Direito do Trabalho e Discriminação
Dr. Estevão Mallet
O tema sobre o qual deveremos refletir agora – Discriminação, especialmente a Discriminação no Direito do Trabalho – é bastante delicado e difícil. Ressalto, logo de saída, a profunda ligação existente existente entre a idéia de justiça e a idéia de igualdade. É verdade que o conceito de igualdade pode variar muito. Vários são os conceitos mencionados. Podemos pensar em igualdade formal ou em igualdade material, bem como em igualdade absoluta ou igualdade relativa. Há, contudo, um dado que é inolvidável: se não há igualdade, algum tipo de igualdade pelo menos, seguramente não há justiça. justiça. A idéia de justiça está profundamente associada a alguma forma de igualdade. Tal constatação extravasa mesmo o mero comportamento do ser humano. Digo isso por conta de recente pesquisa, realizada em torno do tratamento desigual dispensado a animais, cujos resultados divulgaram-se na semana passada. Pareceu-me profundamente significativo o que se observou. Para uma mesma tarefa os pesquisadores gratificaram de modo desigual os macacos, oferecendo alimentos de diferentes qualidades e gostos.
Isso
provocou
violenta
reação
naqueles
que
se
sentiam
prejudicados, os quais rejeitavam o alimento de menor qualidade que lhes era oferecido. Demonstrou-se que a desigualdade de tratamento gera até mesmo nos animais um forte sentimento de injustiça e de revolta. Pois bem, o que é a discriminação senão a desigualdade arbitrária, inaceitável e injustificável? Nada mais do que isso. A idéia de discriminação supõe uma desigualdade. Não qualquer desigualdade, mas a desigualdade
arbitrária,
desarrazoada,
inaceitável
diante
das
circunstâncias. Por isso que, no fundo, se a justiça se relaciona com a igualdade, e a igualdade repele a discriminação, a discriminação é também
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a negação da justiça. Eis uma constatação muito importante de se fazer logo de início. Em seguida, parece-me significativo notar que a evolução da humanidade se processa no sentido de redução das desigualdades. Dá-se tal evolução, portanto, no sentido de eliminação das discriminações. É evidente que isso ocorre com alguns sobressaltos, com marchas e contramarchas. contramarchas. Mas a direção é claramente nesse sentido. Primeiramente há a divisão entre senhores e escravos; entre os que são pessoas e os que nem pessoas são, recebendo o tratamento de objeto de direito 1. O passar do tempo fez com que o elemento humano prepondere e todos sejam reconhecidos como sujeitos de dir eito. Permanecem, todavia, algumas distinções, como por exemplo, a estabelecida entre nobres e servos, os primeiros com mais direitos, os últimos com menos direitos 2. Já é uma evolução. Mas é, ainda, apenas uma etapa na caminhada. Com as revoluções liberais do século XVIII e do século XIX o elemento humano, o traço comum, ocupa todo o espaço e as distinções desaparecem. É a consagração da igualdade formal; a abolição de qualquer discriminação em face da lei. Expressiva, a propósito, a referência contida no artigo 1o da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”. Como se vê, todos são homens, são seres humanos ou, diríamos melhor, são pessoas, e não há mais distinções aceitáveis em face da lei. Segue-se a evolução apontada com a consolidação da democracia, que acentua essa caminhada no sentido da igualdade e da eliminação da discriminação 3. Para cada pessoa, um voto, independentemente independentemente da origem, do nascimento, do patrimônio, do conhecimento ou da cultura. Todos são pessoas e todos têm direito a um voto, em perfeita igualdade de condições. Daí que a democracia favorece, de modo significativo, a igualdade, 1
Por todos, Jhering, L´esprit du droit romain, Paris, Marescq, 1886, tome deuxième , p. 101 e segs. A propósito, René Foignet, Manuel élémentaire d´histoire du droit français, Paris, Rousseau, 1932, p. 158 e segs. 3 Veja-se, sobre o tema, Pontes de Miranda, Democracia, Liberdade, Igualdade (os três caminhos), São Paulo, Saraiva, 1979, p. 409 e segs. 2
3
ampliando sua importância. E não me parece que dizer isso seja uma superfetação, uma redundância, mesmo nos dias de hoje. Pelo contrário, de tempos em tempos, quando se aproxima o período eleitoral, deparamo-nos com pessoas que resistem em aceitar a idêntica participação de todos na escolha dos dirigentes do país, supondo que alguns, seja por pagarem muito mais impostos, seja por terem maior capacitação técnica ou melhor formação cultural, deveriam poder influir de modo mais significativo nessa escolha 4. Não há nenhum fundamento, todavia, para essa discriminação e a democracia a repele firmemente. Aqui não é, porém, o momento adequado e nem o local apropriado para tratarmos dessa caminhada no sentido da maior igualdade, no sentido da eliminação da discriminação em todos os campos do direito. É um universo muito vasto e muito interessante. O mais importante é consideramos como isso se processou no campo do Direito do Trabalho, o objeto da nossa preocupação comum. O preceito que, em primeiro lugar, chama a atenção, e do qual podemos inicialmente tirar algumas considerações muito ricas e muito interessantes, é o artigo 5 o da Consolidação das Leis do Trabalho, introduzido na parte geral, para ressaltar a importância da regra editada pelo legislador. Por trás dessa regra há algo de muito significativo, que desejo sublinhar. Diz o preceito: “Para trabalho de igual valor corresponderá igual salário, sem distinção de sexo”. Eis o dispositivo que, antes de outros, proscreve a discriminação no Direito do Trabalho. O que há de tão expressivo nesse dispositivo? Há pelo menos dois pontos. 4
Vale lembrar, a propósito, que o princípio do “one person, one vote ” somente se estabeleceu nos Estados Unidos da América, sempre referidos como exemplo de democracia, com as decisões proferidas nos chamados “reapportionment cases ”, no início dos anos sessenta. Em 1962 a Suprema Corte, em Baker v. Carr (369 U.S. 186), declarou a inconstitucionalidade da legislação de 1901, do Estado do Tennessee, que distribuía as vagas na assembléia de modo desigual entre os eleitores. Dois anos depois, em 1964, enfrentando problema semelhante surgido no Estado do Alabama, a mesma Suprema Corte, novamente declarando a inconstitucionalidade de critérios de distribuições de votos de forma desigual entre eleitores, registrou, na célebre expressão do juiz Warren: “ Legislators represent people, not trees or acres. Legislators are elected by voters, not farms or cities or economic interests ”(Reynolds v. Sims – 377 U.S. 533). Sobre o tema, mais amplamente, consulte-se o livro de Archibald Cox (The Court and the Constitution, Boston, Houghton Mifflin, 1987, p. 289 e segs.), que, como Solicitor General of the United States, participou diretamente nos “ reapportionment cases ”. Consulte-se igualmente, para se ter outra perpectiva dos casos, Raoul Berger, Gouvernment by Judiciary – The transformation of the Fourteenth Amendment , Cambridge, Harvard University Press, 1977, p. 69 e segs.
