UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL BACHARELADO EM DIREITO
CONCEITO JURÍDICO DE CORPO HUMANO
RENE MOREIRA DA CRUZ
SÃO PAULO 2006
CONCEITO JURÍDICO DE CORPO HUMANO
RENE MOREIRA DA CRUZ
Monografia apresentada à Faculdade de Direito da Universidade Cruzeiro do Sul, como requisito para a obtenção do título de bacharel em Direito, sob a orientação do Prof. Ms. Antônio Carlos Malheiros.
SÃO PAULO 2006 2
RENE MOREIRA DA CRUZ CONCEITO JURÍDICO DE CORPO HUMANO
Monografia apresentada à Faculdade de Direito da Universidade Cruzeiro do Sul, como requisito para a obtenção do título de bacharel em Direito.
SÃO PAULO 2006
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SUMÁRIO
1. Introdução ............................................................................................................................... 5 2. Corpo humano: natureza jurídica ........................................................................................... 7 2.1. Noção de natureza jurídica .............................................................................................. 7 2.2. Objeto da ciência jurídica: a norma jurídica .................................................................... 9 2.3. Conteúdo da norma jurídica .......................................................................................... 10 2.3.1. A conduta................................................................................................................ 10 2.3.2. Sujeito da conduta .................................................................................................. 14 2.3.2.1. Personalidade ................................................................................................... 19 2.3.2.2. Capacidade....................................................................................................... 21 2.3.2.3. Competência .................................................................................................... 21 2.3.3. Objeto da conduta ................................................................................................... 22 2.4. Tautocronia sujeito-objetiva .......................................................................................... 24 3. Corpo humano: diferença específica .................................................................................... 26 3.1. Substrato antropobiótico ................................................................................................ 27 3.1.1. Substrato antropobiótico próprio ............................................................................ 27 3.1.2. Substrato antropobiótico impróprio ........................................................................ 28 4. Corpo humano: definição do conceito .................................................................................. 28 Bibliografia ............................................................................................................................... 30
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1. INTRODUÇÃO
Dos poucos trabalhos que conhecemos na área do biodireito, quase nenhum já se propôs a abordar o tema do corpo humano como ora nos propomos. Deve haver pouco mais do que nada acerca daquilo, especificamente, por nós buscado. Por isso nosso trabalho se afigura tortuoso já no nascedouro e, por isso, também, pretende alguma originalidade — erre ou acerte. Decerto, o erro é mais provável. A presente monografia tenciona apresentar um conceito jurídico do corpo humano. Essa tenção vem inspirada por relevante problemática em torno de fatos vivamente presentes na experiência social, na medida em que tocada pelos progressos mais recentes nas ciências biomédicas e pelas muitas inovações no tratamento de males afligentes da saúde humana. Algumas dessas inovações, como o transplante de órgãos e o uso de células-tronco, redundaram em que certas partes ou substâncias do corpo de um indivíduo pudessem ser utilizadas em outro indivíduo. Até então, pouca ou nenhuma utilidade se via em partes separadas do corpo humano. Na antiga Roma, a partilha do cadáver do devedor insolvente entre os credores tinha um sentido antes simbólico que materialístico, e, sem que as ciências biomédicas alcançassem o conhecimento necessário ao nível de manipulação útil de órgãos humanos1, transplantes só tinham existência teórica ou, ainda, mitológica.2 Por isso, essas novas utilizações, ora factíveis, fizeram surgir um interesse distinto sobre certos tipos de materiais presentes no corpo humano: o interesse pela sua utilidade médica. Como o acesso aos sistemas de saúde se encontra ajustado à estrutura capitalista de circulação de bens e serviços, restaram economicizados os transplantes e outros tipos de
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Estritamente, não podemos dizer que a manipulação de partes do corpo humano fosse inútil; servia, especificamente, a certas finalidades, a necessidades de grupos restritos, como estudantes da anatomia humana, por exemplo, interessados em material de estudo. 2 Sobre a antiguidade da temática envolvendo transplantes de órgãos, o exemplo citado por Sá é de que “Para substituir a perna gangrenada de um doente que tinham necessidade de amputar foram os Santos [Cosme e Damião] ao cemitério, em busca de uma que lhes pudesse servir para aquele fim. O único cadáver utilizável naquela ocasião era o de um negro etíope, mas os Santos não tinham preconceitos raciais nem problemas de histocompatibilidade. Retiraram, pois, do cadáver o segmento do membro de que o enfermo carecia e a transplantação foi, por graças de Deus, um êxito completo, realçado ainda pela diferença da cor”. (SÁ, Maria de Fátima Freire de. Biodireito e direito ao próprio corpo, p. 1)
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manipulação de material orgânico, como serviços, e os próprios materiais manipulados, como bens. A atribuição de caráter econômico a partes do corpo humano é suficiente para a consideração desse mesmo corpo humano como coisa em potencial. Algo qualquer que se imagine suscetível de compra, venda etc. — enfim, que se imagine negociável — logo assumirá a feição de coisa a quem passe a imaginá-lo. Essa “potência de coisificação” pode incidir sobre o homem em sua completude, aludindo à idéia de escravidão, mais ampla que a economicização do corpo por conferir o caráter de bem não só ao aspecto físico do ser humano, mas à sua totalidade físico-espiritual.3 A economicização do corpo humano, embora comungue de algumas características com a escravidão, não se confunde com ela. Traz, aliás, preocupações diferentes ao estudioso do direito. O estágio atual da ciência e tecnologia médica determina uma relação entre possíveis consumidores e fornecedores que seria usual se fossem meros bens ou serviços a constituir o objeto de consumo ou fornecimento, mas nos faz deparar com uma anomalia sintomática de uma aparente obsolescência do sistema jurídico: aquilo que se quer fornecer ou consumir não é senão uma parte ou extensão de uma pessoa, e não meros bens, puros e simples; uma situação na qual, com mais gravidade, podem confundir-se, na mesma pessoa, o que se quer fornecer ou consumir e quem quer fornecer ou consumir. Revela-se deficiente, numa situação como essa, o estremar de coisa e pessoa a que a ciência jurídica está afeita, pois, verbi gratia, entre um rim e uma pessoa, de cujo corpo esse rim faz parte, não se pode fazer a mesma distinção que se faz entre uma saca de café e seu dono. O tipo de tutela que o ordenamento jurídico dá à pessoa é bem distinto daquele dado à coisa, sendo obtusa a cogitação de um ente a figurar, de modo dúplice, em ambos os gêneros, vale dizer, submetido, concomitantemente, à tutela de pessoa e coisa. O mesmo problema provavelmente não se colocou diante da ciência jurídica coeva do período da escravidão, quando não se conferia ao escravo outra natureza senão a de coisa. A opinião estranha ao estudo do direito, contudo, não está de nenhuma maneira afastada de apreender, como motivadora de uma transação qualquer, a relação de interesse
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Segundo Venosa, “Perante o ius civile, o escravo está na posição de coisa (res), sendo, portanto, suscetível de qualquer transação comercial. Matar escravo equivalia a destruir coisa alheia. Por influência de doutrinas filosóficas gregas, aos poucos reconheceu-se que o escravo é homem”. (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral, p. 141) Ainda, “Os escravos não são pessoas, não têm qualquer personalidade jurídica”. (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 192)
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entre fornecedor e consumidor de partes do corpo humano, afora os valores morais envolvidos, substituindo, sem maiores dificuldades, o rim à saca de café, no que diz respeito a atribuir ao primeiro, além do valor útil, medicinal, o valor econômico, patrimonial. A valoração econômica de órgãos e outras subdivisões do corpo humano, deveras, está presente na realidade atual, tanto que diversas condutas, informadas por esse “desvalor” — pois é forte o entendimento de que a economicização do corpo humano de algum modo se contrapõe à dignidade do ser humano —, foram objeto de incriminação tanto pelo legislador pátrio quanto pelo estrangeiro.4 Segundo o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito criada em 2004, na Câmara dos Deputados, para investigar a atuação de organizações criminosas no tráfico de órgão humanos, “o corpo humano visto como mercadoria permeia a cultura do mundo”. Mais adiante, ver-se-á que questões vertentes, como a da gestante a reivindicar o direito de baldar a gestação de feto que padece de anencefalia, ou a do descarte de embriões não insertos no útero da mãe, desprezados em processo de reprodução artificial, as quais se ressentem da falta uma regulação capaz de proporcionar-lhes uma justa, válida e eficiente solução, também têm com o tema a ser tratado.
