APTO A GANHAR AS ALMAS Direção espiritual no contexto monástico 2a edição revista e aumentada
D. Bernardo Bonowitz, ocso
é
Edições Subiaco -
2006
-
Apto a ganhar as almas - Direção espiritual no contexto monástico D. Bernardo Bonowitz, ocso - 2a edição revista e aumentada ISBN 85-86793-39-6 COPYRIGHT © 2006 by Associação M osteiro Trapista Mosteiro Nossa Senhora do Novo Mundo 83870-000 - Campo do Tenente - PR - Brasil e-mail:
[email protected] Editoração, impressão e acabamento: Edições Subiaco Mosteiro da Santa Cruz - Juiz de Fora - M G - Brasil Capa: Miniatura de Rabula - séc. VI
Todos os direitos reservados: nenhum a p a rte d esta obra p o de ser reproduzida ou transmitida sem permissão escrita do autor.
Dados Internacionais de Catalogação na Fonte (CIP)
Bonowitz, D. Bernardo, OCSO Apto a ganhar as almas: direção espiritual no contexto monástico / Dom Bernardo Bonowitz. - 2 ed. rev. e aum. - Juiz de Fora: Ed. Subiaco, 2006. 144p. ISBN 85-86793-39-6 1. Vida monástica - direção espiritual . I. Título CDD 253
SUMÁRIO Prefácio
07 Parte I - Direção Espiritual
Capítulo 1 Teoria da Direção Espiritual
13
Capítulo 2 O Diretor Espiritual: Mestre de Noviços conforme RB 58
17
Capítulo 3 Criando um Relacionamento de Confiança
23
Capítulo 4 Requisitos do Diretor Espiritual
29
Capítulo 5 A Arte da Correção
42
Capítulo 6 Direção Espiritual e Vida de Oração
49
Capítulo 7 Dificuldades Interiores da Vida Espiritual
55
Capítulo 8 Tópicos Principais na Direção Espiritual Capítulo 9 Colaboradores na Direção Espiritual Capítulo 10 Direção Espiritual em M om entos d e Crise Capítulo 10 Quando o Diretor “é o P roblem a” Parte II - Tornar-se m onge
n a sociedade secular de hoje Uma nova Paternidade Os Jovens de Hoje A Vida da Mente O Encontro com os Sentim entos O Outro O Compromisso Conclusão
PREFÁCIO
Quando se observa a grande história da humanidade, é fácil ver que há duas correntes espirituais que atuam continuamente na vida dos homens. Estão presentes em todas as culturas, em todos os lugares habitados por nossa raça e em todos os tempos. Com toda a probabilidade, portanto, as referidas correntes do espírito atuam em cada pessoa, uma, mais vertical, a outra, mais horizontalmente. As duas forças interiores foram nomeadas de maneiras diferentes. Uma impele o homem para seus semelhantes, a outra o atrai para o seu Criador. Esta última se expressa na oração e em anelo inato de união com o que nos transcende, com Deus. Para a fé cristã, trata-se de seguir Jesus Cristo na fidelidade à sua palavra, enquanto que a tendência mais horizontal se expressa em amar a todos, especialmente os mais necessitados, como Jesus os amou. Cremos que a grande força interior para a união com Deus e o anelo igualmente interior para a união social com nossos semelhantes encontram sua plenitude na realidade divino-humana daquilo que o apóstolo João chama: comunhão. “Nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo... Se caminhamos na luz, como ele está na luz, estamos em comunhão uns com os outros” (1 Jo 1, 3.7). 7
A experiência de séculos demonstrou um fato adicional sobre o qual vai tratar o livro que no momento você lem cm mãos. No esforço de viver com sinceridade estas duas dimen sões da vida do espírito, da vida evangélica, é muito útil receber o apoio de uma pessoa experimentada e de confiança. Tal pessoa faz as vezes de um irmão (ou de uma irmã) mais vcllio na família do Senhor. Costumava-se chamar “diretor espiritu al”. Hoje o termo mais usado é “conselheiro espiritual”, ou simplesmente, “amigo/amiga da alma”, sem lhe tirar o serviço necessário de dirigir, de aconselhar e de esclarecer. Nessa pes soa, nesse amigo, juntam-se as correntes vertical e horizontal do espírito, porque a vida é uma e o mandamento do amor também é uno, mas com duas dimensões igualmente necessá rias e eternas. O Padre Bernardo Bonowitz escreve aqui sobre estas realidades e o faz mais baseado no que viveu do que no que Icw que também é muito. Padre Bernardo, de família judia, foi batizado durante seus anos de universitário e logo entrou na Companhia de Jesus. Depois dos anos de formação religiosa, teve vários anos de experiência sacerdotal na Europa e nos Estados Unidos. Em 1982, passou à vida contemplativa como monge trapista na Abadia de São José, em Spencer, perto de Boston. Sendo Mestre de noviços em Spencer, foi eleito em 1996, Prior titular do Mosteiro do Novo Mundo, em Campo do Tenente, Paraná. Por isso, como o leitor verá, o livro comunica a riqueza pessoal do primeiro mundo, do segundo e do terceiro. Seu conteúdo brota de um a leitura contem plativa do evangelho, salpicada com a experiência pessoal de direção, de ensino e de 8
animação comunitária, tudo com a criatividade prazeirosa de um coração ao mesmo tempo profundamente cristão e profundamente judeu. Junto com o agradecimento por ter conhecido o Padre Bernardo durante muitos anos de convivência, a riqueza pessoal que é a sua me leva a oferecer ao leitor uma sugestão: a de ler o presente livro uma segunda vez. Isto permitirá saborear primeiro os níveis mais chamativos do texto para poder penetrar melhor, numa segunda leitura, no conteúdo substancial do texto, onde o divino e o humano se entremeiam para proveito de todos. Agustin Roberts, ocso Mosteiro Trapista Azul, Buenos Aires - Argentina
9
PARTE I
DIREÇÁO ESPIRITUAL NO CONTEXTO MONÁSTICO
CAPÍTULO 1
T e o r ia d a D ir e ç ã o E s pir it u a l
Uma primeira conferência assemelha-se à abertura de uma ópera. A função de uma abertura é introduzir os temas/motivos principais de um a ópera, para formar o ambiente/clima da peça e revelar desde o início, o final. Comecemos com um apofitegma - na cultura onde teve início a direção espiritual cristã. Um noviço é questionado p o r seu abba: "Como eu lhe p a r e ç o ? ” O noviço responde: “Como um anjo de Deus, Pai Seis meses depois, o abba repete a pergunta. Desta vez a resposta é: “Como o próprio demônio, com chifre e tudo ”. Aprendemos desta anedota que duas são as graças fundamentais que vêm através da direção espiritual: 1. O encontro com e a experiência de Deus no relaciona-
is
Teoria da Direção Espiritual
mento com um pneumatikós. 2. O encontro com as piores e mais difíceis partes de si mesmo, no relacionamento com o pneumatikós. Podemos chegar mesmo a afirmar que, enquanto a due ção espiritual não se transformar em amizade espiritual - quaiult > mestre e discípulo se “tomaram ”, ambos, “deuses no único Deus” (Evágrio) - o relacionamento do dirigido com o direi 01 é a) paralelo e indispensável para o relacionamento do di rígido com Deus - até que ele chegue a um conhecimenlo contemplativo de Deus; b) paralelo e indispensável para o relacionamento do dirigido consigo mesmo - até que ele alcance o autoconhecimento contemplativo. A direção espiritual fúndamenta-se na convicção de que a vida espiritual passa através de uma tradição viva. - Encarnação - Mediação - Sacramental idade. Assim como o dogma da Igreja é transmitido através dos professores e presbíteros, o biospneumatikós transmite-se através dos pais espirituais. Um pai ou mãe espiritual deve ser conduzido pelo Espírito, purificado das paixões que inevitavelmente distorcem o nosso noús e tomam a “ciência” - “discernimento” - impossível. A inteligência do diretor deve ser continuamente iluminada pelo Espírito, através de sua vivência na presença de Deus: 14
Apto a ganhar as almas
oração contínua, inclusive durante o tempo da direção. Na Igreja, a vida de Deus sempre nos vem através de mediações humanas, que não são empobrecimentos. Nesta tradição comunica-se “sabedoria” (sapientia crucis). Esta sabedoria é, primeiramente, transmitida através de um “viver na presença de” (presença icônica). Em segundo lugar, através da instrução, porém, não primariamente a teórica, como a das aulas, mas a instrução que surge da “manifestação dos pensamentos” . Jesus permanece o Mestre. E ele quem se faz presente através do Espírito no diretor espiritual; é sua sabedoria e sua graça que são progressivamente comunicadas ao dirigido. A finalidade da direção é então “que Cristo seja formado no dirigido” e o diretor se põe a trabalhar de novo e de novo, até que esta “formação” se realize. Correção e desafio são indispensáveis para a “passagem” do velho para o novo homem. A “autoridade” exercida pelo diretor como mestre de noviços não é prejudicial para o relacionamento da direção mas, ao contrário, benéfica. Direção espiritual não é simplesmente “aviso”, mas “obediência da fé” . Rsta obediência é derivada da autoridade (carismática, hierárquica) que o diretor possui. Daí a necessidade de, humildemente, crer nesta autoridade. A direção espiritual não pode ser questão de um encontro de uma hora, mas de constante contato, observação, influência. No contexto monástico é uma convivência. O diretor m o15
Teoria da Direção Espiritual
nástico não aperta as mãos do dirigido ao final da sessão e adeus, nem tampouco ele o conhece somente através da icii nião semanal. Ele o conhece, ama e reza por ele em “tempo integral”. O diretor, como Virgílio, ajuda a pessoa a vir para o “lago interior na clareira”. Ele guarda esta clareira da incursão de outros - e de si mesmo. Ele insiste que o noviço, para quem esta clareira está se abrindo, viva ali, junto ao lago, no lago
I
t í
i
CAPÍTULO 2
k
O D 1
M
ir e t o r
E
est r e d e
N
s p ir it u a l
:
o v iç o s c o n f o r m e
RB 58
São Bento oferece seis orientações relacionadas ao mestre de noviços: 1. É necessário que tenha “jeito”, dom (aptidão - aptus) para ganhar almas. Este dom é certamente algo que pode ser desenvolvido. Mas como qualquer carisma, não pode ser “programado” ou assumido. Nem todos o possuirão. Enquanto totalmente diferente de popularidade, esta aptidão implica numa capacidade de atrair almas, atrair sua confiança e obediência e numa credibilidade. Esta pessoa - diz o noviço - deu a sua vida a Deus e sobreviveu. Tomou à vida numa nova maneira. Portanto, quando o Senhor pedir o mesmo de mim, tenho uma base para dar o meu consentimento. 2. É necessário que seja vigilante em relação àqueles que cie guia. Vigilante não significa possessivo ou todo-absorvenIc. Em sua maior parte esta vigilância deveria passar desperce17
O Diretor Espiritual: Mestre de Noviços Conforme RB 58
bida pelos noviços. Isto significa que o crescimento do w ir/çe em Cristo é constante preocupação do mestre, tanto quanlo o seu próprio crescimento pessoal. Ele leva o noviço à esfera dc sua vigilância sobre si mesmo (nepsis). Além do mais, ele aci e dita, junto com Cassiano, que as atitudes e comportameiilos adquiridos no noviciado são “formativos”, determinativos (ln.\ tituições). Portanto, ele procura observar se o noviço está dc senvolvendo atitudes estáveis de generosidade, equilíbrio, receptividade, constância, etc. 3. É necessário que permaneça atento ao modo do noviço viver o Ofício Divino (toda a vida de oração), obediência e opróbrios'. Vida de oração - Há um desejo de ser recriado pela Palavra de Deus? () Ofício Divino é vivido como um encontro com Deus em sua Palavra - um tem po de atenção, conversão, autotranscendência, experiência da Igreja orante? O que a pessoa está fazendo com as distrações e o sonhar acordado? - Os textos e as pessoas das Escrituras estão se tomando parte da vida interior do noviço? Está pouco a pouco compreendendo existencialmente que “todas estas coisas foram escritas em nosso favor”? Monge é toda personagem da Bíblia. Ele se reconhece nos israelitas saindo do Egito, em Elias em oração, na mulher cananéia, esmolando pelas migalhas? Fica “proso por um texto”, isto é, em momentos de tentação, encontra sustento e coragem na promessa bíblica? Ele está gradualmente 18
Apto a ganhar as almas
vindo a amar as Escrituras: “Senhor, como eu amo a vossa Lei”, a ponto de esquecer-se nela dia e noite? - O que ele pensa da cela e da capela? Está aprendendo a “esconder-se nelas”? Está experimentando a Shekinah que se faz presente de um modo especial na igreja do mosteiro? Descobriu a igreja como um lugar especial de alegria e compunção? Há nele um espírito de adoração? A cela é um “cantinho”, o último reduto do meum, ou é verdadeiramente o lugar para estar a sós com Deus? Ele vai espontaneamente para a igreja ou para a cela durante os “intervalos”? O bediência - O noviço está disposto a se identificar com o centurião, como “um homem sob obediência”, um discípulo vitalíciol Aceita a obediência m onástica como a sua sacramentalização particular de ser o fiel servo de Deus? Compreende a “mística da obediência”, baseado na servência de Jesus: dominicum servitium, que é ao mesmo tempo: I - o serviço que Jesus mesmo prestou; II - o serviço prestado a Cristo; e III - o serviço “senhorial” (cui servire regnare est). - Como um adulto maduro e responsável, ele está desejoso de atingir o terceiro grau da humildade: obediente até a morte por amor de Cristo? - Ele compreende a ligação entre ato e atitude na obedi19
O Diretor Espiritual: Mestre de Noviços Conforme RB 5H
ência (como em RB 5)? Percebe a conexão entre obcdiém ui r pietas, de modo que esteja progredindo para um “amoi *.rm fingimento” com o qual deve viver o relacionamento de obcdi ência (RB 72)? Deseja que o abade seja uma presença do Pai em sua vida, “meu pai em Deus”? - Como responde quando caem sobre ele coisas duiiiv difíceis e injustas no exercício da obediência? Sem reprimir o:, sentimentos de dor e desapontamento, estas experiências po dem servir para fazê-lo confiar mais inteiramente em Deus, sem se tom ar amargo ou azedo para com os seus superiores? í:. possível que o sofrimento infligido por um superior possa, a longo prazo, aprofundar a unidade entre eles? Opróbrios Espontaneamente, cada noviço desenvolverá uma teologia do sofrimento - seu próprio sofrimento. É quase certo que. até o momento da sua entrada, esta teologia possa ser resumida como fu g a doloris. O sofrimento, contudo, se tom ará agora um a constante na vida do noviço: separação da família e dos amigos, inserção num clima não-familiar; adaptações físicas dieta, trabalho manual, horário (vigílias); falta de variedades e distrações; relacionamentos humanos baseados em algo mais que “jovialidade”; a emergência visível das paixões e a frustração de ser incapaz de dominá-las; a experiência de peso, chateação, vazio; a sensação de que a “ponte da sua vida” está se rompendo, o chão cedendo. Que tipo de resposta o noviço form ará de tudo isso? Uma resposta decisiva para se viver o m istério central, o mysterium crucisl 20
F
I f
Apto a Ganhar as Almas
i ' i
4. 0 mestre de noviços deverá ver se há uma verdadeira busca de Deus, e se essa busca toma-se mais e mais abrangente. O noviço deve “desej ar a Deus”, desej ar viver na sua presença, desejar conhecê-lo experimentalmente, desejar agradá-lo em todas as circunstâncias da sua vida. “Deus” não pode ser colocado no mesmo nível que a comunidade, o crescimento pessoal, a realização. Ele deve ser buscado por si mesmo: causa amandi Dei Deus. Deus deve tom ar-se a intentio cordis: todas as suas atividades, interações e sofrimentos devem ter a Deus por objetivo. Deus deve tomar-se cada vez mais o conteúdo da memória do noviço. À medida que vai sendo testado nas demais coisas ou estas lhe são retiradas e somente Deus vai ficando, como o noviço vive e aceita isto? Deverá conduzir o noviço à humilde busca de Deus que só pede para habitar com ele; ao timor Domini como uma atitude que progressivamente define a pessoa (RB 7, 12° grau); à santidade compreendida como caminhar com Deus mais do que “tornar-se como” Ele através de um a ascensão neoplatônica. 5. O diretor/mestre de noviços deve insistir nos dura et aspera per quae itur ad Deum. Ele deve conseguir com êxito juntar estas duas idéias: que este Deus desejado com todo o coração é alcançado através da experiência a longo prazo de realidades duras e difíceis, e que o coração puro que possui a Deus é modelado pouco a pouco como fruto de provações inesperadas e freqüentemente dolorosas. Assim como Jesus aprendeu a obediência através do sofrimento, assim também o m onge. E esta obediência coincide com a pureza de coração e a visão incipiente de Deus. 21
O Diretor Espiritual: Mestre de Noviços Conforme l?M Í>M
Sabemos que nada disto tem a ver com “feitos' mu-, com o ser atingido por Deus, pela comunidade, por si iiu-miu ■ pelo demônio. E em ser tocado por estas pessoas cm iiIm t. cada vez maiores de vulnerabilidade. Se traçarmos 11111:1 Imlm para além da qual estas pessoas não passam, nós não elirp.i mos a Deus. 6. O diretor/mestre de noviços deve “testar a paciência' do dirigido. O diretor não somente supervisiona, orienta, ms trui, corrige, estimula, modela, dialoga, intercede: ele também 0 “põe à prova”. Não se trata de criar uma “série de obstácu los” para que 0 noviço salte por cima. O mestre de noviços confia que Deus e a vida providenciam a maioria das situações santificantes. Mas, por outro lado, ele tem 0 dever de “mantei o noviço preso” às suas obrigações espirituais. Isto é verdade no tocante às responsabilidades diárias, isto é verdade no tocante a “exercitar” um noviço a transpor uma barreira até en tão impossível. Isto é especialmente verdadeiro quando o novi ço está numa daquelas crises “nem ata nem desata” e só deseja que a sua dor seja aliviada. É então que 0 diretor deverá insistir na fidelidade, não deverá permitir que o jovem monge se “esquive”. Tantos religiosos vivem abaixo do nível de suas possibilidades reais. O diretor espiritual não deve colocar a corda numa altura impossível, mas deve pedir aquilo que ele vê que a pessoa é capaz de fa z e r-n o presente e no futuro. A direção espiritual abre espaço a muitas formas deste “teste de paciência” : humor, citações, oração em comum, seriedade profunda.
22 1
CAPITULO 3
C r ia n d o u m R e l a c io n a m e n t o d e C o n f ia n ç a
Quando penso no requisito de São Bento para o mestre de noviços - aptus ad lucrandas animas - penso imediatamente neste “chamado” principal do diretor espiritual: criar uma atmosfera de confiança dentro da qual o noviço irá espontaneamente, e com desejo, abrir o seu coração ao diretor. Assim como as Constituições de nossa Ordem e o senso comum deixam claro, o entregar-se através da manifestação de si próprio, indispensável, tal como é, para a direção espiritual, não deve ser forçado. Uma pessoa nunca deve ter seus segredos arrancados por “obediência” . Tão ruim quanto isto, seria a experiência de se ver invadido em sua privacidade por um formador psicologicamente sedutor. Em primeiro lugar, se o diretor deseja criar um clima de confiança, o mais importante é ser um “homem de Deus”, um “amigo de Deus” . Obviamente esta não é uma postura assumida a lim de despertar confiança por parte do noviço; ela é a 23
Criando um Relacionamento de Confiança
aura que transmitimos. Se durante anos tivermos sido rccrph vos à Palavra de Deus, à graça do Espírito Santo, às neccssul.i des da comunidade, à orientação da realidade, então sc leia formado em nós uma receptividade para os corações das oul i pessoas. Receptividade sobretudo para com os principiantes. Acredito que haja um carism a de formador: um dom de uma receptividade pastoral e direção que se volta espontaneamente para principiantes, que sente um desejo e uma capacidade para iniciar a comunicação da vida espiritual — um milhão de vezes, em noviço após noviço. Neste sentido, o mestre de noviços é o perpétuo professor do jardim de infância, completamente feliz em começar mais uma vez com o bê-a-bá. É diferente do carisma abacial, cujo dom é mais de acompanhar monges experimentados e estar disponível para eles em tempos de crise, de tédio, etc. Nesta ótica, o mestre de noviços, a fim de atrair esta confiança, é alguém que se experimenta como um perpétuo noviço. De algum modo, não obstante os muitos anos de vida monástica, ele conserva o fervor novitius; ao ler e estudar sempre os mesmos textos, ano após ano, estes lhe parecem sempre preciosos. Em segundo lugar, o diretor tem que deixar claro que está ali para “dar vida”. Se Deus quiser, o relacionamento será o de uma amizade espiritual; não deve ser uma amizade na qual ele busca algo para si mesmo — afirmação, satisfação ou necessidade de intimidade. A decisão de ser o “doador” nesta 24
Apto a Ganhar as Almas
situação é fundamental por duas razões. 1) Caso ele não o seja, o dirigido mais cedo ou mais tarde “farejará” o fato de que ele está sendo usado, fechando-se como um a ostra ou respondendo com a correspondente inconveniência. 2) Em grande parte, o papel do diretor é o de educar as pessoas para o desapego e liberdade de espírito. Se ele olha para o noviço como um “amigão”, não terá autoridade para lhe pedir sacrifícios, nem o discernimento a fim de ver quais são realmente necessários, nem tampouco a coragem para solicitá-los - por medo de que isto venha a lhe custar a afeição do noviço. Em terceiro lugar, a fim de criar este clima, o diretor/ mestre de noviços deve ter paciência. Vários meses de conversas serão necessários até que uma conversa natural, não-desajeitada seja possível. As conversas anteriores frutuosas que aconteceram anteriormente constituem a base de uma boa conversa. Para um iniciante, porém, um a conversa frutuosa não é necessariamente um grande momento de libertação (breakthrough), mas um a conversa na qual as necessidades e questões que ele desejou apresentar foram abordadas com alguma profundidade: freqüentemente pequenos fatos concretos que para ele têm uma importância real - ele se sentiu acolhido e lhe foi permitido ser ele mesmo. Se o noviço teve um outro diretor espiritual no mosteiro (por exemplo, o diretor vocacional), é óbvio que ele vai demorar algum tempo para fazer a transferência. É injusto pensar nele como uma torneira obrigada a abrir-se ao toque de cada mão. 25
Criando um Relacionamento de Confiança
Além disso, ter um diretor espiritual/mestre de noviço* ■' uma novidade para ele. Trata-se de um relacionamenlo miii elementos de autoridade, elementos de profissões auxili.iivt elementos de relações familiares, e finalmente, com lodo>. i>-, aspectos envolvidos no fato de se lidar com um a pessoa que dc alguma forma se supõe falar por/como Deus. O noviço p ina sará descobrir o seu caminho nesta situação nova; certamente ele estará tentando decifrar o que é “apropriado” e observai a i > diretor em busca de pistas. É importante tom ar claro para o noviço o que é direção espiritual, como funciona, o que pode oferecer - explicai isio simplesmente, de uma maneira informal. Ao mesmo tempo para aquelas pessoas que se sentem mais à vontade com algum tipo de esquema ou de notas, poderá ser uma ajuda oferecei diversos modos de se preparar para a direção espiritual. O ambiente deve ser de alegria. Nem todo diretor/ineslic de noviços tem uma segunda carreira como comediante de piau tão, mas a direção espiritual deve ser experimentada desde o início fundamentalmente não como um dever ou um desallo, mas como o momento em que a semana que passou pode ser revivida e confiada, e muitas vezes, onde os seus pesos e fardos podem ser deixados. O noviço deve ser capaz de ansiar pela direção espiritual. Mesmo se a semana foi um “fracasso”, deve haver a oportunidade de rir a esse respeito com o diretor. Isto significa, sem falsidade nenhuma, que a direção espiritual no início deve incluir uma boa dose de encorajamento 26
Apto a Ganhar as Almas
e de elogio. O noviço típico, em geral, faz tudo o que está ao seu alcance para agradar a Deus, e precisa escutar que ele o está agradando. Desde o início poderá haver problemas com insegurança e desencorajamento, e um a das partes mais belas do ministério do diretor é a de contrabalançar estas tendências. Um ben trovato pode perdurar bastante na alma de um noviço que está sofrendo. Simultaneamente, quando o diretor percebe um bonito traço de caráter, é muito precioso para o noviço que esta percepção lhe seja comunicada com toda a simplicidade. Outra forma de encorajamento rumo à confiança é que o mestre de noviços confie no noviço. Por um lado, há a noção de Cassiano que quando o diretor revela as suas faltas para os jovens, eles se sentem menos esmagados por elas e são mais capazes de falar a esse respeito. Mas é mais do que um a técnica. De algum modo, o diretor tem de entregar a história de sua vida ao noviço, e não somente contar anedotas edificantes do seu passado. Se ele não deseja convidar o noviço para dentro da sua própria história de um modo autêntico, o noviço terá boas razões para trancar a sete chaves a sua própria. Também pode acontecer algo como uma decisão em não ser transparente. Se for temporária e possível de ser superada, então, obviamente, não é grave. Mas é muito grave naqueles raros casos em que a pessoa tom a a firme decisão de seguir o seu próprio juízo. Penso que esta não pode ser uma decisão aceitável. Em algum momento, a abertura ao diretor precisa ocorrer. Se isto não acontece, as coisas simplesmente não estão caminhando bem. Algum tipo indevido de autoformação está 27
Criando um Relacionamento de Confiança
acontecendo. Pequenos, porém importantes, detalhes concretos: - o ambiente da conversa: caminhando ou sentado; - a duração, de uma a uma hora e meia: por que não mais; por que não menos? - a freqüência dos encontros.