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De um lado, deve-se sublinhar a referência do legislador à igualdade apenas do ponto de vista remuneratório. O importante é a igualdade de remuneração. Os outros aspectos são postos de lado. Se o trabalho tiver igual valor, a remuneração deverá ser a mesma. De outra parte, e aí está o segundo ponto a notar, há a referência apenas à discriminação fundada em motivo de sexo, como se essa fosse a única causa de discriminação. O que mostram as duas referências do legislador? Mostram, em primeiro lugar, a concepção claramente patrimonialista da Consolidação das Leis do Trabalho e do nosso Direito do Trabalho. Quando Sérgio Buarque de Holanda escreveu sobre as origens do Brasil, e fez referências à formação patrimonialista da nossa sociedade 5, não tinha em vista o Direito do Trabalho e a Consolidação das Leis do Trabalho. Se tivesse, afirmaria ainda com mais ênfase a sua conclusão. O nosso Direito do Trabalho é essencialmente patrimonialista. Leva quase sempre em conta, apenas e tão somente, o aspecto pecuniário da relação de trabalho, como se esse fosse o seu único aspecto ou, pelo menos, o seu aspecto decisivo. A rescisão do contrato pode se operar imotivadamente, desde que o empregador indenize o empregado, pouco importando os prejuízos extrapatrimoniais que dessa rescisão resultem: abalo na vida familiar, na vida pessoal do empregado. Nada disso importa. O artigo 469 refere-se à transferência e a admite muitas vezes de forma unilateral, em caráter provisório, no interesse exclusivo do empregador, novamente desde que se indenize o prejuízo ocasionado ao empregado. Mas e a vida familiar que se desestrutura? Os laços de parentesco que são comprometidos? Tenha-se em conta, ainda, o artigo 195 e os demais dispositivos que tratam da insalubridade e da periculosidade. Compra-se, com o dinheiro, a saúde que se tira do empregado. Os exemplos dados evidenciam como o Direito do Trabalho no Brasil enfatiza apenas o aspecto patrimonial ou econômico da relação de trabalho. Também no artigo 5 o da C.L.T., no tratamento dispensado à discriminação, a mesma realidade se manifesta.
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Raízes do Brasil, Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1963, passim.
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É preciso colocar, no entanto, uma vírgula nesse raciocínio, porque a apontada concepção patrimonialista vem sendo gradativamente abalada pelas transformações recentes do Direito do Trabalho, especialmente após a Constituição de 1988. Descobriu-se um veio riquíssimo, que é o do reconhecimento de uma esfera moral de interesses do empregado, que merece proteção. Como sempre acontece quando um veio muito rico é descoberto, o oportunismo também se manifesta. Passamos de um extremo - em que tudo era apenas patrimônio - para o extremo oposto - em que qualquer deslize, por menor que seja, talvez mesmo um simples cumprimento menos enfático do empregador, pode dar margem a um pedido de indenização por dano moral. Mas isso não deve causar perplexidade nem pode desmerecer a descoberta. A evolução cultural se processa segundo um movimento pendular. É natural. Saímos de um extremo e passamos para o outro. Com o tempo, porém, encontraremos o ponto de equilíbrio. Seguramente esse ponto de equilíbrio está no reconhecimento da importância do aspecto não-patrimonial da relação de trabalho, até porque estamos falando de uma relação em que um dos sujeitos é sempre e necessariamente pessoa física, alguém que tem, portanto, direitos da personalidade que devem e precisam ser protegidos. Já o segundo aspecto emergente do artigo 5 o - a proibição da discriminação por motivo de sexo – poderia até ser aqui deixado de lado. Falar em discriminação por motivo de sexo em um Congresso da Associação dos Magistrados do Trabalho parece perfeitamente ocioso e dispensável. Se há um setor da nossa sociedade em que a discriminação por motivo de sexo é inexistente, esse setor será certamente o da magistratura do trabalho. As provas são numerosas. A presidente da Associação dos Magistrados do Trabalho da 2ª Região é a nossa amiga Olívia Pedro Rodriguez. Já foi presidente da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho a amiga Beatriz de Lima Pereira. O Tribunal Superior do Trabalho foi o primeiro Tribunal Superior do país a ter uma ministra no cargo, conquanto seja tal fato freqüentemente esquecido e negligenciado, fazendo-se referência, no mais das vezes, ao Superior
6
Tribunal de Justiça. Todos se esquecem, porém, de que a primazia está com a Ministra Cnéa Moreira, nomeada no início dos anos 90. Aliás, no âmbito
da
magistratura
do
trabalho
não
há
nenhuma
forma
de
discriminação. A razão é muito simples: o critério de escolha é exclusivamente objetivo, o que afasta a discriminação. Estamos falando, todavia, de uma situação que se restringe a um setor da vida social – a magistratura do trabalho – sem levar em conta outros setores ou mesmo os antecedentes registrados no próprio campo jurídico. Repito: não podemos nos esquecer da longa trajetória que foi preciso percorrer para se chegar ao ponto em que nos encontramos nesse setor. E essa trajetória se inicia, aliás, com algumas passagens muito significativas e muito expressivas, demonstrando claramente como a discriminação estava entranhada na nossa sociedade. Permitam-me traçar, ainda que rapidamente, algumas linhas dessa trajetória. Gostaria de fazer referência, de início, a um trecho de voto de um juiz da Suprema Corte norte-americana. Peço que observem que não estou falando, por mais que possamos divergir da forma como se conduz a política dos Estados Unidos da América, de um país que negligencia ou ignora dir eito s fundamentais do cidadão. Pois bem, em 1873, o juiz Bradley, ao julgar caso envolvendo lei do Estado de Illinois, que proibia a mulher de exercer a advocacia, disse textualmente o seguinte, e estou seguro de que todos vão ficar chocados com o teor do julgado, que reproduzo, para preservar absoluta fidelidade com as palavras empregadas: “A lei civil, assim como a lei da natureza, sempre reconheceu uma larga diferença nas respectivas esferas entre homem e mulher. O supremo destino e a missão da mulher são os de preencher a nobre e benigna missão de mulher e mãe. As regras da sociedade civil devem se adaptar à geral constituição das coisas” 6. Com tais fundamentos, considerou-se que a lei do Estado de Illinóis, que proibia a mulher de advogar, era perfeitamente constitucional e não ofendia as garantias conferidas aos cidadãos americanos.
6
Bradwell v. State of Illinois , 83 US 130.
