CURSOS – Teologia; Educação Cristã; Missões. PROFESSOR – Carlos A. L. Carvalho ANO LETIVO – 2012 – 2º Semestre
ROTEIRO
Introdução 1. Conceituando a. Antropologia b. Cultura c. Homem
2. Influências Teóricas na Antropologia Antropologia Missionária 3. Antropologia Aplicada Aplicada a. Antropologia e Intervenção (Mudança) Antropologia Aplicada e suas Perspectivas POSTURAS Contra a Aplicação da Antropologia Antropologia A Antropologia Aplicada Aplicada como Campo Campo Específico Específico A Antropologia Aplicada Aplicada como Aplicação Aplicação do Conhecimento Conhecimento Antropológico Antropológico
POLÍTICAS A Antropologia Aplicada Aplicada como Posição Posição Política A Formação em Antropologia Aplicada Aplicada
CONCLUSÕES
b. Evangelização (catequese) ou Testemunho cristão? i. Padrões de Abordagem
4. Antropologia e Comunicação Comunicação Missionária a. Camadas Culturais b. Pressupostos Revelacionais i. Mitologia ii. Ritualística iii. Outros Pressupostos
c. Representação Mental d. Língua & Linguagem i. Falando ao “coração” ii. Status Epistêmico
5. Índole Relacional a. Sagrado X Profano – Dualistas X Unitaristas b. Padrão O.E.C. X Padrão S.A.C.
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6. Conclusão Introdução ―Historicamente, a ausência de uma comunicação viável, inteligível e aplicável do evangelho em outra cultura ou segmento social tem gerado duas consequências desastrosas no movimento missionário mundial: o sincretismo e o nominalismo religioso. Observemos alguns dos perigos essenciais que enfrentaremos enfrentar emos ao tratarmos do assunto e prática da comunicação intercultural do evangelho.
O primeiro perigo, que é impositivo, tem sua origem na natural tendência humana de aplicar a outros povos sua forma adquirida de pensar e interpretar, prática esta realizada em grande escala pelos movimentos imperialistas do passado e do presente, bem como por forças missionárias que entenderam o significado do evangelho apenas dentro de sua própria cosmovisão, cultura e língua. O segundo perigo , que é pragmático, pode ser visto quando assumimos uma abordagem puramente prática na contextualização. Como a contextualização é um assunto frequentemente associado à metodologia e processo de campo, somos levados a entendê-la e avaliá-la baseados mais nos resultados do que em seus fundamentos teológicos. Consequentemente, o que é bíblico e teologicamente evidente se torna menos importante do que aquilo que é funcional e pragmaticamente efetivo. Um terceiro perigo, que é sociológico, é aceitar a contextualização como sendo nada mais do que uma cadeia de soluções para as necessidades humanas, em uma abordagem puramente humanista. Esta deve ser nossa crescente preocupação por vivermos em um contexto pós-cristão, pós-cris tão, pós-moderno e hedônico. Isto ocorre quando missionários tomam decisões baseadas puramente na avaliação e interpretação sociológica das necessidades humanas e não nas instruções das Escrituras.‖i Como ciência, a Antropologia é filha do século XIX. Porém, antes dessa fase, registram-se várias iniciativas de crônicas ―etnográficas‖ feitas por viajantes, guerreiros, religiosos, exploradores, desde a antiguidade clássica. Na Grécia antiga, as crônicas de Heródoto (século V a.C.) – 485-420) registram suas observações sobre os costumes, comportamentos, hábitos e usos, produção material e representação imaterial dos povos visitados pelo pensador grego. Mas, a produção dos viajantes do século XVI, com as descobertas de novos povos e ―mundos‖, trouxe a temática da alteridade e diversidade humanas para o palco central das narrativas, nos primórdios e início da reflexão antropológica. As cartas, crônicas e relatos comerciais dos viajantes pintam painéis da diversidade humana em vários pontos do mundo. Missionários, militares e, acima de tudo, os administradores descrevem os povos e suas produções, com variados graus de precisão. Registram-se Registram-se as qualidades da terra, sua fauna e flora; a topografia (descrição minuciosa de uma localidade) das costas e do interior; o sistema de parentesco e as formas de organização política, econômica, cultural e religiosa dos ―povos do novo mundo‖. A carta de pero Vaz de Caminha (1450-1500) – escritor português que exerceu a função de escrivão da armada do navegador Pedro Alvarez Cabral – que narra a chegada dos portugueses ao Brasil, é um modelo típico desses rudimentos do discurso etnográfico. 3
Datada de 1500, do Porto Seguro da Ilha de Vera Cruz, sexta- feira, ―primeiro dia de maio‖, a carta descreve o impacto que a nova paisagem humana causou aos navegadores portugueses, quando eles fizeram o primeiro contato com os habitantes locais: A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, como no comer ou no beber. (CAMINHA, 1500)
Pero Vaz de Caminha descreve a topografia da costa brasileira, a fauna e as riquezas da natureza, os modos e costumes dos habitantes locais, suas formas de organização social, cultural e religiosa e suas relações com os navegadores. A riqueza de detalhes, a precisão das descrições, o esquadrinhamento da localidade conferem ao relato status etnográfico que permitiu, mais tarde, a ocupação de amplas faixas de terra no novo território.
OBJETIVOS Nosso objetivo neste estudo é apresentar a Antropologia Missionária não como algo produzido por alguma segmento religioso ou mesmo por uma método antropológico Missional, mas como uma ciência, uma Antropologia Aplicada, que se nos apresenta com idéias e ferramentas de valor no processo de compreensão do outro em ambientes de interculturalidade e de ações missionárias.
1. Conceituando Precisamos conceituar, ainda que de forma resumida, a Antropologia, a Cultura e o Homem de forma a estabelecermos alguns princípios fundamentais da Antropologia como ciência social. Desejamos que, estabelecidos estes princípios, possamos discorrer pelos assuntos deste curso com maior compreensão e aproveitamento. a. Conceituando Antropologia
A Antropologia, ou ciência antropológica, foi formada a partir de diversas origens, estudos e fundamentos que levaram aos aspectos conclusivos de hoje. Laraia no fala sobre a diversidade de pensadores que proveram os elementos necessários à ciência antropológica como Confúcio ao afirmar que ―A natureza dos homens é a mesma, são seus hábitos que os mantém separados‖ ii. Franz Boas descreve as narrativas de Heródoto (484-424 a.C) aos gregos, a respeito do que havia visto em diferentes terras citando, em uma de suas observações, que os Lícios possuíam ―um costume único pelo qual diferem de todas as outras nações. Tomam o nome d a mãe e não do pai.‖ iii que veio a formar a categoria hoje conhecida como estrutura de parentesco matrilinear. José de Anchieta (1534-1597) observou a estrutura de parentesco patrilinear entre os Tupinambás escrevendo que ―porque têm para si que o parentes co verdadeiro vem pela parte dos pais, que são agentes; e que as mães não são mais que uns sacos, em respeito aos dos pais, em que se criam as crianças, e por esta causa os filhos dos pais, posto que sejam havidos de escravas e contrárias cativas, são sempre livres e tão estimados como os outros‖. iv Geertz descreve sobre diversos outros pesquisadores que contribuíram com esboços daquilo que formaria o atual 4
pensamento antropológico como Khaldun no século XIV que elaborou a tese de que os habitantes de terras quentes são mais passionais que os de climas frios v. Ou ainda Locke que pesquisou o conceito das ideias a partir das distinções geográficas vi. No século XVIII Rousseau, Schiller e Herder tentaram construir um esboço da história da humanidade a partir dos relatos de diversas viagens, de Marco Pólo a Cook. Portanto ‗Antropologia‘ poderia, introdutoriamente, ser conceituada como ―o resultado da aglutinação histórica de impressões sobre a identidade do homem disperso em seus diferentes ajuntamentos ‖vii. A ideologia antropológica de Tylor, entretanto, sofria forte impacto acadêmico do evolucionismo de Darwin (denominado na época de método comparativo) e tem como seu principal opositor a claras ideias de Franz Boas (1858-1949) viii. Boas atribui à antropologia duas áreas de estudo: A reconstrução da história de povos ou regiões bem como a comparação da vida social de diferentes povos, cujo desenvolvimento segue as mesmas leis. Desenvolveu, assim, a Escola Cultural Americana defendendo que cada cultura segue seu próprio caminho em detrimento dos eventos históricos que enfrentou. Revolucionando a Antropologia da época, Boas criou escola ao mesmo tempo em que chamou-nos a atenção para a dualidade. A determinação do ambiente na formação direta cultural do indivíduo permanece inquestionável. Tomemos, como exemplo, um bebê recém-nascido com três meses de idade, tendo nascido em uma família Tukano do Alto Rio Negro. Por algum motivo esta criança é levada para ser criada por uma família Italiana de Barcelona. Aos 15 anos de idade este adolescente, senão pelo aspecto físico, será um puro Italiano linguística e culturalmente. Enfrentaria todas as limitações que um outro Italiano para se aculturar no universo Tukano, aprender sua língua, entender sua cosmovisão. A determinação do ambiente de fato é relevante e prioritária na formação direta do indivíduo em termos de identidade étnica e cultural. Apesar de o determinismo geográfico ter seu fundamento bem embasado, há elementos que constroem a cultura em um determinado grupo que independe de sua regionalidade. A comprovação mais conclusiva, observada por Boas, foi o desenvolvimento dos Esquimós (Inuit) em uma mesma região dividida politicamente entre o Canadá e os Estados Unidos da América. As ‗escolhas‘ culturais decididas pelo agrupamento foram extremamente distintas gerando grupos também distintos apesar de compartilharem a mesma história, região e ancestralidade. Portanto a ‗cultura‘ é um elemento muito mais dinâmico que poderia se esperar, e desta forma mais complexo de ser analisado de forma linear. A Antropologia, inicialmente, era tratada apenas como uma área de estudo dentro da História e da Filosofia. Entretanto, com o descobrimento das complexidades culturais a humanidade viu-se diante da gritante necessidade de uma área de estudo específica e subdividida ao ponto de cobrir algumas fontes de perguntas soci ais. Surgiu o ‗estudo do homem‘ ix. Um dos fatos que despertou atenções ao redor do mundo no século XVI foi a inconcebível possibilidade de fatos análogos possam estar desassoc iados em sua origem. Com as viagens e ‗descobertas‘ de novos mundos e povos os relatos rapidamente chegaram à Europa conduzindo uma série de questionamentos do que antes era tido como certo. Percebeu-se, por exemplo, que o garfo foi usado primeiramente em Fiji e tempos depois inventado na Europa sem que houvesse entre estes lugares qualquer transmissão de conhecimento. Os tesouros artísticos que chegavam do ‗novo mundo‘ ocidental possuíam tremenda semelhança com os relatados por Marco Pólo no mundo oriental. O golpe final foi dado através dos relatos de grupos isolados por gerações na Polinésia os quais, desenvolveram artifícios de bronze e arpões de pesca quase idênticos aos utilizados na Roma de dois milênios atrás sem que houvesse possibilidade de transmissão histórica de conhecimento.