28
CAPÍTULO 4
R
e q u is it o s d o
D
ir e t o r
E s pir
it u a l
Num de seus sermões sobre o Cântico dos Cânticos, João de Ford afirma que enquanto é natural para os monges assumir que estão carregando a cruz da obediência em relação ao seu abade, na verdade é muito mais o abade que se permite ser colocado na cruz da obediência pela sua comunidade. Não existe algo do tipo pai ou mãe espiritual “genéricos”. Paternidade ou maternidade espirituais genuínas se referem sempre a pessoas específicas (ninguém, a não ser Deus, é Pater universalis). O pai espiritual assume a sua função ao se tomar pai de um filho em p articu lar. É errôneo imaginar, portanto, que toda transformação ocorra no íntimo do dirigido. Neste sentido, o princípio da encarnação é guia para o diretor espiritual. O diretor “assume a natureza” da pessoa que ele está dirigindo - a natureza e, em certo sentido, o destino. A adaptação é a “cruz da obediência” do abade/diretor. Assim, São Paulo não estava brincando ao dizer que ele se fez “tudo para todos a fim de salvar o maior número possível”. Este “fazer-se um” é o compromisso de amor do diretor 29
Requisitos do Diretor Espiritual
para com o noviço. Onde ele não existe, a direção espiriluai não acontece - posto que a direção espiritual é a transmissão de vida de “pai legítimo” para “filho legítimo”. Um tal carisma requer ao mesmo tempo uma imensa llexibilidade e um profundo auto-enraizamento. Permito que Uuli > aconteça comigo - estimulo ativamente o processo - para me tomar o pai de Fulano. E, todavia, sou eu e não Fulano o pai c se eu cresço em identidade familiar com ele é só para que cu possa transmitir-lhe a vida espiritual que flui através de mim .. de um modo que lhe seja possível recebê-la. Muito do trabalho da paternidade/maternidade espiritual deve ocorrer antes de se tornar diretor espiritual (isto é absolutamente claro para os pais/mães da tradição do deserto). Este trabalho preliminar não se limita simplesmente à aquisição dos rudimentos da santidade pessoal. É muito mais amplo. Veja mos: Requisitos Intelectuais Muitos de nós conhecemos o famoso paradoxo de Sta. Teresa d ’Avila ao dizer que entre escolher um diretor espiritual erudito ou piedoso, sempre optaria pelo erudito. Por quê? Porque uma certa largueza e profundidade intelectual são indispensáveis para a direção espiritual. a) o diretor necessita de uma certa habilidade em colocar realidades espirituais em palavras: conceitos, imagens, enigmas, piadas; b) o diretor necessita ser imbuído da teologia da Bíblia c 30
Apto a Ganhar as Almas
dos Padres, inteligentemente; c) o diretor precisa ser capaz de ter uma “visão ampla” da situação, ser capaz de contextualizar a dificuldade imediata do dirigido; ser livre do moralismo ou “entusiasmo” que surgem de uma insuficiente formação intelectual; d) em momentos de significado decisivo para o noviço, o diretor deve ter a habilidade de refletir e penetrar, abrir o seu caminho através do brejo de emoções, preconceitos, pressões e chegar à questão real que está em jogo e expô-la para o noviço muito calma e claramente; e) o diretor erudito tem muito menos medo ou é muito menos abalado pelas dificuldades ou “estranhezas” pelas quais o dirigido venha a passar. Sua tendência será conduzir, pacífica e gradualmente, a situação de volta ao seu equilíbrio. Ele será menos rigorista, menos apodíctico, menos ligado a preconceitos. Dúvidas, paixões e novidades teológicas não irão preocupá-lo (por ex. a presença real na Eucaristia; a virgindade de Maria). Requisitos Psicológicos O diretor que realmente vai ajudar o seu dirigido deve ser profundamente versado em psicologia: a saber, sua própria psicologia. Desde o tempo de Santo Antão até o presente, temse demonstrado claramente que am adurecimento espiritual acontece através de desordem e de ordem. A aceitação da vida de Deus, o poder de Cristo, a graça do Espírito na vida de uma pessoa com mais freqüência a per31
Requisitos do Diretor Espiritual
turba do que a pacifica. Até então, o indivíduo formara uma estrutura interior que funcionava sem Deus. Era fragmcnlái 1,1 imperfeita, pecadora, m an cava-m as funcionava. Agora que a vida de Deus é acolhida, espera-se que Ele faça uma devasla ção: o reino dos céus é como uma mulher numa loja de chapéus Santa Teresa d ’Ávila deixam uito claro no Castelo Inlcn or que esta desordem/reordenação se estende por muitos anos c que em seu último período é de uma intensidade devastadora (a sexta morada). Parece-me que São João da Cruz tem razão ao falar de dois períodos decisivos e prolongados de translbi mação espiritual: - de sentimentos/imaginações para uma vida governada pela vontade e razão; - de uma vida governada pela vontade e razão para uma vida governada pelas virtudes teologais (Rancé: - sujeitar a carne ao espírito; - o espírito ao Santo Espírito). Assim o noviço - particularmente o bom noviço, e ainda mais o bom professo simples e o bom professo solene - irão passar por tremendos abalos. Além de influenciar os seus padrões de alimentação, de sono, humor, produtividade, sonhos, estas crises o tocarão em seu ponto nevrálgico: tocarão nos redutos do seu ser e os deixarão abertos para uma estranha vida - a vida de Deus. Tudo isto significa que o diretor é alguém que deve ter vivido - ou estar vivendo - uma experiência paralela. Embora 32
Apto a Ganhar as Almas
haja casos excepcionais em que o dirigido é chamado a “purificações” (e santidade) que de longe superam aquelas que o diretor experimentou, há uma trajetória comum para o processo de se passar de um a vida egocêntrica para um a vida teocêntrica: há confusões, tentações e sofrimentos que, grosso modo, aparecem no caminho de todo mundo (se assim não fosse, não haveria justificativa para livros de teologia mística!). Neste sentido o diretor deve ser um homem de “experiência”, a fim de não ficar chocado. H á algo do exorcismo bíblico nestes “passos espirituais” e quando o demônio é desafiado e se sabe quase derrotado, ele pode se tomar bem selvagem. Evidentemente, por um tempinho, ele falará com a voz do dirigido: lembremo-nos de quanto tempo levou para Antão reconhecer que a intensa luxúria que ele sentia não era somente uma luta moral pessoal, mas algo provocado pelo “menininho”. A experiência pessoal do diretor e a intuição espiritual que dela se origina, o ensinarão a agir nestes momentos tão críticos - e nos não tão críticos. Isto o capacitará a ser mais paciente ao acompanhar um processo de grande mudança, a ser mais familiarizado com os inevitáveis altos e baixos, mais seguro em saber quando deve exigir e quando deve dar apoio, mais capaz de sofrer por um longo tempo quando um momento de morte e ressurreição está acontecendo, sem sucum bir à exaustão e precisar interromper o processo: “Sinto muito, mas você não tem a nossa vocação”. Ao mesmo tempo, isto lhe dará a clareza necessária para 33
Requisitos do Diretor Espiritual
reconhecer quando o processo saiu dos trilhos do espirilmil r se transformou (ou se revelou) como uma séria dificuldade psi cológica (paranóia). Nem sempre “deixar tudo de lado” é ‘‘pm a a glória de Deus”. As vezes é simplesmente a manifestarão de um grave problema que, na verdade, indica um a incapacidade para a vida monástica. A experiência do diretor será de grande importância para distinguir os dois tipos de processos. Sendo ele mesmo um homem de experiência, o dircloi terá uma postura equilibrada com relação à psicologia moderna e aos psicólogos modernos. Por um lado, ele se mostrará interessado em aprender as teorias básicas da personalidade humana e de estudar uma delas em maior profundidade, Ide estabelecerá contato com um bom psicólogo (antes que a crise chegue), a quem ele poderá recorrer quando necessário ou enviar o dirigido. Por outro lado, é justo que confie em suas próprias percepções e na sabedoria psicológica da tradição m onástica. Neste domínio particular da transformação espiritual psicológica, ele, mais que o psicólogo leigo, é a pessoa de referência. Requisitos Culturais Assim como um a comunidade necessita inculturar-se, assim também o necessita o diretor espiritual. Não lhe basta possuir um a cultura monástica “genérica” (se é que tal coisa existe). Ele deve ter dentro de si duas culturas (três, se ele provier de uma outra): a cultura monástica clássica de sua Ordem e a cultura popular. Deve conhecer e desejar conhecer mais e mais, a literatura, arte, música, folclore, história, espiritualidade das 34 i
Apto a Ganhar as Almas
pessoas que ele dirige. Deve ouvir com respeito a sabedoria popular, (ditados, gírias, provérbios). Hoje sabemos que o diretor espiritual Jesus é inimaginável fora de Israel: seu humor, sua intensidade, sua ternura, sua piedade, sua maneira parabólica e enigmática de ensinar, todas elas derivam do judaísm o rabínico do seu tempo. Sem isto, ele teria sido absolutamente incompreensível para os seus discípulos e eles teriam sido incapazes de se comunicar com ele. Não estou falando de “fazer um doutorado” ou desenvolver um hobby. Ao invés disto, estou pensando em alguém como Dom Cristiano de Chergé, monge do M osteiro de Atlas que se tomou um monge franco-católico-argelino-muçulmano-trapista. Requisitos Humanos Se for um homem, o diretor deve ser um pai; se for uma mulher, a diretora deve ser um a mãe. E, independentemente de ser homem ou mulher, o diretor espiritual deve ser um pouco de ambos. Dentro do ambiente monástico, o diretor espiritual é sempre do mesmo sexo do dirigido. Isto significa que, de um modo especial, o diretor espiritual funciona como o “futuro” do noviço (“Pai, para mim basta-me vê-lo”). Sem adoração do herói ou identificação em todos os pontos entre as duas pessoas, o diretor espiritual é a “maturidade” do noviço. São Paulo não hesita em dizer: “Sede meus imitadores, assim .como eu o sou de Cristo” .................. .............. O diretor espiritual deve representar um futuro digno para 35
Requisitos do Diretor Espiritual
o noviço e capaz de gerar este futuro no noviço. Como ele pode fazê-lo? O diretor espiritual deve ser, acima de tudo, um a pessoa amável. Não de uma amabilidade fria (contradição em termos), mas uma pessoa afetuosa. O diretor espiritual deve ser suficientemente maduro para saber que o crescimento do dirigido em Deus, em si mesmo, na comunidade, em sua vocação - é de fundamental importância para si mesmo. E deve ser espontaneamente interessado. Não falo de dever, mas de grandeza de alma. Se os noviços são uma promoção profissional, ou um dever, ou um aperitivo do ego, o diretor se verá severamente amputado. O mestre de noviços deve ter sido escolhido porque se percebia que um “poder (vida/cura) saía dele” . Não é todo monge que tem a graça de ser um bodhisattva - de incluir, espontaneamente, o bem dos seus discípulos no seu próprio bem espiritual. Não é todo monge que se preocupa, como São Bernardo, com a digestão dos seus filhos espirituais. Não é preciso possuir esta graça para ser considerado um bom m onge. Mas para ser um bom diretor espiritual é indispensável. De certa forma, o diretor espiritual deve expressar perceptivelmente sua afeição. Embora a idéia de entrar num mosteiro possa temporariamente inflar a auto-importância da pessoa, o fato real de estar no m osteiro é um a experiên cia “desinflante”. Os noviços sentem a sua ignorância, falta de je ito, inexperiência, percebem que ainda estão verdes - tudo isto desde o primeiro dia. Porém, bem cedo, assim que os barulhos interiores começam, eles se sentem alfinetados por um sentimento de desvalor, de culpa, de estarem quebrados. Quase sem36
Apto a Ganhar as Almas
pre são assaltados por solidão. Então, por amor a Deus, que haja alguém que lhes sorria e que estavelmente dê testemunho, verbal e não-verbalmente, da dignidade e amabilidade fundamentais da pessoa. Todo monge deve lutar pelo semper idem\ e ainda mais o diretor espiritual. O diretor tem o direito de ter seus altos e baixos,-como. todo. mundo; mas deve _vivê-los. em particular. Pois de certa forma o ambiente pessoal do diretor espiritual é o quinhão de solo no qual o noviço cresce. Este quinhão deve ser muito tranqüilo, muito apoiador, muito receptivo. Há tantas coisas dinâmicas - para não dizer revolucionárias - que estão ocorrendo no noviço. Ainda mais importante a correspondente síasis. Poderíamos dizer ainda que o mestre de noviços é o “vaso” no qual o noviço é pela primeira vez plantado. Mais tarde, ele será transplantado em Deus e crescerá dentro da constância e dependência de Deus. Por ora, o mestre de noviços tem esta função de ser o ambiente favorável para o seu crescimento. O semper idem inclui ainda, além do humor, o comportamento, a doutrina e os princípios. Queira ou não, o mestre de noviços é o ideal, e se ele se mostra inconstante em seu comportamento (em particular em seu comportamento monástico), cie deixa o noviço confuso. Do mesmo modo, ele tem o dever dc comunicar um ensinamento consistente: o que diz acerca da Igreja, do papa, de Nossa Senhora, da Eucaristia tem de ser reverente e de certo modo “predizível” . De modo algum quero privar o diretor/mestre de noviços de sua originalidade ou criatividade. - Apenas quero que ele tenha uma doutrina reco37
Requisitos do Diretor Espiritual
nhecível, dentro da qual sua originalidade e criatividade po>. sam se expressai' (cf. RB 2,6-7: “o ensinamento do abade") Seus princípios também, - sejam acerca de afetividade/soxiiu lidade, separação do mundo, etc., - devem ser marcados pela clareza. Flexibilidade não é um valor independente em si mes mo; é, antes, o uso da discrição no contexto da clareza. O diretor espiritual deve ser uma pessoa de força/carálci Aquilo que ele reconhece através da oração, do discemimculo e aconselhamento como sendo o melhor para o noviço numa dada situação, ele deve ter a força de implementar. Por vezes encontrará hostilidade, adulação, manipulação, resistência por parte daquele que ele está dirigindo; mas se está convencido dc que o caminho no qual ele está guiando o noviço é necessário para a sua transformação, deve persistir nele. Mais ainda: sc ele acredita que o Espírito Santo está guiando o noviço num determinado caminho, ele deve contribuir em tudo a fim dc mantê-lo fiel. Às vezes, ele se sentirá como Deus Pai entregan do o seu filho. Nestes momentos, que ele se lembre que ele o está entregando para a ressurreição. Requisitos Espirituais O sonho do diretor espiritual é que o noviço se tome um “homem de Deus”, um amigo de Deus. Não deve ousar pôr suas mãos à obra a menos que ele realmente deseje isto - e nem a menos que tenha razões para acreditar ser realmente capaz de participar no desenvolvimento do noviço para alcançar esta identidade. Que fundamentos tem o diretor para isto - além da sua 38
Apto a Ganhar as Almas
nomeação pelo abade? Ele tem o “testemunho da sua própria consciência” : que o grande desejo da sua vida é de estar em Deus; que em suas decisões e ações ele olha para o exemplo de Jesus e se abre para o sopro do Espírito Santo; que embora ele se perceba como o “servo inútil” do Evangelho, ele sabe que está ficando “diferente” e que Deus está “se entregando a ele”; que em certos momentos preciosíssimos Deus o tocou com Seu amor; que ele atravessou grandes períodos de aridez e desolação permanecendo fundamentalmente fiel - e sobreviveu; que ele acredita na vida monástica - sua teoria e práticas - e em sua comunidade - imperfeita sim, mas autenticamente in via; que o ensinamento do seu abade e do seu próprio diretor temlhe transmitido vida. Em outras palavras, o seu haver sido modelado pelo dedo de Deus no contexto monástico é o que lhe dá confiança para dizer “sim” ao pedido do abade para ser mestre de noviços. É melhor que ele seja um homem de oração. Não estando mais guardado com segurança sob as asas da sua própria interioridade, será capaz de manter o seu equilíbrio e otimismo através da fidelidade à oração - especialmente o tempo passado diante do Santíssimo Sacramento. É verdade que “no interior do meu coração Vós me ensinais sabedoria” . De um modo sem palavras e certeiro, Deus lhe dará a sabedoria de que necessita para falar com autoridade e guiar com convicção aqueles que estão sob os seus cuidados. O diretor não está dando testemunho diante de reis e magistrados, mas está engajado na mais delicada das atividades, a ars artium\ a direção de almas. Portanto, não será ele quem deve falar, mas o Espírito do Pai que fala nele. 39
Requisitos do Diretor Espiritual
Desapego é outro requisito essencial ao diretor espti ilu al. Uma orientação central - a orientação central dada poi Slo Inácio de Loyolaao diretor espiritual (comonós sabemos, Inácio se baseava grandemente em Cassiano) é que este facilite a co municação entre o dirigido e o Espírito Santo e que evilc n todo custo bloquear ou substituir esta comunicação. Assim, o diretor deverá ser uma pessoa de grande delicadeza espiritual c modéstia. Sua delicadeza consistirá em buscar perceber o que o Espírito da verdade está tentando dizer ao coração do noviço e buscar perceber a prontidão do noviço em escutá-lo. Quanto à sua modéstia, será exercida ao permitir que o Espírito, mais do que ele mesmo, revele a verdade ao noviço (“Não antecipe a graça; siga-a”). Quando sente o Espírito incitando-o a dizer ao noviço algo novo e importante acerca de si mesmo, deve parar e rezar antes de dizê-lo, tentando se certificar de que este é o momento certo e que estará usando as palavras certas. Todo diretor conhece o valor determinante do momento correto, as expressões adequadas, a devida medida, etc. Além disso, não seria um exagero dizer que o mestre de noviços deve estar rezando durante todo o tempo da direção espiritual. Não é uma contradição pedir que o mestre de noviços simultaneamente reze e ouça o noviço. Ele simplesmente está ouvindo com ambos os ouvidos; ouvindo o conselho do Espírito dentro daquilo que o noviço está dizendo. Num a linguagem mais moderna, o diretor tem de trabalhar seu estilo de exercer a autoridade (issues o f control). Isto é especialmente verdadeiro na direção espiritual, mas se aplica a todo relacionamento. Finalmente, o diretor deve ser um homem de caridade divina. O que poderia ser mais natural que buscar, ainda que 40
Apto a Ganhar as Almas
inconscientemente, uma resposta afetiva daquele por quem você prodigaliza todas as suas energias? “Ponha amor e colherá amor”, como São João da Cruz ensina. Todavia sabemos que a essência da direção espiritual é gratuidade, e que a citação mais apropriada é a palavra de Jesus a seus discípulos ao enviá-los em missão: “De graça recebestes; de graça deveis dar”. Desde o início do relacionamento o diretor deve ter claro que o seu humor, charme, inteligência, criatividade - o que quer que o Senhor lhe tenha dado - devem ser gastos sem pensar em retorno. Esta consciência irá afetar o seu modo de usar estes dons. Não é um perigo incomum para o mestre de noviços ser tentado a camuflar seu voto de castidade - na sua inteireza - em seu relacionamento com os noviços. (Obviamente estou falando no nível do “coração”). Da parte do mestre de noviços, tanto esforço generoso e atenções estão sendo dedicadas ao noviço; do lado do dirigido, tanta realidade íntima está sendo contada, e com freqüência, contada emotivamente. Todavia todos nos lembramos do imenso e insubstituível bem que nos foi feito por um diretor afetuoso e que, ao mesmo tempo, nada pedia em troca - nada além de que fôssemos fiéis em nossa vocação. Foi esta pessoa que nos fez viver. Deveríamos estar atentos a qualquer indicação por parte dos noviços de que não estamos permitindo que eles sejam livres. Seu instinto é correto. Eles têm direito a tudo aquilo que podemos oferecer-lhes, e todo este alimento deve ser usado em favor do seu próprio crescimento e de seu próprio elã rumo a Deus. Há uma alegria especial neste tipo de doação que nos tom a semelhantes ao Pai Celestial, tal como Jesus o descreve no Sermão da Montanha.
