh o e na b u ro cracia. Ser filósofo virou profissão assa lariad a, com tabela de preço no m ercado, o que é m uito esquisito.
Você utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do fu turo da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia? N ão há palavra de que desconfie m ais do que a palavra “ u to p ia” . Se o pensam ento é sem pre situado, dizer que se vai para um “ n ã o -tó p ico ” é falso. A idéia de co n s tru ir visões im aginárias do que poderia ser nosso futuro me repugna. O que me interessa, acim a de tudo, é verificar, den tro do esp aço em que se tra b a lh a , quais os vetores que ultrapassam o cotid ian o. Espero ser m oderno, não pretendo reeditar a epopéia de V asco da G am a, que, ao term inar o périplo da Á frica, foi levado a um lugar do qual divisou o universo em fu ncionam ento. T am b ém não pretendo ser m ineiro, pois, se a m áquina do m undo se desvelasse para m im , não seria capaz de passar ao largo. Se isso acontecesse gostaria de ser tritu rad o por suas engrenagens.
Nós podem os, todavia, pensar em alguns conceitos de filosofia da his tória com o o de progresso. Em que sentido, a seu ver, nós poderíam os falar em progresso? N essa m alh ação da idéia de progresso tam bém há um lado sacana. H oje entende m os m uito m ais a respeito do desenvolvim ento do universo do que há cinqüenta anos. N ão me parece possível negar todo progresso. Q ue hoje nós sejam os capazes de tran sform ar uma ciência m eram ente observante, a astro n om ia, em ciência e x
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perim ental, isto im plica progresso extrao rd in ário . Q ue possam os h oje cam inhar m uito rapidam ente para ter o desenho do genom a hum ano e, p o rtan to , d escobrir m istérios da vida; que cada vez m ais prevaleça nas relações hum anas a idéia de que a tolerância é um instrum ento sem o qual não se tem relação com o o u tro ; que se possa ter acesso a um museu im aginário, por m eio do qual as ob ras de arte estejam expostas em sua casa; que se possa recuperar, por m eio dos C D s, uma história da m úsica que dorm ia em partitu ras esquecidas; que se tenha uma arte co m o o cin e m a, que realiza o p ro jeto da “ arte to ta l” de form a m uito mais am pla do que a óp e ra podia im aginar; que — para pescar em ou tras águas — os meios de com u n ica ção coloquem os excluídos na nossa convivência cotid ian a, tudo isso representa para mim um progresso e xtra o rd in á rio . N o fundo sou um trem endo entusiasta do p ro gresso m oderno e agrad eço ao capitalism o por nos ter dado essa am plitude de h o rizonte que leva, além do m ais, a discernir a profundidade da m iséria que ele m es mo produz.
Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos com o riscos am bientais globais, am eaças de desintegração social em larga escala e alien ação cultural em massa. Com o você vê tais p ro blemas? V ejo exatam ente com o uma série de conseqüências indesejáveis desse processo de rou b o do sentido das ações hum anas, e com o algo que nos co lo ca a questão do senti do de nosso futuro. A gora, o fato de nós serm os h oje capazes de pensar isso de uma m aneira g lobal, que inclui a hum anidade co m o um todo, me parece um ganho e x trao rd in ário. Pela prim eira vez se tem uma idéia prática, e não utópica, da hum a nidade — o que é m uito estim ulante. H o je , quando com eça o declínio efetivo de m inha vida, vocês, novos filó sofo s, se defrontam com o desafio de conviver com a humanidade com o um todo, o desafio de construí-la por meio de instituições globais.
Em que projetos você está trabalhando atualmente? Que idéias você tem para projetos futuros? Um velhinho de 7 0 anos não tem p rojetos para o fu tu ro... Pensando bem , estou m entindo para vocês! Se estou trab alh an d o em três livros ao m esm o tem po, não cab e lam entar pela falta de p ro jeto s. Um a amiga m inha, D ulce A quino, professora de dança — por isso respeito seu d iagnóstico — , uma vez me disse que tenho um esquem a corp oral e tem poral de um m enino de 8 anos. N o ginásio, q uand o preci sava fazer “ordem un id a” , devia apertar um dedo da m ão para estar p ron to para distinguir esquerda e direita. O u seja, viver no tem po e no esp aço não foi propria m ente a m inha especialidade. A relação privilegiada que m antenho com o espaço é com a minha casa. Sem pre sonhei possuir um ninho de que me apropriasse inteira m ente, um lugar no qual me reconhecesse em cada ca n to . A data de m inha m orte, p o rtan to , não me preocupa, em bora conviva cotid ian am ente com a idéia e a sensa çã o de finitude, de eu m esm o con stitu ir uma ruga passageira no universo. M a s não vivo em fu nção disso. C o n tin u o , pois, a tra b a lh a r em meus p rojetos. R ecentem ente, entreguei para a pu blicação os dois livros sobre M a r x , e agora só me falta conclu ir o livro sobre a
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moral e, mais tarde, voltar a Hegel, mas então pensado em sua relação com Schelling. Estou sem pre vivendo um p ro jeto. D epois de um tex to p ronto eu o largo, tenho dificuldade até m esm o de corrig ir uma prova tipográfica. Por isso, a hom enagem em vista das coisas feitas me constrange. É com o se me dissessem: “ A gora, com 7 0 anos, elevado a Professor Em érito da Faculdade de Filosofia, você está p ro n to” . Isso não me faz sentido. Estou dando aula no prim eiro ano com a mesma d isposição e com o m esm o prazer com que dei m inhas prim eiras aulas na Universidade de São Paulo. A única diferença é que, se correr um p ou co, me vem angina.
Com o você imagina que Jo s é Arthur Giannotti será visto, digamos, em 2040? Em prim eiro lugar, não sei se serei “ visto” em 2 0 4 0 . Vou ser fran co: reconheço que o trab alh o que fiz tem certo peso. M as tam bém con stato que a especificidade de meu trab alh o é diluída pela antropofagia da cultura que predom ina no Brasil. T o dos ficam iguais para que todos sejam medianos. Provavelmente a sensação de minha diferença é apenas subjetiva. N essas cond ições, com a diluição de um parâm etro que tentam os dem arcar mas não conseguim os m anter, é provável que, em 2 0 4 0 , meu nom e não seja nem lem brado. Além do m ais, estou carregand o o peso da trad ição, da boa trad ição, creio eu. Sempre me identifiquei e fui identificado com o hom em da esquerda, mas que não pode acom panhá-la quando continua a negar a política, quando a pratica com o um mal necessário para preparar o advento de uma era em que fosse substituída pela ad m inistração racional das coisas. M as, enfim , vam os ver o que vai acontecer quando saírem esses meus dois pró.ximos livros sobre M a rx . Para mim não seria surpreendente se boa parte da esquerda sim plesm ente recorresse ao velho esquem a de ignorar o que a im portuna. E m bora alguns de meus am igos prezem meu tra b a lho, não é raro ouvir que sou um ch a rla tã o que ocupa um espaço público porque sabe se virar na im prensa, porque tem am igo presidente, porque sabe m anipular instituições de apoio à pesquisa, porque enfim tem poder; em sum a, uma espécie de O restes Q uércia da cultura brasileira [risos]. O problem a to d o está cm que nós, intelectuais brasileiros, ou m antem os com a mídia uma relação am bígua, ou nos encastelam os em trab alh os técnicos. O desa fio reside, creio eu, na necessidade de inventar um novo m odo de produção das idéias. M as passar pela mídia im plica correr um grande perigo: substituir o co n ceito pelo deslize, nos últim os tem pos, pelo g racejo . O s jo rn ais foram invadidos pela graça sem g raça, pela e x ib içã o da finura do articu lista, m ais interessado em escrever um belo texto do que exp o r as am bigüidades de uma situação. Isso som ado à identifi cação da ética com a p o lítica, o que ninguém pratica mas os ou tros devem p rati car, leva a uma situ ação com o se estivéssem os voltando aos tem pos da Inquisição. O bviam ente com o farsa. F arsa, porém , que possui um conteú d o antid em ocrático, pois tende a negar precisam ente aquela zona cinzenta das ações hum anas onde a política se faz necessária.
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Principais publicações: 1966 1975 1983
Origens da dialética do trabalho (P orto Alegre: L & P M , 1 9 8 5 ); Exercícios de Filosofia (Petrópolis/São P aulo: Vozes/CEBRA P); Trabalho e reflexão: ensaios para uma dialética da sociabilidade (São P au lo: B rasiliense);
1985 1986 1995 2000 2000
Filosofia miúda e demais aventuras (São Paulo: Brasiliense); Universidade em ritmo de barbárie (São Paulo: Brasiliense) Apresentação do mundo: considerações sobre o pensamento de Ludwig Wittgenstein (São Paulo: C om panhia das L etras); Marx: vida e obra (P orto Alegre: L S cP M ); Certa herança marxista (São Paulo: C om panhia das L etras).
Bibliografia de referência da entrevista: Althusser, L. A favor de Marx, Jo rg e Z a h a r Editores. A ristóteles. Metafísica, M ad ri: E ditorial C red os. ____________. Ètica a N icôm aco, co leçã o O s Pensadores, Abril C ultural. ____________. Organon, Lisboa: G uim arães. G ranger, G . G . Por um conhecimento filosófico, Papirus. H aberm as, J . Direito e democracia. Tem p o B rasileiro. H egel, G . W . F. Ciência de la Lógica, Buenos A ires: Solar. H usserl, E. Investigações lógicas, co leção Os Pensadores, Abril C ultural. Ja eg er, W . Paidéia, M artin s Fontes. K ant, I. Crítica da razão pura, coleção O s Pensadores, Abril Cultural. ____________. Crítica da razão prática, L isboa: Edições 70. ____________. Crítica da faculdade do juízo, Forense U niversitária. M a rx , K. O capital, coleção O s E conom istas, Abril C ultural. ____________. Elementos fundamentales para la crítica de la economia política: bor
rador 18S7/1858, M éx ico : Sigio V eintiuno. W ittgenstein, L. Tractatus logico-philosophicus, Edusp. ____________. Investigações filosóficas, co leção O s Pensadores, Abril Cultural.
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O S W A L D O P O R C H A T (1 9 3 3 )
O sw aldo P orch at Pereira nasceu em 1 9 3 3 , em Santos (SP). G raduou-se am Letras C lássicas pela Universidade de São Paulo e em F ilosofia pela Universidade de Renncs (F ran ça), tendo ob tid o o títu lo de d ou tor em Filosofia pela USP. C riou o C entro de Lógica, Epistem ologia e H istória da Ciência (C L E ) da Universidade E s tadual de C am pinas e as revistas Manuscrito, Cadernos de Filosofia e História da
Ciência e Journal o f Nori-Classical Logic. É professor ap osentad o da USP. Esta entrevista foi realizada em dezem bro de 1 9 9 9 . G oethe dividiu a vida de seu personagem Wilhelm M eister em dois romances, Os anos de aprendizado e O s anos de peregrinação. No pri meiro, o foco está posto na form ação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que você nos falasse de sua form ação intelectual? Q uand o eu estava no fim da minha ad olescência, no fim do colegial, m inha am b i ção era ser professor secundário de latim. Eu adorava a língua latina, tinha tido bons professores, e queria fazer isso para o resto da vida. E n tão entrei na Faculdade de Letras e fiz o curso de L etras C lássicas, onde aprendi tam bém o grego. Estudei lite ratura grega e latin a, filologia grega e latina, e assim por diante. A p aixão pelas lín guas clássicas era m uito forte, mas aconteceu que no últim o ano do curso de Le tras, com o eu podia fazer m atérias op tativas fora do cu rso, fiz um curso que o p ro fessor Lívio T eix eira, do D epartam ento de Filosofia, ofereceu sobre Platão. N o m es m o ano, por coin cid ência, no curso de literatura grega eu tinha aula sobre P latão, e no curso de didática geral tinha um cu rso sobre a edu cação em P latão. P ortan to, foi um an o p latôn ico: fiz o q u a rto an o de L etras estudando três d isciplinas que versavam sobre P latão. Eu já gostava de filosofia desde há m u ito, mas os meus conh ecim entos eram m ais de filosofia tom ista e neotom ista: São T o m ás de A quino e M aritain . O p ro fessor Lívio T eix eira me incentivou para que eu me dedicasse à filosofia grega, e fiquei então realm ente desejoso de tra b a lh a r em filosofia, mas eu já tinha ganhado uma bolsa de pós-graduação para a F ran ça, onde ia estudar filologia grega. E com isso eu tinha resolvido dei.xar a filosofia para mais tarde. A contece que o G ian n otti, que era meu am igo desde o coleg ial, estava em Paris, e em nossas correspond ências eu o inform ei que ia para Paris estudar filologia grega. Ele me respondeu sugerin do que eu não fosse para Paris, m as sim para R ennes, onde ele tinha estado um ano, porque em Rennes havia um curso de filosofia grega dado por V icto r G oldschm idt, e G illes-G aston G ranger estava lá tam bém .
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Q uand o cheguei a Paris, o G old schm id t, que era am igo do G ia n n o tti, nos convidou im ediatam ente para ja n ta r em sua casa. Eu disse en tão ao G oldschm idt que ia fazer o m estrado em filologia grega, mas que pretendia fazer um curso de filosofia quando voltasse ao Brasil. E ele me propôs a alteração de m inha bolsa, de bolsa de m estrado em filologia grega para bolsa de grad uação em filosofia. A cei tei, e em quinze dias ele conseguiu a m udança. Eu tive então uma bolsa para fazer filosofia cm R ennes. Fiz o curso inteiro com o G ranger e o G old schm idt e, depois de term inar o cu rso, recebi uma carta do Je a n H yppolite — a qual me surpreendeu b astan te, já que ele era o diretor da École N orm ale — , dizendo que eu havia sido aceito com o aluno estrangeiro da É cole N orm ale, com direito a m orar na escola e utilizar os recursos da escola. É claro que aceitei, e descobri em seguida que tinha sido uma travessura do G ranger e do G oldschm idt. Eiquei en tão dois anos em P a ris, segui cu rsos de G old sch m id t e G ran g er, que estavam dando aulas na É cole N orm ale nessa época, segui os cursos de H yppolite, conheci Althusser — todos os meus colegas de filosofia estavam no grupo do Pour Marx — , e no refeitório com ía mos na m esm a m esa. A o m esm o tem po, nesses dois anos em Paris com ecei a m i nha tese de d ou toram ento, cu jo títu lo inicial, A dialética em Artistóteles, era su gestão do G oldschm idt. M as foi só no B rasil, anos m ais tard e, que vim a term inála, sendo que a d ialética cm A ristóteles cedeu lugar à ciência em A ristóteles. E m b o ra o meu intuito inicial tivesse sido escrever um prim eiro cap ítu lo sobre a ciência e o resto da tese sobre a d ialética, esse cap ítu lo cresceu dem ais, ficou com mais de 2 0 0 páginas, o que me levou a m udar de idéia e fazer uma tese sobre a ciência com um últim o capítu lo sobre a dialética.
Com o foi 0 seu contato com Jean Hyppolite? O co n tato com H yppolite foi um co n ta to form al. Ele era o d iretor da esco la, e x tre m am ente amável e sim pático, e estava dando um curso sobre a interpretação heideg geriana de Hegel. E m bora nem H eidegger nem H egel fossem o b je to do meu inte resse m aior, eu segui esse curso e acho que aprendi bastante coisa. L em bro-m e do H yppolite dizendo em aula que os textos heideggerianos sobre Hegel eram b astan te difíceis, sobretudo porque era m uito difícil saber quem estava falando: se Hegel, se H eidegger, ou se Hegel na interp retação de Heidegger. N ó s, alunos, costu m áva mos brincar dizendo que as aulas de H yppolite eram m uito difíceis porque nunca sabíam os se era Hegel quem estava faland o, se era H eidegger quem estava fa la n do, se era H yppolite quem estava faland o, e, assim por diante, todas as co m b in a ções que se pode fazer! [risos] De qualquer m aneira, foi um curso extrem am ente proveitoso.
Você poderia periodizar um pouco m elhor essa fase de sua form ação? Eu com ecei a grad uação em filosofia em 1 9 5 7 . Fui dispensado das m atérias não filosóficas do cu rso, porque era form ad o em letras no B rasil, e isso me permitiu term inar o curso rapidam ente: em 1 9 6 0 já o tinha term inad o e com ecei, ainda na Fran ça, a trab alh ar na m inha tese de d ou toram ento. V oltei para o Brasil em 1961 e nesse m esm o ano com ecei a dar aulas no D ep artam ento de Filosofia da USP.
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Osw aldo Porchat: “ Essa perspectiva de adesão ao coridiano, de valorização do huitiano em contraposição ao filosófico, foi talvez o mote central de todas as minhas incursões no domínio filosófico. O ceticism o é para mim a valorização, contra os dogmas, do saber dos atos com uns” .
No ano seguinte à defesa do doutoramento, em m arço de 1968, você profere a aula inaugural do Departamento de Filosofia da USP, em que se afasta das posições estruturalistas de Guéroult e Goldschmidt, que são facilmente reconhecíveis na redação de seu doutoramento, então recém-defendido. Essa virada foi vivamente descrita em seu texto “Pre fácio a uma F ilosofia”, de 1975, nos seguintes termos: “Desesperando da filosofia e de seus problemas, renunciei a buscar-lhes soluções. A ba tido p or um profundo desencanto, o temor me possuiu de que os dis cursos da filosofia não mais fossem que prodigiosos e sublimes jogos de palavras. Um brinquedo dos filósofos com as palavras, do Logos com os filósofos. O feitiço que m e prendera se quebrava, desfazia-se uma antiga servidão. E tomei, então, o partido do silêncio”. A impressão que se tem é a de que essa guinada existencial e teórica ocorreu num perío do muito curto. Foi mesmo assim? N ã o creio que tenha sido tão cu rto . Q u an d o com ecei a lecion ar na F ilo so fia, em 1 9 6 1 , eu era um estruturalista de carteirinha, e assim fiquei até 1 9 6 7 ,1 9 6 8 . Eu nunca quis ser h istoriad or da filosofia, m as, porque pesava sobre mim a herança estrutu ralista, eu entendia que a única m aneira de fazer filosofia corretam en te era fazer história da filosofia. P o rtan to , eu pretendia estar fazendo filo sofia, e não história da filosofia. N a perspectiva estruturalista de G uéroult e G oldschm idt, não cabia mais o enveredar por um cam inho filo sófico original; o im portante era conh ecer as es truturas do pensam ento filo só fico , e o con h ecim en to das estruturas não pode ser conseguido senão pelo estudo das ob ras dos filósofos e pela descoberta das lógicas internas que as estruturam . É fácil ver que essa visão da filosofia pode conduzir a um ceticism o. Porque você deixa de acred itar na possibilidade de constru ir uma filosofia original e fica preocupado unicam ente com o con h ecim ento das estrutu ras do pensam ento filo sófico, isto é, com fazer história da filosofia — co m o se não houvesse m ais con d ição de pensar filosoficam ente. N ão sei se G old schm idt tirava essas conseqüências da sua postura h istórico-filosófica, mas foram as que eu tirei. N um sentido m uito particu lar, sou estruturalista até h oje: penso que o m éto do estruturalista é o m elhor m étodo para uma primeira leitura de um pensador, para se d escobrir a lógica interna das razões, a estrutura da o b ra. T ra ta -se tão som ente de um instrum ento de tra b a lh o , um instrum ento para pensar. E n qu an to naquela época isso para mim era tudo, h oje é apenas uma etap a, porque depois disso vem o diálogo pessoal com o filó sofo : tendo-se aprendido (supostam ente) a sua filosofia, interage-se com ela, tom a-se p osição em relação a ela, end ossando-a — total ou parcialm ente — ou não a endossando. E nfim , não se está obrigad o a ser um histo riador. Pode-se ser um filósofo por conta própria, ainda que, é c la ro , buscando na história da filosofia um alim ento precioso, com o parte do desenvolvim ento e da exp o sição de seu próprio pensam ento. Com relação à idéia de que não valia a pena ten tar uma solução pessoal para os problem as filo sóficos, de que essa solu ção , além de não ser desejável do ponto de vista de uma sólida posição estruturalista, seria apenas uma solução a mais sem qualquer im portância m aior, eu com ecei a tirar essas prim eiras conclu sões céticas q uand o travei conh ecim en to com os texto s dos cético s gregos, sobre os quais dei
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um curso na USP em 1968, no qual p or sinal o Paulo A rantes foi meu aluno. A partir das m in has posições anteriores e d o m eu c o n ta to co m o ceticismo grego — de um a in te r p re ta ç ã o d o ceticism o grego q u e m ais ta rd e eu reconheceria c o m o incorreta — , eu n ã o via mais co m o filosofar, co m o p od er filosofar. Julguei que o p a rtid o do silêncio filosófico era a única solução que me era perm itida, deixei de acreditar na validade de q u a lq u e r pro jeto filosófico e passei a e s tu d ar lógica desesperadam ente. Fui fazer cu rso de lógica nos E stados Unidos, o n d e passei dois anos, 1969 e 1970, e estudei lógica, fu n d a m e n to s da m a tem ática, álgebra, teoria dos co n ju n to s etc. Eu julgava te r d escoberto então que a lógica nos brindava com toda s as qualidades que eu esperava, e que m uitos esperam , do discurso filosófico: a lógica é rigorosa, jus tifica plenam ente cada p ro p o siçã o que av ança, nos dá verdades. E m b o ra , é claro, essas verdades n ão sejam verdades sobre o m u n d o , mas sim verdades p u ram e n te form ais, o fato é que a lógica me dava o q u e eu qu eria da filosofia — ain d a que m e fazendo p a g a r o preço altíssimo de me alienar do m u n d o , pelo fato justam ente de n ã o ter n a d a a ver co m ele. Foi a p artir daí que um estudo mais a p r o f u n d a d o d o ceticismo grego me le vou a descobrir que a m inha prim eira visão sobre ele era historicam ente errôn ea, que na verdade o ceticismo ab ria perspectivas filosóficas, a o m esm o te m p o m a n te ndo aquela m inha renúncia a to d o p en s a m e n to especulativo. C o m o passar dos an o s, eu fui en tão , progressivam ente, desco b rin d o m elh or o ceticismo, d es co b rin d o m e lh o r u m a in te rp re taç ão que n ão é a c o m u m e n te vigente nos meios a c ad ê m i cos, e me tornei um cético. M as isso só veio a acontecer uns quinze an o s atrás. .Mas antes disso há o “Prefácio a uma filosofia”, em que você defende
uma promoção filosófica da visão comum do mundo... É verdade, eu estava me esquecend o disso. D epois dessa m inha passagem pela ló gica e desse meu primeiro ceticismo, fui levado a refletir sobre a vida co m u m , o senso co m u m , o discurso c o m u m , e julguei que aquela alienação em relação a o m u n d o , a que eu parecia c o n d e n a d o , n ã o cabia. Julguei que era preciso viver ple n am e n te a vida, e a filosofia n ã o podia ser um a rejeição da vida; o divórcio esquizofrênico entre o filósofo e o h o m e m n ão tinha ca bim e nto. Rejeitar o m u n d o co m u m , rejeitar as vicissitudes e as contingências d o m u n d o c o m u m , rejeitar as paixões h u m a n a s em no m e d o p e n s a m e n to , era u m a p o stu ra inaceitável, e eu, algo q u ix o te sc am e n te, julguei que era preciso defender a vida c o n tra a filosofia, en tendida esta co m o um a gigantesca em presa de alienação do h o m e m em relação à vida co m u m . Eu queria rec u p erar a vida c o m u m , e achei en tã o q u e um a p ro m o ç ã o , n ã o cética, mas filosó fica, até m esm o metafísica, dessa vida c o m u m , era a m aneira de en fre n ta r os p r o blemas filosóficos. O que vim a descobrir mais tarde é que o ceticismo fazia essa m esm a defesa da vida c o m u m , essa m esm a defesa d o h o m e m c o tidia no, dessa perspectiva da vida e d o m u n d o que os filósofos disseram ingênua. P o rta n to , n ã o era preciso fazer metafísica, n ão era preciso e n tra r em conflito com o ceticismo. Ao contrário: d es cobri no ceticismo a defesa da vida c o m u m co n tra o p en sam e n to especulativo. Fi quei m u ito im p ressionad o c o m u m a passagem de Sexto Empírico em que ele diz que, se nós co n d e n a m o s os dogm a s, em n e n h u m m o m e n to e n tre ta n to e n tra m o s em
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conflito co m a vida co m u m . Ao contrário: nós som os os seus defensores; nós esta m os a o lado dela c o n tra o pensam e n to dogm ático.
Por que você decidiu se transferir da USP para a Unicamp em 1975? N aq u e le m o m e n to eu n ã o tinha ainda a d o t a d o u m a posição cética. Eu tinha sem pre go sta d o m uito de filosofia da ciência, de epistemologia, de lógica, co m o já dis se, e na USP eu formei um p rojeto de criar um c e n tro dedicado aos estudos de te o ria d o con hecim ento, epistemologia, lógica e filosofia da ciência. A b u rocracia da USP, n o e n ta n to , fez com que esse p ro jeto ficasse ex tre m a m e n te atra sad o : ele foi a p r o v a d o no D e p a rta m e n to , m a s depois se p a s sa r a m anos de trâm ites b u ro c rá ti cos até ele chegar a o C onselho Universitário. O c o rre u , nesse meio te m p o , que um am igo m eu, o R ogério Cerqueira Leite, qu e era algo co m o p ró-reito r da U nicam p, e que várias vezes me tinha convidado p ara ir traba lhar lá, disse que havia boas ch a n ces de o projeto ser a p r o v a d o pela U nicam p, o nd e não havia u m C o nselho U niver sitário totalm ente e strutura do , onde quem m a n d av a realm ente era o reitor, Zeferino Vaz. E n tã o ele m arcou um a entrevista p a r a mim com o Z eferino , p e d in d o que eu levasse um p eq u e n o te x to sobre o meu projeto. Bem, a entrevista ocorreu, se n ã o me engano , n o dia 9 ou 10 de setem bro de 197.5, e nesse projeto eu me p ro p u n h a a criar u m C e n tro de Lógica, Epistemologia e H istória da Ciência na Unicamp, criar cursos de p ó s-g ra d u aç ão nessa área, fazer sem inários interdisciplinares, fazer colóquios e congressos, nacionais e internacio nais, e criar três revistas — um a de filosofia p ro p ria m e n te dita, um a de filosofia e história da ciência e um a de lógica. Para m in h a surpresa, o Zeferino Vaz se entusias m o u pelo projeto e m e p erg u n to u , nessa prim eira entrevista, q u a n to s professores eu pretendia levar p ara a U nicam p, para que a gente com eçasse n o mês seguinte — o que o b viam en te eu n ã o esperava. Eu citei en tã o alguns nom es de professores da USP — Luiz Henrique Lopes dos Santos, Carlos Alberto Ribeiro de M o u ra, A ndrea Loparic, to d o s jovens d o u to r a n d o s — , e citei o n o m e de alguns professores argentinos, cujos currículos estavam com igo po rq u e eu tinha sido chefe de d e p a rta m e n to na USP e eles alm ejavam ter u m a vaga na universidade brasileira. D epois que eu dei os nom es, o Z eferino disse: “ E ntã o, vam os n o m e á -lo s” . Ao que respondi: “ M as os argentinos nem sabem que a U nicam p existe!” . E ele disse: “ E n tã o você vai à A rgentina e fala co m eles, po rq u e nós temos p ressa” . Acontece que eu não p o d ia ir à Argentina ime diatamente, e ocorreu uma coisa interessante de que pouca gente sabe: com o o Zeferino tinha problem as dc d atas com relação a o o rç a m e n to e precisava n o m e a r os profes sores até o fim de setem bro, ele m e disse o seguinte: “ O lha, é m uito mais fácil para mim demitir d o que nomear. Para demitir, basta a m inha vontade. Para nomear, preciso ter verbas, ter o rç a m e n to , respeitar datas. E ntão vou n o m e a r t o d o m u n d o e, se eles n ã o pu d ere m vir, d e m ito ” [risos]. Assim ele fez, e quinze dias depois eu estava na .Argentina convidando os professores, que eram Carlos Alberto Lungarzo e o Ezequiel de O laso. Eles pediram três dias p ara pensar, a o final dos três dias disseram que aceitavam, e eu disse que eles já estavam nom eados. O fato é que dias depois nós d esem b a rc áv a m o s co m o p á ra -que dista s na U ni c am p. F om o s n o m e a d o s para o Instituto de Filosofia e Ciências H u m a n a s , para o D e p a rtam e n to de Ciências Sociais, pois não havia ainda um d e p a rta m e n to de filoso
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fia — eu é que viria a criá-lo alguns an o s mais tarde. E o pessoal das ciências sociais, que não estava in fo rm a d o a respeito, assistiu es tupefato ao d esem b a rq u e de vários filósofos brasileiros e dois argentinos no D ep a rtam e n to ! Isso era o Zeferino! M a s eu consegui fazer o que tinha p ro m e tid o a ele, meu projeto se realizou plenam ente: nós fizemos trinta e cinco colóquios e congressos em sete anos, criam os as três re vistas — d a s quais duas, a Manuscrito e os Cadernos, con tin u am a existir — , e cria m os o curso de pós-g ra d u aç ão . Fiquei na U n icam p d u r a n te dez anos, e ao final d e les voltei p ara a USP. ,Vo final de “Prefácio a uma Filosofia”, há uma caracterização do que deveria ser o filósofo para você então: “Buscando o diálogo, o filóso fo construirá seu discurso com simplicidade. Não recorrerá a termos esdrúxulos nem a um jargão complicado. Ele tem uma enorme descon fiança dos que falam difícil em filosofia”. Chama a atenção, no en tanto, o fato de que, no mesmo ano da publicação desse texto (1975), você se transfere para a Unicamp e funda o Centro de Lógica e Epistemologia (CLE), que tinha um ambicioso programa nessas áreas, do qual você acaba de nos falar. O espírito de “Prefácio a uma Filoso fia ” é plenamente compatível com a aridez própria das questões ló gicas e epistemológicas? É claro que as questões lógicas envolvem um v o ca b u lá rio técnico. Nesse te x to eu estava p en s a n d o n ã o em lógica, p ro p ria m e n te, m as em filosofia. N o que se refere à lógica, seria en tã o o caso de falar em filosofia da lógica. A cho que na filosofia da ciência, na filosofia da lógica, na teoria d o c onhe cim ento em geral, em to d o e q u a l q u e r ra m o da filosofia — filosofia m oral, estética, metafísica — , é realm ente n e cessário n ã o escrever em “ filosofês” , m as c o n s eg u ir ser claro u s a n d o os meios da língua vernácula e escrever de tal m o d o que um h o m e m de relativa in fo rm aç ão e, é claro, c o m um a certa base cultural possa com p re en d e r. C o n tin u o desconfiado até hoje d o s que falam difícil em filosofia. E xprim ir-se de m o d o difícil é na v e rd a de deixar transparecer um a certa falta de rigor intelectual. C o n fo rm e a frase de Wittgenstein, o que n ão se pode dizer, n ão deve ser dito. Eu ac ho que o que n ã o se pode dizer com clareza não deve ser dito.
Como você avalia hoje a experiência do CLE? Eu te n h o im pressão que o CLE teve um papel bastante im p o rta n te, graças aos c o lóquios e congressos que organizou. V árias vezes eu te nho sido gratificado, a o p a r ticipar de reuniões de filosofia em diversos p o n to s d o Brasil, pela lem brança, que p u b lic am en te colegas de o u tra s universidades trazem à to n a , do significado que o CLE teve no c o n g ra ç a m e n to entre os profissionais de filosofia das diferentes u n i versidades brasileiras. Antes dele n ã o havia colóquios de filosofia. O s professores d o Rio n ã o conheciam os de São Paulo; os de São Paulo n ã o conheciam os d o Rio G ra n d e do Sul; os d o Rio G ra n d e do Sul n ã o co nheciam os de M in a s Gerais; e as sim p o r diante. C o m o o CLE o rgan iz o u , em alguns anos, trinta e cinco colóquios e congressos, nós tivemos a possibilidade de convidar professores do país inteiro, fora uns setenta d o exterior. C o m isso, ele tornou-se um lugar de reun ião, de encontro.
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P or o u tr o lado, as revistas d o CLE, que estão vivas até hoje, ta m b é m m a rc a r a m p o n to s im p o rta n tes n o cenário brasileiro. Eu fiz q u estão, depois de a b a n d o n a r a direção d o CLE, de n ã o me imiscuir de m o d o algum na sua vida. Eu aceitei, e acei tarei sem pre convites p ara p articip ar deste ou daquele evento, m as achei que não cabia m eter-m e na vida interna d o C e n tro . A c o m p a n h o de longe, co m atenç ão, as suas atividades, e espero que ele prossiga p o r m u ito te m p o e c o ntinue realizando o nosso projeto, mas de fato estou d istanciado dele atualm ente.
Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Como você vê as re lações entre a filosofia e a cultura brasileira? Eu d isco rd o d o P aulo A rantes. A cho que ele é d e m a siad am en te generoso p a r a com os filósofos brasileiros. A m im m e parece que, ape sa r de ce rtam en te haver m uitos filósofos de excelente qualidade no Brasil, eles não tiveram ain d a condições pessoais e culturais p a r a e la b o ra r um a filosofia pró pria. H á alguns nom es, aqui e ali, dos quais se p ode dizer que têm um a co ntrib u içã o filosófica própria, pessoal, e que p r o du zira m algum a coisa que é u m a filosofia brasileira em gestação. E eu acredito no porv ir da filosofia brasileira. T e n h o a im pressão de q u e os estudos filosóficos no Brasil neste m o m e n to são s u rpre end e ntem ente prom issores, as gerações novas, que estão a p a rece n d o ca d a vez mais, em diferentes lugares do país, estão p r o d u z in d o tra b a lh o s filosóficos sérios. A go ra, o que é preciso, e essa é um a tecla em que te n h o b atido ultim am ente, é libertar o ensino brasileiro de certa ênfase exa g erad a na história da filosofia, de certa o rien taçã o estruturalista radical. É irônico que eu diga isso, p o rq u e fui certam e n te um dos m aiores defensores dessa p o stu ra, m as há um m o m e n to e m que a gente envelhece, passa a ter mais juízo, e ad q u ire u m a perspec tiva mais lúcida sobre os erros da juventude, sobre os p ró p rio s erros e pecados. Q u a n to à segunda p arte da p ergu nta, os filósofos — vam o s usar esse term o para designar to d a s as pessoas que a m a m a filosofia, que se dedicam a ela, que t r a balh am sobre assunto s filosóficos, e que, eventualm ente, p ro p õ e m idéias filosófi cas originais — , os filósofos brasileiros têm d e s em p e n h ad o ce rtam ente u m papel im p o rta n te. É claro que não precisam os exagerar, m a s eles têm tid o algum papel im p o rta n te, aqu i e ali, na vida cultural d o país.
Como você avalia as críticas que Paulo Arantes dirigiu a você no livro U m departamento francês de Ultramar? O Paulo A rantes se dedica a um a es tra n h a tarefa. Ele foi um dos m elhores alunos que tivemos no D e p a rta m e n to , é um sujeito brilhante, tem conhe cim entos filosófi cos enorm es, é de um a inteligência p ro fu n d a . Enfim, ele tem tu d o que se p ode elo giar n u m intelectual. M a s tem u m a relação m u ito es tra n h a com a filosofia, po rq u e pretende, insistente e sinceram ente, n ão estar fazendo filosofia nos seus trabalho s. Eu c o n c o rd o com ele, acredito ta m b é m que ele n ã o está fazendo filosofia. O que ele faz é u m a e x tre m am en te inteligente inte rp re taç ão não-filosófica das filosofias. M a s é difícil situar essa interpretação. Afinal, que tipo de inte rp re taç ão é ela? N ã o é um a inte rpre taç ão sociológica; n ã o é u m a in te rpre taç ão antropológ ica. Talvez se pudesse dizer que e u m a form a m uito p articu la r de sociologia d o conhecim ento, m a s n ão creio que essa descrição caiba ao Paulo. O q u e ele p ro c u ra é explicar cada
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m anifestação d o p en s am e n to filosófico d e n tro do universo cultural, d e n tro da si tu a çã o histórica e econôm ica de cada época. Eu n ão te n h o n a d a co n tra essas t e n ta tivas de se explicar a o b ra filosófica a p artir de um p o n to de vista não-filosófico, de um p o n to de vista científico. N ã o te n h o realm ente n a d a co n tra : é u m a coisa q ue se p od e fazer, e se for bem-feita é algo valioso. E m b o ra eu n un ca tenha conv e rsad o c o m o Paulo sobre essa questão, o p ro b lem a é que isso parece substituir a filosofia, que passa a ser a p e n as um objeto, e jam ais o p o n to central, jam ais o m o to r da ela b o ra ç ã o de seu pensam ento. N este sentido, o Paulo A rantes n ã o avança um p en s a m e n to filosófico original, ape sa r de ter tu d o p ara fazê-lo, e fazê-lo bem. N o caso particu lar d o capítu lo que ele me dedica em seu livro, que eu aliás tive o p o r tu n id a d e de c o m e n ta r no MASP, te nh o a im pressão — e eu diria isso, é claro, com algu m a m a ld ad e — de que o Paulo não sabe m u ito bem c o m o explicar p o r que eu digo o q u e estou dizendo. Ele acha que m in has idéias estão fora d o lu gar. Ju sta m e n te p o rq u e n ão vê, n aquilo que digo, um a resposta a alg um a necessi d a d e dita d a pelo e n to rn o cultural a p artir d o qual ele quer explicar as filosofias, isso o obriga a ver em tu d o o que digo algo estra n h o , que surge o nde n ã o tinha que ter surgido. O Paulo n ã o acredita na filosofia co m o u m a p ro p o sta q u e um p en s a d o r, crítico e culto, possa ainda alim entar, te n ta n d o resolver problem as. Ele vê na filosofia um a m anifestação, um a m anifestação q u e ele pro cu ra estudar, c o m p re e n der, conhecer e explicar. Posso estar m u ito e n g a n a d o , mas não creio que o Paulo .Arantes esteja d isposto a se en ga ja r n u m diálogo filosófico co m alguém, isto é, a to m a r um a posição diante de alguém que to m e um a posição c o n trá ria, discutir etc. Ele n ão to m a posições em filosofia; ele é o crítico, o intérprete, o co nhe ce dor, mas n ã o o p raticante d a filosofia. Enfim, n ão creio que Paulo queira com prom eter-se co m um diálogo filosófico. Ele q u er explicar o que você diz.
As propostas que você apresentou nos últimos anos no sentido de uma reformulação do padrão pedagógico do Departamento de Filosofia da USP tiveram grande repercussão e provocaram ásperas polêmicas na imprensa. Qual foi o saldo, a seu ver, dessa discussão? Eu não sei se p o d em o s dizer que já haja u m saldo a ser avaliado. Vários estudantes que encontrei recentemente, aqui e ali, falaram -m e do seu interesse pelas coisas que eu disse, e m e disseram ta m b é m que é u m a p reo c u p a ç ã o de m uitos deles o q uerer e n c o n tra r um lugar para te r opiniões pessoais, p a r a com eç ar a exprim ir-se filosofi cam en te desde os anos escolares. A gora, a m inha posição n ã o deve ser mal inter pretada. Eu sei p erfeitam ente que, q u a n d o os estudantes co m eç arem a e x p o r suas idéias, eles vão ser ingênuos, vão ser às vezes inad eq u a d o s, vão às vezes dizer toli ces, vão exibir ignorância da p roblem ática filosófica, e assim p o r diante. M a s aí me parece que, q u a n d o eles entregarem seus textos e fo rm u larem suas posições, cabe ao professor responder-lhes dizendo, p o r e.xemplo: “ O lh a, esta objeção que você está fazendo ao filósofo já foi feita, foi feita ainda em vida dele. F ulano de Tal fez essa objeção, que é a m esm a que você fez, po rém m e lh o r fo rm u lad a e bem mais desenvolvida. P o rta n to , você deve ler esse au to r, e ler ta m bém a resposta que aquele filósofo f o r m u l o u ” . C o m isto, o a lu n o a d q u irirá m ais elem entos p a r a p en s ar o m esm o as su n to e, in d e pende n tem en te de em seguida a b a n d o n a r ou refo rm u lar a
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objeção que havia feito, estará a p re n d e n d o a pensar. N ã o vejo mal n e n h u m n o fato de o a lu n o exp ressar suas p ró p ria s opiniões em sala de aula. N ó s devem os permitir-lhe que o faça, e que faça um tra b a lh o em que afirme, p o r exem plo, “ Platão disse um a bob ag e m q u a n d o disse que as form as ex iste m ” . N este caso, caberia dizer-lhe q u e m uita gente já disse a mesma coisa, e recom en dar-lhe que leia tal tex to, bem co m o a resposta d a d a p o r u m filósofo p latônico posterior. C o m isto o a lu n o to m a consciência de que p o d e co m eç ar a particip a r de um deb a te m ilenar e se sente in centivado a pensar. D o co n trá rio , acontece o que tem acontecido: um d e p a r ta m e n to co m o o de filosofia da USP, que é de altíssimo nível — faço q u estão de enfatizar isto, p o rq u e hou ve q u e m achasse o c o n trá rio — , pro d u z excelentes historiadores da filosofia, mas n ão estim ula a p r o d u ç ã o de um p ensam e n to original. Produzir um p e n s a m e n to original significa estim ular os alunos a ter cora gem de assum ir p o si ções, a o m esm o te m p o m o stra n d o -lh es o q u a n t o essas posições teriam q u e ser m e lh o rad a s para ad q u irir o status de opiniões filosóficas sérias.
Em 1991, você publicou um artigo, “Sobre o que aparece”, em que se afastava da posição de uma “promoção filosófica da visão com um do m u n d o ” que tinha caracterizado sua produção de 1975 até então, e passava a uma posição cética que você definiu como “neopirrônica”. Em “Sobre o que aparece”, você descreve esta nova guinada teórica nos seguintes temtos: “É como se, na vã tentativa de opor um dique ao perigo cético, que vai levando de roldão todos os dogmatismos, se recorresse a uma forma extremada e confessadamente injustificável de dogma tismo, na pia esperança de brandir contra o ceticismo uma artna su prema e derradeira”. Seria esta nova guinada uma confirmação da previsão de Bento Prado Jr., feita em 1978 no artigo “Por que rir da filosofia?", de que você acabaria voltando necessariamente a uma po sição cética? O Bento foi rea lm en te um b o m p ro fe ta n aquele m o m e n to ! T alvez ele me ten h a c o m p re e n d id o m e lh o r do qu e eu a m im mesmo! [risos] N essa m esm a passagem, p o rém , ele dizia que esse m o v im en to p e n d u la r d o m eu p en s am e n to me faria voltar a um a posição especulativa. E isso n ã o aconteceu, nem creio que vá acontecer.
Que conceito(s) de sua reflexão você destacaria como mais representativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que você nos contasse como ele(s} surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje. C o m o eu disse no prefácio a Vida comum e ceticismo, o m eu p ro b le m a sem pre foi o d o reconhecim ento da vida co tid iana, q u er dizer, o estar ju n to à vida cotidiana, valorizar essa vida c otidia na, valorizar as questões mais ban a is e triviais. Q u a n d o eu “ desisti” da filosofia, foi p o r ac h ar, p rim eiram ente, que n ã o conseguia resolver d e n tro dela os pro b lem as qu e ela se p r o p u n h a , e, p o r o u tr o lado, ta m b é m p o r ver nela u m em p re e n d im e n to de alienação. Q u a n d o fiz o que cham ei de “ p r o m o ç ã o filosófica da vida c o m u m ” , era u m a tentativa de salvar a vida c o m u m d e n tro a in da de certos p a râ m e tro s definidos pela filosofia tradicional. Eu ia co n tra a filosofia tradicional, m as julgava que pod ia m a n te r um certo q u a d r o conceituai dessa m es
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m a filosofia p a r a fazer c o n tra ela u m a p r o m o ç ã o filosófica da vida c o m u m . Já q u a n d o fui para o ceticismo, descobri que não era preciso m anter quadros conceituais p róprios à filosofia tradicional. Era possível ro m p e r de u m a vez com tod o s eles e ficar ao lado da vida co m u m . P o rta n to essa perspectiva de adesão ao co tidia no, de valorização do h u m a n o em co n tra p o siç ã o ao filosófico, foi talvez o m o te central de to d a s as m inhas incursões no d o m ínio filosófico. O ceticismo é p ara mim a va lorização, co n tra os d ogm a s, do saber dos atos com uns. O que é o neopirronismo? O neo p irro n ism o é um a expressão, talvez pedante, que inventei para designar m i n h a posição. É claro que o ceticismo grego pirrô nico e um a p o stu ra filosófica d a ta d a , situ ad a num certo c o n te x to — o helenístico — , te n d o inclusive m u ito em c o m u m c o m o estoicismo, o epicurism o e as dem ais expressões do p e n s a m e n to de então. C o m o to d a filosofia, o ceticismo surge n u m a certa época, re sp o n d e n d o a problem as culturais dessa época, os quais podem ser estudados e explicados — com o eu disse há p ouco , n ã o te n h o n e n h u m a objeção a esse tipo de estudo. M a s é verda de, ta m b é m , que certas tram as fund am e n tais d o p e nsam e nto, das várias filosofias, p o d em ser preservadas ou reatualizadas. N ó s tem os hoje um neo-aristotelism o, um n e o p la to n is m o , um n eo-e sto ic im o, um n eo-h e gelia nism o , um n e o k a n tis m o etc. E m b o ra m u ito d o que K ant, H egel, P latão e Aristóteles disseram esteja d a ta d o , co rre sp o n d a às perspectivas da época, m u ito ta m b ém pode ser utilizado a tu a lm e n te, e utilizado de m aneira bastante profícua. O ra , o m esm o se pode dizer do ceti cismo: m uito do p irron ism o recende a helenismo, mas m u ito pode, m antendo-se um a certa coerência e m antendo-se um a certa fidelidade, ser repensado, rearticulado e reutilizado. O que m e tenho p r o p o sto a fazer c o m o p irronism o é o que, mutatis iniitaiidis, os p ensadores neo-hegelianos, n eom arx ista s ou n e o k a n tia n o s fizeram: trata-se de aggiornare u m a filosofia no m u n d o m o d e rn o , um a vez que to d a s as grandes filosofias do p assad o têm ainda m u ito a nos dizer. O ser ca p az de extrair delas isso qu e elas p odem nos dizer hoje é o que im p o rta fazer. Ao me c h a m a r de neopirrônico, q u e r o sim plesm ente realçar o fato de que o que p r o p o n h o é m o stra r c o m o certos traç o s im p o r ta n te s d o p irro n is m o grego p o d e m ser u tilizados p ara p ensar a d e q u a d a m e n te os p roblem as filosóficos d o m u n d o c o n tem p o rân e o .
Quais as diferenças e semelhanças entre o seu conceito de “o que apa rece” e o conceito kantiano de “fenôm eno”? Penso particularmente na afirmação de Kant: “Pois seria um disparate pensar em fenômeno sem que algo apareça nele”. Eu en te n d o que K a n t deu um a co n trib u içã o e x tre m am en te im p o rta n te p ara um a po stu ra cética. E claro que K ant quereria tu d o , m en os isso! M a s de fato ele a deu, porque pôs em xeque a metafísica clássica, pôs em xeque os dogm atism os ontológicos tradicionais e a epistemologia dog m ática tradicional. K ant m o stro u q u e é possível falar em verdade correspo ndencial, falar em realismo, falar em coisas n o espaço e n o tem po, sem que se esteja p re te n d e n d o lidar com as coisas em si mesmas. A idéia k a n tia n a de fenôm eno, que está, é claro, associada a to d a um a teoria da represen tação, perm itiu-nos c o m p re en d e r que se pode pensar em con h e cim en to científico,
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que se p o d e pensar em verdades em píricas, que se p ode p ensar em m a téria , tem po, espaço, substância, sem que essas noções estejam c o n ta m in a d a s p o r u m a especula ção metafísica à m aneira tradicional. É evidente que em K an t essas noções to d a s se associam , to d o s o sabem , a o idealismo tran.scendental, à perspectiva de um sujeito transcend ental. E é evidente que eu, c o m o cético, susp endo o juízo sobre essa base transcend ental. .Vias o fato é que K ant a b riu um ca m in h o decisivo, a b a la n d o p r o fu n d a m e n te os alicerces do p en s a m e n to especulativo clássico. N u m te x to que escrevi, intitulado “ V erdade, ceticismo e rea lism o” , utilizo a n o ç ã o k an tian a de realismo em pírico, n o sentido em que K ant diz que o idealismo transcend ental é um realismo empírico: é claro que as coisas, que são reais n o tem po e n o espaço, n ã o são as coisas em si; é claro que lidamos com o m u n d o d a represen tação, m as isso n ão nos impede de falar da realidade das coisas, de c h a m a r verd a deiras às proposições que descrevem essas coisas. Segundo meu argum ento nesse texto, há, de um lado, um realismo clássico, de tipo aristotélico-tomista, que fala das coisas, das verdades, da em piria, num registro realista, e há, de o u tr o lado, o realism o de K ant, que fala das m esm as coisas num registro idealista transcendental. A m bas as visões descrevem o m esm o m u n d o , que dizem real, m a s a palavra “ re a l” tem um sentido com p letam e n te diferente n u m a e n o u tra . O im portante, a meu ver, é que o p irro nism o p o d e en tã o perguntar-se: será que nós n ã o podem os, d eix an d o de lado a inte rpre taç ão filosófica última que K an t deu do fenôm eno o u que Aristóteles deu d o fenôm en o, ficar ape nas co m o fenômeno.^ Isto é, vam o s falar em realidade das coisas, vam os falar em verdade das coisas — o cético não tem razões para a b a n d o n a r o v ocabulário da verdade ou da realidade — , mas vam os a b a n d o n a r as inte rp re ta ções d errad e ira s que se possa m oferecer desses conceitos. N este sentido, o cético suspende o juízo sobre o idealismo transcendental, suspende o juízo sobre a metafísica clássica. M as ele saúda K ant c o m o aquele que foi capaz de m o stra r que se podia falar d o m u n d o da experiência, que se podia falar de conhecim ento, que se p o dia falar de ciência, que se podia falar d o espaço e d o te m p o , que se podia, enfim , salvar a lógi ca, a ciência, a epistemologia, sem p o r isso ter o filósofo de com p ro m eter-se com o pensam ento metafísico tradicional. Desse p o n to de vista, creio que K an t é certam ente u m dos filósofos que o neocético mais tem que ad m ira r, respeitar e reverenciar.
Da sua noção de “o que aparece” segue-se a idéia de que há “um uso descritivo, próprio ao discurso fenomênico, e um uso interpretativo, próprio ao discurso dogmático, por exemplo ao discurso dogmático dos filósofos”. Há descrição que não seja já uma interpretação? Essa pergunta é bastante interessante. T alvez eu só possa a ela responder da seguinte m aneira. O cético descreve o que lhe aparece, e n ão tem p o r que recusar que essa sua descrição, e s p o n tâ n e a , n a tu ra l, im e d ia ta, esteja p r o fu n d a m e n te p e r m e a d a e influenciada p o r p o stu ra s e p o n to s de vista tradicionais, que nos fazem usar a q u e la linguagem , falar d aq uela m aneira e ver as coisas daq uela m aneira. N a d a disso precisa ser recusado ou neg a d o p o r ele. Eu digo o que me aparece com e s p o n tan e i d a d e e n a tu ra lid a d e : eu descrevo. M a s posso perfeitam e n te ac resc en ta r que me a p a rece ta m b é m q u e essa m in h a descriçã o está influenciada p o r ca racterísticas idiossincráticas da m inha época, da m in h a fo rm a çã o , da m in h a cu ltu ra, da civili
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zação a q u e pertenço, da língua de q u e me sirvo etc. O que me aparece hoje não necessariam ente me apa rece rá a m a n h ã . S u p o n h a m o s que eu descreva algo que me aparece hoje, e que a m a n h ã você me a p o n te que essa m in h a descrição, que o c o n ceito de que me servia era na verdade um resquício de m in h a fo rm a ç ã o filosófica, era um conceito que surgiu na história d o p e n s a m e n to de tal e tal m a n eira, em tal e tal é poca, e que p o r ta n to , pelo simples fato de servir-me “ e s p o n ta n e a m e n te ” des se conceito, eu estava de algum m o d o c o m p ro m e tid o com um a form a especulativa de p en s am e n to p o r mim c o n d e n ad a . O ra , se você me m o stra r isso de m a n eira a d e q uada, não tenho razões p ara recusá-lo, e posso reconhecer que havia na m in ha des crição das coisas um d ogm atism o oculto que me escapava. Deverei então reform ular m inh a descrição, de tal m o d o a reconhecer que o que me aparecia d aq u e la form a agora me aparece desta o u tra forma. A linguagem descritiva do fenôm eno é um a linguagem em perm a n en te evolução. A autocrítica perm a n en te é u m a necessidade p a r a o cético; ele tem a to d o o te m p o , co m o o B bde Rimner, que descobrir onde estão os andróides, isto é, os dogm a s, e m uitas vezes ele se percebe g o s ta n d o de um d o g m a sem se aperceber de que é um d o gm a . E q u a n d o ele se dá co n ta disso a r u p tu ra se faz necessária e ele tem de refo rm u lar o seu m o d o de ver as coisas. É claro, p o r ta n to , q u e to d a descrição, nesse sentido, é interpretativa. N a m edida, porém , em que a descrição d o cético não q u er ser solidária de d o g m a tism o s, em que não qu er estar c o m p ro m e tid a c o m d o g m a tism o s, sem pre que ele se perceber c o m p r o m etido terá de refo rm u lar o seu discurso. Se, porem , q u a n d o você fala em inte rpre taç ão, você está dizendo algo mais simples, se está apenas, c o m o m uitos filósofos da ciência — entre os quais P opper — , dizendo q u e n ã o há term os p u ram e n te observacionais, que a teoria está sem pre im p re g n a n d o a nossa linguagem , inclusive a descrição das coisas em píricas e c o ti dianas, então o cético pode c o n c o r d a r com isso e reconhecer que o que aparece está p e rm e a d o pelo discurso. Usando-se a palavra “ t e o r i a ” nesse sentido, de que o dis curso está im p re g n a n d o tu d o de teoria e n ã o p o d e m o s despir-nos d o discurso para fazer u m a descrição, é evidente que não há com o discordar, pois “ descrição em pírica sem d isc u rso ” é um a c o n tra d iç ã o lógica. Seria um a tarefa a b s o lu ta m e n te im p e n sá vel, na v erd ade a b s u rd a , se p arar o que é discurso d o que n ã o é discurso em nossa relação com o m u n d o . P o rta n to , desde que distinguidos os dois sentidos cm que um a descrição pode estar “c o m p ro m e tid a ” , o cético deve reconhecer tranqüilam ente o ca rá te r interpretativo da descrição.
Os seus trabalhos têm como interlocutores importantes, entre outros, D. Hume, R. Rorty e E. Gellner, autores nos quais você encontra afini dades e diferenças para com a sua posição. Você diria que as intenções últimas desses filósofos seriam mais bem expressas por uma posição neopirrônica como a que você defende? C om ec em os por H u m e . H u m e pretendia-se cético, se disse um cético, e defendeu um a fo rm a de ceticismo m uito p articular, um ceticismo m entalista. Ele tinha ce rta m ente um conhecim ento histórico imperfeito sobre o pirronismo, a descrição que ele faz do pirro n ism o é caricatural. Por o u tr o lado, a p osição que ele atrib u i, ou m u i tas das posições qu e ele atribui a o ceticismo m itigado ou acadêm ico são de fato p o
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sições p ró x im a s ao pirronism o. D iferentem ente de Rorty e Gellner, ele é sem d ú v i da um filósofo cético, e é válido e im p o rta n te estu dar sua relação com o pirronismo. Q u a n to a Gellner, ele certam e n te n ã o era um filósofo cético, mas teve um a visão do p e n s a m e n to m o d e r n o e c o n te m p o r â n e o que em p a r te c o n c o r d a com a m inha. D evo a d m itir que essa visão me influenciou, no sentido de que explorei di reções que ele d esbra v ou — so b re tu d o q u a n t o a enx ergar u m a influência difusa do ceticismo no p en s am e n to m o d e rn o e c o n te m p o râ n e o . Desde a “ Prim eira m e d ita ç ã o ” de Descartes, e desde H u m e , os m otivos céticos se to r n a r a m e x tre m am en te im p o rta n te s para a filosofia c o n te m p o r â n e a . Basta dizer q u e to d o s os prim eiros filósofos m o d e rn o s, que tin h a m sofrido a influência da crise p irrônica e da R enas cença, puseram -se co m o tarefa resp onde r ao ceticismo, fazendo da epistemologia o d o m ín io f u n d am e n tal do p en s a m e n to filosófico. A o m esm o te m p o , p o rém , eles p u se ra m sob suspensão de juízo a vida co m u m . C e rtam e n te n ã o são m uitos, na fi losofia m o d e rn a e c o n te m p o r â n e a , aqueles que valorizam filosoficamente a vida c o m u m . O s filósofos dela se a fa staram , co m o se o m u n d o c o m u m tivesse sido p o s to entre parênteses: faz-se filosofia num espaço e x tra m u n d a n o . O m u n d o p erdeu o seu en c a n ta m e n to , o seu feitiço; n ã o se p ode mais falar na realidade d o m u n d o . N a visão de Gellner, se eu a interpretei co rreta m e n te, esse p ô r o m u n d o entre p a rê n te ses, essa épokhé sobre o m u n d o , expressa uma influência difusa do ceticismo no p en s am e n to m o d e rn o ocidental. Afinal, ele entendia, co m o eu na época ta m b é m entendia, q u e o ceticismo era um desafio filosófico a o saber da vida co m u m . N o e n ta n to , eu mudei de opinião . Alguns a n o s mais ta rd e eu vim a descobrir que, m uito a o co n trá rio do que eu pensava, o ceticismo é u m a defesa da vida c o m u m co n tra o “ pse udo-sa ber” filosófico. Se eu tinha estado de ac o rd o com Gellner, deixei de estar. C o n c o rd o que o ceticismo tem um a en o rm e influência n o p en s a m e n to filosófico c o n te m p o r â n e o , mas n ão pelos m otivos en xe rgado s p o r ele. Pois o cético n ão põe o m u n d o entre parênteses. N a verdade o ceticismo tem essa influên cia p o rq u e, c o m o conseqüência d u r a d o u r a da “ Prim eira m e d ita ç ã o ” cartesiana, e c o m o conseqüência da influência de H u m e . o p e n s a m e n to m o d e rn o , e s o b r e tu d o o c o n t e m p o r â n e o , deixou de crer no A bsoluto, deix ou de quere r f u n d a m e n ta r, dei x o u de a c redita r n u m a raz ão so b e ra n a ca p az de justificar to d o o discurso h u m a n o . As filosofias c o n te m p o râ n e a s , nos seus m ais v ariados representantes, n ã o são mais filosofias fundam e n tac io n istas, n ão são filosofias que persigam o velho ideal clás sico da verdade c o m o corresp o n d ê n cia . T u d o isso são coisas d o p a s s a d o p a r a o pen s a m e n to co n te m p o râ n e o . Ele busca novos rum os, ru m o s q u e n ã o dep e n d em da aceitação de realidades absolutas, de valores absolutos, de co nhe cim entos a b s o lu tos. O ra , nesse sentido eu ac ho que, e m b o ra não se tenha talvez m uita consciência disso, nós som o s céticos. O ceticismo foi pela prim eira vez na história da h u m a n i dade um a escola filosófica que pôs o A b solu to em xeque. Afinal, qual é o sentido fu ndam e ntal da crítica filosófica do ceticismo a o d ogm a tism o? É que nós n ã o te m os co m o justificar verdades absolutas, n ã o temos c o m o ter certezas absolutas, n ão tem os co m o dizer d as coisas, no nosso discurso, c o m o elas são. O discurso se t o r na um in strum e nto, de um lado, p ara a d enú ncia d o d o g m a tism o , e, de o u tr o lado, para a defesa da vida co m u m . Nesse sentido, m uito particular, p o d em o s dizer que o m u n d o c o n te m p o r â n e o é cético. As p ro p o stas filosóficas d o nosso século, na sua
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g ran d e m aioria, são p ro p o stas que desb ra v am os ca m in h o s d o co tidia no , da vida, d o m u n d o , e que n ã o mais co m u n g a m de um a crença no p o d er divino, nu m a razão a b so lu ta , c o m o foi talvez o so n h o d o racionalism o clássico. P o rta n to , o sentido em q u e o m u n d o c o n t e m p o r â n e o é cético, para m im , é co m p le ta m e n te diferente do sentido em que o é p a ra Gellner. Passemos a R orty, finalmente. Ele me parece dem asiad o radical na sua pers pectiva p ara p o der dizer-se um cético. Se o ceticismo a b a n d o n a o p ensam e n to d o g m ático e o critica, em n en h u m m o m e n to ele pretende ter p o d id o d em o n strar a fal sidade d o d o gm a tism o. O cético, na posição que to m a , é o brig ad o a co nsiderar es sas questões c o m o questões em aberto: justam ente po rq u e n ã o acredita que p o ssa m os, pelo nosso discurso, estabelecer verdades decisivas, ele entende que não p o d e m os d e m o n stra r a falsidade do discurso especulativo. Rorty ta m b é m acha que não po d em o s fazê-lo, m as valoriza de tal m aneira a contingência e a precariedade que ele vê, nas diferentes m anifestações filosóficas, instaurações de discursos novos, vo cabulários novos que se propõem. Tem-se a substituição de um vocabulário pelo outro, de um a m a nifesta çã o d o p e n s a m e n to p o r o u tr a , n o devir histórico. N ó s estam os m erg ulhado s nessa contingência, e nós p o d em o s, aqui e agora, subm etidos que es ta m o s ã influência de nossa época, a d o ta r um a certa visão das coisas, ainda que a sab en d o precária e contingente co m o q u alq u er o u tra. Por um lado, R orty se a p r o xima assim d o ceticismo, já que este, recon hecendo o p r im a d o da vida c o m u m , te n de obviam ente a reconhecer a precariedade e a contingência de seu p ró p rio discu r so. Por o u tr o lado, o ceticismo n ão se pretende capaz de explicar as tran sform ações d o pensam e n to h u m a n o , não se pretende capaz de fornecer u m a matriz q u e perm ita entender esse devir ou essa precariedade, sendo por isso bem mais cauteloso que Rorty.
Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên cias e o saber cientifico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade? Essa relação, de fato bastante estreita a o longo do tem p o, to m o u diferentes d ire ções. É inegável que a ciência exerceu p r o fu n d o im pacto so b re a filosofia, e viceversa — a filosofia exerceu u m a e n o rm e influência no desenvolvim ento das teorias científicas. Em concepções mais tradicionais, a filosofia é so b e ra n a, é prim eira, e cabe a ela dizer o lugar das ciências n o m u n d o , cabe a ela julgar o p e n s a m e n to científico. N u m e x tre m o o p o sto , há as tentativas cientificistas de fazer filosofia: a ciência, s o b r e tu d o a ciência da n ature za , é to m a d a c o m o p a d r ã o ou m odelo, e os problem as da filosofia são pensados n u m a linguagem científica, a partir de conceitos científicos, recusando-se valor e im portância a tu d o aquilo que n ão possa ser tra ta d o co m m é to dos suficientemente p ró x im o s a o m é to d o da ciência. São du as posições ex tre m as: a d a filosofia, q u e julga e avalia a ciência, d a n d o - lh e f u n d a m e n to s e p a râ m e tro s, e a da ciência, que se to rn a um a espécie dc matriz à qual o pen sam e n to filosófico terá de reduzir-se. Essas duas posições extrem as me parecem inaceitáveis. E m b o ra n en h u m de nós possa q u ere r d a r um a definição de filosofia, eu te n d o m u ito a c o n c o r d a r c o m Q uine, a u to r q u e estim o bastante, e c o m P opper, que estim o m eno s, mas qu e sob esse aspecto diz algo parecido. N ã o se deve, m esm o porque n ã o há razões para isso, tentar introduzir u m a solução de continuidade entre
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filosofia, ciência, senso co m u m etc. Essas divisões rígidas são m u ito p ou co rigorosas e ex tre m a m e n te sujeitas a desconfiança. O que há e um discurso dos h o m e n s sobre o m u n d o , e esse discurso pode n u m certo m o m e n to dizer-se discurso d o senso c o m u m , num certo m o m e n to dizer-se discurso psicológico, científico, filosófico. M a s são os hom ens que estão p r o p o n d o idéias, que estão a lin h a n d o hipóteses, que estão descrevendo coisas. N ã o há p o r que a c h a r que distinções rígidas devam e possam ser m antid as; n ão há sequer p o r que procurá-las. Se eu te n ta r pensar no qu e distin gue a filosofia da ciência, eu diria que, q u a n d o o p en s a m e n to h u m a n o lida com questões que ele consegue delimitar de u m a maneira a d e q u ad a , tratando -as até certo p o n to d e n tro de um a esfera lim itada, sem precisar a ca d a m o m e n to recorrer a q u e s tões extern as, trata-se aí do que c o s tu m a m o s c h a m a r de ciência — é o caso da a n tro p o lo g ia , da ec o n o m ia , da história, da física etc. Q u e r dizer, o discurso h u m a n o às vezes particulariza mais o seu objeto e tra b a lh a de u m a m aneira mais co n c e n trad a . O u tr a s vezes ele se av entura a t r a t a r dos assuntos sob um prism a mais geral, sob u m prism a mais am p lo , e aí nós diríam os que ele é mais filosófico. Q u a n d o estu d am o s as relações entre linguagem e p e nsam e nto , entre p en s a m e n to e m u n d o , nos vem os diante de questões tã o am plas que n ã o p o d em ser reduzidas a um ca p í tulo da psicologia o u d a lingüística, p o r exem plo. Enfim, filosofia e ciência são n o mes, nom es que p o d em ser aplicados, e de que eu ta m b é m me sirvo, q u a n d o es ta m os apenas q u ere n d o le m b rar o m o d o e a área de a tu a ç ã o d o nosso p ensam en to. N ã o se tra ta , a meu ver, de distinções en tre c o m p a rtim e n to s estanques.
Conhecemos pelo menos uma conseqüência importante da agenda de investigação do texto “Sobre o que aparece”. Tal conseqüência é enun ciada nesse texto como: “O pirronismo parece-nos inteiramente com patível com a prática científica moderna e contemporânea”. Em res posta a uma crítica a esse artigo, você citou essa passagem, mas deci diu acrescentar a ela um itálico, um grifo, à expressão “prática”. Você poderia nos explicar como se dá essa compatibilidade do pirronismo com a ciência moderna e qual a importância da ênfase na “prática” científica? R ealm ente essa passagem d o tex to, que é aliás m u ito cu rta , foi objeto de algu m a controvérsia. M a s o que eu quis dizer é na verdade algo simples. \ idéia de que a ciência conhece a realidade das coisas é u m a idéia que foi deixada de lado p o r grande p arte das filosofias da ciência c o n tem p o rân e as . H á p ro p o stas falibilistas, há p r o postas p ragm áticas, há p r o p o sta s convencionalistas, mas m u ito po ucos p e n s a d o res — entre as exceções m e nciono p o r e x e m plo W illiam Boyd — fazem hoje a q u e la c o n e x ão tradicional entre ciência e metafísica. A atitud e da m aioria dos filóso fos d a ciência c o n te m p o râ n e o s, e de m uitos cientistas que filosofam sobre as suas ciências particulares, é um a atitude de alguém que a b a n d o n o u com pletam ente a c o n cepção tradicional e clássica de ciência. O ra , co m o lida o pirro n ism o com a ciên cia? Sexto Empírico c o n d e n o u a epistemé clássica e valorizou a tékhne, isto é, ele valorizou o m o d o h u m a n o de lidar co m as coisas, ta n to prática c o m o te o ric a m e n te, e n q u a n to um lidar com as coisas que n ã o pretende ser d o m ín io delas pela r a zão, desco berta da estru tu ra e da essência íntima das coisas pelo pen sam e n to , m as
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sim plesm ente interagir com o m u n d o que está em to r n o de nós, interagir de m a n ei ra a d o m in a r esse m u n d o p a ra os fins h u m a n o s, e a p ô r a n atu re za , d e n tro d o p o s sível, a serviço da vida e da sociedade h u m a n a . Eu te n h o a im pressão de que assu m ir hoje um a perspectiva, em relação à ciência, q u e a veja c o m o u m a atividade h u m a n a qu e lida instru m e n ta lm e n te co m as coisas, que p ro c u ra fazer com que o ho m e m possa assenhorear-se d o m u n d o , é um a atitude pirrônica. E ela me parece m u ito p ró x im a da atitude de bo a p arte dos que lidam com ciência hoje. É claro que há aí p roblem as com plex os, co m o , por exem plo, o d o realismo científico: o êxito m aravilhoso das ciências, em fazer previsões precisas, em conseguir d o m in a r o m u n d o , n ã o seria e x a ta m e n te um a p rova de sua verdade, de que ela conhece as coisas c o m o elas são? Um cético, obviam ente, n ã o te m c o m o c o n c o r d a r c o m essa posição. M a s até que p o n to n ã o se p oderia dizer, n u m sentido não-dogmático, que as ciências não se lim itam a c o nstruir hipóteses úteis ou um discurso ca paz de ser in stru m e n ta lm e n te eficaz; qu e elas de algum m o d o estão co nhecendo o m u n d o ? Q u a n d o eu digo, p o r exem plo, nu m a p roposiçã o em pírica banal, “ meus óculos estão em cim a da m e sa ” , estou descrevendo, em linguagem vulgar, co m o as coisas são neste m u n d o . Seria en tão possível dizer, neste sentido não -d o g m á tic o , que uma teoria científica é conhecimento d o m undo? Para um pirrônico, esta questão só pode ser tr a ta d a c o m o um a q uestão interna a o d o m ín io dos fenômenos. Isto é, até que p o n to esse m u n d o q u e nos aparece está sendo descrito de m a n eira a d e q u a da p o r teorias científicas que fu n cio n a m bem? C o m o explicar o sucesso da ciên cia? Esse é um p rob lem a im p o rta n tíssim o para a filosofia d a ciência c o n t e m p o r â nea. M a s eu, pessoalm ente, n ão me vejo capaz ain d a de to m a r um a posição mais firme sobre a questão. Eu diria apenas que, se o cético quiser p r o p o r u m a solução, ela tem de dar-se n u m registro não-especulativo, n ão -d o g m á tic o , não-metafísico.
Desde Hegel, no século XDÍ, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda de. Como você se posiciona em relação a esse debate? Eu devo confessar a m inha e n o rm e ignorância dos p roblem as estéticos em geral e dos p roblem as de teoria da arte. Esta é u m a das m aiores lacunas em m in h a f o r m a ção. M a s, e m b o ra me sinta incapaz de respond er a essa p erg u n ta , eu diria que n ão acredito no fim da arte, e ou saria afirm ar que um a p o stu ra cética d iante d o m u n d o parece favorecer a atitu d e estética. Afinal, a arte foi m uitas vezes m e n o sp re za d a na epistemologia tradicional, p o r q u e não seria um in stru m e n to a d e q u a d o de c o nheci m e n to das coisas. N a m ed ida, p orém , em que a n o çã o de con h e cim en to das coisas se revela um a n o çã o p roblem ática, c om plex a , ex tre m a m e n te discutível; na m edida em que se deve valorizar o q u e aparece, e a tentativa de lidar bem com ele, eu vejo aí um espaço a b e rto p ara um a valorização da atividade artística e da m anifestação artística. Pois ela n ã o é, e n q u a n to m anifestação do h o m e m , inferior à ciência, à fi losofia ou a q u a lq u e r o u tr a coisa. Aos olhos de um pirrônico, p o r ta n to , p reconcei tos epistemológicos co n tra a arte se to r n a m ridículos.
É hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe-
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nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como você vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que parecem des frutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias? Q u a n t o aos E stados N acio nais, em p rim e iro lugar, n u m a ép oc a de in te rn a c io n a lização o u, c o m o se diz, de g lo b a liz aç ão , é claro q u e os E stado s N a c io n a is são p o sto s em xeque. A gora, u m a coisa é o n ac io na lism o tradicional, fre qü ente m e nte d og m á tic o , m uitas vezes fascista, pelo q u al te n h o p r o fu n d a a n tip a tia , e o u tr a coi sa é o r e c o n h e c im e n to da vida e da im p o r tâ n c ia das nações e das etnias, q u e é fu n d a m e n ta l. Assim c o m o o fato de viverm os n u m a sociedade n ã o precisa levarnos ao desprezo das instituições familiares — as quais p erd e ra m m uito de sua im p o rtâ n c ia — , não vejo p o r que o fenôm eno da inte rnacionalizaç ão, qu e é inevitá vel, deva levar à recusa das etnias ou a o desprezo pelas nações. Por o u tr o lado, os p r o b le m a s dessa in te r n a c io n a liz a ç ã o sã o e x t re m a m e n te c o m p le x o s e difíceis, e algu m as vezes parecem rep rese n tar perigos sérios p ara o bem -estar de c o m u n id a des m enores, de nações p eque nas, de g ru p o s particulares. Existe o perigo, que é b as tan te g ran d e , de q u e certas nações desenvolvidas e p o d e ro sa s façam da g lo b a lização um in stru m e n to de a firm a çã o de si p rópria s, de d o m ín io so bre nações m e nos desenvolvidas. A gora, é claro que essas opiniões que estou d a n d o n ã o são opiniões filosófi cas, c sim opiniões de u m ser h u m a n o c o m u m que está sendo interrogado sobre esses assuntos. E digo isso porque não acredito que o filósofo tenha uma capacidade m aior do que o u tro s seres h u m a n o s p ara falar de política. A lguém p ode até m o stra r que estou e rrad o , que eu deveria refo rm u lar este p o n to de vista, e talvez algum dia eu o reform ule. M a s sinceram ente n ã o acredito q u e u m filósofo seja mais ca p a z de falar de política d o que um a n tro p ó lo g o , um econom ista, um m atem ático, o u m esm o um ser h u m a n o qu alq u er, desde que p o ssu id o r de um a certa cultu ra e de um a certa inform ação . Por este m otivo, faço q u es tão de realçar que isso que a c ab o de dizer não é um a posição filosófica, mas u m a posição m inha, e n q u a n to ser h u m a n o , so bre um as su n to que julgo fu ndam e ntal. Q u a n to ã segunda p arte da q u estão, eu ta m b é m enxergo um a revivescência das questões m orais, b astante perceptível na juventude, que m e parece hoje, mais d o q u e em décadas passadas, ex tre m a m e n te p re o c u p a d a com elas. Inclusive é m u i to triste que alguns d e p a rta m e n to s de filosofia n ã o dêem cursos sobre m o ral, sobre p ro b lem as m orais. E essa juventude é levada o b viam ente a estender suas p re o c u pações m orais ta m b é m p ara os grandes pro b lem as da tra n sfo rm a ç ã o ec on ôm ica e social de nossa época, o que m e parece aliás perfeitam ente legítimo. M e sm o nós, e n ã o apenas a juven tude, ao refletir sobre esses grand es p ro b lem as da globalização e da intern acio nalização, n ã o po d em o s, ainda q u e reconhecen do sua origem nas tra n sfo rm a ç õ e s econôm icas, deix ar de lado as q uestões m orais; n ã o po d em o s sim plesmente a d o ta r a fria perspectiva de u m econom ista. E m b o ra o cético se posicione sem pre c o n tra os d o g m a tism o s m orais, ele em n e n h u m m o m e n to renuncia a um a perspectiva m oral sobre as coisas.
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Entre os aspectos que fazem parte da prática cotidiana do cético pirrônico, regulada pelos fenômenos, você aponta a conformação à tradi ção das instituições e aos costumes (“Sobre o que aparece”). Isso não implica um risco de favorecer o conservadorismo moral e, sobretudo, político? Em prim eiro lugar, devo esclarecer que a o m e n cio n a r a c o n fo rm a ç ã o aos costumes, nesse tex to, estou me referindo a um te x to de Sexto Empírico, ao cético tal co m o descrito p o r Sexto Empírico. M a s Sexto Empírico, infelizmente, deixou m u ito pouca coisa, ou quase n a d a , sobre política e m oral. .A.liás, ele não é um g ra n d e filósofo. Ele é a p e n as um p e n s a d o r m e n o r, m as u m p en s ad o r m e n o r q u e se to r n o u rep re sentante, p ara nós, d o que penso ser u m a g ran d e filosofia. Q u a n d o ele diz qu e se guir o fenôm eno é seguir as instituições, é p o rq u e entende que seguir o fenô m eno é seguir a n atu re za , deixar-se levar p or ela, reconhecer o papel das paixões, seguir os ensin am en to s da cu ltu ra vigente, seguir as tradições e costumes. Esse assun to, do possível con serv ad o rism o d o cético pirrônico segund o Sexto Empírico, foi várias vezes levantado, p o r m uitos estudos. C o m o Sexto E m pírico n ã o deixou quase nada sobre isto, é difícil sa ber o que pensava e x a ta m e n te a respeito. M a s eu sou levado a p ensar na figura de Pirro, que era um g ran d e sacerdote em sua cidade, Elis. A religião grega n ão era, co m o o cristianism o, u m a religião de consciência, m as sim um a religião de cultos, um a religião externa. P o rta n to , p a r ti cip ar d o culto e fazer os sacrifícios devidos era o q u e im p o rta v a para os gregos, e n ã o a consciência d a pessoa. Se a pessoa estava ou n ã o a c red ita n d o , isto não tinha m uita im p ortância. N este sentido, seguir as instituições e os costum es devia signi ficar, para Pirro, sim plesm ente aceitar qu e há um a tr ad ição na cidade, que há um culto, q u e se for necessário ele p ró p rio p ode fazer o culto, e assim p o r diante. Ao m esm o te m p o ele diz tu d o o q u e pensa, a to d o te m p o , e to d o o m u n d o sabe o que ele pensa. Esta me parece ser um a form a de interpretar a questão, m as n ã o há co m o ter certeza de que era isso que Sexto E mpírico tinha em vista. Por ou tro lado, q u an d o ele fala em seguir as instituições, ta m b ém p o d em o s p ensar n o fato de que tod o s nós seguimos as instituições. O s nossos a r r o u b o s de infração d as n o rm as vigentes, pen sa n d o bem — com exceção talvez de alguns revolucionários — , têm m u ito p o u co a ver com u m a o posição às instituições e aos costum es em geral. N a vida prática, as instituições e n o rm a s a que nos o p o m o s são p oucas se c o m p a r a d a s às instituições e costum es a que d a m o s nossa plena adesão. Agora, in d e p ende ntem en te de a posição de Sexto E m pírico ser ou n ã o c o n servadora, o que im p o rta é que n ã o vejo razões p a r a o cético pirrôn ico ser co n s er vador. Ele sim plesm ente suspende o juízo sobre as c h a m a d a s verdades dogm áticas, e, assim c o m o n ã o tem um d o g m a metafísico, nem epistem ológico, n ão terá um d o g m a m o ral o u um d o g m a político. P o rta n to ele n ã o terá crenças ab so lu ta s em política. M a s isso significa que ele não participará da vida política? Eu n ã o vejo um a relação necessária entre um a coisa e outra. Ele pode, por exemplo, a partir dos valores qu e tem, en ten d e r que a situação social do Brasil é ab e rra n te e trágica, e en tender qu e há um certo p a rtid o que mal ou bem representa m elhor a d en úncia disso, e a te ntativa de m e lh o rar isso. E pode e n tra r p ara esse p artid o , d a r a sua ad e sã o a ele, ou até m esm o criar um novo partido . O que n ã o significa que ele tenha um d ogm a ,
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que ten ha certas verdades absolutas. Ele é sim plesm ente alguém que quer participar da vida de seu país, juntan do-se àqueles que têm valores em c o m u m com ele. Se eu íosse, p o r ta n t o , r e f o rm u la r a idéia de viver se g undo o fen ô m e n o , eu n ã o usaria fórm ulas ap a re n te m e n te con serv ad o ras — co m o as de Sexto Empírico de fato são, independentem ente da sua intenção. Eu falaria sim plesmente em integrar-se na vida social e em suas instituições, o que é u m a fórm ula neu tra , que deixa espaço p ara um a intervenção política, até m esm o p ara um a intervenção política a p a ix o n a d a .
Como você caracterizaria a sua relação com a religião e a fé? C o m o qu em leu meus texto s sabe, eu tive u m a fo rm a ç ã o religiosa. N a verdade, fui religioso, no sentido tradicion al da expressão, até os quinze anos. Depois, receben d o a influência de u m am igo de m eu pai, eu me disse com unista, e, em b o ra sem saber nada de com unism o, fui com unista d uran te dois anos, sobretudo p orque os arg um en tos m orais qu e me e ra m ap re sen ta d o s p o r esse am igo de meu pai eram para mim m u ito im p o rta n tes, e eu não sabia reagir a eles. D epois eu tive um a conversão, em que me converti n ov am en te a o catolicismo, dessa vez p o r meio de u m a o p çã o c o n s ciente e n ã o p o r influência da família. A cho que m uito p ouca gente p od e dizer que foi católico até os quinze, co m u n ista até os dezessete, e se converteu ao catolicism o aos dezessete, m as esse foi meu itinerário! 1risos| Eu me converti, e e n tã o m e tornei católico praticante, estudioso da filosofia tom ista, fre qije ntado r assíduo d o s cultos religiosos, m e m b r o da Ju v e n tu d e Universitária C atólica IJUC]. G u a r d o um a lem b ranç a g ostosa de m uitas dessas coisas, m as ta m b é m uma lem b ran ça m enos g o sto sa, mais d o lo ro sa, de o u tra s, co m o os im perativos m orais cristãos. Eu levava m u i to a sério a moral cristã, e essa m oral, obviam ente, entra em violento conflito co m os instintos mais n a tu ra is d o jovem. E eu vivi isso d o lo ro sa m e n te . D e q u a lq u e r m aneira, o fato é que tive um a experiência religiosa m uito intensa, que d u r o u mais ou m enos até os vinte e q u a t r o anos, q u a n d o eu já tinha, c o m o se diz, p erdido a fé. Eu n ã o te n h o , co m relação às religiões, aqu e la posição m a rc a d a de alguns intelectuais de esquerda, que vêem nela ape nas um ópio d o povo. Sem dúvida elas o são m uitas vezes, mas ao m esm o tem po, n u m a sociedade tã o aterro riz ad o ra co m o a nossa, elas representam , p a r a milhões de indivíduos, um fator de equilíbrio, de sossego. Já que a sociedade n ã o tem sido capaz, até ag o ra , de d a r n e n h u m a so lu ção aos trágicos p ro b lem as que afetam milhões e milhões de miseráveis n o m u n d o , nós tem os de reconhecer que a religião representa um arrim o , u m p o n to de apoio. Vlesmo aqueles que n ã o crêem em n a d a , co m o é o m eu caso, e que percebem que essa influência religiosa é c o n ta m in a d a p o r atitudes irracionais, autoritárias, alienad o ras, têm de reconhecer que, se eles perdessem de repente esse p o n to de apoio, seriam p ro fu n d a m e n te infelizes. N este sentido, é c o m o se a religião fosse um a faca de dois gumes: salvo exceções, c o m o a T eologia da L ibertação brasileira, ela de um lado ajud a a m a n te r o status qtio, funciona co m o um obstá cu lo p ara as m u d a n ça s sociais; de o u tr o lado, rep resenta u m a solução im ediata, um fator de am en ização, p a r a a tragéd ia de milhões de pessoas.
Em “Prefácio a uma filosofia”, você escreveu: “Tantos anos passados após a perda da fé, percebo que aqueles valores ainda se me impõem
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com força tenaz e que a eles não renunciei. Continuo a ansiar pela Verdade, tenho a paixão da Humanidade, acredito finnemente na Rea lidade das coisas e nos eventos da experiência cotidiana e tenho uma consciência brutal da finitude de nossa razão. Reconhecendo a gênese dessa minha postura, nem por isso me sinto obrigado a abandoná-la. Nenhum argumento jamais encontrei que me persuadisse a fazê-lo”. Esses valores nascidos primariamente com a fé são importantes para você até hoje? São. M as farei um a p eq u e n a ressalva q u a n t o à expressão “ re a lid a d e ” : é claro que acredito na realidade das coisas, mas n ão no sentido metafísico de que talvez eu me servisse então. De q u a lq u e r m aneira, a m in h a iniciação à vivência de certos valores se fez através da religião. Esse foi um aspecto positivo: s o b r e tu d o na época em que eu fazia p arte da ju v e n tu d e Universitária C atólica, havia um a insistência bastante grande na Justiça, e no reconhecimento da situação absu rd a m en te injusta d a maioria das pessoas de nossa sociedade; havia um a insistência b astante g ran d e n o a m o r ao p ró x im o , e n ten d id o n ã o co m o um a atitu d e con tem plativa, m as co m o quere r t r a b a lh a r p ara m u d a r o status quo, p ara que a situaç ão deles m elhorasse. T u d o isso são coisas im p o rta n tes, que eram valorizadas na experiência religiosa que tive. E o tem a m o ral é um tem a que hoje me interessa especialm ente. Eu acredito que, ao suspender o juízo sobre os dogmatism os morais, o cético continua no m undo, e n ã o tem n e n h u m a razão p a r a a b a n d o n a r valores q u e antes cultuava. Ele p od e se p erg u n ta r, um a vez percebido o fato de que, em sua experiência moral d ogm á tic a, foi inculcado nele, p o r exem plo, o n ã o se c o n f o r m a r com a miséria, se há algum a razão, a p artir d o m o m e n to em que ele n ã o é mais um crente, p a r a a b a n d o n a r isso, p a r a m u d a r o seu íntimo, a sua personalidade. Essa p reo c u p açã o com os o u tro s é o b v ia m en te um a das manifestações natu ra is do estar h u m a n o n o m u n d o , q u e r d i zer, aqui e ali as p ró p ria s situações objetivas desenvolvem em alguns o desejo de tr a n sfo rm a ç ã o , de m u d a r, de a rre b e n ta r com o status quo. Por que eu precisaria dc valores abso lutos, de verdades atem p o rais, de co nh e cim en to da realidade em si, p ara preserv ar aquela preocupação? Se ela está em mim , se fui fo rm a d o assim, se n ã o a associo mais a crenças dog m áticas, não há q u a lq u e r m otivo p ara eu querer livrar-me dela, querer despir-me dela.
Como você se situa em relação aos problemas de uma “mudança de paradigm a” da filosofia, de uma filosofia “pós-metafísica” calcada na linguagem? Realm ente, essa é u m a m u d a n ç a que se efetivou no m u n d o co n te m p o râ n e o . C o m o m uitos au to re s já disseram , a p reo c u p a ç ã o com o sujeito deu lugar a u m a p re o c u p aç ão co m a linguagem. Sob certo aspecto, parece-m e saudável essa tr a n s f o r m a ção, no sentido de a b a n d o n a r m o s certos d o g m a s — os d o g m a s d o sujeito — e de privilegiarmos algo que ocupa um lugar decisivo na p ró p ria co n stituição da espé cie h u m a n a , que é o fato de nos servirmos de um a linguagem. P o rta n to esse inte resse pela linguagem me parece algo bastante salutar. De o u tr o lado, há, co m o em to d a s as tran sfo rm aç õ es desse tipo, o perigo de se h ipo stasia r aquilo qu e se está tra b a lh a n d o , o perigo, em ou tras palavras, de fazer da linguagem um mito, de achar
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que os pro b lem as filosóficos são p ro b lem as lingüísticos. Alguns filósofos c o n t e m p o rân e o s, infelizmente, e n v e red aram p o r essa trilha: eles fazem um a filosofia “ lingüisticista” e tr a b a lh a m , ou p rete n d em tr a b a lh a r , os p ro blem as filosóficos co m o se fossem m eros pro b lem as de linguagem. E isso é evidentem ente um do g m a tism o , e um d o g m a tism o ex tre m a m e n te perigoso, p o rq u e leva a filosofia a a b a n d o n a r o m u n d o , as questões reais, os hom ens, as pessoas. Enfim, essa idolatria da lingua gem me parece e x tre m am en te c a stra d o ra em relação aos p ro b le m a s filosóficos t r a dicionais. Se há algo de saudável na virada lingüística, que devem os sa u d ar, deve m os a o m e sm o te m p o ser ca uteloso s, e ser radicais na d e n ú n c ia d o radicalism o d og m á tic o da filosofia lingüística. Infelizmente, u m a p arte razoável da c h a m a d a filosofia analítica — palav ra p o r sinal e x tre m a m e n te vaga — deu à linguagem um a tal dim e nsã o, um a tal im p o rtâ n cia , que foi levada a a b a n d o n a r todas as p r e o c u p a ções tradicionais da filosofia. M as, v o lta n d o à p o stu ra cética, o ceticismo em n en h u m m o m e n to representa um a b a n d o n o da pro b lem átic a filosófica. N u m te x to que escrevi recentem ente, “ O ceticismo pirrônico e os p ro b le m a s filosóficos” , p r o c u r o afa star u m a idéia errô nea a respeito d o s céticos: a idéia de que, se alguém assu m e um a posição cética, deve c o nsiderar to d a a filosofia u m a perda de te m p o , e ac h a r que os p ro b le m a s filosófi cos n ão têm mais significado. O r a , isto é u m a ab e rra ção . Em prim eiro lugar, p o r que os pro b lem as filosóficos, na sua m a io ria, são pro b lem as d o ser h u m a n o , p r o blemas da vida, e o fato de m uitas vezes os filósofos te rem d a d o soluções dogm áticas a eles não implica que n ã o lhes te n h a m d a d o um tr a ta m e n to p r o fu n d o , em m uitos p o n to s reutilizável. O s g randes filósofos c o n trib u íra m decisivamente p a r a o es tu do da p ro blem átic a do ser h u m a n o , e re traduz ir a sua linguagem — p ara um regis tro fenom ênico, diria eu — é de f u n d am e n tal im po rtâ n cia . M a s re tradu z ir sua lin g uagem n ã o significa, de m o d o algum , to m a r a a titu d e quix o te sc a e ridícula de afirm a r que o que eles disseram n ã o tem im p o rtâ n cia — tal c o m o te nd eríam os, se co n d u z id o s p o r um a excessiva valorização da linguagem.
Como você vê o panorama filosófico atual? Penso, de início, numa passagem de “Prefácio a uma filosofia” em que você afirma que “racionalismo e irracionalismo são apenas as duas faces de uma mesma moeda”. Eu creio q u e o racionalism o a qu e eu me referia aí perdeu a vez, no sentido p u r a m ente em pírico da expressão: n ã o se faz mais racionalism o hoje, p ouca gente se av e n tu ra a q uerer ser racionalista no sentido tradicional e clássico d a expressão — o qu e é bom . T e n h o a im pressão, porém , de qu e n ã o é preciso, nem desejável, que se renuncie à razão. O irracionalism o é u m a tragédia filosófica e c ultural que tem, com grand e freqüência, lamentáveis conseqüências no p la n o prático, no p la n o da vida das nações, d o s povos c das pessoas. Por o u tr o lado, o e n d e u sa m e n to da r a zão não tem mais sentid o no m u n d o c o n te m p o râ n e o . O ceticismo, a m eu ver, não representa em n e n h u m m o m e n to um a investida c o n tra a raz ão ; ele representa, e o é, um a investida c o n tra o en d e u sa m e n to da razão. M a s o cético nasceu d a filosofia ocidental, dela se alim enta, e sem pre se alim entou. Eu diria até que ele se pretende, algo im ode sta m ente, o herdeiro dessa filosofia, pois ele tem um a q u a lid ad e que é
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sem dúvida um a q u alid ade da filosofia ocidental: a q u alid ade de ter sem pre o dese jo de pensar com rigor e espírito crítico, de tr a ta r os seus p ro blem as com espírito crítico. O ra , isto é algo que o ceticismo leva às últim as conseqüências q u a n d o de nuncia justam ente a in a d e q u a ç ã o dos em p re en d im en to s filosóficos a esse projeto multissecular de p en s am e n to crítico. O ceticismo seria, neste sentido, u m a espécie de legatário da in ten ção p rim ordial da filosofia, um filho e herdeiro da filosofia — jamais u m a recusa desta. N ã o há n a d a mais c o n trá rio a o ceticismo d o qu e um a perspectiva irracionalista.
Como você avalia a obra de Wittgenstein? Eu li W ittgenstein c o m o to d o filósofo lê, isto é, com atenç ão, interesse, a d m iraçã o e respeito. O W'ittgenstein que mais me interessa, evidentem ente, d o p o n to de vista das posições filosóficas, é aquele que vê nas filosofias um desvio da linguagem em relação a suas funções prim ordiais, que vê os problem as filosóficos não c o m o p r o blemas a serem resolvidos, mas co m o problem as a serem desfeitos. Esse VC'ittgenstein das Investigações filosóficas m e é particularm ente sim pático. E m b o ra haja bons c o nhecedores de W'ittgenstein que têm salientado a c o n tin u id a d e de certos tem as fu n d am en ta is n o Tractatus logico-philosophicus e nas Investigações, as soluções p r o postas no Tractatus me parecem absolutam ente especulativas, en q u a n to o W ittgens tein das Investigações me parece, sob certos aspectos, bastante aproxim ável de uma p o stu ra cética. Apesar de ele ser m uito mais radical d o que os céticos fo ra m , e as sumir direções que um cético n ã o teria razões p ara assum ir, creio que ele represen ta um a das vozes im p o rta n tes, na filosofia do século X X , que fazem a d enúncia d o d o g m a tism o filosófico.
Você utilizaria o conceito de “utopia” para descrever a sua visão do futuro da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia? Eu nunca senti n e n h u m a a tra ç ã o pelo p en sam e n to utópico , e n ão saberia descre ver o que seria um a sociedade ideal, um a sociedade desejável. M a s me parece que todas as co nstruções p ropostas p o r pensadores, qualq u er que seja a sua orientação, p ara descrever o que seria a realização dos fins da h u m a n id a d e , são sem pre e x tre m a m en te especulativas, criticáveis e problem áticas. A riqueza d o ser h u m a n o e a imprevisibilidade da história nos fazem to ta lm e n te incapazes de dizer o que seria “ a ” boa situação , o que seria a m elho r situação, o que seria a situação ideal. Eu considero inútil, e até m esm o perigoso, te n ta r tr a n s f o r m a r a sociedade a p artir de um a idéia pré-fixada do que seja o fim desejado. É evidente que os seres hu m a n o s, ou pelo m eno s os seres h u m a n o s críticos e conscientes, têm um a consciência bas ta n te g ra n d e das coisas que são ruins, perversas, inaceitáveis, na sociedade de hoje, e nós q u ere m o s n a tu ra lm e n te m u d a r essas coisas, q u ere m o s transform á-las, q u e re m os fazer as pessoas se en c am in h arem p ara o melhor. Acontece que esse m elhor vai sendo definido, p o r nós mesm os, aqui e ali, co n fo rm e as circunstâncias, c o n form e as épocas. N ã o acredito que se possa delinear a sociedade ideal, e esse mito, a meu ver, de\'e ser a b a n d o n a d o .
Há progresso na história?
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É difícil dizer, mas me parece que um a sociedade, p o r exem plo, em que m ulheres e hom ens têm igualdade de direitos, é m u ito m e lh o r d o que u m a sociedade em que n ã o a têm. U m a sociedade em que o p ov o, de algum m o d o , participa das coisas do gov ern o me parece, de m o d o geral, m uito m e lh o r d o que u m a sociedade em que o pov o n ã o participa. É v erdade q u e essa p articip a çã o m uitas vezes é a d u lterad a ; é verdade qu e certos meios de c o m u n ica çã o influem de tal m aneira sobre a p o p u la ção, que so m os levados a p e rg u n ta r se realm ente é o p o v o que está escolhendo os ca n d id a to s ou se são as em presas de televisão. D e q u a lq u e r m o d o , p o ré m , a p a r ti cipaç ão das pessoas na f o rm a ç ã o de seu gov ern o é algo positivo. Assim co m o a ex tensão d as p reocupações com o sem elhante, que é talvez um dos p o u co s aspec tos da globalização que p od em ser ditos de notável importância: o que acontece hoje na Bósnia, n o V ietnã, no D aguestão, é im p o rta n te p a r a m u ita gente, e n ã o apenas p a r a alguns intelectuais. T u d o isso é u m a van tag e m em relação a épocas em que as coisas n ã o e ra m assim , e p o r ta n t o p o d ería m o s falar em progresso. É claro que estou definindo esse progresso a p a r tir de certos valores m orais, e é claro que esses valores m o rais são nossos, são valores em que fom os fo rm a d o s e que endossam os. M a s n ã o vejo mal n e n h u m em as su m irm o s a nossa p a rtic u la rid a de, a nossa contingência, e, ain d a que recon h ece n d o que esses valores, co m o o da m a io r igualdade, da m a io r justiça, da m e n o r miséria, da m e n o r desgraça, são valo res em que fom os fo rm a d o s, dar-lhes a nossa adesão. Eu diria p o r ta n to , desse p o n to de vista, que houve, sim, algum progresso. Inclusive te n h o m uita sim patia pela posição d o R orty co m relação a esse p o n to , pois ele tenta m o stra r justam ente que a consciência de nossa precariedade e de nossa contingência n ã o nos im pede, em n e n h u m m o m e n to , de lutar p o r aquilo em que acreditam os.
Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos co mo riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em lar ga escala e alienação cultural em massa. Como você vê tais problemas? Eu os vejo co m o trágicos, obviam ente, e c o m o conseqüências nefastas dessas tra n s form ações globais p o r que passa a sociedade. A globalização é um fato inevitável, m as a n en h u m m o m e n to precisa ser to m a d a co m o u m valor a ser c ultu ado. T ra ta se de um fato que n ã o p o d em o s evitar, m as ele traz no seu bojo pro b lem as terríveis e seriíssimos. O que se coloca p ara nós, c o m o desafio, é te n tar lidar com eles, te n ta r minimizá-los, se possível eliminá-los, conscientes da dificuldade qu e há nisso. N ã o se tr a t a de aceitar a globalização c o m o um bem , nem de condená-la co m o um mal, mas de aceitar que ela está aí, que as tran sfo rm aç õ es tecnológicas e ec o n ô m i cas nos põem d iante de um fato c o n s u m a d o . T u d o q u e p o d em o s é t e n ta r tr a n s f o r m a r as coisas para q u e as suas conseqüências ruins sejam fortem ente dim inuídas.
Paulo Arantes emprega, em U m departam ento francês de Ultramar, o adjetivo “pré-modemo ” para caracterizar a sua atitude filosófica, tendo em vista tanto a fase da promoção filosófica da visão comum do m un do como a fase neopirrônica, em que você estaria navegando “a contracorrente do miolo cético do m odem ism o”. No entanto, a recusa da tradi ção filosófica moderna é algo que você expressamente assume, por consi-
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derá-la fundada na “concepção mentalista do conhecimento” que ten de a afastar o pensamento reflexivo da vida real — tendência à qual mesmo os céticos modernos, como Hume, não escapariam. Como, então, você se posicionaria em relação a essa caracterização de “pré-modemo”? Se pré-m oderiio q u e r dizer grego antigo, não te n h o nad a contra! |risos] O m u n d o grego, e ta m b é m o m u n d o medieval, que sob certos aspectos copiou o grego, tinham u m a p o stu ra diante dos pro b lem as d o con h e cim en to — n ã o estou d izen do senão u m a trivialidade histórica — tota lm e n te diferente da p o stu ra m o d e rn a . A p o stura m o d e rn a , em Descartes, com eça com a valorização d o sujeito, co m a valorização d o p en s am e n to sobre a experiência d o m u n d o , co m a idolatria da razão. Eu ac ho que os gregos, m esm o Platão, eram m uito mais afeitos ao co tid ia no, às coisas que se passavam im ediatam ente, estando n u m a sintonia m u ito m a io r com o m u n d o do que o p e n s a m e n to m o d e rn o . Pois este último, m esm o q u a n d o se deb ru ç a sobre o m u n d o para pensá-lo, em geral o faz a p a rtir de um a razão id o la trad a , a p artir de u m a raz ão h ipo stasiad a, a p artir de um culto d o sujeito. O r a , eu ac ho que deve m os ter, nesse sentido, a coragem de dizer “ n ã o ” a o m ode rno. Isto é, não há p o r que colocar o sujeito em prim eiro lugar, n ã o há p o r que aceitar u m a filosofia que está enraizada em última análise no cogito. Uma das coisas mais im portantes, a meu ver, na co n sideraç ão d o cogito cartesiano, é que o sujeito se pergunta: “ C o m o p o s so saber que este m u n d o existe?” ; “ C o m o posso saber q u e isso é um a v e rd a d e?” ; “ Eu não poderia estar e n g a n a d o p o r esta ou p o r aquela r a z ã o ? ” . E eu te n ho v o n ta de de pergun tar: “ Eu qu em , cara pálida? !” [risos]. É claro que, se você adm ite que p ode haver p ensam e n to sem m u n d o , a p ergunta tem to d o sentido. Vias, se você não tem razões p a r a a c redita r que haja p en s a m e n to sem m u n d o , a p erg u n ta n ã o quer dizer nada. O ra , essa hipóstase d o sujeito, d o p en sam e n to , da razão, é a co n trib u i ção genial de Descartes para a filosofia. M a s é a o m esm o tem po, a meu ver, a r a zão para que um cético co m o eu desconfie de to d a filosofia que d aí se nutriu, que se nutriu da hipótese de u m a separação entre p en s a m e n to e m u n d o . O sujeito, p a r a o cético, é alguém c h a m a d o José, qu e tem carne, osso, dente, que briga com a n a m o ra d a etc. O sujeito é o ser h u m a n o q u a n d o nós ce n tram o s a atenção sob re ele. O que são as filosofias? As filosofias são sim plesm ente exercícios de p e n s a m e n to de seres h u m a n o s n o m u n d o . É preciso c o m e ç a r se m p re p o r aí, co m eç ar sem pre p o r essa rem issão ao h u m a n o vivido de ca d a dia. E n q u a n to a filo sofia ocidental se orgulha justam e n te de ter-se co nstitu íd o sobre a não-aceitação disso co m o p o n to de partid a p ara pensar, o cético grego é aquele q u e só tem isso p a r a pensar, e não acredita que se tenha o u tra coisa além disso. N este sentido, a m inh a p o stu ra é to ta lm e n te “ a n t im o d e r n a ” .
Para terminar, uma pergunta um pouco mais jocosa. Será que há tan ta diferença assim entre Tales caindo no poço porque olhava os astros e Pirro caindo no buraco e sendo abandonado lá por seus discípulos imperturbáveis? Isso sobre Pirro é intriga da oposição! [risos| É claro que se sabe m u ito p o u c o so bre a vida de Pirro, há ape nas um as historietas so bre ele, de Diógenes Laércio. M a s já na an tiguidade alguns p ensadores céticos se qu eix av a m dessas historietas, diziam
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que tin h a m sido inventadas p o r opositores e que n ão eram verdadeiras. H á até quem sustente que Pirro se perm itia algum as vezes certas extravagân cias p ara c h a m a r a aten ç ão p a r a seus p o n to s de vista. Existe, p o r exem plo, a seguinte história. Q u a n d o o am igo de Pirro, A n a x á g o ra s, estava se afo g a n d o , diante de to d a u m a c o m iti va, e com m uita gente q u e re n d o salvá-lo, Pirro teria afe tad o indiferença, no senti d o de que n ã o p o d em o s estar tota lm e n te seguros de nossas im pressões sensíveis, o u algo assim . Se ele de fato o fez, pode te r sido u m a brincadeira, e u m a b rinca dei ra sem conseqüências, p o rq u e os am igos c o rreram p ara salvar A n axá gora s. O filó sofo é levado às vezes a dizer certas coisas que p o d e m parecer m uito e x tra v a g a n tes. L em bro-m e, p o r exem plo, de q u a n d o eu estava n u m coló q u io em C u ritib a e, na saída d o co lóqu io, toquei n u m assu n to que se tinha discutido — eu tinha te n ta d o m o stra r, em m inha com u nica çã o, que é tota lm e n te ridícula a ca rica tura d o cé tico co m o aquele que n ão sabe, p o r exemplo, se essa mesa está aqui. Eu estava diante de u m a árvore, na rua, e n u m d e te rm in a d o m o m e n to fui levado, nesse c o n te x to , a dizer, a p o n ta n d o : “ H á um a árvore aqui! Eu n ã o posso recusar isto!” . E um casal qu e passava ficou o lh a n d o de m aneira m u ito esp antada! [risos] Enfim, o fato é que aos o lhos d o senso c o m u m um a a firm a çã o filosófica p ode parecer um a coisa a b s o luta m e n te ex travag ante.
Principais publicações: 1981 1993 1995 1999 2001
A Filosofia e a Visão C o m u m d o M u n d o (co-autor) (São Paulo: Brasiliense); Vida C o m u m e Ceticismo (São Paulo; Brasiliense); “ V erdade, ceticismo e re a lism o ” , Discurso, n° 25; “ D iscurso aos es tudantes de filosofia da USP sobre pesquisa em filosofia” , Dissenso, n" 2. A noção aristotélica de ciência ( d o u to ra d o defendido em 1967; no prelo).
Bibliografia de referência da entrevista: Descartes, R. Meditações, coleção O s Pensadores, Abril C ultural. Gellner, E. Relativism and the social sciences, C am b rid g e University Press. H u m e , D. Tratado de la naturaleza humana, M adri: Tecnos. _________. coleção O s Pensadores, Abril C^ultural. K ant, 1. Critica da razão pura, coleção O s Pensadores. Abril Cultural. P opk in, R. A história do ceticismo de Erasmo a Spinoza, Francisco Alves. P opper, K. A lógica da pesquisa científica, Edusp. Q uine, W. V. Relatividade ontológica e outros ensaios, coleção O s Pensadores, Abril C ultural. R o rty , R. A Filosofia e v espelho da natureza, R e lu m e -D u m a rá . Sexto Em pírico. Pirronean hypotyposes. H a r v a r d University Press (Loeb). W ittgenstein, L. Tractatus logico-philosophicus, Edusp. ______________ . Investigações filosóficas, coleção O s Pensadores, Abril Cultural.
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RUY FAU STO (1935)
Ruy F austo nasceu em 1935, em São Paulo (SP). F orm ou-se em Filosofia e em Direito pela Universidade de São Paulo e obteve o título de d o u to r em Filosofia pela Universidade de Paris 1. Foi um dos fundadores da revista Teoria e Prática. Foi p r o fessor d o D e p a rta m e n to de Filosofia da USP até inícios de 19 6 9 , q u a n d o se e.xilou. É professor da Universidade de Paris VIII e professor em érito da USP. Esta e n tre vista foi realizada em setem b ro de 1999.
Goethe dividiu a vida do seu personagem Wilhehtt Meister em dois ro mances, O s anos de aprendizado e Os anos de peregrinação. No primeiro, o foco está posto na fonnação do indivíduo Wilhehn Meister, enquan to o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que você nos falasse de sua for mação intelectual? M in h a fo rm a çã o intelectual é m uito c om plic ada , m uito suigeneris, em função, di gam os, de circunstâncias pessoais e de razões históricas: uma confusão, se ouso dizer, de vida pessoal co m história universal. H avia um p roblem a ligado a o fato de que a filosofia n o Brasil estava m u ito p o u c o desenvolvida, e foi preciso rea p re n d er na E u ro p a o que eu n ã o tinha ap re n d id o aqui. A m in h a fo rm a ç ã o é ta rd ia, sou um sujeito que se fo rm o u m u ito tarde, q u e tem um a longa história e um a longa f o rm a ção, inclusive p o r co n ta de alguns fatores pessoais; a vida familiar um pouco c o m plicada, m ãe m o rta m u ito cedo etc. Q u a n d o co m eçava a levantar a cabeça, fiquei d o en te na E uropa. O fato é que houve um longo p eríodo de caos n o p lano intelec tual, ligado a um a atividade política, ta m b é m caótica ã sua m aneira. .Vlas de certo m o d o eu funcionava nessa área. De um a fo rm a m uito im a tu ra, m as funcionava, escrevia com mais facilidade... .Vlas, no p lano p ro p ria m e n te teórico, o caos foi, di g am os, até os 38 a n o s mais o u menos.
Você consegue datar, então? O ano é 1973? Sim, em 1973 eu comecei a escrever textos que tin h a m pé e cabeça. E m b o ra a p a r tir daí eu possa ter m u d a d o em alg um as coisas, especialm ente em algum as coisas políticas, há um a certa continuid ade. É a partir daí que eu me reconheço. E, q u a n d o o sujeito se en c o n tra p o r volta dos 4 0 anos, com eça u m a longa co rrid a atrá s do tem po: tem que ler isso, tem que ler aquilo, tem que te rm in ar a o b ra de juventude co m c in q ü en ta a n o s ... Bem, essa é a m inha história.
A graduação você fez quando? g ra d u a ç ã o em Filosofia eu fiz cedo, terminei em 1956. M a s foi u m a g r a d u a ç ã o
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m u ito ruim , po rq u e os franceses já tin h a m ido e m b o ra e não havia gente p ara substituí-los, de m o d o que eu peguei o “ olh o d o ciclon e” . E você fez Direito ao mesmo tempo? Fiz D ireito p o r razões familiares: a filosofia era desvalorizada e as famílias qu eri am que a gente tivesse u m a profissão decente. E ntão fiz Direito, p o r pressão do meu pai, m as só levei a sério d u r a n te um a n o — o resto d o c urso fui fazendo sem m uito interesse, prestava alguns exam es de segunda época, os únicos acessíveis a q uem não freqüentava o curso, e terminei em seis anos. O meu irmão mais velho, que sofreu um im p acto mais antigo, fez ape nas Direito, e só foi fazer Flistória mais tarde. Eu fui da geração de transição, que, e m b o ra e s tu d a n d o Filosofia, tinha um a profissão “ d ec ente” . Já nas gerações mais novas, m uitos to p a r a m fazer só Filosofia. E era interessante a c o m p araç ão : eu gostava m uito da faculdade de Filosofia, m a s a de direito era o u tra história, m u ito pior, m u ito tradicional. N a Filosofia, apesar da ausência dos franceses, as coisas funcionavam : havia o Lívio Teixeira, que p r e p a rava cuid ad o sa m en te as aulas; o C ruz C osta, com as suas qualidades, e alguns mais (em p arte de o u tro s depa rtam e n to s). Vocês q u ere m um exe m plo d o con tra ste e n tre as duas faculdades? V ou c o n ta r um a an edota: o Lívio Teixeira chega à sala de au la e diz: “ Floje eu n ão p osso d a r aula po rq u e o n te m tive que ir ao dentista e n ão p reparei nada. E se eu não p r e p a ro a aula, n ão tem a u l a ” [risos]. Já na Faculdade de Direito, o professor que tivesse ido ao dentista e não tivesse p r e p a ra d o a aula, iria fazer um discurso sobre o direito, os alun os aplau d iria m no final, e coisas des se tipo. Era de um lado a falta de jeito do Lívio Teixeira, e de o u tr o a eloqüência brasileira do século XIX. N a Faculdade de Direito, a gente só consultav a apostilas, excepcionalm ente lia um livro — d o professor — , e q u a n d o apareciam alguns p r o fessores que faziam a coisa mais seriam ente, eles eram consid erado s terríveis! O que o levou a querer estudar filosofia? Eu fiz o secundário no M ackenzie, que era m uito ruim . M a s nos últimos an o s a p a receram alguns professores fo rm a d o s pela Faculdade de Filosofia, que co m e ç a ra m a m u d a r tu d o . Fui a lu n o d o D an te M o reira Leite, que n ão era filósofo, m as psicó logo, e ele me co n to u m uitas coisas. Ele nos falava um p o u co da pré-socrática, de filosofia grega e cristianismo, de filosofia da ilustração. M a s falava m uito mais e m e lh o r de um a ciência h u m a n a p ré-estruturalista: .Margaret M e a d , Lévy-Brühl, ta m b é m Freud e Jung. A cho que era o m elhor a lu n o dele. T a m b é m fui a luno do M a ssa u d .Vloisés, que era um m u ito b o m professor de português, esforçadíssimo, q u e nos fazia escrever. Ele lia p a ra a classe os meus trab a lh o s de literatura brasilei ra. M as eu n ã o tin ha intenção de fazer letras. Depois apareceu a Emília Viotti, fa lando de R evo lução Francesa, N a p o le ã o , Zollverein [união ad u a n eira alemã] etc. Bem, m uito cedo e n tra a política pelo meio: família judia, a gente a c o m p a n h o u a guerra desde o com eço. A pesar de eu ter nascido em 1935 e de só ter q u a t r o anos em 39, lembro-me da declaração de guerra, ta m b ém da entrada dos alemães em Paris (meu pai n ã o disse um a palavra d u ra n te o alm oço inteiro), eu a c o m p a n h a v a tud o, discutia política. A certa altura, já tín h a m o s virado udenistas [partidários da U nião D em ocrática N acional], depois socialistas, e no final d o colégio eu já tinha, co m o
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Riiy F au sto : " M a s d ig a m o s q u e o m eu o b je to filosófico é a d ia lé tic a , e dela eu tiro a idéia d e crític a. E stá n o c e n tro d a m in h a reflex ã o a n o ç ã o de in te rv e rsã o , a d o m o v im e n to de u m a coisa q u e p assa n o seu c o n trá rio ; é u m a c a te g o ria crític a essencial, inclusive n a p o lític a ” .
dizia o poeta Luis A ra n h a , “ o h vro bolchevique em e spanhol deb a ix o d o travessei r o ” . () meu irm ão Boris, q u a tro anos mais velho, exercia m u ita influência. Teve um peso excessivo, que foi negativo, e m b o ra , p o r o u tr o lado, ten h a a ju d a d o a a brir cam inhos. M e u o u tr o irm ão, o que virou (grande) cientista, era a vítima: segundo a ideologia familiar, ele tinha “ cabeça d u r a ” ... Bom, o fato é que, me interessando p o r política e m a rx ism o , eu hesitava e n tre filosofia e história, e acabei o p ta n d o p o r filosofia. M a s na facu ldade foi meio co m p licad o, p o rq u e o curso n ã o era b o m , a gente n ã o recebia u m a boa form ação, e ain d a havia um a certa am big ü id a d e nos meus interesses, que me fazia ser meio m arginal: diferentem ente de alguns dos meus colegas, c o m o o Bento P ra d o , eu n ão era filósofo desde os dezesseis; tin h a um interesse específico pela dialética, ia ler o Anti-Dühring, ia em busca do fundam ento da política.... D igam os que de certo m odo fiquei m a d u r o — m a d u ro m u ito ã m inha m aneira — p ara a política m uito cedo, tinha a m ania de escrever artigos gauchistas, e bem o u mal adq u irira um a certa o r g anização nesse terreno. Já o universo da filosofia era u m a espécie de caos, um a salada enorme: eu n ã o sabia bem para onde ir, havia, co m o disse, u m a série de razões pessoais; segundo filho, mãe m o rta q u a n d o eu ainda n ão tinha 4 anos, pai imigrante, fom os to d o s viver ju n to c o m m eus tios n u m a casa m u ito g rande, tu d o um pouco a gitado dem ais, e assim p o r diante.
E quais as influências que o marcaram na Faculdade de Filosofia? Bem, o Lívio Teixeira era um b o m professor de história da filosofia, m as era meio pesado. E eu n ã o gostava dem ais da história da filosofia. N essa época eu tendia para um certo positivism o, e era m arxista. G ostav a de ler história da ciência. Já o C ruz C'osta — me tra ta v a m u ito bem , eu sim patizava co m ele— era um perso n a g em in teressante, m as n ã o se ap re n d ia m u ito c o m ele. A g ora, os dois facilitavam m u ito as coisas p ara a gente, eram u m a espécie de a n tim a n d a r in s cujo único defeito era darnos responsabilidade demais. F ora eles, fui alun o d o A n to n io C â n d id o , d u r a n te seis meses, n u m curso de sociologia, que era interessante, mas in tro d u tó rio . T a m b é m fui a lu n o da Gilda de M ello e Souza, q u e fazia o que se ch a m a v a en tã o de estética sociológica, e foi algo que estudei c o m interesse, m as ta m b é m só foram seis meses. Encontrei de nov o o D ante, que era um sujeito sim pático, m as a c h a m a d a psicolo gia diferencial n ã o só tin h a p o u c o a ver c o m filosofia (o que n ã o era grave), mas n ã o me interessava m uito. £ colegas? A h, n ão havia quase nada: as classes e ra m m u ito am orfas. Elas tin h a m sem pre um ou dois “ gen io zin h o s” que p ro m e tia m um g ran d e futuro, e o resto era u m a massa am o rfa. .Mas, v o lta n d o aos professores, aí vieram os franceses: eu já n ã o era a lu no, mas assistia às aulas deles. Q u a n d o ainda era aluno, apareceu o [Ciaudej Lefort, d a n d o aula no terceiro a n o de sociologia, e, c o m o ele era ex-trotskista, houve dis cussões m u ito interessantes. O Lefort n ã o me converteu — isto é, n ã o me “ desc o n v e r te u ” — nem me convenceu, m as foi um c o n t a to b o m . D epois ap a rece u o [Gilles-Gaston] G ranger. M a s a verdade é que a m inha ligação co m a filosofia es tava m uito verde, eu n ã o sabia m uito bem para o n d e ir, e levei m uito te m p o para
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e n c o n tr a r um certo estilo, um c a m inho. AHás, te n h o a im pressão de que c o n tin u o p r o cu ran d o ! | risos] M a s nessa época da faculdade nós viram os militantes trotskistas. N os anos 50, T ro tsk y era c o n s id erad o um policial a serviço da G estapo , e ser trotskista sig nificava — de fato — e n tra r p ara u m a seita. E n tã o eu andei pelo m o v im en to t r o tskista alguns anos. Fui “e n t r i s ta ” na Ju ve ntude C o m u n ista (não p o rq u e me tives se infiltrado, mas p o r q u e me co n v id a ra m a entrar) e isso quase me enlouqueceu. Para um m e nino de 19 anos, frágil, com pro b lem as familiares, aqueles coisas m a lucas n ã o eram fáceis. H o u v e até alguém de fora d o meio universitário que m o rre u n u m acidente de autom óvel suspeito, o q u e significa que eu corria riscos. M as aí veio a bolsa e eu fui p ara a França, o nd e, q u a n d o com eçava a o r g a n i zar a m in h a vida, fiquei doente.
Em que ano? Fui p ara a F rança em n o v e m b ro de 1960. Antes disso, ensin ara n o interior, na rec é m -in au g u ra d a Faculdade de Rio C la ro (futuro campus da Unesp). T in h a c o m e ç a d o a tr a b a lh a r na USP c o m o aju d an te d o C ruz C osta (sem g a n h a r nada), e d e pois, indicado pelo D an te M o r e ir a Leite, dei aula n o M ackenzie, na escola em que eu tinha estudado. Isso foi difícil: ia d a r aula com um m e d o louco, organizava as aulas com dificuldade, mas fui fazendo. Depois me con v id aram para ensinar em Rio Claro, e eu passava de m enino que term inou os estudos a professor titular, g an h a n d o um m uito bom salário. Aliás, q u a n d o meu pai viu o que estava d a n d o aquela p r o fissão m a ldita (na realidade ele nunca foi co n tra , m u ito pelo co n trá rio , mas tinha m e d o que eu passasse fome), ficou e n c an tad o , u sa n d o um a de suas expressões p r e feridas (que, não sabia, devia ser corrente nos anos 20, p o rq u e a encontrei no M á rio de A ndrade): “ Isso é u m a m in a ! ” . Im aginem o velho: um p eq u e n o com ercia nte sempre p reo c u p a d o , tr a b a lh a n d o co m o um b u rro , viajando — ele era com erciante de café — , enfim um p eque no capitalista. De repente o filho, que escolhera um a profissão de pobre, e de q u em se dizia: “ Ele vai ser professor, mas depois de ser professor vai ser o q u ê ? ” , conseguia esse bom emprego! Bem, depois disso, eu fui p ara a França, e lá, em Rennes, encontrei o [Victor] G old sch m idt, o G ra n g er (estava lá ta m b é m o meu colega |O s w a ld o | Porchat). Fi quei m u ito a n im ad o . M a s o clima — no sentido geográfico — era m u ito ruim , eu tinha saído d aqui no verão p ara enc on trar o inverno úm ido da Bretanha, comia sem pre no restauran te universitário, b a ra to , m as péssim o — e m b o ra tivesse um dinheirinho, queria gu ard á -lo p ara viajar, c o m o to d o estud ante no exterior. Só que tive azar: fui p a r a r n o hospital c o m um a infecção p u lm o n a r , e os médicos c o n s id e ra ram a hipótese de que fosse câncer. Tive q u e fazer muita radioscopia, e acabei p a s sando q u a r e n ta dias n o hospital (m uito bem tr a ta d o , com as despesas pagas pela cidade de Rennes). Resisti com m uita força, até passar o perigo (q u a n d o ficou cla ro q ue tin h a um a infecção, aliás n ão m u ito bem identificada). M as depois que p a s sou o perigo, baqueei, e levei a n o s p ara me refazer. O golpe fora m uito forte para quem ain d a era m u ito frágil. D epois que tive alta, ninguém sabia dizer ex a ta m en te que d oença eu tivera. De m inha parte, fiquei entre a pleurice (no p rim eiro inverno tive até que voltar a o hospital p o rq u e o correra um d e rra m e na pleura), o m edo do
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câncer, e ta m b é m o m e d o da leucemia (no m o m e n to m esm o em que saí d o hospital c om eçou a c a m p a n h a co n tra as radioscopias, cuja periculosidade se descobriu). Depois disso, fui p a r a r na A lem an h a , p a r a e s tu d a r alem ão. Fiz um cu rso no Instituto G oethe, fui ficando mais a n im a d o , e depois voltei p ara o Brasil: vim p a ra o D e p a rta m e n to [de Filosofia da USP], e aí não foi fácil: havia co m p etiçã o , eu ti nha um p roblem a m u ito g ran d e c o m o G ian n o tti. N ã o sei se devo e n tra r aq u i em detalhes sobre essas histórias, m as foi um m o m e n to m uito difícil. A cho q u e ele tem u m estilo m uito violento, ele praticava o que hoje se cham a na França de harcèlement moral, a perseguição aos mais frágeis (co m o assinala um livro recente sobre o a s su n to , as vítimas são frágeis sob certos aspectos, m as em geral superiores m oral ou intelectualm ente, ou as duas coisas, ao s seus algozes). N a época nem o n o m e da coisa existia, as vítimas e ra m sem mais culpabilizadas e ta x a d a s de loucos, ressen tidos ou m asoquistas. Fíavia o m ito terrível — e falso — da sim etria entre o p e r verso e a sua vítima (mito que ta m b é m a psicanálise alim entou). Eu acabei me sa fando , m as p o d eria te r sido destru íd o nessa brincadeira. — Aí veio o prim eiro gol pe [em 1964], e fui m e m e te n d o de n o v o em política, m as desta vez com m a io r dis tância (p orém os riscos, agora , e r a m m u ito maiores). Em 1968, atuei m u ito n o ní vel d a Faculdade, m as n ão me liguei a n e n h u m g ru p o oficialmente. Assim m esm o corri m u ito risco, m as poderia te r co rrid o mais. E n tã o aqu ela d o ença me teria sal vo a vida, p o rq u e, ape sa r de tu d o , passei a ser um p o u c o mais p ru d en te depois dela. £ a experiência da revista T e o r ia e Prática? É verdade, houve essa experiência, que in ventam os, o R ob e rto [Schwarz], a Lourdes [Sola] — m in h a ex-m ulher — , o Sérgio Ferro, o J o ã o Q u a r tim [de M oraes[ e mais alguns. Foi interessante: a gente participou daquela coisa to d a , m as era um univer so m u ito louco, que foi liquidado pelas brigas da esquerda, ã direita b a s ta n d o d e pois d a r o golpe de m isericórdia. N a Teoria e Prática, ac ho que o único que n ão estava ligado a n e n h u m g ru p o a r m a d o era eu, q u e tinh a m e d o e disse q u e não ia me ligar. Já eles, desviavam d inh e iro da revista p a r a a luta a r m a d a , o que era u m a besteira total. C o m e ç a r a m a se digladiar lá d en tro , e com isto praticam en te liqui d a r a m a revista. Q u a n d o a direita veio com o A to Institucional, ela deu apen as o tiro de m isericórdia (parece q u e h ouve até discurso c o n tra a revista na C â m a ra Federal). M a s a experiência foi, apesar de tu d o , interessante, e m b o ra m u ito ca n sa tiva. Lá eu pude escrever algumas coisas polêmicas, e um prim eiro texto teórico sobre M a r x (texto que ficou nas p rovas do q u a r to n ú m e ro a b o r ta d o da revista).
Como você avalia a interpretação que o Paulo Arantes fez do seu tra balho na década de 1960? Eu não me lem bro m uito bem, m as acho que n ão estava errado. Basicamente, o que aconteceu foi o seguinte: no m eu fio de reflexões sobre o m a rx ism o , eu m e p r e o cupei sempre, desde os 18 anos, com p ro b lem as de f u n d am e n taç ão . Era a coisa da relação e ntre m o ral e política, d o f u n d a m e n to da a ç ã o (porque participar?) etc. Eu tin h a chegado a um esquem a em que o socialismo, e ta m b é m to d o s os valores, es ta v a m lá, m as n ã o e r a m o f u n d a m e n to , ficavam n o horizonte — resposta expressa em estilo meio husserliano. Era um b o m esqu em a, mais o u m enos c o rre to (banal
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se mal e lab o rad o , m as c o n te n d o virtualm ente coisa interessante). M a s, a o m esm o te m p o , eu tinha u m a tem ática erra d a , o u fo rm u la d a de m aneira m u ito tosca, cm que o mar.xismo aparecia c o m o sendo antifilosófico. (Ele o é de fato, mas n u m sen tido m uito mais com p licad o.) M a s a partir daí fui a b a n d o n a n d o essa p reo c u p açã o estéril de saber se o m a rx ism o é ou n ã o filosofia, e fui d esenvolvendo o u tr o esque ma. L endo Hegel, descobri qu e aquela história de horizonte poderia ser desenvol vida com mais rigor.
Você consegue datar? Acho que o prim eiro texto em que o novo esquema aparece é um texto de 1973 que escrevi na Europa. C o m a repressão fora obrigado a sair d o país, indo prim eiro para o Uruguai, depois para o Chile. N o Chile, eu já tinha esse novo esquema, pois lembrome de u m a conferência de 1971 em que ele aparecia. H avia diferenças em relação a o artigo de 1968, que sairia no q u a r to n ú m e ro da Teoria e Prática. E m b o ra haja ta m b ém um a certa c o n tin u id a d e entre os dois m o m e n to s, nesse artigo a m o n ta g e m era mais a antiga, a do horizonte. T in h a algum a dialética, m as pouca. N o Chile, eu me lembro, o esquema dialético era bom. Aliás, freqüentemente, meu discurso falado era m elh or d o que o escrito. Porém a dialética apareceu na época em q u e dei um curso sobre a Fenomenologia \do Espirito]-, de repente me dei co n ta de o n d e a d ia lética se encaixava, e comecei a tra d u z ir a an tiga form a n u m a linguagem dialética. D o p o n to de vista político, c o n tin u a v a , nessa época, trotsk ista sim patizante, m as tinha m e afa sta d o um p o u c o da política, desde q u a n d o fôra p ara Rio Claro. N o fim dos anos 60 sofrêram os o im p a cto c u b a n o ; e m b o ra T ro tsk y continuasse sendo um a referência, o nosso m a rx ism o g a n h o u o u tra s características. E depois, já nos a n o s 70, tom ei mais distância ain d a d o tro tsk is m o , que ca d a vez mais eu achava sectário, m a s comecei a m e a p r o x im a r d o leninismo! — pior a e m en d a do que o soneto — acreditava que neste havia mais jogo de c in tu ra (o q u e d en tro da política m a rx ista era verdade). Se eu pegasse hoje os meus artigos políticos da é p o ca, n ão sei se ain d a fariam sentido, m a s os artigos teóricos, mais técnicos, já c o m e ça v am a a p re sen ta r um a posição coerente — mutatis mutandis — com o que p e n so até hoje. P o rta n to posso dizer que comecei a fazer coisas válidas d o p o n to de vista teórico no final dos a n o s 60, já c o m mais de 35 anos. Antes disso, eu tinha um a imensa dificuldade p ara escrever: n ão saia nad a bom , a n ão ser ex cep cional m ente u m a resenha.
Portanto a descoberta do Flegel foi um marco? -Ah, sim! C o m o desde cedo o m eu negócio era a filosofia m a rx ista, e o m eu interes se era o f u n d a m e n to ou o n ã o - f u n d a m e n to , Hegel era a referência necessária. E n tão peguei a Lógica, naquela tr a d u ç ã o horrível d o Jankélévitch pai — co m o to d o m u n d o , eu era o b rig a d o a saber ler francês — , e m e p u n h a a lê-la nos sofás da bi blioteca da F aculdade de Direito. N ã o entend ia n a d a , mas fiquei enc antado ! Lera um livro d o C a io P rado Jr., A dialética do conhecimento, que é um a coisa m uito, m uito ruim , mas co m o me faltava to d a base, fiquei im p re ssiona d o c o m aquela his tória ab s u rd a de que a lógica de Hegel era u m a lógica psicológica! Enfim, o fato é que eu tinh a u m a verdadeira fascinação p o r Hegel aos 18 anos. Depois, q u a n d o eu
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voltei da França, comecei a fazer leituras da Fenomenologia c o m os a lunos e, a p e sar de n ã o saber bem p a r a o n d e ir, as coisas foram se ju n ta n d o . Por um lado, isso foi ótim o, p orqu e adquiri um a problem ática p rópria, m as a o m esm o te m p o era meio esterilizante, po rq u e ficava g ru d a d o naq u ilo e me to rn av a presa fácil na c o m p e ti ção universitária. M a s aí veio o A to Institucional de fins de 1968, e tive de ir e m b o ra . Fui p ara o U ru g u a i, d o U ruguai queria ir p ara a França, mas fui p a r a o Chile, o nde virei professor da U niversidade C atólica — em preg o que o Ernani Fiori, pai da Otília Fiori A rantes, me a rra n jo u . A faculdade n ã o era b o a, m as foi um a experiência in teressante.
Você ficou quanto tempo láf Fiquei de 1969 a 1971, dois an o s e meio — saí um a n o antes d o golpe. Lá tentei fazer um tra b a lh o b o m , repetindo o nosso tra b a lh o daq u i, de trazer os franceses. E consegui: foram a o Chile o Alain G rosrichard , a C laude Imbert, o [Gerard] Lebrun. Aí, ahás p o r insistência do L ebrun, resolvi voltar à França, e c o n tin u a r a tese que eu tinha c o m eç ad o no início dos an o s 60. Fui de navio, po rq u e tinha m u ito m edo de avião (ainda tenho, m as m enos; esse m e d o me levou aliás a conhecer m uitos lu gares na A mérica espanhola). N a França, n ã o tinha em prego nem bolsa, m a s co m o d isp u n h a de algum as reservas, fui ficando. M a s tinha de voltar a o Chile, o nd e era professor. Consegui p ro lo n g a r um p o u c o a estada, graças a algu m as centenas de dólares q u e tom ei em p re sta d o de m eu irm ã o biólogo que vive nos E stados Unidos. Aí veio o golpe no Chile. M u ito felizmente, a m inha volta ao Chile só estava p r o g r a m a d a p ara uns cinco meses depois. Fiquei na França sem em prego, sem bolsa, sem nada. Acabei a r r a n ja n d o u m a coisinha em Paris VIIL que então era Vincennes, e fui fazendo carreira lá: comecei a escrever e publicar, passei m in h a prim eira tese (em Paris 1). A viagem ã E u ro p a acelerou o final de um c a sa m en to que já estava te rm in an d o ; aos poucos, as coisas e n tra ra m nos eixos. H avia ainda alguns p ro b le mas, um resto de p roblem as de co m p etiçã o com alguns personagens que a p a re c e r a m p o r lá, m as não vou e n tra r aq ui nesses detalhes. £ como você se inseriu no panorama do debate francês da década de 1970í Bem, o debate nosso co m os franceses se inicia com a história do Althusser, que no com eço dos an o s 60 com eçara a publicar os seus artigos — épi)ca em que, co m o disse, estava na França, o nd e estava ta m b é m o M ichael Lòwy (um dia ele o r g a n i zou até um a conversa de nós dois com Althusser). E o althusserismo me serviu m uito bem co m o objeto da crítica: de um certo m o d o , avancei em m atéria de dialética, co m o m uitos de nós, fazendo críticas ao Althusser, cujo p en s am e n to , e m b o ra n o to ria m en te erra d o , era bem articulado. E, co m o as críticas q u e se faziam n o r m a l m ente eram m uito ruins, ap arecia co m o u m desafio criticar direito. Essa foi a n o s sa form ação: o discurso do enten d im en to , co n tra o q u al escrevíam os, nos prestou um serviço. O que sobrou d o althusserism o foi m u ito pouco; o fato é qu e, a meu ver, a m elhor crítica d o althusserism o foi a nossa, aqui no Brasil. Até o n d e eu c o nheço, n ã o há país n e n h u m que tenha feito m e lh o r — algo de que os franceses n ão têm consciência.
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o “nosso” a i se refere a você e a quem mais? Bem, teve m uita gente boa qu e contribuiu: filósofos, econ om istas etc. N ã o existe u m a unidade, mas houve to d o um m o vim ento co m u m . E, sem falsa m odéstia, ac ho q u e acertam os. M a s a o m esm o te m p o é preciso reiativizar a im p o rtâ n cia disso: c um negócio lógico, n ã o sei se vai m uito longe. É m uito bom a gente ter um c a m p o lim itado de problem as, enfrentá-los e d a r soluções, m as não adian ta ac h a r que com ab strações objetivas etc. vai-se resolver p ro blem as substantivos. A o to p a r com o althu sserism o, que tem Espinosa e L acan no meio, nós e n fre n ta m o s um a form a com plicada de estruturalism o, o que foi im portante. O Paulo Arantes até fala, talvez e x a g e ra n d o um p o uco, que foi no m o m e n to da discussão com o Rancière q u e se inverteu a nossa relação com os franceses, a partir daí teríam os co m eç ad o a discu tir com eles, em vez de a p e n as dizer am ém . E, de fato, nisso a gente era mais forte. M as, voltando à França em 1972, q u a n d o cheguei lá, n ão tinha um a tese p r o n ta. Fiquei ju n ta n d o papéis, tinha papéis p o r tod o s os lados, n ão fechava nad a , n ão sabia co m o ia fechar, a m in h a vida intelectual era um caos, m as já existia. De certo m o d o , n u n ca fiz tese: fiz trab a lhos, um m o n te de trab a lhos. Nessa ép oc a, c o n d e n a d o a ficar na França por causa do golpe n o Chile, me d isp u n h a a tr a b a lh a r n u m hotel, o n d e estava h o sp e d a d o — em férias — o meu irm ão “ a m e r ic a n o ” , e ele dis se: “ Se você vai a r r a n ja r em p re g o aqu i, deixa eu ir e m b o r a ” . M a s nesse m o m e n to o meu am igo Michael Lõw y, que estava em Paris VIIL m e inform ou qu e estavam oferecendo um d inh e iro filantrópico aos exilados chilenos, p o r um an o , em socio logia. “ Você q u er q u e eu p o n h a teu no m e aí no m e io ?” Eu disse: “ Põe a í ” . E entrei n u m esquem a desse tipo. Depois, consegui passar p ara a filosofia, os o u tr o s foram cada um para um lado. M ais tarde defendi m inha tese em Paris I. M a s só em 1988 eu passaria a tese grande, ta m b ém com o Desanti, e de novo em Paris L .Vlais ta rd e fui qualificado e n o m e a d o maître de conférences, em Paris VIII*. Recentemente consegui ser qualificado para um cargo de professor “ A ” , coisa m u ito difícil, principalm ente p ara q u em nasceu no estrangeiro. Só que eu te nho de p restar concu rso, e sou malvisto no m eu D e p a rta m e n to de Paris VIII, p o rq u e, d e pois de com eç ar a ser aceito pelo establishment, topei um a briga com o g auchism o, c o m o carreirism o da direção d o D e p a rta m e n to , e fui dizendo o que pensava d a quilo. M e indispus com um m onte de gente (detalhe, essa gente é em geral c o o p tad a pela direção). Bem, o fato é q u e agora devo prestar concurso, em ju n h o de 2 0 0 0 , e provavelm ente eles vão me c o r ta r a cabeça, e m b o ra eu seja o c a n d id a to natural. Desde o princípio, eu fui refratário a o g auchism o francês universitário, a essa coisa d o Nietzsche ícone, a essa história de filosofia a n tinorm aliza dora . T u d o isso é u m a ilusão. É claro que há m uitos nietzscheanos inteligentes, que o Nietzsche não foi naz ista..., mas nunca tive afinidade com essa gente. Fiquei fazendo m eu tr a b a lho: d a n d o m inhas aulas, estu d a n d o M a r x e Hegel, fazendo história da filosofia com os alunos, e a o m esm o te m p o p ensand o os meus problem as. Isso ta m b é m me dei x ou q u e im ad o no D e p a rta m e n to , po rqu e eu fiquei conhecido co m o historiador da filosofia — coisa que p o r sinal n ão sou — , e alguns deles consideram fazer história da filosofia um a coisa mais ou m enos suspeita... Eles são “ gente p ara a frente” , n ão fazem história da filosofia. A m inha situação se to rn o u quase insustentável lá d e n tro, q u a n d o comecei a dizer o que pensava daquilo. Lá há um pessoal de 68 que entrou
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só porqu e era maoísta, gente que não tem n enhu m a com petência em filosofia. E existe a demagogia de que isso é “ livre” , “específico” , “não no rm aliza d o ” . Entendem? Estou até p r e p a ra n d o um livrinho sobre isso tu d o , que só na pior das hipóteses será m ero acerto de contas, na m elhor, microssociologia crítica. V am os ver no que vai dar. H o u v e m anifestos co n tra mim p o r p arte d o secretário, cartões de semi-ameaça na saída das aulas, acabei sendo c a n d id a to (kamikaze) a diretor, e me envolvi ca d a vez mais nessa guerra, que é u m a guerra m u ito mais c o n tra o carreirism o do que co n tra q u alq u er ou tra coisa, m as m uitos trotskistas boico taram as m in has aulas p o r eu não ser considerado “ politicamente seguro” ... Enfim, aprendi um pouquinho! A prendi p rincipalm en te o g rau a g u d o de d ec o m p o sição de um a certa ex tre m a es q u erd a . Aliás, diga-se de passagem q u e a gente, aqui n o Brasil, com ete u m uitos e r ros em 1968, mas n u n ca fizemos o que eles fizeram lá, co m o , p o r exem p lo, colocar ativistas na universidade, a c h a n d o que isso é positivo. A pesar de ter havido gente boa p o r lá (gente de qu em discordo, e qu e é objetivam ente responsável pelo que aconteceu — mas n ão subjetivamente — [François] Chãtelet, |Gilles| Deleuze, [JeanFrançois] L yotard), o fato é q u e eles e n tra ra m nessa de criticar cegam ente a idéia de com petência, de ir sem mais c o n tra to d a sorte de establishment, d e ix a n d o e n tr a r lá d e n tro to d o tipo de gente. Eu digo a vocês: aq u i eu tive de en fren ta r m uita co m p etiçã o, a barra era m u ito pesada, m u ito pesada m esm o, m as havia u m fio que ligava a certas exigências de nível. E n q u a n to lá, no m e lh o r d o s casos, o nível é in diferente p ara eles, e m uitas vezes q u e m te m b o m nível é suspeito, é ac u sa d o de “ p ro d u tiv is m o ” ... São m o vim entos de m ic robu ro c ra cia s locais a p o iad a s em g a u chistas o u ex-gauchistas — com p r o lo n g a m e n to s internacionais — , m as que não têm n a d a ou têm p o u c o a ver c o m o capital, nem c o m a social-dem ocracia, nem estritam ente c o m o “ sta lin ism o ” (digo isso p o r q u e um a certa esquerda só conhece esses três fantasm as, a p artir d o que to d o s os “e r r o s ” p o d e m ser explicados, e fora d o que tu d o na esq u erd a seria u m a m aravilha); são m o vim entos de defesa de inte resses b uro crático-populistas, em n o m e de um a pseudo-luta co n tra a “ n o rm a liz a ç ã o ” . Um o u tr o erro c o m u m e perigoso é s u p o r q u e essas coisas n ã o têm im p o r tância. Elas são m uito mais im po rta n tes d o que se supõe. Espero desmistificar tu d o isso em d etalhe, em o u tr o lugar.
Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Como você vê as re lações entre a filosofia e a cultura brasileira? É com plicado! Eu ac h o que ela pra tic a m e n te não existia até os an o s 60: tínha m os as velhas gerações com alguns sujeitos inteligentes, m as era m u ito p o u co . Depois houve um form idável crescim ento: um país em que quase n ã o havia filósofos, tem hoje não sei q u a n to s filósofos capazes, n o sentido de profissionais da filosofia. Deve ter uns duzento s, trezentos, o qu e é u m salto incrível. É m u ito m enos d o que tem um país c o m o a França, o nde deve haver alguns milhares de professores de filoso fia com petentes, m as os m elhores d aq u i n ã o são piores do q u e os de lá, e isso é for midável. A gora, resta saber o que tal coisa significa p a r a o país, o que é um pouco difícil de julgar p ara quem está fora. Isso já representou algum papel, e p o d erá re p rese n tar mais no futu ro . M a s há uma distância entre a seriedade universitária e a p articip a çã o na vida do país; a particip a çã o n ã o se faz facilmente.
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A cho que deveria haver um a dupla form ação. A gente tem esse D e p a r t a m e n to, excelente, e eu espero que ele dure, m esm o n ão te n do recursos e es ta n d o n u m a situação terrível — n ão sei há q u a n to s an o s n ão c o n tra ta ninguém . Q u e r dizer, a prim eira coisa a exigir desse governo é q u e g a r a n ta a universidade, que as univer sidades sérias existam; isso é um m ínim o. E n ão é pou ca coisa: u m a universidade cujos d e p a r ta m e n to s não são piores d o que um bom d e p a r ta m e n to europeu. M a s a meu ver deveria ser gara n tid a u m a d u p la fo rm a çã o , p o rq u e os filósofos a p r e n dem a pensar, ier etc. etc., m as n ão têm u m objeto. Eles p o d em fazer história da filosofia, m as deveriam ter um objeto. A inda que q u eira m ser filósofos, precisam de um a o u tr a fo rm ação. O ideal seria filosofia e mais q u a lq u e r coisa: p o d e ser filo sofia e arte, filosofia e física etc. E, no e n tan to , atualm ente é impossível a gente fazer dois cursos na USP: você é o b rig ad o a fazer um cu rso fora. O s filósofos pensam muito m elhor do que os outros, mas sabem pouco; eles têm dificuldade para se mover em m atéria de história, p o r ex em plo . E isso vale p ara o professor, ta m b é m . Vem o pessoal de fora do D e p a rta m e n to de Filosofia, m u ito mais in fo rm ad o , e fica visí vel, c o n v e rsan d o co m eles, que é preciso cru z ar as du as coisas. Sem isso, torna-se difícil p articipa r da vida do país, da c u ltu ra do país; eles serão ape nas especialistas.
