ANALISE FENOMENOLÓGICA DO MINUETO EM SOL MAIOR DE J.S.BACH H.J.Koellreutter
Escrever sobre música é extremamente difícil, porque a idéia musical como tal não pode ser descrita por palavras da linguagem comum. A idéia musical é, autônoma e não pode ser descrita pela linguagemdo dia a dia, a não ser por meio de metáforas,tropos e analogias, ou seja, por palavras tomadas de empréstimo de outras áreas. Música não "sobe" nem "desce", não "pergunta" nem "responde", não "chora" nem "ri". Música é som e só pode ser descrita, descrita, em última análise, por meio de sons, isto é, por meio de signos sonoros e musicais. A análise fenomenológica, estudo subjetivo e interpretativo de ocorrências e fenômenosmusicais,em que estes se definem como causa e efeito de sensações e emoções, é uma tentativa de penetrar no conteúdo da obra musical. É preciso levar em conta que cada analisador terá, seu proprio caminho para penetrar na essência do conteúdo da obra, deixando de ser mero ''observador" para tornar-se''participante", ou seja, co-autor da partitura. A análise fenomenológica não visa uma explicação teórica da obra, mas sim, exclusivamente, uma interpretação da mesma, apontando um único objetivo: o de vivenciar as idéias musicaise de conscientizá-las de acordo com o entendimento teórico-musical e estilístico, conforme o grau de sensibilidade de quem a analisa. Por isso, nada daquilo que neste artigo será dito deve ser considerado como definitivo e indiscutível, pois o conteúdo da mensagem musical não é absoluto. É sempre relativo a algo, à disposição de espírito do ouvinte ou apreciador, à sua cultura, à sua capacidade de percepção e ao seu posicionamento ante as coisas da música e das artes em geral. A descrição propriamente dita é indispensável, naturalmente, mas vem em segundo lugar. Trata-se, no caso da idéia musical, de uma realidade sonora, de um fenômeno que deve ser cantado, tocado ou ouvido, percebido e sentido de uma das maneiras que a análise revela. A análise fenomenológica depende de uma precisão objetiva, a mais exata possível, do texto da partitura -não se deve esquecer que objetividade é um mínimo de subjetividade!-visando, ao mesmo tempo, a interpretação subjetiva de seu conteúdo musical. A precisão da mensagem musical sem a vivência emocional do conteúdo ou a vivência emocional sem aprecisão da mensagem musical resulta sempre em uma interpretação superficial e vã. Não é verdade que uma Sonata de Mozart ou uma Sinfonia de Beethoven se dirija exclusivamente ao sentimento e se torne acessível espontaneamente através de sensações emocionais, sem esforço próprio do ouvinte. A função da arte não é sempre a de comunicar-se com o homem inculto. A obra-de-arte musical é o produto de lavor primoroso, original e criativo do artista e demanda esforços pela própria condição de existir. Somente quando chegarmos a compreender sua linguagem, suas formas e seus meios de expressão é, que será possível penetrar no conteúdo simbólico que ela, talvez, tenha tido para o seu criador e, talvez, possa ter para nós. A compreensão de uma obra-de-arte resulta de um processo de crescimento intelectual, passível de obstrução ou desobstrução, mas é e será sempre um problema nosso, do ouvinte e apreciador. A análise de uma obra musical tem dois objetivos principais : l. aprofundar-se na técnica de composição do autor (o que interessa, principalmente, aos estudiosos da composição) e 2. deduzir da análise os princípios de interpretação e a aplicação de recursos interpretativos, como sejam fraseado, articulação, dinâmica,andamento e outros, visando, em primeiro lugar, a inteligibilidade do texto musical. A primeira tarefa do intérprete é a de facilitar o "o trabalho" do ouvinte! O Minueto em Sol maior, escrito por J.S. Bach para sua esposa Anna Magdalena em 1725,consiste em duas partes. Procurando compreender, em primeiro lugar, a disposição das partes da macroforma (1) da peça, observamos que cadauma dessas partes é binária, sendo composta de dois períodos (2) (compassos 1-8, 9-16, 17-24 e 25-32), dos quais cada um, por sua vez, é subdividido em dois semi-períodos de quatro compassos, em duas proposições (3) de dois compassos e quatro motivos (4) de um compasso cada um, obedecendo ao princípio da quadratura (5) dos compassos, princípio este que caracteriza os estilos pós-bachianos, do rococó e do classicismo. A primeira proposição (comp.1-2), ou seja, a célula germinativa do Minueto, apresenta o início de um crescimento da