41
CAPÍTULO 5
A A
r t e da
C
o r r eç ã o
Deus Pai corrige ao longo de todo o Antigo Testamento, tanto pessoalmente quanto através de seus servos e profetas. No Evangelho, Jesus freqüentemente corrige, e assim também agem os seus servos, os apóstolos. Os pais e mães do deserto corrigiam constantemente, e São Bento dedicou duas extensas seções da Regra à correção. Por que motivo eles eram capazes de exercer a correção, e nós não o somos hoje? Como eles corrigiam e como podemos fazê-lo? Recentemente li um livro do jesuíta japonês J.K. Kadowaki, Zen e a Bíblia. Surpreendentemente, ele descobre na correção - e punição - os principais meios pelos quais o mestre Zen efetivamente manifesta compaixão. Ambos os termos são de primeira importância: “compaixão” e “efetivamente”. A correção deve ser fruto da compaixão. É uma ferramenta que visa auxiliar uma pessoa perdida, confusa ou rebelde a voltar para a direção correta. Não é uma asserção do valor das estruturas organizacionais e das práticas 42
Apto a Ganhar as Almas
sobre a dignidade do indivíduo; menos ainda é a oportunidade de um diretor fazer as suas próprias preferências prevalecerem. A verdadeira correção acontece quando a pessoa e a vocação (isto é, o destino eterno) do noviço têm tanto valor aos olhos do mestre que ele gastará seu tempo, energia e criatividade para lhe mostrar o que é certo e levá-lo à compreensão e à prática disto. Sim, estranhamente, aquilo que nossos pais costumavam nos dizer é verdade: “Eu não te corrigiria se não te amasse” . Pelo menos é assim que as Escrituras o mostram: “Eu repreendo e educo os que eu amo” (Ap 3). Compaixão efetiva. Acompaixão simplesmente não é boa se não transforma a pessoa. A compaixão só pode ser satisfeita quando o outro captou e começou a viver aquilo que transmite vida e quando os ffuto§,começam a se tom ar visíveis. A correção monástica está orientada para um a grande e genuína santidade. “Deixar tudo passar”, “desculpar silenciosamente”, “perdoar como Jesus perdoa” (isto é, como ele não perdoava) não ajuda a pessoa: isto só a deixa livre. Toda a missão de Jesus foi uma grande, exigente correção no nível mais profundo: uma mudança do fino e decisivo ponto de nossa mente (metánoia). Na cruz, ele mostrou em seu corpo qual é o resultado inevitável de se passar toda uma vida em ilusão espiritual e fazendo o mal: a morte. São Paulo disse: “O aguilhão da morte é o pecado”, mas Jesus a viveu, ou melhor, a morreu. E quando ressurgiu, foi para nos corrigir: para nos dar, no Espírito Santo, um conselheiro que iria sempre nos guiar para o conhecimento e a realização da v erd ad e- como compreensão da verdade, e como poder para realizá-la, se quisermos aceitar que o poder e o combate em seu favor triunfem em nossas vidas. 43
A Arte da Correção
A correção, portanto, é o aspecto quaresmal da direção espiritual: “Convertei-vos e vivereis!” (Ez). Será uma coiisinu te preocupação do diretor, no sentido de que, em sua cuidadosa atenção perceberá quando a pessoa está se desviando. Por cs Ia razão, São Bernardo, em seu famoso dito, insiste que o abade deve: “Observar tudo”. “Observar tudo, corrigir raramente, deixar passar m uito” . Esta é a citação em sua integridade. À primeira vista, parece que só a segunda frase da tríade refere-se à correção. Na verdade, toda a sentença é uma profunda instrução sobre a correção. Como foi dito, a correção é uma amorosa atitude vigilante por parte do diretor, diretor que se faz corresponsável pela pessoa que dirige. Ele deve ver tudo, joeirar, esperar, tentar entender o que está por detrás de certos comportamentos, quais são as pressões que os estão produzindo, perceber sua freqüência, avaliar sua seriedade espiritual. Tudo isso porque ele tem de escolher suas correções. Tanto o Antigo quanto o Novo Testamento reconhecem que as correções são, por sua natureza, desencorajantes (é por isso que existem textos para esclarecer o seu valor positivo) e que, portanto, não podem ser muito freqüentes, muito rabugentas, muito habituais. A correção expressa deve ser exceção. O diretor espiritual precisará encontrar outros meios (incluindo confiança no tempo e na graça do Espírito Santo) para lidar com a maior parte das coisas com as quais ele se depara. É isto o que significa deixar a maior parte das coisas passar. De certo modo, a correção de um a falta é uma correção em geral. O jovem m onge vive assim como alguém sob correção, como alguém aco44
Apto a Ganhar as Almas
lhendo dentro de si a transformação oferecida pela tradição. Não se ganha muito ao se multiplicar as instâncias. Ç or^e_nósjiãojnaisxorpigim os^ Falando da m inha própria experiência, nós não corrigimos porque em grande parte há um a tolerância limitada à correção por parte dos jovens. No Brasil, não encontro uma hostilidade direta em resposta à correção, mas freqüentemente me encontro com um “colapso”. Uma simples correção é o suficiente para nocautear um noviço por vários dias e com freqüência eles comunicam esta mensagem: “Se isto acontecer algumas vezes mais, acho que não vou agüentar” . JHomo. reagimos a isto? Parece impossível abandonar o princípio da correção de “per si” (no sentido mais amplo em que eu o apresentei). Acredito que o diretor pode sempre continuar a crescer em delicadeza e discrição em seu modo de administrar a correção, mas o noviço tem de ser treinado a experimentar a correção como um elemento ordinário da vida monástica. Uma coisa que ajuda é explicar ao noviço (numa base individual) os níveis de correção: a).informação (ainda não correção); b)_correçõe$.de pequenas infrações; c) desafios à transformação de atitudes fundamentais; d) advertências; e) punições. O noviço deve ser educado para não dramatizar um a simples comunicação de informação num questionamento do seu valor pessoal. 45
A Arte da Correção
É importante que o noviço perceba que as correções silo parte integrante - e não interrupção - do relacionamento de confiança e obediência com o diretor. Ele deve, portanto, con servar a mesma “tonalidade” do seu relacionamento (sem in tensidade adicional, raiva, medo). As correções devem ser feitas com uma justiça calma, afetiva - e então se deve permitir que descanse. Certamente o diretor não deve buscar tirar o ferrão da correção alguns minutos, horas, após ele ter sido aplicado: “Tudo bem?” Dê à pessoa corrigida tempo para absorver emocionalmente a correção, compreendê-la e começar a converter-se. Outras razões pelas quais nós não corrigimos: a) não acreditamos na validade/importância das questões que aparentemente pedem correção; b) permutamos a nossa cumplicidade com as deficiências do noviço pela cumplicidade da comunidade - de Deus? - com as nossas próprias; c) temos medo de perder o controle ao corrigir; d) temos m edo de que nossa correção não seja acolhida, com obediência e.que o noviço se tom e distante. Tópicos nos quais nós precisamos ser corrigidos: I) A Ordem e a comunidade local estabeleceram certas observâncias que compreendem a conversatio morum da casa. 46
Apto a Ganhar as Almas
Se nós não concordamos com elas, então temos a obrigação de abordar estas questões com o abade, no conselho, etc. Mas não se tem o direito de prescindir delas. II) Certamente, nós não podemos chamar pessoas à conversão quando nós mesmos estamos fugindo dela. Mas que tipo de solução é esta, a de abandonar a conversão dos noviços porque eu abandonei a minha própria? Ao contrário, ser mestre de noviços requer um esforço especial na fidelidade, um constante retomo ao seu primeiro amor monástico. III) Se ter de corrigir provoca em nós raiva, frustração, nervosismo, vamos ser suficientemente humildes para reconhecer que tudo isto indica nossa necessidade de direção espiritual - e precisamente nestas áreas. Qualquer responsabilidade maior na comunidade desfaz em certa medida a coesão (integração) das diversas forças que tínhamos realizado em nossa personalidade. Quando o exercício da autoridade por meio da correção nos deixa “aturdidos”, temos um material rico, para o nosso próprio crescimento, para longo prazo. 1VYNunca é demais-repetiiia-afirmação de Edith Stein: “O diretor espiritual que.ganha almas deve ganhá-las.para o Cristo.e não para si mesmo!’. Perde-se tanto se o noviço descobre 110 diretor mais uma pessoa que “vende” o seu bem verdadeiro a fim de preservar a bonhommie. Isto é o que ele provavelmente experimentou muitas vezes antes de ingressar no mosteiro. O que ele precisa é de alguém que se dedique integi nlmente a ele, sem referência a um nós (a amizade entre meslic e noviço). O noviço que é corrigido, e que constantemente 47
A Arte da Correção
se atém à santidade, será um dia capaz de fazer parte dc um “nós” . O diretor que requer a consolação do “nós” tão cedo, ainda não está, talvez, pronto para recebê-la. Provavelmente, o mestre de noviços cometerá um bom número de erros e falhas no exercício da correção. Como diz Sto. Tomás, somente a pessoa que atingiu a autarchia é capaz de reger a vida interior e exterior dos outros. E como podemos supor que um jovem mestre/mestra de noviços/as, na casa dos trinta, possa já ter alcançado esta autarchia? A correção será um a escola de autoconhecimento e de humildade para o diretor e um a escola de fé. Uma vez, disse para Me. M artha de Gedono que eu acreditava que em noventa e cinco por cento do tempo eu estava tentando ajudar e amar os noviços e que a misericórdia de Deus perdoaria o resto. “É melhor que isto”, respondeu ela. “A misericórdia de Deus fará com que os outros cinco por cento contribuam para o bem do noviço”. Ser alguém que corrige é ser alguém que reza para ser corrigido, é ser alguém que reconhece a sua imperfeição e acredita que pode ser curado e santificado. Corrigir é fazer nos o il tros aquilo que eu peço que Deus faça em mim,.
48
CAPÍTULO 6
D ir e ç ã o E s pir it u a l e V id a d e O r a ç ã o
Muitos mosteiros incluem em seu horário um ou dois momentos de “oração mental”. Em nosso mosteiro, nós passamos meia hora de oração juntos, após vigílias, e quinze m inutos após vésperas. Sabemos que os membros jovens da comunidade estão “rezando” neste período - mas o que estão eles hizendo? Se há um pedido que o noviço tem o direito de fazer a seu Mestre é o pedido dos discípulos de Jesus: “Ensina-nos a rezar”. A oração interior é um a graça, uma arte, uma realidade sempre mutável, com momentos gloriosos e outros horríveis, e islo requer tanto um mestre humano quanto um divino. A oração silenciosa é uma atividade tão intensamente pessoal e particular que parece exatamente “feita sob medida” para o miihienlc da direção espiritual individual, ao invés de uma "atividade de grupo”, em aulas do noviciado. Ao mesmo tem po, é uma grande ajuda analisar um dos grandes tratados moihím!icos sobre a oração no contexto das aulas, em particular as 49
Direção Espiritual e Vida de Oração
Conferências nove e dez de Cassiano, que dão uma noção do alcance da vida de oração e do seu objetivo, a oração contínua. Há um ponto de partida normal para a oração silenciosa? Acredito que em seus inícios, a oração deve ser extremamente natural e não-metódica. M inha convicção é a de que o noviço que decide, no primeiro dia no mosteiro praticar a “oração de Jesus” durante estes períodos está vivendo além da sua capacidade. A oração de Jesus, o mantra, a oração de uma só palavra são formas extremamente simplificadas de oração - não simples, mas simplificadas: representam um trabalho de unificação e pacificação do nosso eu interior. Esta unidade e simplicidade não devem ser impostas nem ser objeto de ambição espiritual. É fruto da oração, paciência e unificação e simplificação do resto da vida de alguém. Há muita sabedoria na noção de que rezamos tal qual somos. O ponto de partida mais natural para uma vida de oração interior, penso eu, é conversar com Jesus. Até agora, ninguém foi além da adequação da definição geral de oração de Teresa d ’Ávila: “Oração é ter uma conversa com alguém que nós sabemos que nos ama”. Cada vez mais, nesta conversa com o Senhor, o noviço deve encontrar a si mesmo fazendo um a pausa, tanto para ouvir a resposta de Cristo a seus desejos e medos, quanto para ouvir Cristo falando acerca de si próprio. É isto que, em última análise, simplificará e unificará a oração da pessoa: a experiência de perceber, mesmo momentaneamente, Cristo m anifestando-se a ela, revelando-se. A medida que a pessoa progride 50
Apto a Ganhar as Almas
na prática da oração, uma sensibilidade à graça se desenvolverá nela, permitindo-lhe sentir a presença do amor e do poder de Cristo, independente de qualquer palavra. Tradicionalmente falando, ela chegou à prática da oração do simples olhar. Por sua natureza, esta simplicidade é receptiva e nãodiscriminadora. Ela é radicalmente aberta a Deus e como tal não pode passar todo o tempo a defender-se, excluindo qualquer coisa que penetre nesta experiência de Deus. De fato, com vestes surpreendentes, o próprio Deus virá à pessoa de oração: distrações, evocações do passado, medos, vazio, hipersaciedade, contato “direto” com os mistérios da fé. São coisas que o próprio diretor deve ter experimentado em si mesmo e deve ser capaz de dirigir. A propósito, ele não deve ser “supermodesto” no que diz respeito à vida de oração do noviço. Se afinal a oração é algo entre “o noviço e Deus”, não o é mais do que em qualquer outra dimensão da sua vida. As assim chamadas “distrações” são os “zumbidos”, o barulho de fundo de nossas vidas, um a música que está sempre locando mas com.a qual nós nos acostumamos a tal ponto que não mais a ouvimos. Entretanto,-.uma vez que a oração, nos aquieta até um eerto nível, as distrações se tornam audíveis, de um modo suficientemente natural, e, sobretudo nos tempos.de oração. As distrações não nos devem assustar ou deprimir: “Eíoje a imiiha oração foi cheia de distrações”. Orar distraidamente não ò uma falha, mas um a preocupação. Como toda a tradição o afirma, nós devemos simples e calmamente continuar com a nossa oração. Pouco a pouco estas preocupações (nossas ver51
Direção Espiritual e Vida de Oração
sões pessoais de: “O que vamos comer? O que vamos beber?") convergirão no círculo de amor e de confiança da oração. Sc assim não for, estaremos falando de algo mais profundo que distrações, algo que por si mesmo deve ser levado à direção espiritual. Hoje temos consciência de que o modo como o ser humano “acumula” sua experiência é determinante para a formação do “eu funcional” - e, nesse processo, muitas peças serão inevitavelmente deixadas de lado. Evidentemente, elas não podem ser abandonadas por completo, visto que também fazem parte dele - só que ainda não foram integradas. Estas partes de nossa verdade voltam à tona através de sonhos, expressões artísticas, conversas nas quais a gente se abre, silêncio, solidão... e oração. Na oração elas podem surgir envoltas em imagens ou numa palavra/grito através da qual nós nos experimentamos seja almejando, seja recuperando este aspecto isolado. Posto que a verdadeira oração é encontro com o Deus vivo, nós, como criaturas, acharemos isto doloroso ou assustador. A proximidade de Deus em nossa pecaminosidade e mortalidade será assustadora. Sentimo-nos como se fôssemos ser assassinados ou deixar de existir. Desejamos que a ação de Deus se realize em nós, e ao mesmo tempo temos medo disto. Parece-me que o único conselho que eu tenho a dar para uma pessoa que está experimentando a oração neste sentido é “prender-se” em Deus, colocar o seu pescoço como Isaac e deixar que o Pai Abraão sancione uma parte do sacrifício. Vazio: há uma grande barreira entre a experiência do 52
Apto a Ganhar as Almas
nosso “eu” do dia-a-dia- chamemo-lo de “o mundo”, “o falso eu”, “o ego”- e a experiência do nosso “eu” em Deus. Após uns tantos anos na vida de oração, é impossível rezar sem cair nele. Ele está sempre ali, bloqueando o caminho. Paradoxalmente, esta barreira se faz sentir como um “vazio”, e de fato, é o vazio de nós mesmos como alienados de nossa vida em Deus. Ninguém pode remover esta barreira através do desejo, da tentativa ou do pensamento. Qualquer Durchbruch (irrupção) que tiver de ser feita, será feita pelo Espírito Santo mais do que por nós mesmos. Mas podemos perguntar em pobreza e esperança: “Quem rolará a pedra?” Se a oração é essencialmente Deus levando a sua criatura a uma união de amor consigo mesmo, então, devemos acreditar que, pouco a pouco, este seixo estará se dissolvendo através de sua presença em nosso interior. Ele já está unido ao nosso eu mais profundo. Somos nós quem devemos ser levados de volta para o nosso coração. À medida que esta barreira vai sendo progressivamente ultrapassada, haverá momentos de oração onde uma ou mais dimensões da fé se acenderão para nós. Os Padres falam da “inebriação do dogma”. N a oração, podemos chegar a “ver” algo do que significa a Encarnação, a Eucaristia, a Virgindade dc Maria, a Ressurreição. Evidentemente, tais momentos não são conferências interiores das quais participamos ou que nós damos sobre um assunto teológico específico. Elas acontecem un oração porque na oração estamos ao mesmo tempo concenliados c inconscientes de nós mesmos. Esta combinação capacita a mente a trabalhar no nível da intuição contemplativa. Muitos jovens monges e monjas têm a tendência de bus53
Direção Espiritual e Vida de Oração
car experiências de “confirmação” na oração: a solução de um dilema, sentir com convicção e clareza qual é a vontade dc Deus para eles. O conteúdo dessas experiências deve passai através da peneira do discernimento. Facilmente o noviço poderá estar se ajustando a seus fortes desejos pessoais ou a seus medos habituais. O diretor precisa conhecer as inclinações do noviço, como a experiência ocorreu, etc., e deve sujeitar a experiência a testes de obediência e de tempo.
54
CAPÍTULO 7
D i f i c u l d a d e s In t e r i o r e s d a V i d a E s p i r i t u a l
Vejamos agora algumas dificuldades interiores nas quais o papel do diretor é de suma importância. Para cada uma delas indicarei um remédio concreto. A - O s pensamentos Um dos apoftegmas de Santo Antão afirma que a única luta do monge é a luta dos pensamentos. Por meio desta breve afirmação, aprendemos que: a) os nossos pensamentos são importantes b) os nossos pensamentos variam muito em qualidade c) temos uma responsabilidade acerca de nossos pensamentos d) existe uma certa possibilidade de mudar os nossos pensamentos. () próprio Jesus nos ensina que os nossos desejos, palavras c ações surgem de nossos pensamentos. 55
Dificuldades Interiores da Vida Espiritual
O mestre de noviços deve estar convencido da importân cia de vigiar os pensamentos (cf. a escola ortodoxa dos mon ges neptikoi). Mas antes de começar a observá-los, há um passo muito importante: este consiste em escolher uma linha de pensamentos e não um círculo. Não queremos meramente tomar consciência de tudo aquilo que estamos pensando - toda esta vasta esfera de nossos pensamentos. Queremos estabelecer um a trilha para nossos pensamentos, e quando eles vaguearem fora desta trilha devemos chamá-los de volta. Que trilha devemos escolher para nossos pensamentos? De fato, já escolhemos. Quando nós tomamos a decisão de entrar na vida monástica - viver entre a lectio, ofício, oração silenciosa e o prolongamento de tudo isso no decorrer do d i a estamos afirmando nossa escolha de pensar biblicamente. Isto é, desejamos, acima de tudo, pensar o que e da maneira que Deus pensa: não apenas ter uma noção de como Ele pensa, mas pensar os mesmos pensamentos que Ele. Afirmamos que, mesmo se por enquanto os nossos pensamentos estejam bem longe dos pensamentos divinos revelados na Bíblia, queremos que Deus supere esta distância. Isto, não para tomar-nos “mestres da vida espiritual”, mas simplesmente para sermos homens segundo o coração de nosso Pai celeste. A Bíblia, então, é de importância decisiva. Não somente para reger as nossas ações mas também nossos pensamentos. Quando um de nossos pensamentos se desvia da Palavra de Deus, está na hora de ir em sua busca e conduzi-lo de volta 56
Apto a Ganhar as Almas
para o rebanho sagrado. Basta uma tentativa de pensar biblicamente para revelar a diversidade de pensamentos que temos dentro de nós. Viver constantemente expostos à Palavra de Deus fará com que percebamos as nossas sintonias e as nossas resistências para com ela. Quando continuamos atentos à Palavra, uma verdadeira guerra se desencadeia. E daí? Estamos onde o monge deve estar: na luta dos pensamentos. Uma vez que os nossos pensamentos apaixonados (carregados de emoção, obsessivos, etc.) se tomam “visíveis”, lembremo-nos de que a nossa meta não é ficar brincando na caixa de areia deles nem concordar em sermos dominados por eles. Se fosse assim, a descoberta monástica dos pensamentos seria uma coisa perigosa e indesejável. A nossa meta, ao contrário, é ver nossos pensamentos assumir o jugo de Cristo, ou, como diz São Paulo, ver todo pensamento tomar-se submisso a Cristo. A consciência de nossos pensamentos deve estar a serviço de sua conformação com a mente do Mestre. “Tende em vós”, exorta São Paulo, “a mesma mente que estava em Cristo Jesus.” Ora, este processo é composto de diversas tarefas: a tarela de Deus e a nossa. Como sempre, a parte que Deus faz é a mais importante, e como sempre a nossa contribuição é indispensável. A parte de Deus é ser a causa efficiens. É Ele quem real57
Dificuldades Interiores da Vida Espiritual
mente vai mudar nossa cabeça, quem vai fazer de nossa cabeça um “parque de bem-aventuranças” . Nós não podemos realizai esta transformação. Seria orgulho considerar-nos capazes disto. A nossa parte consiste em teimar. Uma vez que reconhecemos que um pensamento nosso não está de acordo com o ensinamento de Cristo, temos obrigação de combatê-lo, rejeitálo. Sabendo que este pensamento se opõe ao reino de Cristo em nós, não podemos mais admiti-lo. Qual deve ser a nossa maneira de combater estes pensamentos? Como diz São Bento, quebrá-los contra a rocha de Cristo. Fiquemos repetindo um versículo bíblico {que contenha em si o verdadeiro pensamento de Cristo relativo ao assunto que nos está preocupando. Empreguemos este versículo como escudo e espada, confiantes que a Palavra de Deus é viva e eficaz, forte não apenas para mostrar-nos o interior de nosso coração (função diagnostica da Palavra) mas também para vencer em nós tudo o que é hostil a Cristo, tudo o que é mesquinho, tudo o que é preguiçoso com relação ao seu chamado (função curativa da Palavra). Não se trata de tentar, por nós mesmos, reprimir os maus pensamentos, mas de insistir em nossa lealdade ao pensamento do Mestre. Nossos maus pensamentos têm seu porquê e não vão se dissolver tão rápida ou facilmente. Portanto, a tentação principal será a atitude de: “Não adianta”. A segunda tentação será ceder ao sentimento de culpa e mal-estar que a consciência 58
