OLAVO DE CARVALHO
Visões de
Descartes Entre o Gênio Mau e o Espírito da Verdade
En mi soledad he visto cosas muy claras que no son verdad.
ANTONIO MACHADO
SUMÁRIO
Capa Folha de Rosto Epígrafe Intr odução e agradecimentos Parte 1 – O enigma Descar tes I . O eu pensante e a consciência II. A psicologia da dúvida Parte 2 – Consciência e estranhamento III. Revisão do itinerário IV. Passagem a um novo enfoque V. A condição de possibilidade da dúvida cartesiana: o dinamismo antivital VI. Uma falsa explicação: o desejo de conhecimento VII. É natural saber geralmente a verdade ou é natural geralmente errar? VIII. Fenomenologia do estranhamento (1) – Precauções de método IX. Fenomenologia do estranhamento (2) – Estranhar e assumir X. Reflexão com pleta e dúvida cartesiana XI. No fundo do poço XII. Mais problemas XIII. A segunda morte Parte 3 – Conclusões e acréscimos XIV. Os três sonhos XV. Descartes e Husserl Apêndice: nas origens da burrice ocidental Créditos Sobre a Obra
I NTRODUÇÃO E AGRADECIMENTOS
A
LINHAVADO ÀS PRESSAS com transcrições de aulas e outros fragmentos que fui espalhando entre
meus alunos ao longo dos anos, este livro não é decerto o primor de exposição ordenada que eu desejaria ter feito dele se me sobrasse tempo. Isso não o impede de conter o essencial do que andei ensinando sobre a filosofia de René Descartes segundo um método que absorvi principalmente do Platão de Paul Friedländer.[ 1 ] Esse método envolve a convicção de que a filosofia não nasce do simples gosto pelo raciocínio abstrato, mas do impulso urgente e prof undo de apreender e expressar, na medida das possibilidades individuais, o sentido universal da experiência acessível. Retornar das “idéias” às experiências reais que as originaram não é, portanto, uma tentativa de “explicar psicologicamente” uma filosofia, mas simplesmente de esclarecer o sentido efetivo que essas idéias tinham na consciência pessoal do filósofo que as pensou, para além ou por baixo do sentido formal e dicionarizado que adquiriram depois na tradição filosófica. Quando sei, por exemplo, que Hegel via em Napoleão Bonaparte a encarnação viva da “Alma do Mundo”, entendo mais concretamente o que ele queria dizer ao falar da “auto-realização de Deus na História”. Quando sei que Maquiavel apostava quase sempre no partido perdedor, entendo que sua visão amoral dos jogos de poder não era o resultado de uma fria observação científica, como tantos pretenderam, e sim uma idealização poética do mal.[ 2 ] A pura investigação psicológica de uma biografia de filósofo pode levar a compreender a sua filosofia como o perfil de uma consciência individual tomada como mero fato histórico, mas o método de Friedländer descortina o que essa consciência tem de universal como manifestação exemplar de altas possibilidades cognitivas humanas tal como se realizaram num indivíduo e numa situação em particular. A construção de uma filosofia assume assim a figura de um drama, não psicológico, mas cognitivo. Foi por isso que defini a filosofia como “busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa”. Acredito que esse enfoque neutraliza e supera a antinomia assim formulada por Martial Guéroult na introdução da sua monumental Histoire de l’Histoire de la Philosophie : se a filosofia consiste em verdades universais, em princípio eternas e imutáveis, como pode haver uma história das filosofias que se sucedem no tempo? A consciência individual humana, seja a do filósofo, seja a de qualquer outro, não “contém” verdades universais, apenas as reflete simbolicamente na sua forma própria e singular. A filosofia, em suma, é uma forma simbólica, como a arte, a religião ou a ciência mesma. A sucessão das filosofias, como a das experiências religiosas, dos estilos artísticos e das teorias científicas, deriva da natureza mesma do símbolo, que não se afasta do simbolizado nem o esgota jamais, devendo por isso ser sempre recomeçado de novo e de novo à medida que a passagem do tempo vai tornando opaco aquilo que na origem parecia translúcido.
