INTRODUÇÃO À TEORIA DO ENUNCIADO CONCRETO DO CÍRCULO BAKHTIN/VOLOCHINOV/ MEDVEDEV
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Humanitas FFLCH/USP – abril 2002
ISBN 85-7506-060-0
INTRODUÇÃO À TEORIA DO ENUNCIADO CONCRETO DO CÍRCULO BAKHTIN/VOLOCHINOV/ MEDVEDEV 2ª edição
Geraldo Tadeu Souza
2002
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO • FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
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Souza, Geraldo Tadeu Introdução à teoria do enunciado concreto do círculo Bakhtin/ Volochinov/Medvedev / Geraldo Tadeu Souza.- 2. ed. - São Paulo : Humanitas/FFLCH/USP, 2002. 149 p. Originalmente apresentado como dissertação (mestrado) do autor – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP. ISBN 85-7506-060-0 1. Lingüística 2. Metalingüística 3. Bakhtin, Mikhail Mikhailovich 4. Enunciados 5. Gêneros narrativos I. Título CDD 410 CDD 320.1
HUMANITAS FFLCH/USP e-mail:
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A meus pais A Vera A Kim e ao Caíque
Agradecimentos Este trabalho foi apresentado como dissertação de mestrado ao Departamento de Lingüística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em abril de 1997. Gostaríamos de agradecer aos Professores Doutores Irene Machado e José Luiz Fiorin pelas contribuições e apreciação crítica enquanto membros da banca examinadora e, ainda, ao Prof. Dr. Boris Schnaiderman pela ajuda no cotejo com a edição russa de algumas obras do Círculo e pela prosa sempre enriquecedora. Agradecemos também à CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pela bolsa de estudos que nos possibilitou executar esta dissertação e, especialmente, à Prof. Dra. Elisabeth Brait que nos iniciou e orientou nas trilhas do pensamento do Círculo.
Sumário Prefácio ------------------------------------------------------------------- 11 Introdução -------------------------------------------------------- 13 I - O Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev ----------------- 19 1. Os textos disputados ------------------------------------- 24 2. O percurso teórico ---------------------------------------- 28 3. O problema da tradução --------------------------------- 42
II - A Linguagem -------------------------------------------------------- 55 1. O subjetivismo idealista, o objetivismo abstrato e o enunciado concreto ----------------------------------- 58 2. A frase e o enunciado concreto -------------------------- 68 3. O enunciado concreto como base material da Metalingüística: o dialogismo ---------------------------- 73
III - A Teoria do Enunciado Concreto -------------------------- 85 1. Gêneros do Discurso ------------------------------------- 97 2. Tema ------------------------------------------------------ 108 3. Expressividade ------------------------------------------ 116 4. Estilos ---------------------------------------------------- 123 5. Entonações ---------------------------------------------- 129
Considerações Finais ------------------------------------------ 137 Bibliografia do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev --- 143 Bibliografia Geral ----------------------------------------------- 147
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev
Prefácio Em meio às vozes que assediam Bakhtin, uma pesquisa teórica pertinente e original Beth Brait (USP/PUC-SP)
A obra do pensador russo Mikhail Bakhtin tem sido, desde há alguns anos, objeto da atenção em várias áreas do conhecimento. Esse interesse, gradativo e multifacetado, advém da riqueza de uma concepção de linguagem que pouco a pouco deixa ver sua amplitude e suas aberturas para o contato com as infinitas nervuras que constituem as relações homem-mundo. E é nesse conjunto que é preciso localizar a importância do trabalho de Geraldo Tadeu Souza, inicialmente uma tese de mestrado que agora, merecidamente, se transforma em livro, um objeto cultural cujas formas de circulação possibilitam uma repercussão mais compatível com a profundidade da pesquisa. É preciso, antes de falar do trabalho em si, e aí todos sabem que o prefácio é uma pretensiosa antecipação do que está muito melhor no texto, dizer que o interesse de Geraldo por Bakhtin e por seu círculo começa bem antes do mestrado e está tendo continuidade no doutorado, o que pode dimensionar a motivação para esse olhar com lupa sobre uma obra que, na maioria das vezes, serve, especialmente num mestrado, como a simples pretexto para leituras de diversos objetos. Já na graduação, que tendo sido feita em Lingüística possibilitou a passagem por várias teorias da linguagem, por várias tendências dos estudos lingüísticos, o então estudante optou por Bakhtin e por um maior conhecimento de sua obra e das intrigantes assinaturas que aí surgiam. No mestrado, integrado ao projeto maior “História dos Estudos Enunciativos no Brasil: o papel de Bakhtin e Benveniste” (CNPq/CAPES-COFECUB), por mim coordenado, passa a desen11
Geraldo Tadeu Souza
volver pesquisas cujo objetivo principal era discutir a obra do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev a partir do núcleo comum que une esses teóricos russos em torno de uma mesma concepção de linguagem e do seu produto: a obra verbal. De imediato a tarefa mostrou as suas dificuldades, reveladas na questão das traduções e da maneira como chegaram ao Ocidente e especialmente ao Brasil, no enigma da autoria, e mesmo na especificidade conceitual apresentada por termos como sentido, significação, enunciado, enunciação, metalingüística ou translingüística. A cada problema, Geraldo incluía, como bom pesquisador, um item a seu trabalho, cada vez mais convencido de que realmente um olhar com lupa se fazia necessário para uma melhor compreensão da concepção de linguagem, das propostas e das perspectivas de análise abertas por Bakhtin e por seu círculo. E é a partir desse mergulho reflexivo que Geraldo chega à hipótese, central em sua pesquisa, de que o núcleo bakhtiniano se empenha na elaboração de uma “Teoria do Enunciado Concreto e de sua arquitetônica conceitual, a qual funciona como uma engrenagem dinâmica onde interagem, entre outros, os conceitos de gêneros do discurso, tema, expressividade, estilo e entonação”. Para atingir seu objetivo, o trabalho, em meio a muitos aspectos polêmicos e difíceis de serem elucidados, discute a questão da autoria, considerando a individualidade intelectual de cada um dos membros, persegue a trajetória teórica do Círculo, levanta alguns problemas de tradução, incluindo as formas de participação de diferentes pontos de vista científico com os quais o círculo vai dialogar, como é o caso da Lingüística, do Formalismo, da Estilística, da Fenomenologia, da História, do Marxismo e da Estética. Como conseqüência dessa perseguição teórica, desse verdadeiro trabalho de detetive que tanto pode colaborar para a discussão dos trabalhos assinados por Bakhtin e por outros componentes do círculo, a reflexão sobre a metalingüística ou translingüística aparece como uma espécie de análise dialógica do discurso, sem que essa expressão tenha sido mencionada, nem pelos pensadores estudados e nem por Geraldo, para caracterizar a natureza da investigação e a construção dos princípios conceituais que hoje, das mais diferentes maneiras, tem penetrado os estudos sobre a linguagem.
Beth Brait 12
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Introdução “Quando estudamos o homem, buscamos e encontramos o signo em toda parte e devemos tentar compreender a sua significação” (23, 341). “a scientific work never ends: one work takes up where the others leaves off. Science is an endless unity. It cannot be broken down into a series of finished and self-sufficient works. The same is true of others spheres of ideology” (7, 129-130). “Life can be consciously comprehended only in concrete answerability. A philosophy of life can be only a moral philosophy. Life can be consciously comprehended only as an ongoing event, and not as Being qua a given” (2, 56)
Um estudo aprofundado das obras do Círculo Bakhtin/ Volochinov/Medvedev nos leva ao encontro de uma série de transformações sociais, científicas e culturais que tiveram curso na Rússia no período em que elas foram elaboradas – anos 20 aos anos 70 deste século. Se tomarmos algumas observações constantes na extensa obra desse Círculo e concordarmos com elas, perceberemos que “cada época e cada grupo social têm seu repertório de formas de discurso na comunicação sócio-ideológica” (10, 43), e nosso intuito aqui, é de tentar observar o repertório de discursos científicos com os quais o Círculo dialogava. Nosso objetivo é tentar descobrir como um grupo de intelectuais, cujo líder Mikhail Bakhtin foi exilado durante o expur13
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go de 1928, promovido por Stalin, conseguiu manter viva a investigação da heterogeneidade discursiva numa época de homogeneidade1 , e penetrando nesse sistema como um vírus, metamorfoseando-se em caráter marxista, construir uma obra de tal qualidade que, ainda hoje, seus parâmetros teóricos permanecem novos. Para desenvolver essa dissertação tivemos que escolher um tema, dentre muitos, para perseguir o fio que leva a uma reflexão em torno do todo concreto da obra do círculo. Nos detivemos, então, no percurso de elaboração de uma Teoria do Enunciado Concreto. Não devemos esquecer que a base de investigação do círculo é o pensamento concreto. Nesse sentido, o enunciado que será a base deste texto é o enunciado concreto, dialógico – interior e exterior, cotidiano, artístico, o enunciado enquanto um acontecimento na existência, um acontecimento social. Essa investigação dialógica nos incita a pensar o todo do objeto de análise como um objeto vivo. Então, a sua natureza, além de dialógica, deve ser tridimensional obedecendo aos seguintes aspectos que compreendem um todo orgânico: 1) o micro-diálogo, ou seja, o diálogo interior a cada uma das obras do Círculo; 2) o diálogo exterior, o diálogo com o outro composicionalmente expresso e que é inseparável do diálogo interior; 3) o grande diálogo das obras como um todo. Essa metodologia de análise vai nos ajudar a acompanhar as características imanentes à cada obra; as relações que unem uma obra a outra, e, finalmente, a compreender as relações que, 1 Nos referimos aqui ao período posterior às manifestações concretas da heterogeneidade discursiva que dava o tom ao período revolucionário até o início dos expurgos stalinistas de 1928. 14
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existentes entre as obras, não foram objetificadas, e que se tornaram um dos fortes argumentos para atribuir o todo das obras, ou como preferem outros, todas as obras, a Mikhail Bakhtin. Mas a intenção de elaborar uma investigação concreta dos fatos da linguagem, ou seja, da vida verbal, traz no seu bojo a crítica a outras construções científicas, que se norteiam pelo pensamento abstrato ou idealista na análise dos fatos da linguagem como: a lingüística, a psicologia, a estética e a estilística. Essas críticas têm uma característica importante: não retirar a legitimidade dessas ciências no interior de um pensamento abstrato ou idealista, mas de complementá-las com uma abordagem de outra natureza – fenomenológica, histórica, sociológica, dialógica – no âmago da realização concreta da palavra, do signo, do discurso, enfim, do enunciado concreto. A abordagem dos fatos concretos da linguagem implica uma série de dificuldades, visto que é preciso um mínimo de estabilidade para que o investigador encontre uma base para apoiar sua interpretação desses fatos. Por outro lado, nós, enquanto participantes de uma comunidade discursiva determinada, desenvolvemos uma capacidade de compreender os enunciados dos outros membros dessa comunidade, e sabemos como respondê-los, ou seja, entendemos, em um certo nível, o funcionamento dinâmico dessa comunidade e nos comunicamos com ela, não passivamente, mas como um membro ativo. O que as obras do Círculo nos mostram é o esforço de descobrir qual é o papel da linguagem em cada acontecimento da existência humana: na vida cotidiana, na arte, na ciência, na religião de uma época determinada. Essa compreensão sincrônica da linguagem nos permite identificar numa série diacrônica, pelo conhecimento de fatos anteriores dessa sociedade, a evolução dessa sociedade, do ponto de vista econômico à realidade lingüística, das relações sociais aos gêneros do discurso. Embora a maioria das obras tratem do enunciado literário, os enunciados concretos que servem como base para as investigações do Círculo, que compõem os gêneros primários, são os 15
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enunciados cotidianos, tomadas as ressalvas feitas por Volochinov no ensaio “A estrutura do Enunciado”2 devido a recorrência ao enunciado cotidiano em sua representação literária: “o procedimento que consiste em analisar um enunciado como se ele fosse um enunciado cotidiano e atestado na história é, evidentemente, perigoso de um ponto de vista científico, e ele não pode ser utilizado senão excepcionalmente. Mas na ausência de um registro no gramofone, que nos forneça um documento autêntico sobre as conversas de personagens vivos, se deve recorrer ao material literário, levando em conta, naturalmente sua natureza específica” (16, 309). Atualmente, esse problema pode ser contornado com a utilização de materiais gravados como os do projeto NURC/ USP por exemplo, ou numa perspectiva mais contemporânea, os enunciados cotidianos virtuais, desenvolvidos concretamente por intermédio de INTERNET, telefones, etc. Na hora de escrever a monografia que trata da obra desses excepcionais teóricos russos, alguma coisa ainda nos impede de iniciar a tarefa. Buscamos maiores referências, tornamos a ler algumas coisas, e mesmo assim, não nos damos por satisfeitos. Muito vai ficar de fora, pois o trabalho de pesquisador não encontra, ainda, um eco estável na escrita, não assumiu um gênero, um tom, um estilo, enfim, um enunciado concreto. A hora da criatividade, de remexer o “dado” e transformá-lo no criado, no ato fenomenológico, único, que tornará forma a seguir, reflete uma preocupação: levantar questões para discussão da obra, primeiro no interior do Círculo (de uma maneira um tanto monológica, mas que se justifica para tentar perceber no seu mais alto grau a dimensão das idéias desses teóricos), e depois, deixar a impressão dialógica que modifica, transforma e retransmite idéias que, nos anos 20 deste século, principiaram no interior da União Soviética, e que se renovam agora na “grande temporalidade” onde nada está morto. 2 Ou “A construção do Enunciado” [Constrúctzia viskázivania] (33, 19). 16
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Nossa proposta, então, é de discutir no interior do todo da obra do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev as seguintes abordagens: 1) a polêmica em torno da autoria das obras; 2) os pontos de vista que eles utilizam para investigar o enunciado concreto; 3) quais os conceitos que permitem uma interpretação do enunciado concreto. A princípio, discutiremos o “Círculo Bakhtin/Volochinov/ Medvedev” e alguns pontos de vista de estudiosos franceses, americanos e brasileiros sobre esse tema, bem como os problemas de autoria dos textos, o percurso teórico e os problemas de tradução. Na segunda parte, abordaremos o problema da linguagem e algumas dificuldades conceituais em relação a esse estudo. E por fim, na terceira parte, trataremos da Teoria do Enunciado Concreto que se articula, na obra desses teóricos, em torno dos conceitos Gêneros do Discurso, Tema, Expressividade, Estilos e Entonações, numa perspectiva ética, fenomenológica, histórica, sociológica e dialógica. Não temos o intuito de apresentar aqui uma investigação aprofundada dos fatos que encontramos, e sim, dar uma introdução ao pensamento do Círculo nos limites de uma Teoria do Enunciado Concreto. Acreditamos ser essa uma forma de chamar a atenção para o todo da obra, ao invés de permanecer em investigações onde essa mesma obra tem um valor periférico – seja no estruturalismo francês ou na Análise do discurso de linha francesa, com o aproveitamento legítimo de uma ou outra obra do círculo. Nosso intuito é mesmo de provocar discussões, de dialogar, de polemizar, e se conseguirmos esse feito, essa monografia terá cumprido sua finalidade.
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I. O Círculo Bakhtin/Volochinov/ Medvedev “Nosso estudo poderá ser classificado de filosófico sobretudo por razões negativas. Na verdade, não se trata de uma análise lingüística, nem filológica, nem literária, ou de alguma outra especialização. No tocante às razões positivas, são as seguintes: nossa investigação se situa nas zonas limítrofes, nas fronteiras de todas as disciplinas mencionadas, em sua junção, em seu cruzamento”
(23,329).
O encontro de Bakhtin, Volochinov e Medvedev ocorreu, provavelmente, na Universidade de Petrogrado, ou São Petersburgo3 . Nessa universidade, Bakhtin estudou no Departamento de Letras Clássicas, no período 1914-1918, e Volochinov e Medvedev se formaram na Faculdade de Direito. Era muito comum na Rússia, nessa época, a cultura dos Círculos. Bakhtin e Volochinov participaram do Círculo de Nevel (1918-1920), e Medvedev se juntou ao grupo no Círculo de Vitebsk (1921-1924), onde foi ser reitor da Universidade Proletária, depois de ter sido voluntário do Exército Russo na I Guerra Mundial. São dessa época as publicações da fase fenomenológica de Bakhtin – “Arte e Responsabilidade” (1919) e “Sobre a Filosofia 3
A cidade de São Petersburgo teve seu nome alterado durante a Revolução Russa para Petrogrado, e posteriormente para Leningrado. Hoje, ela voltou a ser chamada pelo nome anterior a revolução.
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do Ato” (1919-1921)- os quais, numa abordagem ético-fenomenológica, tratam das relações da vida cotidiana e da vida da arte na unidade da pessoa responsável por seus atos. Em 1922, Medvedev retorna a Petrogrado para trabalhar na Editora do Estado. Mais ou menos no mesmo período, Volochinov volta a Universidade de Petrogrado para se graduar na Faculdade de Filologia. Bakhtin consegue ir para Petrogrado, em 1924, após receber uma pensão do estado devido às complicações de sua saúde, não sem antes terminar os ensaios “O autor e o herói” (1922-1924) e “O Problema do conteúdo, do Material e da Forma na Criação Literária” (1924). É em Leningrado, ou no Círculo de Leningrado (1924-1929) conforme aponta a biografia de Michael Holquist e Katerina Clark, que o Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev publica a maioria de seus livros e ensaios. E são, também, essas publicações que se tornaram, posteriormente, alvo da polêmica em torno da autoria. Algumas observações sobre Volochinov nessa biografia, levam-nos a duvidar de que ele não seja o autor dos ensaios e obras publicados com seu nome. Durante esse período do Círculo de Leningrado, ele se graduou na Faculdade de Filologia da Universidade de Petrogrado, em 1927, e desenvolveu trabalhos de metodologia dos estudos literários no Instituto de História Comparada de Literatura e Línguas do Oeste e do Leste. Esse Instituto “representava uma “aproximação marxista nova” aos estudos lingüísticos, que contestava outras formas de abordagem como a Formalista” (34, 110). Há, ainda, a informação de que Volochinov se tornou marxista no mesmo ano, embora nunca tenha sido membro do partido comunista, e que o tema de sua dissertação tenha sido, provavelmente, o problema do discurso citado4 . 4
O problema do discurso citado – enunciado de outrem – é um dos eixos fundamentais na articulação da Teoria do Enunciado Concreto desenvolvida pelo Círculo. 20
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As obras assinadas por Volochinov e Medvedev nesse período caracterizam-se, realmente, por uma aproximação marxista nova dos estudos da linguagem, acrescentando aos estudos histórico-fenomenológicos de Bakhtin – se pensarmos no todo da obra do Círculo – uma abordagem sociológica – o método sociológico- e ideológica – o marxismo- e também um aprofundamento das críticas à psicologia, à lingüística e ao formalismo, como também, à aplicação da metodologia dessas disciplinas aos estudos literários. É no interior desse projeto que podemos compreender os livros assinados por Volochinov – Freudianism. A critical Sketch (1927) e Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929), bem como o livro assinado por Medvedev – The Formal Method in Literary Scholarship. A Critical Introduction to Sociological Poetics (1928), sem nos esquecermos de que essa abordagem já se prenunciava no ensaio “Le discours dans la vie et le discours dans la poésie” (1926), o qual também era assinado por Volochinov. Todos esses textos, além dos outros ensaios de Volochinov – “Beyond the Social” (1925) e “The Latest Trends in Linguistic Thought in the West” (1928) – formam o todo dos textos cuja autoria é atribuída a Bakhtin, embora nunca tenha havido uma confirmação de sua parte quando indagado sobre esse problema5 . Essa aplicação do método sociológico, no seu viés marxista, presente nas obras de Volochinov e Medvedev, não aparece na obra de Bakhtin, caracterizada em interação com o marxismo. Ele reconhece a importância do método sociológico e sua aplicação à análise da obra literária – e é o que ele faz em Problemas da Obra de Dostoievski (1929) e em “Rabelais na História do Realismo” (1940), mas não se encontram nessas obras, com sua assinatura, referências ao marxismo. Talvez tenha sido esse um dos motivos de sua prisão em 1929 e seu exílio para Kustanai em 1930, por quatro anos. E também, o fato de, ao final do exílio, ele 5
No Prefácio de Marxismo e Filosofia da Linguagem, Jakobson inclui o ensaio de 1930 – “A estrutura do enunciado” – entre as obras em disputa (28, 9). 21
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ter que pedir permissão e obter autorização para qualquer movimentação no interior do país, no que contava com a ajuda de Medvedev para interceder em seu favor junto às autoridades. Durante o período de exílio de Bakhtin, Volochinov desenvolveu carreira acadêmica como professor do Instituto Pedagógico Herzen, e como pesquisador senior do Instituto Estatal para Dialetos Culturais. Com o agravamento da tuberculose, que o acompanhava desde 1914, ele veio a falecer em 1936. Medvedev se tornou professor titular do Instituto Histórico e Filológico de Leningrado, do Instituto Pedagógico Herzen – o mesmo onde Volochinov lecionou –, e da Academia Militar Tolmachev, onde foi chefe do Departamento de Literatura. Em 1937, ele foi preso durante um expurgo, provavelmente, na Faculdade da Academia Militar e veio a falecer em 1941 em local desconhecido (34, 264-265). Bakhtin lecionou, a partir de 1936, no Instituto Pedagógico da Mordóvia, em Saransk, no Departamento de Literatura Mundial, onde era o único professor. Apesar do seu passado político, Bakhtin conseguiu fazer conferências sobre Shakespeare na Casa da Literatura, em Moscou (1940), e sobre “O Discurso no Romance” (1940)6 e “O romance como gênero literário (1941)7 no Departamento de Teoria Literária e Estética do Instituto Gorki da Literatura Mundial, também em Moscou (34, 262). Em setembro de 1941, quando já era o único sobrevivente do Círculo a que se refere nossa pesquisa, Bakhtin começou a lecionar alemão em Savelovo, sendo autorizado a lecionar russo, a partir de setembro de 1945. É nesse período – II Guerra Mun6
O ensaio sobre esse tema, com o mesmo nome, tinha sido escrito por Bakhtin entre 1934 e 1935 (17).
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Segundo a biografia de Holquist e Clark, esta conferência foi desdobrada em dois artigos: “Da Pré-história do discurso romanesco” (1940) e “Epos e Romance (Sobre a metodologia do estudo do romance)” (1941), que estão incluídos em Questões de Literatura e de Estética. A teoria do Romance (1993) (20). 22
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dial – que ele escreve, entre outros ensaios, a sua dissertação de doutorado para o Instituto Gorki de Literatura, com o título “Rabelais na História do Realismo”8. Holquist e Clark dizem: “Bakhtin nunca foi, formalmente, um estudante graduado pelo instituto, mas ele se beneficiou do direito que tinha de apresentar um trabalho para a pós-graduação, mesmo sem ter feito os estudos formais de graduação” (34, 263). Esse fato talvez tenha levado a banca examinadora a conceder-lhe o título de “candidato a doutor” (34, 324) quando da apresentação da referida dissertação. Bakhtin retorna a suas funções de professor do Instituto Pedagógico da Mordóvia, em Sarank, no departamento de Literatura Geral, aí permanecendo de 1945 a 1961, quando se aposenta por problemas de saúde. É dessa época o ensaio “Os gêneros do Discurso” (1952-1953). A partir de 1960, um grupo de estudantes do Instituto Gorki, que tinham redescoberto o livro de Dostoievski e a dissertação sobre Rabelais nos arquivos deste instituto, começa a fazer esforços para sua republicação. Ao descobrirem que Bakhtin ainda vivia, entram em contato com ele e discutem a possibilidade de republicação dessas obras. Bakhtin inicia, então, uma revisão do livro sobre Dostoievski entre 1961 e 1962, o qual é publicado com sucesso, em 1963, como Problemas da Poética de Dostoiévski. O mesmo ocorre com a sua dissertação sobre Rabelais, publicada em 1965 com o título A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Bakthin dedica seus últimos anos à revisão de seus textos que acabam sendo publicados postumamente em Questões de Literatura e de Estética. A teoria do Romance (1975) e Estética da Criação Verbal (1979), vindo a falecer em 07 de março de 1975 após sérias complicações de seu estado de saúde. 8
Uma versão revisada dessa dissertação foi publicada em 1965, com o título A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais (19) 23
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1. Os textos disputados Há um assunto que permanece obscuro na história das obras do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev: a questão da autoria de algumas das obras. Intricados caminhos, que mais parecem uma empreitada para Sherlock Holmes, levam à questão do “inacabamento”, deixando o “diálogo inconcluso” pela impossibilidade mesma da assinatura do autor para dar fim à polêmica. De um lado pesquisadores como Michael Holquist e Katerina Clark, que em sua biografia de Bakhtin – Mikhail Bakhtin (1984) – assumem que todas os textos disputados são de Bakhtin. Eles apresentam “provas” que confirmam essa hipótese, chegando a dizer que não podem revelar certas fontes. Por outro lado pesquisadores como I. R. Titunik, Gary S. Morson e Caryl Emerson, que questionam todas as argumentações de Holquist e Clark, referindo-se à biografia deles como uma espécie de “hagiografia” e não uma simples “biografia”, considerando que as obras “disputadas” são de Volochinov e Medvedev, conforme publicadas na primeira edição das obras e artigos em disputa. Assim, por exemplo, Marxismo e Filosofia da Linguagem é atribuída apenas a Volochinov no original russo (8) e na versão inglesa (11), e nas edições francesa (9) e brasileira (10) aparecem com as duas assinaturas – Bakhtin (Volochinov). No prefácio dessa obra, Roman Jakobson diz: “Acabou-se descobrindo que o livro em questão e várias outras obras publicadas no final dos anos vinte e começo dos anos trinta com o nome de Volochinov – como, por exemplo, um volume sobre a doutrina do freudismo (1927)9 e alguns ensaios sobre a linguagem na vida e na poesia, assim como sobre a estrutura do enunciado10 9
Ver Volosinov, V. N. (1927) Freudianism. A Critical Sketch (6).
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Estes ensaios estão publicados em Todorov, T. Mikhaïl Bakhtine. Le principe dialogique. Suivi de écrits du cercle de Bakhtine: “Le discours dans la vie e le discours dans la poésie” (5, 181-215); e “La structure de l’énoncé” (16, 287-316) com a assinatura de Volochinov. 24
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– foram na verdade, escritos por Bakhtin (1895-1975) […] Ao que parece, Bakhtin recusava-se a fazer concessões à fraseologia da época e certos dogmas impostos aos autores” (28,9)11 . Na introdução do mesmo livro, Marina Yaguello trata essa questão como fonte de um desejo de Volochinov e Medvedev, discípulos de Bakhtin, em ajudá-lo, pois devido à oesteomielite, ele estava impossibilitado de trabalhar regularmente (29,11)12 . Valendo-se de argumentos do professor V.V. Ivánov, Yaguelo divulga dois motivos pelos quais Bakhtin aceitara a publicação de suas obras sob o nome de seus discípulos: “em primeiro lugar, Bakhtin teria recusado as modificações impostas pelo editor; de caráter intransigente, ele teria preferido não publicar do que mudar uma vírgula; Volochínov e Medviédiev ter-se-iam, então, proposto a endossar as modificações. A outra ordem de motivos seria mais pessoal e ligada ao caráter de Bakhtin, ao seu gosto pela máscara e pelo desdobramento e também, parece, à sua profunda modéstia científica” (29,12). De qualquer maneira, “é difícil afirmar com exatidão quais as partes do texto que se devem a Volochínov. Sempre segundo o professor Ivánov, que deve a informação ao próprio Bakhtin, o título e certas partes do texto ligadas à escolha deste título são de Volochínov” (29,13). Vejamos como alguns pesquisadores brasileiros têm se posicionado sobre essa questão polêmica. O professor Boris Schnaiderman conta que em sua viagem a Rússia, em 1972, teve oportunidade de visitar Bakhtin, acompanhado do semioticista russo V. V. Ivanov – o mesmo citado por Jakobson e Yaguello. Após esse encontro, Ivanov transmitiu a ele “com muita convicção, a versão de que vários livros assinados por membros do 11
Jakobson não faz referência a obra The Formal Method in Literary Scholarship que também é alvo de disputa. A edição americana a atribui a Bakhtin e Medvedev (7).
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Os dados constantes da biografia revelam o contrário, Bakhtin sempre, apesar das condições políticas desfavoráveis, conseguiu continuar o seu trabalho. 25
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grupo de Bakhtin, seriam, na realidade, da autoria deste […] segundo Ivanov, no período em que Bakhtin caiu em desgraça13 , os livros assinados pelos seus amigos propiciaram-lhe alguns recursos para a manutenção” (33, 10-11). Para o professor Boris, “esta tese encontrou também alguns opositores. Em todo caso, na minha opinião, torna-se difícil para nós outros, com a nossa indigência bibliográfica, o nosso desconhecimento das circunstâncias em que os fatos ocorreram, emitir opinião categórica sobre este assunto, por mais que simpatizemos com esta ou aquela versão” (33,20). Flavio R. Kothe (1977), em “A não-circularidade do Círculo de Bakhtine”, critica em nota a atribuição de Marxismo e Filosofia da Linguagem a Bakhtin na edição francesa. Segundo esse pesquisador, “mesmo que tenha havido uma forte influência de Bakhtine, há diferenças entre este e Volosinov, diferenças que seriam incoerências caso a tese francesa prevalecesse” (27,19)14 . Em “Bakhtin e a sabedoria” (1988), Luiz Roncari apresenta a questão da autoria da seguinte maneira: “… creio que uma consideração de princípio aqui também se faz necessária: é a da relatividade da autoria individual na concepção dialógica de Bakhtin. Ele mesmo não se preocupa muito em enclausurar entre aspas todas suas citações […] Assume muitas delas, que depois encontramos em outros autores, principalmente entre críticos e teóricos russos da época, como “idéias do tempo”, idéias difundidas e comentadas e que já não se ligam mais a fontes e autores originais” (35,41). Para Beth Brait (1994), “se restam pouquíssimas dúvidas sobre a atribuição das obras a Bakhtin, especialmente por ele ser o pensador do grupo, não há como negar que, mesmo a 13
Bakhtin foi preso, em 1929, por motivos religiosos, acusado de conspirar contra a revolução (34, 141).
