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CASAGRANDE, Cássio. Trabalho doméstico e discriminação. Boletim CEDES [on-line], Rio de Janeiro, setembro de 2008, pp. 21-26. Acessado em: (...) Disponível em: http://www.cedes.iuperj.br http://www.cedes.iuperj.br.. ISSN: 19821522.
TRABALHO DOMÉSTICO E DISCRIMINAÇÃO Cássio Casagrande *
Os sociólogos e antropólogos costumam observar que o regime escravista deixou profundas marcas na sociedade brasileira. Muitas vezes não nos percebemos disto e tendemos a ver a escravidão como um episódio triste, porém já muito distante da nossa vida presente, algo sem qualquer relação com nossa economia moderna, urbana e globalizada. Quando muito, admitimos a herança escravista no debate sobre discriminação racial. No entanto, o escravagismo permeou as relações sociais brasileiras para além da questão racial, uma vez que aquele regime influiu também no modo como a sociedade brasileira valora o trabalho t rabalho manual, em especial o prestado no âmbito doméstico por serviçais, do que é prova a situação de notória discriminação a que estão relegados, até hoje, os trabalhadores domésticos. O viajante inglês John Luccock, em Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil , que escreveu entre 1808 e 1818, revelou todo o seu estranhamento ao constatar que os moradores brancos do Rio se recusavam a fazer os mais simplórios esforços em público – como carregar uma sacola – uma vez que aquele tipo de “trabalho” era destinado aos escravos e, portanto, deveria ser considerado indigno de um homem livre. Após o advento da lei Áurea, é sabido que muitos ex-escravos permaneceram trabalhando para seus antigos senhores, em especial os que lidavam nos afazeres domésticos, como mucamas, mucamas, cozinheiras e babás. Apesar da liberdade, liberdade, continuaram continuaram em sua faina sem receber um salário, pois permaneciam junto a seus antigos donos em troca de abrigo e comida, já que muitos simplesmente não tinham para onde ir ou o que fazer. fazer. Com o tempo, muitos destes trabalhadores domésticos se tornaram tornaram “agregados”, sendo tratados (por vezes melifluamente) ora como serviçais, ora como familiares de segunda categoria, num limbo social e também jurídico, sem direito a *
Procurador do Ministério Público do Trabalho. Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ. Membro do CEDES – Centro de Estudos Direito e Sociedade. 21
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herança, salário ou aposentadoria (é curioso que o dicionário Aurélio registra que “agregado” pode designar tanto alguém que vive na casa de uma família em razão de parentesco ou também por ali trabalhar como “criado”). Quando a CLT entrou em vigor em 1943, a abolição da escravatura tinha ocorrido há apenas 55 anos (comparando, era um evento histórico tão “distante” quanto o é para nós, hoje, o suicídio de Vargas). Muitos trabalhadores domésticos que testemunharam a consolidação da legislação trabalhista durante o Estado Novo haviam nascido escravos ou eram filhos de escravos, porém foram meros espectadores deste momento histórico. Isto porque o art. 7º da CLT excluiu expressamente de sua tutela os trabalhadores rurais e os domésticos, sendo estes considerados os que “ prestam serviços de natureza não-econômica à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas ”.
O enunciado da lei revela o modo como este tipo de trabalho foi desde sempre desvalorizado em nossa sociedade. O conceito de “serviços de natureza nãoeconômica” foi desenvolvido ao pressuposto de que o empregador (no caso a família) não tem uma finalidade econômica, de geração de lucro, mas também – implicitamente - de que o trabalho doméstico em si não é um trabalho economicamente comparável aos demais. A discriminação do legislador de então é visível quando se percebe que, ao definir a figura do empregador (CLT, art. 2º, isto é a empresa como ente produtivo), equiparou a este outras entidades que igualmente não têm finalidade econômica, como “as instituições de beneficiência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores ”