7
Passados 80 anos, o assunto voltou à Suprema Corte, em 1948. Discutiu-se a validade de lei que proibia o trabalho de mulheres em bares. Questionou-se a constitucionalidade dessa proibição e, mais uma vez, a Suprema Corte, por 6 votos contra 3, conclui que a lei era constitucional, porque bar não era lugar para que uma mulher exercesse a sua atividade 7. Há mais. Em 1961 - as datas são muito significativas para percebermos como a discriminação estava entranhada na cultura norteamericana – outra vez se reconheceu a legitimidade do tratamento discriminatório em face da mulher. Tratava-se de lei do Estado da Flórida que excluía a participação das mulheres da composição dos júris, instituição que, como todos sabem, tem papel importantíssimo no processo penal e também no processo civil norte-americano. Pois bem, a Corte Suprema concluiu que o tratamento diferenciado imposto a homens e a mulheres no que toca ao serviço no júri não era inconstitucional8. Gostaria de chamar especial atenção para as datas, porque 8 anos antes do julgamento envolvendo a lei do Estado da Flórida, ou seja, em 1953, a mesma Suprema Corte havia destruído, em grande medida, os pilares jurídicos da discriminação racial, com o famoso julgamento proferido no caso
Brown v. Board of Education ,
que eliminou a segregação racial nos
colégios 9. Como se vê, enquanto a segregação racial foi legalmente eliminada em 1953, ainda em 1961 a discriminação contra a mulher se mantinha. Em outros países, talvez mais próximos da nossa cultura e da nossa realidade, o quadro não é completamente diferente. Tenho em mente o que se deu na Itália, após a Constituição democrática e social de 1947, exemplo especialmente significativo por conta da influência cultural exercida por esse país entre nós, sobretudo em São Paulo. A Constituição italiana é 7
Goesaert v. Cleary, 335 U.S. 464. Ficaram vencidos os juízes Rutledge, Douglas e Murph. Coube ao juiz Frankfurter redigir a decisão tomada pela maioria. 8 Hoyt v. Florida (368 U.S. 57). Assinalou a Corte, em decisão redigida pelo Juiz Harlan: “ Woman is still regarded as the center of home and family life ”, o que permitiria legitimamente dispensa legal de servir em tribunal do júri, “unless she herself determines that such service is consistent with her own special responsabilities ”. Sobre essa decisão, cf. David P. Currie, The Constitution in the Supreme Court – The Second Century 1888-1986 , Chicago, The University of Chicago Press, 1990, p. 385.
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categórica: não pode haver discriminação entre homem e mulher 10 . Em 1961, porém, a Corte Constitucional teve de se defrontar com um caso muito interessante. O artigo 559 do Código Penal italiano pune o adultério. Mas apenas o adultério da mulher. O texto diz o seguinte: “a mulher adúltera é punida com reclusão de até 1 ano”. Não há dúvida quanto ao significado da norma. A punição é dirigida apenas à mulher, não ao homem. Discutiuse, em conseqüência, a constitucionalidade da punição unicamente do adultério feminino. Em 1961 a Corte Constitucional, na sentença n. 64, chegou à conclusão de que a diferença de tratamento refletiria legítima valoração estabelecida pelo legislador, insuscetível de controle pela
jurisdição
11 constitucional. .
Rejeitou-se,
assim,
a
alegação
de
inconstitucionalidade e manteve-se o tratamento discriminatório. Antes de prosseguir, gostaria de fazer um parêntese. O caso narrado deu-se na Itália e felizmente na Itália, porque, se tivesse ocorrido no Brasil, teríamos um problema de graves proporções por conta do tratamento que o nosso legislador constitucional atribuiu à declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade da lei, especialmente após a criação da ação declaratória de constitucionalidade 12 . Por que digo isso? Digo-o porque, segundo
a
lei
que
regulamenta
o
processo
de
julgamento
da
constitucionalidade das leis ou dos atos normativos, a decisão que afirma a constitucionalidade da lei é imutável13 . Não é suscetível de ação rescisória e nem mesmo de revisão pelo Supremo Tribunal Federal. Assim, afirmação 9
347 U.S. 483. O art. 3, da Constituição italiana dispõe: “Tutti i cittadini hanno pari dignità sociale e sono eguali davanti alla legge, senza distinzione di sesso, di razza, di lingua, di religione, di opinioni politiche, di condizioni personali e sociali ”. 11 A sentença tem a seguinte ementa: “ Il principio di eguaglianza di cui all'art. 3 della Costituzione, diretto ad impedire che a danno dei cittadini siano dalle leggi disposte discriminazioni arbitrarie, non può significare che il legislatore sia obbligato a disporre per tutti una identica disciplina, mentre, al contrario, deve essergli consentito di adeguare le norme giuridiche ai vari aspetti della vita sociale, dettando norme diverse per situazioni diverse. Pertanto con l'art. 559 c.p. che punisce soltanto l'adulterio della moglie e non pone condizioni alla punibilità della relazione adulterina della moglie, non è stata creata a carico di questa una posizione di inferiorità, ma soltanto è stata diversamente disciplinata una situazione che il legislatore ha ritenuta diversa. Spetta al legislatore, non alla Corte Costituzionale, lo stabilire se la norma in questione risponda alla attuale valutazione sociale dei rapporti fra i coniugi e se i meriti oppure no di essere modificata”. 12 art. 102, inciso I, letra “a”, de acordo com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 3. 10
9
da constitucionalidade do artigo 559 do Código Penal italiano, se tivesse ocorrido no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro, não poderia ser revista. Esse é o resultado a que leva o deficiente sistema de controle de constitucionalidade vigente entre nós. Mas, felizmente, no direito italiano a situação é completamente diversa. A declaração de constitucionalidade não vincula a Corte Constitucional14 , por uma razão muito simples. A interpretação constitucional é necessariamente evolutiva. A Constituição não é um texto apenas jurídico, mas também um texto político. O significado dado à norma em certa altura poderá não ser o mesmo passado algum tempo 15 . Do que acabo de assinalar pode-se tirar importante lição propiciada pelo direito italiano. É que a constitucionalidade do artigo 559, do Código Penal, voltou a ser debatida perante a Corte Constitucional 7 anos depois, em 1968. Agora, já em um ambiente novo, em um ambiente diferente, sob a presidência de um dos maiores administrativistas italianos, Aldo Sandulli, afirmou a Corte, com sua sentença n. 126, a inconstitucionalidade da norma penal
questionada,
porque
discriminatória
a
distinção
por
ela
estabelecida 16 . O artigo 559, do Código Penal italiano, deixou, em conseqüência, de viger. Em síntese, se hoje há setores em que a discriminação contra a mulher não existe, não devemos perder de vista que no passado era muito diferente. Repito que a magistratura do trabalho nesse particular é um setor 13
Nos termos do art. 26, da Lei n. 9.868, “A decisão que declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo em ação direta ou em ação declaratória é irrecorrível, ressalvada a interposição de embargos declaratórios, não podendo, igualmente, s er objeto de ação rescisória”. 14 Vezio Crisafulli, Lezioni di diritto constituzioanale, Padova, CEDAM, 1974, II, 2, p. 151. A mesma solução prevalece no direito português, como mostra Jorge Miranda (Manual de Direito Constitucional, Coimbra, Coimbra Editora, 1996, tomo II, p. 483). 15 Nas palavras de Girgio Berti: “l´interpretazione si denota per la continuità e l´adattabilità all´evoluzione della vita sociale e dei rapporti giuridici e non c´è mai una definività assoluta, una f orza di giudicato dell´atto interpretativo che non consenta di rivederne i pressupposti, quando questi mutino ”( Interpretazione costituzionale, Padova, CEDAM, 1990, p. 619). 16 A sentença tem a seguinte ementa: “ Per l'unità familiare costituisce indubbiamente un pericolo sia l'adulterio del marito sia quello della moglie; ma quando la legge faccia un differente trattamento, questo pericolo assume proporzioni più gravi, sia per i riflessi sul comportamento di entrambi i coniugi, sia per le conseguenze psicologiche sui soggetti. Pertanto, i commi primo e secondo dell'art. 559 del codice penale sono viziati di illegittimità costituzionale in riferimento agli artt. 3 e 29 della Costituzione, in quanto sanciscono una deroga al principio di eguaglianza dei coniugi non essenziale per la garanzia dell'unita' familiare, ma risolventesi, piuttosto, per il marito, in un privilegio; e questo, come tutti i privilegi, viola il principio di parità”.
