A. S. FrAnchini
L&PM EDITORES 3
Sumário
PARTE i – LENDAS iNDÍGENAS Os Flhos do Trovão – (Saga dos d os táras – i) ..................................................... 11 Os táras aprendem a fazer embarcações e mbarcações – (Saga dos táras – ii) ................... 13 A prmera navegação dos táras – (Saga dos táras – iii) ............................... 15 Buopé, o nobre guerrero – (Saga dos táras – iV) .......................................... 17 Mare-monan e os três dlúvos ........................................................................ 19 A vngança de Mare-Pochy ............................................................................. 22 O cocar de fogo e os gêmeos mítcos ............................................................... 24 A onça e o rao................................................................................................... 27 Konewó e as onças ............................................................................................ 29 O Urapuru ........................................................................................................ 34 O surgmento da note ...................................................................................... 36 A cabeça que vrou lua ...................................................................................... 39 O furto do fogo ................................................................................................. 43 Como surgu o Oapoque ................................................................................. 45 Os potes da note............................................................................................... 47 O gavão e o dlúvo .......................................................................................... 50 A conversão de Aukê ........................................................................................ 53 Koeré, o machado cantante ............................................................................. 56 Por que onça não gosta de gente ...................................................................... 58 O sapo e a onça ................................................................................................. 60 As pernas curtas do tamanduá ou Por que onça não gosta de tamanduá ..... 62 Como surgram as doenças .............................................................................. 64 Como surgram as estrelas ................................................................................ 66 O batsmo batsmo das estrelas ...................................................................................... ...................................................................................... 67 A pescara das mulheres .................................................................................... 69 A cura da velhce ............................................................................................... 72 Como surgram os bchos ................................................................................. 75 A escada de flechas ............................................................................................ 77 A vtóra-réga ................................................................................................... 79 Bahra e o rapto do fogo ................................................................................... 80 A máscara da sucur .......................................................................................... 82 Como surgu o da ............................................................................................ 84 Por que a terra treme ........................................................................................ 87 A prmera cobra ............................................................................................... 89
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Como os kaapós desceram do céu .................................................................. 91 O surgmento da plantação .............................................................................. 92 O surgmento dos pexes .................................................................................. 95 O acaré e o mutum .......................................................................................... 96 O índo que quera matar o sono ..................................................................... 98 A vda humana .................................................................................................. 99 O apm plagador ........................................................................................... 100 PARTE ii – CONTOS TRADiCiONAiS A raposa carente .............................................................................................. 105 O pequeno homem ......................................................................................... 107 A moura torta .................................................................................................. 110 A raposnha ..................................................................................................... 113 joão gurumete ................................................................................................. 116 A raposa e o tucano......................................................................................... 119 O padre despreocupado.................................................................................. 120 A cavera falante .............................................................................................. 122 A prncesa de bambuluá ................................................................................. 124 A menna dos brncos de ouro ....................................................................... 128 Os quatro ladrões ............................................................................................ 130 Aventuras de Pedro Malazarte i ..................................................................... 132 Aventuras de Pedro Malazarte ii.................................................................... 135 Aventuras de Pedro Malazarte iii .................................................................. 137 O coelho e a tartaruga ..................................................................................... 140 O touro e o homem ........................................................................................ 142 O decreto da paz ............................................................................................. 144 O advnho ....................................................................................................... 145 O casamento da mãe-d’água .......................................................................... 146 Os três ggantes negros ................................................................................... 149 Cobra-norato .................................................................................................. 151 A festa no céu .................................................................................................. 153 O Negrnho do Pastoreo................................................................................ 156 O quero-quero ................................................................................................ 158 O pulo do gato ................................................................................................ 159 PARTE iii – PERFiS Alamoa............................................................................................................. 163 Alma-de-gato .................................................................................................. 164 Anhangá........................................................................................................... 165 Botatá.............................................................................................................. 166