A tese que exponho neste pequeno livro pode ser resumida no seguinte: O “Gênio Mau” a que se refere Descartes não é um artifício literário nem um “instrumento psicológico” (termo de Martial Guéroult) usado para dar mais credibilidade à certeza do ego cogitans, mas é o verdadeiro tema central das Meditações de filosofia primeira, a obra máxima do filósofo. O projeto de Descartes aí não é superar a mera dúvida teorética quanto à possibilidade do conhecimento, mas aplacar o temor da “morte da alma” sem recorrer à fé ou a argumentos teológicos de qualquer natureza. Três séculos depois dele, Edmund Husserl retomaria o mesmo projeto, resumindo-o como um esforço supremo para “chegar a Deus sem Deus”. Esses dois momentos da história da filosofia refletem um dos dramas mais intensos e temíveis do pensamento moderno, e só podem ser compreendidos desde o ponto de vista do drama cognitivo pessoal vivenciado pelos dois filósofos. Um estudo sobre Husserl, para o qual me exercito há vários anos, deve portanto seguir-se a este livro, mais cedo ou mais tarde, como seu complemento natural. Agradeço a Fernando Manso, a Luciane Amato, a Marcela Andrade, a Silvio Grimaldo, ao Grupo de Transcrições do Seminário de Filosofia, à minha esposa Roxane, à minha filha Leilah Maria e a todos os demais que me ajudaram a conservar os fragmentos que compõem este livro. Agradeço também ao editor César Kyn e à sua esposa Adelice pela colaboração inteligente e prestativa. Agradeço especialmente a Rodrigo Gurgel pelas importantes observações e correções que me enviou após um atento exame do texto. Richmond, VA, outubro de 2013 [ 1 ] Plato, transl. Hans Meyerhoff, 3 vols., Princeton University Press (Bollingen Series), 1958-1969. [ 2 ] Expliquei isso em Maquiavel ou A conf usão demoníaca , Campinas, Vide Editorial, 2011.
PARTE 1 - O ENIGMA DESCARTES
I
O EU PENSANTE E A CONSCIÊNCIA
C
OMO R ENÉ DESCARTES expõe o núcleo
das suas concepções filosóficas sob a forma de uma confissão autobiográfica, julguei que, ao falar dele, seria vantajoso seguir-lhe grosso modo o exemplo, apresentando aqui, em vez de um estudo formal, a evocação singela e um tanto anárquica de algumas reações que a leitura de suas Meditações de filosofia primeira despertou em mim. Digo “evocação” em vez de “narrativa” porque não as reconstituo em ordem cronológica, apenas extraio delas o essencial do que me deixaram na memória, do qual algumas partes fui expondo em fragmentos, ao longo dos tempos, em cursos, conferências e artigos; outras aparecem aqui pela primeira vez. Além das Meditações e das Objeções e respostas que a complementam, estudei também as Regras ara a direção do espírito, o Discurso do método , o Tratado das paixões e partes do Tratado do mundo. Confesso que, fora disso, não li mais nenhuma linha de autoria do filósofo, embora tenha estudado uma boa quantidade de excelentes livros a seu respeito, como os de Martial Gueroult, Alain, Henri Gouhier, Jean-Luc Marion, Maxime Leroy, Richard Watson, Lívio Teixeira, Ferdinand Alquié, John R. Cole, Geneviève Rodis-Lewis, Denis L. Rosenfield, Jorge Secada, Antonio Negri, Benjamín García-Hernández e não sei mais quantos. Meu conhecimento das partes da filosofia de Descartes que se espalham pela sua correspondência, bem como pelos seus escritos de matemática e ciências naturais, é, pois, todo de segunda mão, ainda que de boas mãos. Mas, de tudo quanto li de Descartes, nada me impressionou tanto quanto as Meditações , sem dúvida a sua obra maior. Foi delas que surgiram, no essencial, as experiências a que me refiro. À leitura das demais obras – dele ou de seus intérpretes – só recorri para me certificar de que havia compreendido o espírito das editações. Não tenho, por isso, a mais mínima presunção de expor aqui o conjunto do sistema cartesiano, nem de revelar suas estruturas essenciais, nem muito menos de apreciar com justeza a herança que deixou na História. Tudo o que desejo é expor com sinceridade as reações que as palavras do filósofo despertaram na alma de um leitor. Essas reações são estritamente pessoais, pontuais e limitadas. Não se referem ao sistema tomado na sua totalidade, mas somente a determinadas partes e aspectos que me chamaram a atenção durante a leitura e que continuaram atiçando minha curiosidade ao longo dos anos. Às vezes, mais que curiosidade: inquietação e angústia. O estudo que publiquei recentemente sobre Maquiavel[ 3 ] reconstituía a seqüência de visões diferentes que o pensamento do secretário florentino havia despertado em seus intérpretes ao longo do tempo. O título do presente livro pode sugerir algo de semelhante, mas é impressão falsa. As obras dos diversos e ilustres intérpretes do cartesianismo só são mencionadas aqui de raspão. Só dois tipos de “visões de Descartes” me interessam neste relato: as que ele teve e as que eu tive dele.