10
privilegiado 17 . Basta comparar com a magistratura estadual. Quantas são as mulheres que compõem o Tribunal de Justiça de São Paulo! Poucas, uma ou duas, se não estou equivocado. Não mais do que 3, seguramente. Quadro completamente diferente encontra-se no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. E não vai muito longe o tempo em que não podiam as mulheres nem mesmo se inscrever no concurso para a magistratura estadual. Não estamos falando de século XIX. Estamos falando já de segunda metade do século XX. E a discriminação ainda tinha lugar! Portanto, a evolução que se processou nesse campo, particularmente no Direito do Trabalho, foi extremamente significativa e expressiva. E a tal ponto significativa e expressiva que hoje a norma geral contra a discriminação foi inserida, na legislação ordinária, exatamente no Capítulo da Consolidação que trata do trabalho da mulher. Refiro-me ao artigo 373-A, da C.L.T, decorrente da Lei n. 9.799, que, embora inserido no Capítulo relativo ao trabalho da mulher, enuncia regra geral contrária à discriminação, abrangendo não apenas a discriminação por motivo de sexo como, igualmente, por vários outros motivos. Ainda no campo da discriminação referência especial deve ser feita àquela discriminação fundada em motivo de raça ou de cor. Há uma idéia generalizada de que no Brasil a discriminação racial é muito menos intensa e muito menos acentuada do que a que se encontra em outros países. Isso se deveria, segundo a conhecida concepção de Giberto Freyre, à colonização portuguesa, que seria menos segregacionista no tratamento dispensado aos escravos, permitindo mais facilmente a miscigenação. Afirmou ele que a escravidão portuguesa não seria a escravidão violenta que existiu, por exemplo, nos Estados Unidos, mas uma escravidão adaptada aos trópicos, fazendo com que a discriminação racial fosse muito
17
Pesquisa realizada entre as 500 maiores empresas do Brasil identificou participação gradativamente desigual das mulheres nas posições de maior hierarquia. Enquanto a participação geral das mulheres nos postos de trabalho é de 35%, nos cargos de chefia cai para 28%, reduzindo-se a 18% nos cargos de gerência e a 9 % nos cargos de direção (Folha de S. Paulo, 30 de n ovembro de 2003, caderno B-2).
11
menos intensa 18 , o que gerou o mito da democracia racial. Eu, de minha parte, penso que esse julgamento não é de modo nenhum correto. Em primeiro lugar, não podemos nos esquecer de que o Brasil foi um dos últimos países do mundo a eliminar a escravidão. São quase 400 anos de escravidão. E tão largo período de escravidão não se apaga, de nenhuma forma, do dia para noite. Portanto, existe sim, e muito, a discriminação racial no Brasil. Claro que não existe aquela discriminação explícita que encontramos, por exemplo, nos Estados Unidos da América, em que ainda há segregação clara entre bairros, entre moradores de um mesmo apartamento, por exemplo. Vou apresentar um relato que me foi passado por um norte-americano que hoje vive no Brasil. Conversando com ele sobre a discriminação, ouvi que um tio seu, dono de um posto de gasolina no Estado do Texas - sabidamente um dos mais racistas do país não admitia que negros abastecessem seus veículos. Os que insistiam em fazê-lo eram repelidos com tiros disparados para o alto. Perguntei-lhe, espantando, se isso ocorria apenas no início do século XX, e obtive como resposta o esclarecimento de que tais fatos se davam nos anos 60 e ainda ocorriam nos anos 70! Em alguma medida ainda se mantêm mesmo hoje. Claro que não de modo tão gritante. Mas não há dúvida de que a discriminação nos Estados Unidos é muito mais ostensiva do que em outros países. A diferença entre nós está em que a discriminação é dissimulada, oculta, disfarçada. Isso a faz ainda pior, porque é mais difícil de identificar, mais difícil de combater e mais difícil de transformar e de eliminar. É por isso que temos de levar sempre em conta esse aspecto e, especialmente, deixar de lado a idéia de que o racismo no Brasil é algo superado. Não é. É algo que até hoje ainda está presente em nossa cultura e em nossa sociedade 19 .