(CLT, art. 2º, parágrafo segundo). Tratase, portanto, de inequívoca contradição legal. Tanto o empregador doméstico como uma instituição benemerente não têm finalidade lucrativa, porém os empregados de cada qual receberam tratamentos distintos. Para se ter uma exata noção do contrasenso, basta se pensar em um condomínio de um edifício residencial (que não tem finalidade econômica): o faxineiro contratado pelo síndico tem todos os direitos trabalhistas, porém à faxineira de um apartamento do mesmo edifício é dispensado outro tratamento legal. Além do mais, é óbvio que para o trabalhador doméstico, seu trabalho tem valor econômico, pois é ele que lhe garante a subsistência, ainda que o mesmo fosse prestado apenas em troca de pão e teto. Posteriormente à edição da CLT, a exclusão do trabalhador doméstico de qualquer proteção legal perdurou por mais quase trinta anos. Além do preconceito contra esta categoria, é certo que a falta de organização sindical destes trabalhadores 22
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em virtude da dificuldade de organização decorrente da própria natureza da atividade explica em parte o retardamento na afirmação de seus direitos (“Todo direito que existe no mundo foi alcançado através da luta ”, Rudolf Von Ihering). Foi somente em 1972, durante o regime militar, que entrou em vigor a primeira norma destinada a tutelar os direitos dos empregados domésticos: a Lei 5859/72 assegurou-lhes o direito a registro do contrato de trabalho em carteira, os benefícios previdenciários reconhecidos a todos os demais trabalhadores e férias de vinte dias ao ano. Esta legislação foi bastante tímida, pois embora tenha equiparado os domésticos aos demais trabalhadores urbanos para fins previdenciários, não lhes concedeu nenhum direito trabalhista além das férias – e em período menor do que os trinta dias reconhecidos aos trabalhadores em geral. É interessante observar que nesta mesma época, os trabalhadores rurais, que haviam sido igualmente discriminados no regime celetista, foram objeto de tutela legal muito mais ampla, uma vez que lhes foram reconhecidos pela Lei 5889/73 diversos direitos dos trabalhadores urbanos. Isto ocorreu, obviamente, porque o ativismo político dos sindicatos rurais esteve no turbilhão dos conflitos sociais que levaram ao golpe de 64, sendo motivo de clara preocupação do regime que se lhe seguiu. Na Constituição de 88 os trabalhadores rurais foram definitivamente equiparados em direitos aos trabalhadores urbanos, porém os domésticos, mais uma vez, foram deixados para trás. Houve algum avanço, é certo, pois alguns direitos que até então lhes eram negados foram finalmente reconhecidos, como salário mínimo, irredutibilidade do salário, décimo terceiro, repouso remunerado, gratificação de férias, licença-gestante e paternidade e aviso prévio. Porém, continuou o tratamento diferenciado, pois ficaram de fora direitos elementares reconhecidos aos demais trabalhadores como a limitação de jornada, adicional noturno, férias de trinta dias, indenização por tempo de serviço, FGTS, seguro desemprego, estabilidade para a gestante, entre outros. No governo FHC, a Lei 10.208/01 tornou facultativo para o empregador o recolhimento de contribuições ao FGTS para o empregado doméstico, o que permite aos beneficiados usufruir do seguro-desemprego. A medida, porém, atingiu menos de 2% dos empregados com registro formal, em razão de seu caráter de liberalidade. Já no governo seguinte, o Congresso Nacional inseriu na MP 184/06 norma que tornava obrigatórios o FGTS e a respectiva multa indenizatória, mas o Presidente Lula vetou o 23
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dispositivo. Nas razões de veto, constava o mesmo apelo à natureza supostamente diferenciada do trabalho doméstico: “O trabalho doméstico, por sua própria natureza, exige um nível de fidúcia e pessoalidade das partes contratantes muito superior àqueles encerrados nos contratos de trabalho em geral. Desta feita, qualquer abalo de confiança e respeito entre as partes contratuais, por mais superficial que pareça, pode tornar insustentável a manutenção do vínculo laboral. Assim, parece que a extensão da multa em tela a tal categoria de trabalhadores acaba por não se coadunar com a natureza jurídica e sociológica do vínculo de trabalho doméstico ”.