Estas últimas, não obstante a índole pessoal do testemunho, não são, é claro, um desenho arbitrário, que ouse reconstruir as opiniões do filósofo segundo uma hierarquia de interesses que é minha, não dele. Aqueles aspectos e partes que destaquei são geralmente reconhecidos como importantes e decisivos pelos mais abalizados intérpretes de Descartes, e tenho, por isso, a certeza de que o percurso do meu foco de atenção, se não cobriu o território inteiro da matéria nem pode se gabar de ter descoberto a quintessência do cartesianismo, também não se desviou para nada de marginal e irrelevante. Onde nossas perguntas diferem, deixo isso muito claro, sem aceitar passivamente a formulação que ele lhes deu nem impor a minha como se fosse a dele. [ 4 ] Não sei em que medida minhas observações podem ou não podem concorrer para uma reinterpretação da filosofia de Descartes. Não sei e, para ser franco, nem me interessa saber. Com exceção do tempo que consagrei a Aristóteles, para fins de educação e treinamento, nunca estudei uma filosofia para conhecer essa filosofia como tal, mas sim para conhecer, através dela, algo da realidade, do destino, da vida. Dito de outro modo, nunca tomei filosofia nenhuma como objeto de estudo, mas sempre como instrumento que me ajudasse a enxergar melhor o verdadeiro objeto das minhas preocupações. Segui nisso a lição de Alain, aprendida, por sua vez, do próprio Descartes, segundo a qual cada um deve filosofar não para fazer avançar uma disciplina acadêmica, mas “ pour son propre salut ”.[ 5 ] A recusa geral dessa lição, nos dias que correm, dá uma boa medida do estado de corrupção mental em que o nosso país afundou. No Brasil, por influência da “geração de predadores” a que me referi em artigo de 2011,[ 6 ] só é considerado filósofo quem se atenha aos fins, temas e métodos convencionais do ensino acadêmico cada vez mais deficiente[ 7 ] ou quem, afastando-se deles porventura, o faça no intuito de “transformar o mundo” num sentido que tem de ser, é claro, o desejado pelos professores. Aqueles que filosofam como Alain, como Sócrates, como Agostinho ou – mais ainda – como Descartes são rejeitados para as trevas exteriores do “beletrismo”, do “amadorismo” ou do “ensaísmo”, ainda que revelem, como era o caso do saudoso Mário Ferreira dos Santos (não pretendo que seja o meu), um domínio das disciplinas acadêmicas muito superior ao dos seus concorrentes “profissionais”. Nesse quadro paradoxal, os filósofos de verdade – um Miguel Reale, um Vilém Flusser e os dois Ferreiras, Mário e Vicente – são oficialmente não-filósofos; e, por sua vez, os não-filósofos, os burocratas da filosofia, são chamados de filósofos precisamente porque não têm filosofia nenhuma e sim, em vez disso, a licença estatal para ensiná-la. A comicidade desse estado de coisas não escapou a alguns visitantes estrangeiros, Enzo Paci e Luigi Bagolini entre outros, como não escapará a ninguém que medite a advertência de Nicolás Gómez Dávila: “Quanto maior seja a importância de uma atividade intelectual, mais ridícula é a pretensão de avalizar a competência de quem a exerce. Um diploma de dentista é respeitável, mas um de filósofo é grotesco”. Este livro arrisca-se, portanto, a ser expelido do campo da filosofia brasileira precisamente por não ser mero trabalho escolar e sim uma obra de filosofia stricto sensu, que, se assume como ponto de partida a obra de um filósofo ilustre, não a toma como objeto de estudo e sim como ocasião e estímulo para descobrir algo que não está nela nem poderia estar.[ 8 ] Como eu ia dizendo, o interesse que me moveu a ler Descartes não foi o desejo de conhecer “a filosofia de Descartes”, mas sim o de obter dela alguma ajuda para enfrentar três problemas que me
pareciam importantes e que, em parte, mas só em parte, coincidiam com aqueles que ela suscitava: Qual o caminho que leva ao conhecimento certo, adequado à ordem do ser? Quais as certezas fundamentais (supondo-se que existam e sejam mais de uma) das quais todas as outras dependem? Qual o critério da verdade e do erro? Dessas três perguntas, como vim a reconhecer depois, só a primeira tinha na minha mente um sentido parecido ao que tinha para Descartes. Na segunda, nunca esperei, como ele, que as certezas derivadas e secundárias tivessem com as fundamentais a relação simples que, na ordem dedutiva, as conseqüências têm com as premissas. De maneira inicialmente espontânea e nebulosa, que pouco a pouco foi depois se precisando, o que eu entendia como certezas fundamentais não eram proposições universais indubitáveis, das quais tudo o mais pudesse ser deduzido. Eram apenas princípios ordenadores que dessem sentido ao conjunto da experiência acessível (acessível a mim, é claro), ainda que