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As origens da Lingüística Românica; o método histórico-comparativo
1.1 l)iez e os primeiros comparatistas
A Lingüística Românica é uma disciplina de orientação histó rica, que se constituiu na segunda metade do século XIX, com o nome de Filologia Românica, graças aos trabalhos de Friedrich Diez, cujos textos fundamentais (Gramática cias línguas românicas , de 1836, e D ic io n á ri o e ti m o ló g ic o d a s lín lí n g u a s r o m â n ic a s , de 1853) deram um exemplo marcante de rigor e método no tratamento histó rico das línguas românicas, mostrando a possibilidade de tratar “ cientificamen te” de uma séri sériee de temas que haviam preoc upad o os intel intelectu ectuais ais duran te séculos, séculos, mas que haviam sempre sido sido abo rd a dos com certa dose de impressionismo e assistematicidade. O nome “ Filologi Filologiaa R om âni ca” , com que a disciplin disciplinaa surgiu, surgiu, é significativo do contexto intelectual em que se deu seu apareci mento. Desde o período do Humanismo (o movimento intelectual que precede e prepara a Renascença), muitos estudiosos vinham-se dedicando ao trabalho de estudar textos da antiguidade clássica, um a tare fa que ex exig igia ia,, além de conhecimentos técnicos (por exemplo, exemplo, de edótica e diplomática) indispensáveis para restabelecer o texto em sua forma original, a capacidade de manipular informações extre mamente variadas sobre a época a que se referiam os documentos e um domínio muito grande das línguas antigas. A esse interesse no
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LINGÜÍSTI CA ROMÂNI CA
desvendamento das literaturas antigas chamou-se Filologia Clássica respeitando de algum modo a etimologia de filo lo g ia , “ am or pela expressão” ; mas, dad a a importância dos conhecimentos lingüísti cos que se exigiam para que o estudo literário se tornasse viável, a expressão Filologia Clássica designou desde sempre o estudo erudito daquelas línguas. Esse estudo, que por razões óbvias só podia ser histórico, ganhou um caráter comparatista no início do século XIX, quando Franz Bopp, com o livro Sobre o sistema cie conjugação da lingua sânscrita, em confronto com o das línguas grega, latina, persa e germânica, estabeleceu que as semelhanças existentes entre as lín
guas clássicas (em particular as semelhanças referentes ao domínio da gramática) só poderiam ser explicadas pela origem comum. O projeto de Bopp, que foi logo retomado por outro erudit o da época, Jacob Grimm, deu ao estudo das línguas antigas um caráter gené tico e fez aparecer a preocupação de reconstituir, pela comparação, o indo-europeu, considerado como a origem comum das línguas das principais culturas clássicas. Diez confirmou que havia entre o latim e as principais línguas românicas uma relação genética semelhante à do indo-europeu com o latim, o grego e o sânscrito; aplicando o método comparativo dos indo-europeístas chegou a algumas teses que são hoje postula dos da Lingüística Românica: uma dessas teses é que as línguas românicas não se originam do latim clássico, mas de uma outra variedade de latim, conhecida com o “ latim vulgar” ; outra é que não tem qualquer fundamento a hipótese (defendida pelo francês Raynoudard) segundo a qual todas as línguas românicas teriam como ascendente mais próximo o provençal. Diez se interessou tam bém pelo estu do de narrativas em espanhol arcaic o; assim, seu tra balho, que tin ha orientação paralela ao da Filolo gia Clássica, criou espaço para uma Filologia Românica, com o duplo aspccto de estudo textual (justificado pelas dificuldades que apresenta(va) a lei tura dos documentos românicos escritos antes da invenção da imprensa e da definitiva consolidação das línguas românicas) e de investigação genética das línguas derivadas do latim.