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Boto.................................................................................................................. 167 Bradador .......................................................................................................... 168 Bruxa................................................................................................................ 169 Cabeça de cua ................................................................................................. 170 Cabra-cabrola................................................................................................. 171 Cachorra da palmera ..................................................................................... 173 Capora ............................................................................................................ 174 Capelobo.......................................................................................................... 175 Carbúnculo...................................................................................................... 176 Cavalo-marnho .............................................................................................. 177 Chbamba ........................................................................................................ 178 Chupa-cabra .................................................................................................... 179 Cuca ................................................................................................................. 180 Curupra .......................................................................................................... 181 Gorala ............................................................................................................. 182 iara ................................................................................................................... 183 ipupara ........................................................................................................... 184 jurupar ........................................................................................................... 185 Labatut ............................................................................................................. 186 Lobsomem...................................................................................................... 187 Lora do banhero ........................................................................................... 188 Mapnguar ...................................................................................................... 189 Mula sem cabeça ............................................................................................. 190 Pa do mato ..................................................................................................... 191 Psadera .......................................................................................................... 192 Prncesa de jercoacoara ................................................................................. 193 Qubungo ........................................................................................................ 194 Sac-pererê ....................................................................................................... 195 Tutu ................................................................................................................. 197 Zumb .............................................................................................................. 198 Bblografa ...................................................................................................... 199
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PARTE I
LENDAS INDÍGENAS
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OS FILHOS DO TROVÃO (SAGA DOS TÁRIAS – I)
A lenda da orgem dos táras, ou flhos do Trovão (também dtos flhos do Sangue do Céu) está longe de ser a mas famosa das nossas lendas ndígenas. Contudo, é, seguramente, uma das mas nteressantes, razão pela qual fo escolhda para abrr esta pequena mas representatva amostra da extraordnára capacdade magnatva dos nossos verdaderos ancestras. Os táras – ou taranas – eram uma trbo do ro Uaupés, stuado no Amazonas. Segundo os estudosos, a palavra “tára” derva de “trovão”, elemento genésco prmordal dessa trbo. Vamos, pos, à orgnalíssma lenda que conta a orgem dos táras. Dz, então, que num tempo muto antgo o Trovão deu um estrondo tão forte que o Céu rachou e começou a gotear sangue. O sangue cau em cma dele própro, Trovão – aqu entenddo como um ente personalzado –, e secou sobre o seu corpo. Algum tempo se passou e o Trovão troveou outra vez, e o sangue que estava sobre ele vrou carne. Mas adante, um novo trovear fez com que a carne se desprendesse do seu corpo e fosse car sobre a Terra. Ao tocar o solo, a carne se despedaçou em ml pedaços, e estes pedaços se transformaram em gente – homens e mulheres. Assustadços por natureza, os flhos do Trovão correram logo a se meter no nteror da prmera gruta, assm que anoteceu (eles eram gnorantes das cosas da Terra, então, ao verem o sol desaparecer, magnaram que ele nunca mas retornara). Quando começou a amanhecer, porém, tveram uma grata surpresa: o céu voltava, pouco a pouco, a tomar uma coloração vermelha, sob o efeto da luz do sol. Eles observaram o sol subr ao céu e, quando ele chegou ao zênte, sentram fome. No alto de uma árvore, vram, então, um pássaro almentando-se de um fruto. – Façamos o mesmo! – dsse um dos flhos do Trovão. Para uma prmera frase, não estava nada mal. Demonstrava prudênca alada a uma boa observação. Os táras – á podemos chamá-los assm – subram na mesma árvore e foram comer dos mesmos frutos com os quas a ave se almentava. Empanturraram-se
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até a note voltar, quando todos, assaltados novamente pelo medo, foram se meter no nteror da gruta. No da segunte, bem cedo, treparam outra vez na árvore para sacar a fome. Debaxo dela, surgram dos cervos, macho e fêmea, que também começaram a se almentar dos frutos que caíam. Dal a pouco, um dos cervos montou sobre o outro, e os dos esqueceram-se de tudo o mas. – O que estão fazendo? – dsse um dos táras, que anda gnorava as cosas deste mundo. Eles observaram bem e retornaram para o nteror da gruta. Nnguém consegua esquecer o que se passara entre os cervos, e estavam todos extraordnaramente nquetos. Durante a note, a Mãe do Sono – uma das tantas Cys , as mães dvnas ndígenas de tudo quanto há na mata – vstou-os em sua gruta para contar-lhes quem eles eram. Depos, transformou-os em cervos, e eles foram correndo para baxo da árvore repetr alegremente o que o casal de cervos de verdade hava feto. Quando o da amanheceu, os pares anda estavam abraçados, um homem para cada mulher. E fo assm que os táras deram níco à sua glorosa descendênca.
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OS TÁRIAS APRENDEM A FAZER EMBARCAÇÕES (SAGA DOS TÁRIAS – II)
A lenda dos táras é tão nteressante quanto uma saga slandesa, e comporta város epsódos. Como tantas outras lendas extravadas mundo afora, só não goza do reconhecmento unversal porque lhe faltou quem a desenvolvesse em amplos e vbrantes panés. Como vmos no prmero conto, os táras surgram do Trovão e aprenderam a se reproduzr observando as prátcas sexuas dos cervos. (Eles havam sdo metamorfoseados pela Mãe do Sono naqueles mesmos anmas, recuperando logo depos – é o que se supõe – a antga forma humana.) Todas as notes os casas repetam as prátcas aprenddas, de tal modo que não tardaram a surgr seus prmeros flhos. Aos poucos, eles aprenderam também a plantar e a crar anmas. Então, um da, observando o ro Amazonas, eles pensaram em como poderam “andar como patos sobre as águas”. (A expressão que usaram fo exatamente esta, pos não sabam anda o que fosse “navegar”.) Todos os das eles se postavam às margens do ro e fcavam observando, cheos de admração, o r e vr sereno dos patos sobre a água. – Temos de aprender, também, a camnhar sobre as águas! – dsse, um da, o líder supremo dos táras. Os índos, dexando de lado a observação, passaram então à ação. – Vá, mergulhe e faça como eles! – dsse o cacque, atrando na água um dos táras próxmos. O pobre índo cau na água e espadanou feto um desesperado, e, se não fossem os demas retrarem-no dal, tera descdo ao fundo como uma pedra, sem amas retornar. Mas os táras eram persstentes e contnuaram nsstndo, até que um da um deles, bafeado pela sorte, vu passar um pau de bubua flutuando. Num reflexo felz, ele agarrou-se ao tronco e medatamente sentu que não afundava mas. Depos, com um pouco mas de prátca, conseguu guar o tronco com as mãos metdas dentro d’água. Então, ele fo para onde qus, e a felcdade nundou sua alma.
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Como não hava nnguém por perto para admrar sua façanha, o índo retornou à margem e fo correndo à aldea comuncar a sua fantástca descoberta. – Descobr, rmãos, um meo de camnhar sobre as águas! – grtava ele, cheo de orgulho. Logo ao amanhecer todos foram ver a proeza. O tára atrou-se na água montado em sua boa mprovsada e “andou” por todo o ro sem amas afundar. E fo assm que os táras aprenderam a “andar como os patos sobre as águas” e, logo depos, a construr a sua prmera embarcação, amarrando troncos uns nos outros.
