Acerca do do tra traba ballho do profe professor Da tradução à produção do conhecimento no processo educativo Luiza Cortesão Stephen R. Stoer Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto
Trabalho apresentado na XXI Reunião Anual da ANPEd, Caxambu, setembro de 1998.
Apesar de se estarem progressivamente a alargar os efeitos sociais homogeneizantes que decorrem das globalizações, todos nós que vivemos em diferentes zonas do globo (na Europa, nas Américas, na África África etc.) somos somos confront ad os com múltiplas situações em que se é forçado a reconhecer que, a par desses fenômenos de homogeneização, há diversidade. Ela existe e até se está manifestando, na atua lida lida de, através de formas q ue se torna m cad a vez ma is evidentes evidentes.. E ta mbém temos de recoreconhecer nhecer q ue, em em diferentes zona s do glo bo , em diferentes países, se convive com essa diversidade de modo s que são ta mbém diversos diversos,, por ra zões históhistóricas, econômicas, ideológicas ou muito provavelmente em resultado de combinações destas e até de outras. A Europa Europa , por exemplo, exemplo, é, de longa d at a, uma zona do globo onde um certo certo número de Esta Esta dosnaçã o está está esta esta belec belecido ido de acordo com grupos nacionais relativamente homogêneos. Part e da Europa (na q ual Portuga l está está incluíincluído) foi ta mbém durante sécul séculos os um centro irradiador de migrações, migrações, aceitando com na tura lidade (q (q ue
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na linguagem e nas circunstâncias atuais não teríamos dificuldade de classificar como etnocêntrica) prime primeiramente iramente a sua vocaçã o de “ descobrir” descobrir” o mundo, depois de o civilizar, povoar, dominar e explorar. Diversamente, as Américas foram, desde há muito (a pa rtir aprox imada mente do sécul séculoo X VI), VI), zonas de crescente confluência, onde chegavam, e ainda continuam a chegar, povos de todo o mundo, povos estes estes que se fora m instaland o e confronta ndo/ ndo /convivendo (geralmente (geralmente ma l) com os o s hab itanita ntes que lá já existiam. Foi no âmbito de recombina ções e de conflito conflito s q ue se gerara m nesses nesses contexcontextos que foram tendo origem as diferentes nações deste continente. É, pois, fácil de admitir q ue as circuns circunstâ tâ ncias em que se origina ra m os diferentes diferentes Esta Esta do s-na s-na ção , o tipo de contato que, historicamente, se teve com o “ outro” , o “ difere diferente nte”” e as várias várias formas como a tua lmente se convive com a d iversida iversida de sociocultural, estejam de certo modo freqüentemente relacionada s. Por exemplo, exemplo, a Europa, como foi colocado a nteriormente, sempre sempre foi considerada um cen-
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tro irrad iador d e migrações, convive agora com dificuldades com a onda de emigrantes que, vindos de todo o mundo, a procuram, por razões muito variadas. E uma o utra situação que contribui para t ornar este panorama ainda mais complicado é o racismo, q ue constantemente emerge aq ui e ali. E nã o só na Europa , d esenvolve-se e evolui tam bém com a mo dernida de, pela sua na tureza f unciona l ao sistema capit alista (Wa llerstein, 1990). Todos esses problemas têm evidentes e múltiplos reflexos no processo educat ivo do s diversos países. Portugal, por exemplo, partilha com alguns países da Europa uma situaçã o em que acont eceu (qua se consta ntemente desde o século XII) uma coincidência do s seus limites geográ ficos com um povo q ue fala uma mesma língua e tem uma história comum, fat o q ue, sob o ponto d e vista educat ivo, lhe pareceria oferecer alguma s condições de base de que poderia resultar uma forte homogeneidade. Para além disso, e se nos reporta rmos ago ra ao contexto educat ivo do século X X, poderá not ar-se que esta homogeneidade (aparente) foi, por razões diferentes, sempre oficialmente realçada. No que diz respeito a o q ue se designa va por Po rtuga l cont inenta l, sobretudo com o Estado Novo, as práticas educativas nã o estimulara m nunca consciência de q ue por trás desta homogeneidade a parente poderia existir uma heterogeneidad e sociocultural. Pelo contrá rio, a escola era, nessa alt ura, co ncebida essencialmente como espaço d e aprendizagem destinad o q uase exclusivam ente às classes média e média a lta, urba na. Para crianças de meio rural procurava até inculcar-se o desinteresse pela escola, o amor à terra, ao tra balho “ honesto e esforçado” que nada tinha a lucrar com a alfabetização. São dessa época iniciativas e a titudes que marca m explicitamente esse tipo de opçõ es. Entre elas po de cita r-se como exemplo uma int ervenção n a Assembleia N acion al do deputado C orreia Pinto em maio de 1938: “ Saber ler para a creditar cegamente no q ue dizem certos jorna is e certa s publicações? Saber ler para a cultura do ódio entre os homens e do homem entre as classes? Saber ler para saber at é que ponto va i
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a prá tica e a ciência do ma l? Pergunto, va le a pena saber ler para isto?” (C ortesão, 1981, p. 85). E em O Sé culo (1927), Virgínia de Castro e Almeida a firmava: “ Que vantagens foram b uscar à Escola? N enhumas. N ada ganharam. Perderam tudo. Felizes os que esquecem e voltam à enxada. A parte mais linda, ma is forte, e mais saudá vel da alma port uguesa reside nesses 75% de ana lfabetos” (idem, 1981, p. 57). Por outro lado, em outro nível, a educação ta mbém era estrutura da como m eio de apoio à concepção de Império em que o co ntinente é que verda deiramente decidia o s critérios educat ivos de homogeneização, na sua missão civilizad ora , impondo o mesmo currículo, os mesmos “ Exa mes Na cionais” , as mesmas metodologias, em todo o Império C olonial. M ais tarde, qua ndo começara m os movimentos de independência a fricanos, a educaçã o preparad a no continente (embora de