não podendo, ou nem sempre podendo, fundamentar cada parte logicamente, como Descartes esperava que os seus princípios fizessem. Quanto ao critério da verdade e do erro, que Descartes acreditou encontrar nas “idéias claras e distintas” e na certeza que o eu pensante tem de si mesmo, foi problema que desde o início me pareceu infinitamente mais complicado e temível. Desde logo, eu estava advertido do perigo pelos versos de Antonio Machado que aqui coloquei em epígrafe. Aos quinze anos de idade, acreditei ter descoberto a Lei dos Três Estados, que brilhava ante meus olhos com clareza fulgurante. Pouco depois fiquei sabendo que era de Comte e estava errada. A mais clara e distinta das idéias, mesmo quando verdadeira, pode ser apenas uma verdade lógico-formal, desligada de todo conteúdo determinado, portanto apenas uma verdade possível, hipotética, como todas as verdades da lógica. Digo, por exemplo, que todos os tiranos que não foram maus foram bons ou neutros de algum modo. É uma verdade lógica indiscutível, de vez que entre o bom, o mau e as várias gradações possíveis do mezzo a mezzo, não há outra alternativa. Mas, quando vasculho a História em busca de algum tirano que não tenha sido mau, não encontro nenhum. Aquela proposição, portanto, só é verdadeira no terreno puramente lógico, mas a lógica só investiga as relações entre proposições, não entre estas e “a realidade” (a não ser que você reduza a realidade a um conceito lógico, mas neste caso ela já não será a realidade e sim apenas um conceito). Em segundo lugar, Descartes, que professava colocar tudo em dúvida, jamais mostrou duvidar por um só instante do seu desejo sincero e honesto de descobrir a verdade. Ele proclama esse desejo com uma certeza absoluta e faz dele, explicitamente, o motor da sua vida. Em que medida poderia eu fazer o mesmo? Que garantias tinha eu de que queria a verdade e não somente alguma ilusão lisonjeira, “clara e distinta”? O critério da verdade e do erro, que para Descartes se resumia num simples método lógico de investigação, tinha para mim, antes disso, uma dimensão psicológica e moral aterradora. Se logicamente a verdade é apenas o oposto do erro ou da falsidade e tudo pode se resolver com tabelas de proposições verdadeiras e falsas, na alma humana ela tem um inimigo mais poderoso, carregado de uma energia que a impassividade fria e cristalina da lógica desconhece: a mentira. Pior que todas, a mentira interior, a camuflagem que estendemos sobre aquilo que sabemos, para negá-lo ou fazê-lo parecer outra coisa. Isso não é um obstáculo sobre o qual se possa saltar tranqüilamente, presumindo que tudo o que se interpõe entre nós e a verdade seja uma dificuldade de
método. Descartes, aparentando ousadia, chega a levantar a hipótese do engano universal, mas, nesse cenário, ele desempenha apenas o papel da vítima inocente, ludibriada pela força superior do Gênio Mau. Quando cheguei a essa parte das Meditações, a coisa me pareceu de uma ingenuidade surpreendente, até mesmo com uma ponta de vaidade psicótica. Por mais que tentasse me achar lindo, eu não conseguia me imaginar como uma ilha de sinceridade cercada de mentiras e fingimentos por todos os lados. Bem ao contrário, eu me conhecia como autor de mentiras interiores bem cabeludas, às vezes escondendo-me de mim mesmo como um rato na toca. Ninguém nasce depois de Freud e Nietzsche impunemente. Para me enxergar como pura vítima de um Gênio Mau eu teria de fazer abstração de um fato inegável: o fato de que muitas vezes eu mesmo tinha sido meu próprio gênio mau, empenhado em enganar-me com uma persistência e uma inventividade admiráveis. A hipótese de que “tudo” no mundo fosse uma encenação, um teatro macabro concebido para me enganar, colocava-me automaticamente fora e acima do cenário falsificado, na condição não só de vítima inocente, mas de testemunha acusadora do engodo universal. Mas como poderia eu me colocar nessa posição, desempenhar esse papel, sem, no mesmo ato, me instaurar a mim mesmo como o único ponto de veracidade brilhando solitário no oceano infinito e tenebroso dos enganos? Com toda a evidência, a proclamação do cogito, a afirmação do eu pensante como fundamento único do conhecimento da verdade já estava dada desde o início como premissa oculta da hipótese do Gênio Mau, que sem ela não poderia ser nem mesmo formulada. Mas, esperem um pouco: mais tarde não será precisamente da certeza do cogito que Descartes vai obter a refutação do império do Gênio Mau? Como pode a premissa que fundamenta uma hipótese constituir também a base da sua radical impugnação? A experiência de qualquer pessoa adulta que se conheça um pouco mostra que não existem limites precisos entre a autonomia interior da consciência individual