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Tornou-se necessária uma área de estudo específico do homem, suas interações sociais, herança histórica e identidade comunitária. Surgia a Antropologia que mais tarde viria a se desmembrar em Antropologia Aplicada, Antropologia Cultural, Etnologia, Fenomenologia e diversas outras estruturas de pesquisa e conhecimento do desenvolvimento humano em seu contexto social. b. Conceituando Cultura
Vivíamos, no século XVIII, a era do determinismo geográfico onde toda diferença cultural e linguística era determinada pelas diferenças regionais. A atenção na incipiente etnologia da época passou a se concentrar nos ambientes onde ―clima, condições de subsistência, alimento, acesso à água potável, qualidade do ar e distanciamento de outros ajuntamentos humanos determinam em larga escala a identidade de uma pessoa e seu grupo ‖ x. Era uma visão parcial da identidade humana que viria a receber novos questionamentos. Em face desta crescente influência cultural analítica, no fim do século XVIII e início do XIX era ampla a utilização do termo ―kultur‖ ao se referir ao bojo de valores espirituais em um povo ou nação. Paralelamente ―civilization‖ era um termo francês que transmitia a idéia do desenvolvimento estrutural de uma nação. Edward Tylor (1832-1917) sintetizou as duas expressões na nomenclatura inglesa ―culture‖ a partir da qual várias escolas foram fundadas e pensamentos de distinguiram no estudo e pesquisa das distinções e semelhanças do homem em seus diversos segmentos de subsistência. Tylor inicialmente conceituou ‗cultura‘ como ―todo comportamento aprendido, assimilado, avaliado e sujeito a progressos; tudo aquilo que independe de uma transmissão genética‖ xi. Jacques Turgotxii e Jean-Jacques Rousseauxiii e John Locke, nesta trilha, defenderam a transmissão do conhecimento como fator responsável pela ‗cultura‘ e desembocaram na ideia da educação como agente responsável pela formação do homem em sua totalidade afirmando até mesmo que os grandes macacos, através de uma educação sistemática e processual, poderiam se desenvolver em humanos. A partir de 1920 antropólogos como Boas, Wissler, Kroeber passaram a desenvolver um estudo antropológico a partir da análise das ideias e não dos ambientes. Vieram a questionar o determinismo geográfico a partir da observação de que grupos que historicamente habitavam o mesmo território se desenvolviam culturalmente de forma distinta. Silver-Cope traça uma linha analítica dos povos do Alto Rio Negro onde as diferenças culturais mais gritantes eram encontradas entre as etnias com grave aproximação geográfica como os Pira-Tapuya, Tariano e Maku os quais, compartilhando o mesmo ambiente se diferiam em categorias básicas como pescadores, plantadores e coletores, sucessivamente. Konkomba e Bassari, no nordeste de Gana, África, possuem 1.200 anos de história de convivência e partilha ambiental ao mesmo tempo em que observamos os principais traços culturais de parentesco divergirem rigorosamente sendo os primeiros endogâmicos enquanto o segundo grupo pratica a exogamia como valor chave para sua interação sociocultural. A partir da observação mais exata foi quase que puramente refutada a ideia da existência do homem e seu agrupamento como uma entidade puramente receptiva e susceptível ao ambiente. Passou-se a mergulhar nas ideias, possíveis geradoras de valores e costumes. O conceito da cultura foi criticado pesadamente pelos pós-modernistas, que discutiram que o conceito pode nos fazer pensar que as sociedades são unidades estáticas, com uma integração interna que pudesse ser examinada. xiv De forma geral, portanto, poderíamos citar Hibbert e conceituar cultura como ―os sistemas mais ou menos integrados de ideias, sentimentos, valores e seus padrões associados de 6
comportamento e produtos, compartilhados por um grupo de pessoas que organiza e regulamenta o que pensa, sente e faz‖. c. Conceituando o Homem
Pensando sobre o agente humano e suas múltiplas interações, Kroeber ajuda-nos a distinguir o orgânico do cultural. Segundo ele o homem está inserido na mecânica da natureza de forma igual pois, organicamente, possui necessidades igualitárias a serem satisfeitas tal como o sono, alimentação, proteção, sexualidade etc. Porém, a forma de suprir estas necessidades difere, certamente, de agrupamento para agrupamento, e isto seria a parcela cultural do homem. Desta forma pode-se diferir o homem dos demais agentes da natureza, em termos culturais por ―sua capacidade de transmitir sua história à geração vindoura, avaliá-la de acordo com seus atuais princípios e desejos, e recriá-la à luz de suas expectativas‖ . xv Franz Boas, estudando as diferenças culturais entre os Esquimós (Inuit) no Canadá (1883) percebeu que as ‗ideias‘ de nobreza, miséria, dignidade, pecado, relacionamento, ―residem na xvi construção do coração, eu que eu encontro, ou não, tanto aqui quanto entre nós‖ . Portanto, passou a conceituar o homem como ―um ag ente transmissor de ideias, fonte inerente de conceitos herdados pela humanidade que se distingue em suas aplicações na vida e grupo‖.
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Celso Castro apropriadamente escreveu: ―Essa história de raça,
Raças más, raças boas, - Diz o Boas – É coisa que passou Com o franciú Gobineau Pois o mal do mestiço Não está nisso. Está em causas sociais, De higiene e outras que tais: Assim pensa, assim fala Casa Grande & Senzala‖.
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Desta forma a fonte da diversidade cultural passou a ser o homem e seu pensamento, não o ambiente e imposições geográficas. Entretanto falta aqui o estudo e percepção dos elementos geradores de idéias no indivíduo. O que veio mais tarde a ser apreciado na fenomenologia religiosa. Digno de nota seria a discordância entre Tylor e Kroeber em razão da posição do homem entre os outros seres vivos. Enquanto Tylor distinguia o homem a partir da cultura (o único possuidor de cultura e transmissão cultural) Kroeber distinguia o homem dos demais seres vivos apenas pelo poder de comunicação oral mais precisa e capacidade de gerar instrumentos que lhe pudessem ser úteis ao desenvolvimento. Apesar da tentativa de Kroeber em colocar o homem dentro da ordem da natureza não o distinguindo dos demais seres vivos não nos fornece munição para entendermos a sua incrível diversidade. Recorremos, portanto, às palavras de Laraia quando diz que ―A grande qualidade da espécie humana foi a de romper com suas próprias limitações: um animal frágil, provido de insignificante força física, dominou toda a natureza e se transformou no mais temível dos predadores. Sem asas, dominou os ares; sem guelras ou membranas próprias, conquistou os mares. Tudo isto porque difere dos outros animais por ser o único que possui cultura‖.
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Para a sociologia o homem sozinho não é homem, pois é um ser estritamente social. Para psicologia o homem é, antes de tudo, um ser autoconsciente. Para a filosofia, além de muitos 7
conceitos, o homem é um ser racional e moral, além de olhar o humano pelo prisma de sua essência, como escreveu Hegel, ―Na simplicidade desse ser o homem é para os outros homens uma essência universal essente, e deixa de ser algo apenas visado ‖; xx para a teologia, o fato de ser espiritual o distingue de toda a criação. Segundo Geertz,xxi as antigas abordagens definidoras da natureza humana, tanto feitas pelo Iluminismo quanto pela antropologia clássica, são basicamente tipológicas, e tornavam secundárias as diferenças entre indivíduos e grupos. Agora, através de uma visão cultural vemos que se tornar humano é, segundo Geertz, ―tornar-se individual, e nós nos tornamos individuais sob a direção dos padrões culturais... (que) não são gerais, mas específicos‖. Esta característica específica, entre o povo Bassari, por exemplo, pode ser vista no casamento, que não é um casamento qualquer, mas o casamento Bassari, e assim por diante. Geertz diz que é na maneira de ser diferente que poderemos encontrar o que é ser um homem ou o que ele pode ser. Portanto poderíamos conceituar homem, para nosso estudo antropológico, como o ser em cultura, possuidor e criador da cultura, interessando-se pelo modo de ser de cada comunidade xxii. Em sua consciência, em sua moralidade e racionalidade, assim como em sua espiritualidade o homem pode aventurar-se num caminhar construtivo em sua própria essência humana através de sua vocação cultural.
2. Influências Teóricas na Antropologia Missionária
Malinowski
mile Durkheim
Radcliffe Brown
Lévi-Strauss
Clifford Geertz
A maior influencia teórica na construção da Antropologia Missionária talvez tenha vindo de Émile Durkheim, com a publicação do livro As regras do método sociológico, em 1985, que se propunha a investigar os fenômenos sociais, logo seguido por Esboço de uma teoria geral da magia, de Marcell Mauss e Henri Hubbert, em 1903. Ambos os textos parecem propor algumas ferramentas para a interpretação dos fenômenos sociais já observados e ricamente registrados pelas etnografias realizadas por missionários, sobretudo na Melanésia, e ganharam destaque no encontro de Edimburgo, em 1910. Mas é na obra As formas elementares da vida religiosa, de Durkheim, publicada em 1912, que se encontra os combustíveis necessários para as primeiras estruturações, ainda que incipientes, de uma antropologia missionária de análise cultural. xxiii Por contar com rico material etnográfico e com o desejo de categorizá-los para melhor compreensão, as sociedades missionárias do início do século XX passaram a buscar no funcionalismo, que seguia os passos de Durkheim, as ferramentas de interpretação. A publicação de Os Argonautas do Pacífico Ocidental, de Malinowski, seguido de Antropologia Prática, em 1929, gerou grande identificação da narrativa etnográfica com as sociedades missionária s e foi possivelmente um maior impulso no despertamento missionário para o estudo das sociedades humanas com base nos dados coletados por métodos mais científicos. Na década de 1960, os escritos de Radcliffe-Brown e Evans-Pritchard, ao lado de Kurkheim e Malinowski, eram os mais citados nos centros de treinamento missionário na Europa e nos Estados 8
Unidos da América, especialmente Estrutura e função na sociedade primitiva, de Radcliffe-Brown, em 1952. Curiosamente, as obras de Lévi-Strauss demoraram a despertar a atenção da Antropologia Missionária, que em meados do século XX seguia uma forte marcha funcionalista. Lévi-Strauss e o estruturalismo passaram a ser apreciados somente a partir das iniciativas e do estudo da Linguística para a tradução da Bíblia. Sua obra As estruturas elementares do parentesco, de 1949, chegou às bibliotecas dos centros missionários da Europa e dos Estados Unidos da América apenas vinte anos depois, acompanhada do interesse pela Semiótica. À medida que era estudada e aplicada aos ambientes etnográficos em que trabalhavam os missionários, encantou vários segmentos, que passaram a ver em sus proposta uma porta explicativa para diversas questões até antes não abordadas, com base na compreensão das regras estruturantes culturais. Após Durkheim e Malinowski, a maior influência teórica sobre a Antropologia Missionária, já na segunda metade do século XX, viria de Geertz, talvez por aplicar seu método interpretativo em Java (para compreensão da religião local), onde na época havia um grande contingente missionário lidando com uma questão similar. A antropologia Interpretativista propõe-se a uma análise da sociedade como texto a ser lido, sendo este repleto de significados. A Interpretação das Culturas, de 1973, é sua obra de maior influência na Antropologia Missionária. É hoje compreensível o pouco interesse do meio missionário pelo culturalismo de Franz Boas no início, por uma associação teórica a um debate envolvendo o relativismo cultural, que se opunha a conceitos universalistas. Num segundo olhar, sua leitura culturalista e relativista contribuiu para o estudo da visão de mundo, que se tornou importante a partir da década de 1960 nos centros missionários dos Estados Unidos da América, encabeçada especialmente pelo livro de Eugene Nida Customs, Culture and Christianity (Costumes, Cultura e cristianismo), de 1963, que se tornou conhecido no Brasil com o livro Costumes e Culturas: uma introdução à antropologia missionária, baseado na obra de Nida e escrito por Bárbara Burns, Décio Azevedo e Paulo Carminiati.