Cruzar também com a ecommtia? O u com a ec o nom ia, ou co m a história, ou com a arte. D á p ara cruz ar com p r a ti ca m e n te tu d o ; não tem coisa que você n ã o cruze com filosofia. Parece q u e há hoje alguns projetos de d u p lo currículo; isto seria essencial, para a gente evitar o tipo de fo rm a çã o francesa, em que o sujeito é m u ito bom técnico em filosofia, mas, q u a n d o se mete a falar de o u tra s coisas, em geral o resultado n ão é b o m , pois n ã o se fo rm o u bem — salvo alguns casos isolados. Creio que o m odelo alem ã o , em que você tem de fazer du as form ações, é m elhor. É claro que aí depend e m u ito dos a lu nos: n u m a tu rm a fraca, não se chega a lugar algum , p o rq u e n ã o se sabe nem filo sofia nem coisa alg um a; já p a r a os bons é e x tra o rd in á rio . Isto é um a espécie de co ndiçã o p a r a os filósofos n ã o virarem m eros técnicos d o p en sam e n to , gente que pensa co m o ninguém , que sabe ler co m o ninguém , m as que só faz isso. Eu fra n ca mente n ão tenho um entusiasm o excessivo com a história da filosofia; tem que entrar e sair dela. M as, enfim , trata-se de um a opção.
Que conceito(s) de sua reflexão você destacaria como mais represetttativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que você nos contasse como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje. Bom, o m eu objeto é a dialética. T rabalh ei M a r x , Hegel, [T he odor W.] A d o rn o , e atualm ente , se tivesse te m p o , tra b a lh a ria mais a fu n d o a filosofia antiga — fiz um esforço para a p re n d e r um p o u co de grego. M a s digam os que o meu objeto filosó fico é a dialética, e dela eu tiro a idéia de crítica. Está no centro da m inha reflexão a n oção de interversão, a d o m o v im en to de u m a coisa que passa no seu c o ntrá rio: é um a categoria crítica essencial, inclusive na política. U ltim am e n te estou m u ito d o m in a d o pela idéia das ex tre m as e squerdas que se intervertem em ex tre m as direi tas. .Adorno sabe disso. N o século X X , eu não vejo quem saiba além d o .Adorno; fWalterI Benjamin n ã o sabia, [Georg] I.ukács ta m b é m n ã o sabia direito.
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Enfim, o m eu objeto é s o b retu d o a dialética, e isto implica um interesse grande p o r lógica, n o sentido da herança do idealismo alemão. T e n h o inclusive projetos para fazer coisas em lógica, p o rém estão sempre d ep e n d en d o de tr a b a lh a r m uito mais a lógica formal. Aliás, p ara desenvolver os m eus projetos vou te r que limitar os cursos, e neste sentido me aposentar é um a boa coisa^. Talvez a m inha degola na universidade tenha o papel de liberar tempo. Porque n ão dá para trabalhar d an d o aula o an o inteiro. Por o u tr o lado eu te n ho interesse ta m b é m p o r política — política n o sentido mais am plo, que ab ra n g e filosofia da história, filosofia política, ética etc. O su b títu lo da m inha primeira série de livros — lógica e politica — , e m b o ra só co rresp o n d a em parte a o que apresentei até aqui, dá con ta do meu projeto, no sentido de que eu funciono da lógica p ara a política, nesse ca m in h o e n c o n tr a n d o a história da filoso fia, ou a filosofia geral. A estética ficou um p o u co para trás, m as acho que ela é m u ito im p o rta n te. Eu tenho bastante interesse p o r arte, m as esse é um aspecto que de certo m o d o pus entre parênteses e tento ver o que dá p ara fazer. M e sm o p o rq u e, na m e dida em que estudei m uito a trad ição d o m arxism o , preciso levar em conta a estéti ca, pois o m a rx ism o que deu certo no século X X é o m a rx ism o dos estetas, por r a zões que a gente teria de estudar. Deu certo onde menos se poderia imaginar: enqu anto os fu ndadores n ão enten dia m n a d a disso, ou m uito p ouco, de repente sai um Ben jamin, um A d o rn o , um Lukács.
A sua obra está inextrincavelmente ligada ao pensamento de Marx. É nesse contexto que você muitas vezes define o seu projeto teórico como um projeto de “reconstituição do sentido da dialética”. O que você entende por essa expressão e como ela se ligaria à idéia de uma lógica dialética, que está presente no subtítulo do seu livro Sobre o conceito de capital: idéia de u m a lógica dialética? Prim eiro observo: você falou em obra. N ã o te n ho o b r a (feita). Só “ o b r a ” , em devir. Bom, eu diria hoje que a lógica dialética é a p e n as um a p arte do qu e eu estava fazendo, u m pedaço. Essa reconstituição da dialética é apenas u m aspecto d o p r o jeto que vai d a r nos tais q u a tro tom os. O terceiro já está praticam ente p ro n to , mas vou ter que c o stu ra r um p ouco, p o rq u e tem ta m b é m a série que eu comecei sobre a dialética m a rxista e a dialética hegeliana, que é a m esm a coisa de um o u tr o jeito; no final serão u m as du as mil páginas distribuídas n uns seis livros. Porém o meu projeto n ã o é só esse. Estou m uito interessado (ou ape n as ag o ra os assumi de um a m aneira direta) pelos problem as de filosofia política e de filosofia da história. Q u ero saber o que aconteceu do século XVIII até hoje, estou lendo tu d o o que posso ler da Revo lução Francesa p ara cá, m as com um interesse essencialmente político, e n ã o filosófico. O meu o b je to principal aí é a te oria social, é a história — saber o que quer dizer essa história. Vou levar adiante os dois projetos. O lado político estava m uito p eque no e eu preciso desenvolvê-lo melhor. Fiz esse livrinho de lógica e te o ria da dialética, mas p ara d a r um salto tem m uito tr a b a lh o a fazer. Sc eu viver uns bons anos, quem sabe faço tu d o isso! -Mas ag o ra estou mais co n c e n tra d o n o o u tro projeto, estou to m a n d o um b an h o de história. Acabei de fazer um a conferência sobre totalitarism o, e vai sair ta m b ém um texto, que para um filósofo que n ã o sabia nada de história talvez n ã o seja m uito mau.
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E o Brasil no seu trabalho? O Brasil está longe, m u ito longe! Para chegar até o Brasil há m uita coisa pelo meio. T e n h o a im pressão de que n ão vou chegar lá. £ u estou m u ito v olta do p ara a histó ria geral c o n te m p o r â n e a p ara os m o n stro s d o século X X , estou m uito interessado nessa coisa d o co m u n ism o , que sem pre me interessou, e ag o ra no nazismo. De um m o d o geral, q u e r o p en sar o sentido das form as sociais d o século. A cho que a es q u erd a vive n u m a c onfusã o total, n u m a v erdadeira salada. U m a p arte dela e m b a r ca na c a n o a da direita, sendo o caso [Fernan do H enrique] C a rd o s o bem típico: é um a coisa errad a fazer as alianças que fez. Espero que um a p arte desses que e n tra ra m nessa c a n o a se te n h a d a d o co n ta d o q u e é isso. Eu, felizmente, n ã o entrei nes sa c a n o a de jeito n e n h u m , m e sm o p o rq u e con h e ço o h o m e m e sabia mais ou m e nos a o n d e ia d ar essa sua Realpolitik. O o u tr o risco é da extrem a esqu erda, risco real de cair n u m regim e totalitário. Enfim, pensar as referências da esquerda é u r gente, e essencial p ara to d o m u n d o , p ara que se possa fazer u m a crítica consistente d o neoliberalismo. .Alguns fazem essa crítica, mas as referências de leitura — a q u i lo a partir de que se julga — m e sm o entre os melhores, n ão são a m eu ver, suficien tem ente criticadas. Eu penso nos meus amigos: o meu am igo [Roberto) Schvvarz, o meu am igo Paulo A rantes. São am igos que fazem coisas m u ito boas, m as em geral eles pen sam a p artir d o M a rx , de m an eira crítica sem d úv ida, mas n ã o suficiente m ente crítica. H á dois perigos: a direita g a n h a r e a esquerda (atual) g an har. São dois peri gos reais: se a esquerda g a n h a r tal co m o ela se e n c o n tra , n ã o sei o que p o de o c o r rer. Q u e r dizer, eu ac ho que tem que haver u m a g ran d e reflexão sobre o que é a esqu erda, senão a gente não sai dessa massa confusa de m a rx ism o , bolchevism o e alguns elem entos de stalinismo qu e serve c o m o evidência para a esquerda. A migos meus, co m o p ud e perceber n u m a conversa com o A rantes o u tr o dia, tendem a d i zer (ecleticamente) que a gente tira de uns e de o u tr o s (digo, em geral) as coisas que interessam p ara o Brasil. O ra , esta n ã o é a solução. Tem que se pensar claro e s a ber bem o q u e a gente quer, senão isso ac a b a d a n d o n u m a espécie de lógica de ativista, q u a n d o a nossa função, a função d o intelectual, seria e x a ta m en te re p e n sar. E ntão estou te n ta n d o repen sar a história d o socialismo, rep ensar criticam ente essa história, to m a r posição diante de pro b lem as do início d o século p ara refletir sobre o que se tem hoje. O que a gente vai fazer? Vai a p o ia r o alto c o m a n d o ale mão? Vai ser derrotista? Resolver tod a s essas questões é essencial.
Está falando da primeira guerra? Sim, da prim eira guerra. É essencial saber o que é tu d o isso. O “ renegado [Karl] K a u ts k y ” era renegado m esmo? O que era e x a ta m e n te o bolchevismo? E assim por diante. Eu fiz conferências no Rio de J a n eiro e em C uritiba e fiquei um p o u co as su stad o com o público: o do P aran á , p o r exem plo, parecia m u ito influenciado pe las coisas d o R o b e rt Kurz, que eu ac ho horríveis, desastrosas. T u d o bem; vam os trad u z ir e publicar o Kurz. M a s é u m a con fu sã o que se junta ã con fu sã o geral, e o resultad o é péssimo. A esquerda tem grandes possibilidades neste país, tem gente m u ito boa, mas é preciso levar a sério (isto é, sentir um frio na espinha) q u a n d o entre os m e m b ro s da coligação de esquerda tem gente que fala bem da C hina e diz
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que o T ib et é p r o v o ca ção imperialista. C o m relação aos p ro b le m a s da E u ro p a , não se sabe nad a ; há um esquem a tism o total em relação a eles, inclusive p o r falta de inform ação . Este, aliás, é ta m b é m um fator: o que se lê nos jornais brasileiros n ão basta. Se o sujeito 1er só a Folha, o Estado e o Jornal do Brasil, ele n ã o tem elem en tos suficientes. Enfim, acho que se teria de enfren ta r esses pro b lem as to d o s e n ão to m a r — co m o até os m elhores to m a m — esses livros clássicos co m o livros s a g ra dos, co m o hvros que n ã o se tocam .
Como você articula as duas vertentes do seu trabalho? São d u as coisas u m p o u co diferentes, e vastas demais. E videntem ente q u a n d o eu me po n h o a 1er o nazismo e o stalinismo, ou o que for, não fico pensando em dialética, m as a dialética aparece de repente. T e n h o um m ode lo de p en s am e n to p ara a polí tica, que é m uito ca lcado na dialética. M as é curioso co m o ela foi tra ta d a na t r a d i çã o política: freqüentem ente se ataca a dialética, to d o o m u n d o a critica. H a n n a h A rendt, [Edouard] Bernstein ta m b ém . A dialética é a culpada de tudo. H á um m a l e n ten d id o total. Acho que vou a c a b a r fazendo, se p ud er, u m a espécie de filosofia da história, um a teoria da história. N ã o sou historiador, e nem vou ser, m as estou t o m a n d o um b a n h o de história. N ã o sei tr a b a lh a r c o m arquivos, e acho q u e não é isso que g o s taria de fazer. T a m b é m não sou e.xatamente sociólogo. De form a que o resultado vai a c a b a r sendo filosofia, ape sa r de a lógica n ão estar presente im ediatam ente. O tr a b a lh o de e lab o raç ão da dialética exigiria um a o u tr a vertente, um g r a n de tra b a lh o sobre lógicos, sobre as diferentes correntes etc. V am os ver o q ue dá para fazer. Eu estou com 64 an o s m as em plena atividade,. Tentei até a p re n d e r russo, m as tive qu e p ara r, p o rq u e é m uito. Pelo m en os te n h o mais ou m enos claros os objetivos, e estou co n tente em te r d a d o essa virada, p o rq u e, e m b o ra a elab o raç ão lógica seja boa, estava sacrificando m u ito um aspecto pelo qual eu te n h o um g r a n de interesse, e sobre o qual só ia 1er na h o ra de folga. A dificuldade em en fren tar esses prob lem as de crítica política me a tra p alh a v a u m pouco as leituras: se você não se dispuser a fazer a crítica, se n ã o tiver algum as idéias críticas, você n ão vai reler M a rx , e m enos ainda Lênin (que é ou tra coisa). M as é preciso 1er. Ler um livro com o o Renegado Kautsky, p o r exemplo, que m ostra — sem q uerer — a ideologia de u m a sociedade totalitária nascente, a sociedade burocrática. É o que te nho feito: estou relendo o Lefort, que c onhe ço há m u ito tem po; relendo [Cornélius] Castoriadis. A H a n n a h A rend t estou em parte lendo, em p arte relendo — já que esses livros que falam de to talitarism o, em geral a gente n ã o tocava; e estou lendo historiadores, um a gente interessantíssima que se conhece p o uco, e cuja leitura é urgente. É claro qu e em relação a to d o s eles eu m a n te n h o u m a p ostura crítica, m as uso-a com m u i ta prudência, p o rq u e conh eço p o u co o terreno.
Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade? Para mim tal relação é estreita: eu e n tro e saio da filosofia, n u n ca sei se estou d e n tro o u se estou fora, e ac h o que isto é essencial, pois se tivesse virado h istoriador,
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teria perdido m uita coisa. Ao m esm o te m p o o que faço n ão é n un ca, d igam os, filo sofia “ p u r a ” . E m b o ra passe p o r aí, co m o n u m a espécie de dialética negativa, estou sem pre no limite, no limite da teoria social, no limite da história, no limite da p r ó pria filosofia. A gora, u m a o u tr a coisa, na qual estou a tra s a d o m as que é essencial, mais essencial até q u e a estética, é a psicanálise. É algo em que investi p o u co e que me faz falta, pois p ara pensar essas coisas todas, para e nfrenta r os pro b lem as do indivíduo, que são inevitáveis, é necessário tra b a lh a r com um certo n ú m e ro de c a tegorias psicológicas o u psicanalíticas, senão o esquem a fica fro u x o demais. É algo qu e ainda vou fazer, se tiver t e m p o \
Você enunciou o ideal pedagógico do filósofo ligado a pelo menos uma ciência, em particular uma ciência humana. Agora a impressão que se tem é a de que você quer mais do que uma ciência humana, ou de que é necessário mais do que uma ciência... N ã o , aí a q u es tão é mais de ver quais as mais próxim as. E ce rtam ente n ã o é a eco nom ia. Eu me pus a fazer teoria d o Capital, m as isso tem p o u co a ver com e c o n o mia. Em ec ono m ia inclusive eu estou a tra sa d o , até p o rq u e cansei um p o u c o de te n ta r e s tu d a r ec o n o m ia , co m o se fosse a b s o lu ta m e n te f u n d am e n tal. Sem d úvida é im p o rta n te saber econom ia, mas hoje eu acho que há um p o u co de mitificação dela. Afinal, tem muita coisa além — ou aq uém — da econom ia que os filósofos poderiam aprender facilmente e que n ão aprendem , o que faz com que a econom ia acabe sendo um a barreira. Em geral a alternativa é filosofia ou econom ia: ou se pensa os direi tos d o ho m e m , a ética, a m oral etc. etc., o que n ão deixa de ser útil, o u se pensa o capital, o m ovim ento do capital etc. Já a política, a despeito de haver os politólogos, os cientistas políticos, fica em geral um p o u co a b a n d o n a d a . Q u a n d o o essencial, a meu ver, está justam ente na política: se quiserm os o b te r respostas para questões políticas, n ão é a filosofia que vai dar, nem a ec on om ia, mas a p róp ria política. É preciso repensar criticam ente a história política d o século X X .
Você considera que de fato o século X X foi breve? Li o livro d o H obsbavvn e gostei. A gora, se foi breve? C om eça em 1914 e term ina na queda d o m uro? Acho qu e aí o breve é mais um a q u e s tã o das referências t o m a d a s pelo a u to r. O im p o rta n te , no século X X , são as novidades. H á pelo m e nos du as form as novas, m o n stru o sa s, qu e exigem um a teoria da história d iferen te, e que a o m esm o tem po, se n ã o for cinism o dizê-lo, são “ bo as p ara p e n s a r ” , na m edida em q u e com p reend ê-las é um desafio que n ã o p ode ser resolvido co m as teorias clássicas. C-omo pen sar, p o r e x e m p lo , nazism o e, na falta de um te rm o m elhor, a sociedade b u rocrática? N ã o dá p ara fazê-lo a p artir d o M a rx , c o m o se qu er fazer. É claro que .Marx e o m a rx ism o são referências fu n d a m e n ta is p ara pensar o capitalism o, e m esm o o capitalism o de hoje, m as n ã o é possível dizer que o m arxism o é agora mais verdadeiro do que era, co m o quer o meu am igo Schwarz. A inda que de fato o capitalism o tenha a d q u irid o mais un id a d e d o que tinha a n tes, e que, neste sentido, o esqu em a d o M a r x apa reça co m o m u ito rico, é igual m ente certo que a p a rece ra m coisas que o M a rx n ã o conhecia (pior que isto, que ele conhecia co m o idéia, mas cuja possibilidade excluía). Eu penso até que seria
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im p o r ta n te reler a p arte política d o M a r x , coisa q u e nós aqu i não fizemos, c o n c e n tra d o s qu e estáv a m o s na leitura d ’0 capital: o m a rx ism o usp ia n o foi m uito p o u c o p o lítico, e isto é algo q u e te m de ser c o r r ig id o . D o s no sso s a m ig o s, o M ichael L òw y foi alguém qu e se d edicou a isso, m as ain d a há m u ito p o r fazer, e eu estou te n ta n d o av a n ç a r nesta direção, a despeito da massa de textos: se a leitu ra da p arte lógica é intensiva, a da p arte política é extensiva. M a s ac ho que seria o caso de pegar três ou q u a t r o meses de férias e te n ta r c o m p le ta r a leitura dos q u a r e n ta volum es d o M a r x em alem ão. E um a coisa que fica mais o u m e n o s evi dente q u a n d o se faz essa leitura e o q u a n t o m u d a a política d o m a rx ism o dos anos 1850 p ara o m a rx ism o dos a n o s 1880 e 90 — o velho Engels tem coisas m u ito boas. A pesar de haver um a o u o u tr a d erra p a g e m , o fato é que eles com eç am a p ensar de u m o u tr o jeito, e se esboça um n ovo esquem a em que apa rece a idéia de um a passagem pacífica p ara o caso de u m n ú m e ro m a io r de países. H á t a m bém a idéia de um a g u erra em que as forças revolucionárias vão a c a b a r viran d o a m esa, e p o r ta n t o um a idéia ain d a v olta da co n tra a legalidade, m as de q u a lq u e r m a n e ira já se percebe u m n ovo estilo de p en s am e n to ; um esquem a que revaloriza o sufrágio universal, e no qu al a fam osa d ita d u r a d o p ro le ta ria d o é definida (por Engels) n ã o ape nas c o m o n asce n d o na república d em o crática , mas ta m b é m co m o t e n d o nesta sua form a política. (Lembre-se entre parênteses que o Lênin n ão c o n seguiu ler esse te x to de Engels; o texto aparece e s ca m o tea d o e v iolentado no Esta do e a Revolução.) Enfim, e m b o ra o m a rx ism o possa ter to d o s os defeitos q u e a gente p ode im aginar, ele é notável e n q u a n to m o m e n to da história d o p e n s a m e n to e d a teoria social, e é c e rtam e n te um a te oria m u ito m enos a u to ritá r ia d o que os esquem as socialistas mais antigos; — algo que fica claro na série de livros de D r a per c h a m a d a Karl Marx's theory o f revolution, que pouca gente lê mas é f u n d a m ental. E n q u a n to a trad ição socialista era m uito ditatorial e violenta, o m a rx ism o é melhor: o p r ó p rio Manifesto já tem a a u to d e te rm in a ç ã o d o p ro le ta ria d o , e o úl tim o M a r x é bem razoável. Infelizmente, p o ré m , m e sm o as m u d a n ç a s n o p en s a m e n to m arx ista n ão consegu iram evitar que os bolchevistas pegassem a parte pior. M as, enfim , o fato é que passam a haver dois abism os diante d o m arxism o: cair no totalitarism o, que é o c a m in h o da extrem a esquerda, ou cair na política c o n servadora, que é o ca m in h o de um a certa social-dem ocracia — posições represen ta d as respectivamente pelo bolchevism o e pelo pac to de ago sto de 1914 (em que são vo tados os créditos de guerra), du as catástrofes q u e passam a constitu ir co m o que os dois pecados originais d o socialismo d o século X X . A p artir de então, esta m os c a rre g a n d o um fard o nas costas, e e n q u a n to n ã o tira rm o s esse peso da cabeça n ã o conseguirem os avançar. P o rta n to é preciso e s tu d a r m u ito bem o bolchevismo e o stalinismo, p o r um lado, e a social-dem ocracia, p o r o u tro . E preciso saber que n ã o foram tod o s que a d e rira m a o pacto; saber q u e houve u m a revolução alem ã em 1918, quase desconhecida, e que foi a única revolução n u m país capitalista a v a n çado; saber que havia um p a r tid o social-d em ocrata in de pende nte — um p artid o imenso — nos an o s 20, incluindo K autsky, Bernstein, Rosa L ux em b u rg o . Enfim, há aí duas feridas, e ac ho que tem de se p ô r o d ed o nelas: a ferida de um a certa social-dem ocracia que d e rra p a ã direita, d a qual o caso C a rd o s o é ã sua m a n eira representativo; e a ferida da ex tre m a esquerda que vira ex tre m a direita — nos dois
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casos, p o r ta n to , a esquerd a indo p a r a r na direita. Além desses dois c a m inho s, há o do socialismo dem o crático, que tem de ser definido, pensado.
Nesse contexto, como você avalia a idéia de uma democracia radical no interior do Estado democrático de direito? Eu acho que é p o r aí. M as a longo p razo nós tem os de pensar em enfrenta r o capi tal. \ ã o creio que se tenha de e nfrenta r a m e rc adoria ou o fato de haver m ercado, incorrendo nessa espécie de “ fetichismo do fetichismo da m ercadoria” em que muitos caem p o r falta de c o m p re en sã o d o que e preciso fazer (e d o q u e significa o tema d o fetichismo).
Você está pensando a í nos “seus amigos”? Sim, em p arte os meus amigos. H á ta m b é m o u tros, que separo dos meus am igos. Por outro lado, não sou indulgente em relação à escorregada na canoa d o cardosismo, que para m im é um a coisa lamentável, um eng a n o terrível. O m ínim o que um su jeito de esquerda tem de saber é que você não p ode acreditar n u m a aliança com o .ACM. n ã o p ode aceitar esquem as de c o r r u p ç ã o , n ã o pode aceitar que se tolere a c o m p ra de d e p u ta d o s p ara p o d er se reeleger etc. Senão está tu d o perdido! •Mas. v o lta n d o à q u estão da dem ocracia radical, eu ac h o que a gente tem que fazer um acerto de con tas com o capital, algum tipo de acerto de con tas com esse mcmstro que é o capital. A penas n ão sabem os ao certo, ainda, co m o fazê-lo. N ã o é estatiza n d o tudo, p ode haver algum sistema de cooperativas; e ta m b é m não é algo p ara a m a n h ã . M as, ain d a que o projeto de p a ra r o c a rro do capital seja um p o u c o utópico, é essencial pensar n u m a sociedade m uito mais dem ocrática , co m form as econôm icas variadas. É preciso a c ab a r com a idéia de fim d o E stado; é preciso a c a b a r com a idéia de fim da p ro p rie d ad e privada; mas n ão co m a de que os meios de p r o d u ç ã o devem ser de algum m o d o socializados, contro lad o s. A gora, realm ente n ã o p odem os fazer n e n h u m a concessão em m atéria de dem ocracia, p o rq u e se a b r ir m os m ã o da dem ocracia n ão dá para sab er o nde vam os p ara r. Afinal, qual é a li çã o do século? A lição do século é a seguinte: te n taram -se basicam ente d u as fo r m as ditas socialistas — a chinesa e a russa — , e o resultado, em am bas, foram duas coisas: genocídio e capitalism o de volta. Se quiserem te n ta r de novo algo assim, tentem: espero m o r re r antes! A inda que se alegue que eram países a tra sad o s, n ada nos leva a crer que a coisa aconteceu só p o rq u e eram países atrasados. Por o u tr o lado, é preciso so b re tu d o a c a b a r co m a idéia de que a história vai criar a solução. N ó s n ão vam os fazer co m o o senhor Kurz, que vai ficar e sp erando se n tad o o fim do capitalism o! M e c o n ta r a m até que ele a n d o u dizendo que o fim 10 capitalism o ia acontecer no Brasil, e que então ele viria para cá a c o m p a n h a r a (. )isa de perto. E um a coisa maluca! Ele pensa que é o rei persa que vai ver a bata11 a de Salamina! [risos) Eu n ão discuto a possibilidade de acontecerem catástrofes, c<_ no, p o r e.xemplo, um a ca tá stro fe alim e n ta r (aliás, n ã o critico nesse senhor o caiástrofism o , mas a escatologia)“*. Se n ã o ho uver n en h u m planeja m e n to político, n e n h u m a idéia política, as coisas n ão vão c a m in h a r bem. Se n ão houver u m a es q u erd a ca paz de responder a isso tu d o , o capitalism o estou ra na nossa mão; nós vam os sofrer feito ca ch o rro s, e p ode vir algo ain d a pior. Q u e r dizer, esse provi-
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dencialism o histórico, que se reflete nos discípulos de u m a m aneira terrível — há m uitos m e nin os excelentes influenciados pelo K urz — , sim plesm ente n ã o leva a lu g ar n enhu m . Aliás, ta m b é m n ã o creio que as soluções d o [Walter] Benjamin sejam boas, m as isto já é um a o u tra história.
Algumas das linhas que você apresentou pensando na possibilidade de enfrentar o capital me lembram m uito o Castoriadis e A instituição im agin ária d a sociedade. Como você vê essas propostas hoje? D ’i4 instituição m esm a eu n ã o gosto m uito, pois ach o que o C astoriadis fica pior q u a n d o filosofa. M a s em geral eu gosto dem ais d o que ele faz, te n h o u m a dívida grande para com essa gente. A análise que ele faz da sociedade russa no fam oso artigo “ As relações de p ro d u çã o na URSS” , publicado em to rn o de 1948, é u m a coisa genial para a época, e genial para um rap a z de vinte e po u co s anos. E o m esm o vale p ara Lefort, de q u e m me ocupei rec ente m ente n u m te x to para o Jornal de Resenhas. Enfim, a m in h a dívida p ara com o C a sto riadis e o Lefort é m u ito grande. C o m es ses dois e mais o A d o rn o — a política crítica dos franceses mais a teoria crítica d os alemães — pode-se ir m uito longe.
Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda de. Como você se posiciona em relação a esse debate? Eu pensei p o u c o a estética. T e n h o mais um a relação direta — de a m a d o r ou c o n s u m id o r — com a arte , p rincipalm en te c o m a poesia e c o m a m úsica, e, nu m se g u n d o p la no, c o m cinem a e depois com prosa de ficção. (Perm ito-m e c o n ta r o se guinte, e m b o ra seja um a m a d o r: comecei a a p re n d e r p ia n o aos cinco ano s, so b re tu d o im proviso, e e m b o ra n ã o to q u e n a d a dem ais, p e rg u n to se teria sobrevivido sem o piano . Q u a n t o à poesia, logo deve sair meu livrinho de poem as e historietas, dos quais até aqui só publiquei dois. G a r a n t o que n ã o é g r a n d e lite ra tu ra ... N o c a p ítulo d as m in h a s leituras, esqueci de dizer: na adolescência, co m o m uito s m e n i nos da m in h a geração, li a literatura infantil de M o n te ir o L o b a to , alguns dos m e lhores rom ances de M a c h a d o de Assis, e poem as, m uitos poem as, principalm ente D ru m m o n d . D ru m m o n d foi de certo m o d o o nosso educador, o “ H o m e r o ” da nossa geração.) A idéia da d esap a riç ão da arte é um a idéia forte, mas a verdade e que deve ter havido u m a m u d a n ç a de registro, que se define mais negativam ente. A cho que há u m vazio e um es g o tam en to de form as. M a s o fim da arte é u m a idéia-limite, ta l vez um p o u c o co m o o fim da história. C o m relação à leitura das o b ra s de arte, há u m deba te que envolve meus am igos aqui n o Brasil. D esconfio um p o u c o da posi ção deles, m as não p o rq u e ten h a um m atiz sociológico. É claro que e preciso pen sar a arte dentro de um a história social e global, m as eu me p e rg u n to se a mane ra pela qual se faz isto é satisfatória. Parece-me que a leitura que alguns dos melhores teóricos brasileiros da literatura ou d a arte fazem da história é um p o u c o unilate ral. Eles vêem a história do século X X a p e n as c o m o história d o capitalism o. E eu d uvido, e m b o ra n ã o ten h a tr a b a lh a d o direito o assunto, que se possa pensar a his tória da arte o u da literatura n o século X X , te n d o apenas o capital c o m o referên
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cia social, pois há o u tro s elem entos — inclusive im e d ia tam ente políticos e à sua m aneira econôm icos — envolvidos. Em geral, q u a n d o se critica esse tipo de teoria literária ou artística m a rx ista, que no Brasil é de excelente q u alid ade, levantam-se aquelas b analidades de sempre: que a poesia é poesia, que sua essência n ã o está nos elem entos “ e x t e r n o s ’" etc. Eu faria a crítica de o u tr o jeito: p e n s a n d o no tipo de história, inclusive história econô m ica e política, que eles praticam . A história do século X X teria de ser pensada de um o u tr o m o d o , além d o que, de fato, as rela ções entre o m a cro co sm o e o m icrocosm o devem ser m u ito mais comple.xas do que apa rece m a eles. O que constitui um p roblem a n ã o é que o social esteja no centro, pois quem gosta de ler .Adorno sabe que o social n ão é m esm o “ e x t e r n o ” ; o p r o blema está na insuficiência de um a certa m aneira de pensar o social, que se reflete n o que se pensa so bre a literatura e a arte. O p o n to crucial é que n ão é só o capital que está p o r trás das m anifestações artísticas ou literárias d o século X X , que n ão é só o m o v im ento d o capital que as explica. N ã o digo a b an alidad e de q u e há “ o u tros fato res” , digo que o capitalism o n ã o é a única “ in f ra -e stru tu ra ” d o m in a n te no século X X . H o u v e o u tra s coisas no p la n o social mais p ro fu n d o , que aliás tem um a relação m u ito com plicada com o destino d o que era na origem força de luta co n tra o capital. A teoria literária e artística m arxista brasileira, m esm o a melhor, está longe de te r d es ata d o esse nó, que co n tin u a a estar presente. A m elodia dela insiste d e mais n u m a n o ta só; capital, capital, capital. E hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como você vê tal diagnóstico? Na sua visão, a prímazia de que parecem des frutar as questões morais no debate ptiblico atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias? E m bora haja sem d úvida u m a integ ração econôm ica e política (regional ou m u n dial) m u ito m a io r d o que no passado, o E stado N ac io n al subsiste. De resto, o fim eventual d o E stado N ac io n al n ã o é o fim dos E stados — haveria pelo m enos Esta dos plurinacionais co m o seria o caso da E uropa. N a E u ro p a , co m o se sabe, há além disso um d u p lo m o vim ento , centrípeto e centrífugo. .A integração no p la no m und ial é econ ôm ica e política. D o p o n to de vista eco nôm ico, a globalização tem um a formidável força coercitiva, mas ela deixa certa m argem de m a n o b ra s desde que haja vo n ta d e política. Seria preciso saber jogar de maneira a o m esm o te m p o firme e flexível co n tra a m á q u in a g lob alizadora, coisa que poderia ter sido feita no Brasil, c o m o o reconhecem m esm o os p artidários um pLuco h e te ro d o x o s do regime. D o p o n to de vista político, há coisas novas, cuja im oortãn cia n ã o se poderia subestim ar. Surge g ra d a tiv a m e n te um a legalidade in ternacional. Inútil vê-la co m o simples ideologia a serviço destas o u d aquelas fo r ças. H ouve u m a prim eira tentativa de org an iz aç ão m und ial com a Sociedade das N ações, que foi praticam en te inexistente, e depois u m a segunda, c o m a O N U , que é ta m b é m frágil — a O N U já teve c o m o secretário geral um crim inoso de guerra,
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p o r o u tr o lado, ela é utilizada p o r tais o u quais interesses etc. M a s de q u alq u er m aneira, vem o c o rre n d o um a co nstitu ição progressiva de u m a legalidade in te rn a cional, que, a d espeito da sua fragilidade, é um elem ento essencial de um progresso ético-político (e de um a reflexão ético-política. que o ac o m p a n h a ). T em o s de reco nhecer que, e m b o ra coexistindo com coisas terríveis e regressivas, há u m a linha de progresso m o ral que p ode ser percebida, n u m b alanço d o século, e ela n ã o é visível ap e nas n o que foi indicado, m as ta m b é m em realidades co m o a m u d a n ç a do es ta tu to das mulheres, ou dos hom ossexuais. Eu n ão p ensaria, enfim , n u m a história de simples decadência, ou coisas dessa ordem .
Desde m uito cedo você pensou a relação entre humanismo e anti-humanismo. Nesse contexto, como você vê a “vitória” do paradigma dos direitos humanos? Bom, isso é com plicado! A m in h a análise da q u estão se dav a n o interior do m a r xism o, da filosofia m arx ista clássica: eu tentei d a r a fórm ula disso, n u m a estra té gia que consistia basicam ente em r e to rn a r a Hegel e à dialética hegeliana. M a s isso já n ão é um a resposta suficientemente satisfatória, p o rq u e a gente tem a im pressão de que o h u m a n ism o realm ente se valoriza, p o r exem plo, na recusa da violência, recusa que costum a ser associada ao hum anism o. M a s não sei se o term o hum anism o é o m elhor. Ele c o n tém um certo tipo de ilusão em relação a o que seja a n atureza d o h o m e m , e aceitar um a filosofia h u m a n ista significa até certo p o n to en tra r nessa ilusão. Sem dúvida é válido reivindicar o h u m a n ism o , ou certos valores que a ele c o s tu m a m estar associados, m a s d o p o n to de vista filosófico parece-m e que seria im p o rta n te e n c o n tra r um o u tr o conceito, um conceito de o u tr a ordem . De q u a l qu er m o d o , em geral ele vale n u m p lan o prático. A cho que o tra b a lh o das O N G s , por exemplo, e coisas desse tipo, é freqüentemente u m a coisa positiva — insuficiente d o p o n to de vista mais geral e teórico, m as positiva.
Como você caracterizaria a sua relação com a religião e a fé? Bem, eu sou de família judia. O meu pai era um judeu ateu; na família da m inha m ãe eles eram , co m o se c ostum a dizer, judeus de dois dias de sinagoga p o r ano; e eu, q u a n d o pequen o, ia ta m b é m à sinagoga de vez em q u a n d o . Vias n ã o cheguei sequer a fazer o bar mitzvah. Por o u tr o lado, fui e d u c ad o n o M ackenzie, um colé gio de p rotestantes que tinh a um p o u co de religião, e a ética do p ro testan tism o me im pressionou muito. U ma coisa que me m a rc o u bastante foi a exigência ética: "‘N ã o pod e m entir, não p ode fazer o que está e r r a d o ! ” . Eu te nho u m certo tipo de e x i gência m oral que talvez tenha algum a coisa a ver co m o m u n d o d o p rotestan tism o E m b o ra, co m o m enino judeu, eu “ soub esse” que D eus era verdadeiro, m as que Je sus era m entira, aquelas coisas d o p rotestantism o me interessavam e me m arcavam. M a s no final eu ab a n d o n e i tu d o isso — m enos a ética — e n u n ca voltei. A gora, eu tenh o m u ito interesse p o r história religiosa. U m a das g rand es iniuficiências da nossa form a çã o, p o r sinal, é n ão a p re n d erm o s história religiosa, q ue é algo m uito ligado à história da filosofia. E um a b a rb a rid a d e n ã o conhecer isso di reito, n ã o conhecer bem a história do cristianism o, p o r exem plo. Pensan do nisso, com prei um a História da religião, da Pléiade, q ue foi um a das últimas leituras fra n
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cesas antes de vir p ara o Brasil. M a s aí n ã o se tra ta de interesse religioso, e sim his tórico: n ã o há co m o en ten d e r o m u n d o sem en ten d e r história da religião. Só isso. .Mesmo agora , mais velho, q u a n d o a gente com eça a pensar m u ito na m orte — um a s su n to que na v erdade sem pre me obsecou — , n ã o consigo te r q u a lq u e r interesse religioso. Da m esm a form a co m o ta m b ém não te nh o interesse p u ra m e n te nacional: tenh o t a n to h o r ro r a o nacionalism o q u a n to ao fanatism o religioso. Até p o rq u e esse negócio de país com eçou a ficar m istu rado m uito cedo para mim: a família da m inha m ãe é o rigina ria m e nte de judeus da T u rq u ia , vindos da E sp an h a n o século X V ou XVI, e escolarizados em francês; o m eu pai era da E u ro p a central e em igrou p a r a a A rgentina; eu m esm o morei no Chile, depois na F rança; co m o eu, m inha filha tem d upla nacionalidade, mas é mais francesa que brasileira; um dos meus irmãos foi p a ra os E stados U nidos, o nde é cientista, e tem dup la nacionalidade. Q u e r dizer, fica difícil falar em nação! M as reconheço que certas raízes — penso no Brasil — ficam.
Você pensa em envelhecer lá ou aqui? Bom, aqui eu te nho um a p o rç ã o de am igos, e lá n ão te nho quase nad a: em vinte e sete an o s de França n ão te nho raízes, n ã o te nh o coisa n en h u m a. Talvez isto se deva a o p ró p rio m u n d o francês, q u e é frio, e ã universidade em que entrei, que é difícil, ou en tão ao simples fato de que velhos am igos são velhos amigos, e aqui eu tenho m uitos. M a s, ao m esm o te m p o , gosto de m o r a r lá, e um a das principais razões é a m inha filha, que tem treze a n o s e co m q u em te n h o um a relação m u ito boa. E m b o ra eu esteja de novo descasado, vivi na mesma casa com a m inha (segunda) ex-mulher e a nossa filha até recentem ente, e coexistim os mais ou m enos bem. Além disso, a F rança tem as suas vantagens: bibliotecas, jornais, pouca violência, é m uito mais fácil criar filhos etc. O meu projeto é c o n tin u a r m o r a n d o lá e vir sem pre p a r a cá d a r um as dez aulas de q u a tro horas p o r a n o (se me co nvidarem , claro!) — isso é o que eu gostaria de fazer. Só n ão sei c o m o vou reagir se ficar m uito doente e tiver um “aviso de m orte a prazo fixo” : não sei se preferiria morrer lá ou aqui. Mas, enfim, esses são m eus planos.
Você tem discípulos por lá? N ã o , n ã o te n ho n enhum . Eu te nho alunos, dirijo m uitos trab a lh o s, m uitos alunos me p r o c u r a m , alguns deles são chegados a mim . M as n ã o são discípulos. Agora, eu consegui penetrar um p o uco no meio dos filósofos d o establishment, adquiri essa coisa da q ualificação para professor “A ” , e penetrei ta m b é m no m eio dos e s tu d io sos de M a rx . Fíá p o r e xe m plo a r o d a d o Actuei Marx, q u e m e c o n ta to u através do meu p rim e iro livro, com q u em tenho boas relações, mas distantes: sou co n v id ad o para os colóquios. Além disso, eu consegui ta m b é m , com um p o u co de sorte e a l gum sacrifício, publicar três livros, e vou ver se c o n tin u o publicand o. M as na ver dade eu sou m uito marginal lá, e te nh o a im pressão de que não vou m esm o ter m uito sucesso fora daqueles círculos especializados. Q u e ira o u n ão , a quilo é um universo m uito fechado, e alguns deles ainda têm um a m e ntalidad e um p ouco colonialista. Enfim, já é algu m a coisa publicar em língua internacional. E m e sinto co n tente com a m inha situação n o Brasil: aq u i te n h o m uitos c o n tato s, e bem ou mal o pessoal lê meus livros. O que não q u er dizer que eu tenha m uita ilusão co m isto; tem gente
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q u e lê meus livros p ara justificar a política de um PC q u alquer; q u a n d o cai o m u ro ning uém mais c o m p ra meus livros, q u a n d o aí é que deveriam c o m p ra r mais. P o rém gostaria de sair um p o u co dessa faixa, de fazer coisas que gerassem m enos m a l enten didos. A cho que essas coisas que eu fiz têm algum a im p o rtâ n cia , e, co m o já disse, o m a rx ism o brasileiro, que é de excelente nível, resolveu pro b lem as que mais ninguém resolveu, e m b o ra n a d a disso seja reconh ecid o lá fora. Afinal, co m o dizia o O lav o Bilac — devo a le m bran ça à M a ria Isaura de Q u eiro z — , a gente escreve n u m a língua que é um a tum ba.
A sua resposta sobre a religião e a f é o levou à morte. A morte é pensável? Bom, tem aquela fam osa frase d o La R oc hefouca uld, que diz que a m o rte e o sol a gente n ão olha de frente. Ela é pensável, sim, ain d a que d e n tro de certos limites. Pois sem dúvida existe u m a distância entre o fen ô m e n o m esm o e o p en s ar o fenô meno: q u a n d o você pensa no m o r to e lê os escritos d o m o rto sobre a m orte, tem a im pressão de que há um abism o. Por ex e m plo o M a n u e l B andeira, co m aqueles poem as, “ P re p araç ão p a r a a M o r t e ” : depois que ele m o rre u , tem-se a im pressão de q u e aquela m o rte de que falava não era a m esm a coisa q u e a m orte m esma. O u en tã o o M a c h a d o de Assis das Memórias póstumas. Q u e r dizer, pensar na m o rte é u m a coisa; m o rre r, é o u tra. A m o rte é u m a coisa brutal, um a r u p tu ra diante dessa coisa to d a de envelhecim ento, “c o m o estou v elho ” , o D r u m m o n d na Amendoeira dizendo que envelheceu etc. N ã o adianta; nesses m o m e n to s to d o s nós ain d a esta m os vivos. A m orte é um a coisa c o m p letam e n te diferente, e se você pensa nisso fica um p o uco assustado. Eu gostei m u ito d o S chopenhauer falando sobre a m orte, algo que andei lendo mais o u m enos recentem ente, e são texto s m u ito bonitos, m uito bons — cheguei até a c o m e n ta r co m a especialista, a M a ria Lúcia Cacciola. Ele fala d o m o m e n to da m orte, que seria u m a espécie de desm aio, de u m a m aneira interes sante. M a s realm ente é um a q u es tão com plicada. O C o n d o rce t, p o r exem plo, não aceita a m orte; o M arcuse ta m b é m retom a essa idéia q u a n d o m orre a m ulher dele, fala que é preciso lutar “c o n t r a ” . Penso que é um p o u c o isso m esm o; é algo intole rável. M a s há m ortes e mortes; o que existe de co m p letam e n te intolerável é m orte de filho, um a experiência pela qual espero nunca passar. D epois que a gente tem filho, descobre que essa é um a coisa que n ã o p ode acontecer em n e n h u m a h ip ó te se. J á m orte de velho, e m b o ra seja ta m b é m meio ch a ta , n ão tem a m esm a dim e n são, n ã o é terrível. D escartes tin h a ra z ã o q u a n d o dizia que as du as coisas mais im p o rta n te s são a m oral (na qual se deve incluir a política) e a medicina. É f u n d a m ental tr a b a lh a r p ara m e lh o rar a cond ição d o co rp o , salvar vidas etc. Por isso são m u ito positivos esses progressos da m edicina, que perm item p ro lo n g ar um a vida co m saúde ou g ara n tir u m a m orte melhor. Isso é banal m as verdadeiro; às vezes se perde de vista a im portância dessas coisas.
Como você se situa em relação aos problemas de uma “mudança de paradigma" da filosofia, de uma filosofia “pós-metaftsica” calcada na linguagem? O lh a , isso n ã o me afeta demais. T e n h o m u ito interesse pelos pro b lem as de lógica, pelos p rob lem as da linguagem , p o r lingüística, m as n a d a disso é central p a r a mim.
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o central é pensar a história, o que m u d o u foi o m u n d o : estou mais interessado no m u n d o . Eu sofri bastante o im pacto desse negócio de u m a filosofia c e n trad a na lin guagem , pois o e s trutura lism o nos serviu muito: em história da filosofia a gente se form ou n u m tipo de leitura que tem a ver com o estruturalism o. T a m b é m me inte ressei bastante pelo I.évi-Strauss, gosto m uito da análise estrutural, incorporei m uito isso tudo. .Vlas n ã o é um a filosofia geral; n ão acredito n u m a filosofia que tenha p o r c e n tro a linguagem . Sem d úvida é algo que tem q u e ser in c o rp o r a d o à filosofia, i n c o rp o r a d o co m o conq uista, m as a dim ensão é mais a de um tra b a lh o científico. D epois da lingüística, d o Lévi-Strauss, você n ão faz história co m o fazia antes, não analisa nen h u m objeto do m esm o jeito. M a s é só isso: p ara m im n ã o há um a nova filosofia, não há um p a ra d ig m a da linguagem. A cho que é ilusório quere r pensar o m u n d o te ndo a linguagem c o m o centro. O que você achou do livro de G iannotti A p resentação do m u n d o : co n siderações sobre o p en sam e n to de Ludw ig W ittgenstein? Eu li m u ito rap id a m en te, m as a m inha im pressão é dc que n ã o é m uito bom . Eu n ã o c onhe ço bem o W ittgenstein, m as tive a im pressão de que o que há ali é um certo verniz dialético, um a espécie de semicrítica d o W ittgenstein que não vai m u i to longe. Creio que Giannotti teve alguma im portância nu m certo m o m ento , q u an d o co m eç o u a pensar O capital em term os semidialéticos, m as n ã o sei se ele a v a nço u m uito a p artir daí. Ele chegou até um certo p o n to , fazendo um a leitura de M a r x que era a o m esm o te m p o hegeliana e husserliana, a p r o v e ita n d o o q ue Husserl teria em c o m u m com a dialética, m as n ão sei se foi m u ito além. Isso foi o com eço, mas só o com eço, do q u e poderia ter sido um a co n trib u içã o im p o rta n te: p o rém m uito cedo ele apro v e ito u o que havia no a r (e mais do que no ar), acostu m ou-se com o negócio de ser um figurão, criou o hábito de escrever coisas que não aparecem co m o claras (porque, n ã o nos iludam os, são em si mesmas vazias) — não tu d o o que ele diz, evidentem ente — , o que significa: passou a usar d o blefe teórico em am p la es cala, ven d e n d o o bsc urida d e artificial c o m o se fosse um a qualidade. Em geral, creio que hoje G ian n o tti tem p o u co a ver com a dialética (em bora ãs vezes seja difícil dizer o n d e ele está). Ele c ostum a re to m a r a fórm ula que utilizei a p artir de um texto de M a r x — ver a referência em Marx, lógica e política (t. II, p. 168) — , a dos “ limites” da dialética (fórm ula q u e lhe foi tran sm itid a p o r um de seus “ a u x ilia re s” ). .Vlas n o caso de m uitos dos textos de G ian n o tti n ã o é questão de limite. Q u a n d o ele n ão blefa pura e sim plesmente, trata-se em geral de aprisionar a dialética num discurso d o e n ten d im en to , o nde a referência principal era o u tr o ra Husserl e hoje é W'ittgenstein. O que ele diz nesses textos é mais ou m enos o que diz a filosofia d o m in a n te , an glo-saxã e europé ia, que têm em c o m u m o anti-hegelianismo e o h o r ro r à dialética. Esta é um a direção, a meu ver, e r r a d a , m as não seria grave, se ao co n trá rio dessa gente, G iann otti n ão se apresentasse co m o conheC'îdor da dialética (na realidade até aqui ele sabe p o u co da Lógica de Hegel) e se não exibisse um tom arro g an te , que é o d o m a n d a r im que gosta de d a r lições sobre o que sabe maP'. Por o u tr o lado, devo dizer que com o seu estilo, ele p r o p a g o u um m odelo a u to ritá rio nas relações, que é m u ito negativo. T e n h o m edo de que as n o vas gerações de professores retom em esse m odelo perverso no tr a ta m e n to dos alu-
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nos, dos m e stran d o s, dos d o u to r a n d o s . Enfim, e m b o ra eu reconheça q u e de algum m o d o ele co n ta (entre outros), que tem um lugar (junto com outros) — prin cipal m ente p en s a n d o nos seus começos: talvez o seu te x to mais sério seja a sua tese so bre S tuart Mill — nesse nosso p a n o r a m a (felizmente) diversificado, creio que o seu m od e lo de sociabilidade (para usar u m a palavra que ele utiliza m uito, m as n ão é de sua invenção) é um m odelo m u ito ruim . Politicamente, ta m b é m n ão gosto da posição que assume: a leitura de M a r x q u e p ro p ô s era — e de certo m o d o ainda é — no fundo, um a leitura tj«í/-hum anista: nesse sentido, lendo os velhos textos, já se podia prever o que ia acontecer com C a rd o s o e Cia. T rata-se de u m a crítica u n i lateral d o h u m a n ism o cujas implicações políticas nefastas são visíveis. O que não q u e r dizer que as leituras da ex tre m a esqu erda sejam melhores.
Você utilizaria o conceito de “utopia" para descrever sua visão do fu turo da sociedade ímmana? Em que consistiria tal utopia? Utopia." H o u v e vários usos d o nom e, creio que a p e n as com .Vlannheim se com eçou a en tender p o r utopia um projeto a longo prazo , ou algo assim. M as preferia não usar esse term o; é um term o m u ito carregado . Prefiro utilizar a nossa referência m esm o. P rim eiro é preciso a c a b a r com essa história de fim do E stado; aceitar a p ro p rie d a d e privada co m o u m a coisa ad q u irid a historicam ente — algo que não é natu ra l, co m o a individualidade n ã o é natu ra l, m as qu e foi ad q u irid a pela história e se to r n o u irreversível. O que im p o rta é “ sim p lesm en te” te n ta r p a r a r a m áq u in a. Porém há vários p rob lem as. Se a gente co nsiderar o m u n d o glo balm ente, há p o r e xe m plo os fenôm enos de fanatism o religioso, que são enorm es. Seria preciso que surgisse um Islã m o d e ra d o , assim co m o surgiu um cristianism o d o m in a n te que não é o cristianismo mais fanático. E o m esm o vale para as dem ais religiões. Porque esses fundam e n talism o s religiosos rep rese n tam um perigo m u ito g ran de , p o d e m levar a catástrofes em m a téria de terrorism o, guerra atôm ica, guerra bacteriológica. C h e ga a ser e s tra n h o que ain d a n ã o tenha e s to u ra d o u m a b o m b a atôm ica p o r aí. A gora, p articu la rm ente em m atéria de política internacional u m a coisa a se p en s ar é a China: c u m a e n o rm e potência que, em certo sentido, p ro m o v e a ar ti culação de capitalism o com totalitarism o, articulação perigosa. Eles tr a ta m T a iw a n co m o uma província, mas há cinqüenta anos T a iw a n é um país independente: é um a situação de risco m u ito séria, que para m im pode ex plodir a q u alq u er m o m e n to . Se eles resolvem a ta c a r F orm osa, o que é que vai ser? O s E stados U nidos n ã o vão q uerer reagir, m as v ão ser obrigados a reagir. Enfim, há aí u m furo que é um p r o blem a enorm e. Diz-se que a C h in a é progressista em relação a o capitalism o d e m o crático, m as isto é u m a bobagem: ela é u m a regressão política e ética. A Rússia t a m bém é um p ro b lem a, m as m e n o r, p o rq u e, ape sa r de haver casos co m o a Chechênic e o D ague stã o, lá não há uma F o rm osa, o n d e o risco de um a guerra global é sério. C om relação a o caso da Iugoslávia, eu g ostaria de dizer um a palavra tam bém , já que aqui é m a n ia to d o m u n d o c o n d e n a r sem mais a intervenção am erican a. Eu acho que ela foi um mal m en or, p o rq u e, e m b o ra n ã o seja p r o p ria m e n te um Hitler, o Milosevic é u m fascista, e um fascista — digam o s — pior q u e o M ussolini. Ele fez um a limpeza étnica na Bósnia, co n tra a qual n ã o houve in tervenção p o rq u e a O N U n ã o a p r o v o u , e o resu ltado foi u m m assacre terrível. Se tivesse h avido inter
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venção na Bósnia, a coisa n ã o teria ido mais longe. E no Kosovo o que ele fez foi c o m eç ar a destruir u m a aldeia p o r dia, q u e re n d o forçar um a d iá sp o ra de tod o s os albaneses. É claro que o ideal seria um a intervenção da O N U , com tro p as terrestres ta m b ém , m as a O N U não iria intervir, p o r causa d o veto da China. O que a E u ro pa deveria fazer, então? U m a alternativa seria deix ar o Milosevic lá, m a n d a n d o alg u m as tro p a s para países limítrofes, mas eles resolveram o p ta r pela O T A N — o que sem dúvida era u m a coisa perigosa, p o rq u e, primeiro, abria um precedente de inter venção da O T A N , e, segundo, tem sem pre um am erica n o m aluco q u ere n d o tr a n s fo rm a r a qu ilo em D resden. M a s eu a c h o que eles fizeram bem em intervir, em b o ra a form a da o p era ção seja discutível p o rq u e não im pediu (e naquele momento até agravou) o massacre. Foi um a coisa inventada pelos europeus, não pelos a m e ric a nos. N os EUA houve inclusive m uita divergência sobre o p rob lem a, eles n ão tin ham m uito interesse em intervir, a extrem a direita estava co n tra . A intervenção foi e m p u rra d a — em b o ra n ã o pudesse ter sido realizada — essencialmente pelos europeus. Aqui é difícil falar nesse a s su n to p o rq u e há essa espécie de un an im id a d e c o n tra a intervenção, mas a verdade é que to d o m u n d o discute sem co nhecer bem t o dos os elem entos qu e estavam em jogo. C o m o , p o r exem plo, o fato de que com isso se estava e vitando que o Milosevic com eçasse um a o u tra limpeza na província de Voïvodine, que ele ia a c ab a r fazendo. M a s aqui n ã o se olha n a d a disso; p ara eles a o p era ção to d a aparece co m o um a form a de im perialism o am ericano. O ra , é claro que os am ericanos não são santos, é claro que a existência de um p oder hegemônico é perigosa, mas a verdade é que aq u ilo foi um a guerra de govern os social-democratas e de centro-direita co n tra um fascistão. E ele vai a c a b a r caindo. £ o caso de Cuba? O que você pensa da sobrevivência do regime cubano? Eu acho o regime c u b a n o um a droga. Lá n ã o houve um genocídio, m as é mais um m o delo de socialismo au to ritá rio , que é um a coisa que não dá certo. E que lá n ão deu em nad a . E v erdade q u e eles ap licaram políticas sociais, algum as bem-feitas, m as n u m co n te x to a u to ritá rio isso não dá certo. Deveria pensar-se n u m a transição dem ocrática, que preservasse as conquistas sociais, se é que ainda resta alguma coisa, m as o C a stro não pensa em n a d a disso. E vai a c a b a r sendo um desastre, p o rq u e no final q u em vai levantar a cabeça são os m o n stro s de xMiami. Enfim, o fato é que o c a m in h o de C u b a é um c a m in h o a n ã o seguir. E eu ac ho que a gente deveria ter um a atitu d e m u ito firme no caso dos prisioneiros políticos — talvez fazer um m a nifesto que to d o o pessoal de esquerd a assinasse, ou algo assim. M a s isto é um a p ro p o sta m aluca, p o rq u e n o Brasil quase n e n h u m sujeito de esqu erda teria c o r a gem de assinar um negócio desses! Eu sim. Acho lamentáveis as viagens a C u b a de intelectuais latino-am ericanos que são recebidos p o r Fidel C astro. (Claro que em si m esm as as viagens n ã o são c o n d e n á veis, nem m esm o é condenável conversar com caudilhos, m as — e a fortiori se o eíeito for m ultiplicado pelo finan c iam en to ou sem ifinanciam en to da viagem — é difícil esca par a o fascínio de um d éspo ta populista.) O s viajantes deveriam se d a r co n ta de q u e as entrevistas (e em a m p la m e dida as p ró p ria s viagens) são, à sua maneira, tão planejadas e tão mistificantes com o q ualquer progra m a político de um a g ran d e emissora de televisão capitalista. M a s se p ara desmistificar a g ran d e mídia.
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o m a rx ism o fornece in strum e ntos poderosos, ele é c o m p letam e n te im p o ten te d ia n te dessas n ovas form as de ideologia, de e n g a n o e de mistificação. E m b o ra C astro n ã o seja Stalin (mas os dois têm em c o m u m , pelo m enos, o h á b ito de fuzilar gente depois de p ro m e te r a vida salva em tro ca de falsas auto-acusações), parece q u e n ão se refletiu o suficiente sobre a experiência das viagens de intelectuais de esq uerda ã URSS, dos an o s 30 aos 50.
Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos como riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em larga escala e alienação cultural em massa. Como você vê tais pro blemas? N o que se refere aos riscos am bientais, eu vejo, c o m o já falei, a possibilidade de catástrofes, de coisas ex tre m a m e n te sérias. N o caso da França, p o r ex em plo , que é um país ex trem am ente nuclearizado, a possibilidade de ocorrer um acidente é m uito grande. Às vezes im agino as pessoas fugindo de Paris por causa de u m acidente desse tipo. E há ta m b é m um a série de o u tro s riscos, co m o os alim entares, qu e se eviden ciam p o r exem plo no caso da “ vaca lo u c a ” . C o m relação ã desintegração social, se p en sarm o s na E u ro p a tem os o p ro b le ma d o desem prego, que é sério (em bora a situ aç ão te n h a m e lh o r a d o a p artir de 1999). A E u ro p a de hoje é m uito diferente daquela que conheci há vinte, trinta anos atrás. M a s n ã o tem n a d a a ver co m o Brasil. N o Brasil há um a catástrofe abso luta, u m a violência im pressionante n a rua, e eu n ã o sei o n d e isso vai dar. Q u a n to ã alienação, de vez em q u a n d o eu olho a televisão no d o m in go, e vejo, p o r exemplo, o Domiugão do Faustão, que é algo que precisa ser visto: aquele b ando de gente inteiram ente enlou quecida, repetin do coisas imbecis! E n ã o é o pior; há coisas bem piores. M a s é realm ente u m a barbárie. A gora, o que se p o d e fazer? A prim eira im pressão é de que n ã o dá p ara fazer m uita coisa, p o rq u e a estupidez é e no rm e . A o m esm o te m p o é urgente, no caso d o Brasil, m e lh o rar a ed ucação , lutar c o n tra a desigualdade etc., po rq u e sem isso n ã o dá p a r a fazer n ada . Q u a n d o Hegel falava d o E stado, p en s a n d o nas vantagens d o E stado, ele se referia a coisas co m o a possibilidade de você sair ã noite. C o m o já se disse, n ã o há mais E stado n o Brasil: você já n ã o sai mais sozinho à noite. A im pressão que se tem, n o caso d o Brasil, é a de um a sociedade prestes a explodir. E a m esm a coisa vale p ara a q u es tão das alienações: há um a imbecilização geral, a q u alidade d a im prensa é m uito ruim , não se tem info rm aç ão etc. A gora, provavelm ente um a p arte da h u m a n id a d e talvez seja m esm o estúpida. N ã o te n h o m uitas ilusões com relação a isso, n ã o sou hum anista. O que se tem é a possibilidade de um desenvolvim ento que p o n h a barreiras a o emburre cim en to dos indivíduos. C o n t a n to q u e essa gente n ão faça mal, ela tem tod o o direito de e x p o r suas besteiras — mais o u m enos co m o o Engels falava em rela ç ã o às religiões. N ã o q u e eu esteja falando d as religiões, que são um a coisa mais séria e im p o rta n te, e que d e m a n d a m um m ín im o de respeito, m as diante da imb< cilidade da mídia talvez fosse o caso de a gente conseguir neutralizá-la de algum a form a , sem p rete n d er erradicá-la, pois p a r a isto te ríam o s de recorrer a m é todos d itatoriais. Creio que isso tu d o — d e n tro de limites a estabelecer — é um pouco (mas só um pouco) n a tu ra l, e n u n ca vai deixar de existir, N ã o a d ian ta im aginar.
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co m o na uto p ia d o T rotsky, que q u a n d o o socialismo chegar to d o o m u n d o vai ter o nível m édio d o G o eth e ou do Shakespeare! [risos] Enfim, é só deixar eles ficarem lá fazendo as suas besteiras, desde que isso n ão ten h a m aiores conseqüências. Pena é que isso aí vá invadindo, vá invad indo tu d o . Veja-se p o r e xe m p lo o esporte, que chegou a um nível de m ercantilização intolerável: é um a atividade que, co m o o u tras, vai sendo p raticam ente destruída. Felizmente, existem resistências: as O X G s ; a ecologia, que eclodiu a partir de fins dos an o s 70; o desenvolvim ento dos m ov im ento s de defesa dos m inoritários, co m o os hom ossexuais; o m o v im en to fe minista etc. Existe um a série de m ovim entos de resistência que precisam ser reconhe cidos. Se a gente considerar a situação da E uropa, eu diria, para usar u m a term inolo gia d o M erleau-P onty , que lá circulam hoje bem mais verdades d o que circulavam há uns trin ta an o s atrás: n ão se acredita mais que Stalin seria o pai dos povos; n ão se acredita mais em .Vlao-Tsé-Tung. N o Brasil já é um p o u c o mais com plicado: a gente vê coisas co m o o PC do B criticando o Ciorbachev na televisão, tem essa história de querer tirar o C a rd o s o através de itnpeachnient, que é ab s u rd a ; e p o r aí vai. A esquerda brasileira aind a n ão a m ad u rec eu o suficiente: apesar de haver um lado crítico que é positivo, ela faz u m a salada teórica h o rro r o s a — idealização da C h i na, elogio d o Chavez da Venezuela etc. Enfim, de um m o d o geral a idéia de d e m o cracia ain d a n ã o está co nsolidada entre os brasileiros c o m o está entre os europeus.
Uma última pergunta: no seu último livro, Dialética m a rx ista, dialética hcgeliana: a p r o d u ç ã o capitalista co m o circulação simples, você afirma que “o estruturalismo ocupou, no século XX, um lugar que é compará vel ao da economia clássica nos séculos XVIII e X IX ”. Em que sentido esses dois momentos teóricos são comparáveis? Desse ponto de vista, fazer a crítica do estruturalismo no século XX significaria ocupar um lugar comparável ao de Marx? Pelo que me lem bro, o a rg u m e n to ten tava m o stra r que, apesar de tu d o , o e s tr u t u ralismo tem u m a riqueza q u e precisa ser in c o rp o rad a . Assim co m o diante da e c o n om ia clássica um a posição mais radical consistiria em recusá-la p o r com pleto, em n om e da ética, e u m a posição mais inteligente consistiria em recusar a p e n as os seus elem entos negativos, in c o rp o r a n d o os positivos, ta m b é m diante d o estruturalism o um a prim eira reação poderia ser a de recusa total, e n q u a n to que a posição mais inteligente seria justam ente a de in c o rp o rar as suas conqu istas n u m novo c o n t e x to. A cho que é mais ou m eno s p o r aí. Q u e r dizer, a posição crítica diante da eco n om ia política tem de ser a de incorporá-la e de dar-lhe um o u tr o sentido: desco brir as co ntradições n o interior da análise da sociedade capitalista, e, ao m esm o tem po, descobrir a interversão das relações no interior d o esquem a que R ica rd o e Smith tin h a m construído. E co m o estru tu ra lism o deve ser feito algo semelhante: eles d ã o contribuições m uito grandes para se p ensar a estru tu ra , as quais devem ser lív a d as em co n ta, m as co m o dizia, não sem verdade, o velho jargão, é preciso d es cobrir as contradições no interior da estru tu ra. Este é mais ou m enos o sentido do argum ento: essa idéia de que o e s trutura lism o é u m a g ran d e teoria científica, mas um a g ran d e teoria não-crítica, co m o a econo m ia clássica. E o negócio n ã o é recusar a ciência, m as sim in trod uz ir a crítica d e n tro dela.
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Aliás, eu ac h o que há m u ito o que fazer em m a téria cie história d o p e n s a m e n to, de história ideológica. H á um livro que, e m b o ra envelhecido, é m uito b o m n es se terreno, c o m relação aos séculos XVIII e X IX , o livro d o Eli Halevi A formação do radicalismo filosófico. E u m a espécie de história d as ideologias, da econom ia política, das ideologias burguesas, da filosofia d o século XVIIl e suas diferentes m anifestações. E a q u e s tã o aí é justam e n te n ão fazer história da filosofia, e sim m istu ra r com história da econ om ia, com história da política, e assim p o r diante. Creio que há m uita coisa a fazer em m atéria de história do p ensam ento ; burguês e da crítica d o p en s am e n to burguês. M a s n ã o se p ode, é claro, ficar nisto.
Alguma coisa a mais? Falei m u ito sob re a m in h a vida, m as finalmente, no texto que so b ro u , desapareceu tu d o o que se refere à vida pessoal e sentimental. T alvez ten h a sido m e lh o r assim, p o r q u e n ão é bem aq u i o m elhor lugar p a r a “ confissões” . De q u a lq u e r m o d o , para que não fique m u ito incom pleto, d u as palavras na conclusão. A família professava um a m oral m u ito repressiva (m uito sutil ta m b é m , p o rq u e ap a re n te m e n te fazíamos o que q uería m os, a repressão vinha de dentro). E m b o ra no m eu caso as primeiras experiências n ão te n h am sido m uito tardias, só comecei a me entender com freqüên cia com o sexo o p o sto passados os .35 anos, época em que, c o m o disse, ta m b ém comecei a me en ten d e r de fato com a escrita. De lá p ara cá as duas coisas n ão me a b a n d o n a r a m mais, e espero que m e a c o m p a n h e m ain d a um b o m pedaço. Isto n ão é a infra-estrutu ra da m inh a história (aqui ta m b é m a idéia de infra-estrutura é exce.ssiva), m a s é um lado im p o rta n te , sem o qual o relato to m a um a r idealista e enganoso.
N O I AS IX ) EN TRK V ISTA D O
* P ara ser n o m e a d o p a ra um c a rg o u n iv e rsitá rio na F ra n ç a , há se m p re d o is m o m e n to s. E p reciso p rim e iro “ q u a lific a r-se “' p a ra o nível a lm e ja d o {maître de conférences e d e p o is p ro fe sso r “ ra n g .A” ), p e ra n te u m a co m issã o n a c io n a l. Em se g u id a, é p reciso ser n o m e a d o p o r u m a c o m is sã o d e u m a fa c u ld a d e , o n d e h o u v e r um p o sto c o rre s p o n d e n te a p reen ch er. A o rd e m e o m e c a n is m o d o s d o is m o m e n to s se m od ifica co m a sucessão de g o v e rn o s, m as há se m p re essas d u a s in s tâ n cias, n a c io n a l e local. ^ J u n h o de 2 0 0 0 : foi o q u e a c o n tece u . Em o u tr o lu g a r, an a lisa re i essa farsa de u m ra ro c i n ism o , e seus p rin c ip a is ato re s. ’ J u n h o d e 2 0 0 0 : em fins de 1 9 9 9 , com ecei, co m am ig o s, u m a le itu ra sistem ática de F reud. O s te x to s sã o n o táv eis. ■' Isto é, n ã o d ig o q u e n ã o h av erá c a tá s tro fe s , só d u v id o q u e elas n o s c o n d u /a m à red en ção . ' G ia n n o tti p u b lico u recen tem en te um te x to de crítica de d iferen tes tra b a lh o s , en tre os quai? o s m eu s (ver N o vo s E studos, n° 5 7, ju lh o de 2 0 0 0 ). A m eu v er, a sua crític a n ã o tem m u ita força, m as a p ro v e ito a o c a siã o p a ra p ô r a lg u n s p in g o s n o s is. Ele m e acu sa d e c a ir na te o ria le n in ista do re fle x o e n o D ia m a t (!) p o rq u e d esen v o lv o a te m á tic a d a re -p ro d u ç ã o d o o b je to pela a p r e s e n ta ç io dele p elo su je ito . G ia n n o tti põe-se a e s b ra v e ja r, m as o q u e faz é a p o n ta r p a r a o p e n s a m e n to dos agentes (ver p. 7 2 ) cu jo m o v im e n to , de fato , n ã o é p a ra le lo à s c a te g o ria s, m a s de alg u m m o d o c o n s titu tiv o (ou re-c o n stitu tiv o ) delas. O c o rre q u e em M a rx e, m e p e rm ito dizer, ta m b é m n o s m eus te x to s (co m p are -se, p o r ex e m p lo , M arx: lógica e política, x. 1, p p. 1 05-7 e 155) e n c o n tra -se a a n á lise d e u m a e o u tr a co isa, sem q u e se c o n fu n d a u m a e o u tra : o p e n s a r c o m o teoria ou saber, e o
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p e n s a r d o s agentes, n o s p ro cesso s so ciais o b jetiv o s. É a p ro p ó s ito d o p rim e iro q u e .\ia r .\ fala em re -p ro d u ç ã o d o real. C ritic a r essa idéia faz e n d o in te rv ir a im a n ê n c ia d o s ju ízo s d o s ag e n te s a o d o m ín io d a c o n s titu iç ã o d e c e rta s c a te g o ria s, e g rita n d o : d ia m a t, reflex o , len in ism o !, n ã o é sério. F.le p o d eria tam b ém acu sar H egel d as m esm as coisas, pois co m o se sabe — ou n ã o sabe.- — a Lógica, d ife re n te m e n te d a p rim e ira Crítica k a n tia n a , faz o elo g io d a " a d e q u a ç ã o ” . E se m e referi, fa v o ra velm ente, a um tex to dc (iia n n o tti a respeito disso, é prim eiro p o rq u e te n h o regras estritas em m atéria de refe rên cias, e se g u n d o p o rq u e se tra ta de um dos poucos textos rigorosc>s que ele escreveu, e a p a re n te m e n te a p a r tir de seus p ró p rio s recu rso s, sem a p e la r — c ito seu e n s in a m e n to o ra l — p a ra “os (seus] ag en tes q u e [lhe| c o n tam tu d o " . Q u a n to à relação en tre a crítica d o a rg u m en to o n to ló g ico em H egel. e o m o v im e n to da p o siç ã o , ela é m ais ou m en o s ex p lícita em H egel: tra ta -s e de p ô r em x eq u e a se p a ra ç ã o k a n tia n a e n tre p o siç ão e d e te rm in a ç ã o . (Seria lo n g o d em ais d esen v o lv er a q u i, d e n o v o , a sua leg itim id ad e filosófica, q u e é c o m p lic a d a m as real.) E q u a n d o , n o Capital, .M arx escreve c o n tra a idéia de q u e o v a lo r ex iste na ilha de R o b in so n e diz q u e “e n tr e ta n to , to d a s as d e te rm in a ç õ e s d o v a lo r e s tã o a í p re se n te s” , ele refaz o m esm o p ercu rso . Pois q u e r dizer; to d a s as d e te rm in a ç õ e s e stão lá, m en o s a p o siç ã o (a q u a l, c o n tra a tr a d iç ã o d o e n te n d im e n to , é, p a ra a d ia lé tic a , essencial à d efin ição d o o b jeto ). N o m ais são co n fu sõ e s d c le itu ra e re a firm a ç ã o da “ li n h a d u r a ” d o e n te n d im e n to . D u a s p a la v ra s so b re a re la ç ã o H egel/A ristóteles: a te o ria d a p o tê n c ia e d o a to n ã o im p lica e v id en tem en te em a c e ita r a c o n tra d iç ã o , e foi m esm o e la b o ra d a p a ra r e s p o n d e r a o d esafio q u e ela re p re se n ta v a . .Vlas p o r isso m esm o tal teo ria m an tém u m a relação co m a c o n tra d iç ã o . F. se esta ú ltim a rea p a re c e , de um a form a sui generis, em H egel, é a tra v é s de um in
vestim ento da metafísica (dc .Aristóteles) — inclusive, p re c isa m e n te , d o p a r potência/ato — sohre a lógica. Em A ristó teles rem -se só p a rc ia lm e n te esse in v e stim e n to d a m etafísica. (N u m a o u tr a v e r te n te — ver a u n iv e rsa lid a d e c o n c re ta e n q u a n to u n iv e rsa lid a d e sin g u la r — há sem d ú v id a ru p tu ra co m a m etafísica de .A ristóteles, m as ta m b ém a serviço d a c o n tra d iç ã o .) É isso q u e está p o r trás d o s te x to s em q u e H egel reco n h ece o p a re n te sc o e n tre as d u a lid a d e s em si/p a ra si, e p o tê n c ia /a to . V er refe rên cia em m eu ú ltim o livro em p o rtu g u ê s (B rasiliense, Paz e T e rra , 1997, p. 109, n. 1 18). — Fiz u m a re c o n stru ç ã o d a lógica d o Capital, cu jo s m érito s fo ram re co n h ecid o s p o r m u ita g ente séria. C re io , en tre o u tr a s coisas, ter reso lv id o de fo rm a rig o ro s a o p ro b le m a d o e s ta tu to d a seção 1. G ia n n o tti n ã o e n te n d e u , ou n ã o q u is e n te n d e r: a p e s a r d a s a p a rê n c ia s , a su a an álise d o Capital escam o teia o u o m ite os m o m e n to s m ais difíceis. P o r cau sa desse tr a b a lh o e desses re su lta d o s (que ele su b e stim a o u d esco n h ece de fo rm a g rita n te ), ele m e acu sa de s u p o r um a “ linguagem c o m u n is t a ” (p. 77) (!) e o u tra s co isa s qu e tais. Ele ta m b é m p o d eria a c u s a r .A dorno — o u tr o q u e desco n fia d o p e n s a m e n to d o “ c o m u m d o s m o r ta is ” (idem ) — de p ro p o r lógica especial c o m u n ista ou de ser fu n cio n ário a serviço d o D iam at. .A dorno p raticav a c o m o ninguém essa lógica do pensam ento crítico q u e é a d ialética. N o q u e m e co n c e rn e , tra ta -s e d e a v a n ç a r na c o m p re e n sã o em a to e em te o ria d as fig u ras d o p e n s a m e n to d ia lé tic o , fig u ras q u e em geral os lógicos n ã o co n h ece m o u n ã o re c o n h e cem . Q u e esse tra b a lh o seja difícil, in c e rto , q u e os re su lta d o s sejam a d isc u tir e re d isc u tir, seria o p rim e iro a ad m itir. T a m b é m o e stilo h eg elian o — c o m o M a r x in d icav a — p o d e ser m ais ou m e n o s c a lib ra d o . .Mas d a í a tr o c a r a d ialética p o r W ittg e n ste in , é sim p lesm en te um e q u ív o c o . C reio q u e a p e s a r d e tu d o o q u e resta a fazer, ap e n a s co m os re su lta d o s o b tid o s (em a to : ver, p o r e x e m p lo , a m in h a crític a d ia lé tic a d o h u m a n ism o , o u em te o ria : ver m in h as te n ta tiv a s n o p la n o d a te o ria d o juízo) já se p o d e d izer q u e o m eu p ro je to (que está longe de ser só m eu) se justifica. G ia n n o tti n u n c a te n to u nem foi c a p a z de te n ta r n a d a d isso . Em te rm o s de d ialética p ro p ria m e n te , ele n ão av an ç o u um p asso nesse tra b a lh o . O seu d isc u rso , q u e p ro c u ra se a p o ia r n o tem a p o r m im in d ic a d o d o s “ lim ite s” d a d ia lé tic a , é na rea lid a d e u m a d ia trib e m u ito tra d ic io n a l e a té c e rto p o n to ba.lal, d o e n te n d im e n to , c o n tra ela. (Ele se detém se m p re a n te s d o real m o v im e n to de in v ersão co n f a d i t ó r i a d a s cate g o ria s; ver, p o r e.xem plo jp. 79 d o a rtig o ], a té o n d e vai — e a te o n d e n ã o vai — su a an álise d a relação fo rm a /m a té ria [e c o n te ú d o ] n o Capital.) .Se é p a ra isso — refiro -m e esp ecial m en te a o a rtig o de N o vo s E studos — p refiro um a m e ric a n o o u um p ó s-m o d e rn o rig o ro so esc re v en d o c o n tra a d ialética. H á neles m ais co erên cia e m en o s c o n fu sã o . E p a ra a p re s e n ta r o p e n s a m e n to d ia lé tic o , a p e s a r de tu d o , e a té se g u n d a o rd e m , p refiro G u ilh erm e F re d erico a Jo sé .A rthur. P ara te rm in a r, o b se rv o q u e G ia n n o tti p õ e c o m p le ta m e n te e n tre p a rê n te se s o faro de q u e desde há u n s v in te a n o s p elo m en o s te n h o posições crític as em re la ç ã o a .M arx. .Mas p a ra c ritic a r este últi-
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m o é p reciso p rim e iro e n te n d e r bem o q u e ele q u is dizer. N a m in h a le itu ra de M a rx , a c h o q u e vou a té a s ú ltim a s c o n se q ü ê n c ia s, n o p la n o d o c o n te ú d o c o m o n o d a fo rm a . Se desde há d u a s d écad a s d e sc o n fio d a tese de q u e o a d v e n to de alg o c o m o o c o m u n ism o (q u e de re sto n u n c a c o n fu n d i co m o “ c o m u n is m o ” ru sso o u ch in ês) m a rc a ria o com e(,o da H istó ria da h u m a n id a d e , nem p o r isso p a sso a d izer q u e essa tese n ã o p o d e ser e n c o n tra d a n o s te x to s d e M a rx . E la se e n c o n tra , é a p r e se n ta d a em fo rm a lo g icam en te in teressan te, e — c o n tu d o — é m ais d o q u e discutível (ver o p osfácio d o m eu ú ltim o liv ro francês, L ’H a r m a n a n , 1997). Q u em n ã o distingue esses m o m en to s e em b aralh a re c o n stitu iç ã o rig o ro sa d o p e n s a m e n to de um a u to r e a d e s ã o a ele, n ã o p ro d u z m ais d o q u e s a la d a s d e g o sto d u v id o so . L en d o G ia n n o tti. tem -se a im p re ssã o de um a c e rta intransigência, e a m is tific a ç ã o co n siste em in d u z ir o leito r a p e n s a r q u e se tr a ta de intransigência da verdade. A m tra n sig ên cia ex iste m a s é intransigência de p oder e d a m á p o lêm ica. O qu e d ev eria ser s u p o rte da b u s ca d a v e rd a d e , to rn o u -s e su b stâ n c ia ; e a su b stâ n c ia v iro u su p o rte . A v o n ta d e de p o d e r a c a b o u li q u id a n d o em g ra u c o n s id e rá v e l a v o n ta d e d e v e rd a d e . E sta é a n êm esis d o s c u lto r e s da c o m p e titiv id a d e e d a p ro d u tiv id a d e . — A ddendum . N o p re fá c io à seg u n d a e d iç ã o d a s su a s Origens da dialética do trabalho, C iiannotti m e acu sa de c o m e te r um g rav e e rro de lógica, a sa b e r, a c o n fu sã o e n tre p re d ic a ç ã o e id e n tid a d e . C o m o e x p u s n u m a de m in h a s au la s já há alg u n s a n o s (au la a q u e e s tav am p resen tes aliás fu tu ro s c u p in c h a s de G ia n n o tti) essa c rític a, vinda d a b o c a de q uem p elo m en o s nessa ép o ca reiv in d ic av a a d ia lé tic a , é e n g ra ç a d a e tem m u ito sal. Isto p o rq u e , c o m o in d iq u ei n essa a u la , e c o m o escrevi na p rim e ira v ersão de um te x to q u e p erte n c e à seg u n d a p a rte a in d a in éd ita de Dialética m arxista, dialética hegeliana (ver Paz e T e rra , 19 9 7 e I la r m a tta n , 1997, p a ra a p rim e ira e a te rc e ira p a rte s), a “ c o n f u s ã o ” n ã o só se e n c o n tra n o s clássico s da d ialética, m as é de c e rto m o d o c o n s titu tiv a d e la , o u de um de seus m o v im en to s. N a re a lid a d e , a fam o sa p r o p o siç ã o esp ecu lativ a de H egel, em q u e o su je ito passa n o p re d ic a d o , se e x p lic ita n u m m o v im e n to q u e a rtic u la p re d ic a ç ã o e id e n tid a d e : h á u m a p re d ic a ç ã o reflex iv a d o su je ito n o p re d ic a d o , q u e leva à id e n tid a d e e n tre os d o is, id e n tid a d e q u e é p o r sua vez o p o n to de p a rtid a p a ra u m a n o v a p re d ic a ç ã o . A p ro p o siç ã o esp ecu lativ a é assim o m o v im e n to q u e vai d a p re d ic a ç ã o à id e n tid a d e e d a id e n tid a d e à p re d ic a ç ã o . O a ta q u e p o d e ria p o r ta n to ser d irig id o a H eg el, e — em c e rta m ed id a — ta m b é m a M a rx . Sem d ú v id a , esses d o is p o d e m se e n g a n a r, m as p a ra c ritic á -lo s é p reciso p r i m eiro e n te n d e r bem o q u e eles fizeram — e de q u a lq u e r m o d o n ã o fo ra m eles e sim eu q u e o ló g i c o , a in d a d e fe n so r d a d ia lé tic a , p e n so u te r pego n o p u lo . P o rém o essencial é m o s tra r a in g e n u id a de d e q u em n ã o se dá c o n ta de q u e a d ialética c o n siste p re c isa m e n te n u m c o n ju n to de m o tiv o s e m o v im e n to s q u e c o n s titu e m “ c o n fu sõ e s” p a ra os lógicos d o e n te n d im e n to .
Principais publicações; 1983 1987 1996 19 9 7 1998
Marx: lógica & política, tomo I (São Paulo; Brasiliense); Marx: lógica & política, tomo II (São Paulo: Brasiliense); Sur le concept de capital: idée d ’une logique dialectique (Paris: L’H a r m a tta n ); Dialética marxista, dialética hegeliana: a produção capitalista como circula ção simples (Rio de Janeiro: Paz e Terra); “ A certos e dificuldades d o Manifesto comunista", revista Estudos Avan çados, n" 34.
Bibliografia de referência d a entrevista; A d o rn o , T h . Dialética negativa, M a dri: T aurus. Althusser, L. A favor de Marx, Jorge Z a h a r Editores.
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A rendt, H. As origens do totalitarismo, C o m p a n h ia das Letras. Benjamin, W . Ohras escolhidas, Brasihense. Bernstein, E. Socialismo evolucionário, Jo rge Z a h a r Editores. C astoriadis, C. A instituição imaginária da sociedade. Paz e T erra. D raper. Karl M arx’s theory o f revolution. M o n th ly Review Press. Hegel, G. W. E. tenomenologia do espírito. Vozes. ___________ . Ciência de la Lógica, Buenos Aires: Solar. H o rk h e im e r, M . e A d o rn o , T h. Dialética do Esclarecimento, ]orge Z a h a r Editores. Lefort, C. Eléments d'une critique de la hurocratie. G enebra: Droz. Lenin, V. L Obras escolhidas, Edições Avante!. Lukács, G. História e consciência de classe, Elfos. ■Vlannheim, K. Ideologia e utopia, Jorge Z a h a r Editores. M a rx , K. O capital, coleção O s Econom istas, Abril C ultural. ___________ . Elementos fundamentales para la crítica de la economia política: bor rador 18.S7/18S8, M éxico: Siglo Veintiuno. ___________ . Manuscritos econômicos-políticos, Lisboa: Edições 70.
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L e a n d ro K o n d er: “ E sto u q u e re n d o a p e n a s d iz e r q u e n ã o e s ta m o s d efin itiv a m e n te d e r ro ta d o s. S o frem o s v árias d e rro ta s , m as a g u e rra n ã o a c a b o u ; se g u ra m e n te a g u e rra vai c o n tin u a r e a n o ssa tro p a vai ressu rg ir assim , m eio q u e m ira c u lo sa m e n te . Q u e m sa b e a té a tra v é s de um m ilagre c ris tã o , n o sso s c o m p a n h e iro s c ristã o s p ro m o v e rã o um m ilagre e a g en te vai v o lta r a b rig a r, já e s ta m o s b r ig a n d o ...”
L E A N D R O K O N D E R (1936)
I.eandro K onder nasceu em 1936, em Petrópolis (RJ). Form ou -se em Direito pela Universidade Federal d o Rio de J a n e iro e foi a d v o g a d o trab alhista até 1964. Exilou-se na E u ro pa entre 1972 e 1978. Em 1984, obteve o título de d o u to r em Filosofia pela UFRJ. É professor da Pontifícia U niversidade C atólica d o Rio de J a neiro. Esta entrevista foi realizada em o u tu b r o de 1999.
Goethe dividiu a vida de seu personagem Wilhelm Meister em dois ro mances, O s anos de aprendizado e O s anos de peregrinação. No primeiro, o foco está posto na formação do indivíduo Wilhelm Meister, enquan to o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que você nos falasse de sua formação intelectual? N a m inha vida, na m in h a experiência, n ão dá p ara se p arar as duas coisas, porque fui m uito “ fa b r ic a d o ” , pois m eu pai era com u nista. O desafio de co m p re e n d e r o c o m u n ism o estava colo ca d o desde m uito cedo. E o c o m u n ism o foi u m a coisa im p ortan tíssim a na m inha vida, foi assim c o m o um sentido p ara meu m o d o de agir, de me relacionar com os ou tro s, de sem pre me sentir deved or com relação à socie dade. A sociedade me deu, eu devo a ela — isso vinha do c o m u n ism o d o meu pai, aquela coisa meio ro m â n tic a , meio religiosa. A o m esm o te m p o , eu ac hava que meu pai e os am igos dele co m u n ista s e ram seres bizarros. E n tã o eu me sentia meio divi dido. Por u m lado, pensava: “ Essa religião é nobre, essa seita é gen e ro sa” , por o u tro lado achava as pessoas m u ito esquisitas, meio desequilibradas. E ntão procurei p re servar u m a certa a u to n o m ia , u m a certa independência pessoal, m as sem c o n tra ria r o co m p ro m isso definido previam ente. Q u e r dizer, eu n ão tive essa experiência de dois m o m e n to s, ap re n d iz a d o e peregrinação, sem pre me senti m u ito envolvido. Fui c ultivando a a u to n o m ia , com certa discrição, d en tro de um código de ética m a r c a d o por essa idéia de débito e prestação de serviços à sociedade.
Você poderia nos falar então das etapas da sua fonnação intelectual? Inicialmente, participei da c a m p a n h a presidencial de 1950, que foi u m a experiên cia m uito anim ada. Eu fazia cartazes, faixas, comícios relâmpagos. Eu tinha 14 anos, entrei p ara a U nião da Ju v e n tu d e C o m u n ista no a n o seguinte, em 19 5 1. Eu era um c o m u n is ta co n v icto e ta refeiro, c u m p r i d o r de tarefas, m ateria lista-m ec an ic ista , determ inista. M aterialista vulgar até, m as com alguns m o m e n to s de dúvida. Me lem bro que nós tivemos na U nião da Ju v e n tu d e C o m u n ista um a aula de fo rm a çã o de q u a d ro s, fo rm a ç ã o que passava pela teoria. M a s a teoria era instrum ental. N o s so assistente explicou a diferença entre vanguarda e massa, e nós nos sentimos m uito
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orgulhosos. M in h a célula — naquele te m p o ainda se ch a m a v a célula — se sentiu m uito orgulhosa porque “ nós éram o s v a n g u a rd a ” . E aí depois fomos fazer um a série de comícios. Dois am erica nos vieram ao Rio de Ja n eiro e nós tivemos c o m o tarefa fazer comícios relâmpagos no centro da cidade contra esses dois americanos, K ennan e Vliller. A gente foi p ara lá, levando um b a n q u in h o , o o r a d o r subia n o b a n q u in h o , nós nos infiltrávam os na massa, dizendo “ Isso mesmo! Isso m e s m o ! ” , p a r a envol ver a massa. .Vias tinha m uita polícia, e nós tín h a m o s instrução de n ã o correr ris cos graves. E ntão nós a c ab a m o s fazendo só minicomícios o n d e n ã o tin h a p ra tic a m ente massa n e n h u m a . Q u a n d o a c a b o u essa “ jo r n a d a m e m o rá v e l” , fizemos um a reu nião de balanço e o assistente, o m esm o que tinha nos d a d o aula, disse: “ Eu acho q u e foi positivo, p o rq u e tivemos hoje u m a boa ‘m a ssin h a ’” ... Aí eu, meio ingênuo, disse: “ Bom, eu ac ho que nós tivemos u m a boa ‘v a n g u a r d in h a ’, po rq u e era nós e n ó s ” [risos]. Aí levei u m a b ro nca tre m e n d a , um serm ão, o sujeito disse q u e eu esta va com u m espírito p equ eno-burgu ês corrosivo. E eu fiquei dividido, p o rq u e, por um lado, ficava meio e n c ab u lad o de estar levando b ron ca, p o r o u tr o lado, eu dizia “ n ão , n ão é espírito p e q u e n o -b u rg u ê s co rrosivo, e stou me b a s e a n d o no que me e n s in a r a m ” . Eu n ão era um rebelde, um revoltado co n tra o m é to d o stalinista. Eu achava que era o m é to d o n o rm al, que a revolução era assim m esm o, que o p artid o tinha que ser assim , de cima p ara baixo, au to ritá rio , m a n d o n ista . M ais ta rd e e n contrei este meu assistente, depois d o 20° C ongresso, aí p o r volta de 19.59...
Depois do 20° Congresso do PCUS, em 1956, quando Kruschev denun ciou os “crimes de Stalin”... É, depois de 1956, p o r volta de 1 9 5 8 , 1 9 5 9 . Encontrei co m ele n o Flamengo, n u m bar, de m a n h ã , b ebe ndo cachaça. E ele foi m uito sim pático, me a b r a ç o u m u ito , foi m u ito afetuoso, disse q u e eu era u m a vítima d o stalinism o [risos], que eu tinha me revoltado, q u e ele me colocava co m o um p ioneiro na luta c o n tra os nossos m é to dos, “ que coisa abom inável, co m o nós éra m o s ab o m in á v e is” ... E eu capitulei, ver g o n h o sa m e n te aceitei esse pioneirism o. Fiquei com v ergonha de dizer p ara ele que eu n ã o era p ione iro de coisa n e n h u m a, que, na verdade, eu me sentia inc ô m o d o , mas por razões absolutam ente n ão fundam entadas. E ntão eu saí e depois nunca mais o vi. Se me e n c o n tr a r co m ele vou te r qu e retificar e dizer: “ O lh a , eu achava aquilo n orm al, ac hava esquisito m as n o r m a l ” ... Eu peguei m u ito p o u co d o stalinismo m esm o, po rq u e a m in h a militância de 1951 até 1956 foi um a militância meio truncada. Fui suspenso, n ão p o r revolta c o n tra o m é to d o stalinista, mas p o r q u e faltava ã nossa tarefa mais im p o rta n te, que era a de subir o m o r ro d o m in g o de m a n h ã cedo. D o m in g o de m a n h ã cedo a gente su bia o m o r ro para distribuir o material d o p a rtid o na favela. E a coisa mais im p o r tante da m in h a vida era a festinha de sá b a d o à noite. N aq u e le te m p o , os costume*^ eram duros, entâo a gente não tinha muita perspectiva de, co m o se diz agora, “ ama» r a r um a n in f a ” . E n tã o eu ficava na esperança, passei m uitas e m uitas festinhas de sá b a d o “ na e s p e r a n ç a ” , ficava até o fim da festa. Saía às q u a tro , cinco h o ra s da m a n h ã , p a ra a c o r d a r às seis e meia, e, claro, n ão ac ordava. Eu estava longe de ser um m odelo de militante, sabia disso, me sentia dividido, p o rq u e , p o r u m lado, eu lamentava esse fato sinceramente, e, por o u tr o lado, dizia: “ Bom, mas n ão tem ou tro
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jeito, p o rq u e cu sou o que sou, vivo aqui, tenho meus a m ig o s” . Eu tinha um cír culo de am izades, de pessoas que não tin h a m nad a a ver com o p artid o , e eu p a r ti cipava desse g rup o, ia para as festas e tal, e n tã o não fui um bom militante. Fui sal vo pelo Kruschev. Aí passei a militar mais, com u m a a tivida de m a ior. M a s aí o am biente já era o u tro , a era kruscheviana, a gente n ão tinha mais essa situação meio ridícula que tinha antes, e eu fui me e n tu sia sm a n d o com a possibilidade de p artici p a r dessa reno vação, dessa m u d a n ç a n o partid o , tra z e n d o um as idéias novas, um a a titude mais civilizada, mais polida, mais sofisticada ta m b é m intelectualmente. O s meus co m p a n h e iro s passaram a acolher m elho r algum as idéias e eu buscava essas idéias, ficava ávido por elas. Sou muito m a rc ado pela descoberta do IGeorg] l.ukács. M eu pai viajava m u ito com o m o v im en to Partidários da Paz, que era um b iom bo d o partido, da pax soviética. Papai era o secretário desse m o v im en to no Brasil e viajava m uito. Ele p erguntava ao s com panheiro s: “ O que há de novo aí em m a té ria de crítica de a rte, de crítica literária?” . Ele sabia que o meu negócio era cultura. E ntão ele tro u x e d o Lukács O significado presente do realismo crítico, e, em segui da, eu com prei A destruição da razão. E aí fiquei deslu m b rad o ; “ ah, en tã o é possí vel ser culto, sofisticado e ser um verdadeiro m a rx ista” [risos]. Passei, então, a querer ser igual a o Lukács.
Você falava alemão em casa? N ão . M eu bisavô era alem ão, meu avô era nascido no Brasil, mas ain d a era m u ito ligado à cultura alemã. M as meu pai não. Q u a n d o virou com unista, em 1934, a b a n do nou com pletam ente essa linha familiar, essa tradição da família, então já não sabia alem ão. Eu tive que a p re n d er o alem ão d o com eço.
No começo então você lia Lukács em tradução... Em tr a d u ç ã o francesa e italiana. O José G uilherm e M e rq u io r ta m b é m se entusias m o u p o r Lukács n u m certo m o m e n to . Eu o conheci mais ou m enos nesse período, e aí a gente lia Lukács em italiano, m uitas vezes em francês, pouca coisa em inglês, em p o r tu g u ê s q u a n d o ca lhav a de ter, m as era r a r o . O L ukács p asso u a ser um m odelo. Aí vem o C arlos N elson [C outinho] com [Antonio] G ram sci. O C arlos Nelson escreve da Bahia, m e m a n d a n d o um artigo sobre Sartre, p ara a revista Es tudos Sociais, f u n d a d a em 19.58 pelo A rm ênio G uedes e outro s. T in h a um a luta interna na revista e o A rm ênio teve a idéia de d a r um golpe, hábil, dizendo: “ Preci sam os trazer gente de sangue novo p ara o C on selho de R edação da revista” . E ntão botou lá Fausto C^upertino, Jorge Miglioli e eu. E realmente passei anos p articipando das discussões sem perceber que havia du as tendências. .\s vezes eu estava de um lado, às vezes do outro, exercendo o meu direito de ser independente, mas sem avaliar bem o que estava acontecen do, as conseqüências das posições que se co n tra sta v am . Eu participava da revista, sim, dava idéias e tal. e recebi esse artigo d o C arlos N e l son, achei m uito interessante, m as um co m p a n h e iro ficou meio p reo c u p a d o e “ sen t o u ” no artigo d u r a n te vários meses. O C arlito escrevia da Bahia ansioso: “ co m o é que é, não tem solução para o meu te x to ? ” . Eu n ão conhecia o C arlito pessoalmente, só o conheci depois. Escrevia p a r a ele, “ olha, estam os te n ta n d o e ta l” . Q u a n d o o c o m p a n h e iro relutante resolveu ap ro v a r, ele p ro p ô s que se criasse um a seção na
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revista c o m o título “ P roblem as em d e b a te ” , ou “ T em as em d e b a te ” . M a s o artigo saiu e foi c o m e n ta d o p o r Á lvaro Vieira Pinto, d o ISEB, que o elogiou e teve a im pressão de que o a u to r devia ser jovem. De fato, o velho Vieira Pinto levou um susto q u a n d o soube da idade que o C arlito tinha então: 17 anos. “ Um rap a z de 17 anos escrever um artigo co m o aquele! ” Através d o Carlito entrei em c o ntato co m (íramsci. E o Gramsci dava para a gente u m a coisa que o L ukács n ã o dava. O Lukács dava p a râ m e tro s p a r a a política cultural e dav a f u n d am e n to s filosóficos. M a s a política d o Lukács era e n fe u d ad a no leninismo, integrad a na trad ição leninista, p u r a e sim plesmente. E o Gramsci tinha u m a coisa m eio nova que me fascinou um p o u co , no m eu p eríod o gram sciano. Depois descobri [Walter] Benjamin.
Q uando foi? Foi grad ual. Eu li em 1964 “ A ob ra de arte na época de sua re p rodutib ilidade téc n ic a ” . Peguei um Benjamin que era mais fácil de articular com a d o u tr in a d o m arxism o-leninism o, que c o n tin u av a a ser a referência essencial p ara mim. Depois fui desco b rin d o o u tr o Benjamin, fui r e lu ta n d o em a d m itir que aquele o u tr o Benjamin era m u ito esquisito. Eu dizia: “T e n h o que e n t e n d e r ” . Foi um processo de sedução, eu fui me sentindo seduzido cada vez mais pelas heresias benjam inianas.
Sabemos que quando Carlos Nelson Coutinho escreveu um artigo na revista da Faculdade de Direito da Bahia, você teve acesso a esse arti go e escreveu uma carta para ele. Era uma atitude comum essa sua, a de tentar buscar intelectuais onde você os achasse, ou foi um caso es pecífico com o Carlos Nelson? N ã o , em geral n ão é m uito fácil ac h a r um p e n s a m e n to articulado, rigoroso, vee mente. M as em princípio sou m u ito curioso. Eu me sinto profissionalm ente m uito bem e n c am in h ad o co m o professor. A d o ro d a r aula, acho que é a gratificação m aior p ara o m eu narcisism o. M e u s am igos me escutam com p ouca paciência, em casa é u m a loucura. Em casa, q u a n d o com eço a falar, m inha m ulher, que é jornalista, logo diz: “V am o s L eandro, dá o lead da m a té r ia ” [risos]. Eu digo: “ A m atéria n ão tem lead". “ Então deixa para depois.” Lá na Faculdade, não; lá eu d o u aulas, tem aquelas criaturas que me atu ra m , escutam o que eu falo assim meio hipnotizadas. Aí dá uma sensação de p raz er físico, um calo r assim que sobe [risos], a d o r o d a r aulas. E se m pre apa rece m alunos m u ito inteligentes, aí eu fico m eio fascinado, eu gosto de c o n versar, con v id o p ara to m a r café, b a to p a p o e m bar. Bar é f u n d am e n tal, o bar é um am biente m u ito especial. A cho que te n h o o que Bakhtin ch a m a de u m a vocação dialógica. Eu g osto de diálogo, u m a pessoa inteligente me fascina um p o u co p o r isso, pela possibilidade de a p re n d e r algo de novo, m esm o que seja u m a coisa e r r a da, depois a gente corrige. O C arlito, eu me lem bro, me entusiasm ou m uito. Esse artigo dele, “ A p ro b le m ática atual da d ia lética” , é um artigo qu e ele escreveu bem jovem, a c h o que ele tinha 16 anos, é a n te rio r a o artig o sobre Sartre. É u m artigo fantástico, p o rq u e é u m q u a d r o de referências de u m a riqueza es p an to sa , u m a au d á cia, form ulações teóricas audaciosíssim as, e ele mais ta rd e disse assim p a r a mim : “ Eu botei lá tu d o o que eu s a b ia ” .
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Por que você foi fazer direito? Fiz direito p orque gostava daquela encenação d o júri, gostava de júri, cheguei a fazer algum júri. M as depois descobri que p ara você ser eficiente co m o ad v o g a d o , a d v o g ado criminal, você tem que pegar o processo já na fase inicial, na polícia. E eu tenho um p rob lem a de saúde, eu te n h o “ alergia a polícia” |risos|. E ntão n ão podia ser a d v o g a d o crim inalista, virei a d v o g a d o trabalhista e aí, através do p artid o , entrei em c o n t a to com sindicatos nos quais a direção do p artid o tinha hegem onia. E n tão comecei a tr a b a lh a r co m o a d v o g a d o sindical, até o golpe de 64. C o m o golpe de 64, fui dem itido de todos os sindicatos, m uito polidamente. .Muitos dos interventores diziam: “ T em os boas referências profissionais a seu respeito, mas o senhor é um n o tó rio c om unista , en tã o n ã o p o d em o s m antê-lo a q u i ” . E eu dizia: “ C laro , claro, c o m p re e n d o perfeitam e nte” . Pagaram as indenizações todas, en tã o passei um an o “ vivendo de v a g a b u n d a g e m ” , estu d a n d o , lendo, fazendo revisões p ara a Civiliza çã o Brasileira, e mudei de vida, a b a n d o n ei a advocacia. D esde 1964 n ã o advogo. Eu tinha p lanejado escrever um ensaio in o va dor sobre Kafka. Pois aí tinha um p r o blema; eu era lu kacsiano, mas ad o ra v a o Kafka. E ntão, resolvi escrever um ensaio resgatando o Kafka. Fichei a o b ra to d a d o Kafka...
Já influenciado pela leitura do Benjamin? N ã o , ainda n ão tin h a lido Benjamin sobre Kafka. Foi u m a coisa meio em pírica m esm o, fui d escobrind o Kafka lendo o Kafka, e c o nstruí um a estru tu ra de um e n saio e a e s tru tu ra n ã o resistiu ao ac ú m u lo do material em pírico. Q u a n d o fui reler as m inh as fichas, as m inhas fichas n ão co n firm a v am a m inha “ hipótese b rilh a n te ” . E n tã o fiquei com aquele material na m ão, e me p r o c u r a r a m p ara particip ar de um a coleção V ida e O b r a . A José Á lvaro E d ito ra tinha sido as su m id a p o r J o ã o Rui M edeiros. Ele me conhecia e me perguntou: "V ocê q u er fazer que p e rso n a g e m ? ” . Eu disse: “eu quero fazer o M a r x ” , mas o .Marx ele havia d ado para o Carlos Estevam M artins, qu e tinha escrito sobre Freud e tin ha sido um sucesso d a n a d o . O J o ã o Rui .Medeiros disse: “ Você p ro p õ e algum a coisa, você não quer fazer sobre o M ao-T séT u n g ? ” . Eu disse que não. Aí eu p ro p u s Kafka. Ele aceitou e em dois meses fiz o K afka. E ele n ã o sabia que eu já tinha lido, fichado o Kafka to d o [risos]... Foi fácil fazer o livrinho, o livrinho resultou de um fracasso. D o fracasso de um projeto de ensaio, saiu o livrinho de divulgação. E n tão ele ficou m uito im pressio nado com a rapidez c o m que eu fiz o Kafka e ficou m u ito mal im p re ssio na do co m o fato de o C arlos Estevam estar d e m o r a n d o m uito p a r a fazer o .Marx. Ele descobriu que o C arlos Estevam não tinha c o m eç ad o e deu o M a r x p ara mim . E ntão eu fiz o Marx: vida e obra e fiz Os marxistas e a arte. Isso tu d o antes do exílio: fiz q u a tro livros jíntes do exílio.
Pensando no Carlos Estevam Martins e no Vieira Pinto, qual era a sua relação com o ISEB? Fui a lu n o do ISEB e dei um cu rso a convite da Associação dos E.x-Alunos d o ISEB, que era dirigida por A lberto L ato rre de Faria. .Mberto L atorre de Faria me convi d ou para p articipar de um curso, prim eiro jun to c o m o .Merquior, sobre estética, e nós fizemos um curso juntos. E a mim me convidaram para fazer a estética de M a rx .
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D epois disso, dei um curso sozinho, de q u a t r o aulas, de I n tro d u ç ã o à Filosofia de M a rx . Esse curso g e ro u u m a apostila que foi a c h a d a depois d o golpe de 64, e eu fui c h a m a d o . Fui p en s a n d o que ia ser ac u sa d o , m as o coronel que era responsável pelo inquérito me disse; “ O se n h o r vai d e p o r c o m o te ste m u n h a, ainda n ã o é a c u sado. N ó s ac h am o s essa apostila sua e eu qu eria que o senhor co n firm a sse” . “ C o n firm o ” , eu disse. “ Realm ente está boa a apostila, li, n ã o é p r o p a g a n d a . ” Eu fiquei an im ad o . Bom, aí ele perguntava: “ O senh or foi a lu n o d o curso do professor Vieira P in to ? ” . “ F u i” , disse eu. “ E n tã o o se n h o r n ã o p o d e se recusar a d a r um a opinião sobre o curso. T e n d o p articip a d o d o cu rso do professor Vieira Pinto, p o de con fir m a r que o curso co n trib u ía p a r a a agitação das m a ssas ?” “ R esp o n d eu q u e ...” — aí passou a palavra p a r a m im , e eu, d ita n d o — “ Prim eiro, as massas jam ais c o m p a r e ceram às aulas do professor Vieira Pinto, que, se n ã o me falha a m e m ó ria, tinha oito alunos. Segundo; se as m assas com parecessem , n ão enten d e ria m o professor Vieira Pinto, que tem u m a linguagem m u ito a b s tra ta , m u ito h eg eliana” . N aqu ela época eu n ã o tinha condições de dizer o que diria hoje: “ meio a d o r n i a n a ” . M in h a ligação foi essa. N a época a gente sim patizava um p o u co com aquele espírito do ISEB. O Arm ênio achava que essa idéia da tese da revolução nacional tinha um efeito colateral perverso, q u e era o de colocar o inim igo lá fora e a t e n u a r a dram a tic id ad e da co n tra d iç ã o interna, isso a gente enxerga hoje, n aquela época as pessoas n ão enxergavam . O A rm ênio dizia, justificando a linha d o partido que co nvinha ã União Soviética obviam ente, que a gente p o d eria m o d e rn izar o p a rtid o através dessa li nha. Essa linha para nós internam ente era boa, em b o ra trouxesse esse efeito colateral que era, prim eiro, o de pren d e r o p a rtid o a um a linha conveniente à U n ião Soviéti ca, antiim p erialism o, a ntiam erica nism o, e, em segundo lugar, a ten u a v a um po uco a radicalidade da nossa política na crítica à burguesia brasileira, .'\rgumentava-se que p o r aí a gente conseguiria arejar o partido . “ Privilegiando o nacional, tem os a o p o r tu n id a d e de c a u sa r are ja m e n to cultural n o partid o , o que obriga os c o m u n is tas a conhecerem o Brasil. O s co m u n ista s vêm com esquem as d o u trin á rio s , soviéti cos, e desprezam a realidade brasileira. A realidade brasileira é encaix ad a d e n tro dos esquem as d o u trin á rio s . A go ra, a gente os o briga a m e rg u lh a re m na cu ltu ra brasileira, na diversidade da cultura brasileira” . Isso na época me pareceu c o n v in cente. Aí a gente sim patizava com o ISEB, ia lá e tal. £ dat até o exílio, conto é que você vê esse período? Esse foi um p eríod o interessante, o p erío d o de 1967, 1968. N ó s t ín h a m o s u m a e n tidade, um a organização ch a m a d a C om itê Cultural do Partido. Eu era m e m b ro dessí ■ C om itê C ultura l, e esse C o m itê C u ltu ra l n ão traç av a política cultural, n ão tinha a pretensão de traçar u m a política cultural p ara os intelectuais e artistas cariocas. .Vias ele tinha a p reo c u p a ç ã o de te n ta r facilitar um a certa c o o rd e n a ç ã o entre m o v im e n tos já existentes e jamais recebeu o rd en s da direção. Fizemos algum as bob agens? Eu acho que fizemos, m as foi p o r c o n ta p ró p ria , n ão foi p o r culpa da direção. O pessoal im agina que o C o m itê C ultura l era “ o braç o de M o sc o u ch e g a n d o a o Bra sil” , que o braç o da direção d o p a rtid o m a n ip u la v a o C o m itê C ultural. O C om itê C ultura l era um negócio que tinha Ferreira Ciullar, tinha o V ianinha, um a p o rçã o de gente. U m a vez o G ullar, que era o assistente d o g ru p o das bases d o teatro, ti
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nha um a reuniã o im p o rta n te — o g ru p o estava em crise. M a s o G ullar estava com u m a febre de 39 graus, en tã o me telefonou e pediu p ara passar na casa dele. “ V ou te pedir um a coisa, você vai d a r assistência à reunião d o pessoal d o te atro, reunião a m p lia d a .” E ntão eu disse: “ Q ual é a lin h a ? ” . “ N ã o , não tem linha, você tem que evitar que eles se devo rem , só isso, p o rq u e não há c o n tra d iç ã o política ali que não esteja ligada intim am en te a c ontra diçõe s pessoais. E ntão, tu d o é pessoal e você vai co m a sua a u to rid a d e de dirigente, rep rese n tan d o a direção d o C o m itê C ultura l, e vai evitar q u e eles p a r ta m p ara a guerra total, uns c o m os o u tr o s . ” E realm ente foi um a experiência inesquecível, foi em 1967, no final d o segun do semestre de 1967. Tinha pessoas que eram muito simpáticas, tipo Cecil Thiré, que perguntava: “ Q u a n to s m in u to s eu te n h o ? ” . Se você dissesse três m inutos, ele falava mais devagar; se dis sesse dois m inutos ele falava mais depressa; ele regulava o ritm o da fala pelo te m po que tinha. Um ca ra m u ito sim pático. T in h a José W ilker e tinha o nosso q uerido V ianinha, q u e era um a pessoa adm irável, m a s que tinha um a vida a m o ro s a m uito com plicada. Um am igo dele um a vez disse que ele passava pelas m ulheres c o m o um tr a to r, que deixava m ágoas, ressentim entos. E to d a vez que o V ianinha falava o W ilker falava em seguida e o esculh a m bava . D epois da qu in ta ou sexta vez que o V ianinha falou e o W ilk er se e s quentou em seguida, já estava to d o m u n d o rind o e o W ilker disse: “ D o q u e vocês estão rindo? Vocês estão p e n s a n d o que eu te n h o um pro b lem a pessoal com o c o m p a n h e iro V ianinha? Pois eu te nho m esm o, entendeu, eu te n ho mesmo. N u n c a vou p e r d o a r o que você fez com a Fulana, seu c a n a lh a ...” [risosj. Aí eu fui o b rig ad o a dizer: “ C a lm a , c o m p a n h e iro , q u e r o lem brar que es ta m os n u m a reuniã o política, as coisas têm q u e ser discutidas politicam ente, p ro b le m a s pessoais n ã o devem ser discutidos aqui d e n t r o ...” . M e lembrei da r e c o m e n d a çã o d o G ullar, sábia recom endação .
Como você recebeu a teoria da dependência? Eu a c h o q u e u m a das coisas que m e deu m u ito o que pensar foi o risco de a gente subestim ar a luta de classes aqui d en tro e o inim igo, as classes d o m in a n te s brasilei ras. Isso me deu m uito o que pensar, inclusive o Fernando Henrique. Hoje ele é m uito irritante, dem ais, um a coisa h o rro ro sa. M a s eu me lem bro da leitura dos livros dele no p assad o c o m o um a coisa que foi significativa p ara mim . Estive o u tr o dia discu tin d o com o C ésar Benjamin. O C esinh a qu eria instituir um prêm io p a r a qu em conseguisse p ro v ar que o F ern a n d o H en riq u e alg um a vez na vida teve u m a idéia inteligente, e eu disse: “ Cesinha, n ã o faz isso, que eu me c a n d i d a t o ” [risos]. £ como você via a diferença entre o ambiente cultural carioca e o am
biente cultural paulista, quer dizer, inclusive as diferenças de leitura do Lukács, a que era feita em São Paulo, e as que vocês faziam aqui? Eu n unca analisei isso mais refletidam ente, m as te nho a im pressão de que, em São P aulo, o fu n cio n a m e n to da universidade co m o instituição teve efeitos mais sensí veis« d o que no Rio de Janeiro. N o Rio, nos am b ientes intelectuais prevaleceu d u rante m u ito te m p o , n ã o sei se ain d a prevalece hoje, m as prevaleceu d u r a n te m uito te m p o um individualism o m ais a c en tu ad o . E n tã o as pessoas se o rganiz av a m m uito em to r n o de indivíduos. E em São Paulo a prática d o tr a b a lh o universitário criou
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condições p a r a um a autodisciplina um p o u co m enos precária d o que aqui. Eu acho que a inteiectu ahdade p a u h s ta trab a lh a mais disciplin adam ente n o p la n o da c o n s tru ç ã o teórica. O W erneck V ianna, que é o u tra pessoa m u ito curiosa ta m b é m , um teórico m arx ista d o PM D B , tem um as coisas m uito engraçadas, interessantes. Ele diz que o Rio de Ja n eiro é um cemitério dos m arxistas. O m a rx ism o se caracteriza p o r p r o c u r a r sem pre pensar a centralid ade d o tra b a lh o , da p ro d u ç ã o . E o carioca, dizia ele, vive em to r n o do im aginário, o carioca joga m uito. A p r o p o rç ã o do jogo na p o p u la ç ã o carioca é incrível, jogam no bicho, jog am nos cavalos, jogam na loto, jogam na quin a , jogam no bingo, furiosa, freneticamente. O centro da vida d o c a rioca é mais o im aginário d o que o trab a lh o . O m a rxista, aqui, está ferrado.
Você tomou a decisão de ir para a Alemanha logo depois do A IS ? N ã o , n ão , eu fui preso em 1970, e aí o ad v o g a d o , na época, me disse o seguinte: “ Você deu az ar p o rq u e o seu processo está bem feito. N o rm a lm e n te os processos estão sendo m uito malfeitos, h av e n d o a possibilidade de n u m tribunal a gente vir a a n u la r tu d o , mas o seu processo está bem feito” . E ac onselhou-m e a sair do país. N a época havia dois casais de alemães q u e eu conhecia e que estavam aqui n o Rio de Jan eiro, um deles social-dem ocrata, o o u tr o de m o c ra ta cristão, e foram m uito solidários. E stavam c o n tra a d ita d u r a totalm ente; e m b o ra meio co nservadores, me a ju d a r a m a sair daq u i e facilitaram m u ito a m in h a chegada ã A lem anh a. Depois eu consegui um a bolsa, u m a bolsa peq u e n a, o rdinária . Posteriorm ente consegui um em prego na universidade, bem pago, em Bonn.
Já dominava o alemão at? N ã o . Eu tinha c o m eç ad o a e studar em 69, antes d a prisão. Leon H irz m a n , C arlos N elso n C o u tin h o , eu e d u a s am igas nos m a tricu la m o s n o Institu to (io e th e p ara estudar e to d o s foram a b a n d o n a n d o aos poucos, largand o, mas eu fiquei lá, n e u rótico obsessivo, até o fim. Isso foi ó tim o p o r q u e me deu um a base. Eu devo dizer o seguinte: fui p ara a A lem anha, em 1972, com a convicção de que sabia alem ão, p o r causa d o curso d o Instituto G oethe, m as q u a n d o cheguei lá, as pessoas n ã o fa lavam as coisas que estavam n o meu livro [risos]. Tive u m a dificuldade enorm e, fi quei uns seis meses za n z a n d o , o u v in d o palestras na universidade e alegre q u a n d o percebia qu e se m u d a v a dc tem a, “ ih, m u d o u de assunto, m u d o u dc as su n to ...” . Até que um dia deu um estalo e comecei a ler, descobri que estava d a n d o p ara ler. E ntão li, passei lá cinco anos, em cinco anos deu para desenvolver um conhecim ento passivo bastan te b o m , o c onhe cim en to ativo é mais restrito. Eu falo alem ão, m as falo co m pouca desenvoltura, sem sutileza n e n h u m a , n ã o dá p ara falar coisas ele gantes e sutis. M a s leio, em geral, sem dificuldade.
Como você pcusa as etapas do seu desenvolvimento intelectual? Já vi mos que o marxismo e o leninismo foram marcantes até meados da década de 60... E verdade, acho que sim. A gora, ach o que o perío d o na A lem an h a foi im portan te. É claro que a gente filtra sem pre lem branças divertidas e tende a cancelar le m b r a n ças m u ito desagradáveis. M a s o perío d o da A lem an h a , que foi m u ito desagradável
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em alguns aspectos, foi m u ito g ratifican te em o u tro s. D esagradável era a ang ú stia de n ão saber se um dia cu v o ltaria ou não. De vez em q u a n d o vinha aq u ela idéia: “ F. SC a d ita d u ra d er certo? Se ela se p ro lo n g ar por várias gerações, eu vou ficar aqui, vou m o rre r aqui na A lem an h a?” . T a n to que virei m eio h ip o c o n d ríaco lá. L em bro que ficava me o b se rv a n d o , o b se rv a n d o o m eu o rg an ism o , e um dia senti um a d o r e disse: “ Eu vou m o rre r, vou te r um in farto , m o rre r so zin h o a q u i” . C heguei a a b rir a p o rta , d estran q u ei a p o rta p a ra não precisarem arro m b á -la q u a n d o eu co m eças se a feder, deitei-m e na cam a p ara m o rre r e aí arro tei e “ p asso u o in fa rto ” . Fiquei m eio d esm o ra liz ad o a m eus p ró p rio s o lh o s, foi m u ito desag rad áv el. Eu ia m u ito a sebo na A lem anha, lia m uito. De repente enco n trei A interpretação dos sonhos, e resolvi que ia ler; Freud é in teressan te, Freud escreve m u ito bem , m u ito claro. Foi um a d esco b e rta im p o rta n tíssim a, até e n tã o eu pensava que sen d o m arx ista eu sa bia mais coisas do que o Freud, que as coisas essenciais eu sabia e ele não sabia porque n ão era m a rx ista. N a m inha cabeça, desde jovem , tin h a ficado essa idéia, e na A le m a n h a descobri que ele sabia m ais que eu [risos]. Sobre as coisas essenciais ele sa bia m ais d o que eu... D epois eu li o M a rx to d o , naq u ela coleção d a A lem anha O rien ta l, a MarxEiigels Werke. G anhei de presente d o Sinval B am birra. Ele, c o ita d o , estava m o ra n do em Berlim O rien ta l, e ficou tã o co m o v id o com um a m inha visita q ue disse: “ Eu vou te m a n d a r isso a í” . Era a coleção, m a n d o u pelo co rreio a co leção in teira. Eu ia lendo — lendo e fichando. Foi ó tim o p ara m im , foi um a coisa que ap ro v eitei m u i to bem no p la n o d o p en sam e n to , da reflexão. A cho qu e foi só no exílio eu co n se gui “ a rru m a r a c a s a ” , tira n d o aquela m obília terrível da d o u trin a d o m arx ism o leninism o. E p ara isso aju d o u m uito ta m b ém a m ilitân cia, a reto m ad a d a m ilitân cia em Paris. O s co m u n ista s brasileiros g o stam de Paris, e n tã o se o rg an izav am em Paris. A gente tin h a reuniões a que eu ia sem pre, a m ilitância foi fu n d am en tal. P o r que tam bém no p la n o político eu estava com alg u m as idéias m eio d eliran tes, e des cobri que elas eram d eliran tes na m ilitância.
Quem participava das reuniões nessa época? A rm ênio, ('a rio s N elson, M a u ro M alin , A n to n io C arlo s P eix o to , en tre o u tro s. E A loysio N u n es F erreira, que era m u ito en g ra çad o . O c o m p an h e iro A loysio tin h a um as coisas m uito divertidas...
Você faz uma comparação entre o Lukács e o Benjamin, com respeito às interpretações que eles mesmos faziam das fases dos pensamentos deles. No caso do Lukács, as autocríticas mais se assemelhavam a autos-de-fé; e no caso do Benjamin, parece que ele setnpre encontrava meios de achar pontos de contato, de conciliar o seu novo ponto de vista com a sua produção precedente. Com qual dos dois você se identificaria mais neste aspecto? A cho que com nenhum dos dois. A cho que L ukács tem um certo co m p ro m isso com a co n tin u id a d e que ach o forte dem ais. D aí a necessidade dele de rec o n stru ir o p en sam en to sem pre em função da p reservação da c o n tin u id a d e na ru p tu ra . H á um a ru p tu ra , m as no fu n d o , no fu n d o essa ru p tu ra n ã o im pede que a h eran ça seja re to
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m a d a , desde que a gente faça um a lim peza de te rre n o , qu e é o au to -d e-fé. Lim peza de terren o : “ eu errei, te n h o que p revenir os o u tro s p ara n ão co m eterem o m esm o e rro que eu c o m e ti” ; e n tã o há um ac erto de c o n tas “ consigo m e sm o ” , e aí ele tem essa ilusão de p reserv ar a c o n tin u id a d e , atrav és das au to crític as. O B enjam in, ao co n trá rio , dá p o r su p o sto qu e a vida h u m a n a é ru p tu ra , e n ão se p reo c u p a em p erd e r te m p o , ex p lica n d o as m u d an ças. P o rq u e ele dá p o r su p o sto que as m u d a n ça s vêm m esm o e ac red ita nu m a espécie de c o n tin u id a d e su b te rrâ n ea na m u d a n ça , e o m o d o de ele scr ele é m u d a n d o m esm o. E xiste um a co n tin u id a d e, p o rta n to , nessa id en tid ad e, m as ela n ã o d epend e d a fo rm a da co n tin u id a d e. E eu n ão sei... eu n ão m e sinto nem tã o co n tín u o , nem tã o m a rc ad o pelas ru p tu ra s, devo m e e n c o n tra r em alg u m te rren o in te rm ed iá rio aí.
Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Como você vê as re lações entre a filosofia e a cultura brasileira? Eu ach o q u e, até m u ito recen tem en te, rea lm en te prevalecia aq u ela idéia de q u e o b rasileiro n ã o dá p ara a filosofia. A filosofia é u m a coisa á rid a , m u ito a b s tra ta , o co n ceito é ca n sa tiv o , e n tã o n ão era o n osso estilo. N ó s so m o s um p o v o d a im a gem , nós som os da in tu içã o , da sensibilidade, aq u i a coisa q u e m ais o u ço d izer é q u e F u lan o “ é m u ito sensível” |ris o s |. E n tã o é co m p lic ad o lid a r com essa c o n c ep ção ... A g o ra, eu ach o que um a base de co m p etên cia filosófica é c o n stru íd a ao lo n go de v árias gerações, de m o d o que n ã o sei se vai d a r p a ra su p e ra r esse p re c o n ceito m u ito ra p id a m e n te , m as ach o que já está sen d o feito um tra b a lh o in teres san te nesse cam p o .
\ a sua opinião, quem seriam os filósofos brasileiros mais importantes? Ih, caram ba! É aquela pergunta que é difícil de responder p orque você cita uns nom es, esquece o u tro s e faz m uitos inim igos... M a s ach o sim p áticas as iniciativas d as p es soas. C onfesso que m e sinto m uito desencorajado de ler o tra b a lh o da M arilena sobre E spinosa, A nervura do real, p o rq u e é im enso... M as a M a rilen a é um a pessoa que seg u ram en te to m a iniciativas q u e eu a c h o m u ito positivas. T em o s o G ia n n o tti, que é um a pessoa difícil. T am b ém escreve coisas pedreg o sas e n ão estou a c o m p a n h a n d o o tra b a lh o dele. M as vejo nele um a disp o sição qu e me é sim p ática, m e ag ra d a. G osto m uito da interlocução, do pap o com o R o b e n o Schw arz, com o Paulo A rantes, q u e pensam m u ito p arecid o , ach o que o p o n to de vista deles é in teressan te e é tr a b alh ad o de um a fo rm a m u ito instigante. As vezes n ã o c o n c o rd o co m alg u m as co i sas que eles fazem , m as isso n ão é decisivo. D ecisiva é a c o la b o ra ç ã o qu e eles d ã o a esse tra b a lh o de m a p ea m en to de conceitos, de p relú d io s à filosofia. Se n ão é filoso fia, é um prelú d io a ela. G o sto m u ito d o G erd B o rnhein, qu e é u m a pessoa a quem devo inclusive o m eu d o u to ra d o . Ele foi o m eu o rie n ta d o r. E é um a pessoa qu e dá um as aulas estupendas. As aulas dele deviam ser grav ad as, são obras-prim as. O G erd é m u ito a p a ix o n a d o pela filosofia e eu ach o tam b ém m u ito p o sitiv o esse m ergulho dele na filosofia. A cho in teressantes ta m b ém os tra b a lh o s d o E m an n o el C a rn e iro L eão, que é um cara eru d ito em filosofia, que ta m b ém vai fu n d o na Cirécia. Q uem m ais? F alto u m uita gente...
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Que conceito (s) de sua reflexão você destacaria como mais representativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que você nos contasse como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje. Eu, a rigor, m e co n sid ero m u ito p o u co o rig in al, ach o que o tip o de tra b a lh o que faço é m u ito m ais um tra b a lh o de crítica cu ltu ral, com um a d im en são p o lítica. P ro cu ro to rn a r acessíveis algum as idéias, algum as construções teóricas, e eventualm ente tra g o alg u m a c o la b o ra ç ã o q u e n ã o co n sid e ro m u ito im p o rta n te . D as coisas qu e escrevi, ach o que a coisa m ais cu rio sa , m ais m inh a, é a idéia d o curriculum mortis. É um a espécie de revisão, um a re to m a d a da velha au to crític a qu e conheci de um a form a m u ito a b a sta rd a d a na m inha m ilitância de p a rtid o . Ficava m u ito im p ressio n a d o , as pessoas faziam au to crític as, co m o eu fiz au to crític as, a b so lu ta m en te in sinceras ou sem i-insinceras às vezes; enfim , o p o rtu n ista s. E n tã o a au to crític a virou um jogo d e n tro do p a rtid o . E ra um a m an eira de você ev itar u m a p u n iç ão , de cria r u m a co n d içã o p ara p o d er c o n tin u a r a fazer p arte p o liticam en te d o p a rtid o , n ão se q u eim ar, n ão se d eix ar excluir. E n tão a a u to crític a d eixou de ser au to crític a, p o r que n ão era um m ov im en to pessoal, era um m o v im en to im p o sto pelas c irc u n stâ n cias ex tern as. N o e n ta n to , existe a necessidade da au to crític a n o p lan o d o m o v i m e n to pessoal, e aí, p en san d o nisso, eu m e dei co n ta de qu e o curriculum vitae é u m a peça ideológica. M a s n ão só na u niversidade. Q u a lq u e r c a n d id a to a em prego é o b rig ad o a co m eter esta infâm ia que é e la b o ra r o seu curriculum vitae, que é no m ínim o um a peça om issa, em geral m e n tiro sa m esm o. V ocê a p re sen ta as coisas de m aneira a tra n sfo rm a r p equenos êxito s em g ran d es êx ito s e so b re tu d o o c u lta r d e r ro tas. .^í percebi que um a das m an eiras de c o m b a te r esse triu n falism o da ideologia d o m in a n te , que co m o diz o velho M a rx é sem pre a ideologia d a classe d o m in a n te , um a das m an eiras de c o m b a te r esse triu n falism o a d v in d o da classe d o m in a n te se ria privilegiar o curriculum mortis: fazer as pessoas — n ão n o p la n o d o c a n d id a to a em prego, em que se julga o curriculum vitae, m as n o p la n o d a relação pessoal, da am izade, d o a m o r — se expressarem e dizerem q u ais fo ram as besteiras qu e elas fizeram na vida, q uais foram as tra p a lh a d a s, quais os erro s, as calhordices. Pois isso m o ld a o ca rá te r, form a a p erso n a lid a d e da pessoa. E nfim , essa idéia d o curriculum mortis é um a idéia que me a g ra d a.
No livro um da É tica a N icô m aco , Aristóteles coloca a dificuldade de avaliar quando um homem é ou foi feliz, apontando também para a importância de um autoconhecimento consistente, capaz de fazer a pes soa enfrentar melhor os reveses da vida. Como você responderia hoje a essa questão de Aristóteles? Quando se pode dizer que uma pessoa é ou foi feliz? N ã o te n h o um a resp o sta p ara essa p erg u n ta . A cho qu e a gente busca a felicidade, m a s co m o a felicidade é b uscada p o r ca m in h o s sem pre pessoais, é m u ito difícil fo r m u la r um critério que valha p ara todos. A cho im p o rta n te a gente q u ere r ser feliz, m as a felicidade co m o m eta m e parece um a coisa m u ito o b sc u ra . O co n ceito de felicidade tam b ém n ão está claro . A A gnes Fleller, a últim a vez que veio aq u i, fa lou sobre esse assu n to , dizendo coisas interessantes.
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Você sempre teve, nas suas obras, a preocupação de utilizar uma lin guagem menos técnica do que aquela adotada pelos intelectuais aca dêmicos, de modo a atingir um público mais amplo que o dos freqüen tadores assíduos do “bordel filosófico”, para usar suas palavras no prefácio a O m a rx ism o na b a ta lh a das idéias. Como você avalia hoje os resultados dessa iniciativa e a contraposição freqüente entre o rigor do especialista e a teoria que atinge um público mais amplo? Aliás, o A ntonio Cândido destaca essa sua característica na orelha do seu li vro sobre o Benjamin... É, o A n to n io C â n d id o me deu força ah , sou m u ito g ra to a ele. Eu ach o o seguinte: n ã o há p o rq u e excluir a sim plicidade p ara a legitim ação de um te x to ... N ã o há raz ão p ara c o n te sta r a legitim idade de um te x to científico se ele n ã o está b asead o no uso de um a linguagem difícil. A cho que às vezes a term in o lo g ia é co m p licad a p o rq u e não há o u tra m aneira de se tr a ta r rig o ro sam en te um d eterm in a d o assu n to , q u er dizer, um a d eterm in a d a q uestão. M as n ão m e vejo com o um inim igo d a linguagem difícil. A o m esm o te m p o em que respeito a legitim idade desse uso de um a linguagem difí cil, p erceb o que às vezes as pessoas se ex pressam , na acad em ia, n u m a linguagem fo rçad am en te d ificultosa, q u er dizer, nu m certo jogo, n um jarg ão u n iv ersitário que se desenvolve na exibição d o tra b a lh o de um pro fesso r p ara o u tro . O s m eus pares vão me julgar; falarei a linguagem que eles respeitam . A cho que, e m b o ra essa dificul d ad e de linguagem possa ser co m p re en d id a , q u a n d o a gente a b o rd a tem as que têm a ver com um a p reo cu p ação d em ocrática, a gente tem que te n ta r ser coerente até com o p ró p rio p rincípio da dem o cracia, que é o prin cíp io da am p liação . Eu n ão posso discutir questões que envolvem conceitos de dem ocracia me situ an d o n um p lano que é inacessível à m aioria das pessoas que têm interesse n a d em o cratização da sociedade. T en h o que te n ta r chegar a elas, d a r um passo que seja na d ireção delas, o u tro s d a rão o u tro s passos. R ealm ente te n h o essa p re o c u p açã o em exercer algum a influência n o sentido de en c am in h ar as discussões da m aneira m ais acessível p a ra um público m ais am p lo . G o sto de fazer isso, gosto de sim plificar. Às vezes a gente sim plifica, se im pede de a p ro fu n d a r, p o rq u e faz essa o p çã o , m as é um a o p ção . A gente paga um preço p o r ela; n o m eu caso, ela m e sensibiliza. G o sto desse tip o de tra b a lh o que faço, nu n ca preten d i que ele seja um tra b a lh o p a d rã o , qu e to d o o m u n d o ten h a que tr a balh ar co m o eu. M as insisto em dizer que ele tam bém é um tra b a lh o legítim o, válido.
Você se considera um iluminista? V'ocê m e pegou nu m a m á h o ra p ara d iscu tir isso. Eu li a sem an a p assad a a q u e lf livro d o K oselleck, Crítica e crise. O K oselleck é um h isto ria d o r, um su jeito qu<> d esconfio que é m eio co n serv ad o r, m as q u e diz o seguinte: o ilu m in ism o foi o b r i g ad o a e n fre n ta r o E stado ab so lu tista , e o E stad o ab so lu tista crio u regras d o jo g o que o ilum inism o acabou aceitando p ara poder co n testar o E stado absolutista. E n tão os ilum inistas se b asearam na am p lia çã o da esfera d a m o ral — Locke, p o r ex em plo — p ara fazer política, m as sem dizê-lo. In d ep en d en tem en te d o fascínio pelas luzes da raz ão , d everíam os reconhecer que o ilum inism o nasceu m e n tin d o , e isso criou um a certa hipocrisia e s tru tu ra l. F iquei m eio im p ressio n ad o com essa crítica, p o rq u e acho que talvez ela esteja form ulada de um a m an eira global contestável, po-
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lêniica, m u ito discutível, m as n ão é ab su rd a , não . Eu n ão me identifico m u ito com a perspectiva do R o u a n et, que é um a pessoa de qu em g o sto m u ito ta m b ém , com q uem te n h o um a relação m u ito boa — a gente co n v ersa m u ito q u a n d o ele está no Brasil — , m as ach o que talvez ele te n h a um a visão m u ito positiva — dem ais! — do ilum inism o. A cho q u e sou m ais d esconfiado do qu e ele em relação ao legado do ilum inism o. N ã o sei se m e co nsidero um ilum inista, se bem q ue ach o qu e to d o s nós devem os algum a coisa ao ilum inism o.
Pergunto isso porque acho que nos seus textos você parece fazer um gran de esforço para formar o leitor, o mesmo leitor que você tem que dar por existente para poder escrever os seus livros. Não haveria uma afi nidade desse movimento com o iluminism o do século XVIII? Será que a esfera pública brasileira não exige esse m ovim ento de formar um lei tor que a gente tem que dar por existente, para poder escrever os livros? V ide Formação da literatura brasileira, d o A n to n io C â n d id o . É possível, eu nu n ca tin h a p en sad o nisso, é possível. Eu atu o nesse asp ecto m u ito in tu itiv a m en te, n ão é um p ro g ra m a que eu ten h a. G o sto de fazer assim e d o u p o r su p o sto q ue q u ero me c o m u n ic a r com um tip o de le ito r que n ão precisou te r p assad o p o r aq u ela d u ra au to d isc ip lin a que a u niversidade exige da gente. Q u ero falar com o su jeito qu e foi m ilitante. idéia de m ilitan te d o p a rtid o que recom eça a viver, já d ep o is da des g raça. T em um , p o r exem p lo , que é m eu vizinho. Ele é m u ito en g ra çad o , ele m e lê aten ta m e n te, coisa que n ão fazia há alguns an o s atrá s. E n tã o m e ag ra d a um p o u co saber que estou levando algum as idéias p ara essas pessoas qu e viveram aq u ela his tó ria e q u e ficaram m eio náu frag as.
Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên cias e o saber científico. Tal relação pennanece até hoje? Como ela se dá na atualidade? O lh a , m eus co n h e cim en to s científicos são p rec ário s, n ão so u um a p esso a m u ito esco larizad a cientificam ente, não. C onvivo m ais co m a a rte , com a lite ra tu ra . N o p ró p rio plano da teoria do conhecim ento, em vez de discutir questões epistem ológicas e relativas à ciência, eu freq ü en tem en te m e vejo d isc u tin d o q u estõ es relativ as à ex periência da sensibilidade. C o m o a p re en d er a h isto ric id a d e d o s ó rg ão s dos sen ti d os, que o velho M a rx co locou desde sua crítica a H egel, q u a n d o diz qu e os ó r gãos dos sentidos apreendem e se m odificam . O s sentidos apreendem historicam ente as coisas e trazem subsídios p ara o co n h ecim en to . Esses su b síd io s devem ser co n fe ridos pela raz ão , m as isso n ã o pressu p õ e a possibilidade de qu e a ra z ã o su b stitu a o s ó rg ão s d o sentid o , eles n ão são passíveis de serem su b stitu íd o s pela razão . E n tã o , é preciso refletir sobre a experiência estética, no p lan o d a teo ria do co n h e ci m e n to m esm o. Fiquei fre q ü e n ta n d o esse ca m p o m u ito m ais d o que o c a m p o da epistem ologia científica.
Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda de. Como você se posiciona em relação a esse debate?
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E stou com M a rx e n ão a b ro . C o n c o rd o com a idéia de M ar.x, qu e está n o s Manus critos de 1844, de que os ó rg ão s d os sentid o s ta m b ém são h istó rico s, ta m b ém se m o d ificam , se tra n sfo rm a m , v ão d esenvolvendo cap ac id a d es novas. A cho qu e a p a rtir d aí é im possível p en sar co m o H egel que a ra z ã o , o co n ceito , o esp írito , su b s titu em a ex periência estética, a experiência sensória! estética, q ue é ta m b ém p r o d u to ra de co n h ecim en to . A cho que os con h ecim en to s científicos e os co n h ecim en to s artístico s são co m p lem en tares e d ão c o n ta de u m a realid ad e inesgotável. O real é irredutível ao saber. E n tão , nós precisam os a p re en d er o real de to d a s as m an eiras e nos m ais diversos níveis. Se su b o rd in a rm o s a exp eriên cia de um desses níveis à ex periência do o u tro , em po b recem o s, que é o qu e eu ach o q u e H egel fez. E m p o brecem os o cam po das possibilidades, da experiência cognoscitiva dos hom ens. A cho que a arte é um a fonte de co n h ecim en to m u ito rica.
No seu livro sobre Walter Benjamin, O m arxism o da m elancolia, há uma passagem em que você diz o seguinte: “Benjamin quer ser livre como escritor, como artista. Dispunha-se a escrever boa literatura e prosa, e como seu próprio livro nos ensina, a obra de arte literária não pode ser abordada como se fosse um mero documento. Na obra de arte, conteú do e fortna se fundem num todo complexo, no qual a lei da forma é central”. Seria esse o ponto de partida para entender como você com preende a relação entre a obra de arte e a sociedade? A cho que sim . É um a idéia que está no jovem L ukács. Ele diz qu e a fo rm a n ão é algo que você acrescenta ao co n teú d o , n ão é um a d o a ç ã o de fo rm a p o ste rio r à fo r m u lação d o co n teú d o . A fo rm a é um elem ento e s tru tu ra n te d o p ró p rio co n teú d o . O ensaio é um a form a que nos p ro p o rc io n a a p o ssib ilid ad e de d isc o rre r so b re um cam p o em relação ao q u al a gente tem algum con h ecim en to im p o rta n te , m as q u e a gente n ã o p reten d e d o m in a r. Essa fo rm a d o ensaio , p o rta n to , é a d e q u a d a ao tip o de experiência que me d isp o n h o a a p ro fu n d a r, a desenvolver. A cho que sem p re es crevi cm fo rm a de ensaio , a n ão ser em te x to com in ten ção p ro p ag a n d ístic a, na m i litância política. Aí é preciso tra n sm itir um a coisa m ais d ireta. M as q u a n d o escre vo desligado da m ilitância, te n d o a escrever em fo rm a de ensaio.
É hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo tal diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe nómeno essencialmente nacional, e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como você vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que parecem des frutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias? C o m eç an d o pelo fim , eu ach o que tem . A cho qu e hoje há u m a consciência q u e se g eneralizou m uito m ais que n o p assad o , m u ito m ais que n u m p assad o recente, dc que as q uestões éticas têm um a significação política m aio r qu e se su p u n h a . Isso tem a ver com essa m u n d ia liz aç ão q u e a gente verifica qu e está ac o n te ce n d o . A cho, co n tu d o , que nesse processo da m u n d ialização (que ao se acelerar é ch a m a d o de
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Conversas com Filósofos Brasileiros
g lo balização), en tra m ais um a vez a ideologia, d isto rcen d o algum as coisas e p ro c la m ando o fim do Estado N acional. É um a coisa b astan te discutível. A cho que o Estado N acio n al está so fren d o m odificações, sem d úvid a, alg u m as d as suas p rerro g ativ as estão sum indo ou estão d im in u in d o . M as eu n ão en d o ssaria um d iag n ó stico d o tipo “ ag o ra a política nacio n al a c a b o u ” . A cho que a p o lítica tam b ém é um te rritó rio co m p lex o e diversificado. A cho q u e a dim en são política está presen te so b form as diferentes, nos diferentes tem pos da h istó ria. E xiste a p o lítica qu e está presen te na p re o c u p açã o d o ecologista com o esg o tam en to de alguns recu rso s n a tu ra is, com o fim de algum as espécies. Existe a política da circu n stân cia local — com a eleição d o U ruguai, por exem plo, que aliás é hoje. Existe a política n o âm b ito da vida d om és tica, d en tro de casa. T u d o é m a n ifestação dessa d im en são da p o lítica, m as a fo rm a de lidar com a política varia. A cho que n ã o se p o d e ap lica r a m esm a p o stu ra p o lí tica, a m esm a a titu d e política em to d o s os lugares, em to d o s esses m o m en to s. E n tã o , eu n ã o ig n o raria a dim en são n acional. A cho que a d im en são n acio n al tem que ser repensada, assum ir características diferentes, m as n ão deve ser declarada ex tin ta.
No seu ensaio sobre o Antonio Cândido, no livro Intelectuais b rasilei ros e o m a rx ism o , você cita uma frase em que Antonio Cândido afir ma: “Não tenho vocação política, para m im a participação foi sempre um dever moral”. Essa frase também vale para você? T en h o certeza de que vale m ais p ara m im do qu e p ara ele. A cho até qu e ele tem algum a vocação política. Q u em não tem n en h u m a sou eu.
Como você caracterizaria a sua relação com a religião e a fé? Eu fui m aterialista vulgar e achava que a religião era um a fo rm a de alienação. T in h a um a certa com iseração pelos religiosos, co itad o s. E d epois, ev id en tem en te, m udei m uito. A h istó ria dessa m u d a n ça é m u ito longa, m u ito sin u o sa. M as hoje em dia m e sinto m u ito à v o n ta d e em m eio a alguns brav o s co m p an h e iro s rev o lu cio n ário s religiosos, e me sinto m uito co n stra n g id o com alguns ex -co m p an h eiro s, ateus e cíni cos, que às vezes são m ais m aterialistas até do qu e eu, m as q u e ex traem d o m a te ria lism o, o q u e acho m u ito p ro b lem átic o , um a p o stu ra de um a certa in d iferen ça, de um certo desligam ento d ian te das coisas. A cho que aquele belo tex to de M a rx , aliás um te x to que era c ita d o sem pre tru n c a d o , “ a religião é o ó p io do p o v o ” , m o stra que ele tin h a raz ão , m as em relação às form as de co n ceito s religiosos q u e ele co nheceu. R ecentem ente fui co n v id ad o p ara falar num cu lto d a Igreja P ro te sta n te de Ipanem a pelo p asto r M o z art — q ue tem um as b arb as grisalhas enorm es, go sta m u ito de m im — e pelo V aldo C ézar, que era d ire to r da ed ito ra Paz e T erra no p assad o , lu a n d o a ed ito ra p erten cia a ele e ao Silveira. V ald o C ézar e o p a s to r M o z a rt orgaizaram um cu lto , e eu fui falar no cu lto , dei as m ão s, cantei os h inos, essas coisas das, e eles sabem que eu n ão ten h o religião. M as fui p ara depois falar sobre valores cos, e foi um a coisa ó tim a p o rq u e senti um a cu m p licid ad e en o rm e d o público, pessoas ten d iam a co n c o rd a r com igo. A ntes m esm o de eu falar, já estavam c o n c o rd a n d o [risosj. M as o esp írito é esse: nós precisam os tra d u z ir essa nossa o p çã o p o r um co m p ro m isso com esses valores, tra d u z ir em ação , fazer alg u m a co isa, isso é fu n d am en tal.