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A PRIMEIRA NAVEGAÇÃO DOS TÁRIAS (SAGA DOS TÁRIAS – III)
Contnuando com a delcosa lenda dos táras, vamos saber agora como os verdaderos pas da naconaldade empreenderam a sua prmera e glorosa navegação. Depos de terem aprenddo a construr uma angada, os táras lançaram-se ansosamente ao ro. Não se sabe ao certo se fo apenas uma ou se foram mas angadas, mas o certo é que város ndígenas tomaram parte nessa expedção. Consgo levaram um farnel de vagem. Quando os expedconáros partram, tudo fo alegra. Porém, quando a últma mancha de terra sumu, eles engolram em seco. – A terra sumu! – dsse um dos índos, vagamente alarmado. O chefe da expedção, porém, não qus retroceder. – Adante! – dsse ele, apontando o horzonte plano das águas. Então a coragem retornou aos seus corações, e eles seguram alegres e confantes até a note estrelada desabar subtamente ao seu redor, como uma cortna negra chea de furos. Desta vez, o ânmo de todos decau assustadoramente. – Alguém sabe dzer onde estamos? – perguntou o chefe tára, lutando para dar um tom sereno à sua voz. Naturalmente que, naqueles prmórdos da navegação, anda não hava passado pela cabeça de nnguém dvdr tarefas, atrbundo a alguém a função de gua ou ploto. justamente por sso, todos responderam, numa admrável concordânca, que não fazam a menor dea de onde estavam. Para porar as cosas, um vento forte começou a soprar, empurrando-os anda mas para as horrendas e desconhecdas vastdões do ro. Em três das acabou a comda e, quando a fome apertou para valer, um dos táras avstou alguns tapurus (pequenas larvas) nos nterstícos da angada. Ele encheu a mão e enfou tudo na boca. A careta que fez era de agrado: a comda era boa. As outras mãos colheram avdamente o resto dos tapurus, e assm os índos sacaram por algum tempo a sua fome atroz. Os vaantes vagaram, sem remo nem rumo, durante váras luas. Então, quando tudo pareca perddo, eles vram, ao longe, a sombra da terra.
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– Terra! Terra! – grtou um deles, dando o prmero grto náutco da hstóra dos táras. Os índos desembarcaram num lugar ermo, muto parecdo com sua própra terra. Numa eufora de dodos, eles puseram-se a bear o solo e a cometer outras loucuras típcas de náufragos resgatados. Depos, comeram alguns ovos que encontraram e decdram fundar uma aldea al mesmo. “Três luas depos, a aldea estava pronta”, dz a crônca orgnal.
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BUOPÉ, O NOBRE GUERREIRO (SAGA DOS TÁRIAS – IV)
A extraordnára saga dos índos táras chega, agora, ao seu vbrante desfecho. Desta feta fcaremos sabendo como nossos ancestras tornaram-se grandes conqustadores. O chefe da prmera expedção náutca dos táras chamava-se orgnalmente Ucaar, passando depos a ser conhecdo por Buopé. Ele era um tuxaua, título supremo de um chefe tára, e hava chegado com seus homens numa angada após navegar sem rumo pelo ro Negro. Ao colocar os pés em terra, o nobre guerrero decdra se estabelecer al. – Voltar como, se nem sabemos para que lado segur? – dssera ele aos companheros. Convcto dsso, o chefe ndígena mandou, então, construr uma aldea e se autoproclamou senhor absoluto da terra, pos assm se faza em toda parte nos das antgos. Em três luas, a nova aldea estava pronta. Mas não demorou muto e um dos táras trouxe ao chefe esta péssma notíca: – Grande tuxaua, encontre rastros de pés humanos próxmos da aldea! imedatamente nasceu no peto de Buopé a certeza de que estavam sendo vgados. – Vamos, então, esponar os espões! – dsse ele, tomando o seu tacape. Buopé não quera saber de nnguém mas em seus domínos, mesmo que á estvessem al muto antes dele. Aquela terra, agora, pertenca aos flhos do Sangue do Céu. Após certfcar-se de que as pegadas pertencam aos membros de uma trbo vznha, Buopé reunu rapdamente os seus homens. – Alegrem-se, teremos guerra! – anuncou ele, e todos puseram-se a confecconar grandes quantdades de tacapes, arcos, flechas, fundas e o restante de armas então usadas pelos índos. Uma lua depos, os táras guerrearam contra os seus nmgos natvos, derrotando-os fragorosamente. Além de conqustarem mas uma boa porção de terrtóro, os flhos do Trovão conqustaram também uma porção de mulheres da trbo vencda.
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– Agora, á podemos multplcar o número de táras! – dsse Buopé, em úblo. Três anos transcorreram até que Buopé e os seus valorosos guerreros pudessem entender a língua daquelas mulheres. Quando sso fnalmente aconteceu, eles descobrram que outra porção da gente delas vva num lugar não muto dstante dal. – Levem-nos até lá! – ordenou o tuxaua às mulheres. imedatamente, fo organzada uma nova expedção de conqusta. Quando “fez mão de lua”, ou sea, dentro de cnco luas, Buopé e os seus chegaram ao lugar. A batalha durou três das, e ao cabo dela Buopé era, de novo, o vencedor. – Mas ventres para espalhar a nossa raça! – dsse o chefe guerrero, tomando para s outra vez as mulheres dos nmgos mortos. E assm o chefe tára fo conqustando todos os povos às margens do ro Negro, até tornar-se senhor absoluto da regão. Quando seus flhos fcaram adultos, mandou-os rem guerrear contra as trbos de canbas acma e abaxo do ro. Buopé tnha o costume de, após matar os seus nmgos, r até as margens do ro e cuspr dentro de um funl de folha. Depos, lançava-o correnteza abaxo, a fm de chamar magcamente a sua gente dstante. Então, os anos se passaram e ele envelheceu, perdendo fnalmente as forças. Uma note, a Mãe do Sono lhe apareceu outra vez e o fez sonhar que tnha morrdo. Buopé vu, por entre as névoas do sonho, que o seu corpo á não faza mas sombra e que, ao redor dele, todos choravam. Era o avso do fm. O nobre tuxaua reunu seus flhos, deu-lhes as últmas nstruções e, quando o sol surgu, um bea-flor sau de dentro do seu peto e dsparou em dreção ao céu. O corpo de Buopé fo enterrado numa gruta secreta, cua localzação permanece gnorada. Descendente algum recebeu autorzação de ostentar o seu nome gloroso, e todo aquele que pretendeu utlzá-lo, mesmo sob formas dsfarçadas e rdículas, sofreu a maldção mplacável de tornar-se, por todos os das da sua vda, um pobre-dabo fracassado e rosnador de maledcêncas.