Apto a Ganhar as Almas
destes pensamentos suscita. Nesta altura, agarremo-nos àquele versículo tão lindo da Primeira Carta de João: “Deus é maior que o nosso coração e Ele já sabe tudo.” Sem assumir a luta dos pensamentos, nunca vamos receber as grandes graças que desejamos. Os pensamentos são a chave. Fazer o bem, falar o bem, sem “biblicizar” nossos pensamentos, será cumprir o papel parodoxal da má árvore do Evangelho que produz maus frutos. Por outro lado, combatendo os maus pensamentos, ou melhor, deixando Jesus unificar o nosso pensamento com o seu por meio da Palavra bíblica seremos árvores boas, plantadas na casa de nosso Deus. Devemos admitir, como diz São Tiago, que as dificuldades entre nós provêm dos pensamentos dentro de nós. Acreditemos que um só monge, esforçando-se para pensar biblicamente, limpará o clima comunitário, e introduzirá um novo sopro do Espírito Santo. Como seria se toda manhã cada um de nós meditasse sobre algum trecho do Salmo 118/119 - salmo de amor pelos pensamentos de Deus revelados em sua Lei, e se toda manhã cada um dc nós renovasse sua intenção de fazer do pensamento divino contido na Bíblia a sua lâmpada interior, aquela lâmpada que brilha nas trevas sem que estas possam vencê-la? li - Estados de Alm a Isoladores “Carregai o fardo uns dos outros e assim cumprireis a lei tle ( 'rislo.” Quase todo mundo já ouviu a afirmação do filósofo 59
Dificuldades Interiores da Vida Espiritual
Sartre: “O inferno são os outros.” Eu diria que enquanto lica mos presos em nós mesmos, vivemos a experiência do oulro como infernal. Na verdade, contudo, o outro é a porta da libertação de nós mesmos. Há diversos estados de alma que nos isolam em nós mesmos: a dor, a tristeza, a culpa, a decepção, a ansiedade; talvez poderíamos acrescentar outros ainda. Estes estados, enquanlo duram, diminuem a nossa vitalidade, nos colocam no modo de “screen saver”. Literalmente, tais estados nos esgotam: as águas vivas de nossa energia entram lentamente em algum cano secreto, e nos deixam energia suficiente para apenas sobreviver. Nesses momentos, o chamado do outro, o pedido do outro, o mero contato do outro, é experimentado como algo terrível. No livro sobre a tristeza em suas Instituições, Cassiano descreve magistralmente o quanto o outro nos irrita com sua presença, com sua existência. Ele (o outro) exige que a pessoa desvie uma parte da atenção de si mesma para prestar atenção nele (o outro), mas a pessoa consegue manter-se unida, “em um só pedaço”, justamente por concentrar toda a atenção em si. “Só posso atender você a custo da minha própria vida” pelo menos é assim que parece. Agora, imaginemos uma pessoa que vive permanentemente num desses estados isoladores de alma, e que está no meio de uma sociedade. A convivência vai tomar-se uma provocação constante. Qualquer aproximação do outro será m otivo para um fechar-se em si mesma cada vez mais intenso, e suscitará a frustração enorme de sentir simultaneamente a neces60
Apto a Ganhar as Almas
sidade de um a dedicação total a si e o apelo insistente do próximo para uma resposta. Neste sentido, os outros são o inferno. Sem querer, por sua simples proximidade, eles pisam em nossa dor. Talvez o que estou descrevendo pareça extraordinário. Mas não estou falando de nada mais extraordinário do que o fenômeno diário da “cara fechada” (visível ou invisivelmente). Nos Estados Unidos e provavelmente em outros países, é costume avisar os membros da própria família que não é aconselhável tentar se comunicar conosco antes do nosso café da manhã. Este mau humor “pré-café” representa, em pequena escala, um desses estados de alma que gera isolamento. Falando em termos mais especificamente monásticos, há muitos monges que experimentam uma certa dificuldade em viver tranqüilamente a alternância entre a dimensão eremítica e a dimensão cenobítica de nossa vida. Para alguns, esta dificuldade é um acontecimento diário ligado ao horário: a hora de Laudes e M issa, por exemplo, quando passam os da pura interioridade de Vigílias e suas conseqüências para a liturgia comunitária... ou a hora do Capítulo quando tiramos a capa de invisibilidade e impersonalidade das primeiras horas do d ia e nos lançamos na interação do dia de trabalho. De fato, não é algo raro na vida monástica quando a maior porcentagem de desentendimentos surge na sala do Capítulo imediatamente depois da distribuição do trabalho. Por quê? A m eu ver, porque é enlflo que o próximo cruza a fronteira e entra em nosso território, justam ente no momento em que nos encontramos num daqueles estados de alma. 61
Dificuldades Interiores da Vida Espiritual
Por si mesmos, estes dois exemplos - “pré-café” e “pó'capítulo” - são casos relativamente leves e passageiros. Mn estes estados de alma podem prolongar-se, podem estabelecei se como uma frente “meteorológica” permanente. E quando
Apto a Ganhar as Almas
gentilmente que não há farinha para dois pães, e então... Ele insiste e promete um milagre. Ela obedece e o m ilagre se realiza. De repente, a vasilha de farinha fica cheia... e perm anece cheia... e a jarra de óleo chega a quase transbordar... e o nível do óleo nunca mais diminui. Que aconteceu? O profeta salvou a vida da viúva, p edin do-lhe a última porção de alimento. Dando-lhe de com er e beber num tempo em que ela mesma andava arrastando-se faminta e sedenta e cansada e acabada, descobriu dentro d a própria vasilha e da própria jarra uma plenitude inesgotável. Esta é a tarefa do outro quando alguém se encontra num destes estados de isolamento e de “depressão” . O outro geralmente não é profeta e portanto, freqüentemente não com preende a sua missão. Mas Deus compreende. O outro, sim plesm ente por não nos deixar em paz (uma paz da morte), fala aos recursos escondidos no centro de nosso ser, fala ao nosso deserto, s im , mas fala além de nosso deserto, ao oásis, ao É den, que continua existindo em nosso interior. N ossa prim eira reação será, provavelmente, brusca, rude, até grosseira, porque inicialmente o apelo do outro, por mais modesto que seja, to ca em nosso mal-estar... e dói. Mas se o outro (que age com o em issário dc Jesus Cristo) continua batendo, se ele agüenta no ssa p rimeira resposta, se sabe combinar paciência com insistência, vai entrar em contato com um ser vivo, debilitado sim , m as mesmo assim vivo. E este ser vivo precisa exatam ente de um a coisa: ser arrancado desta solidão sedutora e destrutiva. A m u lher que pede um copo de açúcar a um a vizinha, m esm o sabendo que esta morre aos poucos de mágoa - e que não se retira 63
Dificuldades Interiores da Vida Espiritual
até que a vizinha lhe encha o copo, até que lhe dê uma resposta humana e, talvez, um cafezinho por acréscimo, de certa manei ra aquela mulher é a salvadora de sua vizinha. O copo de açúcar assume as dimensões do copo do mundo. Evidentemente, nós monges não devemos perturbar o recolhimento do irmão. Recolhimento, não, mas fechamento, sim. Nosso irmão se perde facilmente num estado desgastante. Simplesmente deixá-lo assim não é lhe prestar serviço. Que serviço prestaram o sacerdote e o levita ao homem semimorto que descobriram na estrada de Jericó? No fundo, porém, dirijo estas palavras não àqueles que chamam o irmão de volta para o centro, para a vida comunitária, mas a cada um de nós, à medida que entramos num destes estados, seja mais breve, seja mais longo, e dele não sabemos sair. Pode ser que por si mesmo você não consiga sair. Espere só um pouco. O próximo virá, com todos os seus modos irritantes e exigentes. Quando ele vier, não leve em conta, peço, sua primeira resposta emocional. Não ceda ao seu instinto pavloviano. Nestes momentos, o outro não é o inferno. Ao contrário: com seu simples apelo, ele é Cristo que desce ao seu infemo, e se você estender a sua mão para apertar a daquele que também a estende a você, voltará a vida, do horrível “subterrâneo” ao belo, ao “normal terrâneo” terra firm e. E o seu irmão será m ais do que n u nca seu “conterrâneo” . C - Com pulsão A compulsão é, no campo do comportamento, análoga ao pensamento obsessivo no campo da consciência. A compul64
Apto a Ganhar as Almas
são é um impulso repetitivo para fazer um determinado ato, um impulso cujo poder sobre nós cresce enquanto se repete, um impulso que assume uma autoridade irresistível e que consegue mandar em nós. Um impulso, afinal, que não pára até que realizemos o ato que nos foi ordenado, e que só descansa brevemente, para voltar depois com a mesma insistência. Se prestarmos atenção ao funcionamento da compulsão, reparamos que seu processo é diferente daquele que está presente em nossos demais atos. A diferença fundamental reside na ausência de liberdade. Nossos outros atos começam com o surgimento de uma possibilidade, num clima de tranqüilidade filosófica: Será que vou escrever um a carta à minha família, domingo depois de Noa? Mesmo quando se trata de um assunto exigente: Será que vou enfrentar e corrigir o irmão que me está perturbando bastante? - o clima permanece de consideração: avaliação, reflexão sobre diversos fatores, se vale a pena, sc pode produzir bons resultados, qual seria o horário mais apropriado, o melhor modo - por escrito ou por palavras, se ujo agora ou deixo para outra ocasião. Tudo isso falta quando é caso de uma compulsão. Nesta situação, não há nem liberdade nem reflexão. Ao contrário, a pessoa sc encontra sob um peso insuportável, num desconforto máximo, e a única saída parece o cumprimento do ato mandado. “Mandado”, digo, porque quem dedica tempo para considciar este fenômeno, percebe que a própria pessoa não decide nada Ida é o “empregado” de não sei quem e tem de cumprir o dever imposto por aquele anônimo - e rápido. Se não, o im pulso volta junto com a recriminação: Ainda não fez? por que 65
Dificuldades Interiores da Vida Espiritual
não fez? não vai fazer? faça agora! A vítima (e este é o nome certo) de uma compulsão, então não considera, nem pensa, nem decide: ela cede. Esta é a marca registrada de uma compulsão: exige que a pessoa ceda a ela. Outra característica é que o fato se realiza não com alegria (todo ato sadio deve suscitar alegria enquanto expressão de nossa liberdade) mas só com alívio: - Eu fiz, eu fiz. E agora, por um tempinho, vou poder sentir um certo repouso dentro de mim. Infelizmente, o tempo de repouso geralmente coincide com o tempo de vergonha. Por ser um ato arrancado de nós e não escolhido por nós, normalmente, sentimo-nos ao mesmo tempo diminuídos por tê-lo realizado e aliviados por não mais experimentar a pressão. Além disso, o ato realizado por compulsão é quase sempre simbólico: não corresponde aos nossos verdadeiros desejos mas só serve para canalizar nossa ansiedade. Portanto, o ato em si se carateriza pelo absurdo ou pelo enigmático, ou por sua futilidade. Daí, o ato compulsivo realizado produz sentimentos de frustração: tanta energia para cumprir um ato sem significado. Pior ainda, o indivíduo chega a viver apenas entre uma manifestação da compulsão e a próxima. A lembrança de um ato ainda não empalideceu, e a sombra do próximo já se lança sobre sua vida. O horrível da compulsão é que, surgindo seu 66
Apto a Ganhar as Almas
pensamento, vem imediatamente a insistência tirânica. Quais comportamentos podem tomar-se compulsivos? Na verdade, quase todos são capazes de aceder a esta honra. Lembremo-nos de que a força da compulsão vem de uma associação quase m ágica entre o cumprimento de um certo ato ritualistae o alívio temporário de alguma pressão interior: medo, autodesprezo, extrema falta de carinho. Lembremo-nos tam bém de que a colaboração com a compulsão não pode resolver a dificuldade, porque a compulsão é um comportamento subsidiário utilizado para manter o verdadeiro problema a nível suportável. O cumprimento de um ato compulsivo, então, representa um tipo de drama catártico: ao invés de enfrentar o problema, a pessoa compulsiva estabelece um pequeno ritual que temporariamente tranqüiliza a perturbação original. A solução verdadeira se encontra necessariamente na direção oposta, isto é: a) reconhecer o valor ínfimo do ato compulsivo; b) decidir ceder cada vez menos a ele; c) trabalhar para compreender a natureza do desequilíbrio fundamental; d) encontrar uma resposta madura para este desequilíbrio. Um caso simples: compulsão de insegurança. O caso Uonowitz. Quando era jovem professo, vivi um tempo em que cada noite depois de recolher-me, questionava-me se tinha fechado a porta do quarto à chave. Por que fechar à chave? Ladiócs, assaltantes, algo assim, dizia a mim mesmo, meio ironicamente, Só que um giro da chave não bastava. Voltando para a cama, voltava a me questionar: “Mas será que realmente tran67
Dificuldades Interiores da Vida Espiritual
não fez? não vai fazer? faça agora! A vítima (e este é o nome certo) de uma compulsão, então não considera, nem pensa, nem decide: ela cede. Esta é a marca registrada de uma compulsão: exige que a pessoa ceda a ela. Outra característica é que o fato se realiza não com alegria (todo ato sadio deve suscitar alegria enquanto expressão de nossa liberdade) mas só com alívio: - Eu fiz, eu fiz. E agora, por um tempinho, vou poder sentir um certo repouso dentro de mim. Infelizmente, o tempo de repouso geralmente coincide com o tempo de vergonha. Por ser um ato arrancado de nós e não escolhido por nós, normalmente, sentimo-nos ao mesmo tempo diminuídos por tê-lo realizado e aliviados por não mais experimentar a pressão. Além disso, o ato realizado por compulsão é quase sempre simbólico', não corresponde aos nossos verdadeiros desejos mas só serve para canalizar nossa ansiedade. Portanto, o ato em si se carateriza pelo absurdo ou pelo enigmático, ou por sua futilidade. Daí, o ato compulsivo realizado produz sentimentos de frustração: tanta energia para cumprir um ato sem significado. Pior ainda, o indivíduo chega a viver apenas entre uma manifestação da compulsão e a próxima. A lembrança de um ato ainda não empalideceu, e a sombra do próximo já se lança sobre sua vida. O horrível da compulsão é que, surgindo seu 66
Apto a Ganhar as Almas
pensamento, vem imediatamente a insistência tirânica. Quais comportamentos podem tomar-se compulsivos? Na verdade, quase todos são capazes de aceder a esta honra. Lembremo-nos de que a força da compulsão vem de uma associação quase mágica entre o cumprimento de um certo ato ritualistae o alívio temporário de alguma pressão interior: medo, autodesprezo, extrema falta de carinho. Lembremo-nos também de que a colaboração com a compulsão não pode resolver a dificuldade, porque a compulsão é um comportamento subsidiário utilizado para manter o verdadeiro problema a nível suportável. O cumprimento de um ato compulsivo, então, representa um tipo de drama catártico: ao invés de enfrentar o problema, a pessoa compulsiva estabelece um pequeno ritual que temporariamente tranqüiliza a perturbação original. A solução verdadeira se encontra necessariamente na direção oposta, isto é: a) reconhecer o valor ínfimo do ato compulsivo; b) decidir ceder cada vez menos a ele; c) trabalhar para compreender a natureza do desequilíbrio fundamental; d) encontrar uma resposta madura para este desequilíbrio. Um caso simples: compulsão de insegurança. O caso Hoiiowilz. Quando era jovem professo, vivi um tempo em que cada noite depois de recolher-me, questionava-me se tinha feclimlo a porta do quarto à chave. Por que fechar à chave? Ladióes, assaltantes, algo assim, dizia a mim mesmo, meio ironicamente. Só que um giro da chave não bastava. Voltando para a cama, voltava a me questionar: “Mas será que realmente tran67
Dificuldades Interiores da Vida Espiritual
quei a porta?” E pulava de novo da cama para averiguar. É um tipo comum de compulsão. Muitos a sofrem em relação a luzes (apagamos?); forno (desligamos?),etc. Sabemos que certas pessoas lavam as mãos compulsivamente, tomam banho, colocam coisas numa ordem determinada. Sabemos que ninguém gosta de ser lem brado de sua compulsão. Uma vez, em Spencer, lia-se no refeitório um livro de Dom André Louf, onde ele fazia referência a monges que sentiam necessidade de escovar os dentes seis vezes por dia. De repente, a tensão no refeitório tomou-se inconfundível. Todos os “escovadores” estavam com raiva e vergonha. Qual é a resposta monástica à compulsão? Para pensamentos inconvenientes, a tradição monástica recomenda o uso de textos bíblicos. No caso de estados de alma isoladores, afirmamos que a libertação monástica vem da presença viva de um irmão. Aqui, quando o assunto é compulsão, acho que o caminho certo passa pela direção espiritual. Por quê? Porque a libertação da compulsão surge de três elementos dialogais: compreensão, apoio e discernimento. - C om preensão: temos necessidade de uma pessoa clarividente a quem possamos revelar a nossa experiência compulsiva e que consiga identificar a função substitutiva que a compulsão cumpre e qual é o verdadeiro “x” que tanto nos aflige. Tem de ser alguém que não se coloca no epifenônemo do comportamento compulsivo (por exemplo, para julgá-lo) mas cujo olhar é penetrante e busca humildemente, junto conosco, a causa da dificuldade. 68
Apto a Ganhar as Almas
- Apoio: a compulsão normalmente é esquisita, repugnante, às vezes sórdida. Precisamos de alguém que se interesse por nós - a pessoa que está por trás da compulsão - que realmente deseja que superemos este ciclo, mas que já nos ama, embora ainda estejamos presos. Deve ser alguém com muito tempo e disponibilidade, porque freqüentemente, por um tempo, o amigo/o diretor se torna a nova compulsão provisória. - D iscernim ento: quem me dera um sábio que consiga perceber a profundeza da compulsão dentro de nós e não simplesmente insista em arrancá-la de vez. O sábio intui que, se o verdadeiro sofrimento interior for identificado e tratado, no momento certo o comportamento compulsivo morrerá quase por si mesmo. Pessoalmente conheço muitos homens que cortaram na hora um ou outro comportamento compulsivo (agressivo, sexual) e acharam que tinham alcançado a plena paz. A verdade é que, em vez disso, quase destruíram algo muito básico em si - algo tão básico como a capacidade de sentir e amar. A meu ver, este é o perigo mais terrível e mais comum da supressão impiedosa de uma compulsão forte. A pessoa estrangula o impulso, mas corre o risco de estrangular toda a sua vitalidade interior. Além da compulsão, está a terra tão desejável de liberdade. foi para a liberdade que Cristo nos libertou, diz São Paulo. 1’aiccc-me que os elementos mais produtivos neste processo silo:
n) o lorte desejo de atingir esta verdadeira liberdade espiritual; 69
Dificuldades Interiores da Vida Espiritual
b) uma abertura a alguma prática habitual de autodoml nio indireta, positiva; c) a colaboração fraterna e confiante de um “curandci ro”; d) a certeza de que Deus nos está salvando no centro de nosso ser. Com estes elementos a salvação irá gradualmente espalhar-se em todas as direções, trazendo paz para os nossos comportamentos diários, e fazendo deles expressões do Reino dc Deus que está dentro de nós. D - Ilusão Recentemente, li uma afirmação muito interessante sobre a ilusão. É a seguinte: “A ilusão fica tão profundamente enraizada em nós porque as paixões deturpam não somente os desejos carnais mas também a razão e a vontade”. Enquanto meditava sobre esta frase, a idéia que me veio foi que se as ilusões possuem tanta força sobre nós é porque atingem simultaneamente as duas faculdades: a razão e a vontade. Até aquele momento, costumava pensar que a ilusão constituía apenas uma distorção da razão - o que certamente é verdade. Mas então compreendi que em grande parte o poder da ilusão vem do fato que, com a vontade, preferim os a ilusão à verdade, porque se coloca a serviço de alguma necessidade de nosso ego. Com isto consegui entender por que pessoas altamente inteligentes, mesmo depois de terem sido racionalmente avisadas, perseveram na ilusão. Perseveram, porque querem! Há vinte séculos que São João nos ensinou: “Os homens preferiram as trevas à 70
Apto a Ganhar as Almas
luz” . Quais são algumas ilusões fundamentais? Talvez a principal seja o mito de nossa centralidade, o mito que afirma ser a tarefa mais urgente do universo que as minhas necessidades sejam atendidas. E quase impossível sair desta ilusão, que vai fortalecendo-se incrivelmente dia após dia. Se possuímos algum grau de honestidade, percebemos que facilmente mais de noventa por cento de nossos pensamentos giram em tomo de nós mesmos. Às vezes, outras pessoas entram, certamente, mas quase sempre como personagens secundárias, direcionadas para nós - o que ele me fez, o que ela me disse, o que eles poderiam fazer para mim/contra mim. Como é que justificamos um gasto de energia tão enorme e tão exclusivamente localizado em nós? Aresposta é: Am inha identidade coincide com o centro do universo. Quando penso em mim, já estou pensando no sujeito do valor máximo. De onde vem a força desta ilusão? De nossa maldade? Creio que não - mas, antes, de nossa contingência e de nossa falta de experiência radical de fé. Vagamente damo-nos conta de uue nos falta proteção. Qualquer coisa poderia acontecer a qunlquia: momento, Quem nos vigia, quem nos protege? Deus?) Ora, Ide está muito longe. A ilusão tenta resolver o medo da coiilmgência.-Quando sempre estamos pensando em nós mesmos, qiiando.femoiL-para conosco uma dechcação tãcTgfãrlde, loi iiamos nossa própria existência quase um a necessídadéTilosóliea. ~ Não quero dizer que, por isso, devemos nos envergonhar, 71
Dificuldades Interiores da Vida Espiritual