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No seu breve ensaio “É possível fazer o Socialismo com fé em Deus?” você fala na importância de o marxismo estar aberto a todo tipo de adesão, sem qualquer discriminação. No entanto, você não chega a entrar no mérito da questão teórica, de uma conciliação do pensamento marxista com a crença religiosa. O que você teria a dizer sobre essa questão? A cho que hoje nós tem os que p en sar nessa d iv ersid ad e de fo rm as d a consciência rehgiosa e a tu a liz a r a perspectiva que h erd a m o s d o M a rx . Q u a n d o o M a rx diz em O capital que o hom em c o n stru irá a sociedade n a q u al as relações en tre seres h u m anos e dos seres h u m a n o s com a n atu re za serão relações m ais racio n ais e tra n s p are n tes... A tra d u ç ã o d o te rm o está aten u a d a: n ã o é “c la ra s” , é “ tra n sp a re n te s” ...
Ou translúcidas... T ra n slú c id as... A cho que nun ca vão ser tran slú cid a s. Aí com eça a m in h a idéia de que n ão se po d e p o stu la r a perspectiva de c o m b a te à religião. M a rx dizia qu e a religião é um reflexo necessário dessa sociedad e, n a sociedade co m u n ista ela vai d esap arecer p o r si m esm a. A cho que isso é insustentável. Pode até ser qu e d e s a p a reça, m as n ão te n h o o d ireito de afirm a r isso prev iam en te. A cho qu e a base em que M a rx fez esta a firm a çã o é m u ito frágil, n ã o sei q u al vai ser o fu tu ro . T en h o que me a b rir p ara a p ossibilidade de refletir so b re o seguinte: e se a co n d içã o h u m a n a for tal que alg u m as pessoas, plen am en te, co n tin u em a te r necessidades religiosas? Isso vai a tra p a lh a r algum a coisa? Isso vai dificu ltar algum a coisa no essencial? N ã o , n ão vai. E n tão nós tem o s que pen sar isso, d iscu tir as fo rm as d a consciência religiosa, verificar que form as são alien ad as e que fo rm as n ã o são, p o rq u e eu c o n sta to que existem fo rm as que n ão são. T em pessoas que se p o litizaram atrav és d a religião. Eu vou cria r dificuldades? Eu, nunca.
Como você se situa em relação aos problemas de uma “mudança de paradigma”, de uma filosofia “pós-metafísica” calcada na linguagem? E stou p ag a n d o p ara ver, estou p ag a n d o p a ra ver. G o sto m u ito de linguagem , m as sou m u ito m al in fo rm ad o a respeito d o assu n to . O s m eus d ic io n ário s etim ológicos estão ali n aq u e la p rateleira [ap o n ta]. São vários d icio n ário s. Eu m e d iv irto m u ito lendo, m as n ã o te n h o base, n ão tive cu rso de lin g ü ística, n ão tive cu rso de sem ân tica. Até li depois, com prei um livro de sem ântica e li, m as acho m eio c h ato . O b ara to é ficar p escan d o etim ologias...
Como você se posiciona em relação ao pós-modemismo? O lh a , reagi m al. T en h o um a m á v o n ta d e ex tre m a e ag o ra um g ru p o de alu n o s c o r seguiu essa coisa e x tra o rd in á ria que é m e co nven cer a, no m eu g ru p o de pesquis1er o Ja m eso n . O s m eus pesqu isad o res to d o s sofrem da rev o lta c o n tra o pai [riso E ntão resolveram , “ vam os 1er o Ja m e so n ” : “ se você é um m a rx ista, n ã o pode recu sar a 1er o J a m e so n ” . E n tã o vam os 1er Jam eso n p a ra d iscu tir o p ó s-m o d ern ideologia na p ó s-m o d ern id a d e. E n tão , esto u fazen d o leitu ras coletivas d o Jam e^ p ara p ô r em discussão. E stou te n ta n d o vencer essa m in h a rep u g n â n cia , ten t p e n e tra r um p o u co naq u ele u niverso p ó s-m o d ern o , qu e vejo com um a m á \( enorm e. Q u e ro ver se tem algum a coisa a ap re n d e r aí. (/ J
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Você utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do fu turo da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia? O lh a, é possível que eu seja m eio u tó p ico , sim , m as sem te r m u ita consciência dis so. P orq u e ach o que a u to p ia d esem penha um papel im p o rta n te na h istó ria c u ltu ral, m u ito m ais co m o ind icação do que co m o resp o sta a alguns p ro b lem as que d ão origem a ela. A cho que ela é e.vpressão desses p ro b lem as, ela é um a e ta p a , ela é um m o m e n to de reflexão, m as n ão é en c am in h am en to de so lu ção p rática, p o rq u e ach o q u e u to p ia trad u z id a em política se to rn a p rag m á tic a. Isso n ão é um arg u m e n to c o n tra a u to p ia. A cho que a u to p ia no seu â m b ito p ró p rio é estim u lan te. F.ia a m plia o ca m p o dos possíveis, am plia o ca m p o d o pensável, qu e é um a coisa preciosa. .Mas, se ela se tran sfo rm a em p rogram a político, ela exerce um a certa violência sobre os que n ão p artilh am da convicção u tó p ic a, ela ten d e a se to rn a r m eio p ro b le m á ti ca. Ela subestim a a força da resistência ã m u d an ça. Ela desencadeia p aix õ es m eio tu m u ltu ad a s no plan o da tra d u ç ã o em pro g ram a político. .Sou co n tra , p o rta n to , tr a d uzir u to p ia em p ro b lem a político. M as p ensar a u to p ia co m o am p liação d o c a m p o d o p en sar, ou d o ca m p o d o possível, ach o que é base im p o rta n te. A cho q ue os u to p istas ensinam coisas p ara a gente. N ã o a fazer p o lítica, m as ensinam a p ensar, a e n c arar o u tro s p ro b lem as e a pen sar em direções a serem ex p e rim en tad a s... Às vezes, até p o r um a certa incom petência p olítica, te n d o a m e a n c o ra r em asp iraçõ es utópicas. .Mas consciente de que não convém fo rm u la r essas asp iraçõ es co m o um p ro g ra m a de ação. O p ro g ra m a de aç ão é o u tra coisa. O p ro g ra m a dc aç ão d ep e n de da análise da ch a m a d a co rrela çã o de forças, e eu não sou bom nisso.
Herbert Marcuse dizia que a utopia sempre teve uma função importante no desenvolvimento do pensamento, porque, quando a realidade se trava para a emancipação, o pensamento utópico se tom a um pensamento progressista. Será que não vivemos num período semelhante? A cho que sim , ach o que nós estam os vivendo num m o m en to em que a u to p ia d ei x o u de ser um risco tem ível, passou a ser algo qu e falta. Eu d aria u m a im agem : H u m p h rey B ogart dizia que to d o ser h u m a n o está d u as doses de uísque a b a ix o do seu norm al. S egundo C a rlito , há d u as interp retaçõ es possíveis p ara essa frase. Uma delas deve ser a in te rp re ta ç ã o reform ista: você to m a d u as doses de uísque e chegou ao seu n o rm al. A o u tra é que. p o r m ais que você beba, você está sem pre d u a s doses de uísque a b a ix o do seu n o rm al. .Mas d eix an d o de lad o essa q u estão in teressan te a p re sen ta d a pelo C a rlito , eu diria que nós estam os num m o m e n to , nessa ép o ca de neolib eralism o e p ó s-m o d ern id a d e, em que estam o s d u as doses de u to p ia ab a ix o d o nosso n o rm al. A gora, na linha refo rm ista, qu er d izer, to m a n d o as d u as doses, é b om p a ra r, p o rq u e senão a terceira já dá um g ran d e p o rre , um p o rre g ran d io so .
Seu mais recente livro publicado versa sobre a obra de Fourier, um fi lósofo que vê no prazer um elemento fundamental da vida humana, um elemento que tem que ser levado em conta na imaginação teórica de uma sociedade mais justa ou, para usar um termo do autor, mais har mônica. Como você vê os vínculos entre prazer e política, entre prazer e reflexão teórica?
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A cho que o ca m p o d o p raz er é um ca m p o cuja im p o rtâ n cia o m a rx ism o em geral su b estim o u . C om exceção d o M a rcu se, que b ate nesta tecla. P ara a m in h a alegria, descobri que o L ukács tra ta F ourier com m u ito resp eito . O qu e é u m a coisa en g ra ça d a, pois n ão é bem o estilo dele. M as o F ou rier tem , do c a m p o d o p raz er — que ele resg a ta, cuja im p o rtâ n cia ele salienta — , um a visão que nós hoje só p o d em o s c o n sid e ra r m eio sim plista. Ele m itifica um p o u co o p razer e co n fia um p o u co d e m ais em to d a s as fo rm as de p razer. E ele diz que, q u a n d o há um a fo rm a perversa — ele sabe que existem fo rm as perversas de p raz er — , é p o rq u e é o p raz er d o s ci vilizados, co nseqüência da d efo rm aç ão ca u sa d a pela civilização. M as n ão é só isso, a c h o q u e é m ais co m p licad o . A cho que hoje, dep o is de F reu d , está cria d a a p o ssi bilidade de a gente e x a m in a r com esp írito m ais crítico essa d iv ersid ad e n o cam p o d o p raz er, as necessidades in tern as d o ca m p o d o p razer. O qu e n ão q u e r dizer que a gente n ão esteja a tra sa d o em relação a esse p ro b lem a e qu e n ão seja u m a ta re fa im p o rta n te , até p o liticam en te, tr a b a lh a r esse tem a. A cho qu e hoje a in d ú stria cu l tu ra l, p o r um lad o , p o p u la riza um a g ran d e d iv ersid ad e de fo rm as de p razer; p o r o u tro lado fru stra as pessoas. O sujeito vê form as de p razer na televisão e está excluí do delas, de m odo que a questão d o prazer se to rn o u um a q u estão dem ocrática m uito im p o rta n te. O que se po d e fazer p ara su p e ra r esse fato r, essa o rg an iz aç ão g e ra d o ra de fru straçõ es e de infelicidade? Eu ac h o que esse tem a fo u rie rian o está re a p a re cendo com força, e a gente tem que encará-lo .
Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos como riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em larga escala e alienação cultural em massa. Como você vê tais pro blemas? Eu estou, co m o to d o s nós, “ nu m m a to sem c a c h o rro ” . Se alguém n ão estiver nessa situação, po r favor me diga, que m e interessa m uito conversar. A inda há pouco falava d o m eu vizinho, d izen d o que ele era um n áu frag o ... eu me dei co n ta de qu e ele n ão é o único, eu tam b ém estou a g a rra d o a um a ta b u in h a qu e so b ro u d o b arc o em que eu estava. A cho que essa “ situ aç ão de n á u fra g o ” to rn a m u ito d ram á tic a a p erc ep çã o desse p a n o ra m a . Esse q u a d ro é m u ito p reo c u p an te , e m ais p reo c u p an te ain d a pelo fato de nós n ã o term o s sequer a perspectiva de um a m o b ilização de forças, de organ izaçõ es, de coletividades capazes de influir n a tra n sfo rm a ç ã o d a situ aç ão , da realidade. L em bro S artre, que um a vez falou desse negócio de nós fazerm o s a n o s sa h istó ria. De nós p assarm o s a fazer a nossa h istó ria em lu g ar d a h istó ria qu e tem sido feita p o r eles. Eu até g o sto dessa fó rm u la. O p ro b lem a é saber qu em som os nós ag o ra , n o caso. É sa b er qual é a nossa p ro p o sta p ara nos o rg an iz arm o s, nos m obilizarm os e “ fazerm os a nossa h istó ria ” . Esses riscos am b ien tais globais são um p ro d u to da h istó ria deles. É o resu ltad o da histó ria que co n tin u a sen d o feita p o r eles, e nós n o caso estam o s n u m a situ aç ão d ra m a tic a m e n te difícil p ara n o s c o n tra p o rm o s a isso que eles estão fazendo, a esse m u n d o qu e eles c ria ra m . A cho, p o rém , que n ã o tem os q u e d esan im ar. Joel B irm an, num d o s seus ú ltim o s livros, se n ão m e en g a n o A modernidade e o mal-estar da atualidade, fala so b re a co n d içã o h u m an a de desam p aro . D esam p aro , sim: ele escreve sobre isso várias páginas b rilh an tes, m as depois nos ad v erte, p a ra n ã o d eix ar que o d e sa m p a ro se tra n sfo rm e em d esalen to .
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A cho que é p o r aí: d esalen to , n ão ; se for preciso , a gente ingere até um a terceira d ose de u to p ia p a ra sair da fossa.
Como você vê o marxismo hoje? O lh a , n ão sei se o te rm o m a rx ism o é um te rm o q ue tem m u ito fu tu ro . M as sei que alguns autores, a p a rtir do p ró p rio M a rx , têm futu ro . C o m eçan d o p o r M arx: q u an to m ais v o lto a ele, m ais m e con v en ço de que “ esse rap a z tem f u tu ro ” [risos]. E a l guns au to re s que, no d e sd o b ra m e n to das idéias de xVIarx, n o esfo rço p a ra tra d u z ir essas idéias em ação , se destacam com o au to re s que têm um a vitalidade g rande. N ão sei se o m o v im en to , se o co n ju n to v o lta rá a assu m ir a fo rm a de u m a co n cep ção te ó rica, e s tru tu ra d a , articu la d a. .Mas há um m ov im en to p rático , h istó rico , p o lítico e tam b ém te ó rico n o sen tid o de que tem rep ercussão , tem co n seq ü ên cia, tem a n c o ragem na te o ria — é um m ov im en to que m e p arece c o rre sp o n d e r a u m a necessid a de m u ito p ro fu n d a n o m u n d o de hoje. Presum ivelm ente ex istirá no início d o século X X I tam bém . Q u er dizer, o p en sam en to d o M a rx e o p en sam en to daqueles que des d o b ra ra m as idéias d o M a rx se desenvolveram em fu n ção d o s p ro b lem as que a so ciedade ca p ita lista tin h a cria d o , e eles e stã o to d o s de pé, to d o s p erm an ecem irresolvidos. E n tã o , na m edida em que eles n ã o reso lv eram os p ro b lem as e esses p ro blem as são p ro b lem as reais, sou o tim ista , ach o q u e vai ressurgir um a força. Pode ev en tu alm en te até n ão se c h a m a r m a rx ism o . N ã o b rig o pelo n o m e, n ão ; eu brigo pelo esp írito , o esp írito que vem d o velho M a rx e qu e nos an im a, qu e evita o m er g u lh o no d esalento. Esse esp írito vai ressu rg ir, a c h o qu e já está ressu rg in d o ...
E esse espírito nos ronda também, ou só ronda a Europa? A cho que ele nos ro n d a, talvez até m ais a nós do que à E uropa. Se bem que o xMichael Lòw y está otim ista. O M ichael, cada vez que vem aq u i, diz que as coisas lá n a França estão indo bem , estão c a m in h a n d o . M as eu n ão sei, a m in h a visão d o q u a d ro e u ro peu n ão é m u ito a n im a d o ra a tu alm en te . A gora, ac h o q ue aq u i é um a co isa e n g ra çad a: você vê que, no m eio de velhos m a rx istas, que te n ta m rela n ça r u m a velha re tó ric a d esg asta d a, de vez em q u a n d o b ro ta um a “ flo rzin h a n o v a ” , um a coisa q u e a gente o lh a assim e diz: “ Q uem d iria, quem d iria ? ” . Isso eu ac h o a n im a d o r, ach o u m a coisa legal. M esm o nu m nível a in d a m u ito deficiente. N ã o esto u q u e re n d o d o u ra r a p ílu la, n ão estou q u e re n d o d im in u ir a g rav id a d e d a situ aç ão de fra g ilid a de em que a gente se en c o n tra. E stou q u e re n d o ap e n a s dizer q ue n ão estam o s defi n itiv am en te d e rro ta d o s. S ofrem os várias d e rro ta s, m as a g u erra n ão ac ab o u : segu ram ente a guerra vai co n tin u ar e a nossa tro p a vai ressurgir assim , m eio qu e m iraculo sam ente. Q u em sabe até atrav és de um m ilagre cristão , n ossos c o m p an h e iro s cris tã o s p ro m o v e rã o um m ilagre e a gente vai v o lta r a b rig ar, já estam o s b rig an d o ...
Já que você falou em derrota, o seu livro A d e rro ta d a d ialética poderia ser lido como um exercício de história a contrapelo, no sentido de Walter Benjamin? A cho que sim , ach o q u e há aq u e la idéia de que, se eu rec o n stitu ir um a h istó ria d e sagradável m as necessária, estou de algum a form a ad v ertin d o as pessoas p ara o risco de q u e ela se repita e p ara a conveniência de elas to m a rem certas iniciativas que
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evitem a repetição. A m inha idéia era ev itar um a n ova d e rro ta d a d ialética, p o rq u e a d ialética já sofreu b astan te. Q uem sabe a gente a revigora! A liás, a m in h a c o n cepção de dialética n ão é ex a ta m en te igual à do C a rlito . O C a rlito já m e confessou que, se ele n ã o fosse um lu k a csian o -g ram scian o , seria a d o rn ia n o . A d o rn o seria a altern ativ a p a ra ele. Já eu, se n ã o existisse nem L ukács nem G ram sci, ficaria com o B enjam in, seria ben jam in ian o .
Na década de 60, três paradigmas teóricos marcaram o ambiente cul tural: o estruturalismo, o existencialismo e o marxismo. Como você avalia a evolução desses paradigmas até os dias de hoje, e que balanço você faria da sua relação com eles? O lh a, eu acho que o existencialism o passou, n ão é? A cho qu e hoje a gente relê Sartre com aquela sensação de um ce rto d istan c iam e n to , o qu e n ã o q u er dizer que não vale a p en a relê-lo. A cho que ele é um a das cab eças m ais in ju stam en te esquecidas. O e s tru tu ra lism o d eix o u alguns d escendentes vivos, m as o p a n o ra m a m u d o u , o q u a d ro da nossa discussão se tra n sfo rm o u b astan te. P rim eiro , p o rq u e os so b rev i ventes d o estru tu ra lism o ta m b ém já n ã o são tã o o rto d o x o s, n ão são tã o d o u trin á rios q u a n to os estru tu ra listas d os anos 60. Eles vão se to rn a n d o m ais ecléticos ta m bém , m ais sensíveis. N ó s ta m b ém m u d a m o s, nós n ão estam o s m ais v en d o n o es tru tu ra lism o o ad v e rsário político que nos parecia ser nos an o s 6 0, com a u n iv ersi d ad e rep rim id a, e as faixas m a rx istas d eix an d o espaço p a ra ser o cu p a d o pelos es tru tu ra lista s. A cho que hoje os e stru tu ra lista s, os sobreviventes do e stru tu ra lism o , estão co n vivend o com o u tra s co rren tes, sem m aio res d ificuldades. Eu n ã o co n c o r d o com eles, m as tam bém n ão m e sinto an im ad o a b rig ar co m eles.
Deixa eu introduzir um assunto que, ainda que indiretamente, foi tra tado no seu texto “Curriculum mortis”. Queria que você falasse um pouco sobre a velhice... Sim one de B eauvoir tem um livro a respeito. O B obbio, tam b ém . O H egel, na Fenomenologia do espírito, ta m b ém , na passagem d a figura da consciência de si p a ra a figura da razão . Essa passagem tem d u a s d ificu ld ad es, dois o b stácu lo s: um , p erce ber a im p o rtâ n cia p ositiva d o tra b a lh o , que é difícil na d ialética d o se n h o r e do escravo. O escravo só conhece o tra b a lh o co m o um a ativ id ad e im p o sta a ele, d e g ra d a d a , e o se n h o r só conhece o tra b a lh o co m o coisa de escravo. P erceber a im p o rtân c ia do tra b a lh o é fundam ental. E o o u tro o b stácu lo a vencer é o pânico d ian te da m orte. H egel diz que a m o rte é a única certeza racio n al qu e tem o s, e, no e n ta n to , co m o a gente tra ta de ev itar pen sar nela, tra ta de fugir d ela, ele diz qu e isso d i ficulta m u ito , p o rq u e a m o rte é a fo rm a co n c re ta d a q u e s tã o qu e se a p re se n ta , q u e é a q u estão da universalid ad e do negativo. E a velhice é a a p ro x im a ç ã o inevi tável da m orte...
A velhice, já que falamos da Simone de Beauvoir, é a “cerimônia do adeus”... A velhice é um a coisa co m p licad a. A gora m esm o telefo n o u um a am iga m in h a, que era m u ito ligada ao p a d ra sto , e o p a d ra sto está m u ito velho. G o zad o qu e o en v e
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lh ecim ento n ã o é um processo linear, tem um p e río d o em q ue você envelhece d e pressa e tem p erío d o s em que você resiste bem ... E isso é inju.sto, p o rq u e eu, p o r exem p lo , su p o rto com um certo estoicism o o en v elh ecim en to se en x erg o os m eus am igos envelhecendo com igo. M as tem uns d esg raçad o s qu e co m eçam a d e m o ra r a envelhecer, e aí eu fico irrita d o , com eço a ac h ar qu e é injustiça [risos]. M as sei que preciso en fren ta r o envelhecim ento. V elhice é um a coisa qu e n ão se im provisa...
É obra de anos, obra de anos... M as a nossa p re p a ra ç ã o p ara a m o rte é algo qu e tem sido im p ro v isad o . D evia h a ver um a p re p a ra ç ã o p ara a m o rte. Eis um tem a filosófico p o u co ab o rd a d o .
Para usar uma frase bíblica que está no E clesiastes, “a mocidade deve se preparar para a velhice e para a morte”. Vocè podia abordar isso, numa extensão do seu ensaio “Curriculum mortis”... V ocê está m e in d u z in d o a escrever um novo livro, n ão é?
Principais publicações:
1968 1980 1981 1984 1987 1988 1989 1992
Marxismo e alienação: contribuição para um estudo do conceito marxista de alienação (R io de Ja n eiro : C ivilização B rasileira); Kafka: vida e obra (R io de Ja n eiro : Paz e T erra); Os marxistas e a arte: breve estudo histórico-crítico de algumas tendências da estética marxista (R io de Jan eiro : C ivilização B rasileira); Marx: vida e obra (R io de ja n e iro : Paz e T erra); A democracia e os comunistas no Brasil (R io de Ja n eiro : G raal); O que é dialética? (São P aulo: Brasiliense); O marxismo na batalha das idéias (R io de ja n e iro : N o v a F ro n teira); A derrota da dialética (R io de ja n e iro : C am p u s); Walter Benjamin: o marxismo da melancolia (Rio de Ja n eiro : C am p u s); Hegel: a razão quase enlouquecida (Rio de Ja n eiro : C am pus); O futuro da filosofia da práxis: o pensamento de Marx no século X X I (Rio
1996 1998
de ja n e iro : Paz e T erra); /4s idéias socialistas no Brasil (São P aulo: M o d ern a); Fourier; o socialismo do prazer (R io de Ja n eiro : C ivilização Brasileira).
1965 19 66 1967
B ibliografia de referência da entrevista: B akhtin. Marxismo e filos ofia da linguagem, Flucitec. B enjam in, W . Obras escolhidas, Brasiliense. B irm an, j. Mal estar na atualidade. C ivilização Brasileira. F reud, S. A interpretação dos sonhos. Im ago. ___________ . Para além do princípio do prazer, Im ago. G ram sci, A. Cadernos do cárcere. C ivilização B rasileira.
Leandro K onder
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C oncepção dialética da história, C ivilização B rasileira. L ukács, G. Realismo critico hoje. C o o rd en a d a. ___________ . La destruction de b raison. Paris; L ’A rche. ___________ . Ensaios sobre literatura. C ivilização B rasileira. ___________ . Marxismo e teoria da literatura. C ivilização B rasileira. ___________ . Introdução a uma estética marxista. C ivilização B rasileira. H egel, Ci. W . F. Fenomenologia do espírito. Vozes. Ja m eso n , F. Pós-modernismo, Á tica. K oselleck, R. Crítica e crise. C o n tra p o n to E dito ra. ■Marx, K. e Engels, F. Ohras escolhidas. Alfa O m ega.
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Conversas com Filósofos Brasileiros
B E N T O P R A D O JR . (1937)
B ento P rad o Jr. nasceu em 1937, em Ja ú (SP). G ra d u o u -se em Filosofia pela U niversidade de São Paulo, on d e obteve tam b ém o títu lo de livre-docente em F ilo sofia. P rofessor ca ssad o em 1969, lecionou na P ontifícia U niversidade C ató lica de São P aulo e na U niversidade E stadual de C a m p in a s e foi p resid en te d a A ssociação N acio n al de P ó s-G rad u a çã o em Filosofia. É p ro fesso r titu la r da U niversidade Fe deral de São C arlo s e professo r em érito da USP. Esta en trev ista foi realizad a em jan eiro de 2 000.
Goethe dividiu a vida de seu personagem W ilhelm Meister em dois romances. O s an o s de ap re n d iza d o e O s anos de p ereg rin ação . N o pri meiro, o foco está posto na formação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que você nos falasse de sua formação intelectual? E m bora a c o m p araç ão com G oethe seja inad eq u ad a — p o r desm edida e hiperbólica — , esse é m ais ou m enos o m o d o co m o p o n tu ei m eu itin erário no m eu m em o rial, em que m a rc o dois períodos: o p erío d o de fo rm ação , q u er dizer, d a fo rm a çã o no sentido u n iv ersitário da p alav ra, da a d a p ta ç ã o à escola, d a licenciatura e dos p ri m eiros an o s de jovem professor da faculdade. E o segundo p erío d o , qu e é aquele que se inicia com m inha cassação, com m inha estad ia relativ am en te longa no e x te rior. Aliás, coisa que n ão digo no m eu m em orial é com o essa viagem longa m e tro u x e um a m u d an ça de perspectiva. E ntrei no D ep a rtam e n to de Filosofia em 1956 e me form ei em 19 59. Senti um p ouco essa e n tra d a no m odelo de fo rm a çã o e n tã o p ro p o sto , qu e o P au lo A ran tes descreveu bem a p a rtir do p ro jeto de Jean M au g ü é. E senti essa e n tra d a na m edida cm que vinha de um a fo rm a çã o a n te rio r, de um esboço de fo rm a çã o q ue tin h a d u as fontes: em prim eiro lugar a m inha pró p ria casa, já que meu pai era professor, filólogo, tra d u to r de lite ra tu ra , cu id av a de te o ria literária, cu id av a ta m b ém de filosofia da m atem ática (foi alu n o de Q uine), era um g ran d e leitor de Pascal, era cató lico etc... E, em segundo lugar, a m ilitância na Ju v e n tu d e C o m u n ista . E n tão , q u a n d o en trei, já havia d eix ad o de ser m ilita n te da Ju v e n tu d e C o m u n ista , já tin h a co m eç ad o a m ilitar na Juventude Socialista junto com o M aurício T ragtem berg, com o Paul Singer e com o R o b e rto S chw arz. Isso tu d o no te m p o d o se cu n d ário . T in h a , assim , p re o cu p açõ es p o líticas e literária s, sen d o q u e alg u m as e n tra v a m fre q ü en te m e n te em con flito com o u tra s, p o rq u e g o sta r de certos a u to re s n ão era m u ito a d e q u a d o n a quele m o m en to . M a s, enfim , sei que ao fim d o m eu secu n d á rio d esco b ri a fen o m enologia, essencialm ente atra v és de S artre. E S artre fornecia ju stam e n te u m a saí
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d a p a ra essa situ ação , p o rq u e se tra ta v a de um a filosofia em que o cu id ad o p o líti co n ão era incom patível com o lado, d igam os, esp ecu lativ o e literário . H av ia ta m bém um m u n d o a rm a d o com C arlo s D ru m m o n d de .Andrade que me fornecia a lin gu agem , um m odelo p ara a poesia que n ão se ch o cav a com S artre e co m a o b ses são filosófica — aliás os dois escreveram coisas m u ito p arecid as na d écad a de 40. O m od elo de filosofia p ra tic a d o pelo D e p a rta m e n to era, n o e n ta n to , um p o u co d iferente disso, na m edida em que a ênfase ta n to na epistem o lo g ia q u a n to na h is tó ria da filosofia era m uito forte. H av ia , so b re tu d o , um a atm o sfera de d esco n fian ça geral em relação à fe n o m e n o lo g ia ' p o rq u e , na situ ação b rasileira d a o casião , a fenom enologia e o e.xistencialism o tin h a m sido assim ilad o s pela d ireita local. H a via um a suspeição e eu, para p ro v o c a r, dizia que era h eideggeriano de esq u erd a [ri sos]. Em to d o o caso, o m odelo era m u ito bom . Eu negociava um pou co : “ O lh a, eu aceito ler to d o o V oitaire se vocês m e deix arem ler um p o u co de P ascal” . M as, ra p id a m en te, im pregnei-m e d aq u e la atm o sfera, p ara a qual tam b ém estava p re p a ra d o , p o rq u e já estava m a rc ad o pela filosofia e pela lite ra tu ra francesas. C o m o a atm o sfera era fran cam en te fn»icih francesa, en tão tam b ém foi m u ito fácil essa as sim ilação. (Comecei a me tre in a r na explicação de te x to e na d issertação , que são os dois “ gêneros filosóficos” fu n d am e n tais, te sta n d o -m e n estas técnicas retó ricas c, de um a certa m aneira, fiquei v o lta d o única e exclusivam ente p ara a filosofia fra n cesa. (^ que, no fu n d o , m arcav a um a espécie de d istân cia e n tre as coisas qu e me p reo c u p av am e o m u n d o social im e d ia tam en te em v olta. D e tal fo rm a que fazer filosofia p ara m im , na o casião , significava ser ca p az de um d ia , ev e n tu a lm e n te, escrever um te x to , publicá-lo na F rança p ara o leito r francês. Ju stam e n te com o m eu p erío d o na F rança, p erío d o de seis an o s d a segunda vez (de 1969 a 1974), o que ocorreu foi o seguinte: foi um p erío d o m u ito bom , m uito p ro d u tiv o , p o rq u e tive a so rte de ficar no C N R S [C entre N atio n al de R echerche Scientifique] e n ão te r n en h u m a p re o c u p açã o com a docência — eu pensava que n ã o g ostava dc d ar aula. De fato eu tinha liberdade to ta l p ara escrever d u ra n te to d o s os anos em que fiquei lá. M as n ão havia m u ito c o n ta to co m os franceses (com ex ceção dc H élène e Pierre C lastres), havia som ente o c o n ta to com os b rasileiro s que estavam exilados ou com bolsas de estudo na F rança. A certa altu ra, com ecei a sentir falta de d a r au la, com ecei a d esco b rir que isso era essencial p ara m im , com o se a sala de aula fosse um a espécie de la b o ra tó rio o n d e se en saiam idéias das q u ais a escrita depois vai se alim en tar. C om ecei a sen tir um p o u co de sau d ad es d o Brasil em geral e da situ aç ão de docente. Eu m e lem b ro , nessa ép o ca, de e sta r p assean d o com P aulo .Arantes cm Paris e de term o s os dois, sim u lta n eam en te , a alu cin a çã o de o u vir um jogo de futebol n a rra d o pelo rád io . .Mas n ão era. P rovavelm ente era um a n a rra tiv a de h ipism o, de co rrid a de cavalos, com aq u ela voz ap ressad a. L em brom e ta m b ém , q u a n d o voltei de navio, da felicidade q u a n d o pela p rim eira vez o r á d io c a p to u um a n a rra tiv a de futebol. N a volta ao Brasil, notei que o país estava m u ito d iferente de an tes, ou talvez eu o visse com o u tro s olhos. M as, so b retu d o , notei q ue havia um público leitor de filosofia de tal m aneira que fui ressocializado. Ao co n trá rio dos tem p o s da ju v en tu de, ao invés de me d irigir p ara um público d istan te , qu e n ão era o m eu, descobri que havia um público q u e m e interessava e que deveria m e dirigir d iretam e n te a ele. N a
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B en to P ra d o Jr.: “ A filosofia, te n h o a im p re ssão , se m p re ren asc e, é um a d o e n ç a in cu ráv el, e o m ais in te re ssa n te é q u e o rem éd io é d a m esm a n a tu re z a da d o en ça. Isto se g u ra m e n te n ã o é um a filosofia d o se n so c o m u m " .
F rança, consagrei to d o s esses anos a escrever um livro sobre R ousseau — ain d a inédito co m o um to d o — em que g ostava de p o lem izar com D errid a, além de te n ta r a p re se n tar um in te rp re taç ão original de R ousseau. V o lta n d o ao Brasil, as circu n stân cias me levaram a p o lem izar com [O sw aldoJ P o rc h at e com (José A rth u r] G ia n n o tti, o que era infinitam ente m ais divertido [risos] e m uito m ais realista, p o rq u e entre o crítico e o criticado existia um a p ro x im id ad e m u ito g rande, além de am izade, sim patia etc... Essa form a de ativ id ad e crítica é m u ito m ais rendo sa. E n tão , p a ra d o x a lm e n te , tu d o se passa co m o se a longa estadia n o ex terio r e no exílio tivesse levado a descobrirm e co m o um a u to r que escreve em po rtu g u ês p a ra leitores brasileiros.
Em duas ocasiões diferentes, em 1968 e 1982, você externou avaliações diversas a respeito do professor João Cruz Costa, patrono do Departa mento de Filosofia da USP. Como você avalia hoje a figura de Cruz Costa? O m eu discu rso sobre C ruz C o sta é e x a ta m en te sim étrico ao d iscu rso de G ian n o tti so b re Lívio T eix eira, G ia n n o tti diz que, p a ra sua tu rm a , Lívio T eix eira n ã o tin h a tid o im p o rtâ n c ia , que quem tin h a tid o im p o rtâ n c ia era o C ru z C o sta, e só a m inha tu rm a veio a descobrir a im po rtân cia do estru tu ralism o de G u éro u lt através d o Lívio T eixeira. Sem pre considerei C ru z C o sta um excelente p ro fesso r, m as só m u ito ta r d iam en te fui d esco b rir a sua im p o rtâ n cia p ara a filosofia b rasileira. N ã o éram o s feitos de m an eira a nos en ten d e rm o s im ed iatam en te, já qu e as m in h as predileções filosóficas eram m uito diferentes das dele. A nossa relação foi sem pre m u ito cordial, em b o ra ele dissesse em sala de au la “ O se n h o r B ento ach a qu e n ã o sou m u ito in te ligente” . A o m esm o tem p o dizia que eu era m u ito en fu n a d o . C onheci m e lh o r C ru z C o sta q u a n d o viajei p ara a F ran ça pela p rim e ira vez e tivem os de nos c o rresp o n d e r p o r m otivos contin g en tes. D escobri, p o r m eio dessa co rresp o n d ê n cia , a graça do g ran d e escrito r que ele era e passei a escrever-lhe m ais vezes p ara p ro v o ca r m ais ca rta s e resp o stas. M ais ta rd e , p ro p u seram -m e escrever so bre a filosofia n o Brasil, e e n tã o li a Contribuição à história das idéias no Brasil de m aneira m u ito respeitosa, m as sem perceber em to d a a ex ten sã o o interesse qu e C ru z C o sta a p re sen ta d e n tro da filosofia brasileira. T e n h o a im p ressão q u e só o li v ro d o P aulo A rantes m e m o stro u que a d esconfian ça de C ru z C o sta, em relação ao d isc u rso filosófico, era v ital, e m b o ra m e in co m o d asse e n q u a n to o “ fenom en ó lo g o ” q u e acred itav a ser. N o te x to sobre as filosofias d a M a ria A n tô n ia , q u a n do eu me refiro m uito brevem ente a Lebrun — pois estava co b rin d o apenas o período em que eu era aluno — , dizia que ele reunia várias características positivas dos vários professores do D ep a rtam e n to , inclusive essa desconfiança que O u z C osta tin h a em relação ao establishment filosófico. M as essas características n ão eram m u ito a tr a en tes p ara o jovem filosofante que eu era n aquele te m p o , p o rq u e era o m eu u n iv er so que, de um a certa m a n eira, estava sendo d esq u alificad o e d esv alo rizad o . É p re ciso estar um p ouco m ais m a d u ro para com preend er a verdade e a força dessa ironia.
Você encerra o seu artigo “As filosofias da Maria Antonia na memória de um ex-aluno” com as seguintes palavras: “As filosofias da Maria Antonia começaram a passar, em í 960, por um novo filtro. Com Gerard
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Lebrun iniciava-se uma nova era na filosofia de São Paulo”. Porque Lebrun se constitui para você num marco inaugural tão decisivo? Em prim eiro lugar, resp o n d o na p rim eira pessoa d o sin g u lar p ara dep o is falar de m aneira m ais objetiva. O s m eus prim eiro s q u a tro an o s co m o estu d an te de filo so fia foram anos de “ vacas m a g ra s” no nosso D ep a rtam e n to . Por um a série de c o in cidências, o m eu cu rso foi provav elm en te o m enos privilegiado. Foi ju stam en te um perío d o de vazio da presença de professores visitantes. Q u a n d o en trei, em 1956, o L efort tin h a v o lta d o p ara a F rança e L ebrun só veio p ara o Brasil em 1960. N esses q u a tro an o s o G ra n g er fez algum as visitas, um a série de co n ferên cias, m as é d ife rente de te r um p ro fesso r full time. Além disso, d o s jovens p ro fesso res, o G ian n o tti viajou p ara a F rança pela prim eira vez em 1958 e ficou dois an o s fora e o Ruy F austo deu ap en as um sem estre de au la. O velho C ru z C o sta, p o r sua vez, teve um a briga com o e n tã o g o v e rn a d o r Jâ n io Q u a d ro s, foi p u n id o e, p o r um certo p erío d o , n ão deu aula. Q u e r dizer, o c o rp o docen te se reduziu co n sid erav elm en te. O qu e resto u , de realm ente forte, graças a D eus, foi a H istó ria d a Filosofia com Lívio T eix eira e Estética com d o n a G ilda [de .Mello e S ouza). C om L eb ru n , foi a p rim eira vez que estive na presença de um professor estra n g eiro em situ ação p erm a n en te . E m b o ra n ão tivesse sido alu n o dele p ro p ria m e n te — q u a n d o ele veio em I9 6 0 eu já lecio nava — , o fato é que to d o s nós, to d o s os colegas de d ep a rta m e n to , assistíam o s aos cursos de L ebrun. E o que havia de n otável n o L ebrun era um certo estilo de p rá ti ca da filosofia e da histó ria da filosofia co m o ativ id ad es indissociáveis um a d a o u tra. Ele n ão era ex a ta m e n te um h isto ria d o r à m an eira de G u é ro u lt, ou de G o ld sc h m id t, m esm o p o rq u e ele cu id av a de a u to re s co m o H eg el, q u e, de u m a certa m aneira, to rn am impossível um a leitura do tip o estru tu ral. .Mas ele dava cursos sobre H egel, so b re N ietzsche, sobre au to re s que lhe eram ca ro s, em qu e a d im en são p ro priam en te histórica era essencial. C o m o já insisti várias vezes, a h istó ria da filoso fia p ara L ebrun d esem penhava um papel crítico na estratég ia geral do p en sam e n to. Um exercício de h isto rio g rafia filosófica ou m esm o de filologia qu e, n o e n ta n to , en grenava im e d ia tam en te um tip o de in te rro g a çã o filosófica cm qu e a in te rp re ta ç ã o d a filosofia acab a v a sen d o um a espécie de crítica d a filosofia, o u de an tifilosofia. Ele reunia várias q u alid ad e s, q u er dizer, reu n ia a eru d iç ão , o rig o r a n a lí tico, a iro n ia, a cap ac id a d e d id á tic a, a cap ac id a d e d ra m a tú rg ic a . E ra um excelente escrito r, era m u ito vivo, q u er dizer, ao c o n trá rio d o m o d elo g u é ro u ltia n o , a leitura do s textos filosóficos era sem pre re p o rta d a ao m u n d o vivido c o n te m p o râ n e o . N ã o havia essa espécie de suspensão, de colo cação en tre parênteses d o m u n d o vivido em nom e da ec o n o m ia in te rn a de um a o b ra (Paulo falaria d o “ v á c u o ” c ria d o artific i alm ente em to rn o da o b ra). O h u m o r e a iro n ia p assav am aí. É im possível in tro d u zir a iro n ia e o h u m o r em um a análise estritam en te in tern a de um a o b ra em q ue só tem sin tax e e n ão tem assu n to de p iada. A p iad a só se to rn a possível q u a n d o você re p o rta o p en sam e n to àq u ilo que de fato é, que está à sua volta. O fato é que n ã o só eu, co m o to d o s os colegas, fom os m u ito s sensíveis à p r á tica le b ru n ian a da filosofia. A lém disso, co m o excelente pro fesso r q ue era , o b v ia m ente im a n to u as jovens gerações. Ele p assou a servir de m o d elo a ltern ativ o p ara os seus p ró p rio s colegas e, p rin cip alm en te, para as n o v as g erações de estu d an tes. N o ta-se isso em to d a a g era ção p o ste rio r à m in h a , da q u al fui p ro fesso r: P aulo
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A rantes, M a rilen a C h a u i, R u bens R o drigues T o rre s Filho. O R u b en s é, d ig am o s, o filho m ais direto . E n tã o q u a n d o digo: “ As filosofias d a M a ria A n to n ia co m eçaram a p assar p o r um novo filtro ” , n ã o m e refiro ta n to ou so m en te a m im m esm o, m as tam b ém a essas novas gerações que p a ssaram p o r esse m agistério.
Você tinha, por essa época, um contato mais estreito com a geração da revista C lim a? Só atra v és da d o n a G ilda, que foi tam bém um a p ro fesso ra m u ito m a rc an te , a cu jo estilo eu fui m uito sensível, um estilo que liga a reflexão crítica com o concreto. C om o d igo num te x to sobre ela: “ O que eu im aginava qu e era o estilo de G ild a, que me fascinou e que passei espontaneam ente a im itar, n ão era apenas seu estilo, era o estilo da geração Clima”. Eu m e lem bro do m eu pai, assistin d o a u m a conferên cia d o A n to n io C â n d id o , q u a n d o eu era estu d an te secun d ário , ch eg ar em casa e dizer: “ O lh a, o A n to n io C â n d id o é o m elhor d en tre nós to d o s ” . M as eu só vim a ler A n to n io C â n d id o depois. M esm o G ilda só vim a ler depois: a bela tese so b re a M o d a . C o nhecia o estilo da Clima atra v és das au las dela, q u e era um a p ro fesso ra notável. Esse m esm o traç o , a p o n ta d o a p ro p ó sito de L eb ru n , estava presen te nas au las de E stética. P o d íam o s, e n tã o , “ resp ira r o m u n d o p re se n te ”-.
Diferentemente da maioria dos uspianos da época, você não reservou, em suas obras, um espaço muito significativo para o marxismo. Como você se posiciona em relação ao marxismo? Fui m a rx ista de c a rteirin h a até antes de e n tra r n a U niversidade — até m eados de 1954. Eu m e lem bro que, em 1956, depois d o v estib u lar, estáv am o s to m a n d o um a cerveja n o Cirêm io, co n v e rsa n d o so b re a in v asão d a H u n g ria , q u a n d o ch eg o u o G ian n o tti e disse: “ O que os m arxistas franceses vão dizer d isso ?” . Pedante, eu falei: “ M as ain d a existem m a rx istas na F ra n ç a ? ” . E o G ian n o tti p erg u n to u : “V ocê n ã o é m a rx ista ? ” . E eu, q u e n ão tin h a 18 an o s, respondi: “ N ã o , eu fui no p a s s a d o ” [ri sos]. M as, q u a n d o entrei na Faculdade, houve um a espécie de reto rn o ao m arxism o. Im p reg n ad o de fenom en o lo g ia, de S artre etc..., com ecei a escrever um en saio so b re a n o ção de tem p o em M a rx que infelizm ente (ou felizm ente?) perdi. O b v iam en te im publicável — m as que teria, hoje, curiosidade de ver, p ara descobrir co m o escrevia n a época. Escrevi um as dez p áginas em que ten tav a d e m o n stra r que a n o ção m a r xista de tem p o não era in tra tem p o ra l, m as tem poralizan te, im aginação tran scen d en tal etc. Q u e r dizer, se eu tivesse conhecido, nessa ép o ca, a tese que H e rb e rt M arcuse fez sob a o rie n ta ç ã o de H eidegger, eu m e teria to rn a d o m arc u sea n o de im ed iato . H á dez anos, depois da queda de Berlim, um jornal aqui de .São C arlos entrevistou-m e e fez aquela clássica p erg u n ta so b re a m o rte d o m arx ism o . R esp o n d i qu e o q u e afetava d esastro sa m en te o m a rx ism o era o fato de estar asso ciad o a um su p o r te real, a um p o d er estatal que o tra n sfo rm a v a n ecessariam en te em ideologia. C om o fim d o ch a m a d o socialism o real, to rn a-se possível, pensável pelo m en o s, qu e o m arx ism o possa ser n o v am en te um a form a viva de p en sam en to . M as, p ara isso, era indispensável que o bolchevism o acabasse. Eu m e lem b ro de um a conversa q ue tive com o velho C aio P ra d o em P aris, às vésperas da eleição em qu e G iscard d ’E staing foi eleito — o o u tro c a n d id a to era o M itte rra n d , em alian ça com o p a rtid o c o m u
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nista. C aio P rad o disse: “ A cho que M itte rra n d g an h o u . N ó s g an h a m o s essa elei ç ã o ” . Aí eu retru q u ei: “ O lh a, é m u ito difícil, m esm o p o rq u e, e n q u a n to ex istir a URSS, e n q u a n to se supuser, e n q u a n to se ligar a idéia de socialism o à U n ião Sovié tica, o eu ro p e u n u n c a ...” . Ele disse: “ C om o? A U nião Soviética não é um país so cia lista?". P ercebendo q u e o irrita ra , calei-m e e tirei o m eu tim e de cam p o .
Como você avalia a experiência do Seminário do C a p ita l? Foi um a experiência notável. A m inha p a rtic ip a ç ã o , no e n ta n to , foi m u ito restrita, participei p rin cip alm e n te no prim eiro an o . R a p id am en te ficou im possível p artici p ar, p o rq u e casei-m e ain d a estu d a n te e tin h a de tra b a lh a r p ara g a n h a r d in h eiro . E n tã o deixei de fre q ü en tá -lo sistem aticam ente. .Mas foi m u ito in teressan te e m u ito divertido. As conversas eram m u ito vivas, o co n teú d o era fortem en te técnico — aliás eu a c o m p a n h av a os sem inários com alg u m a dificu ld ad e. N a v erd ad e, qu em circu lava com facilidade era só o F ern an d o N ovais, n ão p o rq u e fosse ec o n o m ista, m as p o r en ten d e r de h istó ria econôm ica — aliás, ele e o Paul Singer. Eu e o G ian n o tti d esem p en h áv am o s o papel de fornecer as m etafísicas necessárias, qu e, p o r acaso , eram o p o sta s — hoje em dia ach o que, grosso modo, ele tin h a raz ão n aq u ele d e b a te. M as havia um a espécie de distância entre o que a gente dizia do Capital e o Capital p ro p ria m e n te d ito. De q u a lq u e r m o d o , o que foi seg u ram en te im p o rta n te é que m uitas das g ran d es o b ra s das ciências h u m a n as, das ciências sociais d o Brasil, são resu ltad o desse S em inário. D epois ele houve vários clones, sucessivas gerações c o m eçaram a fazer sem inários d o Capital. Foi um a iniciativa, um a idéia do G ia n n o tti, qu e era no v a, um tip o de p rática que n ão existia, que estava fora do c o n te x to da ép o ca. F lavia, m esm o assim , um a atm o sfera propícia a isso. Q u a n d o entrei na U niversidade, lem b ro -m e d o G abriel Bolaffi (em b o ra a F aculdade fosse p eq u e n a, ain d a era alu n o de p rim eiro ou seg u n do an o e n ão tinha m uito c o n ta to com os professores de o u tro s d ep a rtam e n to s) que me disse: “ V ocê se interessa p o r m a rx ism o , n ão q u er co n v ersar com o F ern an d o F íen riq u e, um jovem p ro fe sso r que a gente tem a í? ” . Foi um p rim e iro c o n ta to , q u a n d o se falou d os limites d o m a rx ism o e c o n tra o m a rx ism o v u lg ar. .Mas, na verd ad e, foi o G ia n n o tti que p ro p ô s o S em inário in stitu cio n alm en te e fora d a U ni versidade, ferindo algum as susceptibilidades. Inclusive a de F lorestan [Fernandes). £ como era Fernando Flenrique? Eu me lem bro d o F ern an d o F lenrique fazendo u m a m ed iação en tre in te rp re taç õ es opostas. P ara se ter um a idéia do F ern an d o d o S em inário b asta 1er a in tro d u ç ã o que ele fez à sua tese de d o u to ra m e n to , em que há um a espécie de te n tativ a de reconci liar (se n ão m e falha a m em ória) l.évi-S trauss e S artre, — o u seja, de co m p atib ilizar a leitura m ais ou m enos althusseriana^ de G ian n o tti com a Crítica da razão dialética que eu defendia. O F ern an d o fez um a espécie de p o n te en tre essas d u as leituras. A liás, um ensaio que L ebrun escreveu sobre esse p refácio se perd eu . Q u a n d o ele foi em b o ra pela prim eira vez, p o r volta de 1967, tinha um a coleção m u ito grande de conferências que havia feito no Brasil. Q u an d o vi o m aterial, disse: “ L ebrun, deixa isso com igo que vou ver se p rovidencio um a tra d u ç ã o e a gente publica seus ensaios aq u i no B rasil” . M as, logo em seguida, fui ca ssad o , tin h a d e sair do Brasil, e passei
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essa coleção de textos p ara o Salinas, que acabou p erd en d o boa p arte dela. Este tex to fazia um retrato das produções do F ernando H enriq u e e, se n ão me engano, esboçava u m a crítica . L em b ro -m e m u ito v ag a m e n te d o te x to . N ele, L eb ru n d av a g ra n d e im p o rtân cia ao prefácio de F ern an d o H en riq u e, em b o ra n ão co n co rd asse com a sua n a tu re z a e ten tasse le v an ta r alguns prob lem as. Infelizm ente esse te x to se perd eu .
Como você descreveria a sua experiência no período de í 964 até 1969, isto é, do golpe m ilitar à sua cassação da USP? N esse m o m en to não tinha nenhum vínculo político-institucional, apen as participava das m anifestações de p rofessores e estu d an tes. N a verd ad e, a m in h a cassação im pediu q u e m e associasse à o p o siç ão o rg a n iz a d a à d ita d u ra , p ois, q u a n d o estav a p raticam en te ad e rin d o à resistência, veio a cassação . N o p e río d o de 1 968, depois d o n osso ju n h o de 1 968, fui to le ra d o pelos alu n o s, qu e ach av am que eu tin h a a c a beça à d ireita, m as o c o ra ç ã o à esq u erd a e que, p o rta n to , era perd o áv el. H elena H ira ta , um a d as po rta-v o zes da R ev o lu ção ISocialista], chegou a dizer q u e o m é to d o estru tu ra i era indispensável p a ra a filosofia, p ara o m a rx ism o , qu e era preciso fazer análise de P latã o , m as que um a n o in teiro de Bergson era um ex a g ero [risos].
A experiência mais delicada nesse período dever ter sido a paritária, quando você era Chefe de Departamento. Sim, foi du ríssim o . N ã o p o rq u e houvesse co n flito en tre as p artes p a ritá ria s, pois a co m p o siç ão estu d an til d o p ro g ra m a era diversificada e havia p o u co sectarism o . () D e p a rta m e n to n ão se dividiu e n tre p rofessores e alu n o s, m as dividiu-se segundo o u tra s lin h as, no q u e na época eram co n sid erad a s a “ d ire ita ” e a “ e s q u e rd a ” do D e p a rta m e n to . H o u v e conflitos m u ito d u ro s e eu era, p ro v av elm en te, o ú nico que tin h a c o n ta to com as d u as ex trem id ad es. E n tão p esso alm en te era d o lo ro so , pois os co n flito s objetivos p assavam pela m inha alm a, qu e nu n ca foi m u ito v ig o ro sa. Foi um p erío d o m u ito c h a to , havia brigas feias que, p en san d o retro sp e ctiv a m e n te, ti n h am a su b stân cia d o im ag in ário , n ão envolviam , na verd ad e, n en h u m co n flito o b jetivo, perten ciam m ais ao universo p a ra n ó ic o qu e é a regra da u niversidade. N u m a p alav ra, talvez S artre n ã o ten h a raz ão n o ab so lu to de sua a n tro p o lo g ia fu n d a m e n tal, q u a n d o diz que o in ferno é o o u tro ; talvez essa p ro p o siçã o n ão te n h a valid ad e universal, m as que na univ ersid ad e vale, vale m esm o!
Até o final da década de 1960, a impressão que se tem é de que a inte lectualidade paulistana vivia numa ilha, separada do resto do Brasil, comunicando-se apenas com a Europa. Essa impressão procede? Quais seriam as razões para isso? P rocede. M as antes de p e rg u n ta r pelas razões, v am o s descrever o fato . U m a coisa q u e m e su rp re en d e u m u ito , q u a n d o voltei da E u ro p a pela seg u n d a vez, foi ver na U nicam p, p o r iniciativa d o P o rc h at, a presença m aciça de pro fesso res estran g eiro s e de professores de o u tro s estad o s. H o u v e na U nicam p um a espécie de a b e rtu ra do leque de c o n tato s. O D e p a rta m e n to de Filosofia d a USP sem p re teve u m a relação p rivilegiada, q uase que exclusiva, com a F rança. C o m P o rc h at, m anteve-se o c o n ta to com os franceses, m as h ouve ta m b ém a b e rtu ra p a ra am erican o s, ingleses, a u s
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tra lia n o s, neozelandeses, arg en tin o s etc. Nes.se sen tid o , a U nicam p serviu co m o um ce n tro de unificação , de m ultiplicação da relação com o e x terio r, m as so b retu d o de m ultip licação dos c o n ta to s in te resta d u ais, algo q ue até e n tã o n ão existia. A liás, é preciso le m b rar — e ag o ra vou te n ta r ex p lica r m esm o — qu e, q u a n do fui alu n o d o D e p a rta m e n to de F ilosofia, deveria h aver seis ou sete professores no to ta l. N a m inha tu rm a de 1956 eram onze alu n o s, q u e r d izer, a to ta lid a d e do D e p a rta m e n to de Filosofia — c o n sid e ra n d o pro fesso res e alu n o s — era um p o u co su p e rio r a o atu al c o rp o docente. Em co n tra p o siç ã o , h av ia o In stitu to B rasileiro de Filosofia que c o n tav a com um a espécie de hegem o n ia n acio n al. Em 1958, o C ruz C osta decidiu que o D e p a rta m e n to deveria sair de d e n tro do ,seu casu lo e p a rtic i p a r dos congressos p ro m o v id o s fora da U niversidade. E n tã o fom os co n v id ad o s a p a rtic ip a r, co m o rep rese n tan tes d o D ep a rtam e n to : G ran g er, qu e estav a dc p assa gem pelo Brasil, G ia n n o tti e eu, que apresentei o resu m o de um tra b a lh o de a p ro v eitam en to feito p ara o c u rso sobre H egel de Lívio T eixeira. D epois, o D e p a rta m e n to cresceu m u ito ; p ara esp raiar-se so b re o m u n d o e x te rn o co m o ele se esp raio u , em m ú ltip las direções, foi n ecessário esse te m p o de his tó ria , da con stitu ição de um a m assa crítica que, até en tão , era inexistente. Em 1963, q u a n d o voltei da F rança pela p rim eira vez, fiquei p asm o ao ver que tin h a tu rm a s de cem alu n o s, ou seja, num p erío d o de p o u q u íssim o s an o s, h ouve um a espécie de ex p lo são d em ográfica. Se n ão m e en g an o , na d écad a de 5 0 h ouve um a u m e n to das escolas secundárias, do volum e de to d a a rede escolar, que veio, no com eço da década de 60, a u m e n ta r m u ito o volum e da U niversidade, to rn a n d o -a um a U niversidade de m assa. P or o u tro lado, criou-se tam bém essa m assa crítica sem a q u al o D e p a rta m ento n ão p o d eria irra d ia r p a ra fo ra, pois n ão se irra d ia com seis ou sete pessoas.
Em entrevista de Í987, Giannotti afirmou que a geração dele tinha o objetivo claro de transformar a faculdade em produtora de seus pró prios quadros. Em contraste com isso, Giannotti disse também que “a geração de 68 repetiu, praticamente, nosso projeto, sem conseguir uma integração em redor de certos temas básicos. O estruturalismo meto dológico acabou se convertendo na fragmentação pós-m odem a”. E Giannotti incluiu você nessa geração quando disse: “A geração fonnada pela FFCL em 68 não estabeleceu um projeto intelectual próprio. Veja, por exemplo, a geração composta por Bento Prado, Marilena Chaui, Paulo Arantes e Rubens Rodrigues Torres Filho”. Como você vê esse diagnóstico do Giannotti? Sim plesm ente é erra d o . A h istó ria p o ste rio r m o stra o en g a ja m en to in stitu c io n al, p rático , dessas pessoas citad a s, no sen tid o de rem o d e lar a U n iv ersid ad e. N ã o vejo, ta m p o u c o , q ual possa ser a ligação entre o m é to d o estru tu ra l e o p ó s-m o d ern ism o . T e n h o a im pressão que essas propo siçõ es d o G ia n n o tti significam , m ais ou m enos, a ex p ressão de um a decepção: havia um p ro je to qu e era co n sid erad o bom e esse p ro jeto n ão foi p ara frente"*. É preciso ver tam bém qual é o c o n te x to , e talvez a frase cu rta e enigm ática n ão ex p rim a o que ev e n tu alm en te ele p o d eria dizer de m an eira m ais e s tru tu ra d a . N ã o estou d izendo que G ia n n o tti vê m al as coisas, m as qu e essa p ro p o siç ã o dá essa im pressão...
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Chama a atenção na sua produção a oscilação entre extremos, entre pensadores habitualmente qualificados como antipodas. Exemplo disso parece ser a sua opção por estudar — sob o patrocínio do último Merleau-Ponty — o pensamento de Henri Bergson na primeira metade da década de 1960, momento em que você se definia como sartreano. Como você se decidiu por estudar Bergson e como você vê essa sua atração pelos extremos? ts s a é um a h istó ria m u ito curiosa. N um ce rto m o m e n to — ain d a na F ran ça, pela p rim eira vez — , q u a n d o o sa rtrism o era um a espécie de segundo senso co m u m p ara m im , eu pensava e sp o n tan e am e n te no v o ca b u lá rio d o S artre — a Lúcia [PradoJ e o R o b e rto Schvvarz m o rriam de rir q u a n d o , assistin d o a um a de m in h as au las, n o ta vam que estava in v o lu n tariam en te im itan d o to d o s os tiques d o S artre. N essa é p o ca, tive a o p o rtu n id a d e de o u v ir sa rtre a n o s falarem , e me lem b ro de um cid ad ã o que, em um co n cu rso de ag reg ação , explicou co m o tin h a an a lisad o o tem a que lhe h aviam p ro p o sto , o te m a da p ro b a b ilid a d e e d o acaso. Disse ter d e m o n stra d o que era só atra v és do pour soi que o acaso vinha ao m u n d o . M as isso n ão explica n ad a a respeito da p ro b ab ilid ad e e d o acaso [risos]! N esse caso . o uso do jarg ão faz as vezes de explicação, a retórica de em préstim o dá a ilusão de pen sam en to . E ntão senti a necessidade de ser sa rtre an o até o fim, e S artre dizia que m edia a evidência de um a idéia pelo coeficiente de h o rro r q u e ela lhe causav a; q u a n to m ais d esagradável um a idéia, m ais chances tem de ser v erdadeira — penser contre soi. Penser contre soi era, no caso, penser contre Sartre. E quem era m ais d iferen te do que ele? Bergson. E n tão fiz um esforço de dégagement de S artre atra v és do Bergson e. seg u ram en te, m ais ta rd e séria a u x ilia d o pelo segundo .M erleau-Ponty, q ue estava red e sco b rin d o Bergson. O curioso é que descobri mais tarde que Sartre se converteu à filosofia lendo Os dados imediatos da consciência. Isso q u er dizer q u e o salto que fiz n ão era tã o g ran d e , a o p o sição n ão era tã o g ran d e. S artre dizia q u e, nos tem p o s do Liceu, eraIhe m u ito difícil e n ten d e r o que era filosofia (“ p o r q u e ser filó so fo .'” ), até que um de seus professores, d o qual n ão g o stav a, deu p ara ele 1er O s dados imediatos da consciência, e Sartre diz que ficou entu siasm ad o e lim itou-se a resum ir o livro: “ Esse hom em faz cair v erdades do céu, ach o que tam b ém vou fazer cair alg u m as v e rd a d e s” [risos). D escrevendo seu tra b a lh o escolar so b re o livro de B ergson, diz: “ Li m itei-m e a resum ir, estava tu d o ce rto , tu d o v e rd a d e iro ” . E recebeu um a péssim a n o ta de seu p ro fesso r... T ive de fazer um esforço, e n tã o , p a ra m u d a r os m eus h á b i to s de p en sam e n to que, na verd ad e, foi m ais um a m u d a n ça de superfície d o que de p ro fu n d id a d e . E m b o ra no m eu livro p ro c u re m o s tra r c o m o as crítica s fenom en ológicas a B ergson, ao seu “ n a tu ra lism o ” , são p erfeitam en te injustificáveis. Isso fez com que eu constantem ente fizesse o paralelo entre Sartre e Bergson, seja na form a de o p o sição , seja na form a de suas coincidências parciais.
Depois de sua livre-docência sobre o pensamento de Henri Bergson, você passou a se dedicar ao estudo da obra de Rousseau, estudo que você teve a oportunidade de aprofundar no período de exílio em Paris. Se gundo Paulo Arantes, não é fácil dizer o que teria levado você a passar de Bergson a Rousseau. Você poderia afastar essa dificuldade para nós?
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P ara co m eçar, é preciso d istin g u ir vários níveis, v árias cau sas o casio n ais e causas eficientes — pelo m enos na m inha u ite rp re ta ç ã o retro sp ectiv a. Em p rim eiro lugar foi a sim patia pelo a u to r, pela p ersonagem e pela escrita. Q u a n d o escolhi Bergson, precisava scr n ã o -sa rrre a n o , m as precisava escrever bem — senão, eu n ão ag ü en to . N o caso de R ousseau, tem -se um g ran d e escrito r e, ao m esm o te m p o , um crítico da filosofia, um sujeito que o cu p a um lu g ar privilegiado d e n tro dos (ou c o n tra os) lim ites da Aufklärung. Eu escolhi ta m b é m , co m o disse, p o r causas o casio n ais ou p o r efeitos e x te r nos de m o d a . P orque esse m o m e n to era o p erío d o d a m o d a e stru tu ra l, m o d a lévistrau ssian a , e o Lévi-Strauss a p o n ta v a p a ra um a o u tra espécie de red esco b erta de R ousseau. C) Ensaio sobre íi origem das línguas, p o r ex em p lo , p u b licad o com m i nha ap re sen ta çã o pela E ditora da U nicam p, foi red esco b erto p raticam en te nos anos 5 0-60. N in g u ém lhe a trib u ía im p o rtâ n cia algum a. Foi o Lévi-Strauss q u e, em p ri m eiro lugar, e n c o n tro u nesse livro, co m o o u tro s, um a espécie de a n tec ip aç ão das C iências H u m a n a s em geral e da sua p ró p ria o b ra em p articu la r. R ousseau, na v erd ad e, foi red e sco b e rto d u as vezes ap ó s a S egunda G u erra •Mundial; foi red esco b erto . co m o filósofo, na vaga d a filosofia da existência — há, nessa época, o surgim ento de livros adm iráveis, co m o o de S taro b in sk i, q ue faz um a e x p lo ra ç ã o fenom enológica dos tem as e d as im agens privilegiadas d o im ag in ário ro u sseau ísta. D epois há um a segunda red e sco b e rta , que é a d esco b erta e s tru tu ra lista — o R ousseau teórico e fu n d a d o r d as ciências h u m a n as. A m in h a p ro p o sta , e n tã o . era. sem p erd e r as riq u ezas de ca d a um a dessas red e sco b e rta s, fazer um a in te rp re ta ç ã o u n itá ria de R ou sseau , re stitu in d o a u n id a d e d e seu p e n sa m e n to e p ro c u ra n d o m o strá-la on d e é m ais difícil de ser m o stra d a. O m eu livro so b re R o u s seau (ainda inédito) deveria ter um a últim a p a rte so b re o d iscu rso p o lítico . N esse sentid o , pensava em m o stra r, a p a rtir da m inha te o ria da co n cep ção retó rica da linguagem de R o usseau, a consistência en tre o Contrato social de um la d o e os es crito s políticos con creto s de o u tro — A constituição da Córsega e o Projeto para a Polônia, on d e a m aio ria dos co m en ta d o re s só consegue d iv isar co n tra d içõ e s. M as, q u a n d o voltei ao Brasil, estive na banca de Salinas q u e fazia ex a ta m e n te isso. E n tã o desisti dessa últim a parte. P ensan d o bem , ta m b ém cheguei a R ou sseau , à decisão de lê-lo, n ão de tra n s fo rm á-lo em o b je to , segu ram en te em aula d o L eb ru n . L em bro-m e dele c o m e n ta n d o um a bela frase de R ousseau: II n'y a de beau que ce qui n ’est pas (só é belo a q u i lo que não existe). Provavelm ente a teoria do im aginário rousseauísta deve ter ecoado sartreanam ente na m inha cabeça, ta n to é que a prim eira versão do meu livro — nessa época, im itan d o o L ebrun, eu escrevia in teg ralm en te as m in h as au las — era e x a ta m ente um cu rso so b re o con ceito de im ag in ário em R ousseau (a p rim eira au la d es se cu rso foi p u b lic ad a na revista Dissenso, n° 1), Esse cu rso se tra n sfo rm o u num livro sobre a teo ria da linguagem co m o retó rica.
A partir de meados de 1970, você passa a se interessar também por te mas de psicologia e de psicanálise. O que o trouxe a essas disciplinas? Eu fui da últim a tu rm a da F aculdade que precedeu a cria çã o d o cu rso de p sico lo gia. Até 1960 n ã o havia um cu rso de psicologia: o cu rso de psicologia fazia p arte
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d o de filosofia. T ín h a m o s a m esm a m assa de carg a h o rá ria em psicologia e filo so fia, e boa p a rte das m in h a colegas foi fazer p ó s-g ra d u aç ão em psicanálise. Lúcia, m in h a m u lh er, q u e fez filosofia, co m eçou fazend o p ó s-g ra d u a ç ã o em psicologia clínica e só depois p assou p ara eto lo g ia, psicologia an im al etc. De q u a lq u e r fo rm a, a psicanálise sem pre m e p areceu um tem a se d u to r p a ra a filosofia. L em bro-m e, ain d a na d écada de 6 0 , q u a n d o V uillem in esteve aq u i, pela p rim eira vez, e p erg u n to u o que eu p ensava em fazer no fu tu ro . Disse a ele: “ Penso em fazer algo co m o a lógica da p sic an á lise” , en ten d e n d o p o r lógica da psicanálise um a espécie de ep istem ologia. Essa resp o sta p ro v o c o u in d ig n ação em V uillem in, q ue disse: “ E n tã o você im agina que tu d o é lógica no m u n d o ? ” . O b v iam en te , com o b om positivista que era , V uillem in era d u alista , q u er dizer, tin h a o d o m ín io d a ló gica de um lad o , e o dom ínio da irrazão de o u tro , que é igualmente respeitável. Para ele, a filosofia n ão fala d o m u n d o , fala da e s tru tu ra d a linguagem , e o m u n d o se revela atrav és d a poesia, da p in tu ra , d o inconsciente — um a espécie de d u alism o . N ã o que o assu n to fosse indigno d a filosofia, m as p ro v av elm en te cie ach av a que a psicanálise era o o u tro da filosofia: im aginem os a análise lógica e a psicoanálise com o os dois p ó lo s de um d ila ce ra m e n to in c o n to rn áv el... £ também com Bergson você não se afastava muito da psicologia... N ã o . C o m S artre tam b ém não, pois ele com eçou co m a psicologia fenom enológica. M as, na verd ad e, depois, nos an o s 70, ta m b ém h o u v e um a escolha estratég ica da psicologia com o tem a. Q u an d o vim para São C arlos, o n úm ero de filósofos era m uito restrito e senti a necessidade de in sta u ra r tra b a lh o s em co n ju n to ã m a n eira de se m inários. D aí pensei: “ M as, m eu Deus d o céu, com quem vou fazer sem inário aq u i?” . H av ia um g ru p o de psicólogos, gente de excelente fo rm a çã o , to d o s b eh av io ristas. E n tão me lem brei de um livro, The concept o f mind, ex tre m am en te bem escrito e adm irável p o rq u e p ro p õ e um a in te rp re taç ão behav io rista en tre aspas, beh av io ristalingüística, d o s conceitos básicos da psicologia e, n a m esm a o casião , senti a neces sid ade de v o lta r ao W ittg en stein , que tin h a e s tu d a d o um p o u q u in h o na p rim eira vez em que fui p ara a F rança, com G ranger. C onvidei en tão o B altazar B arboza Filho e o Luiz H en riq u e L opes dos S antos, q u e vieram aq u i reiterad a s vezes d a r cursos so bre W ittg en stein e, de um certa m a n eira, a psicanáli.se ficou no p assad o . N a ver d ad e, tu d o d epende m u ito dessas circ u n stân cias ex tern as. T am b ém na U nicam p, nessa época, foi cria d o um g ru p o de filosofia da p sica nálise. Participei sim ultaneam ente dos dois grupos, e, p o r isso, viajava sem analm ente p ara C am p in as.
Nos anos 1960, você se dedicava a escrever diretamente sobre temas li terários, publicando artigos como “O destino decifrado” e “A sereia desmistificada”, em que toma Roberto Schwarz como principal interlocutor. Desde essa época, porém, sua produção nesse terreno se resumiu a um curto artigo em homenagem a Drummond, quando do seu octagésimo aniversário. A que se deve essa mudança? A circ u n stân cias ex tern as (aliás, haverá o u tras? ). De u m a ce rta m an eira reto rn ei a este tem a, pois nestes dois úh im o s an o s escrevi sobre a poesia d o R ubens R odrigues
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C onversas com Filósofos Brasileiros
T o rre s Filho e d o Jo ã o C a b ra l de M elo N eto . E sto u re to rn a n d o a este tem a e p re te n d o co n sag rá-lo a um fu tu ro livro, c o m p o sto de três p artes: um a p rim eira p arte, m ais crítico-reflexiva, teria co m o o b je to a idéia de ipseidade, de ser si m esm o — a q u estão da su b jetividade — , n u m a linha parecid a com a de R ico eu r''. A segunda p a rte seria sobre ética e ro m an ce, tra ta ria de alguns ro m an ces escolhidos. E um a terceira p a rte seria so b re poesia e m etafísica atrav és d a an álise das poesias de Jo ã o C ab ral de M elo N eto , de C arlos D ru m m o n d de A n d rad e, F ern an d o Pessoa, V aléry, F rancis Ponge e d o s p o etas m etafísicos espanh ó is. Penso d a r a esse livro o títu lo
Ipseidade, formas e expressão: as diferentes formas da subjetividade. C e rta vez, co n v e rsan d o com .Antonio C â n d id o , nos an o s 6 0 , disse: “ O m eu m estre G ran g er diz que a filosofia n ã o po d e ter u m a fo rm ação p u ram e n te filosófi ca. A filosofia é essencialm ente p ara sitá ria , n ão tem um assu n to p ró p rio . E n tã o é indispensável que, além da fo rm a çã o filosófica, ten h a-se u m a fo rm a çã o científica, dom ine-se um a ciência. O bedeci a esse im p erativ o e, no caso , a m in h a ciência é a p o e sia ...” ; a filosofia de um lad o e a poesia do o u tro , p ara d a r co n teú d o ou vida à reflexão filosófica.
Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Como você vê as re lações entre a filosofia e a cultura brasileira? A idéia de um a filosofia n acional é ob v iam en te um a idéia p ro b lem átic a. A cho que aquele m eu te x to '’ sobre a q u estão da filosofia no Brasil tem in ú m ero s defeitos, n ão o reescreveria da m esm a m a n eira, m as co n tin u o a c h a n d o q u e é m u ito difícil falar nu m a filosofia nacio n al, p o rq u e isso parece im plicar um a espécie de psicologism o, um a espécie de alm a nacio n al, de um gênio n acio n al. T alvez C ru z C o sta fosse víti m a dessa idéia, na m edida em que achava que a filosofia b rasileira iria n ascer com as ca racterísticas da boa heran ça po rtu g u esa. Pode-se falar de tradições filosóficas que se in stau ram . N aq u ele meu tex to dizia que no Brasil faz-se fenom enologia, faz-se positivism o, com o em q u alq u er o u tra p arte d o m u n d o , esvaziando co m p letam en te a q u estão d a filosofia n acio n al e in sistin d o no c a rá te r necessariam ente universal da filosofia. É nesse sen tid o que se p ode falar em trad içõ es que se co n stitu em p o r m eio de disp o sitiv o s in stitu cio n ais, sem v o ltar a idéias co m o gênio da língua, co m o esp írito de um povo. T en h o a im p ressão de que, ao c o n trá rio d o m eu d ia g n ó stic o de 1 968, já é possível ver um a trad ição univ ersitária de filosofia que, se n ão define um estilo fi losófico, define, pelo m enos, um certo estilo de tra b a lh o acad êm ico . Fíouve, nas últim as décadas, um a espécie de g eneralização de um certo p a d rã o u n iv e rsitário de tra b a lh o em filosofia. N ã o é que considere que esse p a d rã o seja o m esm o p o r to d a a p arte , m as ach o que ele é indispensável, senão bom p o r si m esm o — o p a d rã o in te rn acio n al, no m o m e n to , n ão é lá essas coisas. .Vias são co ndições m ín im as p ara o ad v e n to de um estilo original em filosofia. Desse m o d o , ach o im p o rta n te d u as coisas: que haja a constituição de um público leitor de filosofia e que haja um volum e considerável de p ro d u ç ã o de te x to s filosóficos. Q u a n d o era alu n o , p o r ex em p lo , q u a n to s livros de filosofia eram trad u zid o s? P raticam en te n ad a , havia p o u q u íssim a coisa trad u z id a. Já hoje em dia, q u a lq u e r livro é im ed iatam en te tra d u z id o . Além disso, na USP, o ex em p lo que co nheço m ais — m as isso o co rre em o u tro s d e p a rta
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m entos — , há gerações sucessivas de pessoas que re tra b a ih a m o m esm o p ro b lem a e, nesse caso , é possível dizer que existe um a tra d iç ã o na leitu ra de tal a u to r.
Em artigo de dezembro de 1999 para o suplemento Mais! da F o lh a de S. P aulo, você escreveu: “Confessemos, nós professores de filosofia, que nossa arte é bem pouco refletida no presente. Toda a minha simpatia vai para gente como Nietzsche e Wittgenstein, que consideravam nos sa pro fissão um terrível perigo e nossa situação institucional um con vite à falsificação. O que tem a ver o ensino da filosofia, hoje, com o esforço de to rn a r-se d ig n o de viver? Haveria de comum, entre nosso discurso e o dos antigos, mais do que mera hom oním iaf”. Em que sen tido a homonímia não é apenas farsa? Há alternativa além daquela entre o “avoado filosofante” e o “idiota especializado”? A frase que está p o r trá s desse artig o é de W ittgen stein : “ N ã o é possível ser h o n es to e p ro fesso r de filosofia ao m esm o te m p o ” . H á tam b ém um o u tro te x to de N ie t zsche, que me com oveu m uito, so b re in stitu c io n aliza çã o da filosofia, q ue diz: “ O E stado d eterm in a q u a n ta s h o ras de filosofia são n ecessárias p ara a fo rm a çã o do c id ad ã o . D eterm ina q u a n to s filósofos deve haver n o país, q u ais são esses filósofos e q uais são os bons filó so fo s” , o u seja, a in stitu cio n alização da filosofia faz com q u e ela seja n ecessariam en te c o n tro la d a de fo ra . E ele ac rescen ta: “ São fix ad o s h o rário s em que você deve filosofar. E se algum d ia, p o r ac aso , n ad a m e o co rrer q ue valha a pena? Se n ão tiver n en h u m a idéia no dia tal às o ito h o ras da m an h ã? O que vou ter de fazer? V ou ter de fingir que penso. E fazem isso diante de jovens!" De fato , a in stitu c io n aliza çã o da filosofia tem as p ecto s n o to ria m e n te po sitiv o s — n o m eu caso, se n ão houvesse a pro fissão de filósofo, co m o é que eu faria? N ã o sou c o n tra a pro fissão de filósofo, que nos perm ite sobreviver. N o e n ta n to , essa in stitu cio n alização acaba p o r fix ar p reviam ente o q ue é filosofia, acab a estab ele cendo um curriculum, um a ro u p a p ré-fa b ricad a q u e cristaliza, de alg u m a m an eira, a filosofia. V eja-se, p o r exem plo, os deb ates entre as filosofias co n tem p o rân eas: são d eb ates en tre instituições. As universidades am erica n as fu n cio n am , p o r ex em p lo , com u m a certa co n cep ção de p rática de filosofia na base da solidez de seu sistem a in stitu c io n al, que é im perm eável. Isso n ão é só um d efeito d a u n iv ersid ad e am eri ca n a, é de to d a a filosofia em situ ação in stitu c io n al. M as, p o r o u tro la d o — é esse o p roblem a — não se pode c o n tra p o r ao m au m o d elo de filosofia in stitu cio n alizad a o bom m o d elo de filosofia “ em e stad o livre” . Isso n ão q u er dizer n a d a , a n ão ser o v o to piedoso, ou, n o caso de W ittgenstein, a p o ssib ilid ad e de ele n ão d a r au la na u niv ersid ad e — foi ser p ro fesso r p rim á rio , foi ser a ju d a n te de jard in eiro . M as isso é um a saída pessoal. N esse sen tid o é im possível p en sar n u m a política da filosofia que n ã o passe, de alg u m a m a n eira, pela institu ição . T en h o a im p ressão que é n e cessário que h aja um a política da filosofia, um a p o lítica q u e pelo m enos n eutralize os efeitos m ais im e d ia tam en te nefastos da in stitu c io n aliza çã o , q ue são, p o r e x e m p lo, a restriç ão do cânone: a d eterm in a çã o d o que é filosofo e d o q ue n ão é filóso fo, q u ais são os filósofos b o n s, q u ais são os filó so fo s m au s. Q u e in tro d u z a um m ínim o de negatividade ou de (que me perdoem os deleuzeanos) reatividade. Stanley C avell, p o r exem p lo , c o n ta que, q u a n d o estu d a n te , um típico p ro fesso r am erican o
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lhe disse: “ E xistem três m an eiras honestas de se g a n h a r d in h e iro com filosofia: a p rim eira delas é e stu d a r lógica e m atem ática; a segunda é e stu d a r línguas, línguas antigas e en sin ar histó ria da filosofia; e em terceiro lugar fazer psicologia lite rá ria ” . O Cavell diz que sentiu isso co m o um a espécie de ag ressão pessoal, pois era e x a ta m ente o que estava p en san d o em fazer. O que é psicologia literária? É “ p erfu m a r ia ” . O sujeito adm ite ain d a que é um a m an eira h o n esta de g a n h a r d in h e iro , m as é psicologia literária, q u er dizer luda, nem psicologia, nem filosofia, p u ra lite ra tu ra... que deve ser, no m áx im o , tolerada co m o ativ id ad e inócua. Sendo q ue o c u rio so é que a e x p re ssão “ p sicologia lite rá ria ” foi in v e n tad a pelo filósofo h isp an o am erican o [George] S an tay an a p ara c a racteriza r aq u ilo que seria um a espécie de fenom enologia do espírito: de um lado, tem as ciências n a tu ra is, a h istó ria n atu ra l d izendo q ual é o fu n cio n a m en to da h u m a n id ad e so b re o p lan eta com o espécie a n i m al; dc o u tro lad o , um a ativ id ad e que n ã o é cien tífico -ex p licativ a, m as qu e é h e r m enêutica, que ele ch am a de psicologia literária, isto é, que traz a p o ssib ilid ad e de d esco b rir figuras d o esp írito atra v és d as suas m anifestações literárias. O g ran d e perigo, p o rta n to é, no fu n d o , o fan a tism o , o sectarism o c o cânone — o fio de q u are n ten a que se estabelece em to rn o de certas trad içõ es qu e se to rn am sacrossantas. E ntão, p ensar em um a política positiva d a filosofia é m u ito difícil; m as p o dem os, digam os, to m a r um a atitu d e reativa, c o m b ate r as form as de fecham ento e de m itificação do discurso filosófico. É p o r isso q ue vejo com bons o lh o s, sem n e n hum ecletism o, q u a n d o tradições se cruzam . Por qu e eu escrevo so b re D eleuze e W ittgenstein? N ã o é p ara dizer que é a m esm a filosofia — se eu dissesse isso seria simples bobagem — , m as para acentuar fortem ente as sem elhanças, para poder desven d a r as diferenças m ais finas que não aparecem n o d eb ate polêm ico. N a polêm ica antian alítica e na polêm ica antifenom enológica, p o r ex em plo, n o rm alm en te os arg u m entos são grossíssim os. Eu m e lem bro de um filósofo fino co m o Ryle qu e, ao fazer a crítica ã fenom enologia, fazia um a c a rica tu ra da fenom enologia. V lerleau-Ponty, respondendo a ele, dizia: “ É curioso, p o rq u e o nde você vê diferenças, vejo m uito m ais sem elhanças, m ais sem elhanças entre o que você faz e o que eu faço do que você vê. V ocê só vê diferenças, eu vejo algum as sem elh an ças” . É claro q u e, en tão , q u a n d o você te n ta suavizar ou to rn a r m enos precisos os lim ites qu e d elim itam o p ró p rio câ n o n e, o que é canônico, n ão se tra ta de p ro m o v er alg u m a coisa com o a filosofia perene, qu er dizer, a iden tid ad e perene da filosofia consigo m esm a, m as m o stra r que as diferenças en tre as filosofias são m uito m enos evidentes d o q ue parecem .
Messe sentido. Bento, os seus textos nos transmitem a impressão de que você trata os pensadores e escritores como se os estivesse recebendo em um salon do século XVIII. E, na posição de anfitrião, cabe a você a ta refa de encontrar afinidades eletivas insuspeitadas entre convidados que não se conhecem, cabe não deixar ninguém isolado, sem uma boa con versa. Seria isto para você a filosofia, m uito mais um ambiente, um ele mento, do que uma doutrina? Seguram ente. N ão sei se essa definição é fiel ã m inha prática^, m as gostaria qu e fosse, p o rq u e faria da histó ria da filosofia um a espécie de p ro lo n g am en to de um diálo g o do P latão — desde que ap o ré tico . E, na verd ad e, ao dizer isso, é preciso v o lta r a
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L eb ru n , à m a n eira co m o ele p raticav a a h istó ria da filosofia. F alou-se d a m in h a p rática, m as ach o q u e o que está na p e rg u n ta descreve m ais fielm ente a p rática de L ebrun. N a histo rio g rafia de L eb ru n , nos diálo g o s qu e ele estabelece, n ão existe nenhum personagem que desem penhe o papel de Sócrates. N o fundo ele assum e um a a titu d e perspectivista.
Mas o Lebrun julga... D epende d o te x to , e o ju lg am en to varia com a v aria çã o da p ersp ectiv a escolhida. H egel, p o r exem p lo , n ã o é o m esm o na Paciência do conceito e no Avesso da dia lética. O H egel d o Avesso da dialética é ca ra c te riz a d o co m u m a im agem triv ial e eq u iv o cad a, p o rq u e L ebrun está fala n d o de N ietzsche, qu em está co m a p alav ra é N ietzsche. M as, se se peg ar o ú ltim o te x to dele. Le devenir de la philosophie, H egel volta a ser o b je to p rincipal. É m ais ou m enos o qu e d igo no m eu artig o \ FoIha de S. Paulo, 3 0 /0 1 /2 0 0 0 ] sobre L ebrun: o H u m e, o P ascal, o H egel e o N ietzsch e dele são to d o s antifilósofos. O que p ro íb e, p o rta n to , qu e o d iálo g o se co n clu a em um a tese positiva. É nesse sen tid o que ele é w ittg e n ste in ia n o , em b o ra n u n ca te n h a escri to sobre W ittgenstein. C u rio sa m e n te, ele ap ro x im a W ittg en stein de H egel, ou seja, o fluxo d o d iscu rso nun ca culm ina em um saber p o sitiv o (d ete rm in ad o ou finito), m as to rn a possível um ver d o m u n d o , um resu ltad o qu e é ao m esm o te m p o n u lo , se se en ten d e p o r um resu ltad o positivo um a tese, um a defin ição . É um a m aneira nova de ver que nasce da d estru ição de teses o u de rep resen taçõ es, u m a m an eira que descreve perfeitam en te o estilo w ittg e n ste in ia n o d a p rá tic a da filosofia.
Que conceito(s) de sua reflexão você destacaria como mais representativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que você nos contasse como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje. C o m o disse, o que estou p ro c u ra n d o fazer ag o ra — m as, p en s a n d o bem , n u n ca tr a balhei com o u tro assu n to — é circunscrever a idéia de su b jetiv id ad e pela p ersp ecti va da idéia de ipseidade. Foi o que fiz na tese sobre Bergson, ao m o strar a constituição da idéia de subjetividade na sua a rticu la çã o com a idéia de n egação. Foi o qu e fiz ta m b ém no livro so b re o R ou sseau , ao m o stra r o lu g ar d a su b jetiv id ad e na lin g u a gem e, m ais do que na linguagem , no discurso. E é o q ue eu te n h o reto m ad o , u ltim a m ente, nos m eus cursos e em alguns tex to s, um a ten tativ a de fazer um a arq u eo lo g ia d o Ich denke, do cogito, em D escartes, K an t, e W ittg en stein , cm que p ro c u ro m o s tra r as m etam orfoses da idéia de sujeito ao longo d a filosofia m o d ern a, que se ca ra c teriza p o r um a progressiva despsicologização e d essu b stan cialização d a idéia do eu. N ã o há m u ito co m o esconder isso, q u er dizer, o m eu p o n to de p a rtid a é H e i degger, a idéia de ipseidade tal co m o ela é tra ta d a n o Ser e o tempo. D e um a certa m a n eira, p o r m enos heideggeriano q u e eu seja — e esto u longe de sê-lo — , as m i nhas m an ias, as m inhas obsessões têm , prov av elm en te, u m a origem heideggeriana. N ã o há co m o usar a ex pressão “ ip seid ad e” sem se rem eter, pelo m enos esse é o meu caso , a H eidegger.
Como você avalia as caracterizações que o Paulo Arantes apresentou de você em U m d epartam ento francês de Ultramar?
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Infelizm ente aciio co rreta s [risosj. E m b o ra, no que se refere à co n c ep ç ão d a lite ra tu ra , ele force um p o u co a m ão q u a n d o ap ro x im a os m eus escritos dos de F o u cau lt (que D eus m e p erd o e a hyhrisl). De um a certa m an eira esses escritos foram fo rte m ente m a rcad o s p o r ele, m as jam ais m e ap ro x im ei d aq u ela co n cep ção m allarm aica d a lite ra tu ra que F o u cau lt subscreve. Em um a de suas au las d o C olégio de F ran ça, p o r exem p lo , ele chegou a d izer que a sofística co rresp o n d e ria àq u ilo q u e, no sécu lo X X , é ch a m a d o de lite ra tu ra . Isso m e parece um a falácia p o rq u e, no caso , tr a ta va-se de defin ir sofística atrav és de A ristóteles, u m a m an eira p o u co estratég ica de d efinir o so fista, pois o define atrav és da ótica de seu inim igo — aq u i, o definiens elim ina, dá fim ao definteudum. E p io r, o discu rso sofístico n ão é, n o fu n d o , en u n ciação , p o rq u e n ã o tem referência, n ã o tem significação, q u er dizer, a p ro x im a r o sofism a da poesia ab so lu ta m e parece estra n h o . O m eu te x to é, sem d ú v id a , fo rte m e n te m a rc ad o p o r F o u cau lt — c o n tra R o b e rto Schvvarz — e te rm in o p o r c a ra c te riz a r a lite ra tu ra assim co m o diz P au lo A rantes: “ A penas um arab esco n o ar, m as que pesa e, no e n ta n to , ilu m in a ” . N ã o é n a d a , m as, de um a ce rta m a n eira, ilum ina a nossa ex periência d o m u n d o , q u er d i zer, a literatura tem um valor cognitivo. Pode-se dizer, assim , que um a teoria ab so lu tista da literatura provavelm ente roubaria essa dim ensão cognitiva da literatura. M as, o que me interessa é que é possível falar p erfeitam en te em co n h e cim en to literário d o m u n d o . A liás, fa la n d o so b re A n to n io C â n d id o , eu disse, n o p refácio d e um li vro d ed icad o a ele, que, ao c o n trá rio d aqueles qu e falam de sociologism o d a p arte dele — o u aq u ela a titu d e que ilum ina o fen ô m en o literário a p a rtir de um co n h e ci m e n to prévio, de um co n h e cim en to científico da sociedade — , o caso d o A n to n io C â n d id o é ju stam en te o o p o sto , ou seja, é a d esco b e rta de q u e, no co n h ecim en to literário d o m u n d o , p o d em o s e n c o n tra r p istas q u e aju d am a co n stitu iç ã o de um a sociologia e de um a histó ria d o Brasil. E n tão , nem ab so lu tism o , nem red u cio n ism o .
Alguns leitores interpretaram o fato de o Patdo ter te chamado de “musa do Departamento” como uma ironia. É um elogio irônico [risosl**. R econheço a p arte crítica d o te x to de P aulo e vejo, em g ran d e p arte , com o c o rre ta , m as ten h o algum as restrições. C o m o tam b ém n ão c o n c o rd o com algum as in te rp re taç õ es que se fazem d a o b ra dele, ou com alg u m as in terp retaç õ es q u e o P aulo faz de sua p ró p ria o b ra . D isco rd o , p o r ex em p lo , d a m a neira com o ele escreve sobre si m esm o.
No Fio da m eada, por exemplo? N ã o n ecessariam ente no Fio da meada. Um p o u co p o r to d a p arte. A liás, já no p re fácio ao livro dele so b re H egel, digo isso literalm en te: “ P aulo A ran tes faz filosofia co m o se estivesse fazen d o o u tra c o isa ” . N a verd ad e, p o r m ais qu e se converse com um a pessoa p o r m ais de trin ta an o s, p ara se co m p re en d e r ex a ta m e n te o qu e o o u tro diz, n ão é fácil. M al c o m p a ra n d o , lem bro n o v am en te S artre. N o te x to q u e c o n sagra a M e rle au -P o n ty , d ep o is de sua m o rte , diz: “U ltim am e n te M e rle au -P o n ty an d av a fala n d o sobre a filosofia da n atu re za co m o algo d iferen te de um o b je to das ciências n a tu ra is ” . C^heguei a c o m e n ta r esse te x to , d izendo: “ D ois co m p an h e iro s de p en sam e n to , de ta len to e lucidez in co m p aráv eis, q u e fizeram as suas filosofias
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m u ito p ró x im a s um a da o u tra , com os m esm os in stru m e n to s — co m a fen o m e nolo g ia, com o m a rx ism o , com a psicanálise, com a Gestalt etc. e, no e n ta n to , o S artre disse: ‘Eu n ão en ten d ia d ire ito ’” . Eu te n h o a im p ressão qu e o P aulo tam b ém n ão en tendeu m u ito d ireito as coisas q u e ele escreveu [risos]. O que m e enquizila um p o u co é o discurso an tifilo só fico de Paulo. M as, p o r que me aborrece o seu discurso antifilosófico e não m e aborrece o estilo antifilosófico d o L ebrun? Por que em alguns casos a antifilosofia m e ap arece com o um ca m in h o e às vezes eu sou m ais reticente? T alvez p o rq u e me sin ta m ais p ró x im o d o Paulo. Talvez para chateá-lo po r isso m esm o. T alvez, ain d a, p o rq u e a retórica antifilosófica (diferente da m inha) do P aulo m e pareça c o n tra d itó ria com o co n teú d o filosófico de seu d iscurso, que eu g o staria de ver m ais su b lin h ad o d o que o cu ltad o pelo espí rito de c o n tra d iç ã o o rg an iz ad o . Enfim , isso d em o ra um te m p o p ara se entender: verem os no fu tu ro .
Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên cias e o saber científico. Tal relação pertnanece até hoje? Como ela se dá na atualidade? N unca tive um a fo rm a çã o científica em u m a área específica, a única ciência [ s / í -] que pratiquei foi a poesia. Posso ter sido sensível a um bom positivism o m etodológico q ue ap ren d i na escola e do qual n ão me afasto m u ito . A liás, d epois q ue escrevi o m eu te x to sobre D eleuze e W ittgenstein, o A rley [R. M o ren o ], que é estritam en te vvittgensteiniano, escreveu um longo co m en tá rio em qu e diz: “ V ocê verá que sou um rude positivista” . M ais adiante, diz ainda: “T alvez você seja um rude p ositivista” . T alvez seja dc fato. É m u ito provável que na m in h a im ag in ação , nos m eus escritos, a m inha fo rm ação ap areça im p reg n ad a p o r au to re s co m o G ran g er e o u tro s, m as que jam ais se tra d u z iria num tra b a lh o p ositivo na área de filosofia da ciência. P ara m im , psicanálise é tã o “ ciên c ia” q u a n to literatu ra .
Em seus textos sobre psicologia e psicanálise, você parece adotar, em geral, uma postura de séria desconfiança em relação a toda empreita da que pretenda cientifizar o discurso sobre o ser humano, mostrando que sempre haverá pressupostos filosóficos dogmáticos por trás dela. Qual deve ser o papel da filosofia na reflexão sobre a ciência? Deve ser de d elim itação do objetivável e do determ inável que fu n cio n a, ao m esm o tem po, com o um a delim itação do seu avesso. N ã o necessariam ente na form a dualista e ro m ân tica de V uillem in, pois, pela h istó ria qu e co n tei a resp eito dele, é possível ver co m o a m ais e x tre m a linha d u ra da filosofia an a lítica p o d e ser h o stil a to d a e q u a lq u e r te n tativ a de determ in ação da subjetividade. De alg u m a m an eira diria: “ Só ser dualista em caso e x tre m o ” , q u e r dizer, n ão p a rtir d o p rin cíp io de q ue aqui co m eça o subjetivo e ali te rm in a o o bjetivo, e d esco n fiar, so b re tu d o , de oposições tais co m o in te rio r e ex terio r. N o caso da psicologia, h á um a belíssim a frase que é ex trem am e n te sin to m ática , de um epistem ólogo e psicólogo francês cu jo nom e n ão m e lem bro no m o m e n to , que diz de m an eira lapid ar: “ O p ro b lem a da psicologia é que, q u an d o com eça a ser científica, perde a certeza de co n tin u ar psicologia; e q u an d o com eça a ser psicologia, tem certeza de n ão ser m ais ciên cia” , o u seja, o que se g an h a
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em cientificidade, perde-se em psicologia. W ittgenstein disse que, no lim ite, um a disciplina co m o a psicologia é conceitu alm en te im pensável. A ssim , a idéia de um a “ psicologia literária” me parece um a idéia sim pática: n ão é ciência, m as através dela se com preendem figuras do esp írito ou da vida m ental.
Com relação à economia, você tem aquele trabalho interessante junto com o Mark Julian Cass sobre a retórica, publicado no livro A retó rica na econom ia. N o lançamento do livro na F olha de S. Paulo, você desta cou que o ponto de vista do Pérsio Arida está ancorado em Gilles-Gaston Granger, diferentemente daquele de [Donaldj McCloskey, que está an corado em Richard Rorty. N o d eb ate da Polha, o Pérsio c o n firm o u ser leitor do p rim eiro livro de G ran g er, La métodologie économique. Ele insiste na d im en são retó ric a da eco n o m ia sem id entificar explicação econôm ica com n arrativ a. Já o .VlcCloskey tem a p ersp ecti va do anything goes, ou seja, um a perspectiva p arecid a com a de P ro tág o ras. O que m e pareceu interessante na p o sição do Pérsio A rida é que ele se situa n u m a espécie de p o n to in term ed iário . N aq u e la ocasião , co n v e rsan d o com o Ju lian C ass a resp ei to disso, falei: “ É com o se a epistem ologia cam inh asse entre C arib d es e C ila ” , pois, p o r o u tro lado (co n tra o “ vale tu d o " ), há tam b ém um a d efinição m u ito estreita da ciência que é, no fu n d o , a d efinição an a lítica , crítica de P o p p er, que tem um a c o n cepção estritam en te aristo télica da explicação científica: a d ed u ç ão de fatos a tr a vés de princípios, de leis gerais. N o caso de P opp er — ou de gente m ais linha d u ra do que ele — , p o r exem plo, você tem definições tais d a ciência que são m u ito d u ras e m uito rigorosas, que têm a d esvantagem de ex clu ir, p ara fo ra d o c a m p o cien tífico, n o v en ta p o r cento d a q u ilo que se entende p o r ciência. C o n fo rm e sua esco lha epistem ológica, pedaços da m atem ática vão em b o ra , to d a s as ciências h u m a nas “ d a n ç a m ” ^. E n tã o n ão m e parece razoável ter um a d eterm in a çã o p u ram e n te lógica d o que é ciência. S obra p o uco, q u er dizer, é um m au alfaiate aquele que faz um a ro u p a que veste só o b raço d o sujeito. N o caso de M cC loskey, anything goes, n ão há n en h u m a diferença en tre um ro m ance e um tra ta d o de eco n o m ia. A liás, lem bro-m e disso em um a discussão do G ia n n o tti com o [Z eljko] L oparic. O G ia n n o tti dizia: “ V ocê d á um a d efinição tã o larga d o que é ciên cia” — no tem p o em que L oparic tra b a lh a v a com inteligência artificial — “ que As ligações perigosas d o L a d o s p assam a ter um c a rá te r de um a te o ria cien tífic a” . M as a definição de G ian n o tti, com estritas co ndições lógicas e onto ló g icas, é tã o estrita que boa p a rte da ciência vai p ara a C u cu ia. E n tão te n h o a im pressão de que, co m o a do G ranger, a posição de Pérsio é a p o sição de um Tércio ou Tertium. G ran g er é bem p o u co d o g m ático , a o b ra dele é de ep istem o lo g ia c o m p a ra d a , q u e r dizer, há diversos m odelos de ab ra n g ên cias d iferentes. Além do que, G ran g er in tro d u z , na sua p ró p ria co m p reen são d o q u e é ciência, a idéia de estilo qu e rem ete, de algum a m a n eira, a um a d im ensão m ais retó ric a do q u e lógica da ciência. T enho um projeto junto com o Ariey |R . M oreno] de escrever um tex to sobre a epistem ologia d o G ran g er. Ele, p en san d o na d im en são p rag m ática da sua teo ria d a ciência, e eu p en san d o na estilística.
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De qualquer jeito, o Granger não tem um modelito prévio da ciência que ele fica aplicando... M esm o p o rq u e ele tem um m od elo p arecid o com o co m te a n o an tig o . U m a espécie de continuum que tem , em um ex tre m o , a m a tem ática, e, n o o u tro ex tre m o , a h is tó ria — e stru tu ra p u ra e aco n tecim en to p u ro . Em seu m odelo, as diferentes ciências se o rg an iz am de m a n eira a co m b in a r de fo rm as diferen tes o d o m ín io d o e s tru tu ra l, o d o m ín io d o ac o n te cim en to e o d o m ín io do in d iv íd u o . A ta l p o n to qu e tam b ém p a ra ele ser<ão p o ro so s os lim ites en tre a n a rra tiv a h istó rica de in ten ção científicoexplicativa e a n a rra tiv a ro m an esca. M as, segu ram en te, n ão h á ap ro x im a ç ã o en tre ec o n o m ia e ro m an ce, são níveis diferentes. N ã o se o p õ e b ru talm en te o científico ao n ão-científico, m as se estabelece um a tá b u a de g ra d a ç ã o de cientificidade cres cente e decrescente, co n tín u a.
Bento, queria que você falasse um pouco sobre o livro de Alan Sokal e de Jean Bricmont, já que eles criticam duramente tanto Deleuze quan to Bergson. Isso aí é bobagem . C om o eu já disse: Sokal e Bricm ont têm um a epistem ologia redneck e um a o n to lo g ia country. A liás, ao 1er o livro deles n o ta-se q u e eles têm a seguinte estratégia: “ V am os d isc u tir aí alguns equ ív o co s, m as não v am o s v o lta r ao d eb ate d o positivism o, que é um a coisa m u ito e s p in h o sa ” . Fazem isso, p o rq u e d iscu tir o C írcu lo de V iena seria c h e g ar às d ificu ld ad es d as teses d o o b jetiv ism o de senso co m u m ou do g rosseiro cientificism o que eles p artilh am . O Luiz H en riq u e tem um a bela im agem por m eio da qual descreve o ca ráte r p ro g ram ático d a filosofia neopositivista. Ele diz, m ais ou m e n o s'^ : “ Era u m a filosofia qu e se resu m iu a p ro b lem as: a unificação da ciência, a ax io m atiza çã o , à form alização , tu d o rem etid o a en u n ciad o s atôm ico -p ro to co lares etc. M as, com o n um filme dos irm ãos M a rx , to d o s eles en tram cheios de bagagem nu m vagão de trem e so b ram d u a s m alas p ara fo ra. Eles saem , pegam essas duas m alas e te n tam recolocá-las, m as nu n ca conseguem co lo car d en tro d o vagão. N u m tal m o m e n to , acham que é preciso d em o lir o v a g ã o ” [risos]. O que aconteceu com o p ro jeto positivista é e x a ta m en te isso, ou seja, n ão co u b e n ad a. O u seja, ex a tam en te p o rq u e havia pensad o res rigoro so s que, ju stam en te p o r esse rig o r, levando às últim as conseq ü ên cias os seus raciocín io s, eram o b rig ad o s a refo rm u lar indefin id am en te o p ro jeto inicial, ro m p e n d o fin alm en te co m os d o g m as originais. O caso de Bergson (tam bém in c rim in ad o pela d u p la caip ira), p o r ex em p lo , é de um a insensatez to ta l. Ele quis c o n tra p o r, quis d e m o n stra r, m o stra r o erro , n ão da teoria científica de E instein, m as d a in te rp re ta ç ã o filosófica que E instein deu às noções de espaço e tem p o . Bergson quis d e m o n stra r isso tecn icam en te, n^o sugerir atrav és de m e táfo ras, e, finalm ente, ch egou à co n clu são de qu e m a lo g rara, de tal m an eira que p ro ib iu a reed ição de seu livro. E n tão ele n ão era um e n g a n a d o r, pelo co n trá rio . M e rleau -P o n ty , sobre isso, dizia o seguinte: “ Bergson n ã o estava e r r a do, se tecn icam en te ele n ão estava ce rto , co n c eitu alm en te ele estava c e rto ” . U m a coisa é a teoria física einsteiniana, o u tra coisa é a in terp retação filosófica que Einstein lhe dá. E ele era m u ito m ais sofisticado d o que S okal e B ricm o n t, qu e são , sim p les m ente, realistas ingênuos. O E instein tem aq u ela belíssim a frase: “ O in c o m p reen sível é que o m u n d o seja co m p reen sív el” . C o m o é qu e os n ossos m o d elo s teó rico s
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(livrem ente co n stru íd o s, sem q u a lq u e r referência ao m u n d o d ad o ) ac ab a m b a te n d o com a e s tru tu ra da realidade? Isso é m u ito m isterio so . M a s é tam b ém um tip o de p ro p o siçã o , p ara Sokal e B ricm ont, a b so lu ta m e n te sem sentido. A ciência p ro g re d iu m u ito com o uso de m e táfo ras e co m a tran sp o siçã o de m odelos, com ou sem d efo rm ação . É certo que L acan a b u sa, de m o d o b arro co , de m etáfo ras de utilidade d uvidosa, m as não posso criticá-lo ig n o ran d o o eventual c o n te ú d o da sua teo ria. E n treta n to , os dois au to re s confessam que n ã o en ten d em n ad a desse co n teú d o . Q ue estão critican d o ? E stão fazen d o análise estilística? Eles dizem: “ N ã o q uerem os av a n ç a r n en h u m a tese de filosofia, m as os filósofos fazem m au uso d as m e tá fo ra s” . E fazem m esm o. A liás, eu dizia qu e p o d eria d a r exem plos m u ito m elhores d o que eles e n c o n tra ra m com a aju d a de trin ta e cinco assistentes — trin ta e cinco d edos-duros! O p io r é o seguinte: isso é apen as briga in stitu cio n al de po d er. A luta mortal pelo prestígio. O Sokal deve estar b rig an d o c o n tra os Culture studies (não p ara g a n h a r m ais d in h eiro , pois os físicos são im batíveis nessa m atéria): é o negócio d o capital sim bólico e do prestígio na media, qu e os m a n d arin s m ais fo rte m ente en castelados na In stitu ição n ão desp rezam co m o seria desejável.
Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda de. Como você se posiciona em relação a esse debate? Eu n ã o teria n en h u m a resposta precisa a d a r a essa q u estão .
Então, aproveitando o gancho, qual a diferença entre filosofia e lite ratura? Em algum as circ u n stâ n cia s, em d eb ates com P o rc h at, cheguei ao ex tre m o de dizer que n ã o havia, rig o ro sam e n te, n en h u m a diferença en tre um tra ta d o de m etafísica e um poem a. O b v iam en te essa afirm a çã o é rig o ro sam en te in su sten táv el, pois um p o em a e um tra ta d o de m etafísica h a b ita m registro s m u ito d iferentes. O q u e h á de co m u m a am b o s é que são form as de linguagem , sã o jogos sim bólicos sem d eterm i n ação do o b je to , sem chegar a um a fo rm a de o b jetiv ação e q u e, n o e n ta n to , p erm i tem ilu m in ar a experiência. M as fazem isso de m a n eiras diferentes: u m a o faz pela sua c a p ac id a d e expressiva, a o u tra o faz pela sua cap ac id a d e de an a lisar os lim ites de significação da linguagem . N esse caso é im p o rta n te a m etáfo ra de H eidegger: “ A rte e filosofia co m o d u as m o n ta n h a s se p arad a s pelo m esm o vale, m as essencial m ente diferentes, q u e, de um a ce rta m a n eira, se c o n e c ta m ” . A filosofia e a lite ra tu ra n ão m e aparecem co m o form as incom patíveis qui hurlent de se trouver ensemble. L em brem os o que diz W ittgenstein: “ Q uem quer filosofar, só p ode fazê-lo ã m aneira da p o esia” . C laro que W 'ittgenstein, q u a n d o está d izen d o isso, n ão está c o n fu n d in do a poesia com a filosofia, m as talvez esteja d efin in d o am b as p o r o p o sição ao d is cu rso científico. É difícil chegar a um a teo ria positiv a dos d iferen tes reg istro s, m as h á te n tativ as in teressantes. U m filósofo an a lítico , p a rtic u la rm e n te in teressan te, é o N e lso n G o o d m a n , q u e, m a n te n d o da m a n e ira m ais e strita a su a o b ed iên c ia ao m o d elo c a rn a p ia n o da filosofia, chega a resu ltad o s — n ã o sei se ele co n c o rd aria co m isso — m u ito p ró x im o s aos da filosofia crítica de K ant. O s seus ú ltim o s te x to s são to d o s co n sag rad o s à linguagem artístic a, a linguagens n ão -v e rb a is, à p in tu
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ra, à m úsica etc. N a verdade, m antendo-se analítico, ele chega a um a espécie de teoria da idéia de co rreç ão , um a idéia m ais geral do q ue a idéia de verdade. A o lad o d a idéia de verdade, digam os, de p ro jeção de p ro p o siçõ es de estad o s de coisa, ele fala de correctness, idéia que, ao m esm o te m p o , sub su m e e u ltra p assa a idéia de tm th. C o m o se a idéia de co rreç ão englobasse a idéia de verd ad e, um a idéia n ão veritativa da c o rreç ão , ou seja, um uso de sím bolos não -v erb ais qu e co rresp o n d e ria m ais ou m enos a um a teoria da im aginação tran sc en d e n ta l, sem n en h u m co n teú d o p sico ló gico. U m a espécie de Crítica da faculdade de julgar in teiram en te d espsicologizada.
Como diz Lebrtin, “uma imaginação sem imagens”... U m a im aginação sem im agens. Sem im agens no sentido de n ão ser representacional. R ecen tem en te eu estive em um a m esa re d o n d a no Rio de Ja n e iro , co m o Je an F rançois N o rd m a n n , e te rm in am o s nessa q u estão . R ealm en te m u ito p o u co resu l ta d o se o b té m , a n ã o ser o negativo. É m u ito m ais fácil dizer qu e a filosofia e a li te ra tu ra n ão coincidem e, m u ito m ais difícil, é, sem p erig o , a p o n ta r p o sitiv am en te p ara um a sim ilaridade. É bem v erdade ta m b ém qu e seria preciso p en sar h isto ric a m ente essa relação, p o rq u e n ã o é possível p en sar em ab so lu to na o p o sição en tre literatu ra e filosofia. Essa relação é um a no século X V II eu ro p e u , é o u tra no século V! antes de C risto e é o u tra , seg u ram en te, no século X X . E n tã o é m elh o r p en sar em um a h istó ria dos lim ites m óveis en tre lite ra tu ra e filosofia. Basta im ag in ar a u to res co m o K ierk eg aard em que a ficção e a n a rra tiv a são u m a peça essencial da sua c o n stru ç ã o nocio n al. O S artre tem aquele belíssim o en saio , O que é literatu ra?, e, no en tan to , q u an d o define o que é a poesia, em princípio fenom enologicam ente — o d eterm in a d o e o invariável de um a essência d a poesia — , ele descreve a poesia m o d e rn a dizendo que o que vale p ara a poesia m o d e rn a , n ão vale p a ra a poesia clássica, n ã o vale p ara a ep o p éia, n ão vale p ara a Divina comédia. E n tã o é difícil pen sar essas questões de m a n eira ete rn itá ria e essencialista sem um a h istó ria d o s gêneros literários. T em um a boa p iad a d o B enedetto C ro ce qu e, p o r ser hegeliano, era inim igo da n o çã o de gênero literário . C erta vez, alguns jo rn alista s o e n tre v ista vam e fizeram um a p e rg u n ta biográfica: “ E as suas filhas, p o r q ue ain d a são so ltei ra s? ” . Ele respondeu: “ P erché non mi p iasccon o i g en e ri” [risos]. P o rq u e g en ro e gênero é a m esm a p alav ra em italian o . N o m eu te x to so b re o R o u sseau , tam b ém p ro c u ro m o stra r co m o a sua teo ria d o rom an ce é, p o r assim dizer, h istó rico -cu ltu ral, em que a idéia de gêneros literário s fixos é b o m b a rd e a d a d iretam en te.
É hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garantia do Direi to e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como você vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que pare cem desfrutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias? S eguram ente tem , m as acrescen taria o seguinte: fala-se, ta m b ém , de um a espécie de esg o tam en to da política. O [José Luís] Fiori fala de u m a espécie de v ingança do
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ca p ita l fin an ceiro so b re a política, inv erten d o a situ aç ão d o século XVII. H á um es g o ta m e n to da p o lítica, um a restriç ão duríssim a d a esfera de aç ão possível d o s p ró p rio s sujeitos p o lítico s, d o s g o v ern o s n a c io n a is, d as classes sociais. T e n h o a im p ressão , e há m u ito te m p o a trá s dizia — n ão sei se isso é m u ita n o v id ad e — , que a única In tern ac io n a l que co n h eço é a d o C ap ital (ou a da polícia, qu e é a m esm a coisa). O in tern acio n alism o d o C apital é cada vez m ais evidente. M as n ão sei se isso esgota a esfera d o p o lítico , p o rq u e você po d e p en sar n u m a sobrevivência tó p ica da neg ativ id ad e n ão n ecessariam ente a rtic u la d a univ ersalm en te. H á esferas de resis tência local co m o , p o r exem p lo , o g ru p o A T T A C , a rtic u la d o p o r aquele d ire to r do Le Monde Diplomatique. P enso ta m b ém n as O N G s, com to d a s as lim itações que têm . Sem dúvida, isso n ão pode ser pensado em term o s de política to ta l, g lobal, m as pode ser pensado em conexões locais. É necessário p en sar a política com o resistência.
Como você caracterizaria a sua relação com a religião e a fé? Fui fo rm a d o em um a atm o sfera cató lica e g u a rd o um a sen sib ilid ad e p a ra as d ife rentes fo rm as de ex p ressão religiosas. Sou p erfeitam e n te ag n ó stico . M as interessame m uito a fenom enologia da experiência religiosa. Basta pensar nu m a figura com o W ittg en stein , que g u a rd a o uso da linguagem da m ística, m esm o o u so d a p alav ra “ D e u s” , sen d o que o co n ceito de D eus, co m o classicam ente d efin id o , está c o m p le ta m en te au sen te de seu pensam en to .
Como você se situa em relação aos problemas de uma “mudança de paradigma” da filosofia, de uma filosofia “pós-metafísica” calcada na linguagem? Parece-m e que essa é um a das v ertentes e n ão , n ecessariam en te, a única v erten te da filosofia c o n te m p o râ n e a . C o n c o rd o , nesse sentid o , com o d ia g n ó stic o de C lau d e Im bert, que tem aquele livro Phénoménologies et langues formulaires. O d iag n ó s tico que ela faz da filosofia c o n te m p o râ n e a é, m ais ou m enos, o seguinte: as suas d u a s prin cip ais tendências sã o um resu ltad o de um a espécie de d esartic u laç ão da u n idade da Crítica da razão pura. A u nidade asseg u rad a pela Crítica da razão pura, ou seja, a u nidade co m o in te g raçã o en tre a “ A nalítica tra n sc e n d e n ta l” e a “ E stéti ca tra n s c e n d e n ta l” seria im possível na a u ro ra d o século X X , em q u e a filosofia to rn o u -se ou p u ra an a lítica, isto é, análise lógica da linguagem , ou p u ra estética, isto é, fenom enologia. M as o fato é que a filosofia d a linguagem te rm in a p o r tr o p eç ar em p ro b le m a s fen o m en o ló g ico s e a fen o m en o lo g ia te rm in a p o r e n fre n ta r d ificuldades sem ânticas. E n tã o , te n h o a im pressão de que d efin ir o fu tu ro da filo sofia co m o a su b stitu iç ão d as ilusões da m etafísica pela sim ples análise d a lin g u a gem parece ser um a m an eira insuficiente de defin ir esse cen ário . Você escreveu um artigo sobre Richard Rorty. Gostaria de te provocar usando uma citação desse autor: “Para a tradição antifilosófica do pensamento contemporâneo francês e alemão que tem seu ponto de partida na crítica de Nietzsche de ambas as correntes filosóficas do século XDC, tanto positivista quanto transcendental, os pragmatistas americanos são pensadores que nunca romperam realmente com o posi
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tivismo, portanto, nunca romperam realmente com a filosofia. Não penso que nenhuma dessas atitudes de rejeição sejam justificáveis. Na descrição da filosofia analítica recente que fiz em Filosofia c o espelho d a n atu reza, a história desse movimento foi marcada por uma gradual pragmatização dos princípios originais do positivismo lógico. Na des crição da filosofia continental recente que espero fazer num livro so bre Heidegger que estou a escrever, James e Nietzsche fazem críticas paralelas ao pensamento do século XIX. M ais ainda, a versão de James é preferível porque evita os elementos metafísicos de Nietzsche que Hei degger critica, e, ao que a ele diz respeito, os elementos metafísicos de Heidegger que Derrida critica. Na minha maneira de ver, James e Dewey não só estavam à espera no fim da estrada que a filosofia percorria, mas estão à espera no fim da estrada que, por exemplo. Foucault e Deleuze estão atualmente a percorrer”. A cho m u ito sim pática a em presa de R orty na m ed id a em que faz trem er um p o u q u i n h o as q u a re n te n a s e faz v aria r um p o u c o o cân o n e. .Mas te n h o a im p ressão q u e, a d espeito desse esforço de co m p reen são , de pen sar co m o o o u tro , ele acab a p o r assi m ilar m u ito ra p id a m e n te to d a s as diferentes fo rm as de p en sam e n to n ão -m etafísico n o m odelo de p rag m a tism o am erican o . N ã o que eu seja inim igo do p rag m a tism o , m as ten h o a im pressão que é possível reco lh er to d o s os efeitos positivos, o u críticos, d o prag m atism o sem chegar a um a teoria p rag m a tista. L em bro-m e de W ittg en stein , que em ce rto m o m e n to diz: “ M as seria eu p rag m a tista? N ã o , p o rq u e n ã o d igo que algo é verdadeiro p o rq u e é útil. D igo que ele é útil p o rq u e é v e rd a d e iro ” . C o n sid ero com m u ita sim p atia a o b ra de R o rty , m as te n h o a im p ressão qu e ele é p o u co p re o cu p a d o com as diferenças, q uer dizer, n o fundo se ap ro x im a dem ais de um tip o de m onism o. R orty diz: “ C o n co rd o em noventa e nove p o r cento com H a b e rm a s” . De fato h á dois prag m atism o s, um p rag m atism o de estilo tran scen d en tal e u m p rag m atism o de estilo n atu ra lístico . F ele diz: “ N ã o estam o s de ac o rd o ap en as em um p o r cen to , m as isso n ão é im p o rta n te p o rq u e é filo so fia” . M as é um su jeito m u ito sim p ático ...
Em 1994, você esteve com Rorty num evento em que apresentou um texto em que, num certo sentido, você dissolveu o conceito de relativismo. Houve algum debate? N ã o , conversei com R orty an tes d a co n ferên cia, m as n ão conversei depois. Eu o reen co n trei, p o ste rio rm en te , em M in a s G erais e, ap ó s a co n ferên cia, nós co n v e rsa m os longam ente. Sendo que é curioso: R o rty é m u ito d iferente n a situ aç ão pública e na situ ação face a face. N a conversa em situ aç ão p ú b lica leva o seu p rag m a tism o a um tal extrem o que se to rn a m uito difícil (quase impossível) discutir com ele. Fazem um a objeção e ele assim ila, dizendo: “T u d o bem , p o d em o s red efin ir a ssim ” . C om ele, há sem pre a p ossibilidade de se redefinir, de se redescrever. Já n u m a conversa p a rtic u la r ele é m ais “ pescoço d u r o ” , n ão é tã o p rag m á tic o assim .
No texto “Erro, ilusão e loucura”, você faz críticas à interpretação de Giannotti sobre Wittgenstein. Q ual é, ao seu ver, o erro básico da in terpretação do Giannotti?
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“ E rro ” talvez não seja a m elhor expressão. M as, grosso modo, pode-se dizer o seguin te: G ian n o tti parece n ão distin g u ir, jam ais, as idéias de necessidade e de u n iv e rsa lidade. X o caso de W ittgenstein, te n h o a im pressão q ue é preciso reco n h ecer algo co m o um a necessidade que n ã o coincide sem pre com a u n iv ersalid ad e. É um a idéia co m p lic ad a , p o rq u e te n h o de co m b a te r o universalism o de G ian n o tti sem ad e rir ao relativism o de R orty. T en h o a im pressão que é fácil criticar o universalism o e é fácil critic a r o relativism o, co m o faço, p o rq u e en c o n tram -se em W ittg en stein elem entos para se fazer essas duas operações. A gora, um a o u tra conversa é p o d er m o stra r com o esses dois com bates se articulam . G osto m uito de um a célebre frase de Luiz H enrique: “ Perspectivism o sem relativ ism o ” . O perspectivism o se o p õ e, de algum a m an eira, ao universalism o, e, de fato, já no Tractatus, nos te x to s relativos à m ecânica new ton iana: ela é um sistem a figurativo, in d e term in a d o , qu e p o d eria ser su b stitu íd o p o r o u tro s sistem as, o u tra s fo rm as de p rojeção. De um a certa m a n eira, ao b o m estilo d o convencionalism o da física da época, que insiste na d im en são “ m o d e la r” da te o ria. W 'ittgenstein ain d a acrescenta: “ M as o fato é qu e esse m o d elo descreve o m u n do, diz algum a coisa a respeito d o m u n d o ” . P o rtan to , se m e parecem óbvias as razões de m e afa sta r de G ia n n o tti, de um lad o , e de R o rty , de o u tro , se alg u m as in d ica ções de Luiz H en riq u e parecem c a m in h a r nessa m esm a d ireção , isso n ã o q u er d i zer que a coisa está resolvida, m esm o p o rq u e , p ara W ittg en stein , n ad a jam ais está resolvido. As características dos te x to s de W ittgenstein são as seguintes: trata-se de um d iálo g o p erm a n en te e sem pre ap o ré tico . Ja m ais a d ialética se esg o ta em um resu ltad o p ositivo, em um rep o u so , em um a posse positiva da v erd ad e, n a calm a co n tem p laç ão de um a essência. A filosofia, te n h o a im p ressão , sem pre renasce, é um a doença incurável, e o m ais interessan te é que o rem éd io é da m esm a n atu re za da doença**. Isto segu ram en te n ão é um a filosofia d o senso co m u m .
Nesse mesmo texto, “Erro, ilusão, loucura”, também parece que você diverge de G iannotti quanto à novidade, à originalidade de W ittgen stein, ou seja, quanto à magnitude da ruptura de Wittgenstein, que ele estaria mais próxim o da tradição filosófica do que dá a impressão. E correta essa impressão? C reio que não. P rovavelm ente a p ro x im o W ittgenstein de um a o u tra tra d iç ã o de fi losofia, diferente da reivindicada pelo G ian n o tti. O b v iam en te W ittgenstein é herdei ro de Frege, de Russell e, no lim ite, de L eibniz e de A ristóteles. M as é h erd e iro de o u tra s tradições: de S ch o p en h au er, de N ietzsche, de K ierk eg aard . N ã o se tra ta de m inim izar o u m a x im izar o c o rte em relação à tra d iç ã o , m as de pensar essa tr a d i ção. Às vezes brinco, p erg u n ta n d o : será que o verd ad eiro Frege de W ittgenstein não seria K ierkegaard? M as isso, evidentem ente, n ão passa de p ia d a e de p ro v o ca ção ...
Você utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do fu turo da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia? N ã o m u ito d iferen te d o ideal u tó p ic o d o socialism o científico |risosJ. T e n h o a im p ressão de que não se tra ta ta n to de descrever a bo a so cied ad e fu tu ra , m as, antes, de asp ira r a que as co n tra d içõ e s do m u n d o presen te d im in u am .
Bento Prado Jr.
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Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos co mo riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em lar ga escala e alienação cultural em massa. Como você vê tais problemas? N ã o ig n o ro to d a a literatu ra que descreve esse p rocesso, co m o aqueles q ue falam de um a b a rb á rie em ergente. A o m esm o te m p o , sou sensível àq u ilo qu e é p erfeita m ente visível na d eg ra d açã o da q u alid ad e d a vida e d a p ro d u ç ã o cu ltu ral. M as, p o r o u tro lad o , tem o en d o ssar um a perspectiva p u ra m e n te c a ta stro fista. É v erd ad e que a c a m in h a r co m o cam in h a m o s (com o diz o G eorge Soros qu e n ão é inim igo m o rta l d o Ciapital e é insuspeito nesse cap ítu lo ) vam os q u e b ra r a ca ra na p ared e. M as sin to algum a coisa de conservador nesse tipo de discurso, que, aliás, é reiterad o há m uito te m p o (desde o alv o r do ro m an tism o ). O d iscu rso de W ittg en stein , p o r ex em p lo , é desde início ca ta stro fista e, p o r o u tro lad o , exclui to d a e q u a lq u e r p o ssib ilid ad e de a n tec ip aç ão d o fu tu ro . Em algum lu g ar ele diz m ais ou m enos: “ N ó s v isam o s o fu tu ro , m as o ig n o ram o s, pois, à m edida em qu e dele nos ap ro x im a m o s, sua cu rv a se d efo rm a, escapa à nossa a n te c ip a ç ã o ” . C om essa frase ele n ã o deixa de ser bergso n ian o , pois ela im plica um a essencial im previsibilidade d o fu tu ro . O seu d ia g n ó s tico era hiperbolicam ente catastrofista, pois, em certo m om ento, ao falar “ dessa água de lavagem im u n d a que é a cic-ncia e a tecnolo g ia c o n te m p o râ n e a s ” , ele chega a criticar os inim igos d a b o m b a atô m ica. Ele os critica, d izen d o que se a b o m b a a tô mica destruísse a vida sobre a Terra, destruiria tam b ém “essa p o rcaria que é a ciência e a te cn o lo g ia” . É, digam os, um ca ta stro fism o p ara ninguém b o ta r defeito. E n tre ta n to , q u a n to a este a ssu n to , co m o c id a d ã o , só te n h o se n tim e n to s (e c o n tra d itó rio s). N ã o sou ca p az de o rg a n iz a r n en h u m a te o ria , e sei q u e posso p e r feitam ente estar sendo cego p ara ev en tu ais tran sfo rm aç õ es qu e p o d eria m levar na d ireção c o n trá ria à da ca tá stro fe . A qui o n ã o -sa b e r é o único ab rig o d a esp eran ça.
Em entrevista à F olha de S. Paulo, sobre Deleuze, você afirma que esse pensador, valendo-se de idéias de Bergson e de Hume, reabilita de m a neira radical o devir, contra grande parte da tradição filosófica. Nas suas palavras: “O devir, para Deleuze, não é antecipável, domesticável na recognição do conceito, e passa a ser o verdadeiro signo do Ser. Só a idéia de devir pode devolver, com sua rebeldia, ã representação a es pessura do Ser ou do cosmos, sobre fundo de caos”. Como você se po siciona em relação a essa idéia de devir? Essa é um a p ergunta em baraçosíssim a, m as vou te n ta r resp o n d er. R eto m a n d o o que co nversávam os há p o u co , existe um a significação m ínim a d a idéia de devir que n ão se c o m p ro m ete com n en h u m a cosm ologia — pois os tem p o s p ré-so crático s estão m u ito d istan te s e m in h a “c u ltu ra c ie n tífic a ” é bem aq u ilo q ue vocês im ag in am . Pensando ainda no diagnóstico de nossa experiência presente, é necessário reconhecer que nossas antecipações do fu tu ro n ão envolvem , freq ü en tem en te, êxito algum ; pelo co n trá rio , a história de nosso raciocínio político, p o r exem plo, é essencialm ente um a h istó ria de sucessivas decepções. C laro que estou d a n d o um sen tid o p erfeitam en te trivial à idéia de devir, referindo-m e a p e n as à im p rev isib ilid ad e d o ac o n te cim en to , de cuja consciência p odem d eriv a r efeitos te ra p êu tico s. O p ró p rio V uillem in, bem pouco m etafísico e intuicionista, dizia, nesse sentido restrito, ad erir à filosofia bergso-
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n ia n a da H istó ria . O que ele qu eria dizer n ão era, no fu n d o , d iferente da frase de W ittgenstein há p o u co citad a . T alvez o que o corre p ara a d im en são social de nossa e.xistência, o co rra tam b ém em to d o s seus dem ais níveis. Já no caso de D eleuze, essa idéia assum e de im ed iato um a dim en são especu lativ a, m etafísico-cosm ológica. N a últim a versão de m eu ensaio so b re ele, digo: “ .A d espeito de seu c a rá te r tra n sc e n d en tal, a filosofia de D eleuze tem um a dim en são n itid am en te p ré -so c rá tic a ” , pois preten d e alca n ça r o nível da biologia, d a física, um a teoria d a e stru tu ra d o cére b ro , da T erra e do C osm os. O b v iam en te, q u a n to a m im , te n h o de ficar no nível do c o m e n tá rio o b líq u o , se não do m ero devaneio. N o e n ta n to , atrib u ir um sentido positivo ã idéia de devir é, pelo m enos, p e r d er algum as ilusões — p raticam en te é quase n ad a , m as já é alg u m a coisa. Isso é perfeitam ente banal, com o diriam , cada um à sua m an eira, W 'ittgenstein, H eidegger e H usserl; “ .A filosofia é um a ginástica intelectual terrível, que você faz p a ra co n se g uir ver aq u ilo que desde sem pre estava na c a r a ” . O u seja, q u a n to m ais p ró x im o e trivial, m enos visível. H eidegger tem o bom ex em p lo dos óculos: você n ão vê os ó culos p o rq u e vê através deles, você n ão tem consciência d o s conceitos com que pensa p o rq u e pensa através deles. O s óculos, os co n ceito s, a m etafísica, q u a n d o desm an c h ad o s, estão na sua ca ra. E p en sar to d o o esforço da fen o m en o lo g ia p ara m o stra r que a cad eira não é um a im agem m ental!... jrisos].
N o t a s d o e n t r e v is t a d o
’ k fen o m en o lo g ia só co m eço u a c ircu lar livrem ente n o D e p a rta m e n to com a volta de G iann o rti d a F ra n ç a , em 19.SX, q u a n d o r e to rn o u co m H u sserl cm sua bag ag em , M ais!,
- Cf, m eu a rtig o so b re o estilo d a g e ra ç ã o C lim j, " O n o v o estilo de p e n s a m e n to " , c a d e rn o d e S. P aulo. 0 7 /0 3 /1 9 9 9 , p. 1. ’ N a v erd ad e, “ alth u ss e ria n ism o " a n u i t Li lettre (na o casião a in d a n ã o se lia A lthusser), m ais
so fistica d o , m en o s “ e p isre m o ló g ic o ” e m ais " ló g ic o -o n to ló g ic o ” . N o fu n d o , o q u e d e b a tía m o s era a a lte rn a tiv a e n tre a L ógica e a F en o m en o lo g ia c o m o p a ra d ig m a da d ialética da H istó ria . ■*O u , in feliz m e n te, deu c e rto d em a is, c o m o se vê na situ a ç ã o a tu a l d a u n iv ersid ad e b ra sile i ra. É p reciso n o ta r q u e G ia n n o tti, a o fa la r de " p r o je to in te le c tu a l" , está o b v ia m e n te p e n s a n d o em u m p ro je to " p o lític o ” p a ra u m a m o d e rn iz a ç ã o da u n iv e rsid a d e e p a ra o e n sin o e p ro d u ç ã o da F ilosofia. L em b ro -m e c o m o v íam o s co m o lh o s diferen tes, n o fim da d éc a d a de 6 0 , a a p lic a ç ã o d o m o d e lo ,M ec/Usaid na u n iv ersid ad e. Só a idéia de “ c ré d ito s" já m e d a v a a rre p io . ' O m esm o R ico e u r cu ja au sên cia em n o sso d e p a rta m e n to era c o n s id e ra d a e s tra n h a p o r L eb ru n . “II p r o b le m a delhi filo so fia iii B ra sile ”. A u t A u t, rivista d i filo so fia e d i cu ltu ra , n“ 109-
10, 1969, pp. 87-104. F.m to d o caso seria fiel à idéia de 1 lu m e , q u e d efin ia a filosofia c o m o “ o tip o de d isc u rso q u e se m a n té m , n u m sa lã o , com u m a bela m u lh e r” . * .■\liás, é p reciso esclarecer o títu lo d o e n sa io de P au lo .Arantes. T ra ta -se de um tro c a d ilh o , q u e p ro lo n g a o tro c a d ilh o de F o u c a u lt in sc rito n o títu lo d o livro, q u e m istu ra n o sso D e p a rta m e n to d a USP co m um D é p a r te m e n t d 'O u tr e -m e r . La m u s e d u D é p a r te m e n t é o títu lo de um ro m a n ce de Balzac — o q u e rem ete, n o conte.vto lite rá rio a r m a d o pelos tro c a d ilh o s q u e se e n c a ix a m , a alg o co m o “ a in sp iração literária na p ro v ín c ia ” (aliás, o P aulo d esencavou, n ã o sei o n d e, um a revista d o sécu lo X IX , q u e tra z ia o belo títu lo de “ E n saio filosófico p a u lis ta n o ” , q u e acrescen ta um p o u co d e co r local n a b rincadeira...). Está na cara que P au lo jam ais pensou em colar-m e o desm o ralizan te a p o d o d e “ m u sa d o d e p a r ta m e n to ” , v isa n d o a n te s a p rá tic a m eio s o litá ria , na é p o c a , d o estilo
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ensaístico, sem pre d ep en d en te de um a p ro b lem átic a, ra ra ou raia inspiração. Já nas origens d o E nsaio c o m o g ên ero literá rio . B acon caracterizav a essa fo rm a de escrita c o m o “ ap e n a s um a fo rm a de a fin ar o s in s tru m e n to s d a m u s a s ” . C f. o ú ltim o te x to d a s liw e s tig a fô e s filo só fica s de W ittg e n ste in , q u e c o rta p a rte da m a te m ática e to d a a p sico lo g ia. A im p re c isã o da d escriçã o é de m in h a re sp o n sa b ilid a d e . " Foi A n to n ia Soule/. q u e c h a m o u m in h a a te n ç ã o p a ra essa d im e n sã o “ h o m e o p á tic a ” d a te ra p ia w ittg e n ste in ia n a . T a m b é m a q u i sim ilia sim ilib u s cu ra n tu r.
P rincipais publicações: 1981 1982 198.5
A filosofia e a visão comum do mundo (co -au to r) (São P aulo: Brasiliense); Filosofia e comportamento (co -au to r) (São Paulo: Brasiliense); Alguns ensaios: filosofia, literatura e psicanálise (P o rto Alegre: M a x Lim onad);
1989 1991 1994
Presença e campo transcendental: consciência e negatividade na filosofia de Bergson (São P aulo: E dusp); Filosofia da psicanálise (co-autor) (São P aulo: Brasiliense). O relativismo como visão comum do mundo (co -au to r) (São P aulo: F ra n cisco Alves)
B ibliografia de referência da entrevista: B ergson, H . Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, L isboa: Edições 70. D eleuze, G. e G u a tta ri, F. O que é filosofia?. E d ito ra 34. D escartes, R. Meditações, coleção O s P ensadores, A bril C u ltu ra l. F o u cau lt, M . As palavras e as coisas, M a rtin s Fontes. H eidegger, M . Ser e tempo. Vozes. K an t, I. Crítica da razão pura, coleção O s P ensad o res, A bril C u ltu ral. ___________ . Crítica da razão prática, Lisboa: E dições 70. L eb ru n , G. La patiente du concept, Paris: G allim ard . ___________ . O avesso da dialética, Brasiliense. L évi-Strauss, C. Estruturas elementares do parentesco. Vozes. M a rx , K. O capital, coleção O s E co n o m istas, A bril C u ltu ral. .M erleau-Ponty, M . Fenomenologia da percepção, M a rtin s Fontes. P o p p er, K. A lógica da pesquisa científica, Edusp. R o rty , R. A filosofia e o espelho da natureza, R elu m e-D u m ará. R ou sseau , J.-J. Ensaio sobre a origem das línguas. E d ito ra da U nicam p. ___________ . Considerações sobre o governo da Polônia, Brasiliense. ___________ . Do Contrato Social, coleção O s P en sad o res, A bril C u ltu ral. S artre, J.-P . O ser e o nada. Vozes. ___________ . Crítica de la razón dialéctica, B uenos Aires: L o sad a. ___________ . Que é a literatura, A tica. ___________ . C oleção O s P ensadores, A bril C u ltu ral. W ittg en stein , L. Investigações filosóficas, coleção O s P en sad o res, A bril C u ltu ral.
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Conversas com Filósofos Brasileiros
G U ID O A N T O N IO D E A L M E ID A (1930)
G u id o A n tô n io de A lm eida nasceu em 1939, em Belo H o riz o n te (M G ). G ra d u o u -se em Filosofia pela U niversidade Federal de .Vlinas G erais, te n d o o b tid o o g rau de m estre em Filosofia pela F o rd h a m U niversity (EUA) e o títu lo de d o u to r em Filosofia pela U niversidade de F reib u rg (A lem anha). É p ro fesso r titu la r de Fi losofia da U niversidade Federal d o R io de Ja n eiro e ed ito r d a revista Analytica. Esta entrev ista foi realizada em jan eiro de 2 0 0 0 .
Goethe dividiu a vida de seu personagetn W ilhelm M eister em dois romances, O s an o s de a p re n d iz a d o e O s an o s d e p ereg rin ação . No pri meiro, o foco está posto na formação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que o senhor nos falas se de sua formação intelectual? T alvez seja, m as, an tes de m ais n ad a , q u ero o b serv ar o seguinte: a cria çã o de um a id en tid ad e pessoal está, no m eu m o d o de ver, in sep arav elm en te ligada à id e n tid a de coletiva, de tal form a que n ã o vejo um a se p araç ão en tre as d u as coisas. Q u a n to ã m inha fo rm a çã o , o que foi decisivo p ara o m eu am ad u rec im e n to , co m o pessoa ded icad a à cu ltu ra e à filosofia, foi um a to m a d a de consciência p o lí tica que tive nos a n o s 60. C om ecei a m e c o m p re en d e r com o o qu e sou atu alm en te n os últim o s an o s de m eus estu d o s no colégio e no início d a u n iv ersid ad e, o n d e o en g a ja m en to político tin h a um a en o rm e im p o rtâ n c ia . E n tã o a m in h a ida p ara a filosofia, o m ov im en to decisivo p a ra a m inha fo rm a çã o in telectu al, fez-se inicial m ente p o r m eio da política, q u ero dizer, d o interesse pelas qu estõ es políticas. N ã o co n tin u a assim , m as esse foi o passo inicial e isso n ão o co rreu som en te com igo, m as com g ran d e p arte da m in h a geração.
Como o senhor chegou ao curso de filosofia? Cheguei ao curso de filosofia p o r d uas razões: prim eiro p o rq u e tive a so rte de ter dois a n o s de filosofia no C olégio E stadual de M in as G erais, em Belo H o riz o n te , o n d e estudei. Segundo, p o rq u e me liguei aí à Ju v e n tu d e E stu d an til C ató lica (e, d epois, já na U niversidade, à Juventude U niversitária C atólica, em b o ra p o r p o uco tem po), o nde tin h a m uita im p o rtâ n cia a p reo c u p açã o com a política e a filosofia (n o tad a m en te o “ p erso n a lism o ” do filósofo francês E. M o u n ie r, qu e inspirava n a F ran ça e en tre nós um pensam ento católico de esquerda, que se exprim ia na revista Esprit). Assim , m inha chegada ã filosofia deveu-se a esses fatos contingentes: tive a sorte de en c o n tra r quem m e falasse sobre a filosofia no colégio e ta m b ém tive a sorte de ser d esp ertad o p ara u m a form a de eng ajam en to político e espiritual ligado a u m a reflex ão filosófica.
G uido A ntônio de .\lm eida
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No curso de filosofia quais foram as sua principais influências? Infelizm ente, não foi um bom curso. N a q u e la épo ca, o cu rso de filosofia era m u ito p o u co profissional, os professores eram rec ru ta d o s en tre p ad res e ad v o g ad o s que tinham às vezes apenas um interesse lateral por filosofia. E ntão, não houve um a influên cia decisiva, a não ser a de jovens professores que eram quase colegas e qu e m e o rien ta ra m nos p rim eiros passos. E ntre eles, cito José H en riq u e S antos, atu alm en te p ro fessor a p o sen ta d o d o D e p a rta m e n to de Filosofia d a U niversidade Federal de .Minas G erais, uns três anos m ais velho d o que eu, que foi m u ito im p o rta n te p ara os m eus estudos. Foi atrav és dele que vim a conhecer algum a coisa so b re a fenom enologia de H usserl e sobre a filosofia existencial de H eidegger, e isso foi d eterm in a n te, p o rq u e m e levou a fazer um d o u to ra d o sobre a fenom enologia de H u sserl na A lem anha. £ como o senhor avalia a figura de Arthur Versiani Velloso? O p ro fesso r A rth u r V ersiani V elloso foi, an tes de m ais n a d a , um g ran d e an im a d o r. C e rtam e n te n ão foi um g ran d e filósofo, pois, n aq u ele tem p o , o Brasil n ão tin h a condições p ara p ro d u zir pensad o res na área de filosofia. V elloso crio u o D e p a rta m e n to de Filosofia p ara o qual dedicou a sua vida in teira, crio u um a ó tim a b ib lio teca e estim ulou m uitas vocações. Ele teve um papel m uito im p o rtan te nos prim órdios d a filosofia em .Minas G erais, e exerceu um a p osição sem elh an te àq u ela que C ruz C osta exerceu em São P aulo, [Ernani] F iori no R io G ra n d e d o Sul e A lvaro V ieira P into aqui n o IFCS |In stitu to de Filosofia e C iências Sociais d a UFRJ]. Esses nom es tiveram um a im p o rtâ n cia m u ito g ran d e n o Brasil, fo ram eles que im p la n ta ra m os d e p a rta m e n to s de filosofia c que estim u laram as pessoas qu e tin h a m interesse p o r essa área. Por aca.so, Velloso foi tam bém m eu professor no colégio estadual, dc m o d o que tive um ótim o o rie n ta d o r em m eus prim eiro s passos.
Quando se inicia o seu contato com Henrique Cláudio de Lima Vaz? C onheci p a d re V az em 1964, q u a n d o ele volto u p ara .Vlinas Cierais. Se n ão me en g a n o , foi nesse an o que ele ficou p ro ib id o de en sin ar na F acu ld ad e Eclesiástica e m udou-se p ara .Minas G erais, o n d e foi im ed iatam en te c o n tra ta d o co m o professor. Assisti ao s cursos que ele deu, já conhecia alguns escritos dele e, com o se sabe, ele teve en o rm e influência sobre a m inha g eração. É p ara m im até hoje um m odelo e conservo p o r ele a am izade e ad m iraçã o q u e tive desde o início.
Como o senhor avalia hoje a experiência na JEC [Juventude Estudan til Católica], JUC [Juventude Universitária Católica] e na AP [Ação Popular! ? Foi m u ito im p o rtan te, p o rq u e essa experiência fo rm o u to d a u m a geração. Se a gente fosse m edir o sucesso desses m ovim entos pela ex p ectativ a de seus m em b ro s, p o d erse-ia dizer que foi um fracasso, m esm o p o rq u e esse fracasso foi im p o sto pela d ita d u ra . M a s ach o que essa experiência crio u um m o d o de p en sar a política e a c u ltu ra no Brasil m u ito im p o rta n te p a ra essa geração .