2. CORPO HUMANO: NATUREZA JURÍDICA
2.1. Noção de natureza jurídica Para conhecer a natureza jurídica do corpo humano, temos, primeiro, de esclarecer o que significa natureza jurídica. O conceito de natureza jurídica é pouco explicado. Na verdade, quando se diz o que é um certo objeto dado ao conhecimento do estudioso do direito, 4
A Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, no seu art. 15, caput, dispõe: “Art. 15. Comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano: Pena – reclusão, de três a oito anos, e multa de 200 a 360 dias-multa”. Na Argentina, dispôs a Lei 24.193, no art. 28: “Art. 28. Será reprimido com prisión de seis meses a cinco años e inhabilitación especial de dos a diez años si el autor fuere un profesional del arte de curar o una persona que ejerza actividades de colaboración del arte de curar: a) El que directa o indirectamente diere u ofreciere beneficio de contenido patrimonial o no, a un posible dador o a un tercero, para lograr la obtención de órganos o materiales anatómicos”. O valor da dignidade humana foi elevado expressamente a fundamento do Estado, no art. 1º, III, da Constituição Federal: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana”.
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o predicativo que, por ato desse estudioso, fica ligado a esse objeto, é o que se costuma chamar de natureza jurídica. Assim, quando dizemos que a hipoteca é um direito real de garantia, queremos dizer que a natureza jurídica da hipoteca é ser um direito real de garantia. Claro que o sentido do que se chama hipoteca não se esgota nesse predicativo. Assim, também, quando dizemos que a natureza jurídica do homicídio é ser um crime doloso contra a vida, ou que a natureza jurídica da ação de indenização é ser uma ação de conhecimento condenatória, também não esgotamos nessa predicação o conteúdo semântico do homicídio ou da ação de indenização. Apenas classificamos, segundo certos critérios científicos, o objeto de estudo. O que se chama de natureza jurídica normalmente equivale ao gênero jurídico próximo da espécie jurídica que é o objeto estudado. Por “natureza jurídica” designa-se uma classe genérica, um predicativo composto de conceitos criados pela ciência jurídica (direito, obrigação, permissão, contrato, lei, sentença, real, pessoal, relativo, absoluto etc.), que situa — mas não define — o objeto de estudo no âmbito da ciência do direito. A natureza jurídica da hipoteca seria, então, a coordenação dos conceitos de direito, de real e de garantia. Nesses conceitos, contudo, não se exaure o conceito de hipoteca, que não pode, por isso, ser definida por eles. A classe específica (espécie) de um objeto é determinada pela diferença que há entre esse dado objeto e outros objetos da mesma classe genérica (gênero próximo). Assim, o penhor e a hipoteca pertencem à classe dos direitos reais de garantia, mas cada um deles tem características próprias que os distinguem um do outro; o penhor e a hipoteca não se confundem. Cada um representa uma espécie (classe específica) de direito real de garantia (classe genérica), segundo as diferenças específicas existentes entre eles. A natureza jurídica não compreende essas características especificadoras. Portanto, dois objetos de espécies jurídicas diferentes podem ter idêntica natureza jurídica, na medida em que correspondam exatamente a uma mesma classe jurídica próxima. Dissemos algures que o presente trabalho tenciona apresentar um conceito jurídico do corpo humano. Daí que não se resumirá a apontar a natureza jurídica desse objeto — a qual, de resto, não o define —, mas, dada a importância operacional desse apontamento, procurará levá-lo a efeito.5
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FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação, p. 92 e ss.
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2.2. Objeto da ciência jurídica: a norma jurídica O corpo humano não é, em princípio, um objeto de estudo da ciência do direito. Segundo Kelsen, “Na afirmação evidente de que o objeto da ciência jurídica é o Direito, está contida a afirmação — menos evidente — de que são as normas jurídicas o objeto da ciência jurídica, e a conduta humana só o é na medida em que é determinada nas normas jurídicas como pressuposto ou conseqüência, ou — por outras palavras — na medida em que constitui conteúdo de normas jurídicas.”6 Não se ignora que a opinião de Kelsen, de serem as normas o único objeto da ciência do direito, seja objetada por diversos teóricos. Para Miguel Reale, por exemplo, a norma representa apenas uma parte do fenômeno jurídico, que, em sua integralidade, consiste de fato, valor e norma. Por esse motivo, o estudo do direito também abrangeria elementos distintos da norma em si. De qualquer maneira, a discussão zetética acerca do objeto da ciência jurídica é de tal complexidade que não a comporta o presente trabalho. Deve-se ter em mente, apenas, que o corpo humano, ao contrário da norma, não é, em princípio, tema de que se ocupe o estudioso do direito, por qualquer teoria que se adote. No que se refere à segunda parte do excerto citado, o entendimento geral não destoa: a conduta humana é objeto da ciência do direito se e enquanto prevista numa norma jurídica. Do contrário, a conduta humana é irrelevante. (...) a ciência do Direito tem por objeto a experiência social na medida em que esta é disciplinada por certos esquemas ou modelos de organizações e de conduta que denominamos normas ou regras jurídicas.7
Se as normas jurídicas prevêem condutas, e estas, tanto que previstas, passam a ser objeto de estudo da ciência jurídica, então o corpo humano também o será, na medida em que ligado a condutas juridicamente previstas. Sê-lo-á — é certo — obliquamente, como veremos.
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KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 79. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, p. 93.
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2.3. Conteúdo da norma jurídica A conduta humana, como já dito, pode estar prevista numa norma jurídica e é, nessa condição, objeto da ciência jurídica. Há, porém, uma certa divergência ente os teóricos sobre os possíveis conteúdos previstos nessa norma, notadamente que diz respeito à multiplicidade dos conteúdos normados. Seria a conduta o único conteúdo da norma jurídica, ou existiriam outros conteúdos quaisquer? A referência ao tema é necessária, mas, nos limites estreitos desta monografia, não nos permitirá extrair uma conclusão satisfatoriamente fundamentada. Adiante, conforme tratarmos da conduta, desde o início assumindo que ela se inclui na previsão normativa, transitaremos pela questão dos conteúdos possíveis. 2.3.1. A conduta Costuma-se dizer, com freqüência, que a norma jurídica é dirigida às pessoas. Com isso, em regra, quer-se exprimir que a norma define comportamentos das pessoas, que se vêem então obrigadas a agir desta ou daquela maneira. A norma, enquanto enunciado prescritivo de um dever-ser, dirige-se a um ente capaz, em tese, de apreender o significado nela contido, e de se orientar de acordo com ele. Por isso, nas sociedades modernas, não se considera razoável existam normas endereçadas a animais ou objetos inanimados. Evidentemente, uma norma dirigida a esses entes seria de todo inútil, porque não lhes é possível compreender o sentido daquela, e porque os movimentos desses entes no mundo fenomênico são determinados exclusivamente pela causalidade. Há, porém, exemplos de normas postas endereçadas a animais e outros seres inanimados. A Bíblia, no livro do Êxodo, prevê regras específicas segundo as quais a pena de morte devia ser aplicada a um boi que matasse uma pessoa;8 no livro do Gênesis, há comandos que parecem dirigidos à própria natureza.9 Na Antigüidade, havia em Atenas um
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“Se algum boi chifrar homem ou mulher e causar sua morte, o boi será apedrejado e não comerão a sua carne; mas o dono do boi será absolvido. Se o boi, porém, já antes marrava e o dono foi avisado, e não o guardou, o boi será apedrejado e o seu dono será morto. Se lhe for exigido resgate, dará então como resgate da sua vida tudo o que lhe for exigido. Que tenha chifrado um filho, que tenha chifrado uma filha, esse julgamento lhe será aplicado. Se o boi ferir um escravo ou uma serva, dar-se-ão trinta siclos de prata ao senhor destes, e o boi será apedrejado.” (ÊXODO 21, 28-32) 9 “Deus disse: ‘Haja luz’ e houve luz. (...) Deus disse: ‘Haja um firmamento no meio das águas e que ele separe as águas das águas’, e assim se fez.” (GÊNESIS 1,3.6) De fato parecem dirigidos à natureza, mas não o são, porque a natureza aqui sequer existe para atender aos comandos, senão passa a existir com eles.