14
O pesquisador se orienta pela edição alemã – Marxismus und Sprachphilosophie – que, assim como a edição inglesa – atribui esse livro apenas a Volochinov (27,19) 26
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev
circunstância biográfica especial faz retornar, e de forma bastante concreta, a questão das vozes que estão disseminadas na configuração de um discurso” (41,14). Irene Machado (1995) no mapeamento das obras de Bakhtin revela: “além disso, há os escritos polêmicos que, embora tenham sido publicados com os nomes de V. N. Volochinov e P. N. Miedviediév, acredita-se serem de Bakhtin” (43,26). A polêmica em torno da autoria consegue um feito que merece destaque: tornar-se um exemplo concreto da própria teoria dialógica que envolve o todo da obra do Círculo Bakhtin/ Volochinov/Medvedev. Nesse sentido, é importante considerar o que se chama hoje de Dialogismo como uma obra de várias vozes – Mikhail Mikhailovich Bakhtin, Valentin Nikolaevich Volochinov e Pavel Nikolaevich Medvedev, preservando a autoria sob a qual cada obra foi originalmente publicada, ou mesmo editá-las como fruto do diálogo desses três pensadores como tem ocorrido com algumas dessas obras em edição francesa, inglesa e brasileira. Embora essa polêmica nunca tenha sido definitivamente resolvida, não há dúvida do prestígio de Bakhtin, hoje, como um dos mais importantes pensadores do século XX. É em torno de sua personalidade que são publicadas biografias e estudos valiosos sobre a obra do Círculo, buscando ora um princípio dialógico (Todorov), ora uma arquitetônica da respondibilidade ou responsabilidade (Holquist), ou, ainda, uma criação da prosaica (Morson), uma teoria da cultura, uma teoria da ideologia etc… enfim, um número infinito de aproximações que só se tornam possíveis quando estamos diante da obra dos grandes filósofos. De qualquer forma, não podemos esquecer da interação orgânica que une Bakhtin, Volochinov e Medvedev, que para nós está articulada no interior de uma Teoria do Enunciado Concreto. Nesse sentido, não podemos apagar os nomes de Volochinov e de Medvedev do todo da obra, sob o risco de estarmos sendo precipitados. Em primeiro lugar, porque eles continuam a aparecer na capa das obras disputadas, nem que seja entre parênte27
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ses, bem como em outros ensaios de Volochinov que, mesmo não sendo alvo de disputa, conservam, em grande parte, como todos os escritos do Círculo, uma relação dialógica com a evolução do pensamento teórico do grupo e com suas propostas básicas. E em segundo lugar, se formos coerentes com a teoria da linguagem desenvolvida por esses três pensadores, devemos concordar que o nosso próprio enunciado é um enunciado citado de outrem, e a cada momento único em que criamos um enunciado, uma obra, mesmo que repetindo as mesmas palavras do outro, estamos assinando um ato responsável e renovando, não o princípio adâmico da autoria, mas a palavra do outro numa relação dialógica de concordância e de evolução.
2. O percurso teórico O projeto do Círculo encontra suas primeiras formulações em Toward a Philosophy of the Act (1919-1921). Nesse ensaio, Bakhtin investiga a natureza do ato ou da ação em sua realização efetiva, concreta e apreciativa, por um ato consciente, na realidade única, concreta e irrepetível, ou seja, a compreensão do ato no seu sentido completo. Essa perspectiva, ética e históricofenomenológica, se opõe à divisão entre duas correntes de pensamento: a primeira – pensamento abstrato – que propõe uma investigação do sentido objetivo, e a segunda – pensamento idealista – que investiga o processo subjetivo que engendra um ato concreto. A interação orgânica entre essas duas correntes de pensamento vai encontrar eco no que Bakhtin chama de Arquitetônica. Para ele, o mundo é dividido em uma arquitetônica apreciativa entre o “eu” – o contemplador, que se situa fora da arquitetônica e – e os outros – fundados por esse “eu”, e que se encontram no interior da arquitetônica. Nesse sentido, Bakhtin define o seu projeto, que mais tarde será incorporado pelo Círculo, da seguinte maneira: 28
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev
“Não é nossa intenção construir um sistema de valores logicamente unificado com o valor fundamental – minha participação no ser – situada na cabeça, ou, em outras palavras, construir um sistema ideal de vários valores possíveis. Nem propomos fornecer uma transcrição de valores que têm sido realmente, e historicamente reconhecidos pela humanidade, com intuito de estabelecer tais relações lógicas entre eles como subordinação, co-subordinação, etc., isto é, com intuito de sistematizá-las. O que pretendemos fornecer não é um sistema, e nem um inventário sistemático de valores, onde conceitos puros (idênticos em conteúdo) estão interconectados na base de uma correlação lógica. O que pretendemos fornecer é uma representação, uma descrição da arquitetônica concreta e real do mundo experienciado, governado por valores – não com uma base analítica na cabeça, mas com esse centro concreto, real (espacial e temporal) no qual os valores, as asserções, e os atos acontecem ou se dão, e onde os membros constituintes são objetos reais, interconectados por relações de eventos concretos na única ocorrência do evento do ser (nesse contexto as relações lógicas constituem apenas um momento junto aos momentos concreto, espacial, temporal, e emotivo-volitivo)” (2, 61).
Esse projeto de buscar no acontecimento real os fundamentos de sua teoria já embute uma reflexão em torno da relação eu/outro na esfera de uma arquitetônica do valor, ou “arquitetônica apreciativa”. Nessa arquitetônica, o homem, a sua consciência, é um centro concreto de valores. Sendo assim, o estético se complementa com o extra-estético, o verbal com o extra-verbal, na unidade do homem que experiencia a vida, a ciência e a arte. Para Bakhtin, “tudo neste mundo adquire significação, sentido e valor somente em correlação com o homem – com isso que é humano” (2, 61). A arquitetônica de um acontecimento, por exemplo, um enunciado concreto, não é acabada nem rígida; ela possui estabilidade apenas na criação e na respondibilidade do meu ato. Essa forma de se relacionar com o mundo, essa estética arquitetônica da relação eu/outro se desenvolve na obra do Cír29
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culo como uma Estética da Criação Verbal. A dimensão do criado reside na esfera do enunciado único e concreto, que tem um autor – um criador que se utiliza do dado (a língua, os outros enunciados) –, um destinatário – real ou virtual, um gênero do discurso relacionado com alguma atividade humana, um estilo e uma entonação determinadas no interior de um tema e em interação orgânica com esse gênero do discurso. Essa representação da arquitetônica real, que Michael Holquist chama de Arquitetônica da Respondibilidade ou da Responsabilidade, nos fornece a natureza do projeto que será desenvolvido pelo Círculo: a investigação do enunciado concreto. É essa visão do particular, do evento único criado – estético – como um acontecimento ético, fenomenológico, histórico, sociológico, psicológico, dialógico, etc. que compõe, em linhas gerais, o projeto do Círculo e seus desdobramentos. O eixo que nos permite aprofundar no percurso teórico do Círculo é a investigação do enunciado artístico concreto como um acontecimento sociológico. É nesse sentido que, durante a leitura das obras do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev, percebemos a presença de um “método sociológico” aplicado à literatura – poética sociológica, à psicologia – psicologia objetiva, e à ciência da linguagem – metalingüística. Esse método, anterior a Revolução de 1917, foi desenvolvido por, entre outros, G. V. Plekhanov (1856-1918), com intuito de “fundar uma nova ciência da literatura baseada nos estudos contemporâneos em sociologia” (1,322-323). Participavam do grupo de Plekhanov os seguintes críticos: V. M. Friche (1870-1929), P. N. Sakulin (1868-1930), e V. F. Pereverzev (1882-1958). Em 1924, no ensaio “O Problema do Conteúdo, do Material e da Forma na Criação Literária”, Bakhtin reconhece a importância de tal método, embora pense que seu significado científico ultrapasse os limites de uma análise estética: “mas tanto o elemento ético como também o cognitivo podem ser isolados e transformados em objeto de uma investigação independente, 30
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ético-filosófica ou sociológica, o qual pode também tornar-se objeto de apreciações atuais, morais ou políticas (apreciações secundárias e não primárias, também indispensáveis para a contemplação estética)” (4,43). Ainda nesse ensaio, começam a aparecer referências ao Método sociológico. Podemos dizer que esse ensaio se situa na fronteira entre as discussões fenomenológicas e éticas da obra de arte, isto é, do enunciado artístico concreto, e um enfoque sociológico do acontecimento ético que transcende os limites da estética, ou seja, extra-estético. Esse método, na concepção de Bakhtin, teria as seguintes tarefas: a) transcrever o acontecimento ético no seu aspecto social, já vivido e avaliado empaticamente na contemplação estética; b) sair dos limites do objeto e introduzir o acontecimento em ligações sociais e históricas mais amplas; e c) ultrapassar os limites da análise propriamente estética. (4, 43). Esse embrião de aplicação do método sociológico à poética, ou seja, ao enunciado artístico concreto, será retomado e detalhado nas obras posteriores do círculo, no desenvolvimento de uma poética sociológica, de uma estilística sociológica, de uma psicologia social objetiva, enfim, de uma Sociologia do Discurso. Esse ponto de vista exterior ao objeto será utilizado, também, na problematização de sua aplicação à ciência da linguagem. Discutiremos a seguir alguns aspectos importantes da aplicação do método sociológico, como aparecem na obra de Bakhtin, Volochinov e Medvedev, retomando o lugar de uma Teoria do Enunciado Concreto nesse ponto de vista de investigação da linguagem artística, científica e cotidiana. 31
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O ensaio de Volochinov, “Le discours dans la vie et le discours dans la poésie” (1926) tem por subtítulo “Contribution à une poétique sociologique” e trata das possibilidades de aplicação desse método aos problemas colocados pela “Poética histórica”, ou seja, ao “conjunto de problemas que tratam da forma artística vista sob seus diferentes aspectos (o estilo, etc.)” (5,181). Volochinov critica opinião partilhada por alguns marxistas, de que “o método sociológico é verdadeiramente legítimo quando a forma poética artística, enriquecida pelo aspecto ideológico – isto é, pelo conteúdo –, começa a se desenvolver historicamente no quadro da realidade social exterior; quanto à forma, tomada nela mesma, ela possui sua natureza própria e se determina segundo leis específicas, que são artísticas e não sociológicas” (5,181). Essa ruptura entre forma e conteúdo provoca, segundo Volochinov, uma ruptura entre teoria e história, que contraria o próprio fundamento do método marxista – o seu monismo, ou seja, o que se aplica ao todo pode ser aplicado às suas unidades, e o seu historicismo. A forma e o conteúdo estão, na perspectiva do Círculo, sempre em interação orgânica. Nesse mesmo ensaio, Volochinov analisa uma obra do professor Sakulin15 – O método sociológico nos estudos literários – de 1925, na qual Sakulin distingue dois pontos de vista para estudar a literatura e sua história: 1) a série imanente (interior) – que possui uma estrutura e uma determinação específicas e próprias, e que evoluem de forma autônoma, segundo sua natureza; e 2) a série causal – ação do meio social extra-artístico. O primeiro deve ser estudado pelo método formal, e o segundo, que considera a literatura como um fenômeno social, deve ter a sua causalidade estudada pelo método sociológico. Volochinov propõe, então, um outro viés marxista para o método sociológico, no sentido de dotar a estrutura “imanente” do enunciado artístico de uma orientação sociológica. Para ele, “a ciência da ideologia, de acordo com a essência do objeto que 15
Como já informamos anteriormente, P. N. Sakulin fazia parte do grupo de Plekhanov. 32
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ela estuda, não pode pretender o rigor e a precisão das ciências naturais. Mas, voltada ao método sociológico, entendido segundo sua acepção marxista, ela permite, pela primeira vez, que nos aproximemos bem perto de um estudo verdadeiramente científico das produções ideológicas… As formações ideológicas são de natureza sociológica de maneira intrínseca e imanente. (5, 184). Começa a se instaurar no percurso teórico do Círculo uma Sociologia do Discurso, entendendo-se aqui “formações ideológicas” como uma semente do que, mais tarde, será chamado de Gêneros do discurso. A estética, entendida como uma formação ideológica, é para Volochinov, uma variedade do social. Assim, a teoria da arte só pode ser uma sociologia da arte (5, 185). Para uma aplicação correta e fecunda da análise sociológica na teoria da arte, Volochinov propõe que se renuncie a duas concepções redutoras da estética: a) a fetichização da obra de arte como coisa; o criador e os receptores estão fora do campo de estudo, redução ao estudo do material; b) o psiquismo individual do criador e do receptor. No caso da primeira concepção estaríamos no interior do pensamento abstrato e de suas análises formalistas e lingüísticas; e na segunda, encontraríamos a abordagem estilística tradicional do pensamento idealista, as quais serão criticadas em quase todas as obras do Círculo. Para se contrapor a essas duas concepções, que tentam descobrir o todo na parte, Volochinov descreve, assim, a natureza da poética sociológica: 1) na realidade, o fato “artístico” considerado na sua totalidade não reside nem na coisa nem no psiquismo do criador, tomado isoladamente, nem no psiquismo do receptor, mas ele contém esses três aspectos. O fato 33
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artístico é uma forma particular e fixada na obra de arte por uma relação recíproca entre o criador e os receptores; 2) a “comunicação artística” se enraíza na infraestrutura que ela reparte com as outras formas sociais, mas ela conserva, não menos do que essas outras formas, um caráter próprio: ela é um tipo particular de comunicação que possui uma forma que lhe é própria e bem específica. Assim, a tarefa da poética sociológica é compreender esta forma particular de comunicação social que se encontra realizada e fixada no material da obra de arte.(5,187). Toda essa problematização, visando compreender a obra de arte enquanto objeto de comunicação, enquanto um determinado gênero do discurso, aparecerá em toda a obra do Círculo em torno de uma Teoria do Enunciado Concreto, na qual podemos compreender o fato artístico como um enunciado artístico concreto. Ao inserir a obra de arte numa relação de comunicação “artística” – o todo da obra, Volochinov a define, sociologicamente, pelas seguintes características:
16
n
produto da interação criador/receptor;
n
momento essencial do acontecimento que constitui essa interação;
n
não é uma obra isolada, participa enquanto unidade do fluxo da vida verbal;
n
reflete a infraestrutura econômica geral;
n
participa, juntamente com as outras formas de comunicação, de um processo de interação e de trocas de formas.16
Essas mesmas características estarão presentes na articulação dos conceitos Gêneros do Discurso, Tema, Expressividade, Estilos e 34
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev
Essa perspectiva de análise do todo, pelo método sociológico em seu viés volochinoviano, orienta a evolução do pensamento ético-fenomenológico desenvolvido anteriormente por Bakhtin e, também, as críticas formuladas pelo Círculo ao formalismo lingüístico e às concepções psicológicas abstratas: “a essência concreta, sociológica do discurso, que sozinha determina sua verdade ou sua falsidade, sua baixeza ou sua grandeza, sua utilidade ou inutilidade, resta, ainda que abordada de uma ou outra maneira, incompreensível e inacessível” (5, 198). E é em busca da compreensão dessa essência que os pensadores russos irão despender esforços no sentido de encontrar formulações teóricas adequadas à investigação desse fenômeno. Ainda nesse ensaio de 1926, começa a se definir o aspecto extralingüístico do enunciado concreto. O enunciado comporta, por um lado, um aspecto verbal – a língua, a palavra, e, por outro lado, um aspecto extra-verbal – o horizonte espacial comum (de um determinado grupo social); o conhecimento e a compreensão da situação, e o valor comum. O aspecto extra-verbal, ou seja, a situação de produção do enunciado “se integra ao enunciado como um elemento indispensável à sua constituição semântica” (5, 191). Aparece aqui, também, a distinção entre enunciado cotidiano e enunciado artístico, fundamental para o desenvolvimento de uma poética sociológica e a articulação posterior entre gêneros do discurso primários e secundários no interior de uma Sociologia do Discurso e de uma Arquitetônica da Representação. Um outro tema importante de uma Teoria do Enunciado Concreto é a que trata desse enunciado como um acontecimento subjetivo, ou seja, um enunciado interior. Isso implica num certo ponto de vista em relação à psicologia. Esse viés da teoria orienta-se por uma crítica à teoria freudiana, realizada por Volochinov no livro Freudianism. A Critical Sketch (1927), cujo objetivo é aplicar um “ponto de vista dialético e sociológico” à psicologia, buscando compreender o comportamento humano a partir de um Entonações, os quais, em conjunto, formam o alicerce do Enunciado Concreto, seja ele artístico, científico ou cotidiano. 35
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viés sociológico objetivo, o que redunda numa “psicologia objetiva”. Para Volochinov , a psicologia freudiana orienta-se por um tipo especial de interpretação dos enunciados, que pretende penetrar nos níveis profundos da alma. Ele faz as seguintes críticas à psicologia freudiana: 1) não toma os enunciados no seu aspecto objetivo; 2) não procura raízes fisiológicas17 ou sociais nesses enunciados; e 3) procura encontrar os motivos do comportamento no interior dos enunciados (o paciente dá informação sobre o inconsciente). (6, 76) Ele justifica da seguinte forma as suas críticas: “qualquer produto da atividade do discurso humano – do simples enunciado cotidiano aos trabalhos elaborados da arte literária – deriva em forma e significação, em todos os seus aspectos essenciais, não das experiências subjetivas do falante, mas da situação social na qual o enunciado aparece. A língua e suas formas são produtos de uma prolongada comunicação social entre os membros de uma dada comunidade discursiva” (6, 79). Analisando a sessão psicanalítica como um tipo de relação de comunicação entre um médico e um paciente, ou seja, um gênero de discurso determinado, Volochinov formula a seguinte crítica ao produto dessa relação: “o que é refletido nesses enunciados não é a dinâmica da psique individual mas a dinâmica social das inter-relações entre o doutor e o paciente. Aqui está a origem para o drama da construção freudiana” (6, 79-80). Ele propõe, então, que se atinja as raízes das reações verbais, ou seja, do comportamento, “com a ajuda de métodos objetivos17
Eles se referem aqui ao processos fisiológicos no sistema nervoso e nos órgãos de fala e de percepção que compõem, no interior da psicologia, as reações verbais. (6, 21). 36
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sociológicos que o marxismo criou para a análise de vários sistemas ideológicos: lei, moral, ciência, mundo exterior, arte e religião” (6,87). A concepção de psicologia que norteia as formulações teóricas do Círculo, traz no seu bojo, então, uma perspectiva sociológica. Após essa crítica à psicologia, um outro livro do Círculo, The Formal Method in Literary Scholarship (1928), assinado por Bakhtin/Medvedev, vai centrar suas críticas no formalismo e sua aplicação nos estudos literários. Como sempre que o Círculo vai discutir um enunciado secundário, ou como nesse caso, um enunciado literário, a base concreta da reflexão é o enunciado cotidiano, aqui chamado enunciado prático. Para os teóricos russos, “a literatura se funda na interação real e ativa com outras esferas da ideologia, no mínimo com todos os enunciados práticos” (7, 103). Essa outra obra tem por subtítulo “A Critical Introduction to Sociological Poetics”. Aqui, Bakhtin/Medvedev reclama da falta de “uma doutrina sociológica desenvolvida das características distintas do material, da forma, e propósitos de cada área da criação ideológica” (7, 3). A partir de uma base marxista, ele propõe o desenvolvimento de “um método sociológico específico que pode ser adaptado às características de diferente áreas ideológicas, no sentido de dar acesso a todos os detalhes e sutilezas das estruturas ideológicas” (7, 4). Esse também era o objetivo de Volochinov: cada área da criação ideológica deve ser entendida, do ponto de vista de uma Sociologia do Discurso, como um gênero do discurso determinado, e a sua compreensão e análise deve levar em conta essa especificidade. Esse método sociológico, que já apresentamos anteriormente na concepção do professor Sakulin, o qual distingue duas concepções autônomas – a série imanente e a série causal –, se caracteriza aqui, como em Volochinov, pela interação entre a história da literatura e a poética sociológica. Essa formulação é impossível para o professor Sakulin. Já para Medvedev, “a poética 37
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fornece direções à história da literatura na especificação da pesquisa material e nas definições básicas de suas formas e tipos. A história da literatura completa as definições da poética, tornando-as mais flexíveis, dinâmicas e adequadas à diversidade do material histórico” (7,30). Esse caráter complementar entre pontos de vista, um utilizando os resultados das análises do outro é uma característica constante das obras do Círculo e de sua articulação em torno de um pensamento concreto que leva em consideração as contribuições dos pensamentos abstrato e idealista. As tarefas da poética sociológica, para Bakhtin/Medvedev, são as seguintes: 1) especificação: isolar a obra literária e revelar sua estrutura; 2) descrição: determinar as formas possíveis e variações dessa estrutura; 3) análise: definir seus elementos e suas funções. (7,33)18 Até aqui, o Círculo já direcionou suas críticas, sempre a partir de uma concepção específica do método sociológico, à estética, à psicologia e ao método formal. Agora, uma outra ciência se torna alvo das indagações de Bakhtin/Volochinov/Medvedev: a ciência da linguagem. Em Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929), Bakhtin/ Volochinov coloca um subtítulo – “Problemas fundamentais do Método Sociológico na Ciência da Linguagem” – que provoca uma relação dialógica com as obras anteriores. Definido o ponto de vista – o método sociológico no seu viés marxista – os componentes do Círculo vão alternando os gêneros do discurso científicos a 18
Essas tarefas são devenvolvidas, posteriormente, nas duas obras de aplicação da poética sociológica: Problemas da Poética de Dostoiévski e A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 38
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serem criticados: ora a Estética, ora a Psicologia, agora a Filosofia da Linguagem19 . Tendo como interlocutores o Marximo e a Filosofia da Linguagem, Bakhtin/Volochinov diz que “a única maneira de fazer com que o método sociológico marxista dê conta de todas as profundidades e de todas as sutilezas das estruturas ideológicas “imanentes” consiste em partir da filosofia da linguagem concebida como filosofia do signo ideológico. E essa base de partida deve ser traçada e elaborada pelo próprio marxismo” (10,38). Nesse sentido, Bakhtin/Volochinov observa as seguintes regras metodológicas: 1. Não separar a ideologia da realidade material do signo (colocando-a no campo da “consciência” ou em qualquer outra esfera fugidia e indefinível). 2. Não dissociar o signo das formas concretas da comunicação social (entendendo-se que o signo faz parte de um sistema de comunicação social organizada e que não tem existência fora deste sistema, a não ser como objeto físico). 3. Não dissociar a comunicação e suas formas de sua base material (infra-estrutura) (10, 44). Uma outra tarefa do marxismo se refere a uma concepção nova da psicologia, ou seja, de uma psicologia objetiva: “uma das tarefas mais essenciais e urgentes do marxismo é constituir uma psicologia verdadeiramente objetiva. No entanto, seus fundamentos não devem ser nem fisiológicos nem biológicos, mas SOCIO19
Estamos levando em consideração o fato de cada um desses discursos científicos serem o tema central de um determinado ensaio ou livro. Mas não podemos esquecer que em todos eles há uma interação orgânica no que se refere ao Enunciado concreto. Assim sendo, ao falar da Filosofia da Linguagem são abordadas também, dessa perspectiva, os outros discursos científicos como a Estética, a Psicologia, o Formalismo, a Sociologia, o Marxismo, etc. 39
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LÓGICOS” (10, 48). É com base nessa psicologia que o Círculo vai analisar o enunciado interior. Nesse sentido, Bakhtin/Volochinov desenvolve nesse livro a estrutura “sociológica” do enunciado, seja ele interior, exterior, ou de outrem, contrapondo-a ao ponto de vista lingüístico e estilístico então dominantes nos estudos da linguagem, e que representavam as correntes de pensamento abstrato e idealista, ou objetivismo abstrato e subjetivismo idealista, respectivamente, como veremos mais tarde. A coerência metodológica entre as obras do Círculo quanto à forma de aplicação do método sociológico fica evidente na introdução ao livro Problemas da obra de Dostoievski (1929). Bakhtin define assim os propósitos de sua análise: “en la base de nuestro análisis está la convicción de que toda obra literaria tiene internamente, inmanentemente, un caráter sociológico. En ella se cruzan las fuerzas sociales vivas, y cada elemento de su forma está impregnado de valoraciones sociales vivas. Por eso también un análisis puramente formal ha de ver en cada elemento de la estructura artística el punto de refracción de las fuerzas vivas de la sociedade, cual un cristal fabricado artificialmente cuyas facetas se construyeron y se pulieron de tal manera que puedan refractar los determinados rayos de las valoraciones sociales, y refractarlos bajo un determinado ángulo” (12, 191), ou seja, um ponto de vista consideravelmente adequado ao viés marxista adotado pelos outros dois membros do Círculo20 . 20
Em entrevistas publicadas no jornal Chelovek (1993) datadas de 197374, Bakhtin rememora sua juventude, na descrição de Caryl Emerson: “Bakhtin claims he had always wanted to be a moral philosopher, a “myslitel” (thinker); literary scholarship was for him a safe refuge from politics during those years when others were being harassed, “organized,” recruited. He insists that as a young college student in Petrograd he had been “absolutely apolitical.” He lamented not only the October Revolution but the prior February abdication as well; he predicted that it would end badly and “extremely”; he went to no meetings, profoundly distrusted Kerensky, and continued to sit in 40
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev
Problematizar uma poética sociológica implica considerar como sociológicos todos os elementos envolvidos no interior dessa poética. É assim que, analisando o discurso no romance, no ensaio de mesmo nome (1934-1935), Bakhtin diz que “a única estilística adequada para esta particularidade do gênero romanesco é a estilística sociológica. A dialogicidade interna do discurso romanesco exige a revelação do contexto social concreto, o qual determina toda a sua estrutura estilística, sua “forma” e seu “conteúdo”, sendo que os determina não a partir de fora, mas de dentro; pois o diálogo social ressoa no seu próprio discurso, em todos os seus elementos, sejam eles de “conteúdo” ou de “forma”” (17, 105-106). A união orgânica de uma poética sociológica com uma estilística sociológica permite a Bakhtin realizar um dos seus mais ambiciosos projetos: um estudo sociológico da heterogeneidade discursiva representada na obra literária e da heterogeneidade real da cultura popular no seu livro A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1940; 1965). Situando esse período histórico no limite de três línguas – latim clássico, latim medieval e as línguas nacionais, Bakhtin nos diz que “nos limites das três línguas, a consciência do tempo devia tomar formas excepcionalmente agudas e originais. A consciência viu-se na fronteira das épocas e das concepções de mundo, pôde, pela primeira vez, abarcar largas escalas para medir o curso do tempo, sentir com cuidado o seu “hoje” tão diferente da véspera, as suas fronteiras e perspectivas. (20, 412). E ainda, retomando a sua opção pelo pensamento concreto, ele diz: “as línguas são concepções do mundo, não abstratas, mas concretas, sociais, atravessadas pelo sistema das apreciações, inseparáveis da prática corrente e da luta de classes. Por isso, “cada objeto, cada noção, cada ponto de vista, cada aprecialibraries and read books. The image of a learned, apolitical, urbane, witty, fastidious and aristocratic young Bakhtin that emerges from these memoirs is in some tension, of course, with the mass-oriented Bakhtin popular in Western radical circles” (45, 108). 41
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ção, cada entoação, encontra-se no ponto de interseção das fronteiras das línguas-concepções do mundo, é englobado numa luta ideológica encarnecida. Nessas condições excepcionais, torna-se impossível qualquer “dogmatismo lingüístico e verbal”, qualquer “ingenuidade verbal” (20, 415). Pelo percurso teórico aqui mencionado, podemos elaborar uma base teórica para reflexão em torno de uma Teoria do Enunciado Concreto, seja ele, cotidiano, artístico ou científico. Toda a investigação desses gêneros de enunciado, ou gêneros do discurso, deve levar em conta os aspectos éticos, fenomenológicos, históricos, ideológicos, sociológicos e dialógicos em interação orgânica. Nesse percurso teórico, poderíamos dizer que se encontra o cronotopo21 para a construção da Metalingüística, ou seja, de uma disciplina que empreenda uma investigação verdadeiramente científica do enunciado concreto22 .
3. O problema da tradução Um problema que se coloca para quem estuda as obras dos teóricos russos em português é o da tradução e da falta de uniformidade terminológica. Se estudamos a obra do interior dela mesma, percebemos o sentido que aí adquire um determinado conceito. Mas é na relação com as outras obras do círculo que alguns conceitos ficam comprometidos, visto que em uma obra 21
Para Bakhtin, o cronotopo (tempo-espaço), termo emprestado das ciências matemáticas, é “a interligação entre as relações espaciais e as relações temporais” (19, 211).
22
A busca de uma investigação científica do enunciado, ou num sentido largo, de um determinado domínio da cultura, já era prenunciada em Toward a Philosophy of the Act, quando Bakhtin dizia que uma “filosofia científica só pode ser uma filosofia particular, isto é, uma filosofia dos vários domínios da cultura e de sua unidade na forma de uma transcrição teórica de dentro dos objetos da criação cultural e da lei imanente de seu desenvolvimento” (2, 19). 42
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev
ele é representado por x e em outra por y, o que de certa forma pode dificultar a compreensão ativa do conjunto da obra. Isso pode se dever ao fato de que cada edição brasileira tem um tradutor diferente, além de derivar ora do original russo, ora da tradução francesa, recorrendo, às vezes, à tradução inglesa, conforme apresentamos a seguir, em ordem cronológica de publicação da primeira edição: n
Bakhtin, M. (Volochinov) (1979). Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. do francês (edição de 1977) com recorrências constantes à edição americana de 1973, por Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira;
n
Bakhtin, M. (1981). Problemas da Poética de Dostoiévski. Trad. do original russo (edição de 1972), por Paulo Bezerra;
n
Bakhtin, M. (1987). A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. da edição de francesa de 1970, por Yara Frateschi;
n
Bakhtin, M. (1988). Questões de Literatura e de Estética. A teoria do romance. Trad. do original russo de 1975, por uma equipe de tradutores formada por Aurora F. Bernardini e outros; e
n
Bakhtin, M. (1992) Estética da Criação Verbal. Trad. do francês, por Maria Ermantina G. B. Gomes Pereira.