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MAIRE-MONAN E OS TRÊS DILÚVIOS
Os tupnambás creem que houve, nos prmórdos do tempo, um ser chamado Monan. Segundo alguns etnógrafos, ele poda não ser exatamente um deus, mas aqulo que se convenconou chamar de um “heró cvlzador”. Deus ou não, o fato é que Monan crou os céus e a Terra, e também os anmas. Ele vveu entre os homens, num clma de cordaldade e harmona, até o da em que eles dexaram de ser ustos e bons. Então, Monan nvestu-se de um furor dvno e mandou um dlúvo de fogo sobre a Terra. Até al a Terra tnha sdo um lugar plano. Depos do fogo, a superfíce do planeta tornou-se enrugada como um papel quemado, chea de salêncas e sulcos que os homens, mas adante, chamaram de montanhas e absmos. Desse apocalpse ndígena sobrevveu um únco homem, irn-magé, que fo morar no céu. Al, em vez de conformar-se com o papel de favorto dos céus, ele preferu converter-se em defensor obstnado da humandade, consegundo, após mutas súplcas, amolecer o coração de Monan. Segundo irn-magé, a terra não podera fcar do eto que estava, arrasada e sem habtantes. – Está bem, repovoare aquele lugar amaldçoado! – dsse Monan, afnal. A hstóra, como vemos, é tão velha quanto o mundo: um ser superor cra uma raça e logo depos a extermna, tomando, porém, o cudado de poupar um ou mas exemplares dela, a fm de recomeçar tudo outra vez. E fo exatamente o que aconteceu: Monan mandou um dlúvo à Terra para apagar o fogo (aqu o dlúvo é reparador) e a tornou novamente habtável, autorzando o seu repovoamento. irn-magé fo encarregado de repovoar a Terra com o auxílo de uma mulher crada especalmente para sto, e desta unão surgu outro personagem mítco fundamental da mtologa tupnambá: Mare-monan. Esse Mare-monan tnha poderes semelhantes aos do prmero Monan, e fo graças a sto que pôde crar uma sére de outros seres – os anmas –, espalhando-os depos sobre a Terra. Apesar de ser uma espéce de monge e gostar de vver longe das pessoas, ele estava sempre cercado por uma corte de admradores e de pedntes. Ele também tnha o dom de se metamorfosear em crança. Quando o tempo estava muto seco e as colhetas tornavam-se escassas, bastava dar umas palmadas na crança-mágca e a chuva voltava a descer coposamente dos céus. Além dsso,
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Mare-monan fez mutas outras cosas útes para a humandade, ensnando-lhe o planto da mandoca e de outros almentos, além de autorzar o uso do fogo, que até então estava oculto nas espáduas da preguça. Um da, porém, a humandade começou a murmurar. – Este Mare-monan é um fetcero! – dza o cochcho ntenso das ocas. – Assm como crou vegetas e anmas, esse bruxo há de crar monstros e Tupã sabe o que mas! Então, certo da, os homens decdram aprontar uma armadlha para esse novo semdeus. Mare-monan fo convdado para uma festa, na qual lhe foram fetos três desafos. – Bela manera de um anftrão receber um convdado! – dsse Maremonan, desconfado. – É smples, na verdade – dsse o chefe dos conspradores. – Você só terá de transpor, sem quemar-se, estas três fogueras. Para um ser como você, sso deve ser muto fácl! instgado pelos desafantes, e talvez um pouco por sua própra vadade, Mare-monan acabou acetando o desafo. – Muto bem, vamos a sso! – dsse ele, querendo pôr logo um fm à coméda. Mare-monan passou ncólume pela prmera foguera, mas na segunda a cosa fo dferente: tão logo psou nela, grandes labaredas o envolveram. Dante dos olhos de todos os índos, Mare-monan fo consumdo pelas chamas, e sua cabeça explodu. Os estlhaços do seu cérebro subram aos céus, dando orgem aos raos e aos trovões que são o prncpal atrbuto de Tupã, o deus tonante dos tupnambás que os esuítas, ao chegarem ao Brasl, converteram por conta própra no Deus das sagradas escrturas. Desses raos e trovões orgnou-se um segundo dlúvo, desta vez arrasador. No fm de tudo, porém, as nuvens se desfzeram e por detrás delas surgu, brlhando, uma estrela resplandecente, que era tudo quanto restara do corpo de Mare-monan, ascenddo aos céus. * * * Depos que o mundo se recompôs de mas um cataclsmo, o tempo passou e veram à Terra dos descendentes de Mare-monan: eles eram flhos de um certo Sommay, e se chamavam Tamendonare e Arconte. Como normalmente acontece nas lendas e na vda real, a rvaldade cedo se estabeleceu entre os dos rmãos, e não tardou para que a foguera da dscórda acrrasse os ânmos na trbo onde vvam.
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Tamendonare era bonznho e pacífco, pa de famíla exemplar, enquanto Arconte era amante da guerra e tnha o coração cheo de nvea. Seu sonho era reduzr todos os índos, nclusve seu rmão, à condção de escravos. Depos de dversos ncdentes, aconteceu um da de Arconte nvadr a choça de seu rmão e lançar sobre o chão um troféu de guerra. Tamendonare poda ser bom, mas sua bondade não a ao extremo de suportar uma desfeta dessas. Erguendo-se, o rmão afrontado golpeou o chão com o pé e logo começou a brotar da rachadura um fno veo de água. Ao ver aquela rsqunha nofensva de água brotar do solo, Arconte pôs-se a rr debochadamente. Acontece que a rsqunha rapdamente converteu-se num orro d’água, e num nstante o chão sob os pés dos dos, bem como os de toda a trbo, rachou-se como a casca de um ovo, dexando subr à tona um verdadero mar mpetuoso. Aterrorzado, o rmão perverso correu com sua esposa até um enpapero, e ambos começaram a escalá-lo como dos macacos. Tamendonare fez o mesmo e, depos de tomar a esposa pela mão, subu com ela numa pndoba (uma espéce de coquero). E assm permaneceram os dos casas, cada qual trepado no topo da sua árvore, enquanto as águas cobram pela tercera vez o mundo – ou, pelo menos, a aldea deles. Quando as águas baxaram, os dos casas desceram à Terra e repovoaram outra vez o mundo. De Tamendonare se orgnou a trbo dos tupnambás, e de Arconte brotaram os Temnnó.