Estas razões não escondem mais uma vez a discriminação, já que o pressuposto é claramente o de poupar o empregador de maiores despesas. Mas houve, contudo, alguns novos avanços. A Lei 11.324/06, que resultou da conversão da mesma MP 284, finalmente reconheceu às domésticas gestantes o direito à estabilidade no emprego até cinco meses após o parto, e ampliou para a categoria o direito a férias para trinta dias, concedendo-lhes ainda o direito ao descanso em feriados civis e religiosos, além de vedar ao empregador descontar de seu salário moradia, alimentação e produtos de higiene usados no local de trabalho. E recentemente, por meio do Decreto 6481/08, o governo federal proibiu o trabalho doméstico para menores de 18 anos, medida que dá conta de nosso atraso na matéria, pois não é concebível em um país civilizado como o nosso que adolescentes deixem de freqüentar a escola para trabalhar em “casa de família”, pois dependendo da família estão sujeitos a toda sorte de abusos, inclusive sexuais. Segundo o IBGE, no Brasil são cerca de 410.000 crianças e adolescentes contratados como empregados domésticos. Esta medida, na verdade, atendeu a Convenção 182 da OIT (ratificada pelo Brasil) de 1999, que considera o labor doméstico como uma das piores formas de trabalho infantil. Agora, finalmente, parece que o executivo e o legislativo federais estão empenhados em acabar definitivamente com a injustiça histórica de que têm sido vítimas os trabalhadores domésticos. Há atualmente 16 projetos no Congresso Nacional buscando regular a matéria, sendo que o mais antigo deles é PL 1626/89, de autoria da então deputada Benedita da Silva, cujo objetivo é a equiparação plena dos direitos com os demais trabalhadores. O assunto vem ganhando certa atenção do governo e do parlamento porque o tema foi incorporado à pauta de organizações da sociedade civil que promovem a defesa dos direitos da mulher e dos negros, já que estas populações compõem majoritariamente a categoria. Segundo dados da 24
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Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio (PNAD) de 2006, o trabalho doméstico representa 16,7% da força de trabalho feminina no país (ou cerca de 6,2 milhões trabalhadoras), sendo que entre as mulheres negras ocupadas este percentual chega a 21,7%, quase o dobro do contingente formado por brancas, amarelas e indígenas (13%). Outro dado interessante desta pesquisa, com relação ao tema da discriminação por gênero e raça, revela que entre as mulheres negras que são trabalhadoras domésticas, 75,6% não tem carteira assinada. Esse percentual é de 69,6% entre mulheres não-negras. É certo, porém, que as iniciativas legislativas acima referidas encontrarão resistência. O argumento é conhecido: o aumento da proteção legal levaria a categoria à informalidade e diminuiria as oportunidades de emprego. É fato que a informalidade é grande nesta categoria de trabalhadores, uma vez que apenas 27,8% dos domésticos possuem registro em carteira (dados da PNAD 2006). Mas é duvidoso que isto possa ser atribuído ao “excesso de legislação” (até porque atualmente a legislação é mais flexível do que a do trabalhador comum e nem por isto há um aumento de formalidade em relação à média dos demais trabalhadores, pelo contrário). Há basicamente quatro elementos que explicam esta informalidade, dois culturais, um econômico e um institucional. O primeiro elemento cultural que nos ajuda a compreender o tamanho da informalidade é o fato de que os empregadores resistem a reconhecer que o doméstico seja um trabalhador como outro qualquer e pensam que a contratação é na verdade “um favor” que fazem a alguém que normalmente não teria qualificação para outro tipo de ocupação no mercado de trabalho. O segundo elemento cultural – e o mais relevante de todos - é que há em geral na sociedade brasileira, pela herança da escravidão, o sentimento de que ter a sua disposição um trabalhador serviçal é um direito de quem atinge um nível de renda minimamente razoável, sendo inclusive medida de status a comprovar ascenção social. Assim, não raro, pessoas com renda familiar de três salários mínimos (cerca de R$ 1.245,00) - que de acordo com o IBGE já integram a classe média baixa - querem ter empregado doméstico, o que não faz nenhum sentido, já que consumiriam mais de um terço de sua renda (considerados os encargos sociais) com este tipo de despesa. Ou seja, o que leva à informalidade não é a proteção social do trabalhador, mas a sua contratação por quem, em tese, não teria condições de fazê-lo. Como lembra o jornalista Gilberto Dimenstein na coluna “pensata” (Folha Online de 01.09.08), “se considerarmos padrões civilizados, 25
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ter empregada em casa é um luxo, acessível a gente muito rica, riquíssima. (...) Quem quiser ter uma em casa, que pague e bem”. Estes elementos culturais encontram campo fértil para prosperar em um ambiente econômico propício a isto: a oferta abundante de mão-de-obra feminina barata, seja pela desqualificação de imensa parcela das trabalhadoras brasileiras, seja pelo grande número de famílias chefiadas por este tipo de profissional. É isto efetivamente o que deprime o nível de remuneração e formalidade dos domésticos. Se fossem poucas as mãos femininas disponíveis ao trabalho doméstico remunerado (como ocorre na Europa), o salário e a formalidade aumentariam. A tudo isto deve ser acrescido um aspecto institucional: a impossibilidade de o Estado fiscalizar o trabalho no interior dos domicílios e impor sanções, como também a dificuldade de o trabalhador doméstico produzir provas na Justiça do Trabalho. É chegada a hora, portanto, de o país se livrar de uma das mais nefandas heranças do regime servil, que é a discriminação jurídica dos trabalhadores domésticos. Situação que, freqüentemente, leva estes trabalhadores a sentimentos de inferioridade e situações de preconceito, como muito bem captou um conhecido intérprete dos anseios da categoria, o cantor e compositor Odair José: “Deixa essa vergonha de lado/nada disso tem valor/você ser uma simples empregada/ não vai mudar o meu amor.”
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