1.2 Os neogramáticos
A geração de Diez, fundador da Lingüística Românica, esteve sob influência direta da filosofia espiritualista dos românticos,
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impregnada de historicismo; a próxima escola lingüística com influência marcante para a romanística esteve ao contrário sob uma forte influência das ciências naturais (que faziam então enormes progressos) e do darwinismo. Essa escola se constituiu na Universi dade de Leipzig, onde atuou nas últimas três décadas do século XIX; seus nomes mais representativos são os de Brugmann, Leskien e Osthoff, mas é comum referir-se a ela como um grupo, utilizando o nome de neogramáticos (Junggrammatiker ) , que lhe foi dado de início por troça, mas que acabou tornando-se respeitado, à medida que ela passou a representar a posição “ oficial” em matéria de his tória das línguas. Os neogramáticos ganharam espaço no universo acadêmico da época propugnando um programa que afrontava ostensivamente as orientações comparatistas vigentes. Fizeram troça do propósito que havia animado seus predecessores no domínio da Lingüística Indo-européia — encontrar pela comp aração a protolín gua, que esta ria na origem das línguas modernas; recomendaram ao contrário que a atenção dos pesquisadores se voltasse para as línguas vivas, onde os processos de evolução lingüística poderiam ser vistos em ação, e onde poderia ser captado o papel das forças psicológicas que estão na base do funcionamento e da evolução das línguas. Na prática, o trabalho dos neogramáticos se caracterizou por uma exigência de extremo rigor, que se traduziu na crença de que as “ leis" da evolução fonética agem de maneira absolutam ente regu lar, admitindo exceções apenas quando sua ação é contrariada pela ação da força psicológica da analogia. Exemplos simples de como a analogia atua no funcionamento das línguas podem ser encontra dos na fala das crianças, em erros como f a z i ou trazi por fiz ou trouxe·, na expressão de Saussure, que retoma o conceito de analo gia dos neogramáticos, operaria aí uma espécie de regra de três: se viver, correr etc. fazem o perfeito em -i pode-se esperar que fa z e r e trazer também o façam. Um exemplo muito simples de como a analogia afeta a evolução das línguas é o verbo português render, e seus correspondentes românicos rendre, rendere etc.: essas formas não poderiam provir do verbo que significa render em latim clás sico, ou seja, reddere : nenhuma lei fonética conhecida justificaria o aparecimento de um -n- fechando a primeira sílaba: as formas românicas derivam verossimilmente de *rendere, construído por analogia com o verbo que significa “ to m a r” , isto é, prendere (clás sico prehendere). Pela maneira mecanicista como representaram o funciona mento das leis da evolução fonética, os neogramáticos atraíram as
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críticas de autores que, ou por razões teóricas (como o lingüista ale mão Hugo Schuchardt) ou por estarem em contacto direto com a realidade multiforme dos dialetos (como o dialetólogo italiano Graziadio Ascoli) não estavam dispostos a aceitar a tese de que as leis fonéticas operam de maneira cega. Tiveram contu do uma influência determinante, para a lingüística e para a romanística. Ferdinand de Saussure, em quem se costuma reconhecer o fundador da Lin güística Moderna, era neogramático de formação, tendo estudado com Brugmann na Universidade de Leipzig; como se sabe, Saussure teve entre seus alunos alguns lingüistas de grande porte, como Bally, Sechehaye e Meillet, e seu ensinamento deu origem à lingüística estrutural; também teve formação neogramática o mais importante romanista depois de Diez, Meyer-Lübke, cujas obras Gramática das línguas românicas e D ic io nário etim oló gic o rom ânic o (este geralmente conhecido pela sigla REW, formada pelas três primeiras letras do título original) são ainda hoje fundamentais. Os trabalhos dos neogramáticos em geral, e de Meyer-Lübke em particular, refi naram o método de Diez, isto é, o método histórico-comparativo, que é fundamental nos estudos de lingüística histórica em geral, e nos estudos românicos em particular.
1.3 O método comparativo
Comparar é uma tendência natural e uma importante fonte de intuições e de descobertas em todos os campos do conhecimento. Na análise das língua s, a com paração e o confronto lev am às vezes ao estabelecimento de tipologias (como a que distinguia, tradicio nalmente, entre línguas monossilábicas, aglutinantes e flexivas), outras vezes à busca de características supostamente inerentes a tod a língua hu m ana (como nos levantamentos acerca dos “ univer sais da linguagem” realizados pela lingüística estrutural americana nas décadas de 1950 e 1960). Nesses casos, a comparação nada tem a ver com genealogia. Em Lingüística Românica, porém, o método comparativo assume tipicamente propó sitos genéticos, de reconstituição. Entendese, em outras palavras, que a semelhança constatada entre expres sões pertencentes às diferentes línguas românicas prova que elas se originam de uma mesma palavra latina; e que a forma que essas palavras assumem nas línguas românicas é indício da form a que deve ter tido a expressão originária.