ou passar por um arrependimento emocional. A vitória não consiste em ficar horrorizados conosco mesmos, mas em poder um dia acordar com uma outra ótica. A ótica onde Deus é o centro e todos nós giramos em tomo dele. A ótica onde a coisa mais normal seria dizer: “Venha o teu Reino. Seja feita a tua vontade”. Ao verdadeiro centro do universo faz sentido falar dessa maneira - sobretudo ao centro compreendido como fonte e garantia de vida para as suas criaturas. Um grande problema que nós cristãos enfrentamos com nossas ilusões é que, de certa forma, já foram quebradas para nós. O Evangelho abala toda ilusão e nos coloca diante da plena verdade. Infelizmente, o Evangelho pode ser a causa de uma imensa divisão em nós. Com os lábios (até com os sinceros lábios) proclamamos a nossa própria relatividade, o valor do próximo, a centralidade do Reino de Deus. Entretanto, a ilusão simplesmente desceu para debaixo da terra. Vive, e vive muito bem, no porão. A conseqüência disso é que dificultamos ainda mais a saída da ilusão. Achamos que a descobrimos, que a resolvemos, que a expulsamos: tudo isto porque damos crédito às palavras de Jesus. Mas na verdade a ilusão, com um a tenacidade imensa, tirou proveito de tudo isso. Tomou-se uma ilusão respeitável, um a ilusão vestida de renda. A ilusão ficou contentíssima. Antes duvidava da sua qualidade moral. Agora, continua como antes, mas virou diaconisa: proclama todas as verdades evangélicas. Talvez surja a pergunta. Será que esta atitude é hipocriIV
Apto a Ganhar as Almas
sia: pípciafftartrEvangelho em voz-alta^viveram ensagem doCgoísma-eiíHvez-haixa? -Parece que a pessoa iludida se iludiu tão bem (foi tão bem iludida) que não percebe o que está fazendo, enquanto hipocrisia trata-se de um a falta de sintonia consciente. A meu ver, seria um caso de hipocrisia, sim. Como tentei indicar no início, a ilusão é produto de nossas faculdades, é uma decisão, é uma preferência. E uma decisão que nos permite viver exatamente como queremos sem sentir o contrapeso da verdade. Mais uma vez, não é questão de mergulhar-nos em culpa, mas sim, sentir-nos responsáveis. É bom ser res_ponsáveLSabem por. quê? Porque só podemos ter responsabilidade sobre aquilo que podemos remediar. Não ter responsabilidade seria igual a não ter esperança de mudança. Passemos para uma &egunda ilusão: -Qs-oütros-não-so-Uciii. Bem, é claro que eles sofrem, mas a ilusão afirma: Não tfüjiio eu. Impossível pensar,que a mulherjçom câncer_e.o.hotnem com AIDS, e a periferia com ignorância e pobreza e.sujeim.-uaim paj.sjem guerra sofrem como eu sofro. O meu.sofrimento óJLão agudo, .tão-pesado, tão forte. Como seria se todos suliessem assim?.Como seria se todos enfrentassem diariamente veidmlciros dramas de consciência-tentação, remorso, loucuin e desespero? É quase intolerável o que eu sofro por isso. Por que nflo posso pensar que com eles está tudo bem? Qual é a raiz desta ilusão? Os orientais diriam que ainda iiiloiiceitainos a primeira verdade nobre: A vida é sofrimento. I: vulcnlemeiite esta verdade, aceita no fundo de nosso ser, acabimu com as nossas, .tentativas constantes de fazer da nossa
Dificuldades Interiores da Vida Espiritual
vida uma história de sucesso. Aceitar esta verdade nos custaria muitas de nossas fantasias, nossos pianos. Daria uma nova orientação à nossa existência: sermos consoladores uns dos outros; criar um coração compadecido frente à dor universal e dedicar as nossas energias a suavizar a dor do outro, a enxugar as suas lágrimas. Aquele que aceita que todos sofrem como ele sofre também aceita o dever de dar espaço no seu coração para esta multidão com suas aflições, de não viver mais como um ser isolado. UmajDrientaçã.o__çQnçreta: a oraç^ão silenciosa. O que pode atingir as nossas ilusões e lentamente desfazê-las é a presença de Deus em nosso coração, ultrapassando os limites da razão e da vontade. Na oração contemplativa não se pensa. Portanto, não se discute, nem se acusa, nem se justifica. Na oração contemplativa, não se exprimem desejos, não se colocam condições, não se dão palpites a Deus. A oração contemplativa é de todas as atividades a mais vulnerável - quer dizer, nos tom a sumamente vulneráveis. Só diz uma coisa: “Realiza em mim o que quiseres”. Por isso, Deus pode hospedar-se no ponto da união de nossas faculdades, lá onde elas nascem, e lá ele pode permanecer e comunicar-se: a Verdade que também é Amor. Aqueles que rezam desta maneira sabem por experiência que há muitos momentos de terror neste tipo de oração. Sentimos o aperto, o corte da espada, a presença temível de alguém que é grande demais. Aqueles que perseveram neste tipo.de oração ficam sabendo que, através dela, D eus.não destrói o que é real - mas só as ilusões. Quando a nossa razão e vontade nos.traem, Deus tem de penetrar mais fundo ainda,, na çabme 74
Apto a Ganhar as Almas
de controle, para salvar-nos. Pouco a pouco, nos tomamos mais verdadeiros. Muitos de nós sabemos que a palavra “ilusão” significa “brincar com” - mas de uma maneira hostil, para enganar-nos. Há ilusões que nos deixam contentes com uma sensação de bem-estar, e ilusões que nos deixam contentes com o contentamento de mal-estar. Vamos considerar cada uma delas. Uma ilusão que nos deixa num estado irreal de bem-estar é a ilusão do “coração bom” : “Eu tenho um coração bom.” Pode ser que até tenha, mas não segundo o comentário implícito desta afirmação. Aquele que está assim iludido diz a si mesmo: “Dentro de mim bate um coração afável e amável. Este coração é a boa árvore evangélica que infalivelmente produz bons frutos. Por causa da saúde básica deste meu coração, todos meus atos vão ser graciosos, agradáveis, benéficos, charmosos. Posso confiar neste alicerce moral dentro de mim, sem ter que preocupar-me com os meus atos e palavras. Do liom sai o bom.” Tais pessoas são perigosas para si mesmas e para seus colegas. Pintam tudo o que dizem e fazem com cores pastéis, e não exercem nenhuma vigilância sobre si mesmas. Acabam cumulo muita dor para seus próximos, sem reconhecer o fato nem assumir responsabilidade por ele. Mas será que não é verdade que uma árvore boa produz Imlos bons? É verdade. Mas, em primeiro lugar, nenhum comçno é tão bom que automaticamente dê uma produção total75
Dificuldades Interiores da Vida Espiritual
mente boa Nosso coração é um “mixed bag”(uma sacola que contém de tudo) cujos movimentos íntimos oscilam entre autoentrega sacrifical e crueldade só por curiosidade. Não é à loa que a tradição descreve o homem como mysterium sancíitatis et iniquitatis. É precisamente por causa desta “duplicidade” de coração que Deus nos deu uma consciência, uma revelação, uma lei, para podermos ler os movimentos de nosso coração, fazer o bem e evitar o mal (para Santo Agostinho e São Bernardo esta frase resume toda a vida moral). Segundo, se não vigiarmos nossos corações, acontecerá um refluxo. Os atos maldosos, as palavras cínicas, os pensamentos agressivos que produzimos vão transformar nosso coração em sua imagem. Um coração basicamente inocente mas sem vigilância que, sem fazer um a triagem, permite nascer atos, palavras e pensamentos de todo tipo, se tomará corrompido. Neste caso, o resultado é grotesco: um homem ou uma mulher magoando e prejudicando à direita e à esquerda, que se lisonjeia e se autoproclama encantador. Freqüentemente esta ilusão se vive através do humor. Alguém que se imagina um cara fabuloso mas cujas piadas, brincadeiras, comentários têm um pouco daquele veneno de um a víbora sobre o qual o salmista fala ,Ou, num a outra imagem do salmista: “Suas palavras são mais brandas que o óleo (na opinião deles) ', na verdade, porém, são punhais.” De fato o iludido desta prim eira ilusão fica deliciosamente contente. O da segunda também fica contente, mas amarguradamente. Ele encontra sua satisfação na ilusão: “Nunca 76
Apto a Ganhar as Almas
recebo aquilo que me é devido, ao qual eu tenho direito. Para mim, a vida é injusta. E esta vida injusta usa todas as pessoas que me conhecem e têm acesso a mim como seus ministros” . Este segundo iludido é evidentemente alguém que não realizou seu sonho - talvez nenhum de seus sonhos. Ou nunca subiu na vida ou não subiu até onde pretendia subir (aliás, ninguém chega até este “onde”). Mas, em vez de pacificamente aceitar o lugar que lhe foi preparado e reconhecer que, afinal, foi Deus que lhe demarcou seu destino, fica permanentemente descontente e magoado com os “culpados”. Às vezes, estes culpados são legião e anônimos: eles, azar, as circunstâncias, a vida. Outras vezes, os culpados têm nomes: meus professores, familiares, patrões, namoradas, superiores (por que não?). Quando terminei a faculdade, tive muita dificuldade para encontrar um emprego. Achei bastante elegante ter feito faculdade em línguas clássicas, mas não havia m uita necessidade de professores de latim e grego, nem era eu o melhor da safra, finalm ente, com a ajuda dos monges de Spencer, consegui emprego como enfermeiro - o que para mim foi uma grande humilhação: de Cícero para comadre, de Plutarco para o periquito. I lavia uma enfermeira-chefe que não gostava nada de iniin c que me xingava e desanimava. Um dia, ela espontaneameulc chegou a dizer: “Veja só, John, você continua lendo todos aqueles livros eruditos como se fosse alguém importante, n ms cada um consegue o lugar que merece. E seu lugar é com 77
Dificuldades Interiores da Vida Espiritual
as comadres.” Doeu muito o que ela disse. Ela encontrara a lâmina lina que entrou dentro da armadura. Eu estava vivendo aquele tem po como um pesadelo mítico: o príncipe temporariamente trans formado no homem comum, forçado, por enquanto, a ganhar seu pão com o suor do seu rosto, mas destinado a um a gloriosa volta para a realeza. E esta mulher disse que não. Se eu estava trabalhando como enfermeiro, era porque eu tinha os talentos de um enfermeiro (enfermeiro até um pouco desleixado). Graças a Deus, veio a luz de não me opor ao que ela afirmou, de não resistir - de não buscar os tripulantes do eixo do mal, responsáveis por me ter colocado num hospital quando merecia uma cátedra numa faculdade. Tentei viver aquele tempo sem me vingar interiormente, sem afirmar a horrorosa injustiça que se abateu sobre mim. Foi uma graça muito grande que me orientou num outro caminho, diferente daquele da amargura. Certamente não é jlusão danno-nos cantajle nossos sofrimentos. A vida inclui um bom número deles, alguns bastante pesados. Vejo que os meus são relativamente modestos em comparação com alguns dos seus. Se a nossa vida passa pela trilha de sofrimento, ou, talvez pior, da decepção, podemos reconhecer isto. Não é falta de virilidade chorar estas desgraças. O que faz mal - porque é falso - é criar esta resposta sistemática: “A vida é contra mim; eu sou um dos desfavorecidos da vida”. Não, meu filho, a sua bela vida não está contra você e nunca esteve. O Talmud diz: “Você será chamado por seu próprio nome; 78
Apto a Ganhar as Almas
será sentado no lugar reservado para você. Ser-lhe-á dado o que é seu. Nenhum outro chegará a tocar naquilo que lhe foi destinado. Nenhum reino ultrapassa seus limites para tocar no reino de um outro, nem pela espessura de um fio de cabelo.” Então, tome a moeda de sua vida. Gaste-a. Coma e beba e seja feliz com ela e com tudo que ela pode obter para você. Aprenda a dizer com o salmista: “Foi demarcada para mim a melhor terra. E eu exulto de alegria em minha herança”. Você é a sua própria herança. Você e Deus (O Senhor, sois minha herança e minha taça), você e Deus e os membros dc sua comunidade. Não é isto muito? E muito, sim! Não sucumbamos à ilusão da amargura.
79
CAPÍTULO 8
T ó pic o s P r in c ipa is n a D ir e ç ã o E s pir it u a l
Há três tópicos sempre presentes, ao menos de modo latente, na direção espiritual: a família, a afetividade e o “grande tópico”. O diretor se encontrará envolvido em cada um deles e neles pode desempenhar um papel curativo. - Família Hoje é comum falar da “família disfuncional” ou da “família desestruturada”. Independente de ser nossa família “funcional” ou “disfuncional”, ela nos acompanha ao mosteiro. Nos anos de nossa adolescência e início da vida adulta, talvez tenhamos sentido uma diminuição da sua presença-em-nós e da sua influência. Mas, uma vez dentro do mosteiro, elas “voltam ” (se é que algum dia estiveram afastadas). Pois no mosteiro encontramos nossa “segunda família”, e aos poucos nos tornamos parte dela. O noviciado é um tempo de memória, um tempo voltado para o passado. No silêncio, solidão e lentidão do seu ambiente, 80
Apto a Ganhar as Almas
o noviço tem o tempo e o espaço intemo em suas mãos. Aquilo que surge em sua história, e em particular, nos seus momentos não-resolvidos. Até então, o passado não-resolvido estava no “incinerador da parte de trás”. Graças a Deus, o noviciado nos dá tempo para que a história se repita - em nossa memória. 0 que freqüentemente acontece e de modo pungente é o ressurgimento das dores do passado, especialmente um sentimento de não haver sido suficientemente amado dentro da própria família, ou de que este amor tenha sido inconvenientemente comunicado. Paradoxalmente, a família continua intensamente presente ao noviço porque ela (os pais) com freqüência não cumpriu a sua missão de presença, de presença amante. No Brasil (e não somente no Brasil, imagino eu), quase Iodos os que entram para o mosteiro contam a história do “pai lechado”. A história é tão comum que entrou no tema central da grande saga brasileira do Século XX, O Tempo e o Vento. Os pais nunca aprenderam as técnicas de simplesmente falar com seus filhos, de estar com eles - em completa contradição com o modelo de pai/filho da literatura sapiencial bíblica. Há pouco ou nenhum intercâmbio verbal, e quase nenhum contato físico positivo. O filho é, assim, levado a adivinhar, intuir ou esperar que seu pai o ame. Com freqüência eles afirmam que mas o diretor sente a incerteza. siiii 1)esde o primeiro dia, talvez sem se dar conta disso, o mesire de noviços calça os sapatos dos pais. Nunca, desde o tempo dos pais originais, alguém exercera para o noviço um 81
Tópicos Principais na Direção Espiritual
papel tão mui ti facetado, abrangente, paternal, onde autoridade e afeição, instrução e jovialidade estão todas fundidas. Nunca desde então alguém foi tão claramente assinalado como uma pessoa mais velha cujo amor fosse tão fortemente almejado. O fato de o diretor andar com os sapatos dos pais não deve ser tido como um a desvantagem. Pelo contrário: é a plenitude da correspondência que permite ao noviço não apenas lembrar o que ele deixou para trás na família, mas chegar a reganhá-la em parte e ficar em paz acerca do resto. Não que o mestre de noviços venha a ser o pai ou a mãe que o noviço nunca teve. Noviços são leais\ eles querem os seus próprios pais. Querem chegar a perceber verdadeiramente (e não mais a imaginar) que de um modo autêntico e suficientemente surpreendente seu pai e sua sua mãe os amavam e, em troca, querem sentir jorrando neles uma expressão daquele amor. Muitas coisas que o mestre de noviços faz estão despercebidamente relacionadas à família/aos pais. Ele escuta muitas memórias da família. Ele nelas se adentra e as revive com o noviço, rindo e chorando com ele. Sente como se fossem para ele os desejos e recriminações do noviço vis à vis de seus pais (pai). Corrobora as justas queixas do noviço em relação aos aspectos defeituosos do relacionamento de seus pais para com ele. Igualmente, com uma objetividade cheia de afeto, tenta mostrar onde as demandas do noviço foram excessivas, como os pais lhe deram tudo o que eram capazes de dar. Ouvir estas memórias sessão após sessão será uma maneira silenciosa de dizer: “Eu te amo” - e de simultaneamente dizer: “Teu pai/mãe te amou e te ama” . 82
Apto a Ganhar as Almas
E o saldo líquido? Nunca me esquecerei do dia em que um dos meus noviços estava falando sobre um conflito com seu pai e eu estava simplesmente escutando. Alguma nova liberdade e intuição deve ter vindo porque ao final de nossa reunião ele me abraçou fortemente, chorou um bom tanto e disse: “Eu te amo”. No mesmo instante eu tive a graça de compreender que ele estava falando para o seu pai. Foi a primeira vez que, como adulto, ele dizia: “Eu te amo” ao seu pai e ele dissera isto indiretamente, para uma outra pessoa. Mas eu tinha certeza de que na próxim a visita da sua família ao mosteiro ele iria dizer isto à pessoa certa. E eu estava certo! Aqui, a propósito, vemos uma grande parte do privilégio e do desapego de ser diretor espiritual. O privilégio é o de conectar o noviço àquelas pessoas mais amadas da sua história de vida. O desapego é que o amor liberado é para aquelas pessoas. Somos apenas substitutos e devemos sabê-lo desde o início. Ainda assim é uma grande bênção. - Afetividade O segundo tópico - afetividade - está intimamente relacionado ao primeiro. Por causa do desenvolvimento imperfeito/incompleto num contexto familiar necessariamente imperfeito, os noviços com freqüência são incapazes de dar e de receber afeição. Eles são os filhos dos seus pa is fecha dos, e se parecem com eles mais do que eles se dão conta. É difícil para eles expressar afeto, difícil expressar gratidão. Difícil para eles ser o objeto de um a gentileza - isto os confunde; difícil aceitar 83
Tópicos Principais na Direção Espiritual
que lhes chamem a atenção diante de outras pessoas: isto os irrita. Difícil ouvir uma recusa quando eles pedem uma per missão especial: parece uma rejeição global. Neste caso, o papel do diretor espiritual é o de ser um “filósofo amigo” . Aqui, o diretor não está representando o pai; ele está simplesmente sendo um Mensch. Filósofo-amigo, porque o noviço entra na vida monástica ainda existencialmentc ignorante das grandes virtudes clássicas indispensáveis: benevolência (pensar espontaneamente no outro), generosidade (andar a segunda milha), fortaleza (agüentar), moderação (pedir e fruir dos objetos e das pessoas na devida medida), justiça (sentir, julgar e atuar a realidade de acordo com uma verdade objetiva, e não de acordo com o “eu quero”), paciência (perdoar os limites dos outros), etc. Apesar de se considerar indigno - e provavelmente o sendo - o diretor é, neste contexto, o speculum virtutum - o espelho das virtudes - para o noviço. Mas como o noviço aprende as virtudes do mestre? Não tanto por olhá-lo, admirá-lo e compreender sua capacidade abstrata em ser um amigo, mas convivendo com o mestre e experimentando a amizade que ele lhe dedica. Vocês se lembram como, no sermão 18 sobre o Cântico dos Cânticos, de São Bernardo, a pessoa que recebeu uma abundância de graças começará a expressá-las aos outros, semelhante a uma fonte transbordante? Ou de como, em Guilherme de Saint-Thierry, uma pessoa intensamente amada pelo Espírito Santo, eventualmente começará a “exalar” amor? Da mesma 84
Apto a Ganhar as Almas
maneira, o noviço que vive com/caminha com o mestre de noviços neste relacionamento de amigo mais velho/mais jovem começará a irradiar as virtudes que forem derramadas sobre ele no seu relacionamento com o mestre. Aí está o truque: quando nos comportamos virtuosamente, de maneira benévola para com alguém, não apenas derramamos sobre ele bocadinhos de afeto, de gentileza, de generosidade. Nós transmitimos a ele as virtudes que lhe manifestamos. Este é o grande poder e a raison d ’être da amizade filosófica. - O G rande tópico O terceiro tópico, que chamo de “grande tópico”, certamente está relacionado com os dois anteriores. O “grande tópico” é geralmente um evento intolerável e traumático, ou uma série de eventos que exercem um efeito estrangulador sobre a vida emocional do noviço. É uma injúria que tomou o amor saudável de si mesmo quase impossível e que envolve a pessoa com sentimentos de inutilidade, de tristeza e de raiva. Com muita freqüência é algo violento - verbal, emocional ou fisicamente. Parece tom ar impossíveis a liberdade ou a alegria, e confere à entrada na vida monástica os tons amarronzados e cinzentos da “reclusão do mundo” . Abrindo um parêntesis, posso dizer que nos meus quase vmle anos de trabalho como mestre de noviços, o acontecimento mais comum que ouvi foi a respeito de abuso sexual, cxpcinnentado entre os três e os oito anos de idade, em sua muioi parte por parentes, às vezes por vizinhos ou por empregados da família. Digo que eu “ouvi”, mas aprendi que, por um 85
Tópicos Principais na Direção Espiritual
período bastante grande, é aquilo a respeito do qual “não vou ouvir”, especialmente porque o noviço vive por um longo (cm po num esforço desesperado para não conhecer a si mesmo. Penso que, de vez em quando, é possível - e ajuda - “pôr lenha na fogueira”, de um modo geral nas aulas do noviciado, em conferências, etc. Não tanto levantando assuntos particulares, mas referindo-se à idéia do “grande tópico”, de “mitos e frases dentro dos quais vivemos”, etc. O noviço, se ele é um homem de oração e de verdade, experimentará uma pressão crescente em partilhar este evento e, ao mesmo tempo, uma tremenda resistência em falar sobre ele. De um modo estranho, isto se lhe tomou precioso: é o “seu” segredo. Sua inocência foi violada; pelo menos ele manterá o seu segredo prístino. Quando pela primeira vez ele menciona que tem algo para falar-lhe numa data futura, deixe estar. Não force a revelação. Simplesmente lhe diga que quando o momento vier você estará pronto para escutar. Tampouco faça check-ups periódicos sobre o assunto: “Lembra-se de algo sobre o qual você deveria falar? Você acha que seria capaz de dizer-me?” Quando o momento vier, todavia, o noviço provavelmente necessitará de um empurrãozinho. Não para o colocar à prova, mas através de uma compreensão intuitiva - talvez através de uma dica muito delicada (provavelmente você se deu conta da questão meses atrás). E quando ele disser, não interprete, não relativize (“Oh, é só isso? Pensei que fosse algo grande!”), não pontifique. Faça somente aquilo que naquele momento ele es86
Apto a Ganhar as Almas
pera de você: ame-o e sinta com ele. E de alguma forma faça-o saber que ele é maior e mais amado por ter falado esta verdade. Mesmo se a verdade for horrível, que ele mesmo tenha feito: ele é mais para você e mais amado para você do que antes. Como a viúva do Evangelho, ele lhe deu tudo o que tinha - e ele olhará para você para ver se, como Jesus, você reconhecerá o valor extraordinário deste dom doloroso. Se você o fizer e se você comunicar isto no decorrer do relacionamento, você se terá tomado um dos pequenos salvadores da vida do seu irmão. E então você terá alguma idéia do que significa ser um diretor espiritual.