18
Casa-Grande & Senzala, Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1963, passim. De rigor a referência, no particular, ao recente texto de Edward Telles, Racismo à Brasileira – Uma nova perspectiva sociológica, Rio de Janeiro, Relume, 2003, passim. Entre as numerosas informações mencionadas na obra é especialmente eloqüente a observação de que a posição do Brasil no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), critério utilizado para medição das condições de vidas do povo, correspondente, no ano de 1999, ao 69º lugar entre 174 países, passa ao 43º lugar quando considerada apenas a população branca e ao 108º lugar quando excluída essa população (Racismo à Brasileira cit., p. 216). Daí a sua conclusão: “A desigualdade social é maior 19
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De toda forma, além da discriminação por motivo de sexo ou da discriminação racial, existem muitas outras formas de discriminação e várias delas são mencionadas em diferentes dispositivos da Constituição, da Consolidação das Leis do Trabalho ou de outras leis esparsas. Há, por exemplo, no artigo 7 o , inciso XXX, da Constituição, a referência à discriminação por motivo de idade e por motivo de estado civil, no tocante a salário, exercício de função e critério de admissão. A discriminação por motivo de idade, adquiriu alguma atualidade por conta de recente julgamento do Tribunal Superior do Trabalho, proferido no âmbito da quinta Turma, de que foi relator o Juiz Convocado André Luis Moraes de Oliveira, do Tribunal do Mato Grosso do Sul. O caso envolvia empresa que dispensava sistematicamente trabalhadores com mais de 60 anos. O Tribunal Superior do Trabalho reconheceu que a hipótese era de discriminação e acolheu o pedido de reintegração do trabalhador no emprego 20 . Sem embargo das hipóteses mencionadas, o certo é que esse artigo 7 o , inciso XXX, da Constituição, traça apenas parâmetros exemplificativos. que nos Estados Unidos, pois o Brasil tem uma estrutura sócio-econômica mais desigual e os negros brasileiros têm menos chance de chegar no seu ponto mais alto”(Racismo à Brasileira cit., p. 216). O acórdão tem a seguinte ementa: “Recurso de revista. Dispensa discriminatória por idade. Nulidade. Abuso de direito. Reintegração. Se das premissas fáticas emergiu que a empresa se utiliza da prática de dispensar seus funcionários quando estes completam 60 anos, imperioso se impõe ao julgador coibir tais procedimentos irregulares, efetivados sob o manto do "poder potestativo", para que as dispensas não se efetivem sob a pecha discriminatória da maior idade. Embora o caso vertente não tivesse à época de sua ocorrência previsão legal especial (a Lei 9.029 que trata da proibição de práticas discriminatórias foi editada em 13.04.1995 e a dispensa do reclamante ocorreu anteriormente), cabe ao prolator da decisão o dever de valer-se dos princípios gerais do direito, da analogia e dos costumes, para solucionar os conflitos a ele impostos, sendo esse, aliás, o entendimento consagrado pelo art. 8º, da CLT, que admite que a aplicação da norma jurídica em cada caso concreto, não desenvolve apenas o dispositivo imediatamente específico para o caso, ou o vazio de que se ressente, mas sim, todo o universo de normas vigentes, os precedentes, a evolução da sociedade, os princípios, ainda que não haja omissão na norma. Se a realidade do ordenamento jurídico trabalhista contempla o direito potestativo da resilição unilateral do contrato de trabalho, é verdade que o exe rcício deste direito guarda parâmetros éticos e sociais como forma de preservar a dignidade do cidadão trabalhador. A despedida levada a efeito pela reclamada, embora cunhada no seu direito potestativo de resilição contratual, estava prenhe de mácula pelo seu conteúdo discriminatório, sendo nula de pleno direito, em face da expressa disposição do art. 9º da CLT, não gerando qualquer efeito, tendo como conseqüência jurídica a continuidade da relação de emprego, que se efetiva através da reintegração. Efetivamente, é a aplicação da regra do § 1º do art. 5º da Constituição Federal, que impõe a aplicação imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, pois, como apontando pelo v. acórdão, a prática da dispensa discriminatória por idade confrontou o princípio da igualdade contemplado no "caput" do art. 5º da Constituição Federal. Inocorrência de vulneração ao princípio da legalidade e não configurada divergência jurisprudencial. Recurso de Revista não conhecido relativamente ao tema.” (TST – 5ª T., RR n. 462.888, Rel. Juiz Convocado André Luís Moraes de Oliveira, julg. em 10.09.03 in DJU de 26.09.03). 20
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A Constituição, pode-se claramente inferir isso do seu sistema, proíbe genericamente qualquer forma de discriminação. Outras formas de discriminação acham-se mencionadas em dispositivos diversos, mas que tem toda a pertinência no campo do Direito do Trabalho. Considere-se, por exemplo, que o artigo 7o , inciso XXX, não se refere à discriminação por motivo de crença religiosa. Mas o artigo 5 o , inciso VIII, da mesma Constituição, faz alusão à proibição de discriminação por esse motivo. Idêntica proibição se estende, sem dúvida nenhuma, ao campo do Direito do Trabalho. O mesmo se pode dizer a propósito da situação familiar, que é mencionada no artigo 373 da C.L.T. A filiação, como causa de discriminação, é completamente repudiada. Não se pode, porque o trabalhador é filho de pessoa que praticou determinado ato, que tem determinada crença ou que pertenceu a certo partido político, discriminá-lo. Outro tanto se deve afirmar a propósito da discriminação por convicção filosófica ou política ou, cumpre dizê-lo, de outras hipóteses de discriminação, raramente mencionadas, mas igualmente relevantes, como as fundadas em origem geográfica da pessoa. Esta última é uma forma de discriminação de que o legislador não se ocupa, mas que é largamente praticada entre nós. Os que são provenientes de determinados Estados da Federação costumam ter tratamento menos favorecido ou menos acolhedor. Não estou me referindo apenas a rivalidades regionais. Isso existe no mundo inteiro. Sempre teremos que conviver com a rivalidade entre paulistas e cariocas. A situação que realmente tem relevância é, no entanto, outra e diferente. Há mais formas de discriminação ainda a mencionar, como a discriminação fundada em nacionalidade ou a discriminação fundada em opção sexual, as quais tampouco se podem admitir mas que muitas vezes são praticadas, sempre de modo camuflado, de modo sub-reptício e de modo indireto. Na presente altura, depois de tudo o que se disse, há uma observação que é preciso fazer. A proibição de discriminação, que, como procurei mostrar, é muito ampla, é muito extensa, não significa imposição
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de igualdade absoluta entre as pessoas. Seria evidentemente um erro compreender a proibição de discriminação desse modo. O que se proíbe, o que todos esses dispositivos legais proíbem, o que a evolução da sociedade proscreve é a discriminação desarrazoada ou descabida. Em resumo, diante da conotação que a palavra adquiriu, pode-se afirmar que proibida é, tão somente, a discriminação e não a mera diferenciação, que é algo diverso e que se pode admitir. Aqui eu gostaria, até para não correr o risco de ser criticado por fazer referência tão seguidamente apenas ao direito norte-americano e aos precedentes da Corte Suprema americana, de atravessar o Oceano Atlântico e passar a Portugal. Faço-o tendo em conta especialmente que esse país acaba de editar um novo Código do Trabalho. A aprovação se deu no dia 28 de julho deste ano, para que passe a vigorar a partir de 1 o de dezembro de 2003. Trata-se de um texto muito rico, contendo quase 700 artigos, com disposições bastante inovadoras, que mostram o avanço da ciência jurídica portuguesa, especialmente - como lá se usa dizer – no campo laboral. No novo Código do Trabalho de Portugal há todo um capítulo dedicado ao problema da discriminação. E o legislador português foi extremamente feliz ao tratar do assunto, porque foi muito mais abrangente do que a limitada regra do artigo 373 A da C.L.T. Diz o artigo 23 do Código do Trabalho de Portugal, que trata da proibição da discriminação: “o empregador não pode praticar qualquer discriminação: direta ou indireta baseada nomeadamente - e aí fica evidente, digo eu, o caráter exemplificativo da relação que se segue - na ascendência, idade, sexo, orientação sexual, estado civil, situação familiar, patrimônio genético, capacidade
de