Enquanto Bakhtin se diz interessado pela “variação terminológica” que abrange “um único e mesmo fenômeno”, as edições brasileiras revelam uma “variação terminológica” para uma única e mesma palavra russa, comprometendo a unidade temática que orienta as formulações teóricas do Círculo, precisamente no que se refere a uma Teoria do Enunciado Concreto. A importância que o pensamento do Círculo vem adquirindo nos estudos lingüísticos brasileiros implica a necessidade de iniciar um processo de discussão em torno da terminologia e 43
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dos conceitos que articulam as suas formulações teóricas. Se, por um lado, a língua russa é inacessível para a maioria dos pesquisadores, por outro, existe a possibilidade de comparar traduções em outras línguas, bem como comparar os conceitos com as outras obras do Círculo publicadas em português. Para demonstrar o problema, escolhemos as palavras russas vyskazyvanie e rechevye zhanry – ou apenas zhanry, as quais estão diretamente relacionadas ao tema de nossa dissertação. A primeira palavra foi traduzida, nas edições francesa e brasileira das obras do Círculo, ora por enunciado ora por enunciação, e a segunda por gêneros do discurso – ou apenas gênero, além de modos de discurso, categorias de atos de fala, fórmulas, etc. O que acontece nas edições brasileiras das três obras onde encontramos esse problema é uma falta de critério quanto à tradução por um ou outro conceito. Isso acontece, provavelmente, porque cada obra tem um tradutor ou equipe de tradutores diferentes, o que de certa maneira dificulta um acompanhamento aprofundado de outras obras do Círculo que não aquela que é objeto da tradução. A primeira obra que apresenta esse problema é Marxismo e Filosofia da Linguagem (1979), assinadas por Bakhtin e Volochinov. Nessa edição traduziu-se o conceito vyzkazyvanie por enunciação, em todas as ocorrências, conforme justifica em nota a tradutora francesa Marina Yaguello: Rappelons que le russe jazyk désigne le langage, la langue, et la langue-organe, le russe rec désigne la parole, la langue, le langage, le discours. J´ai traduit jazyk tantôt par “langage” comme dans le titre, tantôt par “langue”. Cependant, por supprimer l´ambiguité, Bakhtine a fourgé un nom composé: jazyk-rec (le langage) qu’il oppose à jazyk kak sistema form (la lange) et vyskazyvanje (l’énonciation ou acte de parole) (N.d.t.) (9, 90).
Comparando as citações de Marxismo e Filosofia da Linguagem que localizamos na obra de Todorov Mikhail Bakhtine. Le 44
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principle dialogique. (1981)23 com as da edição de Yaguello, encontramos no lugar de enunciação, o conceito enunciado, articulado no interior de uma Teoria do Enunciado que é desenvolvida no capítulo 4 do referido livro: L’énoncé se construit entre deux personnes socialement organisées, et s’il n’y a pas d’interlocuteur réel, on le présuppose en la personne du représentant normal, pour ainsi dire, du groupe social auquel appartient le locuteur. Le discours est orienté vers l’interlocuteur… (30, 70) En effet, l’énonciation est le produit de l’interaction de deux individus socialement organisés et, même s’il n’y a pas un interlocuteur réel, on peut substituer à celui-ci le représentant moyen du groupe social auquel appartient le locuteur. Le mot s’adresse à un interlocuteur… (9, 123)
Todorov reserva o conceito enunciação para se referir ao contexto de produção do enunciado, ao “contexto de enunciação” (30, 68), ou ainda à interação verbal24 , articulando, no interior da obra do Círculo, uma Teoria do Enunciado e não uma Teoria da Enunciação como aparece na tradução de Yaguello. Na edição da obra de Bakhtin Problemas da Poética de Dostoiévski (1981), traduzido do russo por Paulo Bezerra, encontramos os dois conceitos – enunciado e enunciação – sendo que, na comparação com a edição francesa – La Poétique de Dostoievski (1970)- descobrimos que aí enunciação se apresenta como énoncé 23
As traduções do russo constantes no livro de Todorov foram feitas por Georges Philippenko com a coloboração de Monique Canto. (31, 177)
24
Essa relação é apresentada no Prefácio de Estética da Criação Verbal: “é nos mesmos anos que Bakhtin se empenha em lançar as bases de uma nova lingüística, ou, como dirá mais tarde, “translingüística” (o termo em uso hoje seria antes “pragmática”), cujo objeto já não é mais o enunciado, mas a enunciação, ou seja, a interação verbal” (39, 15) 45
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– enunciado – em quase todas as ocorrências, como mostra o exemplo abaixo: Sempre que no contexto do autor há um discurso direto, o de um herói, por exemplo, verificamos nos limites de um contexto dois centros do discurso e duas unidades do discurso: a unidade da enunciação do autor e a unidade da enunciação do herói. (13, 162) La où, dans le texte d’un auteur, interviént le discours direct, celui d’un personnage par exemple, nous trouvons à l’intérieur d’un seul contexte deux centres, deux unités de discours: l’énoncé de l’auteur et l’énoncé du héros. (14, 244-245)
Finalmente, no livro de Bakhtin Questões de Literatura e de Estética. A teoria do romance (1993), traduzido do russo, localizamos no ensaio “O discurso no romance”, de 1934-1935, também, a presença dos dois conceitos: enunciado e enunciação. Nesse caso, comparamos com a edição francesa Esthétique et théorie du Roman (1994) onde encontramos, também, os conceitos énoncé e énonciation. O problema é que na maioria das ocorrências não existe coincidência entre as duas traduções. Há casos em que a ocorrência enunciação em português aparece como énoncé na edição francesa: O verdadeiro meio da enunciação, onde ela vive e se forma, é um plurilinguismo dialogizado, anônimo e social como linguagem, mas concreto, saturado de conteúdo e acentuado como enunciação individual. (17, 82). Le véritable milieu de l’énoncé, lá ou il vit et se forme, c’est le polylinguisme dialogisé, anonyme et social comme le langage, mais concret, mais sature de contenu, et accentué comme un énoncé individuel. (18, 96).
Também há ocorrências em que nas duas edições encontramos o conceito enunciação/énonciation, mas a ocorrência enunciado é a que aparece mais vezes: 46
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A filosofia da linguagem, a lingüística e a estilística postulam uma relação simples e espontanêa do locutor em relação à “sua própria” linguagem, única e singular, e uma realização simples dessa linguagem na enunciação monológica do indivíduo (17, 80). La philosophie du langage, la linguistique et la stylistique, postulent une relation simple et spontanée du locuteur à “son langage à lui”, seul et unique, et une réalisation de ce langage dans l´énonciation monologique d’un individu (18, 94).
Nas duas outras obras do círculo, assinadas por Bakhtin, que estão publicadas no Brasil – A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1987) e Estética da Criação Verbal (1992) não existe esse problema, sendo que nesta última, no ensaio “Os gêneros do discurso”, toda a segunda parte é dedicada ao enunciado, tendo por título “O enunciado, unidade da comunicação verbal”, não havendo aí qualquer ocorrência de enunciação: O estudo do enunciado, em sua qualidade de unidade real da comunicação verbal, também deve permitir compreender melhor a natureza das unidades da língua (da língua como sistema): as palavras e as orações. (21, 287). L’étude de l’énoncé, en sa qualité d’unité réelle de l’échange verbal, doit permettre aussi de mieux comprendre la nature des unités de langue (de la langue en tant que système) – les mots et les propositions. (21a, 272).
Enquanto conceito, ou seja, enquanto um elemento do discurso científico na tradição dos estudos lingüísticos a partir de Benveniste, enunciado e enunciação tem acepções diferentes: enquanto enunciado se refere ao produto do discurso, enunciação se refere ao processo ou “situação” de discurso. Ou mais explicitamente, como afirma Benveniste no artigo “O aparelho formal da enunciação”: “é o ato mesmo de produzir um enunciado, e não o texto do enunciado, que é nosso objeto” (36, 82). Essa 47
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distinção entre produto e processo não encontra eco na obra do Círculo, onde o todo do enunciado concreto compreende o produto – o material verbal – e o processo – a situação – em interação orgânica. Para o Círculo, o enunciado concreto é um elo da cadeia de comunicação verbal, ou seja, ele é produto – um acontecimento único na existência – e processo – uma unidade da cadeia de comunicação verbal – simultaneamente. Embora esse contexto científico, a Teoria da Enunciação de Benveniste, seja posterior a maioria das obras do Círculo nas quais ocorre o problema, sem dúvida ele tem grande importância no fluxo da obra do Círculo no Ocidente, e, principalmente, em três dos seus divulgadores na França: Julia Kristeva25 , Marina Yaguello e Tzvetan Todorov26 , todos eles com forte ligação e envolvidos com as idéias de Benveniste em relação a enunciação. O outro problema relacionado com a tradução, trata da palavra russa rechevye zhanry – ou apenas zhanry, as quais desaparecem da obra de Bakhtin/Volochinov Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929). Nesse obra, a interação orgânica entre os conceitos enunciado, diálogo e gêneros do discurso se desintegra. Logo no segundo capítulo que trata da relação entre a infraestrutura e as superestruturas, os teóricos russos dizem o seguinte: “Mais tarde, em conexão com o problema da enunciação e do diálogo, abordaremos, também, o problema dos gêneros lingüísticos”(10, 43). Comparando com a tradução inglesa – “later on, in connection with the problem of the utterance and dialogue, we shall again touch upon the problem of speech genres” (11, 40), percebemos que enunciado – utterance – se torna enunciação 25
Foi Julia Kristeva que, em 1966, introduziu a obra de Bakhtin na França, como demonstra François Dosse em seu História do Estruturalismo vol. 2 (42, 74-76).
26
Todorov chega a promover uma relação dialógica entre o ensaio “Semiologia da Língua” (1969), de Benveniste, e os “Apontamentos 19701971” (24), de Bakhtin, sugerindo que esse possa ter emprestado a Benveniste a noção de interpretante. (30, 81). 48
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e gêneros do discurso – speech genres – se torna gêneros lingüísticos, e mais tarde, modos de discurso, categorias de atos de fala, discursos menores, modelagem, fórmulas, fórmulas estereotipadas, enfim, tantas acepções que a importância desse conceito no contexto do interior dessa obra, e, mais ainda, na sua relação com as outras obras do círculo se desintegram de sua interação orgânica com o enunciado concreto. Nesse sentido, resolvemos comparar as citações que apresentam essa dificuldade de tradução, recorrendo à forma que elas aparecem citadas em um outro ensaio de Volochinov “La structure de l’énoncé” (1930), deixando em nota, a forma que adquirem na edição americana: (1) La question bien formée, l’exclamation, l’ordre, la prière, voilà les formes les plus typiques d’énoncés de la vie quotidienne, qui soient des totalités. Ils exigent tous – et, surtout, l’ordre et la prière – un complément extra-verbal, mais aussi bien un commencement de nature elle-même extra-verbale. Chacun de ces petis genres d’énoncés, qui ont cours dans le quotidien, suppose, pour être accompli, que le discours soit en contact avec le milieu extra-verbal, d’une part, et le discours d’autrui, d’autre part (16, 290). (1a) Uma questão completa, a exclamação, a ordem, o pedido são enunciações completas típicas da vida corrente. Todas (particularmente as ordens, os pedidos) exigem um complemento extraverbal assim como um início não verbal. Esses tipos de discursos menores da vida cotidiana são modelados pela frição da palavra contra o meio extravebal e contra a palavra do outro (10, 124)27 .
27
“The full-fledged question, exclamation, command, request – these are the most typical forms of wholes in behavioral utterances. All of them (especially the command and request) require an extraverbal complement and, indeed, an extraverbal commencement. The very type of structure these little behavioral genres will achieve is determined by the effect of its coming up against the extraverbal milieu and against another word (i.e., the words of other people)” (11, 96). 49
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(2) Ainsi, la façon dont est formule un ordre est déterminée par les éléments qui peuvent faire obstacle à la réalisation de celui-ci, par le degré de soumission qu’il peut rencontrer, etc. Le genre prend donc sa forme achevée dans les traits particuliers, contingents et uniques, qui définissent chaque situation vécue (16, 290-291). (2a) Assim, a forma da ordem é determinada pelos obstáculos que ela pode encontrar, o grau de submissão do receptor, etc. A modelagem das enunciações responde aqui a particularidades fortuitas e não reiteráveis das situações da vida corrente” (10, 125)28 (3) Mais on ne peut parler de genres constitués, propres au discours quotidien, que si l’on est en présence de formes de communication qui soient, dans la vie quotidienne, quelque peu stables et fixées par le mode de vie et les circonstances (16, 291). (3a) Só se pode falar de fórmulas específicas, de estereótipos no discurso da vida cotidiana quando existem formas de vida em comum relativamente regularizadas, reforçadas pelo uso e pelas circunstâncias” (10, 125)29 . (4) Ainsi, on peut observer un type de genre constitué, tout à fait spécifique dans le bavardage de salon: cette conversation superficielle, qui n’engage à rien, entre gens du même monde, où le seul critère qui différencie ceux qui y ont part – l’auditoire – est la distinction entre hommes et femmes. Là s’élaborent des formes spécifiques de discours: l’allusion, les sous-entendu, la répétition de petits récits connus de tous comme frivoles, etc. (16,291). 28
“Thus, the form of a command will take is determined by the obstacles it may encounter, the degree of submissiveness expected, and so on. The structure of the genre in these instances will be in accord with the accidental and unique features of behavioral situations” (11, 96).
29
“Only when social custom and circumstances have fixed and stabilized certain forms in behavioral interchange to some appreciable degree, can one speak of specific types of structure in genres of behavioral speech” (11, 96-97). 50
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(4a) Assim, encontram-se tipos particulares de fórmulas estereotipadas servindo às necessidades da conversa de salão, fútil e que não cria nenhuma obrigação, em que todos os participantes são familiares uns aos outros e onde a diferença principal é entre homens e mulheres. Encontram-se elaboradas formas particulares de palavras-alusões, de subentendidos, de reminiscências de pequenos incidentes sem nenhuma importância, etc.” (10, 125)30 . (5) Un autre type de genre constitué se forme aussi dans la conversation entre mari et femme ou entre frère et soeur. Supposons une file d’attente, où se trouvent réunis par hasard des gens de catégorie sociale différente, dans une administration quelconque, ou en quelque lieu que ce soit, on entendra, dans chaque cas, des déclarations et des répliques qui se distinguent radicalement les unes des autres par leur début, leur fin et la structure même des énoncés qui les composent. Les veillés villageoises, les sautreies dans les villes, les entretiens des ouvriers pendant la pause de midi connaissent des types de genre qui leur sont propres (16,291). (5a) Um outro tipo de fórmula elabora-se na conversa entre marido e mulher, entre irmão e irmã. Pessoas inteiramente estranhas umas às outras e reunidas por acaso (numa fila, numa entidade qualquer) começam, constroem e terminam suas declarações e suas réplicas de maneira completamente diferente. Encontram-se ainda outros tipos nos serões no campo, nas quermesses populares na cidade, na conversa dos operários à hora do almoço, etc.” (10, 125-126)31 . 30
“So, for instance, an entirely special type of structure has been worked out for the genre of the light and casual causerie of the drawing room where everyone “feels at home” and where the basic differentiation within the gathering (the audience) is that between men and women. Here we find devised special forms of insinuation, half-saying, allusions to little tales of an intentionally nonserious character, and so on.” (11,97).
31
“A different type of structure is worked out in the case of conversation between husband and wife, brother and sister, etc. In the case where a random assortment of people gathers – while waiting in a line or 51
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(6) Toute situation de la vie quotidienne possède un auditoire, dont l’organisation est bien précise, et dispose donc d’un répertoire spécifique de petits genres appropriés. Dans chaque cas, le genre quotidien s’adapte au sillon que la communication sociale paraît avoir tracé por lui – et cela, pour autant qu’il représente le reflet idéologique du type, de la structure, du but et de la constitution propres aux rapports de communication sociale (16, 291). (6a) Toda situação inscrita duravelmente nos costumes possui um auditório organizado de uma certa maneira e conseqüentemente um certo repertório de pequenas fórmulas correntes. A fórmula estereotipada adapta-se, em qualquer lugar, ao canal da interação social que lhe é reservado, refletindo ideologicamente o tipo, a estrutura, os objetivos e a composição social do grupo” (10, 126)32 (7) Le genre quotidien est un élément du milieu social: qu’il s’agisse de la fête, des loisirs, des relations de salon, d’atelier, etc. Il coïncide avec ce milieu, il s’y trouve limité et il est aussi déterminé par lui en tous ses composants internes” (16, 291). (7a) As fórmulas da vida corrente fazem parte do meio social, são elementos da festa, dos lazeres, das relações que se travam no hotel, nas fábricas, etc. Elas coincidem com esse meio, são por eles delimitadas e determinadas em todos os aspectos” (10, 126)33 . conducting some business – statements and exchanges of words will start and finish and be constructed in another, completely different way. Village sewing circles, urban carouses, workers’ lunchtime chats, etc., will all have their own types.” (11, 97). 32
“Each situation, fixed and sustained by social custom, commands a particular kind of organization of audience and, hence, a particular repertoire of little behavioral genres. The behavioral genre fits everywhere into the channel of social intercourse assigned to it and functions as an ideological reflection of its type, structure, goal, and social composition” (11, 97).
33
“The behavioral genre is a fact of social milieu: of holiday, leisure time, and of social contact in the parlor, the workshop, etc. It meshes with that milieu and is delimited and defined by it in all its internal aspects” (11, 97). 52
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Poderíamos apresentar mais uma série de exemplos nos quais enunciado e enunciação concorrem para uma expressão mais adequada da expressão russa vyskazivanie, bem como gênero do discurso, ou apenas gênero é a tradução mais coerente para rechevye zhanry – ou apenas zhanry, mas com isso perderíamos o objetivo de nossa dissertação que é de discorrer de maneira introdutória sobre a Teoria do Enunciado Concreto desenvolvida pelo Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev. Nesse sentido, deixaremos a resposta à questão que intitula este capítulo em aberto, lançando mão de outros argumentos para contextualizar mais francamente a nossa opção pelos conceitos enunciado e gêneros do discurso.
53
II. A linguagem “A interação verbal é a realidade fundamental da linguagem” (30, 71).
A investigação dos conceitos que articulam a Teoria do Enunciado Concreto implica em cada um deles preencher uma certa extensão de sentido: ele tem de ser dinâmico, históricofenomenológico, sociológico, ideológico e, finalmente dialógico. Se tomarmos alguma definição de linguagem, dada pelo Círculo, encontraremos, em cada uma delas, todas as características acima citadas. A linguagem é dinâmica, ou seja, “é um produto da vida social que não é de nenhum modo congelado ou petrificado: ela está em perpétuo vir a ser e, em seu desenvolvimento, ela segue a evolução da vida social” (16, 288). Ela é um fenômeno históricofenomenológico e sociológico: “a essência verdadeira da linguagem é o acontecimento social que consiste em uma interação verbal, e se encontra concretizada em um ou mais enunciados”. (16, 288)34 . A linguagem é ideológica, ela “procede da organização social do trabalho e da luta de classes” (16,287). E como todo 34
Esse enunciado já havia aparecido em MFL (1929), quando da crítica ao objetivismo abstrato e ao subjetivismo idealista: “A verdadeira substância da língua [linguagem] não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação [enunciado] monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação [enunciado] ou das enunciações [enunciados]” (10, 123).
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conceito do Círculo, ela também é dialógica: “a linguagem vive apenas na comunicação dialógica daqueles que a usam. É precisamente essa comunicação dialógica que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem” (13, 158), “o diálogo – a troca de palavras – é a forma mais natural de linguagem” (16,292). Se promovermos uma relação dialógica entre essas propostas teóricas do Círculo e as dificuldades encontradas por Saussure em torno de uma trabalho científico da linguagem – o que o obriga a criar a dicotomia língua/fala e escolher a primeira como objeto da lingüística – encontraremos, nesse último, alguns princípios sobre a linguagem: a) A linguagem tem um lado individual e um lado social, sendo impossível conceber um sem o outro (44, 16); b) A cada instante, a linguagem implica ao mesmo tempo um sistema estabelecido e uma evolução: a cada instante, ela é uma instituição atual e um produto do passado. Parece fácil, à primeira vista, distinguir entre esses sistemas e sua história, entre aquilo que ele é e o que foi; na realidade, a relação que une ambas é tão íntima que se faz difícil separá-las (44, 16); c) se estudarmos a linguagem sob vários aspectos ao mesmo tempo, o objeto da Lingüística nos aparecerá como um aglomerado confuso de coisas heteróclitas, sem liame entre si. Quando se procede assim, abre-se a porta a várias ciências – Psicologia, Antropologia, Gramática Normativa, Filologia etc. –, que separamos claramente da Lingüística, mas que, por culpa de um método incorreto, poderiam reivindicar a linguagem como um de seus objetos (44, 16). A primeira e a segunda observação de Saussure implicam uma relação de concordância do Círculo para com o teórico genebrino, na medida em que todos os elementos do todo do enunciado concreto se encontram em interação orgânica. Já a terceira 56
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observação não encontra eco nas formulações teóricas do Círculo, cujo percurso teórico observa a linguagem sob vários aspectos ao mesmo tempo, todos esses aspectos em interação orgânica. Nesse sentido, as portas são abertas para uma Psicologia Objetiva, uma Antropologia Filosófica35 , uma Sociologia do Discurso, e, finalmente, uma Metalingüística. Saussure vai eleger a língua como “norma de todas as outras manifestações da linguagem” (44, 16-17), como uma parte determinada e essencial da linguagem que é “a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, que, por si só, não pode nem criá-la nem modificá-la; ela não existe senão em virtude duma espécie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade” (44, 22). Essa visão estática e abstrata da linguagem que Saussure utiliza para constituir a Lingüística não se confunde com a abordagem dinâmica e concreta da vida da linguagem promovida pelo Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev. Para Bakhtin, por exemplo, “toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística, etc.), está impregnada de relações dialógicas. Mas a lingüística estuda a “linguagem” propriamente dita com sua lógica específica na sua generalidade, como algo que torna possível a comunicação dialógica, pois ela abstrai conseqüentemente as relações propriamente dialógicas. Essas relações se situam no campo do discurso, pois este é por natureza dialógico e, por isto, tais relações devem ser estudadas pela metalingüística, que ultrapassa os limites da lingüística e possui objeto autônomo e tarefas próprias” (13, 158-159). Todas essas observações nos servem de parâmetro inicial para a discussão das críticas formuladas pelo Círculo não só à 35
Ver Cap. 7 “Anthropologie Philosophique” em Todorov, T. Mikhaïl Bakhtine. Le principe dialogique. suivi de écrits du cercle de Bakhtine. (31, 145-172), e Faraco, C. A. “O dialogismo como chave de uma antropologia filosófica” (47, 113-126). 57
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lingüística, mas também à estilística tradicional. Considerar a linguagem enquanto um fenômeno vivo, concretizado em enunciados, vai exigir do Círculo o estudo de outros gêneros científicos de investigação desse mesmo objeto, os quais vão ser caracterizados aqui como oriundos de um pensamento abstrato – objetivismo abstrato – e de um pensamento idealista – subjetivismo idealista, contrapondo-se ao pensamento concreto que orienta as investigações de Bakhtin, Volochinov e Medvedev.