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tribunal para julgar ações movidas contra uma pedra, uma lança ou qualquer outra coisa que tivesse matado um homem, se presumível a involuntariedade deste, e, na Idade Média, era possível propor uma ação contra um animal.10 Não obstante pareça absurda, a imputação de sanções a animais e a outros seres desprovidos de razão ou vontade indica que há uma desvinculação entre os conteúdos possíveis da norma e aqueles conteúdos que hoje se imaginam apropriados, pois, se uma determinada pena era ligada, como conseqüência, a uma certa conduta, como pressuposto, tinha-se, por tal ligação, essa conduta como proibida, e a conduta contrária, pela qual seria evitada a pena, como devida. Segundo Kelsen conclui, “Se as sanções previstas pela ordem jurídica se não dirigem só contra os homens mas também contra os animais, é porque isto significa que não só a conduta dos homens mas também a dos animais é juridicamente fixada”.11 O conteúdo do dever jurídico, limitado a consistir numa conduta exclusivamente humana, está afeto ao ordenamento jurídico das sociedades civilizadas. Sempre, porém, a idéia da conduta — humana ou não humana — como objeto da norma jurídica estará presente na obra de Kelsen, dada a sua própria concepção de norma jurídica. Assim, se para ele a norma consiste no sentido objetivo de dever-ser de um ato de vontade dirigido à conduta de outrem,12 não é possível afastar, no âmbito da sua teoria, a norma da conduta. Aliás, porque a norma se dirige a uma conduta, de modo que essa conduta deva-ser, não é correto dizer que a norma se dirige a uma pessoa. O indivíduo ser destinatário da norma significa que o mesmo indivíduo é sujeito da conduta que essa norma determina como devida, e não que a norma determine que o sujeito deva-ser. Em “o sujeito S deve realizar a conduta C”, C é objeto do dever-ser, e não S.13 Verifica-se, também no pensamento de Alf Ross, que a norma não se desvincula da conduta. Esta, direta ou indiretamente, permanece como conteúdo daquela. Para Ross, as normas jurídicas podem ser divididas em duas classes: a das normas de conduta e a das normas de competência. As normas de conduta orientam a ação, por exemplo, “o mutuário deve restituir ao mutuante o valor que este lhe tenha entregado”; as normas de competência definem padrões de criação de normas de conduta, por exemplo, “qualquer pessoa maior de
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KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 33-34; Idem. Teoria Geral das Normas, p. 113-114. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 34. 12 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 5 e ss. 13 Cf. Kelsen, “Não a pessoa, mas uma conduta de indivíduo bem definida — como se costuma dizer — corresponde a uma norma ou a contraria.” (KELSEN, Hans. Teoria geral das normas, p. 115) 11
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dezoito anos poderá contrair mútuo”. As normas criadas de conformidade com as normas de competência põem-se como normas de conduta e, nesse sentido, são as próprias normas de competência que atribuem uma normatividade aos comandos imediatamente dirigidos à conduta. A diferença apontada por Ross entre as duas classes é a seguinte: na norma pertencente à primeira classe (normas de conduta), a conduta está imediatamente referida, vale dizer, a conduta é conteúdo imediato da norma, e, na norma pertencente à segunda classe (normas de competência), a conduta é conteúdo mediato.14 Para Hart, conforme citado por Reale, as normas jurídicas podem ser divididas em primárias e secundárias. Primárias são as normas de conduta; secundárias são normas que “se reportam às primárias e delas são subsidiárias, não se limitam a estabelecer sanções, mas são mais complexas, importando na atribuição de poderes”15. Desdobram-se as normas secundárias em outros três tipos: normas de reconhecimento, destinadas a possibilitar a identificação das normas primárias; normas de modificação, que regulam o processo de transformação das normas primárias; e normas de julgamento, que regulam a aplicação das normas primárias. O que para Hart são normas secundárias e, para Ross, são normas de competência, Miguel Reale chama de normas de organização, considerando irrelevante a qualificação expressa em “primária” e “secundária”, posto que, como diz, as normas de conduta e de organização surgem concomitantemente.16 De qualquer modo, forçoso é admitir que a norma jurídica, direta ou indiretamente, tem como objeto uma conduta — para nós, a conduta humana, já que, como veremos, somente o homem pode ser sujeito de condutas jurídicas, na configuração atual do ordenamento jurídico pátrio.
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“As normas jurídicas podem ser divididas, de acordo com seu conteúdo imediato, em dois grupos: normas de conduta e normas de competência. A primeiro grupo pertencem as normas que prescrevem uma certa linha de ação, por exemplo, a regra da Lei Uniforme de Instrumentos Negociáveis (Uniform Negotiable Instruments Act), seção 62, que prescreve que aquele que aceita um instrumento negociável se obriga a pagar de acordo com o teor de sua aceitação. O segundo grupo contém as normas que criam uma competência (poder, autoridade) — são diretivas que dispões que as normas que são criadas em conformidade com um modo estabelecido de procedimento, serão consideradas como normas de conduta. Uma norma de competência é, deste modo, uma norma de conduta expressa indiretamente. As normas da Constituição concernentes à legislatura, por exemplo, são normas de conduta expressa indiretamente que prescrevem comportamento de acordo com as normas ulteriores de conduta que sejam criadas por via legislativa.” (ROSS, Alf. Direito e justiça, p. 57) 15 REALE, Miguel. op. cit., p. 98. 16 REALE, Miguel. op. cit., p. 98-99.