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Quando se comparam, por exemplo, port, e esp. saber , fr. savoir, it. sapere fica legitimada a conjectura de que tenham uma origem latina comum, numa palavra (i) cuja primeira sílaba começa por si bi lant e e (ii) cuja segunda sílaba é tônica e com porta uma con soante bilabial ou labiodental (p, b ou v). Constatando-se além disso que na evolução do latim para o espanhol e o português é regular a passagem do p intervocálico a b\ que o p intervocálico do latim passa regularmente a f r e e m seguida a v em francês; que, ainda em francês, o e longo das sílabas tônicas não travadas passa a ei, depois oi, oé, ué e wá (a grafia acompanhou esta evolução apenas até a forma oi), torna-se legítimo supor que a forma originária comum fosse *sapére, paroxítona. A identificação de *sapére como a forma de que se originaram saber e seus correspondentes românicos não deixa de ser surpreendente quando referida ao vocabulário conhecido do latim clássico: o latim clássico tinha um verbo sápere, conjugado como cápere, que significava entre outr as coisas “ sab o rear, provar uma comida p ara sentir-lhe o sab or” . Este verbo sápere deve ter sido conjugado em latim vulgar como um verbo da 2 a con jugação; por outro lado deve ter sofrido uma alteração de sent ido, ou seja, a habilidade em não confundir o gosto dos alimentos deve ter sido tomada como representação metafórica da esperteza e inte ligência (quem é esperto e vivido “ nã o come gato por lebre” ). A forma e o sentido distinto que o verbo sápere assume em latim vul gar não são fatos isolados: a comparação de outras formas români cas aponta para conclusões semelhantes. Assim, port .fazer, caber, esp. haeer, caber mostram que o latim vulgar deve ter tido fa cére capére, ao invés das formas clássicas fá c ere e cápere-, e o uso de metáforas físicas para representar operações do pensamento é comum, mesmo em latim clássico (por exemplo, o nosso pensar e o mais erudito p on derar provêm de verbos que significam “ pesa r” , “ colocar pesos na balan ça” etc.). Conforme ficou exemplificado no parágrafo anterior, o método histórico-comparativo permite que os romanistas façam conjecturas bastante ex atas sobre as formas românicas originárias. É at é certo ponto cas ual que essas formas resu ltantes de conjecturas baseadas na comparação sejam efetivamente encontradas nos textos latinos que sobreviveram até nós, ou seja, que sua existência passada possa ser confirmada mediante provas documentais. Às vezes, a prova documental é possível. Por exemplo, as formas port, velho, esp. viejo, fr. v/e//, it. vecchio, rom. vechi levam a uma forma veclus (que se explica a partir de veculus e vetulus, esta última diminutivo
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da forma clássica vetus , “ velho” ). Veclus é atestada no A p p e n d ix P r o b i , um glossário que pode remontar aos séculos III ou IV d.C., e que aponta uma série de formas correntes na época, que as pes soas cultas deveriam evitar por não serem as formas próprias do latim literário. Outras vezes ainda, formas que haviam sido propos tas como hipótese de trabalho a partir da comparação das línguas românicas acabaram por ser encontradas em textos. É o caso da forma anxia, da qual derivam port, ânsia e seus cognatos. Muitas vezes, por fim, as formas resultantes de reconstituição permanecem não atestadas; neste último caso, os romanistas, à imitação do que faziam os indo-europeístas, antepõem à palavra um asterisco. I· importante perceber que as formas com asterisco (que, segundo uma estimativa reproduzida em Vidos — 1956 — não passam de 10% do total de materiais com que têm trabalhado os romanistas) não são menos importantes ou menos seguras do que as formas ates tadas: as línguas românicas tomadas em seu conjunto numa visão comparativa são a melhor fonte para o conhecimento de sua pró pr ia origem, um fato que ressalta quando se leva em conta a preca riedade das fontes escritas do latim não literário. As conclusões que se tiram da comparação das línguas româ nicas são tanto mais seguras quanto maior for o número de línguas românicas que apon tam para elas e qu ant o mais afastadas no espaço forem esSas línguas. O Sardo e o Romeno, que se situam hoje nos limites da România, e se desenvolveram por assim dizer à parte, sem comunicação com as outras línguas românicas, constituem uma espé cie de teste da antiguidade e do caráter pan-românico das regularidades apontadas pela comparação. O campo em que o método comparativo deu os resultados mais sistemáticos é o da fonética; em morfologia e em sintaxe, sua aplicação exige a manipulação de dados mais complexos, e seus resultados foram menos espetaculares.