87
CAPÍTULO 9
C o l a b o r a d o r e s n a D ir e ç ã o E s pir it u a l
Além da comunidade como um todo, que desempenha um papel formador no desenvolvimento espiritual do noviço, há três figuras que devem ser de ajuda no trabalho de direção espiritual do mestre de noviços: o abade, o confessor e o psicólogo (naquelas comunidades em que é costume fazer uso de uma avaliação psicológica). Cada um destes deve dar uma contribuição real positiva aos esforços do mestre de noviços. - O A b ad e Como afirmam as nossas Constituições: “Entre o abade e o mestre de noviços deve existir uma sincera e profunda unidade de espírito, de coração e de orientação” (ST 49.1 B). A palavra “espírito” é central, porque há algo trinitário entre o abade e o mestre de noviços. O abade confia os noviços da comunidade - seus noviços - para que eles sejam educados nas tradições da vida monástica, e o mestre de noviços devolve estes noviços (que também se tomaram dele) ao abade no tempo da sua profissão, a quem eles pertencerão pelo resto da sua 88
Apto a Ganhar as Almas
vida religiosa. Não é muito afetado colocar na boca do mestre de noviços estas palavras de Jesus em João 17: “Manifestei o teu nome aos homens que, do mundo, me deste. Eles eram teus e tu os deste a m im” (Jo 17,6). Esta unidade de espírito-coração-orientação se expressa em confiança e contato. O bom abade verdadeiramente confia os noviços ao mestre de noviços e não tenta disfarçar as suas próprias deficiências como diretor espiritual excedendo a sua própria interação com os noviços (“Como você descreveria o meu cargo?” “O senhor é o abade do noviciado.”). Ao mesmo tempo, o mestre de noviços não protege os noviços do abade, por causa das supostas imperfeições espirituais do abade ou porque (mais provavelmente) quer a lealdade de todos os noviços para si. Ao invés disto, o abade e o mestre de noviços estarão sempre encorajando os noviços a confiarem e sentirem afeição um pelo outro - e isto mais por convicção, que por política. É necessário um contato freqüente entre o mestre de noviços e o abade, e o assunto básico de suas conversas deve ser 0 noviciado. Como estive tentando dizer, o abade não deve ser considerado uma presença estranha na vida do noviço. N a verdade, ele é o formador/diretor espiritual da comunidade, inclusive do noviciado. No curso normal das coisas, e especialmenle no caso de um mestre de noviços novo, o abade tem uma lonlc de experiência e de sabedoria da qual o mestre de noviços scnsalo vai querer beber. Anos após ter completado o meu linhnllio como mestre de noviços em Spencer, continuo a ser 01 u-nlndo pelos ditames claros e sensatos sobre a direção espi89
Colaboradores na Direção Espiritual
ritual que me foram passados pelo meu abade. Isto também é “tradição” . Além do mais, um mestre de noviços que entende o seu lugar na comunidade de acordo com a Regra não desejará tomar uma posição com relação aos noviços contrária à mente do abade. Para evitar fazê-lo, precisará ter freqüentes encontros com o abade, encontros através dos quais chega a um conhecimento da mente do abade e é impregnado por ela. Isto toca no assunto de confidência. É uma questão delicada. Por um lado, é imprudente e um exagero um mestre de noviços comunicar a um noviço: “Tudo o que você me disser eu tenho a obrigação de contar para o abade” . Para o noviço para todos nós - pessoas não são intercambiáveis. Não podemos supor que duas pessoas se sintam livres para contar as coisas mais profundas do seu coração para duas pessoas, uma delas a longa distância. Neste sentido, um mestre de noviços não é um “canal”. Por outro lado, não se deve deixar que o noviço pense que coisa alguma que ele venha a contar ao mestre de noviços será repetida ao abade. Há alguns discernimentos cruciais e decisões em que o mestre de noviços necessitará de conselho e de ajuda - e a pessoa mais indicada para dá-lo é o abade. Parece melhor, logo no início do relacionamento, explicar aos noviços que há reuniões regulares entre o abade e o mestre de noviços e que alguns pontos levantados na direção espiritual são apresentados. O noviço deve se sentir livre para pedir que certos pontos sejam mantidos entre ele e o mestre de noviços pelo momento; o mestre de noviços deve ter a liberdade de pedir, num ponto ou noutro, “permissão” para tratar de uma matéria importante com o abade. Acima de tudo, o abade não deve ser sentido como ameaça oculta. 90
Apto a Ganhar as Almas
Posso dizer honestamente que, em dez anos de serviço como mestre de noviços sob um abade, esta questão nunca foi problemática. Onde existe boa compreensão entre abade e mestre de noviços e entre mestre e noviço, o problema é mais teórico que real. - O Confessor O segundo colaborador é o confessor do noviço. Deixeme dizê-lo explicitamente: pessoalmente eu sou da opinião de que deve haver “confessores nomeados” (pelo menos inpectore) para os noviços. O sacramento da confissão tal como é atualmente praticado quase sempre inclui aspectos de direção espiritual. Seria um empobrecimento do sacramento tentar eliminálos, c uma batalha perdida em todos os momentos. Dado o perfil do confessor como um tipo de diretor espiritual secundário, é importante que ele seja um monge cujo perfil espiritual tenderá a confirmar e corroborar (obviamente sem ser um repeteco) a visão do abade e do mestre de noviços. (Tomar cuidado com: "Não posso dizer ao meu mestre de noviços o que está acontecendo c eu não confio no abade, mas eu tenho um bom relacionamento com o meu confessor. Ele me aceita como eu sou” . Isto é perigoso!). () que é importante comunicar ao noviço - mais implícita que explicitamente - é que ter um mestre de noviços e ter um conlessor não significa dividir o material que se partilha entre csins duas pessoas. Pode haver uma tendência por parte de alpuns noviços dc separar algumas questões específicas do combate espu ituai c reservá-las ao confessor. O relacionamento com o meslie dc noviços é, por sua natureza, “global”, inclui apes91
Colaboradores na Direção Espiritual
soa toda. Além do mais, o modo como um noviço fala sobre uma questão com o diretor espiritual é diferente daquele com o qual se expressa na confissão. Não há nada de errado em contar algumas destas coisas a ambos; no entanto, há uma certa falsidade de relacionamento quando a direção espiritual se reduz a recontar o material bom e fácil. Aproveitarei esta oportunidade para dizer que uma parte da tarefa do mestre é inculcar a importância da confissão freqüente - pelo menos uma vez por mês. Uma tendência surpreendente que tenho encontrado é um não-desejo de trazer diante de Deus e da Igreja no sacramento da reconciliação o que foi discutido na direção (num certo modo, o contrário do parágrafo anterior. É “permissível” na mente do noviço falar sobre estas coisas no contexto de amizade e de compreensão, mas inaceitável levá-las para dentro do contexto de responsabilidade/pecado/arrependimento/penitência/ compromisso em arrepender-se. Uma tal separação negativa tem de ser superada. - O Psicólogo Muitas comunidades fazem uso de avaliações psicológicas - em pontos diferentes do processo de discernimento. Estou convencido de que elas são valiosas por numerosas razões: a) É possível que o conselho vocacional tenha cometido um erro sério de julgamento. Um bom psicólogo focalizará o perigo de se admitir uma pessoa que não deveria ter sido admitida no mosteiro; b) O psicólogo pode confirmar intuições que o diretor 92
Apto a Ganhar as Almas
espiritual já tenha formado e dar-lhes um contexto intelectual; c) O psicólogo pode ajudar a identificar diversas “tarefas” básicas para a pessoa que inicia o noviciado. Aqui não é questão de fazer um discernimento vocacional. Ao invés disto, tratando-se de alguém que deve ser aceito no noviciado, aqui estão uma ou mais áreas fundamentais que merecem ser trabalhadas durante este período. É de grande valia para o noviço ficar sabendo destas tarefas através do próprio psicólogo; melhor ainda se o mestre de noviços puder participar desta conversa. d) Forma-se um a base para futura assistência do noviço, caso venha a ser necessária. Num momento crítico, o psicólogo pode intervir, sabendo com quem ele está lidando. O mestre de noviços também tem a possibilidade de fazer um contato subseqüente com o psicólogo, pedir um conselho sobre um desenvolvimento particular na vida de um noviço que passou pelo psicólogo; e) O psicólogo pode, de uma maneira limitada, tomar-se um amigo do diretor espiritual. Neste caso, sua ajuda tem mais n ver com as direções gerais no trabalho do diretor espiritual, ou com questões relativas à própria vida do diretor espiritual; I) O psicólogo pode ser convidado a dar breves palestras comunitárias. Tendo avaliado um bom número de noviços e formado um relacionamento cooperativo com o mestre de noviços, ele poderá dar uma contribuição excelente à comunidade sobre questões fundamentais do crescimento humano. Ao mesmo lempo, aqueles na comunidade que quiserem, poderão 93
Colaboradores na Direção Espiritual
consultá-lo para um “check-up” . Às vezes há um certo receio de ver o noviciado tomado pela psicologia e por psicólogos. Penso que a idéia de se barrar as ciências humanas do mosteiro é intratável e penso que o compromisso de se limitar a sua entrada à leitura de tempo livre do mestre de noviços não é totalmente responsável, llá excelentes psicólogos católicos e cristãos, ávidos e capazes de colaborar da sua própria maneira com nosso trabalho - ávidos também de aprender da sabedoria da vida monástica. É uma questão de escolher cuidadosamente o psicólogo correto e, através de um programa de educação (troca de livros, artigos, conversas) ajudá-lo a ser eficaz em suas avaliações e ajudar-nos a nos beneficiar de seus pontos de vista. - A Com unidade Faz algum tempo, tive uma conversa com um formador monástico de uma outra comunidade que afirmou: “Quando somos jovens, concentramo-nos quase que exclusivamente no papel do diretor, porque achamos que ele pode fazer tudo. À medida que vamos ficando mais velhos, reconhecemos mais e mais que é a comunidade que forma e que nós somos os seus representantes”. É realmente importante que o mestre de noviços não adote uma postura controvertida em relação à comunidade, tentando limitar ou cancelar a sua influência. Independentemente da causa, seja vaidade/possessividade da parte do diretor ou divergência aguda de visão entre os superiores/formadores e a co94
Apto a Ganhar as Almas
munidade, os noviços serão atingidos no fogo cruzado, e certamente ficarão confusos. A vida monástica é essencialmente “edificante” . Vivemos em grande e consciente proximidade uns dos outros - livre e ativamente dispostos a ser influenciados uns pelos outros - e o livro básico de form ação além da B íblia é o liber exemplorum. Especialmente para os jovens, a comunidade é um livro de parábolas do Evangelho. A Regra demonstra claramente que o exemplo ensina, enquanto que as palavras freqüentemente não desempenham o seu objetivo. Tão importante quanto o diretor/a monástico possuir autoridade, é que os noviços aprendam de todos aqueles que não tenham autoridade oficial. Eles fruem da solenidade e intensidade daquilo que aprendem na direção espiritual, mas eles necessitam da détente e da espontaneidade daquilo que aprendem fora do ambiente formal. Eles precisam escrever as suas próprias anedotas - isto é, testemunhar uma multidão de situaçóes monásticas interpessoais, ser pessoalmente iluminados por elas e transformá-las em histórias transmissoras de vida que eles mesmos possam contar. Para mim, é um a contínua formação na vida de minha comunidade ouvir os apoftegmas dos noviços. Através destas histórias, eu redescubro as grandes e genuínas virtudes dos meus muitos. Através de perfeccionismo pessoal e responsabilidade piolissional (como superior), facilmente percebo e retenho na memória aqueles aspectos da vida m onástica nos quais os ir95
Colaboradores na Direção Espiritual
mãos professos ainda precisam crescer. Os noviços, livres destas pressões, e altamente responsivos às várias formas de bondade, me re-instruem. Para eles, sem dúvida, caridade e humildade são os valores monásticos centrais, e não ficam chocados quando estas virtudes se manifestam em algum monge mais velho Juntam en te com alguma infidelidade residual. A comunidade monástica é uma grande família formada por muitas gerações, onde cada geração é indispensável na formação. Cada vez mais eu aprecio a providência de Deus na atração natural entre “avós” e “netos” monásticos (costume clássico grego de se nomear). Os anciãos da comunidade, afetivos, não-ameaçadores, carentes em sua fragilidade física, sem quaisquer esforços obtêm dos noviços dons de generosidade, confiança e compaixão. Ambos ficam espontaneamente felizes na presença uns dos outros. Monges mais velhos com freqüência deixam sentir ao seu redor uma “aragem do céu” - uma orientação interior palpável rumo à vida eterna - e isto toca e encanta os principiantes. Mais que isto:perceber um desejo genuíno do céu nos monges mais velhos é uma verdadeira forma de direção espiritual. N a mesma linha, os noviços são ensinados pelos membros mais velhos da comunidade na arte do desapego, especialmente em manter as coisas na devida proporção. Os noviços também precisam ser guiados pelos jovens professos. Estes são uma “corda mais à mão”; eles não são em absoluto um outro animal, e quando se trata de uma comunidade multicultural, os jovens professos são geralmente da mesma 96
Apto a Ganhar as Almas
cultura que os noviços. Os jovens professos aprenderam recentemente exatamente as mesmas lições que os noviços necessitam aprender-perseverança, autotranscendência, abertura aos superiores, lembrança das necessidades do outro, “nunca desesperar da m isericórdia de Deus” - e é um a alegria para eles passar estas lições aos noviços. Cumprem o papel do amigo, do irmão mais velho. Inevitavelmente, os noviços se dirigirão uns aos outros também. Enquanto isto tem o potencial de ser perigoso (sobretudo quando há um psicólogo/padre no noviciado), é uma parte positiva do retrato de família. Os noviços possuem uma notável credibilidade mútua e uma sensibilidade especial pelo estado de cada um. Eles são os “marinheiros-de-primeira-viagcm”. Uma boa maçã faz um bem enorme animando, orientando e até mesmo corrigindo calmamente os outros. Neste sentido, os noviços devem ser efetivamente confiados à comunidade. Os membros da comunidade devem acreditar e assumir que são eles os formadores dos noviços. Na medida em que eles acolhem esta graça, estarão abertos para uma palavra de admoestação por parte do superior/mestre de noviços quando se tomarem vacilantes na função de edificar. () mestre de noviços deve conhecer e amar a história e a li adição da comunidade particular. Junto com a comunidade, deve rellctir sobre a sua visão especial da vida monástica - os eai ismas particulares da comunidade - com a intenção de se lomai para os noviços o comunicador desta herança espiritual da comunidade. 97
CAPÍTULO 10
D ir e ç ã o E s p ir it u a l e m M o m e n t o s d e C r is e
Durante os primeiros meses (ou até mesmo nos primeiros dois anos) da vida monástica, o noviço viverá num modo fundamentalmente construtivo. Ele se acomodará ao horário e ao estilo de vida da comunidade; ele se adaptará com alegria a este ritmo menos acelerado e a esta maior simplicidade de seu novo ambiente; ele se dedicará à oração e à lectio, ao ofício coral e ao trabalho manual. Até um certo momento, experim entará os resultados de tudo isto como algo positivo e afirmador. Está realizando um objetivo; está crescendo em sua vocação. Em alguma ocasião, entretanto, os “murmúrios” começarão. De uma maneira ou de outra, perceberá que suaves, porém inegáveis fissuras estão se abrindo nele ou em seu relacionamento com a realidade. É como se o solo estivesse cedendo sob os seus pés, como se a ponte com a qual abarca a realidade estivesse para se romper, como se estivesse para ser imerso no abominável Oceano. Ele se sente terrivelmente vazio, ou, ao contrário, demasiado cheio para conter-se em si mesmo. O que está acontecendo? Poderá o diretor ajudá-lo? 98
Apto a Ganhar as Almas
O que está acontecendo é que a vida monástica está “trabalhando”. Estabeleceu-se contato entre o Deus vivo e a vida verdadeira no centro da pessoa. Pelo menos, foi ouvido no próprio santuário interior da pessoa o chamado de Deus. Mas isto é necessariamente muito desestabilizador para o “ego” - ego aqui significando o plano alternativo de comunhão com o Deus vivo que a pessoa que busca a si mesma estabeleceu. Este plano alternativo tem sido até o presente momento a identidade cotidiana da pessoa, e agora ela tem que partir, a fim de que o “eu” possa realmente viver de Deus e em Deus. Até que isto aconteça, a vida da pessoa - mesmo a sua vida moral e religiosa - estará se construindo sobre uma fundação irreal. É a isto que Cassiano se refere quando diz que não há virtude autêntica exceto aquela que se .ergueu com base na humildade: aquela radical, ontológica, penitencial e alegre pobreza em espírito. A destruição do “falso eu” (na terminologia de Merton) é terrível para o noviço/jovem professo. Como na psicoterapia, sua primeira reação será provavelmente uma valente tentativa de levar tudo de volta à maneira dos “velhos bons tempos” quando o ego reinava supremo. Ele pouco se dá conta de que é exatamente a sua fidelidade à oração, lectio (em particular) e o irslo das observâncias monásticas que o está conduzindo a - e nii avés - deste precipício. Normalmente, este “desfazer” se mostra em dois aspectos e os dois são relacionados. O aspecto geral pode ser desci tio como “ansiedade existencial” . A pessoa “teme por sua vida", sente que a pressão exercida sobre a sua existência é demasiado grande, que não pode suportá-la sem implodir. O 99
Direção Espiritual em Momentos de Crise
aspecto particular é o desenrolar de alguma construção psico lógica a longo prazo (inacessibilidade emocional; autodispensn da tarefa humana fundamental de amar e de ser amado). I ni ambos os aspectos a pobreza (dependência) subjacente de nossa condição humana será sentida intensamente. Intensamente sentida, porém não bem-vinda. A pessoa que, com êxito, criou uma invulnerabilidade a Deus, uma distância de suas emoções, uma independência afetiva dos outros, provavelmente teve uma necessidade gritante de fazê-lo, Mesmo se em certo sentido tais escolhas tenham sido pecam inosas, ele certamente acreditava que elas fossem necessárias. Além do mais, estas escolhas são muito antigas: a escolha de se viver sem precisar de Deus, por exemplo, retrocede tão longe em sua vida quanto o pecado original - ao próprio momento da concepção. Para o diretor, deve ser alegre e dilacerante ao mesmo tempo reconhecer que este momento chegou, que a “hora” do noviço chegou. Caso o noviço não soubesse, ele poderia apropriar-se com justiça das palavras de Jo 12: “Sinto agora grantje^ angústia. E que direi? ‘Pai, livra-me desta hora?’ M as.|o^pre^. cisamente para esta hora que eu vim. Pai, glorifica^eu non^e”^ Qual o papel do diretor neste processo? Em prim eiro lm gar, ele deve reconhecer que este é um momento sagrado, o momento último do renascimento da pessoa em Deus^OEsta doença não leva à morte” . Por ser um momento sagrado, deve vigiá-lo e vigiar a 100
Apto a ganhar as almas
pessoa que o sofre, impedindo que o lago seja enlameado, seja pelo noviço, seja pelo resto da comunidade ou por si mesmo. Ele deve, vez por outra, comunicar ao noviço que ele está no mistério pascal e que, essencialmente, a vitória está garantida. Deus só permite esta provatio quando pretende fazer a sua inabitação na pessoa. Esta garantia é cn^cial^p_orque aj£ntaç|Q^ ^ao desespero e ao abandono clé todo o projeto monástico será muito grande. Ele também deve estar disponível por todo o tempo que o noviço necessite neste momento crítico. Nunca soube de dois noviços que tenham vivido esta fase decisiva ao mesmo tempo. Desse modo, Deus é providente para com o mestre de noviços e assim deve sê-lo o mestre de noviços para com o noviço “moribundo”. Em meu próprio caso, sem uma extraordinária disponibilidade por parte do mestre de noviços, eu certamente não teria sido capaz de perseverar em minha própria vocação. Não é só questão de o mestre de noviços ter um ouvido incansável, capaz de ouvir tudo aquilo que o noviço tem a dizer (e, com freqüência, repetir) - embora tal escuta seja indispensável. Também é tarefa sua, neste momento decisivo, acreditar na vocação do noviço. Somente esta fé pode fazer o noviço perseverar e ser trazido de volta de toda sua aflição, e durante este tempo o noviço só pode acreditar com base na fé do seu mestre dc noviços. Nesta conjuntura, o noviço não sabe mais nada a não ser que ele está em grande dor. O mestre de noviços deve falar a palavra da fé a ele e p a ra ele. I;rn sua tarefa de escuta, o mestre de noviços .não deve se 101
Direção Espiritual em Momentos de Crise
preocupar muito com a lógica ou com a honestidade daquilo que o noviço está lhe dizendo. O noviço está tentando “achar o sentido da sua vida”. Com a abertura das rachaduras em seu ego, ele terá muito mais informações e muito mais acesso a elas, do que antes. Mas não se pode esperar que ele as ordene imediatamente ou as viva calmamente. Tem de deixar o noviço “jogar conversa fora” e dizer o que lhe vem à mente. Oração e discernimento ensinarão o diretor quando deve manter-se quieto e quando corrigir algumas das impressões distorcidas dos noviços. - - O melhor conselho prático do diretor será mandar o noviço, constantemente, de volta a Deus. A Palavra de Deus, a oração diante do Santíssimo Sacramento, olhar para um crucifixo: é o que pode ajudar um noviço a “manter-se em silêncio e saber que eu sou Deus” . Não há conselhos muito diferentes destes. Uma coisa que o diretor pode fazer é ser generoso neste ponto, com pequenas permissões: ouvir música, ter algum descanso extra. A tarefa básica do diretor neste momento não é advertir, mas sim interceder, repetir constantemente diante do Senhor: Tantus labor non sit cassus. “Não permitas que tanto sofrimento - o Teu próprio na Cruz e a imitação do noviço de Teu sofrimento na Cruz - seja em vão. Restitui-lhe a vida” . Esta é mais uma daquelas vezes em que o diretor deve mostrar-se digno daquilo que lhe foi confiado e o demonstrará através da solidariedade na oração. “V igiai ejmLcomigqA_djzdhe_o noviço, “porque m inha alma está triste até a morte”. 102
j ; t \ '
Apto a ganhar as almas
Este processo pode durar um ano ou mais e é exaustivo para ambos os envolvidos. Quando o noviço sair dele, entretanto, será pelo menos um monge incipiente - alguém que vive de toda palavra que sai da boca de Deus. E será um homem livre, alguém que começou a se regozijar na verdade, por mais duro que um pedaço particular da verdade possa ser.