trabalho
reduzida,
deficiência
ou
doença
crônica,
nacionalidade, origem étnica, religião, convicções políticas ou ideológicas e filiação sindical.” Embora o rol seja exemplificativo, o legislador procurou dar a máxima abrangência ao enunciado, mostrando que qualquer forma de discriminação desarrazoada está afastada do ponto de vi sta legal. Mas – eis a importância da referência a esse dispositivo – discriminação ou proibição de discriminação não é sinônimo de proibição
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de diferenciação. Certas diferenças precisam ser estabelecidas. E o legislador português tinha isso muito claro em mente quando, logo na alínea n. 2, do mesmo art. 23, dispôs: “não constitui discriminação o comportamento baseado num dos fatores indicados no número anterior – o que acabei de ler
- sempre que, em virtude da natureza das atividades
profissionais em causa ou do contexto de sua execução, esse fator - o fator de diferenciação - constitua um requisito justificável e determinante para o exercício da atividade profissional, devendo o objetivo ser legítimo e o requisito proporcional.” Retoma-se a idéia que apresentei acima. O que se proscreve é simplesmente a discriminação abusiva, que não tem causa justa, ou seja, a diferenciação arbitrária. Não toda e qualquer diferenciação. É claro que o problema, assim colocado, não se torna mais simples. A dificuldade toda está exatamente em determinar aquilo que é justificável ou não no campo da diferenciação. Para a Suprema Corte americana, em 1873, o sexo era, no exercício da advocacia, um elemento de diferenciação justificável, razoável, aceitável, como se infere do exemplo que dei anteriormente. O passar do tempo deixou patente o erro da conclusão. Aliás, sabemos que no direito as linhas nem sempre são nítidas, nem sempre cortam com precisão. Há zonas cinzentas, onde as soluções se mostram mais difíceis. Basta pensar no caso, que não é hipotético - pelo contrário, já foi colocado perante os tribunais italianos -, da discriminação por motivo de crença religiosa. Se levantada a dúvida sobre a legitimidade de se condicionar o acesso ou ao emprego ou a permanência nele ao fato de o trabalhador professar determinada religião o impulso inicial é claramente no sentido de repelir-se o critério, considerando-o inaceitável. Mas, aproximemo-nos dessa zona cinzenta a que me referi, dessa zona onde as distinções se tornam mais tênues. Caso o empregador seja, por exemplo - e estou sempre tirando a hipótese do que se passou no direito italiano -, uma escola confessional, vinculando todo o seu ensino a determinada religião, mantém-se o caráter inaceitável do critério? Continuará
sendo
arbitrária
a
exclusão
da
admissão
daqueles
trabalhadores que não professam essa mesma religião? A jurisprudência
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italiana deu a essa questão resposta negativa. Concluiu que o critério é legítimo, entendendo que o elemento da religião, em escola confessional, pode validamente constituir critério determinante para a admissão do trabalhador 21 . Eu, de minha parte, tenho sérias dúvidas para aceitar, ainda mesmo nessa situação extrema, o critério de distinção. O decisivo, quer me parecer, é o conhecimento que se tem para o exercício do trabalho, não importando necessariamente a adesão a uma ou a outra religião 22 . Como disse, porém, aproximamo-nos cada vez mais de uma zona cinzenta, onde se torna mais difícil definir a arbitrariedade ou não do critério adotado. E, como procurei mostrar, esse é o núcleo de todo o problema da discriminação. Deixemos agora de lado a distinção entre discriminação e mera diferenciação. A discriminação, como visto, está claramente proibida e não será tolerada. Isso já é assim no nosso sistema jurídico. Há, todavia, um ponto a considerar. A realidade é condizente com essa previsão normativa? A discriminação está proibida na lei, é certo. Desapareceu ela, porém, na prática? Aqui a distância entre o dever ser - a norma legal - e o ser - aquilo que se passa no mundo dos fatos - é enorme. É colossal. Por isso mesmo é que fica evidente como não basta proscrever, por meio da lei, a 21
Trata-se da Sentença n. 195, da Corte Constitucional Italiana, proferida em 1972, na qual se afirma: “ La libertà della scuola intesa come attuazione del principio del pluralismo scolastico ai sensi dell'art. 33 Cost., si estende indubbiamente alle università, per cui è ammissibile la creazione di università libere, che possono essere confessionali o comunque ideologicamente caratterizzate, e ne deriva necessariamente che la libertà d i insegnamento da parte di singoli docenti che sono liberi di aderire all'indirizzo della scuola come di recedere dal relativo rapporto, incontra nel particolare ordinamento di siffatte università i limiti necessari a realizzarne le finalità. Ciò vale in particolare per l'Università cattolica la cui pretesa natura di persona giuridica pubblica non ne attenuerebbe comunque l'originaria destinazione finalistica e la caratterizzazione confessionale. Negando ad una libera università ideologicamente qualificata il potere di scegliere i suoi docenti in base ad una valutazione della loro personalità e negandosi alla stessa il potere di recedere dal rapporto ove gli indirizzi religiosi o ideologici del docente siano divenuti contrastanti con quelli che caratterizzano la scuola, si mortificherebbe e rinnegherebbe la libertà di questa, inconcepibile senza la titolarità di quei poteri, e pertanto l'art. 38 del Concordato non contrasta con l'art. 33 Cost., che subordina al nulla osta della S. Sede la nomina dei professori dell'Università cattolica del Sacro Cuore. La legittima esistenza di libere università caratterizzate dalla finalità di diffondere un credo religioso è uno strumento di libertà, e la libertà religiosa dei cattolici sarebbe gravemente compromessa ove l'Università cattolica non potesse recedere dal rapporto con un docente che più non ne condivida le fondamentali e caratterizzanti finalità. È pertanto infondata la questione di legittimità costituzionale dell'art. 38 del Concordato che subordina la nomina e la permanenza dei professori dell'Università cattolica al nulla osta della S. Sede, sollevata in relazione all'art. 19 Cost.”.
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discriminação. É preciso eliminá-la da realidade. Eis o grande problema dos dias de hoje. A ilegalidade da discriminação já não está mais em causa. Não é aceita pelo ordenamento jurídico. Não é tolerada. O problema é que ela continua a ocorrer na prática. Como eliminá-la? Como fazer com que essa igualdade que está na lei se transforme cada vez mais em realidade? Eis a questão hoje mais importante. Nesse campo há três aspectos fundamentais. O primeiro envolve as chamadas ações afirmativas, caracterizadas pelo tratamento desigual imposto pela lei para compensar a desigualdade existente na realidade. O tema da ação afirmativa está atualmente em bastante evidência - já esteve mais há 2 ou 3 meses, mas continua em evidência - por conta de alteração legislativa ocorrida no Estado do Rio de Janeiro, consistente na criação de cotas para ingresso, na Universidade, de estudantes vinculados a grupos minoritários ou desfavorecidos. Houve enorme polêmica, abrangendo até mesmo discussão em torno da constitucionalidade dessa reserva de cotas. O Supremo Tribunal Federal ainda não se pronunciou sobre o assunto, mas terá de fazê-lo logo mais. O que se alega, em oposição à ação afirmativa, é que essa política no fundo viola a regra de tratamento igual de todos perante a lei. Afinal, se não pode haver discriminação, como privilegiar certa minoria ou certo grupo – nem sempre minoria – com cotas reservadas, fazendo, por exemplo, com que aqueles que obtenham uma nota inferior possam ser admitidos na Universidade em detrimento de outros, que não pertencem ao grupo e obtiveram notas superiores? Prontamente vem à tona e vem ao debate um julgamento da Suprema Corte americana que envolveu, mais uma vez, o problema da discriminação racial. A Universidade da Califórnia estabeleceu cotas reservadas para negros, hispânicos e outros grupos desfavorecidos na sociedade norte-americana. Questionou-se a l egitimidade da providên cia e a Suprema Corte, em 1978, afirmou que as cotas eram inconstitucionais23 . 22
A decisão da Corte Constitucional italiana, referida na nota anterior, não levou em conta que a liberdade individual do empregador não se pode sobrepor ao interesse público de que não haja discriminação por motivo religioso. 23 Regents of Univ. of Cal. v. Bakke (438 U. S. 265).