modo d iferente) desempenhou também importante papel de homogeneizaçã o; isso sucedeu qua ndo foi decidido q ue, em vez de um Império Colonial, o que havia, afinal, eram “ províncias” (ultrama rinas), ta l como as havia no continente, entre as q uais era importante realçar a proximida de. Tudo o q ue conferisse alguma consciência d e diferentes identidad es nas diversas regiões era politicamente ameaçador. Foi nesse clima que muitos dos professores portugueses foram socializados como cidadãos e como pro fessores. Clima esse q ue, muito prova velmente, reforçou a concepção homogeneizante q ue os pro fessores em geral têm d os seus alunos, sob retudo em relação à emergência da escola d e massas. É que, dispondo de poucos professores e de espaços exíguos, em toda a parte a Escola incentivou os professores a t raba lhar com os a lunos como se tratasse de um só porque eram todos idênticos. Eles foram estimulado s, porta nto, a não serem sensíveis às diferenças existentes, e a co nsiderar o s alunos como idênticos face ao processo educat ivo q ue se oferecia. Era o que, na época, significava uma oferta d e “ igualdade de oportunidades” . D e tod o esse conjunto de circunstân cias resul-
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ta muito possivelmente o “ da ltonismo cultural” q ue corresponde à dificuldade de ver as diferenças decorrida s do “ arco -íris sociocultural que (na mo dernidade) sempre existe em qualquer escola (Cortesão e Stoer, 1996). No entanto, é importa nte nota r q ue esta insensibilidade à existência da diversidade cultural na população educat iva pa rece ta mbém existir noutros cont extos bem diferentes. As causa s da sua origem serão muito provavelmente também diversas e interessantes de analisar, mas não vão ser referidas aq ui (C ortesão , 1998a). As fontes de diversidade na escola portuguesa
Será talvez, em parte, em conseqüência desta dificulda de generalizada de discernir o a rco-íris cultural presente nas escolas que, com freqüência, se pode ouvir defender (sobretudo em meios que estã o ma is longe das realidades da escola b ásica onde a gra nde seleção sociocultura l acont ece) que a q uestão da diversidade cultural não constitui um problema muito sério pa ra as escolas portuguesas Realmente, mesmo ago ra q ue passou a ser um país de imigração, a variedade étnica em Portugal não é muito grande, se a compara rmos com países como a França, a Inglaterra ou o Bra sil. É certo q ue na nossa população escolar, q ue deixou de incluir pessoas que existiam no espaço físico do anterior “ Império C olonial” , podemos contar at ualmente, devido ao alargamento e afirmação da escolaridade obrigatória, com uma presença significativa e crescente dos ciganos, dos alunos que vieram de C ab o Verde, S. Tomé, G uiné, Angola, M oçambiq ue e Timor, “ retorna dos” ou filhos de trab alha dores migrantes, dos que regressaram de emigração européia, a mericana e outra s, sobretudo o s de 2ª e 3ª geração. Temos ainda diferentes grupos de alunos de origem indiana , chinesa, d a América d o Sul e at é de vários outros países europeus. Temos também o resultado do processo de complexificação que se opera, na turalmente, na s sociedades e de que fala Wieviorka, complexidade essa que, contrariando a
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homogeneização decorrente da globalização, é fruto d a “ invenção permanente em q ue as identidades se transformam e se recompõem e onde não existe princípio de esta bilidad e definitiva” (Wieviorka, no prelo, p. 13). M as o que não se pode também esquecer, é que são outros grupos culturais porventura menos visíveis, mas que nem por isso deixam de estar bem presentes com as suas características próprias, seus valores, seus saberes, seus problemas, suas subjetividades, cujas características interatua m da ndo lugar a numerosas outras situações socioculturais dota da s da especificidade (M cCa rthy, 1988). É toda a problemát ica (ou não será a ntes a riq ueza?) q ue decorre de, nesta escola, na q uela escola, esta rem alunos mais ou menos mistura dos, ma is ou menos isolados, de ida des diferentes, de meios rurais, de zona s urbana s e suburbana s, de classes abastadas, de bairros de lata, de meios piscató rios, do interior, de ra pazes e de moças cujos interesses, sab eres, cód igos de cond uta (decorrentes de diferentes processos de socializaçã o) são diversos e q ue dão corpo a muitas tona lidades de arco-íris cultural. A a centua ção desta diversidad e tem sobretudo decorrido da progressiva construção d a escola de massas que, lentamente, vem acontecendo em Portugal: inicialmente (de uma forma muito incipiente), ainda durant e o Esta do N ovo, sob a pressão da necessida de de ad apta ção a um mundo que progressivamente se industrializava e que não era muito compatível com a elevadíssima taxa de ana lfabetismo então existente. Posteriormente na chamada “ primavera M arcelista” com o q ue se designou por Bat al ha d a E du cação , de Veiga Simão, e que se prolongou e acentuou com a explosão escolar q ue se verificou no 25 de Abril e nos a nos q ue se seguira m (Sto er, 1986). Finalmente, Port uga l encontra -se envolvido na construção de uma entidade suprana cional q ue se institula a União Européia. E, como é sab ido, a Europa hoje em dia pa ssa por um processo de cristalizaçã o d e todos o s problemas associados com a globalizaçã o (Balibar, 1991; Stoer e Cortesão, 1998). Assim sendo, pode observar-se que a crescente heterogeneização da população escolar em Por-