e a ação do Gênio Mau: elas se mesclam e se confundem. A fé ingênua – autêntica ou fingida – que Descartes deposita na sinceridade da sua busca da verdade separa em compartimentos estanques o eu pensante e o Gênio Mau, lançando unilateralmente sobre este as culpas que o eu compartilha, e já fundando como premissa certa e inabalável, muito antes da afirmação do cogito ergo sum, o eu como morada única da verdade universal, restando-lhe apenas, para consumação desse destino excelso, encontrar as regras do método apropriado. Todo o universo de dúvidas que Descartes dizia atormentá-lo permanecia exterior ao seu eu pensante, não o comprometia em absolutamente nada e por isso podia ser facilmente neutralizado por um “método”. E este, por sua vez, não fazia senão reafirmar retroativamente a premissa da incorruptibilidade do eu pensante, postulada entre sombras desde o início. Conhecendo-me como me conhecia, eu não podia embarcar nesse jogo. O método de que eu precisava não era aquela máquina bem azeitada que um eu soberano manejava com a segurança e a desenvoltura de quem já se imagina, desde o início, detentor ou merecedor privilegiado da verdade fundamental. Ao contrário: o que eu precisava não era um “método”: era uma luta incessante contra a mentira interior que, com ou sem a ajuda de um Gênio Mau, fazia de mim um inimigo da verdade no instante mesmo em que eu proclamava buscá-la, ao ponto de me fazer suspeitar, nos piores momentos, que eu próprio era o gênio mau empenhado em tudo falsificar. Haveria um “método” que me garantisse para sempre contra mim mesmo? Para isso seria preciso que eu me congelasse num
circuito repetitivo, acionando sempre os mesmos botões do método para neutralizar sempre as mesmas mentiras. Mas já confessei que minhas mentiras interiores, como as de todo mundo, eram inventivas, auto-renováveis sob formas diversas e pretextos imprevisíveis. O mais incômodo de tudo era que Descartes julgava poder-se precaver contra o engano mediante o expediente de colocar tudo em dúvida até obter provas racionalmente inabaláveis. Mas como poderia a dúvida defender-me contra o auto-engano, se uma das minhas modalidades prediletas de auto-engano – como, aliás, as do restante da espécie humana – consistia precisamente em diluir numa turva poção de dúvidas aquilo que eu sabia perfeitamente bem? João Calvino, que era um sujeito execrável mas fino psicólogo, definiu a consciência como aquilo que, dentro de nós, inibe a tentação de negar o que sabemos. O que eu precisava não era um método lógico que permitisse ao meu eu pensante impugnar umas proposições e provar outras, mas algo, uma força, um elemento, um impulso, um x, enfim, que impedisse o meu eu pensante de sufocar a voz da minha consciência mais profunda. O que eu precisava era o contrário do que Descartes buscava: não um método pelo qual o meu eu pensante afirmasse a sua soberania, mas uma disciplina ativa que subjugasse o pensamento às exigências da consciência. Essa consciência, por sua vez, não era um ponto luminoso estável e fixo, mas uma vaga luminosidade, trêmula e intermitente, que só brilhava nos instantes fugazes em que obtinha alguma vitória, temporária e incerta, sobre as trevas revoltas que a cercavam, ora impetuosas e atemorizantes, ora entorpecentes e sedutoras. Somadas e articuladas, a consciência e as trevas constituíam a minha “alma” ou pessoa, e nesse conjunto o eu pensante não era senão um servidor da consciência, mas servidor inconstante e rebelde, traiçoeiro no mais alto grau, que volta e meia proclamava sua independência e se voltava contra a proprietária, adornando a mentira com as pompas da certeza racional ou camuflando-a sob o prestígio intelectual da dúvida cartesiana. Das “paixões da alma”, que segundo Descartes o eu pensante deve esclarecer e domar, nenhuma era mais poderosa e ameaçadora do que o próprio eu pensante. Que arrebatamento lúbrico, que acesso de temor, que ciúme doido, que explosão de cólera se compara, em sua força destrutiva, ao impulso raciocinante quando destravado de freios morais, quando livre de obstáculos sentimentais como a piedade, a compaixão, o amor ao próximo, a humildade, o medo de desagradar a Deus, isto para não mencionar a simples modéstia e um pouco de senso estético? Em poucos meses, o culto da razão, na França, matou dez vezes mais gente do que a Inquisição Espanhola matara em quatro séculos. As ideologias mortíferas que fizeram do genocídio a prática habitual de muitos governos conquistaram os povos na base do apelo emocional, é certo, mas não puderam fazê-lo antes de ganhar a adesão de hordas inteiras de intelectuais de primeiro plano, graças ao prestígio científico-racional das noções que as fundamentavam. É fácil mas inútil alegar que se tratava de “pseudociência” e não de ciência. Mesmo supondo-se que a distinção entre as duas seja em todos os casos coisa simples e improblemática, que não o é de maneira alguma, o fascínio da pseudociência vem da mesma fonte que o da ciência genuína: tanto uma quanto a outra não apelam prioritariamente a nenhuma das paixões grosseiras da alma humana, como o desejo sexual ou a cobiça de dinheiro, mas à ambição cognoscitiva do eu pensante, ao impulso de conhecer a verdade e