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PARTE II
CONTOS TRADICIONAIS
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A MENINA DOS BRINCOS DE OURO
Anda hoe crcula por aí este conto saboroso, que começa assm. Hava uma menna que gostava de r buscar água na fonte, sempre com seus brncos de ouro. Toda a delíca da sua vda era ver-se refletda na água com aqueles dos pngentes dourados, um em cada orelha. Certo da, ela resolveu trá-los um pouco, para banhar-se na água, pos tnha muto medo de perdê-los na correnteza. Ao sar, porém, esqueceu-se de recolocá-los, e eles fcaram lá na margem. Ao chegar em casa e ver que esquecera os brncos amados, ela voltou correndo à fonte. Ao retornar lá, porém, deparou-se com um velho asqueroso. – O que quer, fedelha? – rosnou o velho. – O senhor não vu por aí uns brncos dourados? – Não, mas estou vendo uma bela menna de cabelos dourados! Apesar de velho, ele anda tnha força o bastante para fazer rundade e, com uma rapdez espantosa, tomou a menna e enfou-a num saco. – Agora, você va fcar quetnha aí dentro do surrão até eu mandar você cantar! – dsse o velho, levando-a nas costas, ao mesmo tempo em que lhe ensnava uma cantga que ela devera repetr sempre que o velho fosse fazer seus pedtóros. Ele dza: “Canta, canta, meu surrão, senão te meto o porretão!”, enquanto ela tnha de responder: “Metda no surrão de couro, nele he de sofrer, por causa de uns brncos de ouro, que na fonte ache de perder!”. Os dos andaram pra cma e pra baxo o da ntero, e a cada novo peddo do velho uma bordoada no saco faza a pobre menna repetr a sua ladanha: – Metda no surrão de couro, nele he de sofrer, por causa de uns brncos de ouro, que na fonte ache de perder! Certo da, as andanças do velho levaram-no à casa da mãe da menna dos brncos de ouro. Ao reconhecer a voz da flha, a mãe, afltíssma, convdou o velho para passar a note na casa. – O senhor está muto cansado. Coma, beba e depos ponha-se a descansar! O velho encantou-se com tanta cardade, especalmente com aquele negóco de beber. Depos de entornar quase uma ppa de vnho, ele se atrou numa estera e começou a roncar feto um bugo. Então a mãe, expedta, tratou de abrr logo o surrão e retrar a flha, quase morta, do seu nteror.
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– Flhnha amada! – dsse a mãe, enternecda, ao ver a menna anda com os brncos de ouro que ela lhe dera no seu anversáro. Enquanto o velho dorma, a mãe encheu o surrão de excrementos dos porcos e galnhas da casa, e dexou-o partr no da segunte como se levasse anda no surrão a pobre menna. – Adeus, mas voltare, pos aqu passe muto bem! – dsse o velho. Depos de andar um quarto de hora, a fome voltou a roer as trpas do velho. – Prepare-se, menna, pos é hora de cantar! Ao chegar a outra casa, bateu palmas e uma senhora apareceu. Como sempre ele dsse ao surrão: – Canta, canta, meu surrão, senão te meto o porretão! Só que desta vez o surrão fcou mudo. – Quer apanhar, fedelha? – dsse ele, repetndo o refrão: – Canta, canta, meu surrão, senão te meto o porretão! Nada outra vez. Então, tomando o porrete, o velho aplcou uma paulada com tal força no surrão que ele explodu, enchendo-o de ttca de porco e de galnha, dos pés à cabeça. O velho, depos dsso, fo preso e enforcado, para aprender a nunca mas andar por aí raptando mennas com ou sem brncos de ouro.
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OS QUATRO LADRÕES
Segundo Câmara Cascudo, o conto que vamos ler agora é tão antgo “que faza rr aos cruzados”. “Os quatro ladrões”, de fato, é um dos contos mas dssemnados pelo mundo – sua prmera aparção se fez na Índa, na mas remota Antgudade, até encontrar no Brasl a sua moderna versão tropcal. Dz-se, pos, que quatro ladrões estavam descansando certo da debaxo de uma árvore quando vram passar um sueto gordo levando consgo um bo enorme e rechonchudo. – Veam, amgos! – dsse o Ladrão Um. – Al temos carne para o ano todo! – Psu! Vamos passar logo a perna no bobo – dsse o Ladrão Três. O Ladrão Quatro, que não era de muta conversa, smplesmente seguu os demas. já estavam quase chegando quando o Ladrão Um teve uma dea melhor. – Mesmo estando em quatro, este gorducho anda pode nos crar problemas. Vamos nos separar e fazer o segunte. Ele explcou dretnho o plano, e logo os quatro estavam espalhados pela mata. O propretáro contnuou seu camnho com o bo até o Ladrão Um lhe aparecer pela frente. – Bom da, senhor cachorrero! – dsse ele, sorrdente. O gorducho apertou os olhos para ver quem era o autor da bobagem. – Cachorrero, dsse você? Onde há cachorro por aqu? O Ladrão Um fez um ar de pasmo e retrucou: – Ora, e este cãoznho felpudo aqu, o que é? – e passava a mão no cachaço do touro, enquanto assovava. O gordo, meo assustado, deu as costas e sau lgero, puxando o bo pela corda. – Só dá louco por aqu! Andou mas alguns passos e se deparou com o Ladrão Dos. – Lnda manhã para passear com o fla! – dsse este. – Está maluco? Que fla? – exclamou o gorducho. – O cão fla, aí. Meus parabéns, deve ser caçador, e dos bons! – Se ele é um fla, você é um vra-lata! – exclamou o gorducho, levando o bo.