Documento: Da comparação à reconstituição
Para ilustrar o funcionamento do método histórico-comparativo, considerem-se as palavras do quadro a seguir. Ele comporta cinco colunas, sendo que a primeira é formada por palavras do latim clássico e as outras contêm palavras portuguesas, espanholas, fran cesas e italianas. O quadro permite dois tipos de comparação: (i) entre formas românicas; (ii) entre estas e o latim clássico. Estes
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dois tipos de comparação são os que uma pessoa culta faria mais espontaneamente; e foram, historicamente, os que ocuparam as atenções dos primeiros romanistas.
português
espanhol
francês
italiano
(1)novu movet mordit porta populu
novo move morde porta povo
nuevo mueve muerde puerta pueblo
neuf meut niord porte peuple
nuovo muove morde porta popolo
(2) flõrehora solu
flor hora só(ant. soo) famoso corte prosa
flor hora solo
fleur heure seul
fiore hora solo
famoso corte prosa
fameux cour pr ose
famoso corte prosa
gola jovem olmo onda boca forno mosca
gola joven olmo onda boca horno mosca
gueule jeune orme onde bouche four mouche
gola giovane olmo onda bo cca forno mosca
latim
famosu eo(ho)rte prorsa (3) gula juvene ulmu unda bucca furnu musca (4) luna virtute mutare
lua virtude mudar
luna virtud mudar
lune vertu muer
luna virtú mutare
O quadro foi dividido em quatro grandes blocos, conforme as palavras latinas compreendem (1) um o breve (e acentuado), (2) um o longo, (3) um u breve ou (4) um u longo. Dito isto, é possível veri ficar no quadro acima (que é apenas uma pequena amostra das com parações possíveis no terreno das vogais) uma série de correspondên cias, que registramos a seguir, sem a preocupação de ser totalmente exatos e exaustivos: Bloco 1: onde o latim tinha um o aberto e acentuado, o espa nhol tem, sempre, o ditongo ue; o francês tem [0], [oe] grafados eu e o italiano tem o ditongo uo desde que na palavra latina a mesma sílaba fosse aberta, isto é, sem consoante depois da vogal; o portu guês tem o.
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Bloco 2: onde o latim tinha um o fechado, as línguas români cas do quadro apresentam um o, exceto o francês; esta língua tem eu (pron. [>], [oe]) quando a sílaba latina er a aber ta , e tem o ou ou (pron. [u]) quando a sílaba latina era fechada. Bloco 4: onde aparecia o u longo latino, todas as línguas do quadro têm u (em francês, aparece u na grafia, correspondendo à pronúncia [y]). Examinando o bloco 3, que propositalmente foi deixado para o final destes comentários, constata-se que valem para ele, exata mente, as mesmas observações que foram feitas para o bloco 2. Esta constatação é importantíssima pois leva à conclusão de que na origem das línguas românicas está uma variedade de latim com um quadro vocálico no interior do qual o o longo e o u breve do latim clássico se confundiam numa única vogal. De certo modo, então, a compara ção das línguas românicas permite opor ao quadro vocálico bem conhecido do latim clássico um outro quadro mais simples, no qual a série posterior se reduz a três vogais distintas entre si não pela dura ção, mas pelo timbre: lat. cláss.
it longo
lg. rom.
u
:
u breve
L
o
o longo
teehado
J
o
breve
ete.
í o aberto
A medida que se acumulam observações deste tipo configurase uma variedade de latim que se pode estudar em confronto com o latim clássico, mas que não se confunde com ele: é a essa variedade de latim, cuja existência histórica é comprovada pela comparação das línguas românicas, que se chamou de latim vulgar ou protoromance. Evidentemente, as semelhanças das línguas românicas com o latim vulgar são mais diretas: por exemplo, o quadro acima pode ria ser reduzido a três blocos, sendo as regularidades que ele exempli fica retomadas como segue:
latim vulgar
português
espanhol
francês
italiano
o aberto
síl. aberta si% fechada
o o
ue ue
eu 0
uo o
o fechado
síl. aberta síl. fechada
0 0
0 0
eu o, ou
o o
u
u
u
u
u