força melódica a qual, no ínicio do segundo compasso, sofre a interferência de outra força : o ritmo, interrompendo o movimento por grau conjunto no quinto grau do tom principal (Sol maior) e transformando o salto Ré-Sol em uma verdadeira oscilação que se remete ao Ré inicial do primeiro compasso. Dessa forma, a primeira proposição apresenta-se como ocorrência musical constante e firme, "suspensa" entre dois pilares, sugerindo um movimento pendular que tende a se repetir (prevalecendo o ritmo sobre o fluxo da força (6)melódica). Assim, surge, logo no início da peça, um elemento ordenador estável e perseverante que lembra o ornamento das artes visuais e caracteriza as formas (7) de dança e do minueto, em particular. Enquanto na antiga dança francesa pré-bachiana, gestaltes(8) como aquela formada pelos primeiros dois motivos da obra em questão, se repetem quase que sem variação, Bach submete esta primeira gestalt (primeira proposição, compasso 12) a um processo de sutil estilização (9) [EX. I]. Variando-a pela mudança de altura dos pilares, confere a ela um caráter mais dinâmico. Parece que o cunho estático dessa primeira proposição tende a transformar-se gradativamente em uma estrutura móvel de um organismo em atividade.
Ex. I -J.S.Bach,Minueto4 emSolmaior do PequenoLivro de AnnaMadalenaBach, BV/V.Anhang l14, compassos l-16 A passagem do Mi (primeira nota do compasso 3) ao Sol (primeira nota do compasso 4) estabelece relações melódicoharmônicas que conferem às quatro colcheias do primeiro motivo um outro sentido musical por torná-las mais ativas. A gestalt parece parar de oscilar e começar a crescer. Retornando, a melodia chega ao Sol, primeiro grau do tom (comp.4), fato que obriga a percepção do ouvinte a comparar, consciente ou inconscientemente, o ocorrente com o ocorrido (percepção retrospectiva e retrocausal), assim despertando nele a sensação de um crescimento direcional da melodia, no decorrer do primeiro semi-período. O movimento ascendente da força melódica do primeiro semi-período obriga o segundo ao retorno. Com a mudança de direção,a ordem rítmica rigorosa que marcou o primeiro semi-período, parece começar a dissolver-se: apoiadas por um só pilar, as colcheias começam a fluir folgadas, em um movimento de seqüências (11) descendentes, procurando chegara um estado de equilíbrio. Amortecendo no compasso 7, este movimento prepara uma nova conjuntura harmônica por meio da subdominante individual da dominante, conjuntura esta que, por um instante, causa a sensação da chegada a um termo final (semi-cadência). A voz inferior (mão esquerda) do primeiro período, contraposta à superior (mão direita) nos compassos 1-8, é, ao mesmo tempo, melodia viva, persuasiva, de autonomia expressiva e baixo-suporte, sustentante do fluxo das funções (12) harmônicas. Analisando este fato observa-se, em primeiro lugar, uma marcada independência métrica do discurso melódico das duas vozes; o fraseado da voz superior, obedecendo à ordem métrica de semínimas, difere distintamente do da voz inferior que parece "viver" através de compassos inteiros. Assim, a força melódica da voz inferior põe-se a crescer em direção à nota Dó (= subdominante = afastamento) para, finalmente, desembocar preparando a semicadência (comp.7). Esta articulação da voz inferior em duas vezes três, mais dois compassos e sua contraposição à articulação métrica da voz superior em duas vezes dois, mais quatro compassos,
causa uma conjugação polifônica, unificadora e harmoniosa, das forças rítmicas e melódicas, pois a igualdade de gestaltes separa e a desigualdade das mesmas une ! Esta autonomia da linha melódica inferior resulta também do fato de que Bach, consciente do valor qualitativo das inversões dos acordes, raramente baseia a seqüência das funções harmônicas deste trecho inicial da peça nos sons fundamentais dos acordes. Acontece, por exemplo, que o acorde de primeira inversão, portanto com a terça no baixo (comp. 6), aparenta mais leve, mais elástico, mas também mais vulnerável do que o acorde no estado fundamental, lembrando a expressividade de um bailarino dançando na ponta dos pés. O acorde de segunda inversão, portanto com a quinta no baixo ( 