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Andou mas um pouco até topar com o Ladrão Três. – Ora, vva – dsse este. – já va cedo pra caça? – Ah, meu Deus! Que caça? Não vê, então, que levo um bo? O Ladrão Três cau na gargalhada. – Ah, ah! Boa, esta! Mas que é cão, é! E cão dos bons! O Ladrão Três começou a alsar as fuças chatas do bo. – Este focnho pontudo aqu não engana! Deve farear uma cuta a qulômetros de dstânca! – Adeus! – dsse o gorducho, levando o bo de arrasto. No seu íntmo, porém, cresca cada vez mas a dúvda. – Será bo mesmo? – dsse ele, parando, a certa altura, para conferr. Ele hava comprado o bcho na fera, mas agora começava a desconfar de algum logro muto bem engendrado. Neste ponto o bo mugu alto, para desfazer a dúvda, e o propretáro acalmou-se. – Graças a Deus! É bo, mesmo! E que mugdo! Seguu adante, certo de que uma epdema de loucura grassava por perto. De repente, porém, surgu-lhe pela frente o Ladrão Quatro. – Ah, aí está! – dsse ele, a sorrr. – Pelo latdo bem v que era um senhor perdguero! – Que loucura! – exclamou o gordo. – Onde há cachorro algum por aqu? Não vê, então, que é um bo, estrupíco? O bo abanou a cauda, nervoso, e o Ladrão Quatro arreganhou anda mas os dentes. – Ah, ah! Abana o rabo que nem cachorro matero! E vem me dzer que é bo! A esta altura o bo, apavorado, pressentndo que a vrar um assado antes do tempo, começou a detar pela boca uma espuma branca. – Oh, mas que pena! – dsse o Ladrão Quatro. – Parece que o seu cão está hdrófobo! Depos desta, o gorducho não qus saber de mas nada: atrou a corda pra cma e sau correndo mata afora antes que o buldogue ravoso o estraçalhasse. Assm que o gorducho sumu, os quatro ladrões se reunram e passaram a faca no bo. Ao que consta, estão carneando o bcho até hoe.
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O CASAMENTO DA MÃE-D’ÁGUA
Hava, pos, um pescador que de pescador, ultmamente, só tnha o nome, pos não consegua levar para casa pexe algum. Então, certo da, obstnando-se em derrotar a maré de azar, ele decdu permanecer pescando note adentro, até arrancar qualquer cosa que fosse das águas. – Daqu só sao com um pexão de encher os olhos! – anuncou ele, lançando o anzol. O sol se fo, a note chegou, e nada de pexe, até que, de repente, lá pelas tantas da madrugada, um clarão se fez no mar e uma cantora de mulher subu harmonosa das águas. Aqulo tnha todo eto de vsagem, e o pescador se encolheu todo, dando quase para se esconder atrás do samburá vazo. Mas a cantora não cessava, até que uma cratura esplendorosamente bela emergu das águas e fo acomodar-se numa das pedras, um pouco depos da rebentação. Bem, se o pescador quera algo de encher os olhos, realmente conseguu o que quera, pos a cratura era realmente deslumbrante. Da cabeça à cntura ela era mulher, e da cntura para baxo era pexe. O pescador, que não tnha mulher nem pexe, sentu-se duplamente recompensado. – Deus é mesmo maravlhoso! – dsse ele, depos de blasfemar a note toda. De repente, a mulher-pexe mergulhou e o pescador entrou em pânco. – Espere, volte...! – grtou ele. Fez-se o slênco, até que a cantora recomeçou, desta vez bem próxma, a ponto de o pescador fcar meo hpnotzado. Ele entrou no mar, fcando com a água pela cntura, até que a mulher-pexe apareceu bem na sua frente. Com os cabelos molhados e o torso completamente nu, era uma vsão de sonho ou de pesadelo deletoso, o que acharem melhor. – Quem é você? – balbucou ele. – Sou a Mãe-d’Água, e vou ensná-lo a pescar – dsse a serea tupnqum. O pescador apanhou tanto pexe naquela note que o samburá vergou de peso. * * *
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A partr daí, começou um romance entre o pescador e a Mãe-d’Água, que culmnou num peddo de casamento. – Sm, eu quero! – dsse ela, donzela ngênua e sedenta dos prazeres do matrmôno. – Você rá vver comgo? – perguntou o pescador. – Está bem, vou vver em terra com você – dsse ela, cedendo. – Mas mponho uma condção. O pescador franzu a testa, pos era um tpo truculento. – Só vvere com você enquanto não desfzer da mnha gente do mar. O pescador susprou alvado! – É claro, amas falare mal da sua gente! – dsse ele, esquecendo-se logo do que prometera. A partr desse da, os dos foram vver na cabana do pescador. Quando a Mãe-d’Água chegou ao “nnho de amor”, entretanto, teve de fazer um esforço enorme para esconder a sua decepção. “Que pobreza!”, pensou ela, ao adentrar o casebre de duas peças. Um mormaço sufocante parava al dentro. Não hava cama nem rede para detar, só uma estera atrada no chão batdo. A mesa, por sua vez, nada mas era do que uma tábua comprda detada sobre duas plhas de tolos. Dos latões vazos de óleo de coznha, postos de cada lado da mesa, completavam a mobíla. Mas o que realmente a ncomodara fora a mudança no caráter do esposo. Desde a chegada, ela percebera que os modos do galante pescador havam se alterado radcalmente. – Dete-se aí! Tem a estera nternha dando sopa al. iara aproxmou-se cautelosamente da estera toda desfada. Quando estava a um passo dela, porém, retrocedeu nstntvamente: uma lufada de urna seca explodra nas suas narnas rosadas como uma bofetada. – Água e sabão têm por aí, pexnha. Trate de lmpar a casa. A Mãe-d’Água vrou-se para o esposo, mas ele á saíra. E fo assm que começou o seu martíro terrestre. * * * O tempo passou, e o mardo da serea fo fcando cada vez mas grossero. já no segundo da, o tratamento afetuoso mudou. O da ntero era um tal de “faça sso!” ou “faça aqulo!” que dava engulhos na pobre moça. Da após da, a Mãe-d’Água, obrgada a vver naquela maloca unto com um homem tão grossero, fo perdendo todo o encanto pelo casamento. – Então, é sto vver em terra? – dza de s para s. – O que está reclamando, agora? – perguntou o mardo.