1. O subjetivismo idealista, o objetivismo abstrato e o enunciado concreto Quando procuramos compreender o todo da obra do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev nos encontramos no interior de uma arquitetônica, que reflete e refrata, ao mesmo tempo, as concepções monológicas do pensamento abstrato e do pensamento idealista, no que se refere ao enunciado concreto. É como se a crítica promovida pelo Círculo penetrasse no mais íntimo aspecto de cada disciplina científica investigada – o outro, e animasse os conceitos interiores de um ponto de vista exterior. E essa investigação complementar, ou situada na fronteira das disciplinas, como eles costumam dizer, que possibilita a percepção do enunciado concreto, do acontecimento real da linguagem, é fundamental para compreender o “relacionismo”, ou o “dialogismo” entre o pensamento concreto, o pensamento abstrato e o pensamento idealista, e suas respectivas tarefas autônomas. A forma como cada um desses pensamentos – concreto, abstrato, idealista – se defrontam sobre o material verbal vai implicar num determinado gênero. Esses gêneros científicos – metalingüístico, estético, lingüístico, formalista, psicológico, estilístico, etc. – vão dar um acabamento específico a esse material, considerando-o sob diferentes formas e conteúdos. Desde a obra do período fenomenológico de Bakhtin, Toward a Philosophy of the Act (1919-1921), já existe uma abordagem 58
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dos pensamentos abstrato/concreto/idealista, no sentido de buscar uma compreensão do ato concreto em oposição à pureza lógica do pensamento abstrato, ou à criatividade idealista. Para o teórico russo, “qualquer expressão é muito mais concreta do que uma significação pura – ela distorce e embota a pureza e a validade do sentido em si mesmo. É por isso que nós nunca entendemos uma expressão, em seu sentido total, no pensamento abstrato” (2, 31). Um dos medos de Bakhtin era que uma Filosofia do Ato responsável se revertesse em uma abordagem psicologista ou subjetivista: “o subjetivismo e o psicologismo são diretamente correlatos do objetivismo (objetivismo lógico) e [uma palavra ilegível36 ] apenas quando o ato responsável é dividido abstratamente em seu sentido objetivo e no processo subjetivo de sua realização. Do ponto de vista do ato, tomado em seu todo indivisível, não há nada que seja subjetivo e psicológico. Na sua responsabilidade [respondibilidade], o ato apresenta em si sua própria verdade [pravda] como algo para ser acabado – uma verdade que une os momentos subjetivo e psicológico, da mesma forma que une o momento do que é universal (válido universalmente) ao momento do que é individual (real). Essa verdade [pravda] unitária e única do ato responsável realizado é posto como algo para ser acabado qual uma verdade [pravda] sintética” (2, 29). Essa busca da interação orgânica entre o subjetivo e o psicológico, ao mesmo tempo que entre o universal e o individual também permeia a crítica ao racionalismo quando esse pensamento contrapõe o que é objetivo, como sendo racional, ao que é subjetivo, individual, singular considerado esses últimos como irracionais e fortuitos: “a racionalidade inteira de um ato responsável ou ação é atribuído aqui […] ao que é objetivo, ao que foi
36
Algumas palavras ou grupos de palavras de Toward a Philosophy of the Act estavam ilegíveis no manuscrito original, o qual segundo Bocharov, seu editor russo, encontra-se em condições precárias (2, XVII). 59
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separado abstratamente do ato responsável, enquanto tudo que é fundamental e que sobra após essa subtração, é considerado como um processo subjetivo. Entretanto, a unidade transcendental inteira da cultura objetiva é, na realidade, irracional e elementar, totalmente divorciada do centro unitário e único constituído por um ato consciente. Evidentemente, um divórcio total é, na realidade, impossível, e até onde pensarmos, realmente, essa unidade brilha com uma luz emprestada da nossa responsabilidade. Somente um ato ou ação tomado, do exterior, como um fato fisiológico, biológico, ou psicológico, pode se apresentar como elementar e irracional, como qualquer ser abstrato. Mas do interior de um ato responsável, o único que responsavelmente, realiza o ato, conhece uma luz clara e distinta, na qual ele realmente orienta a si mesmo” (2, 30). Nos dois parágrafos anteriores, tivemos uma amostra das críticas formuladas ao subjetivismo idealista e ao objetivismo abstrato, a partir do ponto de vista do ato concreto, da construção do enunciado concreto como um todo. E os elementos constituintes desse todo já aparecem aqui numa concepção éticafenomenológica que já sugere os pontos de vista sociológico, ideológico e dialógico, que serão aplicados mais tarde ao enunciado concreto. Para Bakhtin, “o evento inacabado pode ser claro e distinto, em todos os seus momentos constituintes, para um participante no ato ou ação que ele realiza” (2, 30). O autor desse ato conhece as pessoas e os objetos presentes a esse acontecimento concreto, ao mesmo tempo que os valores reais e concretos dessas pessoas e objetos. Segundo o teórico russo, “ele [o autor] intui a vida interior deles [os outros participantes da situação] como também os seus desejos; ele compreende o sentido real e necessário da inter-relação entre ele e essas pessoas e objetos – a verdade [pravda] do estado de relações dada – e compreende a necessidade de seu ato realizado, isto é, não a lei abstrata desse ato, mas a necessidade real e concreta condicionada pelo seu único lugar no contexto dado do evento inacabado. E todos esses 60
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momentos, que compõe o evento em sua totalidade, estão presentes para ele como algo dado e, também, como algo para ser acabado numa luz unitária, numa consciência responsável, unitária e única, e eles são realizados num ato responsável, único e unitário” (2, 30). As implicações do todo do enunciado concreto – do ato – nos seus elementos vão adquirindo outros desdobramentos nas discussões em torno do problema do conteúdo, do material e da forma, e da interação orgânica entre esses problemas. Pensar cada um desses problemas isoladamente implica em não perder a visão do todo. E essa é uma das críticas que o Círculo direciona regularmente à lingüística e a sua concepção abstrata do ato concreto, do enunciado concreto. Para o teórico russo, a lingüística opera com enunciados neutros, “vê neles somente o fenômeno da língua, relaciona-os apenas com a unidade da língua, mas não com a unidade de conceito, de prática de vida, da História, do caráter de um indivíduo, etc. (4, 46). Em oposição a esses enunciados neutros da lingüística, Bakhtin diz que “o enunciado isolado e concreto sempre é dado num contexto cultural e semântico-axiológico (científico, artístico, político, etc.) ou no contexto de uma situação isolada da vida privada; apenas nesses contextos o enunciado isolado é vivo e compreensível: ele é verdadeiro ou falso, belo ou disforme, sincero ou malicioso, franco, cínico, autoritário e assim por diante” (4, 46). Essa busca da verdade, da compreensão do todo do enunciado concreto, adquire contornos sociológicos e ideológicos em Marxismo e Filosofia da Linguagem. Nessa obra, Bakhtin/ Volochinov tece, de um ponto de vista sociológico e ideológico, críticas às concepções abstratas e idealistas, denominando-as Objetivismo Abstrato e Subjetivismo Idealista. Para os teóricos russos, as posições fundamentais da primeira – Subjetivismo Idealista (A) – e da segunda – Objetivismo Abstrato (B), são antíteses uma da outra, conforme apresentamos a seguir: 61
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1A – A língua é uma atividade, um processo criativo ininterrupto de construção (“energia”), que se materializa sob a forma de atos individuais de fala. (10, 72) 1B – A língua é um sistema estável, imutável, de formas lingüísticas submetidas a uma norma fornecida tal qual à consciência individual e peremptória para esta. (10, 82) 2A – As leis da criação lingüística são essencialmente as leis da psicologia individual. (10, 72) 2B – As leis da língua são essencialmente leis lingüísticas específicas, que estabelecem ligações entre os signos lingüísticos no interior de um sistema fechado. Estas leis são objetivas relativamente a toda consciência subjetiva. (10, 82) 3A – A criação lingüística é uma criação significativa, análoga à criação artística. (10, 72). 3B – As ligações lingüísticas específicas nada têm a ver com valores ideológicos (artísticos, cognitivos ou outros). Não se encontra, na base dos fatos lingüísticos, nenhum motor ideológico. Entre a palavra e seu sentido não existe vínculo natural e compreensível para a consciência, nem vínculo artístico. (10, 82). 4A – A língua, enquanto produto acabado (“ergon”), enquanto sistema estável (léxico, gramática, fonética), apresenta-se como um depósito inerte, tal como a lava fria da criação lingüística, abstratamente construída pelos lingüistas com vistas à sua aquisição prática como instrumento pronto para ser usado. (10,73). 4B – Os atos individuais de fala constituem, do ponto de vista da língua, simples refrações ou variações fortuitas ou mesmo deformações das formas normativas. Mas são justamente estes atos individuais de fala que explicam a mudança histórica das formas da língua; enquanto tal, a mudança é, do ponto de vista do sis62
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tema, irracional e desprovida de sentido. Entre o sistema da língua e sua história não existe nem vínculo nem afinidade de motivos. Eles são estranhos entre si. (10, 83). Tanto as teses do Subjetivismo Idealista – a língua enquanto criação – quanto as do Objetivismo Abstrato – a língua enquanto norma – não são suficientes para dar conta do projeto do Círculo, ou seja, de uma investigação do enunciado concreto. É nesse sentido que vamos apresentar as críticas formuladas por Bakhtin/ Volochinov a cada uma dessas orientações do pensamento lingüístico, aproveitando, ao mesmo tempo, para construir o ponto de vista específico da investigação promovida pelo Círculo. Bakhtin/Volochinov formula as seguintes críticas ao Objetivismo Abstrato: a) a compreensão que o indivíduo tem de sua língua não está orientada para a identificação de elementos normativos do discurso, mas para a apreciação de sua nova qualidade contextual (10, 103). b) a enunciação [enunciado] monológica fechada constitui, de fato, uma abstração. A concretização da palavra só é possível com a inclusão dessa palavra no contexto histórico real de sua realização primitiva. Na enunciação [enunciado] monológica isolada, os fios que ligam a palavra a toda a evolução histórica concreta foram cortados (10,103). c) a reflexão lingüística de caráter formal-sistemático foi inevitavelmente coagida a adotar em relação às línguas vivas uma posição conservadora e acadêmica, isto é, a tratar a língua viva como se fosse algo acabado, o que implica uma atitude hostil em relação a todas as inovações lingüísticas. A reflexão lingüística de caráter formal-sistemático é incompatível com uma abordagem histórica e viva da língua (10,104). 63
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d) as formas que constituem uma enunciação [enunciado] completa só podem ser percebidas e compreendidas quando relacionadas com outras enunciações [enunciados] completas pertencentes a um único e mesmo domínio ideológico. (10, 105). e) a forma lingüística somente constitui um elemento abstratamente isolado do todo dinâmico da fala, da enunciação [enunciado]… A enunciação [enunciado] como um todo não existe para a lingüística (10, 105). f) o sentido da palavra é totalmente determinado por seu contexto. […] os contextos possíveis de uma única e mesma palavra são freqüentemente opostos […], encontram-se numa situação de interação e de conflito tenso e ininterrupto (10, 106-107). g) o objetivismo abstrato coloca a língua fora do fluxo da comunicação verbal […] Entretanto, a língua é inseparável desse fluxo e avança justamente com ele. Na verdade, a língua não se transmite; ela dura e perdura sob a forma de um processo evolutivo contínuo. Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e começa a operar (10, 107-108). h) o objetivismo abstrato […] não sabe ligar a existência da língua na sua abstrata dimensão sincrônica com sua evolução. […] Torna-se, assim, impossível a conjunção dialética entre necessidade e liberdade e até, por assim dizer, a responsabilidade lingüística. Assenta-se, aqui, o reino de uma concepção puramente mecanicista da necessidade no domínio da língua (10, 108). i) na base dos fundamentos teóricos do objetivismo abstrato estão as premissas de uma visão do mundo racionalista e mecanicista, ao menos favoráveis a uma 64
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concepção correta da história; ora, a língua é um fenômeno puramente histórico (10, 108-109). O principal aspecto das críticas reside na incapacidade dessas duas tendências do pensamento lingüístico – o objetivismo abstrato e o subjetivismo idealista – em perceber, ou querer enfrentar a realidade ética, histórica-fenomenológica, sociológica, e enfim dialógica do enunciado concreto, incluindo aí o problema da criatividade lingüística e da teoria da expressão subjacente ao subjetivismo idealista – ou subjetivismo individualista –, o qual é criticado pelo Círculo nos seguintes termos: a) a teoria da expressão subjacente ao subjetivismo individualista deve ser completamente rejeitada. O centro organizador de toda enunciação [enunciado], de toda expressão, não é interior, mas exterior: está situado no meio social que envolve o indivíduo. […] A enunciação [enunciado] enquanto tal é um puro produto da interação social, quer se trate de um ato de fala determinado pela situação imediata ou pelo contexto mais amplo que constitui o conjunto das condições de vida de uma determinada comunidade lingüística. (10, 121). b) o subjetivismo individualista tem razão em sustentar que as enunciações [enunciados] isoladas constituem a substância real da língua e que a elas está reservada a função criativa da língua. Mas está errado quando ignora e é incapaz de compreender a natureza social da enunciação e quando tenta deduzir esta última do mundo interior do locutor, enquanto expressão desse mundo interior. (10, 122)37 . 37
Um trecho desse enunciado aparece em Todorov, T. Mikhaïl Bakhtin. Le principe dialogique: “… Mais le subjectivisme individualiste a tort en ce qu’il ignore et ne comprend pas la nature sociale de l’énoncé, et 65
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c) A estrutura da enunciação e da atividade mental a exprimir são de natureza social38 . A elaboração estilística da enunciação [enunciado] é de natureza sociológica e a própria cadeia verbal, à qual se reduz em última análise a realidade da língua, é social. Cada elo dessa cadeia é social, assim como toda a dinâmica de sua evolução. (10, 122). d) O subjetivismo individualista tem toda a razão quando diz que não se pode isolar uma forma lingüística do seu conteúdo ideológico. Toda palavra é ideológica e toda utilização da língua está ligada à evolução ideológica. Esta errado quando diz que esse conteúdo ideológico pode igualmente ser deduzido das condições do psiquismo individual. (10, 122). e) o subjetivismo individualista está errado em tomar, da mesma maneira que o objetivismo abstrato, a enunciação [enunciado] monológica como seu ponto de partida básico. (10, 122). As formulações teóricas das duas orientações e a forma com que se debruçam sobre a linguagem não servem aos propósitos de Bakhtin, Volochinov e Medvedev em relação a uma investigação científica do enunciado concreto. Nesse sentido, Bakhtin/Volochinov chama atenção para o fato de que “ao considerar que só o sistema lingüístico pode dar conta dos fatos da língua [linguagem], o objetivismo abstrato rejeita a enunciação [enunciado], o ato de fala, como sendo individual. Como dissemos, é esse o proton pseudos, a “primeira mentira”, do objetivismo abstrato” (10, 109).
qu’il essaie de le déduire du monde intérieur du locuteur, comme expresssion de ce monde intérieur.” (31, 56). 38
Idem, “La structure de l’énoncé, ainsi que celle de l’experience exprimable même, est une structure social” (31,56) 66
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Pelo mesmo motivo, para explicar a realidade concreta da linguagem, os teóricos do Círculo irão rejeitar a outra corrente de pensamento lingüístico: “o subjetivismo individualista, ao contrário, só leva em consideração a fala. Mas ele também considera o ato de fala como individual e é por isso que tenta explicá-lo a partir das condições da vida psíquica individual do sujeito falante. E esse é o seu proton pseudos” (10, 109). Rejeitando tanto a tese quanto a antítese, resta ao Círculo promover uma síntese dialética: “na realidade, o ato de fala, ou, mais exatamente, seu produto, a enunciação [enunciado], não pode de forma alguma ser considerado como individual no sentido estrito do termo; não pode ser explicado a partir das condições psicofisiológicas do sujeito falante. A enunciação [enunciado] é de natureza social” (10, 109). Não podemos esquecer que o enunciado que serve de base para as formulações do ponto de vista do Círculo é o enunciado concreto, que tem um autor e um interlocutor, ou seja, que é uma unidade da comunicação verbal. É na estrutura ética, histórico-fenomenológica, sociológica e dialógica desse enunciado que eles irão fundamentar as seguintes formulações teóricas: a) A língua com sistema estável de formas normativamente idênticas é apenas uma abstração científica que só pode servir a certos fins teóricos e práticos particulares. Essa abstração não dá conta de maneira adequada da realidade concreta da língua [linguagem]. b) A língua constitui um processo de evolução ininterrupto, que se realiza através da interação verbal social dos locutores. c) As leis da evolução lingüística não são de maneira alguma as leis da psicologia individual, mas também não podem ser divorciadas da atividade dos falantes. As leis da evolução lingüística são essencialmente leis sociológicas. 67
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d) A criatividade da língua não coincide com a criatividade artística nem com qualquer outra forma de criatividade ideológica específica. Mas, ao mesmo tempo, a criatividade da língua não pode ser compreendida independentemente dos conteúdos e valores ideológicos que a ela se ligam. A evolução da língua, como toda evolução histórica, pode ser percebida como uma necessidade cega de tipo mecanicista, mas também pode tornar-se “uma necessidade de funcionamento livre”, uma vez que alcançou a posição de uma necessidade consciente e desejada. e) A estrutura da enunciação [enunciado] é uma estrutura puramente social. A enunciação [enunciado] como tal só se torna efetiva entre falantes. O ato de fala individual (no sentido estrito do termo “individual”) é uma contradictio in adjecto. (10, 127). É a partir de uma concepção sociológica do enunciado concreto, como a realidade material da linguagem, ou seja, com um ato que se constitui organicamente de uma parte verbal – a língua – e uma parte extraverbal – a situação – que Bakhtin/Volochinov/ Medvedev podem distinguir entre esse enunciado e o enunciado monológico isolado – a frase, a sentença, a oração – bem como, conceber a criatividade lingüística não como um ato puramente individual, mas como uma criatividade sociológica e dialógica, realizada na interação verbal, ou seja, na dimensão do diálogo entre falantes de uma determinada comunidade lingüística.
2. A frase e o enunciado concreto É fundamental distinguir, na compreensão do todo da obra do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev, o enunciado concreto da frase, sentença, oração lingüísticas, bem como do ato de fala individual (o ponto de vista do subjetivismo idealista). Essa distinção é um dos eixos das críticas formuladas ao pensamento abstrato, ou objetivismo abstrato, que norteia as investigações 68
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lingüísticas e formalistas, por exemplo, visto que o pensamento do Círculo não vai investigar a frase enquanto uma unidade lingüística pura, como uma unidade independente do todo dinâmico do enunciado. Por outro lado, essa mesma investigação do todo dinâmico do enunciado não vai considerar o enunciado concreto – o ato de fala – como sendo individual, como é próprio ao pensamento idealista – ou subjetivismo idealista – de que fala Bakhtin/Volochinov. Em 1924, ao tratar do problema do material verbal no interior da lingüística, Bakhtin diz: “… até hoje a lingüística ainda não ultrapassou cientificamente a oração complexa: este é o mais longo fenômeno da língua já explorado lingüística e cientificamente: tem-se a impressão de que a língua precisamente lingüística e metodicamente pura de repente termina ali e de repente tem início a ciência, a poesia, etc.; entretanto a análise lingüística pura pode ser levada mais adiante, por mais difícil que pareça e por mais tentador que seja introduzir aqui pontos de vista alheios à lingüística” (4, 47). Portanto, é importante distinguir entre as formas da língua e as formas do enunciado concreto. A frase é percebida pelo Círculo como um enunciado monológico, fechado, que não tem relação com o exterior, não tem autor, não tem conceito. Ela é retirada do funcionamento real para ser desconstruída em unidades menores como palavra, fonemas, morfemas, etc. E essas categorias lingüísticas “só são aplicáveis no interior do território da enunciação [enunciado]; elas deixam de ser úteis quando se trata de definir o todo. O mesmo se dá com as categorias sintáticas, por exemplo a oração: “a categoria oração é meramente uma definição da oração como uma unidade dentro de uma enunciação [enunciado], mas de nenhuma maneira como entidade global” (10, 140). Segundo Bakhtin/ Volochinov é impossível encontrar na oração os elementos que a converte em um enunciado concreto. Para os teóricos russos, a lingüística promove um estudo do enunciado monológico isolado com as seguintes características: 69
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a) procura as relações imanentes no interior do enunciado; b) o alcance máximo da análise é a frase complexa; c) as relações exteriores aos limites do enunciado são ignoradas; d) há um fosso entre a sintaxe e os problemas de composição do discurso; e) a frase, a oração são unidades convencionais. Em contraposição aos estudos puramente lingüísticos, o estudo promovido pelo Círculo, com base no enunciado concreto, é um estudo complementar, ou seja, metalingüístico. Para Bakhtin, “o estudo do enunciado, em sua qualidade de unidade real da comunicação verbal, também deve permitir compreender melhor a natureza das unidades da língua (da língua como sistema): as palavras e as orações” (21, 287). Ele considera que a abstração científica da lingüística não pode ser tomada como um fenômeno real e concreto, porque assim ela pode cair na ficção. Podemos dizer, então, que a natureza abstrata da reflexão lingüística não consegue refletir o todo do enunciado concreto, permanecendo aí, no interior de uma reflexão objetiva-abstrata. No ensaio “Os gêneros do discurso” (1952-1953) são explicitadas as diferenças entre a oração (unidade da língua) e o enunciado (unidade da comunicação verbal), as quais distinguem também, por um lado, a natureza do pensamento abstrato da natureza do pensamento concreto, e por outro, o estudo do híbrido desses dois pensamentos, isto é, a passagem da oração ao enunciado completo, onde ela se torna uma resposta ou uma compreensão responsiva de outro locutor. A distinção entre a frase e o enunciado se torna mais clara nessa citação de Bakhtin, onde ele esboça a síntese entre o dado – a oração, a frase, a sentença – e o criado – o enunciado: “as pessoas não trocam orações, assim como não trocam palavras (numa acepção rigorosamente lingüística), ou combinações de 70
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palavras, trocam enunciados constituídos com a ajuda de unidades da língua – palavras, combinações de palavras, orações; mesmo assim, nada impede que o enunciado seja constituído de uma única oração, ou de uma única palavra, por assim dizer, de uma única unidade da fala (o que acontece sobretudo na réplica do diálogo), mas não é isso que converterá uma unidade da língua numa unidade da comunicação verbal” (21, 297). Mas quais são as características da frase, sentença, oração que as impedem de se tornar uma enunciado? Para responder a essa questão, precisaríamos encontrar características distintas entre uma e outra categoria. Vejamos com quais características podemos definir a frase, a oração e a sentença: 1) é um fato gramatical, é dado; 2) é uma unidade da língua; 3) tem um acabamento gramatical, abstrato do elemento, pode ser reproduzida ilimitadamente; 4) não é marcada pela alternância de sujeitos falantes, ou seja, não leva em conta a comunicação verbal real e viva; 5) o contexto da oração é o contexto do discurso de um único e mesmo sujeito falante (o locutor). 6) não pertence a ninguém e não se dirige a ninguém, ou seja, não tem autor nem destinatário. Todas essas características não permitem a investigação do enunciado concreto, visto que as categorias frase, oração, sentença se encontram no eixo de abstração, retiradas do funcionamento real e concreto da linguagem, sendo produtos da construção teórica abstrata. Já o enunciado concreto se define por características distintas: a) é um fato real, é criado; b) é uma unidade da comunicação verbal, isto é, uma unidade do gênero; 71
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c) apresenta um acabamento real, ou seja, são irreproduzíveis (embora possam ser citados); d) as suas pausas são pausas reais; e) tem autor (e expressão) e destinatário. Essas características, presentes na investigação do todo do enunciado concreto, refletem também a necessidade de se distinguir entre língua e discurso. No ensaio “O problema do texto” (1959-1961), Bakhtin resume, de maneira bastante clara, a relação entre língua e discurso, entre oração e enunciado: “O sujeito falante (a individualidade “natural” generalizada) e o autor do enunciado. A alternância dos sujeitos falantes e alternância dos locutores (dos autores de um enunciado). Pode-se estabelecer um princípio de identidade entre a língua e o discurso, porque no discurso se apagam os limites dialógicos do enunciado, mas jamais se pode confundir língua e comunicação verbal (entendida como comunicação dialógica efetuada mediante enunciados). É possível a identidade absoluta entre duas ou mais orações (sobrepostas, como duas figuras geométricas, elas coincidem). Há mais: qualquer oração, mesmo complexa, dentro do fluxo ilimitado do discurso pode ser repetida ilimitadamente e de uma forma perfeitamente idêntica, mas, enquanto enunciado (ou fragmento de enunciado), nenhuma oração, ainda que constituída de uma única palavra, jamais pode ser repetida, reiterada, duplicada: sempre temos um novo enunciado (mesmo que em forma de citação)” (23, 334-335). É, talvez, por isso que o fenômeno do discurso citado – o enunciado de outrem – é tão importante nas formulações teóricas do Círculo. O sentido fenomenológico do enunciado concreto, criado no momento único de sua existência, implica num esforço para compreender a dinâmica da sua construção, da sua arquitetônica: “dentro dos limites de um único e mesmo enunciado, uma oração pode ser reiterada (repetição, autocitação), porém, cada ocorrência representa um novo fragmento de enunciado, pois sua posição e sua função mudaram no todo do enunciado” (23, 335), ou 72
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seja, a noção do enunciado como um acontecimento, como uma criação única, implica a adoção de um ponto de vista dinâmico para sua investigação. O material que serve de base de investigação para o pesquisador é sempre um material representado, isto é, o enunciado de outrem. Em outras palavras, todo discurso é um discurso citado. Portanto, resta ao pesquisador encontrar um ponto de vista para investigar esse discurso citado, e esse ponto de vista nós acreditamos que pode ser encontrado se considerarmos o enunciado concreto, seja ele de qual gênero for, como a base material com a qual pode interagir uma Arquitetônica da Representação.
3. O enunciado concreto como base material da Metalingüística: o dialogismo Um dos conceitos mais importantes da obra do Círculo é o diálogo. Talvez seja esse mesmo conceito a base de toda investigação do enunciado concreto desencadeada por Bakhtin/ Volochinov/Medvedev. Se pensarmos em conceitos como enunciado, comunicação – verbal, social, ideológica, dialógica, artística –, interação verbal, situação, encontraremos em sua base concreta a dimensão de um diálogo, pois “o todo do enunciado se constitui como tal graças a elementos extra-lingüísticos (dialógicos), e este todo está vinculado aos outros enunciados” (23, 335-336), ou seja, é na dimensão do criado – o enunciado enquanto um acontecimento, uma interação verbal entre sujeitos falantes, que encontramos a natureza dialógica da linguagem. Pensar o enunciado como unidade real, concreta, da comunicação verbal significa tomar os elementos dialógicos como fonte de uma compreensão ativa e científica. Um dos problemas colocados pelo Círculo é de saber se a ciência “pode tratar de uma individualidade tão absolutamente irreproduzível como o enunciado, que estaria fora do âmbito em que opera o conheci73
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mento científico propenso a generalização” (23, 335). Segundo Bakhtin, isso é possível, e ele nos dá três argumentos: a) qualquer ciência, em seu ponto de partida, lida com singularidades irreproduzíveis e, em toda a sua trajetória, permanece ligada a elas; b) a ciência, e acima de tudo a filosofia, pode e deve estudar a forma específica e a função dessa individualidade; c) esse estudo científico do particular deve levar em conta “a absoluta necessidade de uma correção permanente que previna de uma pretensão a uma análise abstrata totalmente exaustiva (lingüística, por exemplo) de um enunciado concreto” (23,335). O campo desses estudos situa-se na fronteira entre a análise da língua (o enunciado isolado) e a análise do sentido (o enunciado dialógico). E esse campo “é uma campo que pertence a ciência” (23, 335). Bakhtin chama esse campo de estudo de Metalingüística. Para ele, “as pesquisas metalingüísticas, evidentemente não podem ignorar a lingüística e devem aplicar os seus resultados. A lingüística e a metalingüística estudam um mesmo fenômeno concreto, muito complexo e multifacético – o discurso, mas o estudam sob diferentes aspectos e de diferentes ângulos de visão. Devem completar-se mutuamente e não fundir-se. Na prática, os limites entre elas são violados com muita freqüência” (13, 157). Esse caráter de complementaridade entre as disciplinas é enfatizado por Bakhtin: “a lingüística conhece, evidentemente, a forma composicional do “discurso dialógico” e estuda as suas particularidades sintáticas léxico-semânticas. Mas ela as estuda enquanto fenômenos puramente lingüísticos, ou seja, no plano da língua, e não pode abordar, em hipótese alguma, a especificidade das relações dialógicas entre as réplicas. Por isto, ao estu74
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dar o “discurso dialógico”, a lingüística deve aproveitar os resultados da metalingüística” (13, 158). Tudo o que, anteriormente, era chamado de aspecto extraverbal, extra-lingüístico, subentendido do enunciado e que, geralmente, compreendia o conceito situação, encontra na Metalingüística uma expressão mais adequada, e esses aspectos, pela própria tradição de estudos de um campo de fronteira de disciplinas, passam a ser chamados de aspectos metalingüísticos, e mais precisamente, relações dialógicas. O objeto de estudo da Metalingüística caracteriza-se, então, como relações dialógicas. Essas relações são extralingüísticas, “ao mesmo tempo, porém, não podem ser separadas do campo do discurso, ou seja, da língua enquanto fenômeno integral concreto. A linguagem vive apenas na comunicação dialógica daqueles que a usam. É precisamente essa comunicação dialógica que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem” (13, 158). É por se situar no campo do discurso, que é por natureza dialógico, que as relações dialógicas “devem ser estudas pela metalingüística, que ultrapassa os limites da lingüística e possui objeto autônomo e tarefas próprias” (13, 159) Eis algumas dessas tarefas: a) estudo dos aspectos e das formas da relação dialógica que se estabelece entre os enunciados e entre suas formas tipológicas (os fatores do enunciado): a forma do enunciado; b) estudo dos aspectos extra-lingüísticos e não significantes (artísticos, científicos e outros) do enunciado: a função social do enunciado; c) estudo da palavra de outrem: “a orientação da palavra entre palavras, a sensação distinta da palavra do outro e os diversos meios de reagir diante dela” (13, 176). Numa definição mais específica do conceito relações dialógicas, Bakhtin diz que ela “é uma relação marcada por uma profunda originalidade e que não pode ser resumida a uma re75
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lação de ordem lógica, lingüística, psicológica ou mecânica, ou ainda a uma relação de ordem natural. Estamos perante uma relação específica de sentido cujos elementos constitutivos só podem ser enunciados completos (ou considerados completos, ou ainda potencialmente completos) por trás dos quais está (e pelos quais se expressa) um sujeito real ou potencial, o autor do determinado enunciado” (23, 354). Ao estudar o discurso, os enunciados completos e concretos, que são as unidades da comunicação verbal, e que são, também, irreproduzíveis (embora possam ser citados), estamos na realidade, por uma necessidade científica, estudando o enunciado no interior de alguma relação dialógica, na qual necessariamente, o pesquisador tem um papel exterior, o papel de terceiro no diálogo. É nesse sentido que, para o pesquisador, só existem enunciados citados. Pensando o diálogo como uma grande unidade de reflexão do pensamento concreto, ou seja, o todo do diálogo encontramos, em interação orgânica, de um lado, a comunicação social e sua base econômica, e de outro, a comunicação verbal ou interação verbal realizada em enunciados concretos. Como já vimos anteriormente, o todo do enunciado concreto é o produto da interação entre falantes num determinado contexto e no interior de uma situação social complexa. Este é o cenário, onde o enunciado concreto, o discurso deve ser compreendido. Segundo Volochinov, “o discurso é como que o “cenário” do ato imediato de comunicação no processo no qual ele é engendrado, e esse ato de comunicação é, por sua vez, um fator do largo campo de comunicação da comunidade da qual provém os falantes” (6, 79). O enunciado é dialógico, o discurso é dialógico, a comunicação é, também, dialógica. Nesse sentido, é importante salientar que todo o projeto de investigação dialógica do enunciado concreto é uma investigação dinâmica. Conseqüentemente, o seu conceito de comunicação difere daquele – completamente pronto e estático, e segundo o Círculo, radicalmente incorreto – desenvol76
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vido pelos formalistas nos anos 20. Vejamos a comparação entre uma e outra perspectiva: Formalistas: Dados dois membros da sociedade. A (o autor) e R (o leitor); a relação social entre eles são constantes e estáveis num momento dado; é dado também uma comunicação pronta X, que será simplesmente transmitida de A para R. O “que” (conteúdo) dessa mensagem X difere do seu “como” (forma), e a “orientação pela expressão” (“como”) é característica da palavra artística. Círculo: “Na realidade, a relação entre A e R está mudando e se desenvolvendo constantemente, e ela muda no processo comunicativo. E não existe uma comunicação X pronta. Ela se desenvolve no processo de comunicação entre A e R. Além disso, X não é transmitida de um para outro, mas é construída entre eles como um tipo de ponte ideológica, ela é construída no processo da interação deles. E esse processo causa ao mesmo tempo: a unidade temática do trabalho desenvolvido e a forma de sua realização real. Isso não pode ser separado… Se separarmos objetos, trabalhos prontos do processo social vivo e objetivo, nós nos encontraremos com abstrações que prescindem de qualquer movimento, criação e interação” (7, 152).
Pensar a linguagem, em sua configuração dialógica, significa considerá-la como um acontecimento social, fruto de alguma atividade de comunicação social (trabalho) realizada na forma de uma comunicação verbal determinada, isto é, da interação verbal de um ou mais enunciados construídos num processo dialógico de alternância dos sujeitos envolvidos, e não na concepção estática apresentada, como vimos, pelos formalistas neste período. Nesse sentido, é importante compreender como o Círculo articula as relações de comunicação social que vão ser um dos fundamentos do “cenário” que compreende o todo do enunciado concreto. 77
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Numa tipologia geral de relações de Comunicação Social, Volochinov sugere a seguinte: a) a comunicação artística; b) as relações de produção (nas usinas, nos ateliers, nos kolkhoses, etc.); c) as relações de negócios (nas administrações, nos organismos públicos, etc.); d) as relações cotidianas (os encontros e conversas na rua, nas cantinas, consigo mesmo, etc.); e e) as relações ideológicas strictu sensu: propaganda, escola, ciência, a atividade filosófica sobre todas as suas formas. (16, 289). Assim sendo, encontramos na estrutura arquitetônica do enunciado o abrigo para diferentes tipos de atividade humana, ou seja, de comunicação social. Devemos enxergar no enunciado espaços organizados e animados, ou seja, dinâmicos, compostos de uma certa atividade humana (Comunicação Social) e de uma certa atividade de linguagem (Comunicação Verbal) – gênero do discurso – engendradas num determinado enunciado ou enunciados na dimensão de um diálogo. Para o Círculo, todos os discursos são dialógicos. Para melhor compreender a linguagem, precisamos compreender que a sua verdadeira substância “não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pelo enunciado monológico isolado, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através do enunciado ou dos enunciados” (10, 123). Essa perspectiva dialógica, sociológica, fenomenológica e histórica, nos leva a uma outra observação de Bakhtin/Volochinov: “a compreensão é dialógica por natureza”, ou seja, “a compreensão está para o enunciado assim como uma réplica está para a 78
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outra no diálogo” (10, 132). Em um outro ponto, eles dizem “o problema do diálogo começa a chamar cada vez mais a atenção dos lingüistas e, algumas vezes, torna-se mesmo o centro das preocupações em lingüística. Isso é perfeitamente compreensível, pois, como sabemos, a unidade real da língua que é realizada na fala (Sprache als Rede) não é a enunciação [enunciado] monológica individual e isolada, mas a interação de pelo menos duas enunciações [enunciados], isto é, o diálogo” (10, 145-146). Toda essa discussão, realizada na dimensão dialógica, pode ser resumida no seguinte esquema, apresentado no ensaio “La structure de l’énoncé” (1930), o qual implica uma interação orgânica entre os seus elementos, e, ao mesmo tempo, preenche a natureza ideológica, sociológica, dialógica e lingüística envolvidas no todo do enunciado concreto: Organização econômica da sociedade ⇓ A comunicação social ⇓ A interação verbal (comunicação verbal) ⇓ Os enunciados ⇓ As formas gramaticais de linguagem Após apresentar esse esquema, Volochinov diz que ele “servirá de fio diretor no estudo dessa unidade concreta, que releva da parole e que nós chamaremos enunciado” (16, 289). É, então, o enunciado concreto que se torna a unidade de base para a compreensão do esquema estruturado acima. A interação orgânica entre o enunciado concreto e a interação verbal é um dos princípios básicos do pensamento do Círculo. É na interação verbal (comunicação verbal) que eles encontram a realidade fundamental da linguagem. Para Volochinov, 79
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“toda comunicação, toda interação verbal se realiza sob a forma de uma troca de enunciados, isto é, na dimensão de um diálogo” (16, 292). Esse é um dos motivos da crítica à lingüística e ao seu objeto – a língua – formulada por Bakhtin: “o objeto da lingüística é formado pela matéria isolada, pelos meios da comunicação verbal sozinhos – mas não pela comunicação verbal, nem pelos enunciados enquanto tais, nem pelas relações (dialógicas) que existem entre eles, nem pelas formas da comunicação verbal nem pelos gêneros verbais” (30, 79). Mergulhando no todo da obra podemos aproximar os conceitos discurso, comunicação e diálogo, e encontrar os seus pontos de convergência para com o objetivo de explicar o funcionamento do enunciado concreto. Nesse sentido, apresentamos três citações: a primeira de Volochinov, a segunda de Bakhtin/ Medvedev e a terceira de Bakhtin/Volochinov: “O discurso verbal, não no sentido estreito da lingüística, mas no seu sentido sociológico largo e concreto – este é o meio objetivo no qual o conteúdo da psique é apresentado” (6, 83). “Se tomarmos a palavra “comunicativo” no seu sentido mais largo e mais geral, então, todo enunciado é comunicativo… A comunicação, compreendida nesse sentido largo, é um elemento constitutivo da linguagem como tal.” (7, 93-94) “O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja” (10, 123).