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Retomemos o exemplo da imputação da pena de morte ao boi, no caso de este cometer a conduta de matar uma pessoa. Temos que a prática do homicídio pelo animal é objeto de uma norma que a proíbe, porquanto lhe ponha uma pena. Verificamos, porém, que há outra conduta determinada por essa mesma hipótese, que é a conduta de causar a morte do animal criminoso. Se verificada a conduta criminosa do animal, torna-se obrigatória a sua apenação. Nesse sentido, uma conduta prevista (referida pela norma) como proibida é pressuposto de uma conduta prevista como obrigatória. Trata-se, pois, de dois objetos distintos. O primeiro objeto é a conduta proibida C, cujo sujeito é S. O segundo é a conduta obrigatória C’, cujo sujeito é S’, a quem compete aplicar a sanção. No exemplo citado, a norma prescreve S como sujeito de C, se bem que também o prescreva como sujeito a C’ (o animal sujeitar-se-á ao assassinato), de modo que S seja, num momento, sujeito de uma conduta (C) e, noutro momento, sujeito a uma conduta (C’). Neste último caso, dizemos que S é, então, objeto de C’. Na síntese do exposto, temos que a norma tem um objeto próprio — que é a conduta —, mas não está limitada a referir-se tão-somente a ele. Com efeito, conquanto o dever-ser da norma se dirija à conduta e não a quem (ou o que) seja sujeito dessa (ou a essa) conduta, vale dizer, ao sujeito e ao objeto da conduta, também a norma se refere a tais elementos. Pondera Kelsen a respeito:17 Com isso é de se observar que o indivíduo pode aparecer tanto como sujeito quanto como objeto de uma conduta humana. Na norma que proíbe furto, a pessoa, cuja conduta é proibida, é sujeito desta conduta; também na norma que impõe punir ladrões, a pessoa, cuja conduta é imposta, é sujeito desta conduta, mas a pessoa que deve ser punida (geralmente formulado: a pessoa contra a qual se dirige a sanção) é objeto da conduta imposta. Na norma que proíbe homicídio, a pessoa, cuja conduta é proibida, é sujeito desta conduta. Mas visto que homicídio é a morte premeditada de um outro indivíduo, a norma refere-se também a essa pessoa que não é sujeito, senão objeto de conduta proibida. Conquanto a conduta que forma o objeto da norma e pela norma posta como devida refira-se a um indivíduo — há uma outra pessoa diferente dessa que se conduz conforme à norma ou contraria à norma — o indivíduo apresenta-se como tal no conteúdo da norma e não a conduta determinada de um indivíduo, mas apresenta-se não como seu objeto. Objeto da norma é somente conduta humana. Conteúdo da norma pode ser a pessoa como tal, porém — no mínimo diretamente — pode ser também algo diferente da pessoa, porque a conduta posta na norma como proibida também pode referir-se a algo diferente do homem; se, porventura, a norma proíbe
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KELSEN, Hans. Teoria geral das normas, p. 115-116.
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matar certos animais ou ordena derrubar uma casa por perigo de incêndio para outras casas. A pessoa a quem se proíbe matar, ou contra a qual deve ser dirigido um ato de coação como sanção, para a ordem normativa não está em nenhuma outra relação diferente da do animal que é proibido de matar, ou da casa que deve ser destruída por perigo de incêndio para outras casas.
Assim, o conteúdo da norma diferencia-se do objeto dessa norma. Enquanto o objeto se reduz à conduta, o conteúdo encerra conduta, seu sujeito e seu objeto. Destes dois últimos trataremos a seguir. 2.3.2. Sujeito da conduta Como já foi dito antes, o ordenamento jurídico atual visa a orientar a conduta de pessoas, e não mais a de animais ou coisas. A conduta normatizada é, hoje, a conduta humana. Assim, em princípio, quem pratica uma conduta jurídica, vale dizer, uma conduta determinada por uma norma jurídica como obrigatória, permitida ou proibida, é o ser humano, que é, assim, o sujeito da conduta jurídica. A norma foi apresentada até agora como um fenômeno unilateral, como se relacionada unicamente a um indivíduo — aquele a quem se impõe a realização da conduta prevista como devida. “Na medida, porém, em que a ordem jurídica é uma ordem social, ela somente regula, de uma maneira positiva, a conduta de um indivíduo enquanto esta se refere — imediata e mediatamente — a um outro indivíduo”, como alerta Kelsen.18 A apresentação de um conteúdo “básico”, dividido nas três categorias (conduta, sujeito e objeto), se bem que sirva para um entendimento elementar da estrutura normativa nos limites propostos, deixa de levar em conta a inserção da conduta jurídica no âmbito social, de que é indissociável. Baseado no caráter essencialmente social do direito, a própria inexistência deste chega a ser afirmada por Reale, caso não haja relação que una uma ou mais pessoas.19 O pensamento jurídico pátrio majoritário, na esteira da teoria que sustenta a intersubjetividade necessária do direito, que assim sempre define a conduta de um ou mais indivíduos em face de um ou mais outros indivíduos, elege critérios distintos para o posicionamento dos sujeitos relacionados entre si pela norma.
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KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 34. REALE, Miguel. op. cit., p. 51.
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Na exposição inicial, o sujeito necessariamente colocava-se como um ente ativo: era o elemento de atuação da conduta jurídica. Esta, por sua vez, era atuada num dado objeto, mero receptor, o qual, portanto, colocava-se sempre como um ente passivo. Esse esquema não admite duas funções subjetivas distintas (embora admita dois sujeitos exercendo a mesma função), sendo, destarte, um esquema não-relacional20. Nele, um indivíduo porventura posicionado no pólo passivo é considerado propriamente um objeto. Ao contrário, considerando-se a intersubjetividade das condutas, tem-se configurada a relação jurídica. Por relação jurídica entende-se a relação “entre o sujeito de um dever jurídico e o sujeito do correspondente direito”.21 Distinguem-se, na relação jurídica, dois tipos de sujeito: o sujeito ativo e o sujeito passivo. Antes de tratarmos desses sujeitos, é oportuno atentarmos para duas categorias não listadas no esquema não-relacional, às quais nos remete a noção de relação jurídica, quais sejam elas: direito e prestação. Prestação é um conceito utilizado principalmente pela dogmática jurídica do direito civil, vindo a ser estudado por um sub-ramo específico denominado direito das obrigações. A prestação consiste, fundamentalmente, numa conduta de dar, fazer ou não fazer. Uma norma que defina prestação desse tipo normalmente terá por objeto uma conduta obrigatória (o dar, o fazer ou o não-fazer), cometendo a sua realização a uma pessoa, posicionada como sujeito passivo da relação. Sujeito ativo é o credor, titular ou beneficiário principal da relação; sujeito passivo é o devedor da prestação principal, a pessoa física ou jurídica que se obriga a realizar a prestação.22 O sujeito de um dever jurídico, ou sujeito passivo da relação jurídica, seria, quando analisado segundo o esquema não-relacional, propriamente o sujeito único da conduta. Porém, colacionado a uma dimensão plurissubjetiva, fica ele reduzido a sujeito parcial, porque na relação jurídica sempre há no mínimo, dois sujeitos. A passividade desse sujeito decorre não de estar ele sujeito à conduta determinada — o sujeito passivo da relação é, repita-se, o sujeito
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Não-relacional subjetivo, pois exclui a ligação entre sujeitos. Claro que dizê-lo absolutamente não-relacional faria com que o conceito negasse a si próprio, uma vez que ele visa a representar a estrutura formada pelos elementos constituintes da norma jurídica, os quais indissoluvelmente relacionados. 21 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 182. 22 A presença necessária de dois sujeitos numa relação jurídica é objetada por alguns, como os que acreditam estabeleça-se, nos direitos reais, relação direta entre pessoa e coisa. Todavia, como bem acentua Miguel Reale, “só pessoas podem ser sujeitos de uma relação jurídica, e sem duas ou mais pessoas ela não se constitui”. (REALE, Miguel, op. cit., p. 220)
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ativo da conduta no esquema não-relacional —, mas de dever uma prestação ao credor (ser referido pela norma como sujeito de uma conduta obrigatória, que é objeto de um direito). O sujeito ativo da relação, por sua vez, será outra pessoa, não imediatamente ligada à conduta, e a quem esta será devida, vale dizer, sujeito ativo será a pessoa com direito à prestação. Quando se fala na palavra “direito”, nesta acepção, quer-se referir à titularidade de uma prestação. Tomemos o exemplo do direito de propriedade, na expressão do art. 1.228, in limine, do Código Civil vigente: Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa (...)