Um elemento que chama m uito a atenção na sua biografia é o M a ste r’s degree que o senhor obteve nos Estados Unidos, em Nova York, quan-
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C onversas com Filósofos Brasileiros
G u id o A n tô n io d e A lm eida: “ M u ito e m b o ra a filosofia seja u n iv ersal, ela é o f ru to de um a h istó ria c o n tin g e n te , d o tr a b a lh o de in d iv íd u o s de u m a m esm a g e ra ç ã o , o u de g era ç õ e s p ró x im a s, q u e se co n h e c e m e se c ritic a m m u tu a m e n te . É isso q u e e s p e ro estar o c o rre n d o n o B rasil".
do o mais comum, na época, era ir para a França. Essa decisão de ir para os Estados Unidos veio como? Quais foram os efeitos? Foi m ais ou m enos p o r acaso. Q u eria co nhecer os F.stados U n id o s, e co m o n aq u ela ép o c a o C o n s u la d o A m erican o em Belo H o riz o n te oferecia b o lsas da C o m issão Fulhright, resolvi me ca n d id a tar. O btive um a bolsa e escolhi um a universidade c a tó lica, a F o rd h a m U niversity, pois lá lecionava um especialista co n h ecid o p o r e stu d a r H usserl, Q u en tin L auer, um am erican o que p u b licara n a F ran ça, na coleção Épiméthée, um livro ch a m a d o La Phénoménologie de Husserl, e que fez m u ito su cesso na época. Acabei n ão estudando com L auer p o rq u e seus cursos eram destinados ao d o u to ra d o . D isseram -m e: “ V ocê faz o d o u to ra d o aq u i e faz os c u rso s” . M as eu n ã o q u eria fazer o d o u to ra d o nos E stad o s U nidos e fiquei a p e n as um a n o lá. E na volta ao Brasil, a militância política continuava? Q u a n d o voltei, em 1 962, n ã o h o uve m u ita m ilitân cia. Eu e ra m ais um sim p atizan te, nu n ca fui um a liderança e n u n ca tive um papel im p o rta n te , de d estaq u e . P a rti cipava desses m o v im en to s m ais p o r o b rig aç ão m o ral, pois n u n ca tive o p raz er de fazer política. Em 1964, eu era p ro fesso r d o C olégio de A plicação e cheguei ta m b ém a d a r cu rso s co m o professor assistente. A AP estava d esartic u lad a em Belo H o riz o n te e um am igo m eu, A lexandre Bogliolo — que m o rre u p o u co s a n o s d epois — , deu os p rim eiro s passos p ara a rea rticu la çã o da AP. P articip ei d as prim eiras reuniões e, e n tã o , fui p reso ju n to com o u tro s e suspenso da U niversidade. Isso foi já em fins de 1964, com eço de 1965, e eu estava p re p a ra n d o a m in h a ida p a ra a A lem an h a. Em d ezem b ro de 1965, casei-m e e m e m udei p a ra lá, p a ra F reib u rg , o n d e fui fazer o m eu d o u to ra d o em filosofia.
Data já dessa época a sua amizade com Raul Landim? N o s conhecem os nessa época. Em 1964, R aul L andim tin h a se tran sferid o p ara Belo H o riz o n te , re c o m en d a d o p o r p a d re V az. T ivem os alg u m c o n ta to , m as n ã o havia a in d a um a ainizade. Essa am izad e surgiu q u a n d o term in ei o m eu d o u to ra d o em F reiburg e fui tra b a lh a r em L ouvain. O senhor poderia falar um pouco a respeito de seu doutorado sobre
Husserl, defendido em 1970 e publicado em alemão em 1972? A m in h a tese foi p u b licad a p o r um a ed ito ra h o la n d esa , na co leção P h aen o m en o lo gica. Inicialm ente trab a lh ei o rie n ta d o p o r Eugen F ink, m as, de fato , ele m e o rie n to u m u ito p o uco. Fui b uscar, e n tã o , um a o rien taçã o m ais eficaz com o pro fesso r W ern er .M arx, o sucessor da cadeira de H eidegger em F reiburg. M a rx n ão era tã o b om co n h eced o r de H usserl q u a n to F ink, interessava-se m u ito m ais p o r H eidegger, H egel e .Aristóteles, m as, pelo m enos, era a b e rto à d iscussão. D e q u a lq u e r m an ei ra , os dois foram os relato res d o m eu d o u to ra d o . N aq u e la ép o ca, a fenom enologia sofria o seu declínio n a A lem an h a, em b o ra a in d a fosse m u ito influ en te em F reiburg. A estrela filosófica qu e su rg ia n aq u ele m o m e n to era a filosofia an a lítica , que com eçava a am p lia r o seu h o rizo n te na .Ale m a n h a, p rin cip alm e n te em H eid elb erg — que se tra n sfo rm a v a no g ra n d e ce n tro
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filosófico daq u ele país. R etro sp ectiv am en te, lam en to n ão ter ido p a ra H eidelberg, m as eu tin h a um p ro je to d e n tro da fenom enolog ia q u e era preciso levar a ca b o , e o m elhor lugar p ara isso era, sem d ú v id a, F reiburg.
Porque o senbornunca traduziu total ou parcialmente o doutoramento para a publicação no Brasil? N ã o há n en h u m a raz ão específica p ara isso. Q u a n d o voltei p ara o Brasil, em 1972, era m u ito difícil p u b lic ar livros. A tu alm en te, há v árias e d ito ras que se dedicam à filosofia, tem os a coleção de livros de tra b a lh o s de p esq u isa, de d o u to ra d o , a co le çã o de p ad re V az, a coleção P hilo so p h ia ligada à revista Analytica etc. Além disso, as boas ed ito ras têm sem pre a sua estan te filosófica. M as, em 1972, isso n ão era assim , era difícil p u b lic a r e, so b re tu d o , o público era m u ito p eq u en o . A liás, a g ra n de n ovidade da filosofia brasileira foi a fo rm a çã o de um pú b lico filosófico no Bra sil, o início de um a discussão filosófica en tre os brasileiros.
É possível datar isso? Sim. O ac o n te cim en to decisivo p a ra isso se deu em C a m p in a s, em 1 978, q u a n d o o p ro fesso r [O sw aldo] P o rc h at com eçou a o rg a n iz a r co ló q u io s e co n g resso s, s o b re tu d o co ló q u io s, com pesqu isad o res de vários lugares do Brasil que vinham a p re se n tar seus te x to s p ara discussão. A p a rtir dessa ép o ca co m eçaram a ser fu n d ad a s revistas, a Manuscrito e ta n ta s o u tra s, que fo rm aram um a espécie de d esag u a d o u ro p ara a p ro d u çã o . E esses colóquios passaram a ser tam b ém um estím ulo p ara a p r o d u çã o de te x to s que circulavam entre nós.
Tentando periodizar a sua produção; a fenomenologia é certamente importante até o início dos anos 1970, momento em que, com a leitura que o senhor fez de Tugendhat, a sua produção tem uma guinada para a filosofia analítica... Sim, essa g u in ad a foi in sp irad a ju stam e n te p o r T u g en d h a t. P or volta de 1966, ele p u blicou um excelente livro so b re o con ceito de v erd ad e em H usserl e H eidegger. Estudei m inuciosam ente esse livro, en q u an to fazia a m inha tese de d o u to ra d o , e fiquei m u ito im p ressio n ad o com o co n h ecim en to que T u g e n d h a t tin h a de H usserl. Além d isso, fiquei ex tre m am en te im p ressio n ad o tam b ém com a g u in a d a p a ra a filosofia an alítica que ele realizou. N essa época, li alguns artig o s crítico s à fen o m en o lo g ia, que vieram a ser, p o ste rio rm en te , in teg rad o s ao seu g ran d e livro, as Lições intro dutórias à filosofia analítica da linguagem. Inicialm ente essa leitura m e cau so u um a reação negativa, achei que T u g e n d h a t sim plificava excessivam ente o p en sam en to de H usserl, pois ele conhecia esse a u to r de m an eira m u ito d e ta lh a d a , m u ito p ro d u tiva e, de repente, ac ab o u red u z in d o tu d o isso a um esq u em a em p o b reced o r. R e solvi, e n tã o , escrever um a refu taç ão num longo en saio so b re a fen o m en o lo g ia e a filosofia da linguagem p u b lic ad o num livro que organizei ju n to com R au l L andim , Lógica e filosofia da linguagem (o resu m o desse ensaio saiu n a revista Manuscri to). M as, à m edida que refletia sobre esse c o n fro n to en tre a co n c ep ç ão fen o m e nológica e a co ncepção línguo -an alítica da filosofia, ia m e co n v en cen d o de qu e, no final d as c o n tas, a p osição línguo -an alítica era m ais p ro d u tiv a . M u ito em b o ra c o n
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tinuasse a c h a n d o que a visão a p re sen ta d a po r T u g e n d h a t, nesses escritos críticos, cra realm ente sim p lificad o ra, pois, neles, n ão havia, co m o ele p en sav a, u m a o p o si ção radical en tre a co n cep ção an alítica e a co n cep ção fen om enológica d a filosofia. P or fim , achei que a filosofia tal co m o pen sad a pelos an alítico s cra m ais in teres sante, m ais produtiva e mais livre de am bigüidades. Dei, p o rta n to , razão a T u g en d h at nas suas conclusões, em b o ra n ã o co n co rd asse to ta lm e n te co m suas prem issas.
No início da década de / 980, o senhor começa a exam inar a teoria habennasiana, e, no final da década de 1980, passa a se concentrar mais na filosofia de Kant. O senhor vê isso como uma nova guinada em sua produção? N ã o diria um a g u in a d a, m as um a certa co n tin u id a d e, um a inflexão. A q u ela m in h a desilusão com a fenom enologia com eçou logo dep o is dc eu te r te rm in a d o a m in h a dissertação, coincidindo com a m inha volta ao Brasil em 1972. Q u a n d o voltei, sentime to ta lm e n te deslo cad o , n ão en c o n trav a pessoas interessad as em fen o m en o lo g ia, qu er dizer, acabei e n c o n tra n d o um a m eia dúzia, m as a m aioria dos alu n o s que tive na PUC do R io n ão tin h a n en h u m interesse em fen o m en o lo g ia e nos tem as clássi cos da filosofia. N a q u e la época, a filosofia estava sen d o vista de um ân g u lo ex c lu sivam ente político: as gran d es influências eram o m a rx ism o de m o d o g eral, tr a ta do ta n to d o p o n to de vista alth u sse rian o q u a n to d o p o n to de vista g ram sc ia n o , e F oucault, cuja estrela com eçava a b rilh a r naquele tem p o . T ive e n tã o um ch o q u e m u ito g ran d e , n ã o sabia m ais p ara que servia a filosofia q u e tin h a ap re n d id o a fa zer. Ao m esm o tem p o , com ecei a estu d ar o segundo W ittg en stein , no q u al via ta m bém um a crítica destru tiv a da filosofia, e ain d a flertei, d u ra n te certo te m p o , co m a idéia de u sa r a filosofia, o m é to d o de an álise filosófico, p a ra o estu d o de questões não-filosóficas. C heguei até a escrever um te x to so b re a n o ção de v alo r, um a n o çã o com algum a tin tu ra m a rx ista , te n ta n d o estu d á-la de um p o n to de vista línguoan a lítico . M as isso foi um beco sem saíd a e acabei a b a n d o n a n d o esse tem a. C om ecei, en tão , a d esco b rir um n o v o ca m in h o d e n tro da filosofia an alítica e, ao invés de ver na análise lingüística ap en as um in stru m e n to p ara m o stra r os fal sos p ro b lem as filosóficos, com ecei a desco n fiar q u e ela p o d eria ser um in stru m e n to im p o rta n te p ara u m a recolocação dos p ro b lem as clássicos d a filosofia. Isso c o incidiu com o m eu estu d o sobre H a b e rm a s. Já havia lido Conhecimento e interesse e Técnica e ciência como ideologia e, no e n ta n to , n ã o havia en ten d id o m u ito bem d o que se tratav a, n ã o sabia co m o situar aq u ilo n o ho rizo n te filosófico, m as, a p artir d o m o m e n to em q u e com ecei a c o m p re en d e r m e lh o r o q u e era u m a a b o rd a g em an alítica e lingüística da filosofia, passei a te r um a certa sim p atia pela v irad a lin güística que H a b e rm a s p ro p u g n av a . S em pre li os estu d o s de H ab e rm as, so b retu d o a reflex ão sobre a sua te o ria co nsensual da v erdad e e a teo ria discussional da ética com g ran d e interesse, m as com um a reserva crítica m u ito g ra n d e ta m b ém — e es crevi vários artig o s e x p rim in d o o que me parecia p ro b lem ático . Isso tu d o serviu p ara d esp ertar de novo o m eu interesse pela filosofia de K ant, que sem pre estudei. A liás, o p ró p rio p a d re V az, m u ito in d ire tam e n te , teve um p a pel im p o rta n te nisso, p o rq u e foi através dele que vim a d esco b rir a o b ra de um fi lósofo tom ista. M aréchal. Este escreveu um a grand e o b ra que, dentre vários assuntos,
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tra ta v a da filosofia tran sc en d e n ta l. O estu d o dessa p arte de sua o b ra sobre K an t foi im p o rta n te p ara a m inha fo rm a çã o filosófica co m o estu d a n te no Brasil. Percebi t^ue, em K an t, havia um a co n c ep ç ão co m p leta d o s p ro b lem as d a filosofia q u e é instigante ate hoje. D epois, na A lem an h a, tive a o p o rtu n id a d e tam b ém de seguir um en o rm e cu rso de F ink, d ed icad o ao c o m e n tá rio , linha p o r linha, d a Crítica da razão pura. Q u an d o cheguei à .Alemanha, em 1966, ele estava co m en ta n d o os “ P rin cípios d o e n te n d im e n to ” . Segui até o início da “ D ialética tra n sc e n d e n ta l” e o c u r so ain d a prosseguiu — se n ão m e engano, o curso p ro lo n g o u -se p o r dezessete se m estres e era b astan te p o p u la r. A pesar de ser um estilo de análise de te x to m u ito d iferente do que se faz a tu alm en te , era m u ito estim u lan te. Foi g raças a esse cu rso , e a p a rtir desse reexam e da q u estão da verdade e d a q u estão dos fu n d am e n to s da m oral em H ab e rm as, que voltei a m e in teressar de um a m an eira bem m ais forte p o r K ant. Passei a estu d á-lo sistem aticam en te, te n ta n d o in te rp re tá -lo de um p o n to de vista rig o ro sam en te an a lítico , que no início achav a até qu e p o d eria ser lingüísticoan alítico . Está aí o meu interesse e estou conven cid o de q u e K an t é um p en sad o r a tu a l, m ais atu al d o que m uitos co n tem p o rân e o s.
Seria possível falar de uma ‘filosofia brasileira”? Como o senhor vê as relações entre a filosofia e a cultura brasileira? P odem os falar de um a filosofia b rasileira com o um fato c u ltu ral ex isten te desde a co lô n ia, q u a n d o fo ram im p lan ta d o s os cursos de filosofia nos sem in ário s religio sos. C o n tu d o , a c h o que n ão tem o s ain d a um a filosofia b rasileira no m esm o se n ti d o em q u e se po d e falar da existência de um a “ filosofia fra n c e sa ” , de um a “ filoso fia a le m ã ” . N ã o existe ain d a um a tra d iç ã o — qu e esp ero já estar se co n s titu in d o — de d iscussão in te rn a. C laro q u e a filosofia é universal e falar de u m a filosofia n acional é um a b obagem , pois, da m esm a m aneira qu e n ão existe um a m atem ática alem ã, n ão existe um a filosofia alem ã. N o e n ta n to , pode-se falar de um a filosofia alem ã, francesa, inglesa, no sen tid o de q u e há um espaço in te rn o de discussão do qual a p ro d u ç ã o filosófica se alim en ta. E n tão , m u ito em b o ra a filosofia seja u n i versal, ela é o fru to de um a h istó ria co n tin g en te, d o tra b a lh o de in d iv íd u o s de um a m esm a g era ção , o u de gerações p ró x im a s, que se co n h ecem e se criticam m u tu a m ente. É isso que espero estar o c o rre n d o no Brasil. A p ropósito dessa questão, gostaria de falar um pouco sobre a revista Analytica. Foi feita com o in tu ito de fortalecer um público filosófico no Brasil. É um a revista que, em b o ra p ro m o v a um c o n ta to com o ex terio r, n ão p u b lica artig o s em línguas estrangeiras, pois acham os que devem os tra ta r o acesso à filosofia internacional com o um m ero apêndice. É m uito fácil se ligar ao d eb a te filosófico d o m u n d o de ex p re s são inglesa em curso, que se estende pelo m u n d o in teiro , m as, co m isso, acaba-se p o r d esag u a r em um estu ário que está fora de no ssa cu ltu ra. Sem d ú v id a é im p o r ta n te m a n te r um c o n ta to com esse d eb a te , m as é ig u alm en te im p o rta n te ter um espaço p ara a discussão in tern a. D evem os b u scar esse acesso à filosofia in te rn acio nal a p a rtir de um a id en tid ad e filosófica brasileira e n ão in d iv id u alm en te.
No livro em homenagem aos seus sessenta anos, V erdade, co n h ecim en to e ação , os editores sublinharam, no prefácio, que “mais de uma ge
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ração de professores e pesquisadores em nossa área, inclusive os orga nizadores desta justa homenagem, formou-se num ambiente acadêmi co cuja instauração foi fruto de um lento e laborioso processo, que deve ser conhecido caso se deseje prosseguir nessa direção. Dessa história, Guido Antônio de Almeida e Raul Landim Filho são personagens de cisivos, e sua contribuição merece ser devidamente divtdgada e celebra d a ”. Como o senhor vê o processo de instalação do estudo acadêmico e da pesquisa em filosofia no Brasil? Essa h istó ria com eça an tes da m in h a g eração . T em tam b ém um a d a ta precisa, q ue é o a n o de 1939, q u a n d o são cria d o s os d e p a rta m e n to s de filosofia em to d a s as un iversidades federais (em São P aulo já existiam cu rso s de filosofia d esde 1934 e 1935). Isso foi um ac o n te cim en to im p o rta n te , m as lim ita d o d e n tro d o cen ário n a cional, p o rq u e a filosofia que se im plantou nesses d ep artam en to s ainda era um pouco d ile ta n te, os p rofessores tin h a m u m a fo rm a çã o em g ran d e p a rte a u to d id a ta e eram fo rm a d o s em m eios que n ão cultivavam a filosofia co m o um v alo r em si m esm o — e sto u p en san d o nos sem inários religiosos e nas escolas de d ireito . E n tã o a filosofia u n iversitária oficial era p o uco p rofissional, n ão tin h a rig o r, era m u ito v erb o sa e n ão tin h a um g ra n d e v alor intrínseco — e m b o ra tivesse um v alo r h istó rico . A m inha g era ção era m u ito insatisfeita com isso. P or acaso , e n c o n tro u n ão só um estím ulo, m as ta m b ém um a força ex tern a q ue a fez b u scar u m a fo rm ação filosófica séria fora d o país — a d ita d u ra . Essa g era ção , e n tã o , se engajou p o litica m ente e, de rep en te, n ão tin h a m ais espaço p a ra sobreviver n o Brasil. .Muitas p es soas foram fo rçad as d ireta ou in d ire tam e n te ao exílio. E n tão , de um la d o , havia um a insatisfação m u ito g ran d e com a q u alid ad e d o en sin o filosófico no Brasil e, de o u tro , países co m o a A lem anha e a Bélgica co m eç aram um a p o lítica de b o lsas d es tin a d a s ao país — d a ta dessa época ta m b ém , em 1 9 6 5 , o esfo rço d a CAPES em in cen tiv ar o estu d o da filosofia e d as ciências h u m a n as, em b o ra houvesse p o u co s re cursos. Por isso, m uitos filósofos brasileiros de projeção atu alm en te, com o B althazar [B arbosa Filho] e R aul L andim , foram e stu d a r fo ra, no caso em L ouvain. P o rta n to , tivem os a sorte de e n c o n tra r um estím u lo e x tern o , facilidades fo rn ecid as pelo ex terio r, e, além disso, tivem os a necessidade im p erio sa de asseg u rar um espaço, q u e era m u itas vezes de sobrevivência física. C om tu d o isso, a m in h a g eração teve a chance de ir buscar um a b o a fo rm a çã o filosófica na E u ro p a , o qu e foi decisivo p ara a im p la n ta ç ã o de um a filosofia n ão -d ile ta n te e n ã o -a u to d id a ta em n o sso país.
Como foi a fundação da SFAF (Sociedade de Estudos e Atividades Fi losóficas)? A SEAF teve um a origem bem indep en d en te e era m u ito p o litiza d a. N aq u e la é p o ca, vivíam os em plena d ita d u ra e o espaço p ara a d iscu ssão filosófica era m u ito restrito , havia g ran d es desconfianças e m u ito s filósofos estav am sen d o cassad o s e ap o se n ta d o s — eu m esm o, q u a n d o estava na A lem an h a em 1969, fui a p o se n ta d o à força p o r um decreto basead o no A I-5. A SEAF nasceu co m o in tu ito de a b rir um espaço de discussão p ara a filosofia no Brasil, consciente d as lim itações p o líticas e p en san d o , sem pre, na im p o rtâ n c ia d o papel da filosofia na vida p o lítica do país. A prim eira coisa que a SEAF fez foi o rg a n iz a r conferên cias p ú b licas de filósofos b a
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nidos. C o n v id am o s IJosé A rth u r] G ia n n o tti p ara essas co n ferên cias, co n v id am o s tam b ém D arcy R ibeiro que, em b o ra n ão fosse filósofo, era um nom e im p o rta n te na cu ltu ra brasileira. Hra necessário que a SF.AF tivesse um perfil p o lítico . M as a SEAF a c a b o u d e sa p a re c e n d o d ev id o a um a d iscu ssão in te rn a e n tre aq u eles q ue q u eriam um a filosofia realm ente p o litiza d a, in stru m e n ta liz ad a p ara a aç ão p o líti ca, e aqueles que queriam preservar o espaço p ara um a filosofia politicam ente isenta. C o m o a ala m ais p o litiza d a prevaleceu d e n tro da SEAF, houve um a cisão e a m a io ria das pessoas saiu. Fui um d os últim o s a sair d evido ã m in h a am izad e co m o p ro fessor O lin to P egoraro, que era o fu n d a d o r, m as acabei sa in d o tam b ém .
A fundação da SEAJ-' foi, portanto, radicalmente diferente da funda ção da ANPOF [Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia]? A fundação da A N PO F é um a con.seqüência do fracasso da SEAF em congregar todos os filósofos d o Brasil, n o ta d a m e n te os m ais qualificados. H o u v e, in icialm ente, um a te n tativ a de to m a d a da SEAF p o r pessoas que rep resen tav am um m o d o de p en sar a filosofia m ais d ista n c ia d o da política. Essa te n tativ a fracasso u , a SEAF ac ab o u se politizando cada vez m ais, e as pessoas insatisfeitas com eçaram a p en sar nu m a o u tra form a de o rg an iz aç ão da vida e da política filosófica brasileira. N asceu , e n tã o , a A N PO F, p ensada n ão co m o um a sociedade filosófica co n g reg an d o in divíduos, m as co n g re g an d o instituições (p ro g ram as de pós-g rad u ação ).
Nesses moldes, como o senhor vê a ANPOF hoje? A A N P O F tam bém teve a sua crise. A conteceu co m a A N P O F o inverso d o qu e aconteceu com a SEAF, ou seja, aqueles que tin h a m um a visão p o litizad a, q u ase que p a rtid á ria d e n tro da filosofia, to m a ra m , em certa ép o ca, a A N P O F , o qu e a c a b ou g e ra n d o conflitos. A A ssociação passou a rep rese n tar ap en as um g ru p o de in teresses. M as, com a eleição de José H en riq u e S an to s, houve u m a espécie de co n c i liação in te rn a e esses conflitos foram p e rd e n d o a sua força. A tu alm en te, a A N P O F rep rese n ta de fato, em certo se n tid o , a vida filosófica no Brasil: tu d o o q ue há de bom e tu d o o qu e há de m enos bom na filosofia. Ela é rep rese n tativ a d a filosofia, cu m p re nesse sen tid o um papel im p o rta n te , m as relativ am en te m o d esto . O q u e há de m ais im p o rta n te na vida filosófica d o país n ão passa p o r essas sociedades, está em g ru p o s de p esquisa, nos d e p a rta m e n to s em qu e os profes.sores têm um a certa afin id ad e n ão d o u trin a i no m o d o de en c a ra r a filosofia.
Como o senhor avalia as atividades da Sociedade Kant Brasileira, da qual é fundador e ativo participante? Como o senhor vê hoje os estu dos kantianos no Brasil? N ã o sei se sou um ativ o p articip a n te, p o rq u e a Sociedade n ão e tã o ativa assim jri sos], Foi fu n d ad a há m uitos anos, teve com o prim eiro p residente o |Z e ljk o | L oparic, que organizou o prim eiro congresso internacional. Esse prim eiro congresso teve um a certa rep ercu ssão na época, m as, logo em seguida, a S ociedade K ant e n tro u num estad o de h ib ern ação que d u ro u um a m eia dúzia de anos. Foi rea n im ad a graças aos esforços de V alério R o h d en , que o rg an iz o u um seg u n d o co n g resso , m e n o r, m as m u ito bom ta m b ém . S o b retu d o , ele fu ndou a revista Studia Kantiana, que já tem
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um n ú m e ro p u b lic ad o e dois o u três n ú m ero s en g atilh ad o s. C o m a pubU cação da revista e com a c o n tin u id a d e de seus co ló q u io s — realizad o s a ca d a d o is an o s — a S ociedade K an t dá u m a boa c o n trib u iç ã o p ara a filosofia.
Como o senhor vê hoje os estudos kantianos no Brasil? C om m u ito otim ism o. H á um n ú m e ro p eq u e n o , m as crescen te, de estu d io so s, que têm p ro d u zid o tra b a lh o s de excelente q u alid ad e. É interessante que K an t ten h a sido sem pre estu d ad o no Brasil, m esm o naquela época que cham ei “diletan te” , sem querer ser a rro g a n te e d im in u ir o m érito de ninguém . D esde o século p assad o , h á um ce r to fascínio da intelligentsia b rasileira p o r ele. Isso m esm o q u a n d o foi um p o n to de referência negativo ap en as p ara os nossos filósofos religiosos, qu e n ão en goliam o fato de K a n t reduzir a religião p raticam en te ã m o ralid ad e . T alvez te n h a ex ercid o desde cedo esse fascínio, p o r re p rese n tar u m a visão crítica, m as n ã o re d u to ra , d e n tro da filosofia. K an t é um clássico da filosofia, talvez o m a io r deles. É im possível ser filósofo sem se referir aos clássicos, pois os p ro b lem as filosóficos são na v erd ad e sem p re os m esm os. As a b o rd a g en s são diversas e ex p rim em um a co m p reen são m ais ou m e n os clara dos p ro b lem as colocados. A filosofia n ã o é, em se n tid o p ró p rio , um a fo r m a de co n h e cim en to , m as de reflexão e ac la ra n ien to co n ceitu ai. Por isso, n ão se p o d e falar d e n tro da filosofia em um progresso d o sa b er n o m esm o sen tid o em que se fala em um progresso do conhecim ento científico, o nde se descobrem novas áreas, n ovos d o m ín io s de o b jeto s se to rn a m acessíveis, nov o s fen ô m en o s são o b serv ad o s, o que faz com que as teo rias d em o n strem sua p arc ialid ad e e p o ssam ser c o n sid e ra d as su p e ra d as p o r te o rias m ais com pletas. A filosofia, ao c o n trá rio , n ão tem um o b je to p ró p rio , n ã o é co n h e cim en to de fatos, m as um esfo rço de clarificação de conceitos d ad o s, que su p o m o s fu n d am e n tais p ara os asp ecto s m ais im p o rta n te s de nossa existência, co m o o co n h e cim en to , a ação e a av aliação m o ral e estética. O s p ro b lem as de que se ocu p a a filosofia resu ltam n ã o d a ig n o rân cia d o s fato s, m as d a falta de clareza acerca desses conceitos. P or isso m esm o , a elu cid a çã o desses conceitos se faz sem pre p o r o p o sição a um a o u tra m an eira de co m p re en d e r, que su p o m o s a in d a o b sc u ra ou m enos clara d o que o desejável. C om isso, q u e ro dizer que a abordagem dos problem as filosóficos só se pode fazer de um a m aneira dialógica o u polêm ica, p o rta n to de tal m o d o que o c o n fro n to das te o rias e d o s sistem as é inevitável. N ã o se p o d e negar ta m b ém que algum as inteligências excepcionais tive ram um a visão m u ito m ais rica d o que a m aio ria em relação a to d o s esses p ro b le m as, p o r isso m esm o se to rn a ra m “clássico s” , p o n to s de vista inevitáveis no c o n fro n to das te o rias, essenciais p ara o p ro sseg u im en to e, se q u iserem , o “ p ro g re sso ” d a pesquisa. Em sum a, o que cu q u ero dizer é qu e o co n h ecim en to d o s clássicos é essencial p a ra a reflex ão filosófica, e é an im a d o r qu e o estu d o de alg u n s deles — an tig o s, m o d e rn o s e co n tem p o rân e o s, n ã o ap en as K an t — se to rn e en tre nós cada vez m ais sério e ap ro fu n d a d o . O senhor é editor da revista A nalytica. Como o senhor avalia os qua tro anos de existência dessa publicação e que lugar ela ocupa, na sua opinião, no cenário filosófico brasileiro?
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É difícil fazer um juízo isento, m as espero que a revista Analytica te n h a um papel im p o rtan te n o cenário atual. A sua am bição é a de fazer um trab a lh o rigoroso. N esse sentid o , ela se p ro p õ e a p u b lic ar artig o s de pesquisa de bo a q u alid ad e e serve n ão só co m o um d esag u a d o u ro da p ro d u ç ã o filosófica no Brasil, co m o ta m b ém esta b e lece um p a d rã o de q u a lid a d e p ara essa p ro d u ç ã o . É im p o rta n te te r esse p a d rã o , p o rq u e isso estim ula as pessoas. É conhecido o seu constante diálogo com Balthazar Barbosa Filho.
Como o senhor avalia a atuação de Balthazar no ensino e na produ ção de filosofia no Brasil? D ecisiva. B althazar é um m odelo p a ra to d o s nós. É um a pessoa que se im pôs d en tro de sua geração e isso é difícil o co rrer, pois, em geral, a gente p ro c u ra os m o d e los nas gerações an terio res. T en h o um a en o rm e ad m ira ç ã o p o r B alth azar, ele p o s sui um a inteligência fora d o co m u m . O R aul L an d im ta m b ém . São dois n om es ex trem am en te im p o rtan tes p ara a filosofia atu al no Brasil, pois criaram um p ad rão .
A sua trajetória intelectual e acadêmica, como é bem sabido, foi sem pre bastante entrelaçada com a de Raul Landim Filho, a ponto de ter sido lançado, no ano passado, um livro em homenagem conjunta aos sessenta anos de ambos. Como o senhor avalia a atuação e a produção teórica deste seu companheiro intelectual? É um a inteligência fora do co m u m , p en e tran te , e g o sta de um a d iscussão. É cap az de perseguir um tem a filosófico em todos os seus m eandros, em todos os seus detalhes, p o rq u e está sem pre d isp o sto a n ão ac eitar n ad a co m o evidente, co m o claro em si m esm o. Essa exigência de argum entos, de justificação na filosofia, ele soube tran sm i tir m u ito bem aos seus alunos. Eis aí o u tro m érito de Raul L andim (aliás tam b ém de B alth azar B arbosa): o de te r fo rm a d o um a no v a g eração de excelentes filósofos.
Como o senhor avalia os escritos de Oswaldo Porchat Pereira? São m u ito interessantes p o rq u e são desafiantes. C o n sid ero a defesa qu e ele faz do ceticism o co m o um ag u ilh ão da consciência filosófica, na m edida em qu e c o n fro n ta o filósofo com a necessidade de se justificar. E n ten d o a filosofia n ão apen as com o um a te n tativ a de a c la ra m en to co n ceitu ai, de um a m an eira d ad a de co n h ecer e av a liar as coisas, m as tam b ém a en ten d o co m o um a te n tativ a de justificação d o s es q u em as co n c eitu ais que essa an álise p õ e à luz. P or isso me c o n sid ero k a n tia n o , p o rq u e em K ant há essa m esm a divisão de tarefas da filosofia: de um lad o , a e x p o sição de conceitos d a d o s, im p o rta n te s p a ra a co m p re en sã o d o co n h ecer, d o agir m oral e d o av aliar estético, e, de o u tro lad o , a necessidade de um a d ed u ç ão , feita pela crítica, para d a r um a justificação a esse sistem a conceituai. Isso é, n o meu m o d o de ver, a essência da filosofia: to rn a r claro conceitualm ente o q ue é p ressu p o sto pelo co nhecim ento, pela ação , pela avaliação estética e te n ta r justificar ou im p u g n ar esse esquem a conceituai. Por isso d ou ta n ta im p o rtâ n cia ao ceticism o, ele é ju stam en te a ten tativ a de m o stra r que esses esquem as co nceitu ais n ão são necessários. Por isso m esm o tam b ém d o u ta n ta im p o rtâ n cia ao tra b a lh o de O sw ald o P o rc h at, q ue é o de nos exp licar o ceticism o.
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Como o senhor avalia, em seu conjunto, a obra filosófica de padre Vaz? A o b ra cie p ad re V az m e im pressiona, an tes de m ais n a d a , p o r sua cu ltu ra filosófi ca, que é q u ase universal. Im pressiona-m e ta m b ém , ap esar de g ran d e p a rte de seus escritos terem um c a rá te r genérico, a descrição qu e ele faz d o s g ran d es p ro b lem as d a filosofia, sem p erd e r um a visão fina e d e ta lh a d a deles. C on h ece a fu n d o os p ro blem as filosóficos, m u ito em b o ra a g ra n d e p a rte de seus tra b a lh o s sejam visões sin ó p ticas d a filosofia. E essa en o rm e c u ltu ra filosófica n ão é su p erficial, d em o n s tra um co n h e cim en to p ro fu n d o das questões clássicas da filosofia. A cho seus livros ad m iráv eis p o r sua p en e traç ão , sem fala r na en o rm e eru d ição .
Q ual é, na sua opinião, a especificidade do cenário filosófico carioca, em comparação com outros centros brasileiros? E m bora o Rio de Jan eiro tenha um a im agem de cidade b alneária, pelo m enos em filo sofia, trab alh a-se m u ito p o r aqui. H á centros de pesquisa n o IFCS, na PU C -R io, na UERJ. Enfim , a filosofia é m uito viva e m uito p ro d u tiv a no R io, é um a presença im p o rtan te no cenário nacional. O Rio é um dos grandes centros de filosofia no Brasil.
Além do Rio de Janeiro, quais são os grandes centros de filosofia no Brasil? P o rto A legre, São P aulo, C a m p in a s e Belo H o riz o n te , que tem um jovem d e p a rta m e n to b a sta n te a tu a n te . São esses os g ran d es centro s. N ã o é b om esquecer tam b ém os ce n tro s m enores q u e estão su rg in d o , q u e são m u ito p rom issores: F lo rian ó p o lis, C u ritib a , o in te rio r d o P aran á , P araíb a e N a ta l. A filosofia está se d issem in an d o pelo Brasil. C laro que há um a ce rta d isp a rid ad e ta n to nos g ran d es ce n tro s q u a n to n os m enores, isso é inevitável, cm to d o o m u n d o é assim . N o e n ta n to , o fato de se p erten cer a um g ran d e ce n tro , p o r exem p lo , n ão g a ra n te um a te sta d o de b om filó sofo a ninguém . A inda tem os m uitos resquícios de u m a filosofia d iletan te. De m o d o g eral, e n tre ta n to , a filosofia dos gran d es cen tro s tem um a razoável q u alid ad e , p ró x im a da m édia in te rn acio n al. V ejo com m uita satisfação qu e a filosofia está se d is sem in an d o pelo in te rio r d o Brasil afo ra.
Que conceito(s) de sua reflexão o senhor destacaria como o(s) mais representativo(s) da sua produção filosófica? Pediríamos que o senhor nos contasse como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje. B asicam ente são conceitos m etodológicos e a idéia de q ue a filosofia deve ser e n te n d id a co m o análise co n c eitu ai. T o d a a g ran d e filosofia p o d e ser vista desse p o n to de vista, d o esforço de análise con ceitu ai. C laro qu e nem to d o s os filósofos d esen v olveram o seu conceito de filosofia nesses term os, m as se se p en sar a filosofia co m o análise co n ceitu ai, to rn a-se possível re to m a r to d a s as o u tra s co ncepções filosóficas e to d o s os o u tro s p ro b lem as tra ta d o s pela tra d iç ã o filosófica. O essencial é essa vi são m etodológica da filosofia co m o an álise co n ceitu ai. Isso é necessário p o rq u e o filósofo p ro d u z co n ceito s que são distin tiv o s de seu p en sam en to . O s co n ceito s q ue ele p ro d u z, co m o o conceito de ser e n q u a n to ser, o conceito de o b jeto , ou o conceito de tran sc en d e n ta l, são resu ltad o d o acla ra m en to de conceitos d ad o s. N esse sen tid o .
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o conceito na filosofia tem um e sta tu to m uito d iferen te d o co n ceito nas ciências, pois esta p ro d u z conceitos atra v és d o co n h ecim en to de o b jeto s e os reo rg an iza a p a rtir desse conh ecim en to . O filósofo n ã o faz isso, ele to m a algo q u e é d a d o , de um a m an eira prévia — pré-filosófica ou n ão — , e p ro cu ra to rn á-lo s — os co n cei to s da v erd ad e, da m o ral e d o belo p o r exem p lo — m ais claro s, p ro c u ra n d o saber se são im prescindíveis o u não. V ejo a filosofia n ã o co m o um sistem a p ro d u z id o , a p a rtir de definições ou escolhas prévias, m as co m o trib u tá ria do pré-filosófico. É a isso que ch a m o , talvez de um a m an eira ain d a m u ito fen o m en o ló g ica, de um a préco m p re en sã o da vida nas suas dim ensões m ais im p o rta n tes: co g n itiv a e avaliativa.
Parece possível apontar duas noções como centrais em sua produção teórica; a noção de verdade e a noção de ação. O senhor poderia nos falar um pouco sobre tais noções, pensando na evolução de seu pen samento? Essas noções são conceitos tem ático s da g ran d e filosofia, n ã o são co n ceito s o p e ra tó rio s — p ara utilizar um a d istin ção feita p o r Fink. O cerne d a m in h a p re o c u p a ção filosófica é ep istem ológico, m esm o q u a n d o tr a to de q u estõ es de fu n d a m e n ta ção em m o ral e, m ais recentem ente, em estética — e faço isso sem pre de um p o n to de vista m eto d o ló g ico . O m eu interesse é sa b er o qu e g a ra n te a p rete n são de vali d ad e p a ra conceitos ou classes de juízos p ara os q u ais esses co n ceito s de verd ad e e de ação são aplicáveis. O senhor também é conhecido e respeitado como tradutor de textos de filosofia, clássicos e contemporâneos. Como o senhor vê essa sua ativi dade de tradutor? C o m o um a ativ id ad e secu n d ária. N o e n ta n to , é im p o rta n te qu e h aja b o as tr a d u ções, so b re tu d o dos clássicos. É necessário que a filosofia fale p o rtu g u ês, e h av e n do b oas trad u ç õ es p ara a nossa língua, haverá ta m b ém um a bo a d iscu ssão dessas trad u ç õ es. E n tão , m esm o sen d o um a ativ id ad e se cu n d á ria e m o d e sta , a ativ id ad e de tra d u to r é m u ito im p o rta n te , p rin cip alm e n te p a ra o esfo rço de se p ro d u z ir um a filosofia brasileira.
Um dos livros que o senhor traduziu parece destoar das suas preocu pações, a D ialética do esclarecim ento de A dom o e Horkheimer. O que o levou a traduzir esse livro? D u ra n te um a certa época da m inha vida, tive algum interesse pelo m a rx ism o visto pela ótica da Escola de F rankfurt, pela ótica de H aberm as. Essa trad u ç ão d a Dialética do esclarecimento foi-m e encom endada e aceitei fazer p o rq u e queria conhecer m elhor essa visão. N u n ca tive um a sim p atia p o r esse p o n to de vista filosófico, q u eria a p e nas en ten d e r o q ue levou H ab e rm as a se se p a ra r desses a u to re s e, n o fim das c o n ta s, acabei m e co nvencendo d o b em -fu n d ad o de sua posição.
Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade?
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A filosofia n ão tem um a relação privilegiada com a ciência. R elaciona-se d o m es m o m o d o com a ciência, assim co m o com o u tra s áreas do co n h e cim en to e da cu l tu ra h u m a n a. Isso se deve precisam ente ao fato de qu e a filosofia n ão é o co n h e ci m en to de um d o m ín io de o b jetos p articu la re s, m as é u m a te n tativ a de to rn a r m ais claro um h orizonte de co m preensão dos diversos d om ínios da nossa vida. É p o r isso qu e a filosofia é sem pre filosofia de algum a coisa: é filosofia d a ciência, da m o ral, d o co n h ecim en to pré-científico ou da religião. E n tã o , devido a essa sua n atu reza, n ão possui um a relação privilegiada com a ciência. M as é sem p re m u ito difícil tr a ç a r um lim ite claro en tre a filosofia e o co n h ecim en to científico, p o r isso, a filoso fia sem pre foi um p o n to de p a rtid a p ara a ciência. O que é co lo ca d o inicialm ente co m o um a questão filosófica acaba se tran sfo rm an d o num a questão de conhecim ento de objetos. Essa origem da ciência a p artir da filosofia é algo que se observa ao longo da histó ria: a m a tem ática, p o r exem plo, surgiu e n tre filósofos p itag ó rico s que se interessavam p o r questões filosóficas. N esse sentid o , a filosofia é, de um a certa m a n eira, um a neb u lo sa que vai la n ça n d o co rp o s fora de si q ue se co n stitu e m a u to n o m am ente. V ê-se isso até na nossa época: a lógica m a tem ática, tã o im p o rta n te p a ra a c o m p u ta ç ã o , é o últim o reb e n to da filosofia q u e se to rn o u au tô n o m o . E talvez n ão seja o ú ltim o , se se p en sar na lingüística p rag m á tic a, a ú ltim a invenção d o s fi lósofos que teve sucesso fora da filosofia e chegou a co n s titu ir um a n ova ciência.
Desde Hegel, no século XDL, trava-se um debate sobre o ftm da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda de. Como o senhor se posiciona em relação a esse debate f N ã o te n h o n en h u m a p osição a respeito desse d eb a te , pois n ão te n h o co n h ecim en to de causa. Posso ter o p iniões p riv ad a s, m as essas n ão valem . E n tre ta n to , n o qu e diz respeito estritam en te ao fenôm eno estético, posso dizer qu e a idéia de seu d e sa p a recim ento é equ iv o cad a — sobre isso, te n h o um a p o sição refletida. É um equívoco falar em um estreitam ento do horizonte da experiência estética, p o rq u e isso faz parte de um d o m ín io da vida. O fim do h o rizo n te de co m p re en sã o estético significaria a ex clusão de to d a um a p arte da nossa vida, a da experiência e d o d iscurso so b re o que co n sid eram o s belo ou feio. N ã o há, p o rta n to , o m en o r sen tid o em tal a firm a ção e isso pode ser dem o n strad o , acredito, num espírito k an tian o . M as a arte é m uito m a io r do que o fenôm eno estético, e, so b re esse assu n to , n ão te n h o o qu e dizer. O senhor vem se empenhando num trabalho de reconstrução do siste ma das três “Críticas” de Kant, já tendo examinado elementos impor tantes da C rítica d a ra z ã o p u ra e da C rítica d a ra z ã o p rática. Como o senhor pretende aproximar-se da C rítica d o juízo.? P arte desse m eu p ro je to é fazer um a re in te rp re ta ç ã o d a “ D ed u ção d o s juízos de g o s to ” e da explicação cognitivista que K an t dá à p ercep ção d o belo. K ant m e fas cina ju stam en te p o r sua visão to ta l dos p ro b lem as filosóficos. \^ê a filosofia com o u m a reflexão sobre os interesses da razão nos diversos d o m ín io s da vida h u m an a: n o conh ecim en to , na aç ão (ta n to em busca d a felicidade, q u a n to na aç ão p o r d e ver) e na av aliação , n o sen tim en to de p razer. T alv ez esse seja um bom p o n to de p a rtid a p a ra se p o d er rep en sar os conceitos que são fu n d am e n tais p ara a m aneira
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co m o nos relacio n am o s co n o sco , com a nossa existência. O qu e significa p raz er e, s o b re tu d o , p raz er estético? De certa m a n eira, o co n ceito fu n d am e n tal p ara K an t é o da consciência de si, que exerce sem pre o papel de um p rin cíp io fu n d a m e n ta d o r. N o e n ta n to , esse co n ceito rep rese n ta ta m b ém um m o d o de p en sar em filosofia qu e p o d e p are cer a n tiq u a d o e que n ão c o rresp o n d e m ais à m a n eira de se co lo ca r os pro b lem as filosóficos. C o n tu d o , esse con ceito p o d e ser re tra d u z id o n u m a lin g u a gem mais contem porânea. Pode-se sem pre recolocar os problem as da filosofia a p artir da m an eira co m o nos co m p reen d em o s em nossa vida, e, e n tã o , tem c a b im e n to p er g u n ta r: co m o é que nós co m p reen d em o s a nossa existên cia a p a rtir dessa d im e n são da afetividade ou do prazer? Por isso é possível b u scar em K an t um a in sp ira çã o , um p o n to de p a rtid a p ara um a nova refo rm u laç ão dos co n ceito s d ad o s, a tr a vés dos q u ais p o dem os nos referir ao p razer. £ hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como o senhor vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que parecem desfrutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias? Sim, há um a relação, m as isso n ão é tã o n o v o , já faz p arte d a visão k an tian a . K ant vê a política de um p o n to de vista co sm o p o lita: o e stad o de d ireito está ligado a um a visão co sm o p o lita que lhe é essencial. Se se vê o E stad o n ão d o p o n to de vista da h istó ria factual, que levou ao seu surgim ento, m as d o p o n to de vista d o s concei to s com que os hom ens pensam as condições de u m a convivência reg u lad a en tre si, vê-se que a idéia de um E stado, qu er dizer, de um a legítim a reg u la m en taç ão ju ríd i ca, das relações de p ro p rie d ad e e de tra b a lh o en tre as pessoas, está sem pre ligada a u m a idéia m oral. O E stado n ão é ap en as um a cria çã o h istó rica com co n d icio n an tes em píricos, é tam b ém o resu ltad o dessa exigência de legitim idade, qu e é um a p arte c o n stitu tiv a da m an eira co m o n ós nos co m p reen d em o s e da m an eira co m o co m p reendem os os o u tro s (a m aneira co m o co m p reen d em o s a nossa id en tid ad e pessoal e a nossa id e n tid a d e coletiva). Sem essa idéia de relações legítim as, nós n ão tem os u m a id e n tid a d e coletiva e, dessa m a n eira, n ão tem o s um a id e n tid a d e pessoal. É essencial ter clareza sobre isso: a idéia de um a o rd em p o lítica é, an tes de m ais n ad a, um a idéia eficaz, in d ep en d en tem en te das suas co n d içõ es de realização. A liás, n ão descreveria isso com o um a u to p ia , pois a p alav ra u to p ia designa um a ficção p a ra m a sc a ra r relações existentes e n ão designa n ad a de real ou de rea lizável. Pelo c o n trá rio , essas idéias ou exigências, qu e estão na base de u m a co n v i vência política, são eficazes, e eficazes p recisam en te e n q u a n to idéias. Sem dúv id a n en h u m a, possuem um esta tu to p u ram e n te regulativo, m as são reais e eficazes, n ão são utópicas. A nossa vida n ã o pode se realizar sem elas.
Em seu artigo “Algumas considerações sobre a concepção moral cristã e a modernidade filosófica", o senhor afirma; “Não há, se nos situar
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mos no plano argumentativo da filosofia modem a, nenhuma genuína alternativa para a doutrina do Imperativo Categórico enquanto prin cípio exprimindo uma condição de racionalidade no agir, a saber, en quanto princípio de universalização ou imparcialidade”. Por que o se nhor descarta Hegel como alternativa m odem a ao modelo kantiano da racionalidade da ação? H egel te n to u , a p a rtir de um a po sição p ré -k a n tia n a , um a espécie de re sta u ra ç ã o fi losófica da m oral e da filosofia p olítica. T e n to u um a rea b ilitação d o s “ d ire ito s ” do p a rtic u la r em face do universal, d ifam ad o co m o a b s tra to e p u ram e n te fo rm al. O qu e m e afa sta de H egel é ju stam en te essa te n ta tiv a de rea b ilitação d o p artic u la r, e, nesse sentido, n ão vejo nen h u m a altern ativ a p ara o im p erativ o categ ó rico . O qu e é o im p erativ o categórico? N a d a m ais d o que a exigência de se levar em co n ta em n o ssas ações n ã o ap en as os nossos interesses, m as os interesses de to d o s os dem ais co n cern id o s. O que seria en tão um a altern ativ a p ara isso? P recisam ente a negação de q u e é necessário levar em c o n ta em nossas açõ es os interesses de to d o s os d e m ais concern id o s. A recusa d o im p erativ o categ ó rico é um a defesa d o s preten so s direitos d o p a rtic u la r na h istó ria da filosofia, e isso é po liticam en te rea cio n á rio , é, em term o s políticos, um a defesa an tid em o crática. M esm o a defesa das m in o rias e das diferenças passam tam b ém pelo universal, p o rq u e é necessário resp eitar ca d a in div íd u o co m o p a rtic u la r e ta m b ém co m o d iferen te de to d o s os o u tro s. Pela p e rs pectiva d o p a rtic u la r, n ão há a ltern ativ a p ara o im p erativ o categ ó rico co m o p rin cípio de m áx im as m o rais e de um a legislação juríd ica. A n ã o ser a a lte rn a tiv a de um a regressão, ou seja, as form as de vida passam a n ão ter m ais a ver com a m o ral, na m ed id a em que é a reivindicação do d ireito de o in d iv íd u o fazer o q ue q u er sem levar em co n ta os dem ais; ou a reivindicação de fo rm as políticas a u to ritá ria s b aseadas em o lig arq u ias ou defesas de interesses de g ru p o s. Isso n ão q u er dizer, no e n ta n to , que a fo rm u laç ão filosófica que K ant deu em to d o s os seus d etalh es p ara o im p erativ o categ ó rico seja a últim a p alav ra, m as n ão vejo altern ativ a p ara a sua idéia básica que n ã o signifique um a regressão ta n to d o p o n to de vista in dividual q u a n to político.
Nesse sentido, como o senhor avalia hoje a questão dos direitos hum a nos? Não há o risco de esses direitos estarem se congelando numa es pécie de universal fixo e, em certo sentido, arbitrário? N ã o . H av eria esse risco se tivéssem os que pen sar o ca tá lo g o d o s d ireito s h u m a n o s co m o deriv ad o de um p rin cíp io de u niversalização d as regras ou das m áx im as d o agir. Se pensássem os o p rin cíp io com o q u al avaliam o s as regras m o rais e jurídicas co m o um princípio de d eriv ação lógica, haveria esse perigo de co n g elam en to , pois d ad o s tais e tais princípios, pode-se estabelecer q uais são as suas conseqüências. Esse p rin cíp io n ão funciona co m o prem issa de um a d eriv ação lógica, m as co m o critério de avaliação, e, p ara u sar um a ex p ressão de H a b e rm a s, esse p rin cíp io tem um v a lo r p ro ced im en tal, é ap en as um m éto d o de av aliação e n ão um ax io m a do qual se d erivam teorem as. A relação en tre os d ireito s h u m a n o s e o p rin cíp io d o q u al são d eriv ad o s n ão é um a relação igual á que existe en tre , p o r um lad o , ax io m as e d efi nições, e, p o r o u tro , teo rem as d e m o n stra d o s a p a rtir dos prim eiro s. É ap en as um a
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regra de co m o devem os p ro ce d er sem pre que são co lo cad as q u estõ es v o ltad as p ara os interesses de to d o s. Este p rin cíp io diz apenas; “ P ergunte p ara si m esm o se, ao fazer tal e tal coisa, você esta rá resp e ita n d o ou n ão o interesse dos d e m a is” . O in teressante é que n ã o há um a resp o sta a priori, p o rq u e há o espaço reflexivo p a ra a facu ld ad e de julgar. E n tão vejo os d ireito s h u m a n o s n ã o co m o d eriv ad o s de um a x io m a, m as co m o estabelecidos num processo de reflex ão a p a rtir de um a n o rm a pro ced im en tal.
Q ual seria hoje a implicação moral da idéia de felicidade? T alvez seja o co n trá rio : é a idéia de m o ralid ad e qu e im plica a de felicidade. V ejo a m o ralid ad e co m o um a co n d ição restritiva da felicidade, en ten d e n d o felicidade num sentido bem delim itado. H á, e n tre ta n to , várias definições e pode-se, p o r ex em plo, fazer da m oralidade um elem ento do conceito de felicidade. N essa concepção, a priori já se tem p o r estabelecido que n ão se po d e ser feliz se n ão se agir m o ralm en te no que diz respeito às dem ais pessoas, ou seja, só se p o d e ser feliz se as o u tra s pessoas tam b ém o forem . Esse é um conceito de felicidade p o u co p ro d u tiv o , p o rq u e reso l ve, p o r definição, to d o s os prob lem as. P refiro p en sar a felicidade co m o um a espé cie de som a de to d o s os desejos de um indivídu o . V endo a felicidade dessa m an ei ra , só p o sso ver a relação da felicidade com a m o ralid ad e co m o restrição , p o rq u e nem tu d o que q u erem o s e desejam os é com patív el com o qu e os o u tro s tam b ém desejam . Se o ind iv íd u o se co m p reen d e de tal m an eira q ue n ã o possa ser ele m es m o, n ão possa q u ere r ser ele m esm o, se n ão respeita o q ue os o u tro s qu erem p ara si, en tão sua idéia de felicidade sem pre será restrin g id a p o r um a co n d içã o m oral. Ser feliz, segundo essa definição, é fazer ou conseguir tu d o o qu e se deseja, m as nem to d o s os nossos desejos são com patíveis entre si. Em term o s k a n tia n o s, a idéia de felicidade pertence ao â m b ito da im ag in ação , n ão é um a idéia d a razão , pois é c o n tra d itó ria em si m esm a. O to d o do que desejam os n ão fo rm a um to d o , n ão é h o m ogêneo, há contradições e tensões internas a ele e, com m uito m ais razões, há ainda contrad içõ es e tensões entre o que desejam os e o que os o u tro s desejam p ara si. Um a h a rm o n izaç ão do que desejam os e o que desejam os o u tro s só é possível ao preço de certas condições restritivas. V ejo a m o ralid ad e assim : com o um a restrição ine vitável do desejo de felicidade, p o rq u e ela tem p o r co n d ição nossa p ró p ria au to co m preen sào , m as tam bém um a restrição desejável! A felicidade tem de ser bem com preendida, ou seja, se o sujeito é racional e sensato em suas ações, vê que a m elhor m aneira para realizar o m áxim o possível de seus desejos é através daq u ela h arm o n izaç ão de to d o s os desejos. A liás, isso é tam b ém um p e n sam ento k an tian o : a idéia de um reino dos fins é p recisam ente a idéia de um co n v í vio hu m an o em que to d a s as pessoas respeitariam as dem ais e, p o r isso, assegurariam a realização d o m áxim o possível de felicidade p ara cada um a delas. E n tã o é do nosso interesse serm os m orais, restringirm os os nossos desejos, m uito em b o ra n ão seja disso que a exigência de m o ralid ad e tira a sua força o b rig ató ria .
Hoje, uma concepção eudemônica da moralidade é necessariamente reacionária? C e rtam e n te é. D epois de K ant é im possível pen sar a felicidade com o p o n to de par-
Guido Antônio de .Almeida
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tid a p a ra a exp licação da m o ralid ad e , m as isso n ão im pede q ue o co n ceito de feli cidade venha in teg rar o con ceito de Bem. Isso é p recisam en te o que a tra d iç ã o c h a m ou de “ Sum o B em ” , ou seja, a felicidade sob as co n d içõ es d a m o ralid ad e . N ã o há n ecessariam en te um an tag o n ism o en tre o desejo de ser feliz e a exigência da m o ralid ad e. Q u a lq u e r que seja o p o n to de p a rtid a pelo q u al o sujeito rac io n al pensa as d u as coisas, chegará sem pre ã m esm a con clu são . Se vê d o p o n to de vista m o ral, verá que a felicidade tem de ser pen sad a a p a rtir d a exigência d a m o ralid ad e , e, se vê d o p o n to de vista d o seu interesse em ser feliz, verá ta m b ém qu e a m o ralid ad e é a co n d ição da felicidade. Essa q u estão é um dos tem as clássicos d a filosofia.
Como o senhor caracterizaria a sua relação com a religião e a fé? Se se entende p o r fé um a a titu d e cogn itiv a, se fé significa cren ça e esta, p o r sua vez, im plica razões, a fé, co m o to d a ciência, necessita de razões. P arto do seguinte; se se ex a m in a o con ceito d a d o de cren ça, a m an eira co m o p ré-filo so ficam en te se utiliza o verbo crer, a rrisc aria dizer que crer supõe ter razõ es p ara crer, m esm o que essas n ão sejam suficientes p ara se a firm a r algum a coisa, p ara se dizer que se sabe. N e n h u m a crença é a rb itrá ria , n ão se crê em algo que seja logicam ente im possível; en tão a crença está rela cio n a d a, de m o d o tênue, a razões. A gora, se se en ten d e fé com o crença, crença na existência de D eus e nu m a vida fu tu ra , a tra d iç ã o crítica da filo sofia d em o n stro u que n ão há ra z ã o p a ra se crer em D eus o u p ara n ão se crer em D eus. N ã o é im possível que D eus ex ista, m as as razões p ara essa su p o sição são tã o fracas q u a n to as razões p ara a su posição c o n trá ria . O ra , desse p o n to de vista, em q ue fé é um a a titu d e cognitiva, posso dizer que n ão te n h o fé, m as qu e te n h o esp e ran ça. A cho in su p o rtáv el que o m al exista no m u n d o e a d m itir que n ã o ten h a re m édio. É insuportável p en sar que ta n ta gente ao lo n g o da h istó ria foi h u m ilh ad a e q ue isso seja definitivo. E ntão te n h o a esperança q u e, de alg u m a m a n eira, p o r as sim dizer, as coisas a c a b a rã o d a n d o ce rto no final, e isso n ão é ap en as u m a atitu d e afetiva, m as um a a titu d e p rática, na m edida em q u e, de certa m a n eira, vivo e p r o cu ro agir com base nessa esperança.
Quando o senhor deixou de ter fé? P or volta dos m eus 19 an o s, q u a n d o saí da JU C . Fui colega dc classe de Betinho [H erbert de Souza] n o colégio estadual e entrei na JE C p o r suas m ãos. Ele era a pessoa m ais velha da m inha tu rm a p o rq u e , devido a um a d o en ç a, tin h a ficado uns q u a tro an o s sem e stu d a r, e q u a n d o v o lto u , além de ser m u ito m a d u ro , era tam b ém um a pessoa e x tre m am en te inteligente e bem in fo rm ad a p a ra a sua idade. E xercia um a g ran d e influência sobre to d o s, e, atra v és dele, tive um a fase m ística en tre os dezes sete e d ezoito anos. N essa ép o ca, voltei a m e interessar pela religião ca tó lica, entrei p a ra a JE C e con tin u ei na JU C . Foi u m a ex periên cia q ue d u ro u três an o s. Q u a n d o entrei na AP, já n ã o era m ais ca tó lico , no sen tid o de n ã o ter m ais a certeza na existência de D eus, na div in d ad e de C risto , qu e tive in g en u am en te até os dezesseis anos e, depois, m ais refletidam ente, dos m eus 17 aos 19 an o s. M as isso co n tin u a a fazer p arte da m inha vida com sinais diferentes: o que vivia co m o c re n ça, passei a viver co m o esp eran ça.
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o seu artigo “Algumas considerações sobre a concepção moral cristã e a modernidade filosófica” termina com a seguinte afirmação: “Parece-me que a possibilidade de uma reconstrução filosófica da concep ção moral cristã está ligada ao modelo kantiano de fundamentação, por mais insuficientes que as tentativas de aplicar esse modelo na elabora ção de uma teoria resistente a toda crítica tenham sido até o presente”... Essa frase tem de ser co n tex tu a liz ad a . Escrevi esse artig o no c o n te x to de um a h o m enagem a pad re V az, qu eria e n c o n tra r um p o n to em co m u m en tre a m in h a m a neira de p ensar esse tem a filosófico e um a m aneira m ais pró x im a de seu pensam ento. T entei m o stra r isso: K ant, ap e sa r de tu d o , é um a p o ssib ilid ad e p ara se rep en sar o cristianism o. U m a tese, é verdade, que n ão é m u ito sim pática a p ad re Vaz. M as isso n ão foi feito com o in tu ito de iro n izar, pois te n h o um resp eito e um a a d m iraçã o m u ito g ran d e p o r ele.
Em relação a esse texto, há como salvar uma concepção moral cristã sem uma fortna de vida cristã que a sustente e que seja universalizávelf Pode haver uma concepção moral cristã entre outras concepções de moral? Sim. P ara se afirm a r o c o n trá rio , seria preciso m o stra r que a co n cep ção m oral cris tã é logicam ente im possível, c o n tra d itó ria em si m esm a. C o m o n ão é, en tão é p o s sível. A cho possível o cristian ism o com o um a ad e sã o pessoal p o r razões p u ra m e n te subjetivas. P ara o cristão , a fé é um a graça de D eus que n ão é m erecida. Se a l guém tem essa cren ça, essa pessoa sem pre p o d erá dizer que a tem g raças a D eus, p ois é um dom g ra tu ito de D eus e é p o r isso que n ão são necessárias razões, p ro v as ou arg u m e n to s p a ra isso. E isso é um a d isposição da m ente e d a alm a que se incli na p ara essa m aneira cristã de ver a m oral.
Como uma moral que tem conceitos pode ser puramente procedimental? Q u al é o conceito básico d o cristianism o.' O con ceito de a m o r ao p ró x im o co m o a si m esm o. Essa é a perspectiva d o universal. E p o r qu e o cristian ism o se to rn o u o sucesso que veio a ser? P orque rep resen to u essa persp ectiv a p ara o m u n d o an tig o , on d e os p articu la rism o s se d igladiavam p o r um a perspectiva d o universal. Por isso o cristian ism o pô d e in teg rar elem entos d o p la to n ism o e d o esto icism o à filosofia. Q u a n d o se en tra nessa visão cristã do m u n d o , assum e-se um a perspectiva d o u n i versal, e a perspectiva de D eus, a perspectiva d o m o n o teísm o , foi a p rim eira figura d o universal h isto ric am en te eficaz. P or isso n ão vejo o cristian ism o d e s tin a d o a d esap arecer, ao c o n trá rio de m uitos q u e acham qu e ele será su b stitu íd o p o r um a visão científica do m u n d o . A ciência n ã o tem n ad a a ver com a religião, n ão tem o qu e dizer dessa esfera da vida h u m a n a, pois, nessa esfera, sem pre h av erá um esp a ço p ara a religião em term o s de um a ad esão subjetiva. É bem verd ad e q ue n ã o m ais com o no m u n d o an tig o , em que ela info rm av a to d o o h o rizo n te intelectual de um a sociedade. Isso realm ente n ão tem volta.
Como o senhor se situa em relação aos problemas de uma “mudança de paradigma” da filosofia, de uma filosofia “pós-metaftsica” calcada na linguagem?
G uido .Antônio de Almeida
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A tu alm en te, dou m enos im p o rtâ n cia a esse p ara d ig m a lingüístico, e m b o ra c o n ti nue vendo a filosofia co m o análise co n ceitu ai — e, em relação a isso, n ã o há m ais volta. T en h o m u itas dúvid as em relação ao p en sam e n to pós-m etafísico. Se se to m a , p o r exem p lo , o p ro b lem a do liv re-arb ítrio , ou da esp iritu alid ad e d a vida h u m a n a, a defesa de um p o n to de vista p ós-m etafísico está sem p re ligada à su p o sição de que é necessário te r um a visão desses p ro b lem as com p atív el com a visão d a ciência, que possa ser in teg rad a à ciência. Só que isso ta m b ém é m etafísico, pois ver a ciência co m o a única p ossibilidade d o co n h e cim en to é a firm a r um a tese m etafísica. N ã o te n h o n en h u m a sim p atia p o r isso e n ão vejo n en h u m a razão p a ra su p o r qu e esteja m os e n tra n d o nu m a idade pós-m etafísica.
Como o senhor vê, hoje, a filosofia analítica? A filosofia an alítica é um im pério em e x p a n sã o q u e, a o m esm o te m p o , está fican d o m u ltifo rm e e m ultico lo r. O ú ltim o g ran d e ac o n te cim en to ligado a ela foi a d es c o b e rta dos p ro b lem as clássicos da filosofia. O s filósofos an alítico s p rim eiro des c o b rira m A ristóteles, depois desco b riram K an t, D escartes, L eibniz e, co m isso, a filosofia an a lítica g a ra n tiu a sua sobrevivência, in c o rp o ra n d o os tem as clássicos da filosofia, da m etafísica e da filosofia m o ral a seu registro. É preciso ressa lta r que, hoje, a filosofia an alítica é ap en as um m é to d o de a c la ra m e n to co n ceitu ai e de a r g u m e n taç ão , que se esforça p ara to rn a r os co n ceito s claro s e se esforça p ara d a r razões a o q u e se afirm a. É claro que existe ta m b ém um a filosofia an alítica d u ra , ligada ao em p irism o , a um a co n c ep ç ão positivista da ciência, m as isso é um m o m en to tran sitó rio da história da filosofia. C o n tu d o , a filosofia an alítica pensada p o r aquele m é to d o de a c la ra m e n to conceituai e de a rg u m e n ta ç ã o se ex p a n d iu . Pode-se a b rir a Kant-Studien, p o r exem p lo , e c o n s ta ta r qu e a m aio ria de seus artig o s são escritos n u m espírito an alítico ; se se a b rir os livros, as co letân eas p u b licad as c o n ti n u am en te sobre A ristóteles — so b re a filosofia m o ral, a m etafísica etc. — , c o n s ta ta-se ta m b ém que tu d o é co n ceb id o em um esp írito an alítico . E isso n ã o significa u m a red u ç ão em pirista.
Esse é também o sentido do título da revista A n alytica? A palavra “ an alítica” n ão é p ropriedade privada da filosofia que reivindica esse nom e n o século X X , nesse sen tid o m u ito am p lo que dei há p o u co . Esse títu lo tem um a histó ria que rem o n ta ao s Analíticos de A ristóteles. Passa p o r K an t, o n d e designa o p ró p rio núcleo da filosofia tran sc en d e n ta l. E, em nossos tem p o s, até m esm o H e i degger a utilizou p ara c a ra c te riz a r a filosofia co m o um a “ an a lítica ex iste n cia l” . C o m o se vê, o term o en c o n tra acolhida nos m ais d iversos sistem as filosóficos, e isso é m u ito com preensível, p o rq u e designa esse núcleo co m u m a to d a filosofia, qu e é a análise de conceitos, e foi nesse sen tid o am p lo qu e a p alav ra foi esco lh id a p ara d ar títu lo à revista. Como o senhor vê o pragmatismo americano? N ã o te n h o interesse pela visão p ra g m a tista , que é um red u cio n ism o . A idéia geral d o s diferen tes p rag m a tism o s co n siste em d e riv a r d a esfera d a aç ão os co n ceito s básicos d o co n h e cim en to e da avaliação. V am os su p o r que h á, p a ra ca d a asp ecto
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da existência hum ana, um sistema categorial, mesmo que historicam ente maleável. Q ual seria a tese pragm atista a esse respeito? T odos esses sistemas categoriais são projeções, em últim a análise, das estruturas da prática, sobretudo as do fazer. Se nós pensam os o m undo com o constituído de objetos, em que algo permanece ou varia ao longo do tem po, por que nós pensam os assim? Porque a nossa ação nos leva a pensar assim. Por isso o pragm atism o é sempre a tentativa de reduzir os con ceitos básicos do conhecim ento, da form a m oral e da forma estética, aos conceitos do fazer. N ão tenho nenhum a sim patia por isso. De qualquer m aneira, em filoso fia, deve-se explorar todas as possibilidades do pensar, e o pragmatismo é uma dessas possibilidades. É bom que os filósofos experim entem tentativas de explicação ba seadas nessa hipótese, mas essa é uma hipótese pouco provável jrisos].
Em 1988, o senhor teve a oportunidade de debater com Jürgen Habermas no Instituto Goethe de São Paulo. Qual foi o saldo desse debate? Foi m uito pequeno. Acho que H aberm as, de certa m aneira, me deu razão naquela ocasião. Ele tem um a certa concepção de filosofia que me parece contraditória: por um lado, a filosofia é uma form a de conhecim ento a priori, puram ente conceituai, em que é possível fazer dem onstrações e provas; por outro lado, a filosofia é ape nas uma extensão do conhecim ento científico, uma visão integradora dos resulta dos científicos, uma tradução dos resultados esotéricos da ciência para a linguagem do m undo da vida. E ntâo, de um lado, a filosofia é apenas um prolongam ento da ciência, as teorias filosóficas (por exemplo, sua teoria da fundam entação moral) são em piricam ente falsificáveis; dc o utro lado, essas mesmas teorias são sistemas cons tituídos conceitualm ente. Assinalei então uma dificuldade para isso: se a teoria de H aberm as deve ter algum sucesso, não pode ser apresentada com o empiricam ente falsificável, mas com o verdadeira por razões lógicas e semânticas. Ele disse: “ Essa posição é possível, aliás c assim que Apel pensa tam bém ” . N ão tenho sim patia por Apel, m as fiquei m uito contente com a concessão [risos]. De qualquer m aneira H aberm as não respondeu às objeções e apenas dis.se que cra possível pensar desse jeito. Então o saldo não foi tão grande. O senhor escreveu os artigos “Verdade e consenso” (em 1983) e “Ver dade e consenso II” (em 1989) dedicados à teoria da verdade como consenso de Habermas. O últim o deles revê criticamente as conclusões do primeiro, praticamente as invertendo. Como exemplos de conclu sões feitas em 1983, revistas em 1989, seria possível citar duas; 1) “Ainda que a questão da veracidade e da correção (ou a organização eqüitativa e desinteressada da discussão de pretensões de validade) tenha prio ridade sobre a questão da verdade (e nisso Habermas tem razão, e tal vez seja isso apenas o que importa), manifestamente a solução da pri meira questão não traz por si só a solução da segunda”; 2) “As condi ções da veracidade e da correção constituem condições de um autêntico consenso, é verdade; mas, do mesmo modo que as condições de verdade, não adm item uma controvérsia sensata; neste sentido estão aquém da possibilidade de consenso e dissenso e, por conseguinte, embora sejam
G u id o A n tô n io de .\lm e id a
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condições do consenso, seria um equívoco chamá-las de condições con sensuais”. O que o fez m udar sua posição em relação a tais conclusões? Andei retom ando essas questões à luz de leituras que fiz do segundo W ittgenstein e instigado pelo que li de T ugendhat — pensando contra ele. O que está em jogo quando se coloca em questão a verdade de uma proposição? Se é uma proposição elem entar, predicativa, o que está em jogo é a regra que possibilita afirm ar que um objeto é o caso de um determ inado conceito, expresso por um predicado. Então, para refutar a teoria consensual, parece que basta dizer isto: o que determ ina o consenso é a regra e não o co ntrário, pois o consenso depende da aplicação da re gra. Agora, se se pensa de uma m aneira w ittgensteiniana os significados dos pre dicados, é necessário sempre ligá-los ã aplicação dos predicados. O significado de um predicado não é determ inado por uma nota comum que se intui e que se encontra presente em diversos objetos. A significação de um predicado é determ inada a p ar tir de exem plos do uso correto ou incorreto do predicado. Isso é adm itido por T u gendhat. Se se adm ite isso, se se com preende que é possível dar exemplos de usos corretos e incorretos de um predicado, terá de se adm itir tam bém a seguinte conse qüência: o que determ ina o significado é o consenso quanto aos exemplos corre tos. Então, parece que na base das regras que determ inam o uso correto ou incor reto de um conceito há um consenso inicial. Por isso eu via uma certa razão na teo ria consensualista e tentei jogar isso contra T ugendhat. Q uando estive na Alema nha, em 1987, apresentei-lhe esse artigo sobre a teoria consensual e conversam os a respeito dessa questão. T ugendhat adm itiu, ao menos, que é possível discuti-la.
Por falar no segundo Wittgenstein, como o senhor avalia o livro A pre sentação do m undo, de Giannotti? Tudo o que G iannotti tem a dizer é sem pre original e m uito instigante. Esse livro tem uma grande im portância para a discussão filosófica no Brasil. O senhor utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do futuro da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia? N ão, porque a palavra “ u to p ia” designa algo que é puram ente im aginário e histo ricam ente ineficaz. .Vlarx e Engels escreveram sobre o socialismo utópico e o socia lismo científico. C riticaram o prim eiro na medida em que m ostraram que a socie dade utópica é historicam ente inviável. A crítica a esse ideal se baseia no fato de seu conceito ser historicam ente vazio e por não se com preender as condições de sua realização. Sc utópico tem esse sentido, então tudo que é classificado com o utópi co deve ser descartado. N ão tenho sim patia nenhum a pelo utópico, mas nem por isso acredito que os conceitos tenham de ser científicos. A idéia de uma sociedade justa, por exem plo, não deve ser uma utopia, mas isso não quer dizer que essa idéia tenha de se basear num a ciência da história, com o o m aterialism o dialético. Ela não deve ser um conceito histórico, mas deve ser pensada com o historicam ente eficaz, c é historicam ente eficaz na medida em que é uma exigência reguladora. Com o idéia reguladora eficaz, a idéia de uma sociedade justa preside a lógica da razão com uni cativa, para utilizar um a expressão de H aberm as, que é uma das dimensões da so ciedade. Então, para fundam entar essa idéia não é preciso m ostrar que ela se pro-
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duz a partir de um estudo das contradições do m odo de produção existente. De um ponto de vista m arxista, um projeto social só é legítimo se se pode dem onstrar que ele é resultante de certas condicionantes empíricas, quais sejam: as torças p ro d u ti vas, o estágio atingido por elas, as relações de produção e a harm onia ou desarm o nia entre o estágio de evolução das forças produtivas e as relações de produção vigentes. Se há uma desarm onia, pode-se apresentar um projeto social com o uma superação dessa contradição. Isso, no entanto, depende de m uitas hipóteses que são questionáveis. É suficiente legitimar a idéia de um projeto social ou político qual quer, se se derivar esse projeto das exigências m orais que são dadas com a nossa linguagem, com a nossa existência. () m arxism o viveu várias crises em diferentes épocas. Viveu uma grande cri se, depois da Primeira G uerra M undial, quando ficou claro que a hum anidade não cam inhava em direção ao socialismo. Isso teve várias repercussões. Uma delas foi um a form a de socialismo ético. E propugnado por quem? Por filósofos kantianos. [Karl] V orländer, por exem plo, um grande editor de obras kantianas, se identifica va com o um socialista de tradição m arxista. A ética deveria fornecer os fundam en tos do m arxism o. Isso é interessante.
Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos como riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em larga escala e alienação cultural em massa. Como o senhor vê tais pro blemas? N ão tenho uma visão própria sobre isso, mas creio que pode ser tratada adequa dam ente no quadro das idéias de H aberm as sobre a “ lógica da reprodução da so ciedade” . D iferentem ente de M arx, H aberm as a vê procedendo em dois planos: o plano da razão instrum ental e o plano da razão com unicativa. Expondo sua visão dessa “ lógica” em seu livro sobre a reconstrução do materialism o histórico, H aber mas m ostra com o a lógica de uma razão instrum ental deixada a si mesma é perver sa, no sentido de que, ao mesmo tem po que provê os meios para a solução de p ro blemas dados, gera inevitavelmente com as soluções encontradas outros problemas. É um tan to desanim ador pensar que esses efeitos, por estarem inscritos em uma “ ló gica” , são inevitáveis. .VIas, por outro lado, isso só ocorre porque o espaço da ra zão prática é restringido em proveito do espaço da razão técnica. E, por isso mes m o, é razoável esperar que o desenvolvim ento da sociedade no plano da razão p rá tica e com unicativa consiga desarm ar esse m ecanismo perverso da lógica da razão instrum ental e que encontrem os soluções duradouras para esses problemas. A mag nitude dos problem as m encionados na pergunta tem um efeito desanim ador, nós nos sentimos inermes e indefesos diante de problem as que parecem escapar ao con trole. M as o grau de consciência desses problem as tam bém aum entou considera velmente, e isso impede a resignação.
G u id o A n tô n io de .Almeida
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Principais publicações: 1972
“Hitm” und "Inhalt” in der genetischen Phänomenologie E. Husserls (M. Nijhoff);
1980 1986 1994 1999
Filosofia da linguagem e lógica (co-autor) (São Paulo: Loyola); “V erdade e objetividade. N ovas considerações sobre a ‘Teoria Consensual’ de J. H ab erm as” , Revista Filosófica Brasileira, vol. Ill, n° 1; “Consciência de si e conhecim ento objetivo na D edução Transcendental de I. K a n t”, Analytica, vol. 1, n° 1; “ C rítica, dedução e facto da ra z ã o ” , Analytica, vol. 4, n" 1.
Bibliografia de referência da entrevista: Aristóteles. Organon, Lisboa: Guim arães. Engels, F. D o socialismo utópico ao socialismo científico. Perspectiva. H aberm as, J. Conhecimento e Interesse, Jorge Z ah ar Editores. __________ . Técnica e ciência como ideologia, Lisboa: Edições 70. __________ . Consciência moral e agir comunicativo. Tem po Brasileiro. __________ . Teoria de la acción comunicativa, M adri: Catedra. H orkheim er, M . e A dorno, Th. Dialética do Esclarecimento, ]orge Z ah ar Editores. Husserl, E. Investigações lógicas, coleção Os Pensadores, Abril C ultural. __________ . Meditações cartesianas. Porto: Res. K ant, I. Crítica da razão pura, coleção Os Pensadores, Abril C ultural. __________ . Crítica da razão prática, Lisboa: Edições 70. __________ . Crítica da faculdade do juízo. Forense Universitária. __________ . Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, Brasiliense. M arechal, J. Le point de départ de la métaphysique, Bruxelas: Ed. Universelle. T ugendhat, E. Lições sobre ética, Vozes. __________ . Propedêutica lógico-semântica, Vozes. W ittgenstein, L. Tractatus logico-philosophicus, Edusp. __________ . Investigações filosóficas, coleção Os Pensadores, Abril C ultural.
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RAUL LANDLM FILH O (1939)
Raul Landim Filho nasceu no Rio de Janeiro (RJ), cm 1939. G raduou-se em Filosofia pela Faculdade N. S. M edianeira (RJ) e obteve o título de d o u to r em Filo sofia pela Universidade Católica de Louvain (Bélgica). É professor titular de Filo sofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Esta entrevista foi realizada em janeiro de 2000.
Goethe dividiu a vida de seu personagem W ilhelm M eister em dois romances, Os anos de aprendizagem e O s anos de peregrinação. No primeiro, o foco está posto na formação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que você nos falasse de sua fonnação intelectual? Fico um pouco constrangido de falar a respeito da minha form ação. Em todo caso, não acho interessante analisar uma concepção filosófica a partir da biografia do seu au to r. O m étodo estrutural de análise de texto, por exem plo, elucida uma tese ou uma obra filosófica abstraindo-se das condições externas de produção da obra. Nesse caso, o que im porta é a reconstrução imanente da lógica do texto. |M artial) Guéroult escreveu livros magníficos sobre Descartes e Espinosa utilizando esse m étodo. É bem verdade que outros métodos de análise procuram elucidar uma tese filosófica a partir das influências históricas do seu autor. Etienne Gilson fez isso m agistralm ente nos seus estudos sobre Descartes. Então pergunto: qual o sentido dessa questão que vocês me fazem? Vocês estão interessados na filosofia dos filósofos ou na vida deles? Entendo que vocês devem estar achando, indiretam ente, que aquilo que as pessoas pensam depende da form ação que tiveram . T ran sp o n d o essa concepção para a análise de texto, vocês adotariam uma posição em que a tese de um filósofo depen deria da influência que teve, dos estudos que fez, da sua form ação etc.
Uma das questões básicas do projeto é a seguinte: a filosofia no Brasil não é algo óbvio, é algo institucionalmente muito recente, e é preciso contar essa história... Estou de acordo com o fato de que a filosofia no Brasil é institucionalm ente recen te. Aliás, ela é recente e incipiente. N ão fiz aquelas considerações para me furtar a responder à questão colocada, mas desde logo assinalo que m inha sim patia m eto dológica vai mais em direção ao m étodo guéroultiano do que ao método gilsoniano. Em todo o caso, respondo ã questão de vocês da seguinte m aneira: fui form ado b a sicam ente pelo padre [H enrique C. de Lima] Vaz. N aquela época o curso de filoso fia da PUC era bastante medíocre. O curso da Faculdade Nacional de Filosofia (atual
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IFCS [Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ|) era dom inado seja por [Ál varo] Vieira Pinto, um professor m arxista com petente e brilhante, seja por uns pro fessores tom istas sem grande brilho, que pareciam prezar mais a ortodoxia tom ista do que a verdade. Então, para ter uma boa form ação, a única saída que tive foi ir para Friburgo, escolasticado dos jesuítas. Fui com o estudante leigo. Hoje, com maior distância, valorizo m uito mais esse curso do que quando era estudante. Ele era bastante sistemático, sólido e rigoroso, em bora talvez fosse um “pouco” dogmático. Era, com o todos os cursos destinados prioritariam ente à form ação filosófica de futuros padres, restrito ao m étodo e à doutrina de S. Tom ás, m odelo, portanto, de uma form ação tipicam ente escolástico-tom ista. C om parado com os cursos atuais, pode ser considerado um excelente curso de filosofia tom ista, tão rigoroso quanto o de Louvain. M as, ao contrário do de Louvain, o curso sofria das limitações de um ensino escolástico centrado exclusivam ente na filosofia de S. Tom ás. As aulas do padre Vaz eram um a exceção, porque, além da filosofia tom ista, elas nos ensi navam filosofia. O curso era estruturado da seguinte forma: durante três anos eram estudadas cem teses tom istas que versavam sobre questões de ontologia, de teoria do conhe cim ento, de antropologia, de ética e de cosm ologia. Essas teses eram ensinadas se gundo o m étodo medieval de exposição e de dem onstração de teses filosóficas. Os term os das teses eram definidos, em seguida eram citados os seus adversários (digase, de uma m aneira vaga e simplista), provava-se, então, a tese com o conclusão de um ou vários silogismos e, finalm ente, eram refutados os adversários da tese. Vaz nos seus cursos incorporava esse m étodo a um m étodo pessoal que continha duas partes: a indução histórica e a redução crítica. Pela indução histórica era estudada a gênese histórica de cada uma das teses analisadas; pela redução crítica eram exa m inadas e criticadas as diversas posições dos diferentes filósofos que tinham ab o r dado a questão. O m étodo do padre Vaz de fato adaptava o m étodo medieval às exigências do ensino contem porâneo. Xessa época, ele foi vítima de m uitas incompreensões. Essas incompreensões acabaram por obrigá-lo a sair de Friburgo e a se transferir para a UFMG. D urante esses anos de estudo sempre me recordo com saudade e alegria das conversas que tive com o padre Vaz. Aproveitei dessa convivência não só do ponto de vista filosófico, mas tam bém do ponto de vista pessoal. Graças à sua orienta ção, tomei conhecim ento da boa literatura neotom ista, como tam bém me iniciei nas leituras de Descartes e de K ant, leituras sempre acom panhadas do estudo de intér pretes do nível de G uéroult. Com o foi a sua decisão de fazer filosofia? É extrem am ente difícil falar sobre isso. T rata-se de um a m otivação pessoal, subje tiva. Venho de uma família tradicional católica. Por volta dos 16 anos comecei a ler M arx e fiquei, com o era de se esperar, m uito entusiasm ado. O riundo de uma família católica praticante, que não fazia concessões às conveniências do cotidia no, estudando num bom colégio católico tradicional, senti-me um pouco solitário. N o final do meu curso secundário, Vaz publicou um brilhante artigo, “ M arxism o e Filosofia” , na revista Síntese. M al com preendi esse artigo, não tinha com petên-
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R a u l L an d im F ilho: “ D o m eu p o n to de v ista, a m e lh o r m a n e ira d e fazer filosofia é a n a lis a r as q u e stõ e s filo só ficas a tra v é s de um m é to d o de an álise h istó ric o -c o n c e itu a l. U m a q u e s tã o filo só fica, g e ra lm e n te tem um ‘e n ra iz a m e n to h is tó ric o ’, isto é, ela (ou a lg u m a o u tra q u e s tã o co n e x a a ela) foi te m a tiz a d a p o r um te x to , clássico ou c o n te m p o r â n e o ” .
cia para isso, mas intuí que era de excelente qualidade. Procurei o padre Vaz em Friburgo e comecei a ter conversas filosóficas com ele. Só agora posso avaliar a sua generosidade em conversar repetidam ente com um estudante que tinha todos os defeitos característicos de sua idade, sobretudo a pretensão juvenil aliada a uma enorm e ignorância filosófica. Os contatos que tenho hoje com padre Vaz são mais esparsos. M as a adm iração pela sua excepcional qualidade hum ana e intelectual con tinua a mesma. Por que fui fazer filosofia? Talvez tenha sido por causa desse con flito entre a m inha form ação tradicional católica e o encanto juvenil pelo m arxis mo. Sentia necessidade de avaliar claramente minhas convicções cristãs e a concepção m arxista. Progressivamente, sob a orientação do padre Vaz, fui me dedicando mais sistem aticam ente ao estudo da filosofia, ao estudo de M arx, de S. Tom ás, ã leitura dos neotom istas e de alguns clássicos da filosofia. D ata dessa época a leitura de um livro que me envolveu definitivam ente com o estudo da filosofia e que delim itou um horizonte de problem as que me interes sam até hoje. Trata-se do livro de M aréchal, Le point de départ de la métaphysique. Ele foi um a espécie de fio condutor de meus estudos. M aréchal, em cinco volumes, estuda a questão do conhecim ento sob o p onto de vista das relações entre sensibi lidade e entendimento. O segundo volume dessa obra analisa as teses do racionalismo cartesiano e do em pirism o. O terceiro volume é um estudo da Crítica da razão pura de Kant. O quinto volume consiste numa reinterpretação da teoria do conhecimento de S. Tom ás ã luz de Kant. A tese central do quinto volume consiste em m ostrar que S. Tom ás e K ant têm posições próxim as sob certos aspectos, com o, por exem plo, a distinção entre sensi bilidade e entendim ento, sobre a função do conceito como unidade do múltiplo dado na sensibilidade e organizado parcialm ente pela im aginação, mas têm tam bém po sições divergentes no que concerne ã teoria do juízo. Segundo M aréchal, em Kant só pode ser afirm ado, objetivado, o que é representado, enquanto que, em S. Tom ás, a afirm ação judicativa supõe, mas transcende o ato representativo. .A teoria do juízo de K ant ficou, assim, presa ã noção de representação: só é afirm ado o que pode ser representado conceitualmente. Como todo conceito só tem validade objetiva na medida em que organiza o m últiplo em pírico, toda afirm ação judicativa é um conhecim en to do m úhiplo unificado conceitualm ente. M aréchal procura m ostrar que o ato judicativo (na perspectiva tomásica) é constituído por dois elementos: a afirm ação c a representação do múltiplo organizado conceitualm ente. O ra, as condições de possi bilidade da afirm ação não se identificam com as condições da representação. Assim, os limites da representação não são os mesmos que os da afirm ação. P ortanto, seria correto sustentar a tese de que no juízo pode-se afirm ar mais do que se representa.
Você teve uma participação decisiva na redação do documento base da Ação Popular. Como você avalia hoje a experiência da AP? Participei da elaboração de um longo manife.sto, conhecido como manifesto da PUCRJ, quando Aldo .Arantes era o presidente do D iretório Central dos Estudantes. M ostrei esse m anifesto ao padre Vaz, que sugeriu algumas modificações im ediata mente incorporadas ao te.xto. G ustavo C orção e alguns m em bros do C entro Dom Vital, que naquela época repetiam sem originalidade as idéias do filósofo tomista
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Jacques M aritain, criticaram violentam ente pelos jornais o manifesto, acusando-o de m arxista. Essa acusação teve um grande im pacto. C om o as idéias do m anifesto exprim iam concepções não estritam ente tom istas do hom em , da história e da socie dade, o que não era tom ista nem conservador, só poderia ser m arxista, segundo um raciocínio simplista. Vaz publicam ente tom ou a defesa do m anifesto, justificandoo a partir de um quadro conceituai ignorado pelos tom istas do C entro Dom Vital. Esse m anifesto esteve na origem da fundação da AP e serviu de base para um m a nifesto posterior que m arca propriam ente a fundação da AP e que foi elaborado por alguns dos autores do manifesto da PUC. A AP, na sua fase inicial, foi um m ovim ento politico-cultural com uma forte inspiração cristã. Os impasses da JUC [[uventude Universitária Católica] (movimento universitário católico sob a orientação dos bispos) aliados ao fato de que o “pen sam ento social cristão ” no Brasil quase sempre assumiu uma forma conservadora tornaram necessária a fundação da AP, m ovim ento inspirado inicialmente no per sonalism o de E. M ounier e que pretendia ser uma alternativa filosófico-política aos m ovim entos m arxistas.
Betinho devia ser uns quatro anos mais velho que você. Ele tinha uma influência grande sobre a sua geração? Com o estudante de filosofia, as pessoas que mais me influenciavam eram certamente as pessoas que faziam filosofia. Betinho era um líder carism ático e não um inter locutor filosófico. A liderança do “ teólogo” Luiz Alberto Gomes de Souza talvez fosse mais m arcante. Algumas das idéias do Betinho na época da fundação da AP, com o as “categorias” inventadas por ele de “pólo dom inante” e “pólo dom inado”, tinham um efeito aglutinador em política, mas certam ente não eram m uito convin centes do ponto de vista da filosofia ou da teologia da história. Com idéias simples e com o seu incontestável carism a, Betinho convencia m uitas pessoas que não se interessavam por especulações filosóficas. De fato, a AP sem a liderança de Betinho, de Aldo A rantes e de Luiz .Alberto não teria sido fundada. Os rum os posteriores que a AP tom ou fazem parte de um a outra história da qual não participei, mas que certam ente foi uma história de coragem e de idealismo.
A sua saída do Brasil foi por motivos políticos? N ão. Eu deveria ter ido antes para a Europa. M as com o nascim ento do meu filho em 1965 e, posteriorm ente, da m inha filha em 1966, só fui para Louvain no início de 1967. Escolhi Louvain em razão da influência que tivera sobre mim o livro do padre M aréchal e do projeto da “escola” de Louvain, que pretendia estabelecer um diálogo com a filosofia contem porânea a partir do quadro conceituai tom ista. Lou vain, em vez de repetir m onotonam ente teses da “o rto d o x ia ” tom ista, com o pare cia fazer a Universidade G regoriana de R om a, estimulava a pesquisa sobre temas e autores contem porâneos. G raças aos cursos de J. Ladrière e de J. D opp, comecei a 1er W ittgenstein, a me interessar pela filosofia analítica e pela lógica m atem ática. Assistia tam bém com entusiasm o aos cursos de S. .Mansion sobre Aristóteles, que conhecia som ente através das interpretações de S. Tomás.
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Como o m ilitante católico de esquerda dos anos 1960 resolveu estudar lógica? De fato, é difícil traçar um itinerário intelectual. Ele é feito de acasos, determ inado por circunstâncias. O meu interesse pela lógica e pela filosofia analítica não pode ser descrito através de um nexo que liga necessariam ente certas premissas a certas conclusões. De fato, os cursos de J. Ladrière sobre lógica e sobre filosofia da lógi ca, as teses kantianas sobre a natureza e os limites do discurso filosófico, a questão sobre a objetividade do conhecim ento e a do conhecim ento filosófico despertaram o meu interesse sobre as teses de W ittgenstein e de C arnap. Além disso, a leitura atenta da Crítica da razão pura (ainda no Brasil) tornou plausíveis para mim algu mas das teses da filosofia analítica (que vim a conhecer em Louvain) sobre a n a tu reza do conhecim ento filosófico. K ant tem um a concepção sem elhante à concep ção analítica da filosofia no sentido de que o conhecim ento filosófico não é um conhecim ento de objetos (coisas ou eventos), mas é um conhecim ento de regras ou de princípios que tornam possível o conhecim ento de objetos, isto é, a filosofia é um conhecim ento racional por conceitos. E os conceitos (filosóficos) perm item for m ular regras (princípios) de identificação de objetos. Por mais estranho que possa parecer, o Tractatus logico-philosophicus de W ittgenstein, que não tem qualquer vinculação histórica com a Crítica, retom a uma tem ática análoga à tem ática kanti ana ao introduzir a distinção entre mostrar e dizer, entre esclarecim ento conceitu ai, efetuado por um a análise (lógica) da linguagem, e conhecim ento de fatos. Face ao meu interesse por W ittgenstein e pela filosofia analítica, deixei de lado o projeto inicial de fazer uma tese, inspirada em M aréchal, sobre o confronto entre a crítica metafísica e a crítica transcendental na explicação do conhecim ento obje tivo. Fui, então, estudar Lógica para poder me aprofundar na obra de W ittgenstein. Esse estudo da Lógica deveria ser apenas um rito de iniciação, uma mera passagem, pois achava que não com preenderia bem W ittgenstein e a corrente neopositivista se não tivesse uma boa iniciação em Lógica. Acabei escrevendo uma tese de Lógi ca. N ão sei “ se ganhei ou perdi meu d ia ” com essa tese. M as quando me doutorei, desisti de me dedicar à Lógica e retornei ao estudo da filosofia, em especial, da fi losofia de W ittgenstein e da filosofia analítica.
Por isso você não publicou a sua tese no Brasil? Q uando retornei ao Brasil, com o já disse, a Lógica não era mais o tem a central dos meus estudos. Uma form ação em lógica certam ente contribui para o rigor argum entativo e conceituai, para dissipar as ilusões retóricas escondidas na linguagem e, sobretudo, para o acesso a certos gêneros de filosofia contem porânea. Mas a lógica não é um a disciplina filosófica. Ela é um a disciplina m atem ática. E como m uitas das disciplinas m atem áticas, ela suscita questões filosóficas relevantes. Daí o seu interesse para a filosofia, daí a relevância da filosofia da lógica. £ a volta para o Brasil? V oltando ao Brasil, fui ser professor de Lógica e de Filosofia da Linguagem na PUCR J. Dedicava-m e essencialmente ao estudo de W ittgenstein e da filosofia analítica. M as houve um fato que m arcou esse meu retorno ao Brasil. Fui convidado pela
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direção da PUC para ser diretor do D epartam ento de Filosofia. Aceitei. Dois anos depois, fui expulso da PUC pelo mesmo reitor que me convidara para aquele cargo sob a alegação de que a m inha orientação filosófica não era compatível com os princípios de uma universidade católica. Obviamente, achei injusta e infam ante essa alegação. M as a solidariedade pública que recebi dos meus antigos professores que m arcaram a m inha form ação, padre V'az e J. Ladrière, ofusca a ofensa que recebi da reitoria da PUC. Saindo dessa universidade, fui para o IFCS, graças ao convite de O linto Pegoraro. Nessa instituição laica e pública, pude com liberdade continuar o meu pro jeto filosófico; o de subm eter os problem as clássicos da filosofia aos m étodos de análise lógico-lingüísticos. M as ISSO não foi padre Vaz quetn trouxe? N ão. C om o vocês sabem , o padre Vaz, sem ser hegeliano. dá nos seus trabalhos uma grande relevância à filosofia de Fiegel. O ra, historicamente, graças a B. Russell. que está na origem do m ovim ento analítico, a filosofia concebida com o análise conceituai com eçou com o uma alternativa e com o uma oposição ao hegelianismo de Bradley. .Assim, o m ovim ento analítico desde o seu início se situa nas antípodas do hegelianismo, ao menos do hegelianismo de Bradley. .Além disso, o Tractatus e a sua interpretação neopositivista pretendem m ostrar a impossibilidade de um dis curso metafísico e elucidar questões filosóficas através da análise da linguagem, parecendo reduzir a filosofia a uma teoria geral e formal da linguagem. O e io que o padre Vaz rejeita todas essas teses analíticas e os seus trabalhos parecem não apreciar os esclarecim entos filosóficos oriundos dessa concepção filosófica. O padre Vaz não foi, po rtan to , responsável pelo meu interesse pela filosofia analítica.
Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Como você vê as re lações entre a filosofia e a cultura brasileira? Fu não sei o que seria uma “ filosofia brasileira” . Classifica-se uma filosofia em razão da nacionalidade do filósofo? .Vias a nacionalidade pode determ inar a filosofia? O que seria a filosofia francesa? Quem a caracterizaria? Descartes ou Pascal? Espinosa caracterizaria a filosofia portuguesa, a espanhola ou a holandesa? De fato, talvez haja “estilos” diferentes de abordar questões filosóficas; por exemplo, o volume sobre História da filosofia mediei>ai organizado por Kretzmann, Kenny e P inborge publicado por Cam bridge, exprime em H istória da Filosofia um pretenso “estilo” anglo-saxônico. O fio condutor do volume é a lógica medieval. É através dela que são abordadas as questões tradicionais da filosofia medieval. N es se sentido, essa abordagem co ntrasta com os trabalhos tradicionais, com o, por exem plo, os da escola de E. Gilson. É bem verdade que os textos dos historiadores franceses contem porâneos de filosofia medieval com o De Libera e Biard se aproxi mam mais do estilo anglo-saxão do que do estilo tradicional. Os estudos anglo-saxões sobre Descartes e sobre Kant, m uito em voga atu al mente, contrastam tam bém com alguns estudos continentais desses autores. O ob jetivo da abordagem anglo-saxônica é o de reconstruir a argum entação do texto avaliando a coerência e a validade das teses apresentadas. Raram ente esses estudos
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são m eram ente descritivos ou eruditos. As influências históricas, o contexto dc produção do texto não são considerados com o elementos essenciais para a com preensão das teses do autor estudado. Além disso, a reconstrução da lógica argum entativa do texto não impede que sejam introduzidos instrum entos e categorias externos à teoria do au to r estudado. F.ssa reconstrução da lógica perm ite um a to m ada de posição do historiador (e do leitor), isto é, perm ite uma avaliação das te ses do a u to r estudado. Um historiador da filosofia anglo-saxônico pretende ser tam bém um filósofo. Ciuéroult certam ente se oporia a essa concepção. Ele distin guia claram ente a função do historiador da filosofia da do filósofo. A pretensão do seu m étodo, que é um m étodo de historiador da filosofia, seria a de reconstruir o sentido do texto pela análise da sua estrutura argum entativa. Tal com o os historia dores anglo-saxões, nem a erudição histórica nem o contexto de produção do tex to são relevantes para a com preensão da obra do autor estudado. .Vlas em G uéroult, a reconstrução da lógica argum entativa deve ser im anente ao próprio texto. Por tan to , nenhum instrum ento conceituai estranho ao próprio texto estudado pode contribuir para o seu esclarecim ento, pois o m étodo estrutural visa explicitar o sen tido de uma obra filosófica levando apenas em consideração os conceitos, as teses e a form a da argum entação im anente ã própria obra. Essas diferenças de abordagem ou de “estilo” são significativas, mas pare cem depender das concepções sobre a natureza da filosofia, que justificariam , em últim a análise, a validade desses “estilos” . Uma diferença de “estilo” parece, as sim, exprim ir uma diferença de concepção filosófica. E a validade de uma con cepção só pode ser legitim ada de uma m aneira universal, já que ela tem uma pre tensão ã universalidade. D onde, não me parece ter sentido falar de filosofias regi onais (brasileira, francesa etc.) a m enos que seja para situar a nacionalidade do au to r de um texto.
No livro em homenagem aos seus 60 anos. Verdade conhecimento e ação, os editores sublinharam, no prefácio, que “mais de uma geração de professores e pesquisadores em nossa área, inclusive os organizadores dessa justa homenagem, formou-se num ambiente acadêmico cuja ins tauração foi fruto de um lento e laborioso processo, que deve ser co nhecido caso se deseje prosseguir nessa direção. Dessa história, Guido Antônio de Almeida e Raul Landim Filho são personagens decisivos, e sua contribuição merece ser devidamente divulgada e celebrada”. Como você vê o processo de instalação do estudo acadêmico e da pesquisa em filosofia no Brasil? Foram os meus ex-alunos que escreveram isso e eles têm uma certa sim patia por mim. A m aioria dos meus alunos briga comigo e não term ina, sob a m inha orien tação, o m estrado ou o douto rad o . Os alunos que organizaram esse livro resisti ram ao meu mau hum or e conseguiram chegar até ao fim dos seus estudos. São agora professores dc filosofia. .Vlas sobre a questão da institucionalização eu pergunto: com o é que se deve pensar a estrutura de um curso de filosofia? C-omo um profes sor deve ensinar filosofia? H á uma polêmica, que julgo estéril, entre fazer filosofia e fazer história da filosofia. Ela é uma polêmica estéril, em bora seja real. G uéroult
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dizia que, enquanto historiador, não fazia filosofia, mas história da filosofia, com o se fosse possível fazer história da filosofia sem fazer filosofia. Um amigo, professor de filosofia na França, contou-m e que Searle na F.cole N ational Supérieure, rue d ’Ulm, Paris, disse: “A ristóteles nunca leu .'Aristóteles. Por que precisamos ler Aris tóteles?” . Cria-se, assim, uma polêmica, pois quem se dedicasse à história da filosofia, não faria filosofia e quem fizesse filosofia, desconheceria história da filosofia. Do meu ponto de vista, a melhor m aneira de fazer filosofia é analisar as ques tões filosóficas através de um m étodo de análise histórico-conceitual. Uma ques tão filosófica, geralm ente tem um “enraizam ento histórico” , isto é, ela (ou alguma outra questão cone.xa a ela) foi tem atizada por um texto, clássico ou contem porâ neo. R econstruir a lógica argum entativa do texto, que analisou a questão com o objetivo de clarificar não só a sua estrutura argum entativa, com o tam bém a ques tão ab o rd ad a, é o prim eiro m om ento da análise que denom ino de histórico-con ceitual. C om o o objetivo principal é usar o texto para elucidar a questão, é legíti mo explicitar, acrescentar, corrigir a lógica do próprio texto. Por isso mesmo, é le gítimo questionar, tem atizar e avaliar a elucidação que o texto deu ã questão se gundo a sua estrutura original. .Vias, se isso é legítimo, a reconstrução da lógica argum entativa do texto exige uma nova clarificação da questão que, de um lado deve levar em consideração as limitações da análise original e de outro lado, deve form ular um novo quadro conceituai tendo em vista as limitações da análise inicial. Você vê isso hoje instalado no Brasil? Pelo m enos o grupo com o qual tenho afinidade (Balthazar Barbosa, G uido de Almeida, Luiz H enrique [Lopes dos Santos] e outros) com partilha comigo dessa m aneira de fazer filosofia.
Para que um grupo como esse possa funcionar é preciso que haja algu mas condições materiais para a institucionalização da filosofia. Você participou da construção do curso de pós-graduação, da assessoria da CAPES etc. Como você vê esse processo de institucionalização da filo sofia no Brasil? Ao reto rn ar ao Brasil em 1977, o prim eiro grupo de filosofia do qual participei foi a SEAF [Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas]. N aquela época, os grupos nacionais de filosofia eram o Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF), a Sociedade de Filósofos Católicos e finalmente a SEAF, fundada por O linto Pegoraro. A SEAF era naquele tem po de ditadura um espaço de liberdade para discussão e debate filosó fico. D aí a sua im portância filosófica e política. Term inada a ditadura, pensam os em criar um grupo filosófico que tivesse com o único critério de adm issão a “quali dade" filosófica. Desse grupo faziam parte alguns professores do C entro de Lógica e Epistemologia (CLE) da Unicam p e alguns poucos professores do Rio de Janeiro. N ão seria relevante para a participação nesse grupo nem a “escola filosófica” nem o “estilo” , mas tão som ente a “qualidade” . A SEAF não preenchia nem queria pre encher esse critério. De fato, é m uito difícil form ular objetivam ente o critério de qualidade; ele pode ser usado para exprim ir preconceitos de “escola” , de ideologia etc. Em con trap artid a, havia no Brasil um centro de reconhecida qualidade filosó
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fica: o C entro de Lógica e de Epistemologia (CLE) da Unicamp, fundado e dirigido por O. Porchat. Esse C entro nos servia de modelo. Ele teve uma enorm e influência no desenvolvim ento da filosofia no Brasil. C ontratando professores com petentes (por exemplo, [José Arthur] G iannotti, [Gérard] Lebrun, Balthazar etc.) prom ovendo colóquios, publicando revistas, criando um clima de debate e de discussão, Porchat com o CLE deu uma contribuição decisiva para o desenvolvimento da qualidade da filosofia no Brasil. Pensávam os em fundar uma instituição nacional de filosofia segundo o pa drão de qualidade do CLE. Foi fundada a .ANPOF [Associação Nacional de PósG raduação em Filosofia]. .Vias o critério de qualidade apresenta diversas dificulda des. Com o já assinalei, ele exige uma form ulação objetiva. E possível encontrar essa form ulação? Em segundo lugar, a qualidade por definição é m inoritária. O ra, em toda instituição que pretende ser representativa o sábio e o menos sábio têm o mesmo direito. Uma instituição em que a qualidade é o critério básico, dificilmente poderá ser representativa de uma com unidade nacional. .As dificuldades para encontrar um critério objetivo de qualidade e a questão da representatividade torn aram impossível criar um a instituição de âm bito nacio nal que satisfizesse a esses ideais. O ra, a alternativa foi, de um lado, fundar associa ções tem áticas, com o a Sociedade K ant ou a Sociedade Filosófica de Estudos sobre o Século XVII, por outro lado, criar pequenos grupos de pesquisa que tivessem uma hom ogeneidade m etodológica, uma unidade temática e uma exigência de qualida de. Nesse conte.xto, no Rio fundam os há tem pos o grupo de pesquisa Seminário Filosofia da Linguagem (coordenado por mim e pelo G uido de Almeida), respon sável pela publicação da revista Analytica. Esse grupo do Rio se associou a outro grupo de pesquisa da UFRGS, coordenado por Balthazar Barbosa. Cabe, agora, aos “sábios” da com unidade avaliar a qualidade da produção de cada um a dessas as sociações nacionais e desses grupos de pesquisa.
Você é fundador da Associação Nacional de Estudos do Século XVll. Como você avalia essa Associação? Essas associações tem áticas, ao congregarem os especialistas de uma área, contri buirão certam ente para a m elhoria do nível da filosofia no Brasil sem se com pro meterem com o problem ático critério de qualidade. Todos os interessados, em prin cípio, podem participar de suas reuniões; as boas com unicações serão ouvidas com prazer, as de duvidosa qualidade serão ouvidas com paciência.
Quais são, na sua opinião, os filósofos brasileiros mais importantes? Padre Vaz, Porchat, M arilena [Chaui j, G iannotti, Balthazar, Guido e Luiz Flenrique. Com esses três últim os, tenho grande afinidade m etodológica e filosófica. Vocês estão certam ente surpresos pelo fato de não ter incluído padre Vaz na lista dos professores com quem tenho grande afinidade filosófica. H á algum tem po, nos seus m agistrais artigos que abordam as relações entre razão, fé e religião, padre Vaz tem procurado m ostrar que há uma irredutível incom patibilidade entre a razão m oderna, caracterizada pela filosofia cartesiana (e que encontra o seu a p o geu na filosofia de Kant), e a concepção cristã. O Logos cristão seria incompatível
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com o Logos cartesiano. A razão m oderna (cartesiana), razão operatória por exce lência, excluiria qualquer possibilidade de transcendência. As análises do padre Vaz são sempre profundas e qualquer refutação de suas teses exigiria um longo e sutil esforço de argum entação. M as sou obrigado a dizer de uma maneira simples e abrup ta que custo a aceitar a correção dessa tese, exposta por mim aqui dc uma maneira bastante sim plória.
Por que você discorda dessa tese? Confesso que tenho certas dúvidas sobre essa tese, em bora ela seja tão bem argu m entada que chega a me parecer plausível. T rata-se de fato de analisar, segundo a expressão do padre Vaz, as tensões entre as razões da fé e as razões da razão. Descar tes teria iniciado um processo, que culm inou em Kant, de im anentização lógica da Transcendência. Isso cm virtude da razão cartesiana ser uma razão operatória (lógica) que submete o real às suas exigências. Essa razão, embora seja a de um sujeito finito, pretende ser soberana justam ente por subm eter o real às suas exigências operató rias. Em conseqüência, ela prescinde de qualquer relação com a Transcendência. Essa descrição talvez se aplique ao racionalism o espinosista. M as acho pro blem ático aplicá-la à razão prática kantiana e a Descartes. Tenho a im pressão de que Descartes m ostra nas suas obras metafísicas que a razão finita não é capaz de justificar a verdade. Ela necessita da Transcendência para se auto validar. Sem a Veracidade Divina nenhum conhecim ento pode ser considerado justificadam ente verdadeiro. D onde, a razão finita, voltada para si mesma, é condenada ao ceticis mo. M esm o o m atem ático ateu não será capaz de justificar a verdade dos seus teorem as sem a Veracidade Divina.
Q ual é a sua avaliação do último livro de Marilena Chaui, A nervura do real.' O livro da .Marilena alia a erudição, que caracteriza a historiografia continental, a uma fmesse argum entativa que a historiografia continental nem sempre tem. C om parando-o com os livros recentemente publicados sobre Espinosa como os de M oreau e de .Vlacherey, afirm o, sem hesitação, que o livro de M arilena é certam ente um dos melhores livros sobre Espinosa publicados nesse final de século. .Aliás, os estudos espinosistas no Brasil são de excelente qualidade tan to do ponto de vista do conhe cim ento histórico quanto do ponto de vista da análise filosófica. Além do livro da M arilena, o de Lia Levy e o de M arcos Gleizer com provam essa minha afirm ação.
Como caracteriza a sua relação com Espinosa? N enhum a filosofia mais do que a de Espinosa merece o epíteto de sistema. O siste ma é dem onstrado (e não apenas exposto como a Exposição geométrica de Des cartes) segundo um m étodo dedutivo. Ele contém uma ontologia, uma teoria do conhecim ento, um a ética, um a filosofia política etc. As questões filosóficas são analisadas de uma m aneira prim orosa, segundo um rigor argum entativo e uma precisão conceituai raram ente encontrados em outros textos. C onsiderado como um cartesiano, Espinosa, no entanto, subverte as intuições que fizeram de Descar tes o iniciador de uma nova m aneira de fazer filosofia. A prioridade da “crítica”
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do conhecim ento sobre as o utras questões filosóficas, que passam a depender do esclarecim ento prévio dessa questão inicial, é rejeitada. Sob esse aspecto, Espinosa é po r excelência um anticartesiano ou, talvez, um pré-cartesiano. O bviam ente, não por não ter com preendido o alcance e a novidade representada pela filosofia carte siana, mas talvez por tê-la com preendido perfeitam ente. C ada dificuldade da filo sofia cartesiana é retom ada por Espinosa em sua filosofia e é solucionada a seu modo. De fato, Espinosa foi um aluno que nenhum mestre gostaria de ter.
Que conceito(s) de sua reflexão você destacaria como o(s) mais representativo(s) da sua produção filosófica? Pediríamos que você nos contas se como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o{s) vê hoje. O conceito de verdade e alguns conceitos a ele conectados com o o conceito de re presentação, de objetividade, de sujeito, de consciência de si, de objeto etc. são os que mais m arcaram a minha pesquisa. O conceito de verdade é um caso exem plar. Ele não é um conceito filosófico, isto é, não foi inventado por uma teoria filosófi ca. Aparece na linguagem ordinária, na com unicação do dia a dia. Cabe ao filóso fo esclarecer o sentido desse conceito e os pressupostos envolvidos na afirm ação cotidiana e banal de que algo é verdadeiro. O esclarecim ento pode se iniciar pela constatação de um a trivialidade: dizer que algo é verdadeiro significa dizer que a realidade é assim e assim. Por exem plo, dizer que “a neve é bran ca” é verdadeiro significa dizer que a neve é branca. Essa trivialidade pode ser explicitada recorren do-se a uma form ulação mais sofisticada: a verdade consiste na adequação ou na correspondência do que é dito (pensado/representado) com a realidade. Assim com preendida, a verdade é uma relação entre dois term os distintos: de um lado, algo é pensado, representado ou enunciado; de o u tro lado, algo é posto com o real. O es clarecim ento inicial da noção de verdade remete assim, desde o seu início, à noção de representação (o que é pensado) ou à noção lingüística do que é dito ou enunciado e à noção de realidade visada (por um sujeito), po rtanto, à noção de objeto. Repre sentação (enunciado), sujeito e objeto estão, p o rtan to , envolvidos na clarificação inicial do conceito de verdade. É, então, necessário esclarecer o significado desses term os. Se o sentido deles é elucidado, a questão central sobre a verdade, implícita na afirm ação banal de que algo é verdadeiro, passa a ter um significado preciso: com o e por que é possível exprim ir na linguagem ou no pensam ento aquilo que ocorre na realidade? Com o é possível saber que algo é verdadeiro? Essas questões triviais são tão antigas q uanto é antigo o discurso filosófico. M as, a questão da verdade é um m odelo de problem a filosófico, pois o filósofo não a inventa, mas procura apenas esclarecer o que é espontaneam ente afirm ado. O esclarecim ento inicial rem eterá certam ente à elucidação de novos termos. M as os sucessivos esclarecim entos perm item ab o rd ar, de um a m aneira precisa, a questão sobre a pretensão ingênua e espontânea de que som os capazes de representar ou de descrever corretam ente o real, isto é, de que som os capazes de dizer a verdade. O que devemos supor ou aceitar com o correto para justificar essa nossa pretensão ã verdade? N ão é necessário repetir que, se a questão da verdade foi o objeto de tantos anos de estudo, S. Tom ás, Descartes, Espinosa, Kant e W ittgenstein, para citar apenas
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os clássicos, foram os autores que mais freqi.ientei. Com o já assinalei, segundo o m étodo que denom inei de histórico-conceitual, o estudo da lógica argum entativa de um texto é o prim eiro m om ento da elucidação de uma questão filosófica. Cada um desses autores pretendeu responder à questão: qual é o significado do term o verdade? Por que é legítima a nossa pretensão de conhecimento? A teoria de cada um deles pretende ser, ao mesmo tem po, um esclarecim ento e uma justificação da crença de que podem os saber que o que pensam os ou dizemos é verdadeiro. É cla ro que todos esses esclarecim entos e justificações se desenvolvem no âm bito de um sistema conceituai que delimita o cam po do próprio esclarecimento. Tem atizar es ses pressupostos, alterando-os ou estendendo-os, evidenciar os seus limites e os problem as que eles engendram é uma das tarefas do m étodo histórico-conceitual. M as o que está sendo de fato questionado é a legitimidade de nossa crença ingênua de que podem os dizer que algo é verdadeiro. Vocês me perguntam sobre os meus trabalhos atuais. Dedico-me há alguns anos á crítica de Kant a Descartes. M inha interpretação atual das Meditações tem como fio condutor a célebre metáfora cartesiana da árvore da ciência formulada na “CartaPrefácio” à edição francesa dos Princípios. A filosofia primeira cartesiana teria como objetivo justificar o saber hum ano, isto é, procuraria fundar a metafísica, a m ate mática, a física, a m oral e a medicina com o ciências. Assim, a questão genérica sobre a verdade se desdobraria em q u atro questões distintas: (a) É possível uma metafísi ca? (b) É possível a m atem ática? (c) F. possível a física? (d) É possível a moral ou uma ciência do com posto de alm a e corpo? Essas questões foram respondidas pela filosofia prim eira cartesiana. A prova da existência do sujeito pensante e, em se guida, a da existência de Deus perm item validar a metafísica. A prova da existên cia de um Deus veraz legitima o valor objetivo das idéias claras e distintas, o que perm ite validar a m atem ática. A prova da existência dos corpos funda a possibili dade da física com o uma ciência de objetos extensos de fato existentes. A prova da união da alma com o corpo funda a possibilidade da ciência do com posto de alma e corpo. A dem onstração de certos enunciados existenciais garante a legitimidade à pretensão da verdade, isto é, a possibilidade de um saber objetivo. ■A reflexão sobre a questão da verdade conheceu várias peripécias após as Meditações. Ela atinge o seu apogeu na Crítica de Kant. De Descartes, Kant herda apenas a problem ática, mas o m étodo e a filosofia prim eira cartesiana são postos em questão. Três aspectos da crítica kantiana a Descartes me interessaram particular mente. Estes três aspectos têm uma relação m ediata com a teoria cartesiana da ver dade: (a) criticando nos Paralogismos e na Refutação do idealismo a prova cartesiana da existência dos corpos, Kant põe em questão uma das teses centrais de Descartes: a tese da prioridade do conhecim ento de si sobre o conhecim ento do m undo obje tivo, o que torna problem ático o m étodo e a própria a fundação do conhecim ento objetivo nas Meditações; (b) em Descartes, a existência efetiva do sujeito pensante desem penha um papel fundam ental na refutação do ceticismo e, portanto, na p ro va de que é possível um conhecim ento verdadeiro. Kant refuta essa tese de Descar tes m ostrando que, se de um lado o eu peuso desempenha um papel determ inante na prova da possibilidade do conhecim ento objetivo, de outro lado, ele e uma mera função formal de unidade e não exprim e nem o conhecim ento de si nem o conheci-
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m ento de um sujeito verdadeiram ente existente; (c) a prova ontológica cartesiana revela a estrutura das provas existenciais nas Meditações. Juízos existenciais são assim ilados na sua estrutura form al a juízos atributivos. O juízo “ Deus existe” te ria a mesma form a lógica do juízo “ Deus é existente” . .Assim, form alm ente a p ro va da proposição Deus existe deve satisfazer às mesmas condições da prova da pro posição “ Deus é onipotente” . A crítica kantiana ao argum ento ontológico põe jus tam ente em questão essa assim ilação dos juízos atributivos aos juízos existenciais. N o quadro geral da análise da questão da verdade, esses são os problem as que me ocupam atualm ente.
Qual é para você a relevância, a importância e a contemporaneidade de Descartes? Acho que Descartes e um filósofo contem porâneo não em razão das soluções a que chegou, mas dos problem as que descobriu. Se do ponto de vista das soluções, a fi losofia pós-cartesiana é, muitas vezes, anticartesiana; do ponto de vista das ques tões levantadas por Descartes, ela é cartesiana.
Os seus textos sohre Descartes não abordam diretamente a problemá tica moral. Como você se posiciona em relação à moral provisória car tesiana? N enhum dos meus textos aborda questões de filosofia moral. Nisso, Descartes é meu mestre, em bora ele tenha tido o projeto de escrever no fim de sua vida um tratado de moral. A morte prem atura impediu que realizasse o seu projeto. Sobre o tema, dei xou-nos apenas a sua “ moral provisória” e o seu im portante “T ratado das Paixões” .
Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade? F. fato que os filósofos m odernos. Descartes, Leibniz, Kant tinham um profundo conhecimento das questões científicas do seu tempo. Pessoalmente, interesso-me pelas relações da lógica contem porânea com a filosofia. C om o e.xemplo dessas relações entre lógica e filosofia, cito a questão da vali dade do “ argum ento ontológico” . A tualm ente, em razão da crítica de Kant a Des cartes, tenho me dedicado ao estudo desse argum ento. De um a maneira genérica, podem os caracterizá-lo com o um argum ento que pretende inferir das notas carac terísticas de um conceito o fato de que esse conceito tem uma instância, isto é, que ele não pode ser vazio. H á, assim, uma prova a priori de existência. Descartes adap tou a prova de S. .Anselmo ao quadro conceituai de sua filosofia. A versão cartesiana foi subm etida a duas críticas célebres: a crítica tom ásica e a crítica kantiana. Ambas se baseiam em últim a análise na distinção entre juízos de existência e juízos atri butivos. O argum ento ontológico tem com o conclusão um juízo de existência ne cessário, isto é, um juízo de existência que não pode ser falso. O que já é proble m ático, pois juízos de existência habitualm ente são juízos contingentes, não-necessários. A crítica tom ásica ao argum ento ontológico baseia-se na distinção entre as noções de ente e de ser (esse) e na distinção entre o ato de apreender uma essência
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através de um conceito e o ato de julgar que algo existe. Essas distinções justificariam a distinção lógica entre juízo atributivo e juízo existencial. A crítica de Kant consiste em m ostrar que juízos existenciais não podem ser juízos necessários. Para justificar essa afirm ação, Kant m ostra que a forma dos juízos existenciais é diferente da forma dos juízos atributivos. E essa afirmação é justificada pela célebre tese de que existência não é um predicado. Assim, segundo Kant, um ateu deve aceitar com o verdadeira a proposição “Deus é onip o ten te", em bora considere falsa a proposição “ Deus existe’'. “ Deus é onipotente” correlaciona o conceito “ Deus” com o conceito “onipo ten te” . Se Deus é pensado. Deus e pensado como onipotente. M as a proposição “ Deus existe”, não correlaciona conceitos, mas correlaciona um conceito com um objeto já dado que é suposto satisfazer o conceito. D onde, a análise do argum ento ontológico, em última instância, remete à análise da estrutura dos juízos existenciais. Q uais são as suposições que devemos fazer para considerar verdadeiras essas proposições: “a mesa é b ran ca” e “a mesa existe” .' Qual a relação entre essas p ro posições.' Tem sentido afirm ar que “ a mesa é branca” , se a mesa não existe? As condições de verdade de um juízo atributivo supõem a existência do que é referido pelo term o-sujeito? A lógica medieval deu grande ênfase à teoria da suposição, isto é, ã teoria que determ inava as condições da referência de um term o num a proposi ção atributiva. A lógica contem porânea tem se dedicado longam ente a esse proble ma. A teoria das descrições de Russell, as reform ulações dessa teoria por Stravvson são um exem plo disso. Quine escreveu um magistral artigo “ Sobre o que h á” , que, sem ab o rd ar a questão do argum ento ontológico, form ula critérios para determ i nar quais são os compromissos ontológicos que uma teoria assume. É bem verda de que a análise de Q uine e de algumas semânticas da lógica m oderna parecem estar com prom etidas com duas teses: a tese que afirm a que (a) o conceito de existência é expresso pelo quantificador existencial; e a tese que afirm a que (b) o operador exis tencial deve ser interpretado objectualm ente (e não substitucionalm ente). Assim, afirm ar que “ x existe” significa afirm ar que um objeto a previam ente dado no do mínio é igual a X . Significa, portanto, dem onstrar que há um .v que é a. Assim, podese falar sobre a existência de objetos, caso esses objetos sejam previam ente dados. Obviamente, essa análise desqualifica a questão colocada pelo argumento ontológico, pois, se o significado do term o “existência” é dado pelo operador existencial, não tem sentido falar de provas a priori ou de provas conceituais de existência. .Vias, a lógica contem porânea não está com prom etida com a interpretação objectual do operador existencial. Assim, a questão sobre a validade do argum ento ontológico ainda não encontrou uma solução definitiva.
Na sua análise, então, o argumento ontológico na formulação de S. Anselmo continua de pé? C ontinua com o um problem a aberto. As críticas de S. T om ás, as de K ant e as de alguns filósofos analíticos m ostram as dificuldades dessa prova. M as, todas essas refutações dependem do q uadro conceituai em que são form uladas. Se a existência só pode ser conhecida pelo ato judicativo, a apreensão conceituai não pode ser uma razão suficiente para a prova de existência de qualquer objeto. M as, a existência só pode ser conhecida pelo ato judicativo? Se existência não é um predicado, tal
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vez o argum ento ontológico não seja válido. M as, existência não é um predicado? N ão sei se é possível m ostrar a inconsistência do argum ento ontológico, mas acho que, se são aceitos certos pressupostos, é possível pôr em questão esse argum ento. A dificuldade consistirá, então, em dem onstrar a correção desses pressupostos. Creio que a análise do argum ento ontológico depende ao menos do esclarecimento de duas questões prévias: (a) o significado do term o “existência” ; (b) a relação entre juízos atributivos e juízos de existência.
Como você caracteriza a sua relação com a religião e a fé? Você está perguntando ao sujeito em pírico ou ao professor de filosofia?
Estamos partindo do princípio de que são a mesma pessoa. [Risos] Estas questões deveriam ser dirigidas ao padre Vaz. Ele tem escrito artigos magis trais sobre essa questão. Isso não quer dizer que concorde com tudo o que ele es creveu. Já assinalei num a pergunta anterior as minhas discordâncias. Registro agora duas obviedades. Em bora não creia que tenha sentido falar dum a “filosofia cristã” no sentido em que Gilson utilizou esse term o, o encontro da cultura grega com o m undo cultural cristão influenciou decisivamente não só a filosofia medieval, como tam bém a filosofia m oderna. N ão creio que este ciclo de influência já tenha se en cerrado, pois a experiência cristã coloca para o homem questões de ordem ontológica e ética que têm que ser esclarecidas. Sem esses esclarecimentos, a experiência h u m ana se tornaria cega e talvez absurda. A outra obviedade que gostaria de regis trar é que a filosofia é obra da razão, exclusivamente da razão. E se houver uma oposição entre as razões da razão e as razões da fé (não digo oposição entre razão e fé, mas entre razões da razão e razões da fé), as razões da fé devem se reordenar segundo as razões da razão.
Você já teve fé? Eis uma questão que a cultura contem porânea considera com o uma questão que concerne à vida privada e não à vida pública. M as não me furto a responder a sua pergunta. Fui católico praticante e convicto. N ão sou mais. Q uando cheguei a Lou vain, os estudantes me diziam: “ aqui todo m undo acredita na Igreja, mas ninguém acredita em D eus” . Eu gostaria de poder afirm ar ao menos a contraposição dessa proposição (irônica) dos estudantes de Louvain. Em todo caso, ao me fazer essa pergunta, recordo-m e de uma frase de D ostoiévski: “ Se Deus não existe, tudo é perm itido” (cito essa frase de m em ória, não sei se ela é textual). E se tudo fosse per m itido, tenho a im pressão que a experiência hum ana seria absurda. Essa afirm ação de Dostoiévski é corroborada por uma tese cartesiana: sem Deus não é possível justifi car o conhecim ento da verdade nem justificar a correção de qualquer ação. Essa tese foi criticada e colocada em questão pelos sucessores de Descartes. N ão sei se ela é verdadeira. M as a tenho sempre presente, ao menos, como uma hipótese plausível.
Como você se situa em relação aos problemas de “uma mudança de paradigma” da filosofia, de uma filosofia “pós-metafísica” calcada na linguagem?
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Nessa sua pergunta estão envolvidos dois conceitos; o conceito de metafísica e o conceito de filosofia lingüística. O ra, os objetos da metafísica, ao menos os da me tafísica cartesiana, eram o sujeito pensante (alma), Deus, e o m undo (os corpos ex tensos realm ente existentes). Hsses objetos se transform am em idéias da razão pura que fazem parte da lógica da ilusão da Dialética Transcendental da Crítica da ra zão pura. É certo que não é mais possível fazer metafísica sem levar em considera ção as análises de Kant. É certo tam bém que a filosofia lingüística, que tem sua origem nos escritos de B. Russell, Frege e W ittgenstein, sendo pós-kantiana parece ser antim etafísica. As distinções do Tractatus entre m ostrar e dizer, entre esclareci m ento e conhecim ento atribuem ao discurso filosófico apenas a função do esclare cim ento lógico da linguagem, o que reforça essa tendência antim etafísica. Sob esse aspecto, as Investigações filosóficas corroboram as teses do Tractatus com outros pressupostos e argum entos. .A questão que pode ser colocada é se há uma incompatibilidade lógico-filósofica entre análise conceituai e metafísica, se se entender por metafísica o conhecim ento de objetos reais não-empíricos. A filosofia crítica de Kant é incompatível com a m eta física racionalista; as teses de W ittgenstein parecem ser incompatíveis com qualquer metafísica. N o entanto, os trabalhos de Strawson e D um m ett, dois eminentes filó sofos analíticos, m ostram que é possível retom ar alguns problemas clássicos da m eta física, com o o problem a da verdade, da individualidade, da identidade pessoal, da causalidade, da liberdade, e analisá-los e esclarecê-los ã luz do método analítico. .Vluitos outros filósofos considerados analíticos retom aram questões metafísicas para elucidálas segundo os m étodos lógico-lingüísticos. Penso, por exemplo, em Geach e Anscombe. M as perm anece ainda a questão: a tese de que a filosofia é análise conceituai e a tese de que a metafísica é um conhecim ento de objetos não-empíricos serão teses compatíveis? É claro que o discurso filosófico supõe uma análise conceituai. Resta saber se, além da análise conceituai, o discurso filosófico pode legitimamente pretender a um conhecimento de objetos. Uma resposta a e.ssa questão exigiria um estudo m inu cioso dos textos de Straw son, D um m ett, Geach etc. e das novas tendências oriundas da própria filosofia analítica, mas que põem em questão os seus principais postulados.
Em seu artigo “Rumos da filosofia analítica: a questão da representa ção e do objeto”, você procura mostrar que a filosofia analítica pertna nece inevitavelmente presa a certas noções da filosofia clássica, como as de representação e objeto. A trajetória de Wittgenstein é apresenta da cotno um itnportante testetnunho de tal situação, no setttido de que o seguttdo Wittgetisteift conseguiria livrar-se de noções cotno essas, ao tttettos indicar o catninho para isso. A tioção de semelhança de fatnília, por exemplo, mencionada por você, teria a virtude de pertnitir “ex plicar a generalidade dos tenttos sem recorrer ã noção de essêttcia cottium: na rede, cada eletttento é semelhante a pelo menos um objeto, tttas netthum eletttento é necessariamente setnelhattte a todos”. Cotno você vê as relações do segundo Wittgenstein cotn a filosofia clássica? Você cita um antigo artigo meu. Nessa época eu tinha o projeto de refletir sobre alguns conceitos da filosofia clássica, com o os conceitos de verdade, representação.
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objeto etc. e de analisá-los do ponto de vista da filosofia lingüística. O conceito de representação me serviu de m odelo, pois é uma noção central do cartesianism o e tam bém da Critica de Kant. M as é tam bém um conceito central do Tractatus em virtude da sua concepção da proposição com o “ figuração” da realidade. N as Inves tigações filosóficas, graças ao conceito de Semelhanças de Família, o conceito de representação não é mais utilizado. A crítica das Investigações consiste em m ostrar que o conceito de representação, mesmo se não está com prom etido com uma an á lise mentalista do conhecim ento (isto é, com uma análise do conhecim ento a partir do conceito de consciência), está com prom etido com uma concepção essencialista, seja ela lingüística (com o a concepção do Tractatus] ou não (como a concepção cartesiana). Para dem onstrar a sua tese, W ittgenstein analisa até o parágrafo 130 (se não me falha a memória) a estrutura da proposição elementar: a função referencial dos term os singulares, a função dos term os gerais, isto é, a função dos predicados etc. A teoria clássica da predicação, com o aquela exposta por Aristóteles no livro Sobre a interpretação retom ada tam bém por S. Tom ás no seu com entário sobre esse livro de Aristóteles, explica a função dos term os gerais pela função do conceito, que representaria uma essência, uma qüididade, abstrata. O enunciado “ Esta mesa é branca” é, então explicado, de uma maneira simples: há uma composição que atribui a uma coisa visada pelo term o sujeito uma propriedade (nesse caso uma qüididade acidental) significada pelo conceito predicado. M as se os termos gerais não represen tam essências, com o se engendra e com o se produz um term o geral? C.'omo é legíti mo atribuir um predicado a um objeto, referido pelo conceito-sujeito, sem supor que esse predicado, enquanto term o geral, representa uma essência abstrata? A noção de Semelhanças de Família responde a essa questão, o que perm ite explicar a pre dicação sem recorrer a uma concepção tradicional da função dos term os gerais. As Investigações fazem uma interessante crítica a algum as das teses clássicas da filosofia. V isando a teoria do Tractatus, elas envolvem na sua crítica m uitos te mas e muitas teses da filosofia clássica. As Investigações têm, sem dúvida, uma função terapêutica. Da célebre análise da linguagem privada pode ser extraída um a pode rosa crítica ã filosofia da consciência cartesiana. Da análise da noção de Regra e de Uso de uma Regra pode tam bém ser extraída um a reavaliação da Analítica dos princípios da Crítica da razão pura. M as as Investigações parecem confinar o dis curso filosófico apenas em uma função terapêutica, excluindo de sua natureza a pos sibilidade de qualquer pretensão construtiva e sistemática. Repensar as Investiga ções a partir de um ponto de vista transcendental poderia ser uma tarefa interes sante para a filosofia analítica contem porânea. Alguns já esboçaram esse projeto, mas ele ainda não encontrou uma form ulação convincente.
Como você avalia a Interpretação de Giannotti em seu livro Apresenta ção do mundo: considerações sobre o pensamento de Ludwig Wittgenstein? Adm iro os textos filosóficos de G iannotti pela sua pretensão, às vezes m uito bem sucedida, de fazer filosofia e não apenas análise estrutural de texto. N o entanto, G iannotti não é um cartesiano. Os seus textos não são claros. E onde não há clareza, a profundidade real da análise pode ser interpretada como confusão conceituai. Podese retorquir que K ant tam bém não era cartesiano. Creio que a filosofia de Kant é o
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fio condutor da interpretação de W ittgenstein apresentada nesse livro. Analisando temas da filosofia de W ittgenstein, G iannotti parece estar dialogando com Kant. Sob esse aspecto, essa interpretação torna W ittgenstein um filósofo bem mais interes sante do que se ele fosse interpretado com o um filósofo que ignora e, por isso mesmo, rom pe com a tradição filosófica. O apêndice do livro, sobre a forma do juízo em Kant. que prolonga a apresentação rápida formulada no primeiro capítulo, é de difícil leitura, em bora seja original e bastante penetrante pelo que pude com preender.
Em nossa conversa, você nos disse que temos condições hoje de pensar com mais clareza os problemas metafísicos devido, por exemplo, aos novos instrumentos lógicos de que dispomos. Nesse sentido, há progresso na filosofia? N ão há dúvida que podem os falar de uma história da m atem ática, de uma história da lógica no sentido de que as teorias (matem áticas ou lógicas) contem porâneas são mais abrangentes do que as teorias anteriores e que problem as abertos ou conside rados indecidíveis encontram soluções nas teorias contem porâneas. H á, dessa m a neira, uma história das ciências. .Mas será que podemos falar de história da filosofia.^
A filosofia não é nem uma monótona repetição de um passado sem presente nem e uma constante invenção de um presente sem passado. De um lado, de uma certa m aneira, todos os filósofos clássicos são contem porâneos, em bora poucos contem porâneos possam ser considerados clássicos. Filósofos clássicos podem ser considerados contem porâneos pelo fato de poderm os utilizar as suas análises para esclarecer uma questão contem porânea. Essa afirmação ainda se justificaria em razão de não poderm os ignorar uma análise clássica sobre uma questão, se quiserm os esclarecê-la, pois poderem os ser levados a colocar chaves em portas arrom badas. Por outro lado, se devemos levar em consideração as análises clássicas e se pode mos e, se até mesmo devemos, incorporar novos instrum entos conceituais a essas análises, é claro que nesse caso pode ser form ulado um novo esclarecimento para uma (antiga) questão. .Além disso, antigas análises podem não ser mais pertinentes tendo em vista os novos instrum entos conceituais. Em princípio, nenhum a análise clássica deve ser ignorada por ser clássica nem, pela mesma razão, nenhum a análi se clássica por ser clássica deve ser utilizada. O que significa então dizer que hoje nós podemos pensar com maior clareza? G ostaria de responder a essa questão a partir de um exem plo que m ostra com o e por que julgo que um a análise histórica contribui para o esclarecimento conceituai de um tema. T om o com o ponto de partida a versão cartesiana do argum ento ontológico. Ela tem o mérito de ser uma questão que foi longam ente analisada na história da filosofia e que parece não ter encontrado até agora uma elucidação satisfatória. Para analisar o argum ento ontológico cartesiano é legítimo, ao menos inicialmente, se abstrair de suas críticas inspiradas quer na filosofia de S. Tom ás quer nas análises de Kant. Nessa etapa inicial, o m étodo estrutural de análise de texto é valioso, pois ele perm ite a reconstrução im anente da prova segundo os pressupostos, os concei-
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tos e os argum entos do próprio texto. A reconstrução im anente do argum ento não elimina as dificuldades da prova, ao co ntrário, ela permite to rn ar explícitas essas dificuldades. Estas talvez pudessem , p o r hipótese, ser resolvidas no contexto do q uadro conceituai cartesiano. Nesse caso, o argum ento seria considerado plausí vel, sob a condição da aceitação de seus pressupostos. M as esses pressupostos po dem ser colocados em questão de um pon to de vista externo ao sistema. Supondo que tenham sido explicitados todos os pressupostos internos necessários ã dem ons tração do argum ento, questões externas ao sistema poderiam , entretanto, problem atizar essa reconstrução im anente. Por exem plo, suponham os que Descartes ti vesse corretam ente deduzido da idéia clara e distinta de Deus (segundo os pressu postos do sistema) a sua existência. Nessa prova. Descartes teria aceitado sem tematizar (como parece afirm ar nas suas Respostas a Gassendi) que a existência é uma das perfeições de Deus, isto é, é um atrib u to ou um predicado. O ra, K ant afirma que a existência não é um predicado. Esse problem a não é um a questão cartesiana, pois Descartes julgava evidente a tese de que a existência é um predicado. M as, a afirm ação kantiana de um pon to de vista externo põe uma dificuldade real para o sistema cartesiano. Gomo co n to rn ar ou responder a essa dificuldade do ponto de vista cartesiano? Se for possível reconstruir a prova sem essa suposição (o que acho pouco provável), fica contornada a dificuldade. Nesse caso, a prova teria sido refor m ulada de tal m aneira que ela responde ã questão kantiana. M as, se isso não for realm ente possível, fica explícito não só que a prova cartesiana depende desse pres suposto, com o tam bém que ela não seria válida caso a existência não fosse um predicado. M as, a existência não é um predicado? Esse problem a tem que ser es clarecido para uma correta avaliação das formulações do argum ento ontológico que têm essa pressuposição. Uma resposta a essa questão poderia ser elaborada a p a r tir, por exem plo, do quadro conceituai kantiano. Q uais seriam as razões kantianas que m ostrariam que a existência não é um predicado? Q uais os pressupostos do argum ento kantiano? O mesmo m étodo de esclarecim ento que foi aplicado ao a r gum ento ontológico cartesiano deve agora ser aplicado ao argum ento kantiano, que pretende dem onstrar que a existência não é um predicado. O bviam ente, a análise não term ina com a problem atização da reconstrução kantiana. Um recurso às se m ânticas das lógicas contem porâneas é evidentem ente útil. Em todo caso, uma análise do argum ento ontológico nos conduziu a reconstruir o argum ento cartesiano, a tem atizá-lo a partir de outras perspectivas. Essa análise sobre esse problem a de veria term inar com a form ulação de um a nova prova do argum ento ontológico que não esbarrasse nas dificuldades encontradas pelas antigas formulações.
Você utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do fu turo da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia? Com o cidadão tenho uma vaga visão dessa utopia: uma sociedade justa, igualitá ria, sem discrim inação dc raça, credo etc. Com o filósofo não tenho me dedicado a essas questões. P ortanto, não sei form ular em term os precisos os conteúdos e as condições de realização dessa sociedade utópica.
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C o n v e rsa s com F ilósofos B rasileiros
Principais publicações: 1980 1992 1994 1997
1998
Filosofia da linguagem e lógica (co-autor) (São Paulo; Loyola); Evidência e verdade no sistema cartesiano (São Paulo: Loyola); “ Pode o Cogito ser posto em q uestão?”, revista Discurso, n“ 24; “Idealism o ou realismo na filosofia prim eira de Descartes. Análise da crí tica de K ant a Descartes no IV" Paralogism o da CRP fA |” , Analytica, vol. 2, n” 2; “ Do eu penso cartesiano ao eu penso k a n tian o ” , Studia Kantiana, vol. 1,
Bibliografia de referência da entrevista: Aquino, T. de. Suma teológica. Livraria Sulina. Aristóteles. Metafísica, M adri: Editorial Cîredos. __________ . Categorias, Lisboa: Guim arães. C arnap, R. Coleção Os Pensadores, Abril C ultural. Descartes, R. Meditações, coleção Os Pensadores, Abril C ultural. __________ . Princípios de filosofia, Lisboa: Guim arães. __________ . Tratado das paixões, coleção Os Pensadores, Abril C ultural. __________ . Regras para a direção do espírito, Lisboa: Edições 70. Espinosa, B. Ética, coleção Os Pensadores, Abril C ultural. __________ . Tratado da correção do intelecto, coleção Os Pensadores, Abril C ul tural. G uéroult, M. Descartes selou l'ordre des raisons. Paris: Aubier. Gilson, E. Études sur le rôle de la pensée médiévale dans la formation du système cartesien, Paris: Vrin. Kant, I. Crítica da razão pura, coleção Os Pensadores, Abril C ultural. M aréchal, J. Le point de départ de la métaphysique, Bruxelas: Ed. Universelle. M arx, K. G Capital, coleção Os Econom istas, Abril C ultural. Quine, W. V. Relatividade ontológica e outros ensaios, coleção Os Pensadores, Abril C ultural. Russell, B. Coleção Os Pensadores, Abril C ultural. W ittgenstein, L. Tractatus logico-philosophicus, Edusp. __________ . Investigações filosóficas, coleção Os Pensadores, Abril C ultural.
R aul L andim Filho
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T é rc io S am p aio F erraz Jr.; “ P ara m im , a o c o n tr á rio , talvez a m a io r p a rte d o s d isc u rso s h u m a n o s n ã o seja ra c io n a i. A ra c io n a h d a d e é ap e n a s u m a fo rm a possível, e n tre o u tra s , de e n fre n ta r a situ a ç ã o c o m u n ic a tiv a , de e n fre n ta r o jogo e n tre em isso r e re c e p to r, e n tre o r a d o r e o u v in te — u m jogo q u e é, n a v e rd a d e , um jo g o de p o d e r ” .
TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR. (1941)
Tércio Sampaio Ferraz Jr. nasceu em 1941, em São Paulo (SP). Ciraduou-se em D ireito e em Filosofia pela Universidade de São Paulo, tendo obtido o título de dou to r em Filosofia pela Universidade de M ainz (Alemanha) e o título de doutor e de livre-docente em D ireito pela USP. Foi secretário executivo do M inistério da Justiça (1990-1991). É professor de Filosofia e Teoria Geral do Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor titular da Faculdade de Direito da USP. Esta entrevista foi realizada em fevereiro de 2000.