64) -bem diferente dos acordes em estado fundamental ou na primeira inversão- representa uma profunda interferência na função do acorde, pois este é um acorde ambivalente que, freqüentemente, permite duas interpretações quanto à sua função harmônica. Assim, o acorde de quarta e sexta do primeiro grau em Dó maior, teoricamente descrito, pode ser interpretado como tônica (T 5) ou, visto funcionalmente, como dominante (D 64), ou seja, dominante com quarta e sexta-apogiaturas (pseudo-dissonâncias), acorde este, que subentende uma resolução (6-5 /4-3) e requer uma "justificação" específica (preparação), melódica e harmônicológica, também pela interpretação. Interessante é como Bach, no decorrer do primeiro período, pondera a expressividade das inversões e das posições dos acordes, subentendidas entre as duas linhas melódicas da polifonia: assim, o acorde inicial do Minueto encontra-se, como de costume, no estado fundamental, mas -o que é importante sob o ponto de vista da expressão musical- na posição de quinta, isto é, com a quinta no soprano (T 5), posição aberta e "neutra", por assim dizer, com uma leve tendência de descer (Ré-Dó). Também o compasso 2 tem função de tônica. O acorde subentendido, no entanto, seria o de primeira inversão (I 6 ou T 3 =Si-Ré-Sol) leve, solto, suspenso sobre a terça. Esta mesma harmonia volta no compasso 4, agora porém, melodicamente defïnida pela oitava do acorde, que se encontra no soprano. A volta do acorde da tônica, através da dominante (comp. 5), no compasso 6, ocorre no estado fundamental, questionado, no entanto, pela terça no soprano, pois, o discurso do primeiro período não chegou ainda a um termo definitivo e encontra-se em desenvolvimento. Importante para a interpretação do Minueto parece-me ser a análise fenomenológica dos últimos dois compassos do primeiro período, pois o compasso 15, representando a terceira parte de uma sucessão de seqüências, desemboca, no baixo e no soprano,na tônica Sol levando a primeira parte da composição ao termo definitivo. Esta fórmula, ouvida retrocausalmente, justifica todas as ocorrências musicais precedentes e revela o sentido da cadência : II -I 65 - V 7 -I ou Sr -D64 -D7 -T (afastamento-aproximação-repouso), em realidade o ponto focal para qual o discurso melódico-harmônico inteiro se direciona desde o início da peça. Esta análiserevela um artesanato magistral, a sutileza da estruturação e a seleção criteriosa dos "tijolos" da composição, assim como a sensibilidade e inteligência de um grande compositor-arquiteto. O início do segundo período, em termos da força melódica, é idêntico ao do primeiro. Harmonicamente, no entanto, Bach altera a qualidade da harmonia de tônica : I 6-I ou T3-T em lugar de I - I6 ou T -T3, alteração esta que, musicalmente falando, parece ser causada pelo movimento de transição da voz inferior no compasso 8, sugerindo um movimento mais vivo dos baixos, remetendo-se aos últimos compassos do primeiro período e causando um adensamento melódico-rítmico que enfatiza a transformação gradativa da qualidade sonora da célula germinativa, estática e passiva, em movimento e ação [Ex. II]. O terceiro período (2ª parte) leva, intérprete e ouvinte, à vivência de uma nova ocorrência musical: o período inicia-se pela nota Si, ou seja, a terça do acorde de tônica na quinta oitava do piano, portanto com um efeito tímbrico inédito no discurso musical precedente. A força expressiva desta ocorrência musical parece transformar o motivo escalar da primeira proposição e suas variantes, sempre ascendentes ou descendentes, em um movimento de pequenas estruturas (gestaltes) de caráter circular (comps.17-19), balançantes e contra-balançantes, ocorrência inesperada que leva a uma nova região tonal: a da dominante (causa e efeito !). O fundamento tonal, aparentemente firme de Sol maior, parece rompido. A força motriz dessa ocorrência são o movimento circular e a nova sensível (Dó#), cada vez mais intensos, tendendo à nova fundamental Ré. O ritmo cria uma nova gestalt que se torna o ponto de partida no quarto período (compassos 25 e 26), gestalt tipicamente dançante que, aparentemente, faz a música estacionar. Trata-se de um efeito musical de grandiosa inspiração, que parece reprimir, por um instante, as forças melódicas, soltando-as em seguida, e enfatizando-as com maior intensidade.