A titularidade do proprietário (sujeito ativo), conforme a primeira parte do artigo citado, consiste, em princípio, numa permissão de exercer as condutas correspondentes ao uso, ao gozo e à disposição em relação à coisa (objeto). Essa previsão normativa analisada num esquema não-relacional implica numa relação de poder direto do proprietário sobre a coisa, isto é, do sujeito sobre o objeto. Num esquema relacional, essa permissão implica numa proibição a terceiros de prejudicar o uso, o gozo e a disposição da coisa, que, nesse sentido, são sujeitos passivos do direito de propriedade. O objeto não-relacional do direito de propriedade é uma conduta do proprietário dirigida à coisa. O objeto relacional do mesmo direito é a conduta dos nãoproprietários, dirigida à mesma coisa (como, por exemplo, não construir um muro no terreno do vizinho). O ramo do direito civil conhecido como direito das coisas tradicionalmente repele a perspectiva relacional do objeto do direito de propriedade, entendendo o direito de propriedade como um verdadeiro direito sobre a coisa. Mas, como cumpre ressaltar, a interssubjetividade é pressuposto do direito. O verdadeiro objeto do direito de propriedade é uma conduta de outrem, mais precisamente de todos, menos o proprietário, sendo, aliás, por isso chamado de direito absoluto. Vamos agora tomar o exemplo de uma regra do contrato de mútuo, prevista no art. 586, in fine, do Código Civil: Art. 586. (...) O mutuário é obrigado a restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade.
O direito do mutuante consiste numa conduta: a conduta do mutuário de restituir, por coisa do mesmo gênero, espécie, qualidade e quantidade, o que recebeu do mutuante. Objeto 16
não-relacional do mútuo, nesse passo, não é a coisa a ser restituída, pois essa coisa é mero objeto da conduta de restituir, mas sim a restituição, que é a conduta devida pelo mutuário, então sujeito passivo da relação jurídica. Aqui, a ciência jurídica não hesita: põe como verdadeiro objeto do direito do credor a conduta do devedor, e só dele, daí o mútuo pertencer aos chamados direitos relativos — neste sentido, “relativo” indica que o liame jurídico se estabelece inter partes. Por último vamos observar uma regra de Direito Penal, cujo conteúdo prescritivo é semelhante, embora ela se nos apresente literalmente como uma previsão fática sem nenhuma função deôntica expressa (vedação, permissão, obrigação) — o crime —, seguida de outra previsão fática igualmente sem função deôntica expressa — a pena. Cuida-se do art. 121, do Código Penal, que descreve o crime de homicídio simples: Art. 121. Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos.
Embora não conste expressamente do texto legal, a proibição da conduta de matar é decorrência lógica do sistema. Veja-se que matar alguém é hipótese ligada a uma pena. Já quanto à pena, não vamos nos deter na verificação do caráter permissivo ou obrigatório da sua imposição. A proibição de matar é objeto de uma norma dirigida a todas as pessoas, que são, portanto, sujeitos da conduta omissiva de não-matar. Esse objeto é não-relacional — considera-se a conduta apenas em relação com o sujeito e o objeto. Num esquema relacional, a obrigação de não matar seria objeto de um direito, pertencente a outro sujeito, que, contudo, não está explícito. A conduta de não matar seria objeto de um direito cometido às pessoas vivas — o chamado direito à vida. Na teoria do direito penal, em que o foco de estudo está na conduta do agente, sujeito passivo e sujeito ativo assumem conotações próprias. Aquele que pratica a conduta, em concreto, é chamado de sujeito ativo. Nisso a dogmática do direito penal se aproxima de uma esquematização não-relacional, colocando na posição de atividade não um suposto credor, mas alguém direta e realmente ligado à conduta normada. Entretanto, sujeito ativo será não aquele previsto pela norma como sujeito da conduta, a qual, repita-se, é de não-matar, mas justamente aquele que pratica a conduta oposta, de matar: sujeito ativo, no homicídio, é o homicida.
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No pólo passivo da relação jurídica estabelecida no crime de homicídio, põe-se o titular do bem jurídico protegido pela norma penal que prescreve a conduta de não-matar, ou seja, sujeito passivo é o ser humano vivo.23 A despeito da possibilidade de haver uma teoria geral sobre o sujeito jurídico, certo é que os conceitos do que ele seja variam conforme os ramos da dogmática jurídica. Numa acepção, sujeito ativo é o atuador de uma conduta prescrita; noutra, é titular de uma conduta atuada por outrem; noutra, ainda, é atuador de uma conduta oposta à conduta prescrita. Assim, é de se ponderar sobre as palavras de Kelsen:24 É sujeito jurídico, segundo a teoria tradicional, quem é sujeito de um dever jurídico ou de uma pretensão ou titularidade jurídica (Berechtigung). Se por titularidade jurídica (Berechtigung), se entende não o simples direito reflexo — co-implicado num dever jurídico —, mas o poder jurídico de fazer valer, através de uma ação, o não cumprimento do dever jurídico, quer dizer, o poder de intervir na produção da decisão judicial, isto é, da norma individual através da qual é ordenada a execução da sanção como reação contra o não cumprimento do dever, (...) torna-se aconselhável limitar o conceito de sujeito jurídico (Rechtssubjekt) ao de sujeito de um dever jurídico (...)
A titularidade jurídica assim compreenderia o poder dado ao sujeito de exigir o cumprimento da conduta determinada na norma. Essa idéia é oriunda do direito privado e, segundo Kelsen, está ligada à noção de propriedade, ligando o direito a um seu detentor. Segundo diz, “O pensamento jurídico não se satisfaz com o conhecimento de que certa ação ou omissão humana formam o conteúdo de um dever ou direito. Deve existir algo que ‘tem’ o dever ou o direito”.25 Malgrado Kelsen lance dúvida sobre o acerto de se cultivar um conceito de sujeito jurídico, a maior parte da ciência dogmática, mesmo após os estudos do jurista, não deixou de empregá-lo; ao contrário, o sujeito jurídico é uma categoria teórica essencial na compreensão do ordenamento para a maioria da doutrina. Não nos seria dado negar a existência do sujeito jurídico (ativo e passivo), preferíssemos ou não afirmar apenas a existência de um sujeito de conduta. Convém, sim, determo-nos em conhecer as razões pelas quais a confusão de sujeito jurídico e objeto jurídico põe um certo vulto de inconsistência na compreensão das relações jurídicas que envolvem o corpo humano.