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tugal tem mais do q ue uma o rigem: decorre do a largamento d e base social de recrutamento da população escolar, pelo advento d a escola d e massas e pela complexificação sociocultura l e étnica q ue vem tendo lugar na própria socieda de. D este modo, par a alé m e junt amente com a varieda de étnica t em, pois, lugar um problema mais vasto, e significativo da diversidade social e cultural com q ue a escola t em de aprender a t rab alha r. É, po is, necessário (e os pesa dos n úmeros do insucesso escolar, de fuga à escola, mesmo d e ana lfa betismo e d e iliteracia mo stram-no bem) que o professor possa e saiba ver a diversidade com que trabalha e que queira e possa tentar encontrar algumas formas de o fazer, de modo a contribuir, mesmo que modestamente, para o desenvolvimento de uma escola com um funcionamento mais democrático. E pensa-se que, como adiante se discutirá, para isto será muito important e a a doçã o de atitudes e de práticas de investigação. É que o sempre multifacetado e difícil problema da educação torna-se ainda mais complexo à medida q ue a diversidade cresce. C omo se sabe, quant o maior é a distâ ncia q ue separa o nível sociocultural d os alunos do tipo de saberes q ue a escola arbitra riamente impõe como únicos aceitá veis, maior é a violência simbólica q ue é exercida pela escola sobre os a lunos (Bourdieu e Passeron, 1970) e mais violento é o processo de recontextua lização q ue lhes é exigida (Bernstein, 1990). Além disso, é também importante que se note que o tipo d e alunos para q ue as regras educativas e o currículo foram concebidos continuem a ser domina ntes em termos de poder é hoje clara mente minoritá rio em termos de representa ções numérica s no espaço escolar pelo já referido a dvento da escola de ma ssas. Isto significa q ue a escola se vê forçada a t rabalhar com uma população que em conseqüência da sua socialização não partilha (à pa rtida) interesses, valores, comporta mentos considerado s “ normais” com os q ue a escola impõe e exige. O s problemas da relação destes alunos com a escola, com os professores e com a aprendizagem
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aumentarão mais, pois, se os professores e os currículos não o s prepara rem para lidar com a diversida de, o q ue implica logo à partida conhecê-la. D a consciência d e todo s estes fenômenos e das correspondentes conseqüência educa tiva s e sociais de desigualdade e exclusão decorreu a proposta de que se tente, através de currículos mais flexíveis, at ravés do recurso a o q ue se designou por “ dispositivos pedagógicos” , contribuir para desenvolver nos alunos um processo d e “ bilingüismo cultural” , em que da aquisição dos saberes curriculares se aproveitem e valorizem também as raízes culturais dos grupos minoritá rios com q ue se traba lha. Bilingüismo cultural: uma utopia?
É esta tentativa original de ligação , esta preocupação em conseguir articular situações, por vezes aparentemente divergentes, de culturas erudita s (prevista s oficialmente no s currículos) e da cultura q ue informa a socialização primária do a luno q ue estrutura a s características de um “ dispositivo pedagógico” . Nesta caracterização, está esboçada a definição de “ bilingüismo cultural” q ue é, afinal, a situação-limite para a consecução da q ual os dispositivos peda gógicos po dem (e/ou t êm a int enção) de contribuir. O dicionário Petit Robert define bilingüismo como a q ualidad e de alguém que “ domina perfeitamente duas línguas” ou a “ qua lidad e de uma pessoa de uma região bilíngüe” . Nesta definição relaciona-se, assim, a possibilidad e da existência de um domínio tot al de duas línguas com o fa to d e se ter nascido numa zona onde os referidos idiomas são fala dos, onde a aprendizagem simultânea da s duas línguas foi feita na primeira infâ ncia. Assim, poderá no ta r-se q ue o próprio conceito de bilingüismo, mesmo em nível do senso comum, levanta a questã o de q ue o do mínio profundo de uma linguagem é muito difícil, e dependerá, muito prova velmente, do desenvolvimento d e estruturas profund as só possíveis de ad q uirir ao longo da socialização primária. O problema assume ainda mais complexida-
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de se, em vez de se discutir a po ssibilida de de “ domina r perfeitam ente dua s línguas” , se estiver agora a encarar a possibilidade do domínio da existência de conhecimentos, regras, valores, a capacida de de movimentação, a possibilidade da existência de um sentimento de pertencimento a mais do que uma cultura. Sobretudo se se optar por um conceito de cultura construído não em nível da s suas ma nifestações explícitas (mais de tipo etnogr áf ico), se ta mbém se não escolher uma definição tã o a mpla de cultura como sendo “ tudo o q ue fica entre o universal e o idio ssincrá tico” (Wa llerstein, 1990) e se se opta r por um conceito mais próximo d o d efendido po r Bourdieu que, como refere Ca llew aert, concebe cultura como a lgo que “ tem uma estrutura profunda e conteúdos aparentes” , q ue tem “ os seus padrões últimos, que são arbitrários, inconscientes, funcionand o como pressupostos estruturantes” 1. Um conceito de cultura como este conduz mesmo a q ue se discuta a (im)possibilida de de que possa existir seq uer um “ pertencimento” a mais do que uma cultura. Por exemplo, Bourdieu afirma essa impossibilida de, pois que, sendo a cultura estruturada na socialização primária (situand o-se porta nto em nível do inconsciente), não se poderá adquirir posteriormente; O acesso à cultura nã o pode ser nunca ma is do que o acesso a uma cultura — a da classe ou da nação. Sem dúvida que qua lquer um, nascido no estrangeiro e que deseje compreender o un iverso dos chin eses ou dos “ Junker” , já poderá começar por t entar de novo a sua educação “ esgravatando ” no modelo chinês ou “ Junker” (por exemplo tentando como d iz Husserl, “ aprender o conteúdo do currículo do colégio militar” ). Mas esta a quisição de conhecimento mediatizado diferirá sempre da familiaridade imediata com
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Callewaert, seminário sobre Pierre Bourdieu, no M estrad o em Ciências da Educação , especialização Educa ção e Diversidad e Cultura l (1996-98), d a Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educaçã o da Universidade do Po rto, Portugal.