Goethe dividiu a vida de seu personagem W ilhebn Meister em dois romances. Os anos de aprendizado e Os anos de peregrinação. No pri meiro, o foco está posto na fonnação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que o senhor nos falas se de sua fortnação intelectual? Creio que é um bom m ote, sim. M inha form ação intelectual tem um aspecto que alcança até a adolescência. C om o m uitos filósofos pelo mund(5, fui aluno de jesuí tas — no Colégio São Luís, aqui em São Paulo — , e de certa forma sofri essa in fluência jesuítica, pelo menos em term os de disciplina, disciplina de estudos etc. Ao mesmo tem po, ocorreu uma coisa bastante peculiar: na minha ciasse, desde os 11 anos mais ou menos, fui colega de um grupo que era o núcleo do que viria a cha mar-se, anos mais tarde. T radição, Família e Propriedade. N unca fui da TFP, mas a presença desse grupo na classe — cerca de q u atro alunos em um total de apenas doze — era algo significativo e que me m arcou, pois durante quatro, cinco anos nós m antivem os constantes discussões, que envolviam religião, com portam ento perante a sociedade, política, e assim por diante. Tudo isso fazia parte do nosso diaa-dia de adolescentes, e p o rtan to foi algo im portante nesse com eço da m inha preo cupação com tem as de filosofia. Nessa mesma época, pelo menos durante uns qu atro anos, tive um colega, Francisco Simões, cujo nome costum o sempre lembrar. Era um rapaz quieto, gostava de estudar e, desde os 12 anos, lia filosofia por conta própria. Para nós era um garoto estranho, que com essa idade aparecia todos os dias com o jornal O Estado de S. Paulo debaixo do braço, e que, não obstante isso, foi assum indo aos poucos uma posição política que dizia ser socialista. Isto começou a incom odar os padres, por que o pessoal da TFP, evidentem ente, reclamava: "C om o é possível um socialista aqui dentro?!” . M as ele ainda assim m antinha a sua posição. E com o eu gostava m uito dele, e conversávam os bastante, isso acabou sendo, digam os, o outro lado do meu despertar para os assuntos filosóficos. Ou seja, era de um lado a TFP, e, de
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outro , alguém que se dizia socialista! Uma vez chegamos até a fazer um a discussão sobre com patibilidade entre socialismo e cristianism o, aberta para toda a classe, em que fiquei do lado dele, contra a turm a da TFP (que, aliás, ainda não era conheci da por esta siglal. Enfim, esses são alguns dados iniciais de minha form ação. Já quando entrei na Faculdade de D ireito da USP, em 1960, fiquei m uito im pressionado com o professor G offredo [da Silva Tellesj, nas suas aulas de “In tro dução à Ciência do D ireito”, e foi por influência dele que fui prestar vestibular para filosofia — que me pareceu então mais im portante que o direito. Apesar de passar tam bém na PUC, entrei na USP, me beneficiando na época de algo que hoje seria impossível: em bora já fosse proibido, na época, cursar sim ultaneam ente duas fa culdades na USP, não havia com putador, e p o rtan to o controle era impossível. N a Faculdade de Filosofia, fui colega de M arilena Chaui, M aria Lúcia M on tes, Rubens Rodrigues T orres, dentre outros; Porchat, recém-chegado da França, foi meu professor; Bento Prado, que estava de saída para a França, me deu aula tam bém; assim com o [João] Cruz C osta, Lívio [Teixeira], Lebrun, D ebrun, G iannotti e dona Gilda [de M ello e Souza] na área de estética. Enquanto isso, no curso de direito, houve duas influências decisivas no que diz respeito ã filosofia: o próprio professor G offredo, no princípio do curso, e mais tarde, obviam ente, o professor Miguel Reale. Vivi o confronto das duas orientações, e senti essa diferença em ter mos de form ação — uma diferença que posso resumir com a seguinte história. Q uan do eu e Celso Lafer estávam os no quinto ano da Faculdade de D ireito, o professor Miguel Reale, tendo em vista o nosso interesse, convidou-nos para assistir às suas aulas na pós-graduação. N um a certa altura, comentei com o Celso que os sem iná rios que o professor Miguel Reale prom ovia não tinham nada a ver com o estudo de filosofia, e ele me retrucou que eu estava sendo m uito parcial. De fato, o estudo a que eu estava acostum ado na Faculdade de Filosofia era aquele orientado pelo ângulo dos estruturalistas franceses, era estudar história da filosofia, estudar os sistemas filosóficos, com todo o rigor possível, enquanto o estilo do professor Miguel Reale era com pletam ente aberto. O curso que ele estava dando na época, por exem plo, era sobre Vico, mas não havia aquela preocupação de rigor na interpretação do seu sistema filosófico; o que im portava era pensar os problem as que Vico levan tava. A princípio achei isso m uito estranho, mas aos poucos fui percebendo que ele simplesmente estava fazendo uma coisa diferente — e por que não? M as essas ques tões ficaram mais no inconsciente. A verdade é que, term inado o curso, surgiu para mim a possibilidade de ir para a Alemanha. C om o qualquer bom aluno da Faculdade de Filosofia, o meu sonho era estudar fora. M as a concorrência era dura. Foi quando me ocorreu uma dessas sortes que às vezes a gente tem na vida. Eu tinha uma professora de inglês na C ul tura Inglesa, a sra. Livonius, com quem eu conversava m uito a respeito de meus projetos — estava estudando inglês e francês com o objetivo de conseguir bolsa para estudar filosofia num país de língua inglesa ou francesa — , e que era casada com um médico teuto-brasileiro. E ela me dizia que eu devia desistir de ir para a Ingla terra, que ela conhecia bem por ser filha de ingleses, e mesmo para a França, por que o ideal mesmo seria ir para a Alemanha. Ao que eu respondia: “Eu não sei nada de alem ão!” . .Mas ela não me dava ouvidos. Por volta de agosto de 1964 — qu an
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do estava me form ando nas duas faculdades — , ela me disse que estava vindo para o Brasil um professor alem ão cujo sobrinho, que era uma espécie de filho para ele, era m uito amigo do seu m arido. Ele iria ficar hospedado na sua casa e ela queria apresentar-m e a ele, que era tam bém , por coincidência, bastante amigo do profes sor Reale. Então, num a festa, em homenagem ao professor alem ão, arranjaram um encontro entre mim, ele e o professor Reale, que, m uito cam arada, me fez alguns elogios. No dia seguinte, esse homem, que se cham ava Von Rintelen, me encontrou na casa da sra. Livonius e perguntou se eu não queria ir para a Alemanha. “ Eu ouvi dizer que você está querendo ir para a França, mas deixe a França para depois. Prim eiro vá estudar filosofia na A lem anha.” Eu disse que não sabia nada de ale m ão, ele respondeu: “ O alem ão o senhor aprende na A lem anha” ! E pediu que eu o procurasse cm m aio na Alemanha. Depois não nos falamos mais, ele foi em bora, eu esqueci o assunto, não acreditava que fosse resultar em alguma coisa. M ais ou menos em dezem bro, chegou uma carta da Alemanha: “ Bolsa de estudos concedi da pelo Estado da R enânia-Palatinado etc. etc.” . Bem, aí fiquei desesperado. Tinha que aprender alem ão até maio e, quando fui tentar, o desespero aum entou ainda mais, porque vi que era algo absolutam en te impossível para três meses e meio! [risos] Até que tentei, mas fui para a Alema nha sem saber praticam ente nada. Lembro-me que cheguei lá no dia T de m aio, e o professor, que devia ter então uns 68 anos, foi me receber com um doutorando seu, e, em bora eu tivesse ensaiado algum as frases para essa hora, conversam os em espanhol. Foi assim que teve início a fase de m inha form ação alem ã, bastante dife rente daquela que eu tinha tido até então na M aria A ntônia, de linha francesa.
Essa ida para a Alemanha interrompeu então uma série de artigos que o senhor vinha publicando em periódicos católicos. Como foi essa m ili tância católica? Bem, o fato de eu estar cursando a Faculdade de Filosofia da USP não fez com que eu perdesse a ligação que tinha com os jesuítas, a qual perdurou depois que saí do colégio — sobretudo com um padre (Ghislandi) que eles haviam nom eado para cuidar de uma entidade que se cham ava Instituto Sabóia de M edeiros — nome de um jesuíta da época — , e que era m uito ligada a questões sociais da Igreja. Esse padre, já na época do colégio, tinha criado uma espécie de ação social, ã m oda do Abbé Pierre, num a favela de São Paulo, seguindo o princípio de que os favelados deveriam tom ar consciência de sua situação e passar a fazer reivindicações por si mesmos, criar associações etc. E por meio disso foi que eu tive um prim eiro conta to com as ações sociais da Igreja. Q uando já estava então na faculdade, ele me cha m ou para trab alh ar com ele naquela instituição, na qual havia uma revista cham a da Carta aos Padres. Com o eu gostava m uito de escrever, ele quis que eu fosse o redator-chefe da revista, coisa que aceitei. Lá escrevia sem nenhum a preocupação acadêmica: como um jornalista, simplesmente “chupava” idéias alheias, daqui e dali, e ia jogando nos meus artigos. D urante uns q uatro anos fiquei fazendo isso.
E havia alguma relação dessa revista, ou desse instituto, com outros movimentos católicos?
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N ão, não havia. Era uma atividade dos jesuítas que não se vinculava a outras o r ganizações ou m ovim entos. A gora, é claro que, dada tam bém a minha inserção na Faculdade de Filosofia, nas discussões da época (1 9 6 1, 1962, 1963) eu acabava ab sorvendo as idéias da cham ada esquerda católica, sobretudo de T ristão de Athayde, e as trazia para a Carta aos Padres. O que acabou fazendo com que, em 1963, eu levasse um a enorme reprimenda jornalística, de alguém que na época era editorialista do Estadão para assuntos religiosos, e que era extrem am ente conservador: saiu um editorial, e depois um artigo assinado por ele próprio, em que a revista Carta aos Padres era acusada de fom entar idéias perigosas junto ao clero — o que me deixou muito contente. Mas, enfim, essa era toda a ligação que existia entre a revista e outros movim entos católicos. O senhor já conhecia na época os escritos do padre Henrique Vaz? Eu conheci o padre Vaz quando estava no segundo ano da Faculdade de Filosofia. Ele era um jesuíta já bastante conhecido. Eu havia sido aluno do seu irm ão, que hoje é bispo. Em 1962, eu e dois colegas, sabendo que ele estava em Nova Friburgo, pedimos que nos recebesse. Ele aceitou. Fomos então para lá, onde fizemos com ele algo de parecido com esta nossa conversa. E eu, apenas aluno de segundo ano, fiquei impressionadíssimo ao ver as suas opiniões sobre marxismo, revolução, o papel da violência na história etc. Depois desse dia, deixei de ter contato com ele, mas passei a ler assiduam ente os seus escritos.
Com relação à Alemanha, sabe-se que o senhor esteve lá para três es tágios de pesquisa: 196S-68; 1970-71; 1972-73. Como o senhor ava lia esses diferentes momentos, e qual a relação que estabeleceria entre eles? O prim eiro foi de doutoram ento. Saí do Brasil com o objetivo de me fixar na filo sofia do direito, porque acreditava — e isso viria a revelar-se correto mais tarde — que a m inha perspectiva de carreira acadêm ica era na faculdade de direito, e não na de filosofia. M as o fato é que fui para a Alemanha carregando com igo aquela dupla influência: de um lado, da filosofia do direito à Miguel Reale; de outro, da form ação estruturalista na Faculdade de Filosofia da USP. Basta ver que a minha tese, escrita na A lem anha, conjugava as duas coisas: na escolha do tema — Emil Lask — , a influência do professor Reale, que sempre reconheceu esse au tor como um de seus precursores; na elaboração do trabalho, o m étodo rigoroso da M aria Antônia — cheguei até a introduzir a tese com uma m enção a G oldschm idt (o tex to “Tem po lógico e tem po histórico na interpretação dos sistemas filosóficos” ). E isso acabou dando bons resultados, porque um dos m otivos pelos quais os alemães gostaram da tese foi o fato de ela ser bem estruturada. Diria portanto que esse pri meiro período na Alemanha foi um período de elaboração de tese, durante o qual conservei fortem ente meus “ pré-conceitos” . N ão obstante, me aconteceu tam bém uma coisa nova de considerável im por tância. E nquanto estava lá, comecei a freqüentar as aulas de filosofia do direito na U niversidade de M ainz, e o professor era alguém que iria m arcar toda a mi nha trajetória posterior: T heodor Viehweg. Antes da Alem anha, só tinha ouvido
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falar dele num a ocasião, pouco antes de partir. Celso Lafer havia encontrado um livro dele. Tópica e jurisprudência, e me havia dito: “ Olhe, parece um livro inte ressante! E o au to r está nessa universidade para onde você está indo. Por que você não tenta entrar em contato com ele?” . Essa era toda a referência que eu tinha de Viehweg antes de partir. E meu contato com ele, de fato, acabou se tornando bem mais im portante do que aquele que tinha com Von Rintelen, pois ele me apresen tou um o u tro m undo — um m undo que não cheguei a aproveitar na tese, mas que ficou na m inha cabeça dali em diante: foi dele que veio todo o universo da retóri ca, da com unicação etc. E a conseqüência disso foi que, quando voltei ao Brasil, me esqueci rapida mente de Emil Lask. Cheguei a me valer da tese feita lá para fazer aqui uma segun da tese, para o doutoram ento em direito — que me perm itiu entrar para a Facul dade de D ireito com o assistente do professor Reale — , mas o período de dois anos em que fiquei aqui, antes de voltar para a A lem anha, fez com que percebesse que a influência do Viehweg tinha sido m uito m aior do que imaginara a princípio. H o u ve uma ocasião, em especial, que deixou isso bastante claro. Eu e o professor Reale vínham os cam inhando juntos pelo Largo São Francisco e, na entrada da Faculda de, encontram os um outro professor. O professor Reale o apresentou a mim — era o professor Lourival Vilanova — , e, perguntando se eu não queria assistir à aula do seu curso de pós, que nesse dia ia ser dada por esse professor, com entou com ele: “Esse aqui é meu assistente. Ele andou estudando lá na Alemanha, e voltou meio influenciado por esse negócio de retórica, V iehweg...” . Fu fiquei meio constrangi do, disse que não era bem assim, e ele encerrou o assunto dizendo: “Um grande mestre! Um grande m estre!” (referindo-se a Viehweg). Em 1970, quando voltei para a A lem anha, fui direto a Viehweg, com propó sitos bastante diversos daqueles de m inha prim eira ida, pois toda a minha relação com o neokantism o, culturalism o jurídico, tridim ensionalism o, encontrava-se já bastante esmaecida. E tan to essa segunda estada com o a terceira caracterizaram -se pelo estudo aprofundado dos temas da retórica, semiótica, filosofia da linguagem etc. .\Las foi na terceira que aconteceu uma coisa bastante im portante em minha vida. Entre essas duas estadas eu já tinha escrito, ainda que sem maiores preten sões, o artigo "A filosofia com o discurso ap orético” , no diálogo com [Oswaldo] Porchat. E quando cheguei à A lem anha, nessa terceira vez, lembro-me de ter con versado com meus colegas de lá, dizendo a eles: “ Acho que vou fazer uma coisa ousada. Vou tentar escrever sobre, e discutir, um problem a filosófico. N ão quero mais interp retar filósofos” . “ E d aí?” , responderam eles, que não viam nada de anorm al no que eu estava dizendo. Acontece que, ao aprender filosofia com rigor estrutural, eu tinha sofrido tam bém aquela verdadeira castração na Faculdade de Filosofia (nada além da história da filosofia), e isso era algo que eles não com preen diam . Eu dizia: “T enho uma enorm e vergonha de fazer isso, mas ao mesmo tempo tenho um a enorm e vontade!” |risos]. E eles respondiam : “ Pois então faça! O m á xim o que pode acontecer é ficar ruim !” . De fato, eu arrisquei, e foi dessa aventura que saíram dois livros: Direito, retórica e comunicação e Teoria da norma jurídica.
E Niklas Luhmamt? Como o senhor chegou a ele?
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Foi tam bém nessa terceira vez, por indicação de um professor cham ado Ballweg, que era na época assistente de Viehweg. Ele havia lido Luhm ann e, conhecendo os meus interesses, me disse: “ O lhe, esse au to r aqui é m uito interessante. É meio difí cil, tem m uita psicanálise, mas acho que você vai g o star” |riso s|. O Luhm ann esta va apenas surgindo nesse m om ento, quase ninguém o conhecia, mas comecei a lêlo. E aí surgiu um grande co n fro n to , porque o Viehw'eg era contra as idéias do l.uhm ann; ele era o homem do problem a, enquanto este era o homem do sistema! .Mas am bos para mim eram geniais, e comecei a fazer um esforço, talvez não m uito consciente a princípio, de juntá-los — que foi o que acabei fazendo em meus tra b a lhos. Se ficou bom , não sei, mas o fato é que juntei, de um lado, Viehweg, um filó sofo problem ático, e, de outro, Luhm ann, um filósofo sistemático.
Como o senhor avalia os seus momentos de volta ao Brasil? Que dife renças o senhor percebia entre os ambientes intelectuais da Alemanha e do Brasil? Houve mudanças significativas no panorama cultural bra sileiro entre as suas idas e voltas? Comecemos pela prim eira ida, em 1965. A grande diferença que senti na Alema nha, depois de ter sido aluno, aqui, tan to da Faculdade de Direito com o da de Filo sofia, foi a existência física de uma com unidade universitária: especialmente por m orar no campus, conheci um m undo que então não havia aqui. Ainda que h o u vesse uma com unidade acadêm ica na Faculdade de D ireito, era m uito mais uma com unidade de farra, de sair à noite, de fazer política, do que uma com unidade de estudo. .Mesmo na Filosofia, a gente se reunia mais para discutir política, questões do Brasil etc. E nquanto na Alemanha as discussões giravam em torno da própria filosofia, dos assuntos que estudávam os. Por o utro lado, se a princípio tinha um certo medo do que seria estudar filosofia na A lem anha, percebi que a minha for m ação na M aria Antônia era excelente, e nada do que encontrei por lá me assustou. Agora, a volta para o Brasil foi sem pre um terror, sobretudo na prim eira vez. Depois de ter concluído minha tese, Viehweg me convidou para ficar lá como seu assistente, e, em bora lisonjeado, recusei o convite, explicando-lhe que acreditava ter uma certa missão a cum prir no Brasil. Enquanto lá eu não passaria de um assisten te entre tan to s outros, ou mesmo de um professor entre tantos outros, num m undo em que a filosofia acadêm ica era algo perfeitam ente consolidado, no Brasil poderia exercer um papel talvez mais im portante. N o entanto, o que encontrei aqui foi algo terrível. Se, antes de ir, já havia conhecido a revolução de 64, tratava-se de uma revolução branda, enquanto na volta o que encontrei foi o Al-5. Flouve um episódio, inclusive, bastante m arcante. Eu tinha ido ã Faculdade de Filosofia rever os conheci dos, encontrando alguns, conversando um pouco, e, quando estava saindo, na esqui na da rua M aria A ntônia com a Dr. Vilanova, encontrei o professor Antonio C ândi do, com mais algum as pessoas, e com eçam os a conversar. De repente, passou uma tropa que entrou na Faculdade e começou a arrebentar tudo o que podia. O professor A ntonio C ândido fez menção de ir atrás, e eu fui um dos que o im pediram , dizendo: “ Professor, a gente precisa do senhor vivo!” — algo de que ele se lembra até hoje. Enfim, esse episódio ilustra bem o que encontrei aqui do ponto de vista político. Do ponto de vista intelectual, por o u tro lado, o trabalho que passei a desen-
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volver aqui, com parado à comunidade acadêmica de lá, foi absolutamente frustrante. Embora satisfeito com as aulas que dava com o assistente do professor Reale, às vezes até o substituindo, percebi que aquela com unidade acadêmica me fazia falta. C o meçava a esboçar-se então aquilo que anos mais tarde, quando por razões de so brevivência cheguei a lecionar em nove faculdades ao mesmo tem po, viria tornarse mais nítido: aqui a tendência era eu tornar-m e “ mestre-escola universitário”, isto é, simplesmente dar aula. O con tato acadêm ico propriam ente dito era paupérrim o. E, com o correr do tem po, isso tudo me desgastou a tal ponto que num certo dia cheguei ao professor Reale e disse que queria voltar para a A lemanha. Consegui a bolsa da H um boldt e, apesar de ter apenas dois anos de magistério na Faculdade, o professor Reale me concedeu a licença. Q uando cheguei de volta à Alem anha, no entanto, em fins de 1970, o ambiente de lá havia m udado tam bém . N o meu prim eiro período, de 1965 a 1968, tinha vi vido aquilo que cham o de a última fase idílica do ensino universitário alem ão. Em bora tenha tido a experiência de M aio de 1968 lá, foi apenas na segunda ida que pude perceber as m udanças profundas por que a universidade havia passado: Uni versidade Livre de Berlim, participação dos universitários na direção, professores acuados etc. E quando voltei para o Brasil, depois dessa segunda vez, aconteceu algo parecido, porque 1968 tam bém tinha repercutido aqui, e as conseqüências tam bém tinham sido sentidas um pouco depois. M esmo num a faculdade tradicional com o a do Largo de São Francisco, estava havendo uma reestruturação radical da vida acadêm ica: os velhos catedráticos desaparecendo, livre-docentes e assistentes po dendo dar aula, os alunos tendo outra atitude, e assim por diante.
Seria possível falar de uma “filosofia brasileira ”? Como o senhor vê as relações entre a filosofia e a cultura brasileira? Comecei a conhecer esse tem a com o professor Reale, de quem sempre ouvi que não apenas era possível uma filosofia brasileira, com o era necessário falar sobre isso, porque seria um sinal da m aturidade de um povo. De outro lado, durante todo o meu curso na M aria A ntônia ouvi o inverso do professor Cruz Costa, que dava ri sada dessa história de filosofia brasileira, de filosofia do direito brasileira. Ele até adm itia que pudesse haver um a filosofia na literatura brasileira, mas não uma filo sofia com o tal. O fato é que vivi essa polêmica, conhecendo os dois lados, durante a minha época de faculdade. E evidente que, do ponto de vista do que aprendi na M aria A ntônia, falar em filosofia no Brasil é um tan to atrevido, ao menos pensando naquela filosofia que nós estudávam os fazendo leitura estrutural. H á cerca de dez anos, fui convidado para um sim pósio, na Universidade La Sapienza, em Rom a, sobre a obra de Pontes de .Miranda. Havia professores de direito civil, outros de direito rom ano, e eu esta va lá com o representante da filosofia do direito, devendo analisar os aspectos filo sóficos dessa obra. Q uando estava me preparando para esse sim pósio, fui rastrear os textos do Pontes de M iranda, com os olhos de um estruturalista, procurando analisar o seu conceito de responsabilidade. E percebi que não batia nada com nada! Evidentemente, eu não ia dizer isso com todas as letras, pois era um sim pósio em hom enagem a ele. .Mas procurei fazê-lo de form a suavizada.
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Esse episódio foi im portante porque me m ostrou que, de fato, se nós formos pensar a questão do ponto de vista rigoroso da M aria A ntônia, que exam inava a ordem das razões, falar em filosofia brasileira é algo que não pode ser levado a sério. Por o utro lado, no entanto, se encararm os o problem a com outros olhos, com os olhos do professor Reale por exem plo, deixando de lado aquele rigor estrutural, podem os ler Tobias Barreto sem pretender encontrar nele um Kant, ou ler Pontes de M iranda sem pretender encontrar nele um Augusto Comte. A ordem das razões, neste caso, é uma outra ordem , em que há uma espontaneidade com que, bem ou mal, as pessoas reagem. Podem não estar reagindo ao que acontece no Brasil, e sim ao que está acontecendo lá fora, mas é de qualquer forma uma reação. Portanto, não iria nem ao extrem o de desconsiderar por inteiro essas obras e dizer ‘Msso não presta” , nem ao extrem o de dizer “existe aí uma filosofia brasilei ra ” . Eu diria que existe uma produção filosófica no Brasil que é boa, mas que não teve talvez a qualidade de produzir pensadores de repercussão mundial. Eu me lem bro de ter lido certa vez um artigo, na A lem anha, que com entava a produção filo sófica ao redor do m undo neste século. O articulista reconhecia haver uma filoso fia oriental, com uma série de características peculiares, falava da im pressionante produção européia, m ecionava a filosofia am ericana com o uma filosofia que en controu uma form a própria de pensar, e, ao falar da América Latina, dizia que, em bora havendo um a produção acadêm ica consistente, não se havia form ado ali uma form a própria de pensar. E essa posição me parece mesmo a mais correta. Desenvolvemos um a espécie de “ filosofia reflexa” .
Eram bastante tensas as relações entre o Instituto Brasileiro de Filoso fia, fundado e presidido por Miguel Reale, e o Departamento de Filo sofia da USP, dirigido por João Cruz Costa. Como o senhor vê essas diferençasf Creio que em am bos os lados há um distanciam ento de fenômenos concretos como, por exem plo, o próprio fenômeno jurídico. N o caso do professor .Vliguel Reale, em bora ele seja evidentemente um pensador integrado, na sua vida acadêmica e na sua vida política, o forte de sua obra é um a especulação que é m uito mais um diálogo com a filosofia do direito européia. N o caso da M aria A ntônia, por ou tro lado, também não se desenvolveu uma reflexão cuja raiz estivesse na nossa cultura. Aquela interdição do filosofar fez com que ficassem estudando os sistemas dos outros, sem sequer dialogar com eles — justam ente o que Porchat, num enorme atrevim ento, tentava quebrar naquele nosso livro {A Filosofia e a visão comum do mundo). N a verdade, o que a gente começava a perceber é que havia problem as que mereciam ser discutidos a partir de uma experiência nossa. Agora, a questão é saber se alguém conseguiu fazer isso, se alguém conseguiu produzir, nesse sentido, uma filosofia brasileira. E a m inha impressão é que isso ainda não chegou a acontecer. T enho um amigo alem ão, W olf Paul, que sempre me faz essa pergunta. Ele vem com algum a freqüência ao Brasil e fica intrigado com o fato de que nos con gressos brasileiros só se discute Hegel, K ant etc. e de que nunca haja uma discus são sobre a filosofia brasileira. Q uando escrevi o meu livro Introdução ao estudo do Direito, mostrei a ele, e o seu com entário foi: “ Perfeito para uma universidade
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alemã! M as você quer que os alunos aprendam isso no Brasil?!” . Aí fiquei bravo e respondi: “ Q uero, sim !” . F., em bora consciente das dificuldades, acho realmente que é um livro para ser lido pelos alunos de prim eiro ano, porque esses ainda não têm os vícios da tradição, ainda são com o uma página em branco. Agora, de qualquer m aneira, é um livro que emergiu do meu diálogo com as tendências que estudei na Furopa, e não de uma problem ática genuinam ente brasileira.
Ainda que feitas todas essas ressalvas, o senhor diria que há filósofos brasileiros? Quais seriam os mais importantes? Nesse sentido, do diálogo com o Primeiro .VIundo, eu diria que há. N o sentido das raízes em uma problem ática brasileira genuína, não. A não ser, talvez, por Vicente Ferreira da Silva, que me parece o único a fazer algo que se apro.ximaria disso, pro curando ir pelo lado do carnavalesco existencial. M as mesmo ele não chegou a consegui-lo. Agora, do ponto de vista do diálogo, da filosofia com o reflexo dialogante, dentre os que conheço, m encionaria inicialmente, pensando na filosofia do direito, o professor Miguel Reale, que é a figura mais significativa nessa área. Na área da filosofia em geral, creio que essa questão adquiriu destaque para o pessoal da M aria .Antônia a partir do atrevim ento de Porchat, que me parece uma figura m uito im portante. Creio que outro que tam bém sempre teve uma contribui ção significativa é Bento [Prado J r.|, figurando como uma espécie de rebelde, den tro daquele grupo dos anos 60, desde o princípio — diferentemente do Porchat, que teve de passar por um processo de ruptura. G iannotti, por outro lado, merece sem dúvida menção. Ele me parece ser alguém que conseguiu aliar a disciplina estrutu ral com o diálogo, pois o atrevim ento, no caso dele, é extrem am ente controlado. De um o u tro ângulo, sem a disciplina do G iannotti, há M arilena [C haui|, que, mais à Bento Prado, rom peu com os com prom issos estruturalistas e começou a p ro d u zir alguma coisa relevante em term os da filosofia com o reflexo dialogante. Em bo ra sem criar uma filosofia propriam ente brasileira, naquele sentido de um enrai zam ento da reflexão em nossa experiência, ela conseguiu pensar os problem as bra sileiros dentro do conte.xto desse diálogo. Se a gente pensar em outro registro, creio que N ew ton da C osta, fazendo um diálogo com a matemática, é um nome im portante, com considerável reconhecimento fora do Brasil. E claro que ele não produz uma lógica brasileira, mas pensa os pro blemas com grande originalidade. Fora de São Paulo, por outro lado, mencionaria Ernildo Stein, que, influenciado mais pelos alemães que pelos franceses, dialoga com bastante seriedade. Cîosto tam bém das coisas escritas por Benedito N unes, outro dialogador sério. Vamireh Chacon, no cam po da filosofia do direito, é uma espécie de devorador que, juntando m uitas coisas ao mesmo tem po, acaba produzindo algo de im portância. O artigo do senhor “A filosofia como discurso aporético”, de 1975, é também um debate com Porchat. Q ual foi, a seu ver, o saldo dessa dis cussão? Porchat me disse certa vez que o saldo da discussão, para ele, foi conseguir fazer algo que vinha pensando havia m uito tem po — o que me dá m uita satisfação, pois
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ele sempre foi, e continua a ser, meu professor. A relação professor-aluno é um pouco com o a relação pai-filho: por mais que se cresça e se vire am igo, nunca se perde a condição de aluno! Para mim, diria que o saldo desse trabalho, de ter colocado no papel certas idéias, foi passar a ter um apoio para fazer as coisas que vim a fazer depois, um apoio no qual eu dizia a mim mesmo que vale a pena pensar os proble m as, porque eles não se reduzem ao que outros filósofos já disseram. A tese básica do meu artigo é a de que é impossível, mesmo num diálogo com os filósofos, você não estar pensando p o r si mesmo. Por um lado, não há escapatória, e, por outro, é algo que vale a pena, que é gostoso — desde que feito com seriedade. Esse artigo foi publicado pela prim eira vez na A rgentina, para a Reuista Latino-americana de Filosofia, com o um a hom enagem ao Porchat. Q uando ele me li gou para agradecer, e disse que ia responder — coisa que de fato fez — , isto me deixou extrem am ente lisonjeado. Em bora o nosso diálogo, infelizmente, não tenha prosperado depois disso — talvez por term os cam inhado cada um, inclusive o Bento, para uma área de interesse distinta — , houve de fato um saldo positivo.
Que conceito(s) de sua reflexão o senhor destacaria como o(s) mais representativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que o senhor nos contasse como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje. Do ponto de vista da filosofia, o conceito mais im portante é o de aporia, justam en te o conceito central desse artigo de que acabam os de falar. Pensar a filosofia como discurso aporético é um m odo de enfrentar as questões filosóficas que serviu sem pre para me “ segurar” quando eu tivesse de enfrentar os grandes temas de filosofia do direito, funcionando como um a espécie de guarda-chuva a evitar um com pro metim ento total. D iante de uma pergunta, por exem plo, como “ ü que é a justiça?”, mantive sempre um grande pudor com relação ã possibilidade de aventurar-m e em respondê-la. E, se eventualm ente me aventurasse, seria dizendo: “ Isso é m uito mais um a aporia do que um tem a sobre o qual eu possa dar uma palavra definitiva” . Eu não me meteria nunca a escrever um sistema, e, nesse ponto, a influência do Viehweg foi sempre tam bém m uito grande, pois ele, com o “ homem do problem a” , criticava os que tentassem fazê-lo. Vista a filosofia com o discurso aporético, os problemas filosóficos aparecem com o becos sem saída que, não obstante, fazem pensar. Por o u tro lado, essa posição me faz sentir uma trem enda angústia. Afinal, te nho vontade de ten tar essa outra aventura, essa que seria talvez a aventura final. Será que não posso me atrever? Será que não posso finalm ente enfrentar o tema? O que é a justiça, afinal de contas? Faz já uns quatro, cinco anos que estou rum i nando isso na cabeça.
E três artigos! Sim, tenho escrito tam bém . N estas férias, por exem plo, reescrevi um discurso que proferi na Academia Paulista de Letras, por ocasião de m inha posse com o acadê mico, e que falava sobre as relações entre o senso de justiça e o senso da beleza. Utilizei LLninah A rendt, que escreve sobre o senso do gosto, Kant etc., e procurei fazer um paralelo com o problem a jurídico do senso de justiça. M as fiz isso sem
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consultar, de propósito, diretam ente qualquer livro, valendo-me apenas de impres sões que me tinham ficado. E, no correr do texto, acabei desem bocando, um p o u co à m aneira dela, no problem a mesmo da justiça: com o fica a questão do relativismo? H á ou não há, afinal de contas, algum critério da justiça universal? N as últimas páginas do trabalho, creio que pela prim eira vez avancei um pouco. Em bora já tivesse feito algo assim, num a certa inspiração heideggeriana, com o p ro blema da liberdade, o u tro desses temas cruciais da filosofia do direito, desta vez creio ter ido um pouco mais longe. Basta dizer que, depois de escrever o texto, passeio ao meu assistente, Ari Sólon, pedindo-lhe que lesse, e o seu com entário foi: “Acho que o senhor ainda é m uito jovem para escrever essas coisas” ! [risos] O artigo do senhor “A filosofia como discurso aporético” encerra-se com considerações que traduziríamos do seguinte modo. O discurso filosó fico tem um momento necessariamente aporético, dado pelo seu início mesmo, injustificável do ponto de vista teóríco e resultado de uma de cisão. .VIíZ5 nem por isso o discurso filosófico deixa de ter um momento necessariamente construtivista ou sistematizador. Para dar conta des se momento sistematizador, o senhor lança mão da pragmática da co municação. Como distinguir, no entanto, essa posição do senhor de uma posição simplesmente hermenêutica? De fato, em bora a inspiração seja diferente, isso lembra uma posição hermenêutica. Vejamos então a diferença. Apesar de eu reconhecer que a construção de um siste ma é possível, no com eço de tudo há esse m om ento de decisão, e esse m om ento de decisão tem a ver com vontade, não com pensam ento. Em filósofos com o Gadam er, e mesmo na fenom enologia em geral, ocorre um a tentativa, se não de superar, ao menos de dar uma resposta mais positiva com relação a esse prim eiro m om ento. Os autores que acabei estudando, como Viehweg e os retóricos, têm uma atitude, perante a filosofia, com patível com o seu instrum ental. Q uem trabalha dentro da perspectiva retórica sabe que não pode, e nem quer, ultrapassar os limites da pró pria retórica: há aí um a certa sofística que não existe na linha hermenêutica. Por isso o diálogo com Porchat foi tão im portante naquele m om ento: existe aí, no começo de tu d o , algo de lúdico. Em bora eu tenha me arriscado, recentem en te, a escrever as tais páginas sobre a justiça, continuo tendo a sensação de estar dentro de um jogo, de estar fazendo um trabalho lúdico — um trabalho que não é, por tan to , herm enêutico. A gora, é claro que isso gera uma angústia que, no limite, é uma sensação de niilismo, e tam bém uma sensação de frustração com a im possibi lidade de d ar respostas num sentido mais acabado. Foi esse o ponto central da dis cussão com Porchat: na sua resposta, ele disse que não podia ser bem assim, que o tipo de decisão de que eu falava não servia propriam ente com o decisão. M as eu continuei achando, e lhe disse num a conversa que tivemos logo depois, que a deci são de filosofar, de pensar filosoficam ente, é mesmo algo voluntário. £ central na obra do senhor a preocupação em circunscrever, antes de mais nada, um conceito situacional de racionalidade. Em D ireito, re tórica e com unicação (1973), o senhor o apresenta nos seguintes termos:
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“Uma concepção situacional da racionalidade significa que ela é cap tada dentro da situação comunicativa. O discurso racional é, assim, aquele cujos agentes, em princípio, não se distanciam do mundo cir cundante, mas se reconhecem nele”. No que essa concepção de racio nalidade se distingue da proposta por J. Habermas? Esse conceito de racionalidade situacional, em term os de com unicação, é construído para cham ar a atenção para o tipo de jogo que a interação provoca. Uma primeira diferença em relação a H aberm as está no fato de que ele, buscando ou investigan do algo de parecido, na comunicação, procura alguns pressupostos que possa univer salizar, aparecendo então, nestes pressupostos, uma racionalidade inerente ã comu nicação. E não é isso que estou dizendo. Estou dizendo que o discurso racional < um tipo de discurso, m as nem todo discurso hum ano é racional. Isso já é mais difí cil de dizer com relação a H aberm as, pois para ele e.xiste um pressuposto que é inerente a qualquer discurso e que tem esse “g osto” de racionalidade. Para mim. ao co n trário , talvez a m aior parte dos discursos hum anos não seja racional. A racionalidade é apenas uma forma possível, entre outras, de enfrentar a situação com unicativa, de enfrentar o jogo entre em issor e receptor, entre o rador e ouvinte — um jogo que é, na verdade, um jogo de poder. Se existe aqui algum universal, seria essa relação de poder, que está longe de ser algo racional. Nesse jogo, o con ceito não aponta para nenhum fecham ento, e não existe um princípio de razão su ficiente capaz de explicá-lo. T rata-se de um jogo de argum entações em que as ra zões são oferecidas na medida em que um dos interlocutores é acossado pela ne cessidade de responder, e o acabam ento racional do discurso é form ado apenas no m om ento em que o o u tro interlocutor desiste de contra-argum entar — seja porque se satisfez provisoriam ente com um dado argum ento, seja porque o outro conse guiu fazer com que ele ficasse quieto. É nesses termos, portanto, que entendo a racio nalidade. C laro que é um conceito de racionalidade meio m aroto frisos], porque não é bem a racionalidade no sentido que a cultura ocidental lhe dá — um sentido mais nobre — , e sim algo que lembra mais a sofistica. M as, se exam inarm os bem, isso é algo que acaba aparecendo até mesmo em filósofos com o Aristóteles quan d o eles escrevem sobre retórica. Por mais que se costum e dim inuir a im portância do livro no contexto de sua o b ra, na Retórica Aristóteles chega a esse ponto: em bora adm itindo a presença de um problem a éti co terrível, ele reconhece que a retórica funciona assim.
A retórica é uma espécie de adultério dos filósofos?! Sim, eu diria que sim. Um adultério gostoso! |risos| Foi o que percebi e assumi, reconhecendo que não há escapatória. E A ristóteles, no fundo, tam bém percebeu, tam bém colocou o dedo na ferida. Já Platão não escreveu nada; ele simplesmente fez. E com o fez! Lembro-me de quando reli os quatro capítulos iniciais d ’A Repú blica, já depois de possuir essa consciência, e pensei comigo mesmo: “ Q ue coisa terrível! Sócrates trucidou Trasím aco! Isso não é razão! É poder p u ro !” .
Uma das distinções fundamentais da reflexão do senhor é aquela entre “relato” e “com etim ento”. Como devemos entender esses termos?
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Essa distinção, evidentem ente, não foi criada por mim. Eu a tirei da Pragmática da comunicação humana, livro dos psicólogos Watziavvick, Beavin e Jackson, que por sua vez se baseiam no trabalho de outros psicólogos e psicanalistas. Creio que são dois conceitos de difícil explicação, pois percebo que em geral os alunos têm m uita dificuldade de assimilá-los e de lidar com eles. M as a idéia básica para compreendêlos está na distinção, feita por esses psicólogos, entre dois m odos de com unicação: o m odo verbal ou digital e o m odo não-verbal ou analógico. Embora tanto o que cham o de com etim ento com o o que cham o de relato possam ser expressos nesses dois m odos, num projeto inicial, no começo da com unicação, o relato tende a ap a recer num a forma verbal e o com etim ento, numa forma não-verbal ou analógica. Neste sentido, o com etim ento aparece, inicialmente, com o uma com unicação que em ana do indivíduo hum ano no q uadro de uma certa passividade, sem que haja propriam ente uma ação. Q uando alguém usa ou não usa bigode, por exemplo, ainda que com certas intenções claram ente determ inadas (ficar mais bonito, trocar uma característica etc.), isso implica com unicar-se de uma forma passiva. O que cham o de relato, por o u tro lado, é uma form a de com unicação que já no início se dá ver balm ente. Por exem plo: quem diz “ saia!” , além de com unicar a ordem para um m ovim ento (relato), com unica tam bém , pelo olhar, pelo tom de voz: este é o m odo com o vejo você perante mim e a mim perante você (cometimento). D ada então essa distinção, no uso que faço dos conceitos, saindo já da chave dos três psicólogos e entrando um pouco na de Luhm ann, o relato se reporta aos conteúdos com unicativos, àquilo que está sendo dito. Já o com etim ento, indepen dentem ente do que está sendo dito, é um m om ento de definição de quem é quem na comunicação. Tendo por base o mesmo pressuposto da questão da racionalidade do conhecim ento, aqui reaparece toda a problem ática da disputa, do argum ento, do poder etc., com outra roupagem . Q uan d o nos com unicam os, nós fazemos duas coisas: de um lado, simplesmente falamos, dizemos alguma coisa, e de outro, simul taneam ente, definim os posições. A distinção entre relato e com etim ento é po rtan to uma distinção que me parece im portante, que se coaduna bem com o que eu já dizia antes de conhecê-la, e que, além disso, me perm itiu fazer algo fundam ental: discutir a norm a de um ângulo novo, de um ângulo que ninguém havia adotado. Os juristas quebravam a cabeça sobre o que é a norm a, onde está a prescritividade, será que é na sanção? etc., e essa distinção me pareceu uma ótima chave para resolver essa discussão toda: o sentido prescritivo da norm a enquanto com unicação está no com etim ento, a norm a é uma form a de definição de quem é quem na relação.
Seguindo T. Viehweg, o senhor distingue entre uma abordagem “zetética” e outra “dogm ática”. Em D ireito, retórica e com unicação, o se nhor escreveu que “a distinção estabelecida, por necessidade de análi se, entre questões ‘zetéticas’ e ‘dogmáticas’ mostra, na práxis do dis curso judicial, uma transição, poderíamos dizer, entre o ser e o dever ser”. Como se dá essa transição? O que separa e quais são os possíveis pontos de contato entre os dois tipos de abordagem? A distinção entre zetética e dogm ática, entre zetein e dokein, foi proposta por Viehv^'eg, num artigo publicado em inglês que ele não retom ou posteriorm ente, e, desde
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que a conheci, juiguei-a um a form a de abordagem bastante interessante e que valia a pena am pliar. Para tal, usei Luhm ann, fazendo aquela m istura atrevida, já m en cionada, entre um problem ático e um sistemático. Eu tinha então, de um lado, o universo óbvio daquilo a que cham am os doutrina, ou tam bém dogm ática jurídica, e que se define com o um tipo de discurso que se vale de três elementos básicos: a lei, em sentido lato; as decisões de tribunais — a jurisprudência; e os com entários — a herm enêutica jurídica para criar condições de decidibilidade de conflitos. E, de o utro lado, tinha aquilo que na Faculdade de Direito sempre se cham ou de “ per fum aria” jurídica: a filosofia do direito, prim eira das perfum arias, a sociologia ju rídica, a antropologia jurídica, a história do direito, enfim, todas as ciências que não lidam com aqueles três elementos com o mesmo objetivo, mas visam antes a especular, perguntar. E o meu problem a era, antes de mais nada, explicar a dife rença entre os dois cam pos, explicá-la não assim vagam ente, mas caracterizando dois m odos distintos de pensar — algo que os textos de Luhm ann me ajudaram a fazer, m ostrando as peculiaridades próprias a cada um deles. Uma das peculiarida des da dogm ática, por exem plo, seria a inegabilidade dos pontos de partida com o condição do poder de decidir, e a melhor definição para isso estava no Viehweg (mais um exem plo de com o fui casando os dois pensamentos): no pensar dogm ático, só se pode questionar num a direção, e não na outra; há pontos que não podem ser discutidos. N o zetético, pontos de partida sem pre são discutíveis, reflexivamente. Agora, é preciso ter em conta as conseqüências disso: esse ponto não discuti do, com o premissa do pensar dogm ático, tem de ter algum caráter diferente, e isto me levou novamente ao problem a da decisão, do voluntarismo. Por que ele não pode ser discutido? Por que é um postulado sobre o qual não se cogita reflexivamente? Por que há um consenso geral em to rn o dele que lhe garante a inegabilidade com o ponto de partida? Estes seriam m otivos racionais para não discuti-lo. M as a verda de é que na dogm ática a inegabilidade dos pontos de partida é algo m uito mais forte do que um simples motivo racional; a verdade é que não se permite a discussão a respeito deles, até porque eles não estão referidos nem a uma evidência, nem a um acordo, nem a uma postulação. O que há é uma aporia, uma dúvida radical, e portan to esses argum entos tradicionais do discurso racional simplesmente não funcionam. Como, porém , do ponto de vista prático, é preciso discorrer sobre isso, simplesmente se diz: “está proibido discutir sobre esses p o n to s” . Isto é a dogm ática jurídica: criase um tipo de pensar que trabalha dentro de uma bitola estreita e que, para decidir os problem as — pois todos os problem as são decidíveis no direito — , tem de en con trar formulas tangentes com o a herm enêutica, que perm ite tangenciar o senti do das palavras, inventar o u tro sentido, dar im portância a um sentido que na ver dade não tem a mínima im portância, e assim por diante. C om o não se pode m udar o ponto de partida, essas são saídas que esse tipo de pensam ento acaba criando para solucionar os problem as, tendo em vista a necessidade de decidir. Um advogado não pode chegar para o seu cliente e dizer: “O lhe, talvez isso, talvez aqu ilo ” . Ele tem de d ar respostas e objetivar resultados — isso é tudo o que im porta. N o próprio processo decisório, fica claro o caráter am bíguo da verdade. H ouve ou não houve cartel, num determ inado caso? Houve acusação com base em indícios. Por que indícios? Porque não há provas. N unca ninguém vai conseguir
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provar de fato que as partes se encontraram — a não ser talvez num cartel de por tugueses! [risosj O nde está a verdade, então? Processualistas mais atirados dizem logo que esta verdade é processual, e não a verdade dos fatos. Isto é, enfim, o pen sam ento dogm ático. N o caso da “ perfum aria” (pensar zetético), o pensam ento funciona de manei ra completamente diferente, pois não há qualquer compromisso com pontos de partida nem de chegada, não existe o interdito de questioná-los. Às vezes tenho juizes ou promotores em meus cursos de pós-graduação e, antes de mais nada, já vou logo fazen do a advertência: “Vocês não me levem a mal, mas vou destruir tudo aquilo que vocês têm com o ponto de p a rtid a ” ! N o começo eles acham engraçado, dão risada, mas já aconteceu, algum as vezes, de um deles chegar até mim e dizer; “ Professor, não estou mais conseguindo julgar! Você destruiu todo o meu universo de garantia, de sosse go, de tranqüilidade” ! F. tudo que eu havia feito fôra retirar o ponto de partida inegável, dizer que em geral é impossível decidir com certeza absoluta. Fste é o outro ângulo, o ângulo da zetética. Pode-se questionar, pode-se perguntar o que se quiser pergun tar, e não existe a necessidade de tom ar decisões definitivas, não existe o com pro misso com resultados. Trata-se de um m odo de pensar bem diferente daquele outro. Agora, uma vez estabelecidas as diferenças, coloca-se o problema de como eles se encontram . Eu diria que eles se encontram , na práxis, de uma m aneira que é perversa para o pensar zetético. Uma vez, num congresso na PUC-RJ cujo tema era o pensam ento crítico no direito, e em que se discutia a idéia de uma dogm ática crí tica, desenvolvi meu pensam ento sobre a dogm ática e cheguei à conclusão de que não existe dogm ática crítica, porque qualquer pensam ento crítico, no direito, aca ba absorvido pela dogm ática enquanto tal. Anos depois desse congresso, fui dizer a mesma coisa ao pessoal do Rio G rande do Sul que fala em direito alternativo: isto é outra coisa que tam bém não existe. O que eles pretendem fazer é dogm ática do mesmo jeito, m udados apenas os pontos de partida. Existe p o rtan to um contato entre as duas form as de pensar, já que na prática da decisão jurídica a zetética pode aparecer para am pliar um pouco a reflexão, tra zer novos argum entos, mas ela acaba sendo dogm atizada em função dos pontos de partida. Do outro lado da m oeda, porém , a zetética tam bém acaba se enriquecen do quando é capaz de entender o pensam ento dogm ático — o que diz respeito ã questão da inserção da filosofia do direito na vida. Uma vez, há cerca de dez anos, cheguei a co brar isso do professor Reale, perguntando-lhe por que ele não escrevia uma teoria geral do direito, e ele me respondeu que estava mais interessado nos pro blemas filosóficos. M as o que eu queria dizer-lhe é que há certos problem as da dog m ática jurídica que valeria a pena tentar absorver dentro da zetética, talvez até mesmo para enriquecer a discussão. O professor Reale faz isso, mas o faz em pare ceres e artigos. Ele nunca escreveu um livro de teoria geral do direito, ressalvadas as incursões introdutórias de seu Lições prelimimires de Direito. Algumas pessoas que leram o meu livro Introdução jo estudo do Direito acham que fiz ali uma teoria geral do direito, ainda que com toda um a base filosófica, zetética. C ertam ente não o escrevi com essa intenção, mas com a intenção de es crever uma introdução ao estudo do direito que não fosse uma mera repetição das introduções que eu conhecia. Creio que de fato fiz algo diferente, pois não conhe-
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ço o utro trabalho de introdução, com esse título e voltado para o estudante que se inicia no direito, que tenha a mesma estrutura. M as penso que, para que ele pudes se ser considerado um a teoria geral, m uitos conceitos teriam de ser mais bem tra balhados, ou trabalhados dentro de uma visão mais conjugada.
Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade? A m inha form ação filosófica com eçou com um diálogo fecundo com a ciência do direito, e mesmo com outras ciências, com o a sociologia, a antropologia e a histó ria, mas sempre focalizando prioritariam ente o direito. Tal situação perdurou en quanto perdurou a minha atividade acadêmica pura. ou seja, até o começo dos anos 80, quando fui ser chefe do D epartam ento Jurídico da FIESP sem entender nada de advocacia. A partir dessa época, começou uma lenta transform ação da minha relação com o direito, que se com pletaria no início dos anos 90. Em bora eu continuasse ligado à ciência do direito e à filosofia, a vivência do direito com o advogado, com o p ro curador da Fazenda, com o secretário executivo de m inistério, tendo de lidar com os problem as concretos do direito, me fez m udar bastante todo o meu estilo didá tico. Sempre gostei de começar as aulas propondo um problem a a ser discutido, mas antes dessa m udança os problem as que eu propunha eram problem as estritam ente acadêmicos, enquanto depois dela passaram a ser problemas mais concretos. Se antes eu começava uma aula propondo, por exem plo, a questão “o que é a justiça?” , hoje entro com um problem a do tipo: “ O ntem o Supremo Tribunal Federal decidiu que a participação dos em pregados nos lucros tem de ser m udada de tal e tal m aneira” , e a partir dele começo uma discussão, digam os, sobre os direitos subjetivos. Perce bo hoje, p o rtan to , que a m inha m aior m otivação é a própria experiência profissio nal, a partir da qual vou para a reflexão teórica e filosófica. O que devemos entender pela caracterização feita pelo senhor do “es
tatuto tecnológico” do direito atual? Esse é um conceito que eu próprio desenvolvi. Ainda que me tenha valido, ao pre enchê-lo, de uma série de im portantes influências, não o retirei de nenhum autor. A idéia que me levou à noção de tecnologia foi a de explicar m elhor um tema anti go na teoria e na filosofia do direito — o tema do estatuto da ciência jurídica, que na tradição sempre foi vista com o ciência prática. Ao construir o conceito, joguei com a distinção entre zetética e dogm ática. Se existe, de um lado, um pensar epistêm ico que especula tudo que se queira especular, há tam bém um a atividade hu mana que, relacionada com isso, constrói no concreto soluções que são exigidas pela vida. E. nesse meio term o, há o problem a da passagem, que me levou ao conceito de tecnologia enquanto justam ente esse conceito interm ediário, que não é técnica mas tam bém não é epistéme. A dogm ática se encaixa nisso, e tam bém outros sabe res se encaixam , com o a econom ia e a medicina. Lembro-me que, quando comecei a usar essa idéia. Franco M ontoro me disse que a tinha achado interessante, mas me perguntou por que eu não usava simples
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mente, com o meu mestre Viehweg, o term o prudência, jurisprudência. Respondi que não era disso que estava falando, mas de tecnologia mesmo: estava dizendo que a ciência do direito, no passado uma forma de prudência, hoje virou uma tecnologia — o que não quer dizer que ela sempre o tenha sido. Seguramente os rom anos, por exem plo, não faziam tecnologia nos seus julgam entos, e talvez no caso deles o con ceito de prudência seja o adequado. .Aquele saber do qual falava Platão, sobre as norm as, era tam bém um saber de passagem — com o o filósofo passa das verdades para a “ verdade” aos ouvidos do p o v o — . mas estava longe de ser uma tecnologia. As cham adas ciências práticas são uma criação m oderna, respondem a um proble ma m oderno. .Vias M ontoro insistiu, dizendo que eu estava com isso degradando a ciência do direito. F. eu disse que estava mesmo, que a idéia era justam ente essa! |risos| Se se tom a com o padrão um certo ideal de nobreza do direito, é evidente que uma tal idéia o degrada. Podemos até, se for esse o caso, lam entar que isso tenha ocorrido, mas não podem os negá-lo. A ciência do direito se tornou de fato uma tec nologia, nesse sentido de que é um logos que operacionaliza as elucubrações teóri cas, criando condições de a técnica possibilitar decisões, obter resultados na dis cussão de conflitos etc.
Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda de. Como o senhor se posiciona em relação a esse debate? Em bora esse assunto fuja das m inhas preocupações, e eu não tenha com ele grande afinidade, tenho alguns pensam entos sobre a questão. Lembro-me de que, quando estava no colégio, a história da literatura era apresentada de um a m aneira um ta n to peculiar, segundo a qual a partir pelo menos do século XIX um elem ento im portante para se caracterizar a passagem de um período para outro era o escânda lo, que resultava da agressão operada pelo novo estilo em relação ao antigo — como, por exemplo, na representação do Ernani ou no aparecim ento dos quadros cubistas. De algum tem po para cá, no entanto, tenho a im pressão de que isso desapareceu. C^omo tudo passou a valer na arte, nunca vai haver escândalo com o novo. O u se entende ou se está por fora — isto é tudo. D iante disso, eu me pergunto: será que o fim do escândalo significa o fim da arte? ■Afinal, se não existe mais escândalo, tudo aquilo que costum am os atribuir à arte ou ao trabalho artístico, com o a espontaneidade, o ato criador, o m undo p ró prio etc., se perde. É como se a própria idéia da criação tivesse m orrido, porque não existe o novo. Se tudo vale, nada vale. Essa situação me parece perigosa, mas ao mesmo tempo desafiadora para a nossa cultura: será que há saída? Evidentemente, não dá para voltar atrás, recriar um am biente em que pudesse haver escândalo. Que fazer, então? Se pensamos nas experiências do m undo da música posteriores a Schõnberg, por exem plo, com o o dodecafonism o, temos a sensação de que a partir daí tudo passou a valer. O m áxim o que parece poder haver, em term os de agressão, é a agressão ao ouvido, porque se joga com sons que não têm nada que ver sequer com harm onias físicas. O u tro dia estava ouvindo uma música em que se m istura vam coisas com o apito, barulho de autom óvel, e assim por diante. Claro que há sempre um choque, mas é diferente daquele sentido de escândalo de que eu falava.
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N o ano retrasado, em N ova Y ork, fui à apresentação de uma orquestra no M etropolitan. Eles começaram o program a com Stravinsky, passaram por um moder no da década de sessenta, e na últim a peça, cujo au to r não me lem bro, o m aestro, entre outras coisas, colocou a percussão no alto e atrás da platéia, de tal m odo que às vezes ele se virava e lá do alto vinha o som do instrumento. Lembro-me que muitas pessoas abandonaram o espetáculo no meio, mas não senti de m odo algum que isso fosse um escândalo — simplesmente não haviam gostado. Parece-me portanto que, sem a pim enta do escândalo, fica m uito difícil decidir. Se a arte m orreu ou não, não posso responder. Só posso dizer que está num a situação bastante com plicada. M as ao mesmo tem po está posto, para o ser hum ano, o desafio de voltar a ser criativo.
É hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como o senhor vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que parecem desfrutaras questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias? Vou com eçar enfocando o problem a a p artir de um outro ângulo. A grande m u dança por que passa a política não diz respeito a um contraste do tipo globalização versus Estado N acional. Creio que seria mais fecundo, tendo em vista aspectos éti cos e jurídicos da política, pensar a questão da virtualização das relações, que é um fenôm eno cada vez mais presente na vida m oderna. Desse ponto de vista, proble mas com o o do Estado N acional ou da globalização surgem quando a vida e as relações hum anas se tornam virtuais. N o plano do direito isso vem colocando de safios enorm es aos quais não se têm ainda respostas. Em tese, existe por exemplo a possibilidade de, por meio do com putador que se tem em casa, entrar num jogo de pôquer de um cassino no Caribe. N o entanto, o jogo no Brasil é proibido. Com o disciplinar essa questão? Há com o proibir que se jogue aqui desta m aneira? Pois na verdade você não está jogando propriam ente aqui, e sim no Caribe. Problem as assim são colocados pela realidade virtual. Um o u tro exem plo, talvez o mais expressivo, é o do e-money, que é uma exas peração brutal da econom ia m onetária, levada a um ponto que nunca se tinha im a ginado. T rata-se de um a enorm e transform ação. N o prefácio ao livro de um cole ga, Fábio N usdeo, escrevi um ensaio irônico em que brinco que, se Goethe fosse vivo nos dias de hoje, diria que M efisto é responsável por esse dinheiro (o e-money), que é incom paravelm ente pior do que o que ele descrevia (papel-m oeda). Agora, no co n tex to dessa tran sfo rm ação , devem os pensar não no desaparecim ento do Estado N acional, pois não creio que ele esteja desaparecendo, e sim na virtualização desse Estado, que faz com que todas as suas propriedades tradicionais, com o o m o nopólio da violência, o exercício de coação, a adm inistração, o controle, se tornem fenôm enos virtuais. N ós podem os perfeitam ente im aginar uma situação em que o sujeito está di rigindo seu carro, atravessa um sinal vermelho, é fotografado e m ultado, e, qu an
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do chcga a sua casa, liga o com putador e verifica que o valor da multa já foi debi tado de sua conta bancária. Isso ainda não existe, mas seria factível hoje. E o único ato real que acontece aí é o sujeito guiando seu carro pelas ruas da cidade. Fora isso, todo o resto, que diz respeito a uma operação do Estado, está em hytes: o Estado passa a ser constituído mais de hytes que de átom os. Em term os de ação política, isso tem um im pacto gigantesco, sobretudo no sentido de que aquilo que concebía mos com o política, e que se constituía de relações hum anas reais, passa a consti tuir-se de um relacionam ento hum ano totalm ente reduzido a bytes, em que os in divíduos viram núm eros e inscrições de m aneira m uito mais radical do que na ve lha burocracia. O fazer político começa a depender m uito mais disso do que do parlam entar que profere um discurso no Congresso, e isso faz com que o Estado esteja m udando radicalm ente de perfil — uma m udança cuja dim ensão talvez só possam os sentir em uns dez, quinze anos. O ra, essa virtualização da política tem por conseqüência não propriam ente a prim azia das questões m orais, mas a prim a zia da notícia, enquanto uma “com m odity” , no debate público. O senhor escreveu um artigo de título “A trivialização dos direitos hum anos”, em 1990 (T>Iovos Estudos C ebrap, 28), em que podemos ler: “Trivialização significa que os direitos do homem, ao manterem sua condição de núcleo básico da ordem jurídica, nem por isso deixam de ser objetos descartáveis de consumo, cuja permanência, não podendo mais assentar-se na natureza, no costume, na razão, na moral, passa a basear-se apenas na uniformidade da própria vida social, da vida so cial moderna, com sua imensa capacidade para a indiferença”. De 1990 para cá, o senhor considera que esse estado de coisas permanece? Quais são, na visão do senhor, as tendências atuais do debate sobre os direi tos humanos? Esse trabalho, de 1990, na verdade se reporta a um trabalho anterior, da década de 70, em que pela prim eira vez escrevi sobre o tem a. O seu contexto inicial, p o r tan to , era o contexto do regime m ilitar, que já não havia nessa segunda ocasião. Apesar disso, decidi reescrever o trabalho para uma série de conferências que eu e Celso Lafer havíam os organizado em hom enagem a Goffredo da Silva Telles e cujo tem a eram os direitos hum anos. Um dos conferencistas que convidam os foi o |Gérardj Lebrun, e a sua conferência me instigou m uito, pois ele abordou o tema de um a m aneira que eu já vinha cogitando, e que me pareceu bastante razoável. Se nós pensarm os, por exem plo, no tratam ento que vem sendo dado aos direitos hum a nos nas últim as décadas, falando-se em segunda geração, terceira, quarta — e logo deve vir a quinta! — , tem-se a sensação — e foi esse o ponto abordado por ele — de que há um a proliferação excessiva de direitos hum anos. O que acaba tendo uma repercussão que é, a meu ver, uma espécie de trivialização, num sentido sem elhan te àquele em que discutim os há pouco a questão da arte: corre-se um enorm e risco de tudo virar direito hum ano fundam ental e, ocorrendo isto, nada mais ser direito hum ano fundam ental. A gora, de 1990 para cá nós tem os assistido, ao menos no Brasil, a uma cres cente conscientização em torno dos direitos hum anos e da necessidade de defendê-
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los. Tenho a sensação de ver hoje no Brasil algo similar ao que havia visto anos antes nos Estados Unidos, onde, fazendo um périplo por várias universidades, conheci algum as sociedades de defesa dos direitos hum anos e fiquei encantado com o que vi. Q uan d o fui secretário executivo do M inistério da Justiça, o que mais me per turbou foi a situação do Conselho de Defesa dos Direitos H um anos, cuja presidên cia o m inistro, por falta de tem po, acabava delegando a mim. Chegavam diaria m ente à m inha mesa, vindas do Brasil inteiro, denúncias e mais denúncias, em re lação às quais eu me sentia im potente, e ao mesmo tem po apareciam entidades am ericanas protestando contra a situação. Eu quis fazer alguma coisa, encaminhei diversas propostas ao m inistro, que era o B ernardo C abral, mas logo ele acabou saindo, e tam bém eu acabei saindo. De qualquer m aneira, tive aí uma experiência que me perm ite afirm ar, com relação aos direitos hum anos no Brasil, que a situa ção m elhorou bastante nesses últim os dez anos. T endo em vista a questão proposta, portanto, eu diria que houve, no caso do Brasil, mudanças positivas desde quando escrevi o artigo. Com relação à trivialização, no entanto, diria que o problem a continua: o risco de que tudo seja direito hum a no, e de que p o rtan to nada seja direito hum ano, é m uito grande. E o que acaba ocorrendo é que vêm à tona argum entos comt) a defesa da pena de m orte, coisas como: “Vocês ficam falando nos direitos hum anos dos presos. M as e os direitos hum anos da vítim a?” . Se tudo vira direito hum ano, cai-se num a retórica que é pura balela, e o que conta é a luta pela sobrevivência, cada um se virando com o pode.
Assistimos hoje a uma tensa concorrência entre dois fundamentos de legitimação últim a da ordem jurídica: os “direitos hum anos" e a “so berania popular”. Como o senhor vê essa concorrência? O conceito de soberania popular é um conceito com plicado, para dizer o mínimo. Bertrand De Jouvenel, ao discutir a questão da soberania, chega a afirm ar que o conceito não expressa nada. Segundo ele tenta m ostrar, o conceito de soberania, para ser levado a sério, tem que ser o conceito de soberania divina. Em bora eu não chegue a tan to , a partir dessa sua reflexão pode-se perceber que se trata realmente de um conceito que é m uito difícil de trab alh ar, sobretudo porque envolve a neces sidade de determ inar o que se entende por povo. Q uando da sua utilização jurídi ca, por exem plo, o que se tem é apenas um a noção abstrata que não envolve deta lhes, pois do co ntrário perderia a sua operacionalidade. A gora, abstrata ou não ab strata, a idéia da soberania, tal com o form ulada nas constituições, no direito constitucional, sempre jogou com a noção de direitos hum anos com o direitos re conhecidos, declarados, constituídos — sempre com o algo que está fora da sobe rania, algo a que ela não se subm ete. Até aí, nada de novo. N a medida, porém , em que se tem, no plano dos direitos hum anos, aquele risco da sua banalização, e, no plano da soberania, essa noção de povo, que do ponto de vista operacional, é com pletam ente vazia, a chance de m anipulação é enorm e dos dois lados. T anto se pode absorver direitos hum anos na noção de povo, com o se pode fazer o inverso, chegando a um uso dos term os em que a regulação ética fica com plicada. Agora, esta é uma análise zetética da questão, que levanta problem as sem solucioná-los. Eu apenas percebo que, do jeito que a coisa ficou, nenhum dos
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dois conceitos me dá segurança. A não ser, é claro, que eu faça deles um uso m era mente retórico — com todo o cinismo possível: se faço isso, tenho consciência de estar fazendo-o. É algo que pode perfeitam ente ser feito, ainda que com isto eu caia em toda a angústia hum ana e em todo o niilismo desse final de século.
Em seu artigo “Legitimidade na Constituição de 1988”, do ano de 1989, o senhor diagnostica algumas dificuldades na compatibilização de exi gências que seriam próprias de um Estado de Direito e de um Estado Social no Estado Democrático brasileiro, pois “a exigência do compro misso é um problema político nos seus meios e nos seus fins, enquanto a exigência de um quadro constitucional rigoroso é tipicamente um problema jurídico”. Nesse contexto, como o senhor vê os desenvolvi mentos ocorridos na década de 1990 do ponto de vista das reformas constitucionais operadas e da nova jurisprudência? Teriam elas pro duzido a “compatibilização” das duas perspectivas? O e io que ainda não. O debate que está acontecendo atualm ente, sobre a limitação do poder de editar m edidas provisórias, me parece ser um sintom a de que a coisa ainda não está bem -arranjada, de que ainda não conseguim os sair dessa situação. Lembro-me que escrevi um artigo, intitulado “ M edidas Provisórias Perm anentes?” , quando surgiu pela prim eira vez, ainda na época do governo Sarney, o problem a da reedição. Nesse artigo, eu defendia retoricam ente a posição clássica de que a palavra última deveria ser do Congresso: ou este deveria estabelecer um limite para as reedições, ou, não havendo votação, as m edidas provisórias deveriam ser consi deradas rejeitadas. Depois disso, porém , eu passei a fazer parte do governo e, na qualidade de secretário executivo do M inistério da Justiça, me vi confrontado com essa mesma situação: Fernando C ollor reeditando m edidas provisórias, a oposição pressionan do etc. E um dia fui levado à televisão para um debate virtual com Miguel Reale Junior — eu representando o governo e ele, pelo PSDB, representando a oposição. Ele, do lado de lá, protestava contra o excesso de medidas provisórias e de reedições das mesmas, e eu, do lado de cá, em bora um pouco receoso, disse que ele tinha par ticipado do processo constituinte m uito mais de perto do que eu. Cheguei a lem b rar, em plena televisão, que nós dois havíam os lutado juntos, na faculdade, con tra o decreto-lei, e acusei-o de ajudar a criar algo m uito pior — a medida provisó ria — , pois naquele pelo menos as coisas funcionavam de m aneira mais clara, e não havia reedições com alterações. Ele até adm itiu que se lem brava, mas insistiu que estava havendo um abuso, ao que eu procurei responder ponderando que não era bem assim. Nessa altura do debate, o jornalista vira para mim e diz: “ .Vlas o se nhor não escreveu um artigo contra a reedição indiscrim inada das medidas provisó rias?” . Fiquei então num a posição dificílima, e me saí com um a resposta um tanto cínica: eu disse que havia escrito o artigo enquanto jurista, e que havia de fato defen dido tal posição, mas argum entei que o jurista tem de se render à realidade jurisprudencial, e, com o o Suprem o havia aceitado, eu tinha m udado m inha posição. Alguns anos depois desse episódio, num congresso cujo tema envolvia medi das provisórias, lembro-me de ter feito a seguinte observação. Pensando nessa op o
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sição entre Estado de D ireito e Estado Social, o Congresso N acional, enquanto um dos poderes da República, é um poder cuja responsabilidade pública é diferente daquela que tem o Poder Executivo. Ela é uma responsabilidade m uito mais difusa: quando se faz uma dem anda ao Legislativo, esta dem anda é dirigida ao Congresso N acional com o um todo. Q uando se faz uma dem anda ao Executivo, ao contrário, trata-se de uma dem anda personalizada, seja na figura do presidente da Repúbli ca, seja na figura deste ou daquele ministro de Estado. É nesse contexto que podemos entender por que ocorre o que se cham a de abuso de m edidas provisórias por parte do Executivo: ele é acossado pela opinião pública de um a tal m aneira que não pode dem orar em dar respostas, não pode ficar esperando pela próxim a legislatura sem fazer nada. Independentem ente de ser urgente ou relevante, que são os term os da C onstituição, ele acaba recorrendo às m edidas provisórias por conta dessa pressão. Em outras palavras, podem os dizer que o Estado Social faz ao Estado de D ireito certas dem andas e este responde com m edidas provisórias. E não vejo saídas para isso no m om ento. Porque a alternativa inversa, que seria a de lim itar essa prática, parece m uito com plicada. Basta ver com o Fernando H enrique Cardoso, que antes era da oposição e defendia esta últim a alternativa, acabou sentido na pele aquela pressão, a ponto de recorrer m uito mais que seus antecessores à medida provisória. O que esse caso das m edidas provisórias m ostra, com relação à questão feita, é que essa oposição entre Estado de D ireito e Estado Social continua presente. Pelo menos no Brasil, fica claro que o Estado de D ireito tem pressupostos que não se coadunam com o Estado Social.
Ouve-se constantemente que a Constituição Brasileira de 1988 é “le tra m orta” no que diz respeito a vários dos direitos fundamentais nela inscritos. A partir desse caso, como pensar a relação entre a norma e sua eficácia? A meu ver a noção de eficácia tem , do p o n to de vista jurídico, dois sentidos: a cha m ada eficácia técnica, que se refere às condições de aplicabilidade das norm as do ponto de vista do próprio ordenam ento jurídico, e a cham ada eficácia social, que se refere às condições de aplicabilidade do ponto de vista da condição social à qual a norm a se volta. Se se obriga a freqüência da criança à escola até os 14 anos de idade, mas não se dão escolas ou condições mínimas para que a família possa sustentá-la, esta norm a é letra m orta. Creio que é a este segundo tipo de eficácia que a pergunta se refere. N o rol dos direitos hum anos, nós vemos coisas verdadeiram en te hilárias em term os dessas ineficácias. Um exemplo típico é essa discussão em torno do valor do salário mínimo. D ada a form a com o está definido o salário mínim o na C onstituição — um valor suficiente para o indivíduo sustentar a si m esm o e a sua família — , é evidente que o salário mínim o atual é uma gargalhada. M as o argu m ento de que não seria possível um salário m ínim o de cem dólares, porque iria arrebentar com a Previdência, m uitas prefeituras iriam à falência etc., é um argu m ento sério que diz respeito à eficácia social da norm a: não existem condições para que se faça isso. A partir disso, chegamos a uma interpretação um pouco cínica da eficácia: para a norm a ter condições de sucesso, no atingim ento da eficácia social, estas condi
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ções podem ter de dizer respeito à sua não-apiicação. Em outras palavras, existem norm as que se to rn am eficazes justam ente porque não se realizam, e, caso se reali zassem, produziriam um caos. Luhm ann, que é tam bém um cínico, ilustrava essa situação com o exem plo do trânsito nas cidades grandes, com o Paris, N ova York, Berlim. Em bora exista uma série de vias em que o estacionam ento, ainda que por poucos m inutos, é proibido, a verdade é que ninguém respeita essas norm as. E por que isso acontece? Por que as pessoas gostam de desobedecer? Isto pode até ser verdade em alguns casos, mas o que realm ente ocorre é que, se a polícia fosse colo cada em todas as partes para fiscalizar o cum prim ento dessas norm as, o trânsito pararia com pletam ente. P ortanto, conclui Luhm ann, esta é um a norm a cujo suces so depende de ela não ser aplicada com rigor. É assim que eu responderia. Existem norm as que não podem ser aplicadas com rigor porque, se o fossem, haveria um caos social. E é este o caso dos direitos hu manos. Q uando o governo esperneia, e diz que não é possível conceder um aum en to m aior, não é porque o presidente não queira concedê-lo, mas sim porque existe um fundo de verdade na sua posição. Q ualquer governante, dem agogicam ente ou não, diria que adoraria elevar o salário m ínimo para mil dólares, mas que não pode fazê-lo. O u seja, se se fosse obedecer à risca a C onstituição, estouraria tudo, e aí não haveria mínim o nem “ não-m ínim o” . M as o certo, então, seria tirar essa n o r ma da C onstituição? Talvez não. Talvez o m elhor seja deixar com o está, porque isto tem uma eficácia simbólica im portante — habemus solarium minimum. Essa resposta pode ser cínica, mas ela tem uma outra repercussão se pensar mos em todo o rol dos direitos hum anos em nossa Constituição: é impossível tra balhá-los sem fazer aquilo que os alem ães cham am de sopesam ento. Um direito fundam ental só tem sentido na medida em que é contraposto a outro — por exem plo liberdade de im prensa e privacidade. Há que se conviver com isto, há que se aceitar que nenhum direito fundam ental tem eficácia plena, que todos eles sofrem essas limitações que fazem da sua eficácia, até certo ponto, uma eficácia simbólica — que nem por isto deixa de ser im portante. N ós não vamos retirar a privacidade da C onstituição para garantir a liberdade de im prensa, nem vice-versa. Isso é algo de que o intérprete tem que tom ar consciência para poder lidar com o problem a e tom ar decisões.
Como o senhor caracterizaria a sua relação com a religião e a fé? N o passado, na época do colégio jesuíta, essa relação foi m uito intensa, no sentido de aceitação. Depois passei por uma ruptura, e nunca mais tive qualquer relação com a religião institucional — a não ser talvez uma relação externa, do tipo sujeito-objeto: eu olho para as religiões. N o caso da fé, a coisa é diferente. Desde que me distanciei da religião, essa é uma questão que nunca deixei de me colocar. Na forma da crença em algum a coisa, a fé é algo que não se sustenta, pensando até do ponto de vista filosófico. Há m uito tem po tenho sentido, talvez paradoxalm ente, que a fé tem a ver com a dúvida: ela subsiste apenas na medida em que nós temos dúvidas. O nde a dúvida desaparece, a fé desaparece junto — daí ela estar sempre ligada a dogm as. Penso portanto que, do ponto de vista pessoal, o que alim enta a fé é a m inha postura de dúvida.
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Esses dias eu esrava lendo um livro de V'ilem Flusser, que saiu recentem ente, intitulado A dúvida. Ele aborda esse tema de um a maneira que me pareceu muito interessante. Segundo o seu raciocínio, sempre que ocorre uma reflexividade — a arte se to rn ar objeto da própria arte, por exem plo, ou, no nosso caso, a fc se tornar objeto da própria fé — , ocorre um curto-circuito que elimina o sentido do objeto. O u seja, a arte sobre a arte elimina a arte; a fé sobre a fé elimina a fé. Eu encaixaria isso no que estava dizendo: ou a fé m antém um sentido de dúvida ou ela é eliminada. E, neste sentido, eu diria que o meu relacionam ento com a fé é um relacionam ento com a dúvida, o que perm ite inclusive o aparecim ento, em term os de religiosidade, de um a virtude que me parece im portante: a hum ildade, cujo vício correspondente é a soberba. Quem tem dúvida, não tem condição de ser soberbo. Deus existe? N ão sei. .Vlas tam bém não tenho força para dizer que não existe. Isto seria então uma espécie de agnosticism o? Talvez, mas não estou preocupado com o agnosticism o, e sim com a dúvida, que me provoca naturalm ente essa sensação de hum ildade.
Como o senhor se situa em relação aos problemas de uma “mudança de paradigm a” da filosofia, de uma filosofia “pós-metafísica” calcada na linguagem? Creio que há aí duas coisas diferentes. Q uan d o pensam os em filosofia “ pós-metafísica” , estam os pensando na filosofia analítica. M as, quando pensam os em filo sofia centrada na linguagem, não estam os necessariam ente pensando em filosofia “pós-metafísica” — é o caso de Heidegger, por exemplo. De qualquer m odo, a preo cupação com a linguagem com o núcleo do pensar filosófico tem uma consequên cia sim iliar a essas que conduzem a form ulações niilistas. Eu poderia dizer algo parecido com o que acabei de dizer em relação ã fé: a linguagem tornada objeto de si mesma pode acabar por esgotar-se enquanto linguagem. Esta seria talvez uma forma de entenderm os a frase de W ittgenstein: “Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se ca la r” . Q uando a linguagem se torna objeto de si mesma, não se tem mais do que falar; só se pode ficar m udo. Isso remete àquela minha discussão com Porchat e ao que ele dizia: se a filo sofia se tornou sua própria história, não há mais o que dizer; só lhe resta a opção do silêncio. .Agora, a questão é saber se tal situação implica que a metafísica aca bou. Se pensarm os desse ângulo que cham o de pragm ático, eu diria que não, p o r que, com o escrevi na resposta a Porchat, se o m utism o, tan to o dele com o o de W 'ittgenstein, é na verdade uma fala, configura-se então uma fala que não fala, e isto por sua vez nos leva inevitavelm ente à questão do nada, de tal m odo que a metafísica, expulsa pela porta, reaparece entrando pela janela. P ortanto, salvo tal vez os positivistas, que são de fato os únicos a fechar a fala dentro dela mesma, eu diria que a filosofia da linguagem, na medida em que se m antenha reflexiva, não acaba com a metafísica.
A partir da década de 1960 e durante pelo menos as três décadas se guintes, houve enormes investimentos teóricos no sentido de uma refor mulação do direito nos termos da “virada lingüística”. Quais foram, na visão do senhor, os resultados dessa empreitada?
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Prim eiram ente, eu apontaria, com o um dos frutos disso, o reconhecim ento da im portância da lógica para o direito. .Ainda que não seja um reconhecim ento que se dê na linguagem prática do direito, o fato é que a lógica, no seu sentido contem po râneo, vem ganhando um novo estatuto dentro do direito, tornando-se o seu estu do algo im portante na form ação dos juristas. Uma outra conseqüência é que se começa a perceber, no plano da dogm ática, uma preocupação m aior com o fenó meno da própria língua — em autores que não são filósofos do direito e até mes mo no jargão usual. Neste sentido, portan to , eu diria que muita coisa m udou. Q u an to à filosofia do direito, por o utro lado, a grande conseqüência desse processo, a meu ver, é que não há mais com o ficar indiferente à questão da lingua gem. Ainda que seja para negar ou reduzir im portância, qualquer filosofia do di reito que não tom e hoje posição diante dela será desconsiderada. Uma terceira coisa a m encionar, por fim, com relação a isso, é o que vem ocorrendo no Brasil. C om parando com a A rgentina, por exem plo, podem os dizer que aqui, embora esteja ocorrendo, esse desenvolvimento, e toda a preocupação com a lógica e com a linguagem, foi sempre m uito mais lento e menos intenso. O senhor utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do futuro da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia? H á cerca de oito anos, num a conversa com aquele amigo alem ão que já mencionei, o professor W olf Paul, ele me disse, e isto na época me im pressionou m uito, que na Alemanha se vivia uma espécie de m arasm o em term os de utopias, porque todas elas já tinham sido satisfeitas. Agora, se identificarm os utopia com aspirações, com sonhos que não se concretizam , creio que posso dizer, com relação a esta pergun ta, algo sim ilar ao que disse com relação ao fim do século, ao problem a da arte, à questão da fé. Ou seja, a utopia é algo que faz sentido num a sociedade em que o escândalo funciona. N o caso da im prensa, por exem plo, o escândalo seria algo fundam ental. .A partir do m om ento em que o escândalo se banaliza, a sociedade passa a ressentir-se de uma sensação de m arasm o parecida com a que Paul descre via — não porém no sentido de que as utopias tivessem sido realizadas, mas no de que se perdeu a sensibilidade para o escândalo, nos diversos setores da sociedade. O nde tudo se trivializa, a utopia perde seu sentido funcional. .Assim, prefiro dizer que visualizo o futuro da sociedade hum ana mais num a perspectiva niilista, de es peranças vazias, do que utópica. O que, diga-se de passagem, não é um juízo de valor, mas de realidade.
Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos como riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em larga escala e alienação cultural em massa. Como o senhor vê tais pro blemas? Permanecendo na mesma tem ática, creio que essa forma de destruição pode ser vista com o uma conseqüência exacerbada do ser hum ano tornado objeto de si mesmo. A percepção da vida hum ana com o realização, com o posição, com o criação, con fere ao homem uma sensação de ilim itado — tudo é hum ano, tudo é realizável. Isto gera, de um lado, um aum ento da potencialidade do hom em , mas de outro lado
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gera a possibilidade de sua destruição. O que me parece, portanto, é que essa cir cunstância, quando levada ao extrem o, conduz a uma autodestruição, na medida em que não se consegue mais contrastar isso com outra coisa, isto é, na medida em que há uma trivialização tam bém dessa possibilidade de o homem fazer o que quer. O hom em torn ad o objeto de si mesmo é o hom em da técnica, é o homem para o qual, com o diz H annah A rendt, tudo é possível — desde a arte e a ciência até a política e a relação com o am biente. Assim, não havendo limite, o risco de au to destruição é total: agressão am biental, agressão à vida em geral etc.
1’rincipais publicações: 1970 1973 1976 1977 1978 1978 1981 1988 2000
Die Zweidimensionalität des Rechts als Voraussetzung für den M ethoden dualismus von Emil Lask (M eisenheim -Glan: Anton H ain Verlag); Direito, retórica e comunicação (São Paulo: Saraiva, 1997); Conceito de sistema no Direito (São Paulo: Revista dos Tribunais); A ciência do Direito (São Paulo: Atlas); Função social da dogmática jurídica (São Paulo: Revista dos Tribunais); Teoria da norma jurídica (Rio de Janeiro: Forense); A filosofia e a visão comum do mundo (co-autor) (São Paulo: Brasiliense); Introdução ao Estudo do Direito (São Paulo; Atlas). “ O Justo e o Belo; N o tas sobre o D ireito e a Arte, o Senso de Justiça e o G osto A rtístico” , Revista da Pós-G raduação da Faculdade de Direito da USP, vol. 2, 2000.
Bibliografia de referência da entrevista: Arendt, H. Lições sobre a filosofia política de Kant, Relum e-D um ará. Aristóteles. Retórica, M adri: C entro de Estúdios Constitucionales. Flusser, V. A dúvida, R elum e-D um ará. G adam er, H. G. Verdade e método. Vozes. G oldschm idt, V. A religião de Platão, Difel. H aberm as, J. Teoria de la acción comunicativa, M adri; Catedra. Heidegger, M. Chemins qui ne mènent nulle part, Paris: Gallim ard. Kelsen, H. Teoria pura do Direito, .Martins Fontes. Luhm ann, N. Sociologia do Direito, Tem po Brasileiro. __________ . A nova teoria dos sistemas. Editora da UFRGS/Goethe Institut. Platão. A República, Lisboa: Fundação C alouste G ulbenkian. Viehweg, T. Tópica e jurisprudência. Im prensa N acional. W atzlaw ick, P., Beavin, J. H . e Jackson, D. D. Pragmática da comunicação huma na, Cultrix. W ittgenstein, L. Tractatus logico-philosophicus, Edusp.
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MARILENA CHAUI (1941)
M arilena Chaui nasceu em 1941, em São Paulo (SP). G raduou-se em Filoso fia pela Universidade de .São Paulo, onde obteve o grau de mestre em Filosofia, além dos títulos de d o u to r e livre-docente em Filosofia. Fundadora do C entro de Estu dos de C ultura C ontem porânea (CEDEC), foi tam bém secretária municipal de cul tura de São Paulo e presidente da Associação N acional de Pós-G raduação em Filo sofia. É professora titular da USP. Esta entrevista foi realizada em abril de 2000.
Goethe dividiu a vida de seu personagem W ilhehn Meister em dois romances. O s anos de aprendizado e Os anos de peregrinação. No pri meiro, o foco está posto na formação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um hom mote para que você nos falasse de sua formação intelectual? Penso que sim, mas eu am pliaria a form ação para além do aprendizado, fazendo-a incluir tam bém a peregrinação. Q uero dizer: a própria peregrinação tem sido for m adora. O aprendizado assinala a dependência e a peregrinação assinala a au to nom ia, porém a form ação inclui am bos. Ainda que eu hoje freqiíente os outros de uma m aneira m uito diversa daquela em que os freqüentava na juventude, quando o fazia para aprender, e não para interpretar, criticar ou me por de acordo, o fato é que se trata de um a form ação contínua, que prosseguiu mesmo depois de eu ter teses prontas, trabalhos escritos e assim por diante. Para responder ã pergunta fei ta, po rtan to , tenho de levar em conta uma longa form ação que abrange tam bém “os anos de peregrinação” . Eu colocaria o início desse trajeto na minha infância em Pindoram a, até os 10 anos, período em que, retrospectivam ente, percebo algum as coisas que foram m uito im portantes para o rum o de m inha form ação. De um lado, a naturalidade com que m inha família encarava a educação pública laica (minha mãe é professora prim ária), fazendo-m e freqüentar o G rupo Escolar, em que fui despertada para o patriotism o, e, de ou tro , a ausência inicial de uma educação religiosa propriam en te dita, em bora, de família católica, eu freqüentasse a Igreja. N a época de minha prim eira com unhão, por exem plo, uma tia me dissuadiu de fazer o catecismo, e ela própria me deu as aulas preparatórias, de uma m aneira que fugia com pletam ente aos cânones mais ortodoxos. Só depois disso, ela me fez ler o Catecism o, pois eu teria que passar p o r uma prova, dizendo-m e para decorá-lo sem me preocupar com o que aquilo queria dizer. E ela tinha razão, pois me lembro que a prim eira per gunta era: “Q uem é D eus?” , e a resposta, “Um Ser perfeitíssimo, criador do Céu e da T e rra ”, o que era perfeitissim amente incompreensível para os meus sete anos!
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(mas, se vocês viram o livro que acabo de escrever, a pergunta ficou, não é mes mo?). Além da escola pública e do patriotism o, minha form ação, nessa época, se deu em grande medida através da leitura de M onteiro Lobato, que fiz de ponta a ponta; do cinem a, pelo qual sempre fui fascinada; das histórias em quadrinhos, ou, com o se cham avam na época, os gibis; e dos contos m aravilhosos que a im agina ção de m inha tia produzia. A partir dos 10 anos, porém , por problem as familiares, fui enviada para um colégio de freiras, na cidade vizinha, C atanduva, e, aí sim, tive uma form ação reli giosa intensa. Pois foi som ente então que, pela prim eira vez, ouvi falar de uma coi sa terrível cham ada pecado. M as o primeiro resultado curioso da form ação religiosa foi a junção impossível que fiz de M onteiro L obato (agora tam bém o Lobato de “ U rupês" e de “ O escândalo do petróleo e do ferro") e catolicismo! E evidente que na época eu não o percebia, mas duas influências diam etralm ente opostas se reu niram dentro da m inha cabeça, deixando com o m arca, seja através da via católica, seja através da via L obato, um a sensibilidade enorm e para as situações de injustiça — pessoais ou sociais — , com binada com um com ponente do m aravilhoso (vindo do próprio L obato, dos rom ances de cavalaria, das vidas de santos, do cinema e do gibi), fazendo-me ter uma concepção heróica do m undo e da ação hum ana. Esse heroísm o da ação individual abnegada, que traz a justiça para dentro do m undo, levou-me, num a certa altura, ao desejo de ser freira e tornar-me missionária na África. Depois desse período no colégio de freiras (que durou quatro anos), nós nos m udam os para São Paulo e eu voltei para a escola pública, indo cursar a quarta série ginasial no Colégio Presidente Roosevelt da Rua São Joaquim , onde eu cursa ria os três anos do Colegial Clássico. C om o passam os a m orar num apartam ento bastante pequeno, a biblioteca de meus pais, que até então preservavam num a sala à parte, ã qual eu não podia ter acesso, ficou espalhada pela casa. E foi então que pude ler três livros que sempre me haviam cham ado a atenção: A psiccuiálise no
alcance de Todos; Do socialismo utópico ao socialismo científico; Filologia da lín gua portuguesa. N um gesto de coragem , me pus então a lê-los, nessa ordem . Com o prim eiro, fiquei absolutam ente deslum brada, tive a sensação de que a minha vida passava a fazer sentido: agora eu com preendia por que fazia certas coisas, por que não fazia outras, por que am ava ou sentia repulsa por certas pessoas, por que ti nha medo disso e daquilo, por que sonhava etc. Q uem me conhece pode imaginar o que eu, com um livrinho de “ psicanálise ao alcance de to d o s” na m ão, produzi em term os de conhecim ento psicanalítico! (Risos) M as o mais im portante é que esse foi um prim eiro instante em que me ocorreu o pensam ento de que talvez o que me tinham ensinado no colégio das freiras, isto é, o sentido e o peso do pecado e da culpa, eu não precisasse me confessar para um padre, que talvez eu pudesse, em vez de me confessar, ficar sentada e tentar entender a mim mesma. Eu diria que Freud foi um dos principais responsáveis por me conduzir ao deslocam ento da culpa; o meu problem a não era com Deus, e sim com o superego. E isto já era um avanço enorm e. Foi então que li Do socialismo utópico ao socialismo científico, e tudo ficou ainda mais claro: “ M as é evidente! M as é óbvio! Eu esperava ser m issionária, ou ser com o um herói dos gibis, sair pelo m undo com batendo a injustiça... tudo isso é
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M a rile n a C h a u i: “ O m ito fu n d a d o r, fu n d o te o ló g ic o -p o iític o q u e su s te n ta o im a g in á rio s o cial e p o lítico , se c o n s tró i co m a figura d o Brasil c o m o e feito de três o p e ra ç õ e s d iv in as sim u ltâ n e as: o Brasil e o b ra d e D eus — a n a tu re z a p a ra d isía c a — , é p la n o de D eus — a h istó ria p ro v id e n c i al q u e asseg u ra q u e este é o país d o fu tu ro — e é v o n ta d e de D eus — p o r q u e m é in stitu íd o o Es ta d o e d e fin id o o g o v e rn a n te . S ag ra ç ã o da n a tu re z a , sa g ra ç ã o d a h istó ria e sa g ra ç ã o d o p o d e r são os p ilares de n o sso m ito fu n d a d o r ” .
socialismo utópico! N ão vai resolver nada! Existe uma ciência que realm ente ex plica com o a sociedade é e com o é possível, por meio de uma ação cientificamente com provada, tirar a injustiça do m undo!” . A leitura do texto de Engels teve p o r tan to , do p onto de vista do meu destino, um im pacto igual ao d ’.4 psicanálise ao alcance de todos: se este me ensinava com o eu poderia entender-m e a mim mesma, aquele me ensinava com o eu poderia agir para m udar a sociedade. Por fim, li o livro de filologia. Em bora não tenha tido o mesmo im pacto exis tencial, com o no caso de Freud e Engels, foi uma grande descoberta saber de onde as palavras tinham vindo e o que elas queriam dizer e isso despertou um sentim en to de encontro de mim mesma, já que desde pequena eu tinha tido essa curiosida de. Lem bro-m e que, ainda criancinha, eu ficava pronunciando as palavras e me perguntando de onde elas vinham — “ n o ite”, por exem plo, era uma palavra que me assom brava. O u então, um pouco mais tarde — com 6, 7 anos — , eu me intri gava com algum as palavras abstratas. Certa vez cheguei a perguntar para minha mãe: “.Vlãe, o que é a nação? Eu não vejo a nação, não seguro a nação, não toco a nação! C adê a n ação?” . Ela me deu um a explicação, dizendo que a nação era o conju n to dos brasileiros, tu d o aquilo que havia no Brasil, a terra etc., mas esta explicação não me satisfez — a nação continuou sendo uma abstração incontrolável. Já no livro de filologia, porém , tu d o com eçou a fazer sentido: por que nação é n a ção; por que noite é noite; por que branco é branco etc. Foi um milagre, um desvendam ento do m undo. O “ m undo em si” passou a fazer sentido porque as palavras passaram a fazer sentido. N o Colegial Clássico comecei a ter aulas de filosofia com o professor João Vilialobos, que era extraordinário. Ele com eçou, no prim eiro ano (para uma m eninada de 15 anos), d ando lógica, e, no prim eiro dia, sem maiores explicações, fez uma exposição sobre Parmênides! Vocês podem imaginar o que era, para quem tinha apenas 15 anos e não sabia de nada, um curso de filosofia que com eça com Parmênides! Depois da sua prim eira aula, quando ele saiu da sala, foi aquele alvoroço: “ O que é isso? O que ele falou?” . M as a minha reação não foi essa. Eu fiquei num com pleto silêncio, incapaz de dizer qualquer coisa. Aí houve a se gunda aula e ele falou sobre Z enão de Eléia. C ontinuei não entendendo nada, mas algo me pareceu fascinante na idéia de que o m ovim ento talvez fosse diferente d a quilo a que costum am os cham ar m ovim ento, de que talvez a realidade não se m o vesse. O terceiro au to r que ele apresentou foi G órgias, e, no meio da argum enta ção de G órgias sobre o ser e o não-ser, percebi aonde o Vilialobos e o Górgias es tavam querendo chegar: estavam querendo fazer-nos pensar sobre o pensam ento. E até então eu não sabia que se podia pensar sobre o pensam ento, nem que se po dia pensar e falar sobre a linguagem. Isto me deixou encantada, fiquei rindo à toa — algo que as m inhas colegas sim plesm ente não conseguiam entender. Elas me diziam: "C om o você pode estar contente? N ós vam os tirar zero na prova e você fica dando risada?!” . E cu dizia a mim mesma: “ .Vias elas não estão percebendo o que ele está ensinando para a gente? Ele está ensinando que nós podem os pensar o pensamento, que nós podemos falar sobre o falar, pensar a linguagem!” . N o segundo ano, tivemos história da filosofia e, no terceiro, além de história da filosofia, uma iniciação à psicanálise. Além do curso de filosofia, preciso lem brar que foram deci sivos na m inha form ação o curso de história do Brasil, em que liamos os livros de
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Caio Prado Jr. (pondo em crise o meu patriotism o), o de português, quando desco bri Carlos D rum m ond, M achado e G uim arães (fazendo a descoberta da literatu ra), o dc latim , com a leitura de Cícero e Virgílio (chegando assim ao m undo clás sico). Escola pública de verdade. Com esse aprendizado, acabei escolhendo fazer filosofia porque senti que ela, e não mais a religião, me daria uma com preensão racional e totalizada do m undo. D urante o exam e vestibular, na prova oral de filosofia, o professor Lívio Teixeira veio me exam inar, perguntando-m e, no final, por que eu tinha escolhido fazer filo sofia. Respondi que era porque eu tinha muitas dúvidas — dúvidas sobre o sentido do m undo, o sentido das coisas, o sentido da m inha vida; dúvidas sobre a verdade da religião; dúvidas sobre com o a sociedade poderia ser mais justa — , e porque eu gostaria de resolver um problem a que me atorm entava desde m uito cedo — o pro blema de uma culpa originária, de uma culpa m aior do que ser culpado disto ou daquilo e o problem a de com o era possível que um Deus justo e misericordioso me tivesse criado para deixar que eu pecasse para depois me punir. E ele me pergun tou: "A senhora acha que a filosofia vai resolver todas essas dúvidas?” . Eu respon di: “ Ah, vai! Lógico que vai!” (risos). E ele disse: “ A senhora está tão enganada! A senhora vai ver que as suas questões vão aum entar em núm ero e que cada uma delas vai se tornar muito mais complicada do que a senhora imagina! A senhora quer fazer filosofia assim m esm o?” . Resposta imediata: “ Q uero, professor, porque tenho cer teza de que a filosofia vai resolver os meus problem as!” . Ele sorriu benevolamente e assim eu entrei para a Faculdade de Filosofia. E o professor Lívio não podia pre ver que ele, afinal, seria responsável pelas respostas às m inhas dúvidas quando m inistrou um curso sobre Espinosa... Q uanto ao período da minha graduação, para entendê-lo é preciso ter em conta que foi feito num D epartam ento dc Filosofia anterior à ditadura e à reform a pro veniente do projeto M EC-USAID, isto é, do projeto de m assificação e de mera escolarização a que foi reduzida a universidade pública, destinada, doravante, a servir de tram polim para a ascensão social de uma classe média que serviu de suporte ideo lógico para os ditadores e para fornecer diplom as para currículos voltados para a com petição no m ercado de trabalho. O D epartam ento que freqüentei era universi tário no sentido forte do term o: poucas disciplinas, poucas hora-aula, aulas prepa radas por escrito e m inistradas com esm ero, m uito tem po para leituras e trabalhos, diversidade de perspectivas docentes e de investigação. Em bora nele começasse a prevalecer a técnica de leitura estrutural de textos e a inclinação preponderante para a história da filosofia, das ciências e das artes, nele era igualm ente im portante a form ação trazida pela epistem ologia, pela filosofia política, pela estética e pela li teratura, e tam bém vigorava um debate sobre a técnica de leitura estrutural, que privilegia o com entário contra a interpretação e recusa a presença da história na tram a da própria obra filosófica. Era tam bém um D epartam ento com pluralidade de perspectivas políticas, indo da posição liberal à trotskista, mas atento aos riscos da ideologia, ainda que, com o iria observar anos depois o Paulo A rantes, estivesse im pregnado de espiritualism o francês. N o ano em que terminei a graduação, foi criada a pós-graduação, que era m uito simples: um curso magistral com a duração de um ano e a apresentação de um a tese de m estrado, ao cabo de dois anos. O
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doutoram ento não fazia parte da pós-graduação e sim da carreira universitária, in cluindo, pro-form a, a figura de um orientador, mas sendo, na realidade, já um tra balho independente e de m aturidade intelectual, sem prazo para a apresentação. O m undo dos créditos, prazos, cursos obrigatórios e optativos, área e dom ínio conexo (enfim, todo o besteirol que conhecemos), foi fruto da reform a ditatorial. Fazendo um balanço desse período, creio que as m arcas mais profundas em minha form a ção foram: a técnica estrutural de leitura; a fenomenologia e o existencialismo como conteúdo da filosofia; e o m arxism o, por mais precário que fosse o meu m arxism o, com o chave p ara decifrar a realidade brasileira. Era esse o meu horizonte quando escolhi .Vlerleau-Ponty para meu m estrado.
Que problema teórico a levou a Merleau-Ponty? A relação entre filosofia e m arxism o, a partir d ’As aventuras da dialética e de Si nais, que era o que eu conhecia de .Merleau-Ponty. Bento Prado, meu orientador, me propôs o tema (a crítica do hum anism o) e um roteiro de trabalho que com eça va em Sens et Non sens e iria term inar n ’As aventuras da dialética. N o entanto, em vez de com eçar por Sens et N on sens, comecei esse itinerário pel’O visível e o invi sível, me detive na prim eira nota de trabalho das notas colocadas no fim do livro, e acabei m udando meu percurso, concentrando-m e nas questões de fenomenologia e ontologia e As aventuras da dialética sequer entraram na dissertação. Se o trajeto inicialm ente planejado era resultado da m inha form ação na graduação, ainda que ajustado pelo Bento, as leituras novas que tive de fazer — A fenomenologia da percepção, A estrutura do comportamento — acabaram levando-me à crítica merleaupontyana das filosofias da reflexão e da representação, do em pirism o e do objetivismo cientificista, e determ inaram minha relação com a filosofia daí em diante. T an to assim que foi com essa perspectiva que eu participei do segundo grupo de leitura de O Capital (com Ruy Fausto e R oberto Schwarz) e dei minha contribui ção ao prim eiro núm ero da revista Teoria e Prática escrevendo notas explicativas para um ensaio de G orz sobre a Crítica da razão dialética, de Sartre. £ como foi a decisão de estudar Espinosa no doutorado? Depois do m estrado, tornei-m e professora do D epartam ento de Filosofia (em ja neiro de 1967) e, seguindo a tradição do D epartam ento, fui enviada à França para concluir meu aprendizado e aprim orar m inha form ação. Pretendia continuar estu dando a relação entre a fenom enologia e o existencialism o, sendo a minha idéia trabalhar com Eric Weil em Lille. M as G iannotti chegou para mim e disse: “ Marilena, você tem uma im aginação excessiva e é m uito indisciplinada. Você precisa de dis ciplina, e por isso não pode continuar estudando filosofia contem porânea. Você deve estudar um clássico” . Desde o curso do professor Lívio, eu secretam ente desejava estudar Espinosa e não o fizera por achá-lo um filósofo m uito acima de m inhas for ças. M as, agora, concordei: “Então está bem. Vou estudar E spinosa” . E fui para a França estudar Espinosa, com Victor G oldschm idt, em C lerm ont Ferrand. A m inha idéia era estudar a ausência do negativ'o na filosofia de Espinosa porque eu estava influenciada pela interpretação de Hegel feita por G érard Lebrun, meu professor na graduação e que dera nosso primeiro curso de pós-graduação com
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uma exposição da negação da negação em Hegel, usando o exem plo de Espinosa com o o contraponto perfeito da posição hegeliana. E estava tam bém m uito inte ressada, graças a M erleau-Ponty, na questão da indeterm inação e da contingência, que tam bém tinha com o contrap o n to a necessidade absoluta espinosana. Q uando mostrei a G oldschm idt meu projeto, porém , ele ficou um tan to horrorizado, dizen do-me que aquilo era inviável, pois eu estaria tentando procurar em Espinosa algo que não há, estaria tentando colocar para Espinosa questões que ele exclui de prin cípio. E eu lhe respondi que queria justam ente entender por que ele as exclui. Q ue ria entender o que leva Espinosa a recusar a negação e a contingência, quais os fundam entos dessa recusa. Evidentemente, G oldschm idt, enquanto um historiador da filosofia que trabalhava com a noção de responsabilidade filosófica, ou seja, de não ir além daquilo que o filósofo disse explicitam ente, escreveu e assinou, não gostou da m inha teim osia. Ele disse que me deixaria continuar, mas que eu não chegaria a lugar nenhum . Eu fiz então uma análise do prim eiro capítulo da prim ei ra parte dos Pensamentos metafísicos, e lhe mostrei. Dias depois, me disse que ha via gostado m uito, e reconheceu que, se me deixasse prosseguir na m inha teimosia, talvez aparecesse algum resultado interessante. Depois disso, no entanto, ocorreram os acontecim entos franceses de 1968, a parada total da rotina acadêm ica, as barricadas de Paris, o crescim ento político da contestação d errubando o PCF jPartido C om unista Francês) e o PS (Partido Socia lista], a greve geral, a exigência que De Gaulle renunciasse. Iniciava-se meu segun do ano na França e G oldschm idt enviou-me para Paris (ele me enviou para a Sorbonne, mas, evidentem ente, eu fui para Vincennes, onde tudo que havia de insti gante na filosofia e na política estava acontecendo), num m om ento em que, creio, completa-se o meu ciclo de form ação-aprendizado propriam ente, pois foi então que li Lênin, T rotsky e M ao (e convivi com o grupo trotskista de Rouge), descobri .Marcuse e Reich e, por meio deles, os frankfurtianos. Era em Paris que eu ficava sabendo do que se passava no Brasil, dos acontecim entos da rua M aria A ntônia; e foi a Paris que, no início de 1969, com eçaram a chegar os exilados, os professores cassados pelo AI-5, as notícias do desm antelam ento do D epartam ento de Filoso fia. E resolvi antecipar a m inha volta, inicialmente prevista para 1970, e voltar em 1969 para ajudar a preservar o que restara do D epartam ento, que havia sido esfa celado e que, a duras penas, a professora Gilda de M ello e Souza dirigia. Uma vez aqui, nas circunstâncias terríveis em que a esquerda se encontrava, achei que eu tinha a obrigação política e moral de fazer um trabalho que tivesse algum sentido para quem vive no Brasil. Continuei a preparar o d outorado, mas abandonei o tema da negação e da contingência (ou m elhor, da afirm ação da cau sa de si e da necessidade absoluta) e passei a estudar os textos políticos de Espinosa e, neles, a superstição e a violência, trabalhando uma obra de Espinosa que, na época, ninguém trabalhava — o Tratado teológico-poiítico. Q uando eu ainda estava nas anotações de leitura, porém , o professor Miguel Reale, ã época reitor da USP, m an dou avisar dona Gilda que o nosso D epartam ento corria sério risco de intervenção, pois não preenchíamos o núm ero de titulações estipulado legalmente. Tivemos então de apressar as coisas: a M aria Sylvia )de C arvalho Franco] juntou alguns ensaios em preparação e fez a livre-docência, vários jovens professores, que iniciavam seus
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mestrados, tam bém os apressaram e os defenderam, e eu simplesmente passei a limpo m inhas anotações e fiz o doutoram ento. Este o m otivo, por sinal, por que nunca publiquei o trabalho: não o considero uma tese. M as com isso, fizemos o D eparta m ento sobreviver com independência. E foi nessa época que Gilda de M ello e Sou za (auxiliada por V ictor Knoll e A rm ando M ora de Oliveira) criou a revista do D epartam ento, a Discurso. A volta ao Brasil, eu diria, marca o começo dos meus “anos de peregrinação” . N o início dos anos 70, nós tínham os não apenas que garantir a existência do De partam ento, com o ainda viver sob o terror de Estado e a esperança reduzida de que os grupos revolucionários clandestinos pudessem, pelo menos, sobreviver fisicamen te, uma vez que sua sobrevida política tinha os dias contados. Saíamos de casa, em direção ã U niversidade, sem a mínima certeza de que voltaríam os à noite. N ão sa bíam os se no dia seguinte os alunos estariam lá, se os colegas estariam lá. Havia o Dops [D epartam ento de O rdem Política e Social] dentro das salas de aula, apare lhos de escuta na sala dos professores. De vez em quando, desaparecia um colega, e ninguém sabia se ele tinha se exilado, se estava preso sendo to rtu rad o ou se tinha sido m orto. Foi a época do m edo em estado puro (mais tarde, acabei escrevendo um pequeno ensaio a respeito), e foi tam bém a época em que tentei minha prim ei ra crítica da filosofia francesa, na qual fui form ada: dei a aula inaugural do D epar tam ento de Filosofia, em 1971, com uma crítica do estruturalism o e da Arqueolo gia do saber, de Foucault. Quem vive sob o terror de Estado não pode adm itir que a realidade são enunciados discursivos e que o poder é uma rede de enunciados dis cursivos, não é mesmo? Foi na altura de 1971-72 que me pareceu que não bastava (como eu fizera na aula inaugural) uma crítica do que viria a ser conhecido, m uito mais tarde, com o nome de linguistic turn, nem bastava estudar a política de Espinosa (como eu canhestram ente esboçara no doutoram ento), mas que era preciso dar alguma contribui ção para com preenderm os o fenôm eno do autoritarism o no Brasil. Resolvi, então, estudar o Integralismo, m otivada por uma entrevista que Miguel Reale tinha dado na época, afirm ando “nós chegamos ao p oder” . M eus pais haviam sido integralistas e em m inha casa sem pre ouvi o nome de Miguel Reale. Nessa ocasião, comecei a jun tar as coisas e quis entender m elhor quem era o “ nós” a que ele se referia. N um primeiro m om ento, cheguei a perguntar ã m inha mãe o que ela achava que o profes sor Reale tinha querido dizer com aquela frase. E ela respondeu que achava que ele tinha querido dizer que os integralistas agora estavam no governo. Eu fui então em busca de tudo o que estivesse ao meu alcance: consegui com amigos de meus pais quase todos os livros e docum entos da Ação Integralista Brasileira, pesquisei d o cum entos do PCB, li historiadores e sociólogos, e assim por diante. A partir do conta to que tive com autores com o Thom pson e C hristopher Hill, percebi que, em geral, os historiadores e sociólogos estudavam o Brasil a partir do que falta no país, e não a partir do que ele efetivam ente é. E pensei em fazer o inverso: em vez do que nos falta (uma boa classe operária, um a boa burguesia, um bom Estado liberal), buscar o que efetivamente somos. N o fundo, a idéia espinosana da afirm ação estava implí cita nisso, pois eu queria entender a sociedade e a política brasileira não pelas ausên cias e privações, mas pelo que está realm ente presente e posto pela ação histórica.
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C om o, no entanto — isso é algo que apenas hoje percebo com clareza — , eu nunca tivesse feito uma pesquisa em pírica, e não soubesse fazê-lo, acabei fazendo análise de texto. Lembro-me que o com entário do Bento [Prado Jr.], ao 1er o meu trabalho, foi: “Você analisou Plínio Salgado com o se estivesse analisando A ristó teles!” . E, de fato, há coisas no meu texto que são m uito engraçadas. Eu queria, por exemplo, m ostrar que a classe operária, no período em questão, estava em ação, se form ando, e que p ortanto não era uma classe atrasada, rural, alienada, com o a esquerda costum ava vê-la. Para isso, eu peguei tudo o que o professor Aziz Simão havia escrito sobre o assunto, mais algum as coisas do Carlos Vesentini e do [Edgar| De Decca, e tam bém alguns dados de arquivos históricos, e fui escrevendo, certa de que estava fazendo análise concreta dos fatos, sem me dar conta de que todo esse m aterial estava sendo posto por mim a serviço de uma análise de textos, no caso, dos textos integralistas. M inha form ação intelectual era tal que o m áxim o de realidade que eu conseguia alcançar era análise de texto! De todo m odo, acho que consegui dar o meu recado: não se pode com preender o Brasil pela falta, pela a u sência ou pela privação. Aqui, país de capitalism o periférico, tem econom ia capi talista, burguesia, proletariado, classe média, sociedade civil, Estado, ideologias a u toritárias, luta de classes, história. Nesse período, participei da criação do CEDEC — C entro de Estudos de C ul tura C ontem porânea — , e comecei a trab alh ar sobre a crítica da ideologia (o estu do sobre o Integralism o se inscreve nessa linha de reflexão). Nessa época, li a Cri tica da burocracia e o Maquiavel, de C laude Lefort, de quem traduzi, para a revis ta Estudos, do CEBRAP, o ensaio sobre a gênese das ideologias na sociedade m o derna. A leitura de Machiavel: Le travail de l ’oeuvre foi decisiva para meu tra b a lho em história da filosofia. Desde 1968, eu me debatia entre a leitura estrutural e a exigência m arxista de com preender a relação entre obra e história, sem conseguir encontrar um cam inho interpretativo. D ada a ascendência com um — Lefort e eu tivemos com o ponto de partida M erleau-Ponty — eu estava propensa a adotar a interpretação de .Vlaquiavel proposta por ele porque me m ostrava com o era possí vel fazer uma história da filosofia não-guéroultiana (ou o que M erleau-Ponty ch a mava de história do tácito e do subentendido, que exige mais do que um com entá rio e pede interpretação), ou seja, um tipo de trabalho em que a separação obra/ gênese, escrita/história, texto/contexto é algo impensável, já que o texto é uma ex pressão da própria história e um dos constituintes da história. Tam bém nesse perí odo comecei a 1er T hom pson e Hill, po rtan to , um m arxism o que não se ocupa di retam ente com a infra-estrutura, mas com a ação social e política tal com o conce bida e com preendida no seu presente pelos seus sujeitos. É dessa época minha tese de livre-docência — a “ jovem ” Nervura do real — , primeira tentativa de fazer uma história da filosofia que não precisa seguir os cânones estruturalistas, mesmo e so bretudo ao fazer análise de texto. Tam bém data dessa época minha colaboração com A dauto N ovaes, na FUNARTE, de onde nasceriam os seminários sobre o na cional e o popular na cultura brasileira (nossa crítica ao PCB dos anos 60), e, de pois, os cursos nacionais sobre tem as contem porâneos. N o início dos anos 80 participei da fundação do PT, quando, pela primeira vez, tive contato direto com os m ovim entos sindicais e com os movim entos popu-
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lares. Eu diria que esses são verdadeiram ente os meus “anos de form ação peregri n a ” cujo prim eiro resultado foi Cultura e democracia, cujos dois prim eiros ensaios haviam sido escritos com o capítulo final do livrinho dos Primeiros Passos, da Bra siliense, O que é ideologia?, mas não entraram ali porque Caio Graco julgou que o livro ultrapassaria as páginas requeridas pela coleção. O título original do livro, “ O discurso com petente e outras falas”, foi m udado pela Editora M oderna, que o jul gou herm ético. O livro foi escrito antes e durante a fundação do PT, isto é, no pe ríodo em que se discutia se seria necessário ou não criar um partido de esquerda novo. Por isso mesmo, a grande questão do m om ento era: "O que é um partido de esquerda que seja dem ocrático?” ou seja, o que é um partido de esquerda que não seja a retom ada dos partidos com unistas nem dos partidos social-dem ocratas? Por isso o carro-chefe da discussão era o problem a da dem ocracia tanto com o forma interna da organização partidária quanto com o objetivo da ação política. D ada a e.xperiéncia do totalitarism o e da social-dem ocracia e dada a apropriação liberal da dem ocracia, reduzida ao regime do Estado de direito, um novo partido de es querda teria que p ropor uma nova idéia do socialismo e um a nova prática da de mocracia. Cultura e democracia se inscreve nessas discussões. •Apesar do título do li\ ro (título que não é meu e sim do editor) e apesar de m inha intensa participação nas discussões da FUNARTE, ao vir para o PT eu não estava interessada na "c u ltu ra ” e sim na ação política nova. que punha em xeque a divisão social entre competentes (que sabem) e incompetentes (que executam). C^omo é que eu fui parar nas discussões de cultura do PT? Q uando, em 1982, o Lula ia ser candidato, foi necessário (como em todo partido de esquerda que se preze) redigir o program a de governo (aliás, foi por causa do PT que, daí em diante, todos os partidos se viram obrigados a apresentar program as de governo) e, para isso, as pessoas foram divididas em grupos, conform e as suas áreas de inserção social e de ação política. A ntonio C ândido, Lélia A bram o, M aurício Segai, R oberto Schwarz, entre outros, foram encarregados da discussão da cultura, e me convidaram para participar. N ós fizemos várias discussões, mas elas não resultavam num program a. Com o eu havia anotado todas as discussões, assumi o compromisso de passar a limpo o que discutíam os para ver se chegávam os a um program a. Depois de uma rodada final de discussões, ficou pronto um texto, que a L& PM publicou com o brochura: “Program a de política cultural do PT ” , com todos os nossos nomes. Isso nos dei xou em pânico, porque aquilo eram reflexões em torno da questão cultural, mas não um program a. E nós acham os, então, que era necessário escrever um outro texto para explicar o sentido do prim eiro. E isso eu fiz sozinha. Foi a conta. A partir daí, tudo o que se referisse ã questão da cultura no PT vinha para mim (eu que estava interessada realm ente no m ovim ento social, no m ovim ento popular, na questão da dem ocracia, da ideologia...), seja para escrever, seja para fazer seminários, seja para debater os tem as referentes à cultura erudita e a popular. N ão teve jeito... D ada m inha velha preocupação com a injustiça social, não foi por acaso que a questão central, para mim, foi sempre a questão da violência, sobretudo porque ela aparece tão naturalizada que não a percebemos com o relação social instituída e cotidiana. Sempre me pareceu surpreendente que, num país com o o Brasil, fale mos na violência com o um acidente (“epidemia de violência”, “crise de violência” ).
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até que me dei conta que isso decorre de três op erações ideológicas m uito precisas: uma op eração de exclu são, que distingue um “ n ó s” ou a nação não-violenta por essência e um “eles” , os agentes violentos, estranhos ã essência n acional; uma ope ração sociológica, que define a violência com o anom ia na passagem do arcaico ao m oderno, de sorte que são violentos os sujeitos que pertenceriam a um passado recente e não conseguiram adaptar-se ã m odernidade; e uma op eração ju ríd ica, que localiza a violência nos crim es contra a propriedade (aí incluída a vida). Essa per cep ção do ocu ltam en to ideológico da violência real fez com que a violência se to r nasse uma espécie de lente por meio da qual eu passei a ver o Brasil, orientou m i nhas tentativas de crítica da ideologia, de propostas no cam po d em ocrático so cia lista, de p articip ação nas reuniões da SBPCl, na fund ação do C E D E C e do PT. A experiência na Secretaria .Municipal da C ultura de São Paulo fez com que essa len te adquirisse um alto grau dc precisão. Pois foi o m om ento em que deixei de ser espectadora da violência e passei a ser alguém que podia e devia intervir, com m e didas práticas, em situações de violência as mais variadas — contra as crian ças, as m ulheres, os sem -teto. os negros, os índios, os m ovim entos populares, o m eio am biente, etc — captan do com m aior clareza as form as e os m ecanism os de exclusão social e política que estruturam internam ente a sociedade brasileira. E pude ver (com estes olhos que a terra há de com er) a violência do ap arato legal e ad m inistrativo, pois um governo de esquerda tem que fazer a descoberta dos limites à sua ação não a partir da expressão m anifesta da luta de classes e sim a partir de suas expressões tácitas e secretas, postas nas leis e na burocracia. O s anos 70 e 8 0 também foram um período de busca de cam inhos para o ensino da filosofia, seja com m uitas experiências pedagógicas e de m udanças curriculares com que pudéssem os conservar e tran sform ar a trad ição do D ep artam ento de F i losofia (sobretud o nos anos 7 0 , quando o trab alh o se realizava sob o tacão da di tadura), seja com a luta pela volta do ensino de filosofia ao segundo grau, seja ta m bém con tra a reform a do ensino universitário e seus efeitos sobre o ensino da filo sofia na grad uação e na pós-grad uação. A pu blicação do Convite à filosofia e da
Introdução à história da filosofia assim com o alguns pequenos ensaios escritos no final de 7 0 e no início de 8 0 . exprim em essas preocupações. D igam os que tenho tido uma “ peregrinação un iversitária" que, nos 7 0 , lutou contra o p rojeto M E C U SA ID , a licenciatura curta e a m assificação (pom posam ente cham ada de “ d em o cra tiz a çã o ” ), nos 8 0 , lutou con tra a “ universidade funcional e de resultad os” , e, agora, luta con tra o p ro jeto B IR D e a “ universidade op era cio n a l” .
Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Com o você vê as re lações entre a filosofia e a cultura brasileira? C om relação a essa questão, faço m inhas as palavras do professor Lívio T eix eira. Q uand o a revista Aut Aut fez um núm ero dedicado ao tem a “ filosofia no B ra sil” , perguntaram -lhe sobre a existên cia de uma filosofia brasileira. E ele disse que pre feria falar em “contribu ições brasileiras ã filo so fia ” . Esta d em arcação me parece m uito b oa, me parece preferível a tentar falar em filosofia brasileira. É claro que, se se tem em vista a produ ção dos últim os quarenta anos, que constitu i uma im pressionante massa crítica de textos filo sóficos, estam os perfeitam ente autorizados
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a pensar nisso. M as a expressão me parece ruim, pois a grandeza da filosofia, quando com parad a às dem ais disciplinas, está na universalidade. M esm o quando o univer sal filo só fico é a b stra to , é este o cam p o da filo so fia . Talvez possam os falar em idiossincrasias nacionais — o em pirism o na Inglaterra; o idealism o na A lem anha; o intelectualism o na França — , m as o que se tem , na verdade, é uma pluralidade de respostas, historicam ente d eterm inadas, e uma pluralidade de argum entos, co n ceitualm ente determ inados, para questões que são universais. E por isso prefiro falar em “contrib u ições brasileiras à filo so fia ” .
Você foi uma das fundadoras da SEAF jSociedade de Estudos e Ativi dades Filosóficas], em fins da década de 1970. O que significou essa experiência e o que, a seu ver, a distingue da ANPOF lAssociação Na cional de Pós-Graduação em Filosofia], entidade que você preside hoje? A SEAF foi criad a m uito m enos com o uma associação acadêm ica do que com o um m ovim ento social de resistência à ditadura. A idéia básica era: o que nós, da filo so fia, podem os e devem os fazer para d em arcar nossa resistência? N atu ralm ente, isso fazia com que os tem as e as pu blicaçõ es tivessem uma natureza em inentem ente p rática, de intervenção prática: “ C o m o aju d ar o pessoal que está sendo perseguido na P U C -R J? ” ; “ C om o fazer frente à [Universidade] G am a F ilh o ? ” ; “ C o m o g aran tir o patrim ônio da U SP ?” ; “ C om o ajudar a form ar um bom departam ento no M ato G ro sso ?” ; “ C om o lutar para que a filosofia seja ensinada no segundo g ra u ?” . A m arca fundam ental da SE.AF, p o rtan to , é a sua d ata: ela correspondeu a uma ne cessidade p o lítica, percebida na ép oca, de resistência à ditadura. O critério de ad m issão dos sócios, por exem plo, era sim plesm ente o ser co n tra a ditadura: quem fosse co n tra, podia entrar. Assim ficava nitidam ente dem arcado quem nós éram os e quem era o nosso ou tro , e isto era algo de fundam ental im portância se tiverm os em vista os vários d ep artam entos de filosofia espalhados pelo país, nos quais havia cúpulas form adas por gente diretam ente ligada à d itad ura, a serviço da ditadura. A quantidade de alunos e de jovens professores que queriam fazer algo diferente, mas que não tinham qualquer fo rça institu cion al, era enorm e, e a SEA F vinha ser vir-lhes de canal de expressão. A A N P O F , por ou tro lado, é algo com pletam ente diferente. À parte a política acadêm ica, ela é uma associação que se preocupa fundam entalm ente com a excelên cia acadêm ica e que está ligada não tan to à questão do ensino, mas à pesquisa em filosofia. E, com parad a à A N P O C S [A ssociação N acio n al de P ós-G rad u ação em Ciências Sociais] e à A N PU H [A ssociação N acional de Pós-G raduação em Flistória], ela tem ainda a peculiaridade de restringir-se às coo rd en açõ es de pós-grad uação: não são os alunos e os professores que se tornam sócios da A N P O F , m as as p ró p ri as coo rd en açõ es — o que lhe dá um perfil bastante nítido. A pesar disso, porém , a A N PO F vive hoje um sério problem a. C om o as pós-graduações de filosofia cresceram no Brasil inteiro, e cresceram de m aneira m uito desigual, essa heterogeneidade, com o se pôde perceber nas últim as reuniões, tem sido cada vez m aior, de tal m aneira que a A N P O F corre o risco de d escaracterizar-se por causa disso. Em vez de constitu ir um fórum capaz de oferecer, de um lado, paradigm as de tra b a lh o , e, de o u tro , um esp aço de in tercâm b io, ela corre o risco de se to rn ar uma feira de variedades.
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Acredito que podem os tran sform ar a A N P O F para que tenha uma atu ação mais efetiva junto às pós-graduações. Penso que valeria a pena considerá-la um fórum de discussão de políticas acad êm icas, definindo com mais clareza a relação entre grad u ação e p ós-grad uação, oferecend o critérios e auxílios para a im plantação ou para o desenvolvim ento de cu rsos de p ós-grad uação, defendendo a autonom ia das pós-graduações no diálogo com as agências financiadoras de pesquisa, de m aneira a assegurar que as pós-graduações não se subm etam às regras dessas agências no que respeita à produção filosófica propriam ente dita (quero dizer: que as agências tenham suas regras, norm as e prazos para financiam entos das pesquisas, é mais do que certo e necessário, mas não podem os tran sform ar as d eterm inações extrín secas à pesquisa, vindas das agências, em critério interno do trab alh o acad êm ico). Em sum a, penso que a A N P O F chegou ao m om en to em que pode passar de fórum a c a dêm ico a fórum de política acad êm ica.
Que conceito(s) de sua reflexão você destacaria conto mais representativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que você nos contasse com o ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e com o o(s) vê hoje. Eu m en cion aria os seguintes: d iscu rso com p eten te; c o n tra d iscu rso ; co n sciên cia popular trágica; sociedade au toritária; cidadania cu ltu ral; ontologia do necessário; e a idéia de um m ito fundador do Brasil. Por que pensei numa consciência popular trágica? Q uando participei dos m ovi m entos sociais, e quando deles fui para os m ovim entos populares, eu me dei conta de uma coisa que na época foi apav orante para mim. Q u and o você opera com os conceitos de alien ação e de consciência alienada, o poder da ideologia é de tal m odo hegem ônico e abrangen te que não há brecha para a percepção da realidade, e, para que houvesse alguma percepção, seria necessário um processo de d esalienação. Se tom am os, por ou tro lado, o co n ceito de consciência possível, trabalh am os com o pressuposto de que há uma consciência histórica e m aterialm ente determ inada que, não obstante isso, é capaz de perceber as linhas de força da sociedade e da história, e projetar-se para além da situação dada. Ou seja, a idéia de alienação exige a presen ça de um agente externo que produza a desalienação, enquanto a idéia de consciência possível tem com o horizonte a idéia de um m ovim ento de superação do presente, graças à consciência social na história. O que a m inha experiência nos m ovim en tos populares me m ostrou , porém , é que não se tem nem uma coisa nem ou tra. E foi para m arcar a presença de algo d eterm inado, e não uma ausência ou uma pri vação de algum a coisa, que form ulei a n oção de consciência popular trágica. C^om essa n o çã o pretendi assin alar, no in terior da percepção e do saber das classes populares, a divisão realm ente existente entre a clara percepção que elas têm da exp lo ração , da d om inação e da exclu são , e tudo aquilo que elas incorporam da ideologia. N ão se trata, portan to, de uma consciência alienada, pois é uma consciên cia que não apenas apreende claram ente a realidade e com o tam bém age de m a neira realista a partir dessa apreensão. N o en tan to , as classes populares tam bém interpretam sua percepção e sua prática, e é na interpretação que prevalece a ideo logia d om inante. O resultado apavorante é mais ou m enos o seguinte: as classes populares possuem um claro saber de si, que se exprim e em suas ações, e, ao mes-
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m o tem po, ignoram seu próprio saber porque o interpretam com os elem entos fo r necidos pela classe dom inante. O u seja, há uma p ercepção, um saber e uma prática que vão além da situ ação dada e que são a crítica prática dessa m esm a situ ação, e há, sim ultaneam ente, uma interpretação ideológica desse saber e dessa prática que encobre e ocu lta dos próprios agentes o sentido do seu conh ecim ento e da sua prá tica. Se ch am o a isso de consciência trág ica, estou con statan d o uma divisão inter na constitu tiva do saber e da ação populares, divisão entre a apreensão da realid a de e a ação, e a interpretação que a recobre. O ra, se pensarmos na análise que Vernant faz do herói trágico, em especial de Édipo, o que é esse herói trágico? É alguém que sabe quando ignora e que ignora quando sabe. E é nesse dilaceram ento interno entre apreensão da realidade e interpretação en cob rid ora, nesse jo g o de saber de si e ig norância de si que se constitui a consciên cia dos m ovim entos populares, dos m ovi m entos sindicais, e dc diversos outros m ovim entos sociais. D aí eu ter escolhid o a expressão “consciência popular trá g ica ” . Por que falo em sociedade au toritária? N a trad ição de interpretação do B ra sil, existe, por razões variadas, a tendência de consid erar o au toritarism o com o um fenôm eno político referente ao aparelho de Estado. Fala-se em regimes au toritários ou governos au toritários para significar o fato de que, periodicam ente, a classe d o m inante brasileira, diante dos impasses econôm icos e dos perigos que vê na socie dade, introduz a n o çã o de crise e institui pela força nua um regime que dá um per fil au toritário a o Estado. O que eu com ecei a perceber, no en tan to , sobretud o g ra ças à experiência de ter participado de m ovim entos sociais e, depois, de um gover no petista, é que, na verdade, a estrutura da própria sociedade brasileira é a u to ri tária, verticalizada, hierárqu ica, exclud ente, fundada em relações de m ando e o b e diência distribuídas entre superiores e inferiores. Ou seja, o autoritarism o não é um acidente político e sim a form a de nossa existên cia social, m arcad a pela violência com o prática cotid ian a invisível. V ivem os num a sociedade que tran sform a toda diferença social em desigualdade natu ral, e toda desigualdade social em diferença natu ral. Q u ero dizer: as d iferenças so ciais são tran sform ad as em desigualdades naturais e as desigualdades sociais são tran sform ad as em diferenças natu rais. A natu ralização da desigualdade e da diferença sobredeterm ina a divisão social das classes com a divisão entre privilégio e carên cia, o privilégio detém o poder social e p o lítico, a legalidade e o direito ã repressão, enqu anto a carên cia se perpetua por m eio de relações de favor, tutela e clientela. D onde a dificuldade imensa para fazer aparecer o cam po d em ocrático dos direitos. A sobredeterm in ação da divisão social das classes pela p o larização entre o privilégio e a carên cia se torna o b stá cu lo ã d em ocracia se esta não fo r reduzida ao regim e p o lítico , mas fo r tom ada com o fo r ma da existên cia social. De fa to , tan to o privilégio co m o a carência são particu la res e esp ecíficos, não há com o generalizá-los na d ireção do interesse com um sem desfazê-los da particu larid ade que os define; e co m o não há passagem da p arti cularidade ã generalidade do interesse, não pode haver o m ovim ento seguinte, qual seja, o da passagem da generalidade dos interesses ã universalidade dos direitos. Se a d em ocracia for tom ada com o criação e garantia de d ireitos, ela está bloqueada pela estrutura da sociedade brasileira. O au toritarism o, p o rtan to , não é e xceçã o , e sim a regra.
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F.ssas duas idéias, a da consciência popular trágica e a da sociedade autoritária, me levaram à de cidadania cultural. Eu tinha em m ente, quando propus essa expres são, o alargam ento dos con ceitos de cidadania e cu ltu ra, tendo em vista que, se eles não fossem alargados, a expressão “cidadania cu ltu ral” não teria qualquer sentido. Para o alargam ento do co n ceito de cidad ania, parti da idéia de que a dem o cracia não é a form a de um regime político, mas sim uma form ação social, e de que, neste sentido, a cidadania se constitui a partir da au to-o rg an ização social contra poderes políticos. Pois é nesta luta, neste conflito contra poderes políticos, que emerge a afirm ação de um direito. A cidadania não é a existência de um cidadão definido pela lei, mas a ação de con stitu ição do cidad ão e de instituição contínua de direi tos. E a cidadania cultural nada m ais é, neste sentido, que to m ar o cam po dos di reitos referido à cu ltu ra. Q u an to ao alargam ento do con ceito de cu ltu ra, deveu-se tanto às discussões no PT co m o à experiência na Secretaria M unicipal de C ultura de São Paulo. N os dois casos, percebi cada vez m ais nitidam ente a id en tificação sem pre feita entre cultura e belas-artes (para não falar da identificação entre cultura e show m usical...). ( ) alargam ento do con ceito de cu ltura, proposto pela cidadania cu ltu ral, consistiu em apanhá-lo em seu sentido antrop ológ ico e filosófico de relação sim bólica (isto é, de relação com o ausente que cria o tem po, a linguagem , os utensílios e instru m entos, as idéias e os valores, ou seja, institui a relação com o possível e o necessá rio, o verdadeiro e o falso, o ju sto e o in ju sto, o belo e o feio, o bem e o m al), de tal m aneira que todos possam reconhecer-se com o sujeitos cultu rais. A cidadania cu l tural foi pensada e praticada tan to co m o a recusa da divisão entre cu ltos e incul to s, quanto com o o direito a fruir a cria çã o cultural e de participar dessa criação. N este sentido, podem os dizer que o co n ceito de cidadania cultural politizou a n o çã o de cultura e culturalizou a de cidadania.
Tomou-se lugar-comum o comentário a respeito do caráter momtmental de A nervura do real: im anência e liberdade em Espinosa, um volume de quase mil páginas, acrescido de mais quase trezentas páginas de notas, bibliografia e índices. E, no entanto, trata-se apenas do prim ei ro volume, intitulado Im anência. Pensando na articulação com o pró xim o volume, lembramos que já em D a realidade sem m istérios ao m is tério do m undo você escreveu: “Engendrando-se no interior de uma crítica de discursos e de práticas que tom am impossível pensar e agir, a ontologia espinosana desvenda-se com o um saber cuja questão é a do p od er” (p. 97), pois, se “pensar é agir, pondo-se no movimento imanente das idéias verdadeiras, pensar já é prática da liberdade” (p. 88). Com isso, você formulou a noção de “contradiscurso”, que é apresen tada em A nervura do real nos seguintes temtos: “Se, contemporâneo do seu tempo, Espinosa encontra no conceito de causa de si ou de uma substância tinica absolutamente infinita, complexa e causa livre eficiente do universo o alicerce para a dimensão demonstrativa e positiva de seu discurso, ao mesmo tempo a experiência do presente solicita-lhe que encontre nesse mesmo discurso força argumentativa e polêm ica que o
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faça erguer-se com o contradiscurso para enfrentar o que, aqui e ag o ra, tom aria impossível pensar e agir livremente” (pp. 93-4). Pergunta mos então: o que é essa noção de “contradiscurso” e qual será a im portância dela no próxim o volume de A nervura do real, ainda por ser publicado? A idéia de contrad iscu rso surgiu da conflu ên cia de duas questões que, em bora a r ticuladas entre si, apareceram para mim em dois co n tex to s diferentes. O prim eiro deles foi o da tentativa para entender a posição de E spinosa, p o rtan to , num c o n tex to de história da filosofia propriam ente d ita. E o ou tro foi o da análise e crítica das ideologias, p o rtan to , num c o n tex to diretam ente político. N a trad ição interpretativa, E spinosa aparece ora com o aquele que, m anten do uma perspectiva renascentista de cunho neoplatônico, teria, segundo alguns, mal com preendido e, segundo outros, radicalizado as posições m odernas, particularm ente as de D escartes e H oh bes, ora com o aquele que rom peu tan to com a trad ição judaico-cristã com o com a perspectiva racionalista dos seus contem porâneos, ou ainda, num a terceira interp retação, com o alguém que, absorvendo aqui e ali as idéias co n tem porâneas necessárias à e lab o ração de seu pensam ento, deu continuidade às ten dências da tradição e às da modernidade então em curso. Em resum o, estam os diante de um renascentista an acrô n ico , de um m ístico panteísta, de um cartesian o judeum arrano ou de um precursor do m aterialism o histórico? Um seguidor ou um pre cursor? Eu sentia, porém , ao ler E spinosa, que não era possível vê-lo sob essas pers pectivas, que não era possível pensar em sua filosofia nem co m o rad icalização da trad ição, nem com o sim ples ruptura, e m uito m enos com o continuidade. Foi então que me dei conta de que ele não con tin u a, nem rad icaliza, nem rom pe, m as subver te o instituído sem , no entanto, que ele tivesse de se pôr “ de fo ra ” , numa relação de exteriorid ade com o instituído. Eu me perguntava en tão; “ O que é isso? O que é esse discurso que, à medida que se vai constru ind o, vai dem olindo aquilo que o im p ossibilitaria?” . E reparei que se tratava de um contrad iscu rso, ou seja, um dis curso que realiza, ao m esm o tem po, a tarefa positiva de afirm ação de uma nova filo sofia, e a tarefa crítica de d em olição de toda a trad ição e do pensam ento a ele contem porâneo; um discurso, enfim , que, ao se afirm ar, nega. O contradiscurso não é um ponto de vista externo que avalia e julga outros pensam entos, mas é constitutivo internam ente da con stru ção de um pensam ento e de um discurso novos. D onde sua natureza subversiva. O o u tro co n tex to , sim ultâneo a esse, foi o da análise e crítica das ideologias. D urante m uito tem po, dispúnham os de três referenciais para a análise de id eolo gia: o senso com um , para o qual todo e qualquer co n ju n to m ais ou m enos sistem á tico de idéias se cham a ideologia; A lthusser, que propunha a d istinção entre ideo logia (o falso) e ciência (o verdadeiro); e os fran k fu rtian o s, que tom and o a lógica m aterial da sociedade capitalista m ostravam o cará ter ideológico da própria ciên cia (e das dem ais produções culturais do Esclarecim en to ou da razão instrum ental ou da sociedade adm inistrada ou da sociedade unidim ensional) e contrapunham ideologia e crítica. Seguindo esta últim a trilh a, com ecei a tra b a lh a r sobre a ideolo gia com o um pensam ento e um discurso lacunares nos quais os silêncios são a c o n d ição da coerência. A o chegar nesse p o n to, li o ensaio de L efort sobre a gênese das
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ideologias nas sociedades m odernas, e pude com preender que não som ente os si lêncios e lacunas são constitu tivos da ideologia, m as que toda tentativa para fazer falar o silêncio ou preencher a lacuna a destrói porque a fo rça a pensar e dizer o que não pode pensar nem dizer sob pena de autodestruir-se co m o ideologia. A idéia de L efort de que a ideologia é uma lógica da ocu ltação necessária da divisão social e é a recusa im aginária da divisão por m eio de figuras da indivisão social, me levou a com preender que a crítica da ideologia não é passagem do discurso falso ao dis cu rso cien tífico verdadeiro e sim desm ontagem do edifício im aginário que ocu lta a divisão social e a luta de classes. O ra , ta n to a com preensão de que a ideologia é um pensam ento e um discurso que não pode pensar nem dizer tudo, co m o a de que a ideologia é uma prática histórica (p o rtan to, social e política) de en cobrim ento im a ginário da divisão e luta de classes tam bém me fez com preender que os m om entos altos de crítica da ideologia operam com o contrad iscurso. E isso era patente na obra de E spinosa, pois ele obriga a teologia, a m etafísica, a ética e a política instituídas a dizer tudo até o fim , autod estruind o-se, mas nesse processo vai sendo engendra do um pensam ento novo que pede um discurso novo. Foi a idéia de contrad iscu rso que me levou ã de discurso com petente. Q u a n do traduzi o ensaio de L efort sobre as ideologias, observei que ele distingue três m o m entos e três form as na ideologia m oderna: a ideologia burguesa, tal com o an ali sada por .Vlarx; a ideologia to ta litá ria , cu ja análise é feita pelo próprio L efort; e a ideologia invisível, ou a ideologia da sociedade con tem p orân ea, em cu ja análise L efort com bin a elem entos vindos dos fran k fu rtian o s e suas próprias idéias sobre o trab alh o de ocu ltam en to social realizado pelo discurso ideológico. Seu principal argum ento para diferenciar a ideologia burguesa e a ideologia invisível é: enqu an to na ideologia burguesa havia agentes sociais que eram os p ortad ores históricos das idéias — o pai, a fam ília, o p atrão... — , a ideologia invisível está com pletam ente difusa na sociedade e não há m ais p ortad ores para ela, donde sua invisibilidade. E m bora eu aceitasse a análise da invisibilidade, não podia aceitar a ausência de portadores ideológicos. Parecia-m e a b strata uma análise que não retornasse ã divi são social para nela encontrar a determ inação da própria invisibilidade. Isso me levou a estudar os autores que analisam as form as contem p orân eas da divisão social do trab alh o. T o m an d o com o referência as análises do taylorism o e do ford ism o, pri m eiro, do pós-ford ism o e da acu m ulação flexível do cap ital, depois, e levando em con ta a tran sfo rm ação da tecnologia e da ciên cia, que se to rn aram , elas próprias, forças produtivas, e, por fim, tendo com o horizonte as discussões brasileiras em torno da autogestão e da autonom ia dos trabalh ad ores (discussões candentes nos anos 8 0 ), fui levada a perceber que o que estava acontecen d o na aparência do processo social do trab alh o era a cisão entre d ireção e execu ção , instituída prim eiro pelo taylorism o e pelo fordism o e, depois, pela tran sform ação tecnológica. O que a a p a rência social indicava, p o rtan to , era o ocu ltam en to da e xp loração econ ôm ica, da dom inação p o lítica, da exclu são social e da exclu são cultural sob a a çã o e sob os efeitos de um só e m esm o critério : o critério “ n a tu ra l” da d istinção entre os que sabem e por isso dirigem e os que não sabem e por isso executam . A divisão social aparecia, p o rtan to , co m o divisão “ n a tu ra l” entre com petentes, que m andam , e in com petentes, que obedecem . Para exp licitar esse processo ideológico e seus efeitos
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sociais, políticos e cultu rais, desenvolvi a idéia de discurso com petente, que pode ser resum ido assim: “ não é qualquer um que pode dizer a qualquer ou tro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circu n stâ n cia ” . D izer, significando, eviden tem ente, fazer e pensar, tan to quanto falar. D essa m aneira, acreditei que a c o m preensão do que se passa na base m aterial do processo de produção (no caso , no processo de trabalh o) deixa mais com preensível a dim ensão ideológica daquilo que os fran kfurtianos cham am de sociedade adm inistrada e daquilo que L efort, ao e x plicar a ideologia invisível, cham a de saber do especialista. E, no final das co n tas, a noção de con trad iscurso e de discurso com petente puderam ser reunidas quando estudei um tipo m uito especial de greve op erária, conhecida com o “greve do zelo” . Nesse tipo de greve, os operários “esquecem ” todo o saber efetivo que possuem e seguem rigorosa e estritam ente as ordens de co m a n do determ inadas pela d ireção da fábrica (isto é, vindas dos técnicos, ad m inistrad o res e gerentes) e o resultado é um produto defeituoso e im prestável. O que é a gre ve do zelo? É um con trap od er que se exerce no interior do poder estabelecido: o poder estabelecido diz quem é com petente e quem não é; a greve do zelo, seguindo ã risca a ideologia da com p etência, prova que ela só se sustenta pelo que esconde, isto é, a com petência real dos trab alh ad o res. O p era , na p rática, com o o co n tra discurso, na teoria.