103
CAPÍTULO 11
Q u a n d o o D ir e t o r “ é o P r o b l e m a ”
Quase sempre, virá um momento - e um m om ento que não passa tão rápido - quando um relacionamento basicam ente positivo com o diretor am eaça azedar. Que esta experiência possa ser um a contribuição positiva tanto para o relacionamento do diretor quanto para o do dirigido, bem como para a v ida espiritual de am bos, me parece ser indicada pelo apoftegm a já citado no decorrer deste livro (Anjo... Dem ônio, cf. p. 13). N ão falo de um relacionam ento que com eça ruim e contin ua ruim . C om um a certa freqüência, podem haver dificuldades iniciais em se criar um am biente de genuína direção espiritual, porém , se estas não forem superadas, neste caso estam os dian te de um claro sinal antivocacional. Com o diz o d ocum ento de nossa O rdem sobre a form ação, se um noviço é incapaz de, a longo prazo, relacionar-se bem e com algum grau de abertu ra com seu diretor, isto indica que ele não tem u m a vocação p ara este m osteiro, pelo m enos neste m om ento. A questão aqui é a de um relacionam ento positivo , con-
104
Apto a ganhar as almas
fortável, construído no decorrer de vários anos e que começa a desintegrar-se e, em particular, a se tom ar hostil, sobretudo por parte do dirigido. Quais são as causas deste fenômeno? Qual o percurso que deve ser seguido? Qual é a transformação que se pode esperar? Este não é um ponto pouco importante. O foco negativo no diretor pode se tom ar o conteúdo predominante do universo interior do dirigido (isto é, uma “paixão”), e se a paixão não for trabalhada ela pode vir a se tom ar um a obsessão que tom a a permanência no mosteiro impossível. Uma noção que pode ajudar neste contexto é a reflexão de Dom André Louf sobre a auto-idealização do jovem monge. Uma vocação monástica é certamente uma vocação para o idealista e freqüentemente uma das motivações do noviço ao entrar para o mosteiro é a de se sentir ideal acerca de si mesmo numa comunidade ideal. Seria possível afirmar que quanto maior for a insegurança interior acerca de seu próprio valor, maior é a intensidade que se põe na vida monástica enquanto lugar aonde eu posso ser o meu eu ideal. Mesmo antes de entrar para o mosteiro, o candidato formou um “compêndio” de valores monásticos principais e, sem dúvida, obediência e humildade estão incluídas entre eles. Ele mio está errado em pensá-los como valores genuinamente moníisl ieos, mas é provável que o seu interesse em cultivá-los não ‘.ui |ii completamente da pureza de coração. Ele ou ela está buscando imergir num estilo de vida que gerará auto-aceitação e nulo aprovação. Sendo humilde e obediente, o jovem monge 105
Quando o Diretor é o Problema
poderá contemplar a si mesmo e experimentar “complacência”: “Eis o meu amado - isto é, eu! - em quem eu me com pram Olhai-o!” O diretor tem um papel indispensável neste projeto de auto-afirmação. Certamente, ele ou ela impõe as exigências e estabelece os limites sem os quais não poderia haver prática de obediência. Ao mesmo tempo, o jovem monge está implicitamente pedindo que a antífona estragada da festa do Batismo acima citada seja cantada como um dueto, e não somente como um solo. O diretor “serve”, de algum modo, para corroborar a impressão do noviço de que ele é um excelente monge... isto é, uma pessoa digna de valor. E de fato, é bem possível que o noviço sequer ouça sua própria voz interior elogiando a si mesmo (este seria um exemplo inaceitável do vício da vangloria); a voz que ele ouve e deseja ouvir é a do diretor (“voz”, aqui, não significa necessariamente elogio verbal, mas antes, uma atitude que comunica aprovação). Se a conversatio monástica estiver funcionando, em algum momento tal auto-idealização começará a ruir ou, mais provavelmente, a explodir. As “paixões do meio” (ira, tristeza, acédia), invisíveis no início quando a atenção estava sendo voltada à gula e à luxúria (assim como à simples incorporação na comunidade) agora se manifestam com força. O jovem m onge agora se encontra alvo de ondas de irritação (ou mesmo fúria) assim como de tristeza (ou mesmo depressão), assim como de acédia (ou mesmo um a radical perda de interesse no lugar). Isto é terrivelmente frustrante para o jovem monge. Anos 106
Apto a ganhar as almas
ilc esforço serviram para aparentemente nada; uma vez mais, a pessoa se encontra “de volta à estaca zero”. Além do mais, ele vinha dependendo deste projeto monástico - na maior parte, inconscientemente - para obter alguma glória perante os seus próprios olhos. Agora todo o autoquestionamento está de volla, com força total... e com um sentido adicional de fracasso. É muito natural que, neste momento, o monge sinta que ele foi “enganado” por seu diretor. Ele tinha certeza que seu diretor estava lhe prometendo santidade; bastava-lhe seguir o manual de instruções. Mas o manual de instruções não era tão fácil assim de ser seguido: tantos sacrifícios da vontade própria, tantas renúncias das preferências pessoais, tanta obediência c u sto sa - tudo feito com um sorriso. E junto com isto, todo o trabalho de revelação de si mesmo, a pobreza e a “inferioridade” de se saber totalmente conhecido. E além disso, a dependência: a dor de se sentir tratado como uma criança (independentemente de isto ser objetivamente verdadeiro ou não). Tudo isto até este ponto ia sendo cozido a fogo lento, mas nunca fervera por causa da recompensa que estava sendo buscada. Agora parece que não haverá recompensa. Auto-idealização vai de mãos dadas com a idealização dos demais. Ao idealizar o seu diretor, indiretamente se está idealizando a si mesmo. É este o objetivo de se idealizar a comunidade, o superior, o diretor: fazer com que se sinta bem acerca de si mesmo. Em vista disso, o noviço/ júnior reprimira muitos dados negativos a respeito do diretor: muitas ofensas, muitos deslizes, muitos modos de agir que o irritavam. Tudo isto foi escondido a fim de preservar o diretor como uma figura 107
Quando o Diretor é o Problema
ideal e a si mesmo como “ideal por associação”. Isto não mais é sustentável, um a vez que o projeto de auto-idealização começou a desenvolver rachaduras de maior porte. A partir daí, com força surpreendente, emerge perante o olhar interior do dirigido a “face escura” do diretor. Quanto mais este conhecimento era reprimido anteriormente, quanto mais “glorioso” o diretor parecia antes, mais violentamente este conhecimento negativo se afirma agora, fazendo esvanecer quase que por completo as dimensões positivas. Evidentemente, o dirigido não experimenta esta mudança de visual como uma revolução interior de si mesmo. Ao invés disto, pensa o jovem, o diretor tinha conseguido enganá-lo, de propósito, e agora ele se revela em suas cores verdadeiras. O diretor não passa de um mascarado. O jovem religioso descobre que durante todo este tempo ele estava formando um “arquivo negativo” juntamente com o “arquivo positivo” e que uma vez que ele passou para o negativo, há uma riqueza de informações horrorosas disponíveis e que dizem respeito ao diretor. O mais difícil para o dirigido entender é que, durante todo o tempo, o diretor estava sendo simplesmente um outro pobre ser humano como si mesmo, tentando seguir a Cristo da melhor maneira possível, e que sua intenção em nenhum momento foi de vender-lhe gato por lebre. Toda esta m istura se tom a ainda mais poderosa na medida em que o diretor representa uma renovada esperança parental por parte do jovem monge/ monja. Onde a situação familiar era fundamentalmente negativa - p ai/ mãe ausentes, abusivos ou indiferentes - o diretor está quase que fadado a se tornar, 108
Apto a ganhar as almas
transitoriamente, um a nova possibilidade parental. N a medida em que existirem “carências” em relação aos pais, o religioso exigirá compensação do diretor. E contudo, o jovem religioso estará interiormente programado para experimentar a mesma negatividade de novo, e estará, de fato, desconfiado acerca de uma tal repetição. Até agora, tenho falado como se fosse o diretor o problema, quando na realidade, o problema estava com o dirigido. Mas a outra possibilidade é igualmente provável, e uma não exclui a outra. É uma grande tentação por parte do diretor relacionar-se com aqueles que ele orienta de um tal modo que as necessidades de seu próprio ego (ego-needs) sejam satisfeitas, listas necessidades podem ser de vários tipos: a) necessidade de amizade; b) necessidade de um confidente; c) necessidade de aliados dentro da comunidade; d) necessidade de ser todo-sábio, todo-importante e todopoileroso na vida de pessoas mais vulneráveis; e) necessidade irreconhecida - ou reconhecida - de intimidade erótica/sexual. Pela sua própria posição de autoridade, 0 loi mador está inclinado a não se autoquestionar e a conside1ai que onde haja dificuldades, elas surgem de dentro do dirigido Mesmo no caso de diretores humildes e cônscios acerca de ■ti mesmos, sempre há, em todos os relacionamentos humanos, moiivnçóes egoístas, prejudiciais para todos os envolvidos. I
Quando o Diretor é o Problema
mos” Exige m uita autodisciplina, autoconhecimento e autodesilusão ser capaz de se observar tentando ganhar os dirigidos para si mesmo ao invés de para Cristo. É um a realidade horrível, e muito comum, esta sedução emocional: fácil de ser identificada nos outros, muito elusiva no tocante a si mesmo. Após vinte anos como diretor espiritual/ formador no contexto monástico, eu ainda estou tentando me apropriar da frase de Edith Stein: os dirigidos nos são dados para os ganharmos para Cristo, e não para nós mesmos. Enquanto o diretor não for um místico em algum grau, ele não será plenamente capaz do desapego necessário na direção. Esta deve ser um a das razões pelas quais muitos padres do deserto fugiam, quando aparecia um jovem discípulo à sua cela pedindo-lhe que assumisse a sua direção espiritual. Atualmente, ser diretor espiritual/ formador é um cargo aceito sob obediência, e no qual se começa muito imperfeitamente. E não obstante, desde o princípio, com as palavras de Edith Stein como lema, e acrescentando mais um: ganhar a si mesmo para Cristo e não para si. A questão seguinte é: E agora? Como proceder quando um relacionamento aparentemente simples e natural se tomou complexo e difícil, quando medo e ira substituíram confiança e afeição? O primeiro ponto, talvez, seria cada pessoa reconhecer a dor do outro nesta situação. O diretor precisa estar convencido de que o monge ou monja não simplesmente entrou em rebelião, não está finalmente, agora, “mostrando quem ele verdadeiramente é” O monge está num tipo de agonia: a pessoa em quem ele confiava e obedecia parece ser agora um tipo de mini-monstro. É possível continuar a confiar e obedecer ou até mesmo a viver na mesma casa com ele? De sua parte, o 110
Apto a ganhar as almas
jovem monge ou monja, na medida do possível, deve tentar intuir o desafio para o diretor. Certamente o diretor não ignora as novas ondas de hostilidade e ambivalência vindas em sua direção. Não pode ser confortável ser o objeto diário de desconfiança e resistência por parte de uma pessoa que até agora cra um companheiro, um irmão mais novo, um discípulo. Tal como eu vejo, a coisa mais importante seria uma decisão, sobretudo por parte do dirigido: a decisão de “atravessar” a situação. O que é necessário é a determinação de perseverar neste relacionamento até que um novo equilíbrio seja atingido. Isto requer todas as virtudes teológicas - talvez, de modo especial, a esperança. Além de desapontamento, ira e dor, este relacionamento ainda possui outras, belas, possibilidades. Sim, algo andava errado até agora - algo não completamente compreendido - mas Deus é capaz de dar um jeito. Sem esta disposição, todo o relacionamento está condenado a passar de uma inlátuaçâo inicial a uma desilusão final - um horrível diagnóstico para a amizade humana em todas as suas formas. Por algum tempo, para ambas as partes, o relacionamen!o cotidiano será desconfortável. O dirigido não vai se sentir à vontade cm falar sobre si mesmo, e o diretor não vai se sentir à vontade em receber esta informação e em oferecer suas intuiçOcs a seu respeito. Este fundamento de confiança, laboriosamente construído, parece ter sumido. E todavia seria um erro, nesta altura, “trocar de diretor” (em situações que permitem esta llcxibilidadc) e provavelmente também um erro depender de um psicólogo para remendar o rasgo. Muito mais provável é qne haverá uma transferência de lealdade: ao psicólogo será 111
Quando o Diretor é o Problema
dada a confiança retirada do diretor, e não é muito provável que ela seja devolvida mais tarde. O que eu recomendo (sem querer afirmar que isso seja fácil) é um bom “desabafo” por parte do dirigido. Isto é correção na direção espiritual vista do outro lado: o dirigido deixa o diretor saber de tudo aquilo que o perturba e o irrita no relacionamento. Isto tem que ser ouvido com seriedade e com fé: sem a menor dúvida, o dirigido identificou fatores e hábitos no diretor que necessitam de mudança. O diretor precisa mostrarse aberto à conversão, não como um artifício, mas com toda a sinceridade. Paradoxalmente, isto também lhe permitirá uma maior liberdade e naturalidade em falar ao dirigido e em lhe apontar áreas de crescimento. Não há mais ninguém idealizado no meio da conversa e todo o clima chega a uma maior humildade. Uma vez que o jovem religioso tenha dito o que tinha para dizer, as coisas podem pouco a pouco voltar a funcionar. Não é questão de uma permanente troca de papéis: “Daqui em diante, diretor, sou eu quem farei as correções aqui”. Nem é isto o que o dirigido quer. Ele quer saber que as suas reclamações estejam sendo ouvidas, que ele é respeitado e que ele é importante neste processo de direção. Sto. Elredo acreditava que a verdadeira direção espiritual naturalmente se metamorfoseia em amizade espiritual, com a noção de igualdade e mutualidade no centro deste relacionamento. Juntamente com tudo o que foi dito anteriormente sobre este movimento da idealização para o realismo, o conflito 112
Apto a ganhar as almas
com o diretor também pode indicar um feliz e orgânico desenvolvimento. O dirigido não mais se sente bem e contente em scr uma criança nos seus relacionamentos com o diretor. Ele ainda quer o relacionamento, mas ele também quer reconhecimento. Ele também deseja falar com autoridade e deseja assumir mais autoridade em sua própria transformação. Tudo isto é para o bem e faz atual a visão de Evágrio: “No Uno, não há mais mestre ou discípulo, mas todos são deuses” .
113
PARTE II
TORNAR-SE MONGE NA SOCIEDADE SECULAR DE HOJE
UMA NOVA PATERNIDADE de João Batista a Jesus
O monge é sempre discípulo. Ele deseja tomar-se o herdeiro autêntico de um mestre, viver e transmitir dignamente a santidade dos seus modelos. Ele vê no mestre a tradição viva e encarnada e espera tomar-se o próximo elo desta tradição. Seus ombros ardem, por assim dizer, por receber o manto daquele i|nc o formava. Quando os monges lêem que na hora da sua moilc, Santo Antão, primeiro monge, mandou seu manto para Alnnásio, todos entendem o que isto significa. Os monges do século quarto, o século da explosão do Iniómcuo monástico, buscavam não somente pais contempoiilueos, mas pais arquetípicos, patriarcas. Ocupados como eslnvntu muitas horas por dia na leitura, meditação e proclama(,11o publica dos textos bíblicos, sentiam a necessidade de desmbi ii mi página sagrada os antepassados espirituais. Uma vez i lu-giulo o lempo de Cassiano (séc. IV), a escolha foi feita... O pi m im o “monge”, o progenitor da raça monástica, seria Elias I Ims iiii beira da torrente de Carit, alimentado pelo corvo, I Inr. no cume do monte Horeb, percebendo a voz de Deus como o In i s i i miinsii que se segue ao tumulto do furacão, ventania e li ip.o luuliimente com ele, como seu espelho neotestamentário, o* monges escolheram João B atista -n ã o certamente, o neném 117
Uma Nova Paternidade
de cachos loiros das festas juninas, acompanhado pelo cordeirinho, mas aquele que vivia escondido no deserto, que abriu a boca só para pregar a única coisa necessária: arrependimento. Misteriosamente, os monges não falavam muito a respeito de ser discípulo de Jesus, nem viam seu próprio rosto espiritual refletido na fisionomia de seguidores de Jesus como Pedro, Tiago e João. Isto não quer dizer de maneira alguma que os monges primitivos não adoravam a Jesus, não percebiam nele o princípio e o fim de tudo. Pode até ser que evitavam esta comparação por motivos de respeito: sabemos que a cristologia dos monges era uma cristologia chamada “alta”, isto é, que enfatiza a divindade de Jesus. Mesmo assim, esta “paternidade mais próxima” de Elias e João Batista necessariamente implica em certas conseqüências. Porque Elias e João Batista, pelo menos como compreendidos pelos monges egípcios, eram ascetas. Seu ascetismo manifestava a santidade do Deus inefável; suas austeridades formavam os degraus da escada que levava à experiência do Deus inacessível. A Bíblia chama os dois de “terríveis” - título de admiração, decerto, e não de condenação. Sua fidelidade radical ao Deus transcendente os incendiava e fazia com que eles queimassem a quem quer que fosse que tocassem. N inguém nunca imaginou ter uma conversa com nenhum dos dois. Como tomar-se monge, viver como monge, vindo da sociedade de hoje, e especificamente da sociedade atual brasileira? Aqueles que vêm desta sociedade e aspiram ser monges precisam de outros pais que Elias e João Batista. Precisam realmente chamar Jesus de pai. Uma longa tradição patrística, 118
Apto a ganhar as almas
iniciando-se na própria Carta aos Hebreus, pensaem Jesus como o pai de seus seguidores, e esta tradição persiste e se manifesta até na regra monástica mais difundida, a Regra de São Bento. Consideremos brevemente a paternidade de Jesus para aplicála à formação monástica. Para mim, é de grande interesse que o clamor de João Batista, “Convertei-vos” - tenha sido assumido por Jesus no começo de seu ministério. Lemos no Evangelho de Mateus que, quando Jesus voltou da sua prova no deserto e ficou sabendo da prisão de João, iniciou a sua própria atividade de pregação, dizendo exatamente o que João dizia: “Convertei-vos, porque o Reino de Deus está próximo.” Parece que o próprio Jesus ia escolher João por seu pai. Só que esta palavra de conversão, ou pelo menos, esta maneira de abordar o tem a da conversão, terminou com este primeiro anúncio. Certamente, não porque Jesus decidiu que a transformação da vida não o interessava mais. Transformação da vida, novidade da vida, constituía o núcleo dn missão de Jesus. Contudo, em vez de exigi-la como João In/.in, Jesus aprendeu que ele estava em condições de comunicála ( 'omunicava-a por meio de curas, de ensinamento (particulaimenle as parábolas) e sobretudo de perdão: “Teus pecados r.úlo perdoados.” Teiá sido mais fácil para os contemporâneos de Jesus fvirhtvvm a vida renovada do que serem chamados a transfuniitir .ve? Acho que não: acho que a nova vida doía dentro daqueles que a aceitavam, sentiam muita saudade da antiga vida. Ai ho que finalmente Jesus não pedia menos do que João Batisla Mas ele criava, gerava naqueles que o seguiam a nova vida 119
Uma Nova Paternidade
que depois pediria em prol do seu Reino. Mais ainda, era da sua própria vida que ele implantava esta vida neles. Cada vez que Jesus curava, dele saía um a força, e ele sentia a diminuição; cada vez que perdoava, assumia o pecado em si mesmo e sentia o aumento. Quer dizer, Jesus vivia todo o seu ministério eucaristicamente, infundindo nova vida nos outros, ou melhor, fazendo como que a transfusão de sua vida para os outros. E assim, prostitutas, cobradores de impostos, leprosos e soldados chegaram a uma autodoação que João Batista nunca poderia ter provocado neles. Podemos afirmar, então, que Jesus antecipava durante o seu ministério a intuição fundamental de Paulo na Carta aos Romanos: a humanidade não se salva através das admoestações. Uma humanidade desfigurada pelo pecado, alienada do Deus que fala nas profundezas da consciência, ao ouvir mais um apelo para ser diferente do que é, ou, em termos da teologia paulina, de enfrentar a Lei, só se entristece e endurece. Somente o perdão gratuito, amor abundantemente derramado da própria fonte do amor - quer dizer, da Graça - tem a possibilidade de restaurar o homem. Garantia não tem nenhuma - é possível que o amor divino caia, às vezes, muitas vezes até, num solo pedregoso, para lá morrer e apodrecer. Mesmo assim, é a única chance. O s Jovens de Hoje Os jovens que vêm buscando a vida monástica hoje em dia são pessoas admiráveis. Além de: a) um grande idealismo que eles quase sempre trazem 120
Apto a ganhar as almas
para o mosteiro, b) chegam com uma generosidade transbordante, c) um desejo de experimentar a Deus d) e uma esperança de viver numa comunhão de amor fraterno. Mas também chegam carregando um jugo pesado de sofrimento e de potencialidades ainda adormecidas ou despertadas apenas para tomar-se frustradas novamente. Vêm com grande freqüência de situações familiares marcadas por todo tipo de abuso, negligência e fracasso. Vêm de lares pobres que não permitem o desenvolvimento normal de suas capacidades intelectuais, sociais, ou artísticas. Vêm de famílias onde não há livros ou instrumentos musicais. Vêm de ambientes onde experimentavam muito e sentiam muito, mas nunca aprendiam a lellctir sobre a própria experiência e ainda menos dialogar sola c ela. Vêm de pequenos mundos de criança onde as figuras de autoridade com as quais viviam - o professor, o patrão nem sempre lhes demonstravam a paciência e a bondade própi ms do seu cargo, que deveriam fazer parte do seu repertório como adultos. E por tudo isso os jovens chegam ao mosteiro iiiiulo, muito inseguros. (,)uc sentido faria, portanto, assumir o tom de um São loilo Halista com estes jovens? Há um trabalho enorme a ser li ilo. sem dúvida, tanto por eles quanto por aqueles que têm o pnvilégio dc atuar como mestre de noviços ou superior. Mas n ic iinhalbo começa muito quietamente, e por sua natureza piugndc muito devagar. 121
Uma Nova Paternidade
A Vida da Mente Examinemos primeiro um tem a relativamente simples: a formação intelectual do novato. Existe toda uma tradição a ser assimilada, aliás, uma tradição riquíssima: a Bíblia, os Padres da Igreja, os padres primitivos monásticos, os padres cistercienses de nossa ordem (século XII), a teologia sistemática, sacramental, moral, etc. Houve um momento em que eu achava que a dificuldade da assimilação baseava-se na grande sofisticação e abrangência desta tradição. Agora sei que isto é o de menos. Em certas condições - disto sou testemunha repetidas vezes - uma pessoa com pouca formação intelectual é totalmente capaz de entrar no mundo dos Padres com compreensão, delicadeza e sim, prazer (ser testemunha deste encontro é, a meu ver, uma das grandes alegrias da minha vida). É trágico, sim, que o brasileiro comum receba uma formação que pouco corresponde à sua inteligência inata. Mas é possível no mosteiro corrigir esta falha; afinal, temos livros e temos professores. Então, não é este o problema. O problema é que por falta de experiência ou por experiências negativas, o livro, a aula, a biblioteca, o professor incutem medo. O jovem não sabe que ele tem gosto de ler, ao contrário, tem provas de que não. Além disso, se ele lia antes, era sempre assunto de utilidade ou diversão. O que fazer com uma leitura poética ou filosófica, cujo valor reside na própria beleza ou simplesmente numa aproximação maior da verdade? Vemos assim que aqui se trata de algo bastante básico e precioso: a descoberta do intelecto. Quando o jovem entra no mundo bíblico vive um a experiência exuberante, sonha e de122
Apto a ganhar as almas
pori acorda como um personagem a mais na história da salvaVlln. lendo como companheiros Davi, Ester, Daniel, Pedro. Imaginem, portanto, o que pode significar acordar dentro da piópi iíi mcntc! E uma experiência mais cartesianado que aquela de I >cscarlcs. Seu “Cogito, ergo sum” representava uma tentai i v i i t l c - estabelecer inabalavelmente sua existência por meio de um consciência reflexiva. Aqui, porém, estas mesmas palavras ripim icm um estalo, ao mesmo tempo de espanto e alegria. IVirio. icllilo, leio, en ten d o - e então sou, sou outro e mais do que iiimiiis imaginava. Sei a que uma tal descoberta acontecerá somente pela lei(uiii sistemática dos Padres e dos teólogos? Duvido. Cabe ao Immndor “pôr mais ingredientes na sopa”, imitar a Jesus que \em pie encontrava um vinho novo para colocar nos odres novos Ncstc caso, os odres seriam as mentes dos jovens. E o vinho novo? Um livro de poesias, um romance histórico de Alencar, uma sonata literária de Érico Veríssimo, as cebolas e pimentas de Machado. Inseparável desta tarefa é acompanhar 0 |ovem cm sua leitura. Além de comunicar ao noviço o verdatlcii o entusiasmo pelas obras-primas da espiritualidade monás1icn, também reler com ele os livros que fizeram a glória de sua própria juventude, sentir novamente o que sentia quando vialiivii sentado no lombo do burro ao lado de Dom Quixote, combatendo contra os moinhos de vento. O livro é o companheiro paia a mente, certo; mas a mente jovem tem necessidade de um companheiro vivo para compartilhar com ele o seu alvoroço. E sc o mestre de noviços questiona-se sobre este procedimento dc dar espaço à leitura “profana”, que ele pense no escriba sábio do Evangelho que sabia tirar de seu tesouro coisas velhas e 123
Uma Nova Paternidade
novas. M inha experiência me ensina que uma preocupação excessiva neste assunto atrapalha mais do que protege. O jo vem, com o tempo, vai sentir-se atraído à beleza da literatura mística e patrística da Igreja, e seu contato com a literatura nacional e universal formará nele uma sensibilidade ao enredo, caracterização, imagem e tema que só pode enriquecer sua lectio da Bíblia e dos escritos dos Santos Padres e Madres. O Encontro com os Sentimentos Tenho falado, então, sobre a bem-aventurança de conhecer o mundo dos livros. Segundo Orígenes, fundador da corrente da teologia m ística cristã (século III), a sum a bemaventurança reside no conhecimento de si mesmo. Com isto ele quer afirmar que o “self ’ é o sacramento primordial de Deus que cada um de nós recebe. Simplesmente existindo, possuímos em nós mesmos uma reflexão perfeita da Divindade, a cuja imagem fomos feitos. Aquele que consegue ver fimdo em si, vê além de si, vê o Deus Trino cuja força e sabedoria formam a base do próprio ser. De um certo modo, cada homem e cada mulher têm o direito de aplicar a si mesmos as palavras de Jesus: “Quem me vê, vê o Pai.” Esta visão a qual o monge é chamado (junto com todos os outros seres humanos) não é automática. Necessita um longo processo, paralelo ao despertar do intelecto, o despertar da afetividade. E aí encontramos mais um desafio particularmente exigente para os nossos jovens. Os jovens que vêm ao mosteiro levando nas costas o peso de seu passado sofrido não têm muito interesse em viver o pri124
