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SUMARIO
A CRISE DE IDENTIDADE DO PROFESSOR DE PORTUGUÊS ........... 7 A CRISE DA FORMAÇÃO E DO EXERCÍCIO ....................................................... 15 A massificação e a desqualificação da relação mestre – discípulo ................ 19 A formação mimética: o aluno como mestre do professor .......................... 26 A equivocada formação teórica nos cursos de letras ............................... 27 Os equívocos da assessoria pedagógica ................................................. 29 A CRISE DA TAREFA: A APROPRIAÇÃO PRIVADA DA LÍNGUA-PADRÃO ................... 33 UMA NOVA IDENTIDADE PARA UMA NOVA TAREFA...................... 41 COMO GUIA, AS DUAS PERGUNTAS HISTÓRICAS DA LITERATURA BRASILEIRA ........ 42 Quem somos nós ?......................................................................................... 44 Em que língua dizer quem somos nós? .................................................. 47 UMA NOVA TAREFA: A DESPRIVATIZAÇÃO DA LÍNGUA ESCRITA ........................... 50 Ensinando-se português para aprender a ensinar português ................... 55 Ensinar(-se) a ler ........................................................................... 64 As duas leituras ................................................................................................ 64 Leitura e produção de sentido ........................................................................ 69 A formação do leitor e a desprivatização do sentido ................................... 71 A leitura da aula de português é a leitura da literatura brasileira ................. 77 Ensinar(-se) a escrever .................................................................... 88 Ensinar português é desprivatizar a produ ção de literatura brasileira ...... 92 Desprivatizar a produção de literatura brasileira é desprivatizar a produção de conhecimento a respeito do Brasil ..........................................
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BIBLIOGRAFIA........................................................................................ 101
A CRISE DE
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Numa tarde do breve intervalo democrático que sucedeu a ditadura Vargas,
discursava na Câmara Municipal de Jundiaí, SP, o vereador do Partido Comunista Brasileiro, Adamastor Fernandes. O Presidente da Câmara interrompia, a batidas de martelo na mesa, sua fala de estivador e corrigia-lhe, em nome das leis da língua portuguesa, impertinente e minucioso, cada erro de português. O comunista acatava, corrigia-se e recomeçava. Tinha sido sempre assim, desde seu primeiro discurso, tornados todos ininteligíveis por essas vigilantes interrupções. Retomava sua fala naquela tarde o estivador comunista: Senhor Presidente, nós vai… Atento, retumbou o martelo, que antecedia o refrão:
Excelência, esta é a casa das leis, e não posso permitir que as leis da língua portuguesa sejam nela infringidas. Chamo a atenção de Vossa Excelência, mais uma vez: não é “nós vai”; é “nós vamos”que se diz. Mais um discurso destroçado: o vereador Adamastor Fernandes passa os olhos pelo plenário, encara o Presidente da Câmara: Senhor Presidente, vocês, burguês, vocês diz “nós vamos, mas não vai; nós, comunista, nós diz “nós vai”, mas nós vamos.