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BITENCOURT, Cezar Roberto, Tratado de direito penal, v. 2, p. 30-31. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 188. 25 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado, p. 135 24
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2.3.2.1. Personalidade Dissemos alhures que o sujeito jurídico é o titular ou o devedor de uma prestação. De conformidade com o que foi exposto no início, concluímos que as condutas objeto de direitos ou deveres são condutas humanas, porque na sociedade contemporânea, tem-se ser o homem o destinatário exclusivo da norma. Deste modo, “Como temos no ser humano o sujeito da relação jurídica, dizemos que toda pessoa é dotada de personalidade”.26 O atributo que se reconhece ao homem para que, diferente de outros entes, possa ter dirigida a si uma norma jurídica, impondo-lhe esta um direito ou lhe conferindo um dever, é o que se chama personalidade jurídica. Nas palavras de Miguel Reale, personalidade jurídica é “a capacidade genérica de ser sujeito de direitos”.27 Sílvio Venosa a define como o “conjunto de poderes conferidos ao homem para figurar nas relações jurídicas”.28 O termo “personalidade” vem de “persona”, que era o nome dado à máscara usada pelos artistas no teatro romano, a fim de caracterizar um tipo de personagem e dar ressonância à voz. Embora o conceito de personalidade em princípio esteja ligado ao homem, como atributo próprio deste, também a outros entes se costuma reconhecê-la. É o caso das chamadas pessoas jurídicas. Por pessoa jurídica entende-se um grupo de pessoas ou um conjunto patrimonial criado em busca de um fim. Segundo Kelsen, a pessoa jurídica costuma ser definida como uma comunidade de indivíduos a que a ordem jurídica impõe deveres e confere direitos subjetivos, os quais não podem ser vistos como deveres ou direitos dos indivíduos que, como membros, formam essa comunidade, mas sim como direitos e deveres da própria comunidade.29 É certo, porém, na medida em que só o homem pode praticar condutas, que mesmo os direito e obrigações atribuídos à chamada pessoa jurídica serão exercidos por indivíduos físicos, por homens, o que nos remete novamente à noção de sujeito de conduta. Se uma pessoa jurídica é detentora de direitos é porque se lhe atribui personalidade. Mas, de fato, uma tal norma que imponha um dever a essa pessoa não implicará senão em que uma pessoa natural ou física fique obrigada a praticar uma conduta. Nesse passo, a noção de pessoa ou
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VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral, p. 147. REALE, Miguel. op. cit., p. 232. 28 VENOSA, Sílvio de Salvo. op. cit., p. 148. 29 KELSEN, Teoria pura do direito, p. 194. 27
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sujeito jurídico distancia-se definitivamente da noção de sujeito de conduta, cujo único destinatário, como já dissemos, é o homem. Cumpre destacar que para alguns, como Tércio Sampaio Ferraz Jr., a pessoa (ente personalizado) não se confunde com o sujeito jurídico, ainda que ambos sejam titulares de direitos e deveres. Toda pessoa, física ou jurídica, é, para ele, um sujeito de direito, mas nem todo sujeito de direito é uma pessoa, dado que direitos e deveres podem ser atribuídos a um conjunto de bens, como a herança jacente ou os bens em inventário. Assim, o sujeito nada mais seria que um ponto de convergência de diversas normas que lhe atribuem direito e deveres.30 Certa ou não, a diferença de sujeito e pessoa aludida por Ferraz Jr. não nos parece decisiva. Primeiro, porque pressupõe não possam, os conjuntos de bens, ser considerados pessoas jurídicas. Segundo, porque, de um modo ou de outro, tanto as pessoas (físicas e jurídicas) quanto tais “entes despersonalizados” serão igualmente sujeitos jurídicos nos mesmos termos. Outrossim, leva à conclusão de que, se não é necessária a personalidade para que se tenha direitos ou deveres, pode ela ser absorvida plenamente por outro atributo funcionalmente idêntico e mais abrangente: o de subjetividade ou sujeição jurídica. Portanto, servir-nos-á o conceito mais amplo de personalidade, como equivalente ao de subjetividade jurídica. Tudo quanto possa ser sujeito de direitos e deveres será, então, por pressuposto, dotado de personalidade. Para Kelsen, de qualquer maneira, o conceito de personalidade será tão vazio quanto o de pessoa ou de sujeito jurídico. Ora, se o que se chama de sujeito jurídico é, na verdade, apenas um ponto onde convergem diversos direitos e deveres, o que se chama personalidade é apenas a circunstância de convergência desses direitos e deveres, nada mais. Por exemplo: uma norma jurídica põe como devida, por uma pessoa S, uma certa conduta C (atribui um dever), e uma outra norma põe como devida a S uma outra conduta C’ (confere um direito). Precisamente do fato de C e C’ se referirem a S, extraem-se as conclusões de que S é dotada de personalidade e de que, portanto, é uma pessoa. Em outras palavras, ter S personalidade nada mais significa senão ter S uma sua conduta prevista numa norma como devida (objeto de um dever), ou ter S uma conduta de outrem prevista numa norma como exigível (objeto de um direito). “‘Ser pessoa’ ou ‘ter personalidade’ é o mesmo que ter deveres jurídicos e direitos
30
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. op. cit., p. 154.
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subjetivos”31 Retornaremos a outras implicações deste tema no tratarmos da tautocronia sujeito-objetiva. 2.3.2.2. Capacidade Em sentido amplo, aponta Reale, capacidade confunde-se com personalidade. No entanto, em sentido estrito, capacidade designa a medida da personalidade em concreto. Assim, uma plena capacidade indica que a personalidade da pessoa não sofre restrições de ordem prática, e que ela pode não só ser sujeito de qualquer dever ou direito subjetivo, mas também exercê-los. Por outro lado, uma capacidade limitada impede que a pessoa possa exercer alguns direitos ou obrigações. Ainda, existe uma divisão entre capacidade de fato e de direito. A capacidade de fato seria a aptidão concreta para o exercício dos direitos e deveres, enquanto a capacidade de direito seria a aptidão jurídica para tal realização. Estabeleçamos bem a diferença: os direitos e deveres são exercidos por meio de atos jurídicos cometidos à pessoa. Se a pessoa é incapaz de fato, não pode ela exercer o ato jurídico porque, materialmente falando, não está possibilitada. Assim, se um homem não puder expressar sua vontade porque, doente, permanece em coma profundo, diremos estar ele incapacitado, de fato, de contratar. Mas se, em vez do homem, estivermos diante uma criança, nas suas plenas condições físicas e psicológicas, e apta a dizer o que quer, poderemos dizer que ela, de fato, pode contratar; uma sua manifestação de vontade, porém, não produziria os efeitos jurídicos necessários à formação de um direito ou obrigação, por limitação jurídica da sua capacidade de contratar; diremos, pois, estar ela incapacitada de direito. Na verdade, o que se chama capacidade de fato não é um dado jurídico. Antes, é um dado prático, consistente no quanto pode a pessoa praticar por si e em concreto os deveres e direitos que o ordenamento jurídico lhe impõe ou confere. 2.3.2.3. Competência Competência, segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr., guarda semelhança com o que se entende por capacidade. Assim, “quando a dogmática quer referir-se ao poder jurídico
31
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 192.
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conferido a pessoas físicas e jurídicas privadas, ela fala em capacidade de ação. Quando se refere às pessoas jurídicas públicas, fala em competência”.32 2.3.3. Objeto da conduta Já dissemos que a norma jurídica pode ter por conteúdo uma conduta e, além dela, pode indicar o sujeito e também o objeto dessa mesma conduta. Desses conteúdos, o último a se abordar é o objeto da conduta. Não há que se confundir objeto da norma e objeto da conduta: objeto da norma é, segundo Kelsen, a conduta; o objeto da conduta, por um raciocínio primário, não tem limitação nenhuma: a priori, tudo quanto seja sujeitável a uma conduta pode ser objeto dela. Se nos referirmos, por exemplo, à conduta de conhecer e à condição de cognoscível, teremos que qualquer conhecimento, apriorístico ou experimental, insere-se no universo de objetos de conduta. Reale reconhece não um objeto da conduta, mas um objeto da relação jurídica, definindo-o como o elemento em razão do qual se constitui aquela, e sobre o qual recaem tanto a exigência vinda do credor quanto a obrigação do devedor, podendo, ainda, consistir em uma coisa, em uma prestação ou em uma pessoa. Segundo ele, nos direitos obrigacionais, o objeto da relação será a prestação; nos direitos reais, será a coisa; nos direitos ditos pessoais, será a pessoa.33 Tecnicamente, essa divisão satisfaz uma exigência dogmática de categorização de espécies de direito segundo o objeto. Contudo, como já sustentamos, o objeto de qualquer relação jurídica, vale dizer, o objeto de qualquer dever jurídico ou direito subjetivo, será uma conduta humana, e mais, uma conduta humana social.34 Os contornos da divisão proposta por Reale ficam mais claros no excerto de Venosa:35 O objeto do Direito pode ser a existência mesma da pessoa, seus atributos da personalidade: a honra, a liberdade, a manifestação do pensamento. Tais direitos são atributos da personalidade, são imateriais e , quando violados, podem ser avaliados em dinheiro, denominador comum de qualquer indenização, embora esses direitos não tenham valor pecuniário, pelo menos imediato.