Ex. II -J.S.Bach, Minueto 4 em Sol maior do Pequeno Livro de Anna Magdalena Bach, BV/V. Anhang 114, compassos1732 A interpretação deste Minueto reguer uma conscientização de todas essas ocorrências musicais,prescindindo de todo tipo de recurso interpretativo artificial como sejam crescendo e decrcscendo, certas ligaduras como, por exemplo, as que ligam as quatro colcheias do primeiro compasso à primeira nota do segundo ou a primeira à segunda nota do segundo compasso, e outros. A música deste Minueto manifesta-se, natural e espontaneamente, através da vivência espiritual e emocional da partitura e do conhecimento das leis próprias que a orientam.
NOTAS (1) MACROFORMA -Conjuntode vários movimentos ou partes que constituem um todo orgânico, o aspecto global da composição e as inter-relações entre os mesmos. MICROFORMA -Conjunto de relações entre unidades específicas da macroforma (motivos, proposições, períodos, frases, gestaltes,etc.) e seu comportamento. (2) PERÍODO -Sentença melódica e/ou rítmica, que resulta do agrupamento de diversas unidades estruturais elementares, isto é, de motivos e proposições. (3) PROPOSIÇÃO -Unidade estrutural elementar, melódica e/ou rítmica, composta de dois ou três motivos. (4) MOTIVO - Unidade estrutural elementr , melódica e/ou rítmica, com duração correspondente a duas ou três unidades de tempo. (5) QUADRATURA -Resultado do processo de organizar o discurso musical por número par de motivos, proposições e períodos (frases), todos de igual tamanho. (6) FORÇA -Faculdade de operar, de mover-se; agente motriz que desperta sensações. Ex.: força melódica, rítmica, etc.. ENERGIA -Um dos mais importantes conceitos na descrição atualizada do mundo. Dizemos que energia é um agente motriz que apresenta a capacidade de operar, demover-se, demover alguma coisa -também despertar sensações e emoções-, capacidade de realizar trabalho enfim. Energia na música pode ocorïer como energia de movimento, energia gravitacional (tonalidade), melódica, harmônica, rítmica, etc.. Energia pode ser transformada: por exemplo, energia melódica pode transformar-se em rítmica, sendo que a energia total envolvida num processo -neste caso musical- é sempre conservada. Pode transformar sua natureza de maneira mais complexa, mas dela nada se perde. (7) FORMA -E o todo que resulta da disposição e do relacionamento dos componentes e das partes, constituintes (estrutura) da composição. E o modo sob o qual a composição se manifesta, tendo como elementos básicos a repetição, o contraste e a variação. Aspecto final da estruturação. A forma define a obra musical como por exemplo: sonata, balada, rondó, etc.. (8) GESTALT (do alemão, plural= gestalten) - O termo gestalt não possui, na língua portuguesa, tradução que lhe dê sentido exato. Contudo, por aproximação, pode ser entendido como configuração: conjunto de pontos, linhas, sons ou outros signos que tendem a ser percebidos de imediato como um todo. (9) ESTILIZAÇÃO -Ato de modificar, suprimindo, substituindo e/ou acrescentando elementos para obter determinados efeitos estéticos ou estilísticos; dar estilo. (10) ESTRUTURA -1. DisposiÇão, relacionamento e ordem dos componentes e das partes constituintes da composição.
Maneira como estes elementos se dispõem e se relacionam. Neste sentido, a estrutura pode ser modal, tonal, serial, dodecafônica, etc.. 2. Abreviação do termo unidade estrutural. (11) SEQÜÊNCIA -Reprodução subseqüente de um motivo melódico, rítmico ou harmônico, curto ou longo, ou diferentes graus da escala. (12) FUNÇÃO -Relação de uma parte com o todo. Grandeza suscetível de variação, cujo valor depende do valor de uma outra. Na harmonia, função é apropriedade de um determinado acorde, cujo valor expressivo depende da relação com os demais acordes da estrutura harmônica. Hans-Joachim Koellreutter é músico pela Escola Estadual de Berlim e pelo Conservatório de Música deGenebra, onde foi aluno de Kurt Thomas e Hermann Scheichen, entne outros. Fundou e dirigiu a Escola Livre de Música de São Paulo, a Escola de Música da Universidade Federal da Bahia e a Escola de Música Ocidental de Nova Delhi. Dirigiu o Departamento de Programação Internacional do Instituto Goethe de, Munique,os institutos culturais da República Federal da Alemanha de Nova Delhi, Goethe de Tóquio e do Rio de Janeiro. Atualmente é professor-visitante do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP). voltar
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