Quem costumava contar esse acontecido, mote para todo tipo de reflexão sobre a linguagem, era Carlos Franchi, lingüista e professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, que o presen-
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ciou ou dele teve imediata notícia. A distância temporal e política que nos separa desse episódio não nos permite perceber o grau de rompimento promovido por essa fala desveladora do uso das leis da língua portuguesa com a finalidade de impedir a circulação das falas e das idéias e de fazer ouvir apenas a voz do discurso hegemônico. No Comício das Diretas, em abril de 1984, em Porto Alegre, quase quarenta anos e mais uma ditadura depois, uma outra lei da língua portuguesa, bem mais restritiva do que a concordância verbal, foi infringida pelo presidente do Partido dos Trabalhadores. Disse ele para dezenas de milhares de pessoas no Largo da Prefeitura e para uma cadeia de rádio algo como É bom mesmo que Figueiredo não trabalhe mais do que quatro horas por dia, senão este país estaria numa merda maior ainda. Rádios interromperam suas transmissões e pediram suas desoladas escusas aos caros ouvintes, jornais do dia seguinte manchetearam recriminações ao palavrão. No Largo, só se ouviram os aplausos com que a massa saudou a palavra que tão adequadamente expressava o sentimento coletivo. E esses aplausos deixaram bem claro o quanto já se tinha rompido o equilíbrio que autorizava o presidente da Câmara Municipal de Jundiaí a martelar os discursos da solitária voz comunista. Nesse mesmo mobilizado ano de 1984, numa assembléia de funcionários públicos federais em greve, no Plenarinho da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, falava um senhor de ar respeitável, cujo discurso solene, cheio de figuras da velha retórica, expressando sérias acusações ao governo e proclamando a inexorável vitória do movimento, impacientava a platéia, que apelava aos gritos à mesa que não mais tolerasse aquela perda de tempo. A mesa fazia esforços para assegurar-lhe e abreviar-lhe a palavra, até que o orador concluiu, sob vaias. A seguir, foi anunciado um relato do representante do Comando de Greve dos funcionários da Universidade, que, engasgado, começou a falar em voz inaudível. O plenário reclamou que falasse mais alto e, depois de duas outras tentativas mal-sucedidas, ele finalmente conseguiu dizer: Pô pessoal, é a primeira vez que eu falo pra tanta gente. Foi entusiasmadamente aplaudido e então conseguiu voz e palavras para dizer o que tinha vindo falar. Ou seja, outros eram os tempos, em que um movimento grevista ainda ilegal já encontrava guarida numa similar casa das leis, onde 8
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a lei da língua portuguesa também era outra: tratar do assunto que nos diz respeito à revelia das leis da língua portuguesa. Esclarece Sírio Possenti em Discurso, estilo, subjetividade (p. 49): Deve-se conceber a atividade do falante não como atividade de apropriação porque, a partir deste conceito, fica excluído o fato de que o locutor age também “sobre” a língua já que põe em evidência apenas a ação entre e sobre os interlocutores através da língua … não se trata de apropriação, através de um aparelho de enunciação, mas de constituição, em qualquer instância de enunciados. O termo apropriação implica apenas uma atividade com a língua, e o que se quer marcar aqui como distintivo, com o conceito de constituição, é que esta atividade é, sim, realizada com a língua, mas é realizada também em relação à língua, sobre a língua. Quer-se mais, marcar a simultaneidade das duas atividades.
Agir sobre os interlocutores foi o que fizeram o vereador Adamastor Fernandes, ao explicitar a diferença entre quem vai e quem fica; Lula, ao pronunciar o impronunciável, só por isso até então impronunciado; o representante dos funcionários da Universidade, ao enunciar uma dificuldade comum, a ser superada conjuntamente por ele e por seus interlocutores. Agiram sobre a língua: o vereador comunista ao denunciar que, contrariamente ao que pretendia o presidente da Câmara, nós vai, tanto quanto nós vamos, atribui o presente do indicativo do verbo ir à primeira pessoa do plural, mas que nós vamos, na fala do presidente da Câmara, significava o contrário tanto de nós vai quanto de nós vamos; Lula, ao deixar bem claro quando e como o impronunciável precisa ser pronunciado; e o porta-voz engasgado, ao incorporar o engasgo à elocução pública. Já a fala do presidente da Câmara legitimava-se numa muito antiga atitude sobre a língua: a língua que ele foi capaz de aprender como correta é a língua, a única, e a ela — e aos valores que ela expressa — todos devem aderir, e diante dela qualquer outra deve calar-se1. Só naquela língua podem constituir-se os discursos públicos, só nela podem circular os sentidos próprios do 1. Estamos num a casa legislativa, onde todos deveriam falar a norma culta, assim definida por Faraco (Bagno, 2002: 40); a expressão “norma culta” deve ser entendida como designando a
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exercício do poder. Nem por ser antiga essa atitude deixa de orientar similares e contemporâneos movimentos de exclusão: um documento de circulação interna na redação do Zero Hora, em 1992, de um editor para os seus subordinados, prescreve: Erramos ao usar a palavra militância para definir o conjunto dos integrantes de um determinado partido. Vamos abolir esta expressão. Da mesma forma, evitemos o palavreado de sindicato, como a proposta foi tirada da assembléia ou o PT realiza plenária hoje.