32
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. op. cit., p. 158. REALE, Miguel. op. cit., p. 219-220. 34 “E justamente esta relação indireta com a comunidade, a circunstância de que a conduta serve ao interesse comunitário ou lesa-o, é decisivo para o fato de que esta conduta se torne um objeto de uma norma. Também os chamados deveres da pessoa contra si mesma são deveres sociais, i. e., a função de normas que prescrevem a conduta de pessoas em face de outra pessoa.” (KELSEN, Hans. Teoria geral das normas, p. 118) 35 VENOSA, Sílvio de Salvo. op. cit., p. 322. 33
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O objeto Direito pode ser também uma atividade da pessoa; uma prestação; um fazer ou deixar de fazer algo. As ações humanas, como objeto de direito, traduzem-se no direito obrigacional, que é pessoal, une uma pessoa a outra por meio de um vínculo jurídico. O objeto do direito, porém, pode recair sobre coisas corpóreas e incorpóreas, como um imóvel, no primeiro caso, e os produtos do intelecto, no segundo.
Apesar disso, entendendo o objeto jurídico como objeto da relação jurídica, Maria Helena Diniz estrema duas classes: os objetos imediatos, que compreendem as obrigações (ou prestações) e os objetos mediatos, que compreendem as coisas e a pessoa do titular.36 Miguel Reale não restringe à pessoa do titular do direito ou dever jurídico a possibilidade de figurar como objeto da relação jurídica, admitindo, inclusive, como objeto do pátrio poder, a própria pessoa do filho.37 Essa divisão não tem maiores implicações práticas ou teóricas e, de resto, não trará significativa contribuição para análise do tema, nem mesmo para uma tentativa de definição da natureza jurídica do corpo humano. Deteremo-nos nela, pois, brevemente. Numa perspectiva não-relacional (unissubjetiva) do mútuo, o objeto da conduta prevista é a coisa a ser restituída e, por diretamente ligada a tal conduta de restituir, ser-lhe-á sempre um objeto imediato. Se nós considerarmos a coisa a ser restituída em relação à norma jurídica, aquela coisa não será para esta um objeto, senão um conteúdo. Ao contrário, numa perspectiva relacional (intersubjetiva) do mútuo — o mútuo como relação jurídica —, objeto é a conduta do mutuário de restituir a coisa emprestada e, por prevista numa norma jurídica como obrigatória ao devedor e exigível pelo credor, essa conduta ser-lhes-á sempre um objeto imediato. Vejamos a tabela abaixo:
Coisa Conduta Pessoa
NÃO-RELACIONAL Norma jurídica Conduta objeto imediato objeto imediato objeto imediato
RELACIONAL Relação jurídica objeto mediato objeto imediato objeto mediato
Figura 1 - A linha em negrito indica o elemento comparativo, e a coluna em negrito indica o objeto escolhido.
36 37
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito, p. 516-517. REALE, Miguel. op. cit., p. 220
23
Como se vê, a definição de caráter mediato ou imediato de um objeto depende: I) do objeto escolhido; II) do esquema, relacional ou não-relacional, de análise dos conteúdos normativos; e III) do elemento comparativo dentro do esquema não-relacional. Ainda a respeito dos objetos, alguns autores sustentam que a noção de coisa difere da de bem, emprestando aos termos “coisa” e “bem” sentidos bem definidos e distintos. Segundo Serpa Lopes, “sob o nome de coisa, pode ser chamado tudo quanto existe na natureza, exceto a pessoa, mas como bem só é considerada aquela coisa que existe proporcionando ao homem uma utilidade, porém com o requisito de lhe ficar suscetível de apropriação”.38 Se a pessoa, apesar de apartada do sentido de bem e de coisa e, por conseguinte, apartada do regramento próprio dos bens (móveis e imóveis, fungíveis e infungíveis, consumíveis e inconsumíveis etc), previsto no direito civil, pode ser considerada objeto de direito, então o será conservando o quanto lhe distinga desses mesmos bens e coisas — a personalidade jurídica. A pessoa, física ou jurídica, poderá ser objeto jurídico sem que para isso deixe de ser pessoa, vale dizer, sem que para isso se torne impedida de se ligar a direitos e obrigações como sujeito destes. A personalidade, pois, não se choca com a condição de objeto, ou, por assim dizer, com a objetividade jurídica.
2.4. Tautocronia sujeito-objetiva Um dos grandes problemas a ser abordado no presente trabalho reside no fenômeno configurado pela confusão entre um sujeito e um objeto jurídico. Com a abordagem desses dois conceitos jurídicos distintos, pudemos observar que, em certo ponto, sujeito e objeto reduzem-se, ambos, à pessoa. Do ponto de vista subjetivo e de acordo com a dogmática tradicional, a pessoa é encarada como um ente dotado de personalidade jurídica e, portanto, apto a ser sujeito de direitos e deveres. Do ponto de vista objetivo, pessoa pode ser o mesmo ente, dado que o conceito de objeto admite um sem número de possibilidades — inclusive a da pessoa. À vista dessas considerações, analisemos o disposto no art. 13, do Código Civil, in verbis:
38
LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil, v. 1, p. 354
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Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.
Num esquema não-relacional, o objeto da norma consiste numa proibição da conduta de dispor do próprio corpo em certas hipóteses. O conteúdo residual da norma (sujeito da conduta e objeto da conduta) compreende o indivíduo a quem a mesma norma determina como devida a conduta — esse indivíduo será necessariamente um ser humano, visto que só o ser humano pode praticar condutas — e a porção de matéria correspondente ao que se entende ser o corpo do mesmo indivíduo. Num esquema relacional, porém, não conseguimos vislumbrar uma configuração adequada dos elementos previstos na norma. Não conseguimos vislumbrá-la, precisamente, porque a essência da relação é a intersubjetividade, e, no caso em tela, não divisamos senão um sujeito — assim no que seria o pólo ativo da relação (posição de titularidade da nãodisposição), como no que seria o pólo passivo da relação (posição de dever da nãodisposição). Alguns teóricos argumentariam existir uma relação jurídica entre o sujeito passivo da obrigação e a comunidade jurídica, compreendida esta como uma titular, em ficção, dos valores morais protegidos pelo ordenamento jurídico. O argumento é insubsistente por dois motivos: I) um sujeito ativo da relação estaria na posição de exigir o cumprimento da obrigação imposta pela norma; ninguém, porém, está numa tal situação jurídica que lhe permita exigir de uma pessoa o cumprimento da conduta de não-disposição do seu próprio corpo, exceto a própria pessoa — o co-implicado do dever de não-disposição é um direito atribuído ao próprio devedor; II) ainda que alguém ou a comunidade jurídica estivesse numa situação que permitisse exigir de uma pessoa o cumprimento da conduta de não-disposição do seu próprio corpo, tal se faria pela ligação de uma sanção dirigida à pessoa que praticou a conduta proibida, causando-lhe um mal igual, maior ou menor do que o mal a ser prevenido — uma conduta-pena mais grave que uma conduta-crime se contraporia à pretensão do credor, pois causaria mais mal à vítima do que ela mesma, como criminoso, causaria; uma conduta-pena menos grave que uma conduta-crime (ou igualmente grave) não exerceria coerção, pois causaria menos mal à vítima do que ela mesma, como criminoso, causaria. 25
Podemos enunciar esse quadro como tautocronia (do grego tautó, “o mesmo”, e chrónos, “tempo”) sujeito-objetiva, isto é, um estado do indivíduo que, simultaneamente, assume a posição de sujeito e objeto mediato numa dada relação jurídica (objeto imediato seria a conduta). No caso de um homem que se obrigue a transmitir uma parte de seu corpo a outro homem, também estaremos diante de um caso de tautocronia sujeito-objetiva, distinto pelo fato de que as figuras de credor e devedor não se concentrarão numa só pessoa, embora se concentrem nela o sujeito e o objeto de uma conduta (num modelo não-relacional) e o sujeito passivo e o objeto mediato de uma relação jurídica (num modelo relacional).