Essa compreensão, tanto do discurso, como da comunicação e do diálogo, no sentido largo, reflete a necessidade de compreender o enunciado concreto em três dimensões. Podemos dizer que no interior do enunciado concreto, que no todo de sua articulação, os conceitos têm sempre um caráter tridimensional, e nesse 80
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caso, existem três dimensões para se pensar as suas relações dialógicas: a) o micro-diálogo: o diálogo interior; b) o diálogo no sentido estrito: o diálogo exterior realizado numa determinada situação; c) o diálogo no sentido largo, ou seja, o grande diálogo: o diálogo infinito em que não há nem a primeira nem a última palavra. Se observarmos atentamente o todo da obra, veremos que os conceitos principais atuam dessa maneira e, então, podemos formular o seguinte esquema de reflexão: enunciado concreto
diálogo
tempo
interior
micro-diálogo
pequena temporalidade
exterior
diálogo
imediato
de outrem
grande-diálogo
grande temporalidade
A vida do enunciado concreto se encontra realizada nessas três dimensões de diálogo. Do ponto de vista do pesquisador, podemos dizer que: a) A primeira não é acessível ao pesquisador, embora ele saiba de sua existência concreta por experiência própria. Sendo assim, ela só pode ser observada em sua representação literária no diálogo do herói com ele mesmo. b) A segunda compreende o diálogo de duas ou mais pessoas onde a resposta é, em geral, imediata, existe alternância de sujeitos. Nesse caso, o pesquisador é o terceiro, cujo olhar exterior consegue perceber a relação eu/outro efetivada no diálogo; c) A terceira corresponde a dimensão de resposta não imediata, onde as relações dialógicas entre os enunciados 81
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concretos, vivos, constrói o fenômeno, estudado exaustivamente pelo Círculo, do discurso de outrem – do enunciado de outrem – que adentra a estrutura do enunciado, isto é, o interior do meu discurso. Essa dimensão aparece também em um ponto da obra sob a denominação de “diálogo inconcluso”. Derivado do conceito de diálogo e de uma concepção relacionista do mundo, da natureza dialógica da consciência e da vida humana, Bakhtin nos diz que “el diálogo inconcluso es la única forma adecuada de expresión verbal de una vida humana autêntica. La vida es dialógica por su naturaleza.Vivir significa participar en un diálogo: significa interrogar, oír, responder, esta de acuerdo, etc. El hombre participa en este diálogo todo y con toda su vida: con ojos, labios, manos, alma, espíritu, con todo el cuerpo, con sus actos. El hombre se entrega todo a la palavra y esta palavra forma parte de la tela dialógica de la vida humana, del simposio universal. Las imágenes cosificadas, objetuales, son profundamente inadecuadas tanto para la vida como para la palavra. El modelo cosificado del mundo se está sustuyendo por el modelo dialógico. Cada pensamiento y cada vida lheam a formar parte de un diálogo inconcluso. Tambíen es impermisible la cosificación de la palavra: sua naturaleza también es dialógica” (24, 334). Essa busca pela não coisificação da palavra é necessária para fugir ao procedimento puramente mecânico, o qual, segundo Bakhtin, não permite perceber as relações dialógicas. Ainda segundo o mesmo teórico, “não se podem contemplar, analisar e definir as consciências alheias como objetos, como coisas: comunicar-se com elas só é possível dialogicamente. Pensar nelas implica em conversar com elas, pois do contrário elas voltariam imediatamente para nós o seu aspecto objetificado: elas calam, fecham-se e imobilizam-se nas imagens objetificadas acabadas” (13, 58). Essa fuga da coisificação, da fetichização, encontra eco nas observações de Volochinov aqui citados na segunda parte do primeiro capítulo dessa dissertação. 82
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De acordo com Bakhtin, “o enunciado existente, surgido de maneira significativa num determinado momento social e histórico, não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto de enunciação, não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social. Ele também surge desse diálogo como seu prolongamento, como sua réplica, e não sabe de que lado ele se aproxima desse objeto” (17, 86)39 . Para que o enunciado toque pelo menos alguns desses fios dialógicos e ideológicos, é necessário haver, por parte do pesquisador, uma atitude responsiva ativa, visto que “a compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa […]; toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se o locutor” (21, 290), ou seja, o pesquisador é o observador que se situa no exterior, no grande diálogo, lugar e tempo – grande temporalidade – onde pode promover as mais variadas relações dialógicas, e promovendo essas relações dialógicas acaba criando um novo elo nessa cadeia da comunicação verbal. É por isso que o caráter humanista, de negação da coisificação como explicação das ciências humanas, sempre encontra um lugar ativo e importante no interior de cada obra do Círculo, como por exemplo nesta citação de Bakhtin/Volochinov: “a vida começa apenas no momento em que uma enunciação [enunciado] encontra outra, isto é, quando começa a interação verbal, mesmo que não seja direta, “de pessoa a pessoa”, mas mediatizada pela literatura” (10, 179), ou como aparece ainda em outra obra, assi39
Em francês, não há a ocorrência enunciação: Un énoncé vivant, significativement surgi à un moment historique et dans un milieu social déterminés, ne peut manquer de toucher à des milliers de fils dialogiques vivants, tissés par la conscience socio-ideologique autour de l’objet de tel énonce et de participer activement au dialogue social. Du reste, c’est de lui que l’énoncé est issu: il est comme sa continuation, sa réplique, il n’aborde pas l’objet en arrivant d’on ne sait où…. (18, 100). 83
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nada por Bakhtin; “ser significa comunicarse” (24, 327). É a investigação da vida da língua, dos gêneros do discurso, enfim da linguagem viva que está sendo, a todo momento, instigada pelo Círculo. Podemos dizer que o que Bakhtin formula é um ponto de vista da linguagem, que leva em consideração os aspectos científicos da língua na sua generalidade, mas que insiste numa abordagem do funcionamento real da linguagem, onde podemos encontrar a “verdade” do acontecimento particular e único de um enunciado concreto. Essa linha de pensamento vai atravessar todo o desenvolvimento da obra do círculo, desdobrando-se nos conceitos Gêneros do Discurso, Tema, Expressividade, Estilos e Entonações que orientam a investigação do enunciado concreto e que também vão adquirindo uma extensão de sentido adequado à cada obra, seja de Bakhtin, Volochinov ou Medvedev, no sentido de construção de uma nova disciplina: a metalingüística. Esse mesmo escopo teórico que adentra às obras dos três pensadores russos é, também, um dos argumentos utilizados para requerer a autoria de todas elas para Bakhtin, como já foi tratado anteriormente nessa dissertação. Buscar a verdade do enunciado concreto implica compreender a arquitetônica de sua representação em sua natureza ética, histórico-fenomenológica, sociológica e dialógica. O que pretendemos no terceiro capítulo dessa dissertação é procurar a verdade desse enunciado concreto na dimensão dos conceitos principais definidos pelo Círculo com essa finalidade.
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III. A Teoria do Enunciado Concreto “A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua”. (21, 282)
Para discutir a Teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev, tornou-se importante uma investigação da evolução do pensamento do círculo, ou seja, uma análise diacrônica do todo da obra no que se refere ao conceito enunciado. Esse conceito estável intercambia-se e se une a outros conceitos: palavra-enunciado, signo-enunciado, ato de fala-enunciado, obra-enunciado, texto-enunciado, discurso-enunciado, expressão-enunciado, idéia-enunciado, enfim, uma série de conceitos que aqui se encontram na fronteira de várias disciplinas que tratam da linguagem e que recobrem pontos de vista histórico-fenomenológico, sociológico, ideológico, ético, estético e metalingüístico, num processo de interação orgânica. Essa estratégia de escolher um conceito – enunciado – para dialogar com todas as outras disciplinas que se debruçam sobre a linguagem, e que nas edições francesas e brasileiras aparece também como enunciação, se revela altamente produtiva no sentido de facilitar a compreensão do caráter dinâmico do pensamento de Bakhtin, Volochinov e Medvedev. O que procuraremos, a seguir, é levantar algumas dessas relações dialógicas com intuito, também, de justificar a nossa opção pelo conceito enunciado. Cada conceito do Círculo é um “eu” da Arquitetônica, cada definição de conceito permite enxergar a extensão do todo, ou 85
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seja, os outros conceitos. É por isso que há uma interação orgânica entre os conceitos no interior desse todo. A importância individual do conceito reflete e refrata as suas relações com todos os outros, a partir do interior – da reflexão metalingüística, ética, ideológica e sociológica, e também, no exterior, pela comparação do mesmo com sua definição lingüística, estética, psicológica, formalista, etc. . Num primeiro momento, vamos nos debruçar no percurso que o conceito enunciado desenvolve na obra do Círculo, tentando abarcar todas as definições com que ele é definido, mesmo que ainda não com esse nome. Um dos primeiros textos do Círculo, Toward a Philosophy of the Act (1919-1921), já prenunciava a preocupação com o todo. Nesse texto, Bakhtin nos dá a dimensão da palavra completa, da unidade da palavra enquanto todo, a qual, segundo ele, compreenderia os seguintes aspectos: a) aspecto conteúdo/sentido: conceito – a designação de um objeto; b) aspecto expressivo: imagem; c) aspecto emotivo-volitivo: entonação – expressa minha atitude valorativa sobre o objeto.40 Esses aspectos já indicam que, para o Círculo, não há enunciados neutros. Eles consideram que “um enunciado isolado e concreto sempre é dado num contexto cultural e semânticoaxiológico (científico, artístico, político, etc.) ou no contexto de uma situação isolada da vida privada; apenas nesses contextos o enunciado isolado é vivo e compreensível: ele é verdadeiro ou falso, belo ou disforme, sincero ou malicioso, franco, cínico, autoritário e assim por diante” (4, 46).
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Esses aspectos do todo da palavra vão encontrar, posteriormente, um lugar dentre as caractéristicas do enunciado concreto. 86
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Voltando ao problema da palavra, do material verbal, encontramos no ensaio, “Le discours dans la vie et le discours dans la poésie” (1926), assinado por Volochinov, o lugar onde ela se torna elemento integrante do enunciado. Tratando aqui do enunciado cotidiano, Volochinov nos diz que o todo do enunciado é composto de uma parte verbal – a palavra (forma composicional) e de uma parte extra-verbal que corresponde à situação (forma arquitetônica). Essa parte extra-verbal – a situação – “se integra ao enunciado como um elemento indispensável à sua constituição semântica” (5, 191). A situação, a forma arquitetônica do enunciado, compreende os seguintes elementos: a) elemento espacial: horizonte espacial comum; b) o elemento semântico: o conhecimento e a compreensão da situação (Tema); c) o elemento axiológico: o valor comum. Esses elementos extra-verbais do enunciado concreto, aliados aos aspectos composicionais da palavra – o conceito, a imagem, a entonação – se tornam uma unidade orgânica. A investigação da parte verbal, imanente ao enunciado, deve ser relacionada a esses elementos extra-verbais. O horizonte social (valor) é que organiza, por um lado, a forma – a escolha da palavra e a sua disposição, e também, por outro, a entonação. Um outro aspecto importante desse ensaio é que, no funcionamento da sociedade, alguns valores não precisam ser enunciados: “na verdade, os principais valores sociais, que enraízam imediatamente nas particularidades da vida econômica do grupo social dado não são mais enunciados: eles entram na carne e no sangue de todos os representantes deste grupo; eles organizam as ações e condutas das pessoas; eles são de algum modo soldados às coisas e aos fenômenos correspondentes; é por isso que eles não requerem uma formulação verbal particular” (5, 193), de 87
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qualquer maneira esses valores se realizam em algum material semiótico, seja pela mímica, gestualidade, expressão facial e outros, que são também de natureza extra-verbal. A abordagem do Círculo nasce do esforço de aplicar o método sociológico à forma composicional do enunciado concreto, de maneira a promover uma análise imanente e encontrar nele os elementos que permitem a sua interação orgânica enquanto um todo concreto. Para Volochinov, “toda a estrutura formal do discurso depende em larga medida da relação entre o enunciado de uma parte, e de outra parte a comunhão de valores que supomos existir no meio social ao qual o discurso é dirigido” (5, 195). Para compreendermos todos os aspectos do enunciado verbal – como eles se organizam e tomam forma – precisamos observar a dupla orientação do locutor: 1. em direção ao ouvinte, e 2. em direção ao objeto do enunciado – o tema. Segundo Volochinov, “toda palavra realmente pronunciada – e não sepultada no dicionário – é a expressão e o produto da interação social de três participantes: o locutor (o autor), o ouvinte (o leitor) e isto de que se fala (o herói)41 ” (5, 198). Perseguindo a noção de enunciado concreto, tema de nossa dissertação, percebemos já nesse ensaio uma explicação dessa unidade da comunicação verbal que serve de base para as reflexões do Círculo: “O enunciado concreto (e não a abstração lingüística) nasce, vive e morre no processo da interação social dos participantes do enunciado. Sua significação e sua forma são determinadas, essencialmente, pela forma e pelo caráter dessa interação” (5, 198). Se vimos até agora a estrutura do enunciado exterior, ou seja, na relação locutor/ouvinte, como o Círculo resolveria, então, o problema do enunciado interior, ou seja, a dimensão psicológica e subjetiva do enunciado? 41
Ou o tema, como aparece em Marxismo e Filosofia da Linguagem. (10, 128-136) 88
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Como podemos compreender, então, um discurso monológico como, por exemplo: o discurso de um orador, o curso de um professor, o monólogo de um autor, as reflexões em voz alta de um homem sozinho, o cinema, a televisão? Segundo as formulações do Círculo, todos os discursos são dialógicos pela sua estrutura semântica e estilística. A oposição entre um discurso dialógico e um discurso monológico só é possível na perspectiva da forma exterior, ou seja, se no momento da sua realização a resposta não é imediata, e o todo do enunciado, do diálogo, se completa na grande temporalidade, no grande diálogo. A mesma orientação se reflete no discurso interior, ou seja, no funcionamento concreto do enunciado interior. Segundo Volochinov, por exemplo, há um elemento sociológico inerente à consciência humana, a suas “emoções” e a sua expressão. Nesse sentido, o discurso interior reflete e refrata a sociedade, na qual o indivíduo vive, criando um ouvinte virtual, uma sociedade virtual. Esse auditório virtual pode refletir o ponto de vista pessoal – a visão de mundo própria ao grupo social ao qual pertenço; a divisão em ideologias diferentes – quando duas classes sociais disputam com igual força a minha consciência –; ou, ainda, a situação onde o indivíduo perdeu seu ouvinte interior – ocorrência da desagregação da consciência devido a conflitos violentos entre discurso interior e discurso exterior. O discurso interior, o enunciado interior, assume, da mesma forma que o enunciado exterior “um ouvinte e se orienta em sua construção em relação a esse ouvinte. O discurso interior é um tipo de produto e expressão da comunicação social como é o discurso exterior” (6, 79). Ele pressupõe um ouvinte virtual, com o qual trava um diálogo interior. Não podemos esquecer das críticas formuladas por Volochinov à psicanálise freudiana. Para ele, em primeiro lugar, “todo enunciado concreto reflete sempre o pequeno evento social imediato – o evento de comunicação, de troca de palavras entre pessoas – do qual ele procede diretamente” (6, 86). Nesse sentido, 89
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Volochinov faz a seguinte observação em relação a sessão psicanalítica e sua análise do discurso interior: “o que é refletido nesses enunciados não é a dinâmica da psique individual mas a dinâmica social das inter-relações entre o doutor e o paciente. Aqui está a origem para o drama que é a construção freudiana.” (6, 79-80). O teórico russo não acredita no acesso ao inconsciente, e, sim, na consciência: “o conteúdo da psique humana – um conteúdo que consiste de pensamentos, sentimentos e desejos – é dado numa formulação feita pelo consciência e, conseqüentemente, na formulação do discurso verbal humano” (6, 83). Há também no todo da obra do Círculo, uma série de reflexões em torno do enunciado cotidiano. Para analisar um enunciado prático42 , ou cotidiano, devemos ter em mente: as características sociais da comunidade discursiva e a complexidade concreta do horizonte ideológico – conceitos, crenças, etc. onde cada enunciado prático é formado. O enunciado para Bakhtin/ Medvedev é uma construção comunicativa, diferentemente da lingüística que o toma como uma construção abstrata onde forma seus conceitos de língua e seus elementos para seus próprios propósitos teóricos e práticos. Numa crítica ao formalismo, Bakhtin/Medvedev diz que “todo enunciado concreto é uma unidade fonética compacta e singular” (7, 101). Ele acredita que o corpo fonético da obra, o todo fonético é organizado em tempo e espaços reais e sociais e que esse tempo e esse espaço são eventos da comunicação social. Por isso, propõem uma “sociologia do som significativo”, onde “o estudo da organização do corpo fonético da obra não pode ser separado do estudo da comunicação social organizada que o implementa” (7, 103). 42
Bakhtin/Medvedev critica a distinção, feita pelos formalistas, entre linguagem prática e linguagem poética: “nós sabemos que a construção prática não existe, e que os enunciados da vida, a realidade que subjaz a natureza das funções comunicativas da linguagem, se formam em várias direções, dependendo das diferentes esferas e propósitos da comunicação social” (7, 93). 90
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O enunciado concreto é “um material individual complexo, fonético, articulado, complexo visual e, simultaneamente, é também uma parte da realidade social” (7, 120). Mais uma crítica à lingüística, ciência piloto da época, é formulada aqui: “a palavra, a forma gramatical, a sentença, e todas as definições lingüísticas em geral, tomadas em abstração do enunciado histórico e concreto, se tornam signos técnicos de uma significação que é somente possível e ainda não individualizada historicamente” (7, 121). Para Bakhtin/Medvedev, “se tomarmos o enunciado concreto fora de sua criação histórica, em abstração, estaremos nos desviando do que estamos procurando” (7, 126). E o que o Círculo está procurando? O que vamos percebendo, na medida em que vamos evoluindo na leitura das obras, é que essa noção de enunciado concreto serve de base para que Bakhtin, Volochinov e Medvedev reflitam sobre a realidade da palavra-enunciado e os vários gêneros do discurso engendrados por ela no processo da comunicação verbal a partir de uma certa relação de comunicação social: o enunciado poético, o enunciado prático, o enunciado cotidiano, o enunciado científico, o enunciado interior, etc. É considerando o enunciado concreto como uma unidade da comunicação verbal que podemos analisar cada uma dessas manifestações do material verbal, ou seja, cada um desses gêneros do discurso. A obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929), assinada por Bakhtin/Volochinov discute o enunciado sob os seus mais variados aspectos: o enunciado enquanto signo ideológico, palavra, enunciado interior, enunciado dialógico/monológico e enunciado de outrem. Todos esses aspectos são discutidos a partir do enunciado concreto – vivo, real e humano – conforme as várias direções para as quais se encaminham as investigações dinâmicas do Círculo. É esse tipo de investigação dinâmica que irá se refletir na definição do conceito signo. O signo é de natureza interindividual e a sua relação com a consciência é a seguinte: “a própria consciência só pode surgir e se afirmar como realidade mediante a encarnação material em signos. Afinal, compreender 91
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um signo consiste em aproximar o signo apreendido de outros signos já conhecidos; em outros termos, a compreensão é uma resposta a um signo por meio de signos. E essa cadeia de criatividade e de compreensão ideológicas, deslocando-se de signo em signo para um novo signo; é única e contínua: de um elo de natureza semiótico (e, portanto, também de natureza material) passamos sem interrupção para um outro elo de natureza estritamente idêntica. Em nenhum ponto a cadeia se quebra, em nenhum ponto ela penetra a existência interior, de natureza não material e não corporificada em signos” (10, 34).
O signo, o material semiótico, que tem como características: a pureza semiótica, a neutralidade ideológica, a implicação na comunicação humana ordinária, a possibilidade de interiorização, a presença obrigatória, como fenômeno acompanhante, em todo ato consciente, é o fenômeno ideológico por excelência, é a PALAVRA. Essas características permitem que a palavra seja um material flexível, veiculável pelo corpo, tanto no interior – o discurso interior – como exterior – o diálogo com outrem e o diálogo de outrem. Segundo Bakhtin/Volochinov, “a única maneira de fazer com que o método sociológico marxista dê conta de todas as profundidades e todas as sutilezas das estruturas ideológicas “imanentes” consiste em partir da filosofia da linguagem concebida como “filosofia do signo ideológico”” (10, 38), ou seja, como uma “filosofia da palavra”: “a palavra, como signo, é extraída pelo locutor de um estoque social de signos disponíveis” (10, 113), e “a própria realização deste signo social na enunciação [enunciado] concreta é inteiramente determinada pelas relações sociais” (10, 113). Temos, então, o material necessário para a construção de uma Teoria do Enunciado Concreto: o enunciado ideológico, ou seja, a palavra ideológica, como também o método para investigar a sua estrutura imanente: o método sociológico. Nesse sentido, “a filosofia marxista da linguagem deve justamente colocar 92
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como base de sua doutrina a enunciação [enunciado] como realidade da linguagem e como estrutura sócio-ideológica” (10, 126). A natureza ideológica do enunciado concreto revela a ação de forças centrípetas e centrífugas no seu interior: “o verdadeiro meio da enunciação, onde ela vive e se forma, é um plurilingüismo dialogizado, anônimo e social como linguagem, mas concreto, saturado de conteúdo e acentuado como enunciação individual”43 (17, 82). O procedimento dinâmico com que os conceitos principais do Círculo são definidos dá a dimensão dos elementos envolvidos na investigação do enunciado concreto. Se ele é concreto, é histórico; se ele é histórico, é humano; se ele é humano, é social; se ele é social, é ético; se ele é ético, é consciente, tudo isso em interação orgânica. Por isso existe a necessidade de uma estrutura sociológica bem determinada para dar conta do enunciado concreto e de sua especificidade ética, histórica-fenomenológica, sociológica e dialógica. É também necessário levar em conta que o enunciado concreto é uma unidade da comunicação verbal, pois para Volochinov é impossível “compreender como se constitui um enunciado qualquer, tenha ele a aparência da autonomia e do acabamento, se não o encaramos como um momento, como uma simples gota nesta rio da comunicação verbal da qual o momento incessante é aquele mesmo da vida social e da História” (16, 288). Tomar o enunciado como unidade da comunicação verbal é o objetivo do segundo capítulo do ensaio “Os gêneros do discurso” (1952-1953). As discordâncias com Saussure, em relação a forma de utilização da língua, são aqui explicitadas: “a utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana” (21, 290). 43
Na edição francesa enunciação aparece como énoncé: “Le veritable milieu de l’énoncé, là ou il vit et se forme, c’est la polylinguisme dialogisé, anonyme et social comme le langage, mais concret, mais sature de contenu, et accentué comme un énoncé individuel” (18, 96). 93
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A interação orgânica entre a língua e a vida se dá por intermédio de enunciados concretos. E quais seriam, então, as particularidades constitutivas do enunciado concreto? Para Bakhtin, elas são as seguintes: a) a alternância dos sujeitos falantes; b) o acabamento específico do enunciado: b.1 o tratamento exaustivo do sentido do objeto (tema); b.2 o intuito, o querer-dizer do locutor; b.3 as formas típicas de estruturação do gênero do acabamento; c) a relação do enunciado com o próprio locutor (com o autor do enunciado), e com os outros parceiros da comunicação verbal. É importante considerar todas essas particularidades em interação orgânica, uma sendo indissociável da outra. Assim sendo, vejamos como Bakhtin explica cada uma delas. A primeira particularidade é explicada da seguinte maneira: a alternância dos sujeitos falantes “compõe o contexto do enunciado, transformando-o numa massa compacta rigorosamente circunscrita em relação aos outros enunciados vinculados a ele” (21, 298-299). Já a segunda, além de ser uma das particularidades constitutivas do enunciado, é determinada por três fatores, os quais, da mesma forma que as particularidades constitutivas, estão ligados, de maneira indissolúvel, ao todo orgânico do enunciado. Começando pela particularidade, Bakhtin nos diz que “o acabamento do enunciado é de certo modo a alternância dos sujeitos falantes vista do interior; essa alternância ocorre precisamente porque o locutor disse (ou escreveu) tudo o que queria dizer num preciso momento e em condições precisas (21, 299). Nesse sentido, “o primeiro e mais importante dos critérios de acabamento do enunciado é a possibilidade de responder” (21, 299). 94
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Essa “possibilidade de responder” é determinada pelos três fatores apresentados acima em relação ao acabamento específico do enunciado concreto. Todos esses fatores – o tema, o intuito – elemento subjetivo, e o gênero do discurso, que como já dissemos são ligados indissoluvelmente, permitem que observemos nas explicações teóricas de Bakhtin, a articulação dinâmica dessa interação orgânica. Portanto, o tratamento exaustivo do objeto de sentido é explicado do seguinte modo: “teoricamente, o objeto é inesgotável, porém, quando se torna tema de um enunciado (de uma obra científica, por exemplo), recebe um acabamento relativo, em condições determinadas, em função de uma dada abordagem do problema, do material, dos objetivos por atingir, ou seja, desde o início ele estará dentro dos limites de um intuito definido pelo autor” (21, 300). Esse intuito discursivo – ou o querer-dizer do locutor – que Bakhtin considera o elemento subjetivo do enunciado, “entra em combinação com o sentido do objeto – objetivo – para formar uma unidade indissolúvel, que ele limita, vincula à situação concreta (única) da comunicação verbal, marcada pelas circunstâncias individuais, pelos parceiros individualizados e suas intervenções anteriores: seus enunciados” (21, 300). Completando essa engrenagem, do ponto de vista das formas típicas de estruturação do gênero do acabamento, chegamos aos gênero do discurso: “o querer-dizer do locutor se realiza acima de tudo na escolha de um gênero do discurso. Essa escolha é determinada em função da especificidade de uma dada esfera da comunicação verbal, das necessidades de uma temática (do sentido do objeto), do conjunto constituído dos parceiros, etc. Depois disso, o intuito discursivo do locutor, sem que este renuncie à sua individualidade e à sua subjetividade, adapta-se e ajusta-se ao gênero escolhido, compõe-se e desenvolve-se na forma do gênero determinado” (21,301). Nos resta explicar, ainda, a terceira particularidade constitutiva do enunciado: a relação do enunciado com o próprio locutor 95
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(com o autor do enunciado), e com os outros parceiros da comunicação verbal. Considerando o enunciado como um elo na cadeia da comunicação verbal, Bakhtin diz que esse enunciado “representa a instância ativa do locutor numa ou noutra esfera do objeto do sentido. Por isso o enunciado se caracteriza acima de tudo pelo conteúdo preciso do objeto do sentido. A escolha dos recursos lingüísticos e do gênero do discurso é determinada principalmente pelos problemas de execução que o objeto de sentido implica para o locutor (o autor)” (21, 308). Essa escolha dos recursos lingüísticos e do gênero do discurso, aliada a “necessidade de expressividade do locutor ante o objeto de seu enunciado”, compõem as particularidades que determinam o estilo e a composição do enunciado, ao mesmo tempo que explicita a relação do enunciado com o seu autor. Não podemos esquecer, também, da relação do enunciado com os outros parceiros da comunicação verbal. Para Bakhtin, “ter um destinatário, dirigir-se a alguém, é uma particularidade constitutiva do enunciado, sem a qual não há, e não poderia haver, enunciado. As diversas formas típicas de dirigir-se a alguém e as diversas concepções típicas do destinatário são as particularidades constitutivas que determinam a diversidade dos gêneros do discurso” (21, 325). Das particularidades constitutivas do enunciado e de seus fatores de acabamento, destacamos alguns conceitos que julgamos importante apresentar de uma maneira mais aprofundada: Gêneros do Discurso, Tema, Expressividade, Estilos e Entonações. O que nos propomos, a seguir, é eleger cada um desses conceitos principais, que em interação orgânica, permitem investigar o enunciado concreto, tomando cada um como centro de nossas atenções por motivos exclusivamente didáticos. É claro que esses conceitos não são nenhuma novidade terminológica, mas a extensão de sentido que adquirem no interior do todo da obra do Círculo se revela absolutamente nova.