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a cultura nativa, da mesma forma que a cultura interiorizada, subconsciente do nativo difere da cultura reconstruída pelo etnólogo (Bourdieu, 1971, p. 205).
Na mesma linha, Row land afirma: “ o antropólogo q ue conseguir ‘penetrar’ numa outra cultura conhece-a em teoria tã o bem como q ualquer nativo” (Row land, 1987, p. 13), poderá mesmo “ ter ad quirido uma compreensão da q uela cultura superior à de qualquer um dos nativos, aos quais se mostra , em geral, veda da a (im)possibilidad e de intercambiarem papéis e estatutos sociais entre si” (idem, p. 13). M as a crescenta: “ a sua socialização acelerada na cultura estudada não é eq uivalente à socialização primária de uma criança nativa ” (idem, p. 15). O que se discute, portant o, é a possibilidade de compreensão real e profunda de mais do que uma cultura , bem como a po ssibilidad e de existência (em relação a o utra s culturas) de um sentimento de “ pertencimento” , portant o com a possibilida de de se movimentar, com igual natura lidade, facilidade, e segurança em mais do que um campo sociocultural. É necessário, no entanto, esclarecer que este sentimento d e “ pertencimento” não poderá ser confundido com a situaçã o q ue decorre de uma a bsorção, por uma assimilaçã o nã o consciente por outra cultura. “ Assimilação” sugere, de fato, a diluição e submissão acrítica a outra cultura dominante. O ra, mesmo em relação à cultura em que a socializaçã o primária fo i feita, t udo o q ue vem sendo defendido indica que é fundamental a adoção de uma po stura a nalítica e crítica em relação a conhecimentos e decisões sociais e políticas q ue têm lugar na comunidade. Assim sendo, o “ pertencimento” a ma is do q ue a uma cultura tornaria muito important e uma relação, t amb ém crítica, e a consciência da importância de um exercício de cidad ania em qua lquer uma delas. A questão da possibilidade e modalidade de “ pertencimento” a ma is de um grupo tem sido discutida ta mbém a respeito da s “ persona lidades multíplas e híbridas” (M aga lhães, policopiado). É-se
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ora profissional, ora elemento d e uma fa mília (mãe/ pa i, mulher/ho mem, tio /tia etc.) ora m embro d e uma a ssociação po lítica, ora elemento d e uma N ação, ora da Europa, ora do Mundo? “ Ora” ou “ simultaneamente” ou, numa postura decorrente de uma hibridação “ não sincrônica” , destas diferentes pertencimentos? (McCarthy, 1988). Por exemplo, sabe-se que Yuri G arga rin olhando a Terra do espaço con fessou, emociona do, o sentimento de pertencimento a o “ Planeta Azul” q ue, lá de longe, podia contemplar. Por sua vez um astronauta , de origem coreana naturalizado americano, interrogado sobre se se sentia ou não americano, a o tentar exprimir como era complicad o “ sentir-se” uma coisa ou out ra, referia q ue, se um dia se encontrasse com um extra-terrestre, se conseguisse comunicar-se com ele, para lhe dizer de onde ele próprio era originário, seria impossível explicar-lhe q ue tinha na scido na C oréia, na América o u na R ússia, porq ue isso nã o t eria q ualq uer significad o nem para o seu interlocutor nem, nestas circunstâncias, para ele próprio. Ele diria , então , q ue era da Terra [...] De onde o seu sentimento global de pertencimento à Terra 2. Lá no espaço G arga rin experimenta va, porta nto, um forte sentimento de “ pertencimento” à Terra. Uma vez no solo, muito provavelmente voltaria a sentir-se mais ligad o à URSS. “ O u será po ssível ad mitir q ue essa v isão glob al e distan te da Terra tivesse sido tão forte, tão significativa, que lhe afetasse, a longo prazo, o seu sentimento em relação ao mundo em que vivemos? Por outras palavras, poderão situações muito significativas, incidentes suficientemente poderosos, af etar a estrut uração d o próprio hab itus?” Será b om recordar q ue o próprio Bourdieu afirma q ue o “ hab itus é durável ma s não imut ável” (Bourdieu, 1992, p. 109). Retomando a questão inicial, poder-se-á, de qualquer forma (mesmo sem questionar se isto é possível ou não), admitir que bilingüismo cultural 2 Entrevista
realizada numa emissão da RTP2, Rede de Televisão Portuguesa 2, em junho de 1995, sobre emigração e emigrantes.