3. Antropologia Aplicada xxiv
O estudo e uso da antropologia nas ações missionárias é relativamente novo e possivelmente recebeu seu primeiro forte impulso a partir da publicação do artigo de Malinowski intitulado Practical Anthropology (Antropologia Prática) em 1929, ironicamente ele mesmo um opositor à atuação missionária, com algumas exceções. Um dos pioneiros no incentivo do uso da antropologia nas ações missionárias foi Edwin Smith (1876-1957), filho de missionários e nascido na África do Sul, tendo servido também como missionário entre 1902 e 1915 entre o povo BailaBatonga na Zâmbia. Apesar de se considerar apenas um antropólogo amador, sua constribuição nesta área junto aos movimentos missionários foi marcante, bem como o reconhecimento que recebeu da comunidade antropológica internacional da época, sendo membro da Royal Anthropological Institute of Great Britain de 1909 até sua morte e tendo atuado por alguns anos como presidente da mesma. Diversas conferências evangélicas com a intenção de valorizar o uso da antropologia no meio missionário ganharam forma desde meados do século 19. As mais conhecidas foram as de Nova York em 1854, a de Liverpol em 1860 e a de Londres em 1888, esta com 1.600 pessoas representando 53 sociedades missionárias. Porém, neste período o marco de despertamento para o estudo da antropologia no meio missionário ocorreu em Edimburgo em 1910: ―Edimburgo é im portante porque mostra que missionários lutavam com todas as críticas que antropólogos faziam‖ (WHITEMAN, 2004, p. 40). O resultado desta conferência foi um amplo e crescente envolvimento com o estudo antropológico no meio missionário mundial. 9
Podemos aqui propor que a antropologia missionária visa o estudo do homem como ser biológico e cultural com a finalidade de desenvolver relações interpessoais equilibradas e comunicação inteligível em um ambiente de partilha das verdades de Cristo e envolvimento com a sociedade abordada, suas virtudes e desafios. Desde a década de 1960, tem havido um crescente interesse missionário pela Antropologia Aplicada, que consiste na utilização dos métodos antropológicos em busca de soluções para problemáticas da vivência humana, sendo, portanto, adequada aos desafios dos movimentos missionários. A Antropologia Aplicada, segundo Foster xxv, é aquela: ―Produzida fora da academia com o objetivo de participar de intervenções e mudanças de acordo com demandas sociais.‖ De certa forma, a Antropologia Aplicada mostrou-se presente desde o fim do século XIX, servindo especialmente aos interesses políticos colonizadores, mas só alcançou destaque científico no século XX. a. ANTROPOLOGIA E INTERVENÇÃO (MUDANÇA) Texto Complementar – A Antropologia Aplicada e suas Perspectivas (Xerardo Pereiro – UTAD – Polo de Miranda do Douro) – Leitura e resumo Apresento neste texto uma reflexão sobre as posturas relativas à antropologia aplicada, desde as posturas contrárias à intervenção da antropologia na mudança sociocultural; passando pelas que reivindicam um estatuto de disciplina autónoma e independente junto com a linguística, a antropologia física, a arqueologia e a antropologia sociocultural; até aquelas que defendem a aplicabilidade de todo conhecimento antropológico e que criticam o falso divórcio entre teoria e prática. Posteriormente analisamos como a antropologia aplicada não pode ser entendida, a não ser que a pensemos uma ciência política aplicada que atua condicionada pelas posições ético políticas que defende. Finalmente questionamos que sentido tem falar e formar hoje em antropologia aplicada. POSTURAS CONTRA A APLICAÇÃO DA ANTROPOLOGIA
É a antropologia um saber aplicável? Deve a antropologia ser aplicada? É a antropologia aplicada diferente da antropologia? É uma disciplina ou subdisciplina com métodos e teorias diferentes? Ou o que mudam são só os agentes de aplicação? Se é diferente, o que o faz diferente? Acaso na história da antropologia, a produção de conhecimento antropológico não teve a sua aplicação? É a antropologia aplicada o mesmo que a antropologia implicada? É a antropologia aplicada o ―patinho feio‖ da antropologia? Torna -se necessário fazer da antropologia aplicada uma segregação do tronco da antropologia? Se a antropologia deve entender cada cultura nos seus próprios temos, que justifica que um antropólogo de outra cultura diga aos membros dessa mesma cultura o que devem fazer? São estas perguntas que representam uma primeira postura face a aplicação da antropologia, isto é, a desconfiança pela intervenção e a provocação de mudanças. Este relativismo cultural coloca num primeiro plano a questão ética do envolvimento e participação do antropólogo (Barnes 1977). Os antropólogos aperceberam-se de que para os mesmos problemas não há uma única solução, sendo difícil perceber qual é a melhor (Firth 1981). Por outro lado a história da aplicação da antropologia mostra intenções nobres mas não isentas de alguns etnocentrismos. Vejamos um exemplo de crítica, realizado por Carlos Castaneda (1974), ao envolvimento etnocêntrico de alguns antropólogos mexicanos:
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―Como los misioneros del siglo XVI, los antropólogos mexicanos se acercan a
las comunidades indígenas no tanto para conocerlas como para cambiarlas... Los misioneros querían extender la comunidad cristiana a los indios; nuestros antropólogos quieren integrarlos en la sociedad mexicana. El etnocentrismo de los primeros era religioso, el de los segundos es progresista y nacionalista. Esto último limita gravemente su comprensión de ciertas formas de vida‖ (Castaneda 1974: 14 15) A desconfiança face à intervenção do antropólogo não provém só do antropólogo, mas sim também às vezes dos próprios estudados e dos agentes governamentais, os dois potenciais requisidores dos serviços do antropólogo. Vejamos um exemplo retratado por James Clifford (1999: 171): ―... un mensaje que Franz Boas recibió de un jefe kwagiulth (que dice esencialmente: ―si usted viene a cambiar nuestras costumbres, entonces váyase; si no, es bienvenido‖); una cita de una car ta de 1922 escrita por el Jefe Inspector de
las Agencias Indias (señalando que el doctor Boas es un norteamericano, que debería de tratar de sus propios asuntos y no mezclarse en la defensa de los potlach)‖
Sobre esta questão temos que ter em conta as críticas ao colonialismo e a sua relação com a antropologia (Asad 1973). Estas críticas, ainda que de interesse, distanciam-se do envolvimento da antropologia no desenvolvimento, porque esse exercício é um encontro desigual com o outro (Hobart 1993; Escobar 1995; Gimeno e Monreal 1999) que parte de um esquema de dominação ocidental moralmente rejeitável. Esta postura, desde o nosso ponto de vista, pode levar o relativismo cultural a um extremo e esquece que os próprios antropólogos têm ajudado e favorecido os estudados (Gardner e Lewis 1996; Hannerz 1986). Pensamos, também que se esquece que a antropologia é de igual forma uma ciência libertadora, emancipadora e crítica perante qualquer forma de exclusão social. Nesta questão já Eric Wolf (1964)tinha afirmado com acerto que a antropologia aplicada é uma reação contra o relativismo cultural extremo. E alguns autores, como por exemplo Gardner e Lewis (1996), consideram que apesar de alguns antropólogos serem críticos com a aplicação da antropologia, manifestando-o assim nas suas obras, eles próprios podem ser considerados como antropólogos aplicados, pois praticam algo fundamental em antropologia que é a crítica cultural (Marcus e Fischer 2000) necessária para a reorientação da própria prática da antropologia aplicada. A crítica cultural de nós e dos outros serve para realizar propostas de convivência não racistas, como as baseadas no relativismo cultural (Marcus e Fischer 2000). Desde esta perspectiva de negação da possibilidade de aplicação da antropologia, podemos cair numa ingenuidade teoricista, pois ―toda teoria tem sempre por trás uma prática e uns interesses que a conformam‖ (Gondar 2003: 87) e toda teoria serve para transformar o social. Não
podemos esquecer ainda que a aplicação da antropologia tem-se produzido desde as suas origens. Analisaremos melhor este ideia crítica nas partes que se seguem. A ANTROPOLOGIA APLICADA COMO CAMPO ESPECÍFICO
Uma postura diferente à anterior, é aquela que defende não só a possibilidade de intervenção sociocultural da antropologia, senão também a identidade diferenciada da antropologia aplicada, um campo próprio e diferente da antropologia (Foster 1969; Bastide 1979; Chambers 1985; Weaver 2002;Gondar 2003). Para este conjunto de autores a ―antropologia aplicada‖ é ou deveri a ser uma área própria da antropologia junto com a linguística, a antropologia cultural, a antropologia biológica e a antropologia arqueológica. Além de mais a antropologia aplicada é entendida como uma disciplina que partilha com a antropologia conceitos como o de cultura, mas
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que tem um objetivo diferente, alcançado com alguns métodos e técnicas específicas. Um dos primeiros a afirmar esta posição foi George Foster, que definiu a antropologia aplicada da seguinte forma: commonly used by anthropologists to describe their professional activities in programs that haveas their primary goals changes in human behavior believed to ameliorate contemporary social, economic and technological problems, rather than the development of social and cultural ―applied anthropology is the phrase
theory‖ (Foster 1969: 54).
Para Foster (1969), a antropologia aplicada é a que um antropólogo realiza para uma organização pública ou particular de cooperação. Portanto é a realizada fora da universidade, é um saber ou um conjunto de conhecimentos produzidos fora da Academia. O objetivo da antropologia aplicada é obter mudanças a curto e médio prazo, e a sua melhoria em termos metodológicos derivará da prática. No mesmo sentido Roger Bastide (1979)define a antropologia aplicada como uma disciplina de reflexão teórica da prática de mudanças que acaba por criar o seu próprio ―corpus‖ de teorias. Neste autor, a prática, oposta à teoria, seguiria um modelo clínico (análise, diagnose, intervenção, mudança ou cura) e um esquema de mudança que teria como modelo o modo de vida ocidental, sempre conservando algumas especificidades locais. Esta ―antropologia clínica‖ seria toda uma
ciência da ação dos grupos humanos que, com a ação e a prática, desenvolveria novas teorias antropológicas. Com algumas diferenças, Thomas Weaver (2002) distingue entre antropologia acadêmica, antropologia aplicada e antropologia prática. Se bem que defende a ideia de que estas três antropologias partilham uma formação básica comparável, afirmando também que a antropologia aplicada é um campo diferente da antropologia académica. A diferença é que os antropólogos académicos trabalham fundamentalmente no ensino da antropologia e na publicação de resultados das investigações subsidiadas, porém os antropólogos aplicados são antropólogos académicos que trabalham temporariamente como assessores e investigadores para um cliente. Thomas Weaver (2002), ao mesmo tempo que critica a antropologia académica por não preparar os estudantes para exercer como antropólogos em prática, de fine a ―antropologia prática‖ como aquela que é realizada fora da academia, multidisciplinar, com metodologias rápidas para dar respostas a problemas que precisam de um ação imediata. A antropologia prática é para Weaver (2002) mais dependente de contratos do que de subsídios, como acontece na antropologia académica. Por sua vez, Marcial Gondar (2003) afirma que a antropologia aplicada é outro tipo de antropologia, uma linha autónoma com diferentes objetos, teorias, papéis, métodos – ex.: grupos de discussão- e intenções. Segundo este autor a antropologia pode facilitar uma mudança social integrada ou também reproduzir esquemas de dominação e subalternização. A antropologia aplicada é para Marcial Gondar (2003) uma ciência que contribui para a resolução dos problemas humanos, beneficiando as comunidades estudadas. Longe de ser um simples levar à prática a antropologia teórica ou uma antropologia mais prática, a antropologia aplicada é para Gondar (2003) uma contínua investigação que gera ela própria teorias. A ANTROPOLOGIA APLICADA COMO APLICAÇÃO DO CONHECIMENTO ANTROPOLÓGICO
Desde este ponto de vista a antropologia aplicada não é pensada estritamente como um campo próprio, porém como o uso e aplicaçãode toda antropologia, tanto pelo antropólogo académico como pelo antropólogo não académico. Portanto, presta atenção aos múltiplos usos e práticas do conhecimento e dos métodos antropológicos:
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―These anthropologists are applying the theories, methods, and substantive
knowledge of our discipline to enable a better understanding of human needs and to formulate and enact policy solutions that are culturallyappropriate and humane.‖
(Commission on Policy and Practice of International Union of Ethnological and Anthropological Sciences 2000: 3) São vários os autores que seguem esta linha de pensamento (Spradley e McCurdy 1980; Chapple 1953; Butcher 1987; Peacock 1989; Carvajal 1992; San Román 1993; Willigen 1993; Uribe 1999; Mairal 1999; Ervin 2000), e em todos eles não existe uma preocupação excessiva pela criação de um campo disciplinar próprio e independente da própria antropologia, pois o fundamental é a partilha de método, técnicas, teorias e conceitos (Hoeben 1982). Um autor como Peacock (1989) chega a afirmar que a antropologia é necessariamente aplicada, em termos de relação com o trabalho de campo: ―En su investigación erudita, laantropología ya es aplicada porque se ve
envuelta en los grupos humanos a través de la observación participativa. En el trabajo de campo, el antropólogo se enfrenta a cuestiones éticas, debe resolver tareas prácticas y, le guste o no le guste, todo esto afecta a él y al grupo... El trabajo de campo puede tener nobles propósitos académicos, pero se lleva a cabo en un contexto de necesidades humanas y de relaciones humanas, de las queno es posible escapar.‖ (Peacock 1989: 170 -171) Portanto, no sentido em que Peacock fala, a antropologia em prática é toda ela implicada, junto com o grupo humano estudado, a antropologia soluciona e administra problemas, mas também difunde conhecimento o que pode eventualmente evitar problemas ou ajudar a geri-los. Uma conotação um pouco diferente da posição de Peacock é a de Gaspar Mairal (1999), para quem é fundamental defender a ―aplicabilidade de toda antropologia‖, entendida como uma
tradução de mundos culturais diferentes, e num nível menos abstracto, devendo a antropologia caminhar para uma ―antropologia dos assuntos públicos‖ com uma clara orientação política e de gestão (Mairal 1999). Pensamos que é uma linha semelhante à ―antropologia pública‖ defen dida
por Price (2001: 5), segundo a qual a antropologia deve publicitar-se mais nos contextos nos quais trabalha. Dentro desta linha de pensamento e aplicação da antropologia, encontramos uma perspectiva um bocado mais pragmática, que é a de Spradley e McCurdy (1980). Estes autores entendem a antropologia aplicada como o uso dos conhecimentos antropológicos para ajudar indivíduos e grupos nas suas mudanças, e pensam na antropologia aplicada como uma ―forma de sobrevivência‖ que garante a própria existência da antropologia, daí que seja esta a sua primeira
função, uma espécie de marketing comercial da própria antropologia, que se venderia para justificar a própria existência dos seus praticantes. Assim pensada, a antropologia aplicada seria uma estratégia de reprodução socioprofissional que pretende maximizar os seus lucros, associada a um condicionamento fundamental na sua prática que é o contrato, e o trabalho com um cliente (Butcher 1987). Assim, o cliente pondera a definição de interesses, delimita os objetivos do estudo e determina o sentido da aplicação. Baseados nesta posição, podemos afirmar que, potencialmente, o antropólogo melhor que ninguém pode aplicar a antropologia tanto nos seus métodos como nos seus resultados. E se alguns autores falam da antropologia aplicada como ―antropologia mais além da academia‖ (Gimenez Romero 1999), pensamos que a história da antropologia desenha uma inseparabilidade da ligação entre pensamento e ação (Reed 2000) entre academia e prática da antropologia, assim por exemplo, antropólogos como Franz Boas ou Margaret Mead não podiam imaginar a antropologia sem a sua aplicação com o objetivo de melhorar a sociedade (Greenwood 2002: 7). Para além destes aspectos, podemos pensar que a primeira aplicação da antropologia é o ensino da mesma,
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um exercício para o treino e formação dos formandos que irão posteriormente praticar a antropologia como profissão. Portanto a transferência de conhecimentos produzida no ensino da antropologia pode ser pensada como uma atividade aplicada que sensibiliza sobre o modo como pensar a convivência entre os seres humanos.