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1. Gêneros do Discurso O conceito Gêneros de Discurso aparece, pela primeira vez, na obra de Bakhtin/Medvedev The Formal Method In Literary Scholarship (1928)44 , como crítica à definição mecânica desse conceito pelos formalistas. Como acontece com os outros conceitos do Círculo, Bakhtin/Medvedev procura entender o sentido desse conceito, que representa, no interior da obra dos formalistas, uma expressão do pensamento abstrato, em sua relação com o enunciado concreto. Para os teóricos russos, o problema da investigação do gênero no pensamento formalista é que ele só é abordado “quando todos os outros elementos básicos da construção já estão estudados e definidos, e a poética formalista está terminada” (7, 129), ou seja, o gênero só é investigado no fim da análise, mecanicamente, como um composto de esquemas. A proposta do Círculo é que a análise do todo da obra poética, do todo desse enunciado artístico concreto, deve ser iniciada pelo gênero, pois ele representa a forma típica dessa construção poética. Mais uma vez, a crítica se dirige a uma análise da construção poética cujo percurso se orienta pelos elementos abstratos da língua, propondo, por outro lado, uma definição para esse conceito no interior do enunciado concreto. Bakhtin/Medvedev 44
Morson e Emerson em seu Creation of a Prosaics, fazem a seguinte observação: “Perhaps still more surprising, the Bakhtin group’s first serious discussion of genre belongs not to Bakhtin himself, but to Medvedev. The Formal Method in Literary Scholarship devotes a chapter to demonstrating that any good sociological approach to literature must be grounded in genres, which, Medvedev argued, carry and shape social experience for individual people. Although it is presently impossible to determine priority of discovery, Bakhtin seems to have been impressed and influenced by Medvedev’s argument, enough so to have refined, extended, and recast it. Over the next few decades and with varying degrees of success, Bakhtin was to pass all his favorite concepts and concerns through the prism of genre and the novel” (38, 272). 97
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considera que “o sentido construtivo de cada elemento só pode ser compreendido em conexão com o gênero” (7, 129). O gênero é “a totalidade típica do enunciado artístico, e uma totalidade vital, um todo acabadado e resolvido” (7, 129). Para o Círculo, “o problema do acabamento [zavershenie] – é um dos problemas mais importantes da Teoria do Gênero” (7, 129), pois “todo gênero representa um caminho especial de construção e acabamento de um todo, acabá-lo essencialmente e tematicamente (repetimos), e não apenas condicionalmente ou composicionalmente” (7, 129). De qualquer forma, é importante salientar que para Bakhtin/Medvedev “o acabamento composicional é possível em todas as esferas da criação ideológica, mas o acabamento temático real é impossível” (7, 129), devido a concepção fenomenológica e particular que orienta sua concepção de enunciado concreto, ou seja, do ponto de vista da comunicação verbal a abordagem temática está sempre em evolução e em interação com a evolução dos gêneros do discurso. A análise mecânica, segundo o Círculo, que norteia o pensamento formalista impede a percepção do problema do todo construtivo tridimensional, a interação orgânica entre o problema do todo, o problema do gênero e o problema do acabamento temático na construção da obra poética, bem como nos outros gêneros do discurso. Qualquer gênero se orienta em relação à realidade em duas direções: a) ao ouvinte ou receptor em conjunto com as condições precisas de performance e percepção; b) à vida pelos seus conteúdos temáticos. (acontecimentos, problemas, etc.). Para Bakhtin/Medvedev, “cada gênero é capaz de controlar apenas certos aspectos precisos da realidade. Cada gênero possui princípios precisos de seleção, formas precisas para ver e 98
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conceptualizar a realidade, e uma extensão e profundidade de penetração” (7, 130). Como já demonstrado anteriormente, em relação aos conceitos enunciado e diálogo, o conceito gênero interage, também, com o problema da consciência e do gênero interior. Para o Círculo, “são as formas do enunciado, e não as formas da língua, que têm o papel mais importante na consciência e na compreensão da realidade” (7, 133). Nesse sentido, “a consciência humana possui uma série de gêneros interiores para perceber e conceptualizar a realidade. Uma consciência determinada é rica ou pobre em gêneros, dependendo do seu desenvolvimento ideológico” (7, 133). Um outro aspecto da base do pensamento concreto do Círculo é a proposta de que uma poética genuína do gênero só pode ser uma sociologia do gênero. Para eles, “a realidade do gênero e a realidade acessível ao gênero são inter-relacionadas organicamente. Mas temos visto que a realidade do gênero é a realidade social de sua realização no processo da comunicação artística. Portanto, o gênero é o agregado de sentidos da orientação coletiva na realidade, com a orientação através do acabamento. Esta orientação é capaz de subjugar novos aspectos da realidade. A conceptualização da realidade se desenvolve e se cria no processo da comunicação social ideológica” (7, 135). Sendo assim, os gêneros do discurso se tornam os modelos padrões da construção de um todo verbal, como que uma tipologia estilístico-composicional das produções verbais. De qualquer forma, devemos levar em conta que “esses modelos do gênero se distinguem por princípio do modelo lingüístico das orações” (23, 357). Embora o conceito Gêneros do discurso só tenha aparecido em 1928, as obras anteriores do Círculo já refletem um encaminhamento para esse conceito. Já no seu primeiro texto “Art and Answerability” (1919), Bakhtin divide a cultura humana em três domínios: a ciência, a arte e a vida, lembrando que esses três domínios “ganham unidade somente na pessoa individual que os 99
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integra dentro de sua própria unidade” (1, 1). Para ele, “a arte e a vida não são uma unidade, mas elas devem se unir em mim – na unidade de minha responsabilidade” (1, 3). Nesse sentido, o conceito Gêneros do Discurso vai ser construído no interior de cada um desses domínios, sendo que a vida cotidiana será constituída pelos Gêneros Primários e a vida da ciência e a vida da arte, pelos Gêneros Secundários. Essa noção de domínio cultural vai estar presente, também, no ensaio de 1926, “Le discours dans la vie et le discours dans la poésie”, onde Volochinov busca a compreensão de um gênero primário – o discurso na vida – como fundamento para uma explicação do funcionamento do gênero secundário – a poesia, no interior do todo da sociedade e de sua vida econômica. Referindo-se ao primeiro – o discurso na vida – como enunciado da vida cotidiana, encontramos aqui uma primeira referência a gênero: “todas as avaliações desse gênero, qualquer que seja o critério – ético, gnoseológico, político ou outro – que lhes oriente, englobam muito mais que o conteúdo no aspecto propriamente verbal, lingüístico do enunciado: elas englobam, ao mesmo tempo, a palavra e a situação extra-verbal do enunciado” (5, 189)45 O estudo da problema dos Gêneros do Discurso deve ser analisado em interação orgânica com o problema da língua e o problema da Comunicação Social. Nesse sentido, Bakhtin/ Volochinov propõe que “uma análise fecunda das formas do conjunto de enunciações [enunciados] como unidades reais na cadeia verbal só é possível de uma perspectiva que encare a enunciação [enunciado] individual como um fenômeno puramente sociológico” (10, 126). 45
Na edição inglesa desse ensaio não há referência a gênero nessa citação: “All these and similar evaluations, whatever the criteria that govern them (ethical, cognitive, political, or other), take in a good deal more than what is enclosed within the strictly verbal (linguistic) factors of the utterance. Together with the verbal factors, they also take in the extraverbal situation of the utterance” (6, 98). Talvez por isso, Morson e Emerson não considerem referência a esse conceito nesse ensaio. 100
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Nesse sentido, Bakhtin/Volochinov desenvolve a seguinte ordem metodológica para o estudo da língua: 1. the forms and types of verbal interaction in connection with their concrete conditions; 2. forms of particular utterances, of particular speech performances, as elements of a closely linked interaction –i.e., the genres of speech performance in human behavior and ideological creativity as determined by verbal interaction; 3. a reexamination, on this new basis, of language forms in their usual linguistic presentation. (11, 95-96)46 Essa ordem metodológica não esconde a interação orgânica entre as suas proposições, assim como, a sua articulação dinâmica: “as relações sociais evoluem (em função das infra-estruturas), depois a comunicação e a interação verbais evoluem no quadro das relações sociais, as formas dos atos de fala evoluem em conseqüência da interação verbal, e o processo de evolução reflete-se, enfim, na mudança das formas da língua” (10, 124). A relação entre o tipo de comunicação social, o tipo de interação verbal e os gêneros do discurso é explicada da seguinte 46
Na edição brasileira, o conceito gêneros do discurso é substituído por “categorias de atos de fala”, e a ordem metodológica do estudo da língua é a seguinte: 1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza. 2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal. 3. A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação lingüística habitual (10, 124). 101
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forma: “toda situação da vida cotidiana possui um auditório, cuja organização é bem precisa, e dispõe de um repertório específico de pequenos gêneros apropriados. Em cada caso, o gênero cotidiano se adapta à linha que a comunicação social parece ter traçado para ele – no sentido de representar o reflexo ideológico do tipo, da estrutura, da finalidade e da constituição própria às relações de comunicação social” (16,291). Em “La structure de l’énoncé” (1930), Volochinov também dá sua definição de gênero: ele é um tipo de comunicação social que “organiza, constroi e acaba, de maneira específica, a forma gramatical e estilística do enunciado, assim como a estrutura do tipo do qual ele depende” (16, 290). Nesse mesmo ensaio ele discute o gênero cotidiano representado no discurso literário, ou seja, no enunciado poético. Antes de continuar nossas observações sobre o desenvolvimento do conceito gêneros do discurso na obra do Círculo, é importante lançar algumas observações sobre o seu funcionamento: a) ao nascer, um novo gênero nunca suprime nem substitui quaisquer gêneros já existentes; b) qualquer gênero novo nada mais faz que completar os velhos, apenas amplia o círculo de gêneros já existentes; c) cada gênero tem seu campo predominante de existência em relação ao qual é insubstituível; d) cada novo gênero essencial e importante, uma vez surgido, influencia todo o círculo de gêneros velhos: o novo gênero torna os velhos, por assim dizer, mais conscientes, fá-los melhor conscientizar os recursos e limitações, ou seja, superar a sua ingenuidade; e) a influência dos novos gêneros sobre os velhos contribui, na maioria dos casos, para a renovação e o enriquecimento destes. (13, 237-238). 102
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Todas essas características mantêm a coerência dinâmica dos conceitos que articulam as formulações teóricas de Bakhtin/ Volochinov/Medvedev, o que também irá se refletir na distinção entre gêneros primários e gêneros secundários. E é no ensaio “Os gêneros do discurso” (1952-1953) que encontramos todas as definições que orientam esse conceito no todo da obra do Círculo desenvolvidos em seu mais alto grau de acabamento teórico. Aqui, os gêneros do discurso são divididos em gêneros primários e gêneros secundários e, também, esses conceitos são orientados dentro de uma perspectiva dinâmica com base no enunciado concreto cotidiano. Os gêneros do discurso são aqui definidos como “tipos relativamente estáveis de enunciados” que uma determinada comunidade utiliza no processo de interação verbal. Para Bakhtin, “a riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa” (21, 279). Essa heterogeneidade dos gêneros do discurso – desde os gêneros da vida cotidiana, passando pelas formas variadas de exposição científica, e de todos os modos literários – poderia inviabilizar o seu estudo, visto que “a diversidade funcional parece tornar os traços comuns a todos os gêneros do discurso abstratos e inoperantes” (21, 280). Mas, então, como Bakhtin resolve esse problema? O teórico russo vai definir o caráter genérico do enunciado concreto levando “em consideração a diferença essencial existente entre o gênero de discurso primário (simples) e o gênero de discurso secundário (complexo)” (21, 281), ou seja, o enunciado concreto é, em relação aos enunciados anteriores, um enunciado típico da organização social da linguagem em gêneros do discurso de uma ou outra esfera – primária ou secundária. Para Bakhtin, “uma concepção clara da natureza do enunciado em geral e dos vários tipos de enunciados em particular (primários e secundários), ou seja, dos diversos gêneros do dis103
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curso, é indispensável para qualquer estudo, seja qual for a sua orientação específica”47 (21, 282). Ele fala que o que esclarece a natureza do enunciado e sobretudo “o difícil problema da correlação entre língua, ideologias e visão do mundo” (21, 282) é, por um lado a inter-relação entre os gêneros primários e secundários, e por outro o processo histórico de formação dos gêneros secundários. E o que são gêneros primários e gêneros secundários? Os gêneros primários são aqueles que compreendem os tipos de diálogo oral: linguagem de reuniões sociais, dos círculos, linguagem familiar, cotidiana, linguagem sociopolítica, filosófica, etc.. A sua esfera de realização concreta é a da comunicação verbal cotidiana onde eles se apresentam em infinita variedade: em interação com as formas de autor, ou seja, “comunicamos fatos que achamos interessantes ou que são íntimos, pedimos e reclamamos todas espécies de coisas, fazemos declarações de amor, discutimos e brigamos, trocamos amabilidades, etc”(25, 395); em interação com uma certa hierarquia social – esfera de familiaridade, a esfera oficial, e suas variantes. Esses gêneros são fenômenos da vida cotidiana. Ao refletir sobre esses fenômenos da vida cotidiana, o enunciado cotidiano, o Círculo se vale do enunciado literário como uma representação do enunciado real. Segundo Volochinov, “podemos, […] sem risco de erro, supor que a relação de dependência que existe entre a “infra-estrutura” econômica – a base econômica da sociedade – e o tipo de comunicação cotidiana reproduzida no “poema” de Gógol, é medido segundo a proporção que ele tenha ocorrido na vida real; diremos a mesmo coisa da dependência que existe entre um tipo de comunicação cotidiana e o modo de interação verbal que se inscreve no seu quadro” (16, 310)48 . 47
O enunciado concreto encontra seu lugar nas relação com enunciados anteriores do mesmo tipo. Nesse sentido, o conjunto de enunciado típicos, ou seja, que pertence a uma determinada esfera de sentido, é o que o Círculo chama de gêneros do discurso.
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Essa relação entre o enunciado real e o enunciado representado é discutida, também, nas obras de Bakhtin Problemas da Poética de 104
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Os gêneros secundários – o romance, o discurso científico, o discurso ideológico – são aqueles que “durante o processo de sua formação […] absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas as espécies, que se constituíram em circunstância de uma comunicação verbal espontânea” (21, 281). É importante observar, então, que a presença do gênero primário no gênero secundário implica uma representação, visto que o primeiro é um fenômeno da vida cotidiana, e o segundo, da vida de um determinado gênero secundário – romance, discurso científico, discurso religioso, etc. Essa distinção entre gêneros primários e gêneros secundários é de importância capital para a compreensão da distinção entre a heterogeneidade de gêneros do discurso da vida cotidiana e a representação desses gêneros no romance, concebido como um fenômeno da vida artístico-literária49 . Segundo Bakhtin, “a natureza do enunciado deve ser elucidada e definida por uma análise de ambos os gêneros. Só com esta condição a análise se adequaria à natureza complexa e sutil do enunciado e abrangeria seus aspectos essenciais” (21, 282). De acordo com Bakhtin, “todos os gêneros secundários (nas artes e nas ciências) incorporam diversamente os gêneros primários do discurso na construção do enunciado, assim como a relação existente entre estes (os quais se transformam, em maior ou menor grau, devido à ausência de uma alternância dos sujeitos falantes)” (21, 295). Os gêneros secundários simulam a comunicação verbal, ou seja, o diálogo, e os gêneros primários do discurso no que se refere a posição responsiva do enunciado. Ocorre, então, que “nos limites do enunciado, o locutor (ou escritor) formula perguntas, responde-as, opõe objeções que ele mesmo refuta, etc. (21, 295), ou seja, opera simulando as réplicas do diálogo. Dostoievski e A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais. 49
No seu primeiro escrito – “Arte e Responsabilidade” (1919), Bakhtin já dizia: “Quando um ser humano está na arte, ele não está na vida, e vice-versa” (1, 1) 105
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Não é só a distinção entre gêneros primários e gêneros secundários que vai nos ajudar a analisar as sutilezas do enunciado. É preciso, também, considerar o enunciado concreto como uma unidade da comunicação verbal, seja ele um enunciado cotidiano, científico ou artístico. Nesse sentido, podemos compreender a obra-enunciado realizada por um gênero secundário, também como um “elo na cadeia da comunicação verbal; do mesmo modo que a réplica do diálogo, ela se relaciona com as outras obras-enunciados: com aquelas a que ela responde e com aquelas que lhe respondem, e, ao mesmo tempo, nisso semelhante à réplica do diálogo, a obra está separada das outras pelo fronteira absoluta da alternância dos sujeitos falantes” (21, 298), ou seja, todas as particularidades constitutivas do enunciado concreto, que apresentamos na introdução desse capítulo, funcionam tanto para a análise do gênero primário como do gênero secundário, e permitem colocar no mesmo terreno comum tanto os enunciados concretos pertencentens a um ou outro gênero. Falta ainda apresentar uma última distinção, do ponto de vista do enunciado enquanto unidade da comunicação verbal: a oposição entre as formas da língua e os gêneros do discurso – formas do enunciado concreto. Bakhtin diz que Saussure ignora “o fato de que, além das formas da língua, há também as formas de combinação dessas formas da língua, ou seja, ignora os gêneros do discurso” (21, 304). O dado, o que compreende os recursos para a construção de um enunciado concreto – o criado – se compõem, então, das formas da língua e dos gêneros do discurso (formas do enunciado). Para Bakhtin, “os gêneros do discurso são, em comparação com as formas da língua, muito mais fáceis de combinar, mais ágeis, porém, para o indivíduo falante, não deixam de ter um valor normativo: eles lhe são dados, não é ele que os cria. É por isso que o enunciado, em sua singularidade, apesar de sua individualidade e de sua criatividade, não pode ser considerado como uma combinação absolutamente livre das formas da língua, do modo concebido, por exemplo, por Saussure (e, na sua estei106
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ra, por muitos lingüistas), que opõe o enunciado (a fala), como um ato puramente individual, ao sistema da língua como fenômeno puramente social e prescritivo para o indivíduo”50 (21, 304). Mas é importante ressaltar que para o Círculo, os gêneros do discurso e a língua materna são anteriores à gramática, compreendendo a gramática como fruto do pensamento abstrato. Nesse sentido, “a língua materna – a composição do seu léxico e sua estrutura gramatical – não a apreendemos nos dicionários e nas gramáticas, nós a adquirimos mediante enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos durante a comunicação verbal viva que se efetua com os indivíduos que nos rodeiam. Assimilamos as formas da língua somente nas formas assumidas pelo enunciado e juntamente com essas formas. As formas da língua e as formas típicas do enunciado, isto é, os gêneros do discurso, introduzemse em nossa experiência e em nossa consciência conjuntamente e sem que sua estreita correlação seja rompida” (21, 301-302). A dinâmica do funcionamento real do enunciado concreto ganha, na relação com o gênero do discurso, uma explicação mais particular. Se antes o enunciado era uma unidade da comunicação verbal, agora, ele vai ser um “elo na cadeia da comunicação verbal de uma dada esfera” (21, 316), ou seja, de um gênero do discurso determinado. Segundo Bakhtin, “as fronteiras desse enunciado determinam-se pela alternância dos sujeitos falantes. Os enunciados não são indiferentes uns aos outros, refletem-se mutuamente. São precisamente esses reflexos recíprocos que lhes determinam o caráter. O enunciado está repleto dos ecos e lembranças de outros enunciados, aos quais está vinculado no interior de uma esfera comum da comunicação verbal” (21, 316), ou seja, de um determinado gênero do discurso, seja ele primário ou secundário. Aquela reflexão que deixamos de fazer em Marxismo e Filosofia da Linguagem por problemas de tradução, ou seja as relações existentes entre o enunciado concreto, o diálogo e o 50
Essa distinção entre língua e fala já foi tratada no capítulo anterior, quando tratamos do “objetivismo abstrato”. 107
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gênero do discurso, ganham no ensaio “Os Gêneros do Discurso” uma articulação que permite recuperar a unidade do círculo. De um ponto de vista dialógico, o enunciado concreto é, antes de mais nada, uma resposta, ou seja, uma réplica a enunciados anteriores dentro do mesmo gênero: “refuta-os, confirma-os, completa-os, baseia-se neles, supõe-nos conhecidos e, de um modo ou de outro, conta com eles” (21, 316), ou seja, no acontecimento único e não-reiterável do enunciado concreto há uma interação orgânica entre o gênero do discurso ao qual ele pertence e a sua natureza dialógica, seja do ponto de vista do micro-diálogo – diálogo interior, do diálogo na presença de interlocutores, ou do grande diálogo, onde todo ato verbal humano pode ser colocado em relação dialógica. É no interior de um gênero do discurso determinado que o enunciado concreto ocupa uma posição definida em relação a um determinado tema. Desta forma, “o enunciado é repleto de reações-resposta a outros enunciados numa dada esfera da comunicação verbal” (21, 316), mas esse é o assunto que trataremos a seguir, e se refere às relações entre o enunciado de outrem e a expressividade expressa pelo estilo e pela entonação.
2. Tema O tratamento exaustivo do tema é, como vimos anteriormente, um dos fatores do acabamento específico de um enunciado concreto enquanto unidade da comunicação verbal. Mas como esse conceito foi tratado no percurso teórico do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev? Quais são as características que ele apresenta na relação com outros conceitos como gêneros do discurso, situação, significação, relações dialógicas? Como inserir o tema na engrenagem dinâmica que move o todo do enunciado concreto? Se o princípio monístico que caracteriza o pensamento do Círculo permanecer válido para esse conceito, encontraremos nele todas as características já mencionadas em relação ao enun108
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ciado e aos gêneros do discurso. Em primeiro lugar, vamos partir de uma definição de tema dada pelo Círculo, para depois percorrer o todo da obra, procurando outras relações que esse conceito possa ter adquirido nesse percurso. Na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929) há um capítulo destinado a esse conceito. O capítulo 7 – Tema e Significação na Língua – apresenta uma série de características com as quais podemos definir o tema. Para Bakhtin/Volochinov, o tema é: a) uma propriedade que pertence a cada enunciado como um todo; b) o sentido do enunciado completo; c) individual e não reiterável; d) expressão de uma situação histórica concreta que deu origem ao enunciado; e) determinado não só pelas formas lingüísticas que entram na composição (as palavras, as formas morfológicas ou sintáticas, os sons, as entoações), mas igualmente pelos elementos não verbais da situação; f) tão concreto como o instante histórico ao qual pertence o enunciado; g) irredutível à análise, ou seja, não pode ser segmentado; h) um sistema de signos dinâmico e complexo, que procura adaptar-se adequadamente às condições de um dado momento da evolução; e i) “uma reação da consciência em devir ao ser em devir”, ou seja, é uma resposta51 (10, 128-129). 51
O problema da tradução aparece mais uma vez aqui. Em Marxismo e Filosofia da Linguagem não existe a ocorrência enunciado, e sim enunciação completa, enunciação como um todo. Decidimos manter o conceito enunciado por dois motivos: 1) é o tema de nossa dissertação e 2) encontramos argumentos favoráveis nas citações dessa obra que 109
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Antes de traçar um paralelo entre as distinções enunciado/frase (ou oração) e as que são feitas nesse capítulo de Marxismo e Filosofia da Linguagem entre tema – o sentido único e não reiterável do enunciado concreto – e significação – o sentido das palavras que compõe o enunciado concreto na sua acepção lingüística – é importante voltar um pouco no tempo, e procurar outras relações com as quais o conceito tema é apresentado. Em “Discours dans la vie et dans la poésie”(1926) pode ser estabelecida uma relação dialógica entre tema – aquilo de que se fala na vida – e herói- aquele de que se fala na obra literária: “toda palavra realmente pronunciada […] é a expressão e o produto da interação social de três participantes: o locutor (ou autor), o ouvinte (ou leitor) e aquilo (ou isso) de que falamos (ou herói)” (5, 198). Esses três participantes – o locutor, o ouvinte, o tema – interagem organicamente. Sendo assim, os dois últimos – o ouvinte e o tema (herói), aos quais o locutor orienta seu enunciado concreto, “participam constantemente no acontecimento da criação, o qual não cessa de ser, um instante sequer, o acontecimento de uma comunicação viva entre eles” (5, 201). Bakhtin/Medvedev aponta um outro aspecto na definição de tema. Para eles, é importante distinguir entre uma concepção lingüística do tema, a significação da palavra e da frase, da que é defendida pelo Círculo, onde o tema é o sentido do todo do enunciado concreto. O tema não é composto dessas significações, ou se encontram em Mikhaïl Bakhtine. Le principe dialogique, como segue: “Appelons le sens de l’énoncé entier son thème. […] En fait, le thème de l’énoncé est individuel et non réitérable, comme l’est l’énoncé luimême. Il est l’expression de la situation historique concrète que a engendré l’énoncé… [..] Il s’ensuit que le thème de l’énoncé est déterminé non seulement par les formes linguistiques qui le composent – mots, forms morphologiques et syntaxiques, sons, intonation – mais aussi par les aspects extra-verbaux de la situation. Si nous omettons ces aspects de la situation, nous ne saurions comprendre l’énoncé, comme si nous en avions omis les mots les plus importants” (30, 73). 110
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev
seja, ele não é um elemento da língua. Mesmo sendo construído com a ajuda desses elementos, o tema transcende a língua, “é ao todo do enunciado como um ato discursivo que está direcionado o tema, não à palavra, à frase, ou ao período” (7, 132). Os teóricos russos consideram o tema como “um ato sócio-histórico preciso. Conseqüentemente, ele é inseparável da situação total do enunciado da mesma forma que é inseparável dos elementos lingüísticos” (7, 132), ou seja, em todo enunciado concreto existe uma parte verbal e uma parte extra-verbal, e o tema pertence a essa última, enquanto um dos fatores de acabamento do enunciado concreto. A relação entre o tema e o gênero do discurso é explicitada da seguinte maneira: “a unidade temática da obra e seu lugar real na vida desenvolvem-se conjuntamente, organicamente, na unidade do gênero” 52 (7, 133). Uma visão mais ampla dessa relação é dada na seguinte citação: “dentro do horizonte ideológico da cada época, há um centro de valores que é seguido por todos os caminhos e aspirações da atividade ideológica. Esse centro de valores torna-se o tema básico ou, mais precisamente o complexo de temas da literatura de uma dada época. Os temas dominantes estão conectados, também, como sabemos, com um repertório específico de gêneros”53 (7, 157). Voltando a Marxismo e Filosofia da Linguagem, encontramos essa mesma articulação: “a cada etapa do desenvolvimento da sociedade, encontram-se grupos de objetos particulares e limitados que se tornam objetos da atenção do corpo social e que, 52
Entenda-se obra aqui como uma obra-enunciado, ou seja, a obra como uma unidade da comunicação verbal de um gênero secundário, nesse caso, da literatura.
53
Essa relação do centro de valores com os temas de um gênero de discurso específico – a literatura (gênero secundário) pode também ser derivada para os gêneros primários (vida cotidiana), bem como para outros gêneros secundários. Ver os objetivos de Bakhtin explicitados anteriormente neste trabalho no que se refere à Arquitetônica Apreciativa e ao centro de valores. 111
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por causa disso, tomam um valor particular. Só este grupo de objetos dará origem a signos, tornar-se-á um elemento da comunicação por signos” (10, 44). O signo a que Bakhtin/Volochinov se refere aqui é o signo ideológico, ou seja, o signo povoado por valores sociais. Nesse sentido, os teóricos russos chamam “a realidade que dá lugar à formação de um signo de tema do signo” (10, 45), isto é, “cada signo constituído possui seu tema” (10, 45), ou melhor, cada enunciado concreto, cada manifestação verbal tem seu tema específico. O tema é, então, um tema ideológico, o qual possui sempre um índice de valor social de natureza interindividual. O signo ideológico, o tema, o valor se constroem entre os indivíduos, ou seja, eles são de natureza sociológica, ideológica e dialógica. Para Bakhtin/Volochinov, “o tema e a forma do signo ideológico estão indissoluvelmente ligados, e não podem, por certo, diferenciar-se a não ser abstratamente” (10, 45). Nesse sentido, as relações entre forma – gêneros do discurso – e conteúdo – tema – adquirem vida sob as mesmas forças sociais e condições econômicas. De acordo com os teóricos russos, “são as mesmas condições econômicas que associam um novo elemento da realidade ao horizonte social, que o tornam socialmente pertinente, e são as mesmas forças que criam as formas das comunicações ideológicas (cognitiva, artística, religiosa, etc.), as quais determinam, por sua vez, as formas da expressão semiótica”54 (10, 46). Essa explicação extra-verbal da natureza do tema precisa ser compreendida também na sua relação com o verbal, ou seja, com a palavra, visto que o enunciado concreto, como já falamos, se compõe de uma parte verbal – as palavras – e de uma 54
Essas forças sociais e a organização econômica da sociedade são fundamentais para a compreensão ativa de qualquer conceito do Círculo. Elas aparecem no todo da obra com as seguintes designações: horizonte social, apreciação social, expressividade e outras. 112
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parte extra-verbal – a situação. Bakthin/Volochinov formula, então, a inter-relação entre o tema – extra-verbal – e a significação – verbal – da seguinte maneira: “o tema constitui o estágio superior real da capacidade lingüística de significar. De fato, apenas o tema significa de maneira determinada. A significação é o estágio inferior da capacidade de significar. A significação não quer dizer nada em si mesma, ela é apenas um potencial, uma possibilidade de significar no interior de um tema concreto” (10, 131).