A propósito disso, gostaríam os de lem brar o seu artigo “O discurso com petente”, publicado no livro C u ltu ra e d em ocracia, em que você procura mostrar o entrelaçamento entre poder e conhecimento que tem por resultado a form ação dos discursos competentes em nossa socieda de, os quais disfarçam a dom inação social que lhes dá o caráter de ins tituídos. Nesse texto, a filosofia aparece, naturalmente, com o “prim ei ro lugar em matéria de incompetência”, ou seja, com o discurso que não se ajusta às regras de competência do discurso instituído, aparecendo a o contrário com o instituinte. No entanto, se deslocarmos o foco da questão e pensarmos na filosofia com o elemento de legitimação do dis curso na esfera pública, não haveria a í um problem a? Com o deve ser, na sua opinião, a relação entre o discurso filosófico e a mídia? Ou sim plesmente; com o fazer com que esse p ar “discurso competente/contradiscurso” não se funda novamente num novo discurso? A diferença entre instituinte e instituído é proposta por M erleau -P on ty em dois co n tex to s: na pergunta sobre o que faz grande e clássica uma obra de arte ou uma obra de pensam ento, e no enigma do m om ento imperceptível em que um movim ento revolu cionário se tran sform a em regime p olítico. O m om ento instituinte (na arte, no pensam ento, na política) é aquele em que, debruçando-se sobre o presente e sobre a experiên cia, o artista, o pensador, o sujeito político interroga e interpreta o sen tido desse presente e dessa experiên cia, decifran do-os numa chave nova que per m ite pensar o que ainda ou nunca foi pensado, dizer o que nunca foi dito e fazer o que nunca foi feito. A obra de arte, de pensam ento, política nasce tran sform an do a interrogação em pensam ento, arte, discurso ou ação política, e institui um cam po novo de pensam ento, discurso, prática. E a obra é grande quando tem por si m es
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ma a força para suscitar uma posteridade, para dar origem a um futuro que a afir m a, nega e supera. T o d av ia, o m om ento instituinte possui ainda uma ou tra face necessária: para usarm os um term o husseriiano, a obra e a a çã o se sedim entam . T ornam -se parte da cultura e da história e, com o tal estão instituídas, correndo agora o risco perm anente de ser apenas repetidas, reiteradas, transform ad as em m odelos fixos de pensam ento e de ação , perdendo a força que as fez nascer. O instituído é o cristalizad o, aquilo que repetim os com o natural porque desconhecem os sua origem e seu sentido criad or. A partir desse m om en to, surge o discurso do especialista (que sim plesm ente repete, sob a form a de norm as, o que antes havia sido d escoberta e invenção), do p o lítico profissional (que transform a em m odelo de ação aq u ilo que havia sido invenção histórica), do técnico (que instrum entaliza aquilo que nascera com o busca de conh ecim ento). M u itos dos meu tra b a lh o s, desde aqueles sobre Espinosa até os de crítica da ideologia, se inspiraram nessas idéias de M erleau -P onty. E o que se pode observar é o seguinte. N o universo da "co m p e tê n c ia ” , em que a palavra do especialista é lei, qualquer form a de pensam ento ou de discurso se arrisca a assum ir a fisionom ia do discurso com petente — o que oco rre, m uitas vezes, à revelia do próprio au to r, já que não se pode co n tro la r a recepção social e p o lítica daquilo que se pensou ou se fez. Im perceptivelm ente, aquilo que nasceu com o in terrog ação , que fôra sugerido co m o um cam inh o possível que poderia ser percorrid o, e que foi um longo tra b a lho do pensam ento, é apropriado com o norm a, regra, receita eficaz e eficiente, so bretudo num a sociedade com o a capitalista contem p orânea em que a inform ação é uma form a de poder e de con su m o, precisando ser sim ples, veloz e facilm ente descartável no m ercado da m oda. O s cham ad os m eios de co m u n icação de massa não apenas são a açã o e o lugar por excelência do discurso com petente — m uito m ais do que a escola — , co m o ainda produzetn a ilusão da d em ocratização dos conh ecim entos, da in form ação e da com u n ica çã o , dando a im pressão de que todos têm acesso ao saber. .Vlais do que qualquer ou tra esfera da vida social, a mídia é o espaço m ais d ireto e im ediato da passagem do instituinte a o instituído, de cristali zação e fecham ento do pensam ento, da linguagem e da ação . Estam os no interior de uma engrenagem extrem am en te perversa, p orqu e, ao m esm o tem po em que a mídia é de fato , do ponto de vista da sociedade de m assa, o m eio para que se am plie ao m áxim o o acesso às artes e às idéias, às discussões políticas e sociais — o que é fundam ental para a dem ocracia — , sua estrutura técnica (o instrum ental de p rodução e transm issão dos sons, imagens e textos) é fechada e lim itada, e as re gras do m ercado e do poder im põem sua lógica à in fo rm ação , reiteram n ecessaria mente a divisão social entre os que supostam ente sabem e m andam e os que supos tam ente não sabem e obedecem . M as acontece que só tem os uma alternativa: ou a recusa com pleta desse jo g o (o que significa ficar em silêncio) ou entrar no jo g o para p ertu rbá-lo , com p licá-lo, sugerindo aqui e ali que as coisas n ão são exatam en te com o aparecem ou com o são apresentadas. Pode-se co n to rn a r o risco de uma nova “co m p etên cia ” se não hou ver intenção pedagógica e n orm ativa, e sim de d ebate, discussão, crítica , e a inten çã o de suscitar d esconfiança sob re aquilo que é infindavelm ente repetido, co m o se a repetição produzisse verdades.
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Em artigo recente para o Caderno Mais', da F olha de S. Paulo (26/03/ 2000), você conclui que o mito fundador do Brasil “opera com uma contradição insolúvel: o pats-jardim é sem violência e, pela história providencialista, ruma certeiro para seu grande futuro; em contrapar tida, o país profético está mergulhado na injustiça, na violência e no inferno, à procura de seu próprio porvir, na batalha final em que ven cerá o Anticristo”. Qual a natureza dessa contradição? Com o ela se exprime em esferas com o a da política, p or exemplo? Eu cheguei a essa idéia do m ito fundador por cam inhos, com o diria B orges, que se b ifu rcam . T u d o com eçou q uand o, estudando E spinosa, eu estava trab alh an d o o
Tratado teológico-político, cu ja tese principal é que a liberdade de pensam ento e de expressão, além de não ser perigosa para a segurança e a paz da república, é ainda a con d ição da segurança e da paz. Para exp licitar essa idéia, Espinosa com eça pelo seu op osto, isto é, com a origem do d om ínio político violento, encon trand o-a no jo go passional do m edo e da esperança diante da con tingên cia dos acontecim en tos e das ações hum anas, pois do m edo nasce a superstição, desta a religião e desta o poder teoló g ico -p o lítico , que asp ira, através da institu ição eclesiástica e dos gover nantes por ela instituídos, exercer dom ínio sobre corp os e espíritos. T al situ ação é tan to mais terrível q u anto mais a op eração teológ ico-p o lítica se realiza sobre um tipo determ inado de religião, a religião revelada, depositada num texto con sid era do sagrado e sujeito a interpretações. Porque a fonte da religiosidade é m isteriosa e porque o te x to abre a disputa das interpretações e a luta para firm ar um a o rto d o xia (da qual dependem a institu ição eclesiástica e a p o lítica), o pensam ento e a e x pressão livres se transform am em perigo e sobre eles abate-se a violência teológ icop o lítica, de tal m aneira que, a o fim e ao c a b o , é a pretensão de d om inar com p leta mente os corpos (pela m oralidade repressiva) e os espíritos (pela ortod oxia) que per m ite d isfarçar de religião os con flitos econ ôm ico s, sociais e políticos. D onde a tese que será dem onstrada de que a liberdade de pensam ento e de expressão são neces sárias ã república. Para d em onstrar sua tese, Espinosa realiza três percursos: busca os elem entos que constitu em uma religião revelada, propõe um m étodo para inter p retação do d ocum ento de um a religião revelada historicam en te determ inada (a B íblia) e apresenta os fundam entos do poder p o lítico, exp licand o por que a p o líti ca judaica foi uma teocracia (portanto, nela a religião e a política eram inseparáveis) e por que a p o lítica dos cristão s não pode, senão por violência, ser im itação da teocracia hebraica. O ra , a definição da religião revelada hebraica o leva a uma longa análise da form a assum ida pela revelação, isto é, a p rofecia, e dos que receberam a revelação, os profetas. Com preendida a natureza teo crática da política hebraica, Espinosa pode dem onstrar que o conteú d o das profecias é sem pre um só e o m es m o: a Lei hebraica; e que o profeta é um chefe p olítico. Em sum a, o o b je to da p ro fecia é, inicialm ente, a revelação da lei, que funda sim ultaneam ente a religião e o E stado, e, depois de instituídos o E stado e a religião, a rem em oração da necessida de do cum prim ento dessa lei. A profecia é um acon tecim en to político e o p rofeta, um líder p o lítico que funda ou conserva o Estado. •Mas essa tem ática sem pre me deixou m uito intrigada. Por que Espinosa dá tanta im p ortância às p rofecias e aos profetas? Q u e se passa h istoricam en te nos
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Seiscentos que o leva a essas análises? Isto me levou a estudar o co n ju n to dos m o vim entos proféticos do períod o, a partir do século X V I. Partindo de K olakow ski e de seu estudo sobre O s cristãos sem igreja, dos trab alh os de Clhristopher Hill sobre os radicais da revolução inglesa, dos historiadores políticos holandeses, e da obra de Scholem sobre Sabbatai Sevi, o messias judaico do século X V II, concentrei-m e principalm ente naqueles m ovim entos que tinham vinculação direta com a questão política (isto é, que se inspiravam nos profetas D aniel e Isaias e no A pocalipse de Jo ã o para afirm ar a proxim idade do fim dos tem pos, quando a com unidade dos ju stos instituiria a quinta m onarquia ou o quinto im pério do m undo, ou o R ein o de M il Anos de felicidade, antes da Segunda Vinda do C risto para vencer o Anticristo e iniciar o Ju ízo Final). Com isso, acabei d esem bocando em estudos sobre o m es sianism o ju d aico e sobre o m ilenarism o cristão , descobrindo as relações e os c o n tatos havidos entre o professor de E spinosa, M enasseh bem Israel (que era m es siân ico), e o padre V ieira, cu jo m ilenarism o está exp o sto na História do futuro: do
quinto império de Portugal. E o fato é que esse estudo, em bora feito para eu com preender o significado da profecia em Espinosa, acabou por servir de base para uma con ferência num dos prim eiros cursos organizados por A dauto N ovaes na F U N A R T E , sobre “ O s sen ti dos das p aixõ es” . Eu pretendia, a princípio, dadas as circunstân cias do Brasil, fa lar sobre o m edo, m as, por estar envolvida com a pesquisa sobre p rofecia, m essia nism o e m ilenarism o, resolvi falar tam bém sobre a esp eran ça, fazendo duas co n fe rências. Para isso, precisei tam bém estudar a con cep ção ju d aico-cristã do tem po e da história, o que me levou de A gostinho a Jo a q u im de Fiori. Q uand o da pu blicação das con ferências, decidi publicar apenas a que fizera sobre o m edo, pois a da esperança estava ainda m uito crua e exigia m uita pesquisa que eu ainda não pudera fazer. E o tex to ficou na gaveta. M a s, em 1 9 9 2 , quando decidim os, lá na Secretaria de Cultura, realizar um con ju n to de eventos (sobre 1 4 9 2 , 1 7 9 2 , 1 8 2 2 , 1 9 2 2 e 1 9 9 2 ), julguei que, com o Secretária, tinha a o b rig ação de es crever alguma coisa sobre a conquista da Am érica. Li os relatos de viagem e as cartas de C o lo m bo , bem com o seu livro secreto sobre profecias, e qual não foi meu es panto ao ver o A lm irante do M a r O cean o afirm ar que sua em presa nada devia “ às m atem áticas e aos m apas-m und i” porque tudo devia a D aniel, Isaias e Jo a q u im de Fiori! Evidentem ente, com o C o lo m b o julgara haver en contrad o o Paraíso T erres tre, fui ler o clássico de Sérgio Buarqu e, A Visão do Paraíso, o que me levou ao trab alh o de M aria Isaura Pereira de Q ueiroz sobre o m essianism o no Brasil e ao de D ouglas M o n teiro , sobre o C o n testad o , e, é cla ro , à leitura de Os Sertões. Senti que tinha um cam inho para, um dia, pensar sobre o Brasil. Em 1 9 9 5 , fui convidada para um sem inário, intitulado “ Brasil 2 0 0 0 ”, o rg a nizado por Evelina D agnino, na U nicam p, e resolvi falar, a despeito de ser um tema tão batid o, sobre o populism o, procurando contu d o tra tá -lo com o uma expressão determ inada do poder teológ ico-p o iítico. D ecidi, en tão, retom ar m uito do que ha via estudado e trabalhado, anos antes, quando discutira cultura popular, particular mente uma idéia que eu desenvolvera desde aquele curso da F U N A R T E , isto é, que a religião m essiânico-m ilen arista é a via de acesso das classe populares brasileiras à política, e algum as idéias que eu desenvolvera num colóq u io em T ou louse sobre
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o Brasil e seus fantasm as (particularm ente uma análise da sim bologia da bandeira brasileira, da letra do H ino N acion al e do tríp tico café-fu tebo l-carn av al). O resul tad o foi a a rticu la çã o entre o populism o com o form a dom inante da política e o m ilenarism o com o sua expressão dom inada. Som adas en tão essas prim eiras idéias ã exp licação m aterial da história b rasi leira — vinda de C aio P rado, Fernando N ov ais, C elso Fu rtad o, F rancisco de O li veira, entre ou tros — , e ao co n ju n to das inform ações fornecid as pelos an tro p ó lo gos, críticos literários e rom ancistas, bem com o à m inha própria experiência p o lí tica, eu tinha a im pressão de que se conseguisse articular tudo isso e acrescentar as inform ações que colhera sobre a idéia de tem po e de história no judaísm o e no cris tianism o; sobre a teologia política analisada por Espinosa; sobre os grandes m ovi m entos populares cristã o s; sob re o períod o do “ a ch a m e n to ” do B rasil; sobre o populism o, o au toritarism o e a violência brasileiros, eu poderia, talvez, encontrar uma chave para me ap ro xim ar do que podem os cham ar o grande im aginário b ra sileiro. Q u ero dizer, para me acercar de algo que vai e volta, que é negado cotid ianam ente pela experiên cia social e, no en tan to , perm anece incólum e, algo que rece be periodicam ente a crítica dos artistas e da política de esquerda, e apesar disso sempre retorna, algo que parece imune aos mais variados ataques e permanece com o uma espécie de fundo im perecível. Foi en tã o , co m o que conseguindo com p letar o q u ebra-cabeças, que me dei con ta de que eu não estava diante de uma ideologia, pois as ideologias acom panham sem pre o m ovim ento da fo rm ação histórica, mas sim diante de algo que indefinidam ente, interm inavelm ente se repete sob a m udan ça histórica, p o lítica, ideológica: trata-se de uma m itologia. A ela dei o nom e de “ m ito fundador do B ra s il", e foi ele o fio con d u tor para o livrinho publicado neste an o da graça de 2 0 0 0 , Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. O m ito fundador, fundo teológ ico-p o lítico que sustenta o im aginário social e p o lítico , se constrói com a figura do Brasil com o efeito de três op erações divinas sim ultâneas: o Brasil é ob ra de Deus — a natureza paradisíaca — , é plano de Deus — a história providencial que assegura que este é o país do futuro — e é vontade de Deus — por quem é instituído o E stado e definido o governante. Sagração da natu reza, sagração da história e sagração do poder são os pilares de nosso m ito fundador.
Em seu livro D a realidade sem m istérios ao m istério do mundo, de 1981, há um ensaio dedicado a Espinosa, no qual podem os 1er que a filoso fia espinosana é “a única filosofia na qual a liberdade do corpo, liber dade do espírito e a liberdade política são inseparáveis” (p. 97). Cor po, alm a e política livres e inseparáveis não seria para você justamente uma súmula da filosofia de Merleau-Ponty? Em que sentido a obra de Merleau-Ponty orientou a sua leitura de Espinosa? Sem dúvida o “ única filo so fia ” é efeito de ard or de iniciante! C om o eu disse, V íerleau-Ponty m arcou-m e para sem pre e reconheço que m i nha interp retação de E spinosa não teria sido possível sem a perspectiva m erleupontyana, pois foi dela que me veio a com preensão dos problem as e lim ites das fi losofias da representação — onde Espinosa não se situa — , a exigência filosófica
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de não fazer da consciência de si reflexiva o berço do m undo — e a filosofia esp ino sana não é filosofia do cogito — , a retom ada da dignidade on tológ ica do corp o — e Espinosa a realiza recusando uma relação hierárquica entre corp o e m ente, c riti cand o a trad ição na qual o prim eiro com anda a segunda na p aixão e a segunda com anda o prim eiro na ação — , a con cep ção da liberdade não com o liv re-arbítrio, mas com o interpretação da situ ação de fato para ultrapassá-la num sentido novo — o que podem os 1er nas prim eiras proposições da parte V da Ética, depois das partes anteriores criticarem o livre-arbítrio e a vontade livre e prepararem o cam inho para a definição da liberdade com o interiorização da causalidade do corpo e da mente e co m o aptid ão de am bos para a pluralidade sim ultânea — , e, sobretud o, a noção de estrutura com o com plexid ad e dc ações e de ordens de realidade diferenciadas internam ente — o que me auxiliou a com preender a substância e seus infinitos a tri butos, em Espinosa. E a insistência de .Vlerleau-Ponty de que a origem não é algo passado e sim aquilo que, aqui e agora, se exprim e no originado foi uma pista muita im portante para eu me acercar da idéia espinosana de causalidade im anente. Essa presença de .Vlerleau-Ponty pode parecer absu rd a, tan to porque o filó sofo é um crítico de Espinosa (na prim eira nota de trab alh o d ’0 visível e o invisí
v el — aquela que foi o fio con d u tor de meu m estrado — ele diz explicitam ente que a filosofia já não pode pensar segundo o recorte D eus-m undo-hom em , que era o de E spinosa), com o ainda porque sua filosofia trabalha com a contingência e a indeterm in ação o rig in á ria s, situand o-se no pólo o p o sto ao da necessidade ab so lu ta espinosana. Se, por e.xemplo, nada me impede de dizer que a liberdade significa para Espinosa, com o para M erleau-Ponty, um transcender-se na im anência, nem por isso posso id en tificá-lo s: para M e rlea u -P o n ty , a tran scen d ên cia repousa na indeterm inação e na contingência e na maneira com o ele pensa o ato criador; para Espinosa, a liberdade com o aptidão para o m últiplo sim ultâneo significa, negativam ente, a d em olição do im aginário da transcendência e da contin gência, feita na parte I da
Ética, que elabora, positivam ente, uma ontologia do necessário com o ação imanente do ser absolu to em cu jo interior se d esdobra a causalidade necessária da açã o dos modos finitos e a liberdade hum ana. Da mesma m aneira, por exem plo, a com preen são crítica da m etafísica, trazida por M erleau -P onty , auxiliou-m e na com preensão da filosofia espinosana em que a crítica da m etafísica é sim ultânea à e lab o ração da o n tologia. E, ao m esm o tem po, a diferença entre os dois filósofos é profunda: Es pinosa dem onstra que a m etafísica ju d aico-cristã é inseparável das idéias de possí vel e de contingência, que ela é elaborad a para dar expressão filosófica ao im agi nário do possível e da contin gência, enqu anto que M erleau -P onty critica a m etafí sica (sobretud o a m oderna) por suas pretensões de oferecer as leis necessárias da realidade em si, a partir das representações. Entre eles, intercalam -se as obras de Kant, Hegel e Husserl. O u seja, o horizonte de Espinosa é o infinito positivo ou atual; o de .Vlerleau-Ponty, a finitude. M as Espinosa é um clássico e M erleau-Ponty escreveu que um clássico é aquele que não cessa de nos dar a pensar e de nos fazer pensar. Procuro interpretar Espinosa com o aquele cuja ob ra, ao interrogar a experiência de seu presente, nos oferece pistas e cam inhos para interrogarm os o nosso. Ju stam en te porque suas indagações e res postas são diferentes das nossas é que ele nos dá a pensar e a escrever.
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K o prim eiro volum e de A nervura do real, preocupei-m e em determ inar as cau sas das m últiplas e con trad itó rias im agens de sua filosofia (ateísm o, fatalism o, p an teísm o, m o nism o , m isticism o, m aterialism o e tc .), exam in an d o a h istória da con stru ção dessas im agens (quan do, com o e quem construiu as imagens do “espinosism o” ?) para indicar o que a própria obra de Espinosa suscita essas imagens para um leitor ju d aico -cristão; mas tam bém busquei co n trap o r às con stru ções histori cam ente determ inadas a história do fazer-se da ob ra espinosana (quando, co m o , por que, para que e para quem , con tra que, a favor de que Espinosa escreve?). Esse percurso foi desvendando as op erações de con stitu ição da m etafísica (antiga e ju d aico-cristã) com o ju stificação e afirm ação da con tingência, seja, à m aneira aristo télica, para en co n tra r uma reg ião que escapa do tem po e do m ovim en to, seja à m aneira ju d aico -cristã, para oferecer os fundam entos para a T eolog ia da C riação co m o ato contingente da vontade divina. Interessou-m e este segundo caso , pois a elab o ração da m etafísica do possível e da contingência pela escolástica tardia (dos séculos X V I e X V II) a faz constitutiva do pensam ento ocidental m oderno (sem essa referência, não há co m o entender D escartes, Leibn iz, K ant e Hegel) e é dele que Espinosa parte com seu contrad iscurso até a e la b o ra çã o da on tolog ia do necessá rio, na Ética. Essa e la b o ra çã o na con tra-co rren te da história levou-m e ao estudo do infinito atual, na m atem ática m oderna, ao lugar e sentido da causalidade eficiente im anente e ao co n ceito de causa sui com o expressão mais alta e absolu ta do prin cípio de razão e co m o nervura do real. O segundo volum e tratará das conseq ü ên cias da necessidade absolu ta para os seres hu m anos, p o rtan to , tratará das relações entre corp o e m ente, das p aixões e ações e da liberdade, pois com o E spinosa escre ve, “ a necessidade não tira e sim põe a liberd ad e” . Para nós, que vivem os sob o im pacto da ideologia pós-m oderna da conting ência, o fato de Espinosa situar-se na con tra-co rren te me parece um co n tra p o n to instrutivo e instigante.
Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên cias e o saber científico. Tal relação pennanece até hoje? Com o ela se dá na atualidade? O lhan d o para a história da filo so fia, tem -se a im pressão de que a filosofia sempre tende a eleger uma ciência paradigm ática para a d efinição da verdade e da certeza, aquela ciência em que a razão parece oferecer-se em sua plenitude (com o a m atem á tica para Platão e para os m odernos, por exem plo; as ciências da natureza para k an tianos, neokantianos e positivistas; a história, para os hegelianos; as ciências da lin guagem , para os nossos co n tem p orân eos), de tal m aneira que não sabem os se a concepção filosófica da verdade e da razão se exem plifica numa ciência ou, ao con trá rio , a ciência exem plar leva à con cep ção filo sófica da razão e da verdade. E claro que se poderia argum entar que a crítica kantiana e a hegeliana de uma ciência exem plar para a filosofia (particularm ente a crítica da exem plaridade m atem ática) faria supor a quebra dessa relação , mas não creio que foi o que se passou. D igam os que, antes de K ant, a filosofia podia ser escrita m ore geometrico, e que, depois de K ant, isso já não é possível. Porém, quem pode negar a referência à exem plaridade da física, na Crítica da razão pura, e a presença tácita das ciências da vida com o pressuposto da Crítica da faculdade de julgar} F. verdade, tam bém , que, a partir de H egel, a fi-
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losofia não pode mais ser escrita more matematico nem com o se fosse ciência da natureza, mas isso não é por que, ju stam ente, ela passa a ser escrita co m o história? A posição de uma ciência exem plar, seja explicitam ente seja tacitam ente pode, e n tretan to , acarretar sérios problem as filo sóficos, sobretud o quando são levanta das as questões de fu nd am entação, seja da ciên cia, seja da filosofia. São questões com o essas que, afinal, aparecem nas discussões da fenom enologia husserliana contra o psicologism o, o historicism o, o antropologism o e o naturalism o com o o b stá cu los à filo sofia, com o se a a b so rçã o de um paradigm a cien tífico pela filo so fia, ao d esem bocar num a ideologia cien tificista, fosse um dos elem entos do que Husserl cham ou de crise da ciência européia, isto é, da incapacidade ou im possibilidade da filosofia fundam entar-se a si m esm a, mas tam bém com o obstácu los ã com p reen são dos fundam entos das próprias ciências e sobretud o com o perda do sentido do conhecim ento filosófico e científico, ou a existência de uma filosofia e de uma ciência que não sabem de onde vieram nem para onde vão. Tam bém e interessante observar que, excluídos o ceticism o absolu to e o niilis m o, a ciência tem servido quase sem pre de argum ento para um ceticism o filosófico m itigado, isto é, a suposição de que a filosofia é incerta, incapaz de verdade, ju sta m ente por não conseguir continuidade e acu m ulação progressiva de con h ecim en to s co m o as ciên cias. É cu rio so n otar que a teoria de Bachelard sobre os cortes epistem ológicos, que se inscrevia numa linha em que a m udança cien tífica pressu punha e repunha a continu id ad e, acabou reforçand o o ceticism o filo sófico m itiga do e abrindo cam inho para um ceticism o mais profundo que foi, parad oxalm ente reforçado quando os trab alh os de Kuhn e Fou cau lt, por m otivos diferentes e com perspectivas diversas, buscaram quebrar a imagem da continuidade cien tífica. O u ainda, se pensarm os, por exem p lo, na diferença que G ranger (na Filoso fia do estilo) estabelece entre o cam po cien tífico e o filosófico (o prim eiro tra b a lharia com a determ inação rigorosa do con ceito e o segundo com a indeterm inação flutuante da sign ificação), a d istinção entre am bos levaria a afirm ar que a filosofia tem seus o b jeto s no lim iar da cientificidad e, isto é, as significações são ou o que ainda não se tornou co n ceito ou o resíduo não conceitu alizad o, d eixado pela ciên cia. E isso exp licaria com o e por que a filosofia foi tendo seu cam po dim inuído à medida que a con stitu ição das várias ciências foi tran sform an d o em co n ceito a q u i lo que era apenas uma significação. Sob esta perspectiva, a relação entre filosofia e ciência seria de rivalidade, tem a que foi longam ente trab alh ad o por M erleau-Ponty tan to à luz da cisão sujeito/objeto, idéia/fato (os prim eiros ficand o do lado da filo sofia e os segundos do lado da ciência) co m o à luz das questões que Ffusserl en frentara (isto é, a necessidade de afastar o psicologism o e o historicism o para a ela b o ração dos fundam entos da lógica, o naturalism o e o antropologism o para deter m inar os fundam entos da filosofia e das próprias ciências). -Mas essa rivalidade, lem bra o filó sofo , é obscu ran tista porque não tem com o horizonte a ciência e sim o cientificism o, op erand o com a op osição entre intelectualism o (com o im agem da filosofia) e etnpirism o (com o imagem da ciên cia), ignorand o a com u n icação inces sante entre idéia e fato. Se tom arm os co m o referência essa rivalidade, notarem os que ela acab ou p ro duzindo uma cu riosa solução de com prom isso ou de guerra de fronteiras com uma
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trégua: pouco a pouco, a filosofia aparece com o reflexão sobre a ciência, isto é, com o epistem ologia. A filo sofia, neste caso, não seria nem uma ciência entre as ou tras, nem uma ciência diversa das ou tras, nem aquela que, im perialm ente, totalizaria as dem ais; ela estaria fora do cam po das ciências e refletiria sobre o fazer cien tífico, seja sobre suas condições de possibilidade, seja sobre seus resultados, seja sobre suas tran sform açõ es, continuidades, descontinuidades. A trégua propõe a exteriorid ade entre a filosofia e a ciência. M as a rivalidade, a guerra e a trégua entre filosofia e ciência não é um puro acon tecim en to te ó rico , não é um cap ítu lo dc uma história ab strata das idéias. Ela tem a ver tan to com a lógica interna do trab alh o científico e filosófico q u anto com a m udança do lugar da ciência no m odo de produ ção ca p i talista, isto é, tem a ver com a m aterialidade do saber. Até o com eço do século X X , as ciências eram consideradas “ n o ta çã o da realidade” , distinguiam -se em teóricas ou puras e aplicadas ou práticas e se distinguiam da técnica e m esm o da tecnologia (isto é, a tecnologia é a técnica quando esta pressupõe, de um lado, conh ecim ento cien tífico e, de o u tro , uma ciência que exige a e lab o ração de instrum entos de in vestigação). D igam os, de m aneira m uito grosseira, que a divisão entre teoria e p rá tica ainda fazia sentido nas ciências. O ra , o que o século X X introduz é o apagam ento dessa distin ção, não só porque a ciência d eixa de ser n o ta çã o do real para considerar-se encarnada nas próprias coisas, uma vez que estas são o o b je to cien tí fico e este é inteiram ente construíd o pelas op erações cien tíficas, m as tam bém por que ciência e tecnologia já não podem ser diferenciad as, uma vez que o instrum en to técnico não é um m ero utensílio e sim um elem ento constitu tivo da própria op e ração científica que produz efeitos sobre essa op eração. Já não podem os falar em ciência aplicad a. A ciência não se aplica às coisas por m eio de práticas d eterm ina das e por m eio de técnicas: ela con strói as próprias coisas e sua ação de con stru ção já é uma intervenção que não visa apenas d om inar a realidade natural e social, mas produzir essa realidade — os au tôm ato s, de um lado, e o genom a, de ou tro , estão aí para ilustrar o que estou dizendo (por favor, não estou faland o em term os heiddeggerianos da técnica com o violência e invasão da bela e pacífica m orada do ser!). Se, antes, ela se punha a serviço da produção econ ôm ica, mas não parecia in teira m ente determ inada por esta, agora essa d eterm inação é com p leta, e a expressão cu nhada por H orkheim er, razão instrumental, ganha pleno sentido, isto é, de uma racionalidade que é, na verdade, racion alização para a regulação contínua do p ro cesso econ ôm ico . N ã o é que sim plesm ente a ciência/tecnologia se tenha tornad o (com o tudo, aliás, no capitalism o) uma m ercad oria a serviço de ou tras m ercad o rias e um instrum ento de d om inação e violência. Ela se tornou m uito mais do que isso: to rn ou -se, p rim eiro, fo rça produtiva e, d epois, relação de p rod u ção. O u o sentido que M arcu se dá à noção de tecnologia co m o form a de org anização e per petuação das relações sociais capitalistas ou da sociedade adm inistrada que opera com a equivalência e hierarquia das funções. É isso que as pessoas percebem (m ui tas vezes sem com preender por que), quando afirm am que tem a riqueza e o poder quem tem o m on op ólio da in fo rm ação , isto é, capacid ade op eratória medida da e ficácia dos resultados. E co m o a m arca do capitalism o con tem p orân eo é a frag m entação op eracional de todas esferas da vida e da atividade sociais e sua reuni ficação extrínseca por m eio das organizações ad m inistrativas, as ciências se frag
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m entam , tan to extern a com o internam ente, e suscitam , de um lado, a ideologia da com petência do especialista e, de ou tro , as epistem ologias das descontinuidades e rupturas, com o se estas fossem produzidas por um fenôm eno interno às próprias ciências. Reunindo então essas vertentes na sua configu ração contem porânea — a ciên cia com o um discurso fragm entado e d escontínuo de con stru ção de seus próprios o b je to s, a ciência co m o razão instrum ental e co m o força produtiva e relação de produção — , d ispom os, teoricam ente e m aterialm ente, de algum as pistas para nos acercarm os da con cep ção pós-m oderna de ciência com o “ n a rra tiv a ” autônom a (à m aneira do rom ance e do c o n to ), critican d o toda tentativa de apreensão do fen ô m eno científico/tecnológico em sua totalidade ou aquilo que os pós-m odernos ch a mam de “ m etan arrativ a” , julgada to talitária — de tal m odo que devem os preser var a narrativa (cada ciência em seu fragm ento específico) e ab olir a m etanarrativa, abdicand o assim de toda e qualquer reflexão a respeito das ciências co m o um ca m po passível de com preensão racion al e h istórica. Um a conseqüência da fragm enta ção operacional do conh ecim en to é a m odificação que introduz no con ceito de pes quisa: esta deixa de ser a investigação a respeito de uma questão cu jo sentido se procura, e passa a identificar-se com aquilo que a publicidade cham a àesurvey, isto é, a localização de um problem a particu lar que precisa de solução tam bém p arti cular. N este sentido, as ciências passam a operar com o estratégias locais para a so lução de problem as locais, com questões de curto prazo e desligadas da uma apreen são m ais geral do próprio cam p o cien tífico em que está inserida a própria ciência particu lar que foi convocad a para a solu ção do problem a. N ã o só as pesquisas se tornam cada vez m ais miúdas e irrelevantes do p o n to de vista do conh ecim ento, mas excluem interrogações sobre seu sentido e sua verdade. O pesquisador deixa de ser um investigador para tornar-se um resolvedor de problem as, afastan d o toda indagação sobre a lógica interna do conh ecim ento cien tífico e a lógica de sua de term inação histórica m aterial.
Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenôm eno estético em nossa socieda de. Com o você se posiciona em relação a esse debate? Baudelaire afirm ou que a m odernidade é a tensão entre o efêm ero e o eterno. Klee disse que a arte é a captu ra do essencial no acidental. M erleau -P onty julga que a arte, e não a ciência contem porânea, é a via de acesso ao mundo — é m uito instigante, na abertura de O olho e o espírito., a diferença entre a ciên cia, que co n stró i o m un do com o o b je to dom inável, e a arte co m o “ ru m inação do m u n d o” , co m o quiasm a entre o co rp o do a rtista e o co rp o das coisas e a obra co m o tran scend ên cia na im anência. M as a sua pergunta parece ter co m o pressuposto o d ebate B en jam in-A dorno sobre o fim da au ra, não é? E tam bém o debate entre vanguarda e co n fo rm is m o, não é m esm o? N ós sabem os que a m odernidade afirm a, com a secu larizaçâo das artes, a idéia da au ton om ia da arte (de que o nascim en to da literatu ra pode ria ser consid erad o o caso exem p lar), assim com o afirm a a au tonom ia da ciên cia. N o caso das artes, porém , o desencantam ento do m undo, que as liberou da reli
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gião e do E stad o, não impediu que a sua d eterm inação pelo m ercado se desse mais rapidam ente do que na ciência, de m aneira m ais direta e im ediata, porque elas não dispunham de uma p ro teção com o a ciência possuía, isto é, a distinção entre ciên cia pura e ciência aplicad a. Sem dúvida, a idéia de vanguarda pretendeu c o n tra por-se ã contínua perda (ou não con q u ista) da au tonom ia das artes — no caso do século X X , isso tran sp areceu, por exem plo, nas inovações da form a da n arrativ a, na pintura (seja na reflex ã o im pressionista sobre a co r e a luz, seja na expressionista com o reflex ã o sim bólica, seja na ab strata co m o reflex ão sobre a form a e o esp aço), na m úsica d od ecafôn ica, na reflexão do teatro e do cinem a, isto é, um teatro e um cinem a que interrogaram seu fazer-se e seu próprio sentido, e em tudo o que se passou na arquitetura — , mas esbarrou sem cessar nas form as da hete ro n om ia, até desaparecer nos dias de h oje. Se Benjam in ainda interrogava o fen ô m eno da d esap arição da au ra, os pós-m od ernos com em oram a d esaparição do au tor e do artista. Eu gostaria de retom ar a questão da aura por um ou tro prism a. A aura era a garantia de que a ob ra de arte é única e rara. C om o ta l, corresponde ao que Krystophe Pom ien cham a de sem ió foro , isto é, algo — um o b je to , uma pessoa, um lu gar — que é retirado de seu uso cotid ian o na vida, de sua instrum entalidade e cir cu lação , e passa a ter um valor sim bólico — o espólio de guerra, o lugar san to, a relíquia religiosa, o anim al sagrado etc. Um sem ióforo não tem “ v alo r” porque tem significação. Para que se dê essa tran sform ação de algo ou de alguém em sem ióforo é preciso que esse algo ou alguém estabeleça uma ligação entre o visível e o invisí vel (no esp aço e no tem po), tenha sentido social e esteja exp o sto ã visibilidade para perm itir uma celebração coletiva. Poderíam os, natu ralm ente, supor que, com o ad vento do cap italism o, os sem ióforos tendem a d esaparecer — pois que sem ióforos poderiam surgir numa sociedade em que tudo é m ercad oria, em que nada pode ser tirad o de circu lação? O ra , existem três tipos diferentes de sem ióforos, cada qual disputando prestígio e poder numa sociedade: sem ióforos religiosos (com o relíquias, pessoas e lugares san tos), sem ióforos p olíticos (co m o o patrim ônio histórico-geog ráfico n acion al, os museus, e a própria nação) e sem ióforos da riqueza ou do p o der econ ôm ico , que são exatam ente aqueles postos pelo capitalism o e entre os quais estão, em primeiro lugar, as obras de arte. O capitalism o inventa a obra de arte com o sem ióforo (donde a idéia de raridade, o aparecim en to do m ecenato, o surgim ento das coleções privadas, o financiam ento de instituições artísticas e a institu ição do m ercado de arte). Desse ponto de vista, a perda da aura é o preço que a arte paga não para dem ocratizar-se (com o desejava B en jam in), nem para desfazer a barreira entre arte e vida (com o queria a vanguarda dos anos 2 0 -3 0 do século X X ) , mas para tornar-se sem ióforo no m undo cap italista: para que a ob ra de arte seja consid era da única, rara, bela, sublim e, valiosíssim a, precisa ter sido posta assim pelo m erca do, ainda que o papel da vanguarda tivesse sido o da luta co n tra essa heterom onia e de afirm ação da arte com o cria çã o do novo, co n testa çã o do instituído, crítica e protesto estético e social. Se consid erarm os as tensões e con trad ições da arte m o derna — o efêm ero e o eterno; o au rático e a reprodução técn ica; a vanguarda e o con form ism o ; a revolu ção e a rea çã o ; o nacional e o in tern acio n al; o global e o e tn ocên trico; o particu lar e o universal — , poderíam os acrescentar a tensão entre a
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própria reprodutibilidade e o sem ióforo, mas este com o uma espécie de aura b as tard a, determ inada apenas pela lógica do m ercad o, pela posse de o b je to s de prestí gio com enorm e valor de tro ca. Se até certo m om ento, porém , essas eram tensões que se punham para as a r tes sob a form a de questões, e que as artes viviam de fato co m o tensões e co n tra d i ções, no interior das quais o artista realizava suas o b ras, o pós-m odernism o vem celebrar apenas um dos term os de cada tensão, desfazendo suas contrad ições. C e lebra-se, h oje, o efêm ero (e não sua tensão com etern o), o acidental (e não sua ten são com o necessário), o particular (e não sua tensão com o universal), o sem ióforo (e não sua tensão social), o con form ism o (e não a tensão entre vanguarda e instituí d o), a superfície (em lugar de sua tensão com o invisível), a reação (e n ão a exig ên cia de criação ), a ilusão (em vez de sua tensão com a revelação do verdadeiro). Com esses definidores da arte con tem p orân ea, esta passa a ser a pura região do sim ula cro , em pório de estilos, fashion, de que a fam osa Strada Novíssima dos arquitetos foi o m anifesto ou a certidão de nascim ento. A meu ver, as form as mais em blem áticas da arte contem p orânea são a publicidade e o videoclipe, pois am bos ostentam os elem entos fundam entais do fazer artístico de nossos dias: tecnologia em estado puro, determ inação direta pelo m ercado com o m ercado de imagens, desaparição do tempo (fragm entado em instantes velozes e fugazes), desaparição do esp aço (fragm enta do em im agens efêm eras), repetição interm inável e nauseante, cu lto n arcísico, im possibilidade da transcendência na im anência. £ hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíam os era um fe nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado N acional com o fonte e garante do Direito e como detentor do m onopólio do exercício legítimo da violência. Como você vê tal diagnóstico? Na sua visão, a prim azia de que parecem des frutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias? N ão sou saudosista (o saudosism o é uma form a disfarçada de conservadorism o que, envergonhadam ente, é conivente com o m odism o). M as gosto sem pre de lem brar a m aneira com o M oses Finley nos fala da invenção da política pelos gregos e ro m anos, distinguindo-a dos despotism os antigos. A política foi inventada quando se fez a distinção entre o poder do despotés ou do paterfamilias, isto é, o poder d om éstico ou privado, articulad o à oikoenom ia ou ao dominum (isto é, o governo da casa), o poder religioso, o poder m ilitar e o poder público propriam ente dito. Ou seja, quando houve aquilo que L efort costum a cham ar de d esincorp oração do poder, isto é, quando o poder político não se identifica com o pai, o sacerdote e o cap itão , quando é recusada a figura do governante com o figuração e autoria da lei e do saber, para que a divisão social possa exprim ir-se a distância da casa, do tem plo e da caserna, para que haja o trab alh o social dos con flitos e das contrad ições no espaço visível da sociedade. É o fim dessa invenção que estam os presenciando, com o retorno gigantesco do poder privado .sobre o público e com a econom ia política com o substituto das práticas sociais.
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De um m odo geral, eu diria que a política deixou de ser percebida co m o lógi ca da ação e expressão (im aginária ou real) das divisões sociais ou da luta de cla s ses, deixou de ser praticad a co m o cam p o do poder e dos contrap od eres sociais, deixando de ser realizada co m o cam po das práticas sociais articulad as à noção de governo da sociedade para reduzir-se à gestão ou ad m inistração do setor estatal, este entendido co m o fisco, alguns serviços públicos e op erações sobre a m oeda. O ocu ltam en to das divisões so ciais, que sem pre caracterizou o m odo de p rodu ção cap italista, se m ostra no próprio vocabu lário. Fala-se, hoje, em três setores: o setor público, que se define com o um setor de planos m onetários e de serviços estatais, o setor privado, e um terceiro setor que pretende correspond er ao que antigam ente se cham ava de sociedade civil. F. a política está confinad a a o prim eiro setor, subor dinando-se ao segundo e tem endo o terceiro , tem or que se traduz em práticas ati vas de d espolitização da sociedade. Essa setorialização, típica da idéia de organiza ção administrativa e gerencial, enfatiza a figura curiosa do político profissional (subs tituto do antigo representante), m isto de lobista e de especialista com petente em questões que deveriam ser de todo m undo ou das classes sociais; e alim enta o en colhim ento do espaço p o lítico e o alargam ento do esp aço privado, a partir do m o m ento em que a política e a esfera estatal se identificaram , e em que, sobretudo com o neoliberalism o, a ação estatal se reduziu à gerência adm inistrativa de um “ seto r” , desapareceu a res publica, não só no sentido clássico de fixação e disputa pelos fundos pú blicos, mas tam bém no sentido de a rticu lação entre república e d em ocracia, isto é, uma fo rm ação social (e não um regim e governam ental) instituída pelas práticas sociais de criação e g arantia de direitos. Essa redução da política ao governo com o gestão ad m inistrativa, ao exprim ir a fragm entação social e encolher o espaço pú b lico, am pliando o privado, é inseparável da idéia de m ercado político e de m erca do de imagem , isto é, da posição narcísica do político profissional cuja imagem com o indivíduo privado é vendida pela publicidade. E é isso tam bém que acab a por c o locar na ordem do dia as questões m orais ou éticas, percebidas do ponto de vista do indivíduo co m o áto m o na m ultidão solitária. N o caso do B rasil, essa situação é especialm ente grave, porque o que se passou a propor co m o espécie de sucedâneo da política foi a idéia da reform a adm inistrativa do Estado: a política consiste em reform ar adm inistrativam en te o Estado. L ogo, não há lugar nenhum para a p olíti ca enqu anto tal. É cla ro que ela contin u a acon tecen d o, porque não corresponde a essa d efinição pobre, mas con tinu a acontecend o à margem das decisões, que fica ram a cargo do “seto r” pú blico. E, se tem os em vista a idéia da d em ocracia com o o cam p o dos contrapod eres criad ores e asseguradores de direito, vemos que a p ro posta de reform a do E stado visa exclu ir toda e qualquer prática d em ocrática — a qual passa a ser vista pelo E stado não co m o aquilo a que o E stad o responde, aq u i lo com que o E stado dialoga e estabelece os seus com p rom issos, m as co m o um ob stácu lo , um perigo e uma crise contínua para esse p ro jeto político — daí o dis curso oficial propor “ parecerias” com o “ terceiro seto r” e d esqualificar tudo o que, fora de seu con trole d ireto, se passa na cham ada sociedade civil: desqualificam -se as op osiçõ es, d esqualificam -se os m ovim entos sociais, d esqualificam -se todas as práticas sociais e políticas autônom as ou que correspondem a interesses conflitantes das classes sociais. E as falas oficiais não exprim em o que seria uma espécie de má
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vontade com relação à sociedade, nem de incom preensão com relação à ação polí tica; elas exprim em uma tom ada de posição a respeito do fech am ento da esfera política. P ortan to, e isto m ostra o quão grave é a situ ação, o processo de despolitização se torna ao m esm o tem po um processo de destruição da d em ocracia. Se, tendo essa situação em vista, pensarm os na questão do E stado N acional, creio que há duas coisas a considerar. Prim eiro, devemos notar que a noção de Estado N acional faria sentido na medida em que a esfera da política abarcasse toda a fo r m ação social. Reduzido o Estado à gestão do “ seto r” público, e concebid a a socie dade co m o um bloqu eio a essa gestão, é preciso redefinir, no próprio plano inter no — antes p o rtan to de pensar na questão internacional — , o que se entende por Estado N acional. Pois, a meu ver, o que está ocorrend o hoje, com a pauperização da p o lítica e o d eslocam en to do seu lugar, não é o d esaparecim ento do E stad o N acion al. .Muito ao co n trário : o Estado N acional deixou de ser o b je to de disputa ou de program a (com o aconteceu entre 1 8 3 0 e 1 9 7 0 ), porque as lealdades em rela çã o a ele estão garantid as, a sua representação está perfeitam ente consolid ada. O que muda e a função dessa representação, que passa a ser m ero critério para aferir governos: se estes m elhoram ou pioram a nação, se a elevam ao patam ar de outras nações ou n ão, e assim por diante. O u seja, o Estado N acional passa a ser, de um lado, o elem ento ideológico de legitim ação de governos, e, de o u tro , o metron de aferição do desem penho governam ental. Isto explica por que, em toda a discussão atual em to rn o da soberania n acional, o Estado N acion al acab a sendo visto com o um dado cultural, quase à m aneira rom ântica. Pois, com o desfazer-se dos elementos anteriores de identificação — políticos e de classe — , com a fragm entação do espaço (isto é, da idéia de território) e do tem po (isto é, de história), a referência propria mente política ao E stado N acion al perdeu todo e qualquer sentido. E não é para nos surpreenderm os: enqu anto o capital requereu enclaves territoriais contínuos e sob eran os, o Estado N acion al fazia sentido e era o b jeto de disputas. H o je, a acu m ulação e reprodução do capital não precisa dessa referência e a nação, exatam ente quando se consolidou com o institucionalidade reconhecida, torna-se desnecessária. Desse m odo, não podem os dizer que o encolhim ento do espaço político de corre do desaparecim ento do E stado N acion al, mas sim o co n trá rio , ou seja, que o encolhim ento do espaço político, som ado à internacion alização da econom ia, é que acarretou a perda de sentido na idéia de E stado N acio n al. O que não quer dizer que ele desapareceu, ou que não possa readquirir sentido, mas apenas que, na c o n juntura atu al, ele deixou de ser uma referência política e ideológica e passou a ser apenas uma referência ideológica. Saiu há pouco tem po uma coletânea de artigos, intitulada Commemoratiom, que eu resolvi ler por causa do título (afinal estam os nos “ 5 0 0 ” , não é.'). O mais interessante nesses artigos é a percepção de que sim plesm ente desapareceram to das as referências ob jetivas da m em ória: o capitalism o as destruiu uma por uma. Restaram as que têm valor de mercado turístico e as que são individuais ou familiares, cada fam ília tendo o seu pequeno museu. C om o não existe m ais um tem po co le ti vo, não existe m ais uma m em ória coletiva. O ra , um dos elem entos fundam entais na con stitu ição da idéia de E stad o N acional era a m em ória coletiv a, que preserva va uma trad ição nacional con tín u a — o que perm itia não apenas m arcar o per-
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tencim ento dc alguém à n ação , com o pensar em term os de progresso, de futuro. H oje não há mais uma d em arcação tem poral, e nem m esm o, com o m undo virtual, uma dem arcação espacial: as referências d eixaram de ser o tem po e o espaço e passa ram a ser esta ou aquela trad ição fam iliar ou com u nitária, este ou aquele lugar — ou seja, as unidades mínimas que resultaram da fragm entação do tem po e do espaço. Sendo assim , podem os dizer que restam apenas três referenciais básicos: a fam ília, co m o guardiã da trad ição, a religião fu nd am entalista, com o tentativa de sesperada de recuperar a totalidade perdida, e, situado entre elas, o indivíduo, com o um á to m o solitário em busca do seu lugar. E é precisam ente este indivíduo que aparece com o figura a que se dirige o m arketing p olítico, pois este opera com e para a redução da política ã cond ição de imagem e espetáculo da vida privada. O ra , nada mais natu ral, num tal quad ro, que se passe das antigas questões políticas e sociais para as questões m orais: esse revival da ética se deve ao fato de terem desaparecido os antigos referenciais da ação e ou tros precisam ser form ulad os, tendo o indiví duo com o centro. A gora, o mais interessante é a m aneira com o a ética está sendo pensada. De um lado, ela aparece com o retorno do velho m ago (senhor de sua arte) que vem corrigir os desastres de seu aprendiz de feiticeiro: o caso da genética e do genom a são exem plares desse súbito afã prudencial. O u seja, co m o fazer para que o con h e cim ento científico -tecnolü g ico não caia nas m ãos erradas e não tenha um mau uso? M as, talvez, fosse necessário indagar: em que m ãos ele está? Q uem financiou as pesquisas e por que? De ou tro lado, abandonam -se as reflexões m ilenares da filo sofia q u anto à ética e se tom a co m o referência norm ativa e reguladora a organ iza ção adm inistrativa, que define uma hierarquia de funções e responsabilidades, e que avalia e julga os seus m em bros con form e o seu lugar nessa hierarquia e con form e eles cum pram adequadam ente as suas funções e responsabilidades. É isto o que, hoje, se entende por ética: op eracionalidad e funcional dos com p ortam en tos, graças ao fornecim ento de um con ju n to de norm as e regras que g arantam , para cada indiví duo, dentro do seu “ seto r” esp ecífico, uma referência hierárqu ica, uma referência de função e uma referência de responsabilidade. Assim, fala-se em ética m édica, ética do dentista, ética da em presa, ética na política, ética das mulheres, ética dos jovens... enfim , q uantas se queiram criar. É uma deontologia regional alucinada que perde o sentido da ética propriam ente dita. E, nesse p o n to, sejam os aristotélicos: se a política é jo g ad a fo ra , a ética vai ju n to . O fa to de o indivíduo, m ergulhado na m ultidão solitária, precisar agora de norm as de cond u ta, ob tend o-as a partir do m odelo org anizacional, não indica apenas que, por falta de referência política, se está buscando a referência ética, mas tam bém que a própria referência ética se per deu. É a idéia de práxis autôn om a que desapareceu, substituída pela de co m p o rta m ento e sistem a de com p ortam en tos. A práxis cria a açã o e o agente; o co m p o rta m ento assinala o grau de ad ap tação e funcionalidade das op erações de um indiví duo em sua relação com o m eio ou com o am biente.
Como você caracterizaria a sua relação com a religião e a fé f Ao falar da minha fo rm ação, frisei com alguma ênfase o papel da religião com o exp licação do universo, com o fonte de sentido para o m undo e para a m inha vida
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individual, palm ilhada pela fé e pela culpa. \ o en ta n to , creio que fui de tal m anei ra “ v acin ad a” por Espinosa e por M a rx com o vírus da razão que, por m ais que eu possa com preender esse papel da religião na vida da alm a religiosa, isto não signi fica que eu tenha uma relação afirm ativa com a religião. N a verdade, tenho com ela, para usar uma expressão de M arcu se, a relação da tolerância passiva, pois não me vejo no direito de investir con tra a con so lação religiosa. N ão é esta, aliás, que me enfurece e sim o poder teológico-poiítico, a moral burguesa repressiva ou ascética que o protestantism o ofereceu ao capitalism o, o conform ism o e o conservadorism o cató lico s, o reacionarism o pentecostal, os fundam entalism os de todas as seitas e cores, que legitim am o que se passa na Irlanda, nos B álcãs, no O riente M éd io, a ju stificação religiosa do sistem a social de ca sta s, as religiões afro -b rasileiras que operam co m o com pen sação espiritual para a violência e a d iscrim in ação reais. D e qualquer m odo, eu diria que tenho uma relação bifronte com a religiosi dade. De um lado — por causa dos estudos que fiz a respeito do m ilenarism o, do m essianism o, do profetism o — , passei a com preender a religião com o via de aces so ã política por parte das classes populares, com o o lugar onde prim eiro se m an i festa a esperança de justiça. E, neste sentido, concord aria com a afirm ação de M arx segundo a qual “ a religião é a enciclopédia e a lógica populares, o espírito de um m undo sem esp írito ” . De ou tro lado, porém , tam bém con cord o com sua afirm a ção de que a religião é “ o óp io do p o vo” , apaziguam ento espiritual das co n tra d i ções sociais, da exploração e da dom ir :ão. Fatalism o. No seu fundo mais profundo, é o con so lo para o m edo profun do nascido da percepção da contingência nas c o i sas hum anas e de nossa finitude. Pascal fala do pavor cau sad o pelo silêncio dos espaços infinitos e que n ão há medida entre o infinitam ente grande e o infinitam ente pequeno, senão a medida sobrenatural trazida por Jesus C risto e pela graça. K ierkegaard expôs a essência da fé em Temor e tremor. Parece-m e significativo que tan to Pascal co m o Kierkegaard tenham sublinhado o pavor e o tem or que subjazem ao ato de fé, pois exp licitam o vínculo profundo entre a religião e o medo. Por mais bela e sublim e que seja uma religião, jam ais abandona sua origem essencial no m edo; ela pode tran sfigu rá-lo e d eslocá-lo, mas não pode suprim i-lo sem d eixar de ser religião. E m edo, sabem os, é uma p aixão triste. Tran sfo rm ad a em religião, a fé se torna um sistem a de crenças que deve ser obedecido. Uma crença obedecida é subm issão a um saber, a um dizer e a um fazer anteriores a cada um de nós, que nos com andam do exterior e que interiorizam os pela obediência. Precisam ente por este vínculo com a obediência, a fé se apresenta com o uma disposição do caráter para aceitar o que não pode ser com preendido nem pensado (por isso, no cristian ism o, é uma virtude porque esta é definida com o dis posição adquirida pela vontade guiada pela reta razão, e esta é definida pelos c o n teúdos da própria fé). Isso é m uito interessante quando se leva em con sid eração o princípio protestante da “ liberdade do cris tã o ” , isto é, o direito de cada um de in terpretar o texto sagrado e de com unicar-se, espírito a espírito, com D eus, pois isso que aparece com o liberdade (porque inscrito na recusa da autoridade eclesiástica externa) não faz sen ão in teriorizar a necessidade da obediência e torná-la desejável e desejada.
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Conto você se situa em relação aos problem as de uma “mudança de paradigm a” da filosofia, de uma filosofia “pós-m etafísica” calcada na linguagem? C om ecem os com o que, hoje, se em ende por m etafísica: a suposição de que o pen sam ento pode alcan çar as coisas tais com o são si m esm as, que a linguagem pode enunciar as idéias verdadeiras nascidas desse pensam ento e que o acord o entre o ser e o pensam ento e deste com a linguagem constitu i um sistem a de relações uni versais e necessárias, isto é, aq u ilo que, no século X V II, se cham ava ordem natu ral, no final do século X I X e início do X X , se cham ava processo e, nos m eados do X X , se cham ou estrutura. Em sum a, a suposição de que a realidade não faz sen ti do sim plesm ente, mas tem sentido e que este pode ser alcan çad o pelas op erações da razão hum ana porque ela é parte dessa realidade e tom a parte nessa realidade. A m etafísica busca o fundo invisível do visível e consid era que a realidade está pro m etida à inteligibilidade. E seu pressuposto é que a d istinção alm a-corp o, sujeitoo b je to , idéia-coisa, hom em -natureza, natu reza-história não é ob stácu lo ao acesso à realidade m esma porque essas distinções são a realidade, quer com o um dado (a ordem n atu ral), quer com o um feito (o p rocesso), quer com o cruzam ento do dado e do feito (a estrutura). Falar em pós-m etafísica é dizer que essas suposições e pres suposições não só d esapareceram , mas foram invalidadas (em seus fundam entos e em suas pretensões de universalidade), seja pela experiên cia, seja pela história, seja pela própria razão. E se se tom a a “virada lin g ü ística” com o cau sa, supõe-se, de um lado, que a linguagem tem uma fu nção terapêutica para o pensam ento, e, de o u tro , que não há nada de m etafísico na própria linguagem , que esta não pretende dizer as coisas, mas apenas p roferir a si mesma e referir-se a si m esma enquanto desem penho ou pragm ática, isto é, com o op eração ou operacionalidade regulada por regras convencionadas entre seus usuários. M as suponho que a pergunta tenha um alvo m ais preciso. C om o está fo rm u lada, pressupõe H aberm as, n ão é m esm o? P ortan to, que a pós-m etafísica é a que bra do privilégio da teoria sobre a prática (o logocentrism o) e da pretensão da filo sofia de decidir sobre a verdade da ciên cia; que ela é inseparável da passagem do paradigm a da filosofia da consciên cia para a filosofia da linguagem (a relação en tre proposições e estados de coisas substitui a relação su jeito -o b je to ; e a con sciên cia transcendental con stitu inte se tran sform a em estruturas gram aticais); que ela se inicia quando não há m ais cam in hos para separar o em pírico e o transcendental (seja sob os efeitos da fenom enologia do últim o H usserl, da antropologia de LéviStrauss, dos jogos de linguagem de W ittgenstein, dos m arxistas hegelianos pondo a totalidade social em suas determ inações co n cretas); e que ela repõe a necessidade de discutir sob outra perspectiva os tem as clássicos da filosofia (universalidade e pluralidade da razão; relação entre filosofia e ciên cia; relação entre saber especi alizado e E sclarecim en to; relação entre filosofia e literatu ra; estatuto da teoria e da p rática; m éritos e lim itações da virada lingüística). N enhum a das questões propostas por H ab erm as sob o term o “ pós-m etafísi c a ” é irrelevante. Pelo contrário, estiveram e estão no cerne mesmo da filosofia. T a m bém não é irrelevante discutir o prim ado da teoria sobre a prática nem os im passes da filosofia da con sciên cia, nem o problem a dos duplos em pírico-transcen dentais
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(co m o dizia Fou cault em As palavras e as coisas). M as se eu quisesse carica tu ra r as respostas ditas pós-m etafísicas, elas apareceriam assim: os m etafísicos perguntavam “ por que há o ser em vez do n ad a?” , os pós-m etafísicos respondem que o ser são narrativas bem feitas; os m etafísicos perguntavam “com o é possível a verdade?” , os pós-m etafísicos respondem que o falso (ou a falsificação, com o preferem , já que pensam op eracionalm ente) é a via régia do bom con h ecim en to ou que o erro é um equ ívoco categ orial; os m etafísicos queriam saber co m o a razão pode estar circu n dada pela irrazão e conviver com ela com o risco, já os p ós-m etafísicos cham am a razão de loucura porque faz a pergunta indevida pelo fund am ento; os m etafísicos perguntavam “qual a causa da co n tro v érsia, se a razão é u n iv ersal?” , e os pósm etafísicos respondem que é conversando que a gente se entende. O u seja, assim com o no caso das artes, as tensões e con trad içõ es tenderam a ser apagadas pela fi.xação de um dos term os em detrim ento de ou tro , me parece que o m esm o a co n tece aqui: já que a teoria é logocêntrica, fiquem os som ente com a prática e não com a tensão entre elas; já que a ciência é discurso bem -feito, fiquem os som ente com a narrativa e não com a tensão entre idéia e fato ; já que a verdade é uma convenção lingüística, fiquem os com jo g os de linguagem locais ou regionais, d eixando de lado os problem as do sentido e da certeza. E assim por diante. .Mas o que isso quer d i zer? Q ue os term os das questões são m etafísicos e que se im agina estar fora da m etafísica sim plesm ente porque se decidiu con tra aqueles term os que a velha m eta física prezava. Há algum tem po, ouvi uma palestra em que o orad or explicava a feliz desa parição da subjetividade e da objetividade e, em seu lugar, introduzia a n o çã o de flu xos en ergéticos errantes que se com bin am fugazm ente num jo g o de fo rças e migram em direções variadas, em novos jogos e com binações errantes ou circulantes. Ao ouvir a palestra, em pensava: “ engraçad o, já ouvi esse tipo de d escrição em a l gum lugar; o n d e?” . E, de repente, me lem brei: “ cla ro , é assim que os econ om istas e banqueiros falam das m oedas, do capital financeiro e da tal “ b o lh a ” que migra de país para p a ís!” . Essa caricatu ra final é só para sugerir que talvez a p ó s-m etafí sica não seja um acontecim ento causad o pela atividade intelectual na república dos sábios e que, quem sabe?, haja mais entre o céu o a terra do que sonha a vã filosofia.
Você utilizaria o conceito de “u topia” para descrever sua visão do fu turo da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia? Bem , vocês viram o efeito de D o socialismo utópico no socialismo científico sobre m im ... |risos|. Há uma dúvida m uito grande com relação à etim ologia da palavra utopia: se ela vem de “eu to p o s” (o bom lugar) ou “ a to p o s” (lugar nenhum ). M a rx e Engels trabalh aram com este segundo significad o, mas nós poderíam os pensar a partir do prim eiro, desde que d iferenciem os “ utopia da cid ad e” e “ cidade u tó p ica ” , e assim recuperar a dim ensão utópica da política. Q uero dizer: a “cidade u tóp ica” é a co n s tru ção m inuciosa e detalhada do futuro no presente, um futuro que não é um p o r vir e sim um dado do próprio presente, op erand o com o m odelo, regra e norm a de ação . É uma con stru ção im aginária que prepara desastres porque obscurece o pre sente e o futuro com o ação histórica. É o lugar nenhum . M as a “ utopia da cid a
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de” , ao co n trário , é apenas uma idéia reguladora, um horizonte percebido nas li nhas de força do presente, que suscita a crítica do presente e p ro jeta a ação política no tem po, é uma abertura tem poral. É o bom lugar que construím os à medida que vam os agindo, sem saberm os exatam ente onde ele está nem co m o ele é. Pois estará onde o puserm os e será co m o o fizerm os. A sociedade cap italista, ou ao m enos essa form a da barbárie a que chegam os, estim ula e enfatiza a idéia de que o m ercado cap italista é não apenas o fim da his tó ria , mas tam bém um destino. Isto produz, a meu ver, duas ilusões: o fatalism o do destino e o voluntarism o da conting ência. E a tensão entre essas duas ilusões faz com que se “perca o p é” na prática política. O ra , a perspectiva utópica me parece capaz, en qu an to uma espécie de idéia reguladora, de evitar essas ilusões. Ou seja, em vez de ju lgarm os a esp eran ça utópica ilu sória é ela que, aliada à análise da m aterialidade h istórica, nos previne das ilusões fatalistas e voluntaristas. E repõe a im portância da política com o ação histórica (isto é, criad ora do tem po), opondose à despolitização adm inistrativa.
Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos co mo riscos am bientais globais, am eaças de desintegração social em lar ga escala e alienação cultural em massa. Como você vê tais problemas? N ós sabem os que, de algum a m aneira, o racionalism o m oderno apostou todas as suas fichas no papel em ancipad or e libertador da ciência. N ã o se con tav a, porém , com a força do m odo de produção cap italista, com a sua capacidade de incorporar com o seus, todos os elem entos extern o s, a ponto de não d eixar “ so b ra s” . E foi isso que ele fez com a ciên cia, que se tornou para ele um elem ento decisivo. O ra , tudo isso que resulta em violência, desastre e barbárie n ão é uma irracionalid ad e do sis tem a. É um equívoco im aginar que, periodicam ente, o sistem a secreta, ou excreta, restos irracionais. O que está aí é a sua racionalid ad e, a racionalid ad e de um pro cesso avassalador que se apropria de tudo e que devolve, na form a da d estruição, aq u ilo que já perdeu sua fu n ção — num a lógica que é p o rta n to con stitu tiv a do próprio sistem a. Q u and o eu faço a crítica da “ terceira v ia” , proposta pela social-d em ocracia inglesa, eu o faço porque sua idéia-chave é a de hum anização do cap italism o. Im agina-se que, se o capitalism o for hum anizado e regulado por m eio de norm as, esses desastres todos não acontecerão. O u seja, imagina-se que há uma certa racionalidade que seria capaz de co n tro la r o sistem a em seus aspectos irracionais. A contece que, co m o acab ei de dizer, a d estru ição é perfeitam en te ra cio n a l, faz parte da ra c io nalidade do sistem a. E, p o rta n to , o que se tem aí é tão-som en te o estabelecim ento de um co n flito entre duas racionalid ad es antagônicas — um co n flito que, eviden tem ente, não pode ser resolvido no interior do sistem a. Por exem plo: a racionalidade do sistem a im põe o desem prego estru tu ral, a idéia de que, finalm en te, os seres hu m anos não são necessários para a acum ulação do capital e são por isso descartáveis. C o m o é que você poderia im aginar uma solu ção para isso no interior do próprio sistem a capitalista? De qualquer m odo, creio que estam os de fato chegand o a patam ares de b a r bárie social e de destruição que com eçam a por em risco todas form as de vida do
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planeta. Impede-se a vida hum ana, porque som os d escartáveis; impede-se um sa ber crítico , porque isso con traria a necessidade do sistem a; por m eio dos satéHtes, con trola-se toda in form ação e toda ação (e essa gente vem nos falar de to ta lita ris m o !); destrói-se a cam ada de o zô n io , destroem -se as florestas, poluem -se os rios e ocean os, invade-se o espaço sideral com lixo astro n áu tico; anestesia-se a sociedade com a televisão a ca b o e a in ternet... É verdade que o capitalism o é um gato com sete fôlegos e que, se essa situ ação se to rn ar irracion al para o cap ital, medidas se rão tom adas para co rreçã o de rota. N ós já estam os vendo isso: as questões sociais e ecológicas estão sendo debatidas e recebendo acertos nos países de cap italism o m etrop olitan o ou central. M a s qual é o procedim ento? T ran sferir ou deslocar os problem as para os países de cap italism o periférico. T am b ém é verdade que pode mos chegar a um p o n to de satu ração em que m esm o essa solu ção se torne inviável. E, en tão, não creio que tais p roblem as, de escala planetária, possam ser resolvidos nos quadros do capitalism o. Se me perm item , farei uma observação de estilo espinosano: uma causa é um efeito necessário de ou tra e produz efeitos necessários de correntes de sua própria natureza ou de sua própria estrutura. Isso significa que não se pode esperar de uma causa que produz efeitos destrutivos e devastadores que ela tam bém produza efeitos construtivos e renovadores — d erruba-se facilm ente um tiran o porque não se derrubam as causas da tira n ia , diz Espinosa. A lógica do c a pital é destrutiva. T u d o o que, no cap italism o, pôde ser con stru íd o, o foi por lutas sociais, por co n testa çã o e a çã o artística e cu ltu ral, por ação de contrapod eres polí ticos e contrad iscursos ideológicos, e não pelo d esd obram ento interno do próprio capital.
Principais publicações: 1978 1981
Ideologia e mobilização popular (co-au tora) (R io de Ja n e iro : Paz e T e rra ); Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas (São Paulo: M o derna/Cortez, 1 9 8 9 );
1983 1984 1984 1985 1986 19 9 4
( ) que é ideologiaf (São Paulo: Brasiliense);
Da realidade sem mistérios ao mistério do mundo (São Paulo: Brasiliense) Seminários (São Paulo: Brasiliense); Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida (São Paulo: Brasiliense); Conformismo e resistência (São Paulo: Brasiliense); Introdução à História da Filosofia, v oi l: dos pré-socráticos a Aristóteles (São Paulo: Brasiliense);
1999
Espinosa: uma filosofia da liberdade (São Paulo: M o d ern a); Convite à filosofia (São Paulo: A tica); A nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa, vol. I (São Paulo:
2000
C om panhia das L etras); O tnito fundador (Fu nd ação Perseu A bram o).
1995 1995
M arilen a C h au i
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Bibliografia de referência da entrevista: B en jam in, W . Ohras escolhidas, Brasiliense. D escartes, R. Meditações, coleção O s Pensadores, Abril C ultural. Engels, F. D o socialismo utópico ao socialismo científico. Perspectiva. Espinosa, B. C o leção O s Pensadores, Abril C ultural. Fou cau lt, M . Arqueologia do saber, G raal. ____________. As palavras e as coisas, .VIartins Fontes. H aberm as, J . Pensamento pós-metafísico. Tem po Brasileiro. H orkheim er, .VI. e A dorno, T h . Dialética do Esclarecimento,]or^e Z ah ar Editores. H usserl, E. Investigações lógicas, coleção O s Pensadores, Abril Cultural. K ant, I. Crítica da razão pura, coleção O s Pensadores, .Abril Cultural. ____________. Crítica da razão prática, L isboa: Edições 70. K ierkegaard, S. A. Temor e tremor, coleção O s Pensadores, Abril Cultural. L efort, C. Maquiavel ou le travail de l’oeuvre, Paris: G allim ard. ____________. Eléments d ’une critique de la burocratie. G enebra: Droz. ____________. As formas da história, Brasiliense. Leibniz, G. W . Discurso de Metafísica, co leção O s Pensadores, .Abril C;ultural. M arcu se, H. Ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional, Jo rg e Z ah ar Editores. M a r x , K. O capital, coleção O s E conom istas, Abril Cultural. .Vlerleau-Ponty, .VL C o leção O s Pensadores, .Abril Cultural. ____________. Signos, .VIartins Fontes. ____________. Sens et non-sens. Paris: N agel. ____________. Visível e invisível. Perspectiva. ____________. Fenomenologia da percepção, M artins Fontes. ____________. A estrutura do cofnportamento, Interlivros.
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C o n v ersas co m F iló so fo s B rasileiros
PA U LO A R A N T E S (1 9 4 2 )
Paulo Eduardo Arantes nasceu em 1 9 4 2 , em São Paulo (SP). G raduou-se em Filosofia pela Universidade de São Paulo e obteve o título de d outor em Filosofia pela Universidade de Paris IV . É professor aposentad o da USP e dirige a coleção Z ero à Esquerda (editora V ozes). Esta entrevista foi realizada em abril de 2 0 0 0 .
G oethe dividiu a vida de seu personagem Wilhelm Meister em dois romances. O s anos de aprendizado e O s anos de peregrinação. ;Vo pri meiro, o foco está posto na fon nação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que você nos falasse de sua fon nação intelectual? Um bom m ote, sem dúvida. Porém pela razão inversa. C onvenham os que se trata de um sim pático despropósito com p arar o destino de um filho da B aixad a Santista aos desdobram entos da vo cação teatral de W ilhelm M eister. Aliás estou me lem brando agora de um trecho do com en tário do Bento [Prado Jr .] ao “ P refácio a uma filo so fia” , do [O sw aldo] Porchat, este sim um em inente filho da Baixad a. Em 1 9 6 7 deu em A Tribuna, de Santos, anunciando o doutoram ento do Porchat: “ Um santista defende A ristóteles” . N o artigo em questão, o Bento a certa altura com parava o dito “P refácio ” a um R om an ce de F orm ação g oethean o, chegando ao requinte de com p arar o prosaísm o da recon ciliação de W ilhelm M eister com o curso do m un do, à reconversão do filósofo santista à realidade depois dos seus Anos de A pren dizado e V iagem , tudo isso sem d eixar de ressaltar o p arad oxo de uma certa estetização da vida cotidiana da parte do H om em C om um , por definição avesso ao lado n oturno da existên cia. T a n to faz se o Bento estava pensando tudo isso seriam ente ou não, possivelm ente as duas coisas, filosofand o e se divertindo ao m esm o tem po. O fato é que o trech o provoca uma forte sen sação de paródia involun tária, e não há nada m ais brasileiro do que isso. E m bora vivam os num país tom ad o por uma ansiedade crô n ica com a sua fo rm ação n acion al, sem pre ad iad a, interrom pi da e tc., im aginar-se alguém protagonista de um Bildiingsroman no Brasil é uma senhora enorm idade. N o m odelo clássico, em G oethe ou H egel, a rigor só há “ fo r m a çã o ” no pressuposto de uma espécie de racionalid ad e superior governand o a m archa das coisas, de sorte que a fo rm ação se com pleta pela conversão de uma espécie de loucura subjetiva a essa m archa ascendente do m undo. O ra , no Brasil tal curva form ativa deveria ser descendente. O u, por ou tra, segundo o m etro patriar cal que nos pautava, seria o caso de se falar de uma verdadeira deseducação. N ão por acaso, foi isso o que R o b erto [Schvvarz] viu nos anos de iniciação e viagem de um engendro da escravidão co m o o nosso Brás C u bas.
P au lo A ran tes
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D ito isso, o que eu poderia dizer acerca dessa pergunta? Q ue a m inha fo rm a çã o , no sentido fro u x o do term o , aconteceu nos anos 6 0 , na Faculdade de F iloso fia da USP. A M aria A ntônia foi o prim eiro co n ta to de fato que tive com vida in te lectual organizada e funcionando no país.
Com o foi a sua militância na juventude Universitária Católica IJUCI? E o seu contato com padre Vaz? Entrei form alm ente na JU C em 1 9 6 2 , q uand o com ecei meu curso de Física na F a culdade de Filosofia da USP. H á alguns anos m inha fam ília achava que eu andava m eio esquisito. A meu favor só tinha o fato de que eu jogava futebol m uito bem , na várzea e na praia. Im aginem alguém em S an to s, no fim do curso colegial, que não tinha nam orad a, não queria rou bar o ca rro do pai, estudava o dia inteiro, era o prim eiro da classe e andava com umas roupas estranhas. E n fim , colocaram -m e em terapia em São P aulo. Isso foi no in ício de 1 9 5 9 . Eu fui e sim patizei com o terapeuta, Paulo G au dêncio, que me coo p tou da form a mais sutil, co m o , g uarda das as proporções, Alceu A m oroso Lim a fez com O sw ald de Andrade: bateu-lhe a carteira quando se ajoelhava diante do cru cifix o . E ele me levou para a JU C . Eu ia periodicam ente a São Paulo para as sessões de terapia e gostava da conversa intelec tualizada. G audêncio estim ulava m inhas veleidades cu lturais. N as férias de julho de 1 9 5 9 , Paulo G audêncio perguntou se eu não queria passar uma tem porada em Itanhaém com seu grupo de estudos. Cheguei lá e era um en con tro da JU C . T ra tand o-se de um jovem de dezesseis an os, fragilizad o, foi conversão im ediata, pois um tipo nessas condições adere a qualquer espírito sagrado que aponte na sua frente. Podia ser o Partido C om u nista, ou qualquer outra coisa. N o meu caso foi a JU C e a Igreja, num m om ento em que despontava nela uma ala progressista, forte e não inteiram ente m entecapta, num m om ento especial do país. Logo depois de entrar na JU C , entrei na F ísica, politizei-m e à esquerda, sem preconceitos co n tra o m arxism o, conheci o Brasil e entrei no m ovim ento estudan til no m om ento mais esplendoroso da história nacion al, antes de 1 9 6 4 . Foi nessa época que conheci padre Vaz. Ao m esm o tem po, eu era ab astecid o literariam ente e en co rajad o por A ntonio C ândido [de M ello e Souza] a seguir por esse cam inh o de em penho p olítico. Foi quando descobri que ele não só conh ecia com o adm irava o padre Lebret, fundador do m ovim ento E conom ia e H um anism o. “ V ocê faz m uito bem , P au lin h o” — costum ava me dizer A ntonio C ândido — “ V ocê sabe de uma coisa? Eu acho religião detestável, mas tenho m uita ad m iração pela igreja, sob re tudo por esses padres de vanguarda que você freq ü en ta” . Freqüentei o cu rso de Física durante um an o, larguei-o, e fui para o R io de Ja n e iro , onde fiquei dois anos, para fazer m ilitância p o lítica. Eu estava lá no dia do incêndio da U N E. A com panhei de perto a fundação da AP [Ação Popular) (ofi cializada num congresso em Salvad or em jan eiro de 1 9 6 3 ). Eu apenas a co m p a nhei a evolução inicial, já que eu não podia en trar pois era dirigente nacional da JU C . A AP foi um fenôm eno. Em m enor p ro p orção pode ser com parad a aos pri m eiros passos do P T , tam bém com forte im pregnação ca tó lica de esquerda. Ela incorporava algum as coisas do m arxism o, era an ti-stalin ista mas fazia frente com o PCB. N o prazo de um an o, a AP ganhou todo o m ovim ento estud antil, inclusi-
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Paulo Arantes;: " E n t ã o a idéia de u to p ia, de um a saída possível, está se to rn a n d o socialm en te proibitiva. E o socialism o tam bém .
A idéia clássica de so cialism o tem de ser inteiram ente repen sad a” .
ve as uniões estaduais. De 1 9 6 2 a 1 9 6 4 só deu AP, desde a presidência de Aldo A rantes até a de (José] Serra.
Depois que você saiu da direção nacional da JVC, o que você fez? Saí depois do golpe e passei seis meses na Europa. V oltei e abreviei tu do, ou seja, fui direto para a F iloso fia. Q u and o eu estava na militcância estudantil, vinha sem pre a São Paulo e de vez em quando me hospedava na casa de A nton io C ân dido. Ele e G ilda [de M ello e Souza] costum avam me co n ta r histórias do D ep artam ento: “ N osso D ep artam ento é m uito bom . Se você está decidido a voltar para a filo so fia, vai ser m uito bom para você. H á jovens m uito interessantes lá ” . D aí falavam de Bento P rad o, Ruy F au sto , G ian n otti. Eu estava certo de que voltaria para cá. C om a M aria A n tônia, descobri finalm ente a vida cultural brasileira real. N o R io , foi uma festa efêm era, em bora tenha sido im portante enqu anto episódio político. Q uand o cheguei a São P aulo, foi um revelação. Em poucos m eses, eu me distanciei do período no R io , achava aq u ilo ridículo, vexatório e m aluco. E n tão a referência passou a ser todo o paideuma da M aria A ntônia. Foi a grande revolução intelectual da m inha vida. Dou m uito valor a isso tam bém porque foi nessa época que con h e ci o B en to, além do m ais meu prim eiro professor. N o prim eiro dia de aula fom os to m ar ch op e; voltei para casa às seis da m anh ã, iniciad o numa nova m itologia. N o R io de Ja n e iro , eu visitava com freqüência padre V az em F ribu rgo, p o r que ele era o elab orad or teó rico da AP, tinha lá a sua dialética do reconhecim ento das consciências. O s jesuítas tinham uma bela b ib lioteca, e V az sem pre me em pres tava livros: As investigações, de H usserl, livros de lógica, os Manuscritos do jovem .Marx. Ele não tinha preconceito nenhum , dizia: “ Leia o jovem M a rx , mas leia tam bém Husserl, a fenom enologia e, sobretudo, lógica e m atem ática” . Eu levava os livros para o R io e ficava lendo essas coisas m alucas. T a n to é que quando fiz o vestibular da M aria A ntônia, eu já tinha lido as Meditações cartesianas, e dei uma de pedan te. Bento estava me exam inand o no oral e perguntou o que eu já havia lido. R es pondi que con h ecia a fenom enolog ia. E ele perguntou o que eu já tinha lido de Husserl. Disse-lhe que havia lido as Meditações cartesianas. Então ele inquiriu: “V ocê pode fazer um resum o das Meditações^”. “ E m uito c o m p le x o ” , disse a ele [risos].
Q uando estudante de filosofia na rua Maria Antonia, você travou con tato com o “Seminário M arx”? N ão. Naquele m om ento, ninguém falava mais do “ Seminário M a r x ” . G iannotti dava as suas aulas e não se referia ao “ Sem in ário” . E eu n ão tinha conversa de bar com ele. N ossa conversa era estritam ente de aluno com professor. A conversa de bar, onde tudo acon tecia, era com B ento. O Ruy não freqüentava bar, e não falaria do “Sem in ário” . E n tão, o que eu sabia vinha do Bento e um pouco do R o b e rto , pois, naquele m om en to, eu me dava mais com o Bento do que com o R o b erto . E o Bento só contava o folclore do “ S em in ário” . Eu não tinha por que me interessar, pesqui sar o “Sem inário M a r x ” , pois, além de tudo, estava fazendo o meu curso direitinho. Foi em Paris que eu descobri o m undo, o Brasil e a Faculdade. R o b erto com e çou a ordenar esse folclore. A n tonio Cândido tinha acabado de publicar a Dialética
da malandragem, e para R o b erto foi um “ ab re-te. Sésam o” . Boa parte do M a ch a
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do [de Assis] do R o b erto saiu da com preensão daquele ensaio. Ele me explicou en tão com o é que toda a obra de A ntonio C ândido estava organizada. Foi nesse m o m ento que R o b erto com eçou a me co n tar a história do grupo que lia O capital. Eu não fazia a m enor idéia, não sabia com o fu ncionava, que havia um caráter interdisciplinar, qual era o objetivo etc. R oberto foi o primeiro a assinalar o caráter crucial da intervenção de G ian n otti. Só m uito mais tarde é que tratei de sistem atizar essa história. O “ Sem inário M a r x ” era um grupo de am igos de esquerda insatisfeitos com o fato de não haver um curso regular e bem feito sobre M a rx . O s sociólog os, his toriad ores, econom istas, que faziam parte do grupo, precisavam de um M a rx bem dado para escreverem suas teses. Eles dispunham do program a “ econom ia e socie d ad e”, delineado por Florestan, para estudar “classes so ciais” , “ relações de ra ç a ” e tc., m as achavam -se desarm ados, e resolveram estudar M a rx . M u itos deles já o con h eciam , porque tinham sido m ilitantes. M as eles não queriam o M a rx da Se gunda e da T erceira in tern acio n al, queriam o dos textos. Eles não tinham a m enor noção da existên cia do A lthusser, e, no en tan to , estavam fazendo a mesma coisa que Althusser com eçava a fazer na Europa. Então era para entender bem M a rx, fazer direito as suas teses e explicar o Brasil. C om o se tratava de M a rx , com o havia dialética e filosofia, e com o se imaginava que era preciso 1er Hegel para 1er O capital, foi necessário ch am ar os filósofos. G iannotti, que era amigo das pessoas desse grupo (de Fernando H enrique [Cardoso], de O ctávio lan n i, de Fernando N ov ais), chegou dizendo: “ para entender a d ialéti ca, vam os com eçar lendo o te x to ” . Essa foi a revolução! O artigo fundam ental, que G iannotti redigiu em nome do grupo, “ N otas m etodológicas sobre O capital" é um dos grandes te.xtos (do grupo e) de G ian n otti. Este e o ensaio “ C o n tra A lthusser” . Ele ainda não tinha assim ilado inteiram ente História e consciência de classe, de Lu kács, não conhecia os frankfurtianos, e não sei se ele já conhecia Althusser (na época da sua tese, seguram ente já con h ecia). G iannotti fez isso sozinho: juntou [M artial] G u éroult com a vigilância dos econom istas e sociólogos para 1er o te x to de M a rx . E m ostrou que ali havia uma coisa cham ada ab stração ; a b stra çã o real, um proces so diferente de fo rm ação de co n ceito , ou seja, m ostrou a dialética fu ncionando. G iannotti saiu dali e o que fez? Ele se considerava ainda com o alguém que estava juntando fenom enologia e lógica, antipsicologism o e dialética. N ão era m ar xism o. Para fazer uma on tolog ia do ser social ele escreveu o prim eiro livro dele.
Origens da dialética do trabalho. Já o Bento era sartreano. O m undo sartreano to r nara-se senso com um para ele: era socialista, existen cialista e gostava de literatura.
.\ partir de 1 9 6 4 , da noite para o dia, Sartre fica na gaveta e ele passa para Rousseau. Q uer dizer: o “Sem in ário M a r x ” , para o D ep artam ento de F iloso fia, não signifi cou absolutam ente nada. O fato de Ciiannotti ter visto o pessoal discutindo O ca
pital, Fernando N ovais elab orar a sua tese sobre a crise do A ntigo Regim e colon ial, Fernando H enrique com eçar a estudar a relação entre capitalism o e escravidão, não adiantou nada. Porque ele era filósofo. O que eu quero dizer é o seguinte: o “ Sem inário M a r x ” não teve nenhum a repercussão no D ep artam ento de F iloso fia, tan to é que eu fiz o curso sem saber de nada.
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Com o foi a sua volta da França? No capítulo “Ajuste intelectual”, do livro O fio da m eada, você diz o seguinte: “Inexistente nos anos 60, as relações entre a filosofia universitária com a indústria da consciência em nosso país datam da década seguinte". Na sua volta da França, você já teve essa impressão? N ã o , seria in correto dizer que tive. N a verdade, neste trech o , eu estava pensando principalm ente na co leção Os Pensadores, que com eçou a ser editada quando eu ainda estava na França. O [José A m érico M o tta [ Pessanha fez a coleção e arregi mentou praticam ente tod o o D ep artam ento de Filosofia da USP para traduzir, co m pilar e prefaciar os fascículos. Esta foi a primeira m anifestação pública da hegemonia da filosofia uspiana. C u riosam ente, Pessanha era discípulo dileto e grande ad m ira dor de Á lvaro V ieira Pinto, que ele considerava um professor extrao rd in ário . Ele veio para São Paulo e recorreu aos uspianos, ou seja, foi o reconh ecim en to tá cito que tinha se form ad o ali algo de im portante. Pessanha recorreu a esses professores para realizar um em preendim ento industrial, porém com o g arantia do bom nível dos fascículos, das traduções, das antologias e assim por diante. Imagine o salto que foi dado com essa co le çã o , principalm ente em rela çã o ao acesso a trad u ções de q ualidade, bem feitas e bem anotad as. O R u b in h o [Rubens R odrigues T orres F i lho] “inventou” um N ietzsche no B rasil, pela prim eira vez ao alcance de um públi co que não conhecia m ais língua estrangeira, e ao alcance da m assa de estudantes que os m ilitares estavam colocan d o nas universidades. E o que se iria fazer com essa massa? Filosofia em grego não dava. Foi preciso colocar Platão e Aristóteles na Abril. E isto foi uma revolução. N essa ép oca, o D ep artam ento estava saindo do gueto através de M arilen a [Chaui[ e G iannotti. G iannotti tinha a vantagem de ter ajudado a m ontar o C E B R A P [C entro B rasileiro de Análise e P lan ejam en to], não era m ais professor da USP e es tava se tornand o uma espécie de lider m etod ológico da op osição . Já M arilen a teve desde o início uma enorm e repercussão p ú blica, bem m aior que a de G ian n otti. M arilena por assim dizer desfrutava de um dos handcaps favoráveis da nossa fo r m ação fran cesa. Ela acom panhou a tran sfo rm ação da filosofia francesa na época do estruturalism o. Essa tran sform ação com eçou com Sartre e M erleau -P onty, que n ão eram propriam ente scholars, com o G old schm idt e com panh ia. Eram tam bém intelectuais públicos, dirigiam uma revista. Temps Modernes, e falavam de vários asssuntos. Um filó sofo francês depois daquela tran sfo rm ação era alguém do qual se esperava que falasse de cin em a, de pintura, de psicanálise, e que além do m ais havia sido politizado pela resistência à ocu p ação nazista e discutia com o m arxis m o. Além disso, Sartre e M erleau -P on ty foram os prim eiros filósofos a largar a referência epistem ológica exclusiva. C om isso, a filosofia fran cesa, que não era a n ossa, aum entou o leque de seus assuntos nos quais ela podia intervir com grande repercussão, dada a característica cu ltu ral da França desde o Antigo Regim e. Em São Paulo, estávam os de costas para esses assuntos. N ós os considerávam os de b aixo nível, achávam os que eram ap elação literária e jo rn a lística . Para nós, os filósofos eram os professores de filosofia, eram os epistem ólogos, com o [Gilles-Gaston| G ran ger, e os historiadores, com o [Victor] Goldschm idt e Guéroult. A ponto de G iannotti chegar ao absurdo de dizer: “ G oldschm idt é um filósofo mais rigoroso do que Sartre,
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que não passa de um mau jo rn a lista ” . N o en tan to , se o G ian notti não tivesse dito isso, se nós fôssem os sartreanos desde crian cin h a, não haveria filosofia no Brasil hoje, haveria apenas “ Sartres” razoáveis com o Bento, que tinha talen to, e uma m on tanha de cretinos im itando Sartre, enqu anto ele estivesse na berlinda. Q uand o ele saísse de m oda, não restaria m ais nada. E n tão as m odas na França iam e vinham , mas 0 b ásico, que era justam ente a filosofia escolar fran cesa, ficava. A partir do início dos anos 7 0 , M arilena encerrou sua vida, digam os, escolar com o d ou toram en to defendido, e saiu para a vida intelectual adulta. Pois seu bi lhete de ingresso foi justam ente aquele card áp io de especialidades francesas. Já vi mos do que se com punha: os dois eixos da filosofia universitária francesa — histó ria da filo sofia e epistem ologia ã fran cesa, quer dizer, G u éro u lt, Cîoldschm idt e G ranger — reorientados recentem ente por uma espécie de segunda tran sform ação da filosofia fran cesa, o estruturalism o. C om os tópicos deste últim o — da lingüís tica às ciências hum anas, passando pela psicanálise e a nova história — , M arilena já se fam iliarizara de vez, desde o seu m estrado sobre M erleau -P onty , o prim eiro dos clássicos a entender a novidade de um Lévi-Strauss para os assuntos filosóficos trad icionais. Pois bem , M arilen a não só dom inava esse repertório fran co-u sp iano, com o se im punha pelo talen to com que sabia tirar proveito da técnica retórica da dissertação francesa, uma das especialidades da casa. Q uando voltou da Europa com o seu Espinosa pron to na m ala, pôs im ediatam ente em circu lação essa nova rotina fran cesa, o resultado foi explosivo. C om a vida política bloqueada pela ditadura, a vida cultural de o p osição foi se recom p ond o a co n ta -g o ta s, prim eiro na form a de grupos de sem inários m ais ou m enos privados e discretíssim os — de profissionais liberais à procura de cultura geral, a universitários interessados em se atu alizar, e a boa nova naquele m om ento era o circo francês das ciências hum anas — , depois em conferências públicas isoladas, até desaguar nos grandes com ícios da SB PC [Socie dade B rasileira para o Progresso da C iência). N atu ralm ente tod o m undo co n v o ca va M arilen a, que, por sua vez, não se sentia no direito de recusar — psicanalistas, sociólogos, historiad ores, lingüistas etc. Q uisesse ou não, porque, afin al, era assim que as coisas funcionavam na F ran ça, e aqui, além do m ais, tom avam uma in equí voca feição op osicionista. M arilen a, à medida que sua ascendência e audiência su biam aos céus, ia, assim , confirm and o o estereótipo im em orial e, depois, m era su p erstição acad êm ica, de que cab ia ao “ filó so fo ” a últim a palavra sobre todas as questões relevantes. M as não era isso m esm o o que estava acontecendo? Com muita d isposição e corag em , aliás: o que confirm ava o u tra dim ensão m ítica do person a gem , a filosofia co m o resistência à tirania. C om isso o prestígio daquela coisa m or na e m eio cinzenta que era o D ep artam ento de Filosofia cresceu exponencialm ente. Seria injusto se não acrescentasse im ediatam ente que a nossa co ta çã o em bolsa tam bém exp lo d ira g raças ao tra b a lh o do G ia n n o tti ju n to ao a lto clero reunido no C E B R A P , onde tam b ém , co m o nos tem pos do “ Sem in ário M ar.x”, questões de m étodo e fu nd am entação de Deus e sua época eram com ele m esm o, por ser filó so fo e estar seguindo a mesma trilha francesa centrada nas ciências hum anas e, com o M arilen a, igualm ente na co n tra m ã o , com o exigia o m arxism o transcendental que professávam os, e sua irrad iação se intensificava conform e se expandia a influência política do C E B R A P , que a partir das eleições de 1 9 7 4 passara a assessorar o M D B .
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N ão sei se extrap o lo contin u an d o m ais um pouco com o fenôm eno M arilena C haui?
Absolutamente. Pois en tão, em m eados dos anos 7 0 , um a especialista em E spinosa, de fo rm ação uspiana e, p o rtan to , fran cesa, to rn ara-se um intelectual público, e, logo, logo, ta n to um polo de atra çã o para a mídia com o uma referência para a esquerda cultural que estava recom eçando a se pôr em m ovim ento. O u m elhor, artigo de fé para uma das m etades em que o Partido Intelectual a partir daquele m om ento se dividiu, para sem pre — aliás, m uito, m uito antes da guinada à direita da tucanagem (o últim o revestim ento daquela outra metade, com a qual, aliás, sempre me identifiquei e nunca reneguei até o ponto de não retorno de 1 9 9 4 ). N o cam po filosófico que nos in te ressa, na outra metade (aliás, hem isfério superior) brilhava a estrela do Ciiannotti. •Vias com a ajuda providencial da D itad u ra, continu aríam o s todos ju n to s, com o numa fam ília, prim os pobres e prim os ricos. É óbvio que com a fundação do P T a coisa com eçou a azedar até desandar de vez. (H o je não sei m ais, desgarrei-m e faz tem po, m as, pelo que ou ço, pelo m enos a fam ília filosófica reagrupou-se em torno de seus m aiorais e respectivos clãs.) Seja com o for, a ch o que não se pode perder de vista aquela bifurcação do nosso cam pinho intelectual paulistano, que, de m etam or fose em m etam orfose e transfusões de parte a parte, continu a vigorando até hoje, alim entand o, nos m esm os term os, os anátem as recíprocos, que rem ontam àquele prim eiro estranham ento m útuo entre “ atra sa d o s” e “ m odernos” na inteligência de o p osição . H oje nossas classificações totêm icas distinguem entre “ b á rb a ro s” e “c i vilizados” , “ nacion alistas” e “ co sm o p o lita s” etc. Por exem plo, foi essa divisão que pesou quando mal inaugurada a N ova República principiou a autofagia gerencialista da Universidade, no cam po adverso à suposta inércia corporativa da “ o u tra ” es querda, que se autocondenava por não co n ta r em suas fileiras figuras do prim eiro tim e, salvo, é claro , M arilen a, que, no en ta n to , era e não era vista com o tal. Aqui a en cren ca, pois ela era inequivocam ente uma scholar (hoje o m aior cu rrícu lo da Faculdade, com o se diz), porém , com fam a (arduam ente conqu istad a) de “ popu lista ”, inclusive quando desancava o fam igerado “ n acion al-p o p u lar” . O u tro m ar co : M arilen a presente e atu ante na fund ação do CEDECJ [C en tro de Estudos de Cultura Contem porânea] em meados dos 7 0 , que entendia se contrapor ao C E B R A P concentrand o-se no acom panham ento dos novos m ovim entos sociais e que por isso m esm o achava que a sua idéia de d em ocracia não era a mesma que o star system do C!!EBRAP brandia contra o autoritarism o. E novam ente reencontram os M arilena na linha de frente do debate que afinal reinventou a idéia de d em ocracia no âm bito da esquerda brasileira. Acho que interessa recapitular co m o , ou tra m ostra do fu n cion am en to a um tem po d escarrilado e produtivo da cultura filosófica no Brasil. Q u and o voltei em 1 9 7 3 , encontrei nossa am iga em plena leitura do M aquiavel de [C]laude[ L efort, que era um am igo da casa, pois andara pelo D ep artam en to pelos idos de cinqüenta em curtíssim a tem porada. M as o interesse de M arilen a — que, àquela altu ra, já beirava o entusiasm o — vinha é cla ro pelo lado M erleau-Ponty, que num a nota de rodapé célebre anunciara a futura ob ra do discípulo com o uma revolu ção em m atéria de filosofia política. Pois foi esta últim a que M arilena (outra
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vez no exercício de suas funções filosóficas de fu ndam entação) com eçou a explicar (e rendeu-lhe uma apostila quilom étrica) aos seus colegas da política e da so cio lo gia — e ju stam ente os serviços da filosofia franco-uspiana eram de fato requeridos, pois até a d istinção lacaniana entre sim bólico e im aginário entrava no esquem a de L efort, que aliás recorria de m odo m eio esopiano a M aquiavel para investir contra o sistem a soviético. N ã o deu o u tra: nascia ali a m oldura filosófica de que carecia a noção de dem ocracia perseguida pelos novos “a to res” (Touraine, quem diria...) dos m ovim entos sociais nascentes — coisa de que sequer suspeitava a obsessão an ti com unista de L efort. Q u an to a M a rilen a , d escobrira afinal o que fazer com seu Espinosa — possível herança althusseriana da fixação dos m arxistas franceses com Espinosa: entroncá-lo na tradição dem ocrática que rem ontava a M aquiavel. Enquan to do ou tro lado, o dos prim os ricos — no qual eu fazia m odesta figuração — , de m ocracia (por enqu anto filo sofia, G iann otti só chegaria ao tem a anos depois) às vezes era apenas sinônim o de an tiau toritarism o, às vezes uma d em onstração indire ta de que o aprofundam ento da m odernização econ ôm ica, m esm o nos m arcos ine lutáveis da dependência, podia dispensar a D itadura — afinal o ram o rico da fam í lia ainda era fran cam ente m aterialista, e portanto d em ocracia era firula liberal. M as não foi apenas nesse front que a nossa ex-rainh a do b aixo clero saiu na frente. Tam b ém foi pioneira na reconversão da curiosidade filosófica profissional para o assunto brasileiro. T ó p ic o ab erto e encerrado pelo próprio Cruz C o sta, que gostava m uito de depreciar o que ele m esm o fazia, sabendo que para a jovem guar da uspiana filosofar sobre o Brasil era um com pleto despropósito. A cho que de fato o dossiê foi reaberto pela tese do C aio N avarro de T oled o sobre o IS E B , não sei ao certo , mas não se trata de disputa da prim azia. O fato é que naquele m esm o an o de 1 9 7 3 me deparei com M arilen a lendo as obras com pletas de Plínio Salgado, na boa intenção de fazer uma “ C rítica da razão a u to ritá ria ” , nem m ais nem m enos, na pes soa do prócer verdeam arelista. A novidade é cla ro não estava no assunto, a resis tência à D itadura desencadeara uma enxurrad a de estudos sobre o pensam ento au to ritário brasileiro. T am p o u co o que parecia arrevesado no p ro jeto não se devia à falta de nobreza do o b je to , pois não há nada de tão raso em nossa m atéria local de que não se possa desentranhar tema para reflexão de alcance geral, mas à notável discrepância dos gêneros. O u por ou tra, a incongruência resultava de uma certa im com preensão do que estaria em jo g o — ou en tão, para ser m ais e x a to , da co m preensão corren te da experiência cultural brasileira, cu ja distância em relação ao padrão europeu de vida intelectual socialm ente coerente seria m ais de grau do que tam bém de naturaza. C om o não é bem assim , um Plínio Salgado literal era promessa de con fu são. Aqui a b ifu rcação do Partido Intelectual muda de sinal, se o term o de com p aração for o an terior a propósito da querela em to rn o da questão d em ocráti ca, quando dava para pressentir a deriva “co n stru tiv a ” dos prim os ricos e o alto preço intelectual a pagar pela longa m archa através das instituições que se iniciaria em 1 9 8 2 , com as prim eiras ad m inistrações estaduais conqu istad as pela esquerda. É que se deu o seguinte disparate histórico: a esquerda viva que estava tom ando corp o naquele m om en to, e da qual nossa am iga era uma das m adrinhas incontes táveis e que cu lm inaria nesse acontecim ento notável que foi a criação pela própria classe de um partido socialista dos trab alh ad o res, essa m esm a esquerda, pela sua
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ala intelectual mais atuante e influente, nascia desligada, de caso pensado ou não — quanto a M arilen a, por certo de caso pensado — , para não dizer ignorand o, o m elhor da trad ição crítica brasileira, co m o aliás já fora o ca so , com a única ex ce çã o de C aio Prado J r ., da linhagem com u n ista, ã qual se contrapu nha frontalm ente aliás a nova esquerda. H o je dita do tem po das cham inés pelos novos ricos que ju stam ente herdaram e m albarataram aquela m esma herança crítica brasileira de que estou faland o. Esse d esencontro h istórico ainda n ão foi devidam ente avaliado. D c m inha parte ach o que o R o b erto [Schw arz] já deu um prim eiro e enorm e passo observando no artigo sobre o “ Sem inário M a r x ” que até m esm o (ou sobretud o) a ala dos prim os ricos acab ou entregando a rapadura justam ente por um “ déficit de negatividade” tal que só se exp lica — inclusive ou antes de mais nada o d esastroso m arxism o industrializante deles — por n ão terem sabido se d eixar im pregnar pelo ím peto op osicionista da crítica cultural e ensaística de M ach ad o ao .M odernism o, im pulso propriam ente de co n fro n to sem resto com o m undo do ca p ita l. Pois de m aneira ainda mais d ram ática — porque não era para acon tecer — foi isso que ocorreu com aquela estréia no esforço secular de reversão da tenuidade da experiên cia brasileira. N ão adianta lem brar — ou melhor adianta sim, sentim os mais o drama — que A ntonio C ân d id o, Sérgio Buarque de H olan d a, M á rio Pedrosa etc. assin a ram a ata de fundação do Partido dos T ra b a lh a d o res, por m aior que fossem a c o n vicção e o em penho m ilitante, eram vida e ob ra paralelas. D esencon tro abençoad o por nossa am iga M a rilen a , na con d ição inquestionável de m entora filosófica (últi ma ratio inapelável) da então novíssim a esquerda, consagran d o o d ivórcio com o m elhor da interp retação do B rasil, não obstante lan çado pela mesma época na vala com um da assim cham ada “ ideologia da cultura b rasileira” . N ã o que esta última não fosse ideológica da cab eça aos pés, o problem a novam ente era o que sempre deu a pensar a crítica digam os im anente desse m esm o m aterial duvidoso. M as v o l tem os às reinações de M arilen a, e veja-se se não dá para sen tir o dram a: é que por incrível que pareça, ela estava na d ireção certa, e trab alh an d o sozinha. O que a in da é mais notável em todo esse episódio, é que por conta própria — e vindo de onde veio, de um m eio im perm eável a esse tipo de questão, a filosofia franco-u spiana — ela percorreu toda a ensaística brasileira de interpretação das idiossincrasias naci o n ais, em princípio para entender o surto integralista, e se deu conta de que se tra tava de um infindável catálo g o de itens faltand o no estoque: não tínham os burgue sia ou a nossa não era com o as ou tras; m uito m enos classes subaltern as m odernas e autônom as; a classe média era gelatinosa; a sociedade civil, am orfa; a luta dc classes, inoperante; o E stad o, h ip ertrofiad o; as ideologias, de segunda m ão; o capitalism o enfim , era ora tard io, ora diferente. Em sum a, o que não faltava era desvio, não éram os o que deveríam os ser, e o que éram os era o que nos separava daquilo com o qual não nos conform ávam os. N um a palavra, pensando com seus botões, M arilena atinara com a dialética m esma da experiência social brasileira, a rigor com a m até ria bruta das incongruências que tal “ d ia lética ” sistem atizaria de mil e uma m anei ras. Sim plesm ente avan çaria o sinal, conclu ind o m udando dc m ão: a trad ição c ríti ca b rasileira, nela incluído o d iagnóstico a que me referi, nada mais fizera do que engolir o clichê conservador do Brasil errad o e p o rtan to a ser atu alizad o segundo o padrão das m odernizações conservadoras de praxe. R ifad o p o rtan to o inventá
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rio das d iferenças, não nos faltava nada, tudo por aqui estava no seu devido lugar. C o m o n ão há história do Mesmo, apagavam -se todas as diferenças da “ história n acio n al” : da passagem da C o lô n ia à N a çã o até o teatro de som bras que teria sido a fam igerada R evolução de 3 0 , e por aí afo ra. C om o sobra talen to em nossa perso nagem , não houve falha hum ana, mas técnica: culpa da filosofia.
E com o você avalia a experiência da revista T e o ria e P rática? Q uand o ela apareceu em 1 9 6 7 , eu era aluno de Ruy Fausto. Eu era um aluno ap li cad o que m orava na fronteira da “ B oca do L ix o ” , sem telefone, televisão nem pen sar, e com o dinheiro curto. Estudava em tem po integral, o meu único co n tato com o m undo real era através do B en to ... V ejam só, voltei para a M a ria A ntônia, lar guei a m ilitância política estudantil e resolvi me to rn ar um super “ch a to -b o y ” . R is quei todo o meu passado político espiritualista, enqu anto M a rx passava a ser ape nas uma referên cia ep istem o ló g ica, que interessava para a lógica e para a o n to logia. Isso, via G ian n o tti. V ia B en to, era um M a rx m ais e x ó tico e interessante, era o M a rx de Sartre e M erleau -P on ty. O que realm ente interessava era uma boa tese, logicam ente consistente, sobre a d ialética de M a rx . De m inha p arte, não h a via nenhum vínculo social com absolu tam en te nada. E stávam os de costas para o país, em bora fôssem os, do p on to de vista te ó rico , politicam ente avançados. P o dia-se ser especialista em O capital, con h ecer toda a história do b olchevism o — co m o Ruy con h ecia — , mas apenas com o preâm bulo ou p retexto para uma boa tese de filosofia. Q u an d o eu estava no últim o ano da Faculdade, apareceu a Teo
ria e Prática, em 1 9 6 7 . Foi quando me aproxim ei m ais do Ruy Fausto, que sem o saber se encarre gou da m inha reed u cação p o lítica . Ele me fez ler T ro tsk y , a biog rafia de Isaac D eu tscher, sem falar no folclore do segundo “ Sem inário M a r x ” , do qual uma p ar te foi fazer a Teoria e Prática. Foi aí que as coisas com eçaram a se ju n ta r, quando a Faculdade se radicalizou e os estudantes com eçaram a passar para a clandestin i dade, preparando a entrada na luta arm ada. O ra , a m inha perspectiva se inverteu: o farol passou a ser a Teoria e Prática, essa era a grande revista e eu tinha de estudar desesperadam ente para acom panhar aq u ilo, porque era ali que as coisas iriam acontecer. Bento continuava a ser a m i nha reserva literária e filosofante, mas Ruy passou a ser a m inha referência p olíti ca, tan to é que, em determ inado m om ento, eu com ecei seriam ente a me consid erar um trotskista im aginário. E o R uy me sabatin av a, dizendo: “ V ocê está indo bem, já conhece B ord ig a” .
Você foi para a França em 1969. Defendeu seu doutoram ento sobre Fiegel em 1973, que veio a ser publicado no Brasil em 1981 e que a ca ba de ser publicado na França. Como você avalia esse seu doutoramento hoje? Já ouvi m uitos elogios a esse trab alh o , e estou com eçan d o a d esconfiar que as pes soas acham que é a única coisa boa que fiz. N unca se sabe. N o en tan to , seria uma inju stiça desnecessária dizer que se trata de um tra b a lh o esco lar, quando na verda de se trata da tese padrão fran co-b rasileira que todo o m undo fazia. Ela tem dois
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m éritos: prim eiro, não está escrita inteiram ente em jargão hegeliano. O segundo m érito é que eu acho que a idéia da tese é boa.
Você tinha o Marx no horizonte? Era um M arx muito precário, mas tinha. O ponto de vista da tese é o do jovem M a rx, a interp retação que ele faz da Fenomenologia do espírito, em que o co n ceito de trab alh o é fundam ental. E tinha um pouquinho do jovem Hegel de L ukács. Essas eram as m inhas únicas referências. V agam ente, mas m uito mal digerido co m o um ou tro horizonte, tinha algum as coisas de G ia n n o tti, das Origens da dialética do
trabalho. A perspectiva sobre H egel, natu ralm ente, só poderia ser m arxista, e ela foi se acentuando, no decorrer da red ação, devido ao livro de [G érard] L ebru n, La patience du concept. N o lim ite era uma tese con tra Lebrun, m as, ao m esm o tem po, ela o assim ila, pois o seu livro tinha sido uma revelação para mim. N a verdade, o que eu pensava era: “ com o é que eu posso ju stifica r o a ce rto involun tário do L eb ru n ?” . Eu fiz uma prim eira redação dos capítu los iniciais, apareceu o livro de Lebrun, interrom pi a tese e fiquei vários meses estudando Lebrun. É um grande li vro, e eu tinha de exp licar por que esse livro é bom , m esm o estando inteiram ente errado: a idéia de que Hegel não é um filósofo d ou trinário, essa é a sua idéia genial. Só que Lebrun centra isso na idéia de linguagem . C om essa descoberta ele acabou reduzindo Hegel e a dialética a um discurso, a uma façon de parler.
Durante dez anos você esteve em penhado num projeto sobre o “ABC da miséria alem ã”. Em que consistia esse projeto e o que o levou a interrompê-lo? Q uand o eu estava na França, escrevendo a minha tese, percebi que eu tam bém , para variar, estava correndo por uma pista inexistente. Estava term inando uma boa tese, aliás fui preparado na USP para fazer isso, e tinha duas escolhas na volta ao Brasil: podia con tin u ar fazendo a lição de casa, isto é, aquilo que os meus professores es peravam que eu fizesse depois do dou torad o em H egel. T eria de fazer um a livred ocência exp licand o a Lógica, de Hegel. E scolheria um problem a, tentaria explicálo e m ostraria com o da Lógica se passa para O capital — o program a do “ Sem in á rio M a r x ”, de G iannotti e de Ruy. Em parte eu até com ecei a fazer isso, pois ch e guei ao Brasil e dei dois anos de curso sobre a Lógica. Essa escolha seria a mais fácil. Por inércia eu faria um trab alh o bem feitinho sobre a Lógica, seria útil etc. A outra escolha, mais arriscada, exigia mais energia e mais coragem . A o mesmo tem po que eu descobri o Brasil, com eçava a descobrir coisas sobre a história da A lem anha, que não poderiam entrar na tese, pois seriam consideradas historicism o, e eu não tinha ainda con d ições de ju n ta r tudo isso. Q uand o descobri que o Brasil que eu estava estudando via R o b erto [Schw arz] era uma sociedade nacion al perifé rica, e que as sociedades nacion ais periféricas, a p artir do século X I X , tendiam a se assem elhar, co m o Portugal, A lem anha, R ússia, Irland a, Itália, Á ustria e tc., isso foi uma “ mina de o u ro ” . E o que pensei? A n tonio C ân did o é interessante para dizer o m enos, R o b erto idem . N ão sabem e n ão dão a m ínim a para K a n t, Frege e co m p a nhia. Aí tem coisa, devo estar no bonde errad o. São esses “c a ra s ” que contam . Para bem ou para m al é a eles que se tem de referir para interpretar um o b je to histórico
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esp ecífico, que é o único sobre o quai nós podem os falar: o Brasil. Pois só podem os falar do m undo através do B rasil, consolid ando-se ou se desm anchando. Por ou tro lado, se eu virasse um especialista em H egel, que é um au tor “ quen te ” , o que eu poderia ser? N o m áxim o um bom professor de filosofia clássica ale m ã. Eu iria me ap osentar d eixando papers úteis para as pessoas que viessem de pois — afinal o D ep artam en to tinha sido feito para fu ncionar dessa m aneira. Só que naquele m om en to já não me interessava m ais fazer só isso, eu tinha de passar para o ou tro lado. M a s, para isso, eu estava com pletam ente despreparado, não só no sentido escolar, estava m entalm ente despreparado. Eu era um ótim o aluno da Filoso fia, o queridinho de todo o m undo, m as, ao m esm o tem po, considerava-m e um idiota com p leto, incapaz de dizer qualquer coisa interessante sobre qualquer assunto que n ão fosse H egel, N ietzsche e cia. Poderia, é verdade, dar umas aulas sobre Saussure, Lévi-Strauss, Freud e L acan. M as to d o o m undo podia e devia fa zer isso, esses tem as tinham virado um assunto esco lar e profissional. E eu asp ira va por uma vida intelectual m enos ro tin eira, em que pudesse falar e escrever coisas que as pessoas do ou tro lado, julgassem interessantes e, sobretud o, que servissem para algum a coisa. N o en tan to , eu não podia passar para o ou tro lado com o se fosse fazer uma pós-graduação em sociologia ou literatura. N ão iria ficar estudando W eber e D urkheim para, depois de vinte anos, escrever algum a coisa sobre industrialização no Brasil. N em era meu propósito escrever sobre história política, econ ôm ica do B ra sil. O meu propósito era pensar a cultura brasileira de uma m aneira que não fosse o trivial dos estudos literários. E quem escrevia dessa form a era o R ob erto, não havia o u tro . R o b erto era com pletam ente an ô m alo , porque era form ad o em sociologia, conhecia bem M a rx , conhecia os frankfurtianos e tinha uma com preensão anti-ideológica da literatu ra. E pensei: o que posso fazer na m esm a d ireção? N ã o seria por meio de uma grad u ação em sociologia ou em teoria literária. T in h a de fazer sozi nho. E fiz com leituras indiretam ente m onitorad as por R o b erto , que passou a ser uma espécie de referência perm anente. Eu aprendia conversando com ele, e estu dando o que ele estava escrevendo. Ao 1er os textos de Lukács (sobretud o os de filosofia clássica alem ã e H egel), eu fiz uma grande d escoberta, grande para o tam an h o da m inha ignorância, é c la ro: Lukács tentou , mas não conseguiu, vincular filosofia clássica alem ã e desenvol vim ento desigual e com bin ad o num país periférico. Ele afirm ou que uma coisa tem a ver com a o u tra, mas não d em onstrou com o. Se eu dem onstrasse, cum priria o program a m arx ista , que era o da minha fo rm ação uspiana, e teria uma chave para com preender o vínculo entre vida m ental e processo social nas situações periféri cas, que, por sua vez — co m o o R o b erto estava provando — , revelam a natureza do núcleo central. O ab an d o n o desse program a [“ A B C da m iséria a lem ã ” ) foi estritam ente c ir cu nstancial. N ão renego nada e não há m istério: sim plesm ente não acabei. Eu que ria exp licar co m o funciona o discurso hegeliano e com o funciona a d ialética. T r a tava-se de uma história da m odernização através da intelligentsia, que procurava m ostrar co m o se dá a passagem do ilum inism o para a d ialética, e co m o , já no ilum inism o, há d ialética. Com ecei com os franceses e depois passei para a A lem anha,
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ou seja, tratei de com o os franceses são refratados na A lem anha, e de co m o a d ia lética apareceu para dar con ta dessa refração , desse d eslocam ento. E n tão com ecei com um ensaio sobre a invenção hegeliana da d ialética dos intelectuais na Ilu stra çã o fran cesa, com o isto era d ecantado num a espécie de “ Q u estão de M é to d o ” e culm inava no exo rcism o do êxtase intelectual durante o T e rro r ja co b in o . Eu p ro cu ro m ostrar co m o esse êxtase intelectual foi refratad o na A lem anha, numa espé cie de lógica interna fantasm agórica das idéias. D epois disso, eu trataria dos itahanos e de G ram sci, passaria para a Rússia (em bora o cam inho real fosse o inverso), m ostrand o com o os franceses e os alem ães foram lidos por lá. Para isso, eu teria de estudar todos os publicistas, a rad icalização da intelligejttsia russa e, sobretu d o, a figura do intelectual nos grandes rom ances russos do fim do século X I X , em D os toiévski e T o lstó i. Sem falar noutras periferias européias. Até sobre Portugal escre vi alguma coisa e engavetei. M as todo esse program a iria consum ir uma vida inteira. H avia, dessa m aneira, um p anoram a mundial a ser estudado. E, nesse siste ma de diferenças e continuidades, havia alguma coisa com o um pensam ento dialético dessa m undialização da cultura e do capital que era uma exp an são d iferenciada, pois tratava-se do centro e da periferia. Q ueria m ostrar que esse estudo era feito por um brasileiro, ou seja, que se tratava da perspectiva crítica da periferia sobre o m ovim ento das idéias quando se dá a exp an são do cap italism o desde a hegem onia inglesa até o início do século X X . Feito isso, o meu foco passaria a ser o Brasil, e eu estava lendo sobre o B rasil, para fazer a ju n ção e, p o rtan to , a com p aração sistem á tica. N um determ inado m om en to, em 1 9 8 2 , pela prim eira vez eu arrisquei dar um curso sobre filosofia e cultura no B rasil, no prim eiro an o de filosofia. Em 1 9 8 3 , quando eu estava com o assunto razoavelm ente arrum ado em minha cab eça, a Folha de S. Paulo me pediu para resenhar o livro de Ruy [Fausto], e eu pensei: “ B om , agora eu vou e n tra r” . O bviam ente eu não resenhei o R uy, falei de um cap ítu lo brasileiro do m arxism o ocid ental. Em 1 9 8 4 , com ecei a estudar Cruz C o sta. E, para isso, ha via uma continuidade: com ecei por Cruz C o sta, passei pelo D ep artam en to de F ilo sofia, e cheguei aos clássicos locais e a fo rm ação da filosofia pau listana, ou seja, cheguei a B en to, G ian n o tti, P orchat e Ruy. N esse m om en to, falei para o R o b erto : “ Essa é a hora do vam os ver. Se eu largar os alem ães, eu largo um tra b a lh o que está bem encam inhad o. .Mas, acho que é hora de arriscar — quem quiser que c o n tinue essa tarefa — , e vou tratar do assunto para o qual me preparei, que é o as sunto de m aturidade de todos nós — o B ra sil” . Dessa form a, fiz uma passagem que ach o mais ou m enos coerente. E o que me interessava era passar pelo filtro a idéia crítica de fo rm ação e o tran sp lante cultural responsável pela m inha própria co n sti tu ição m ental filosófico-u spian a. E larguei o “ A BC da m iséria alem ã” . N ã o falta ram os com en tário s sinceram ente desolados: “ Esse cara larga a lógica, vai para a esquerda hegeliana, vai estudar filósofos m enores, depois larga a história da filosofia, vai fazer sociologia das idéias na A lem anha, e depois passa para Cruz C o sta ? ” .
Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Com o você vê as re lações entre a filosofia e a cultura brasileira? C om eçarei pelo trivial: falar em filosofia brasileira é co m o falar em filosofia fran cesa, alem ã, italiana e tc., ou seja, a filosofia feita na França acaba gerando uma
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trad ição pelo fato de ter sido feita na F ran ça, e n ão por ter vínculos atávicos ou sobrenaturais com algum esp írito da terra ou coisa que o valha. Nesse sentid o, a filosofia brasileira é o co n ju n to de publicações brasileiras sobre um assunto trad i cionalm ente classificad o de filo sófico pelos b ib liotecários. Isso é a filosofia feita no B rasil, e ela não é distinta das dem ais por ser “ b ra sileira” . D ito isso, nem tudo está d ito. A filosofia brasileira não é brasileira, ela é im portada. .Assim com o a filosofia am ericana não é am ericana, é alem ã. A assim cham ada filosofia analítica am erica na, a filosofia neopositivista am erican a, é a filosofia alem ã que, nos anos 3 0 , im i grou para os EUA. M as nem por isso a filosofia brasileira deixa de ser algum a c o i sa que tem um estilo próprio, e que este estilo responde por uma trad ição m uito particu lar de estudos cu jo em brião se com pletou nos anos 6 0 no Brasil. Esse em brião diz respeito ao transplante de técnicas intelectuais francesas de lidar com filosofia que se realizou a partir dos anos 3 0 , isto é, a tran sp lan tação da filosofia universitária francesa que desem barcou em São Paulo sem m aiores m edi ações. T ra ta -se de professores que chegavam nas classes do futuro D ep artam ento e com eçavam a falar em francês com o se estivessem cm um liceu, ou em uma facu l dade de província francesa, anu nciand o a to con tín u o : “ nesse sem estre vam os estu dar tal assunto (norm alm ente a idéia disso ou d aqu ilo na filosofia de fulano ou b eltran o ), a bibliografia é essa, os tem as de trab alh o são esses, sem inário é assim , d issertação se faz assim e n ão existem m ais cu rsos p an o râm icos, apenas m o n o g ráfico s” . C om isto, a colon ização com eçou a ser feita. Era uma co lo n ização ne cessária e a seu m odo progressista que fazia com que as pessoas, se desvinculassem de toda a tralha ideológica que se im aginava ser filosofia nas faculdades de D ireito ou nos círcu los am adores que filosofavam por con ta própria na cidade. As pessoas se isolavam , rom piam com essa m entalidade municipal e passavam a se com p ortar com o se fossem europeus. À prim eira vista, nada m ais desfrutável, mas foi dessa a lie n ação que afinal provou ser produtiva que resultou o assu nto que está nos ocu pand o agora. A filo sofia brasileira é um corpus que não precisa se ap resen tar co m o um con ju n to de obras “ orig in ais” de filósofos brasileiros inspirados — isto é bobagem . T rata-se de um m ovim ento coletivo que se cristalizou no final dos anos 6 0 , q u an do as prim eiras teses “européias” foram concluídas. E esse estilo acabou sendo iden tificado co m o ch a to , m orno e técn ico, ou seja, filosofia paulistana, da USP. É a fi losofia feita no Brasil em term os profissionais, e que por isso, é capaz de sustentar a com p aração com o sim ilar estrangeiro. E isso form ou (e form a) alunos, público, leitores escolad os e uma gam a variada de pu blicações. C onstituiu-se um repertório de referências bibliográficas, de tem as a serem estudados, de m aneiras de se fazer teses, de se dar aula e assim por diante. Esse repertório foi fundam ental, pois, a partir de um determ inado m om en to, foi possível dizer que a filosofia no Brasil fu ncion a va, e que existia uma filosofia brasileira. M as isso não quer dizer que haja uma lógica brasileira diferente de uma lógica da O cean ia. D ito isso, vam os para a segunda parte da pergunta: a da relação com a cu ltu ra brasileira. É uma co n sta ta çã o d oloro sa, mas a filosofia é uma espécie de prim o pobre na form ação do sistem a cultural brasileiro. É bom frisar isso porque as pes soas do ram o ficam m uito estom agadas com essa afirm ação , achand o que estão
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sendo m enosprezadas, subestim adas, tachad as de irrelevantes etc. Q u and o n ão se trata disso, não se trata de um a d esq u alificação profission al e intelectual. Estas pessoas são com petentes, até demais. Para entender essa circunstância, tem os de nos com pen etrar do seguinte: a cultura de um país periférico com o o Brasil está in tei ram ente centrad a na idéia de que através de gêneros e form as inescapavelm ente européias — o rom ance, a poesia, a pintura, a arquitetura etc. — , trata-se de e x prim ir a verdade original de uma experiência local. O u seja, só é relevante a form a que prom ove essa rein terp retação, que seja um instrum ento de descoberta e reve lação do país. T u d o se passa en tão com o se estivéssem os cond enad os a essa figura çã o da exp eriên cia, ã necessidade de serm os apresentados incansavelm ente à nossa própria e desconhecida im agem , por isso m esm o um a im agem in acabad a. É preci so entender que isso não faria sentido em sociedades nacion ais consolid adas com o a Inglaterra ou a F ran ça. N esses países não há nenhum a insegurança q u anto aq u i lo que se é, e q u anto a imagem que deve se p ro jetar e construir. É co m o se a nossa inteligência local só funcionasse na medida em que fosse em purrada por esse im pe rativo de configu ração. D aí o caráter central da literatura. T od as as form as que pos sam to rn ar narrável essa experiên cia ainda com pletam ente em brionária possuem um a fu nção estru tu ran te. Isto faz com que o teor de verdade dessa experiên cia em inentem ente literária seja puxado para cim a, desde que ela cum pra essa fu nção, daí tam bém uma certa tendência sentim ental ao realism o m iúdo de sim ples fideli dade ã co r local, que nos em purra de volta para a m iopia localista. O ra , qualquer tipo de atividade que discrepe dessa intenção está estru tu ral m ente cond enad o a ter um papel subordinado. A filo sofia, no nosso ca so , padece duplam ente dessa restrição. N a prim eira parte da resposta, nós tínham os definido a filosofia com o uma rotina intelectual que se cristalizou em uma determ inada ins tituição e numa circunstância hi.stórica precisa. É o alargam ento e o aprofundam ento dessa rotina intelectual que, com o m étodo de estud o, form a aquilo que cham am os de cultura filosófica fu ncionand o no B rasil, independentem ente dos talen tos indi viduais. A existência desse lugar subalterno deve-se ao fato de que essa cultura fi losófica institu cion al, necessariam ente universitária e profissional, é por definição, senão incom patível, pelo m enos indiferente a esse p ro jeto. Ela é inadequada p o r que a filosofia profissional, e não há outra sem retrocesso doutrinário e antim oderno, não é mais nem pode ser um a filosofia figurativa, isto é, não tem m ais condições de descrever a experiência real com o era sua am b ição na Era Fiegel, e de transpor essa experiência real para o plano con ceitu ai. O ra , no Brasil a literatura fez isso de m aneira supletiva durante m ais de um século e, depois, foi deslocada e recolocad a no seu devido lugar artístico. C o m o diz A ntonio C ândido: era uma literatu ra de in co rp o ração e passou a ser uma literatu ra m ais especializada, cum prindo o seu destino estético, sem ab d icar no entanto daquela sondagem incontornável da e x periência local. C om o tem po e as nossas instituições universitárias, a literatu ra foi substituí da pelas ciências sociais e pela econ om ia política. A interpretação do país passou a ser feita pelo ensaio sociológ ico — cien tífico e universitário. P o rtan to , a sociologia tam bém foi um a figuração do país. E co m o a filosofia é estruturalm ente incapaz de dar conta desse p ro jeto , tem de ter necessariam ente uma vida m arginal. Para
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prosperar com o uma especialidade acadêm ica seria, ela teve de se desvincular des se p ro jeto de figu ração da experiên cia n acional. A filosofia m oderna, a filosofia p ro fission al, ab an d o n ou , co m o uma espécie de resquício d ou trinário dogm ático, essa pretensão de ser uma espécie de figuração do m undo no sentido mais am plo. Por isso que, quando a filosofia profissional apareceu em São Paulo e se alastrou por tod o o país, ela provocou um certo escân dalo. Porque parecia um bando de pessoas com pletam ente alhead as, de fu n cionários m edíocres, explicadores de te x tos, assim iladores de texto s, de costas para o país. Fun cionários que não tinham nada a dizer porque se recusavam a tan to por escrúpulos intelectuais, ou seja, p o r que não eram dem agogos, não eram doutrinários e porque achavam que não podiam desentortar o país em nom e de cosm ovisões filosóficas. P ortan to, a filosofia pro fissional necessariam ente teve de ocu par esse lugar secundário. R estaria exp licar o seu crescente sucesso de público nos últim os vinte anos. M as isso já é uma outra história e co m o nada me foi perguntado a respeito... Suspeito que algo tem a ver com o tipo de auto-ajud a dem andada pelo colap so da m odernização. O D ep artam ento de Filosofia era m ovido por dois im pulsos, um consciente e ou tro não. N ossa im odesta con sciência técnica nos confirm ava na seguinte certe za: “som os os m elhores, qualquer questão de m étod o é co n o sco m esm o — até os sociólogos recorrem a nós. Som os considerados filósofos e a filosofia é o top o do to p o. Som os tam bém estudiosíssim os e a rticu la d o s” . Era a superstição acadêm ica de que o filósofo sabe de tudo. Em função disso, todo o m undo estudava pra bur ro. M as eu acho que havia ainda uma outra m otivação inform ulada: a de que aquele enclave fazia parte de um esforço coletivo de con stru ção n acion al, m esm o que nin guém falasse disso. E nem poderia, porque seria mal visto. N o en tan to , acho que essa con v icção sem iconsciente era uma espécie de energia social que em purrava o estudo. M as isso que estou cham ando de “ sistema cultural filo sófico” , esse conjunto de obras, de produção de leitores, de cu rsos, de rotina intelectual foi im pulsionado por esse ânim o constru tivo . E q uand o se form ou , e com eçou a se reproduzir de m aneira am pliada, esse élaii com eçou a definhar. E o que se passou a fazer? Segui mos tocand o o serviço bem feito, fazendo intercâm bio in tern acio n al, co labo ran d o com eventos — que são pautados por um sistem a de efem érides da indústria cu ltu ral — e pronto. Insisto que isto n ão passava pela cabeça de ninguém. Im aginava-se que ao passar um sem estre debulhando os Livros A nalíticos de A ristóteles, alguma coisa no país e no m undo iria mudar. .Agora não, é preciso fazer bem feito para ganhar uma bolsa, ir para os EUA ou A lem anha, voltar e publicar um livro, isto é, enturm ar-se na rotina mundial. E a diferença que ia ser feita quando esse sistem a se com pletasse não veio, e pegou todo m undo no con trapé. £ veio a ditadura... N ão, a ditadura não afetou. Pelo co n trá rio , ela retardou esse processo, porque o D ep artam ento teve de se en colher, fechar-se em copas e estudar mais ainda. C u rio sam ente, quando a ditadura com eçou a fro u x a r no fim dos anos 7 0 , deu-se o g ran de apogeu da filosofia brasileira. Com o refluxo da ditadura, imaginou-se que o país iria virar do avesso, que iria reatar com o que era antes de 1 9 6 4 , que o país iria voltar a ser inteligente, que iríam os dar um salto e com p letar a agenda de dois sé-
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culos de atraso . Na filo sofia, im aginava-se isso a partir do que era feito na SBPC , com os cursos que se m ultiplicavam na universidade, com a SEA F [Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas] e a .ANPOF [A ssociação N acion al de Pós-Ciraduação em F ilo so fia [, e com a volta da filosofia ao secundário. E n tão, de 1 9 7 4 até 1 9 8 4 , houve um auge que escam oteou o fato de a filosofia já estar rodando em falso, m as ninguém sabia disso. O país estava avan çand o, havia ford ism o periférico, dos sindicatos do ABC] estava saindo um partido dos trabalh ad ores e o P M D B havia se renovado. E, graças aos m ilitares, com a m u ltiplicação das universidades federais, havia cursos de filosofia no Brasil inteiro. E n tão a e.xpectativa em relação ao país que viria depois do fim da d itad ura, e o fato de a filosofia estar com passada com isso, era enorm e. T a n to é que nós achávam os que o problem a era a d em ocratiza ção do poder universitário, e que já havia oco rrid o uma espécie de con tam in ação de classes, uma p roletarização da universidade. M as não, sim plesm ente a classe m édia havia sido rebaixada e tinha aum entado m esm o na falta de um m otor fo r m ativo, a filosofia, que em p rincípio não podia atender aos im perativos da figura ção da experiência nacional, no entanto prosperou. E qual foi o critério desse flores cim ento.' Fazer teses inteligentes sobre assuntos clássicos. M as quem fazia essas teses inteligentes, tecnicam ente com petentes, não tinha muita perspectiva a não ser a de con tin u ar indefinidam ente fazendo teses com petentes. Até en tão havia a perspecti va de que essa com petência iria se espraiar, esse era o p ro jeto da Faculdade. L em brem o-nos de A ntonio C ândid o divergindo de Cruz C o sta, em nom e de uma espé cie de con v icção ilum inista acerca do fu ncionam ento da inteligência. Q uand o Cruz C o sta, na m elhor trad ição da filosofia pré-crítica, dizia: “ o que im porta é uma orien tação filosófica que dê um rum o, e, que nesse rum o, ponha feijão na panela do povo” , A ntonio C ândido replicava de duas m aneiras, uma trad icional e outra ilum inista. A tradicional era a seguinte: “ tem os de ter um bom curso de filosofia porque quando um brasileiro puder dar uma co n trib u içã o original sobre os tem as universais da fi losofia, nós terem os dado um passo gigantesco rum o ã civilização que caracteriza o co n certo das n a çõ es” . H avia o ou tro lado, o lado ilum inista, que estava na o ri gem daquele im pulso do qual falei anteriorm ente. E ntão dizia o seguinte, nos anos 4 0 : “ Cruz C osta, você se enganou. N ós tem os de tratar dos temas universais. E estou certo de que uma boa tese sobre Fichte produz o seguinte efeito: torna a inteligên cia daquele que fez a tese e daqueles que podem d ecifrá-la incom patível com a iní qua desigualdade social brasileira” . P ortan to quem aprende a pensar decifrando um clássico (e a filosofia dessa m aneira é sem pre progressista), lendo P latão ou Fichte, vai m udar o país. Foi essa energia, essa im aginação de que quem estuda bem estará co lab o ran d o patrioticam ente para reduzir o grau de iniqüidade local, que em pur rou a filosofia na Faculdade.
Que conceito(s) de sua reflexão você destacaria como o(s) mais representativo(s) da sua produção filosófica? Pediríamos que você nos contas se com o ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e com o o(s) vê hoje. B om , co m o se diz em assem bléia, essa proposta está prejudicada. N ão tenho refle x ã o filosófica própria e original e, p o rtan to , não posso ter conceitos que orientem essa reflexão. N ão é coqueterie, não estou fazendo charm e a o dizer que nunca fiz
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filosofia. N ão posso nem dizer que pretendi fazer filosofia porque, quando entrei na Faculdade, a prim eira coisa que me disseram foi: “ V ocê não vai ser filósofo. Isso não existe. Filosofia não tem conteú d o e não é m atéria transm issível. Esqueça isso. Vocè será um técnico em bibliografia filo só fica ” . Q uem alim entava essa pretensão de ser filó sofo era o pessoal da linha T o b ia s B arreto e M iguel R eale ou V icente Ferreira da Silva, entre outras sum idades.
Em Sentim ento da dialética, comentando a perspectiva glohalizante que a idéia de dialética assume em Roberto Schwarz, você afirtna; “Roberto não só ia anotando o alcance mundial de nossas esquisitices nacionais com o ia construindo uma plataform a de obsen>ação a partir da qual objetava esta mesma ordem universal. O que reconhecerá em ato no pensamento literário de M achado. Estava assim lançada a base de uma Ideologiekritik original. O mesmo chão histórico que barateava o pen samento e diminuía as chances de refle.xão — pois aqui se desm ancha va o nexo entre idéias e pressuposto social, o que lhes roubava a dimen são cognitiva — , devolvia a faculdade crítica com a outra mão, fazen do nossa anom alia expor a fratura constitutiva da norm alidade m o d e m a ”. Quais os alcances de uma tal Ideologiekritik, e com o você vê este conceito hoje? Eu não sei se exp lico bem esse term o Ideologiekritik, acho até que renunciei a de fini-lo no texto. Vou exp licar um pouquinho para dizer o que há de original no R o b erto e o que eu tinha na cab eça quando estava redigindo esse trecho. A crítica da ideologia aparece quando os clássicos do m arxism o reinventam a palavra “ ideo lo g ia” e usam a idéia de “c r ític a ", advinda do século X V III, do Ilum inism o. É bom não esquecer a palavra “c rític a ” está presente no subtítu lo d’0 capital: “ C rítica da econom ia p o lítica ” . Portan to não se trata de d ou trina, mas de C rítica. Com K ant, a C rítica passou a ocupar o lugar da T e o ria , com o ele m ostra na Crítica do juízo — e é o m ote da grande tese de L ebru n, Kant e o fim da metafísica. Q uando emprego o term o, estou pensando sobretudo na form ulação dos fran k furtianos. Para eles, o term o ideologia não é mais p ejo rativo, a ponto de c o n sta ta rem que a ordem capitalista regrediu tan to que nem m ais ideologia produz. ,A ideo logia sem pre tem um fundam ento de verdade. Ela não é inteiram ente falsa, nem é inteiram ente verdadeira, não é um m ero engodo. A idéia de ideologia com o uma m anipulação de m assa, em que se ludibria os indivíduos, é uma idéia ilum inista — é denúncia da superstição. A novidade do m aterialism o de .Vlarx é que ele rom pe com essa trad ição ilum inista, com a “ história do e rro ” , com a idéia de que a difu são das luzes dissipará as trevas. E por si extrai da filosofia clássica alem ã a idéia substantiva de “ ap a rên cia ” , que se converterá na idéia m aterialista de “ aparência social necessária". A simples crítica raciocinante (com o queriam os ilum inistas) não faz com que essa aparência se dissolva no ar. Q uand o se fala em ideologia, pensa-se em racion alização . E não se trata ape nas disso. R epito que a m atriz da idéia de crítica da ideologia é o idealism o alem ão, até porque ele m esm o é a tran sp osição (não d eliberada, é claro) do fu ncionam ento real desse processo social de produção da ilusão. O prim eiro a se dar conta desse
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novo âm b ito m aterial da C rítica foi Hegel. A fonte de M a rx , a idéia de crítica da ideologia, é a idéia de reflexão tal com o ela aparece na Fenomenologia do espírito, de Hegel. O que faz a con sciên cia, segundo Hegel? Ela se ilude tam bém , ela é uma fábrica de ideologias. M as ela se distingue pela seguinte peculiaridade: a reflexão. Essa reflexão vai reaparecer em M a rx, só que de maneira a um tem po fantasm agórica e real, objetiva. É o capital que se refere a si m esm o, o fetiche do fetiche. Ele funciona com o se fosse uma consciên cia: valoriza-se a si m esm o, refere-se a si m esm o, mede as suas quantidades etc. Em Hegel, a consciência, ao mesmo tem po em que é uma fábrica de ideologias, é a crítica dessas ideologias, porque ela se corrige a si m esm a. Ela é a sua própria m edida. N a form u lação do H egel: “ ela é o seu próprio c o n c e ito ” . Ela afirm a uma verdade sobre si que até então d esconhecia, e, ao exp o r essa verdade, ela a com p a ra com a sua experiência dessa m esm a verdade e, desse juízo passado sobre si m es ma emerge algo com o um sentim ento d ram ático de seu d escom passo, de sua divi são. N egação interna que procura resolver por uma nova op eração crítica co m a n dada pelo seu próprio padrão de m edida. P ortan to a ideologia e a falsa consciência não são inteiram ente falsas, há um m om ento de verdade que é inconsciente e o b s curecid o, porque há um a relação de poder e de d om in ação na ideologia, o im pulso do au to-en gan o , da racion alização etc. De sorte que o con ceito de Ideologia por assim dizer confia numa verdade substantiva que existe, e é expresso por idéias, que por sua vez são em inentem ente práticas. Por isso a idéia que está em butida na ideo logia é a que K ant tinha em m ente, que é sem pre idéia da razão , e necessariam ente p rática, pois tem a ver com sua realização ou não no mundo. O que é cham ad o de ideologia burguesa, que vai do cristianism o já to talm en te secularizado e racionalizad o (no sentido w eberiano) até a arte, passando pelo direito natural e pela filo sofia, é uma espécie de repositório de verdades da hum a nidade em seu progresso rumo ã em ancip ação. E n tão ju stiça, liberdade, igualdade, fraternidade, universalidade, beleza são idéias verdadeiras. Só são falsas na m edi da em que na ordem burguesa se apresentam com o já realizadas. Foi o jovem M arx quem com eçou a dizer isso: “ a crítica da ideologia nada mais é do que ob rig ar o m undo a confessar aquilo que ele já é. não estou acrescentand o n ad a” , ou seja, na hora em que o m undo se confessa, ele se corrige. E a revolução é essa con fissão, em que ele reencontra a sua verdade, expressa na inconsciência da ideologia. A ideolo gia, p o rtan to , transcende a realidade, está para além da realidade. A realidade está aquém , e a ideologia é falsa porque é uma promessa não cumprida. A crítica da ideo logia é uma op eração lóg ico -social, crítico-rev olu cion ária — com o dizia o jovem M a rx — , que perm ite que essa verdade se reencontre consigo m esm a. O u seja, no m om ento em que aparece, im plica necessariam ente em uma tran sform ação social. H á, dessa form a, uma falsa universalidade que, con fron tad a com a sua realização d efeituosa, por assim dizer se regenera coincidin d o afinal consigo m esm a. O que é isso? Um a pressuposição m uito forte que im plica num a con cep ção otim ista da his tó ria . T rata-se cm suma de uma filosofia da história. E a con fig u ração derradeira dessa m ola secreta da crítica da ideologia, sua incessante co rreção interna, é a fa m osa con trad ição entre forças produtivas e relações sociais de produção. A revo lução é essa reviravolta, tal qual uma experiência da consciência, no sentido hegelia-
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no. De m odo que há um sistem a de universais que constitui o a rca b o u ço da civili zação liberal burguesa clássica, do século X I X até a grande crise entre 1 9 1 4 e 1 9 3 9 , no interior do qual a crítica da ideologia funciona justam ente com o o im pulso de realização do ideário burguês. Por isso que, nessa vertente origin ária do m ateria lism o, o capital e a burguesia são progressistas por definição, liberalism o e so cia lismo se im plicam m utuam ente. Nesse sentido, a crítica da ideologia funciona com o uma negação determ inada, no sentido hegeliano. N o caso de Hegel, por se tratar de uma filosofia especulativa, essa identidade do conteú d o consigo m esm o já está assegurada, vai haver necessariam ente um happy end. Por isso, quando com eça a
Fenomenologia do espírito, nós já sabem os que tudo vai dar certo, assistim os ã co n s ciência se educando através de sucessivas crises m ovidas pela crítica im anente de seus castelos ideológicos, com o nessa toada o negativo das perdas se converte em positivo, a consciência vai se enriquecendo à medida que é desenganada.
Mutatis mutandis, com o capital é o m esm o enredo. Ele perm ite tecn icam en te superar pela prim eira vez a escassez, e, p o rtan to , perm ite à hum anidade e n co n trar-se consigo m esma e en cerrar a sua pré-história. A sua pré-história é a história dessas ilusões, a história de prom essas em ancip atórias de ju stiça, liberdade, igual dade etc. M as uma em ancip ação por enqu anto apenas negativa, que os sociólogos ch am arão de m odernização. E ninguém pode dizer que é con tra tais prom essas, até m esm o em relação à prom essa da propriedade, pois é no socialism o que a proprie dade vai se realizar com o tal. Dessa fo rm a, há um processo m ovido a ilusão, mas que traz consigo o germ e da sua satisfação interna. A crítica, assim , é uma co m p a ração con sig o m esm o, com o se o ideal burguês clássico fosse constan tem ente pos to à prova e se saísse bem sem pre dando um passo adiante. O ra , no caso de M a ch a d o de Assis, R o b erto Schw arz não pensou mais nesses term os, quer dizer, nos term os de uma boa superação. O que ele descobriu? Q ue a idiossincrasia, a originalidade e a genialidade de M ach ad o perm itiram pela primeira vez verificar que a crítica da civilização burguesa, o que os clássicos cham aram de crítica da ideologia, estava funcionand o de m aneira diferente. Para R o b erto , a ra zão pela qual a Ideolologiekritik fu ncionara até en tão coerentem ente na Europa liberal, mas não no Brasil não estava no fato de que a experiên cia periférica da coexistên cia sistêm ica de capitalism o e escravidão falseava a própria vigência dos padrões civilizatórios da idade liberal burguesa. O que ele está dizendo é o seguin te (e é isso que tento dizer no texto citad o por vocês); nós tem os a possibilidade, através de M ach ad o , de entender o que está acontecend o na Europa. E o que esta va acontecend o na E u rop a, na época de .M achado, era a derrocad a da civilização liberal burguesa. Para R o b erto , os dois term os da crírica da ideologia, o universal e a sua realização particu lar, com o que se relativizam e rebaixam m utuam ente. Dessa form a, não era porque éram os atrasad os, colon iais, escravistas etc., que estropiávam os a universalidade do program a liberal burguês. É porque ele já esta va contam in ad o desde a raiz, isto é, a nossa experiência dem onstrava o form alism o da civilização liberal cap italista, m ostrava que ela podia conviver com não im por ta qual tipo de barbarid ade, com o a escravidão por exem plo. O caráter form al, ou seja, a equivalência generalizada e a a b stra çã o , fez com que essa civilização pudes se conviver com todos os tipos de “ retrocessos” que, na verdade, nos tornavam seus
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contem p orâneos. D c m odo que o m otor da crítica clássica da ideologia já estava com eçand o a falhar e foi, pouco ad iante, d esm oronar com o nazism o, ou seja, com a crise term inal da civilização burguesa, que com eçou a m adrugar com o im peria lism o. D essa form a, M ach ad o , em seus próprios term os, estava refratan d o a expe riência im perialista do d esm oronam ento da civilização liberal. A norm a universal burguesa foi desm oralizada pela sua p articu larização local, que ela no en tan to ao m esm o tem po desqualificava. Isto aparece quando as duas coisas se juntam e culm inam na com édia ideoló gica de M a ch a d o , que é a relativização recíproca desses dois lados. Isso não estava nos clássicos, e apareceu pela prim eira vez com os fran k fu rtian o s, isto é, com o colapso da civilização burguesa quando caíram os dois lados: a norm a ideológica geral e o impulso de elevar a realidade ao seu próprio padrão im anente. C onsta que H orkheim er teria dito que falar em N egação D eterm inada ou Ideologiekritik diante da ruptura histórica representada pelo III R eich parecia-lhe um a indecência. Então a crítica progressista da ideologia burguesa caiu por terra, o que M ach ad o anteviu e foi tirand o por aqui as consequências. C o m o a rtista , cie era radicalm ente crítico em relação ao cap italism o, mas já não podia m ais ser linearm ente progressista. Se o fosse seria m ais um Silvio R om ero. D a í a invenção satírica do “ h u m an itism o” , uma salada grotesca da fraseologia burguesa m ais avançada para sacram entar b a r baridades cá e lá. E nesse sentido que a crítica da ideologia foi renovada. Por isso o sexto sentido do R o b erto foi lá e acertou , até hoje fico im pressionado.