POLÍTICAS A ANTROPOLOGIA APLICADA COMO POSIÇÃO POLÍTICA
Em um interessante artigo de Davyd Greenwood (1999) sobre como os materiais antropológicos e os antropólogos são utilizados politicamente no caso norte-americano e espanhol, pondo-se em manifesto como as profissões são reguladas e contextualizadas por forças econômicas e políticas de grande escala. Sublinha assim algo que todos sabemos, mas que poucas vezes explicitamos e pensamos com lente crítica, que existem políticas inerentes às práticas da antropologia que condicionam, utilizam e/ou se apropriam do nosso trabalho. Em antropologia aplicada, manifesta-se com intensidade este carácter político de toda investigação social. Não por acaso que nasceram as ciências sociais, daí que no seguimento da ideia focaultiana podemos considerar o saber como uma forma de poder (Foucault 2001). Neste sentido não pretendemos confundir ciência com ideologia, mas sim chamar a atenção sobre dois aspectos problemáticos: a) a função social da antropologia enquanto ciência política aplicada; b) a aplicação da antropologia não só adopta pressupostos teóricos e metodológicos como também políticos e éticos. A utilidade da antropologia no percurso da sua história foi fundamentalmente a construção de discursos sobre a identidade de nações, impérios e entidades internacionais supranacionais(Stocking 1992). Um exemplo clássico é o trabalho de Schoolcraft (in Gondar 2003: 49) sobre as tribos índias dos EUA, realizado a meados do século XIX para o Congresso dos EUA com o objetivo que este estabelecesse uma política. Estes trabalhos encerram discursos que serviram para cristalizar identidades coletivas e gerar adesões a imaginários inventados politicamente (Anderson 1983). Roger Bastide (1979) chegou inclusive a falar da antropologia como uma ―grande prostituta‖ ao serviço do colonialismo e do imperialismo. Se bem que esta associação entre antropologia e colonialismo assumia uma posição política concreta, a do melhor governo e exploração passível dos povos colonizados, embora nem todos os antropólogos tenham correspondido a este esquema, porque alguns deles foram mesmo os primeiros em questionar o colonialismo e a promover com os seus estudos e trabalhos de campo a independência dos colonizados (Kuper 1973; Hannerz 1986; Gardner e Lewis 1996). Um exemplo do afirmado é o trabalho de Gulliver, com os ―arusha‖ de Tanganika (Gardner e Lewis
1996); outro a criação em 1948 de um departamento governamental de antropologia na Índia independente (Gardner e Lewis 1996); e ainda a expulsão, em 1959, de Marvin Harris de Moçambique pelo governo de Salazar, ao escrever um artigo crítico sobre a situação dos ―Thonga‖ (Pina Cabral 1991: 33). Outra expressão da assunção de uma posição política aberta e concreta foi o caso de alguns antropólogos norte-americanos durante a segunda guerra mundial entre estes Rut Benedict e Gregory Bateson. O caso de Gregory Bateson é paradigmático, Bateson chegou a elaborar propaganda anti-japonesa, ensinou línguas do Pacífico aos soldados, resgatou agentes secretos e
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elaborou relatórios e informes secretos para o governo dos EUA (Bastide 1979; Price 1998). Esta ―antropologia guerreira‖, associada à espionagem (Price 2002), foi muito criticada dentro da própria antropologia (Bastide 1979; Colombres 1997; Reed 2000) por não seguir uns princípios éticos defensíveis e apropriados para a prática da antropologia. A preocupação pelas questões éticas levaria a que em 1949 a ―Society for Applied Anthropology‖(1) elaborasse o primeiro código ético sobre as implicações da antropologia e as suas recomendações. Tendo por referência esta óptica podemos pensar a antropologia como uma ciência política aplicada que vende as suas teorias, os seus métodos de intervenção e os seus resultados de investigação a um cliente. Mas nem a ―antropologia colonial‖, que serviu para controlar os colonizados, nem a ―antropologia guerreira‖, que se utilizou para vencer um ―outro‖ inimigo, foram as únicas a assumir uma posição p olítica determinada. Uma ―antropologia guerrilheira‖ foi
a prática de uma antropologia ativista, militante e revolucionária, desenvolvida fundamentalmente na América Latina, e que se renova hoje com a polémica do caso ―Lori Berenson‖(2), uma
antropóloga norte-americana que deixou a antropologia académica para integrar-se na guerrilha peruana do ―Movimiento Revolucionario Tupac Amaru‖ (MRTA). Como membro do MRTA
trabalhou como investigadora na recopilação de dados necessários para iniciar uma revolução armada no Peru. Outro exemplo é o da antropóloga colombiana Vera Grabe Loewenherz, que chegou a fundar o grupo guerrilheiro M-19 e agora é investigadora no Observatório para a Paz de Bogotá (Grabe 2003). Esta ―antropologia guerrilheira‖ ou ao serviço da revoluç ão teve em Maria Victoria Guevara (Universidade de La Habana), irmã de Che Guevara outro antecedente importante no contexto latino-americano. Na mesma linha da descolonização (Stavenhagen 2002) da antropologia aplicada e desde uma perspectiva reformista liberal, Sol Tax (1952) propõe uma ―antropologia de ação‖, entendida como um processo de ajuda a um grupo com o fim de resolver um problema por meio da educação e a aquisição de conhecimentos facilitados pelo antropólogo. Esta é uma posição política partidária de mudanças progressivas e não tão radicais como tinha proposto a antropologia revolucionária. Esta posição política, seguida, entre muitos outros pelo antropólogo colombiano Manuel Zabala (1972), ou pelo norte-americano Davyd Greenwood (2002), define o papel do antropólogo como o de um mediador ou intermediário cultural, muito próximo do trabalhador social. Dentro desta posição, podemos integrar a ―antropologia social de apoio‖ (Colombres 1997),
que tem também uma visão reformista libertadora, e que propõe uma antropologia politizada que transfira informação ao grupo estudado para combater as opressões e propor alternativas democráticas. Desde este último ponto de vista, o papel do antropólogo pode ser o de um agente de consciencialização (Freire 2002) e denúncia crítica das situações em que as culturas e os grupos humanos sofrem opressão, adoptando assim um espírito inconformista e libertador. Se, como aqui estamos a tratar, entendemos a antropologia aplicada como uma expressão dos exercícios de poder, não podemos deixar de matizar a operatividade destas posições políticas desde as quais trabalha a antropologia aplicada, trata- se da ―antropologia administrativa‖ (Spradley e McCurdy 1980), uma engenharia social ao serviço das administrações públicas atuais. A sua prática é do mais variada, desde a assessoria ao desenvolvimento, até a gestão da produção cultural e o património cultural (ex.: museus). O que caracteriza os ―antropólogos administrativos‖ é o facto de serem criadores dos
discursos e das imagens socioculturais necessárias para a afirmação e visibilidade pública desse poder (Zabala 1972). Mas este exercício não tem porque ser obrigatoriamente acrítico e autolegitimador do poder estabelecido, ainda que os objectivos do trabalho científico sejam produzir conhecimento para ser utilizado pelo administrador, a antropologia aplicada seria a ―...arte o
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técnica que lleva al campo de la realidad concreta los principios, regularidades o leyes, conceptos, métodos, etc. previamente estabelecidos‖ (Cortazar 1974). E se na antropologia administrativa defende-se um controlo da mudança exterior ao grupo em questão, na antropologia de ação (Spradley e McCurdy 1980) o grupo consulta o antropólogo, mas relativamente à mudança, este mesmo grupo é quem decide, na antropologia de defesa da comunidade (Spradley e McCurdy 1980) o antropólogo propõe o que lhe parece mais apropriado para o grupo humano em causa e ajuda na defesa dos interesses do grupo humano com o qual trabalha. Todas estas posturas obrigam a que o antropólogo lide com questões éticas nem sempre fáceis de resolver, devido às novas situações com as que se debruça o trabalho do antropólogo. Uma saída pensamos poder ser o que propõem Marcus e Fischer (1986), isto é, explicar sempre as condições nas quais é produzido o trabalho de campo e a prática da antropologia, o que nos obriga a questionar-nos e a adoptar uma lente crítica sobre os processos dos quais fazemos parte. A FORMAÇÃO EM ANTROPOLOGIA APLICADA
Estamos hoje num momento em que grande parte dos antropólogos formados na universidade vão trabalhar fora da Academia. No caso dos EUA, isto verifica-se desde 1977, pois um terço dos doutorandos trabalham fora da Academia (Price 2001). No caso de Portugal a situação começa a agravar-se nas últimas datas, e os lugares na academia acrescem muito lentamente. Apesar de esta situação, muito poucas universidades oferecem formação em antropologia aplicada e menos ao nível de licenciatura. É neste início do século XXI que as universidades portuguesas reestruturam os seus cursos com algum destaque para a formação em antropologia aplicada. Neste assunto a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro tem sido pioneira ao abrir em 1998 um curso de Antropologia Aplicada ao Desenvolvimento(3). Atualmente a Universidade Nova de Lisboa tem realizado uma reestruturação da licenciatura em antropologia dando ênfase à antropologia aplicada. A realidade é que a maioria dos nossos estudantes terão que utilizar e praticar a antropologia fora da universidade, bem por escolha pessoal ou pela escassez de lugares na academia. Mas a procura de antropólogos em Portugal e também em Espanha é muito baixa, não tendo um mercado especializado no nosso meio e concorrendo com outros profissionais pelas mesmas ocupações e empregos, pois o mercad o procura ―científicos sociais‖ ou ―agentes de desenvolvimento‖. O empregador raramente conhece a especificidade de cada uma das formações
e o que lhe interessa é que sejam dadas propostas e soluções para os problemas colocados. Ao mesmo tempo, acontece que muitas vezes os próprios antropólogos não tem consciência do que podem fazer melhor ou diferente de outros profissionais. A nossa preocupação é a de formar numa ciência e na aplicação da mesma sem que haja uma quebra entre os processos de ensino-aprendizagem e a prática profissional, convertendo assim a antropologia aplicada numa prática antropológica mais habitual, bem por eleição dos nossos formandos ou também pela falta de lugares na academia e nos centros de investigação. Este repto implica ensinar aos nossos formandos a traduzir os resultados da investigação antropológica na aplicação prática e na intervenção social da mudança sociocultural. Noutro plano, pensamos na necessidade social de introduzir a antropologia no ensino básico, secundário e universitário – ex.: medicina, turismo-, não só como estratégia de inserção profissional para os antropólogos, porém também como uma forma de ajudar a cidadania a melhor relacionar-se e conviver em contextos de grande diversidade cultural. Outra tarefa necessária é, na nossa opinião, produzir literatura em antropologia aplicada apropriada à realidade portuguesa e ibérica, contextos próximos e imediatos de trabalho dos nossos formandos. Isto, ajudar-nos-ia a conhecer a prática da
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antropologia em contextos estritamente não académicos, algo muitas vezes invisível até para os próprios antropólogos.
CONCLUSÕES
Na primeira parte deste texto, analisamos algumas posturas em relação à antropologia aplicada, tanto os que negam a possibilidade da antropologia ser uma ciência social aplicada, como os que pensam nela como um campo específico diferente da antropologia, ou os que afirmam a aplicabilidade de toda antropologia seja ela qual for. Entre as primeiras posturas, o pensamento central é que a antropologia só tem como objetivo conhecer e compreender as realidades socioculturais, não sendo este exercício um trabalho aplicado. Entre as segundas, a prática da antropologia é entendida como uma aplicação e uma consequência da teoria, e ao mesmo tempo a prática será novamente inspiradora de novas teorias. Finalmente há quem defenda que não há uma antropologia inaplicável e que a teoria e a prática estão interligadas em redes de ação, não existindo um dualismo ou uma separação radical entre uma e outra, ou como diria Foucault (2001:25) a teoria é uma prática – ex.: teorias da pobreza. Na segunda parte do texto defende-se o carácter ético e político que tem a antropologia aplicada. Daí que possamos falar em diferentes tipos de antropologia: colonial, imperial, libertadora, emancipadora, guerreira, guerrilheira, revolucionária, de ação, reformista, administrativa, de defesa da comunidade. Também chamamos a atenção sobre a necessidade de olhar a antropologia enquadrada em agendas macro políticas nem sempre explícitas. Na terceira parte do texto expomos alguns dos porquês da antropologia aplicada hoje, aplicando as teses de Adam Smith (1950) e de Pierre Bourdieu (1998) apontamos, ao nível das hipóteses, que a antropologia aplicada é uma forma de mercantilizar a antropologia e de segmentar distintiva especialisadamente um produto para ser consumido de forma diferenciada. Finalmente colocamos a ideia da necessidade de formar antropólogos para uma prática profissional aplicada não exclusivamente académica nem tão pouco exclusivamente mercantilista, porém, uma formação adaptada à ajuda na resolução de problemas sociais, recuperando assim a origem da antropologia como instrumento de reforma social democrática.
b. EVANGELIZAÇÃO (CATEQUESE) OU TESTEMUNHO CRISTÃO ? Presença e ação missionária evangélica entre os povos indígenas do Brasil Manifesto da AMTB – Departamento Indígena
A evangelização difere-se da catequese principalmente em relação ao conteúdo, abordagem e comunicação. O conteúdo da catequese é a igreja, com seus símbolos, estrutura e práticas, ou seja, a sua eclesiologia; o da evangelização é o evangelho, os valores cristãos e a pessoa de Jesus Cristo. A abordagem da catequese é impositiva e coercitiva; a da evangelização é dialógica e expositiva.