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será uma situaçã o relativa à possibilidade de do mínio/ma nipulaçã o de ma is do q ue uma cultura em que, no caso que se analisa no momento presente, uma dessas culturas se apresenta como d ominante em rela ção à outra . Traduzir-se-ia no do mínio/ma nipulação de instrumentos de sobrevivência, convivência, usufruto de direitos, de intervenção, em mais do que uma cultura. Poderá mesmo dizer-se do exercício de cidada nia, com as caut elas decorrentes da consciência de q ue o próprio co nceito d e cidadania é algo a que se atribui, habitualmente, uma definição com uma forte carga etnocêntrica, pois que, como se sabe (a semelhança do que se passa com o s direitos do ho mem listado s no texto da chamada declaração “ universal” ), “ cidada nia” não parece ter, também, um significado universal. Alguém q ue usufruísse de um b ilingüismo cultural sentir-se-ia, porta nto, “ em casa” em mais do q ue um contexto sociocultural, experimentaria sentimentos de pertencimento a ma is do q ue uma cultura. Seria um “ cidadã o” nos diferentes contextos; teria acesso ao poder em ma is do q ue uma cultura. Através da socia lização primá ria em duas culturas ou em resultado de uma recontextualização mais ou menos violenta , de que fa la Bernstein, numa socialização secundária numa segunda cultura (dominante), a admitir-se o bilingüismo cultural, então seria possível não perder as raízes culturais de origem na cultura minoritária, criando novas raízes, o u criand o em t empos diferentes, raízes distintas e igualmente significativas em cada um dos diferentes contextos socioculturais. Ora, mesmo que, numa linha defendida por Bourdieu, se aceite que esta situação constitui um “ limite” ao qua l se pode tender mas que nunca será plena mente atingível, e que, de certo mod o se ficará sempre diferentemente posicionado na cultura nat iva e na segunda cultura, o q ue será importa nte discutir e explorar é se, em tais condições, o processo educativo pode ou não contribuir para que tenha lugar a ocorrência (ou proximidade) de um bilingüismo cultural. Ir-se-á d efender que contribuição da escola pa ra o d esenvolvimento de um bilingüismo cultura l só
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será possível se o professor no seu cotid iano se afa sta r do recurso exclusivo e de prát icas tra nsmissoras e reproduto ras e tenta r desenvolver atitud es e prát icas que, como se procurará demonstrar, conduzem à produção de diferentes tipos de conhecimento. Que produção de conhecimentos?
Segundo Ba sil Bernstein, o traba lho de um professor consiste em, a tra vés do discurso peda gógico, tra duzir o saber científico numa linguagem tal q ue permita a apreensão e a compreensão, pelos que estã o a a prender, de conhecimento s que, nos tra ba lhos originalmente produzidos se apresentavam, geralmente, sob fo rmas muito ma is complexas. Trata-se, portanto, segundo ele, de um trabalho que visa conseguir a descomplexificação de resultados da produção científica, de modo a torná -los acessíveis aq ueles discentes que no processo educat ivo terão de adquirir aqueles saberes. Os professores assumem, a ssim, o papel de selecionad ores, simplificad ores e tra nsmissores de saberes q ue não fo ram produzidos por eles. Como Bernstein explica: Toma ndo a física como exemplo, distinguiremos entre física como a tividade no campo da produção d e um discurso, e física na q ualidad e de discurso pedagógico. É possível olhar as atividades dos físicos no campo em que a física é produzida e por vezes é difícil acreditar q ue o que estão a fa zer é física. Nã o é este o caso da física como discurso pedagó gico. O livro de texto diz o q ue a física é, e é óbvio que tem um autor. O aspecto interessant e, contudo, é que os auto res de livros de texto de física rara mente são físicos que tra balham no campo da produção da física; eles traba lham no campo da recontextua lização [...] os agentes da recontextua lização selecionam de entre a to talida de de práticas, aq uilo q ue é designado por física, no campo da produção da física. Há uma seleção relativa quant o a o modo como a física se relaciona com outros assuntos, no que diz respeito à seqüência e ao ritmo (ritmo é a quantidade de aquisição esperada), mas esta seleção não pode derivar da lógica do discurso da física [...] (Bernstein, 1996, p. 48-9).
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O s professores sã o, a ssim, segundo B ernstein, “ agentes recontextualizadores” que “ deslocam o texto e procedem à sua recolocação ” (Bernstein, 1990, p. 193). Ao deslocar e recolocar o texto, os professores procedem à sua tra dução . Ora etimologicamente, um tradutor é um “ traditor” , isto é, é alguém que, ao verter um texto para outro idioma, trai, quase inevitavelmente, o seu significado original. Falar de traição neste texto é uma forma de expor a d úvida d e que seja po ssível capt ar int egralmente o pensamento q ue o a utor pro curou expressar no seu traba lho original. Um bom tra dutor, no entanto, esforça-se para não concretizar essa traição, procurando apro priar-se o ma is completamente que lhe é possível do significado do texto a fim de poder exprimí-lo através de outra linguagem (noutra língua), mantendo um sentido t ão pró ximo quanto possível do original, e de modo a manter ta mbém a q ualidad e formal q ue ele tinha nesse idioma. Trad uzir um texto literário exige, porta nto, um grande domínio das duas línguas, um domínio tal q ue o tra dutor seja capa z de compreender, seja capaz d e se apropriar, do original, e de o recriar na língua pa ra a q ual o está a verter. Exige, portant o, também (se se tratar de uma versão escrita) riqueza vocabular, sensibilida de, flexibilida de no domínio do segundo idioma, q ualidad es q ue embora não sendo a s mesmas q ue são necessárias à cria ção o riginal do texto, são específicas deste tra ba lho e muito importantes. No caso do professor, a possibilidad e de verter o discurso científico original num discurso pedagógico depende, entre outras coisas, da sua capacidade de selecionar o essencial e ser capaz de estabelecer seqüências lógicas e ritmos que pensa serem adequados aos alunos com que trabalha. O q ue interessa aq ui ana lisar é q uando e como intervém no tra ba lho do professor uma a tividade do tipo da tradução. Freq üentemente, os professores q uase não fa zem sequer um trabalho do tipo de tradução. Por vezes, limita m-se a reprod uzir para os aluno s, com a ma ior fidelidad e possível o q ue se encont ra r egis-