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Invoca-se esse precedente para justificar a mesma solução no direito brasileiro. A forma como se conduz o debate é, a meu juízo, prova de como a discriminação racial encontra-se ainda muito entranhada no Brasil. Basta considerar que, quando outras cotas foram criadas, não houve a mesma resistência. Menciono, como exemplo, a cota para deficientes da Lei n. 8213. Nunca vi discussão em t orno da inconstitucionalidade dessa garantia ou desse tratamento privilegiado. No momento em que se pretende instituir a figura das cotas para os negros a inconstitucionalidade já é logo levantada. Mais grave ainda é que se menciona o precedente da Suprema Corte americana de 1978 sem considerar, contudo, que recentemente, em junho de 2003, a mesma Corte reviu a sua posição, reconsiderando, em parte, o julgamento anterior 24 . É claro que não se afirmou, com todas as letras, que o precedente estava superado. Como o precedente tem enorme importância no sistema jurídico norte-americano 25 , não é possível colocá-lo de lado sem abalar as próprias estruturas do sistema legal. Daí porque o que se costuma dizer é apenas que o precedente está sendo reinterpretado e readaptado. Seja como for, afirmou-se, agora em relação ao sistema de cotas instituído pela Universidade de Michigan, que ele era legítimo, desde que o critério racial não fosse o único e convivesse com outros critérios. O resultado, de todo modo, é que, com o critério adotado, ingressarão na Universidade integrantes de grupos desfavorecidos, mesmo que tenham obtido nota inferior à exigida de outros alunos. Como se vê, a Suprema Corte validou, em grande medida, a ação afirmativa. Ressalto, a propósito, ser particularmente expressivo o fato de a decisão haver sido tomada em 2003. Desde 1973 não se viam julgamentos progressistas na Suprema Corte. Os principais julgamentos que se deram depois do célebre caso v. Wade ,
Ro e
em 1973 26 , foram muito mais conservadores e restritivos de
direitos do que avançados e progressistas. Paradigmático o que se passa hoje com os presos que estão em Guantánamo, sem nenhum direito ao 24
Grutter v. Bollinger (000 U.S. 02-241). Para algumas considerações sobre o tema, cf. John Chipman Gray, The nature and sources of the law, Gloucester, Peter Smith, 1972, p. 198 e segs. Consulte-se, igualmente, José Rogério Cruz e Tucci, Perspectiva histórica do precedente judicial como fonte do direito, São Paulo, s. e. p., tese, 2003, p. 147 e segs. 26 410 U.S. 113. 25
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devido processo legal. A Suprema Corte silencia, como se isso não violasse as garantias fundamentais estabelecidas na Constituição norteamericana. É por isso que considero o julgamento sobre cotas, de 2003, tomado em um tribunal muito mais conservador, como é hoje a Suprema Corte americana, extremamente expressivo. Não vejo, pois, nenhuma razão para que o sistema de cotas seja considerado inconstitucional no direito brasileiro. Aliás, gostaria de invocar, no particular, um dos dispositivos mais elegantes da Constituição italiana de 1947. O artigo terceiro, a norma que estabelece a regra geral de igualdade, dispõe: “Todos os cidadãos tem igual dignidade social e são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, língua, religião, opinião política, condição pessoal ou social”. Esse é o enunciado geral que, tal como na Constituição italiana, aparece em muitas outras constituições. Mas o preceito verdadeiramente belo e importante é o parágrafo único, que estabelece o seguinte: “É dever da República remover os obstáculos de ordem econômica e social que, limitando de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana e a efetiva participação de todos os trabalhadores na organização política, econômica e social”. Daí ser lícito afirmar que as ações afirmativas estão plenamente amparadas na idéia de igualdade substancial, até porque só se remove a desigualdade com uma desigualdade compensatória, com o tratamento favorecido, que possa reequilibrar a desigualdade de fato. A conclusão enunciada também já foi feita - não de modo tão explícito, evidentemente - pela própria Suprema Corte norte-americana, quando se defrontou com o problema da aposentadoria com prazos diferenciados para homens e mulheres, cuja legitimidade se questionou, em face do princípio constitucional da igualdade. Por que o tratamento discriminatório? A Suprema Corte, em julgamento que não teve tanta repercussão como outros, disse o seguinte: “é preciso compensar um tratamento historicamente desigual com uma diferenciação legal. Do
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contrário a desigualdade será mantida e se perpetuará” 27 . A afirmação adquire especial significado no campo das cotas nas Universidades. É preciso ter em conta que a discriminação existente para o ingresso nas Universidades decorre já de uma deficiência no ensino. Os grupos desfavorecidos têm um ensino de menor qualidade. Com isso, não ingressam em Universidades de melhor qualidade. Em conseqüência, exercerão atividades ou funções com menor remuneração, fazendo com que a desigualdade se perpetue e na verdade se multiplique. Portanto, as ações afirmativas são mesmo indispensáveis se pretendemos eliminar de fato a discriminação. Outra providência impostergável para a eliminação da discriminação está relacionada com o direito processual. Na verdade, já temos as normas legais substanciais que são necessárias para condenar a discriminação. Não precisamos de outras. No entanto, põe-se a questão: quantos são os processos judiciais em que se discute a discriminação? Poucos, seguramente. Estaria aí a prova de que não há discriminação entre nós? De modo nenhum. Está aí a prova de que é muito difícil ou mesmo impossível discutir judicialmente o problema da discriminação. Por quê? Ora, por um motivo muito simples, que já foi aqui aventado, ainda que rapidamente. A discriminação nunca se dá de modo ostensivo, declarado, manifesto. Ela é sempre dissimulada, disfarçada. Isso se torna ainda mais delicado no campo do Direito do Trabalho, em que os atos muitas vezes se fundam em um direito potestativo. A dispensa, por exemplo, não precisa ser motivada. Não está o empregador obrigado a declinar o motivo para a rescisão do contrato de trabalho. Daí que, se pretende dispensar por motivo discriminatório, como age? Simplesmente silencia. Não indica o motivo. O mesmo vale para a admissão do trabalhador. Ninguém dirá que não admite o trabalhador porque quer discriminá-lo ou por conta de sua raça ou por um fator discriminatório de outra natureza. O máximo que se faz – e que já é uma grande ousadia - é a referência sub-reptícia nos anúncios para ofertas 27
Califano v. Webster (430 U.S. 313). De idêntico modo, na dissenting opinion apresentada no já citado caso Regents of Univ. of Cal. v. Bakke (438 U. S. 265), o juiz Harry Blackmun assentou: “…in order to treat some people equally we must first treat them differently”.