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A catequese se comunica a partir dos códigos do transmissor (o que fala), sua língua e seus costumes, importando e enraizando seus valores; a evangelização se dá com a utilização dos códigos do receptor (o que ouve), sua língua, cultura e ambiente, respeitando os valores locais e focando na comunicação da mensagem como inteligível e aplicável ao seu universo. A AMTB preparou um manifesto sobre o assunto e chegou a algumas afirmações importantes: A primeira é que nenhum elemento deve ser imposto a uma sociedade, seja indígena ou nãoindígena. A segunda é que a cultura humana não é o destino do homem e sim seu meio de existência. Ela é dinâmica, provocando e sofrendo processos de mudança, seja por motivações internas ou a partir de trocas interculturais. Portanto, cabe ao próprio grupo refletir sobre sua organização social, tabus e crenças, e promover (ou não) ajustes sociais que julgue de benefício. Vemos isso em relação ao infanticídio e valiosas iniciativas da organização ATINI. Esse manifesto expressa também que a motivação missionária da igreja precisa ser respeitada, pois não se deve confundir motivação cristã com imposição do cristianismo: ― Nenhum elemento externo jamais deve ser imposto a uma cultura. Toda imposição pressupõe carência de respeito humano e cultural, além de grave erro na construção do diálogo. Assim, a catequese histórica e impositiva, bem como qualquer outro elemento que force a mudanças não desejadas, mesmo em áreas como educação, saúde e subsistência, devem ser duramente criticadas. Por outro lado, é também respeito cultural conceber ao indígena o direito de realizar escolhas, voluntárias e desejadas, dentro de seu próprio bojo cultural. Para Roberto Cardoso, a mudança é possível se percebida sua necessidade e deve ser processada no interior de uma comunidade intercultural de argumentação. Ele se baseia no etno-desenvolvimento que, na declaração de San José (1981) é ―o fortalecimento da capacidade autônoma de decisão de uma sociedade culturalmente diferenciada para orientar seu próprio desenvolvimento e o exercício da autodeterminação‖.
Quando as motivações missionárias são questionadas, em sua relação com as sociedades indígenas, há de se notar clara discriminação. Há iniciativas particulares e governamentais junto às sociedades indígenas, conduzidas pelas mais diversas motivações como a política, financeira e humanista. A iniciativa missionária evangélica possui, como principal motivação, valores cristãos como o amor ao próximo, a solidariedade humana e o evangelho e, devido a isso, sente-se frequentemente discriminada, como se a motivação religiosa fosse menos digna que a política. Precisamos rever nossos pressupostos. Há grave diferença entre a catequese e a evangelização. Todo cristão, sincero e convicto de sua fé, tem ou deveria ter o desejo de compartilhar aquilo que tem de mais precioso em seu ser e sua cultura, qual seja, a sua fé e as verdades do evangelho, uma baseada e construtora da outra. Tal compartilhar, quando em um ambiente em que o mesmo é desejado pelo receptor, não oprime a cultura, ao contrário promove diálogo e reflexão. Esta evangelização difere-se da catequese em relação ao conteúdo, abordagem e comunicação. O conteúdo da catequese é a Igreja, com seus símbolos, estrutura e práticas, sua eclesiologia. O conteúdo da evangelização é o evangelho, os valores cristãos centrados em Jesus Cristo. A abordagem da catequese é impositiva e coercitiva. A abordagem da evangelização é dialógica e expositiva. A catequese se comunica a partir dos códigos do transmissor, sua língua e seus costumes,
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importando e enraizando valores. A evangelização se dá com a utilização dos códigos do receptor, sua língua, cultura e ambiente, respeitando os valores locais e contextualizando a mensagem. ‖
Sendo assim, façamos uma breve avaliação de uma de nossas práticas na evangelização: a Comunicacional, e vejamos a que conclusão chegamos quanto às realidades de nossos ministérios missionários.
i. Padrões de Abordagem Cultural LIDÓRIO, Ronaldo, Antropologia Missionária, 2008
A Etnologia é normalmente estudada como um ramo antropológico que está ligado às formulações da identidade cultural de um segmento ou agrupamento. Usando-a como ponto de partida para avaliação cultural sugerimos três distintas formas de abordar o homem e suas interações, ou seja, de avaliá-lo em razão do desenvolvimento de sua existência social, que são os padrões ético, êmico e êmico-teológico. Estes primeiros padrões (ético e êmico) já têm sido largamente utilizados na abordagem antropológica para avaliação de um fato ou ideia. Ouvi a primeira explanação a respeito deste assunto em 1990 pela Dra. Francis Popovich que fez referência a Kenneth e expôs a necessidade de desenvolvermos uma aproximação êmica aos fatos sociais a fim de os entendermos como eles são para aqueles que os praticam. Introduzimos um terceiro padrão, êmico-teológico, a fim de facilitar nossa proposta metodológica, como veremos adiante. Padrão Ético Inicialmente olharemos o padrão Ético de estudo cultural. Baseia-se na abordagem, estudo e avaliação de um fato antropológico a partir de um valor cultural predefinido pelo observador. Possuímos uma capacidade inerente de interpretação. Tudo o que vemos, semelhante ou distinto, passa pelo crivo da nossa interpretação cultural. Na rua, ao olharmos para uma pessoa instintivamente julgamos seu modo de vestir, andar, agir, falar, mesmo se nunca antes relatado. Os critérios de julgamento são inteiramente nossos, segundo nossa ideologia, idéiae cultura. Assim, quando afirmamos que algo é bom, ruim, ou possui certo significado, estamos interpretando uma pessoa ou fato social de forma ética, a partir de nós mesmos, nossas idéias. A visão ética possui a tremenda fraqueza de observar um fato dentro de uma camada de valores idealistas preconcebidos que, frequentemente, distorcem a conclusão antropológica do valor do fato social para o que o experimenta. A antropologia busca a verdade sentida, experimentada, pois esta é vital para qualquer processo de relacionamento, comunicação e interação. Padrão Êmico O padrão Êmico se propõe a analisar o fato antropológico, seja étnico, grupal, individual ou fenomenológico, a partir de uma visão propriamente factual. Como o termo êmico significa interno, sugere a procura pela verdade como ela é entendida pelo agente promotor do fato, ou experimentador. Isto é, as pessoas que vivenciam aquela cultura. O valor da abordagem êmica é, portanto, enraizado em sua veia analítica, pois, em verdade, o antropólogo ou pesquisador deve se propor a entender o fato de acordo com sua origem e não através de sua cultura receptora sob pena de jamais compreendê-lo, apenas julgá-lo. 19
Boas, em seu artigo As limitações do método comparativo, informa-nos sobre o método normalmente oferecido para o estudo antropológico, dentro de uma procura êmica, quando diz que ―isolar e classificar causas, agrupa ndo as variantes de certos fenômenos etnológicos de acordo com as condições externas sob as quais vivem os povos entre os quais elas são encontradas, ou de acordo com as causas internas que influenciam as mentes desses povos; ou, inversamente, agrupando essas variantes de acordo com suas similaridades. Podem- se encontrar, assim, condições correlatas da vida‖. Stoll tentou isolar os fenômenos da sugestão e hipnotismo a fim de estudar os fatores psíquicos em diversas culturas. O uso de um segmento de estudo, através do isolamento e classificação, possui a virtude de nos levar a evitar a universalidade dos fatos e de nos concentrarmos nas pistas que levam à verdade factual. Boas afirma que a formação das idéias, ―que se desenvolvem com necessidade férrea ond e quer que o homem viva‖ é o problema mais difícil da antropologia. Ele afirma: ―quando se trata desse problema – o mais difícil da antropologia – assume-se o ponto de vista de que, se um fenômeno etnológico desenvolveu-se independentemente em vários lugares, esse desenvolvimento é o mesmo em toda parte; ou, dito de outras forma, que os mesmos fenômenos etnológicos devem-se sempre às mesmas causas... é prova de que a mente humana obedece às mesmas leis em todos os lugares. Porém aqui reside a falha no argumento do método pois esta prova não pode ser dada. Até o exame mais superficial mostra que os mesmos fenômenos podem se desenvolver por uma multiplicidade de caminhos‖.
Padrão Êmico-Teológico O padrão êmico-teológico, cuja expressão é um neologismo, sugere utilizarmos o padrão êmico para compreendermos o fato em si, pela ótica de quem o experimenta ou relata e expormos o evangelho de acordo com seus valores bíblicos supraculturais. Este padrão certamente será questionado por todo aquele que segue uma linha relativista, não intervencionista, ao tratar de grupos étnicos distintos. Um dos principais problemas de relacionamento da antropologia com a teologia é a convicção dogmática. Enquanto a antropologia crê que cada povo possui e desenvolve sua própria verdade, suficiente para si, a teologia protestante reformada crê que há uma verdade universal, dogmática, aplicável a todos os povos em todas as culturas. A partir deste conceito de ação não intervencionista da antropologia surgiram expressões comumente utilizadas como observação passiva ou estudo não interativo, o que por um lado resultam da tentativa – não raramente utópica – de minimizar nossas crises de consciência acadêmica ao interagirmos com um povo e cultura. O padrão êmico-teológico, portanto, é uma proposta que visa primeiramente analisarmos os fatos sociais por lentes êmicas, compreendo seu valor para o povo que os experimenta, e após termos feito esta caminhada, expormos a estes o evangelho de forma viva e aplicável, compreensível em seu próprio universo. Podemos aqui salientar diversas iniciativas de contextualização bem sucedidas na história da Igreja como Lutero que, no nascer da reforma protestante, traduziu os hinos antes recitados apenas pelo clero nas missas em Latim, para o povo comum, em Alemão, na língua conhecida e usada. Ou ainda como Calvino que, na Genebra do século XVI, decide administrá-la a partir de um investimento na educação da presente geração, construindo escolas e assim facilitando a compreensão das Escrituras pelo povo comum. E para este povo escreveu inúmeros livros e comentários bíblicos, a fim de que o conhecimento teológico não fosse restrito a poucos. Não basta comunicarmos a mensagem do evangelho. É necessário fazermos 20
isto na língua do povo, dentro de seu bojo de compreensão cultural, em sua própria casa e sociedade. Uma abordagem êmico-teológica nos ajudará nesta caminhada. Seguindo um padrão êmico-teológico observamos um fato social ou relato de acordo com aquele que o experimenta, e aplicamos a verdade do evangelho a fim de que este, sendo supracultural e universal, possa responder às perguntas do seu coração, em sua cultura, como o faz conosco.
4. Antropologia e Comunicação Missionária a. Camadas Culturais
O termo cosmovisão tem origem na palavra alemã Weltanscuung (de Welt , mundo, e Anschauung, percepção), traduzido para o inglês como worldview e para o português como cosmovisão. A palavra Weltanscuung teria sido usada pela primeira vez por Immanuel Kant com o sentido de capacidade humana de intuir o mundo exterior pela apreensão deste pelos sentidos. O termo teve particular relevância no Idealismo e Romantismo alemães, que alteraram e ampliaram o sentido pretendido por Kant, passando a significar a apreensão intelectual do mundo por um ser moral e cognitivo. Mais tarde, pensadores cristãos, tais como James Orr, Abraham Kuyper e Herman Dooyeweerd, se apropriaram do termo e o apresentaram aos círculos cristãos para expressar a visão de um cristianismo integral que incluísse todas as dimensões da cultura. Cosmovisão pode ser definida como o conjunto de pressupostos e crenças fundamentais por meio do qual o indivíduo, ou o grupo de indivíduos, interpreta a realidade ao seu redor, consciente ou inconscientemente, estruturando todo o seu sistema de pensamento e valores. Segundo Kuyper, a cosmovisão permite ―um discernimento peculiar nas três relações fundamentais de toda vida humana: a saber, (1) nossa relação com Deus, (2) nossa relação com o homem, e (3) nossa relação com o mundo‖. É sobre este ―discernimento peculiar‖ como fundamento que o indivíduo construirá o edifício posterior de sua filosofia e de sua cultura. Como se pode verificar, de acordo com esta definição, todo o pensamento racional inclui um fundamento religioso, pois a mais fundamental das relações do homem é sua relação com Deus. Pode-se objetar que o ateísmo não inclui qualquer conceito de Deus. Mas mesmo o ateu, em sua declaração de que Deus não existe, faz uma afirmação fundamental de sua relação com Ele: se não há Deus, ―comamos e bebamos, porque amanhã morreremos‖ (I Co 15.32). E mesmo que não se parta para este hedonismo explícito, certamente o brado ―nenhum Deus, nenhum senhor‖ da Revolução Francesa, brado que ainda ecoa neste mundo laicizado, indica a hostilidade desta relação. Os modelos a seguir têm sido desenvolvidos pelo ministério de Consultoria da MNTB como ferramenta ilustrativa e de análise nos trabalhos de aquisição de cultura e língua entre os povos indígenas. Os níveis vão desde os mais superficiais e visíveis no simples contato com as sociedades estudadas, até aqueles mais interiorizados e menos visíveis no dia a dia, pois jazem no profundo dos corações e mentes, nas entranhas das crenças fundamentais que estão baseadas quase totalmente nas mitologias e na cosmovisão, a mais profunda e mais importante área de uma mentalidade social 21
e/ou pessoal. A definição a seguir é a mais completa que tenho encontrado e nos ajuda a compreender como a cosmovisão constrói e domina todas as áreas da vida. Uma cosmovisão é um compromisso, uma orientação fundamental do coração, que pode ser expresso como um conjunto de pressuposições (suposições que podem ser verdadeiras, parcialmente verdadeiras ou inteiramente falsas) que nós sustentamos (consciente ou subconscientemente, consistente ou inconsistentemente) sobre a natureza básica da realidade, e que provê o fundamento sobre o qual nós vivemos, nos movemos e existimos.
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b. Pressupostos Revelacionais
CONTEXTUALIZAÇÃO ENTRE OS INDÍGENAS: UMA VISÃO GERAL Silas de Lima . . . para que eu seja ministro de Cristo Jesus entre os gentios (povos), no sagrado encargo de anunciar o Evangelho de Deus, de modo que a oferta deles seja aceitável, uma vez santificada pelo Espírito Santo (Rm. 15:16).