Apto a ganhar as almas
meiro passo desta subida/descida para a descoberta da sua ident idade radical de filho de Deus. Qual é este primeiro passo “ impulável”? A apropriação da própria história de dor, fracasso e insegurança, uma apropriação que se faz sentir à flor da pele. Sem lular em fuga, o qual seria um termo injusto, o jovem pobre, ou subdesenvolvido de um a ou outra maneira, ou negligenciado, olha com desejo para o mosteiro como um lugar de felicidade. Sc ele quissesse ficar mergulhado em seus problemas, poderia Icr permanecido no mundo. Ele busca a Deus, isto sim, mas nmda não busca a cruz de Cristo. Aquele que já carrega a cruz da sua vida não precisa da cruz de outrem. Em pouco tempo, porém, percebe-se que para a pessoa solrida todo lugar, mesmo o mosteiro, é um lugar de sofrimento De fato, para tal jovem, só há duas possibilidades: consciência a qual, por enquanto, será necessariamente dolorosa v distração, a tentativa de não conhecer a si mesmo à medida que este conhecimento implica dor. O maior desafio de todos, poi tanto, nos primeiros anos da vida monástica é deixar-se expciimcntar conscientemente a carga da dor que a pessoa ini onscicntcmente possa trazer. E “experimentar” no sentido mais loilc da palavra: receber de novo os socos, os traumas que a vala lhe distribuiu, sentir de novo o choque, a decepção, a culpa, o ódio que eles causaram, e reconhecer, uma vez por todas, que estes acontecimentos nunca serão apagados do livro da vida Por isso, eu costumo dizer a respeito da questão de “fuga puta o mosteiro”: pode ser que cada um de nós tenha fiigido puta o mosteiro; que seja assim, não importa. O importante é 125
Uma Nova Paternidade
não fugir dentro do mosteiro, não fugir desta responsabilidade fundamentalmente humana de sentir. E tempo de refletir novamente sobre o papel do mestre de noviços, do pai, como alguém que comunica vida, em memória de Jesus. Ele não pode simplesmente exigir do jovem que está vivendo este horror (realmente, esta etapa da vida monástica é um horror), que agüente, que faça pé firme, e quaisquer outros conselhos que constituam um afastamento afetivo do “assaltado”. Isto seria a fuga do mestre, e uma fuga imperdoável. O mestre de noviços tem de acompanhar, por meses... anos, a tribulaçâo do seu filho. Tem de sentir algo da mesma raiva, chorar as mesmas lágrimas, sofrer a mesma incompreensão diante das injustiças e sujeiras jogadas sobre o jovem , às vezes, por muitos anos. E não pode neste momento assumir a linguagem da razão para dizer: “Mas sabe, rapaz, todo mundo passa por tais pedaços” . O problema com os amigos de Jó é que todos tinham doutorado em filosofia. Falavam demais. Faltava alguém que só ficasse junto de Jó, não tentando nem compreender nem comentar, alguém que superasse o seu medo de se defrontar em Jó com a irracionalidade do sofrimento de Jó, alguém que soubesse calar-se. No Novo Testamento encontramos este silêncio absolutamente necessário em Jesus no túmulo de Lázaro, e em Maria, ao pé da cruz de Jesus. Como é que o mestre pode viver isto, talvez com cinco, seis, sete jo vens de uma vez? Ele mesmo deverá ser um homem das dores. Precisará muito da consciência de suas próprias dores como base de seu silêncio. Ao mesmo tempo, o jovem não pode ficar como vítima. 126
Apto a ganhar as almas
Não foi para isso que Deus o trouxe ao mosteiro, simplesmente para que chegasse a medir o mar de sua dor. O jovem tem vocuçâo de ressuscitado, tem de passar por todos os quartos da sua interioridade até finalmente deparar-se com o espelho na parede onde se contempla a si mesmo como imagem de Deus. O novo mandamento de Jesus, pelo menos o mandamento mais freqüentemente enunciado por ele, é “Levanta-te”. Este “levantar-se” realiza-se através de uma experiência muito paradoxal, mas de valor ilimitado. É uma experiência de compreensão, de tímida percepção espiritual, através da qual o jovem começa a conhecer-se como radicalmente fundado e seguro em Deus. Se pudéssemos imaginar o significado último da frase “são e salvo”, teríamos uma idéia desta graça. M uitas vezes esta iluminação realiza-se num momento de oração depois de um período de grande tensão interior; outras vezes, parece que o jovem ouve seu nome pronunciado carinhosamente (por quem? não sabe ao certo) - como se o seu nome fosse uma carícia. De qualquer modo que seja, representa o primeiro instante da verdadeira contemplação. Pela primeira vez, a pessoa humana reconhece - em si, unido a si, não diferente de si - Aquele de quem ela é o sacramento. Não é o mestre de noviços que comunica esta intuição, que não é sugestão externa, mas certeza brotando de dentro, aquela certeza que somente Deus é capaz de produzir. Mas o mcslre de noviços tem a tarefa de confirmar o que o jovem vê dc modo passageiro, num triz de densidade ontológica enorme. Sc 6 possível falar de uma certeza fraca, é isto que o jovem experimenta a respeito daquilo que viu ou ouviu no momento inesquecível de descobrir a própria identidade em Deus. O 127
Uma Nova Paternidade
mestre de noviços tem de testemunhar por suas palavras, seu sorriso, o respeito com o qual ele presta atenção às reflexões do jovem, que este jovem é uma nova criatura em Deus, e que tudo aquilo pelo qual passou não o destruiu, não podia destruílo, porque em Deus ele é imortal. Pode ser que o próprio mestre de noviços esteja passando por uma fase difícil. Neste caso, que ele liberte-se de si mesmo. Seu chamado agora é de ser testemunha da ressurreição. Segundo os evangelhos, de nada se duvida tanto quanto da realidade da ressurreição. Deste acontecimento inesperado e totalmente ímpar na vida do jovem, o mestre de noviços tem de ser o pregador infatigável. “Vi o Senhor!... em ti.” O Outro Consideramos dois aspectos do mundo interior do jovem monge - a apropriação de sua herança humana como intelectual e como poeta, isto é, como alguém que pensa e alguém que sente. Falamos, então, sobre o ser humano em sua “solidão”, em sua experiência de si mesmo. Mas sabemos que solidão representa um pólo da vida humana e que para completar-se necessita do pólo da comunhão. O poeta tcheco Rilke afirmou que cada um de nós tem o dever de tomar-se um universo inteiro para depois entregar-se a um outro como dom. As nossas Constituições trapistas comunicam esta mesma intuição quando dizem que nossa vivência monástica exige tanto uma grande capacidade para a solidão como para a vida comunitária. E o nosso abade geral atual gosta de chamar-nos de “cenobitas no deserto”. Moramos no deserto monástico, sim, na separação geográfica da cidade e na privacidade de nosso coração. 128
Apto a ganhar as almas
Mas vivemos juntos, e isto é essencial à nossa vocação monáslica e humana. O jovem brasileiro - e nisto ele é muito parecido com seus primos, os jovens do mundo inteiro, embora com uns toques particulares - encontra muito rapidamente dificuldades sérias neste caminho de comunhão. É quase certo que, provindo da cultura global, ele residisse num ambiente precocemente scxualizado, absorvendo os valores desta cultura. Aqueles que sc apresentam à porta do mosteiro como vocacionados raramente falam da experiência de um a longa e profunda amizade. Pulam, durante a entrevista, da família de origem para o primeiro namoro. Este pulo significa mais do que um lapso de memória. Ao contrário, mostra certamente um buraco importante em seu desenvolvimento. Ficou roubado, muitas vezes, da experiência de um compromisso afetivo, mas não fundamentalmente sexual, a aliança da amizade, onde realidades como idealismo, admiração e generosidade costumam despertai c florescer. Desde Homero na literatura grega e a primeira monarquia no Antigo Testamento a amizade é visualizada como um dos aspectos mais preciosos da aventura humana, onde tranqüilidade c paixão, sacrifício e realização, diferença e identidade brincam produtivamente entre si. Sei que nos lares brasileiros muitas destas qualidades acima mencionadas exprimemsc num contexto familiar, e também que o namoro/noivado/ casamento constitui um dos mais férteis campos imagináveis paia o amadurecimento do ser humano. Mesmo assim, muitas vc/.cs perde-se a etapa entre lar e casamento, uma etapa que é mais do que um corredor, um momento que deve representar uma graça particular estável, uma forma vitalícia da intimida129
Uma Nova Paternidade
de humana. Então, os nossos jovens entram no mosteiro. Quer dizer, para nós velhos, depois de muita transformação, é um mosteiro. Para eles, sobretudo quando entram sem esta experiência profunda de amizades (amizades particulares e grupos de amigos), a realidade é outra. Automaticamente, o mosteiro assume a tonalidade - a cara - de um time ou de uma sala de aula ou de uma vizinhança ou de um escritório/fábrica ou de um curso pré-vestibular, ou simplesmente da rua. Assim criamos todos nós o nosso mundo. Portanto, espontaneamente, os jovens recorrem a atitudes e práticas conhecidas. Por exemplo: 1 - D e sco n fia n ça : O jovem vive com medo de chamar atenção, acreditando que mais cedo ou mais tarde, atenção fatalmente vira zombaria. Se ele age muito bem, está bajulando, se ele fracassa, é um vaidoso, um idiota, por ter tentado aquilo que não tinha condições de realizar. Além de abafar sua criatividade - melhor ficar cabisbaixo e sumir no rebanho esta desconfiança generalizada facilmente leva a um sentimento de hostilidade, tanto de sentir hostilidade quanto de sentir-se hostilizado. Quando isto acontece (e ainda não vi uma exceção), surge a tentativa de: 2 - E vasão: Deixa-nos perplexos testemunhar com que rapidez os jovens podem apagar-se mutuamente do livro da vida: “Ele não presta”. Perdoam uma, duas, até três vezes, e depois (estou falando ironicamente) “criam juízo”. Descobrem que este sujeito é perigoso, agressivo, mal-educado, racista, etc. Nestas condições, pensam eles, o comportamento mais acertado é criar uma boa distância afetiva. “Você fique em seu 130
Apto n ganhar as almas
i nulo do mosteiro c eu llco no meu” . Só que isto não pode dar • • iln () mosteiro è pequeno demais, os encontros constantes dt mui', puni permitir uma boa guerra fria. Mais uma vez a saI•<<|iiiiii mhiuu) revela-se como penosamente inadequada no i oiitr.ilo monástico. Espiritualmente, atática de evasão repreu iiiu um contra-valor inaceitável numa sociedade de comuuliiio. como o mosteiro pretende ser. E depois, é um crime sem Im 10 Itusco com grande empenho colocar um espaço suficii ulr cntic mim mesmo e aquele que eu chamo (com ênfase .ipinliinliva) “ Meu irmão”, mas ele continua vivendo no mos11111o c nlé ocupa alguns andares na casa da minha cabeça. Pat lOucuil I )onde vem esta tendência para desconfiança-hostiliiludc evasão? A meu ver, em grande parte vem de: 3 • T rein am en to in s u fic ien te d a s e m o ç õ e s : Um IniAmcno espantoso, que se manifesta hoje em dia como norma. 6 a incapacidade de se lidar com as frustrações. Os nossos antepassados aceitavam com relativa calma que a vida é frusli aalc, que todo dia vai trazer sua pitada de contradição e que o •.ci laimano mostra a sua maturidade superando as frustrações, iiu. ni porando-as em sua experiência e assim tomando-se mais livre das circunstâncias e mais aberto a elas. Os herdeiros de nossos antepassados (quer dizer, nós) em vez de contemplarmos as frustrações cotidianas da vida como um elemento normal, sc não enriquecedor, as consideramos como um insulto insuportável. Um golpe! Um baque! Uma facada! Cito estas li As exclamações que ouço todo dia (entre outras) para indicar uma resposta às pequenas irritações que já está bem enraizada em nossa cultura. Aqui, no Brasil, vejo entre os jovens uma picocupante oscilação entre ira e tristeza, como reação a estas 131
Uma Nova Paternidade
provocações diárias e freqüentemente trata-se de reações desproporcionais. Parece-me que entre as duas a que mais predomina é a tristeza, e eu gosto de brincar com minha comunidade dizendo ser esta a frase que mais escuto: (em voz chorosa) “É difícil”. (Aliás, para consolá-los digo que se o brasileiro é mais suscetível ao vício da tristeza, o americano cai mais facilmente na armadilha da soberba. Por alguma razão, esta afirmação normalmente traz alívio.) Qual é a tarefa do pai espiritual, imitador de Jesus, neste nmho de vespas? Parece-me que tem de constituir um contrapeso a estas tendências, ou melhor, exorcizar estes demônios. Não há dúvida: tal desconfiança, hostilidade, evasão, impaciência, irritação, melancolia vão além de ser sintomas do estresse do mundo pósmoderno. Surgem de uma experiência deturpada do próximo e do ambiente interpessoal, uma experiência que estimula os agentes de superficialidade, esperteza e excessiva prudência e que impede o florescimento de um clima de tranqüilidade e segurança, onde gestos como o sorriso, o aperto de mão, o abraço da paz na missa, o pedido de perdão são mini-sacramentos, isentos de uma interpretação ambígua. São Máximo Confessor, monge e teólogo do século VII, ensinava que os homens são capazes de negligência; quando manifestam hostilidade e condenação, é um sinal seguro da atuação do Maligno. O pai espiritual responde a estas forças malignas por sua recusa de entrar em diálogo com elas. Na presença daqueles sentimentos que acabei de citar, e que certamente o convidam a “entrar na onda” - convite cuja força ele mesmo sente por 132
Apto a ganhar as almas
enusa da persistência das conseqüências do pecado - ele vai agir contra a mentira. Pensamos nas palavras de Jesus no Sermão da Montanha, de Sâo Francisco de Assis em sua célebre oração (“Senhor, fazei de mim um instrumento de vossa paz”), dc Tolstoi e de Gandhi, e veremos que a “violência” para insislir em ver a presença divina no outro, acreditar nele e persevei nr em fazer-lhe o bem é muito mais poderosa do que a nuvem dc poeira criada por nossos medos e agressividades. Tanto quando o mestre de noviços encontra-se como alvo da desconfiança/agressão quanto ele testemunha uma situação negativa entre outros irmãos, ele buscará rasgar o véu da mentira. Seu método não consistirá em desmascarar a projeção (“Você está vendo tal coisa deste jeito por causa do negativismo que você traz em si mesmo”), nem em moralizar, mas em tom ar vísivel dc novo o verdadeiro rosto espiritual dos envolvidos. Nisso, ele vai encontrar uma grande ajuda no uso abundante e benevolente do humor. A maior bênção do humor é precisamente apontar, de maneira aceitável, o exagero, a dureza, a amargura, a autopiedade - em resumo - o venenoso numa dclci minada atitude. O humor contemplativo identifica-se com 0 mnão irracional (“Veja como nós dois podemos agir como loucos, quando queremos”) e o chama de volta para a razão e a paz, () humor contemplativo admite que o irmão irritado tem 1nzão, pelo menos em parte, mas coloca a pergunta: O que você o epie nós - vamos ganhar, se você continuar resmungando; o que você - o que nós - poderíamos ganhar se você parasse de icsnmngar e começasse a cantar de novo com a gente? O hui i i oi contemplativo aproveita do direito de “cutucar” sem magom I)iz-sc que o diabo teme acima de tudo ser ridicularizado; 133
Uma Nova Paternidade
quando o pai espiritual consegue mostrar a insensatez no comportamento do irmão por uma cutucada que o atinge em cheio, o demônio foge e o irmão volta a ser ele mesmo. Assim como quando se trata da apropriação de uma história dolorosa por parte de um noviço o mestre tem de saber chorar e calar-se, quando o assunto é a purificação da comunidade das tendências belicosas e isoladoras, o mestre de noviços tem de rir e fazer o outro rir. Isto já é conversão, quando a dificuldade reside na vaidade e hiper-sensibilidade. Várias parábolas de Jesus pretendem levar as pessoas de um mundo fechado para o Reino de Deus, justamente por meio de uma gargalhada. O Com prom isso Alguns anos atrás, um professor de sociologia deu um curso para os professos trienais trapistas norteamericanos. Ao ouvir a pergunta, se haveria um fator que mais dificultava a formação monástica hoje em dia, respondeu imediatamente: “Sem dúvida, a impossibilidade do jovem comprometer-se.” Provavelmente, esta resposta não nos supreende, porque o fenômeno da instabilidade é mundial em suas dimensões, mas não deve deixar de nos assustar. Apesar da afirmação recente de um presidente de uma faculdade, “Ivy League”, Yale: “Vemos agora que uma vida bem sucedida não é uma linha reta, mas uma série fecunda de zigue-zagues”, não podemos perder a consciência de que o compromisso é a grande condição para a comunhão, para a maturidade, para o verdadeiro bem-estar, e finalmente, para a manutenção do contrato social, isto é, para a continuação da sociedade. Foi Kierkegaard que asseverou, no título de um de seus livros, “Pureza de coração significa dese134
Apto a ganhar as almas
liir uma coisa só”; foi Jung quem insistiu que as tarefas mais profundas da vida só podem ser cumpridas por aqueles que permanecem fielmente num único propósito. O grande bloqueio surge de uma ignorância e uma impotência. A ig n o r â n c ia consiste em não saber que a nossa identidade é necessariamente social. Ninguém entra na gruta de tesouros do seu próprio ser a não ser por uma interação estável com uma comunidade. Identidade depende da identificação. Aquele que borboleteia na sua vida acaba sendo apenas um punhado de pó colorido. A im p o tê n c ia consiste em não poder assumir o trabalho sacrificante de tomar-se peça viva e vivificante de um organismo meta-individual, de morrer a uma identidade independente e ressurgir como parte de um ou outro corpo místico (afinal, qualquer família, qualquer verdadeira comunidade é lambém um corpo místico). Lembrem-se da citação de Rilke "Primeiro temos de crescer a fim de ser um universo para depois dar-se a um outro”. Aqui estamos tratando deste segundo momento, do dom mútuo dos universos. Igualmente São Bento ensina que o monge que pretende unir-se a Deus e consigo mesmo chegará ao seu objetivo somente mergulhando-se, ativa c afetivamente, na comunidade, com suas tradições e mais ainda, com seus membros. Isto traz à tona um desafio particular do compromisso monástico. O que o monge deseja acima de tudo é unir-se a I >nis. Neste caso, não ignora de modo algum que a sua própria auto-real izução depende de um a sintonia progressiva com Deus, 135
Uma Nova Paternidade
uma “união de espírito” com Deus, para empregar o termo clássico. Por outro lado, sua dificuldade em abrir-se à irrupção da vida divina é enorme, é literalmente espantosa. Uma ativa receptividade às “mexidas” de um Deus invísivel, transcendente e nem sempre delicado constitui a grande aventura e o grande sofrimento da vocação contemplativa. De fato, esta irrupção de Deus na vida da pessoa forma o drama inteiro da nossa vivência. A luta para o conhecimento de si mesmo, para o desenvolvimento do intelecto, superação das paixões nas interações comunitárias - todas estas realidades são reflexos da grande iniciativa de Deus de formar uma só coisa com um pobre mortal. É a sombra ocasionada por sua aproximação que põe em movimento todos estes processos. A grande tentação do jovem monge é dissociar os elementos desta atividade única: a união de Deus com sua criatura. O jovem quase morre de medo e de dor, sentindo os dedos de Deus nele, dedos que segundo João da Cruz são perfeitamente capazes de queimar e não somente acariciar. O jovem sente que uma fresta - qual! - um abismo está se abrindo nele para deixar o Todo-poderoso (bom, ruim?) entrar e não sabe se vai agüentar, tem quase certeza que não. Portanto, ele quer negar a necessidade de viver estes dois processos simultaneamente. Para unir-se a Deus, pensa ele, não deve ser indispensável passar por tudo isto com os irmãos. Ele vem a perceber que a comunidade é impiedosa, que ela insiste em mantê-lo no centro da arena, e também que em vez de suavizar o sofrimento vertical místico acrescenta o sofrimento horizontal, através de transtornos, friezas, grosserias. Quando nos damos conta da fragilidade dos jovens, vemos a grandeza do heroísmo exigido por 136
Apto a ganhar as almas
nossa vida simples e repetitiva. E percebemos que a perseveniiiça 11a fé, esperança e caridade é um milagre. O pai espiritual poderá ajudar aqui? Certamente por meio da oração, porque o mistério fica essencialmente entre Deus e o |ovcm. Rezando igualmente por si mesmo, a fim de não forçai a liberdade do jovem (e assim prejudicá-lo permanentemente), mas ao mesmo tempo, para não deixar esta liberdade tio jovem sem as pistas necessárias. Além disso, há duas formas dc ajuda que o pai pode prestar. Cada vez que perceber a inflo do Senhor tocar num de seus irmãos para prová-lo, deverá vi ver seu próprio compromisso com um a pureza e fidelidade inlcnsificadas. Se se trata de identificação, ele, em primeiro lugar, tem de identificar-se com aquele que está sendo provado, o purificado, com oração assídua e com a oferta de si m esmo l icar com ele, na medida do possível, entrar livremente cm comunhão com este irmão em tudo o que ele sofre, como piccc silenciosa até que o irmão chegue àquela comunhão proliimlii com Deus e com a comunidade que o impelia a entrar no mosteiro. A segunda forma de ajuda é abrir seu coração, revelar seus segredos. Tem muita coisa hiperpessoal na vida monástica toda a história de intimidade e dor entre Deus e a pessoai|iic nunca deve ser falada. (São Bernardo gostava de repetir: "( ) meu segredo é meu”). A grande exceção se encontra nestes tempos de provação do discípulo. Nestes momentos, o mestre de noviços pode falar do mistério que ninguém conhece, este mistério que é capaz de c.xci ccr um poder divino por ser o mais precioso, quase o único 137
Uma Nova Paternidade
bem precioso que ele possui. É o vaso de bálsamo que ele quebra e derrama sobre seu discípulo para ungi-lo em sua hora. Assim como Jesus fez do fim do seu ministério um revelar-se absoluto: “Agora eu posso chamar-vos de amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai eu vos dei a conhecer”(Jo 15, 15). Conclusão “Primeiro foi feito não o que é espiritual, mas o que é psíquico; o que é espiritual vem depois.” Assim fala São Paulo na sua primeira Carta aos Coríntios (15,46). Nos últimos anos, entre os formadores, fala-se muito sobre a necessidade de uma forte base humana como pré-requisito para uma vocação religiosa. Onde falta a maturidade afetiva, diz-se, falta a esperança para o desenvolvimento saudável do vocacionado. Estou totalmente convicto da importância de tais elementos hum anos no processo de crescimento e transformação dos jovens. Mas, quando estas condições prévias não existem, e esta privação não se refere a um ou dois casos mas a quase todos, se não a todos, então como proceder? Podemos encerrar tudo, ou rever o projeto e dizer com São Paulo: “Primeiro o psíquico e depois o espiritual”. Porém, não o psíquico como missão cumprida antes da entrada no mosteiro; ao contrário, os dois realizados simultaneamente no mosteiro. Será que este projeto é realista? M inha posição é que este duplo processo é possível, mas somente quando o monge formador (o superior, o mestre de noviços) identifica-se mais com o modelo de formação de Jesus do que com o de João Batista. Como sempre, o mistério 138
Apto a ganhar as almas
Encarnação: a descida alegre e amorosa ao nível do uiiiin pjiin cslar com ele lá, e a partir daí, pela força tranqüila •Io m i l o d o u ç n o , fazer o outro subir. Num encontro de um pequt nu gi u p o dos superiores reunidos para estabelecer a agenda pniii n o s s o Capítulo Geral, uma abadessa me perguntou: “E • MiiiuV ( 'omo vai a batalha?” - “Madre”, respondi, “às vezes, 11muiilt) olho para os meus monges, não os acho onde esperava niiniilni los, mas num ponto mais baixo, mais necessitado.” "I o q u e faz?” - “Eu vou l á onde eles estão, e começo lá de n o v o Agora, eu sei que isto vai acontecer muitas vezes. Mas ni\o importa. O que importa é ir aonde eles estão e começar de n o v o 1 Jm dia, vamos todos chegar juntos no fundo do poço, e d e p o i s vamos subindo.” - “Pois é, disse ela. Se eu não pensass e n s s i m , não haveria monjas.” t Iiiivt é n
Q uando São Bernardo busca a imagem certa para a Encarnação e sua necessidade, ele a descobre na história do piolcla Eliseu e do menino. Eliseu tinha feito a bobagem de piomclcr um filho a um casal estéril. A mulher não quis, não ncicditou muito, talvez pressentisse dificuldades futuras. O piolcla insistiu. No ano seguinte nasceu um menino e por doze unos tudo ia bem. Um dia, o menino trabalhando com seu pai mi lavoura queixou-se de dor de cabeça. O pai o levou para a casa mas o menino morreu ainda nos seus braços. Desesperada, a mãe mandou chamar o profeta que, em vez de comparecer imediatamente, enviou seu servo junto com seu cajado prolélico para tocar no menino. Isto não produziu efeito algum. Agora, enfurecida, a mãe quase voa no caminho para a casa do pioléta, com o pensamento: “Este menino foi idéia sua.” Eliseu |rt se dirigia para o lar do casal. Chegando lá, ele sobe para o 139
Uma Nova Paternidade
quarto onde o menino jazia e fecha a porta. A sós com a criança morta, deita-se sobre o cadáver, suas mãos sobre as mãos dele, seus pés sobre os pés dele, seus olhos sobre os olhos dele, sua boca sobre a boca, como o livro dos Reis conta detalhadamente. “Então”, como diz a Bíblia com o toque mais simples imaginável, “o menino espirrou, e abriu seus olhos”. E o profeta o devolveu à sua mãe. Assim agiu Jesus com a humanidade necessitada, diz São Bernardo, “encolhendo-se e adaptando-se à nossa pequenez” . Assim precisa agir o mestre de noviços com os jovens que Deus manda para sua comunidade. Se não, por que chamálo de “pai espiritual”?
140