Também em seu livro Sentim en to da d ialética, você afirm ou: “Uma vez exposta a raiz social da volubilidade narrativa, a alternância prática de patrocínio oligárquico e negócios burgueses, estava m ontado o es quema histórico de que carecia o crítico, a fortna objetiva exigida pelo programa dialético traçado por Antonio C ândido nos tertnos em que vimos Roberto Schwarz interpretá-lo. Repetindo: isso quanto a primeira acepção de dialética consagrada pela tradição materialista que m an da procurar na configuração artística a estrutura social sedimentada. Quanto à segunda acepção que estamos dando à palavra, a reversi bilidade caprichosa de nortna e infração, acabam os de verificar que ela vinha fazer justiça à sensação de dualidade que o Brasil incessantemente disperta”. Seria essa um boa apresentação do conceito de dialética de que você se utiliza? Tal conceito guarda afin idade com a noção de “dialética negativa” de Adorno? É uma boa ilu stração, mas não guarda afinidade com A dorno. Uso, de vez em quan do, o term o “dialética negativa” para lem brar que o esquem a evolutivo progressis ta, o que se entende por dialética no m arxism o clássico, não funciona no Brasil. Isto é, L ukács não fu n cion a. E xp lican d o o R o b e rto , num d eterm inad o m om ento do
Sentimento da dialética, relem bro porque o M a ch a d o não é realista no sentido lukácsian o. C om o eu não tinha ou tro term o , acabei usando “ dialética negativa” . R ob erto m ostra com o essa alternância da norm a burguesa e infração da norm a bur guesa, mas sobretudo a repetição desse m ecanism o, não leva a lugar nenhum . P or que a form a m achadiana de enquadrar esteticam ente a experiência brasileira já havia
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revelado que não haveria esse passo adiante. E, na sociedade brasileira, essa “ su p e ração ” do passado colonial escravista deveria m arch ar na d ireção de uma socie dade de classes à européia — o pressuposto do grande realism o. O que acabou não o corrend o e M ach ad o intuiu de saída. De sorte que o grande realism o seria falso no Brasil. N a passagem de ïaià Garcia para Memórias póstumas de Brás Cubas, (sempre segundo R o b erto ) há um cam inh o representado por Esteia, a personagem que recusa a d esm oralização inerente à sociedade senhorial — “a taça do favor já estava tran sb o rd a n d o ” . Esteia seria o em brião da narrativa realista burguesa eu ro péia. C om o ela escapa de um arran jo da m atriarca V aléria e vai ser professora, seria possível im aginar que o p ró xim o rom ance de M ach ad o seria propriam ente realis ta, em que há classes configuradas e a possibilidade de carreira social fora do p atro nato. Segundo R o b erto ele deve ter pensado: “ isto, no Brasil, é falso, essa estrutura patriarcal vai se m etam orfosear e reproduzir” . A tram a realista, que é a imagem mais enfática daquilo que os clássicos na Europa, de Hegel a L ukács, cham aram de dialética entre indivíduo e sociedade — esse dram a dialético de oposições, a hélice que em purra o rom ance — , não iria a co n tecer no B rasil. N a bela exp ressão de R ob erto: “essa hélice em purra em direção ao n ad a” . N esse sentido, a dialética clás sica fez com que o pensam ento progressista brasileiro, em uma certa ép oca, desde nhasse M ach ad o e fosse procurar Lim a B arreto — o que é um engano total. E n tão eu uso “ dialética negativa” para caracterizar uma altern ân cia, um c e r to girar em falso entranh ad o na lógica da sociedade brasileira. Com isso, eu estou abusand o um pouco da m aneira pela qual Hegel descrevia o caráter inconclusivo da idéia de reflexão nos clássicos alem ães, sobretud o em Eichte e K ant. N estes, a im aginação balança de um lugar para o ou tro e não produz nenhum resultado, não avança. N o caso de M a ch a d o , foi isso o que eu quis dizer. Se eu quisesse ter c o m plicado a m inha vida, poderia ter dito que não tinha nada a ver com a dialética negativa de A d orno, que não é propriam ente alternância indefinida que não se re solve. Só que essa alternância inconclusiva no M a ch a d o tem um efeito m im ético exem p lar, e essa é a d em onstração de R o b erto . M ach ad o usa recursos não realis tas, vai ao Setecentos inglês e aos m oralistas franceses do século X V II para obter uma representação “ rea lista " da m atéria brasileira que lhe interessava retratar es truturalm ente. Por ou tro lado — e é aí que eu poderia ter com p licad o a m inha vida — , eu poderia dizer: no fundo, não há dialética.
Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên cias e o saber científico. Tal relação pennanece até hoje? Como ela se dá na atualidade? Isso é pergunta padrão para dois terços das pessoas que se ocupam com filosofia. Bom , com o não sou filó sofo , e co m o não tenho me ocupado m uito dessas questões sobre a relação entre filosofia e ciência, vou sair pela tangente. V ou dar uma resposta pragm ática. V oltarei ao meu realejo uspiano, para, depois, falar da atualidade. Uma das grandes revelações da “ fo rm ação” dos franceses na USP foi a dissocia çã o entre filosofia e ciência. A m editação filosófica sobre a ciência e a epistem ologia passou a ter um ca rá ter inteiram ente subsidiário e nada decisivo, em bora para uso d om éstico, ocupasse um lugar no cu rrículo quase tão central quanto a história da
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filo soíia. Em princípio, a epistem ologia não teria mais nada a dizer para um cien tista. Isso faria parte da m odéstia, e da futura timidez uspiana, no sentido de que nada do que se pudesse falar de m atem ática e de física, de A ristóteles até a teoria q u ân tica, teria algum interesse para quem faz ciência. A relação intrínseca da filosofia com a ciência é, para nós, um problem a e.ssencialm ente histórico. H ouve um m om en to em que elas eram indicerníveis, dos gregos até D escartes e Leibniz. Esses dois foram os últim os que eram cientistas e filósofos indistintam ente, no sentido original do term o. Com K an t, isso desapare ceu. O prim eiro a dizer isso de m aneira não tem atizada exp licitam ente, dentre os franceses que chegaram aqui, foi IJeanJ M augüé. E quem disse de m aneira sistem á tica foi Lebrun. Ele m ostrou que, com K a n t, a nossa relação congênita com a ciên cia desaparece, isto é, a filosofia passa a não ter mais nada a dizer para quem faz ciên cia. T a n to é que é possível fazer uma prova em pírica e sociológica elem entar: quando alguém das ciências ex a ta s ou biológicas cham a algum filó sofo para falar, não quer ouvir nada sobre b iolog ia. D arw in ou Einstein, quer ouvir filo sofia, quer saber quem foi P latão, A ristóteles, Freud etc. O s cientistas conhecem seu métier, querem m esm o é cultura geral. E Lebrun m ostrou uma coisa que é daquelas que abrem a cab eça das pessoas que com eçam a fazer o curso de filosofia: por que K ant se tornou obscuro? Ele não era ob scu ro . N a fase pré-crítica ele escrevia m uito bem , até parecia um filó sofo fran cês, de tão cla ro que era. Isso porque não havia ainda divisão entre filosofia e ciência. A rigor quem cuida de filosofia a partir de K ant, n ão pode enqu anto filó sofo saber positivam ente de nada: aliás esse nada é o seu assunto real, com o sabia qualquer ro m ân tico alem ão. Q u and o a filosofia, para K a n t, deixa de anu nciar o saber, torna-se possível a reflex ão, não só propriam ente epistem ológica íoriginalm ente. T eo ria do C o n h eci m ento), co m o sobre a epistem ologia e sobre ela m esm a — com a história da filo so fia. Porque ela se separa da ciência e passa a refletir sobre as suas próprias ca teg o rias, os conceitos puros do Entendim ento e por aí afora. Portanto, com o dizia Lebrun, K an t torna-se com p licad o e ilegível, porque já não estava m ais com un icand o um saber positivo. O ra , quem faz epistem ologia tem de adm itir que está cultivando um gênero filo sófico reflexiv o, de teor histórico e sem nenhum a pertinência para quem produz ciência. Q uand o m uito, é possível refletir sobre a prática da ciência com o uma prática social. M a s daí já não é m ais o filó sofo que faz isso. D essa fo rm a, o filó sofo já não tem m ais nada a dizer para o m atem ático, para o b iólog o , que estão “se lix an d o ” para ele. T o rn an d o-se uma disciplina universitária entre ou tras, a fi losofia além do m ais ocupa-se m esm o é dela mesma — a idéia de crítica kantiana — , às volas com os con ceitos puros da razão, co m o K ant a definiu. E isso vai de K an t a H u sserl, passando por Frege e W ittgenstein. Q u and o essa triste equ ação se inverte, tem os H aberm as. Ele com eça a im agi nar algum as ciências especiais, que são m ais do que ciências. D á com o exem plo Freud, Piaget e ou tros. Essas ciências têm um m om ento reflexivo em que, no inte rior da sua própria produção con ceitu ai, refletem sobre isso com o se mimetizassem a filosofia. Nesse m om ento talvez o filó sofo tenha algum a coisa a dizer. M as isto é conversa fiad a, não dá para acred itar. A ciência com o fenôm eno social é um bruta assunto. M as essa filosofia profissional que conh ecem os não tem nada a ver com
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isso. Talvez a T eo ria C rítica dos frakfu rtianos, entendida num sentido m uito am p io, tivesse algo a dizer. M as n<ão é filo sofia, nem sabem os m ais se ainda existe. D aí haver algum a coisa a se dizer sobre o fu ncionam en to con tem p orân eo da ciên cia, e, principalm ente, sobre seu caráter de tecn o-ciên cia, isto é, m ostrar o m om ento em que ela virou fato r de produ ção. M as a partir d aí, o quê? Fazer epistem ologia de um fato r de produção? É brincad eira! D izer que há uma relação d ialógica na p ro d ução da ciên cia, e requentar Pierce, T h o m as Kuhn e com panhia? Q ue a com u n i dade científica está m udando de paradigm a? O ra , essa com unidade vai olh ar e di zer: “.\h? T á b o m ” . A gora, se exam inarm os o funcion am ento da tecn o-ciên cia, a coisa muda de figura, pois o debate passa a ser p olítico. Q u an d o nosso p atrim ônio genético é cotad o em bolsa, é preciso ver que tipo de ciência se está fazendo.
Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenôm eno estético em nossa socieda de. Com o você se posiciona em relação a esse debate? Hegel nunca falou que a arte havia acab ad o , sobretud o porque foi con tem p orân eo do apogeu da arte na A lem anha. Ele sim plesm ente disse o que seria a arte do fu tu ro: que a arte não teria mais nada a ver com o ab so lu to, isto é, que a arte não fun cion aria m ais do m esm o jeito que fu ncionou na sociedade medieval ou na socied a de antiga. A sua expressão para isto é: “ O s jo elh o s, diante de uma obra de arte, não se d ob ram m a is” . D aí o ca rá te r farsesco das en xaq u ecas estéticas de M m e. V erdurin. T ra ta -se do processif de d essacralização da arte com o institu ição. M as, ao m esm o tem po, essa d essacralização da arte im plicou em sua au ton om ização , ela passou a ser um o b je to entre ou tros, passou a ser consum ível. Beethoven foi o pri m eiro a pensar num público mais ou m enos anôn im o co m o futuro m ercad o, ape sar dc seus patrocin adores aristo crático s. N o m om en to em que isto o co rreu , a arte foi se tornand o cada vez m ais o seu próprio assunto, na m aneira hegeliana de en tender o fenóm eno. É por isso que Hegel cham ou a arte rom ântica de dissolução da arte, ou seja, que havia nela um predom ínio do arran jo form ai sobre a experiência enfática da qual, a princípio, a arte tinha sido o veículo privilegiado. Portan to a arte, para ele, iria prosperar, mas não m ais co m o o princípio cristalizad or da experiên cia fundam ental da verdade. O problem a era esse: ela não teria mais nada a ver com a verdade. M as deixem os de lado essas altas paragens especulativas. Acho que seria bem mais interessante precisar o foco e escap ar das generalidades filosofantes recorren do ã prata da casa, por exem plo, para con tin u arm o s cm fam ília, o debate entre a O tília |Arantes| e o R o b erto |Sch\varz|, docu m entad o em dois artigos, sobre a di m ensão estética da arquitetura m oderna. {Mutatis mutandis, o m esm o desencontro entre de novo o R o b erto e Iná C am arg o C osta sobre o juízo estético no teatro de pois de B recht.) E isso tem a ver com a segunda parte da pergunta, com o desapa recim ento ou não do fenôm eno estético na sociedade con tem p orânea. N o caso da arquitetura con tem p orân ea, quer dizer depois dos m odernos, O tília é categórica: desapareceu. E é disso que se trata. N o com en tário que R o b erto fez do trab alh o dela, disse m ais ou m enos o seguinte: “ C o n cord o inteiram ente com a sua análise da d issolução do m ovim ento m oderno arq u itetô n ico , m as, uma vez esgotad o esse
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m ovim ento, que por sua vez havia incorporad o o avan ço da vanguarda artística — sobretud o a construtiva — , qualquer que seja o diagnóstico, ele deixou um acervo atrás de s i” . Era isso m esm o que O tília estava discutindo, o que significa dizer que a arq u itetu ra m oderna brasileira representa um dos m aiores patrim ônios a rq u i tetônicos a céu ab erto que se conh ece. “ E n tão o que a gente faz com isso ?” , per guntou R oberto. Com essa pergunta, ele queria dizer que mesmo que com o tendência histórica e estética o m ovim ento arq u itetôn ico m oderno não tivesse m ais fu turo, as obras de qualquer m odo ficaram . E m ais, continu ava ach and o que tal acervo, brasileiro e in ternacional, era ainda uma senha para uma ordem social superior — co m o queria o program a m oderno. E o que se faz com essas o b ras, do ponto de vista da sua substância artística? São ob ras belas, bem realizadas — em sum a, são ob ras de arte. R o b erto dizia ainda que, q u anto ao m ovim ento m oderno, ele usava a distinção ad orniana entre ideologia e sua realização, ou seja, que a ideologia só é falsa quando ela se apresenta com o realizada, não em si mesma. O ra , segundo O tília n ão se poderia sem m ais, sobretud o em arq u itetu ra, dissociar “ p ro je to ” e realiza çã o . “ M as o p ro b lem a” — insistia o R o b erto — “ é que essas obras que restaram co m o relíquia do m ovim ento m oderno carregam e preservam uma espécie de se mente crítica , que acende a im aginação utópica das pessoas, e, por isso, são e co n tinuam belas. O esgotam ento do m ovim ento m oderno não anulou esse efeito. Você IO tília I detectou uma tendência h istórica, mais uma ironia ob jetiva por assim d i zer clássica. Sendo o m ovim ento m oderno, em princípio, d eclaradam ente anti-sis têm ico, ele acabou se convertendo inteiram ente no seu co n trário afirm ativo , inte grou-se e tornou -se fu ncional, co m o você d em onstra. Q u an d o o cap italism o m u d ou , ele m orreu. Posso até con cord ar com isso, mas diria que você identificou uma tendência, analisou sua reversão e depois deixou as obras de lado. E, ao d eixar as o b ras de lado, você abdicou de d ecifrar na beleza da obra de arte, que é o edifício arq u itetôn ico m oderno, a prom essa de uma em ancip ação futura. V ocê deixou de decifrar o curso do m undo através da obra de arte. E essas o b ras, m alogradas ou n ão , são necessariam ente a cifra do nosso te m p o ” . E m ais: “ V ocê conclu i, p o rtan to , que na arq u itetu ra, pelo m enos depois da falência do m ovim ento m oderno, a idéia de experiência estética seria no m ínim o um equ ívoco. Q uem im agina estar experim entand o uma espécie de apogeu, ou de intensidade estética relevante, diante de um edifício m oderno, ou n ão, está enga nando a si m esm o. É essa a sua co n c lu sã o ? ” . R esp osta: “ É isso m esm o” . O ra , não se pode avaliar o interesse da resposta — e essa conversa continu a — sem levar em con ta que se trata em prim eiro lugar de arq u itetu ra, ou m elh or, de arquitetura de pois da grande ruptura produzida pelos m odernos num a quadra histórica cru cial. O que O tília estava dizendo era que, do ponto de vista estrito da arq u itetu ra, o m ovim ento m oderno, quando apareceu, elim inou a possibilidade de se consid e rar uma ob ra arq u itetôn ica com o uma o b ra de arte, co m o uma obra de arte a u tô nom a tom ada em si m esm a. Ele apareceu justam ente para co n tra ria r a inclusão da arquitetura no sistem a das belas artes. C om isto, a bela obra arquitetônica não era m ais uma obra de arte, quando m uito um sintom a (no sentido freu diano), com o os estilos históricos do revivalismo burguês do século X I X . N o que diz respeito às obras arquitetônicas anteriores, até m esm o o tem plo grego, a idéia de que se trata de uma
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obra de arte é uma ilusão retrosp ectiva, algo co m o o a n acrô n ico juízo de g osto na origem dos museus im aginários da vida, que reúne num m esm o âm bito estético tudo aquilo que tinha funções sociais numa outra sociedade, do religioso ao p o lítico. O pendor vanguardista do m ovim ento m oderno foi m ostrar que arquitetura não era escultura ou coisa que o valha, por mais que um construtivista prolongasse o gesto de M o n d rian , mas tinha que ser transgressivam ente funcional e é por isso que ha via a esperança de que essa reord enação do espaço pudesse alterar a ordem social. E se se tratava de uma obra de arte, era justam ente na intenção vanguardista de elim inar a d istância estética entre arte e realidade. C o m o o p ro jeto m alogrou, a reunião m useológica das sob ras, por m ais edificantes que sejam e nos falem ao c o ração , representaria um retrocesso nos term os m esm os dos m odernos que p ro je ta vam pensando em acab ar com tudo isso. Seria algo tão incongruente com o um museu do Socialism o. A guardem os o p ró xim o capítu lo. Se me expliquei bem , n ão se trata de um Fia Flu am alucad o do tipo ainda existe x não existe m ais algo que se c o n vencionou ch am ar experiên cia estética genuína. Até p orqu e, seja dito de passagem , na sua dim ensão an tropológica elem entar, de princípio estruturante do processo de individuação através do au tod istanciam ento pela im agem , pela faculdade ficcionalizante e tc., a co n fig u ra çã o estética da relação com o m undo é propriam ente im perecível, salvo na situação inum ana e term inal de uma a b so rçã o integral pela inconsciência de um ser m ergulhado na positividade do im ediato. M as obviam ente n ão é disso que se tra ta , assim com o tam bém não está em discussão a centralidade do trab alh o na tro ca m etabólica da sociedade com a natureza quando se discute a crise da sociedade do trab alh o assalariad o, a b stra to e h istoricam ente d eterm inado. C om o nos tem pos de Hegel, ninguém está dizendo que a Arte acab ou , m as sim ples mente que a alta voltagem de uma prim eira audição de Schõn berg ou leitura de um trecho inacabad o de K afka não se repetirá mais com a intensidade e a verdade de quem se defronta com um lim iar histórico. E hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíam os era um fe nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado N acional com o fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como você vê tal diagnóstico? Na sua visão, a prim azia de que parecem des frutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias? C om o professor de filosofia — e com o estou sendo entrevistado nesta con d ição, preciso m aner a ficção — não teria absolutam ente nada a dizer, e nem poderia, pois os assuntos não se entron cam . E no en tan to nossos coleguinhas andam opinando m uito sobre isso. M as o que seria um diagnóstico filo sófico “p ro fission al” sobre uma era pós-nacional? D iria que é ponto a meu favor essa brincadeira de mau gos to que consiste em dizer que, com a globalização, estam os nos aproxim and o da “ paz perpétua” kantiana. Por aí vocês vêem com o a filosofia tornou-se, na sua sobrevida, uma m áquina bisonha de disparates. Lem brem -se do Husserl que às vésperas do apocalipse nazista estava dizendo que era hora de ressuscitar o vigor da razão te ó
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rica — que só a teoria pura poderia recolocar a Europa em seu trilh o rum o à idéia transcendental de hum anidade. Bom , im aginar que a essa altura do cam p eon ato, quando dois terços da hum anidade vivem com m enos de um d ólar por dia, esta mos nos ap ro xim an d o da “paz perpétu a” de K an t, já é um prim eiro disparate. O segundo d espropósito filo sófico é o de im aginar que a idéia cosm op olita kantiana estaria prestes a se realizar. Q ue, com uma sociedade civil m undial, serem os todos cidad ãos do m undo [Welíhürger]. M as agora o p o n to é a favor da velha filosofia, pois K ant não era idiota. A idéia de Weltbürger de K a n t não tem nada a ver com a idéia de E stad o mundial. A liás, para ele, a idéia de Estado m undial era o im pério, a pior das tiran ias, o co n trá rio da república. Im aginar-se, dessa fo rm a, cosm o p oli ta k an tian o , fazendo parte de uma sociedade civil m undial é sim plesm ente se a jo e lhar diante da tirania que virá na form a de um im pério, que aliás é um ou tro nom e convencional para a espúria retom ada da hegem onia am erican a, entenda-se: o p o der econ ôm ico de em issão do dinheiro m undial lastreado pelo poder das arm as.
Weltbürger, para K a n t, era sim plesm ente poder apelar para a op inião pública, para além do seu status particu lar. E essa op inião pú blica, para ele, era erudita e m un d ial, correspond ia-se em latim . P ortan to ser um cid ad ão do m undo é ser m em bro de uma república m undial das letras, em que todas as pessoas, independentem ente da con d ição social, correspond em -se e argum entam entre si num a língua universal — o latim . O s filósofos de hoje estão contrib u in d o para o d ebate contem p orâneo com essas enorm idades. É ob vio que a febre ética de hoje é um pobre sucedâneo do em penho político b loqu ead o. Im plican do um pouco mais com os nossos coleguinhas, não sei com o os filó sofo s ainda não prom overam um revival do estoicism o rom ano, algo com o uma etiqueta m etafísica para se aguardar em casa o fim do m undo. T o d o o refluxo de 1 9 6 8 converteu-se nessa grande m aré ética. Está aí o últim o F ou cau lt que não me deixa m entir, para não falar na ética discursiva dos piedosos professores ale mães. E tom e ética disso e d aquilo. (O ou tro en costo é a estética: basta um co n c er to da Filarm ônica de Berlim , para a turm a do esteticam ente co rreto sentir a pre.sença do ab so lu to e atravessar a cracoiând ia pisando em nuvens.) E m ais “ socied a de civ il” a to rto e a d ireito. Q uem d iria, antes teatro de uma guerra de posições, a sociedade civil hoje passa por espaço da liberdade, onde se “ vive na verdade” , com o se dizia no leste Europeu. A tivistas sociais, socialites, próceres do hig business sus piram em uníssono por mais autenticidade, com o nos bons tem pos do jargão existen cialista. Só que o existen cialism o agora é de m ercado. A ética é um fator de produ çã o , as em presas consideram o lucro um acidente o p eracion al, sua v o cação é toda cultura e cidadania. E por aí vam os. O curioso é que neste mundo e.svaziado da guerra social de antigam ente, é um deus nos acuda toda vez que cidad ãos não-p rop rietários e politicam ente articulados se aproxim am demais do poder de Estado e do Banco C en tral, que continu am onde sem pre estiveram . Está claro tam bém que essa g ra n de querm esse hum anitária — que às vezes explode em surtos de histeria coletiv a, pois há um a clara tendência à depressão gerada pela im potência flagrante das ini ciativas éticas individuais para a calam idade coletiva em que se converteu o ca p ita lism o hoje — se deve m uito à percepção (não inteiram ente equivocada) de que numa sociedade con ectad a horizontalm ente em rede a questão social se resume à divisão
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entre os que estão “ d en tro ” e os que estão “ fo ra ” , e sua resolução é um problem a de “ in serção ” ou qualquer outra com p en sação , sim bólica de preferência. M e pare ce uma questão de tem po identificar as novas form as de exp lo ra çã o e antagonism o sob a superfície ética da “ e x clu sã o ” . Q uand o se com eça a falar dem ais em ética e seus derivados e patrocin adores, está-se dizendo ou tra co isa , na verdade um d ecre to sem ap elação: a econom ia de m ercado veio para ficar e estam os conversados. T am b ém me parece claro que tam an ho frenesi ético de nossas elites e sua cli entela (e nelas incluo contra-elites ã esquerda), para não falar em d esfaçatez, algo tem a ver com o desm anche nacional em cu rso, que aliás não é fatalidade econ óm i ca natural mas fruto de decisões de com and o p o lítico e d om inação social num es paço mundial que nunca esteve tão hierarquizado e polarizado. C ontraprova? C ontento-m e com um term o de com p aração histórico. C onsiderando nossa p roblem á tica passagem de C o lô nia à N a çã o , C aio Prado Jr . costum ava dizer que nos faltava o essencial, o “ nexo m o ra l” , que entendia com o vínculo social, com o um con ju n to aglutinante de forças para além do laço m eram ente econôm ico do co n tra to m er cantil. Pois era essa m iséria “ m o ra l” , própria de uma colônia de ex p lo ra çã o , m ero em preendim ento com ercial — éram os um vasto em pório regido pelo m ais cru ento cálculo econ ôm ico , o do lucro auferido com o trab alh o escravo e o “ trato dos vi ventes” — que nos inviabilizava com o sociedade. C om o ultrapassar o m ercado rumo à nação? Esse o d ram a. Inclusive do pensam ento progressista u lterior, que aliás com plicou -se ainda mais ao inverter o raciocín io — até h oje: a idéia “ m o ra l” de sociedade foi rifada porque algo com o uma econom ia nacional foi para o ralo. Ou seja, não há n ação sem m ercado interno e toca a procurar pelo em ov o, em a rra n car um nexo societário não-m ercantil da form a-m ercad oria! M ercad o não form a nação. A prova está aí: hoje, com m uito otim ism o, som os apenas um m ercad o, ora emergente, ora submergente. C om o se eclipsou o “ n exo m oral” dem andado por C aio Prado, ju n to com a atual reconversão colonial-m ercan til veio o auto-engano ético que estam os vendo.
Com o você caracterizaria a sua relação com a religião e a fé? Foi uma relação pretérita, de adolescente. A tualm ente, para m im , é apenas um fe nôm eno sociológ ico. N ão tem o m enor significado pessoal.
Com o você se situa em relação aos problem as de uma “mudança de p aradigm a” da filosofia, de uma filosofia “pós-m etafísica” calcada na linguagem? Se eu ainda desse aula, com eçaria pelo seguinte esclarecim ento: essa conversa de mudança ou crise de paradigma a três por dois com eçou com o senhor Thom as Kuhn, para dar conta do que estava acontecen d o com a m udança de hum ores da episte m ologia am ericana. Em m eados dos anos 6 0 , antes do desem barque da ideologia fran cesa, chegou aos ouvidos am ericanos a notícia de que as verdades científicas são históricas, independentem ente da sua verificação em pírica, e dependiam de um consenso entre aqueles que estavam envolvidos no debate. E redescobriram coisas que os alem ães estavam faland o desde o historicism o do século X I X . Entre outras coisas que a ciência fazia parte de um sistem a cham ad o cu ltu ra, banalidade da qual
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os an trop ólogo s há um bom tem po sabiam e xtra ir consequências interessantes. A idéia de paradigm a com eçou com isso, com a idéia de historicização do núcleo duro e positivo do pensam ento científico. O interessante é que houve antes, na virada de século filo só fico , um “giro lin gü ístico” endógeno, uma trad ição interna que se iniciou com Frege — que não por acaso vinha da m atem ática — , desviando-se da filosofia da consciência — pre dom inante na A lem anha até a fenom enologia — , e migrou para a Inglaterra, na recepção de um Bertrand Russell. D epois vieram os au stríacos, W ittgenstein e as sim por diante. Isso foi uma questão interna, a tran sform ação da filosofia profissi o n al, até en tão centrada na idéia de rep resentação, que passou com arm as e baga gens da consciência para a linguagem . M as continu ou sendo filosofia profissional e, p o rtan to , n ão mudou nada em relação à linhagem m oderna, que vinha de K ant. O fam oso “giro ling ü ístico” n ão m udou nada. Sim plesm ente a filosofia universitá ria livrou-se da ganga psicologizante e passou para a análise lógica do conhecim ento. A virada que nos im porta, a con v ersão ao paradigm a com u n icacio n al, onde sobressai a dim ensão pragm ática da linguagem , é da m etade deste século. De q u al quer m aneira, esse giro com eçou a aparecer quando o élan “ d esenvolvim entista” geral (algo co m o uma convergência m odernizante dos vários cam inhos nacion ais), no cen tro , com o Welfare State, e na periferia, com a indu strialização, com eçou a im plodir e a d esacred itar a n oção “ progressista” de progresso. D epois isso foi ba nalizado pelos pós-m od ernos com o o “ declínio das grandes n arrativ as” , na verda de apenas uma estilização de fatos reais, nada que se assem elhasse a uma ruptura na H istória do Ser. N esse m om en to, ficou m ais ou m enos claro que a n o çã o de pro gresso supunha continuidade, e que progresso com continuidade supunha uma matriz que lhe é coexten siva, cham ada tem po e con sciên cia. E ntão as filosofias da co n s ciência e da tem poralidade com eçaram a ca ir em desgraça, co m o tam bém as deci sões que envolviam tem po e con sciên cia, co m o a idéia de sentido e engajam ento da filosofia existen cialista. C o m o essa parafernália com eçasse a p ericlitar, a panacéia da linguagem passou para o prim eiro plano. De início através do estruturalism o linguístico, que foi apropriado prim eiram ente pelos an trop ólog o s e, só depois, pe los filósofos. Q uand o os filósofos “ arro m b a ra m ” essa porta aberta e descobriram a A m érica, para a an trop olog ia já era um a evidência o fato de as sociedades vive rem m ergulhadas em sistem as sim bólicos, evidência, que ao se generalizar, se e x prim e hoje na con v icção de que até a econom ia se tornou cu ltu ral. P ortan to, tanto a idéia de progresso, quanto a idéia neopositivista de objetividad e com o teste últi mo de realidade, foram para o brejo, pois só há significações socialm ente construídas. (G randes novidades... E com o rola tinta.) Só que, nesse m om en to, as idéias herdadas de objetivid ad e, de progresso, de con sciên cia e de tem poralidade estavam d esm oronan d o, porque a sociedade do cap italism o organizad o tam bém estava. O crescim ento com pleno em prego fora deslegitim ado, o m o tor m aterial da antiga con sciên cia; o su jeito forte da socied a de liberal burguesa, tam bém tinha se eclipsado. V ieram os pós-estruturalistas fra n ceses e obviam ente fizeram a festa. D errida tem pelo m enos fa ro , porque a D esc o n s tr u ç ã o n ad a m ais é do que a súm ula dos fa to s m u ito p o u co m e ta físico s estilizados pelo colap so dessa geocultura progressista de legitim ação do ca p ita lis
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m o , com o R o b erto foi o prim eiro a lem brar certa vez, em 1 9 9 4 , num breve en saio de prim eira intitulado “ Fim de sécu lo ". N a ou tra p o n ta, um sociólog o fra n cês, Luc B oltan sk i, tam bém foi o prim eito a n otar que, pensando bem , os rizom as de Deleuze são uma abreviatura “ id eológ ica” da Sociedade em R ede. C o n ven h a m os: esses ideólogos fran ceses no fundo eram excelen tes sism eo g rafo s, porém inidôneos co m o toda apologia indireta, co m o diria o velho L ukács, com perdão da má lem brança. M as a estilização destes fatos tam bém produziu incongruências. Por exem plo o nosso am igo H ab erm as, um dos teóricos dessa m udança de p a ra digm a. Ele achou que o finado paradigm a da consciência tinha um p ro lo ng am en to , a sociedade do tra b a lh o , e seu correspondente paradigm a, o da produ ção. P or tan to, para con tin u ar m odernizando a m odernidade, H ab erm as afirm ou que se ria necessário repensá-la por m eio do paradigm a da co m u n ica çã o , coisa de que os pós-m od ernos vinham falan d o fazia tem po. Ele form ulou isso no início dos anos 8 0 , e os estruturalistas franceses estavam dizendo isso há vinte anos. Assim, o pobre H aberm as escreveu tod o o Discurso filosófico da modernidade, com c a pítulos sobre D errid a, Fou cault etc. para dizer a mesma coisa. Q ual era a briga de F o u cau lt com a esquerda fran cesa m a rx ista ? Era “ tchau tra b a lh o ” . E a de D errida tam bém . Entre outras razões, era por isso que eles estavam flertand o com o “gau ch ism o " cu ltu ral e antiprodu tivista de 1 9 6 8 . É cla ro que eu estou b rin ca n do, porque obviam ente há um abism o entre Fou cault e H aberm as. M a s estão to dos no m esm o b arco. Então a polêm ica com o pós-estruturalism o francês, no Dis
curso, não exprim e esse co n fro n to inapelável que o debate a respeito procura dar a entender. Prova disso: todos se en con traram , estão a b raçad o s — com suas d ife renças de praxe — , nos EUA. O nde en con tram os pragm atism o local (revitalizado pelo pós-estruturalism o fran cês), onde está a esquerda cultural am ericana, e a ver são am ericana da últim a teoria crítica — H aberm as. E stão todos ab raçad o s no m esm o paradigm a. Seria interessante d eixar um pouco de lado essa conversa toda sobre m udança de paradigm a e procurar entender o esgotam ento histórico real de que ela de fato é apenas a sin tom ática desconversa.
Você utilizaria o conceito de “u topia” para descrever a sua visão do futuro da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia? Ainda sou de pinião que utopia é uma palavra para abreviar socialism o. A pergun ta, assim , é: “o que se pode consid erar socialism o h o je ? ” — e já é difícil m anter ate a palavra “so cia lism o ” na medida em que o socialism o real a enxovalh ou . E n tão é necessário im aginar uma sociedade pós-capitalista que não seja apenas utópica no sentido de uma idéia m oral reguladora. Isso eu deixo para as O N G s fazerem (ri sos]. Por ou tro lado — e a encrenca é essa — , é necessário im aginar uma sociedade p ós-cap italista, e ver se e com o as coisas vão de fato nessa d ireção. O que .Marx queria dizer com utopia? E xatam en te o co n trá rio do que estou p rocuran do indicar agora. U topista, para M a r x , era o pessoal que procurava se organizar ã margem da sociedade de m ercado em co n stitu içã o , isto é, era a reação defensiva do c a m pesinato se proletarizando. Essa gente brutalm ente despossuída im aginava poder reconstitu ir uma espécie de econom ia natural à margem da nova sociedade do c a pital, organizando-se por exem plo na form a de cooperativ as. O que M a rx dizia?
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“V ão m orrer na beira da estrada. Eles têm de m ergulhar na grande corren te histó rica que por m eio de uma reviravolta épica vai dar no socialism o. V ão sofrer, mas, no fim , vai dar tudo c e rto ” . Esse era o socialism o “ cien tífico ” , m ovim ento social por assim dizer g arantid o por uma m ola propulsora nada “ cie n tífic a ” cham ada negação da negação. .Vlas im aginem dizer isso em 1 8 4 8 ; era o h orror dos horrores. A nova .sociedade era uma coisa sinistra, a miséria um coisa inacreditável, e, no fundo, ■Vlarx estava dizendo; “ seus bisnetos, daqui a cem anos, estarão no Welfare State europeu. Padeçam o inferno, m as n ão tentem se organizar fora desse tro ç o ” . Ele tinha razão, a proletarização engoliu tod o o m undo. O ra, o drama atual, nesse jo g o de utopia e socialism o, é que essa ladainha senti m ental da exclu são é falsa. N unca todo o m undo esteve tão incluído co m o hoje em dia. É certo que estam os ferrados, e isso é outra coisa — pois viram os lixo descartável d estinado ao aterro sanitário social. O s descartados não estão exclu íd os. São des cartad os porque estão absolu tam ente incluídos. Esse é o dram a dessa nova etapa. E ntão a idéia de utopia, de uma saída possível, está se torn and o socialm ente proibitiva. E o socialism o tam bém . A idéia clássica de socialism o tem de ser intei ram ente repensada. O que significava socialism o? A verossim ilhança política e sen tim ental do socialism o significava que quem era socialista representava alguma coisa de novo. O socialism o era uma tendência real e visível. E era possível ap ontar esta tendência co m o algo que já suplantava o que estava aí, e que era m elhor. E isto passava tan to pela vida pessoal quanto pela organização produtiva. M esm o sendo m oderna e cap italista, a sociedade liberal-burguesa se apresentava assim m esm o com o uma ordem trad icio n al, a cu ja constan te inovação produtiva correspond ia uma espécie de bolor cu ltu ral, de m ofo m oral, sem falar é claro na opressão eco n ô m ica de sem pre. De qualqu er m odo era um m undo no qual se sufocava e os so cia listas vinham trazer o ar fresco da história, que tinham a seu favor. H o je o negócio m udou, e quem fala em socialism o parece ter ficado para trás. N ão se pode ap ontar um ob stácu lo m aterial ou m oral que o m ercado não se en ca r regue de superar. .A idéia de que havia uma sociedade pós-burguesa a o alcance da m ão , uma espécie de prom essa em butida na antiga ordem , que se cam inhava em d ireção a ela, saiu de cena. A prova m ais extraord in ária dessa recup eração perm a nente é o m ovim ento de em ancip ação das m ulheres, talvez a m aior revolução des de o n eolítico . E o que m udou? N ad a. .Ao m esm o tem po em que houve uma revo lu ção, a sociedade de m ercado incorporou essa revolu ção. Isso significa que a idéia de lim ite a ser transp osto cm d ireção ao socialism o desapareceu repentinam ente do horizonte. Se analisarm os o ciclo das grandes revoluções anti-sistêm icas deste sé cu lo, dc 1 9 1 7 a 1 9 4 9 (R evolu ção C h inesa), não seria disparatado afirm ar que o cap italism o encalacrad o estava por um fio, e que o m undo do trab alh o tinha inclu sive o progresso técnico em seu poder, portanto em condições de desbloquear aquele fim de linha civilizacional. Era vesossímel a possibilidade real de se encerrar a préhistória da hum anidade. H o je , não. Ou novam ente, ainda não. A esse prop ósito, gostaria de falar um pouco do livro de Paul Singer, Utopia militante, publicado pela coleção Z ero ã Esquerda. O que está fora de co g itação , no seu breviário? Paul Singer m ostra que não podem os m ais pensar segundo a ló gica binária cam po con tra cam p o, isto é, o socialism o não mais virá pela expropri-
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ação de uma classe por outra que, organizada em Estado, socializará os m eios de p rodu ção. Isto está fora de co g ita çã o , vide o exem plo da U nião Soviética. O so cia lism o, diz ele, tem de o co rrer por m eio de algo com o uma adesão volu ntária, a tra vés de “ im plantes” socialistas, o que ele cham a de ilhas de econom ia solidária den tro de uma econom ia de m ercado capitalista d om inante. E n tão vão se crian d o es sas pequenas ilhas de sociabilidade não inteiram ente organizadas pelo nexo m er cantil. Essas ilhas, no entan to, precisam ter algum tipo de relação com o “ e x te rio r” , precisam vender os seus produtos no m ercado. Paul Singer com eça a fazer revisões extraord in árias. O que são esses im plantes socialistas para ele? O sufrágio univer sal é um implante socialista. C om o assim? O ra, socialism o e dem ocracia, para Singer, são sinônim os. O sufrágio universal foi “ a rra n ca d o ” pelos de b aixo. O Estado de D ireito tam bém é um implante socialista, tam bém foi arrancado pelos despossuídos, pois o E stado liberal sem pre foi oligárqu ico. O d ireito de associação sindical ta m bém é um im plante socialista. O Welfare State tam bém , e assim por diante. C om o Paul Singer não é dado a especulações teóricas, o que acho que ele está dizendo é: a realização do socialism o n ão está mais garantida por uma dialética im anente. N ão há mais uma reviravolta produzida pelo próprio sistem a, mas esses im plantes que tendem a se alastrar por adesão volu ntária e deverão d em onstrar a sua superiori dade m aterial e m oral sobre o con ju n to da sociedade. Seria possível, no en tan to , relem brar a Paul Singer que isto tam bém a co n te ceu na passagem do A ntigo Regim e para o cap italism o, pois tam bém nessa época se poderia falar em im plantes cap italistas. Esses im plantes passaram a desorgani zar e a reorganizar os m ercados locais — a intercon ectá-los — , passaram a fin an ciar a produ ção, e só venceram a parada porque esse novo a rra n jo da vida eco n ô mica revelou-se produtivo. M a rx viu isso m uito bem: a passagem foi irresistível por que desenvolveu de m aneira exponencial as forças produtivas da sociedade. Então é preciso perguntar a Paul Singer: “ O que você faz com esse problem a? V ocê está raciocin an d o por analogia, e, conform e esse raciocín io, tais im plantes deveriam a r rebatar toda a sociedade por adesão voluntária? O nde a superioridade das novas forças p rod u tivas?” . Ele diria: “ É verdade, mas nós tem os de pensar que, do ponto de vista do desenvolvim ento das forças produtivas e da organização capitalista c o n form e a esse desenvolvim ento, o cap italism o é um desastre no que diz respeito, por exem p lo, a coisas fundam entais para a vida civilizada com o a saúde, a ed u cação, a ecologia etc. E por aí que se deve c o m eça r” . O ra , a saúde é uma calam idade — a grande m aioria das populações vai m orrer porque não pode pagar os custos cap i talistas da m edicina — e algum a coisa tem de ser feita. O m esm o raciocín io serve para a edu cação. D essa m aneira, é possível im aginar que nesses d om ínios pode-se qu ebrar com a idéia de um horizonte intransponível. Essa “ utopia m ilitan te” para Paul Singer é a im aginação dessa ordem pós-capitalista que pode ser antevista ao vivo com tais ilhas. E essas ilhas utópicas podem ser entendidas no seu sentido antigo. E por isso que, atu alm ente, Paul Singer tornou -se tam bém erudito em história do socialism o coo p erativ o dito utópico. T rata-se de uma ap o sta, pode dar tudo e rra do, mas é um cam in h o, entre ou tros ainda por d escobrir, dentro e fora do m undo do trab alh o , que ab solu tam ente não a ca b o u , nunca se trabalh ou tan to e tão mal em em presas podres em tro ca de dinheiro.
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A outra discussão a respeito do livro de Paul Singer é sobre a questão do E s tad o, e p o rtan to do créd ito. As cooperativas precisam de créd ito. Já se disse ao Paul Singer: “ É necessário pensar m acro, porque quem con trola o créd ito em uma e c o nom ia capitalista co n tro la tu d o ” , co m o vem dizendo e argum entando Fernando H addad, no qual me inspiro e espero ter entendido bem . N ão é ã toa que bancos e E stado estão sem pre juntos. E o con trole do créd ito é político. N um certo sentido, não seria um despropósito dizer que os bancos deveriam estar fora do m ercado, pois dinheiro não é m ercad oria, co m o trab alh o e terra tam bém não são. E n tão o p ro blem a do créd ito nesses im plantes utópicos pós-capitalistas repõe todo o problem a clássico de uma sociedade de classes an tagônicas em que a econom ia é de co m a n do p olítico. Até a era liberal foi um ciclo histórico de capitalism o politizado até a m edula. C om o créd ito, o Estado entra na eq u ação , ou seja, a disputa entre as cla s ses pelo créd ito passa pelo co n fro n to com o Estado. O dinheiro é um artefato p o lítico e o curso da m oeda é uma peça fundam ental da d om inação social. C âm bio e juros são instrum entos p olíticos, não decisões de m ercado — só aquele p aran óico do G ustavo Franco achava que banana e câm b io eram a m esm a coisa. N ada m ais político do que a briga pelo con trole do câm b io e do dinheiro. O ra , com isto, é pos sível voltar ao con flito m acro, de m odo que volta a luta política, volta a luta pelo con trole do Estado. Se se chegar ao problem a do dinheiro e do créd ito, chega-se ao co ra çã o do sistem a, e obviam ente os atuais donos do m undo não vão d eixar b a ra to, só m ortos largarão o osso. P ortan to, o E stado será sem pre essencial. Ele só está sendi) desm anchado e deslegitim ado para os de b aixo. Para os de cim a, ele nunca foi tão organizad o, tão eficiente, tão d inâm ico e tão associado às finanças, que, por sua vez, estão a ssocia das à tecnologia de ponta. Se se for ao créd ito e a esse Estado que está funcionand o bem aqui no B rasil, vai-se ao co ra çã o do sistem a, sem o ônus das categorias trad i cionais do socialism o. E passa a ser necessário saber quem se beneficia disso, quais são as classes sociais, para saber com quem se aliar e o que se vai dizer e fazer em fu nção dessa relação entre poder e dinheiro. Por isso que é preciso uma nova te o ria das classes. D issociar Estado e m ercado e dizer que estam os indo em d ireção a uma sociedade civil global é reles enganação.
Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos co mo riscos am bientais globais, am eaças de desintegração social em lar ga escala e alienação cultural em massa. Como você vê tais problemas? “ N ossa socied ad e” de quem ? Por que não dizer de uma vez que o cap italism o, e não a “ nossa socied ad e” , que nunca foi nossa, tornou -se m ais uma vez uma am ea ça à sobrevivência da espécie no planeta (os energúm enos e ou tros deslum brados falam em R en ascim en to ), e que toda vez que "n o ssa socied ad e” se vê am eaçada a esse ponto insano de insegurança, responde com o fascism o? T o m ad a ao pé da le tra, a gracinha sociológica cham ada Sociedade G lob al de R isco é isso aí.
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C o n v ersas co m F iló so fo s B rasileiros
Principais publicações: 1981 1992
Hegel: a ordem do tempo (São Paulo: Brasiliense); Um ponto cego no projeto moderno de Jürgen Habermas (co-autor) (São
1992
Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira (Rio de J a n e i
Paulo: Brasiliense); ro: Paz e T erra); 1994 1996 1996 1997 1997
Um departamento francês de Ultramar (Rio de Janeiro: Paz e Terra); Ressentimento da dialética (Rio de Janeiro: Paz e Terra); O fio da meada (Rio de Janeiro: Paz e Terra); Sentido da formação. Três estudos sobre Antonio Cândido, Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa (co-autor) (Rio de Janeiro; Paz e Terra); Diccionario de bolso do Almanaque Philosophico Zero à Esquerda (Petrópolis: Vozes).
Bibliografia de referência da entrevista: A d o rn o , T h. Dialética negativa, M adri: T aurus. Althusser, L. A favor de Marx, Jorge Z a h a r Editores. .Arantes, O . B. F. O lugar da arquitetura depois dos modernos, Fapesp/Edusp. C â n d id o de M ello e Souza, A. Formação da literatura brasileira, Itatiaia. ___________ . “ Dialética da m a la n d r a g e m ” . Revista do Instituto de Estudos Brasi leiros, n° 8, 1970. G o ld sc hm id t, V. A religião de Platão, Difel. G uéroult, M . Descartes selon l ’ordre des raisons, Paris: Aubier. Hegel, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Vozes. ___________ . Ciencia de la Lógica, Buenos Aires; Solar. H o rk h e im e r, .Vi. e A d o rn o , T h . Dialética do Esclarecimento, jorge Z a h a r Editores. H o rk h e im e r, .M. “ T eoria tradicional e teoria crítica” , coleção O s Pensadores, Abril Cultural. H a b e rm a s, J. O discurso filosófico da modernidade, M a rtin s Fontes. ___________ . Teoria de la acción comunicativa, M a d ri; C atedra. Husserl, E. Investigações lógicas, coleção O s P ensadores, Abril C ultural. Kuhn, T h . A estrutura das revoluções científicas, Pespectiva. L ebrun, G. La patiente du concept. Paris; G allim ard. ___________ . Kant e o fim da metafísica, M a rtin s Fontes. Lukács, G. História e consciência de classe, Elfos. ___________ . El joven Hegel, Barcelona: Grijalbo. -Marx, K. O capital, coleção O s E conom istas, Abril Cultural. ___________ . Manuscritos econômicos-políticos, Lisboa; Edições 70. Schw arz, R. Ao vencedor as batatas, D uas C idades/E ditora ___________ . Um mestre na periferia do capitalismo, D uas C idades/E ditora 34. Singer, P. A utopia militante. Vozes.
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C a rlo s N elso n C o u tin h o ; “ V ejo um fe n ô m e n o m u ito in te re ssa n te — n eg ativ o , m as in te re s sa n te — o c o rre n d o n o B rasil, q u e é o d o e sv a z ia m e n to da d im e n sã o p o lítica da so c ied ad e civil. F. esse esv a z ia m e n to real se tra d u z iu m u ito c la ra m e n te ta m b é m n u m e s v a z ia m e n to c o n c e itu a i” .
C A R L O S N E L S O N C O U T I N H O (1943)
C arlos N elson C o u tin h o nasceu em 1943, em Salvador (BA). Form ou-se em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia e, em 1964, m udou -se p ara o Rio de Ja neiro em razão d a repressão política. Perm aneceu na E u ro p a entre 1975 e fins de 1978. Em 1986, to rno u-se professor titular da Faculdade de Serviço Social da U ni versidade Federal d o Rio de Ja neiro, função que o cu p a até hoje. É o e ditor brasilei ro dos Cadernos do Cárcere, de A n tonio G ramsci. Esta entrevista foi realizada em o u tu b r o de 1999.
Goethe dividiu a vida de seu personagem W ilhehn M eister em dois romances, O s anos de a p re n d iza d o e O s anos de peregrinação. No pri meiro, o foco está posto na fortnação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que você nos falasse de sua fortnação intelectual? N ã o me recordo bem se G oethe distinguiu assim tã o claram ente um período de for m a ç ã o individual e o u tr o d as relações d o indivíduo com a sociedade. Acho que já na fo rm a ç ã o d o indivíduo a sociedade está presente, q u er dizer, os indivíduos são p r o d u to da sociedade, e n ã o o co n trá rio . Feita essa observação , digam os, m e to dológica, en ten d o que você está interessado em saber da m in h a fo rm a ç ã o intelec tual. Bom, é um a form a çã o meio bizarra, vou te n ta r relem brar algum as coisas dela. Para a m inha form a çã o intelectual, a prim eira coisa f u n d am e n tal, de que eu me lem bro bem , foi te r d esco b e rto aos 13 ou 14 anos, na biblioteca d o meu pai, O manifesto comunista e D o socialismo utópico ao socialismo científico. .Vleu pai era poeta, com alguns livros publicados. N ã o era um g rande po eta, m as tinha algum talento. Era d e p u t a d o udenista, m as n ã o era um a pessoa co n se rv a d o ra , era um a pessoa progressista, m as que, p o r injunções baianas, era ligado à U D N . E tinha na sua estante O manifesto comunista e D o socialismo utópico ao socialismo científico. A leitura desses livros foi um deslu m b ram e n to para mim . A cho que qu em lê o Mani festo aos 14 an o s e n ã o tem um a sensação de descobrir o m u n d o , esse cara n ã o vai m u ito longe. É realm ente um livro fantástico. Foi um m a rc o no q u e eu c h a m a ria de "m in h a fo rm a çã o intelectual” . Li o Manifesto rapida m ente, é um livro pequeno, e, a partir de então, eu já era com unista. Consolidei esse com u nism o lendo Do socia lismo utópico ao socialismo científico, ta m b é m um a b r o ch u ra m u ito interessante, u m a p arte d o Anti-Dühring de Engels. E tomei algum as decisões. U m a delas foi a de fazer política, um pouco p orque meu pai fazia e um pouco pelo avesso dele, porque eu ia fazer pela esquerda e ele fazia pela U D N , mas eu tomei claram ente essa decisão. E ntão, um aspecto interessante da m inha atividade intelectual, da m inha op-
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çã o p o r ser intelectual, um a pessoa que tra b a lh a c o m idéias, é o fato dessa ativ id a de estar estreitam ente articulad a à m in h a o p çã o política. N u n c a consegui distin guir entre ser co m u n ista e ser intelectual. N ã o entrei no Partido C o m u n ista imedi atam ente, até p o rq u e eu estava ain d a n o ginásio, no final do ginásio p ara o colegial, m as já me considerava co m u n ista , já via o m u n d o assim. Li m u ito , e m inha f o r m a ç ã o intelectual foi essencialmente a de a u to d id a ta ; n ã o tive n e n h u m mestre, qu er dizer, n e n h u m a pessoa mais velha que ten h a me o rie n ta d o nas m inhas leituras. Li meio caoticam ente. Tive um professor no terceiro a n o colegial, P aulo Farias, que aliás se exilou em 1964 e n unca mais volto u ao Brasil e q u e é hoje professor na Inglaterra, especialista em m u ç u lm a n o s negros. P aulo Farias era professor de H is tória, m a rx ista, ta m b é m d o P artido, e me deu algu m as boas indicações, entre elas u m a pela qual eu lhe sou etern am e n te g ra to , a de G ramsci. Foi o P aulo Farias a prim eira pessoa que me falou de Ciramsci. N a époc a, eu vinha a o Rio de Ja n eiro — eu devia te r uns 17 anos, en tã o — e com p rei u m a edição arg e n tin a de G ram sci, El
materialismo histórico y la filosofia de Croce. Você vinha m uito ao Rio de Janeiro nessa época? A p artir d os 16 anos, eu vinha u m a o u du as vezes p o r an o . Aos 18 anos, mais o u menos, fiquei am igo de L eandro Konder. Foi q u a n d o publiquei, irresponsavelm ente, na revista da Faculdade de Direito da Bahia, um artigo c h a m a d o “ Problemática atual da dia lética” , que é indiscutivelmente um besteirol, m as u m besteirol eng ra çad o , p o r q u e eu citava G ram sci, citava Lukács, e um am igo c o m u m deu essa revista ao L eandro. O L ea n d ro me escreveu um a gentil ca rta, aliás — ele lem bra sem pre disso — , u m a carta m u ito o n o d o x a , “ você está lendo autores meio h e terodoxos, cu id ado e tal, você está co m desvios um p o u co idealistas” . M a s a partir daí nós ficamos m uito am igos e seg uram ente essa foi o u tr a coisa m uito im p o rta n te em m in h a form a çã o intelectual. O Lukács chegou como para você? L ukács eu descobri na Faculdade de D ireito da Bahia. N a biblioteca da Faculdade de Direito, havia um a revista com um a resenha sobre o recente lançam ento na França de Histoire et conscience de classe. Aí an otei na m in h a listinha, vim a o Rio — em 1961, se n ã o m e e n g a n o — , e ju n to com o G ram sci, com prei ta m b é m Histoire et conscience de classe, q u e foi um livro que ta m b é m fez m u ito a m inha cabeça, e m b o ra eu hoje ache que n ã o é o m elhor te x to d o L ukács, que é u m texto p ro b le m á tico, m as certam e n te foi um livro que fez m u ito a m in h a cabeça. Hntão, vejam bem , foi essa m inha atividade intelectual-política qu e m e levou a o p ta r p o r fazer Direito. Por quê? P orque a Faculdade de D ireito era, na Bahia, a faculdade o n d e se fazia política. Basta dizer, p o r exem plo, que, dos 4 5 0 a lunos que a F acu ld ade tin ha e n tã o , a base d o P a rtido C o m u n ista tin h a cerca de cin qüenta pessoas, ou seja, mais de 1 0% da escola. £ eu entrei na base d o P a rtido tão logo entrei na Faculdade. Isso p ara n ão falar na JU C [Juventude U niversitária C a tó li ca], que devia ter os seus o u tro s cinqü enta, e nos gru p o s de direita, que ta m b ém estav am mais o u m en os o rg aniz ados na Faculdade. E n tão, entrei em D ireito p ara fazer política, m as m eu interesse teórico central, nesse m o m e n to , já era ce rtam en te
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Filosofia. M a s eu n ão term inei o curso, p o rq u e, no segundo an o , q u a n d o com eçou a ficar c h a to , aquele negócio de D ireito Processual Penal etc., eu desisti. Eu já esta va fazendo Filosofia em regime de disciplinas isoladas, ac ho que se c h a m a assim , e aí term inei Filosofia, me graduei em Filosofia. M a s eu n ão aprendi n a d a na F aculdade de Filosofia da Bahia. A prendi talvez um p o u q u in h o com o professor de H istória da Filosofia, A u to de C a stro , que era um mar.xista k a n tia n o — na época n ã o entendi hem co m o isso era possível, mas depois li |Karl] V orlände r, M a x .Adler etc. e soube que era possível. A u to era kelseniano e, a o m esm o te m p o , m arxista. M a s era u m a pessoa que tinha um a certa in form ação de História da Filosofia. Ele dava História da Filosofia, chegava em Kant e a c ab o u , depois de K ant nada . M a s, até K ant, ele tinha um a boa inform ação . Fui a lu n o ta m b é m do pad re Pinheiro, que é vivo até hoje, já n ã o é mais padre, m as era pad re na época, dav a aula de batina e era tom ista radical. Eu me lem bro que um dia — eu era g a ro to , estava e n tra n d o na faculdade, devia ter uns 18, 19 anos — ele disse a seguinte b arb aridade, co m grande ênfase: “ n enhum pen sad or disse que a c o n tr ad ição é um fato objetivo. A c o n tra d iç ã o é sem pre um erro lógico e tc .” . Eu disse: “ mas, professor, o Hegel disse isso” . “ N ã o , não disse.” N o dia seguinte, levei o li vro d o Hegel e m ostrei a ele. E n tã o, n ã o apre ndi n a d a ali. Eu diria que, pelo c o n trário , se tivesse a p r e n d id o , teria sido d esin fo rm a d o . N a verdade, eu tinha p o u quíssim os professores. O p a d re Pinheiro era professor de toda s as disciplinas, p r a ticam ente: de I n tro d u ç ã o à Filosofia, de Lógica, de T eoria d o C o n h e cim en to e de Metafísica. T inha um o u tr o professor de Ética e Estética que jamais deu um a aula. Ele passou trinta anos na universidade e n ão deu nen h u m a aula com princípio, meio e fim. M o r re u , c o itado. Era um a pessoa m uito simpática. E ntão, a m inha form ação, co m o eu disse antes, é um a form ação extrem am ente pessoal. E, claro, acho que to d o a u to d id a ta tem limites. É claro que o trein am e n to sistemático que a universidade dá — u m a boa universidade — aju d a bastante. Eu li m uito p o r m inha conta, descobrindo assim meio casualmente os autores. R e to m a n do. então, eu entrei na Faculdade de D ireito e no Partido C o m u n ista no jnício de 1961. N o P a rtido sei q u a n d o entrei, m a s não sei direito q u a n d o saí. Em to r n o de 1981, 1982, me afastei d o P artido. C on c lu í Filosofia, m as n ã o me licenciei, sou ape nas bacharel, p o r q u e no últim o a n o eu vim p a r a o Rio de ja n e ir o . Vim p ara o Rio m u ito em função d o golpe de 1964. O A u to de C a stro tinh a me c h a m a d o p ara ser assistente dele. Ele era catedrático, e o ca te d rá tic o na época convidava alguém para ser assistente. Eu estava até c o m essa idéia na cabeça, mas o golpe foi um a coisa m u ito com plic ad a , eu respondi processo e passei praticam ente to d o o a n o de 64 no Rio, evitando a prisão. Isso, por o u tro lado, consolidou muito m inha am izade co m o Leandro, ta m b é m com outros intelectuais cariocas, e eu decidi vir para o Rio, m o ra r n o Rio. Fiz isso em 1965. Consegui nesse a n o transferência d o meu emprego. Eu era funcionário do Tribunal de Contas. M eu pai era então conselheiro d o Tribunal de C o n ta s e me a r r a n jo u esse em prego. N a época, não havia con curso . T rabalhei nesse em prego na Bahia alguns anos e consegui essa coisa boa que foi vir para o Rio, transferid o p a r a o T rib u n a l de C o n ta s do Rio de Janeiro. H á até um episódio interessante sobre isso. V ou a o T rib u n a l de C o n ta s d o Rio, me ap re sen to a o J o ã o Lira Filho, um jurista am igo d o meu pai. .Aí me ap resento lá, botei um paletozinho,
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gravata. “ Dr. Jo ã o , vim aqui me ap re sen ta r para tr a b a lh a r . ” “ M e u filho, vá p ara casa. Se eu precisar de vocc um dia, eu o c h a m o . ” O u seja, passei três ou q u a tro an o s esp e ra n d o que ele me cham asse... Com ecei e n tã o a t r a b a lh a r em trad u ç ão . .Ainda q u a n d o m orava na Bahia, traduzi, aos 22 anos, Gramsci, o volume Concepção dialética da história, o livro tem esse título no Brasil — aliás, estou fazendo agora u m a n ova edição crítica de G ramsci. T ra d u z i m uito, mais de setenta livros. E d e morei m u ito p ara reconhecer que era tr a d u to r, p o rq u e sem pre achava que estava fazendo um bico. Em d a d o m o m e n to , percebi que o volum e de m in has trad uções era um a coisa certam e n te significativa. E eu diria que essas trad u ç õ es nem sempre f o ra m tra d u ç õ e s p u r a m e n te profissionais. H á m u ita s que se g u ra m en te são. M e m a n d a v a m o livro, e eu traduzia. M as há um b o m n ú m e ro delas que são ta m b ém um tra b a lh o de edição: sugestão m in ha ao editor, textos prefaciados, apresentados. Um o u tr o elem ento im p o r ta n te a registrar, nesse perío do, é o fato de eu n ão ter feito p ó s-graduação. N ã o fiz p ó s-g ra d u aç ão d u r a n te m u ito tem po. N ã o só p o r que p ó s-g ra d u aç ão p raticam en te n ã o existia na época. Além disso, não tinha co m o m eta e n tra r na Universidade, até p o r q u e era o p eríodo da d ita d u ra , eu era (e sou) m arxista, um m arxista explícito até, po rq u e meus livros indicavam claram ente essa condição: Literatura e humanismo, de 1967, tem co m o su btítulo “ E nsaio de críti ca m a rx is ta ” . E ta m b é m não me interessei m u ito p o r e n tra r na universidade. N o início dos a n o s 80, fiz um d o u to r a d o no luperj, em C^iência Política. M a s n ã o defendi tese, p o r q u e no final d o d o u to r a d o — eu estava p r e p a ra n d o u m a tese sobre (íram sci — , abriu um con c u rso p a r a professor titular na Universidade Fede ral d o Rio de Janeiro , no qual eu consegui me inscrever com n o tó rio saber, que me foi d a d o pela Universidade. Eu en tã o usei a tese p ara fazer o co n c u rso e, com isso, ganhei ta m b é m o título de livre-docente, p o rq u e o con c u rso p a r a titular é eq uiva lente ao de livre-docente. Além de g a n h a r um em preg o, ganhei um título. De m o d o que m in h a carreira acadêm ica é, digam os, meio to rta , p o rq u e eu entrei p o r cima, co m n o tó rio saber. D epois de q u a t r o a n o s d a n d o aulas n u m a faculdade privada, no Bennet, entrei na UFRJ em 1986. São, p o r ta n to , dezessete anos na universida de. E só me apo sentarei na com pulsória.
Voltando para a década de 1960. A impressão que se tem é que o am biente intelectual paulista era muito diferente do ambiente intelectual carioca. A impressão que se tem pensando em casos como o da editora e da revista Civilização Brasileira, é a d e que, ao contrário do que ocorria em São Paulo, o debate intelectual no Rio de Janeiro era de um modo geral menos restrito, menos universitário, menos homogêneo do ponto de vista dos seus participantes. Sem dúvida.
Em que medida isso foi importante para que você não tenha se decidi do a seguir essa carreira acadêmica no sentido clássico da palavra? Em que medida isso poderia explicar, por exemplo, as diferentes interpre tações, os diferentes usos de Lukács, o que você fez e o que foi feito em São Paulo?
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É um a observação ex tre m a m e n te pertinente essa sua. A cho que o p en s a m e n to so cial e a cu ltu ra estética do Rio de Ja neiro eram na época c o m p letam e n te diferentes dos de São Paulo. Q u e r dizer, nós n ão tín h a m o s um a prática acadêm ica m u ito fo r te nessa época. L ea ndro K onder n ão era da universidade, eu n ã o era d a universida de, Ferreira G ullar n ã o era da universidade. O p ró p rio José G uilherm e .Merquior ta m b ém n ão era da universidade nesse tem po . É possível que isso tenha p ro v o ca d o diferentes m odos de en tender Lukács. O nosso m o d o era um m o d o v o lta d o mais para a ação política, co m o eu tinha dito antes. N ó s três, G ullar, eu e L eandro, é r a m os claram ente intelectuais políticos. A gente ten tava evidentem ente n ão reduzir o tra b a lh o intelectual ap e nas a o uso político im ediato, mas havia um a clara in te n çã o de influenciar, de m a rc ar posição, de abrir debates. O m a rx ism o paulista é bem diferente: tem um viés acadêm ico m u ito forte, no bom e no m a u sentido. Eu acho, p o r exemplo, que não é casual que o m arxism o paulista tenha d a d o um a figura com o F ern an d o H e nrique C a rd o s o . M a r x é usado ac ad em icam ente, m as q u a n d o se t o m a m decisões políticas, essas n a d a têm a ver co m o m a rx ism o . N ã o digo isso, evi dentemente, de todos os marxistas paulistas. Considero R oberto Schwarz certamente o mais kicido crítico literário brasileiro. G o sto m uito do traba lho filosófico do Paulo Arantes. A cho que a fase m arxista do G iannotti é e xtre m am ente rica. .Mas diria que há diferenças, você observou bem, m uito interessantes entre Rio e São Paulo. N ã o me parece casual, p o r exem plo, o fato de G ram sci ter um peso bem m e n o r em São Paulo d o q u e tem n o Rio. Talvez o único desses m arxistas p aulistas q u e se interes sou p o r Gramsci foi o Paulo xArantes, q u e aliás escreveu um belo ensaio sobre ele, q u e está no livro Ressentimento dii dialétia}. M as, p ara os o u tro s uspianos, talvez co m exceção d o [Octávio] lanni, G ram sci é um p e n s a d o r que passou batido. C o n tu d o , esse lado, digam os, acadêm ico tem ta m b é m um aspecto positivo, m as sem es quecer que ser au todidata tem ta m bém suas vantagens. Gramsci não tinha nem curso superio r, e n tro u p ara fazer Lingüística e desistiu no meio p o rq u e a política n ão dei.xou. E é Gramsci. M a s acho que um certo treinamento sistemático, evidentemente, aju d a o desenvolvim ento intelectual. U ma boa academ ia, um a boa universidade, co m o é o caso da USP, ajuda seguram ente nesse sentido. -\'íj Bahia, em fins dos anos 19S0 e começo dos 1960, havia um clima de grande efervescência cultural. Como foi essa experiência para você? N a virada d o s anos 50 p ara os an o s 60, houve de fato na Bahia, o n de eu estava no período, um a floração cultural ex trem am en te significativa, um período em que você tem o surgim e n to de G lau b e r R ocha, de J o ã o U bald o Ribeiro, de C a e ta n o , Gil etc. É um a coisa m uito ligada à Universidade da Bahia. É um a coisa curiosa, isso. H o u ve um reitor, um reitor au to ritá rio , que passou d écadas co m o reitor, Edgar Santos. Fizemos greve co n tra ele, a c h áv a m o s q u e ele era um reacio nário etc. e tal. M a s foi um reitor que deu m uita im p o rtâ n cia às escolas de arte: abriu um a escola de te a tro, um a escola de música, u m a escola de dan ç a, levou pessoas de fora para lá, o Luiz C^arlos .Maciel, o Koellreurer. Isso criou um am biente, cu diria, m uito p r o p í cio a um a floração cultural, que foi m u ito im p o rta n te nesse período. E o u tra figu ra m uito m a rc an te nessa época na Bahia foi Lina Bo Bardi. D o n a Lina foi p ara a Bahia para o rg anizar o M useu de Arte C o n te m p o r â n e a e o M useu de Arte P opular
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da Bahia, e agitou m u ito o meio cultural baiano. Ela foi seguram ente u m a das o u tras pessoas que m e falou de G ram sci, além d o P aulo Farias, q u e foi certam e n te o p rim eiro a me falar dele. Ela dizia que a Bahia era a expressão real d o nacionalp opu la r. N ã o é bem assim, m a s a presença dela foi u m a coisa im p o rta n te na m i n h a geração. E n otem que os q u e viemos p ara o Rio, e não fom os p oucos — N o ên io Spínola, m in h a irmã Sônia C o u tin h o , e ta n to s o u tr o s — , e n c o n tr a m o s aqui um cli m a cultural m uito parecido com o clima cultural da Bahia. G lau b e r ta m b é m veio p ara o Rio. E acho q u e n e n h u m de nós veio para o Rio e e n tro u na universidade. Penso em G lauber, em C a e ta n o , que foi m eu colega em Filosofia. C a e ta n o não te r m in o u o curso, coisa da qual ele se a r rep e n d e até hoje. N ó s fom os colegas, ele era um a n o mais a tra s a d o qu e eu, e m b o ra seja um a n o mais velho. Foi q u a n d o fiquei am igo dele. Ciiaetano era crítico de cinem a nessa época e fazia crítica p a r a u m a re vista c h a m a d a Afirmação, o n d e eu ta m b é m escrevia. Aliás, lá escrevi um artigo grotesco, c h a m a d o “ Irracionalism o: metafísica em p â n i c o ” . O título é engraçad o, m as o artigo é m uito ruim . O C a e ta n o , eu dizia, escrevia crítica de cinema e, de vez em q u a n d o , dizia assim , “ gente, eu fiz u m a m ú sic a ” , era um a coisa m u ito en g ra ç a da [cantarola], “o sa m b a vai crescer q u a n d o o p o v o co m p re e n d e r que é o d o n o da jo g a d a...” . E n tã o , eu sem pre digo: convivi com um gênio e n ã o me dei co nta. M e consola pensar que, na época, ele talvez ain d a n ã o fosse um gênio...
Quando você vai para a Itália na década de 1970, essa sua experiên cia italiana não foi de certo modo um “elevar ao conceito” esse tipo de vínculo orgânico entre cultura e política que você estava perseguindo? Em d a d o m o m e n to , ficou impossível a m in ha situação no Brasil. Eu m udei de casa, o Exército me p ro c u ro u na velha casa, p ro c u ra v a m in h a m u lh e r no tra b a lh o , e eu tom ei a decisão de sair d o Brasil. Escolhi ir para a Itália e x a ta m e n te p o rq u e m eu g rande m o d e lo era o Partido C o m u n ista Italiano. Para m uitos, o g ran d e m odelo era o PCUS, Partido C o m u n ista da U nião Soviética, e a p r ó p ria U nião Soviética. P ara mim , era o Partido C om u nista Italiano. Para mim , a g rande d o r n ão foi a queda d o m u ro de Berlim o u o fim da URSS, m as o fim d o Partid o C o m u n ista Italiano.
Quando exatamente você foi para a Itália? E m m a rç o de 1976. M in h a decisão tem en tã o m uito a ver com meu a m o r pelo PCI. .Além do fato de que o italiano é se g u ra m en te a língua estra n geira qu e d o m in o m elhor, e ta m b é m pela m in h a ligação c o m G ramsci. G ram sci foi um a u t o r que fi cou um pouco latente na minha preocupação intelectual durante alguns anos, q u a n d o m e meti a fazer crítica literária. D u ra n te alguns an o s , Lukács to m o u o lugar de G ram sci, g a n h o u , digam os, um a d im ensão m a io r na m inha atividade intelectual, m as G ram sci sem pre esteve presente nela, desde o início. H oje em dia mais ainda, já que n ã o faço o u tr a coisa senão p r e p a ra r u m a edição crítica dos Cadernos do cárcere, que deve estar c o m e ç a n d o a ser pub licad a em n o v e m b ro deste a n o [ 1 9 9 9 1. Eu fui p ara a Itália sem em prego. Depois trabalhei muito, até profissionalmente d u ra n te algum te m p o , n o PCB no exílio, mas, no início, eu n ã o tinha em prego , meu pai m a n d a v a dinheiro, e eu pensei em a prove itar o te m p o na Itália p ara fazer um a p ó s-g raduação . Q ual não foi m in h a surpresa ao descobrir que na Itália n ã o existia
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pós-graduação! Agora tem, o chamadí^ "d o tto ra to di ricerca” . Assisti a algumas aulas na Universidade de Bologna, o n d e fiquei, mas n ão fÍ7. n en hum curso formal. Depois, em Paris, já no último a n o que passei na E u ro p a , ta m b é m pensei em fazer um d o u t o rado, mas aí as condições no Brasil permitiram a m inha volta e eu terminei não fazendo o d o u to r a d o sobre Lukács, em que eu seria orientad o pelo meu am igo Michael Lòwy.
Você volta em 1980? Voltei no final de 1978. P orque n o dia 1" de ja neiro de 1979 ac abava o Al-5. C h e guei à Bahia, me lem bro bem , em 23 de dez em b ro de 1978. Fiquei en tã o um a n o e meio na Itália, uns três meses em P ortugal, e um a n o em Paris. Fiz m uita política no exterior. Lá, além de r ed a to r da Voz Operária, torn ei-m e assessor da C om issão Executiva d o PCB, o n d e tive c o m o colega o .Aloysio N u n es Ferreira, hoje Secretá rio Geral da Presidência da República. A cho que ele finalm ente conseguiu ser Se cretário Geral [risos]. M a s foi um m o m e n to m u ito im portante na m inha form ação, a m inha ida para a Itália. Lem bro-m e de que cheguei na Itália, liguei a televisão e o Enrico Berlinguer, en tã o secretário d o PCI, dava um a entrevista e dizia o seguinte: “ Eu me sinto mais p ro teg id o no g u ard a -c h u v a da O ta n , p a r a fazer o socialismo que eu q uero, d o que no Pacto de V a rsó v ia ” . Eu pensei: “ M a s esse cara é um traid o r, isso é um a b s u rd o c o m p le t o ” . M a s, progressivam ente, me tornei e u ro c o m u n ista , a p artir de m inha experiência c o m o PCI. Eu ain d a tinha uns preconceitos m arxistas-leninistas fortes q u a n d o fui p ara a Itália. N u n c a fui stalinista, inclusive p o rq u e eu tive a sorte de ter e n tra d o no PC q u a t r o anos depois da denúncia dos crimes de Stalin. N u n c a fui próU nião Soviética, sem pre tive um a forte d úvida em relação ao socialismo que lá era co n s tru íd o , m as ain d a tinha m eus preconceitos. Dizer que a O ta n é m e lh o r que o Pacto de V arsóvia foi algo que me cho c o u p ro fu n d a m en te. N ã o o b sta n te isso, acho que ap re n d i m u ito nessa m inha estada na Itália. A democracia como valor univer sal n ão teria sido escrito se n ã o fosse esse meu perío d o italiano.
A própria expressão “democracia como valor universal” é de Berlinguer, como você mesmo escreve... Sim. N o septuagésimo aniversário da Revolução Bolchevique, Berlinguer vai a .VIoscou e faz um discurso d u ro , em que diz que a dem ocracia é um valor histórico uni versal irrenunciável. Eu gostei d a expressão e usei um p o u co co m o slogan. Eu diria q u e o p eríodo que passei na Itália foi o meu d o u to r a d o . A prendi m uito, foi m uito im p o rta n te para mim .
Na Itália, você sobrevivia de traduções? Fazia trad uções p ara o Brasil e meu pai me m a n d a v a algum dinheiro. Já no perío d o de Paris, eu recebi alg um a coisa do PCB.
Voltando ainda uma vez para a década de I960. Três paradigmas te óricos marcaram o ambiente intelectual do período, a saber o estrutu ralismo, o existencialismo e o marxismo. Como você avalia esses para digmas hoje, como é que você se relacionou com eles?
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N o fim dos a n o s 50 e início dos an o s 60, certam e n te dois para d ig m as fortes eram o existencialism o e o m arxism o. E isso é m uito cu rio so, p o rq u e um a u t o r que me influenciou m u ito nesse p eríodo foi Sartre. Eu li a Crítica da razão dialética, achei um livro genial — e é um livro genial, ce rtam en te — , e escrevi m eu prim eiro artigo que eu diria sério — ain d a infanto-juvenil, mas sério, no sentido de que era mais tr a b a lh a d o , menos m a lu co — , que é precisam ente um ensaio so bre Sartre. O título original é “ A trajetória de Sartre do existencialism o à d ia lética” ; é um ensaio m u i to sim pático a Sartre, que eu reproduzi no meu p rim e iro livro. Literatura e hu manismo, n u m a versão bastante m odificada. É um artigo interessante, que eu q u e ria publicar na revista do Partido C o m u n ista , que era a Estudos Sociais. M a ndei o artigo, passou um a n o em discussão. T e r m in a ra m p u b lic an d o , m as sob a rubrica “ Problemas em d eb a te” . De qualquer maneira, publicaram, e eu diria que é um artigo bastante h e te ro d o x o em relação a o m a rxism o-lenin ism o da época. É um a defesa de Sartre. Eu digo claram ente, p o r exem plo, que n ã o existe um a dialética da n a t u reza, que Sartre estava certo a o dizer que n ã o existia dialética da n atureza. O a r ti go usa m uito G ram sci e Lukács, co lo cad os assim co m o parceiros de Sartre nu m a c o m u m batalh a p o r um m a rx ism o renovado. E ntão, diria que a m in h a relação com o existencialism o, co m Sartre em especial, foi boa. N u n c a vi n o existencialism o francês um inim igo a c om b ate r. A o co n trá rio do estruturalism o, que realm ente se to rn o u , em d a d o m o m e n to , a m in ha besta fera. O estru tu ra lism o é mais tardio, eu diria. A influência d o e s trutura lism o se dá no final dos anos 60, no início dos an o s 70, e foi u m a o n d a no Brasil. Acho que m eu livro O estruturalismo e a miséria da razão é um livro estreito, em alguns casos sou m u ito d u ro na crítica d o e s tru tu ra lismo, particu la rm en te de alguns autores, m as ac ho que foi justa a idéia de que era preciso c o m b a te r o estruturalism o. Em d a d o m o m e n to , com o esvaziam ento cu ltu ral p ro v o c a d o so b re tu d o pelo AI-5, e com o esvaziam ento da universidade, o es tru tu ra lism o o c u p o u um lugar q u e antes era não só d o m a rx ism o , m as ta m b é m do marxismo. O cu p o u de que maneira? C o m tod a aquela retórica de antiideologia, antih u m a n ism o , anti-historicism o etc. E ntão, na verdade, ele serviu para desviar pes soas de um a análise crítica, dialética e racionalista d o real. Acho assim que meu livro tinha sentido. É m uito curioso, p o r exem plo, que, antes do meu livro, te n h a saído um artigo d o C a rp e a u x , um belo artigo c h a m a d o “ O E strutu ralism o é o ópio dos intelectuais” . É um artigo panfletário, co m o o é to d a a p ro d u çã o final d o C a rp e aux , t o d a ela panfletária, b rilha ntem e nte panfletária. É u m artigo que q u e r dizer e x a ta m ente isso: “ O lha, os caras estão virando estruturalistas para p o d er sair da luta p o lítica” . O O tto tinha m uita sensibilidade, acho, p ara esse tipo de coisa. Aliás, é t a m bém curioso que o prim eiro longo artigo p ublic ad o no Brasil sobre Gram.sci seja d o O tto M a ria C a rp e a u x , p u b lic ad o em 1966 na Revista Civilização Brasileira. E ntão, o e s trutura lism o é bem diferente do existencialismo. N ã o aprendi com o es truturalismo. Aprendi com Sartre, com os existencialistas franceses, que estudei mais, porque Heidegger n ão conheço bem; não conhecia na época e continuo sem conhecer. ■Aprendi co m eles, n ã o via neles, digam os, inim igos ideológicos; eram apen as dife rentes. O estruturalism o, não. A lthusser me irritou p articularm ente, p o rq u e é uma leitura de M a r x que é o ex a to o p o sto de tu d o aquilo que eu ac h o que deve ser.
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Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Como você vê as re lações entre a filosofia e a cultura brasileira? Acho que não, e isto, peio m enos, em dois sentidos. Prim eiro, ac ho que n ã o existe um a “ filosofia n a c io n a l” . Isso o Á lvaro Vieira Pin to te ntou fazer na época d o I.SEB [histituto Superior de E studos Brasileiros). E o p a d re Vaz, na m esm a época, fez um artigo m u ito bo nito dizendo e x a ta m e n te q u e isso n ão existe. Aristóteles nasceu na Cirécia, mas dificilmente você p o de dizer que Aristóteles era um “ filósofo nacional g r e g o ” , sim plesm ente. A filosofia tem um a dim e n sã o universal indiscutível. C laro que há um co n d ic io n a m e n to histórico nacional da filosofia: Descartes n ã o poderia ser alem ão, é francês. .Vlas n ã o gosto dessa expressão “ filosofia b rasileira” . Em segu ndo lugar, ac ho q u e n ã o houve ainda no Brasil — não sei se vai haver um dia — a criação de u m a filosofia realm ente original, q u er dizer, um a c o rren te de p e n sa m en to o u u m filósofo que possa ser c o m p a r a d o , p o r exem plo, claro, cum grano salis, com um K ant, um Hegel, um M a rx . .A m aioria d o s filósofos brasileiros tem o seu a u t o r estrangeiro que é trazido p a ra o Brasil, eu diria até ab rasileirado, coloca do d e n tro das condições d o Brasil. O Paulo A ran tes tem o Hegel, G ian n o tti teve o M a rx , hoje tem o W ittgenstein, ■Marilena Chaui tem o Espinosa, o M a rc o s N o b re tem o .Adorno, e, vam os lá, Carlos N elson C o u tin h o tem o G ramsci. .Me parece que n ã o existe ainda — eu n ão sei se essa é a o p in iã o de vocês — u m a filosofia p ró p ria , que p erm ita dizer: “ A quele cara tem um p en s a m e n to pró p rio , estabeleceu um a c orren te n o v a ” . Talvez isso exista na Lógica, com o N e w to n da C osta. M a s Lógica, p ara m im , é um g ra n d e mistério. E Miguel Reale? A verdade é que eu n u nca li o Reale. Se li, foi algum a coisa de Direito, e esqueci. M a s eu n ão creio que se possa dizer que Reale tem um p e n s a m e n to filosófico p r ó prio, co m o não o tin h a m nem Earias Brito, nem T o b ia s Barreto. Pode até ser que alguém te n h a , m as n ã o me parece que ten h a e s ta tu ra universal. N e n h u m a u t o r brasileiro en tra ria n u m a história da filosofia, a n ã o ser c o m o literatura secundária. Míis é possível pensar em temas filosóficos pelo menos, como o tema da dialética, por exemplo. Pode-se dizer que há trabalho nesse campo. Sim, há tra b a lh o nesse ca m p o . O que eu estou dizendo é que há, em to d o s os te rre nos d o p e n s a m e n to filosófico e sobre um grande n ú m e ro de autore s da história da filosofia, im p o rta n tes contribuiçõ es brasileiras a o desenvolvim ento de conceitos e da reflexão sobre esses autores. Seguram ente, os dois livros de G ian n o tti sobre o m a rx ism o . Origens da dialética do trabalho e Trabalho e reflexão, são livros im portan tes, dc nível internacional. O que eu estou dizendo é que n ã o há, digam os, um a m a tu r a ç ã o que perm ita o surgim e nto de um filósofo que tenha um p en s am e n to, um sistema próprio.
Por quê? É um a bo a pergu nta. Por várias razões. Prim eiro, po rq u e a trad ição filosófica do país é baixa. A Filosofia se t o r n o u um a coisa séria n o Brasil q u a n d o se criou o “ d e p a r ta m e n to francês de u l t r a m a r ” , co m o diria o m eu am igo Paulo A rantes. Até e n
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tão, não era sério. Eu disse a vocês que tive um professor que afirm o u enfaticam ente que n e n h u m p en s ad o r tinha dito que a c o n tra d iç ã o era objetiva, mas que n ão p a s sava de um erro lógico. E n tã o , acho que faltava realm ente um caldo de cultura necessário. Este, aliás, é um p roblem a geral da cu ltu ra brasileira, não se refere só à filosofia. M a s eu diria que, n o caso da literatura, p o r ex em plo , o co rreu a c o n s tru ção de u m a literatura brasileira — A ntonio C â n d id o , aliás, m o stro u isso m u ito bem — , que é mais sólida e está co n so lid a d a há mais te m p o que a filosofia. Talvez a g o ra se esteja c ria n d o realm ente u m a o rganiz aç ão da cu ltu ra — p ara usar um te rm o gram sciano — que vai permitir, espero eu, que a filosofia tenha um desenvolvimento m aior, M a s, ce rtam ente, nós tem os hoje u m a p r o d u ç ã o filosófica e x tre m am en te im p o rta n te. E diria que se trata de um a p r o d u ç ã o de nível internacional, sem diivida n enhu m a.
Que conceito(s) de sua reflexão você destacaria como o(s) mais representativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que você m s contasse como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje. Eu seria um p o u co sim plista e diria o seguinte; ac ho que o conceito que mais me m a rc o u , que mais m a rc o u m inha p r o d u ç ã o teórica, foi o conceito de totalidade. Eu me lem bro de que, q u a n d o li aqu e la célebre frase d o I.ukács, “ o m a rx ism o se dis tingue da ciência burguesa n ã o pela p redom in ância dos fatos econôm icos, mas pelo princípio da to ta lid a d e ” , aquilo foi p ara m im um a ilum inação. E, nesse sentido, e m b o ra eu esteja d a n d o aqu i u m a entrevista p ara um livro sobre filósofos, eu n u n ca me considerei filósofo. Eu n unca m e considerei filósofo até p o r q u e nunca me preocupei m u ito com essa divisão d ep a rtam e n ta l do saber. “ Eu estou escrevendo sobre o quê? Isso aqui é sociologia da literatura, é teoria política?” E ac h o que isso tu d o está ligado ã m in h a co nd içã o de m arxista. O que M a r x era? O que (íram sci era? Gramsci era um teórico da política, era um folclorista (já que escrevia sobre folclore)? Sinto-me sem pre desconfortável q u a n d o escrevem “ C arlos N elso n C o u tinho , cientista p olítico” . Isso realm ente eu n ão sou. A d oro política, faço política, penso sobre política, mas ciência política p a r a m im é um a coisa meio am ericana, esse negócio de fazer survey sobre voto, sobre eleição, sistema p a r tid á r io — e n ão é isso o que eu faço. Talvez eu pudesse m e identificar co m o um a pessoa que faz Filosofia política. M a s, co m o disse a vocês, sou a b s o lu ta m en te ignorante em Lógi ca, que é um terreno fu ndam e n tal na Filosofia. E ntã o , diria q u e o conceito de t o t a lidade foi um conceito que eu n ã o desenvolvi, m as que foi, digam os, m eu n orte m etodológico. Diria que dois conceitos, em duas fases diferentes da m in h a p r o d u ç ã o inte lectual, m e m a rc a r a m ce rtam en te m uito. O prim eiro foi o conceito de razão , que tem claram ente a sua origem em Lukács, e que corresponde ao meu período lukácsiano, firm em ente, fanaticam ente lukácsiano.
Qual é esse seu período autenticamente lukácsiano? É o p erío d o que m arca ta n to Literatura e humanismo q u a n to O estruturalismo e a miséria da razão, so b re tu d o até O estruturalismo e a miséria da razão. Diria que, so b re tu d o nesse período, a categoria da ra z ã o foi m u ito im p o rta n te p ara mim . H á
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um a coisa inteligente naquele livro — vou me elogiar um p o u c o — , ou seja, a des coberta de que existe não só um a “ destruição da r a z ã o ” , o irracionalism o ab e rto , que Lukács havia ex p o s to no seu injustam ente desqualificado livro — um livro que tem m uita coisa b o a, ain d a q u e haja m o m e n to s insuportáveis, co m o aquele epílo go que é um a coisa de guerra fria, mas há m o m e n to s m u ito interessantes — , mas ta m b é m um a “ miséria da r a z ã o ” , o em p o b re c im e n to da raz ão em n o m e do racionalisnio formal. Este é um m o m e n to — talvez na época eu n ã o reconhecesse isso — fra n k fu rtia n o da m in ha p ro d u ç ã o . Li m u ito os fra n k fu rtia n o s, eles sem pre me fascinaram m uito — Dialética do iluminismo foi um livro que ta m b é m me m a rc ou — , mas sem pre t o m a n d o m inhas distâncias. Para os frankfurtiano s, o inimigo fu n dam en ta l n ão era ta n to o irracionalism o clássico, mas essa raz ão em pobrecida, essa razão eclipsada — um livro que me m a rc o u m uito ta m b é m foi Eclipse da razão, do H o rk h e im e r, que é u m a crítica e x a ta m en te a essa ra z ã o que perde a sua dim ensão objetiva e se torna m eram ente razão instrumental. N a época, eu não reconhecia isso. Para mim , era p u ro Lukács. M as, ce rtam ente, essa leitura dos fra n k fu rtia n o s me aju d o u a pensar um po uco essa q u estão dos dois m o d o s de c o m b a te r a razão d ia lética, ou a b a n d o n a n d o - a o u m iserabilizando-a. O segundo m o m e n to é o d o meu reencon tro com G ram sci, em m e ad os dos an o s 70, depois de um período em que G ram sci ficou, digam os, meio sonolento; trata-se do m o m e n to em que m in h a p reo c u p a ç ã o teórica m a io r passou a ser a p o lítica, a reflexão sobre o e s ta tu to o ntológico da política, para usar um a expressão meio pedante. Isso é m u ito m a rc a d o no meu livro sobre G ram sci, cuja prim eira edição é de 1981 — ac ab o u de sair um a nova edição, com várias alterações em relação à primeira. Já nessa prim eira edição é clara a m inha p ro p o sta de enten der a teoria política de (íramsci à luz das categorias ontológicas do último Lukács. Além disso, um tem a im p o rta n te da m inha p r o d u ç ã o foi seguram ente a q uestão da d e mocracia. A democracia como valor universal é um a expressão disso, ain d a que eu já viesse traba lh an d o sobre esse tema antes. Acho que esse artigo, publicado em 1979, teve um a im p o rtâ n cia m uito g ran d e no debate cultural e político daquele m o m e n to. N ã o ta n to pelas suas q u alidades intrínsecas — ac ho que é um artigo que d esen volve p ouco alguns conceitos, é s o b retu d o um artigo de c o m b ate — , mas penso que pus o d e d o num tema que realm ente era um tem a quente, q u er dizer, eu puxei um a discussão. Eu tive a sorte de ser a pessoa que desencadeou um processo de discus são que, até hoje, ac h o que m arca o p en s am e n to da esquerda brasileira. N inguém pode mais dizer “ eu n ã o sei qu e a dem ocracia tem um papel im p o r ta n te ” . M a s, sin ceram ente, eu n ão acho que tenha c ria do n enh um conceito im p o rta n te, quem sou eu... .Acho que trabalhei alguns conceitos, joguei algum as idéias na praça.
Você voltou a Gramsci. O que você achou do livro O s 45 cavaleiros hún g aro s, de Oliveiros Ferreira? N ã o gostei. O Oliveiros realmente conhece bem Gramsci, leu bastante Gramsci. M as ele começa afastando de sua interpretação qualquer con otaç ão “escatológica”, com o ele diz, ou seja, o Gram sci revolucionário. N o e n ta n to , Gramsci foi um m arxista e um revolucionário. Disso resulta um Gramsci sociologicam ente d u rk h eim ian o , na primeira parte do livro, e um Gramsci clausew itziano na política, na segunda. Acho
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que é um livro que n à o ajud a a en ten d e r G ramsci. M a s n ã o deixa de ser curioso, ate m esm o sintom ático, que u m p e n s a d o r c o m o o Oliveiros Ferreira, um liberal co n serv ad o r, ten h a se in teressado p o r G ramsci. Já existe hoje, eu diria, um a r a z o ável literatura sobre G ram sci no Brasil, de qualid ad e entre média e boa. A cho que o livro d o Oliveiros é um livro certam e n te de alto nível, m as que p ro p õ e um a leitu ra equivoca da. E G ram sci se presta m u ito a esse tipo de coisa, p o rq u e deixou um a o b ra fragm entária, sistemática na sua articulação categorial, mas form alm ente frag m e n tária , o que perm ite leituras que, n o Brasil, p o r ex em plo , vão do PSTll ao PPS. O E d m u n d o Fernandes Dias, da U nicam p, p o r e.xemplo, que está no PSTU, tem uma leitura de Gram sci que privilegia o m o m e n to antiinstitucionalista, conselhista. O PPS faz u m a leitura, co m o fazem hoje os pós-com u nistas na Itália, de um Gramsci quase liberal. A posição de .Massimo D ’Alema é a de dizer que, em Americanismo e fordismo, G ram sci defende o liberismo, o que é u m a leitura a b s o lu ta m e n te eq u i vocada e instrumental. Leitura, aliás, que levou a que F ern ando H en riqu e desse um a entrevista ã Veja, n ã o sei se vocês viram , em que ele cita Gram sci sete vezes, diz en d o inclusive que to d o s os progressistas hoje são gram scianos. P or quê? P orqu e ele leu, um a sem ana antes, o artigo de D ’Alema, que tinha saíd o em O Estado de S. Paulo, e repetiu literalm ente o que o D ’Alema disse sem citá-lo. Q u e r dizer, além d o mais é um plagiário.
Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade? Eu m e pergunto: será que a filosofia estabeleceu sem pre na sua história essa rela ção com o saber científico? Creio que, em d a d o m o m e n to , n ã o havia um a distin çã o entre ciência e filosofia. Um p en s ad o r c o m o Aristóteles, que é indiscutivelm en te um filósofo, é alguém que escrevia sobre as partes dos anim ais, sobre física, s o bre os m eteoros, sobre a alm a h u m a n a ; p o r ta n to , você p o de dizer que Aristóteles era a o m esm o te m p o um psicólogo, um sociólogo, um politólogo. A in dependentização d a ciência da filosofia me parece, n o caso das ciências naturais, um a coisa que n ã o só o correu, m as foi m u ito positiva. C e rtam e n te , o m o v im en to q u e leva a Galileu é ta m b ém um m ovim ento filosófico, quer dizer, a filosofia a c o m p a n h o u esse processo pelo qual a ciência se to rn a v a independente. N o caso das ciências sociais, acho que é diferente. A cho que o nascim ento das cham adas ciências sociais está muito ligado a o colapso d o princípio da to ta lida de na filosofia. Estou rep e tin d o o q u e o Lukács disse, m as me parece um a coisa verdadeira. N in g u ém pergunta: “ R ousseau é o quê? É um filósofo? O u é u m teórico da política?” . Q u e r dizer, até certo m o m e n to , e n q u a n to a burguesia foi um a classe progressista, o p en sam e n to , já que ti nha o princípio da to ta lid a d e co m o base, impedia de dizer “ fulano é isso” , “ M o n tesquieu é sociólogo, n ã o é filósofo” etc. A p artir d o eclipse d o princípio da to ta li dad e — com a dissolução da filosofia hegeliana, p ara falar mais claram ente — , su r gem as tais ciências sociais particulares, que tentam dividir o social, fatiá-lo, e, co m o diz m uito bem Lukács, essencialmente desistoricizá-lo. O que falta, assim , às ciên cias sociais particulares é não só o princípio da totalid ade, m as ta m b é m a idéia da historicidade dos fatos sociais. E ntão, eu diria que a relação da filosofia c o m essas
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ciências sociais particulares — filosofia enten d id a co m o teoria social global, co m o ontologia d o ser social — é u m a relação p roblem ática. N ã o partilho d o negativismo c o m p leto d o Lukács de dizer: “ n ão , isso aí não tem n a d a a ver c o m o m a rx ism o , a sociologia é ideologia b u rg u e s a ” . A cho que n ã o é só isso. .Mas é certam e n te um a reflexão insuficiente sobre o social. A cho qu e a filosofia, L ukács dizia assim , tem o direito de exercer u m a crítica ontológica das ciências. Penso que isso seja correto, isto é, m o strar que um a descoberta de W eber, por exemplo, para ter valor heurístico, servir efetivam ente ã co m p re e n sã o do real, tem que ser subm e tida a um tr a t a m e n to ontoló gico, ou seja, tem de ser relacionada com a to talidade, historicizada. O s “ três tipos puros da dom in a çã o legítima” é u m a bela idéia. W eber criou ali três tipos ideais, c o m o ele ch a m a , que n ã o c o rresp o n d e m e x a ta m en te ao real, mas que são indicativos para se en ten d e r form as de legitim idade. M a s ele fez isso de u m a m a neira p u ra m e n te form alista. Acho que tem os a o b rigação, nós m arxistas, de historicizar essa categoria. M a s essa posição parece se aproxim ar muito do programa de “Teoria
tradicional e teoria crítica”, de Horkheimer... Sem dúvida. Seguram ente é o te x to dos fra n k fu rtia n o s que, e m b o ra talvez não seja o mais brilhante, é certam e n te o que mais me a g ra d a, é aquele com o qual mais me identifico. A cho que o g ran de limite da Escola de F ra n k fu rt foi conceber o m a rx is m o sem classe op erária. E u m a coisa co m plicada. Deu no que deu c o m o R o bert K urz e sua crítica radical do capitalism o. M a s co m o é que se sai dele? M a s enten d o a situação dos frankfurtiano s. A o p çã o ali era dura: ou aderir à U nião Soviética ou ficar co m um m a rx ism o meio etéreo, academicista. M a s cabe le m b rar qu e G ram sci redigia os Cadernos na m esm a época.
Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda de. Como você se posiciona em relação a esse debate? A cho essa te oria d o fim da arte um a teoria pro b lem átic a, m as ac ho que ela é m o m e n to de um a das coisas mais brilhantes de Hegel, qu e é a tentativa de ju n ta r sis tem a e história. De pensar as categorias teóricas, os fenôm enos teóricos, à luz da sua historicidade. Lukács tem u m a bela obse rva çã o, n o capítulo da Ontologia so bre Hegel, em que ele diz qu e Hegel tem u m a o n to logia v erdadeira, qu e é u m a o n tologia b aseada no ser, no m o v im en to d o ser, e tem um a onto lo g ia falsa, iogicista, um a tentativa de en c ad e ar os fenôm enos a p artir de u m a lógica que n ã o diz respei to à lógica d o real, m as a um a lógica d o p en sam e n to . .Acho que, no caso da teoria d o fim da arte, isso é m uito claro. A lógica d o sistema exigia que Hegel dissesse que o nosso te m p o é o te m p o da filosofia, d o conceito, e n ã o mais da rep resentação e da intuição. Q u e r dizer, para ele a arte r o m â n tic a é um a arte já em processo de dis solução. M a s, in d e pende ntem ente desse logicismo da te oria d o fim da arte, acho que Hegel colocou um p roblem a im p o rta n te: há épocas históricas q u e são mais ou m enos favoráveis a o desenvolvim ento da arte. A quela idéia brilhante d o M a r x de qu e a Ilíada e a Odisséia só p o d ia m surgir na Grécia clássica, q u e C a m õ e s n ã o fez um a epopéia. V oltaire não fez um a epopéia. Por quê? P orque cada época histórica
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tem um a ex pressão artística. E há épocas históricas desfavoráveis, pelo g ra u de ali e n a çã o e de desintegração social, ao desenvolvim ento da arte. V o lta n d o à perg u n ta , ac h o que n ã o foi bem isso o que Hegel quis dizer, e m bora eu ache que ele disse ta m bém isso. Imagine um a pessoa do século X X V, olhando p a r a o século X X . (Para o século X IX , isso n ão vaie. Hegel já era m o r to q u a n d o h ouv e u m a m aravilhosa floração d o r o m an c e, ta n to francês q u a n to russo, houve um a m aravilhosa flora çã o da p in tu ra , c o m o im pressionism o.) Será q u e u m a pes soa d o século X X V , p en s a n d o o século X X , ac hará que foi u m p eríodo de g rande floração artística, m a lg ra d o T h o m a s M a n n , m a lg ra d o K afka? N a p in tu ra , algum p in to r ficará d o século X X ? N a música eru d ita, algum g rande c o m p o sito r ficará? São perguntas que vale a pena fazer. N esse sentido, acho que Hegel b o to u o d edo n u m a q u estão sobre a qual devem os pensar.
Nas suas reflexões sobre estética e sobre a atividade artística em geral, você sempre se valeu do conceito de nacional-popular, enfatizando a importância da arte conseguirão mesmo tempo criar uma imagem al ternativa do Brasil e aproximar essa imagem do povo. Como é que você vê essa questão hoje? N ã o sei se sem pre usei essa categoria d o n ac io n a l-p o p u la r c o m ta n ta ênfase q u a n to em alguns textos mais recentes. A cho que eu tra b a lh a v a mais com o conceito de “ re a lism o ” de Lukács. M as sem pre co m a idéia d o n a c io n a l-p o p u lar na so m b ra, pelo menos. O n a c io n a l-p o p u lar é u m conceito, eu diria, m u ito mal tr a b a lh a d o . O n a c io n a l-p o p u lar n ã o é nem n acionalism o, nem p opulism o. O que G ram sci quer dizer co m esse conceito é que a g ran d e arte, ou seja, a g rand e cu ltu ra, g an h a um a dim ensão nacional q u a n d o integra o p o v o na nação. E é u m a categoria q u e surge em G ram sci em função da crítica a o tipo de cultura e de intelectualidade existentes na Itália. S egundo G ra m sc i, u m a das g ran d e s trag é dias italian as foi o fato de a intelectualidade, p o r ser ligada a o P a p a d o , ser c o s m o p o lita, o u seja, n ã o ter um vínculo orgânico c o m o povo, co m a n aç ão italiana. E eu g osto dessa categoria p o r que ac ho que ela nos perm ite ta m b é m p e n s a r o caso brasileiro. A cho que há g r a n de semelhança entre a form a çã o da intelectualidade italiana e a brasileira. T a m b é m no Brasil os intelectuais fo ra m m u ito ligados ao p o d er e m u ito p o u co aten tos ao fato de qu e n ã o se faz g ran d e arte se n ão se integra à arte ta m b é m u m a reflexão sobre o povo . Penso assim ser m u ito im p o rta n te p a r a nós esse conceito de nac io nal-p o p u lar, que eu utilizo m u ito num te x to meu c h a m a d o Cultura e sociedade no Brasil, em que te n to p ensar — claram e n te ã luz de G ram sci — a form a çã o dos p r o blemas da intelectualidade brasileira e da cultura brasileira. Lá eu falo na presença entre n ó s de um a cu ltu ra intimista, o rn a m e n ta l, n ão ligada aos prob lem as p o p u la res, e te n to indicar c o m o alternativa a ela essa idéia de um a c u ltu r a n ac iona l-po pular — que, p a r a m im , é evidentem ente g ran d e c u ltu ra , é M a c h a d o de Assis, Lima Barreto, G raciliano R a m o s, D r u m m o n d de A nd rade.
Glauber Rocha... T a m b é m , ta m b é m . A cho que G lau b e r chegou a usar essa idéia de n a c io n a l-p o p u lar em algum m o m e n to da sua p r o d u ç ã o . A cho que o prim eiro p erío d o de G lauber
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é claram ente n acion al-popu lar: Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe, Antônio das Mortes. A sua segunda fase talvez seja “ in te rn a c io n a l-n ã o -p o p u la r” [risos], A cho que ele se perdeu, infelizmente.
É hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como você vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que parecem des frutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias? G ram sci fazia um a distinção, que me parece m uito interessante, entre a p equena e a g rande política. E ele explicava assim: a pequen a política é a política d o co rre d o r, da picuinha, d o a c o rd o p a rla m e n ta r, política d o dia-a-dia. E a g ra n d e política é a política que discute m u d a n ç a o u conservação de e strutura s globais. Eu diria que a hegem onia do neoliberalism o — e, no p la n o cultural, a hegem onia d o c h a m a d o p ó s-m o d e rn o — é um p ou co a te ntativa de m a ta r a g rand e política, de tr a n sfo rm a r a política na p u ra p eq u e n a política. N ã o se discutem mais grandes alternativas so ciais, se essa o rd em social deve ser sup erada ou não. Discute-se se se paga ou n ã o a dívida a o FM I, se se privatiza ou n ão tal coisa, q u e a c o rd o tem que ser feito n o P ar lam ento, qual a troca de favores com d ep u ta d o s p ara que eles votem a reeleição presidencial etc. Enfim, diria que isso é um a p rova d o recuo da hegem onia da es q u erd a e d o av a n ço indiscutível hoje d o c h a m a d o p en sam e n to único, d o neolibe ralismo. E n ã o terem os condições de reverter essa hegem onia se n ão v o lta rm os a fazer g ra n d e política. Nesse sentido, ac ho que a g ran d e tarefa da esquerda é a de politizar tu d o , n o sentido positivo dessa palavra, ou seja, de relacionar to d a s as grandes questões qu e são colocadas no m u n d o de hoje co m as estruturas, de a p o n ta r para o universal, para o nível ético-político, para usar outra expressão de Gramsci. D ito isso, ac h o q u e faz parte desse mito d o p e n s a m e n to único a idéia d o fim d o E stado N acion al. T ra ta -se de um processo, evidentem ente, é possível fazer um prognó stico de que isso talvez aconteça daqui a duze n to s anos. -Mas ac ho que, p o r e n q u a n to , os E stados N acio n ais ainda têm peso na definição da política, em alguns casos mais que em ou tros. C e rtam e nte , n ã o é possível hoje fazer política nacional italiana sem levar em co n ta o fato de que a Itália faz parte da C o m u n id a d e E u ro péia. .Acho que na E u ro p a está se cria ndo um E stado su p ran a cio n a l, m a s com ca racterísticas de E stado N acional em relação a o u tro s Estados extra-europeus. Hegel se m p re dizia: ca d a E sta d o é u m in divíduo em relação a o o u tr o . S eguram e nte a E u ro p a está se co n stitu in d o c o m o um E stado diferente d o E stado am ericano, do E stado japonês, d o E stado brasileiro. P artic ularm e nte no caso do Brasil, essa idéia d o fim d o Estado N acional é um a idéia m uito perversa, p o r q u e p arte d o princípio de que tem os de e n t r a r na globalização sem um m ín im o de in stru m e ntos para g a ran tir a soberania nacional, p ara g a ra n tir os interesses p opulares. N ã o sou favorá vel a essa idéia de que os E stados N ac io n ais desapareceram . A cho que há um m o vim ento d o g rande capital financeiro para que os Estados N acio n ais percam essa
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capacidade de incidência soberana sobre seus territórios. M a s certam ente isso é um a coisa que nós, da esquerda, devem os c o m b a te r. É algo q u e faz p arte d o arsenal político e ideológico d o p en s am e n to neoliberal. Você se consideraria um intelectual orgânico do PT? Como é que você avaliaria essa sua tarefa de discutir grandes questões, de colocar pro blemas de transformação em sentido global, no âmbito da política ins titucional? Eu sem pre brinco dizendo que, q u a n d o eu era d o PC, eu tin h a um ca sa m e n to mon ogâm ico. M in h a relação co m o PT é um c a sa m en to a b e rto [risos]. T e n h o um vín culo certam ente orgânico com o partido, sou militante d o PT desde 1989. A cho que, o bje tiv a m en te, algum as das m in h a s idéias, alguns dos m eus textos, p ro v o c a ra m debates internos no partid o . Eu me lem bro de que, q u a n d o entrei no PT, fui convi d a d o p o r todas as correntes p ara e x p o r m eus p o n to s de vista. Tive discussões engraçadíssim as, sendo o ra ac u sa d o dc esquerdista, o ra de direitista. M a s ac ho que houve u m a tro ca forte, em alg um m o m e n to , entre m im co m o intelectual d o PT e o PT em geral. N ã o me parece casual que hoje eu n ã o sinta mais essa troca. N ã o é um p roblem a só meu, é um p roblem a geral do PT. A cho q u e o P T está p assan d o p o r um perío d o seguram ente m u ito com plicado. O fio da n av a lh a entre fazer p olí tica co n cretam ente e m anter-se fiel às p ro p o sta s estratégicas é m uito estreito. Q ue intelectual te m hoje im p o rtâ n c ia o rg ânic a na fo rm u la ç ã o das p ro p o sta s d o PT? Talvez nenhum . E talvez nem m esm o os intelectuais do PT co m o um todo. Para mim, é u m a coisa m uito clara que, p a r a o bem e p ara o mal, m inhas idéias tin h a m im p ac to no P a rtido C o m u n ista . D igo “ p a r a o bem ou p ara o m a l” p o rq u e às vezes você e x p u n h a determ in a d as idéias e o P artid o o c o m b a tia du ra m e n te , até botava você p ara fora, mas, de certo m o d o , diria q u e até isso era p ro v a de que eles respei ta v a m os intelectuais. Até o fato de ex pulsar era sinal de que, p ara os PCs, o inte lectual tin h a um peso. Eu n ã o vejo isso no PT. A cho que o PT tr a b a lh a com seus intelectuais um p o uco co m o figuras de d estaq ue na sociedade. É o caso d o A n to nio C â n d id o , p o r exem plo. É ó tim o que o A nton io C â n d id o assine alg u m a coisa pelo PT. M a s que im portâ ncia , que influência têm as idéias de A n to n io C â n d id o n o partido? A cho que, infelizmente, m u ito pouca. O PT, p ara dizer co m clareza, valoriza p o u c o o tr a b a lh o dos intelectuais que estão filiados a o partido. Recente m ente, Lula c h a m o u A nto n io C â n d id o p ara o rg an iz ar um am p lo sem inário sobre socialismo. Pode ser o início de u m a autocrítica.
Várias vezes você externou a opinião de que a existência de intelectuais, no sentido pleno da expressão, dependia de uma sociedade civil forte, dinâmica. Nesse contexto, como é que você vê o papel do intelectual hoje? V o u me lim itar p articula rm ente a o Brasil. Vejo um fenôm eno m uito interessante — negativo, m a s interessante — o c o rre n d o n o Brasil, que é o d o esvaziam ento da dim ensão política da sociedade civil. E esse esvaziam ento real se tradu ziu m uito cla ram ente ta m b ém n u m esvaziamento conceituai. Gramsci tem um segundo m o m e nto de chegada no Brasil. Ele chega em m e ados dos a n o s 60, n à o é m u ito lido, não tem
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m uita influência. Em m eados dos an o s 70, G ram sci volta e tem en tã o u m a enorm e influência. Nesse m esm o m om ento, começa a surgir n o Brasil — certamente em g ran de p arte p o r influência de G ram sci — o uso generalizado da n o çã o de sociedade civil. Sociedade civil, notem bem, sempre entendida co m o um a coisa boa em c o n tra posição a um E stado ruim , o q u e naquele m o m e n to tinha sentido. Por quê? Porque to d o s os segm entos o rg an iz ad o s na sociedade civil, inclusive os p atro n a is, estavam se c o n t r a p o n d o naquele m o m e n to co ncreto à perm anência da d ita d u ra. Ademais “ sociedade civil” tinha um a c o n o ta ç ã o e n g ra çad a , era o co n trá rio de “ m ilita r” . A p artir daí, ac h o que se criou u m a falsa leitura de G ramsci, um a falsa leitura do c o n ceito, q u e te rm in o u servindo a o neoliberalism o. Q u e r dizer, tu d o o que vem da sociedade civil é b o m , tu d o que vem do E stado é ruim. O ra , a U D R é sociedade civil, a K lu-Klux-Klan é sociedade civil! E ntão, despolitizou-se o conceito de socie dade civil, qu e passou a ser o reino das O N G s , da solidariedade, do setorialismo: a ONCÎ que tra ta de criança e adolescente, a O N G que trata de baleia. E isso veio reforçar, c o m o eu já tinh a tido antes, o fim da g ran d e política. Acho que essa des politização, no sentido forte, da sociedade civil brasileira com plica m uito a ação dos intelectuais, po rq u e nos desvincula ex atam ente dos aparelhos de hegemonia aos quais estáva m o s ligados. Tem algo a ver ta m b ém com o que eu falei antes a respei to d o PT. O PT, em g ran d e m edida, está fazendo peq uena política, discutin do se e n tra ou n ã o no g o v ern o G aro tin h o ... Mí7s a grande política também se faz com o poder... Sim, n ão só se faz com o p o d er, c o m o estou a b s o lu ta m en te convencido de que a tarefa f u n d am e n tal de um p artid o político e, c o m o tal, d o PT, é a de to m a r o p o der, é chegar ao poder. A gora, chegar a o p o d er p a r a quê? A penas p a r a governar? M eu g ran d e m e d o é o de qu e a esquerda chegue ao p oder e, no esforço da g o ver nabilidade, ape nas governe a o rd em existente. Q u e interesse tem um p artid o que se pretende revolucionário, ainda que conceba a revolução através de reform as, que se pro p õ e a m u d a r a e s tru tu ra social do Brasil, que interesse tem esse p artid o em participar de um g overno que faça a gestão d o existente, mais ou menos co m o César M aia o faria, ou c o m o .Marcelo Allencar geriu? A sua concepção de democracia atribui um valor emancipatório a su
jeitos coletivos como partidos de massa, sindicatos, associações profis sionais, comitê de empresa e bairro etc. Como conciliar essa posição com a tendência crescente à burocratização e ao esvaziamento dessas organizações? Dito de outra maneira, essas organizações já não se tor naram rotineiras, no sentido conservador da expressão? .Vie lembrei aqui, claro, do Michels. N in g u ém leu aquele livro do .Michels, O s par tidos políticos, e n ã o to m o u um certo susto. Michels é elitista, reacionário , conser v ad or, m as é um caso de ciência social p articula r que temos que 1er. Eu n ão c o n c o r d o co m a idéia da lei de ferro da oligarquia de Michels, ou seja, a idéia de que n ão tem jeito: q u a lq u e r o rgan ização, m esm o qu e surja vo lun ta riam e n te , de baixo p ara cim a, term ina se b u ro c ra tiz a n d o , se olig arquizando. M a s esse é um risco real, que se ac entua e se to r n a quase inevitável em m o m e n to s de esvaziam ento da d im e n
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são política da sociedade civil. Q u a n d o se tem u m a sociedade civil m o bilizad a, ati va, participativa, esses riscos são menores. N o m o m e n to , é indiscutível que há um a crise da f o rm a sindicato, e n ã o só no Brasil, é u m a crise m undial. Por quê? P o rq ue m u d o u a fo rm a de ser da classe tr a b a lh a d o r a . N ã o só d im in u i o percentual d o o p e ra ria d o fabril na p o p u la ç ã o e c on om ic am ente ativa, co m o se criam form as m ú l tiplas, b as tan te diferenciadas de tra b a lh o . Um sujeito que tr a b a lh a em casa, com c o m p u ta d o r , ainda q u e gere mais-valia p ara alguém, não se sente identificado com u m t r a b a lh a d o r de m a ca cã o na linha de m o n ta g e m de um a fábrica de autom óveis. E ntão , é preciso repe nsar isso. A form a sindicato talvez te n h a que ser d rastica m en te m odificada. A meu ver, os sindicatos não p odem , p o r exem plo, rep rese ntar a p e nas os interesses dos tr a b a lh a d o re s em pregad os. O s sindicatos têm que e n c o n tra r u m a m aneira de represe ntar ta m b é m os interesses dos d esem pregados e dos nàoem pregados, dos que n ão têm acesso a organizações formais. Eu a c h o que to d a s essas questões devem ser levadas em co n ta q u a n d o a gente pensa esse processo de b u ro cratiza ção que ce rtam ente ocorreu. Sou inteiram ente solidário c o m a idéia de q ue os a vanços necessários p ara su pera r a o r d e m capitalista têm que ser realizados com a p r o f u n d a m e n to da d e m o cracia. Se algum a coisa eu m udasse naquele meu en saio de vinte anos atrás, “A d e m ocracia co m o valor universal” , acho que m u d a ria o título p a r a “ A d e m o c ra tiz a ção c o m o valor un iversal” . Por quê? P o rq u e aquele título p ode d a r a falsa im pres são de que nós d efendem os a f o rm a institucional concreta que a dem ocracia assu me em ca d a m o m e n to concreto , o u, mais p recisam ente, a f o rm a que o processo de dem o cratiza ção assum e em ca d a m o m e n to concreto. T em os um c o m p ro m isso com o processo de d em ocratização, de socialização d o poder, e n ão necessariamente com a institucionalidade que a expressa em d a d o m o m e n to concreto. A cho que a de mocracia, p ara corresponder efetivamente a um a sociedade não-capitalista, para c o r re sp onde r a um a sociedade que pretende su pe ra r o a n ta g o n is m o de classe, tem que ser u m a dem ocracia m u ito mais p articipativa d o que a atual. T em q u e envolver a particip ação de sujeitos coletivos m u ito mais nu m e ro so s e a m p lo s q u e os atuais. E isso tem que ter u m a expressão institucional. T o rn o u -se óbvio que n ã o há socialis m o sem dem ocracia. Isso hoje nem o PSTU nega. M a s n ã o está tã o claro p ara a esquerd a que, sem socialismo, ta m b é m n ã o há dem ocracia, q u e r dizer, a d e m o c r a cia plena, enten d id a c o m o a m p la participação, c o m o socialização do poder. N ã o é casual que nosso querido Rousseau tenha dito o seguinte; ninguém deve ser tã o pobre que seja o b rig ad o a se vender — ou seja, a se to r n a r tr a b a lh a d o r assalariado — , isso é incompatível com a dem ocracia. O que R o usseau n os p ro p õ e n o Contrato social é sim ilar ao c o m u n ism o , é u m a sociedade que te m governo m as n ã o tem Es ta d o , n ã o tem um a instituição desligada da sociedade, n ão tem diferenças de clas se. O gov erno é o com issário do povo, aliás u m a bela palavra, que os bolcheviques usaram n o início da Revolução. E ntão, ac ho que essa plena dem ocracia rousseauniana só é possível com o c o m u n ism o , tal c o m o M a r x o concebeu. D ito isso, insis to em que é preciso d a r ã dem o crac ia form as institucionais. A dem ocracia n ã o é apenas a participação, a dem ocracia ta m b é m se expressa em form as institucionais. E, notem bem , a form a é real. A d em ocracia que aí está é form al, m as a form a é real, q u er dizer, a fo rm a n ão é u m a a b stra çã o , a form a é um m o m e n to da realida
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de, é u m a d eterm in a çã o reflexiva do co n te ú d o , p ara usar u m a expressão de Hegel. E ntão, é claro que a dem ocracia tem qu e ter form a. M a s form as que se a p r o f u n d a m , que se ren ovam . O valor universal n ão é esta específica form a de d e m o c r a cia, m as sim o processo de d e m o cratiza ção , que se expressa na socialização d a p a r ticipação política e na socialização d o poder.
Como você caracterizaria a sua relação com a religião e a fé? M in h a família n ã o é um a família particu la rm en te religiosa. .Meu pai era ateu. D i zia ser agnóstico, m as era ateu. E m inha m ãe é um a kardecista m u ito p o u c o o r t o d o x a , eu diria. Q u a n d o eu tin ha 12 ou 13 anos, eu estud ava, co n tra o parecer do m eu pai, n u m colégio de irm ãos m aristas. H oje vejo claram e n te que, p a r a c h a te ar meu pai, eu fiquei meio catolicão. C o m u n g a v a , confessava. Isso coincidiu ta m b é m co m o m o m e n to em que eu li o Manifesto, q u a n d o percebi q u e era mais fácil me a firm a r c o n tra meu pai co m o co m u n ista d o que co m o católico. E ntão, a b a n d o n ei o catolicism o e a religião em geral. L ukács tem um a expressão m u ito boa. Ele fala em “ca recim ento religioso” , algo que expressa u m a necessidade de transcendên cia diante d o fato de n ão se e n c o n tra r sentido real na vida efetiva, na vida im anente. Eu, sinceram ente, sou desti tuído de ca recim ento religioso. E n te ndo que as pessoas o te n h am . M a r x dá à reli gião um tr a ta m e n to que é c o rre to no essencial — a religião é um a form a de aliena çã o — , mas, nessa form a de alienação, passam às vezes exigências que são exigên cias reais, exigências básicas. As pessoas só le m bram que M a r x disse que a religião é o óp io d o p ovo. M a s, na m esm a frase, ele diz que “ a religião é o grito da criatura o p r im id a ” — ou algo sem elhante — e en tão , vírgula, “é o ópio do p o v o ” . Eu ac ho que se m anifesta na religião u m a d e m a n d a de justiça m u ito forte, algo que deve m os, nós m arxistas, não-religiosos, levar em co n ta co m o alg u m a coisa m u ito p o si tiva para a tra n sfo rm a ç ã o d o m u n d o .
Como você se situa em relação aos problemas de uma “mudança de paradigm a” da filosofia, de uma filosofia “pós-metafísica” calcada na linguagem? C o m o m arxista, evidentem ente acho que a filosofia, em princípio, não pode ser cal ca d a na linguagem, n ã o p ode p artir da linguagem, tem que p artir d o tra b a lh o , das interações que o tr a b a lh o p rovo ca e das form as superiores de atividade h u m a n a , c om o , p o r exem plo, a práxis. H a b e rm a s c h a m o u a aten ç ão para a distinção entre agir instrum ental e agir co m un ica tiv o, entre tra b a lh o e interação, m as eu ac ho que isso já está em .Marx, está no m a rx ism o , e sem o dualism o p ro b lem átic o de H a bermas. C e rtam e n te , q u a n d o .Marx fala em força p ro d u tiv a , está fala nd o em agir instrum ental; q u a n d o fala em relações de p r o d u ç ã o , que é o m o d o pelo qual os h o mens se articulam entre si para desenvolver as forças p ro d u tiv a s e d o m in a r a n a t u reza, está falando em interação. M a s a idéia de que é preciso substituir o p a ra d ig m a d o tra b a lh o ou da p ro d u ç ã o pelo p ara d ig m a da linguagem ou da co m u n ica çã o me parece um a idéia equ iv ocada. Eu diria o seguinte: os h o m e n s falam po rq u e tr a b a lh a ra m , p o rq u e precisaram c o la b o r a r no p rocesso de trab a lh o . E n tã o , n ã o me parece que, o ntolo gica m ente, a linguagem deva ser co locada antes d o tra b a lh o . A
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form a básica de ser d o ho m e m , a form a pela qual o h o m e m se faz ho m e m , é no processo de tr a b a lh o , é no seu m etab o lism o com a n ature za , q u a n d o surge o agir teleológico, que só existe no ser social. Lukács tem um a categoria m u ito interes sante, que é a categoria da prioridade ontológica. Ele diz o seguinte: um a coisa pode existir sem que a o u tra exista, o ser p ode existir sem a consciência; mas a consciên cia n ão p ode existir sem o ser. Dizer que o ser tem prio rid ad e ontológica sobre a consciência n ã o significa dizer que há prio rid ad e lógica ou axiológica, n ã o q u er d i zer que o ser é m elhor que a consciência, n ã o q u er dizer que o tr a b a lh o é m elhor do que a linguagem. C o m isso, Lukács q u e r dizer que, o n tologicam ente, a p rio ri da d e é d o tra b a lh o , da aç ão teleológica q u e interfere na aç ão causal e modifica a ação causal. Nesse sentido, n ã o partilh o dessa inversão de pa ra d ig m a , e m b o ra re conheça a im p o rtâ n cia , insisto nisso, de es tu d ar m e lh o r e tr a b a lh a r m e lh o r a lin guagem . Um te m a, aliás, que n ã o foi m u ito desenvolvido pelo m a rx ism o , ao m e nos pelo m a rx ism o clássico.
Você utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do fu turo da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia? C o m o eu disse antes a vocês, o se g undo livro sério que li na m inha vida foi D o
socialismo utópico ao socialismo científico. E n tã o, nós m arx istas, em geral, não d a m o s à palavra “ u t o p ia ” u m sentido positivo. D a m o s à p alavra “ u t o p i a ” o sen tid o de u m a coisa generosa, m as ine.xeqüível, irrealizável. N esse sentido, n ã o me identifico co m a palavra “ u to p i a ” , não sou b lochiano. M a s que p rojeto te n h o de sociedade? A cho qu e alg u m a coisa disso já ficou mais ou m e n o s clara nas m inhas colocações anteriores. C o n tin u o co m u n ista , fazendo evidentem ente u m a distinção entre o c o m u n ism o c o m o p ro jeto e o c h a m a d o c o m u n ism o histórico, que com eça c o m a revolução bolchevique de 1917, universaliza-se co m a cria çã o da Terceira In ternacional e co m a cria çã o em cada país de u m a seção — brasileira, italiana, japonesa — da T erceira In ternac iona l, e leva à con so lid a ção d o desp o tism o stalinista. C o m esse c o m u n ism o , n e n h u m de nós é m a lu co de se identificar mais, e m b o r a eu te n h a u m a id e ntifica çã o m u ito forte c o m a re v o lu ç ã o bolc h ev iq u e de 1917. M a s ac h o que u m a coisa é o p rojeto tr a n s f o r m a d o r q u e aquela revolução desencadeo u, o u tr a coisa são as form as co n cretas q u e o E stado soviético assum iu, s o b retu d o a p artir d o final dos an o s 20, q u a n d o Stalin rom p e co m B ukharin e com a N E P [N ova Política E conôm ica] e estabelece a política d a indu strialização a c e lerada e da coletivização forçada. A p a r tir daí, instaura-se realm ente u m d e s p o tismo. Eu n ã o hesitaria em utilizar o te rm o “ to ta litá r io ” , e m b o ra ele tenha o ri gens n ão m u ito puras, na p olitologia am erica na. .Mas eu usaria o te rm o “ to ta litá r i o ” no sentido de que o E sta d o absorveu a sociedade civil, utilizou os o rg an is m os da sociedade civil c o m o in stru m e n to da a t u a ç ã o d o E sta d o -p a rtid o . E ntão, eu diria q u e esse c o m u n ism o histórico é u m a coisa que, felizmente p a r a nós c o m unistas, desapa re ceu d o h o rizonte. N ã o considero a C h in a u m país c o m unista . A ch o que o c o m u n is m o é o p ro jeto de u m a n o v a sociedade, de um a sociedade igualitária, p articipativa e p r o fu n d a m e n te dem o crática . D iria que u m a coisa — en tre m u itas o u tr a s — que devem os ce rtam e n te rever no m a rx is m o é a te oria d o fim d o E stado, se ela for enten d id a c o m o o fim d o gov ern o , c o m o o d esap a re ci
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m e n to de q u a lq u e r ripo de governo. Essa teoria está m u ito presente em L.ênin, que insiste em que o E stado se extingue a o longo da fase da d ita d u ra d o p roletariado. Acho que essa idéia de que o E stado vai se extingu ir levou a que n â o se discutisse qual é a form a d o E stado no socialismo. Para q u e discutir as form as d o E stado se ele vai desaparecer.' E ntão, ac ho que a idéia d o d esap a re cim en to d o E stado deve ser enten d id a a p e n as c o m o um a idéia reg u la d o ra , no sen tido k a n tia n o , c o m o o e m p e n h o p ara que haja cada vez m enos E stado, mas sem que ele d esapareça c o m pletam ente. H oje, q u a n d o dizem os que so m o s co m u n ista s, que lu ta m o s pelo c o m u n ism o , ac ho que devem os ta m b é m definir claram e n te o seguinte: qual vai ser a form a política d o com u n ism o ? Para m im , a fo rm a política é o E stado de direi to, com alta p articipa çã o p o p u la r, com institutos de dem ocracia de base corrig in d o as deform ações da representação. M a s seguram ente é um E stado de D ireito que tem instituições g a ra n tid a s p o r um a C o nstituição, n a tu ra lm e n te reform ável. Você pod eria me pergun tar: mas o c o m u n ism o será o fim do m e rc ado, a estatização de to d o s os meios de p ro d u ç ã o ? Eu diria que não. Estou convencido hoje de que algo de m e rc ad o p o d erá existir d epois d o desap a re cim en to d o capitalism o — afinal, o m e rc a d o é um a fo rm a de interação que antecedeu o capitalism o. U ma coisa é a generalização d a s relações m ercantis, o u tr a coisa é a existência de elem entos de m e rc ad o s u b o r d in a d o s a um c ontrole social. N ã o estou p r o p o n d o um a ec onom ia social de m e rc ad o , não sou social-dem ocrata alem ão. M a s penso um socialismo em que há m e rc ad o , e cm qu e p od e haver um p luralism o de form as de p r o p rie d a de. Pode-se ter p r o p rie d ad e s realm ente estatais — em alguns casos, isso é neces sário — , pode-se te r p ro p rie d ad e s c o operativas, e pode-se até ter p ro p rie d a d e p ri v a d a , em algu ns setores. O b o te co d a esq u in a n ã o precisa scr e s ta tiz a d o , táxi ta m p o u c o , um a p equ e na em presa p o d e c o n tin u a r p r o p rie d a d e privada. O que você acha da teoria da derivação do Estado? D o derivacionism o? N ã o é um a teoria que ten h a me a tra íd o m uito. A cho que o E stado tem um a a u to n o m ia relativa m u ito g rande, e é um pouco difícil nós definir m os tod o s os m o vim ento s d o E stado a p artir da lógica d o capital. Eu até diria o seguinte: freqüentem ente há m ov im en to s do E stado que são co n trá rio s ã lógica do capital. Por quê? P orque o E stado n ão é um in stru m e n to na m ã o da classe d o m i nante. O E stado capitalista n ã o é mais — se é q u e algum a vez o foi — o com itê executivo da burguesia. H á um a definição de P oulantzas que me parece m uito boa: o E stado é a c o n d e n sa ção material de u m a correlação de forças entre classes e fra ções de classes, com hegem onia de um a delas. Eu diria que é u m a definição tã o boa que ac ho que vale ta m b é m p a r a o E stado socialista que im agino. E n q u a n to no Es ta d o capitalista há co rrelação de forças com a hegem onia seja do capital financei ro, c o m o agora, seja do capital industrial, c o m o há algum te m p o atrá s, o E stado socialista é um a correlação de forças em que há hegem onia das classes tr a b a lh a d o ras. C laro que há vários m o vim ento s d o E stado que são es tru tu ra lm e n te dedutíveis da lógica d o capital. O E stado passou a intervir na ec o n o m ia em grand e p arte p o r que a lógica da a c u m u la çã o o exigiu. O s franceses até cria ra m — os soviéticos t a m bém, mas os franceses com mais sofisticação — a teoria do capitalism o m onopolista de Estado. Q ue, em d a d o m o m e n to , me fascinou um p o u co pelo seu rigo r lógico: o
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E stado intervém p o rq u e está c a in d o a ta x a de lucro, o E stado intervém co m ativi dades não-lucrativas para repassar mais-valia para o capital etc. A cho que isso explica coisas, m as n ã o ac ho que explique o f u n cio n a m en to global d o Estado. O Estado tem sua lógica p ró p ria e essa lógica n ã o está ligada à lógica d o capital apenas, mas sim à lógica d a luta de classes. Se se quiser deduzir de algum lugar a aç ão d o E sta d o , esse lugar é a luta de classes, que é u m fen ô m e n o fun d am e n tal na explicação d o social. Sou inteiram ente c o n tra a idéia da d esap a riç ão da luta de classes, o u a idéia de q u e a luta de classes se to r n o u um conflito entre o u tro s. M e lem bro do W effort, d a n d o entrevista antes de ir p a ra os E stados U nidos, dizendo assim: “O conflito c a p ita l-trab alh o n ão é mais o conflito central, é um conflito entre o u t r o s ” . N ã o , acho que é o conflito central. N ã o é o único conflito, n ã o posso explicar tu d o a partir dele. N ã o posso explicar a Nona de Beethoven só a partir d o conflito de classe. M a s seguram ente vou ter que usar o conflito de classe p ara entender a Nona de Beethoven: o c o n te x to histórico concreto, o que a visão d o m u n d o da burguesia revolucionária representava naquela época, de que m o d o essa visão do m u n d o pôde se exp ressar m a teria lm e nte nos m aravilhosos sons daquela sinfonia.
Mas essa concepção de Estado que você está defendendo é também uma crítica aos limites da concepção que M arx tinha do Estado... Limites históricos. Escrevi um tra b a lh o , c h a m a d o “A dualid ad e de p o d e r e s” , que agora está no livro Marxismo e política, em que tento m ostrar isso. A cho que, qu an d o .Marx escreveu O manifesto comunista, d eparou-se c o m um tipo de E stado que era realm ente m u ito restrito, n o sentido de que n ã o era permeável ã m aioria e s m ag a d o ra d a sociedade. O n d e havia Estados absolutistas, isso era óbvio. .Mas, m esm o o n d e havia E stados liberais ou semiliberais, co m o na Inglaterra e na F rança, havia vo to censitário. Eu brin co sem pre que o p a r la m e n to era o soviete da burguesia, r ep rese n tan d o só os p roprie tá rios. E só vai haver sufrágio universal no século XX . E n tã o , o E stad o era restrito, efetivam ente. A cho que a idéia de M a r x de que o Es ta d o usa apenas a coerção, de que to d o E stado é u m a d ita d u ra — isso n ã o está no Manifesto, m as está um p o u co depois — , de que o E stado é um com itê executivo da burguesia, essa idéia co rresp o n d e mais o u m enos àquele m o m e n to histórico. E digo “ mais ou m e n o s ” porque, três anos depois do Manifesto, no Dezoito Brumário, M a r x já vai ter um a o u tr a teoria, bem mais am pla, de Estado, em que o E stado tem a u to n o m ia relativa em relação à burguesia. O E stado b o n ap a rtista não é um c o m i tê e.xecutivo da burguesia. O que eu acho é que o E stado m u d o u , a nature za do E stado capitalista m u d o u , mas sem deix ar de ser capitalista. Eu não gosto d a q u e les m arxistas que dizem: “ A n ature za , a essência d o capitalism o n ão m u d o u ” . Eu n ão sou platônico. C o m o se houvesse o m u n d o das idéias pu ras, das essências, que n ão m u d a nunca. A cho qu e, q u a n d o m u d a m as aparências, algum a coisa da essên cia m u d o u ta m b ém . Eu diria assim: o E stado capitalista, em últim a instância, re p resenta os interesses d o capital, assegura a divisão da sociedade em classes, asse gu ra a p ro p rie d a d e privada. M a s o m o v im e n to c o n c re to d o E sta d o tem que ser explicado a p a rtir do fato de que ele se am p lio u , de que a sociedade civil, ou seja, a au to-organização da sociedade, inclusive das classes subalternas, tem influência clara nas relações de pod er, já que a sociedade civil é um m o m e n to d o Estado. E o Esta-
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d o não representa mais ape nas os interesses das ciasses d om ina n te s. Se é u m E sta d o que busca a legitimação, se é um E stado lib eral-dem ocrático, ele tem evidente mente de levar em co n ta d e m a n d a s que prov êm de setores que não são os das clas ses dom ina nte s. E a c h o que essa am plia çã o d a co n c ep ç ão m arx ista d o E stado é a g ran d e co n trib u içã o de Gramsci à teoria política.
Você diria que o marxismo e o movim ento operário demoraram para compreender essa mudança do Estado? A cho q u e sim. S o bre tud o p o rq u e, em d a d o m o m e n to , to rn o u -se hegem ônico, no interior d o m o v im en to , o m a rx ism o soviético. E Lênin d eparo u-se co m um E stado que era restritíssim o. O czarism o podia ser claram e n te pen sad o co m as categorias d o Manifesto. Engels, p o u co antes de m orre r, escreveu um te x to b rilhante, que é o “ p refác io ” a um a nova edição da Luta de classes na França, em que ele claram ente a p o n ta p a r a um a o u tra co n c ep ç ão de E stado. Ele diz ali q u e o E stado é fru to de um c o n tra to entre o príncipe e o povo e a p o n ta p ara um o u tr o tipo de revolução. D esgraçadam en te, m o rre u logo depois. M a s, na Segunda Internacional, havia in dicações n o sentido de que a teoria d o E stado iria ser revista. C la ro que Bernstein queria rever tu d o , queria jogar fora tudo. N ã o é o caso. .Mas a c ho que há em Rosa, em Kautsky, m ovim entos nessa direção. O bolchevismo, a p artir da vitória da revo lução russa, foi a p re se n ta d o c o m o “ o ” m a rx ism o d o nosso tem po. Lênin virou o “ M a rx d o nosso t e m p o ” , e criou-se essa coisa a b s u rd a que é o marxismo-leninismo. Você pega um livro co m o O Estado e a Revolução, que é um a boa tese de mestrado, p o rq u e Lênin reuniu toda s as citações sobre E stado em M a r x e Engels, e você não en c o n tra essa d o “ p refác io” de Engels. Q u a n d o M a rx , o velho M a r x , diz em d a d o m o m e n to que, o n d e n ão ho uver um a bu rocracia forte, é possível conceber que u m a vitória eleitoral leve ao socialismo através do parla m en to , Lênin retruca: m as é p o r que na época não havia burocracia, m as ag o ra já há, en tã o n ã o pode ser assim, tem que ser na p o r ra d a , na violência etc. E ntão, o p a ra d ig m a de te oria d o E stado e da revolução de Lênin — e eu digo com sinceridade, estava correto para a Rússia, ta n to que ele to m o u o poder; se a p rova da existência d o pu d im era com ê-lo, ele com eu o pu d im — generalizou-se p a r a situações em qu e evidentem ente o E stado já não era m ais c o m o aque le E sta d o russo, nem m e sm o c o m o o e u r o p e u da é p o c a do
Manifesto. Prov ocativ am ente, c o s tu m o dizer que a essência d o m é to d o de M a r x é o revi sionismo. O que é o m é to d o de M a rx ? É a fidelidade ao m o v im en to d o real. O que é o real? U san d o a expressão d o Lukács, é o jo rra r incessante d o novo. E ntã o , se não renovo m inhas categorias, se não as reviso para pensar o real em constante devir, sou infiel ao m a rx ism o . Seria a b s u rd o im aginar que o m u n d o é igualzinho ao que o M a rx viu. H á u m a o u tra frase boa d o Lukács no m esm o sentido: p o d em o s a b a n d o n a r afirm ações co ncretas de M a r x , n o limite, todas, e serm os o r to d o x a m e n te m arxistas, se form os fiéis a o m é tod o. Isso é a b s u rd o , to d a s é impossível, Lukács disse isso provocativam ente. M as, realm ente, há várias coisas que M a r x disse que não co rre sp o n d e m mais ao real. Para enten der o capitalism o de hoje, você tem que passar necessariam ente pelo Capital de iVIarx. M a s, se ficar só no Capital, n ão é possível en ten d e r o capitalism o de hoje.
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Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos co mo riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em lar ga escala e alienação cultural em massa. Como você vê tais problemas? C o m o um velho m a rxista, vejo-os c o m o resultados d o capitalism o. A g o ra , M a r x n ã o viu u m a coisa — entre as m uitas que ele n ã o viu — , que é a possibilidade real e co nc reta de que as forças p ro d u tiv a s se to rn e m forças destrutivas, que é a g rande q u estão q u e os ecologistas co locaram . H á em M a rx , e so b re tu d o nos bolcheviques, em Lênin, T ro tsk y e nos o u tros, até em G ram sci, a idéia d o p ro d u tiv ism o , d o p e r m an en te desenvolvim ento das forças produtivas. C o m o se isso fosse possível, c o m o se a n atu re za fosse inesgotável. H oje nós sabem os que não é. E ntão, esse é o u tro p o n to cm que tem os de repensar o co m u n ism o . Por q u e n ã o pensar um co m u n is m o c o m crescim ento zero? A cho q u e isso é u m a possibilidade real. Se a h u m a n id a de hoje distribuir bem o que p ro d u z , vai haver o suficiente p a r a to dos. Será que é preciso que to d o m u n d o ten h a três carros, q u a tro geladeiras, cinco televisões?
Cinco filhos? Sim, crescim ento zero inclusive p opulacional. M a r x n ão afirm ou isso, m as deixou mais o u m enos implícita a idéia de qu e c o m u n ism o seria o d e s la n c h a m e n to radical do desenvolvim ento das forças pro d u tiv a s, n ã o haveria mais n e n h u m a barreira a esse desenvolvim ento. M a s há u m a barreira que é colo ca d a pelo limite ecológico.
Você diria que a alternativa “socialismo ou barbárie” se coloca hoje ainda? N ó s e s tam o s na b arb á rie . A b a r b á rie n ã o deve ser e n te n d id a co m o co lap so dos préd ios na cidade, co m o m a re m o to s, m a s co m o um processo p e rm a n en te de desa gregação social, de decadência, de degenerescência, que é o que estamos vendo. Q uem n ã o está a c o m p a n h a n d o o que está a c o n te ce n d o com a África? A África é a b a r b á rie, n o sentido de que 4 0 % das crianças nascem com Aids, há guerras civis p e r m a nentes, desagregação d o E stado, f o rm a ç ã o de cleptocracias, de poderes a b s o lu ta m ente co rru p to s. Por que isso aconteceu? A África se organizava trib alm ente, co m form as evidentem ente pré-capitalistas, pré-feudais. C hegou lá o colonialism o, num m o m e n to em q u e m a té ria -p rim a b a r a ta interessava ao capitalism o , d e s a r ru m o u aq u ilo tu d o , criou aqueles países que n ão existem, que não têm n a d a a ver com a história das etnias, e, de repente, a África n ã o interessa mais, n ã o tem condições de participar da ciranda financeira, e largaram para lá. A cho que isso é barbárie. C o m o são barb árie, no m u n d o desenvolvido, as form as de violência crescente nas g r a n des cidades, a intensificação da alienação, a pasteurização, o e m b ru tecim en to cul tural etc. E stam os dian te da “ banaliz aç ão d o m a l” , que dissimula a barbárie.