Introdução
É verdade que a contextualização precisa preservar a verdade bíblica e também ser relevante para o povo alvo. Está corretíssimo, mas onde está o balisamento ou parâmetros que nos indicam que ainda estamos dentro destas duas fronteiras? Sem diretrizes específicas, estamos como quem dirige um carro à noite com um farol fraco, numa pista de mão dupla e sem sinalizadores luminosos. Isso causa tensão ao motorista. Ao contrário, como é bom quando se pega um trecho de pista com sinalizadores! Será que já não existem na Bíblia e na experiência missionária subsídios suficientes para detectarmos alguns sinalizadores de limites? Será que vamos ter de ficar olhando quem errou por excesso de zêlo ou por descuido para detectá-los? Vou sugerir alguns princípios que poderão nos ajudar. A Necessidade da Contextualização (aos indígenas)
O missionário chega e traz em sua bagagem a revelação de Deus para pregar. Está sonhando com o dia em que terá o domínio do idioma para se comunicar. Erroneamente pensa que, como o povo ainda não ouviu, bastará comunicar a verdade e todos vão se interessar por ela. Aí, depara-se com o fato de que o povo também tem suas próprias fontes de verdade, tão válidas para eles quanto a Bíblia para nós. E agora, o que fazer? Geralmente pensamos que o povo tem um “HD” virgem para o preenchermos e formatarmos com nossa teologia e “informações verdadeiras”. Ledo eng ano, seu HD está cheio
de informações, consideradas como a verdade para aquele povo. Por isso o primeiro estágio do novo missionário tem que ser conhecer muito bem o que o povo tem em suas mentes e partir desse conhecimento para o que eles não conhecem ainda. De fato, ao ter contato com a nova mensagem, o povo deve reinterpretar e reformular a sua cosmovisão. Há muitas fontes das quais extraíram sua verdade religiosa: testemunhos e ensinos dos antigos, parentes, homens espirituais, espíritos espirituais e ancestrais e, principalmente, sua mitologia. Elas explicam seu universo em termos de origem, atualidade e destino. Os Diferentes Pressupostos Revelacionais (Indígenas)
Falo neste capítulo em termos genéricos, usando o que conheço do povo Waiãpi, com o qual minha família e eu trabalhamos. Pode até ser que os indígenas não expressem o que pensam por diplomacia cultural ou timidez diante do missionário “todo -conhecedor”, mas d á para perceber sua reação em fragmentos de suas perguntas ou nos comentários posteriores.
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Como introdução para este estudo de caso, alistemos aqui alguns pressupostos revelacionais de que dependem os povos indígenas, em especial os Waiãpi. Segue umas explicações nas suas próprias palavras:
Tamõ kõ remikuarer - As tradições dos nossos ancestrais
―Nós observamos tabus e resguardos baseados nas
experiências dos nossos pais. Por
exemplo: uma mulher não deve se banhar no rio no seu siclo menstrual. É perigoso fazer isso pois o dono das águas vai causar-lhes malefícios. Uma criança novinha deve ser protegida para não perder a alma. Nunca devemos deixar uma criança chorar nem mesmo discipliná-la ao ponto de chorar porque ela pode perder a alma. O pajé não pode passar por onde andou uma mulher parturiente, nem assistir ao nascimento de um filho. Não adianta vocês dizerem que essas coisas não têm problemas. Podem não ter problemas para vocês, mas para nós, sim.”
Tamõ kõ ayvukwer – As estórias
e ensinos dos ‘nossos’ antepassados
Observe como os Waiãpi defendem sua tradição oral:
―Bem, vocês estão lendo os escritos de Moisés e achamos interessantes, só que nós também temos a palavra de nossos antepassados e ela é tão importante quanto o seu livro, missionário! Aliás, você deve lembrar-se que os Waiãpi foram criados primeiro que os brasileiros. Então missionário, não pense que pode supervalorizar o seu „livro‟ em detrimento das minhas tradições orais, tá bem?”
Realmente, em relação à comparação entre cultura oral e escrita, nenhuma é superior à outra, embora os letrados valorizem mais a escrita pela facilidade de arquivar dados culturais em livros. Mas os anciãos, especialistas na cultura indígena, têm uma incrível enciclopédia em suas mentes.
Manõtaray mãe kõ ayvukwer/ jigarer - Palavras ou cânticos dos moribundos.
Alguém me perguntou:
— O seu povo costuma prestar atenção quando alguém está para morrer? Eles escutam o cântico dos moribundos?
— Não.— respondi. — Chii!! Que gente insensível a sua! Nosso povo faz questão de ouvir as últimas palavras de quem está para morrer. Não somos desatenciosos como vocês. É por isso que sabemos muitas coisas que vão acontecer com a gente depois que morrermos porque uma cortina se abre para o moribundo. Algumas vezes ele canta, outras vezes ele comenta sobre o que está vendo “lá do outro lado”.
Pajé kõ moregetakwer - Palavras dos shamãs
— Vocês têm pajés? Eles são bons ou maus? São poderosos? — Não, não temos. — Bem, nossos pajés sabem muito. Eles podem nos indicar onde está o bando de porcos do mato para nossos caçadores. Se ocorre uma doença, eles podem fazer uma fumaça com ervas e outras coisas que vão subir e indicar a origem da doença para nos vingarmos do despacho que outros fizeram. Podem também entrar na tocaia e falar com os espíritos em voz diferente da sua, e podem soprar e tirar os amurús do corpo de um doente e ele sarar logo. No passado podiam até curar um acidentado com fraturas expostas, mas atualmente só temos pajés pequenos.
Morawã (anormalidades) - Mistérios, pressentimentos ou presságios
―Nós prestamos atenção aos sinais ao nosso redor. O canto da sigau é muito importante. Quando ela fica zangada (cantando de modo diferente), isso é um aviso. Animais quando agem fora do seu habitual, sempre trazem “avisos” de coisas im portantes que podem acontecer conosco. Se você vir um pássaro noturno de dia, preste atenção; é um aviso mesmo.
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―O tamõ fulano não atendeu ao presságio e imprudentemente foi caçar. Por isso a onça o comeu. O finado irmão teve vários presságios: achou uma tracajá enorme e doente e não se cuidou, depois pescou um grande forno de barro antigo e o carregou. Não devia ter feito aquilo! Por causa disso foi ficando doente e mor reu mesmo...”
Janepouwaikwer - Os sonhos
―Vocês dão atenção para os sonhos? Vocês sabem que durante o sonho nosso espírito/alma faz viagens extra corporais e visita lugares diferentes? Olha, quando a gente sonha existe um „recado‟ que alguém está querendo passar pra gente. Os sonhos são muito importantes.”
―E vocês procuram saber o significado dos seus sonhos? Quem os interpreta para ―Nós conversamos muito sobre os sonhos, eles não nos
vocês?”
enganam.”
Estas narrativas são uma pequena amostra de como o povo chegou a crer no que crê. Há muito a ser investigado, e não se pode passar uma borracha e apagar o que eles crêem para plantar a Verdade em suas mentes. Isso nos leva ao processo da contextualização, que depende muito do missionário e de sua habilidade, paciência, sabedoria, humildade e sensibilidade no trato com o povo. Alguns desses “segredos” não serão revelados se não houver cumplicidade e
relacionamento profundo entre o missionário e o seu amigo tribal. Eles não banalizam seus conhecimentos.
c. Representação Mental
O conceito de representação mental é muito polemico e está longe de ser consensualmente aceito. 1 Entretanto, uma representação mental (ou representação cognitiva), na filosofia da mente, psicologia cognitiva, neurociência e ciência cognitiva, é um símbolo cognitivo interno hipotético que representa a realidade externa, ou então um processo mental que faz uso de um símbolo; ―um sistema formal para fazer explícitas determinadas entidades ou tipos de informação‖. Uma representação mental também é entendida como o processo pelo qual o ser humano cria na mente um modelo do mundo real ou um estado mental. É a unidade básica do pensamento, isto é, o poder de pensar e imaginar o conceito sem ele estar presente. Através da representação mental o sujeito organiza o seu conhecimento. Ela está relacionada com nossa experiência de vida e esta está relacionada com nossa cultura. Cada um vai representar liberdade, por exemplo, de uma forma diferente, a partir do que aprendeu durante a vida e de seus conceitos sobre o que é liberdade. Sem representação mental não há memória.
Cognição Conjunto de atividades e processos pelos quais um organismo adquire informação e desenvolve conhecimentos
Mecanismos mentais que agem sobre a informação sensorial, buscando a sua interpretação, classificação e organização.
Processos Cognitivos: memória, categorização, atenção, resolução de problemas, tomadas de decisão, tipos de raciocínio, linguagem.
1 Signo por Onici Claro Flores 2008
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Co ni ão é o rocesso de conhecer Da natureza dos objetos e das representações Sabemos que as teorias causais da percepção sustentam que a ‗representação‘ perceptual de um objeto consiste em que o objeto está sendo causalmente responsável, de forma adequada, para o caráter da percepção. O que legaria aspectos da natureza desse objeto no processo de ‗representação‘. Isso pode parecer plausível, no caso de percepção/representação de árvores, animais, pessoas – os considerados itens ‗concretos‘ a respeito dos quais os teóricos da percepção causal tendem a falar. É possível uma teoria da representação que dê conta da nossa capacidade de representar aspectos de TEMPO, por exemplo? Eis de imediato um problema: já que estudar uma ‗representação‘ não é precisamente estudar o objeto rep resentado, pelo menos não diretamente, parece irrealizável o objetivo de descobrir algo sobre a natureza do próprio objeto pelo olhar para a natureza de uma ‗representação‘ mental de quem o observa. É verdade que a ‗representação‘ é um fenômeno relacional: há, por um lado, o ―representans‖ (o modelo mental representante) e, de outro, o ―representandum‖ (o ―objeto‖ real). Tem-se no ‗representans‘ um conjunto de elementos interligados, tomados como um todo mais ou menos coerente, cujos componentes funcionam entre si em numerosas relações de interdependência ou de subordinação, de ‗apreensão‘ muitas vezes realizável pelo intelecto, como um conjunto de ideias associadas, capazes de levar o observador a pensar, sentir e, por vezes, agir de acordo com um padrão de natureza definido pelo ‗representandum‘. Mas não é satisfatória a noção de que a relação entre os dois seja de similitude, no sentido pleno da palavra: mesmo no caso de ‗representação‘ pictórica, em que as semelhanças parecem mais promissoras, a relaçã o entre o ‗representans‘ e o ‗representandum‘ realiza alguma assimetria, dada a específica complexidade da natureza de cada um. Há, por certo, alguma diferença de qualidade, valor, proporção, dimensão, intensidade, etc. Concordo com Poidevin (2007, p.05), para quem a ―representação é raramente, ou nunca, transparente: não se pode simplesmente ler a natureza do mundo a partir da intrínseca característica da representação‖. Então, se não há tal possibilidade, num estudo de ‗representação‘ o que se pode dizer da estrutura da realidade representada? O objeto é o que é (ou o que eu penso que é)? Todavia, o exercício definitório/representativo, seja em assembleia, seja na individualidade, geralmente estabelece uma constituição do que definido/representado, a partir de postos ou lentes de observação que imantam a natureza do objeto que se observa. Dessa forma, a ‗representação‘ que se faz de objetos científicos (por excelência, objetos de discurso) resulta de procedimentos de percepção, categorização – atribuídos à capacidade cognitiva – construídos no exercício da linguagem. Assim, o objeto ‗final‘ – o linguístico-cognitivamente representado, o discursivo – é (a) um parecer-ao-espírito do objeto tácito; (b) uma forma de percepção e categorização de tal parecer (um percepto, nesse sentido, é necessariamente uma experiência pessoal estabelecida na relação sujeito/objeto, num tempo-espaço específico); 26
(c) uma imagem cognitiva sub-objetivada, acordada em palavras, na relação sujeito/sujeito. Como tais sujeitos falam de algum lugar científico e, geralmente, aos seus pares, (co)instituindo -se sujeitos dos lugares e dos objetos que constroem, os objetos discursivos postulados ‗carregam‘ traços da natureza dos sujeitos que os instituem e dos lugares em que são instituídos. Todos, sujeitos e lugares, sempre datados.
Representação Mental do Conhecimento
Representações são como estados mentais que promovem um elo entre o organismo e um determinado contexto. Têm como característica trazer em si mesmas os objetos aos quais se referem independentemente de os mesmos estarem ou não em sua presença.
Sob o ponto de vista psicológico, que também é constitutivo dos objetos linguístico cognitivos, a subjetividade do caráter da representação parece inevitável, já que a natureza de cada realização mental, de cada representação humana do mundo carrega traços do sujeito que percebe. Em outras palavras, a construção das imagens mentais, ainda que se trate da representação de uma mesma realidade no mundo, pode advir de aspectos psicológicos diversos e tornar uma dada noção muito distinta de outra, pelo fato de tais noções refletirem distintos campos de experiência. d. Língua & Linguagem
LÍNGUA MÃE Márcio Thamos - Doutor em Estudos Literários, Professor de Língua e Literatura Latinas junto ao Departamento de Lingüística da FCL-UNESP/CAr e Coordenador do Grupo de Pesquisa LINCEU – Visões da Antiguidade Clássica.