De fato, o conjunto dos militantes de um determinado partido político, diferentemente do conjunto dos camelos, nunca fez parte da lista dos coletivos ensinados na escola. Foram os partidos de esquerda que agiram com e sobre a língua para resolver um problema discursivo: o coletivo filiados, usado pelos partidos tradicionais, não servia para expressar o peculiar comportamento ativo esperado dos militantes de partidos empenhados em transformações sociais. O erramos do documento procura apresentar uma interdição de cunho político como desvio com relação a alguma lei da língua portuguesa, pois chamar militantes de filiados implica, além de um juízo sobre esses militantes e sobre o partido em que militam, a velha opinião de que o povo não conhece as palavras corretas da língua portuguesa. Já o evitemos o palavreado de sindicato vai igualmente implicar a substituição por outras palavras, corretas, da palavra plenária e da expressão tirar em assembléia, que designam peculiares instituições criadas pelos militantes dos partidos de esquerda. Em oposição diametral a essa exclusão está o afã jornalístico de repassar de primeira qualquer nova palavra criada para designar as mais recentes modas na economia, na administração, no “marketing”, na informática. Para a objetividade jornalística, é impensável tanto considerar o uso dessas expresnorma lingüística praticada, em determinadas situações (aquelas que envolvem certo grau de formalidade), por aqueles grupos sociais mais diretamente relacionados com a cultura escrita, em especial por aquela legitimada historicamente pelos grupos sociais que controlam o poder social. A expressão usada aqui foi e vai ser a língua que ele foi capaz de aprender como correta porque é assim que a apropriação de uma língua tomada como correta sempre se deu entre nós como um processo privado, autogerido e auto-avaliado, como vai ser esclarecido mais adiante. Quem julga que fala a língua correta avalia a fala de todos os outros pela língua correta que julga falar.
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sões como desconhecimento da língua portuguesa quanto julgar o povo organizado em partidos e sindicatos capaz de criar termos técnicos. No entanto, o enxotamento do palavreado de sindicato das páginas do jornal revela — e isso é mais relevante do que a proscrição — que esses erros de origem popular já estão nos jornais, já invadiram a língua escrita, que se guardava para o registro de uma privada padrão. Isso foi em 1992; já em 1998, o mesmo jornal e a RBS-TV, do mesmo grupo, chamavam de militantes todos os que carregavam bandeiras por qualquer partido nas eleições para governador, inclusive para os partidos que só tinham filiados. Todas as marteladas a que foram submetidas todas as falas populares públicas ao longo da história do Brasil com a finalidade de excluí-las da língua portuguesa não conseguiram calar a boca do povo brasileiro nem impedi-lo de ir, mesmo dizendo nós vai. O discurso operário, o discurso funcionário público, o discurso sem-terra expressam-se como se expressam porque seus falantes resolveram não mais esperar por uma escola que os civilizasse para, só então, passarem a proclamar suas necessidades e seus interesses naquela língua legitimada por quem se atribuía o direito de legitimar a língua dos outros. A legitimação da interlocução constituída nesses dialetos2 começa a se dar em função do peso político que adquiriram seus falantes, que passaram a ver com crescente suspeita a língua em que eram enganados pelos políticos das elites. Essa tomada da palavra pelo povo brasileiro levou a língua falada por ele não apenas para assembléias de movimentos populares e de sindicatos e para os palanques dos comícios, mas também para os parlamentos, onde ninguém mais se atreve a martelar suas infrações às leis da língua portuguesa, legitimadas que foram pelos votos daqueles a quem essa língua expressa. A exclusividade da língua que falavam aqueles que tinham conseguido aprender aquela língua que a escola teria ensinado desacreditou-se juntamente com o discurso de poder que nela se expressava: o questionamento do conteúdo levou ao descrédito da forma. 2. Dialeto vai designar a fala de grupos sociais organizados e de grupos profissionais: aqui se faz referência ao dialeto operário, sem-terra, funcionário público. Mais adiante, o texto vai falar no dialeto dos médicos, dos advogados, dos jornalistas. 11