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trado em livros de texto (e que são, como se viu, materiais didáticos, portanto, materiais estandardizado s), ond e foi feita já a ritmagem, e os conhecimento s científicos já estã o seleciona do s, condensados e simplificados. É realmente pouco freqüente que o professor do ensino básico ou mesmo secundário prepare as suas a ulas lendo no o riginal um trab alho produzido por um físico, um matemát ico ou um historiado r e que é o resultado da s pesquisas destes. O professor recorre, q uase exclusivamente, como explica Bernstein (1990, p. 193), a texto s que já mudara m “ de posição” tendo sido “ reposicionados” por outrem num contexto educacional. E ainda, freqüentemente, como atrás se referiu, o professor recorre a este tipo d e ma teriais para , na s suas aulas, reproduzir para os alunos (no â mbito de uma pedagogia que Paulo Freire classificaria de “ ba ncária” ) os conhecimentos ali regista dos. Uma situaçã o destas constitui um processo de Educaçã o mono cultural de efeitos qua se exclusivamente reprodutores, pois que se assim proceder o professor recorre de forma rotineira a ma teriais didáticos, para concretizar o seu trabalho de transmissão d e conhecimentos esta belecidos como necessários (pelo currículo of icial, centra lmente estab elecido). E o faz de um modo q ue é dirigido à q ueles alunos q ue os grupos domina ntes identificam como “ aluno-médio” , ou “ aluno-tipo” . E recorre a esses mat eriais didáticos como a poio, como instrumento fa cilitado r, do a to d e ensinar. Trab alhand o deste modo, as q ualidad es necessárias pa ra o d esempenho deste tipo de traba lho são a existência de uma razoável segurança científica, clareza de exposição e, quando muito, uma certa capacidade de reformular, se se percebe necessário, o mo do q ue usou para comunicar (e q ue está relacionado com a capacidad e de trad uzir). Considere-se agora um segundo caso em que um auto r de programa s ou de livros, ou ainda um professor, recorre ao texto científico, procurando vertê-lo numa linguagem que seja acessível aos alunos. Pa ra realizar este tra ba lho, ele esta rá rea lmente, a fazendo uma tradução. E pa ra q ue seja tradutor (e o menos possível “ traido r” ), tem de ser ca-
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paz de se apropria r completamente do sentido desse texto . Tem, tal como sucede com um bom d ivulgador, de o verter numa linguagem simples e clara mant endo, contudo, a correção científica. Tem de saber estabelecer a seqüência exigida por uma lógica pedagógica e identificar a quantidade de conhecimentos de q ue o aluno t erá capa cidade de se apropriar. Trata -se, porta nto, de uma versão d escomplexificada do conhecimento científico produzido por outrem. Num t raba lho ant erior, refere-se, a inda, a uma terceira situação que ultrapassa estas duas que se aca ba m de ser descritas (Co rtesão e Stoer, 1997). N a segunda situaçã o a nteriormente referida , a comunicação, tal como sucede no primeiro caso, é pensada na relação a alunos que são uma abstração concebida pela escola monocultura l. D iferentemente, neste terceiro caso, tenta-se agora comunicar com alunos de que se procuraram conhecer as características, interesses, conhecimentos anteriores e problemas, numa t entativa de lhes propor situações de aprendizagens que lhes sejam adequadas e significativas. E nesse trabalho afirmou-se: Esta seleção do discurso pedagógico, esta recolocação, reenfoque e relacionamento dos outros discursos para q ue se torne um veículo não só de comunicação ma s também de desenvolvimento do forma ndo , se é original, se se faz, nã o por t entat iva/erro, ma s porq ue se constrói como hipótese lógica de proposta educativa àquele grupo, àquele contexto, poderá constituir uma situaçã o específica d e produção d e conhecimento no decurso da ação pedagógica. Poderá, portanto, verificar-se que, no decurso e através da a ção pedagógica, se podem produzir dois tipos de con hecimentos específicos que nã o se limitam, de forma alguma, a ser somente o resultado da simplificação do conhecimento científico produzido por outra s ciências: — o primeiro será um co nhecimento de tipo socioantro pológico sobre o grupo ou os indivíduos com que se trabalha, conhecimento esse que poderia talvez ser adquirido também por outras vias: por exemplo através de uma prolongada observação participante
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com a q uele grupo em fo rmação e que permitiria identificar características socioculturais e até psicológicas; — o segundo será de natureza educacional, construído a partir do primeiro mas que resulta também de um cruzamento f ecundo, original, pelo menos entre esse conhecimento e contributo s da t eoria do currículo, da s didát icas das d iferentes disciplinas etc., e do qua l resulta a pro dução original (e efêmera), de “ dispositivos pedagógicos” (cf. C ortesão e Stoer, 1997, p. 18).
C omo se aca ba de ver, pode-se identificar to da uma ga ma d e formas q ue os professores podem ter, de acesso aos conhecimentos que irão utilizar no processo educativo. O cará cter, porém, e os significados da situação educativa que é apresentada aos alunos não dependem só da forma como o s professores se apropriam dos saberes que são utilizados. Dependem ta mbém, entre outras coisas, do s processos metodológicos a q ue eles recorrem e atra vés dos q uais proporcionam a os a lunos situações de aprendizagem. Também aqui se poderão considerar diferentes situações desde a já anteriormente referida “ educação ba ncária” de Paulo Freire (e que consiste em «depositar »conhecimento s no s a lunos co nsiderado s recipientes passivos e va zios que o professor irá encher), passando ta mbém pelo q ue se designa, ha bitualmente, por “ ensino a tivo” . Este poderá ca racterizar-se, como se sabe, como sendo o tipo d e trabalho em que se solicita aos alunos que desenvolvam atividades concebidas pelos professores e por estes considerada s adequa da s para q ue os que estã o a a prender consigam adq uirir aq uelas aprendizag ens. Finalmente, poderá considerar-se uma outra situaçã o em q ue se estimula os alunos a envolver-se ou em projetos que gerem, ou em problemas que procuram resolver, com os quais desenvolvam várias ca pacidad es e posturas de crítica ou em várias at ivida des várias q ue dinamizam, porq ue lhes dizem algo, porque de algum modo lhes são significativas e através das quais poderão desenvolver alguma consciência crítica d os seus direitos e deveres como cidadã os.