A língua materna de um povo é um patrimônio imaterial de valor inestimável. A cultura geral de uma sociedade (tradições, costumes, religião, saberes, modos de fazer, formas de expressão, valores éticos, políticos, etc.) se transmite, se absorve e se transforma através da linguagem. A cultura é o elemento definidor do homem como ser no mundo, seja qual for o estágio de civilização que se considere, pois qualquer definição de cultura pressupõe a sociedade humana. Língua e sociedade estão assim, desde sempre, intrinsecamente ligadas. E não se trata de exagero 27
quando se diz que uma língua tem o poder de moldar ou informar a visão de mundo de seus falantes, conferindo identidade própria ao país onde é fluente. Hannah Arendt conta que, depois da guerra hitlerista, quando voltou à Alemanha pela primeira vez (após um longo exílio motivado pela perseguição nazista aos judeus), sentiu um prazer indescritível ao ouvir sua língua materna falada naturalmente pelo povo nas ruas. A filósofa política, que sempre se recusou a perder sua própria língua, considera que ―há uma diferença incrível entre a língua materna e qualquer outra língua‖. E para ela, isso se resum e de uma maneira simples, como explica: ―sei de cor, em alemão, um bom número de poemas alemães, que de algum modo estão presentes no mais fundo de minha memória‖. A língua falada num país é certamente o fator mais importante de coesão nacional. Desde a antiguidade, as nações dominadoras tratavam de impor seu idioma como signo de supremacia cultural aos povos colonizados. E aos próprios romanos, Cícero, com certo pedantismo retórico, ensinava: non enim tam praeclarum est scire latine quam turpe nescire (―nem é tão notável saber latim, mas não sabê- lo é vergonhoso‖). Ainda assim, arruinou -se a língua do Lácio. Já não se fala mais o latim de Roma – a língua materna dos antigos romanos – há pelo menos mil e quinhentos anos. Desfeita a relação visceral entre a cultura e sua expressão maior, os ―latins‖ falados desde então, a despeito da justificativa histórica que se lhes deva reconhecer, não são, na verdade, mais do que uma língua do pê de gente letrada, um código erudito e puramente intelectual. Após a fragmentação linguística do império romano, ninguém mais pôde lembrar de cor canções da infância arraigadas naturalmente na memória – canções de ninar, talvez, entoadas com doçura pela voz da própria mãe. Línguas também se perdem. E sem elas valores culturais e conhecimentos étnicos específicos tornam-se irrecuperáveis. Por isso a própria UNESCO mantém, desde 1993, o ―livro vermelho das línguas em perigo de extinção‖, projeto que procura coletar informação atualizada sobre línguas que correm risco de desaparecer e promove pesquisas que possam colaborar com a manutenção e perpetuação da diversidade lingüística no mundo, salvaguardando sempre a língua materna, em todos os níveis de educação. A garantia das condições socioambientais necessárias à produção, desenvolvimento e transmissão de bens culturais de natureza imaterial passa necessariamente pela preservação das línguas nacionais. Por isso, cada língua que se perde no mundo empobrece o patrimônio cultural comum construído ao longo dos séculos pela humanidade. Parece significativo que no mesmo mês em que se comemora o dia das mães, tenhamos também reservado no calendário um dia para celebrar a língua nacional. Que a nossa boa e jovem língua portuguesa possa nos embalar amorosamente através das gerações! i. Status Epistêmico
A língua e o povo Parkatêjê – Um estudo de Caso Marília de Nazaré FERREIRA - UFPA – Universidade Federal do Pará. Faculdade de Letras – Instituto de Letras e Comunicação. Belém – PA − Brasil. 66.075-001 −
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O povo parkatêjê, também conhecido na literatura especializada como Gavião do Pará, vive em uma aldeia localizada no município de Bom Jesus do Tocantins, às proximidades de Marabá, e soma aproximadamente duzentas e cinquenta pessoas. Pouco mais de 10% dessa população ainda fala a língua que pode ser considerada como em perigo de extinção, uma vez que as crianças não mais aprendem parkatêjê como sua primeira língua. 28
A língua Parkatêjê pertence ao agrupamento linguístico Macro-Jê. Trata-se de uma língua cujo sistema fonético-fonológico é característico de línguas Jê, considerando-se que as vogais predominam sobre as consoantes. Dentre outras características também partilhadas com outras línguas geneticamente semelhantes, tem-se o fato de o Parkatêjê ser uma língua posposicional, em que a ordem básica dos constituintes em orações independentes é predominantemente SujeitoObjeto-Verbo. O genitivo precede o nome. Há a marcante ocorrência dos prefixos relacionais, traços comuns também a línguas Tupi e Caríb. Os verbos em Parkatêjê ocorrem prototipicamente como núcleos de predicados e estão associados às categorias de tempo, aspecto e modo, codificadas por partículas que ocupam posições determinadas na sentença. Há classes verbais na língua, dentre as quais a dos verbos ativos e estativos, que estão relacionadas ao sistema de marcação de caso que conjuga a ocorrência da cisão do S e a ergatividade cindida, cujo condicionamento são as categorias de tempo, aspecto e modo. A língua opera, então, numa base Nominativa-Acusativa, se as orações estão no tempo não passado, e em uma base Ergativa-Absolutiva, quando no tempo passado e aspecto perfectivo, em conformidade com as observações de Dixon (1994). A Evidencialidade Em todas as línguas humanas, há formas para se indicar a origem da informação, o que pode ser manifesto gramatical ou lexicalmente. Todas as línguas humanas, nesse sentido, apresentam formas para apontar ou ocultar a fonte da informação em uma determinada cadeia de elocução, o que é uma estratégia comunicativa fundamental para os falantes. Algumas línguas apresentam sistemas evidenciais elaborados em que há marcas linguísticas específicas as quais são utilizadas para codificar as diferentes experiências cognitivas constitutivas de um dado conteúdo proposicional. Outras, não, uma vez que nem todas as línguas têm a evidencialidade como uma categoria gramatical, o que aponta para a necessidade de se delimitar os domínios categoriais da evidencialidade, questão fora do escopo do presente trabalho. Conforme Jacobsen (1986), citado por Dendale e Tasmowski (2001), o termo evidencialidade foi primeiramente visto em uma compilação feita por Franz Boas em 1947. Todavia Jakobson (1957), com a publicação do livro Shifters, verbal categories and the Russian verbs, popularizou o uso do termo Evidencial como rótulo para uma categoria verbal que sinalizava acerca da fonte da informação sobre a qual a afirmação do falante estava baseada. Antes disso, no entanto, Boas (1911) e Sapir (1921), segundo Dendale e Tasmowski (2001), já aceitavam a importância do domínio semântico da evidencialidade centrado na fonte da informação ou no conhecimento do falante. De lá para cá, as referências feitas à fonte de informação são vinculadas a atitudes sobre o status epistêmico da informação, uma vez que, de acordo com Dendale e Tasmowski (2001), os marcadores linguísticos que codificam tais domínios semânticos são os mesmos geralmente. De acordo com Aikhenvald e Dixon (2001), a evidencialidade é uma categoria gramatical obrigatória cujo primeiro significado é a fonte de informação. Segundo a terminologia de Chafe (1986), em seu sentido amplo, essa noção estaria relacionada à fonte da informação quanto à questão de se o falante realmente viu aquilo sobre o que ele está falando, ou se ele apenas tece conjecturas sobre a ocorrência de um dado evento baseado em alguma evidência, ou ainda se alguém lhe contou um determinado fato, ou se ele apenas ouviu falar sobre tal fato. Aikhenvald e Dixon (2001) afirmam que todas as línguas têm algum mecanismo para expressar a fonte de informação, muito embora nem todas as línguas tenham a evidencialidade como uma categoria gramatical. Línguas como o inglês, o japonês e o português utilizam significados lexicais para especificar opcionalmente a fonte da informação. 29
Ao que tudo indica, a posição mais encontrada na literatura sobre evidencialidade e modalidade é a de inclusão, em que uma noção está atrelada à outra, ou seja, um domínio encontrase dentro do escopo semântico do outro. Há aí duas possibilidades: uma em que se admite que a função dos marcadores evidenciais é indicar o grau de compromisso do falante com a verdade da sua proposição. Tal posição é a de Chafe (1986), que concebe a modalidade epistêmica no domínio da evidencialidade. A outra posição, defendida por Palmer (1986), localiza a evidencialidade no escopo da modalidade epistêmica. Assim o grau de comprometimento do falante com aquilo que ele diz pode incluir o ―ouvir dizer‖, ou discurso reportado, e a inferência, ou experiência sensorial. O diagrama proposto por Willet (1986), segundo Dendale e Tawmoski (2001), ilustra essas noções com muita propriedade e traduz, com singularidade, o sistema evidencial da língua parkatêjê, que apresenta termos específicos para marcar os tipos de evidência. Visual
Direta
Atestada
Auditiva Outros Sentidos
Tipos de Evidência
2ª Mão Reportada Indireta
3ª Mão Folclore Resultados
Inferida Raciocínios Esquema tipológico de evidenciais proposto por Willet (1986), segundo Dendale e Tawmoski (2001).
Perguntas: 1. Qual o valor do status epistêmico da informação para a comunicação linguísticocultural entre o povo? 2. Qual a relevância do status epistêmico da informação para a comunicação missionária do Evangelho? 30
5. Índole Relacional a. Sagrado X Profano – Dualistas X Unitaristas
―Segundo a tradição mesopotâmica, o homem teria sido formado no "umbigo da Terra", em uzu (carne), sar (união), ki (lugar, terra), onde também se localiza Dur-an-ki, a "União entre o Céu e a Terra". Ormazd cria o touro primordial Evagdath, e o homem primordial, Gajomard, no centro das Terras.
Naturalmente, o Paraíso, onde Adão foi criado a partir do barro, encontra-se localizado no centro do Cosmo. O Paraíso era o umbigo da Terra, e, segundo uma tradição síria, teria sido estabelecido numa montanha mais alta do que todas as outras. Conforme o Livro da Caverna dos Tesouros, de autoria síria, Adão teria sido criado no centro da Terra, exatamente no mesmo lugar onde a Cruz de Cristo seria levantada mais tarde. As mesmas tradições foram preservadas pelo judaísmo. O apocalipse judeu e uma midrash afirmam que Adão teria sido formado em Jerusalém. Com o enterro de Adão precisamente no mesmo lugar onde teria sido criado, isto é, no centro do mundo, sobre o Gólgota, ele também poderia — como já vimos antes — ser redimido mais tarde pelo sangue do Salvador . (Ver Apócrifos — Os Proscritos da Bíblia II, Ed. Mercuryo, SP, 1992 (N. 8).) O Centro é o âmbito do sagrado, a zona da realidade absoluta. De modo semelhante, todos os demais simbolos da realidade absoluta (árvores da vida e imortalidade, fontes da juventude, etc.) encontram-se também situados em lugares centrais. A estrada que leva para o centro é um "caminho difícil" (duro hana), e isso pode ser verificado em todos os níveis da realidade: difíceis convoluções de um templo (como em Borobudur); peregrinação a lugares sagrados (Meca, Hardwar, Jerusalém); viagens cheias de perigos, realizadas por expedições heróicas, em busca do Velo de Ouro, das Maçãs Douradas, da Erva da Vida; desespero dentro de labirintos; dificuldades daquele que procura pelo caminho em direção a seu ego, ao "centro" do seu ser, e assim por diante. A estrada é árdua, repleta de perigos, porque, na verdade, representa um ritual de passagem do âmbito profano para o sagrado, do efêmero e ilusório para a realidade e a eternidade, da morte para a vida, do homem para a divindade. Chegar ao centro equivale a uma consagração, uma iniciação; a existência profana e ilusória de ontem dá lugar a uma nova, a uma vida que é real, duradoura, eficiente. Para garantir a realidade e a durabilidade de uma construção, existe uma repetição do ato divino da construção perfeita: a Criação dos mundos e do homem. Como primeiro passo, a "realidade" do lugar é garantida por intermédio da consagração do terreno, isto é, por sua transformação em um Centro; então, a validade do ato de construção é confirmada pela repetição do sacrifício divino. 31
Naturalmente, a consagração do Centro ocorre num espaço de qualidade diferente do espaço profano. Por meio do paradoxo do ritual, cada espaço consagrado coincide com o centro do mundo, da mesma forma que a hora de qualquer ritual coincide com o momento mítico do "princípio". Através da repetição do ato cosmogônico, o momento concreto, no qual a construção tem lugar, é projetado para o tempo mítico, in illo tempore, quando ocorreu a fundação do mundo. Assim, a realidade e a durabilidade de uma construção ficam garantidas, não apenas pela transformação do espaço profano em espaço transcendental (o Centro), mas também pela transformação do tempo concreto em tempo mítico.‖xxvi Eliade defende que na visão dos povos ancestrais o dualismo entre sagrado e profano não existia, ou melhor, o assim chamado ―profano‖ não existia na verdade, já que não havia separação entre o momento e o lugar sagrado e o não sagrado. A presença e a atuação do sagrado, do espiritual, do transcendente, não se restringem a um local específico nem a um tempo específico. Falemos sobre as idéias: As idéias fenomenológicas, de forma geral, são naturalmente manifestas em vários graus, por exemplo, de sagrado e profano, que precisam ser categorizados. Não precisamos ir muito longe para darmos exemplos disto. Em nossas igrejas facilmente percebemos, ao olharmos deste ponto de vista, que no fundo nossas maneiras de agir demonstram graus de santidade (sagrado e profano) em relação a área geográfica do templo. Em alguns templos mulheres que usam calças compridas podem estar presentes e participar do culto na bancada, porém lhe é exigido uma roupagem diferente (talvez vestido ou saia) para que se apresente à frente da comunidade. A roupagem do líder ou pastor é distinta de dia a dia, digamos, do culto da quarta feira a noite, em que lhe é permitido uma camisa social, para o culto de domingo a noite em que lhe é exigido terno completo. Pense... 1. Como a nossa visão dualista, ocidental (izada), influencia nossas práticas de vida cristã? 2. Como a nossa visão não integral a cerca do sagrado e profano influencia nossas práticas missionárias entre povos tradicionais animistas?