3. CORPO HUMANO: DIFERENÇA ESPECÍFICA
Concluímos no decorrer do trabalho que a pessoa pode ficar reduzida à posição de objeto, sem que isso solape o que se costuma chamar de personalidade jurídica. Na verdade, se uma norma define certa conduta como devida por uma pessoa, tem-se que essa pessoa é sujeito de um dever, seja em sentido não-relacional (em relação à conduta normada), seja em sentido relacional (em relação a outro sujeito). Hoje, ocorre que somente pessoas são sujeitos de condutas e relações jurídicas e, por isso, mais restrito é o universo de seres passíveis de posicionarem-se nessa função. Antigamente, porém, se era corrente a prescrição de certas condutas a animais, estruturalmente ainda é possível que tal fenômeno torne a ocorrer. Suponhamos que uma certa norma jurídica prescrevesse uma conduta a um corpo humano, e não ao ser humano de quem esse corpo fizesse parte. No fundo, isso não faria a menor diferença, visto que a conduta, conquanto seja uma exteriorização da vontade como faculdade do espírito, é realizada, concretamente, pelo corpo humano. Assim, uma norma que proibisse ao corpo humano vivo de causar dano ao patrimônio de outrem igualmente se dirigiria ao que chamamos de pessoa. Pessoa, aliás, é considerada tal, do ponto de vista jurídico, justamente porque um seu comportamento é objeto de uma norma jurídica. A personalidade, como um “atributo contingente” — dependente de uma norma que confira direitos e obrigações —, não serve para determinar o que para o direito é uma pessoa, mas apenas para facilitar a identificação de quem são os destinatários da norma jurídica. Assim, quando se diz que a personalidade termina com a morte (art. 6º, do Código Civil), com 26
isto quer se dizer que os mortos não são destinatários da norma, haja vista que o ordenamento jurídico vigente não prescreve comportamentos a cadáveres. Se, na prática, a pessoa-sujeito não é diferente da pessoa-objeto, pois, como percebemos, uma função não exclui a outra, é necessário outro critério, que não o da personalidade, para identificar o homem. Devemos partir de um dado concreto, suscetível de verificação científica. Devemos partir da sua manifestação tangível, enfim, do corpo humano. Embora não sejamos versados nas ciências biomédicas, e desde logo admitindo que não será nossa intenção definir o que centenas de anos não conseguiram — a essência do ser humano —, vamos descrever, com a brevidade de quem, cauteloso, priva-se de deitar circunlóquios sobre assunto estranho, o que consideramos seja importante na delimitação de uma diferenciação entre o homem e os outros entes que o circundam.
3.1. Substrato antropobiótico Por substrato antropobiótico entendemos a matéria de que é feito o ser humano, organizada no seu nível mais básico e próprio: a célula humana. Homem, então, devemos entender concretamente pela substância que lhe compõe, de acordo com um nível de organização que não o faça ficar reduzido a porções de átomos ou moléculas, e que, ao mesmo tempo, represente o mínimo necessário para distingui-lo de outras organizações semelhantes das mesmas substâncias. Substrato antropobiótico é, por assim dizer, a matéria da vida humana. O homem, contudo, não é um amontoado de células, conquanto a célula seja a unidade mínima do homem, biologicamente considerado, e se preste a indicar se o ente observado é ou não é humano. O homem, na sua completude física, compõe-se de elementos não vivos. 3.1.1. Substrato antropobiótico próprio Designamos substrato antropobiótico próprio as células, que são a unidade mínima da vida humana. As células desempenham funções diversas no corpo humano e, associadas num certo nível de organização, as células formam os tecidos. As funções fisiológicas fundamentais das células são expressas em quatro tecidos básicos: tecido epitelial, tecido 27
conjuntivo, tecido nervoso e tecido muscular, todos eles objeto do ramo do conhecimento conhecido como histologia. Ainda que separadas do corpo humano, as células humanas mantêm o caráter de matéria humana, podendo, destarte, ser consideradas como parte de corpo humano mesmo quando dele extraídas. 3.1.2. Substrato antropobiótico impróprio Além das células, existem outras substâncias que compõem o corpo humano, tomando parte na formação e funcionamento dos tecidos. São elas as substâncias intercelulares e os fluidos corporais. Designamos substrato antropobiótico impróprio estas substâncias já que, com efeito, não podem ser consideradas unidades mínimas da vida humana, embora se constituam em elementos indispensáveis às funções fisiológicas dos tecidos. Efetivamente, é difícil que o substrato antropobiótico impróprio possa ser considerado como corpo humano. Diremos, pois, que é corpo humano enquanto integrado aos tecidos corporais. Uma vez extraídas, as substâncias intercelulares não mais podem ser consideradas como partes de um corpo humano.
4. CORPO HUMANO: DEFINIÇÃO DO CONCEITO
Concluímos que a natureza jurídica do corpo humano é incerta, podendo variar entre objeto jurídico e sujeito jurídico. Da mesma maneira que uma pena de morte se dirige ao ser humano, posicionando-o na função de objeto de uma conduta, uma obrigação de pagar posiciona-o na função de sujeito de uma outra conduta. Outrossim, o ordenamento jurídico, percebemo-lo, não define um atributo que se ligue ao ser humano para diferenciá-lo do corpo humano isoladamente considerado. Os atributos necessários a que o ser humano seja sujeito de um direito ou obrigação — a vida — ou que seja considerado capaz de exercer tais direitos ou obrigações — possibilidade de conduta —, de um modo ou de outro estão ligados ao corpo humano, ao qual, nesse sentido, fica reduzido o homem juridicamente. Significa dizer que se o corpo humano tem todas as características 28
que determinam a identificação do homem para fins jurídicos, o conceito de homem fica então absorvido pelo de corpo humano, ou seja, corpo humano é o homem para o direito. A previsibilidade de bens da personalidade como a honra, por exemplo, não aponta para uma distinção do homem como ser cuja existência se projeta no mundo moral, destacando-o assim de outros seres. Tais bens assim considerados não são conjugados num conceito de homem (um homem sem honra continua sendo homem), mas apenas insertos num certo conteúdo normativo tendente a orientar condutas num ou noutro sentido — um sentido que “proteja” tais bens, o que, de resto, não afirma nem infirma a existência deles. O mesmo acontece com os seres humanos. Não existe definição jurídica de ser humano ou corpo humano, na medida em que, juridicamente, não há nada que os diferencie de outras substâncias. Na estrutura da norma jurídica, o corpo humano, ao qual redutível o ser humano, desempenha funções comuns à universalidade dos conteúdos normados. Enfim, conclui-se pelo acerto de Kelsen na afirmativa de que “A pessoa física ou jurídica que ‘tem’ — como sua portadora — deveres jurídicos e direitos subjetivos é estes deveres e direitos subjetivos, é um complexo de deveres jurídicos e direitos subjetivos cuja unidade é figurativamente expressa no conceito de pessoa. A pessoa é tão-somente a personificação desta unidade.”39
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KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 192-193.
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BIBLIOGRAFIA
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