através dela controlar, se não o universo físico, ao menos as massas de ingênuos que vivem na ilusão. O dito de Francis Bacon, “saber é poder”, tornou-se a máxima inaugural da moderna civilização científica. E o próprio Descartes não enxerga outra virtude maior na sua filosofia do que sua capacidade de dar aos homens o poder de controlar a natureza. Entre os personagens de Dostoiévski, os loucos mais perigosos não exteriorizam a sua loucura em explosões emocionais, mas em discursos filosófico-ideológicos. Albert Camus distinguia entre os crimes de paixão e os crimes de lógica – e quem negaria que estes, mais que aqueles, espalharam violência e crueldade no mundo em doses insuportáveis? Na tragédia de Eugenio Corti, Processo e orte de Stálin, o ditador soviético, respondendo aos companheiros que lhe imputam uma lista de crimes hediondos, demonstra calmamente, metodicamente, que tudo o que fizera de mau tinha sido apenas a aplicação lógica e racional dos princípios do marxismo-leninismo. E não vejo meio de contestar a advertência de Victor Frankl: Não foram apenas alguns ministérios de Berlim que inventaram as câmaras de gás de Maidanek, Auschwitz, Treblinka: elas foram preparadas nos escritórios e salas de aula de cientistas e filósofos niilistas, entre os quais se contavam e contam alguns pensadores anglo-saxônicos laureados com o Prêmio Nobel. É que, se a vida humana não passa do insignificante produto acidental de umas moléculas de proteína, pouco importa que um psicopata seja eliminado como inútil e que ao psicopata se acrescentem mais uns quantos povos inferiores: tudo isto não é senão raciocínio lógico e conseqüente .[ 9 ]
Não, o eu pensante não é, definitivamente, a sede da consciência, no sentido que Calvino dá ao termo. Como é, precisamente, a relação entre esses dois domínios, tal como aparece nas Meditações de Descartes? [ 3 ] Maquiavel ou A conf usão demoníaca , Campinas, Vide Editorial, 2011. [ 4 ] À publicação deste livro deve seguir-se, não sei exatamente quando, a da transcrição completa das aulas do Seminário de Filosofia que dediquei a uma leitura analítica das Meditações. Nessa transcrição, as hipóteses interpretativas aqui esboçadas encontram mais ampla fundamentação textual. [ 5 ] “Les Dieux”, em Les Arts et les Dieux, Paris, Gallimard, 1958, p. 1203. [ 6 ] “Uma geração de predadores”, Diário do Comércio (São Paulo), 3 de junho de 2011, reproduzido em http://www.olavodecarvalho.org/semana/110603dc.html. [ 7 ] “Imitação subdesenvolvida de um modelo degenerado”, chamou-o Jean-Yves Bézieau. [ 8 ] “Embora tenha dedicado bons anos de minha vida ao estudo de alguns grandes autores do passado, não me considero um ‘especialista’ em nenhum deles. Acho até engraçada essa peculiar invenção brasileira: o filósofo especialista em outro filósofo. Diversamente do que cabe ao mero estudioso, erudito, professor, pesquisador ou coisa que o valha, a obrigação do filósofo é desenvolver a sua própria filosofia, não a dos outros, por ilustres e grandes que sejam. Ele pode, como aliás todos fazem, utilizar-se de elementos que aprendeu deles, mas integrando-os na estrutura do seu próprio pensamento e dando-lhes por isso, necessariamente, um sentido um tanto diverso do que tinham nos textos originais. Não há nenhuma infidelidade nisso, é apenas a obra da inteligência que vai em frente, descobrindo novas dificuldades e soluções, sem poder ater-se servilmente à letra do que foi ensinado no passado. O próprio Sto. Tomás de Aquino é às vezes um mau explicador do seu mestre, justamente nos momentos em que sua própria filosofia alcança dimensões que Aristóteles desconhecera. Pode-se duvidar da exatidão histórica do Nietzsche de Heidegger, e eu mesmo duvido; mas nem por isso o livro deixa de ser uma admirável exposição do pensamento de Heidegger” (O. de C., “Malditos farsantes”, 21 de julho de 2011, em http://www.olavodecarvalho.org/textos/110721farsantes.html). Uma vez, aliás, travei o seguinte diálogo com uma dama da sociedade: – Ouvi dizer que o senhor é filósofo! Que interessante! Especialista em quem? – Em mim mesmo, cara senhora. Os outros são apenas cultura geral. [ 9 ] Sede de sentido , trad. Henrique Elfes, São Paulo, Editora Quadrante, 1989, p. 45. Grifo meu.