b. Padrão O.E.C.R. X Padrão O.E.C.A.R (Ouvir. Entender. Crer. Relacionar – Ouvir. Entender. Crer. Apaziguar. Repetir ). Os dilemas da evangelização: Nóbrega e as políticas jesuíticas no Brasil do século XVI - Alfredo Cordiviola (Professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco, em Recife, Brasil)
O impacto criado pelas realidades americanas muda, a partir do final do século XV, o devir universal, e obriga o homem europeu a repensar sua posição na história e no mundo. É esse o momento crucial do pensamento moderno, em que, como escreveu Lévi-Strauss em Tristes Trópicos, ´uma humanidade que se julgava completa e acabada recebia de repente, como uma contra-revelação, a notícia de que não estava só, era uma peça de um conjunto mais vasto, e que, para se reconhecer, devia primeiro contemplar a sua imagem irreconhecível nesse espelho que lançava seu primeiro e último reflexo´ xxvii. A América, e as heterogêneas populações que a habitavam, ofereceram ao europeu uma imagem irreconhecível de si, imagem que é considerada ora como uma versão rudimentar e inocente (como no Diário e na primeira carta de Colombo), ora como perversa e intrinsecamente 32
malvada (como nas gravuras que acompanhavam os relatos de Hans Staden), quando não é simplesmente tida como uma expressão de outra natureza, de outra condição. As grandes viagens marítimas permitiram ao europeu conhecer outros bárbaros. No Brasil, a questão da humanidade dos indígenas (ou, em outros termos, a existência ou não de alma no corpo dos indígenas) foi uma das primeiras a serem debatidas no seio da igreja. O Diálogo para a Conversão do Gentio , escrito pelo jesuíta Manuel da Nóbrega entre junho de 1556 e dezembro de 1557, postula, discute e responde perguntas como essas. xxviii Nóbrega, o fundador da política jesuítica no Brasil, chegara quase dez anos antes, em 1549 , na comitiva de Tomé de Souza, o primeiro governador-geral do Brasil. Formada por mais de mil integrantes, essa comitiva, que desembarca quase meio século depois do achamento de Cabral, afirma definitivamente a presença da coroa portuguesa em território brasileiro, e garante o papel preponderante que seria outorgado à Companhia de Jesus na evangelização das populações locais. O Diálogo apresenta dois interlocutores, o Irmão Gonçalo Alvares, e o Irmão Mateus Nogueira. Na primeira parte do diálogo, os interlocutores expõem os aspectos negativos do indígena, que dificultam ou impossibilitam a conversão. Tais aspectos conformam todo o corpo de referências e costumes sociais, políticos, psicológicos e religiosos divergentes da moral cristã, e são os inimigos a s erem vencidos com as armas da evangelização e da ―sujeição bem ordenada‖, demônios menores que juntam suas forças para impedir o avanço da Palavra. Assinalados por Serafim Leite no prefácio do Diálogo, os aspectos negativos do índio são basicamente os mesmos que Nóbrega já tinha identificado na sua Informação das terras do Brasil escrita em 1549: - a animalidade (―porque vemos que são cães em se comerem e matarem, e são porcos nos vícios e na maneira de se tratarem‖):. - A antropofagia (―são tão bestiais, que não lhes entra no coração cousa de Deus; estão tão encarniçados em matar e comer que nenhuma outra bem- aventurança sabem desejar)‖. - A nudez (―Esta terra tem mil léguas de costa toda povoada de gente que anda nua assim as mulheres como os homens). - Ausência aparente de religião (―Esta gentilidade não adora a nenhuma coisa nem conhece a Deus, só aos trovões chamam Tupana, que é como quem diz coisa divina. E assim nós não temos outro vocábulo mais conveniente para os trazer ao conhecimento de Deus que chama-lhe Pai Tupana‖. - O atavismo (―nem sei se é bom chamar -lhe corvo, pois vemos que os corvos, tomados nos ninhos, se criam e amansam e ensinam, e estes, mais esquecidos da criação que os brutos animais, e mais ingratos que os filhos das víboras que comem suas mães, nenhum respeito tem ao amor e criação que neles se faz‖ . Mas os índios são homens, continua o diálogo, mas homens simples. Homens que devem ser purificados dos seus maus costumes e instruídos nos bons, que ainda desconhecem. Nesse sentido, todos os indígenas são iguais, e é muito claro o uso do coletivo para denominá-lo s: ―gentios‖, sinônimo de bárbaro, selvagem, não civilizado, infiel, pagão, idólatra. Exprimem uma indiferenciada massa de indivíduos, sob a qual são homogeneizadas e apagadas as especificidades raciais e culturais. Mas, se todos os indígenas são iguais quanto a sua natural simplicidade, todavia há entre eles alguns mais simples do que outros. Esses são os meninos. Os meninos, as crianças, são os alunos prediletos dos jesuít as. ―Imagem‖, como diz Baeta Neves (15), ―do indígena que está na infância da humanidade‖ que mora nos novos mundos que são a ―infância do mundo‖. No método jesuítico, os meninos são transformados no meio mais apto para atingir os adultos. Através da educação, os filhos passam a ser os porta-vozes da doutrina ante seus pais. Como são mais jovens, não 33
apresentam tantas dificuldades para serem convertidos. Neles a conversão perdura, e o processo evangelizador não e interrompido. Crianças como modelo, como exemplo a ser imitado. Nóbrega escreve: ―Principalmente, pretendemos ensinar bem os moços, porque estes bem doutrinados e acostumados em virtude, serão firmes e constantes os quais seus pais deixam ensinar e folgam com isso‖ . A inconstância, que era uma das características que mais dificultavam a conversão do indígena, estaria ausente nos meninos. Eles são ―firmes e constantes‖, porque estão ―bem doutrinados e acostumados em virtude‖. Veja ainda: ―A gente destas terras é a mais bruta, a mais ingrata, a mais
inconstante, a mais avessa, a mais trabalhosa de ensinar de quantas há no mundo. Outros gentios são incrédulos até crer; os brasis, ainda depois de crer, são incrédulos.‖ (Padre Antônio Vieira) ―Por fim, perceberam os jesuítas que o problema maior da falta
de fé dos índios era a falta de um poder central coercitivo a quem depositassem obediência, seja por adoração, que significa ter algo como superior, incontestável, absoluto, ou seja, a fé predispõem uma obediência, digo mais, a fé tem como essência a obediência incondicional, seja pelo temor. ―Aqui está: os selvagens não creem em nada porque não adoram nada. E não adoram nada, no fim das contas, porque obedecem a ninguém.‖ . (VIVEIRO DE CASTRO, Eduardo; A inconstância da alma selvagem; p. 216) No final, as muitas tentativas dos colonizadores e dos catequistas de ―elevar‖ a alma indígena se mostraram infrutíferas. Nem eles se sujeitaram à escravidão desejada pelos colonos, nem tampouco se enquadraram na nova religião que o cristianismo católico romano dos Jesuítas com seus dogmas, altares, santos, etc. Até hoje, o trabalho missionário entre os povos indígenas enfrenta seus reveses. Por um lado os missionários evangélicos, que não devem ser da mesma natureza daqueles antigos Jesuítas, sofrem acusações de praticar a catequese, ou seja, a imposição de dogmas religiosos. Por outro lado, cometemos de algum modo o mesmo erro duplo. Há os que veem os indígenas como iguais aos não indígenas citadinos e, assim, pretendem realizar entre eles o mesmo tipo de evangelização que realizam em suas igrejas e denominações, sem compreender a alteridade que o coração e a mente indígena representam, as quais requerem uma mensagem traduzida, contextualizada e aplicada às suas formas de compreensão. Assim, simplesmente impõem um modelo de Igreja importado (chamando isso de implantação de igreja), que não vislumbra a índole relacional diferenciada que o indígena apresenta em sua relação com o ―seu‖ sagrado e que automaticamente se torna uma barreira intransponível para a vida da igreja nativa. Mas que é isso de índole relacional? Observe os modelos abaixo e pense...
OUVIR – ENTENDER – CRER – APAZIGUAR - CONTINUAR
Enculturação, Fé (tipo A), Ritos de Apaziguamento. 34
OUVIR – ENTENDER – CRER – MUDAR
Fé (tipo C) Adoração, Louvor, Obediência - expressam relacionamento com Deus (amizade, filiação, etc.)
6. Conclusão 1. _________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ 2. _________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ 3. _________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ 4. _________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ 5. _________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________________ 35
BIBLIOGRAFIA LIDÓRIO, Ronaldo. Introdução à Antropologia Missionária, São Paulo, Vida Nova, 2011. LIDÓRIO, Ronaldo. Antropologia Missionária, São Paulo, Instituto Antropos, 2008. LOTHAR, Kaser. Diferentes culturas: Uma introdução à etnologia. Londrina: Descoberta, 2004. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. 2002. A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify NIDA, Eugene. Costumes e culturas – Uma introdução à antropologia missionária. Tradução e adaptação d Barbara Burns. São Paulo: Vida Nova, 1995. REIFLER, Hans Ulrich. Antropologia missionária para o século XXI. Londrina: Descoberta, 2003. SILVA, Cácio Evangelista da. Fenomenologia da religião: Uma abordagem antropológica com aplicabilidade missionária. Viçosa: CEM, 2004 (apostila não publicada). STOCKING, (org), 2004. ―Introdução, Os presupostos básicos da Antropologia de Boas (pp 15 -38)‖. Franz Boas, A formação da Antropologia Americana. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora UFRJ. WINTER, Ralph D. & HAWTHORNE, Steven C. Missões transculturais: Uma perspectiva cultural. São Paulo: Mundo Cristão, 1987. ELIADE, Mircea, O sagrado e o profano: A essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2001. _____. O Mito do Eterno Retorno, São Paulo, Editora Mercuryo, 1992. GEERTZ, Clifford, A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, Editora, 1989. HESSELGRAVE, David J. Plantar igrejas: Um guia para missões nacionais e transculturais. São Paulo. Edições Vida Nova, 1984. HIEBERT, Paul G. O evangelho e a diversidade das culturas. São Paulo: Vida Nova, 1999. LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. _____. Antropologia estrutural I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. _____. Antropologia estrutural II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993. _____. Tristes trópicos. São Paulo: Cia. das Letras, 1993. _____. Mito e significado. Lisboa: Edições 70, 1989.
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_____. Totemismo Hoje. Lisboa: Edições 70, 1986. _____. As estruturas elementares do parentesco: O intercâmbio restritivo. Petrópolis: Vozes, 1982. _____. Pensamento selvagem. São Paulo: Nacional, 1970.
Notas i Lidório, Antropologia Missionária, 2008, pg 21, 22 ii Laraia, Roque de Barros-
Cultura, Um conceito Antropológico.
iii Boas, Franz ;Race and Progress, Science, N.S., vol.74 (1931). iv Journal of Cultural Anthropology – AAA, Vol. 3 – 2001 v Filósofo árabe do século XIV que dissertou sobre o determinismo geográfico na distinção étnica vi Locke, John (1632-1704). Ensaio acerca do entendimento humano escrito em 1690 vii Lidório, Ronaldo Journal of Cultural Anthropology – AAA, Vol 5 – 2002 – viii Sua critica ao evolucionismo está descrita em seu artigo ―The Limitation of the Comparative Method of Anthropology‖ ix Do grego ‗Antropos‘ – homem – e ‗logia- estudo x Huntington (1915), Civilization and Climate xi American Anthropologist – Vol. XIX, 1917 xii Turgot, Jacques (1727-1781).Plano Para Dois Discursos Sobr e a História Universal. xiii Rousseau, Jean-Jacques (1712-1778) .Discurso sobre a origem e o estabelecimento da desigualdade entre os homens.1775. xiv Dicionário Online de Antropologia,Op.Cit. xv Lidório, Ronaldo- Journal of Cultural Anthropology – Artigo ―Cultural Identity‖ – 2002 xvi Boas, Franz. The value of a person lies in his Herzensbildung – University of Wisconsin Press, 1983. xvii The methods of ethnology, American Anthropologist, N.S., vol 22 (1920) xviii Boas, Franz, Antropologia Cultural, Op.Cit. xix Laraia, Roque de Barros. Cultura, um conceito antropológico.Op.Cit. xx Laraia, Roque de Barros. Cultura, um conceito antropológico.Op.Cit. xxi Geertz,Clifford, Op.Cit., pg.37 xxii Zeitouni, Rafael de Freitas no site: http://www.bio2000.hpg.ig.com.br
xxiii Charles Taber, To Understand the World, to Save the World
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