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Assim sendo, pode verificar-se que também as metodologias de trab alho a q ue se recorre poderão assumir diferentes gradua ções q ue vão conduzindo os alunos da situaçã o de súditos, à situa ção d e sujeitos e/ou a gentes da sua a prendiza gem, de uma aprendizagem que irá proporcionar a eles um significad o ca da vez ma is evidente. O q ue se vai propo r é q ue, ao refletir sob re os processos de ensino/a prendiza gem, se considerem, simultaneamente, estes dois vetores (relativos a processos de aquisição do saber e à metodologia de ensino/apr endizagem usa da ). Ao fa zer este cruza mento ir-se-á t am bém tenta r identificar em q ue casos intervêm situações de produçã o do conhecimento. Se se retomarem as palavras de Bernstein, poderá ver-se que o que se vai propor, afinal, é um exercício sobre a relaçã o do professor com “ o q uê do d iscurso pedagógico” , isto é, com o d iscurso q ue se vai torna r “ objeto e conteúdo da prá tica peda gógica” e a sua relação com o “ como” do mesmo discurso (Bernstein, 1996, p. 49). Ao longo desse exercício será ta mbém interessante tentar identificar (embora provisoriamente) em q ue níveis de ensino pod erão ter lugar diferentes processos, cuja índo le resulta da comb inaçã o da s cara cterísticas simbolicamente situada s nos dois vetores. É, no entanto, necessário esclarecer que, nesta fa se do tra ba lho, esta identificação nã o poderá ser feita a partir de uma análise empírica consistente, mas sim, exclusivamente, a partir de conhecimento obtido em nível do senso comum, ou, quando muito, em nível de uma reflexão feita sobre uma experiência prolonga da do exercício d a profissão em diferentes graus d e ensino. O modo como se articulam a s formas como os professores adq uirem o s conhecimento s necessários ao desenvolvimento do processo educativo (o “ q uê” nas pala vras de Bernstein), com diferentes processos metodológicos a que eles recorrem na concretização desse processo (o “ como” de Bernstein), permite, realmente, identificar e ca ract erizar diferentes mod alida des de ensino/aprendiza gem (v. Q uadro 1).
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Eixo metodológico (domesticação/ emancipação)
Quadro 1
B
Educação contextualizada (disp. pedagógicos)
A
E. não sup.
E. não sup.
8
9
E. sup.
E. sup.
Prod. conh. educ.
Prod. conh. cient.
E. não sup. 4
E. sup. Educação bancária
E. sup.
E. não sup. 7
Recurso a métodos ativos
E. sup.
E. não sup.
6
E. sup.
E. sup. Eixo da a quisição de saberes (reprodução/ produção)
E. não sup.
1 Cont eúdos do manual
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2 Trad. da produção científica
3 Produção do conhecimento pelo próprio (investigaçã o)
C omo se pode ver no eixo relativo a o processo de obt enção d e conhecimentos (reproduçã o/produçã o), co nsideram-se diferentes situa ções:
do logia (domesticação /emancipaçã o) estã o sucessivamente previstas várias situações. O professor pode:
> o recurso aos conteúdos contidos nos textos que constituem manuais e que estão já seleciona do s e simplificad os;
> recorrer a um ensino t ra nsmissivo, expositivo;
> a consulta a t raba lhos científicos, q ue são “ traduzidos” , selecionado s e relocalizados pelos professores; > a produção pelo próprio professor at ravés dos tra ba lhos de investigação q ue realiza. Também se pode ver que no eixo da meto-
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> recorrer a metodologias at ivas e a materiais didá ticos mais ou menos variad os, pondo em marcha um ensino q ue solicita a ção a o aluno deslocando-o da situaçã o de recipiente do conhecimento pa ra o papel de colabo rador na conquista da s suas aprendizagens; > desencadear processos também ativos de aprendizagem, mas a gora at ravés de recurso
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a d ispositivos peda gógicos (q ue relaciona m os saberes curriculares com problemas e com conhecimentos q ue os alunos possuem, d ecorrendo da sua socialização no grupo de origem) tendo, po rta nto , ma is possibilida des de serem significat ivas para aq ueles alunos. A combinação destas características, que simbolicamente se poderá imaginar estarem situad as a o longo destes eixos, permite identificar nove situações q ue estã o indicada s no qua dro 1 por a lgarismos que vão d e 1 a 9. Poderemos começar por not ar q ue as situações designada s por 3, 6, 9, 8 e 7 ocorrem implicando a existência d e processos de produçã o d e sa ber (portanto de investigação). Estes processos estão, respectiva mente, ligado s uns a diferentes processos de produção de conteúdos disciplinares, outros à elaboração de conhecimentos de tipo socioantropológico e educativo (Cortesão e Stoer, 1997). Por o utro la do, pode verificar-se que as situações indicadas por 1, 2, 4 e 5 estão ligad as a processos educativos em que não intervêm atividades de produção científica nem pedagógica. Assim sendo, o eixo A atravessa no quadro duas situações extremas: uma para a qual só contribuem processos de produção científica e pedagó gica; uma segunda, puramente reprodutiva, em que, portanto, nã o há qua lquer situação d e produção. Por sua vez, o eixo B separa as situações encontrad as em duas zonas: uma em que predomina a produção, outra em que predomina a tradução e a reprodução. Poderá ca racterizar-se a situaçã o 1 como aq uela em que o professor recorre exclusivamente ao ma nua l (no ensino bá sico e/ou secundário ) ou ao s apontamentos (“ à velha sebenta” ), no caso d o ensino universitário, para a realização de um ensino expositivo que consubsta ncia a mera reprodução do saber, quando muito pondo em evidência a posse de uma erudição científica e q ue contribui para a reprodução sociocultural. A recontextualização, simplificação e ritmagem já foram feitas por outrem. O professor, numa a titude que poderá ser