No que você mudou? De algumas coisas você já falou, de algumas m u danças nas suas concepções, e você destacou a importância do método de M arx como um revisionismo. No que você m udou realmente? É difícil p ara nós m esm os avaliar e x a ta m e n te aquilo em que m u d a m o s. N ã o gosto m u ito de reler m in has coisas. F reqüentem ente, eu ac hava que era bo m , vou 1er e n ã o gosto. S eguram ente eu mudei a m in h a conc epç ão de política cultural. Fui m u i
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to influenciado p o r u m te x to de Lukács que se ch a m a v a assim: “ Franz Kafka ou T h o m a s M a n n ? ” . Então, eu tinha sempre um a preocupação: “ Fulano ou Beltrano?” , “ Visconti o u Fellini?” , “ G raciliano R a m o s ou Clarice L ispector?” . N o te m p o em que eu fazia crítica literária, isso era terrível. Essa é um a coisa em que eu mudei. H oje p enso que é preciso se abrir, no te rren o da cultura, p a r a a plu ralid ad e das manifestações culturais. Isso n ã o significa, evidentem ente, que a gente perca a ca pacidade de exercer um a crítica ideológica d aquilo que nos parece equ iv ocado, ou que leva a posições q u e n ão são corretas. A cho que isso, inclusive, vale p ara a arte. Acho que há manifestações artísticas que expressam visões d o m u n d o equivocadas. M a s p o r que n ão Kafka e T h o m a s M a n n ? M ud e i ta m b é m claram e n te em m in h a avaliação de Lenin. Lênin, p ara mim , era seguramente o terceiro clássico do m arxism o. O que Lênin dizia valia tanto, tinha ta n ta justeza, q u a n to o que diziam M a r x e Engels. N ã o é e.ssa a m inha posição hoje. Lênin é um revolucionário notável, indiscutivelmente, e um pensador brilhante. .Acho que Lênin tem reflexões im portantes sobre vários temas. O conceito de via prussiana, p o r exem plo, q u e ele criou p ara p ensar a m o d e rn izaç ão da Rússia, é um conceito que m e parece ex tre m a m e n te o p e ra tó rio para p ensar um caso c o m o o do Brasil. .Acho que a te oria d o im perialism o, e m b o ra ten h a sido fo rm u lad a de um a m aneira que n ã o co rrespon deu inteiram ente à realidade — “ capitalism o em p u tr e f a ç ã o ” etc. — , teve o m érito de c h a m a r a atenç ão p ara fenôm enos de ac u m u la ç ã o in te rn acio nal d o capital, p ara um a nova etapa d o capitalism o, na qual e.stamos ain d a hoje. .Mas ac ho que Lênin é a n a c rô n ic o na sua teoria do E stado e da revolução, na m edi da em que ele generalizou, c o m o categorias m arx istas válidas em to d a s as c o n d i ções históricas concretas, algum as coisas válidas apenas p ara a realidade russa, algo que Rosa L u x e m b u rg o , na época, já tinha visto. H oje, n ã o m e considero mais um leninista. Sou .seguramente um a pessoa que sim patiza com a ob ra de Lênin, mas que ta m b é m to m a distância em relação a ela. .Mudei ta m b é m na m in h a avaliação de vários o u tro s au to re s m arxistas que eu tra ta v a um p o u c o rap id a m en te, c o m o o “ r e n e g a d o ” Kautsky, o “ revisionista” Bernstein, o u m esm o essa po lonesa sim pática que é Rosa L ux em b u rg o . O u seja, passei a valorizar mais o pluralism o da refle.xão n o interior d o m arx ism o. Nesse sentido, n ã o ac h o que exista um “g r a m sc ism o ” . Gram sci ta m b é m diz coisas com qu e n ão co n c o rd o . N o s textos sobre “ a m erica n ism o e f o rd is m o ” , p o r exem plo, Gram sci fez u m a avaliação justíssima a respeito d o capitalism o n u m a de suas n o vas etapas, mas ele tem um a avaliação dos processos de racion alização do t r a b a lho que é no m ín im o p ro blem ática. N ã o é casual que n ã o haja em Gramsci o c o n ceito de tra b a lh o alienado. Essa categoria m a rx ia n a não aparece em G ram sci, ele valoriza p ositivam ente a rac ionalização d o tr a b a lh o , acha que o socialismo deve usá-la ta m b ém . Lênin ta m b é m pensava assim. E isso é a expressão, a meu ver, de um c o m u n ism o produtivista, de um c o m u n ism o de países que ain d a têm que fazer um longo percurso de desenvolvim ento material p ara p o d e r efetivam ente im p la n tar ou desenvolver o c o m unism o.
Você participa ativamente do site “Gramsci e o Brasil”, que tem por objetivo divulgara obra de Gramsci, bem como reflexões em tom o dela.
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por meio da internet. Como você avalia os resultados dessa iniciativa? Como você vê hoje novos meios de comunicação e organização como a internet? A cho que o nosso site é u m a p rova de que se p o de usar bem a internet. C o m o to d o m eio de com u nicação , ac ho que, até certo p o n to , ela é n eutra ideologicamente. N ã o sou a d o rn ia n o , no sentido de en ten d e r que o meio em si é problem ático. N ã o vejo p ro b lem a n e n h u m em ouvir a Nona Sinfonia no rádio. A ch o q u e a internet pode ser u m a coisa bem ou mal usada. O problem a é a p ropriedade privada e m onopolista dos meios de com unica çã o . Felizmente, pelo m enos p o r e n q u a n to , a internet n ão tem esse p rob lem a. T a n t o que estam os lá com o nosso site. N ã o p o d ería m o s fazer u m p ro g ra m a n o h o r á r io nobre da T V G lo b o sobre G ram sci, m as p o d e m o s p e n d u r a r o site na internet. É p ou co, m as é algo. E é um sucesso, o nosso site. Recebe, em m édia, de três a q u a t r o mil visitas p o r mês, tem de sete a dez mil páginas a b e r tas p o r mês. N ã o te m um dia que alguém n ã o ab ra . Q u a tr o mil pessoas se inscre veram p ara receber o boletim que a gente m a n d a , de dois em dois meses. A cho que é u m a prova, esse site, de c o m o se p o d e usar bem a internet. E, se vocês n ã o se in c o m o d a r e m , lá vai a p r o p a g a n d a : o endereço é <\v'\\'w.artnet.com.br/gramsci>.
Principais publicações: 1967 1972 198 0 1981
Literatura e humanismo (Rio de Janeiro: Paz e Terra); O estruturalismo e a miséria da razão (Rio de Janeiro: Paz e Terra); A democracia cotno valor universal (Salam andra: 1984); Gramsci: um estudo sobre o seu pensamento político (Rio de Ja n eiro : D P & A , 1999);
1985
Dualidade de poderes: Estado, revolução e democracia na teoria marxista (São Paulo: Brasiliense);
199 0 1992 1996 2000
Cultura e sociedade no Brasil (Belo Fíorizonte: O ficina d o Livro); Democracia e socialismo (São Paulo: C-ortez); Marxismo e política (São Paulo: Cortez); Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo (São Paulo: Cortez).
Bibliografia de referência da entrevista: Bloch. The principie o f hope, C a m b rid g e, M I T Press. Engels, F. D o socialismo utópico ao socialismo científico, Pespectiva. ___________ . Luta de classes na França, Obras escolhidas de Marx e Engels, Alfa üm ega. G ram sci, A. Concepção dialética da história. Civilização Brasileira. ___________ . Cadernos do cárcere. Civilização Brasileira. Flaberm as, J. Técnica e ciência como ideologia, Lisboa: Edições 70. ___________ . Teoria de la acción comunicativa, .VIadri: C a ted ra. Hegel, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Vozes.
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Ciência de la Lógica, Buenos Aires, Solar. H o b s b a w n , E. (org.). História do marxismo. Paz e T erra. H o rk h e im e r, M . e A d o rn o , T h. Dialética do esclarecimento, Jorge Z a h a r Editores. H o rk h e im e r, \1 . “ T eoria tradicional e te oria crítica” , coleção O s Pensadores, Abril C ultural. ___________ . Eclipse da razão. L ab o r Editorial. Kurz, R. ( ) colapso da modernização. Paz e T erra. Lênin, V. I. O Estado e a revolução. Obras escolhidas, Avante!. Lukács, G. História e consciência de classe, Elfos. ___________ . Realismo crítico hoje. C o o r d e n a d a . ___________ . A falsa e verdadeira ontologia de Hegel, Livraria Editora Ciências H u m anas. _. Os princípios ontológicos fundamentais de Marx, Livraria Editora Ciências H u m a n a s. ______ . Introdução a uma estética marxista. Civilização Brasileira. ______ . Marxismo e teoria da literatura. Civilização Brasileira. M a rx , K. O capital, coleção O s E conom istas, Abril Cultural. M a rx , K. e Engels, F. Manifesto comunista. Paz e T erra. Michels, R. Os partidos políticos. Senzala. R ousseau, J.-J. Do Contrato Social, coleção O s P ensadores, Abril C ultural. Sartre, J.-P. Crítica de la razón dialéctica, Buenos Aires: Losada.
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B a lth a z a r B arb o sa F ilho; “ A filosofia n o B rasil, p o r e n q u a n to , está a u sen te e m u ito d is ta n te d o d e b a te p ú b lic o . Isso se deve em p a rte ta m b é m à e s p a n to sa ig n o r,ín c ia na q u a l se faz o d e b a te p ú b lico ho je n o B rasil".
B A L T H A Z A R BARBOSA F IL H O (1943)
B althazar B arbosa Filho nasceu ein 1943, em Porto Alegre (RS). G ra d u o u -se em D ireito na U niversidade Federal d o Rio G ra n d e do Sul e obteve o g rau de mes tre e o titulo de d o u t o r em Filosofia pela Universidade Católica de Louvain (Bél gica). Foi professor d a Universidade de São Paulo e da U niversidade Estadual de C a m p in a s. É professor do D e p a rta m e n to de Filosofia da UFRGS. Esta entrevista foi realizada em fevereiro de 2000.
Goethe dividiu a vida de seu personagem W ilhelm Meister em dois romances. O s an o s de ap re n d iz a d o e O s anos de peregrinação. N o pri meiro, o foco está posto na formação do indivíduo, enquanto o segun do desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria este um bom mote para que o senhor nos falasse de sua fonnação intelectual? U m a das razões que me levaram para a Faculdade de Direito foi o fato de eu p e r tencer a um a família de juristas — o meu pai era jurista. M as, ao m esm o tem po , sempre tive um interesse p o r filosofia, desde o meu curso de segundo grau. C o m o tive um a forte formação religiosa, católica, interessava-me m uito p o r algumas facetas d a teologia, em especial d o es tu d o de S. T o m á s de A q uino — lem bro-m e que, nes s a época. M a rc o s M ü lle r e eu fizemos um sem inário sobre a Suma de S. T om ás. Fui levando, então, paralelam ente a Faculdade de Direito e a Faculdade de Filosofia. T erminei o curso de D ireito no final de 1965, mas não term inei o curso de filosofia. Tive a oportunidade, naquela ocasião, de ir p ara a Universidade de Louvain e já havia o p ta d o — lá p o r volta dos meus vinte anos de idade — p o r fazer apenas filosofia. Procurei um local em que pudesse ter um a form a çã o mais a d e q u a d a do que aquela que pod eria ter aqui em P o rto Alegre.
Como foi o seu curso de graduação em filosofia em Porto Alegre? O curso dc g ra d u a ç ã o do Rio G ra n d e do Sul refletia a fo rm a çã o d o m in a n te de fi losofia no Brasil, que com eçou a existir a partir do final d o século passado. Esse cu rso co n tav a m ajo ritaria m en te com pessoas que po d eria m estar no direito e com pessoas provenientes da área religiosa, c o m o padres. H avia, no e n ta n to , algum as exceções que foram m u ito im portantes: fui a lu n o d o professor E rnani .Maria Fiori, que naquele te m p o já com eçava a se destacar co m o um p e n s a d o r independente; fui ta m b é m a lu n o do professor G erd Bornheim, que naquele te m p o voltava de um p e ríodo na A lem anha e nos apresentou Hegel; e, por último, fui aluno de Ernildo Stein, que foi quem me apresentou H eidegger pela prim eira vez. A fo rm a çã o f u n d a m e n tal que se tinha p o r aqui era essencialmente de proveniência medieval, em p a r tic u
B alth azar B arb o sa Filho
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lar S. T o m á s de A quino. O meu csrudo sistemático em filosofia com eçou com S. T om ás, depois, nos cursos da faculdade, comecei tam hém a me interessar por l.eibniz.
Qual a sua avaliação de E m ani Fiorif É a mais positiva possível. É a mais positiva p o rq u e ele foi um h o m e m cuja p aix ão pela filosofia conseguiu despertar m uito interesse não só entre estudantes que faziam filosofia, mas ta m b é m no meio cultural do Rio G ra n d e do Sul. G raças a o seu e m p en h o , a filosofia passou a ser co n sid erad a co m o um a atividade que u m a menina ou u m rap a z poderia d e s em p e n h ar h o n r a d a m e n te , e n ã o ape nas co m o um bico. O professor Fiori foi o prim eiro filósofo profissional g aú c h o de regime de dedicação exclusiva à filosofia. .Além disso, fez um tra b a lh o rigoroso em filosofia.
Como foi a sua experiência na Universidade de Louvain? Saí de P o rto .Alegre com um p ro jeto m egaló m ano ; um estudo d o conceito de su b s tância em S. T o m á s de A q u ino, Leibniz e Hegel — o que revelava o g ra u de inge nuid a d e e de deficiência de fo rm a ç ã o que eu possuía naquele m o m e n to . Fui para L ouvain, u m a boa fac u ld ad e q u e se destac av a p rin c ip a lm e n te na áre a de f e n o m enologia, em que havia sólidos pesquisadores, e que ta m b é m com eçava a se des ta ca r na área de filosofia da linguagem. Em raz ão do meu interesse p o r Leibniz, fatalm ente fui 1er o livro de Bertrand Russell sobre esse au to r. Esse livro d esper tou-m e r a p id a m en te p ara a filosofia analítica; Russell, Frege e, so b retu d o , o pri meiro W ittgenstein d o Tractatus logico-philosophicus. A b an d o n e i os estudos que até então havia feito, inclusive o projeto m egalóm ano, e passei a co ncentrar os meus estudos basicam ente na o n tolog ia desenvolvida p o r Frege, Russell e Wittgenstein. D isso resultou a m in h a dissertação de m e strad o sobre a n o çã o de fo rm a lógica no Tractatus de W ittgenstein, em 1970. A pós a dissertação, continuei os estudos nes sa direção, mas, dessa vez, mais interessado pelo segundo W ittgenstein, em espe cial pelas Investigações filosóficas e os tem as que aí gravitavam . N a q u e la ocasião, isso significava essencialmente estudar textos em inglês, pois p raticam ente não havia estudos nessa área em língua alemã e m e n o s ain d a em língua francesa. Assim, fui p ara Leeds, na Inglaterra, tr a b a lh a r co m o professor Peter G each — um ó tim o fi lósofo. D epois, em 1971, passei um semestre em H eidelberg com o professor T u g en d h a t, que, naquele tem po, iniciava-se na filosofia analítica. Ele dava cursos so bre filosofia da linguagem , m as gaguejava em lógica. Era um desastre, p o rq u e in ú meras vezes com eçava a d e m o n s tr a r u m te o re m a, n ã o sabia levar adiante , e rec o r ria invariavelm ente a Erau [Andréa 1 Loparic, que fazia as c o n tin h as p ara ele. ■Mas, de meus a n o s de L ouvain, g u a r d o co m o m a rc an te meu c o n ta to c o m o profe ssor Jean L adriere. N ã o e nc ontrei, depois, n e n h u m filósofo c o m ta m a n h a acuidade, p ro fu n d id a d e e p en e traç ão . D evo ain d a dizer que ta m p o u c o encontrei, depois, ser h u m a n o mais íntegro e com pleto. O senhor poderia falar um pouco acerca de seu doutoramento sobre
'Wittgenstein, defendido na Universidade de Louvain e até hoje inédito? Por um desses equívocos históricos gigantescos, os neopositivistas de Viena filiaramse erro n e a m e n te ao Tractatus, e fizeram dele a sua referência fu n d am e n tal. Isso era
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p a r a d o x a l, p o rq u e o Tractatus é um livro de um a selvageria especulativa rara e os neopositivistas eram absolutam ente antimetafísicos — com o ta m b ém possuíam uma veemência igualmente rara (risos). N o e ntanto , achavain que W ittgenstein era o seu p recursor. Por o u tr a s razões ta m b é m , o neopositivism o foi um desastre — o que não retira os vários m éritos fu n dam entais que teve — , e o projeto inconsistente que eles fo rm u laram foi p o u c o a p ou co sen do a b a n d o n a d o . X o caso de W'ittgenstein, o a b a n d o n o foi feito p o r ele p ró p rio . Ele decidiu corrigir “ os graves e r r o s ” de filo sofia que havia co m etid o no Tractatus, o metafísico em especial. D u ra n te um vas to p eríodo de tem p o, passou a escrever algo que cu lm inou nas Investigações filo sóficas. Em prim eiro lugar, o que me fascinou nesse livro foi que, à prim eira vista, ele n ão tem antecedentes na história da filosofia. Fiquei desconfiado com isso, p o r q u e não acredito em gerações esp o n tân e as a p artir d o nada. Em segun do lugar, in teressavam -m e ta m b é m os p o n to s exatos em que W'ittgenstein p ro cu rav a evidenci a r quais eram os erros com etidos pelo Tractatus. E ele tinha a seguinte idéia (que n ã o era tota lm e n te extravagante): se a metafísica, na acepção clássica da palavra — a teoria d o ser enqu a n to ser — , é possível, então a sua boa form a é a do Tractatus. A gora, já que n ão deu certo, há algu m a coisa de e r r a d o com ela. As Investigações filosóficas, em parte, são um tra b a lh o dessa n atu re za , ou seja, refazem m inu c iosa mente os m ecanism os que nos levam aos desvarios metafísicos. Para isso, W ittgens tein utiliza um a das suas noções centrais, que é a de significação. E ntão o meu t r a b alho foi sobre a n o çã o de significação nas Investigações filosóficas. N a q u e la o c a sião, em 1972, c o m o a bibliografia so b re W ittgenstein era ain d a m u ito escassa, m esm o em língua inglesa, esse meu tra b a lh o tinha algum interesse. Ele deveria ter sido p u blicado n u m a coleção dirigida pelo professor Paul Ricoeur, que estava na banca d o m eu d o u to r a d o . M a s, em 1974, um filósofo c h a m a d o Peter H a c k e r p u blicou um livro m agistral sobre W ittgenstein, e tu d o aquilo que tinha de interes sante na m inha tese ele disse de m aneira m uito melhor, com mais precisão, com mais clareza e c o m mais pro fu n d id a d e.
Em seu artigo sobre o positivismo de 'Wittgenstein, o senhor escreveu: “Do T r a c t a tu s ao empiricismo lógico há, é certo, um abismo, mas o abismo é estreito, e o salto pareceu possível e inevitável. É esse salto que Wittgenstein arriscou, por volta de 1930, e cujo fracasso terminou por levá-lo à total transfiguração de seu pensamento. Ele deixou de respon der diferentemente às mesmas perguntas, e passou a interrogar diferen temente a lógica, a linguagem e o m undo”. Como seria essa continua ção esboçada pelo final do artigo, quer dizer, como o senhor vê o cha mado segundo Wittgenstein das Investigações? O período de 1929 a o qual me refiro é o p erío do no qual W'ittgenstein esteve mais p ró x im o d o positivismo. E nesse período que ele a b a n d o n a as teses fun dam entais do Tractatus, e a ac u sa ção mais co n stan te que faz a si m esm o, depois do a b a n d o no, é a seguinte: no Tractatus, ele preserva certas idéias a b s o lu ta m en te pré-concebidas a respeito de d eterm in a d o s pon tos. U ma vez aceitas essas idéias, o resto se guia im placavelmente. E essas idéias preconcebidas, segund o W ittgenstein, dizem respeito ao fu n cio n a m e n to da linguagem , p o r conseguinte, ao f u n cio n a m en to do
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p ensam ento. Segundo e!e, a filosofia privilegia um a única m aneira de pensar, em que nós p o d em o s determ ina r a dim ensão do verdadeiro e d o falso. M as, p a r a W itt genstein, n ã o é a p e n as assim que nós pensam os, pois nós p ensam os de m aneiras regradas. O nosso p en sam e n to é m uito mais v aria d o d o que e o p en s a m e n to privi legiado pela filosofia. Desse privilégio, cuja fonte ele atribui talvez injustam ente a S. A gostinho, decorre um a con cep ção p latónica da lógica, a lógica transcendente às atividades h u m a n as. W ittgenstein en tã o navega entre dois rochedos: de u m lado, o rochedo do p la ton ism o, ou seja, s u p o r que a lógica é algo a b s o lu ta m e n te ex terno às atividades h u m a n as; de o u tr o lado, o rochedo do relativismo — que ele tem de evitar igualm ente — , o u seja, que as leis lógicas nad a mais são d o que expressões dos m odos psicológicos segundo os quais agimos, significamos e falamos. Essas são as du as coisas que ele p retende evitar n as Investigações filosóficas. E convém insis tir; é im p o r ta n te n o ta r que o p ro jeto original de W'ittgenstein era, a o longo das Investigações, escrever u m livro sobre os fu n d a m e n to s da m a tem ática e um livro sobre os f u n d a m e n to s dos conceitos psicológicos. F. expressivo o fato de ele ter t r a b a lh a d o co m o p arte de um m e sm o livro o d o m ín io do p u ra m e n te form al da m a te m ática ju n to com o d o m ín io d o intencional, das em oções e dos sentimentos. Ele diz: “Esse m esm o tipo de cartografia conceituai que faço dos c h a m a d o s conceitos psicológicos deve ser feito c o m os conceitos m a te m á tic o s ” . Isso reflete aquela difí cil navegação que ele pretendia com a.s Investigações, depois d o d o g m a tism o do Tractatus. Já há cinco volumes p u blicados referentes a esse projeto, m as ain d a é u m a m assa m a ltr a b a lh a d a de que não se sabe m u ito bem o que p ode sair. Q u a n to ao sucesso o u êxito disso, Wittgenstein foi um b o m profeta a respeito da sua p r ó pria progenitura. Ele diz, sob a form a fragm entária que é característica sua, que o único legado que ele deixa é um certo jargão. O q u e realm ente é v erd ade [risos]: “ jogos de linguagem ” , “ formas de vida” etc. E m bora eu acredite que ele tenha muito m ais coisas p ara deixar. .Mas aí é o u tr a história. O senhor passou sete anos fora do país (1966 a 1973). Nesse período entre a sua saída e a sua volta, o que mudou no Brasil?
O que mais me c h a m o u a atenç ão, pelo m enos n o início, foi o seguinte: naquele te m p o não existia Instituto de Filosofia, Instituto de Política, m as a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. E na Faculdade havia m atem áticos, físicos, quím icos, literatos, filósofos etc. C o m o golpe de 64, um a das faculdades que mais sofreu com os expu rgo s foi a da Universidade Federal d o Rio G ra n d e d o Sul (UFRGS). N a área de filosofia a d ev astação foi com pleta. O s bons professores de filosofia que tín h a m os em P o rto Alegre foram todos, sem exceção, ex p u rg a d o s nesse período. O D e p a r ta m e n to de Filosofia foi o c u p a d o e n tã o pelo que havia de pior, desde que fosse de direita. Isso foi um p eríodo esquecido d o D e p a rta m e n to de Filosofia d a q u i do Rio G ra n d e d o Sul. C o m a USP n ão aconteceu o mesmo. Ela teve um a capacidade de resistência inercial que nós n ão tín h a m o s. A p esar das cassações, a USP resistiu, conseguiu m a n te r um bom g ru p o de professores e desem p e n h o u um papel m uito im p o rta n te na preservação de um b o m tra b a lh o de filosofia. Bom, o que m u d o u essencialmente neste período.^ Foi nesse p erío d o q u e os traç o s bacharelescos e eclesiá.sticos da filosofia d esa p a re c e ra m definitivam ente.
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Talvez isso seja u m exagero, m a s esses traço s to r n a r a m -s e to ta lm e n te marginais. .A filosofia to rn o u -se m uito mais profissional e os laços entre o direito e a filoso fia d e ix a r a m de ser significativos. A o m e s m o t e m p o , h o u v e u m a b ru ta l ideologização d o tra b a lh o filosófico, que teve um a im p o rtâ n cia m u ito g rande. Isso foi f u n d am e n tal co m o d e m o n s tr a ç ã o de resistência, p rincipalm e nte p o r p arte d a q u e les que ficaram d e n tro da U niversidade e tin h a m de resistir. N a USP, trab a lh av a se com o m a rx ism o , lia-se m u ito Da contradição d o .Vlao-Tsé-Tung e coisas des se tipo. Q u a n d o cheguei, em 1973, alguém (que eu n ão vou dizer qu em é) p e r gu n to u : “ Você fez d o u to r a d o sobre o q u e ? ” . Eu respondi: “ Sobre W ittg e n stein ” , e a pessoa disse: “W'irtgenstein é neopositivista, então é fascista” . Era difícil... .VIas era essa a atm o sfera de resistência da época, s o b r e tu d o p o r p arte da U niversidade de São Paulo, p o r p arte da U niversidade d o Rio de Ja n eiro , de .Vlinas G erais e daqui. O s tem as d o m in a n te s e ra m aqueles que grav itav am em volta d o m a rx is mo. Isso serviu para definir bem o público que freqüentava a Filosofia, m esm o que n ã o profissionalm ente, de a n tro p ó lo g o s, de sociólogos, cujas referências eram es sencialm ente m arxistas.
F.
depois da volta ao Brasilf
Terminei o meu d o u to r a d o , voltei p ara o Brasil, e tive um m o m e n to brevíssim o na U niversidade de São Paulo. N aque le m o m e n to , jO sw ald o l P orchat, ju n to co m um g r u p o da USP, teve a o p o r tu n id a d e de f u n d a r o C;entro de Lógica e Epistemologia (CLE) e o D e p a rta m e n to de Filosofia da U nicam p. N ã o conhecia nem P orchat, nem IJosé Arthur] Giannotti e nem Bento [Prado Jr.] — naquela época, a Santíssima T rin dade da filosofia de São Paulo. F om os em b a n d o p a r a C a m p in a s, e essa ex periên cia foi e x tra o rd in á ria sob to d o s os p o n to s de vista. É ram os um b a n d o de metecos, o nde n ão havia n en h u m aborígene, m as m uitos estrangeiros. Lem bro-m e de .Víichel D ebrun, G érard Lebrun, Andreas Raggio, Ezequiel De Olazo, E duardo Robossi, p r o fessores que faziam p a r te d o c o r p o regular. C laro que nem tod o s ficaram m uito te m p o , m as pelo m enos d u ra n te dois an o s um desses ficava p o r lá. O que form ava um D e p a rta m e n to co m m uitos interesses e, além disso, com um grau de rigor no tr a b a lh o m u ito bom . C o m isso, aprendia-se m uito. M e sm os os brasileiros, os p ri meiros a aparecer, ta m b é m tin h a m um v aria do interesse filosófico que ia desde a fenom enologia, c o m (.'arlos A lberto [Ribeiro de M o u r a ] , até Frege, co m Luiz H e n rique [Lopes dos Santos], p a s sa n d o p o r Hegel, com .VIarcos .Vlüller, e assim p o r diante. M a s o projeto restringia-se à lógica e à filosofia da ciência. Julgava-se que o ensino de lógica era a b s o lu ta m e n te f u n d am e n tal p a r a a fo rm a ç ã o de qualq u er estu d an te de filosofia, e um dos aspectos mais im p o rta n tes da cultura c o n t e m p o r â nea era, afinal de co ntas, a ciência — pelo m enos foi isso que aconteceu a p artir do p eríod o m o d e rn o . E ntão, cabia e stu dar esse aspecto de um a m aneira mais a p r o f u n da d a . (!llaro q u e a filosofia da ciência, naquela época, dedicava-se essencialmente aos neopositivistas, aos positivistas lógicos d o g r u p o de Viena. N o e n ta n to , no D e p a rta m e n to , os clássicos históricos d o c onhe cim ento, m esm o os da ciência clás sica, nunca foram negligenciados, com o Descartes, H um e, Husserl e assim p or diante. M a s, de fato, havia u m a tônica forte no neopositivismo.
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A idéia do CLE era selecionar também estudantes que não tinham for mação em filosofia e levá-los a uma pós-graduação em filosofia. Qual é a sua avaliação dessa experiência? Apesar de rudo, é boa. Por um lado, m uitos erros foram com etidos, s o b r e tu d o o excesso de ênfase d a d a nos cursos a autore s m enores em d etrim en to dos grandes clássicos da filosofia. Isso foi m u ito desvantajoso. Por o u tr o lado, vejo co m o v a n ta joso que, naquele tem po, os ó rgãos de fin anciam ento, p rincipalm en te a CAPES, eram e x tre m am en te generosos. Ju stam e n te p o r nós n ão term os um a g r a d u a ç ã o e p o r n ão exigirm os um a fo rm a çã o prévia em filosofia, eles nos d a v a m a possibili dad e de te r um semestre de a d a p ta ç ã o p a r a os alunos. F azíam os um pré-ex am e de seleção, e, depois, havia o tal semestre com três disciplinas o b rig ató ria s invariantes — “ In tro d u ç ã o à I.ógica” , m inistrada pela A n dré a |l.o p a ric |, “ I n tro d u ç ã o à H is tória da Filosofia” , m inistrada p o r Carlos Alberto, e “ Intro d u ç ão à Epistem ologia” , m in istrada p o r mim . Era esse semestre qu e, de fato, fazia a seleção dos alunos. Ao final do semestre, nos reuníam os e con siderávam os o seguinte: um aluno podia não ser m u ito ta lentoso p a r a lógica, mas, em c o m p en sa çã o , podia te r um ó tim o talento especulativo. O u vice-versa: um a lu n o c o m um talento formal aguçadíssim o, mas que n ã o sabia filosofia. T ín h a m o s de p r o c u r a r pesar essa seleção da m aneira mais sensata possível. Isso foi um dos p o n to s mais positivos do D e p a rta m e n to . O p o n to mais negativo foi esse desequilíbrio entre os autore s c o n te m p o r â n e o s e os autores clássicos. Q u eria salientar ainda um últim o p o n to , o mais im p o rta n te nessa ex periên cia d o C e n tr o de Lógica, cujo m érito principal pertence a Porchat: a atm o sfera de deb a te e de discussão qu e se instalou ali. Antes, q u alq u er discussão de idéias filo sóficas, q u a lq u e r discordância ou crítica veemente a um a tese, ex posição ou a r g u m ento, era to m a d a co m o um a agressão pessoal, e im ediatam en te a pessoa criticada se p unha em legítima defesa. Isso fazia com que a discussão degenerasse rapidamente. A U nicam p, naquela ocasião, conseguiu criar — o qu e felizmente depois se esp a lhou — a trad ição da discussão feroz, acesa, m as que, no e n ta n to , perm anecia e x clusivam ente no te rren o das teses e das idéias, e n ã o n o te rren o pessoal. Isso foi a co n trib u içã o mais im p o rta n te da Unicamp.
Queria insistir exatamente nesse ponto. Chama a atenção em sua res posta o fato de Porchat ter inaugurado os colóquios. Antes disso, se se comparar o que era o centro de Porto Alegre, o centro paulista etc., como estava a situação? Criou-se com esses colóquios uma certa integração nacional? Criou-se. H avia, antes disso, o Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF) d o professor •Miguel Reale, que realizava sem pre um g ran d e congresso nacional e, às vezes, c o n gressos internacionais, interam ericanos etc. Esses congressos tin h a m um a e s tru tu ra formal: um a grande conferência seguida de comunicações. M as n ão havia no Brasil a tr ad ição d o p eq u e n o c olóquio tem ático, em que um n ú m e ro reduzido de pessoas fossem co n v id ad a s p ara falar, p ara se e x p o r e discutir. Isso n ã o era um costum e nem em P o rto Alegre, nem em São Paulo, nem no Rio de Ja n eiro e nem em M inas Gerais. O s trab a lh o s que eram feitos nessas cidades e ram isolados. São P aulo tinha
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um cnihalho em filosofia bem mais desenvolvido do que aquele que era feito no resto d o país, m as tra b a lh a v a de m aneira m u ito autista, ig n o ra n d o o que se fazia fora de seu estado. \ ã o havia, p o r ta n to , um a in tegração nacional n o c a m p o da filo.sofia. Pouco a p o uco, os colóquios de P orchat foram r e u n in d o e p o n d o em c o n t a to as pessoas qu e tra b a lh a v a m nos diferentes centros. Foi através disso que essas pessoas passaram a se conhecer m elhor, saber d o s tra b a lh o s dos o u tro s e a discutir com bastante intensidade. O senhor participou também da assessoria da CAPES e da estruturação de cursos de pós-graduação. Como o senhor avalia esse processo de instalação da pós-graduação em filosofia no Brasilf Sempre vejo essas coisas de um a maneira superficial, porque n ão conheço as minúcias e os detalhes da história da instalação da p ó s-g ra d u aç ão no Brasil. Em to d o caso, a m in h a im pressão é a seguinte: de to d a s as atividades gov ern a m en ta is na área de ed ucação , a im plem e nta ção da p ó s-g ra d u aç ão foi a que deu m elho r resultado. E m b o ra te n h a m o s u m a p ó s-g ra d u aç ão m u ito nova, o progresso que h ouve na q u a n t i dad e e, so b retu d o , na qualid ad e dos tra b a lh o s depois da im p lem e n ta ção foi colos sal. N ã o só isso: se a gente e.xaminar o início e o atual estágio da p ó s-g ra d u aç ão em filosofia no Brasil, há um progresso fora do co m u m . É verdade que n ã o se tem ain d a um volum e de publicações expressivas, e padecem os da m aldição de escre ver em português. .Vlas a qualidade média no Brasil não é inferior ã qualidade média dos escritos filosóficos na F rança, na Inglaterra, na A lem anha e nos E stados U ni dos. C laro que eles têm um volum e de massa crítica infinitam ente m a io r d o que a nossa. Por terem mais história, p r o d u ze m um a q u a n tid a d e de textos que é in c o m parável co m a nossa p ro d u çã o . M a s houve um progresso e x tra o rd in á rio , e a trib u o isso em g ran d e p arte à invenção e à instalação da p ó s-g ra d u aç ão aqu i no Brasil. O que receio é que essa situação agora , p o r várias causas, possa ser p rejudicada e se perder. H á , nesse m o m e n to , u m projeto de extinguir o m e strad o , visto co m m uita sim patia pelo M inistério da Ciência e da T ecnologia, pelo C N P q e pela CAPES com os mais variados argum e ntos. N a m inha opinião, o único a r g u m e n to real, n ã o e x presso, é p o u p a r dinheiro, ou seja, o sujeito passa para o d o u to r a d o direto e fica m enos te m p o recebendo o d inheiro q u e lhe é d estinado pelo E stado. Isso é de um a ra ra estupidez, po rq u e centro s co m o a USP, as federais d o Rio, de M in a s e d o Rio G rande d o Sul recebem fatalm ente estudantes que vêm com formações as mais diver sas. Às vezes um estu d an te é m u ito prom issor, m as é m u ito ig norante. Visivelmen te ele n ã o p o de ir p ara o d o u to r a d o direto, tem de te r um a p r e p a ra ç ã o prévia. Em grand e p arte é o m e stra d o que faz isso, pois é um a p r e p a ra ç ã o imprescindível p ara o d o u to r a d o . Em alguns casos não, m as, pelo que eu saiba, esses casos ain d a são m inoritários. Receio q u e isso vá prejudicar a p ó s-g ra d u aç ão , ou seja, a única e x p e riência estatal conhecida nos últimos an o s que deu excelentes resultados. C laro que está na ho ra de ajustar, fazer um a revisão geral, “ a p e r ta r p a r a fu s o s ” e fazer a d a p tações. M a s alterações fundam entais são m uito arriscadas, n ã o sou favorável a elas. O que significou, na sua opinião, a experiência da Sociedade de Estu dos e Atividades Filosóficas (SEAF) ?
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Foi um a experiência im p o rta n te, p o rq u e a SEAF, peia prim eira vez, ex pressou a realidade, isto é, que havia um g ru p o de pessoas tr ab a liia n d o em filosofia no Brasil e n ã o a p e n as localm ente. Por um lado, foi a prim eira tentativa de constituição de um a c o m u n id a d e n acional de pessoas interessadas em filosofia. Foi o e m b rião do que é hoje a A ssociação N ac io n al de P ó s-G rad u a çã o em Filosofia (A N PO F). Por o u tr o lado, nasceu d u r a n te a d ita d u r a militar e teve u m a co lo ra çã o política e ideo lógica abso lu ta m en te n atu ra l, o que ac arreto u divisões internas, atritos etc. M as em razão dos fatores extern os, da d ita d u ra , d u vido q u e ela pudesse te r sido de o u tro m o do.
Como foi criada a ANPOF e como o senhor a vê hoje? A A N P O F foi criada em p arte pela divisão interna da SEAF e em p arte devido à indução dos orgãos de financiam ento (C N P q e CAPES), que queriam interlocutores privilegiados e, a o m esm o te m p o , representativos. Privilegiados n o seguinte senti do: a p ó s-g ra d u a ç ã o n ã o teve um su rto exclusivo, ela proliferou disciplinadam ente na nossa área, mas, em o u tra s áreas, de m aneira incontrolável. Em q u a lq u e r luga rejo d o Brasil, hoje, pode-se fazer m e strad o em pedagogia o u em artes. E n q u an to , n o co m eç o d a d éc ad a de 80, a p ó s - g ra d u a ç ã o da filosofia tin h a doze cursos de m e strad o e apenas três de d o u to r a d o — a USP, a U nicam p e a Federal d o Rio — , havia 42 cursos de m e strad o em pedagogia. Por o u tr o lado, havia um a g rande dissensão d e n tro da SEAF. P or definição, os g ru pos q u e realizam em q u a lq u e r setor d o c o n he cim ento os tra b a lh o s mais q u a lificados são m inoria. Isso gerou d en tro da SEAF um a tensão, p o rq u e os grupos m ajoritários, que realizavam um tra b a lh o m enos b o m — p ara dizer o m ínim o — , p as saram a te r a hegem onia da instituição. Isso teve co m o conseqüência o fato de os critérios de integração à SEAF ficarem ca d a vez mais frou xos, e os g ru p o s que faziam um tr a b a lh o de m e lh o r q u alidade se rebelavam , ou pelo m enos n ã o g o sta vam do c o m p o r t a m e n to da m a ioria da SEAF. E n tã o havia briga d e n tro da Socie dade. Além disso, a SEAF n ão representava ape nas a p ó s-g ra d u aç ão , m as ta m b é m to d a s as graduações. C o m o CHAPES e C N P q , n aquela ocasião, estavam investindo essencialmente na p ó s-g ra d u aç ão , ind uziram a criação da A N P O F . C o m o é que eu a avalio hoje? A p ó s-g ra d u a ç ã o no Brasil cresceu m u ito e com grande rapidez (em bora seja relativamente nova). Isso foi inevitável porque, na época da criação da A N P O F , para q u alq u er d e p a r ta m e n to de filosofia te r dinheiro, era necessário ter u m a p ó s-g ra d u a ç ã o . A CAPES e o C N P q só p u n h a m d inh e iro no m e strad o e n o d o u to r a d o . Isso im e d ia tam en te estim ulou a criação, u m p o u co sel vagem, de m e strad o s e d o u to r a d o s , e m u ito s d e p a rta m e n to s n ã o eram qualificados p a r a esse tipo de trab a lh o . Além disso, há um p ro b le m a federativo que n ã o parece ser solúvel a c u rto prazo: sanar o desequilíbrio que há entre N o rte e N ordeste de um lado, e Sul e Sudeste de o u tro . A com panh ei esse p ro b le m a em p articula r na P araíba. O M inistério da E ducação e o C N P q resolveram fazer o seguinte: p a r a haver u m a p ó s-g ra d u aç ão decente n o N o rd e ste , eles c o n c e n tra ra m investim entos maciços na Paraíb a p a r a a fo rm a ç ã o de mestres e d o u to re s no Rio, São Paulo, M in a s, P o rto Alegre ou no e x terior. O resultado disso foi o seguinte: os que se saíram melhor vieram para o Sudeste
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e ficaram. Enfim, é assim qu e as coisas se passam . M as, m esm o assim , as pós-gradiiações perm aneceram e cresceram. Isso acabou por introduzir procedim entos pouco seletivos na A N P O F . Por exem plo, os C ongressos da A N P O F se realizam a cada dois anos e há um a com issão que seleciona os tra b a lh o s q u e serão apresentado s. Isso cria pro b lem as da seguinte ordem : recusa-se um tra b a lh o de pó s-g ra d u aç ão da USP p o rq u e não é co n sid erad o suficientemente e l a b o r a d o para ser a p re sen ta d o no Congresso. A o m e sm o te m p o , pode-se aceitar um tra b a lh o de um professor m uito pior d o que o prim eiro, que n ã o pode ser recusado p a r a n ão criar u m a atm osfera belicosa. Flá, en tão , essa dificuldade de coexistência d e n tro da A N P O F de níveis de pós-graduações m uito disp a ra ta d o s, q u e reflete as divisões nacionais. N o e n ta n to , a A N P O F exerce um tr a b a lh o m u ito im p o r ta n te , pois as pósg rad u a çõ es de m e lh o r q u alidade ac aba m ta m b é m e s tim u lan d o as de pior q u a lid a de a m e lh o rar, e, em relação a co m o estava o Brasil, houve um a m e lh o ra perceptí vel e im p o rta n te. Pouco a p o u c o as coisas te ndem a m elh orar. Avalio-a, p o r ta n to , de m aneira bem positiva. C laro que há ta m b é m , co m o em q u a lq u e r área, o p r o b le ma das avaliações. N in g u ém gosta de ser mal avaliado e ocorrem brigas e dissensões. -Mas, d eva garin ho, as coisas estão indo. A credito que a A N P O F faça um bom tra b a lh o . As suas reuniões a cada dois a n o s reúnem um a q u a n t id a d e im ensa de estudantes, professores e curiosos, o que perm ite que a gente tenha u m a idéia do que se faz em filosofia hoje no Brasil, e quais são as suas direções dom inantes (mesmo que circunstanciais). O senhor é conhecido nos círculos filosóficos como um arguto leitor de textos alheios, que sempre se modificam após suas sugestões e comen tários. No entanto, o senhor ptdylica relativamente pouco. A que se deve isso? C laro que há um a p arte psicológica, um a inibição para a escrita. E essa inibição possivelmente vem de fumos literários que tive na adolescência. “ C o m e ti” sonetos, “ c o m e ti” c o n to s etc. N u n c a fiz um a investigação sistemática com auxílio de um te ra p eu ta p ara saber de o nde vem essa m inha inibição com a escrita. E ntão, vam os deixar de lado essa parte, já que a ignoro. A ou tra p arte dessa inibição vem d o seguinte: é im p o rta n te que se publique m uito no Brasil, so b re tu d o em filos(ífia, p ara se criar um a trad ição que ain d a não temos. É necessária um a m u d a n ç a até m esm o de v o cab ulário, pois se a gente vai, p o r exem p lo, trad u z ir um te x to clássico alem ão, existem dificuldades que nos le vam a ter de inventar palavras, devido a o fato de o portu g u ês não possuir palavras co rresp o n d e n tes às palavras de língua alemã. E ntão , essas publicações são im p o r tantes p a ra estabelecer um a c o m u n id a d e que possa d eb a te r um te x to escrito em p ortuguês, qu e possa saber o que uns e o u tr o s pensam e q u e ta m b ém possa fixar um vocabulário co m u m de filosofia no Brasil. N o e n ta n to , nos últimos anos, há um excesso de publicações — e estou fala n d o em relação a o ce nário t a n to nacional q u a n t o inte rnacional. N ã o sou in teiram en te desfavorável a algun s incêndios de “ bibliotecas de A le x a n d ria ” . C laro que isso é um a brincadeira, m as é necessário pensar esse estím ulo desv airad o à publicação. form a pela qual está sendo exe cu ta d o esse processo no m u n d o inteiro, e mais recentemente no Brasil, deve sofrer um
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p r o ce d im en to q u alq u er de seletividade, de tal m aneira que as pessoas n ã o sejam julgadas pela q u a n tid a d e d aquilo que publicam , m a s pela q ualid ad e d o que pu bli cam. Esse problem a prejudica, p o r e.xemplo, os m estrados e d o u torado s, pois q u a n to m aio r tor o n ú m e ro de teses defendidas na p ó s-g ra d u aç ão , m aior é o n ú m e ro de bolsas que o p r o g ra m a recebe. Isso tem um resultado: as pós-graduações se t o r n a m ca d a ve7. mais com placentes. M e s m o q u a n d o u m a pessoa vai ser avaliada para um p rojeto de pesquisa no C N P q , con ta o n ú m e ro de artigos publicados. Q u a n d o es tava na CAPES, junto co m o professor R icardo T erra, achávam os que o fato de uma pessoa ter m uitos artigos pub licad os n ã o queria dizer nad a , pois poderia ser tu d o u m a po rcaria. Um sujeito p ode ter escrito apenas dois artigos, m a s artigos que são fora d o c o m u m . Essa é a racionalização d a m inha incapacidade de escrita. Escrevo m uito, mas, de fato, te n h o dificuldade em publicar. Publico as únicas coisas que têm algum interesse q u a n t o à q u alidade, e te n h o u m a certa rebeldia à q u a n tid a d e de publicações. Espero, esse an o , ter finalmente alg u m a coisa de interessante p ara publicar sobre a q u estão d o tem po.
Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Como o senhor vê as relações entre a filosofia e a cultura brasileira? A expressão “ filosofia brasileira” é realm ente a m bígu a e tem dois significados di ferentes: o prim eiro é inocente, trata-se da filosofia que se pratica no Brasil; o se g u n d o já n ã o é inocente, pois trata-se de u m a filosofia que possui teses, conceitos e a rg u m e n to s q u e são específicos a o Brasil, assim co m o haveria u m a filosofia p e r u a na e, eventualm ente, u m a filosofia gaúcha [risosj. C o m isso, a filosofia brasileira deveria ser dividida em filosofia paulista, g aúcha, goiana etc. O tr a b a lh o de filosofia feito n o Brasil, o único tr a b a lh o que m e parece possí vel, é aquele cuja m atriz é ocidental, e cujas raízes fund am e n tais são os gregos, o direito r o m a n o e o cristianismo. Por o u tr o lado, se se c o n sid erar que existe um es tilo de filosofia que se faz em um país, torna-se perfeitamente legítimo falar em uma filosofia alem ã p o r o posição a um a filosofia inglesa, a um a filosofia francesa etc. O r t o s países privilegiam tem as em d etrim en to de o u tr o s que são privilegiados p o r o u tro s países. Por exemplo; o idealismo n ão é um tema exclusivamente alem ão, mas p re d o m in a n te m e n te alem ão, assim co m o o em pirism o é um tem a p re d o m in a n te m ente inglês e o racionalism o é u m a característica da filosofia na França. Nessa a c epção d o fazer filosofia, penso que o Brasil ain da n ã o possui um estilo p ró p rio , mas, talvez, comece lentam ente a esboçá-lo e com ece a introdu zir u m a certa form a argum entativa dom inante de filosofia. N ã o se pode esquecer que a filosofia no Brasil, talvez p o r sua proveniência jurídica, ac e n tu o u m uito a retórica. Se se ler os textos de filosofia d o coineço d o século X X , percebe-se c o m o e ra m retóricos e p o u co argum entativos. Penso que progressivamente a idéia de a rgum e ntaç ão tornou-se um p o n to im p o rta n te na filosofia do Brasil, assim c o m o o fato de co nsiderar q u e um a idéia clara n ã o é necessariam ente um a idéia trivial e que um a idéia o bscura n ão é necessariam ente um a idéia p ro fu n d a . Nesse sentido, talvez seja perm itid o pensar cm algo que possa vir a se c h a m a r filosofia brasileira. A segunda parte da p ergunta é mais difícil e espinhosa. A p ergunta n ão deve ria ser sobre “ as relações entre a filosofia e a cu ltu ra b rasileira” , m as sobre “ as
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relações entre a filosofia e ” — o que? — “ cultura brasileira c o n t e m p o r â n e a ? ” — o que isso q u er dizer? U m a coisa é certa: a m a io r parte d aqu ilo que se faz em filoso fia no Brasil é esotérica, faz-se em d eterm in a d o s grupos. Às vezes me ocorre dizer que nós estam os n u m a situação cultural sem elhante àquela dos monges medievais que preservavam m a nuscritos cuja utilidade e cuja relação co m a cultura eles não sabiam qual poderia vir a ser. .A gente em parte faz isso com a filosofia, ou seja, a gente preserva um certo p atrim ônio cultural sem saber se um dia ele será novam ente ap reciad o, nov am en te utilizado etc. C laro que isso é um p o u co e x a g erad o , m as a filosofia n o Brasil, p o r e n q u a n to , está ausente e m u ito distante d o d e b a te público. Isso se deve em p arte ta m b é m à espan tosa ignorância na qual se faz o d eb a te pú b li co hoje no Brasil. As duas pessoas com fo rm ação filosófica que intervieram no debate público no Brasil foram G iannotti e M arilen a |C h a u i|. E o resultado disso é o se guinte: se Ciiannotti utiliza a sua fo rm a ç ã o filosófica p ara a exposição de alguns a rg u m e n to s sobre a situação política do país, torna-se incompreensível, p o rq u e o público n â o tem um a fo rm a çã o m ínim a que perm ita c o m p re en d e r alusões daquela natureza. É possível fazer a c o m p a r a ç ã o com o d e b a te público estabelecido na Ale m a nh a: H a b e rm a s escreve no Die Zeit com g ran d e g rau de sofisticação intelectual e filosófica, e é co m p re e n d id o e refu tad o p o r o u tr a s pessoas q u e não são necessari am en te especialistas em filosofia. Já aqu i, no Brasil, o d istan c iam e nto é de tal o r d em q u e esse tipo de deb a te não é possível tal c o m o ele acontece na F rança, na A lem an ha e na Inglaterra. Isso é um p o n to . O o u tr o p o n to é o seguinte: a filosofia internacion alm ente perdeu a posição única que ela o c u p o u na cultura ocidental até o final da Segunda G u erra .Mundial. O s dois últim os filósofos de repercussão fo ram Jean-Paul Sartre e Bertrand Russell. Sartre ap arecia na televisão, to d o m u n d o queria saber q u a n ta s m ulheres tinha tido Russell nos últimos meses, e o que Sartre an d a v a fazendo no Boulevard Saint Michel. Esse tipo de relação entre o filósofo e a cultura desapareceu talvez definitivamente. Houve um distanciamento grande entre a filosofia e a cu ltu ra. Em p a r te ta m b é m pelo e x tra o r d i n á r io a b a s ta r d a m e n to e com placência da cultura e da sociedade no Brasil. N ã o sei qu ais são as causas que levaram à aceitação de q u a lq u e r p orcaria co m o se fosse u m a expressão cultural. E a considerar, p o r e x e m p lo , que C a e ta n o Veloso é um g ran d e poeta. Se C a e ta n o Veloso passa a ser co n sid erad o um g ran d e poeta é p o rq u e algu m a coisa está p r o fun d am e n te doente na nossa cultura.
A sua produção se caracteriza por ter como referência textos clássicos da filosofia. Nesse sentido, ela poderia ser colocada sob a rubrica “his tória da filosofia”. O senhor vê oposição entre fazer história da filoso fia e fazer filosofia? D epende de co m o se en tendem essas d u as coisas. Faria a seguinte brincadeira: a filosofia sem a história da filosofia é cega, e a história da filosofia sem a filosofia é vazia. H o u v e no Brasil um a m u d a n ça , talvez ainda em a n d a m e n to , na m an eira de co n siderar a história da filosofia. H ou v e um p erío d o em que a história da filosofia tinha co m o uma espécie de prescrição m etodológica reproduzir de m aneira siste mática o p en s am e n to de um a u to r, e p o n to final. U ma caricatura disso consistiria no seguinte: o que a história d a filosofia deve fazer é r e p ro d u zir aquilo qu e o a u t o r
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disse e a c ab o u . U m a o u tra m aneira igualm ente ca ricatural da história da filosofia encontra-se com m uita freqüência na história da filosofia p ra tic a d a pelos ingleses analíticos. Consiste em pensar q u e “ os g rand es p e n s a d o r e s ” , alguns colegas mais antigos de C am b rid g e e de O x fo r d , tinham até algum as idéias bastantes legais. M a s nós, hoje, sab em o s m u ito mais graças à lógica fregeana. Lem os esses autore s p ara a fa sta r o g ran d e n u m e ro de bobagens que escrevem e e n c o n tra r p o rv e n tu ra alg u m a idéia interessante. Esses dois equívocos, em relação à história da filosofia, es tã o po uco a p o u c o sendo evitados n o Brasil, em que se com eça a ter um cu id ad o crescente em perceber que os pensadores clássicos n ão pensavam necessariam ente co m o nós fom os h ab itu ad o s a pensar. Isso tem a seguinte vantagem: reconhecer um pen s a m e n to alheio facilita reconhecer as nossas p ró p ria s o pções e decisões f u n d a mentais. F unciona, m uitas vezes, co m o um contraste: se um a pessoa reconhece um a tese alternativa, torna-se possível a ela reconhecer que a sua tese tem alternativas, e, p o r ta n to , isso faz com que ela c o m p re e n d a m elhor os seus p ró p rio s argum e ntos. Isso é um a v antagem que está sendo larg am ente dissem inada. G o sto m uito da frase de um filósofo medieval — se não me engano , S. Boaventura. N aq u e le te m p o , cultivavam-se m u ito os gregos, so b re tu d o P latã o e A ris tóteles, e os co m e n ta d o re s medievais n ão se privavam de localizar erros nesses dois filósofos. Esse filósofo medieval recebeu um a crítica que dizia o q u ã o ridículo era um filósofo m enor c o m o ele o u sa r criticar Aristóteles. Ele deu u m a resposta sim ples: “ realm ente sou um an ã o, m as um a n ã o em o m b ro s de gigante. E n tão vejo mais d o q u e o gigante v ê ” . Isso perm itiu um g ran d e respeito ao p e n s a m e n to dos clássi cos, mas, ao m esm o tem p o, a consciência de que esse respeito não é um a subserviên cia, isto é, respeito n ã o significa aceitação de arg u m e n to s de au to rid ad e. .Mas in sisto na frase inicial: julgar que se possa fazer filosofia ig n o ra n d o a história da filo sofia é cegueira, d o m esm o m o d o que fazer história da filosofia sem um esforço de pen s a m e n to filosófico é vacuidade com pleta. N ã o sei qu em disse: “ igno rar a histó ria da filosofia é co ndenar-se a repeti-la” . E n tã o vam o s g a n h a r te m po.
Quais são os filósofos brasileiros mais importantes? O conceito de im p o rtâ n cia varia segun do diferentes critérios. U ma coisa é ser im p o rta n te p ara um p ro p ó sito , o u tra coisa é ser im p o rta n te p a r a u m o u tr o p ro p ó s i to. U m a faca p o d e ser im p o rta n te p o rq u e é ótim a p ara c o r ta r d e te rm in a d a coisa, e o u tr a faca p o de ser igualmente im p o rta n te p o r ter pertencido a N a p o le ã o . São cri térios to ta lm e n te distintos de im p ortâ ncia . Q u e r o destacar, em p rim eiro lugar, o seguinte: o papel que a Universidade de São Paulo teve, em relação a o resto do país, na co n s tru ç ã o de um a filosofia profissional. C ruz C osta, Lívio Teixeira e, so b r e tu do, a trin d a d e f o rm a d a p o r G ian n o tti, P o rc h at e Bento tiveram um a g ran d e im p o r tância — diria até que são os prim eiros profissionais de filosofia no Brasil. Em se g u n d o lugar, penso em P orchat e a sua invenção d o C e n tro de Lógica no D e p a r t a m e n to de Filosofia da U nicam p. Ele inventou o deba te filosófico no Brasil, a dis cussão acesa q u e n ã o é vista em term os pessoais. D evo destac ar ta m b é m o tr a b a lho único feito n o Brasil por G u id o de Almeida e Raul Landim : a única escola de filosofia que há neste país — um a coisa realm ente e x tra o rd in á r ia q u e os dois c o n seguiram fazer. E e n te n d e n d o p o r escola n ã o algo q u e tem um a unid a d e d o u tr in á
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ria, mas algo que tem u m a e x tra o rd in á r ia convergência de interesses tem áticos e um certo estilo argu m e n tativ o . Isso perm ite, p o r exem plo, identificar, p o r meio da p ergun ta de alguém em plenário, se essa pessoa foi aluna do G uido ou de Raul. Eles têm um a escola m uito im p o rta n te, e fo ra m capazes de fo rm a r um g ru p o de alunos que. hoje, são d o s mais p rom issores professores de filosofia d o país. P or razões co m pletam e nte diferentes, destaco ta m b é m o tra b a lh o da professora M arilen a , que teve um a im po rtâ n cia m uito grande. Por razões similares à im p o rtâ n cia d o t r a b a lho do professor G ian notti. T a n t o M arilena, q u a n t o G ian n o tti, foram os que mais d iretam ente se e m p e n h a ra m em ap re sen ta r a filosofia n u m debate sócio-políticocultural do país. É bem verdade que nem sempre com m uito sucesso, mas isso p o u co im porta. O s dois foram os que mais e x p u s eram a filosofia ao deb a te público. ■Além disso, há ta m b é m os tra b a lh o s de tra d u ç ã o , que, e m b o ra te n h am sido feitos n u m a q u a n tid a d e m u ito peq u e n a, tiveram um a g rande im p o rtâ n cia p ara a f o r m a çã o e desenvolvim ento da filosofia n o Brasil. Penso na coleção O s P ensadores, e P orchat foi um dos principais incentivadores dela. N ã o se p o de esquecer ta m b é m do pad re H en riq u e C láu d io de Lima Vaz, que teve um lugar destacadíssim o na história da filosofia nacional. C o m sua erudição e x tra o rd in á ria , teve sem pre clara, n ã o o b sta n te ser jesuíta, a consciência da dife rença entre a filosofia e as suas convicções religiosas. Padre Vaz, pela vastidão de sua cu ltu ra, introduziu no debate c o n te m p o r â n e o filósofos q ue eram p o u co c o n h e cidos o u invariavelm ente negligenciados, c o m o p o r exe m plo Hegel na d écad a de 60. E n q u a n to G iann otti fazia o seu d o u to r a d o sobre S tuart Mill e a tradição da USP estava essencialmente voltada para o pensam e n to francês, devido a C ru z C osta e Lívio Teixeira, pad re Vaz tinha um espectro de interesse m uito mais am p lo d o que em q u a lq u e r o u tr o local da filosofia n o Brasil. Isso foi im p o rta n te p o rq u e abriu o c a m p o de interesse filosófico p ara além d aq uilo que era feito, sem prejuízo da n o tável q u alidade de clareza e p en e traç ão dos a rg u m e n to s de p ad re Vaz, um excelen te filósofo. T a m b é m merece d estaque so b esse aspecto o professor G erd Bornheim. Foi graças a ele q u e aqui n o Rio G ra n d e d o Sul e no Brasil com eçou-se a falar em Heidegger. O prim eiro curso que fiz com o professo r G erd, isso deve te r sido em I9 6 0 , era um sem inário sohre O que é a metafísica. H eidegger era u m ninguém , um desconhecido aqui, em São Paulo e n o Rio de Janeiro. G erd Bornheim foi um dos prim eiros a pub licar sobre H eidegger e to d a a trad ição existencialista, Sartre e M erleau-P onty. Foi graças a ele que esses pensadores passaram a ad q u irir a im p o r tância que vieram a ter na d éc ad a de 60 no Brasil.
Que conceito(s) de sua reflexão o setthor destacaria cotno o(s) mais represetítativo(s) de sua posição filosófica? Pediríatnos que o senhor tios cotitasse cotno ele(s) surgiu (ou surgirattt) em seu trabalho e cottto o(s) vê hoje. É mais ou m enos inevitável q u e eu me refira aos meus interesses atuais. M a s vou p r o c u r a r refazer a gênese desses interesses, que talvez desconheço. Q u a n d o lecio nava epistem ologia na U nicam p, preferencialmente tr ab a lh av a com epistemologia das ciências h u m a n as. O b rig a to ria m e n te en tão , em razão desse c o m p ro m isso co m a docência, passei a e x a m in a r o debate clássico d o século X IX entre as ciências do
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espírito e as ciências natu rais, um debate que com eçou na A lem anha. Sempre d ei x o u -m e fascinado e in teressado a tese segu ndo a qual o m o d o de c o m p re en sã o dos fenôm enos h u m a n o s é irredutível, ou pelo m e n o s diferente d o m o d o de c o m p re e n são dos fen ôm eno s naturais. Isso era um a convicção provavelm ente infantil que eu tinha, provavelm ente de origem religiosa. Q u a n d o eu era religioso, acreditava no p ec ad o e na responsabilização. P o rta n to , era o b rig ad o a a c redita r na liberdade — n ã o se p ode ser responsável se não se é livre. M a s se se aceita essa tese simples, ou seja, a possibilidade de que os ato s h u m a n o s sejam livres e q u e pelo m eno s algu mas coisas da realidade são resultad os de ações livres, en tã o se terá algum a dificul d a d e em sustenta r que o m ecanism o de explicação desse tipo de aconte cim en to da realidade seja simétrico, o u idêntico, ao m ecanism o de co m p re en sã o dos acon teci m e n to s naturais. Isto foi um tem a que sem pre me fascinou e, co m o já disse, q u a n d o fui a Louvain eu tinha aquele projeto m egalôm ano — aliás, co m o convém q u an d o se tem vinte a n o s — de e s tu d ar S. T o m á s, Leibniz e Hegel. E o que me fascina até hoje em Leibniz é a idéia segun do a qual tu d o aquilo que acontece, o fato de es ta r m os aqui, p o r exem plo, está desde sem pre escrito na essência individual de cada um. Q u a n d o D eus fez o m u n d o , sabe-se lá q u a n d o , esse fato já estava previsto. Se é assim, en tã o m aktub. M a s Leibniz diz que n ão , e em vários textos desenvolve a r gu m e n to s de ex tre m a finura p a ra m o stra r que n ã o existe n e n h u m a inco m patib ili d a d e entre tu d o aquilo que em um ser qu alq u er, inclusive nos seres h u m a n o s, está rigorosam ente d ete rm in a d o e alguns atos ab s o lu ta m en te livres, n âo o b sta n te serem tã o d eterm in a d o s q u a n t o qu aisq u er o u tr a s coisas. N o e n ta n to , nunca achei a solu çã o leibniziana satisfatória. Às vezes, em filosofia, acha-se intuitivam ente um a r g u m e n to insatisfatório, m as não se consegue localizar o nd e é qu e ele d errap a . Em filosofia a gente aprende, co m o ta m b é m em q u alq u er o u tr o setor da cultura, inicial m ente com um mal-estar com u m a afirm a çã o , para depois p r o c u r a r saber de o n de provém esse m al-estar e localizar o n d e está o erro , ou a d erra p a g e m q u e o induziu. Eu tinha en tã o , t a n to pela fo rm a ç ã o religiosa q u a n to pelo interesse p o r Leibniz e p o r Hegel, u m a p reo c u p a ç ã o central com a n o çã o de liberdade e com a família de noções que g ravitam em to r n o dela. Em razão d o m eu co n stan te interesse p o r S. T o m á s de A q u ino, passei t a m bém a me interessar p o r Aristóteles. E esse filósofo tem u m te x to a b s o lu ta m e n te genial que é o capítulo IX d o Tratado da interpretação. C o s tu m o apresentá-lo da seguinte m aneira: parece que há u m a r g u m e n to nesse c a pítulo de um jovem lógico — os eruditos dizem que, se ele n ã o foi a lu n o de .Aristóteles, foi quase c o n t e m p o râne o dele — q u e to m a frases de Aristóteles e m o stra que são inconsistentes entre si. M a s essas n ã o são frases q uaisqu er, são frases da Lógica de Aristóteles. A res posta de Aristóteles é a seguinte: “ fui eu qu e inventei essa brincadeira, en tã o vou m o stra r qu e esse jovem n ão a entendeu d ir e ito ’". Aristóteles dá assim um lição de lógica e de metafísica a esse jovem. M a s a idéia de Aristóteles consiste em que, em prim eiro lugar, n ã o há c o m o com patibilizar, ao c o n trá rio do que Leibniz p re te n de, o d eterm in ism o dos ac o ntecim entos co m a liberdade dos agentes; diz que essa co m p atibiliz aç ão é impossível. E, em seg undo lugar, que essa incom patibilização em nad a afeta a validade dos princípios lógicos. A m inha idéia, en tão, é a seguinte: .Aristóteles só pode fazer isso com os princípios lógicos se ele os tem poralizar. Pode-
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se, p o r exem plo, fo rm ular o princípio de não-con rradição à m aneira de Parmênides, ‘‘o ser é, o n ã o ser n ã o é ” , mas n ão é assim que Aristóteles o form ula. Ele o f o rm u la intro d u z in d o curiosa m e n te a n o çã o de aspecto, que vai ser trad u z id a p o r p r o p riedade, e a n o çã o de tem po: “ o m esm o n ão p ode ser e n ão ser ao m esm o te m p o sob o m esm o as p e c to ” . Isso acontece do m esm o m o d o com o princípio d o “ tercei ro e x c lu íd o ” e d o m esm o m o d o com o princípio de identidade. E n tã o passei a me interessar fortem ente peia n o çã o de te m p o , s o b r e tu d o pela relação q u e a n o çã o de te m p o tem com a n o çã o de ação. E penso ter e n c o n tr a d o em Aristóteles dois c o n ceitos de tem po: um conceito perfeitam ente a d e q u a d o à esfera dos acontecim entos d eterm in a d o s, que se poderia c h a m a r de acontecim entos m e ra m en te físicos, e inna n o çã o de te m p o irredutível a essa prim eira e que é específica dos co m p o rta m e n to s hu m a n o s. Aristóteles se apercebeu dessa distinção. Esses te m as que mais me inte ressam são p u ra m e n te especulativos ou teóricos, m as ta m b é m possuem relevância prática. Isso é u m a convicção m inha: se as ações h u m a n a s são estritam ente d eter m ina das, en tã o certas práticas e d o u trin a s ético-políticas to rn am -se ininteligíveis.
Da pequena parte publicada de sua produção, parece constante a per gunta pelas relações entre teoria e práxis, pelas relações entre a pergunta pela verdade e a pergunta pelo fundam ento da ação, enfim, pelos lia mes e distâncias entre saber e fazer. Em seu artigo “Saber, fazer e tem po: uma nota sobre Aristóteles”, publicado no volume em homenagem aos sessenta anos de Guido Antonio de Almeida e Raul Landim Eilho, o senhor aponta o te m p o (e os diferentes sentidos de tempo) como ele mento essencial a distinguir ação e conhecimento. Estaria a i a raiz das dificuldades de relacionamento entre ciência e ética no mundo m odem of A p ergunta é de um a am plitu d e que intim ida, n ão saberia responder. Eu contra perguntaria da seguinte maneira: quais dificuldades, em particular, você tem em vista q u a n d o fala das dificuldades de relação entre ética e ciência? P orque existem várias dificuldades de v ariado s tipos...
Estou pensando particulannente na origem da sua última resposta, que era justamente a escola histórica alemã. Essa tentativa de distinguir rigidamente os domínios da natureza e da cultura, para que a lógica de um domínio não invada a lógica do outro domínio, com todos os problemas que essa distinção acarreta. Q u e r o fazer, prim eiro, u m a observação bem ingênua e lateral a esse respeito. T e n ho u m a im pressão m uito esquisita acerca da ciência c o n te m p o râ n e a , m uito excên trica. Essa excentricidade baseia-se no seguinte: na história da cultura h u m a n a nunca se teve t a m a n h o senso de historicidade, isto é, u m senso segundo o qual as coisas variam m uito e fortem ente segund o o tem po. Por exemplo: d u r a n te um bom p a r de milênios, boa parte da h u m a nidad e acreditava que o sol girava em to rn o da Terra. O ra , as pessoas n ã o eram necessariamente menos inteligentes do que os as trô n o m o s dos séculos X \T e XVII, e n ã o eram ta m b é m n ecessariam ente m enos descuidadas em suas observações. Nesses dois séculos, passa-se acreditar no oposto. Em q ualquer setor d o c o n h e cim en to h u m a n o , verificam-se fenôm enos aná lo g o s a esse tipo de
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questão: d u r a n te certo te m p o algo é t o m a d o p o r verdadeiro, e, depois, aquilo que era to m a d o c o m o verdadeiro passa a ser to m a d o c o m o falso. Tem -se aí a te ntaç ão do relativismo, isto é, n unca se te m a possibilidade de d eterm in a r que algo é verd a deiro, mas som ente a possibilidade de to m a r algo co m o verdadeiro, co rren d o o risco de a m a n h ã isso ser to ta lm e n te falso. E ntão, p o r um lado, a ciência c o n te m p o râ n e a desenvolveu fortem ente esse senso da sua p ró p ria historicidade; p o r o u tr o lado, a ciência m ode rna parece esquecer esse sentido da sua própria historicidade e se ap re senta com a explicação última acerca da realidade. A maioria dos filósofos da ciência, n ã o dos cientistas, considera que a ciência c o n te m p o r â n e a e u m a espécie de es tá gio final d o p en s a m e n to científico, c o m o se pensava que a filosofia seria esse e s tá gio final. Isso é u m a mistificação com p leta d o c o n h e cim en to científico, que n ão co rresp o n d e à atividade científica. As c h a m a d a s ciências h u m a n a s ta m b é m foram vítimas, o u p r o d u to ra s , de um o u tr o tipo de mistificação, a saber: apresentarem -se nas suas esferas de a t u a ç ã o com o m esm o grau de “e x a tid ã o ” e “ ce rtez a” que se en c ontra no d o m ín io das ciências naturais. A ec o nom ia , por exem plo, é u m a fra u de, n ã o no sentido m oral, m as no sentido cultural. O s econom istas possuem uma respeitabilidade social fora d o co m u m , n ã o há um a c onte cim ento que o c o rra para o qual um economista n ão é c h a m a d o a o pina r e, ta n to qu an to eu saiba, nunca foram capazes de acertar um a única previsão. De o n de vem esse incrível prestígio social dos econom istas senão d o fato de eles se a u to -a p re sen tarem c o m o cientistas? Eles dizem: “ nós sabem os, conhecem os os m e ca n ism o s” , ou seja, em ciência isso q u er dizer que conhecem as leis que d ete rm in a m que tais coisas ac o nte ce rã o assim e não de u m a o u tr a m aneira alternativa. Essa hegem onia cultural que a ciência passou a assum ir, hegem onia essa que era até e n tã o o c u p a d a pela religião, é incompatível com a ética se, prim eiro, o senso de historicidade d o p en s am e n to d esem b o c ar n u m relativismo e, segundo, se a perd a d o senso de historicidade d o con h e cim en to d e se m boca r n u m a espécie de determ inism o a b s o lu to d o c o m p o rta m e n to h u m a n o , no a f a s ta m e n to co m p leto d a responsabilização. .Agora, isso não é um p ro b le m a da ciência p ro p ria m e n te dita, mas mais um problem a dos filósofos da ciência. O s cien tistas, pelo co n trá rio , estão fortem ente interessados em p ro blem as éticos.
Nas linhas finais de seu artigo “Sur une critique de la raison ju rid iq u e ”, podemos 1er: “devo acrescentar que existem ainda em Kant questões muito importantes que continuam a aguardar uma resposta definiti va. Mas, como já se disse, tenho por vezes o sentimento de que as mais importantes ainda não foram formuladas”. Quais seriam essas questões? Uma delas é a seguinte: K ant distingue claramente, ou pretende distinguir claramente, raz ão teórica e razão prática. A o m esm o te m p o , insiste p ro fu n d a m e n te na u nidade da razão, d izen do que n ã o são d u a s razões, mas que são dois m odos de utilização de u m a única razão. Ao lado disso, ele afirm a ta m b é m que os resultad os o b tidos através da raz ão teórica são de um certo tipo, e os resultados o b tid o s m edian te o uso prático da raz ão são de um o u tr o tipo c o m p letam e n te diferente. O uso da r a zão teórica perm anece n o d o m ín io fenom enal, n o d o m ín io do estrito determ inis m o, e o uso prático da razão vai além d o d o m ín io fenom enal, vai p ara o tran sc en dente, p o rq u e a existência de D eus e a im o rta lid a de da alm a passam a ser p o stu la
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dos racionais da raz ão prática. Essas teses k a n tia n a s a respeito da u nidad e da r a zão, d o uso teórico e d o uso p rático da razão , p erm a nec em obscuras até hoje. Essa dificuldade ta m b é m vem de um p en s am e n to bem mais antigo , de Aristóteles por exem p lo, q u a n d o ele trata d o que ch a m a de silogismo prático, p o r con tra ste e c o m p a ra ç ã o com o silogismo teórico. Esse é um p ro b lem a q u e K a n t herda e n ã o é ca paz de f o rm u lar de m aneira to ta lm e n te persuasiva. H á ain d a u m a segunda d ificuldade, esta de n a tu re z a pessoal. Refere-se ao conceito de natureza de K ant e o conceito de n atureza dos clássicos. Penso que K ant aceita em parte a tese h u m e a n a segu ndo a qual n ão se pode deduzir n e n h u m a p r o p osiç ão n o rm a tiv a de proposiçõ es descritivas, ou seja, que o real é m o ra lm e n te neutro. C laro que essa concepção é co m p le ta m e n te incom patível c o m a co ncepção medieval. L em b ro -m e de um ex e m p lo de H u m e p r e o c u p a d o em m o s tra r q u e de proposições descritivas n ão se p odem deduzir proposições norm ativas, p o r ta n to , que n ão se p odem justificar as segundas pelas primeiras. Ele diz o seguinte: “ por qu e você faz tal coisa? P orqu e sou cristão e é um m a n d a m e n to divino q u e tal coisa deva ser feita. M a s p o r que você acata o m a n d a m e n to d iv in o ?” . O r a essa é um a perg u n ta provavelm ente ininteligível p ara um p e n s a d o r medieval. O conceito de natu re za , em K ant, é m u ito p r ó x im o do conceito h u m e a n o de natureza. E isso ta l vez seja um dos elementos de co m preensão da separação que K ant term ina por fazer entre raz ão teórica e ra z ã o prática. Essa separação , não o b sta n te as reiteradas afir mações da u nida de, n ão é a b s o lu ta m e n te com preensível. Essa é um a das perguntas que gostaria de ver a d e q u a d a m e n te fo rm u lad a s e respondidas.
Nesse mesmo artigo, “Sur une critique de la raison ju rid iq u e ”, o senhor afirtna o seguinte: “o pensamento crítico pretende-se uma ciência do ser verdadeiro”. Isso não significa im putar a Kant uma ontologia que o criticismo teria superado? T o d o o m u n d o aceita o critério aristotélico da verdade e n ão p ro p ria m e n te a d o u trina aristotélica da verdade. Q u a n d o digo que as coisas são de um certo jeito, e as coisas são d o jeito que digo que elas são, en tã o estou dizendo a verdade. Q u a n d o digo que as coisas são de um ce rto jeito, e as coisas não são d o jeito que digo, e n tã o estou d izendo o falso. O s filósofos medievais, em especial S. T o m á s de .Aquino, intro d u z ira m a idéia de a d e q u a ç ã o e de co n c o rd ân cia. Surgiu en tã o a d o u tr in a da ad e q u aç ão : u m a p ro p o siçã o é v erdadeira se ela c o rresp o n d e a o real, se ela é a d e q u a d a a o m u n d o etc. K ant form ula um a crítica a essa concepção da d o u tr in a da ad e q u a ç ã o e diz: “ V am o s co nsiderar que o p en s am e n to é verdadeiro q u a n d o ele co rresp o n d e àquilo sobre o q u e está p e n s a n d o ” . C o m o é que se determ in a qu e ele corresponde? N ã o se tem n enhum p onto externo ao próprio pensamento que se possa o c u p a r p a r a d ete rm in a r essa correspondência. Aliás, é preciso lem brar que K ant é o único filósofo p r o p ria m e n te ateu, e m bora fosse extrem am ente religioso. T a n to a fundam entação d o conhecimento q u an to a fundam entação da m oral prescindem da dem o nstração da existência de Deus. K ant é o prim eiro p en s ad o r do O cidente que foi ca paz de um a em p re ita d a desse tipo, pois tod o s os seus predecessores p ro c u r a r a m justificar o conh e cim en to h u m a n o e a realidade da aç ão h u m a n a m ediante algum recurso transcendente.
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M as, fechado esse parêntese, o que faz K ant repetir Descartes? M o s tra que n ão tem os n en h u m critério ex te rn o ao p r ó p rio p en s am e n to a o qual nós possam os recorrer p ara saber se o p en s am e n to é verdadeiro. Se o p e n s a m e n to é verdadeiro, e se n ós som os capazes de reconhecê-lo co m o verdadeiro, então é m ediante certas pro p rie d ad e s que nós reconhecem os n o p r ó p rio pensam ento. O único acesso que tem os à realidade é através d o p en s a m e n to da realidade. O que faz Descartes? In tr o d u z o critério da d úvida e diz o seguinte: “ Um p en s a m e n to é duhitávei se exis tem razões p a r a to m á -lo co m o falso. C o n tu d o , se eu p ro v ar qu e existe um p ensa m ento, o u um conju n to de pensam entos, que n ão seja passível de dúvida, então não p osso to m á -lo co m o falso e, p o r definição, eu o to m o necessariam ente p o r v e rd a d e i r o ” . Isso n ão é m u ito diferente, do p o n to de vista de estratégia, d o p ro ce d im en to k a n tia n o que consiste em dizer o seguinte: se eu d e m o n stro que um pensam e n to é universal e necessário, en tã o eu te nh o tu d o aquilo que é razoável esp erar para considerá-lo co m o verdadeiro. P o rta n to , n ã o preciso recorrer a n e n h u m a p r o p rie d ad e externa a o p ensam ento , senão a um a característica im anente a ele próprio. É som ente nesse sentido que se p ode dizer q u e o pro ce d im en to criticista k a n tia n o é um a ciência do ser verdadeiro, desde que o ser verdadeiro seja to m a d o nessa acepção. G osta ria ainda de fazer mais um parêntese: em razão das causas psicanalíticas das m inhas dificuldades em publicar meus textos, que carid o sam en te deixam o s sob silêncio, nunca corrijo os meus artigos. E ntão surpreende-m e que eu ten h a es crito isso, pelo m enos n ã o me lem bro de te r escrito.
Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade? V am os considerar um segm ento de te m p o um p o u c o m aior d o que a atualidade. T o d o s os grandes pensadores d o século X X estiveram d iretam ente envolvidos com o desenvolvimento do conhecimento científico, em particular com o desenvolvimento de alguns setores desse conhecim ento. Afinal, com as ciências naturais, nós tivemos nesse século d u as realizações espantosas d o p e n s a m e n to científico: p o r um lado, a relatividade e, p o r o u tr o lado, a física de partículas — a mecânica q uântica . A pri meira parece nos obrigar a alterar concepções tão fundam entais q u a n to as de espaço e tem po, e a segunda parece ta m b ém nos obrigar a alterar concepções m uito originá rias, co m o a de causalidade, p o r exem plo. M e x er com espaço e te m p o e m exer com a causalidade é m uita coisa. H á ta m b é m , n o final d o século X IX e com eço do X X , o dom ínio das ciências formais. K ant escreveu que no essencial a lógica estava a c a b a d a, m as depois Frege inventa a teoria da quantificação. Ao m esm o te m p o , os m a temáticos resolvem fazer a teoria dos conjuntos, que, segundo a expressão de Flilbert, é o paraíso: “ N in g u é m vai nos ex p u lsa r d o p ara íso c a n t o r i a n o ” . O que tem de paradisíaco no paraíso cantoriano? T u d o aquilo que a matemática até então conhecia p ode ser e x pre ssado pela te oria c a n to ria n a . Essa te oria unifica tu d o , pois não se conseguia unificar a álgebra c o m o cálculo e co m a teoria de núm eros. A teoria c a n to ria n a põe tu d o isso no seu devido lugar. Bom, se ela é ca p az de fazer coisas que n e n h u m a dessas ou tras teorias foi ca p az de fazer, ela é o paraíso. .Vias, co m o to d o o m u n d o sabe, no paraíso há um a serpente. A serpente d o paraíso c a n to r ia n o
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é a seguinte; a teoria cios con ju n to s é p ara d o x al. O s m atem áticos ficaram m uito aborrecid os, pois e n tra ra m n o paraíso e n ão conseguiram m a ta r a serpente |risosj. Esses três desenvolvim entos foram m uito im p o rta n tes para o desenvolvim en to do p ensam en to. .Mesmo um filósofo co m o Heidegger, que ap a re n ta ser distante dos desenvolvim entos form ais — da m a tem ática e da lógica — , m o stra um forte interesse pelo desenvolvim ento da lógica fregeana em alguns de seus escritos inédi tos (que ag o ra estão sendo publicados). Ele dava cursos inteiros sobre esse tema. Russell nem se fala, e m b o ra eu n ão o considere da m esm a estatura de H eidegger e Wittgenstein. Este último passou a sua vida inteira, ta n to no Tractatus q u a n to nas Investigações filosóficas, c h a m a n d o a atenção para a mistificação d o con h e cim en to científico que acontece no nosso tem po. N o Tractatus a idéia era bastante clara: só a ciência é ca p az de nos fazer co m p re en d e r tais e tais coisas. .Mas, p a ra as coisas realm ente im po rta n tes, a ciência é inútil. Já nas Investigações ele executa um a o p e raç ão co m parável às das ciências físicas e formais. O seu projeto original era escre ver, na segunda parte das Investigações filosóficas, sobre o fun cio n a m en to da m a tem ática, coisa que nunca executou. O p roblem a geral do nosso século foi. pelo m eno s até recentem ente, co m o descrevi. Ao m esm o te m p o , no e n ta n to , é visível que a filosofia recua de m aneira defensiva em relação à ciência. H o je em dia, é m u ito difícil um filósofo ter alg um a audiência ao refutar, m ed iante arg u m e n to s filosóficos, a rg u m e n to s científicos. O ô nus da prova nunca é do cientista, é sempre do filósofo. Isso significa que, do p o n to de vista social e da credibilidade, o c a m p o retórico está c o m p letam e n te alterado. E o cientista quem o c u p a o ce n tro desse c a m p o e tem a presunção da verdade. E, do p o n to de vista cultural, essa situação é p ro fu n d a m e n te em p o b re ce d o ra , pois a filo sofia tem de se defender e tornar-se respeitável peran te a ciência, nem sem pre com resultados favoráveis. Hoje, nos Estados Unidos, existe u m a coisa c h a m a d a neurofilosofia, p a tro c i nad a pelo casal C h u rc h la n d , cuja em presa mais bem -sucedida é a neurociência. Eu fui c o n te m p o r â n e o de um o u tr o em p re en d im en to , o da inteligência artificial. Esse em p re e n d im e n to com eçou co m o projeto de tr a d u ç ã o a u to m á tic a , derivou p ara a inteligência artificial e, agora, estuda a neurociência. A tradução autom ática começou em 1960, p atro c in ad a pelos g overnos n o rte-am erica no e russo, e queria en c o n trar p ro g ra m a s de c o m p u ta ç ã o que fizessem a tr a d u ç ã o a u to m á tic a de um a língua para o u tra. Rios de d inhe iro fo ram investidos, m uitos pesquisadores p as saram mais de dez anos tr a b a lh a n d o , e o desastre foi com pleto. Depois disso, ninguém mais falou em tr a d u ç ã o au to m á tic a , to d o o m u n d o a b a n d o n o u a idéia de traduz ir G uim arães Rosa p ara o russo, ou Shakespeare p ara o chinês, com um p ro g ra m a de c o m p u ta d o r Irisosj. C]omeçou-se en tã o a considerar o projeto da inteligência artificial: que um c o m p u ta d o r , ou seja. um a m á q u in a incrivehnente lim itada, que usa um frag m e n to lógico minúsculo e que faz um a p orcariazinha de cálculo, pudesse o p e r a r da mesm a m a n eira que o e n te n d im e n to h u m a n o . Parcia-se e n tã o da seguinte c o n s tatação: ora. já que pod em os sim ular esse c o m p o rta m e n to , q uem sabe nós p o ssa m os sim ular ta m b ém tod o s os c o m p o rta m e n to s h u m a n o s inteligentes. Foram rios de dinheiro, m uitos pesquisadores envolvidos, e. até agora. nad a . E ntão, o projeto atual é a neurociência. isto é. e n c o n tr a r a base neurológica dos c h a m a d o s c o m p o r
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ta m en to s inteligentes. Q u e isso seja um p ro b le m a de pesquisa notável, de biologia, de n e u rob iologia etc., n ã o há dúvida. O p ro b le m a são os resultados filosóficos que são retirados a t a b a lh o a d a m e n te disso. Essa neurofilosofia é o besteirol c o n t e m p o râneo c o m o qual nós tem os de conviver na relação entre filosofia e ciência hoje.
Desde Hegel, no século XDí, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda de. Como o senhor se posiciona em relação a esse debate? De fato sou u m a m a d o r em relação ã arte, n u m d u p lo sentido; prim eiro no sentido etim ológico da palav ra — eu go sto de arte; m as ta m b é m no sentido co rriq u eiro da palavra — n ão sou um estudioso de estética. Leio de um a maneira amadorística livros sobre sociologia, história e filosofia da arte. C u rio sa m e nte, n ão ac ho qu e essa seja a p ergunta mais im p o rta n te que um filósofo deve f o rm u lar hoje, a saber; a p erg u n ta sobre o fim da arte. G o sto m u ito de um a u t o r n o rte -a m e ric a n o c h a m a d o A rth u r D a n to , que passou a vida inteira q u e re n d o ser artista, não obteve sucesso e ac a b o u to rn a n d o -se filósofo. A gora, c o m setenta e p o u c o s anos, é crítico de artes plásti cas. A p erg u n ta de D a n to que me fascina é; quais sãos os critérios p a r a se distin guir algum a coisa que é um a o b ra de arte de o u tra coisa que n ão é u m a ob ra de arte indepen dentem en te, ou m elhor, antes de nos p e rg u n ta rm o s se é u m a boa ou m á o bra de arte? Por exemplo; um c u r a d o r de m useu pega a lata de sopa C a m pb ell’s de Andy W a r h o l e a c o m p ra p o r não sei q u a n t o p ara o museu. Pode-se ir ao supe r m e rc ado e en c o n trar um a latinha igual àquela. Por que a lata d o W arhol é um a obra de arte e a d o s u p e rm e rcad o n ã o é? D o m esm o m o d o , pode-se c o m p a r a r o vaso sa n itá rio de D u c h a m p e um ban h e iro público, que n ã o é u m a o b ra de arte. Esta é u m a perg u n ta filosoficamente fascinante, e, d o p o u c o que co nheço, a m elhor res posta é a d o p ró p rio D a n to , que consiste em dizer o seguinte; é impossível dissociar o conceito de o b ra de arte das intenções h u m a n a s. “ Ser u m a o b ra de a r t e ” não é um p redicado que a coisa tenha nela m esm a, in d e pend entem ente d a relação que ela tenha com os seres h u m a n o s. Pelo co n trá rio , ela d epende das intenções daqueles que as fazem, isto é, dos artistas.
Qual é a diferença entre filosofia e literatura? A cho que a filosofia ain d a preserva o seu ideal grego a o p r o c u r a r c o m p re en d e r o ser e n q u a n to ser, a qu ilo que existe na m edid a em que existe. O essencial da litera tu ra n ã o é a c o m p re en sã o direta d aqu ilo que existe na m edida em que existe, mas talvez o c o ntrá rio; ela p ro cu ra co m p re e n d e r aquilo que existe m e diante com p reensões alternativas, e p o r meio da co n s tru ç ão dessas alternativas. A literatura é um in stru m e n to insubstituível de co m p re e n sã o da realidade justam ente p o r n ão p r o c u ra r entendê-la diretam ente, mas co m o um a alternativa dentre o u tr a s igualm ente possíveis. U san d o um vo cab u lá rio leibniziano, eu diria que a literatura é um e x e r cício p e rm a n en te de co n s tru ç ã o de m u n d o s possíveis. Nesse sentido, ela é in sub s tituível p ara a filosofia. A segunda resposta que eu d aria p a r a distinguir filosofia de literatura t a m bém é igualm ente clássica; desde Aristóteles a gente sabe que n ã o se p ode descre ver e dizer um indivíduo na sua individualidade. S. T o m á s vai dizer que o indiví
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d u o é inefável. Isso não tem n a d a de místico, é um a tese que se segue apenas c o n ceitualm ente: um indivíduo, e n q u a n to indivíduo, nunca pod erá ser expressado a d e q u a d a m e n te em palavras, ta n to em term os conceituais q u a n t o filosóficos. Eu p en so que a literatura é justam ente um in stru m e nto que nós temos de ap re sen ta r um a situação individual na sua individualidade. Penso, p o r exem p lo, que um rom ance, u m a tragédia, são os únicos in strum e nto s h u m a n o s capazes de ap re sen ta r o indiví d u o co m o tal. Isto é um a diferença fu n d am e n tal entre a filosofia e a literatura.
É hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe nômeno essencialmente nacional, e, atualmente, não seria mais etndente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como o senhor vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que parecem desfrutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias? U m a coisa é respon der a essa pergunta em princípio, o u tra coisa é respondê-la le v an d o em co n sideraç ão a situação con creta na qual a p erg u n ta é pertinente. Pri meiro: ninguém recusaria a idéia de u m tribunal internacional realm ente neu tro. Segundo: ninguém recusaria a idéia de um a força internacional ca paz de d im in uir conflitos, desde qu e essa força internacional fosse realm ente neutra. Dessa m a n ei ra, nem o caso do tribunal nem o caso militar p o d eria m expressar interesses e p r e dileções de d eterm in a d o s g rupos, sejam étnicos, econôm icos, ou o q ue for. O r a , do p o n to de vista teórico, a idéia de E s ta d o - \ 'a ç ã o está em crise, e é necessário que os intelectuais se p o n h a m a p en s ar nas alternativas possíveis a essa idéia. N o e n tan to , esta crise d o E sta d o -N a ção está a c o m p a n h a d a p o r u m a crise moral: n ão existe mais nen h u m c o n ju n to de regras de c o m p o rta m e n to , n e n h u m c o n ju n to de prescrições de c o n d u ta que seja universalm ente aceito. Pelo c o n trá rio , as pessoas ac h a m que não existe tal conjunto, que ele não p ode existir e que é ótim o que n ão exista. Dei xem eu c o n ta r um a história: nesse m o m e n to , na CPI d o mais fam oso hospital de P orto Alegre, está se av e riguando o caso de u m a senhora de 88 anos que tem um c o n ju n to de deficiências cardio-respiratórias. Ela teve um a esquem ia cerebral p r o f u nda que atingiu o seu tron co, foi levada á UTI e está ligada a aparelho s. Depois de um d eterm in ado tem po, pouco a p o u c o foram restabelecidas as suas funções n o r mais, particu la rm en te as respiratórias. Estabelecido um certo p a ta m a r de fun cio n a m e n to respiratório, ela foi colocada n u m q u arto . N o dia seguinte, im e d ia ta m e n te ela teve um a p a ra d a c a rd io-respira tória, e voltou a ser ligada ao s aparelhos. O cardiologista en tão p erg unta para a filha dessa mulher: “ V am os tr a ta r agora da ressu rreição?” . A filha diz: “ C o m o assim ?” . E o médico: “ Q u eria saber, no caso de ela sofrer um n o v o episódio de p a ra d a ca rdio-respira tório, nós a rea n im am o s ou n ã o ? ” . A perg u n ta é simples: um a pessoa ligada a ap a relh o s tem a perd a de sua c a p ac ida de de consciência; se essa pessoa tem um a p a ra d a cardio -respiratória, ela deve o u n ão ser reanim ada? V am os voltar então à q u estão d o fim d o E sta d o -N a ção . A parentem ente n ão existe resposta, n ã o se aceita esse tipo de questão. Algumas pessoas ac h am que n ão
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há o que fazer. Já ourras pessoas acham que em circunstância n e n h u m a , nesse caso, pode-se om itir socorro. A cho qu e a reflexão política c o n te m p o râ n e a , ain d a que n ã o possa ser c o n fu n d id a co m u m a análise ética, n ão pode ser dela separad a. Isso de um p o n to de vista ab s tra to . D e um p o n to de vista conc reto, histórico, eu ignoro c o m o essas coisas se passam , e m b o ra u m a p arte da im prensa considere q u e a c o n s tituição dessas instituições transnacionais responde, na verdade, aos interesses norteam erica no s e da C o m u n id a d e E uropéia. N o e n ta n to , antes de p en s arm o s em E sta d o tran sn a cio n al, devem os p ensar no E stado N acio n al. Um país que jamais c o n h e ceu o apogeu pode e n tra r nu m a sociedade sem E sta d o -N a ç ã o , sem jam ais te r sido um E sta d o -N a ção ?
Em seu artigo “Sur une critique de la raison ju rid iq u e”, o senhor escre veu: “todos os deveres, enquanto tais, reduzem-se aos deveres éticos. Isto quer dizer que os imperativos juridico-políticos são formalmente h ip o téticos. Se nós supomos sua condição (quer dizer, a lei moral) como dada, então sua justificação é puramente analítica”. Se interpreto bem, isto quer dizer que o “solipsismo” da prática kantiana não pode fu n dar o intersubjetivismo necessário do direito e da política. Como pen sar então as relações entre direito e moral? Uma moral fundada intersubjetivamente não poderia então estabelecer os laços com as exigên cias próprias do direito e da política? N ã o te n h o c o n d iç ã o se quer de esb o ç a r u m a respo sta a essa p e r g u n ta , m as vou em p re g ar o m esm o ardil que já em preguei an terio rm en te, o da co n tra p e rg u n ta . O que significa pensar u m a m oral fundada intersubjetivam ente? P odem os p ensar que um a m oral só é f u n d a d a intersubjetivam ente se to d o s os agentes concernidos p o r essa m oral estiverem de ac o rd o com as regras que a determ inam . Nesse sentido, por exem p lo, um a m oral mafiosa é um a m o ral intersubjetivam ente fu n d ad a . A p a re n tem ente to d o s os m e m b ro s d a família estão de a c o r d o com as regras. A gora, isso parece ser um a conseqüência indesejável p a r a um a m o ral intersubjetivam ente fu n d a d a , p o rq u e as suas regras n ã o apenas têm de ser em piricam ente aceitas pelos in divíduos concernidos, co m o têm de ser racionais e necessariam ente reconhecidas. Isso significa que a sua f u n d a m e n ta ç ã o em nad a depen de d o seu reconhecim en to intersubjetivo, pois ela p ode ser p rocedural. Eu aceitaria, de m aneira arb itrá ria , a co n c ep ç ão de m oral de H a b e rm a s , se ele m e apresentasse um te o re m a segundo o qual a decisão procedural excluísse o resto.
Q ual é hoje a implicação moral da idéia de felicidade? W ittgenstein m o ra v a no m esm o prédio em que m o rav a Russell. Ele tinha 19 an o s e Russell tinha quarenta e tantos. Certa vez W'ittgenstein foi. p o r volta da meia-noite, à casa de Russell, e este lhe p ergu ntou: “ N o que você está p en san d o , Wittgenstein? N a lógica, ou em seus p ec ad o s ?” . W ittgenstein respondeu: “ N o s d ois" [risos]. M a s o q u e eu q u ero c o n ta r sobre a felicidade é o seguinte: certo dia, Russell p erg u n to u a W'ittgenstein: “ Você qu er ser p erfeito?” . Ele respondeu: “ C l a r o ” . C^omo se fosse óbvio para q u a lq u e r ser h u m a n o asp ira r à perfeição! A n o çã o de felicidade m o d e r na tem um c o n teú d o relativamente preciso, que n ã o tem mais n a d a a ver com o con-
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teiidü p e n s ad o pelos antigos. T e n h o a im pressão de que a cu ltu ra c o n te m p o r â n e a é ex tre m a m e n te platônica, p o r mais que isso possa parecer co n tra d itó rio . Platão, co n tra Aristóteles, afirm ava um dualism o irredutível do ser hu m a n o : som os c o m po stos de du as coisas e a nossa m elhor p a r te é aqu ilo que veio depois a ser c h a m a do de alm a. D evemos usar o c o rp o d en tro de limites bem precisos, devem os ter u m a disciplina do c o r p o etc., s u b o r d in a n d o to d a s as suas atividades e desejos às ativi dades e desejos superiores da alm a. O que é im p o rta n te em Platão n ão é essa s u b o rd in a ç ã o , mas a s e p araç ão de du as atividades, de dois d o m ínios com p letam e n te in dependentes. ,Acho que a cu ltu ra c o n te m p o râ n e a é platônica no sentido de t a m bém possuir d o m ínios c o m p letam e n te diferentes de atividades. De um lado, o d o mínio de atividades de um d e te rm in a d o tipo, e, de o u tr o lado, o d o m ín io de ativi dades de um o u tr o tipo c o m p letam e n te diferente, que, em Platão, seriam conside radas c o m o atividades inferiores, atividades corporais. E difícil, p o r exem plo, di zer de m a n eira m in im am en te persuasiva que é m e lh o r escutar Bach d o que escutar “ rock p a u le ir a ” . A resposta cultural é: “ C a d a um na su a ". Para a cultura c o n te m p o râ n e a , nâo há n e n h u m a raz ão objetiva para se afirm ar que Bach é m e lh o r do que “ rock p a u le ir a ” , pois c a d a um escolhe a p arte q u e ac h a mais a d e q u a d a p a r a si mesmo. A cultura c o n te m p o r â n e a é platônica p o r q u e não junta mais as coisas. A felicidade na cultura c o n te m p o râ n e a não é mais co m o os antigos a to m a v am : co m o a realização perfeita daq u ilo de que o ser h u m a n o é capaz. .A felicidade, hoje, é socialm ente apre sen ta d a co m o co n su m o . Ser feliz é p o d er fazer coisas, em p a r tic u lar ir a .Vliami um a vez p o r a n o p ara c o m p r a r quinq uilharias. H á um a moça em São Paulo, m u ito m in h a am iga, que leva adolescentes da alta burguesia paulistana p ara fazer um curso de inglês em C a m b rid g e e de francês na França. .A primeira coisa q u e os adolescentes fazem q u a n d o ch egam a Paris é p e rg u n ta r o n de fica o M c D o n a ld ’s e o nde p odem c o m p ra r blusões de m arca. Isso exprim e n o que consis te a as piração à felicidade dos brasileiros da nossa classe social, n ã o a dos brasilei ros em geral. Dos brasileiros em geral, a felicidade consiste nas coisas mais f u n d a m entais, c o m o co m er, do rm ir, tra b a lh o , saúde, e d u c aç ão etc.
Como o senhor caracterizaria a sua relação com a religião e a fé? N u m a palavra; te n h o respeito pela religião antiga tal co m o ela se expressava até os a n o s 1950. F. te nho respeito pela fé, desde que n ão seja supersticiosa. N ã o sou re ligioso e n ã o te nho fé. M a s q u e r o fazer essa restrição pela seguinte razão: o cristia nism o teve um a função cultural fu ndam e ntal no O cidente. Eu tive u m a form a çã o católica, estudei em colégio cató lico e lem b ro-m e d a f o rm a ç ã o q u e os jesuítas e dom inicanos tinham naquela época. A religião hoje se expressa essencialmente a t ra vés d o padre M arcelo, esse tipo de X u x a católico que n ão se diferencia, no essencial, d o bispo Edir M a c e d o . O s seus pro ce d im en to s são do m e sm o m o d o execráveis. Q u a n t o à fé, lançaria essa m esm a reserva. As religiões atu a lm e n te apresentam -se essencialmente c o m o m e rc ad oria , e a d im ensão especulativa das grand es religiões da palavra, das religiões m onoteístas — o islamismo e o cristianism o — , p erde ra m justam ente aquilo que as distinguia: a relação com a palavra, com a justificação, co m a a r g u m e n ta ç ã o , com a exegese etc.
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Como 0 senhor se situa em relação aos problemas de uma “mudança de paradigma” da filosofia, de uma filosofia “pós-metafísica” calcada na linguagem? É necessário que a gente se en ten d a q u a n to à expressão “ pós-m etafísica” . M e ta fí sica, na sua acepção mais precisa, significa aquilo que K ant eliminou na “ tarefa trans c e n d e n ta l” , isto é, algo que co m o ciência específica é impossível. Dessa form a, a filosofia k an tian a é essencialmente pós-metafísica. M a s há dois problem as aqui: pri m eiro, resta saber se os a rg u m e n to s k a n tian o s são p rob antes; segundo, se o fato de não fazerm os mais ciência metafísica dep ende de p rovas que nos foram ap re se n ta das e pelas qu ais fom os persuadidos, ou se depende de o u tro s fatores extra-argum entativos, extra-racionais, o u seja, fatores c o n tra tu ais, culturais etc. A nossa cul tu ra to d a é antim etafísica, n ã o é só a filosofia que é pós-metafísica. Essa é u m a prim eira obse rva çã o que devem os fazer. A segun da o b se rv a çã o diz respeito a o fato de a filosofia, n ã o o b s ta n te ser m a ioritaria m ente pós-metafísica, c o n tin u a r p r atican d o tem as metafísicos e se inte ressar fortemente p o r tem as metafísicos com o, p or exem plo, a liberdade — um tema que é d o m in a n te em vastos setores da investigação filosófica. N ã o é ã toa que há um ressurgim ento m uito grand e das c h a m a d a s teologias racionais. A terceira o bse rv a çã o qu e faço diz respeito a u m a filosofia cujo p o n to central é a linguagem. A linguagem só tem interesse p ara a filosofia na m edida cm que: 1) nós to m a m o s a linguagem c o m o e x p re ssão do p e n s a m e n to , c o m o e x p re ssão da razão; 2) ap e nas a to m a m o s naqueles aspectos que são expressão do p en s am e n to e do h u m a n o ; 3) nós a consideram os u m a expressão de mais fácil acesso à c o m p re e n são do que o p ró p rio p e nsam e nto, do que a p rópria razão, isto é, que há ca ra c te rísticas d a linguagem que não são expressão d o p e n s a m e n to , ou que são específi cas ã língua. E studar a fonética, a sintaxe, a lingüística, n ã o tem n e n h u m a relevân cia filosófica. A cho que o m aior filósofo da linguagem foi Aristóteles, ou Platão (isso depend e m u ito das preferências), e aqu ilo que no nosso século passou a ser c h a m a d o de filosofia da linguagem , no que havia de filosoficamente fecundo, n ão tinha n e n h u m laço necessário co m a linguagem. E, n aquilo em que havia necessariam en te um laço com a linguagem, era filosoficamente escasso. Recorrer ao O E D (Oxford English Dictionary) p a r a resolver pro b lem as de filosofia é um d o s piores p ro ce d i m entos que eu já vi. Por o u tr o lado, d o p o n to de vista m etodológico, o recurso à linguagem é, co m o q u a lq u e r o u tr o , bem utilizado, de g ran d e valia.
Como o senhor vê hoje a filosofia analítica? C o m certeza já tem missa de sétimo dia, quiçá missa de um a n o [risos]. D epende d o que a gente entende p o r filosofia analítica, já qu e ela é um saco de vários gatos. Um dos gatos, um dos progenitores dessa prole, foi o neopositivism o lógico — um a peça de m useu im p o rta n te, pois ap re n d e m o s m u ito com os erros alheios. N o caso d o neopositivism o, sucedeu-se a filosofia da linguagem o rd in ária , que é um a filo sofia m u ito ord inária. N o s anos 4 0 , W ittgenstein disse u m a frase de e xtrem a cruel dade: “ A filosofia da linguagem o rd in ária n ã o é filosofia, q u a n d o é filosofia é m á filosofia” . T a m b é m a filosofia da linguagem ord in ária n ã o pro d u ziu n e n h u m re sultado filosoficamente expressivo, n ã o pro d u ziu nen h u m esclarecim ento im p o r
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ta nte, sequer um a refo rm u laç ão cie questões filosóficas. O grand e legado da filoso fia analítica à filosofia c o n te m p o râ n e a foi o restabelecim ento da clareza, da d istin ção e da a rg u m e n ta ç ã o em filosofia. M a s isso n ão é particular à filosofia analítica. Se se c o m p a r a P latão a Aristóteles, P latão foi um dos clássicos da literatura grega, um dos pro sad o res que a Grécia jam ais pro d u ziu n ovam ente, e n q u a n to Aristóteles escreve m u ito mal. M a s são dois estilos de d em o n stra ç ã o c o m p letam e n te diferen tes, e não há razão a priori de privilegiar um em relação ao ou tro . H á , no e ntanto , u m a diferença essencial que me faz preferir o estilo aristotélico ao estilo platônico: a diferença é que se pode ensinar o estilo aristotélico, e n q u a n to que o estilo p la tô nico depende de talento. Poesia sem talento é um desastre, já a prosa sem talento n ã o é tã o desastrosa assim. Pode-se descrever, m e sm o sem talento, o estado dessa sala, mas fazer poesia do estado dessa sala requer um talento e x tra o rd in á rio . En tão, o legado da filosofia analítica é esse (e não defendo que seja o melhor): é mais fácil ensinar filosofia m ediante os recursos da clareza, da distinção e da a r g u m e n tação, d o qu e ensinar a filosofia sob o m o d o alusivo, em que o m odelo f u n d a m e n tal é a poesia, a alusão. .Agora, q u a n d o a poesia filosófica e a alu são filosófica se e n c o n tra m , saem o b ra s a b s o lu ta m e n te ex tra o rd in árias. M a s é de c h o r a r q u a n d o a gente lê alguns textos em que um sujeito quer fazer poesia filosófica e n ã o sai d a quelas b analidades assustadoras. Espero que se reservem lugares p ara os grandes p ro sad o res da filosofia. O senhor utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do futuro da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia? V ou r esp o n d e r essa p ergunta em du as etapas: a prim eira e ta p a diz respeito a o que eu gostaria que fosse a sociedade h u m a n a . Nesse caso, eu m e lim itaria a um c o n junto de lugares-com uns atrozes. E ntão, passem os à segunda etapa. De um lado, c o rrem o s o risco de perder alguns valores universalm ente respeitados e f u n d a m e n tais: liberdade, igualdade, fra tern id a d e etc. De o u tr o lado, se preservássem os as id entid ades culturais, isto é, se a diversidade de m anifestações h u m a n a s n ã o se apagasse, n ão haveria M c D o n a ld ’s p o r to d a parte. C o s tu m o dizer que só conheço três coisas que são realm ente universais: a m atem ática, a C oca-C ola e o jeans. N a verdade, essas questões são desejos utópicos, p o rq u e, e m b o ra n ão seja um a pessoa qualificada p ara justificar as percepções que te nho dos en c a m in h a m e n to s da socie d ad e e da cultura c o n te m p o r â n e a , o meu sentim ento acerca disso é mais pessimista do que otim ista. Penso que os valores universais não serão preservados, pelo m e nos num praz o que eu possa perceber — ou que meus filhos possam perceber. A homogeneização cultural, a banalização cultural, parecem-m e tam bém um fenômeno irreversível. Essas du as perdas são ab s o lu ta m en te lastimáveis. E n tã o eu te nho um a utop ia positiva e u m a desconfiança negativa.
Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos co mo riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em larga escala e alienação cultural em massa. Como o senhor vê tais problemas? N ã o te n h o um a o p in iã o pró p ria e clara acerca desses problem as. Vejo, de um lado, u m a ideologia pseudo-científica d izen do que nós, seres h u m a n o s, e a ciência em
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p articu lar, sem pre en c o n tra re m o s as soluções para os p roblem as que criam os. Isso é um a afirm a çã o c o m p letam e n te in fu n d ad a e não verdadeira. Se fosse verdadeira, já teríam os algu m a prova de que isso seja plausível ou aceitável. Por conseguinte, é perfeitam ente possível que de fato estejam os c ria n d o p roblem as p ara os quais as gerações futuras n ão te rã o respostas a d e q u ad a s e n ã o d isp o rão de recursos a d e q u a dos p ara resolvê-los. Se é provável? N ã o sei. De o u tr o lado, to d a s essas c a la m id a des que são provenientes das ações h u m a n a s, as calam idad es ecológicas, parecem ap re sen ta r de m aneira bem simples o seguinte p ro blem a de filosofia, q u e me parece aceitável, e que nasce da seguinte suposição: nem nós, nem os nossos filhos seremos afetados diretamente e de m aneira irreversível p or essas calam idades ecológicas, mas as gerações d o futuro, que ain d a n ão existem, serão afetadas. A q u es tão filosófica interessante é: em prim eiro lugar, co m o é que os interesses de seres que n ã o existem devem d ete rm in a r a c o n d u ta de seres qu e existem? Em se g undo lugar, sobre que f u n d am e n to s nós atrib u ím o s direitos a seres inexistentes? N ã o estou dizendo que n ão se deve fazer, mas quero entender o porquê de fazermos isso, por que nós achamos que devemos fazer isso? C o m o é que seres inexistentes p o d em ser sujeitos de direito?
Quais são os seus projetos atuais e futuros? D epois de a m a n h ã , vou para Paris. H á dois anos e meio ab riu um a vaga de profes sor titular aq ui no D e p a rta m e n to de Filosofia. A posentou-se o pro fessor Ernildo Stein e, co m o sou o professor mais velho, há um a pressão am istosa dos mais jo vens p ara que eu faça o concurso. Esse processo exige a ap re sen ta çã o de u m a tese, en tã o eu preciso de seis meses p ara te rm in a r alg um a coisa que tenha pelo m enos co m eço e meio — pois o que escrevi até ag o ra só tem com eço, n ã o tem nem m e s m o meio. P retendo, nesses seis meses, escrever, te rm in a r e alin h av a r n o ta s sob a f o rm a de um livro sobre a n o çã o de te m p o e ação. T e n h o c o m o p o n to de partid a a te m p o raliz aç ão dos princípios lógicos de Aristóteles e u m a análise d o que ach o ser o mais perfeito co m en tá rio , feito p o r Boécio, do cap ítulo IX d o Tratado da inter pretação. Ele tem dois co m en tá rio s, sendo que um deles é genial. Depois, vou e x a m in a r o que significa o conceito a g o stinia no e boeciano de eternidade. T erm inarei mais ou m enos na direção em qu e se en c o n tra a tônica da tese, isto é, a distinção de dois m o d o s diferentes da te m poralida de: o m o d o prim itivo da te m p o ralid a d e, a te m p o ra lid a d e h u m a n a ou da a ç ã o h u m a n a , e a te m p o ra lid a d e física.
Vai ter primazia da prática? N ã o há prim azia de n a d a sobre n a d a [risos]. Vai te r prim azia d o conceito prático de te m p o sobre o conceito físico. T e n h o ain d a dois projetos a longo prazo: um li vro que comecei a fazer sobre algum as estru tu ra s de a r g u m e n to em filosofia. Vejo u m a certa hom ologia entre a m aneira c o m o Aristóteles “ d e m o n s tr a ” o princípio de n ã o -c o n tra d iç ão e o princípio d o terceiro excluído no livro IV da Metafísica-, a m aneira c o m o Descartes d e m o n stra que a pro p o siçã o “ eu sou, eu e x isto ” é neces sariam ente verdadeira q u a n d o a penso ou a afirmo; e a “ D ed u ç ão tr a n sc e n d e n ta l” , so b retu d o , a necessária aplicabilidade das categorias aos objetos da experiência em Kant. A idéia é a seguinte: n ã o existe d e d u ç ã o estrita em n e n h u m dos casos, e nem p o d e haver. Descartes e Aristóteles dizem isso expressam ente.
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C o n v ersas com F ilósofos B rasileiros
(-)Lirra coisa que prete n d o fazer é um artigo sobre a c o m p a r a ç ã o entre a filo sofia prática de Aristóteles e a filosofia prática de Kant. O artigo se c h a m a “ Uma defesa aristotélica de K an t" . T em um título d eliberadam ente p ro v o c a d o r para d i zer que a filosofia prática de K ant não é algo para se jogar fora.
Principais publicações: 1982 1999
“ Sobre o positivismo de W ittge nstein” . Wjitiiscrito, vol. 5, n" 1; "S aber, fazer e tem po: um a n o ta sobre A ristóteles” , in Edgar da R. M a r ques et. al. (orgs.i. Verdade, conhecimento e ação: ensaios em homenagem a Guido Antônio de Almeida e Raul Landim Filho (São Paulo: I.oyola).
Bibliografia de referência da entrevista; A quino, T. de. Suma teológica. Livraria Sulina. Aristóteles. Metafísica, M a d ri; Editorial Gredos. ___________ . Categorias, Lisboa; G uim arães. C a rn a p , R. Coleção O s Pensadores, Abril C ultural. D escartes, R. Meditações, coleção O s Pensadores, Abril C ultural. D a n to , A. After the end o f art, Princeton: Princeton University. Frege, G. “ Sobre a justificação científica de um a c o n c eito g ra fia” , coleção O s Pen sadores, Abril C ultural. H a b e rm a s, J. Consciência moral e agir comunicativo. T e m p o Brasileiro. H ilbert, I. Principles o f mathematical logic. N e w York: Interscience Publishers. K ant, I. Crítica da razão pura, coleção O s Pensadores, Abril C ultural. Leibniz, G. W. C oleção O s Pensadores, Abril Cultural. Russell, B. Coleção O s Pensadores, Abril Cultural. W ittgenstein, L. Tractatus logico-philosophicus, Edusp. ___________ . Investigações filosóficas, coleção O s P ensadores, Abril C ultural.
B a lth a za r B arbosa Filho
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IN D IC E O N O M Á S T I C O
A bram o, Lélia, 308 A dler, .Max, 375 A d orno, T h eo d o r W ., 60, 156, 162-3, 173, 1 9 6 ,2 3 9 , 3 2 5 ,3 5 8 - 9 ,3 8 1 A lm eida P rad o , D ceio de, 62, A lm eida, G uid o .■\ntònio de. 2 2 7 ,2 3 4 , 2 5 8 -6 0 ,4 1 2 -3 , 4 15 A lm eida, Jo sé A m érico de, 22 .Althusser, l.ouis, 97, 120, 152, 2 2 5 ,3 1 4 , 3 4 1 ,3 8 0 .Amoroso Lim a, .-Mceu (T ristão de A thayde), 27 6 , 338 .A naxagoras, 144 .Andrade, .Mário de, ''4 -5 , 149 A ndrade, O sw ald de, 91-2, 338 -Andrade, R u d á de, 92 -Anscombe, G ertrude E lisabeth, 267 •Arantes, .Aldo, 2 5 4 -5 , 340 .Arantes, O tília Fiori, 152, 361-2 •Arantes, Paulo K duardo, 99, 123, 126-7, 142, 150, 153, 157, 186, 1 9 9 -2 0 0 ,2 0 2 -4 , 2 0 7 - 8 ,2 1 4 - 6 ,2 2 5 ,3 0 3 , 3 3 7 ,3 7 7 ,3 8 1 , A rendt, H an n ah , 158. 282, 298 .Arida, Pérsio, 2 17 A ristóteles, 2 6 , 2 9 , 3 6 , 4 1 , 4 3 , 52, , 66, , 79, 83, 96, 120, 129-.Î0, 173, 187, 2 1 5 , 22 3 , 23 0 , 24 6, 255, 2 59, 26 8 , 28 4 , 307, 337, -M2, 35 3 , 36 0 , 3 8 1 ,3 8 4 , 4 1 2 ,4 1 4 -5 ,4 1 7 , 420, 423-6 •Arnou, René, 29 •Aron, R ay m o n d , 106 Bachelard, G asron, 4 6, 96, 109, 323 B achelard, S uzanne, 94 B acon, Francis, 226 B akhtin, .M ikhail, 180
57
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73
B arata, Rui, 74 B arbosa Kilho, B althazar, 234, 2 3 7 , 2 5 9 -6 0 ,4 0 1 B arbosa, R icardo, 56 B arbuy, H aro ld o , 100 B arreto. T obias, 22, 280, 355, 381 B audelaire, C harles, 72. 325 B eauvoir, Sim one de, 196 Benjam in, C ésar, 183 B enjamin, W alter, 59-60, 84, 155-6, 162, 180-1, 185-6, 188, 190, 195-6, 325-6 Bergson, H enri, 37, 96, 206, 2 0 8 - 1 0 ,2 1 4 ,2 1 8 ,2 2 4 Berlinguer, linrico, 379 Bernstein, E douard, 158, 160, 3 9 5 , 397 B erquo, Elza, 96 Biard, François-.Auguste, 257 Bobbio, N o rb e rto , 196 Boecio, A. M . T. .Severino, 426 B onaparte, N ap o leão , 114, 1 4 6 .4 1 2 B ornheim , G erd, 45, 186, 4 0 1 .4 1 3 Boyd, W illiam , 134 Bradley, 257 Braga, Rubem , 56, ~5 B raque, G eorges, 110 Brasil Fontes, Jo a q u im , 72 Braz T eixeira, A ntônio, 21 Brecht, B ertold, 60-1, 63-4, 84, 361 B ricm ont, Jean, 218-9 B uarque de H o lan d a, Sérgio, 3 1 9 ,3 4 6 C acciola, M aria Lúcia, 166 C am ões, Luis de, 385 C an ab rav a, Kuriolo, 100 C a ndido, A ntonio, 77, 92, 148, 188-9, 1 9 1 ,2 0 4 ,2 1 1 , 2 1 5 , 2 7 8 ,3 0 8 , 338, 340-1, 346, 348, 352, 354, 358, 382, 388
C ard o so , Fernando Flenrique, 64, 95-8, 111, 157, 160, 168, 171, 1 8 3 ,2 0 5 -6 ,2 9 4 , 3 4 1 ,3 7 7 , 384 C a rn a p , Rudolf, 4 1, 256 C arneiro Leão, E. 53, 56-7, 186 C arpeaux, O tto M aria, 69, 380 C arvalho F ranco, M aria Sylvia de, 305 C ass, M a rk Ju lian , 217 C astoriadis, C ornelius, 93, 158, 162 C erqueira Leite, Rogério, 124 C hacon, V am ireh, 281 C hardm , T eilhard de, 33-4, 43 C hâtelet, F rançois, 154 C haui, .M arilena, 56, 80, 96, 99, 1 8 6 ,2 0 4 , 207, 260-1, 2 7 4 ,2 8 1 , 299, 3 0 4 ,3 4 2 -6 . 3 8 1 ,4 1 1 ,4 1 3 C ícero, 303 C lastres, Pierre, 200 C olom bo, C ristóvão, 319 C om te, A ugusto, 56, 79, 280 C ondorcet, m arques de, 166 C opleston, Frederick, 29 C o rção , G ustavo, 62, 254 C osta, Nevi-ton da, 2 2 ,2 8 1 ,3 8 1 C o u tin h o , C arlos N elson, 179-80, 184-5, 193, 196, 373, 381-2 C roce, B enedetto, 5 4, 220 C ruz C osta, Jo ã o , 93-4, 97, 100, 146, 148-9, 202-3, 2 0 7 ,2 1 1 ,2 2 8 , 274, 2798 0 ,3 4 5 , 350, 3 5 4 ,4 1 2 -3 D agnino, Evelina, 319 De D ecca, E dgar, 307 De Jouvenel, B ertrand, 202 De Libera, A lam , 257 D ebrun, .Michel, 2~4, 405 Deleuze, Gilles, 1 5 4 ,2 1 3 ,2 1 6 , 2 1 8 ,2 2 2 . 2 2 4 -5 ,3 6 7 D errida, Jacques, 88, 202, 222, 366-7
.Vlarcos N o b re e José .M arcio R ego
D escartes, Rene, 4 9, 51, 55. 79, 82-3, 1 3 2 ,2 4 3 , 166, 2 14, 2 4 6 ,2 5 1 -2 , 2 5 7 , 2614 ,2 6 6 , 2 7 0 ,3 1 4 , 3 2 2 ,3 6 0 , 3 8 1 ,4 0 5 ,4 1 8 ,4 2 6 D ewey, Jo h n , 222 D ostoiévski, 26 6 , 350 D rap er, 169 D ru m m o n d de .Andrade, C;arios, 6 9 , 75-6, 85, 162, 166, 2 0 0 ,2 1 0 - 1 ,3 0 3 ,3 8 6 D uch am p , M arcel, 110, 420 D um m ett, M ichael. 267 D u rk h fin i, F.milc, 349 Einstein, A lbert, 27, 218, 360 Engels, Friedrich, 160, 170, 1 8 5 ,2 4 8 , 3 0 2 , 333, 373, 39 5 , 3 97 E spinosa, B aruch, 51, 55-6, 80, 153, 186, 2 5 1 ,2 5 7 , 2 6 1 - 2 ,3 0 3 ,-6 ,3 1 3 - 5 ,3 1 7 22, 3 3 1 ,3 3 5 , 343-5, 381 E austino, M ário , 73-6 F austo, Ruy 94, 100, 145, 2 0 3 -4 , 34 0 , 347-8, 350 Fernandes, F lorestan, 205, 341 F erreira da Silva, Vicente, 912, 281, 355 Ferreira G u llar, José R ibam ar, 7 7 , 182-3, 3 77 Ferro, Sergio, 150 Fichte, Jo h a n n G ottlieb, 51, 96, 3 5 4 , 359 Fm k, Eugen, 2 30, 2 3 3 , 239 Einlcy, M oses, 327 Fiori, E rnani M a ria, 4 6, 48, 152, 2 2 8 ,4 0 1 -2 Eiori, Jo a q u im de, 319 Fiori, Jo sé Luís, 220 Fischer, K uno, 51 Flusser, V'ilem, 296 Foucault, Paul M ichel, 57, 78, 21 5 , 2 2 2 , 2 2 5 ,2 3 2 ,3 0 6 . 32 3 , 3 3 3 , 364, 367 F ourier, C harles, 193-4 Freud, Sigm und, 62, 146, 172, 181, 185, 194, 3 0 0 ,3 0 2 , 34 9 , 3 60 Freyre, G ilb erto , 45, 79 F u rtad o , Celso, 320 G adam er, H ans G eorg, 84, 283 Galileu (iaiilei, 59, 384 Ciassendi, l’ierre, 270 G cach, Peter, 2 6 7 , 402 G ellner, E rnest, 131-3
G ian n o tti, José A rthur, 80, 91, 97-8, 117, 119-20, 150, 167, 172-4, 1 8 6 ,2 0 2 5 ,2 0 7 ,2 1 7 , 222-3, 225, 235, 2 4 8 , 260, 268 -9 , 274, 2 8 1 ,3 0 4 , 340-5, 347-8, 350, 377, 3 8 1 ,4 0 5 ,4 1 1 - 3 G ilson, Etienne, 36, 4 3, 251, 25 7 , 266 Gleizcr, .Vtarcos, 261 G oldschm idt, V ictor, 93-5, 119-20, 122, 149, 203, 276, 304-5, 342-3 G om es de Sou7,a, Luiz A lberto, 255 G o o d m an , N elson, 219 G órgias, 302 G orz, A ndré, 304 G ram sci, A ntonio, 179-80, 196, 350, 373-4, 376-8, 380-9, 395-8 G ranger, G illes-G aston, 91-4, 96, 100, 109, 119-20, 1489, 203, 2 0 7 ,2 1 0 - 1 ,2 1 6 -8 , 323, 342-3 Guedes, .Armênio, 179, 182,185 G u éro u lt, .M artial, 46, 5 1, 91, 93, 122, 2 02-3, 251-2, 2 5 8 ,3 4 1 -3 G uim arães Rosa, João, 3 0 3 ,4 1 9 Flaherm as, Jü rg en , 3 0 3 , 419 H ack er, Peter, 403 H alev i.E li, 172 H a rtm a n n , N icolai, 16-9, 69 H egel, G. W . F riedrich, 8, 16, 19-20, 2 2 -3 , 3 0, 34-5, 38, 42-4, 48, 53, 5 5 -6 . 59, 64. 70, 79, 82-4, 96, 100, 110, 117, 120, 129, 135, 151, 153, 155, 162, 164, 167, 172, 174-5, 189-90, 196, 2 0 3 ,2 0 7 ,2 1 4 - 5 ,2 1 9 , 23 0 . 2 4 0 , 2 4 2 , 2 5 7 , 2 8 0 , 28 9 , 304 -5 , 3 2 1 , 325 -6 , 32 8 , 3 3 7 , 3 4 1 , 347 -9 , 352, 3 5 6 -7 , 3 5 9 -6 2 , 364, 3 7 5 ,3 8 1 , 3 8 5 - 7 ,3 9 1 , 4 0 1 -2 , 4 0 5 ,4 1 3 - 4 , 420 H eidegger, M a rtin , 29, 4 6 , 4 8 -9 ,5 1 -4 , 60, 70, 7 4 ,7 8 , 80-3, 8 7 ,8 9 , 120, 204, 2 1 4 .2 1 9 , 222, 2 2 5 , 228, 2 3 0 - 1 ,2 4 6 ,2 9 6 ,3 8 0 , 401, 4 1 3 ,4 1 9 H eller, .Agnes, 187
C o n v ersas com F ilósofos B rasileiros
H erder, Jo h a n n n G o ttfried , 34 H ilbert, 1., 418 H ill, C h risto p h er, 306-7, 319 H irzm an, l.eon, 184 H itler, A dolf, 6 4, 169 H obbes, T hom as, 314 H o b sb aw n , Eric, 159 H om ero, 73, 162 H ork h eim er, M ax, 2 3 9 , 324, 35 8 . 3 8 3 . 385 H um e, D avid, 131-2, 143, 2 2 4 - 5 ,2 1 4 , 4 0 5 ,4 1 7 H usserl, F'dm und, 16-7, 70, 79, 94, 102, 104, 167, 2 2 5 ,2 2 8 , 2 3 0 - 1 ,3 2 1 ,3 2 3 , 33 2 , 340, 360, 363, 405 H uxley, .Aldous, 66 H yppolite, Je an , 4 6, 120 lanni, O ctávio, 96, 341, 377 Im bert, C laude, 94, 152, 221 Jaco b i, R uggero, 49 Jaeger, W erner, 92 Jam es, W illiam , 222 Jam eson, Frcdric R., 192 Janine R ibeiro, R enato, 56 Jankélévitch, V ladim ir, 151 Jaspers, K arl. 25 Jo ã o Paulo II (K arol W oytila), 39-41 Ju n g , C arl G ustav, 146 Kaflca, Franz, 77, 181, 363, 386, 397 K autsky, K arl, 157-8, 160, ’, 397 K ierkegaard, Soren Aabye, 2 2 0 ,2 2 3 ,3 3 1 K noll, V ictor, 306 K olakow ski, Leszek, 319 K onder, L eandro, 177, 180, 374-5, 377 Koselleck, R einhart, 188 K ruschev, N ik ita, 178-9 K uhn. T hom as, 323, 3 6 1 , 365 K urz, R obert, 109, 157, 1612, 385 La R ochefoucauld, François, 166 L acan, Jacques, 153, 2 1 9 . 349 Ladrière, Jean, 2 55-7 Lafer, C elso, 2 7 4 , 2 7 7 , 291 l.andim Filho, R aul, 230-1, 23 4 , 237, 2 5 1 ,2 5 8 ,4 1 2 - 3 , 415 L andsberg, Paul, 74 L ask, Emil, 276-7
395
429
Lauer, Q u en tin , 2,î0 Lebrun. G érard , 95-7, 152, 202-6, 2 0 9 ,2 1 4 .2 1 6 , 220. 22 6 , 2 60, 2 " 4 , 2 9 1 .3 0 4 . 348, 35 5 . 360, 363-4, 405 L ctorr, C laude, 93-4. 148, 158, 1 6 2 ,2 0 3 . 307, 3146 , 32 7 , 3 4 4 , 345 Leibniz, G. W „ 22 3 . 246, 264, 32 2 . 36 0 . 4 0 2 ,4 1 4 Lênin, V ladim ir L, 64. 158, 160, 30 5 , 3 9 3 ,3 9 5 -7
M arechal, Joseph, 232. 254-6 M aritain. [acques, 32-3, 119. 255 M artin s. C arlos Estevam . 181 .\la rtm s, .Max, 73-5 M a rto n . Scarlett, 56 M a rx , K arl. 1 7 ,3 0 ,4 2 , 52-3. 5 5, 59. 6 2, 64, 95. 9 '- 8 . 102-4, 106-8. 116, 118, 120, 150, 153, 155-60, 165, 167-8, 171. 173-4, 181-2, 185, 187. 189-92, Lévi-Strauss, C laude, 78. 167, 195, 197, 204, 218. 248-9, 2 0 5 , 2 0 9 , 33 2 , 343, 349 2 5 2 , 2 5 4 ,3 1 5 , 3 3 1 ,3 3 6 , l evy, Lia, 261 3 4 0 -1 ,3 4 3 , 346-9, 355-6, l.évy-Brühl, Lucien, 146 367-9. 377, 380-2, 385. Lima B arreto, A fonso 3 9 0 -1 .3 9 4 , 396-9 I lenriques de, 359, 386 M a rx , Ví en ier, 230 Lispector, C larice, 81-2, 397 M a u riac, François, 74 Locke, Jo h n , 94. 188 M cC loskey, D onald, 217 L oparic, A ndrea. 124 -McIntyre, A nthony, 113 L oparic, Z eljk o , 7 9 ,2 1 7 , 235 M ead, .M argaret, 146 Lopes dos Santos. L. M ello e .Souza, Gilda de, 93, H enrique, 1 2 4 ,2 1 0 ,2 1 8 , 148, 203-4, 2 7 4 , 305-6, 223, 2 5 9 -6 0 , 405 340 Lotz, Jo h an n es B.. 29 M enasseh bem Israel, 319 Low y, M ichael, 152-3, 160, M endes, Francisco Paulo, 70-4 1 95, 379 M erleau-P onty, M aurice, 46, L uhm ann, N iklas, 277-8, 2855 0 ,5 7 , 78, 94, 1 7 1 ,2 0 8 , 6, 295 213, 215, 218, 304-5 , ,307, Lukács, G eorg. 56, 155-6, 316-7, 320, 3 2 3 -5 ,3 2 8 , 179-80, 183, 185. 190. 342-4, 3 4 7 ,4 1 3 194, 1 9 6 ,3 4 1 ,3 4 8 - 9 , 358- M erq u io r, José G uilherm e. 9, 36 7 , 374^ 3 7 6 -80, 382179, 1 8 1 ,3 7 7 6, 39 2 , 3 9 5 , 3 9 7 M ichels, R obert, 389 L uxem burgo, R osa, 160, 395, M illiet, Sérgio. 92 397 M olière, 109 L yotard, Jean-F rançois, 154 ■Vlonteiro, D ouglas, 319 M a ch ad o de Assis, Jo aquim .Montes, M aria L úcia, 274 M aria, 5 6 , 162, 166, 303, M ontesquieu, 384 340, 346, 355. 357-9, 386 •Monteverdi, C laudio, 62 M a ch ad o , R o b erto , 56 •Moore, T hom as, 66 M oreira Leite, D ante, 146, 149 ■Macherey, Pierre, 261 M o ren o , Arley R^, 216-7 M aciel, Luiz C arlo s, 377 M ag ald i, S ábato, 62 -Vlotta Pessanha, Jose M a n n , T h o m as, 38 6 , 396 Am érico, 342 •Meunier, E m m anuel, 33-4, M an sio n , Suzanne, 255 227, 255 M ao-T sé-T ung, 171. 181, 3 05, 405 M üller, H einer, 61 M aquiavel, N icolo, 24, 306-7, .Müller, .Marcos, 55, 401, 405 344-5 N ew to n , Isaac, 59 M a ran h ã o , H aro ld o , 73, 75 N icolau de C usa, 20 M arcuse, H erb ert, 53-4, 166, N ovaes, .^dauto, 307, 319 193, 194, 2 0 4 , 3 0 5 ,3 2 4 . N'ovais, F ernando, 95, 97-8, 2 0 5 , 320, 341 331
430
•Nunes, Benedito. 5 7, 69, 74, 281 N unes, C arlos .Alberto. 69 O laso, Ezequiel de, 124 O liveira V ianna. Francisco José de. 4 5. 79 O liveira, .Armando M ora de, 306 O liveira, Francisco de, 320 O liveiros Ferreira. 383-4 O rtega G asset. José. 22 Padre l.ebrct, 338 Paim , A ntônio, 22 Parm ênides. 302. 415 PascaL Blaise. 1 9 9 -2 0 0 .2 1 4 , 2 5 7 ,3 3 1 P aulo VI, 39 P edrosa, •Mário, 52-3, 346 P egoraro. O linto. 235, 257, 259 P ereira de Q ueiroz, M , Isaura, 319 Pessoa, F ernando, 74, 81-2, 21 I Piaget, Jean, 4 6, 360 Pierce, C harles S^, 361 Pierre, A bbé, 275 P irro, 137, 143-4 Piscator, Erw in, 63 Platão. 26. 36, 4 4 , 6 6, 73, 79, 8 1 ,8 9 , 92, 94, 119, 128-9. 143. 2 0 6 ,2 1 3 , 2 8 4 , 289, 2 9 8 , 322, .342, 354, 360, 3 7 1 ,4 1 2 ,4 2 3 , 425-7 Plotino, 29 Pom ien, K rystophe. 326 Pontes de .M iranda, Francisco C avalcanti, 279-80 P opper, K arl, 20, 131, 133, 217 P orchat Pereira, O sw aldo, 9 6, 119, 149, 202, 206, 2 1 9 , 2 3 7 ,2 6 0 ,2 7 4 ,2 7 7 , 280 -3 , 296, 337, 350, 40.57 ,4 1 2 -3 P rado Jr„ Bento, 93, 95-6, 99, loi, 128, 148, 199, 202, 2 0 7 ,2 1 3 ,2 1 8 , 2 7 4 ,2 8 1 -2 , 304, .307, 3 3 7 , .340-1,34.3, 3 4 7 ,3 5 0 , 4 0 5 ,4 1 2 P rado Jr., C aio, 151, 204, 303, 3 2 0 , 346, 365 Prado, V'asco. 60-1 P rotagoras, 217 Proust, M arcel, 73
M a rc o s N o b re e José M a re io R ego
Q u artim de M o raes, João, 150 Quine, W ilU rJ . 115. 13.Î, 199, 265 K adbruch, (iust.iv o , 16 R am os, G racilian o . 3 8 6 , ,59” Rancicre, |a^;que^. 153 Raw ls, Jo h n . 115 Reale Ju n io r, M iguel, 293 R e a le ,.M iguel, 15, 100. 274-7, 2 ‘ 9 - 8 1 .2 8 7 , 305-6, 35.5. 381. 406 R ibeiro de .M oum , C arlos A lberto. 1 2 4 ,4 0 5 R ibeiro. D arcy, 42, 235 Ricoeur, Paul, 34, 211, 225, 403 Rodrigues T o rres Filho, R ubens, 56, 9 6 ,2 0 4 . 207, 2 1 0 ,2 7 4 , 342 R ohden, V alérlo, 235 R om cro, Silvio, 358 R orty, R ichard, 131-3, 142, 2 1 7 , 221-3 Rothschild, .Meyer .Amschel, 52 R ouanet, Sérgio Paulo, 189 R ousseau, Jean-Jacqucs, 202, 2 0 8 -9 ,2 1 4 , 220, 3 4 1 ,3 8 4 , 390 Russell, B ertrand, 22 3, 257, 265, 2 6 7 , 3 6 6 ,4 0 2 ,4 1 1 , 419, 422 Sabbíuai Sevi, 319 Safo, 72 Salazar, .Antônio de O liveira, 64 Salgado, Plínio, 307, 345 Sam paio Ferraz |r., T ércio, 273 Santo .Agostinho. 4 1 , 4 3. 66, 3 1 9 , 4 04 Santo A nselm o, S3, 264-5 S antos, José H enrique, 228, 235 S.io B oaventura, 412 São Francisco de .Assis, 40 São T o m ás de .Aquino, 22, 29, 36, 44, 83, 1 1 9 ,4 0 1 -2 , 4 14, 416 Sartre, Jean -P au l, 4 6 , 48-50, 53-4, 74, 79, 98, 179-80, 194, 196, 1 9 9 -2 0 0 ,2 0 4 -6 , 2 0 8 ,2 1 0 ,2 1 6 , 2 2 0 ,3 0 4 , ■>41-3, 38 0 , 41 1 .4 1 3 Scheler, ,Ma.x, 1 6 -7 .3 9
Schelling, Friedrich W ilhelm . 73. 11" Scheniberg, .Mário, 52-3 Schiller. Friedrich. 49 Scholem , G erschom , í 19 .Schönberg, .Arnold, 84, 2S9, 363 S chopenhauer, A rth u r, 166, 223 Schw arz, R oberto, 54, "’S. 150, 157, 159, 186, 199, 2 0 8 ,2 1 0 ,2 1 5 ,3 0 4 , 308. 337, 346, 3 4 8 . 3 5 5 , 357-8, 361, 377 Sexto E m pírico, 123, 134, 137-8 S hakespeare, W illiam , 76, 1 7 1 ,4 1 8 Silva Telles, G offredo d a. 274, 291 Simões, Francisco, 273 Singer, Paul, 96, 199, 205, 368-70 Skinner, Burrhus Frederick, 103 Sócrates. 2 4 , 35, 4 0, 77, 214, 284 Sokal, .Alan, 218-9 Sola, Lourdes, 150 .Souza, H erb ert de (Betinho), 2 4 4 . 255 Stalin, losef. 6 4 , 170-1, 178, 379. 392 S tarobinski, Je an , 209 Stein, E rnildo, 2 8 1 , 401, 426 Sterne, L aurence, 83 Stock, R obert, 75 S travinsky, Igor, 110 S traw son, Peter Frederick, 2 6 5 , 267, 290 ■Stuart .Mill, Jo h n , 94, 1 6 8 ,4 1 3 T ales de M ileto, 143 T arski, Alfred, 100 T aylor, C harles, 34 T eixeira, Lívio, 119, 146, 148, 2 0 2 , 207, 274, 303-4, 309. 412-3 T erra, R icardo, 9 1 . 410 T h o m p so n , E. P., 306-7 T olstoi, Leon, 74 T o rres, .Alberto, 20 T ragtem berg, .M aurício, 199 T ro tsk y , Leon. 149, 151, 171, 305, 347, 396 T u g en d h at, E rnst, 231-2. 248. 402
C o n v e rsa s com F ilósofos B rasileiros
l ’n am uno, .Miguel de. 74 Vaz. 1 lenriqiie C laudio de Lima (padre), 2 9. 55-6, 2 2 8 . 230-2, 2 3 8 ,2 4 5 ,2 5 1 2, 254-5. 257, 260, 266, 276, 338, 340. 381, 413 V'az. Z eferino, 124-5 V eríssim o, José, 7{), 72 V ernant. Jean-Pierre, 312 V ersiani V'elloso, A rthur, 30, 228 V esentini. C arlos, 30 7 Vico, G iam battista, 274 V iehw eg, T h eo d o r, 276-8, 282 -3 , 285-6, 289 Vieira Pinto, Á lvaro, , 180-2, 228, 252, 342, 381 V ilanova, L ourival, 277 V ieira, padre .Antônio, 319 V illalobos, Jo ã o , 302 V iotti, Emilia, 146 Virgílio, 303 V oltaire, 200, 385 V orländer, K., 2 4 9 , 375 V uillem in, Jean-C^laude, 94-5, 2 1 0 ,2 1 6 , 224 W ahl, Jean, 46 W eber. M ax, 349, 385 W eil, Eric, 304 W erneck V ianna, Luiz, 184 W ittgenstein, L udw ig. 80, 87, 89, 102-3, 10.5, 107, 118, 125, 141, 143-4, 167, 173, 2 1 0 ,2 1 2 - 1 4 ,2 1 6 ,2 1 7 . 219-26. 2 3 2 . 2 4 8 , 2,50, 2 5 5 -6 ,2 6 2 , 267-9, 271, 296, 298. 332, 360, 366, 3 8 1 ,4 0 2 - 5 ,4 1 9 .4 2 2 ,4 2 5 , 427 Z en äo de tlé ia . 302
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F .s t f 1 i v R o KOI c : o M P ( » r o t .\ i S a b o n p c l a B rac H K R & M A I.rA , COM TOTOUTOS DO B i r i : a i Í 4 t IM PR tS«) HtLA B a r t i r . \ G r a í i c a t E u r r o R .\ t.M p a p i l A l t a A l v i - m 7 5
g/m -
[>A C lA . Sl'ZA N O DE PAPFI. F, C f I I II OSF PARA
A E d i t o r a 3 4 , fm n o v t m b r o dk 2 0 0 0 .
À Jita tlu ra J o s militares contnkuiu de m anei
ra pcn'crsa para completar o arcabouço insti tucional da filosofia: expulsou seus estudan tes maiores para a Europa, que lá completa ram sua formação, e criou a pós-graduação. Mas de que falam essas pessoas que em geral se obstinaram em virar as costas de sua filosofia para o mundo, que se formaram e formam especialistas e profissionais do pen samento universitário? Elas nem sempre se guiram seu voto de silêncio. Desde cedo, no final dos 50, inseminaram de modo episódi co as ciências sociais, a política, o debate da democracia. A filosofia migrou para o Brasil. Mas ela teria sotaque nacional, seria capaz de diálo go organizado com a cultura brasileira? Nes tas Conversas, muitos espezinham a idéia de filosofia nacional, para outros a filosofia não tem nada a dizer, outros a esconjuram. Um se reduz a combatente do consumo conspícuo de modas intelectuais importadas. Mas o que se defende? O que fica? Os depoimentos deste livro sugerem que fica para trás a idéia de que um estudioso na cional de filosofia não possa ser mais que um monge copista de um conhecimento sem mui to sentido evidente, mas que deve ser preser vado. Melhor, os debates mais ou menos in voluntários destas Conversas mostram que o pensamento filosófico daqui c poroso. Que o debate político pode fazer com que o mundo vibre as cordas do universo paralelo da filo sofia, e que ela reflita, nos termos da sua m ú sica distante, algo da vida nesta periferia do mundo. Resta, f>orém, a grande questão, sem pre reposta neste livro, sobre o que ainda é possível na política nacional: ela subsiste ain da pelos cantos, mas sob risco crescente de sufocação pelo poder da finança mimdialízada, do poder norte-americano e pelas teias jurídicas que os legitimam — o Império.
Vinícius Torres Freire
A filosofia é hoje quase que exclusivamente uma disciplina universitária, não resistindo ao crivo da lógica da utilidade funcio nal. M as por que deveríamos nos deter aí? Por que não perguntar: é necessário que seja assim ou pode ser de outro m odo? Por que a utilidade funcional deve ser o critério para decidir sobre o valor ou desvalor de alguma coisa? Q u a n d o nos colocamos essas perguntas, não podem os mais voltar tranqüilam ente ao senso com um e afastar a filosofia, seja com o algo inatingível, seja com o algo demasiado inútil. E talvez esteja aí o interesse da filosofia: ela é um estorvo, uma pedra no sapa to. Nesse sentido, agarrarmo-nos ao senso comum é uma das manei ras de remover o incômodo. Porque, ao sermos cham ados para dar razões para nossas opiniões, crenças e ações, cedo ou tarde iremos esbarrar tam bém em problemas filosóficos, para os quais a histó ria da filosofia apresenta uma série de formulações e de respostas. Além disso, um livro como este tem de pensar tam bém o que significa fazer filosofia num país periférico, tem de pensar como a filosofia se instalou por aqui e qual o seu sentido para a cultura brasileira. Cada uma das entrevistas deste livro, cada reconstrução pelos entrevistados de seus respectivos percursos intelectuais, é uma resposta a essas perguntas.
ISBN fiS-73Sb-LHD-0