Os teóricos russos distinguem aqui a relação entre a significação contextual de um enunciado concreto – o tema – e a significação da palavra, frase, oração no sistema da língua, ou seja, a investigação abstrata dos elementos lingüísticos55 . A natureza semântica e a natureza lingüística, ou seja, o extra-verbal e o verbal que compõem o enunciado concreto se completam na seguinte dinâmica: “a significação, elemento abstrato igual a si mesmo, é absorvida pelo tema, e dilacerada por suas contradições vivas, para retornar enfim sob a forma de uma nova significação com uma estabilidade e uma identidade igualmente provisórias” (10, 136). Essa relação do tema com o enunciado concreto, único, e não reiterável, ajuda a compreender o discurso de outrem, fenômeno que é estudado amplamente pelo Círculo. A relação entre o discurso do autor e o discurso citado envolve, também, uma abordagem do tema. O discurso citado é um tema do nosso discurso. Enquanto um enunciado citado, ele apresenta o seu próprio tema, e assim integra o contexto do discurso do autor – o nosso discurso: “o tema autônomo então torna-se o tema de um tema” (10, 144). O estudo do fenômeno do discurso citado exige que se es55
Pode ser feita um analogia entre essa inter-relação entre tema e significação e a que foi feita no capítulo anterior entre enunciado e frase (e oração), visto que o tema corresponde a uma forma do enunciado e a significação à forma da língua. 113
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tabeleça uma relação dialógica entre o tema do enunciado do autor e o tema do enunciado citado. Segundo Bakhtin, “o significado lingüístico de uma enunciação dada é conhecido sobre o fundo de uma língua e o seu sentido atual, sobre o fundo de outras enunciações concretas do mesmo tema, sobre o fundo de opiniões contraditórias, de pontos de vista e de apreciações…”56 (17, 90). No ensaio “O discurso no romance”, Bakhtin dedica um capítulo à pessoa que fala no romance, buscando a relação entre essa pessoa – representada no gênero secundário (romance), e a pessoa que fala na vida cotidiana – gênero primário. Nesse último, ele mostra como nossa fala está cheia de palavras de outrem, ou seja, o tema de nossos discursos é o tema dos discursos de outrem: “fala-se no cotidiano sobretudo a respeito daquilo que os outros dizem – transmitem-se, evocam-se, ponderam-se, ou julgam-se as palavras dos outros, as opiniões, as declarações, as informações; indigna-se ou concorda-se com elas, discorda-se delas, refere-se a elas, etc. Se prestarmos atenção aos trechos de um diálogo tomado ao vivo na rua, na multidão, nas filas, no hall, etc., ouviremos com que freqüência se repetem as palavras “diz”, “dizem”, “disse”, e freqüentemente escutando-se uma conversa rápida de pessoas na multidão, ouve-se como que tudo se juntar num único “ele diz”, “você diz”, “eu digo… E como é importante o “todos dizem” e o “ele disse” para a opinião pública, a fofoca, o mexerico, a calúnia, etc.” (17, 139). É importante ressaltar quantas características o tema já adquiriu nesse percurso. O tema é ideológico, históricofenomenológico, sociológico e dialógico, ou seja, preenche o princípio monístico que rege todos os conceitos formulados pelo Círculo. A engrenagem dinâmica que move o enunciado concreto move também todos os seus elementos constitutivos. 56
Na edição francesa aparece enunciado e não enunciação: “Le sens linguistique d’un énoncé donné se conçoit sur le fond du langage, son sens réel, sur le fond d’autres énoncés concrets sur le même thème, d’autres opinions, points de vue et appréciations en langages divers…” (18, 104). 114
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Assim sendo, o tratamento exaustivo do tema do enunciado é, em conjunto com o gênero do discurso e o intuito discursivo do locutor, um dos três fatores que em interação orgânica dão acabamento específico ao enunciado concreto e proporcionam sua capacidade de responder a enunciados anteriores. Para Bakhtin, o objeto do discurso “é inesgotável, porém, quando se torna tema de um enunciado (de uma obra científica, por exemplo), recebe um acabamento relativo, em condições determinadas, em função de uma dada abordagem do problema, do material, dos objetivos por atingir, ou seja, desde o início ele estará dentro dos limites de um intuito definido pelo autor” (21, 300). Nesse sentido, o objeto do discurso – o tema – de um enunciado concreto “não é objeto do discurso pela primeira vez neste enunciado, e este locutor não é o primeiro a falar dele” (21, 319). Segundo o teórico russo, “o locutor não é um Adão, e por isso o objeto de seu discurso se torna, inevitavelmente, o ponto onde se encontram as opiniões de interlocutores imediatos (numa conversa ou numa discussão acerca de qualquer acontecimento da vida cotidiana) ou então as visões de mundo, as tendências, as teorias, etc. (na esfera da comunicação cultural)” (21, 319-320). O tema, como um dos fatores de acabamento do enunciado concreto, exige que o percebamos dentro do mesmo princípio dialógico que orienta esse enunciado, ou seja, para uma compreensão ativa do tema não podemos nos esquecer que “o enunciado é um elo na cadeia da comunicação verbal e não pode ser separado dos elos anteriores que o determinam, por fora e por dentro, e provocam nele reações-respostas imediatas e uma ressonância dialógica”57 (21, 320). 57
No ensaio “O problema do Texto”, Bakhtin fornece uma outra dimensão do princípio dialógico que orienta o tema, no interior da grande temporalidade: “dois enunciados distintos confrontados um com o outro, ignorando tudo um do outro, apenas ao tratar superficialmente um único e mesmo tema entabulam, inevitavelmente, uma relação dialógica entre si. Ficam em contato, no território do tema comum, de um pensamento comum” (22, 342). 115
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Para concluir nossas observações acerca do tema – o sentido do enunciado concreto – vamos tomar tema e sentido como sinônimos e apresentar mais uma peça da engrenagem dinâmica que move as formulações teóricas do Círculo: “O sentido é potencialmente infinito, mas só se atualiza no contato com outro sentido (o sentido do outro), mesmo que seja apenas no contato com uma pergunta no discurso interior do compreendente. Ele deve sempre entrar em contato com outro sentido para revelar os novos momentos de sua infinidade (assim como a palavra revela suas significações somente num contexto). O sentido não se atualiza sozinho, procede de dois sentidos que se encontram e entram em contato. Não há um “sentido em si”. O sentido existe só para outro sentido, com o qual existe conjuntamente. O sentido não existe sozinho (solitário). Por isso não pode haver um sentido primeiro ou último, pois o sentido se situa sempre entre os sentidos, elo na cadeia do sentido que é a única suscetível, em seu todo, de ser uma realidade. Na vida histórica, essa cadeia cresce infinitamente; é por essa razão que cada um dos elos se renova sempre; a bem dizer, renasce outra vez” (25, 386).
3. Expressividade Para compreender o enunciado concreto na cadeia da comunicação verbal é necessário perseguir o conceito que organiza essa comunicação, e esse conceito aparece com vários nomes no todo da obra do Círculo, preenchendo as concepções ética, histórico-fenomenológica, sociológica, ideológica e dialógica por ele desenvolvida: avaliação social, apreciação social, orientação social, horizonte social, expressividade, enfim, uma série de termos para recobrir um elemento comum – a noção de valor que preenche a relação do autor com o seu enunciado concreto. Nesse sentido, decidimos levantar alguns aspectos do percurso do conceito apreciação social no interior do todo da obra do Círculo, reservando para última parte as observações em torno 116
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do conceito expressividade, desenvolvida por Bakhtin no ensaio “Os gêneros do discurso” (1952-1953), o qual representa, para nós, a articulação do conceito de valor no interior do enunciado concreto em seu mais alto grau. Os conceitos que articulam a Teoria do Enunciado Concreto acabam, como sabemos, se situando, por um lado, sempre na fronteira entre o verbal e o extra-verbal, e por conseqüência, há sempre uma interação orgânica entre eles. É o que acontece, por exemplo, com o conceito apreciação social. A apreciação social, o valor de uma determinada relação social numa comunidade discursiva, define: n
a escolha do tema, palavras, forma e sua combinação individual nos limites de um enunciado dado;
n
a escolha do conteúdo, a seleção da forma e a conexão entre forma e conteúdo.
Segundo Bakhtin/Medvedev, “a apreciação social” unifica o minuto da época e as novidades do dia com a intenção histórica. Isso determina a fisionomia histórica de todo ato e de todo enunciado, sua fisionomia histórica individual, de classe, de época” (7, 121). Em relação a esse mesmo conceito, Bakhtin/Medvedev diz que se trata de uma instância intermediária entre a língua enquanto sistema abstrato de possibilidades – o ponto de vista das formas lingüísticas – e a língua enquanto realidade concreta – o ponto de vista do sentido: “apenas para o enunciado dado, em suas condições históricas particulares é que a unidade de sentido, signo e realidade é realizada através da apreciação social. Se tomarmos o enunciado concreto fora de sua criação histórica, em abstração, estaremos longe do que estamos, precisamente, procurando” (7, 125-126). A apreciação social compõe, então, o eixo ético com o qual opera qualquer enunciado concreto. Por tudo isso, “é impossível compreender um enunciado concreto sem nos acostumarmos aos seus valores, sem com117
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preender a orientação de suas apreciações no meio ideológico” (7, 121). Ou como aparece em Marxismo e Filosofia da Linguagem, “toda enunciação [enunciado] compreende antes de mais nada uma orientação apreciativa” (10, 135). Os conceitos apreciação social ou orientação apreciativa vão estabelecer uma relação dialógica de concordância com o conceito expressividade, desenvolvido por Bakhtin mais extensamente, como já falamos, no ensaio “Os gêneros do discurso”. De qualquer maneira, não podemos esquecer que o conceito expressividade já aparece no ensaio “O discurso no romance” (1934-1935), na discussão da palavra bivocal, ou seja, da relação entre o enunciado do autor e o enunciado de outrem: “no campo de quase todo enunciado ocorre uma interação tensa e um conflito entre a sua palavra e a de outrem, um processo de delimitação ou de esclarecimento dialógico mútuo. Desta forma o enunciado é um organismo muito mais complexo e dinâmico do que parece, se não se considerar apenas sua orientação objetal e sua expressividade unívoca direta”58 (17, 153). É esta natureza complexa e dinâmica do enunciado concreto e sua relação com a expressividade que passará a ser, agora, nosso objeto de reflexão. Antes de nos determos sobre o conceito expressividade, vamos recapitular as três particularidades constitutivas do enunciado concreto. Em primeiro lugar, o enunciado concreto é um elo na cadeia de comunicação verbal, portanto, ele se constitui pela alternância dos sujeitos falantes. Em segundo, o enunciado concreto se constitui por um determinado acabamento, cujo interior se constitui, por sua vez, de três fatores ligados indissoluvelmente: um gênero do discurso determinado, um tema – tratado exaustivamente no processo da comunicação verbal, e o intui58
Bakhtin considera que “na composição de quase todo enunciado do homem social – desde a curta réplica do diálogo familiar até as grandes obras verbal-ideológicas (literárias, científicas e outras) existe, numa forma aberta ou velada, uma parte considerável de palavras significativas de outrem, transmitidas por um ou outro processo” (17, 153). 118
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to do locutor – a sua expressividade individual para com esse enunciado. Finalmente, o enunciado concreto se constitui na relação com o seu autor e com os seus outros parceiros – destinatários – da comunicação verbal. Todas essas particularidades constitutivas do enunciado concreto se caracterizam, no processo da comunicação verbal, por uma expressividade determinada. Mas o que seria essa expressividade? Qual é a sua relação com essas particularidades, ou seja, com o gênero do discurso, com o tema, com a entonação e com o estilo, assim como com o autor e com o enunciado de outrem? E qual é a diferença entre a expressividade do enunciado concreto e a expressividade da oração? Antes de mais nada, vamos responder a essa última questão. No ensaio “Os gêneros do Discurso” (1952-1953), Bakhtin faz as seguintes perguntas: “Pode-se considerar que o princípio expressivo do discurso é um fenômeno da língua enquanto sistema? Pode-se falar de aspectos expressivos quando se trata de unidades da língua, ou seja, de palavras e de orações?” (21, 308). Segundo o teórico russo, essas perguntas só podem ter uma resposta negativa: “a língua enquanto sistema dispõe, claro, de um rico arsenal de recursos lingüísticos – lexicais, morfológicos e sintáticos – para expressar a posição emotivo-valorativa do locutor, mas todos esses recursos na qualidade de recursos lingüísticos, são absolutamente neutros no plano dos valores da realidade” (21, 308), ou seja, no acontecimento de um enunciado concreto não há espaço para neutralidade. De qualquer maneira, não podemos esquecer que a expressividade do enunciado concreto, único, e não reiterável, é construída com a ajuda do material verbal, isto é, dos recursos lingüísticos. E com isso concorda Bakhtin: “apenas o contato entre a significação lingüística e a realidade concreta, apenas o contato entre a língua e a realidade – que se dá no enunciado – provoca o lampejo da expressividade. Esta não está no sistema da língua e tampouco na realidade objetiva que existiria fora de nós” (21, 311). 119
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De acordo com o teórico russo, “o sistema da língua possui as formas necessárias (isto é, os recursos lingüísticos) para manifestar a expressividade, mas na própria língua as unidades significantes (palavras e orações) carecem, por sua natureza, de expressividade, são neutras. É isso que possibilita que elas sirvam de modo igualmente satisfatório a todos os valores, os mais variados e opostos e a todas as instâncias do juízo do valor”59 (21, 315). A expressividade deve ser relacionada, então, com o acontecimento único de um enunciado concreto, ou seja, com toda a reflexão em torno da realidade concreta da linguagem desencadeada pelo Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev. É em torno dessa reflexão sobre o particular, e não das reflexões do objetivismo abstrato e do subjetivismo idealista, que podemos compreender de maneira ativa a análise do acabamento específico que um enunciado concreto, realizado, adquire na comunicação verbal. É no interior da noção de acabamento específico do enunciado concreto que vamos tentar perceber a natureza da relação existente entre os três fatores desse acabamento, os quais estão em interação orgânica – o tema, o gênero do discurso e a expressividade, bem como a relação da expressividade com o enunciado de outrem. Para Bakhtin, a expressividade é, num primeiro momento, a relação valorativa do locutor para com o tema – o objeto do discurso, ou seja, ela corresponde ao intuito, ao querer-dizer do locutor no ato de criação do enunciado concreto. Como já vimos anteriormente, a unidade temática de um enunciado concreto se 59
Essa relação de neutralidade da palavra já foi desenvolvida anteriormente por Bakhtin/Volochinov em Marxismo e Filosofia da Linguagem, quando da distinção entre o signo ideológico – aquele que tem expressividade – e a palavra. Para os teóricos russos, o signo “é criado por uma função ideológica precisa e permanece inseparável dela. A palavra, ao contrário, é neutra em relação a qualquer função ideológica específica. Pode preencher qualquer espécie de função ideológica: estética, científica, moral, religiosa” (10, 37). 120
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desenvolve organicamente na unidade do gênero. Nesse sentido, segundo o teórico russo, “o gênero do discurso não é uma forma da língua, mas uma forma do enunciado que, como tal, recebe do gênero uma expressividade determinada, típica, própria do gênero dado” (21, 312). No interior da comunicação verbal, o gênero é algo que é dado. Portanto, “os gêneros do discurso correspondem a circunstâncias e temas típicos da comunicação verbal e, por conseguinte, a certos pontos de contato típicos entre as significações da palavra e a realidade concreta […] Essa expressividade típica do gênero, claro, não pertence à palavra como unidade da língua e não entra na composição de sua significação, mas apenas reflete a relação que a palavra e sua significação mantêm com o gênero, isto é, com os enunciados típicos” (21, 312). Assim sendo, podemos compreender porque na engrenagem dinâmica do enunciado concreto os três fatores do seu acabamento específico – a expressividade, o tema e o gênero do discurso – estão indissoluvelmente ligados. Mas, segundo Bakhtin, “a expressividade de um enunciado nunca pode ser compreendida e explicada até o fim se se levar em conta somente o teor do objeto do sentido” (21, 317), isto é, se permanecermos apenas no interior da intenção do locutor em relação ao tema – dois dos fatores de acabamento, ou mesmo na interação orgânica existente entre o tema, o gênero do discurso e esse intuito discursivo do locutor. É preciso mais, é necessário, dentro da engrenagem dinâmica que move o enunciado concreto, considerá-la como uma resposta: “a expressividade de um enunciado é sempre, em menor ou maior grau, uma resposta, em outras palavras: manifesta não só sua própria relação com o objeto do enunciado, mas também a relação do locutor com os enunciados do outro” (21, 317). Esse aspecto da expressividade corresponde a sua relação com a terceira particularidade constitutiva do enunciado concreto: a relação desse enunciado com o seu autor e com aqueles a que ele responde, os destinatários. 121
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Para o teórico russo, “a experiência verbal individual do homem toma forma e evolui sob o efeito da interação contínua e permanente com os enunciados individuais do outro” (21, 314). Nesse sentido, “as palavras dos outros introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modificamos” (21, 314). No interior da comunicação verbal não estamos mais no interior dos recursos lingüísticos sozinhos, e sim, na cadeia de enunciados concretos que a compõem em evolução permanente. É por isso que o enunciado de outrem tem tanta importância nas reflexões do Círculo, e também que um enunciado concreto é uma síntese dialética entre as minhas palavras e as palavras dos outros. Segundo Bakhtin, “a expressividade da palavra isolada não é pois propriedade da própria palavra, enquanto unidade da língua, e não decorre diretamente de sua significação. Ela se prende quer à expressividade padrão de um gênero, quer à expressividade individual do outro que converte a palavra numa espécie de representante do enunciado do outro em seu todo – um todo por ser instância determinada de um juízo de valor” (21, 314). Se considerarmos que todo enunciado concreto, enquanto uma expressão típica, um gênero do discurso determinado, se constrói no interior dos enunciados dos outros60 e responde a esses enunciados61 , estaremos mais próximos de uma compreensão ativa das formulações desenvolvidas por Bakhtin, Volochinov e Medvedev em torno da cadeia da comunicação verbal, e dos enunciados concretos que são as unidades dessa comunicação verbal. 60
A experiência verbal do homem pode ser definida, segundo Bakhtin, “como um processo de assimilação, mais ou menos criativo, das palavras do outro (e não das palavras da língua)” (21, 314).
61
Para Bakhtin, “a resposta transparecerá nas tonalidades do sentido, da expressividade, do estilo, nos mais ínfimos matizes da composição” (21, 317). 122
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Resta-nos ainda tratar da relação da expressividade com o estilo e a entonação, o que realizaremos a seguir nas duas últimas partes deste capítulo. Por ora, deixamos mais uma observação de Bakhtin acerca da interação orgânica entre as particularidades constitutivas do enunciado concreto: “o enunciado, seu estilo e sua composição são determinados pelo objeto do sentido e pela expressividade, ou seja, pela relação valorativa que o locutor estabelece com o enunciado” (21, 315).
4. Estilos O que nos interessa discutir neste tópico são as características que o conceito estilo adquire no todo da obra do Círculo, no interior de uma Teoria do Enunciado Concreto, e sua relação com os outros conceitos que articulam essa teoria como gênero do discurso, tema, expressividade e entonação, bem como a relação do estilo com o fenômeno do discurso de outrem. Com esse intuito, vamos buscar no todo da obra do Circulo uma definição de estilo. Em 1926, no ensaio “Le discours dans la vie et dans la poésie”, Volochinov nos dá a seguinte definição de estilo: “ ‘O estilo é o homem’; mas podemos dizer que o estilo é, pelo menos, dois homens, ou mais exatamente, um homem e um grupo social representado pelo ouvinte que participa permanentemente no discurso interior e exterior do homem e encarna a autoridade que o grupo social exerce sobre ele” (5, 212), ou seja, o estilo, como todos os outros conceitos do Círculo se define pela interação dialógica entre duas ou mais pessoas. O estilo é, da mesma maneira que o enunciado concreto, uma construção dialógica, sociológica e ideológica, ou seja, sempre que nos referimos ao enunciado concreto e seus elementos estamos no domínio do criado. No interior de um gênero do discurso secundário – a obra literária –, Volochinov define dois aspectos da relação entre o autor e o herói que definem o estilo: 123
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a) o valor hierárquico do herói; b) seu grau de proximidade em relação ao autor. (5, 208) Transportando esses aspectos para o gênero primário, diríamos que o estilo é determinado pelo valor hierárquico do interlocutor, e o grau de proximidade que existe entre o autor do enunciado e esse interlocutor no que se refere a um tema determinado62 . Nesse sentido, podemos aproveitar a mesma explicação que Bakhtin dá para o grau de proximidade entre o autor e o herói: “esse aspecto tem, em todas as línguas, uma expressão gramatical imediata: o emprego da primeira, da segunda ou da terceira pessoa, e a modificação da estrutura da frase em função de seu sujeito (“eu”, “tu” ou “ele”)” (5, 207). Para o teórico russo, “a estrutura da linguagem reflete aqui a relação recíproca dos locutores” (5, 207). Para Bakhtin/Volochinov, “a individualização estilística da enunciação [enunciado] […] constitui justamente este reflexo da inter-relação social, em cujo contexto se constrói uma determinada enunciação [enunciado]” (10, 113). É “a situação e os participantes mais imediatos que determinam a forma e o estilo ocasionais da enunciação [enunciado]” (10, 114). Os teóricos russos consideram que “a elaboração estilística da enunciação [enunciado] é de natureza sociológica e a própria cadeia verbal, à qual se reduz em última análise a realidade da língua, é social” (10, 122). Essa abordagem sociológica do estilo permeia a tipologia do enunciado citado, desenvolvida pelo Círculo na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem. Essa tipologia do estilo é desenvolvida no interior de um gênero secundário: o romance. Pela orientação dinâmica da inter-relação verbal entre o enunciado do autor e o enunciado citado, ou o discurso de outrem, Bakhtin/Volochinov classifica os estilos em: linear, pictórico e monumental. 62
Essas características vão ser utilizadas posteriormente para a distinção entre estilo familiar, estilo íntimo e estilo objetivo. 124
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No estilo linear, as fronteiras entre o discurso do autor e o discurso citado são nítidas e invioláveis: “a tendência principal do estilo linear é criar contornos exteriores nítidos à volta do discurso citado, correspondendo a uma fraqueza do fator individual interno” (10, 150). Já no estilo pictórico acontece o oposto. Nesse tipo, as particularidades lingüísticas são apreendidas e ocorre uma coloração do enunciado: a tendência do estilo pictórico “é atenuar os contornos exteriores nítidos da palavra de outrem” (10, 150). E no último, o estilo monumental, que compreende o discurso direto, ocorre a transposição primitiva e inerte do enunciado de outrem. O fenômeno do enunciado de outrem é amplamente investigado pelo Círculo porque, como vimos, no interior da comunicação verbal ocorre uma interação tensa entre o enunciado do autor – o meu enunciado – e o enunciado dos outros, aqueles enunciados que formaram e formam a minha consciência. O material que constitui o enunciado concreto – meu ou dos outros – é a palavra viva: “a palavra não é um objeto, mas um meio constantemente ativo, constantemente mutável de comunicação dialógica. Ela nunca basta a uma consciência, a uma voz. Sua vida está na passagem de boca em boca, de um contexto para outro, de um grupo social para outro, de uma geração para outra. Nesse processo ela não perde o seu caminho nem pode libertar-se até o fim do poder daqueles contextos concretos que integrou” (13, 176)63 . É essa palavra viva que permite ao Círculo desenvolver a Metalingüística e encarar o estilo dentro desse ponto de vista. De acordo com Bakhtin, “a estilística deve basear-se não apenas e nem tanto na lingüística quanto na metalingüística, que estuda a palavra não no sistema da língua e nem num “texto” tirado da comunicação dialógica, mas precisamente no campo propriamente dito da comunicação dialógica, ou seja, no campo da vida autên63
Bakhtin considera que “o exame do discurso do ponto de vista da sua relação com o discurso do outro é de excepcional importância para a compreensão da prosa artística” (13, 173). 125
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tica da palavra” (13, 176), isto é, na cadeia da comunicação verbal e no interior de sua unidade: o enunciado concreto. No ensaio “Os gêneros do discurso”, Bakhtin fornece uma visão completa e objetiva de todas as inter-relações do estilo com os elementos do enunciado concreto, assim como uma reflexão em torno desse conceito enquanto um fato gramatical – fenômeno da língua – e um fato estilístico – fenômeno do enunciado concreto. Em primeiro lugar, vamos verificar a relação entre o estilo e o gênero do discurso. Segundo Bakhtin, “o estilo está indissoluvelmente ligado ao enunciado e a formas típicas de enunciado, isto é, aos gêneros do discurso” (21, 283). Para o teórico russo, “a definição de um estilo em geral e de um estilo individual em particular requer um estudo aprofundado da natureza do enunciado e da diversidade dos gêneros do discurso” (21, 283), pois cada esfera da atividade e da comunicação humana “conhece seus gêneros, apropriados à sua especificidade, aos quais correspondem determinados estilos” (21, 284). Nesse sentido, vamos apontar algumas características da relação entre o estilo e as particularidades constitutivas do enunciado concreto: a) o estilo é indissociavelmente vinculado a unidades temáticas determinadas e, o que é particularmente importante, a unidades composicionais: tipo de estruturação e de conclusão de um todo, tipo de relação entre o locutor e os outros parceiros da comunicação verbal (21, 284); b) o estilo entra como elemento na unidade de gênero de um enunciado (21, 284); c) o enunciado, seu estilo e sua composição são determinados pelo objeto do sentido e pela expressividade, ou seja, pela relação valorativa que o locutor estabelece com o enunciado (21, 315). 126
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev
d) uma análise estilística que queira englobar todos os aspectos do estilo deve obrigatoriamente analisar o todo do enunciado e, obrigatoriamente, analisá-la dentro da cadeia da comunicação verbal de que o enunciado é apenas um elo inalienável (21, 326). Depois de inserir o estilo na engrenagem dinâmica do enunciado concreto, resta-nos complementá-lo com a tipologia do estilo engendrada por Bakhtin, a qual distingue entre estilo familiar, estilo íntimo e estilo objetivo-neutro. Como, para o teórico russo, a análise estilística deve ser feita no interior da comunicação verbal, é necessário perceber, então, como as relações de comunicação social vão se integrar a esse processo. Segundo Bakhtin, “a estrutura da sociedade em classes introduz nos gêneros do discurso e nos estilos uma extraordinária diferenciação que se opera de acordo com o título, a posição, a categoria, a importância conferida pelo fortuna privada ou pela notoriedade pública, pela idade do destinatário e, de modo correlato, de acordo com a situação do próprio locutor (ou escritor)” (21, 322). A partir da interação orgânica entre o gênero do discurso e o estilo, e do grau de proximidade entre o destinatário e o locutor, podemos compreender a tipologia de estilos – íntimo, familiar, objetivo – definida na esfera da vida cotidiana ou da vida oficial. Os dois primeiros estilos – íntimo e familiar – em interação orgânica com seus respectivos gêneros – se caracterizam pelo caráter pessoal, isto é, por se realizarem “fora dos âmbitos da hierarquia e das convenções sociais (em maior ou menor grau), “sem a graduação”, poderíamos dizer” (21, 323). No primeiro há uma tendência para a fusão entre o locutor e o destinatário, ou seja, “os gêneros e os estilos íntimos repousam numa máxima proximidade interior entre o locutor e o destinatário da fala”64 64
Segundo Bakhtin, “o discurso íntimo é empregnado de uma confiança profunda no destinatário, na sua simpatia, na sensibilidade e na boa 127
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(21, 323). Já no segundo existe uma tendência para a expressão de uma atitude pessoal, informal, para com a realidade, isto é, ele é usado para “destronar os estilos e as visões de mundo que gozam de um estatuto tradicional e oficial, que se necrozam e ficam convencionais” (21, 323). O terceiro tipo de estilo – objetivo ou neutro – representa o estilo que é compreendido pela estilística tradicional. A compreensão do estilo, nesse perspectiva, caracteriza-se por subestimar a relação do locutor com o destinatário, baseando suas análises apenas no tema do enunciado e na relação do locutor para com esse tema, ou seja, rompendo a interação orgânica entre o autor e o destinatário. Para Bakhtin, “quando se subestima a relação do locutor com o outro e com seus enunciados (existentes ou presumidos), não se pode compreender nem o gênero nem o estilo de um discurso” (21, 324). De qualquer forma, esse estilo não deixa de levar em conta uma certa idéia de destinatário. A diferença é que, ao contrário do estilo íntimo, a expressividade no estilo objetivo é reduzida ao extremo, ou seja “o estilo objetivoneutro pressupõe uma espécie de identificação entre o destinatário e o locutor, uma comunhão de pontos de vista, o que ocorre à custa de uma recusa de expressividade”65 (21, 324). A complementaridade entre o verbal e o não-verbal, as formas da língua e as formas do enunciado concreto é uma das características principais das formulações teóricas do Círculo. Nesse sentido vamos concluir a nossa abordagem do conceito estilo com uma citação de Bakhtin que reafirma esse caráter complementar: “Pode-se dizer que a gramática e a estilística se juntam e se separam em qualquer fato lingüístico concreto que, encarado do ponto de vista da língua, é um fato gramatical, encarado do ponto de vontade de sua compreensão responsiva. Nesse clima de profunda confiança, o locutor desvela suas profundezas interiores” (21, 323). 65
O discurso científico tem a pretensão de ser uma expressão desse estilo objetivo-neutro. 128
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vista do enunciado individual, é um fato estilístico. Mesmo a seleção que o locutor efetua de uma forma gramatical já é um ato estilístico. Esses dois pontos de vista sobre um único e mesmo fenômeno concreto da língua não devem porém excluir-se mutuamente, substituir-se mecanicamente um ao outro, devem combinar-se organicamente (com a manutenção metodológica de sua diferença) sobre a base da unidade real do fato lingüístico. Apenas uma compreensão profunda da natureza do enunciado e das particularidades dos gêneros do discurso pode permitir a solução desse complexo problema de metodologia” (21, 287).