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Ela desvenclhou-se, enoada, mas ele agarrou-a brutalmente. – Escute aqu! Comgo não tem choradera – dsse ele. “Onde está aquele pescador ngênuo e adorável?”, pensou ela. Então, ela decdu que, quem sabe tornando o mardo rco, pudesse torná-lo novamente gentl. Graças aos seus dons mágcos, as bênçãos começaram a chover sobre o casal, e logo eles estavam morando num paláco à beramar. Pena que ela tvesse de lmpar soznha todos os trezentos aposentos. – Não vou pagar crada alguma tendo uma mulher em casa! – dsse o pescador, com modos anda pores do que os do tempo da penúra. Então ela desesperou-se de tudo e, a partr daí, não fez mas outra cosa na vda senão postar-se, da e note, no anelão do paláco que dava para o mar e entoar seus cântcos aquátcos de saudade. infelzmente, as suas áras delcadas e pungentes só conseguam rrtar anda mas o mardo. Um da, fnalmente, ela decdu voltar para casa, custasse o que custasse. * * * A Mãe-d’Água sofreu muto nas mãos do mardo ao comuncar o seu deseo, mas, perdendo todo o medo, resolveu enfrentá-lo. – Não suporto mas esta vda em terra! Quero voltar para unto dos meus! – O que quer unto dos pexes maldtos? Neste nstante, um alívo abençoado desceu sobre a Mãe-d’Água. Ela estava fnalmente lberta, pos o mserável acabara de maldzer os seus parentes do mar! De repente, o céu fcou negro e uma onda medonha começou a formar-se na lnha do horzonte. O pescador arregalou os olhos ao ver a massa d’água avançar na dreção do paláco e, abandonando a esposa, correu como um alucnado para o morro mas alto. As águas nvadram tudo, cobrndo o paláco dourado até o topo, e quando refluíram para dentro do mar arrastaram consgo a ovem serea e o paláco ntero, até a sua últma pedra. E fo assm que a Mãe-d’Água voltou a morar nos seus adorados domínos, enquanto o pescador voltou a ser um pobre-dabo azarado e soltáro. Nunca mas conseguu trar cosa alguma do mar, nem mesmo as tatuíras da area, que lhe escorram áges pelos dedos, sem amas dexarem-se agarrar.
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COBRA-NORATO
Certa vez, uma mulher fcou grávda do Boto, o mas famoso sedutor das águas paraenses. Um casal de gêmeos nasceu. Era um lndo casal, só que um casal de cobras d’água. A mãe não qus saber deles e fo pedr nstruções a um paé. – Eles são cra da Cobra-Grande! – dsse ela, assustada. O paé, depos de consultar seus manes, dsse que ela devera abandoná-los às margens do Tocantns, e assm fo feto. O tempo passou, e as cobrnhas gêmeas vraram duas cobras ggantes. Uma delas se chamava Honorato, ou smplesmente Norato, e era uma cobra macho boa e cordata. Sua rmã, porém, tornou-se má e vngatva, e graças ao seu gêno rum fo chamada Mara Cannana (mal chamada, á que cannana, na língua tup, quer dzer “cobra não venenosa”). Durante muto tempo, Cobra-Norato tentou demover a rmã da prátca de maldades, mas ela não saba fazer outra cosa senão afogar banhstas e afundar embarcações. – Mnha rmã, desta vez você passou dos lmtes! – dsse-lhe Norato, certa feta, depos que ela fora bulr com uma cobra encantada que morava debaxo do altar de uma grea em Óbdos. Ela saba que se a cobra saísse dal a grea ntera rura. Mesmo assm, mexeu com ela e a cobra remexeu-se. Para felcdade das velhas beatas, a grea não ruu, mas ganhou uma rachadura de alto a baxo. – Toma tento, encrenquera! – dsse Norato. – Que tento, nem vento! Quem pensa que é? – slvou a Cannana. Então Norato atracou-se com a rmã e, depos de uma luta ttânca nas águas, matou-a. Desde então, passou a haver apenas uma cobra sobrenatural no Tocantns, que era Cobra-Norato. Após estraçalhar a rmã, ele recuperou a alegra de vver, tendo adqurdo até o hábto de fazer algumas vstnhas às aldeas próxmas do ro, especalmente à note, tal como seu pa Boto costumava fazer. Cobra-Norato adorava dançar e, sempre que hava um bale, saía das águas para seduzr alguma moça rbernha. Ele tnha o dom de se transportar magcamente de um lugar para o outro, e era assm que poda ser vsto, numa mesma note, em quatro ou cnco lugares muto dstantes.