II
A PSICOLOGIA DA DÚVIDA La verdad es lo que es y sigue siendo verdad aunque se piense al revés. ANTONIO MACHADO
D
ESCARTES ASSEGURA-NOS que a seqüência das Meditações que o leva do questionamento do
mundo exterior à descoberta do cogito não é apenas um esquema lógico, uma articulação hipotética de pensamentos pensáveis, mas uma experiência vivida, um relato fidedigno de pensamentos pensados. Mas vários indícios, no texto, sugerem que essa afirmação não deve ser tomada em sentido muito literal. Notei-os desde a primeira leitura, mas tive de voltar a eles muitas vezes, sem poder evitar a pergunta: até que ponto aquela narrativa correspondia adequadamente aos fatos, e a partir de que ponto ela se tornava um modelo inventado, concebido para dar ordem e sentido a experiências que na verdade teriam se passado de maneira muito mais imprecisa e nebulosa, se não totalmente diversa? Para piorar as coisas, aquela seqüência de pensamentos se apresentava como um modelo, um paradigma que deveria repetir-se de modo igual ou semelhante, com semelhantes ou iguais resultados, em todo homem que se dispusesse a reexaminar desde os fundamentos o edifício de suas crenças. Edmund Husserl, nas suas Meditações cartesianas, que levam esse título precisamente por isso, afirma que as coisas são realmente assim. Ao menos uma vez na vida, diz ele, todo pretendente a filósofo tem de fazer tábua rasa do seu edifício de crenças e, como Descartes, reconstruir tudo desde o grau zero, a autoconsciência do eu pensante. Para aprender a fazer isso, eu tinha de me imbuir profundamente da lição de Descartes antes de poder aprender a de Husserl, que a estendia e radicalizava. Uma simples releitura analítica dos textos principais do autor era desnecessária e insuficiente para isso. Desnecessária, porque nesse tipo de investigação o essencial já tinha sido feito por Martial Gueroult, que eu não tinha nem tenho a menor pretensão de superar. Insuficiente porque, se algum segredo o filósofo havia guardado, eu não poderia encontrar sinal dele nos textos se primeiro não o tivesse vislumbrado imaginariamente. E o fato é que, naquele momento, eu não vislumbrava coisíssima nenhuma. Decidi, então, começar pelo começo: reencenar na minha própria cabeça a sucessão das editações que vai da dúvida metódica à descoberta do cogito ergo sum como fundamento absoluto de toda certeza. Mas não se tratava só de repetir, pela ordem, uma série de “pensamentos”. Pensamentos supõem percepções, recordações, sentimentos, fantasias. O que eu queria não era só repetir uma seqüência de raciocínios: era reconstruir mentalmente as experiências interiores que Descartes condensara nesse raciocínio. Como uma extravagância merece outra, apelei, para isso, a um método que nenhum professor de filosofia julgaria muito respeitável, mas que me pareceu o mais adequado naquela situação: o método da “memória afetiva”, com que o grande ator russo Constantin
Stanislavski – cujas obras eu andara estudando sob a direção de Eugênio Kusnet – construía seus personagens mediante a evocação de situações da sua própria vida, análogas àquelas que ele deveria representar no palco. Esse método me pareceu ainda mais adequado porque o próprio Descartes, como acabo de dizer, assegurava que suas Meditações não eram uma construção intelectual e sim o relato de experiências vividas. Muito mais tarde, ao estudar o Platão do Paul Friedländer e as obras de Eric Voegelin, confirmei que minha decisão não era tão louca quanto parecia: com esses dois autores ilustres aprendi que a compreensão das idéias filosóficas não pode ser obtida nem só pela análise de textos, nem só pela reconstituição da atmosfera cultural donde os textos emergiram, mas exige o rastreamento meditativo das experiências reais de onde as idéias nasceram. Comecei então a reler as Meditações como se fossem uma peça de teatro, na qual eu deveria representar, por meio do método Stanislavski, o papel de René Descartes na reconstituição imaginativa das suas experiências cognitivas. Qual não foi minha surpresa ao descobrir que isso era muito mais difícil