5. Entonações Onde há gênero há estilo, onde há estilo, há entonação, onde há entonação há gênero. É esse o motivo que leva o pensamento do Círculo a propor uma Sociologia do Gênero, uma Estilística Sociológica, e também a perceber a entonação na sua interação orgânica com os outros dois – gênero e estilo – em sua orientação social: “a entonação é social par excellence” (5, 194). No todo da obra do Círculo, esse conceito aparece com as seguintes acepções: entonação, entoação, tom, acento, tonalidade, sempre em correlação com o conceito de valor – horizonte social, apreciação social, expressividade –, que anima a Arquitetônica apreciativa da teoria. A entonação é a forma sonora da expressão axiológica, ou seja, a forma de representação do elemento ético no enunciado concreto. Num primeiro momento, no ensaio “Sobre a Filosofia do Ato” (1919-1921), a definição de entonação está relacionada com a palavra viva expressa num acontecimento único da existência, portanto, numa perspectiva fenomenológica: “o tom emotivo-volitivo circunfundi o todo de conteúdo/sentido de um pensamento no ato realmente realizado e o relaciona à ocorrência única do ser como acontecimento” (2, 34) . Portanto, a entonação ocupa, no todo da palavra, o aspecto emotivo-volitivo, em interação orgânica com o aspecto de conteúdo/sentido (a palavra como conceito) e o aspecto palpável-expressivo (a palavra como imagem). 129
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A entonação é um elemento constituinte da palavra e expressa a atitude de valor do indivíduo em direção ao objeto66 , o que é desejável ou indesejável nele: “por aspecto entonacional da palavra compreendemos a sua capacidade de exprimir toda a multiplicidade das relações axiológicas do indivíduo falante como conteúdo do enunciado (no plano psicológico a multiplicidade das ações emocionais e volitivas do falante), além disso, mesmo que este aspecto fosse expresso numa entonação real durante a execução, ou fosse experimentado simplesmente como uma possibilidade, ele teria igualmente uma dimensão estética” (4, 64). Volochinov acrescenta a essa perspectiva estética, uma perspectiva sociológica, discutindo a essência social da entonação, a qual se situa na fronteira entre o verbal e o não-verbal, conduzindo o discurso para fora dos limites verbais. Como um dos elementos do enunciado concreto, a entonação têm as mesmas características que orientam o todo desse enunciado: a) a natureza social; b) a orientação ao ouvinte (o segundo participante); c) a orientação ao objeto do enunciado (o tema). Para Volochinov, “a entonação se encontra na fronteira da vida e da parte verbal do enunciado, ela transmite a energia da situação vivida no discurso, ela confere a tudo o que é lingüisticamente estável um movimento histórico vivo e um caráter de singularidade” (5, 199). Nesse sentido, a entonação apresenta características histórico-fenomenológica e sociológica. Bakhtin/Medvedev considera a entonação – condicionada pelo sentido único (tema) e não-repetível do enunciado – como entonação expressiva, a qual ele distingue da entonação sintática ou entonação em geral: “A entonação expressiva, distinta da entonação sintática que é mais estável, colori todas as palavras do enunciado e reflete sua singularidade histórica […] É claro que a 66
Como já falamos essa é uma das particularidades constitutivas do enunciado concreto. 130
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entonação expressiva não é obrigatória, mas, quando ela ocorre, é a mais distinta expressão da apreciação social” (7, 122). Essa tipologia da entonação irá refletir na tipologia estilística – estilo linear, estilo pictórico, estilo monumental – apresentada pelo Círculo. No livro Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929), Bakhtin/ Volochinov explica a relação entre a entonação expressiva e a apreciação social – expressividade – da seguinte maneira: “o nível mais óbvio, que é ao mesmo tempo o mais superficial da apreciação social contida na palavra, é transmitido através da entoação expressiva” (10, 132). Para justificar essa afirmação, ele nos dá um exemplo retirado do Diário de um Escritor, de Dostoiévski: “Certa vez, num domingo, já perto da noite, eu tive ocasião de caminhar ao lado de um grupo de seis operários embriagados, e subitamente me dei conta de que é possível exprimir qualquer pensamento, qualquer sensação, e mesmo raciocínios profundos, através de um só e único substantivo, por mais simples que seja [Dostoiévski está pensando aqui numa palavrinha censurada de largo uso]. Eis o que aconteceu. Primeiro, um desses homens pronuncia com clareza e energia esse substantivo para exprimir, a respeito de alguma coisa que tinha sido dita antes, a sua contestação mais desdenhosa. Um outro lhe responde repetindo o mesmo substantivo, mas com um tom e uma significação completamente diferentes, para contrariar a negação do primeiro. O terceiro começa bruscamente a irritar-se com o primeiro, intervém brutalmente e com paixão na conversa e lança-lhe o mesmo substantivo, que toma agora o sentido de uma injúria. Nesse momento, o segundo intervém novamente para injuriar o terceiro que o ofendera. ‘O que há, cara? quem tá pensando que é? a gente tá conversando tranqüilo e aí vem você e começa a bronquear!’ Só que esse pensamento, ele o exprime pela mesma palavrinha mágica de antes, que designa de maneira tão simples um certo objeto; ao mesmo tempo, ele levanta o braço e bate no ombro do companheiro. Mas eis que o quarto, o mais jovem do grupo, que se calara até então e que aparentemente acabara de encontrar a solução do problema que estava na origem da disputa, exclama com um tom entusiasmado, levantando a mão…: 131
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‘Eureka!’ ‘Achei, achei!. Ele simplesmente repete o mesmo substantivo banido do dicionário, uma única palavra, mas com um tom de exclamação arrebatada, com êxtase, aparentemente excessivo, pois o sexto homem, o mais carrancudo e mais velho dos seis, olha-o de lado e arrasa num instante o entusiasmo do jovem, repetindo com uma imponente voz de baixo e num tom rabugento… sempre a mesma palavra, interdita na presença de damas para significar claramente: ‘Não vale a pena arrebentar a garganta, já compreendemos!’ Assim, sem pronunciar uma única outra palavra, eles repetiram seis vezes seguidas sua palavra preferida, um depois do outro, e se fizeram compreender perfeitamente” (10, 133).
Bakhtin/Volochinov observa que “em todos esses casos, o tema, que é uma propriedade de cada enunciação [enunciado] (cada uma das enunciações [enunciados] dos seis operários tinha um tema próprio), realiza-se completa e exclusivamente através da entoação expressiva, sem ajuda da significação das palavras ou da articulação gramatical” (10, 134), o que vem de encontro ao aspecto emocional do intuito discursivo do locutor, um dos fatores de acabamento específico do enunciado concreto. Podemos estabelecer uma relação dialógica entre esse exemplo e a seguinte observação que aparece no ensaio “Observações sobre a epistemologia das ciências humanas” (1974): “há que observar que a expressão emocional dos valores pode não ter um caráter explicitamente verbal e pode estar implícita, manifestarse pela entonação. As entonações mais substanciais e mais estáveis constituem um fundo entonacional determinado por um grupo social (uma nação, uma classe social, uma classe profissional, um meio, etc.). Em certa medida, pode-se falar apenas por entonações, tornando quase indiferente, relativa e intercambiável, a parte do discurso verbalmente expressa. É freqüente o emprego de palavras inúteis em sua significação verbal, ou então a repetição de uma única e mesma palavra, de uma única e mesma frase, que então servem somente de suporte material para a entonação desejada” (26, 409-410). 132
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A engrenagem dinâmica que orienta um enunciado concreto faz com que o Círculo não descuide de nenhum de seus elementos um momento sequer. Segundo Volochinov, “a situação e o auditório que lhe corresponde determinam antes de tudo a entonação, e é através desta que são escolhidas e dispostas as palavras”67 (16, 305). A modificação de um desses elementos – situação e auditório – provoca uma modificação imediata da entonação. A natureza da interação orgânica entre a entonação – tom, o tema – sentido, e o diálogo é explicitada no ensaio “O discurso no romance” (1934-1935): “a réplica de qualquer diálogo real encerra esta dupla existência: ela é construída e compreendida no contexto de todo o diálogo, o qual se constitui a partir das suas enunciações [enunciados] (do ponto de vista do falante) e das enunciações [enunciados] de outrem (do partner). Não é possível retirar uma única réplica deste contexto misto de discursos próprios e alheios sem que se perca seu sentido e seu tom, ela é uma parte orgânica de um todo plurívoco”68 (16, 93). Toda essa interação orgânica entre as particularidades constitutivas do enunciado concreto obrigam a distinção entre as formas do enunciado concreto e as formas da língua. Sempre que o conceito a ser definido concorre com uma outra definição – lingüística, por exemplo – é próprio ao pensamento concreto do grupo dar uma definição complementar a esses conceitos. 67
Volochinov dá a seguinte ordem para a organização da forma do enunciado: “os elementos fundamentais que organizam a forma do enunciado são em primeiro lugar a entonação (o timbre expressivo de uma palavra), depois a escolha das palavras, enfim, sua disposição no interior de um enunciado completo” (16, 304).
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Em francês: “Cette vie double est également celle de la réplique de tout dialogue réel: elle se construit et se conçoit dans le contexte d’un dialogue entier, composé d’éléments << à soi >> (du point de vue du locuteur), et <<à l’autre>> (du point de vue de son “partenaire”). De ce contexte mixte des discours <
> et <<étrangers>>, on ne peut ôter une seule réplique sans perdre son sens et son ton. Elle est partie organique d’un tout plurivoque” (18, 106). 133
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Nesse sentido, Bakhtin, no ensaio “Os gêneros do Discurso” (1952-1953), desenvolve a seguinte tipologia da entonação: 1) entonação gramatical (da língua): marca a conclusão, a explicação, a demarcação, a enumeração, etc. 2) entonação narrativa, exclamativa, exortativa: cruzamento da entonação gramatical com a entonação do gênero; 3) entonação expressiva: a entonação do gênero no todo do enunciado. (21, 315) Essa última se caracteriza como pertencente não à forma da língua mas à forma do enunciado concreto. Nesse sentido, vamos apresentar algumas características da entonação expressiva: a) ela é um dos recursos para expressar a relação emotivovalorativa com o objeto do discurso (tema); b) não existe fora do enunciado concreto; c) uma palavra com entonação expressiva já é um enunciado completo. Ex. “Ótimo!”, “Ânimo!”, etc. (21, 309310). d) ela se relaciona com o todo do enunciado concreto, com a expressividade da palavra, com a expressividade do gênero na palavra, ou seja, “a expressividade e as entonações típicas que lhe correspondem não possuem a força normativa própria das formas da língua” (21, 312). Vamos terminar nossas observações sobre a entonação com um citação de Bakhtin, na qual esse conceito adquire o princípio dialógico que orienta a engrenagem dinâmica do enunciado concreto. Aqui, a entonação – tonalidades dialógicas – vai interagir com os enunciados de outrem, que como já sabemos, é indispensável para qualquer reflexão em torno da comunicação verbal, 134
Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev
que leve em conta as formulações teóricas de Bakhtin, Volochinov e Medvedev: “As tonalidades dialógicas preenchem um enunciado e devemos levá-las em conta se quisermos compreender até o fim o estilo do enunciado. Pois nosso próprio pensamento – nos âmbitos da filosofia, das ciências, das artes – nasce e forma-se em interação e em luta com o pensamento alheio, o que não pode deixar de refletir nas formas de expressão verbal de nosso pensamento” (21, 317).
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Considerações Finais É chegada a hora de dar um acabamento relativo a esta dissertação, procurando pontuar alguns aspectos que consideramos importante repetir, ou complementar, de um lugar diferente. Ao tecer nossas considerações finais, temos a intenção de retomar as abordagens que pretendíamos imprimisse o caráter deste trabalho: a polêmica em torno da autoria da obras; os pontos de vista utilizados pelo Círculo para investigar o enunciado concreto; e a engrenagem conceitual que orienta essa investigação. Gostaríamos, também, de ressaltar a coerência do percurso teórico do Círculo e a responsabilidade crítica com a qual esses três teóricos russos discutiram os discursos científicos com os quais dialogavam para construir o ponto de vista da Metalingüística, cuja base material é o enunciado concreto. Para a construção desta dissertação-enunciado, cujo tema pretendeu dar uma introdução à Teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev, partimos de uma investigação do todo orgânico da obra do Círculo, tendo como base sua concepção de linguagem articulada sobre a base do enunciado concreto. Por um lado pudemos perceber a heterogeneidade de discursos científicos que se debruçam sobre a linguagem com intuito de revelar um ou outro aspecto de sua existência, e por outro, observar o caráter de complementariedade que caracteriza as investigações do Círculo. Com relação aos pontos de vista que articulam as investigações de Bakhtin, Volochinov e Medvedev, é importante salientar quatro princípios. O primeiro a ser ressaltado é o princípio ético que rege as formulações teóricas do Círculo, tanto na crítica aos outros gêneros do discurso científicos como na articulação
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de sua Teoria do Enunciado Concreto. Aliados a esse princípio ético, outros três princípios orientam a engrenagem dinâmica da teoria desenvolvida por eles: um princípio sócio-ideológico – a sociologia da consciência, do discurso, do som significativo, a estilística sociológica e a poética sociológica –; um princípio dialógico – as relações dialógicas do micro ao grande-diálogo; e um princípio temporal histórico-fenomenológico – o acontecimento único da pequena à grande temporalidade. Não podemos esquecer que nessa engrenagem dinâmica os quatro princípios estão em interação orgânica. Esses princípios, predominantes no pensamento do Círculo, se apresentaram já nas definições dos conceitos, ou seja, eles construíram a estrutura viva na qual os conceitos foram articulados no interior desse pensamento: seu conteúdo, sua imagem e seu tom. A arquitetura dessa visão teórica nos conduziu a uma reflexão intrinsecamente, imanentemente, estruturada na base do enunciado concreto, e de sua construção. Para qualquer lado que olhávamos o enunciado concreto, no interior do todo da obra do Círculo, pretendíamos enxergar o real, a vida, o homem e seus valores, seja no discurso literário, científico, cotidiano ou de qualquer outro gênero primário ou secundário. O que Bakhtin inicia, e os seus discípulos – Volochinov e Medvedev – co-participam, é a tentativa de promover uma descrição da arquitetônica apreciativa concreta e real do mundo, a qual vai ganhando, no percurso das obras-enunciados do Círculo, os seus membros constituintes, a sua engrenagem conceitual, ou seja, os seus objetos reais – locutor, ouvinte, palavra, tema, gênero do discurso, estilo, entonação, expressividade –, todos eles em interação orgânica para propiciar uma compreensão ativa do evento único da existência, representado pelo enunciado concreto enquanto um elo da cadeia de comunicação verbal, ou seja, enquanto um objeto vivo de algum domínio cultural, seja ele a vida cotidiana, a arte ou a ciência, que responde a enunciados anteriores do mesmo gênero do discurso. Nos “Apontamentos 1970-1971”, Bakhtin nos dá um enigma para tentar compreender de maneira ativa o todo da obra: 138
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“meu fraco pela variação e pela variedade terminológica que abrange um único e mesmo fenômeno. As variedades das sínteses. Aproximações remotas sem indicações dos elos intermediários” (25, 397). Por que tantos conceitos para a investigação de um mesmo fenômeno? Ora, o que mais atrai no estudo da obra do Círculo é, realmente, a busca desses elos intermediários, nos quais muitas vezes nos perdemos, para mais tarde nos encontrarmos e nos perdermos novamente69 . A aventura dessa busca pelas fronteiras, nos umbrais, se revela, de qualquer maneira, extremamente enriquecedora, deixando rastros, por um lado, das concepções do pensamento abstrato e do pensamento idealista desenvolvidas pela lingüística, pela filologia, pela estilística, psicologia, etc., e, por outro lado, nos educando para uma investigação do enunciado concreto, instigando nossos sentidos para a observação do mínimo ato concreto de linguagem – o enunciado concreto único e não-reiterável – como uma experiência aberta de nossa vida, uma experiência que só terminaria se tivéssemos conhecimento do fim do mundo, ou pelo menos, do fim de nosso próprio mundo individual. Um outro problema que dificultava a nossa compreensão do todo da obra do Círculo era, como observamos, o problema da tradução. Nesse sentido, tomamos uma observação de Irene Machado, “como no Brasil tradutores de Bakhtin nem sempre são os estudiosos de sua obra, lemos Bakhtin através das mais variadas versões que foram chegando às nossas mãos pelas mais variadas vias. Praticamos a mais autêntica leitura hipertextual: 69
Como diz o prof. Boris Schnaiderman em seus estudos literários referindo-se à obra de Bakhtin sobre Dostoiévski: “Em minha tese, pus em discussão diversas afirmações suas [de Bakhtin] no livro sobre Dostoievski, mas é preciso discutir mais ainda, pôr tudo em dúvida, balançar de uma vez o coreto. De outro modo, a literatura se estanca nas certezas acadêmicas e didáticas. Mobilidade, contradição dialética, construção/desconstrução, eis os elementos com que temos de trabalhar. O resto é acomodação e rotina” (33, 88). 139
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quando lemos um texto de Bakhtin em português navegamos por uma versão que é uma camada de signos organizada a partir de outros discursos-línguas que se constituíram a partir dos manuscritos e dos arquivos de Bakhtin” (48, 267). Ao nos debruçarmos sobre essas dificuldades de tradução, iniciamos um processo de discussão em torno dos conceitos enunciado/enunciação e gêneros do discurso, os quais julgamos fundamentais no todo da engrenagem conceitual do Círculo. Para nós, a compreensão ativa do todo da obra do Círculo implica em tomar os conceitos enunciado e enunciação – traduções do único conceito russo vyskazyvanie – como sinônimos, visto que é desse ponto de vista que os três teóricos russos articulam não só a sua Teoria do Enunciado Concreto no interior da Metalingüística, como também dialogam com outros gêneros de discurso cientificos como a lingüística – a fala-enunciado, a estilística – o ato de fala-enunciado ou a expressão-enunciado, e também as ciências humanas em geral – o texto-enunciado. É o enunciado – ou enunciação – concreto, real, completo, vivo que é o elo da comunicação verbal, que responde aos enunciados anteriores e aponta para os enunciados concretos futuros. É, também, o enunciado concreto, particular, único na existência e não-reiterável, que se constrói, a partir de um tema específico, no interior de um gênero do discurso determinado e pela alternância dos sujeitos falantes que compõem a situação na qual ele é engendrado. Esse enunciado é a manifestação do intuito discursivo desses sujeitos nessa construção comunicativa, através de um estilo e uma entonação particulares, seja do ponto de vista do micro-diálogo ao grande-dialógo, da pequena temporalidade à grande temporalidade, movimentando o todo do enunciado concreto com seus princípios ético, sócio-ideológico, dialógico e temporal (histórico-fenomenológico). Finalmente, gostaríamos de ressaltar que a mais importante lição de nossa imersão na obra do Círculo é não considerar um de seus membros – Mikhail Bakhtin – como um Adão mítico, o primeiro a falar das idéias aqui expostas, mas sim, como um 140
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ser inserido profundamente nos diálogos de seu tempo e na história dos vários discursos científicos com que dialogava, os quais propiciaram a criação desse ponto de vista novo – metalingüístico – com base nos enunciados anteriores, no interior da evolução da ciência, e nas próprias relações dialógicas entre as suas obras e a de seus discípulos: Valentin Volochinov e Pavel Medvedev. É assim que podemos compreender algumas linhas de uma carta de 1961, de Bakhtin a V. Kozhinov, na qual ele faz a seguinte observação sobre sua relação com os outros elementos do Círculo aqui citados, preservando os princípios ético, sócio-ideológico, dialógico e histórico-fenomenológico que orientam sua visão de mundo: “those books [i.é, os livros assinados por Volochinov e Medvedev] as well as my study of Dostoevski are based on a common conception of language and of the verbal work… I should note that this common conception and our contact during our work do not diminish the independence and originality of each of the three books… To this day I hold to the conception of language and speech that was first set forth, incompletely and not always intelligibly, in those books, although the concept has of course evolved in the past thirty years” (47, 119).
Neste sentido, a concepção comum de linguagem e da obra verbal – do enunciado concreto – formaram a base sobre a qual tentamos discutir as obras-enunciados do Círculo neste trabalho. É na evolução do todo da obra do Círculo que pudemos compreender o seu conceito de linguagem. Como observa Beth Brait, “o conceito de linguagem que emana dos trabalhos desse pensador russo está comprometido não com uma tendência lingüística ou uma teoria literária, mas com uma visão de mundo que, justamente na busca das formas de construção e instauração do sentido, resvala pela abordagem lingüística/discursiva, pela teoria da literatura, pela filosofia, pela teologia, por uma semiótica da cultura, por um conjunto de dimensões entretecidas e ainda não inteiramente decifradas” (46, 71). Acreditamos que essa obser141
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vação estabelece uma relação dialógica de concordância para com os outros componentes do Círculo – Volochinov e Medvedev –, e que, também, ela retoma o caráter de inacabamento com o qual todas as ciências humanas em geral e as obras do Círculo em particular devem ser tecidas, na tentativa de escapar da coisificação dos objetos humanos, ou de uma abordagem psíquica do criador ou do receptor desses objetos. Assim sendo, esta dissertação ganha como epílogo uma citação de Problemas da Poética de Dostoiésvki que orienta, para nós, todo o desenvolvimento das concepções teóricas do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev, bem como, o movimento que ousamos dar ao próprio desenvolvimento deste trabalho, cujo acabamento relativo é mais um elo na cadeia das idéias do Círculo, e condiciona uma atitude responsiva para com os outros parceiros da comunicação dialógica engedrada por esse tema: “Somente quando contrai relações dialógicas essenciais com as idéias dos outros é que a idéia começa a ter vida, isto é, a formar-se, desenvolver-se, a encontrar e renovar sua expressão verbal, a gerar novas idéias. O pensamento humano só se torna pensamento autêntico, isto é, idéia, sob as condições de um contato vivo com o pensamento dos outros, materializado na voz dos outros, ou seja, na consciência dos outros expressa na palavra. É no ponto desse contato entre vozes-consciências que nasce e vive a idéia […] a idéia é interindividual e intersubjetiva, a esfera de sua existência não é a consciência individual mas a comunicação dialogada entre as consciências. A idéia é um acontecimento vivo, que irrompe no ponto de contato dialogado entre duas ou várias consciências” (13, 73).
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Introdução à teoria do Enunciado Concreto do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev
Bibliografia do Círculo Bakhtin/ Volochinov/Medvedev 70
(1) Bakhtin, M. (1919) “Art and Answerability” In: Art and Answerability. Early Philosophical Essays by M. M. Bakhtin. trad. Vadim Liapunov. Austin, University of Texas Press,1990. p. 1-3 (2) Bakhtin, M. (1919-1921) Toward a Philosophy of the Act. trad. Vadim Liapunov. Austin, University of Texas Press , 1993. (3) Bakhtin, M. (1922-1924) “O autor e o herói” In:0 Bakhtin, M. Estética da Criação Verbal. trad. do francês de Maria Ermantina G. Gomes. São Paulo, Martins Fontes, 1992. p. 23-220. (4) Bakhtin, M. (1924) “O Problema do Conteúdo, do Material e da Forma na Criação Literária” In: Bakhtin, M. Questões de Literatura e de Estética. A teoria do romance. trad. do russo de Aurora Fornoni Bernardini e outros. São Paulo, UNESP, 1993, 3a. edição. p. 13-70. (5) Voloshinov, V. N. (1926) “Le discours dans la vie et le discours dans la poésie” In: Todorov, Tzvetan Mikhaïl Bakhtine. Le principe dialogique. suivi de écrits du cercle de Bakhtine. Paris, Éditions du Seuil, 1981. p. 181-215. (6) Volosinov, V. N. (1927) Freudianism. A Critical Sketch. trad. I. R. Titunik. Indiana, Indiana University Press, 1987. (7) Bakhtin, M. / Medvedev (1928) The Formal Method in Literary Scholarship. A Critical Introduction to Sociological Poetics. trad. Albert J. Wehrle. Baltimore e London, The Johns Hopkins Press, 1991. (8) Volosinov, V. N. (1929) Marxism and the philosophy of language 70
Para uma bibliografia completa das obras do Círculo ver Todorov, T. Mikhaïl Bakhtine. Le principe dialogique (31, 173-176) e Faraco, C. A.; Tezza, C. e Castro, G. de (orgs) Diálogos com Bakhtin. (49, 15-20). 143
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(edição do original russo). Paris, Mouton, 1972. (9) Bakhtine, M. (V.N. Volochinov) (1929) Le marxisme et la philosophie du langage. trad. Marina Yaguello. Paris, Les Éditions de Minuit, 1978. (10) Bakhtin, M. (Volochinov) (1929) Marxismo e Filosofia da Linguagem. trad. do francês de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo, Hucitec, 1986, 3a. edição. (11) Volosinov, V. N. (1929) Marxism and the Philosophy of Language. trad. Ladislav Matejka e I. R. Titunik. Cambridge, Massachusetts; London, England, Harvard University Press, 1986. (12) Bakhtin, M. (1929) “Del libro Problemas de la obra de Dostoievski” In: ” In: Estética de la creación verbal. Cidade do México, Siglo Veintiuno Editores, 1982. p. 191-199. (13) Bakhtin, M. (1929;1961-1962) Problemas da Poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro, Ed. ForenseUniversitária, 1981. (14) Bakhtine, M. (1929; 1961-1962) La poétique de Dostoïevski. Trad. Isabelle Kolitcheff. Paris, Éditions du Seuil, 1970. (15) Voloshinov, V. N. (1930) “Les frontières entre poétique et linguistique” In: Todorov, Tzvetan Mikhaïl Bakhtine. Le principe dialogique. suivi de écrits du cercle de Bakhtine. Paris, Éditions du Seuil, 1981. p. 243-285 (16) Voloshinov, V.N. (1930) “Stilystique du discours artistique. 2. La structure de l’énoncé” In: Todorov, Tzvetan Mikhaïl Bakhtine. Le principe dialogique. suivi de écrits du cercle de Bakhtine. Paris, Éditions du Seuil, 1981. p. 287-316. (17) Bakhtin, M. (1934-1935) “O discurso no romance” In: Bakhtin, M. Questões de Literatura e de Estética. A teoria do romance. trad. do russo de Aurora Fornoni Bernardini e outros. São Paulo, UNESP, 1993, 3a. edição. p. 71-210. (18) Bakhtine, M. Esthétique et Théorie du Roman. trad. Daria Olivier. Paris, Gallimard, 1978. (19) Bakhtin, M. (1937-1938) “Formas de Tempo e de Cronotopo no Romance (Ensaios de poética histórica) In: Questões de Literatura e de Estética. A teoria do romance. trad. do russo de Aurora Fornoni Bernardini e outros. São Paulo, UNESP, 1993, 3a. edi144
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ção. p. 211-362. (20) Bakhtin, M. (1940; 1965) A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. trad. do francês de Yara Frateschi Vieira. São Paulo, HUCITEC; Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1993. (21) Bakhtin, M. (1952-1953) “Os gêneros do discurso” In: Bakhtin, M. Estética da Criação Verbal. trad. do francês de Maria Ermantina G. Gomes. São Paulo, Martins Fontes, 1992. p. 277326. (22) Bakhtine, M. (1952-1953) “Les genres du discours” In: Bakhtine, M. Esthétique de la Creátion Verbale. Trad. A. Aucouturier. Paris, 1979. (23) Bakhtin, M. (1959-1961) “O problema do texto” In: Bakhtin, M. Estética da Criação Verbal. trad. do francês de Maria Ermantina G. Gomes. São Paulo, Martins Fontes, 1992. p. 327-358. (24) Bakhtin, M. (1961) “Para una reelaboración del livro sobre Dostoievski” In: Estética de la creación verbal. Cidade do México, Siglo Veintiuno Editores, 1982. p. 324-345. (25) Bakhtin, M. (1970-1971) “Apontamentos 1970-1971” In: Bakhtin, M. Estética da Criação Verbal. trad. do francês de Maria Ermantina G. Gomes. São Paulo, Martins Fontes, 1992. p. 369397. (26) Bakhtin, M. (1974) “Observações sobre a epistemologia das ciências humanas” In: Bakhtin, M. Estética da Criação Verbal. trad. do francês de Maria Ermantina G. Gomes. São Paulo, Martins Fontes, 1992. p. 399-414.
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Bibliografia Geral (27) Kothe, Flávio R. (1977) “A não-circularidade do Círculo de Bakhtine”. revista Tempo Brasileiro 51, Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro Ltda. (28) Jakobson, Roman (1978) “Prefácio” In: Bakhtin, M. (Volochinov) (1929) Marxismo e Filosofia da Linguagem. trad. do francês de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo, Hucitec, 1986, 3a. edição. p. 9-10. (29) Yaguello, M. (1978) “Introdução” In: Bakhtin, M. (Volochinov) (1929) Marxismo e Filosofia da Linguagem. trad. do francês de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo, Hucitec, 1986, 3a. edição. p. 11-19. (30) Todorov, Tzvetan. (1981) “Théorie de l’énoncé” In: Todorov, Tzvetan Mikhaïl Bakhtine. Le principe dialogique. suivi de écrits du cercle de Bakhtine. Paris, Éditions du Seuil, 1981. p. 67-93. (31) Todorov, Tzvetan (1981) Mikhaïl Bakhtine. Le principe dialogique. suivi de écrits du cercle de Bakhtine. Paris, Éditions du Seuil. (32) Schnaiderman, Boris (1982) Dostoiévski. Prosa. Poesia. “O senhor Prokhartchin”. São Paulo, Perspectiva. (33) Schnaiderman, Boris (1983) Turbilhão e Semente. Ensaios sobre Dostoiévski e Bakhtin. São Paulo, Duas Cidades. (34) Clark, Katerina e Holquist, Michael (1984) Mikhail Bakhtin. Cambridge, Massachusetts; London, England, Harvard University Press. (35) Faraco, Carlos Alberto e outros (1988) Uma introdução a Bakhtin. Curitiba, Hatier. (36) Benveniste, E. (1989). Problemas de Lingüística Geral II. Campinas, Pontes. (37) Holquist, Michael (1990) Dialogism. Bakhtin and his world. Lon-
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dres, Nova York, Rotledge. (38) Morson, Gary Saul e Emerson, Caryl (1990) Mikhail Bakhtin: creation of a prosaics. Stanford, Stanford University Press. (39) Todorov, T. (1992) “Prefácio” In: Bakhtin, M. Estética da Criação Verbal. trad. do francês de Maria Ermantina G. Gomes. São Paulo, Martins Fontes, 1992. p. 1-21. (40) Barros, Diana Luz Pessoa de. e Fiorin, José Luiz. (orgs.) (1994) Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. São Paulo, EDUSP. (41) Brait, Beth “As vozes bakhtinianas e o diálogo inconcluso” In: Barros, Diana L. P. e Fiorin, José Luiz (orgs.) (1994) Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. São Paulo, EDUSP. (42) Dosse, François (1994) História do estruturalismo, v.2: o canto do cisne de 1967 aos nossos dias. trad. Álvaro Cabral. São Paulo, Ensaio; Campinas, Editora da UNICAMP. (43) Machado, Irene A. (1995) O romance e a voz: a prosaica dialógica de M. Bakhtin. Rio de Janeiro, Imago; São Paulo, FAPESP. (44) Saussure, Ferdinand (1995) Curso de Lingüística Geral. trad. Antônio Chelini e outros. São Paulo, Cultrix. (45) Emerson, Caryl (1995) “Bakhtin at 100: Looking Back at te Very Early Years” In: The Russian Review, vol. 54, Janeiro/1995, The Ohio State University Press. p. 107-114. (46) Brait, Beth. “A natureza dialógica da linguagem: formas e graus de representação dessa dimensão constitutiva” In: Faraco, C. A.; Tezza, C.; e Castro, G. de (orgs.) (1996) Diálogos com Bakhtin. Curitiba, Ed. da UFPR. p. 69-92. (47) Faraco, Carlos Alberto. “O dialogismo como chave de uma antropologia filosófica” In: Faraco, C. A.; Tezza, C.; e Castro, G. de (orgs.) (1996) Diálogos com Bakhtin. Curitiba, Ed. da UFPR. p. 113-126. (48) Machado, Irene. “Os gêneros e a ciência dialógica do texto” In: Faraco, C. A.; Tezza, C.; e Castro, G. de (orgs.) (1996) Diálogos com Bakhtin. Curitiba, Ed. da UFPR. p. 225-272. (49) Faraco, C. A.; Tezza, C.; e Castro, G. de (orgs.) (1996) Diálogos com Bakhtin. Curitiba, Ed. da UFPR.
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Ficha técnica Divulgação LIVRARIA HUMANITAS-DISCURSO Ilustrações da capa Composição de ilustrações do livro Museum Jean Tinguely Basel Mancha 10,5 x 18,5 cm Formato 14 x 21 cm Montagem Charles de Oliveira e Marcelo Domingues Tipologia Bernard Mod e Bookman Old Styler Papel miolo: off-set 75 g/m2 capa: cartão branco 180 g/m2 Impressão da capa Vermelho, preto e cinza Impressão e acabamento Seção Gráfica – FFLCH/USP Número de páginas 152 Tiragem 1.000 exemplares
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