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Quando ele abandonava o ro para fazer suas ncursões terrestres, costumava dexar nas margens a sua pele de cobra. De dentro dela surga um rapaz belo e charmoso, rresstível às mocnhas. Norato gostava tanto das suas surtdas noturnas que deseou tornar-se um ser humano como os outros. Hava, porém, um sortlégo que o mpeda de abandonar as águas. Certo da, num bale, ele pedu a uma moça que quebrasse a maldção. – É smples – dsse ele. – Basta que você despee algumas gotas de lete sobre a mnha cabeça e depos dê um golpe sobre ela, o sufcente para trar algumas gotas de sangue. – jamas podera fer-lo! – dsse ela, em prantos. Norato, porém, arrastou-a até as margens do ro e temou para que ela o lvrasse do mal. Antes, porém, ele deva assumr sua forma orgnal de cobra, e fo aí que tudo deu pra trás. Ao ver a cobra monstruosa, a pobre menna sau correndo de volta para a cdade. Norato, desconsolado, pedu a todo mundo que o lvrasse da maldção, mas era sempre a mesma cosa. Nem mesmo a sua mãe tvera coragem o bastante para encarar o monstro e lvrá-lo da maldção. Certa feta, porém, durante uma das festas às quas ele compareceu, um soldado valente se prontfcou a colocar um fm ao sortlégo do amgo. O soldado acompanhou Norato até as margens do ro, levando consgo uma garrafa de lete e a sua nseparável espada. – Pode vestr a pele! – dsse ele, ao chegarem ao ro. Norato entrou para dentro da pele e se transformou, outra vez, na temível cobra. O soldado fcou páldo como a lua, mas não recuou. Depos de abrr a garrafa, despeou algumas gotas de lete na cabeça da cobra e, em seguda, aplcou-lhe uma valente cutlada na cabeça. Algumas gotas mnaram da ferda, msturando-se ao lete, e, como por mágca, Norato tornou-se defntvamente homem. Desde então, o fabuloso Cobra-Norato dexou de ser cobra. O que fo feto dele depos, nnguém sabe. Há quem dga que vrou soldado e fo servr no mesmo batalhão do amgo que o desencantou, mas sto deve ser patranha de algum caboclo malcoso.
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O NEGRINHO DO PASTOREIO
Sem dúvda alguma, a lenda mas popular no extremo sul do Brasl anda é a do Negrnho do Pastoreo, uma hstóra trste e volenta. O escrtor gaúcho Smões Lopes Neto fo o maor dvulgador da lenda, a qual reconta-se agora, em outras e nferores palavras. Hava, nos tempos dos, um estancero perverso que adorava maltratar os escravos. Na estânca desse demôno, vva um negrnho chamado smplesmente de Negrnho. Não tendo mãe nem pa, nnguém se lembrara de batzá-lo. Graças a sso, dza-se que era aflhado de Nossa Senhora. Certo da, o estancero perverso resolveu organzar uma corrda de cavalos. O Negrnho, bom de cavalhadas, devera conduzr o cavalo do patrão. – Se perder a corrda á sabe! – ameaçou o estancero, mostrando-lhe o punho. Deu-se, então, a corrda, e o Negrnho levou a por. Mas a por, mesmo, ele anda estava por levar. O estancero perverso hava perddo ml onças de ouro, e quera se vngar no menno. – Esse tção me paga! – dza ele, vbrando o relho no ar, em uras de ódo. Nem bem o povaréu se espalhara ao redor dos espetos de carne gorda, o Negrnho vu-se amarrado numa estaca, na qual levou uma horrenda surra. Lá fcou a note ntera, e só quando amanheceu fo retrado e levado a um pedaço ermo de campo. – Va fcar aqu pastoreando o gado durante trnta das, pos trnta quadras tnha a cancha reta onde perdeu a corrda! – dsse o patrão, dexando o Negrnho sob o sol escaldante, sob o granzo furoso, sob o fro enregelante, e sob tudo o que há de molesto na mãe natureza. Durante as notes, o Negrnho provava outra colherada chea do nferno: cercado por coruas, onças, lobos, avals ou outros bchos que hava então pelos pampas, só encontrava algum sossego ao lembrar da sua Madrnha, e aí adormeca com um sorrso nos lábos. E fo usto numa dessas pausas do sofrmento que a sua ruína se completou: um bando de ladrões de gado, aprovetando o sono do pequeno vga, levou consgo todo o gado. Não é precso dzer que, no da segunte, o Negrnho provou outra surra daquelas.
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– Agora va procurar o gado que dexou levarem! – dsse o patrão, mandando-o, note fechada, para os campos abertos. O Negrnho passou antes na capelnha da sua Vrgem Madrnha e levou uma vela para alumar os camnhos. Enquanto avançava pelos campos, dexava car um pouco da cera ncandescente. Os pngos fcavam quemando pelo chão, como prlampos, enquanto ele avançava. Então, de tanto avançar, ele fnalmente achou o campo do pastoreo. O gado estava lá, e ele se detou para dormr, agradecendo à Madrnha Celeste. No meo da note, no entanto, o flho do estancero, um rapaz anda por do que o pa, veo de mansnho e espantou, outra vez, os anmas. O laço cantou de novo, e desta vez o Negrnho não resstu e morreu. A cosa toda se deu em campo aberto, e o patrão desgraçado achou que o Negrnho não mereca nem mesmo uma cova. – Atre-o al no formguero! – dsse ao flho. O corpo do Negrnho fo posto sobre o formguero, e as formgas caíram em cma, comendo tudo. Quando chegou em casa, o estancero sonhou que ele era ml estanceros, e que tnha ml flhos, e ml negrnhos para maltratar, e ml ml onças de ouro para gastar em bobagens. Durante três notes, o estancero sonhou o mesmo sonho. Então, na tercera note, tomado pelo remorso – ou pelo medo de ser descoberto –, resolveu voltar ao formguero para ver se as formgas havam comdo todo o corpo. Ao chegar lá, porém, deparou-se com a fgura do Negrnho, em pé sobre o formguero, são e sem marca alguma de ferda. Ao seu lado, estava a sua Santa Madrnha, toda serena e fosforescendo em azul. Os bchos perddos também estavam todos al. O estancero cau de oelhos e mãos postas, arrependdo, mas o que ele senta mesmo era um medo terrível de que algum castgo caísse sobre s. Enquanto o estancero se encha de medo, o Negrnho montou, em pelo, em cma de um dos cavalos e sau a tocar alegremente a tropa pelas coxlhas. A partr daquele da, o Negrnho passou a ser chamado de Negrnho do Pastoreo. Encarregado de encontrar cosas perddas, ele faz a busca de bom grado, mas sempre pedndo uma vela para a sua madrnha.
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