do que eu jamais poderia ter imaginado! Descartes resume tudo em umas poucas páginas, dando a impressão de que a seqüência de meditações havia fluído pela sua mente com a naturalidade da água corrente. Mas o esforço de puxar da minha memória afetiva algum análogo da dúvida metódica, do Gênio Mau e da certeza absoluta que o Eu Pensante tem de si mesmo esbarravam em tantos obstáculos e contradições, que não pude evitar a conclusão de que, enquanto relato de experiências vividas, as Meditações não eram muito confiáveis. Descartes simplesmente não podia ter vivenciado aquelas experiências exatamente como ele as narra. Que é possível duvidar das nossas sensações, das nossas imaginações e dos nossos pensamentos, é coisa que qualquer um de nós pode testemunhar. Também é possível colocar todo o orbe das nossas representações entre parênteses, reduzindo o “mundo” a uma hipótese evanescente. Mas, após ter feito essas operações, Descartes assegurava-nos ter encontrado, no fundo, a certeza da dúvida: a dúvida é um pensamento, e, no instante em que a penso, não posso duvidar de que a penso. A autoconfiança do ego pensante na sua própria solidez metafísica surgia como poderosa compensação psicológica para a perda da crença na realidade do “mundo”. Só que, tão minucioso em descrever os pensamentos que o induzem ao estado de dúvida integral, ele é estranhamente evasivo quanto a esse estado mesmo. Na verdade, ele nem mesmo o descreve: afirma apenas que ele aconteceu, e, saltando imediatamente da descrição para a dedução, passa a tirar as conseqüências lógicas que a constatação desse estado lhe impõe. Para dar alguma consistência verossímil à minha performance no papel de Descartes que pretendia representar no meu teatro interior, eu precisava portanto fazer o que ele não fizera: examinar e descrever não o mero conteúdo de algumas dúvidas em particular, mas o ato mesmo de duvidar, o estado de dúvida.[ 10 ] E aí a primeira constatação que se me impôs como inegável foi a seguinte: a dúvida não era propriamente um “estado” — uma posição estática na qual eu pudesse permanecer, como se permanece triste ou absorto, imóvel ou deitado. Era uma alternância entre um sim e um não, uma impossibilidade de deter-me num dos termos da alternativa sem que o outro viesse disputar-lhe a
primazia. Pois o sim ou o não, tão logo aceitos como definitivos, eliminariam imediatamente a dúvida, que é feita da sua coexistência antagônica e de nada mais. Mas esse antagonismo, como vim a perceber logo em seguida, não é estático: é móvel. A mente em dúvida passa incessantemente de um dos termos ao outro, sem encontrar um ponto de apoio onde possa repousar e “estar”. Só que, como cada um dos termos é a negação do outro, a mente não poderia deter-se nele sem, por um instante, negar o outro: e, precisamente nesse instante, não está em dúvida – está afirmando ou negando, afirmando uma coisa e negando a outra, ainda que não consiga perseverar na afirmação ou na negação sem que lhe ocorram mil e uma razões para abandoná-la. No instante em que nega ou afirma, a dúvida suprime-se a si mesma como dúvida, passando a argumentar em favor de uma hipótese e contra a outra, lutando para se estabilizar na afirmação ou na negação; mas fracassa, e é neste fracasso que consiste, precisamente, a dúvida. Seguia-se a conclusão fatal: é impossível uma dúvida que não se ponha em dúvida a si mesma, uma dúvida que, suspendendo a alternância, se imponha como “estado” e permaneça. Ao tomar a dúvida como um “estado”, omitindo que se tratava de uma alternância entre dois momentos antagônicos, Descartes a coisificava e fazia dela uma certeza: a famosa asserção “não posso duvidar de que duvido no instante em que duvido”, que Descartes toma como expressão da mais patente obviedade, expressava no entanto uma pura impossibilidade psicológica. Mais certo seria dizer que, ao duvidar, ponho tudo em dúvida, inclusive a dúvida mesma. A dúvida não é um estado: é uma sucessão e coexistência de estados antagônicos, é um não poder estar.[ 11 ]
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