21
de vagas, que todos conhecem, à f amosa exigência de boa aparência. Essa divulgação já tem sido combatida. Mas o problema daqueles que discriminam se resolve facilmente. Elimina-se a alusão a boa aparência, recebem-se todos os candidatos à vaga e admitem-se apenas aqueles que satisfazem o requisito abusivamente imposto. A final, a discriminação continua a ser praticada. Pois bem, como isso pode ser resolvido? Só vejo uma forma, que envolve o segundo aspecto do combate à discriminação. Mais uma vez devemos cumprimentar o legislador português. No mesmo artigo 23, do Código do Trabalho, já mencionado, há uma terceira alínea, em que se lê o seguinte: “cabe a quem alegar discriminação fundamentá-la, indicando o trabalhador ou trabalhadores em relação aos quais se consideram discriminados.” Em conseqüência de tal preceito, aquele que se considera discriminado por conta de sua raça, religião ou convicção ou outra circunstância, deve apenas apontar outros trabalhadores que tiveram um tratamento diferenciado. Aí termina o seu encargo. Prossegue
o
mesmo
dispositivo
estabelecendo
que
incumbe
“ao
empregador provar que as diferenças de condições de trabalho não assentam em nenhum dos fatores indicados no n.1”. Essa regra mostra que, se queremos realmente tratar de casos de discriminação no Judiciário, é impostergável que se inverta o ônus da prova. Quem estabelece a diferenciação é que está obrigado a demonstrar a razoabilidade do critério de distinção. Deverá demonstrar que isso se justifica por conta da natureza da atividade. Tomemos um exemplo. Não admite a empresa - vamos imaginar - pessoas com mais de 60 anos de idade, para util izar exatamente o caso recentemente julgado pelo Tribunal Superior do Trabalho, a que fiz menção anteriormente. Ora, se se trata de contratação para atividade que exija alta capacidade física, o critério distintivo não será arbitrário. É legítimo. Mas - e esse é o ponto importante - será ainda assim sempre ônus de quem discrimina ou de quem diferencia demonstrar a razoabilidade da diferenciação. A inversão do ônus da prova é, portanto, um elemento essencial para o combate à discriminação.
22
Finalmente - prometo que já estou encerrando, diante do adiantado da hora - há um último aspecto que devemos considerar. As práticas discriminatórias,
que
continuam
existindo
entre
nós,
nunca
serão
combatidas apenas com ações afirmativas e com processos individuais em que haja a reparação da lesão. É preciso pensar cada vez mais - isso não vale apenas para discriminação, mas vale para todos os atos ilícitos no campo do Direito do Trabalho e mesmo em outros domínios - na possibilidade de imposição de sanções econômicas para desestimular as práticas contrárias ao direito. Não tenho em mente apenas o campo em que isso se dá com alguma largueza, ou seja, o campo do dano moral, em que há indenização muitas vezes deferida com fundamento punitivo e não apenas reparatório e compensatório 28 . Esse é um assunto que inclusive foi debatido no último Congresso dos Magistrados, que teve lugar no Guarujá. A reflexão feita após minha exposição pelo Dr. Lúcio Munhoz permaneceu em meu espírito e a venho considerando desde então. Tenho em conta, porém, aplicação mais ampla de sanções pecuniárias, algo que para o juiz do trabalho é de enorme importância. Pensem na situação em que o juiz condena uma vez a empresa por certa prática ilegal. Condena-a novamente, duas, três, quatro, trinta, cinqüenta, cem, trezentas, quinhentas vezes, e a empresa continua sempre descumprindo a lei. Por que o faz? Porque algumas vezes o descumprimento da lei é economicamente vantajoso. Deixa o empregador de pagar a hora extra efetivamente trabalhada uma vez que existe a possibilidade de prescrever o direito. Se não houver a prescrição, fica a possibilidade de o trabalhador não ir a juízo, receoso de sofrer uma forma de discriminação – sua não contratação por outras empresas, em decorrência do ajuizamento do processo - tema de que tanto falamos aqui. Se o trabalhador for a juízo, superadas as duas dificuldades mencionadas, pode ser que não consiga provar o trabalho excedente. Estará o empregador inadimplente, então, ainda em vantagem. Provadas as horas extras, pode-se ainda fazer um acordo por 30% ou 40% do crédito total, após algum tempo, novamente lucrando. Se nada disso acontecer, após 5, 28
O leading case em matéria de punitive damages no direito norte-americano é o julgamento de 1996 proferido
23
6, 7 anos, pagará o empregador exatamente as mesmas horas extras, que deveria ter quitado no passado, com encargos poucos significativos. Ora, em tal cenário, o descumprimento da lei é estimulado economicamente. Daí termos de pensar na possibilidade de indenização que não seja apenas reparatória, mas que seja também punitiva, para desestimular a conduta indesejável, inclusive a conduta discriminatória. Do contrário, continuarão todos julgando inúmeros processos repetitivos, em que práticas ilegais são constatadas. Já é mais do que altura de encerrar. Desejo apenas retomar observação que fiz no início, em torno do problema da discriminação. A democracia, sem dúvida nenhuma, é um passo que se dá no campo da eliminação da discriminação, porque todos são iguais no plano da participação política. Mas, há o reverso da medalha, que nem sempre é considerado. As sociedades divididas em castas, em grupos, em que há discriminação, são menos propensas a soluções democráticas e são mais inclinadas a soluções autoritárias. Daí porque, se a democracia contribui para uma maior igualdade, a maior igualdade também
fortalece
enormemente a democracia. Por isso, no fundo, o combate à discriminação não é uma questão limitada. É questão muito mais ampla, que permite recuperar e atualizar os ideais que, no já distante ano de em 1789, levaram à Revolução Francesa. É preciso pensar na liberdade não mais como aquela mera liberdade de exercer determinada atividade ou como mera liberdade econômica, como se vê hoje, considerando-se apenas o livre mercado. A liberdade é muito mais do que isso. É a liberdade que se funda na efetiva possibilidade de exercício de direitos. A igualdade, o segundo postulado da Revolução Francesa, é a igualdade de oportunidades e de chances. Diferenças sempre haverá na sociedade. O que não pode haver é uma desigualdade de oportunidades. As diferenças devem resultar da diversidade de aptidão de cada um e não da diversidade de fortuna, de nascimento ou de outros aspectos acidentais. Com tudo isso talvez consigamos atingir o terceiro postulado da Revolução Francesa, o mais pela Suprema Corte dos Estados Unidos em BMW of North America, Inc. v. Gore (517 U. S. 559).
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importante de todos, que é aquele que está mais ausente da nossa sociedade nos dias de hoje: a fraternidade. Muito obrigado pela atenção e pela paciência com que me ouviram.