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classificad a de “ da ltônica” , limita-se a comunicar os conhecimentos com maior ou menor clareza. Nas situações indicadas por 2 e 5, e que são mais freqüentes no ensino superior, mas podendo ocorrer ta mbém nout ros níveis de ensino, o pro fessor expõe, explica recontextua lizando a sua produção científica o u de outrem (caso 2) ou (e isto a contece menos freq üentemente no ensino superior) suscita situações ativas da aprendizagem desses mesmos conteúdos, atra vés da a nálise de textos, debates, exercícios etc. (caso 5). Estes últimos sã o os q ue, na lingua gem comum, sã o referidos como sendo os professores “ de grande qualidad e” . No caso 4, q ue ocorre mais freqüentemente, sobretudo no ensino não-superior, com docentes também considerados geralmente “ de qualidade” , o professor a dequa o saber já selecionad o e simplificad o no ma nual, ma s propõe aos a lunos (at ravés, por exemplo, de debates, de jogos, de prob lema s a resolver) um conjunto d e situações at ivas de aprendizagem. É raro q ue esta situação ocorra no ensino superior, porque, como se pode ver, ela se caracteriza por uma conjunção de cara cterísticas indica dora s de existência de preocupações com processos educativos não acompanhadas de preocupações com a pesquisa, características essas que, em conjunto, não fazem hab itualmente part e do perfil do professor d o ensino superior. Os professores que produzem conhecimento na sua área disciplinar (e estes estão quase só limita do s aos professores do ensino superior q ue fa zem investigação) poderão através de um ensino expositivo tra nsmitir esses conhecimentos nã o t endo grande preocupação em os traduzir numa lingua gem que os descomplexifiq ue (situaçã o 3), mas poderão suscitar a participação, a brir-se ao debate com os seus alunos, ou imaginar a lguma situação q ue lhes ofereça a possibilida de de terem a lgum prota gonismo. Poderá tra ta r-se, por exemplo, da situa ção em que se propo rciona a leitura de textos científicos produzidos pelo professor e se solicita que os alunos os exponham, os a nalisem e os deba ta m em pequeno e/ou em gra nde grupo (situa ção 6). Esta situaçã o ta mbém ocorre (embora mesmo a q ui não
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com muita freqüência) q uase exclusivamente no ensino superior. O caso 7 é relativo a os professores que ad q uirem os conhecimentos a part ir de manuais (porta nto já recontextualizados e simplificados, mas que, conhecendo (ou desenvolvendo a tivida des que o ajudem a conhecer) os seus aluno s, se preocupa m em adequar as formas de tratamento dessas matérias (o “ como” de Bernstein) ao tipo de alunos com que tra ba lham (re/criando conteúdos e metodologia s de form a a q ue eles sejam a deq uad os ao s seus interesses, tomem em cont a o s seus problema s e permita m a rentabilização dos saberes que eles já possuem). Trata-se de professores que, raramente, (ainda com menor freqüência do q ue no caso 4 já ana lisad o) se encontram no ensino superior. Surgem, sim, e só ta mbém rara mente, entre os chama dos “ bons professores” do ensino bá sico e secundá rio e os professores que têm uma prát ica informad a por preocupações multiculturais. A situaçã o referenciada no q uad ro pelo número 9, pelo menos atua lmente, q uase se pod erá imaginar somente como ideal (e q ue, a existir, se situaria no ensino superior). Seguindo a linha d e raciocínio at é agora utilizada , trat ar-se-ia da situaçã o em que o prof essor produt or de conhecimento s disciplinares seria t am bém capa z de produzir conhecimentos de tipo socioantropológico sobre os seus alunos e utilizar este saber para produzir dispositivos pedagógicos ad equa do s a esses alunos q ue os estimulassem a ad q uirir esses conteúdos. M as essa a q uisição fa r-se-ia po r meio de um tra ba lho q ue se desenvolveria em um nível que não dependeria exclusivamente nem da ritma gem nem da simplificaçã o nem da condensaçã o sempre necessária ao s alunos do s ensino b ásico e secundário. Por o utras pa lavras, o caso do número 9 é relativo a uma situação educativa d e ensino superior, q ue idealmente seria po sta em marcha por um prof essor investigado r q ue ta mbém está atento à diversidade sociocultural, que, progressivamente, vai tendo m aior representa ção no ensino superior. A questã o q ue aq ui permanece é relat iva à distinção entre a recontextualização do ensino reali-
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zad o em atenção à diversidad e presente no a to educat ivo e as alt erações q ue hab itualmente são englobad as no conceito de tra dução, alterações estas que ocorrem, porta nto, na s situações em q ue não há produção de conhecimento em nível socioantropológico e pedagógico. Será possível, em todas as circunstâncias, fazer claramente a distinção entre as a tividades que se limitam à tra dução (que consiste essencialmente numa simplificaçã o, esta belecimento de uma seqüencialidade e ritmagem) e as atividades que envolvem processos de recontextualização? (Recordese q ue estas ocorrem q uando se procura encontrar at ravés de um tra ba lho de produçã o ponto s de convergência, interesse e saberes entre os alunos reais presentes e um conhecimento cujo nível científico de complexidade não é diminuído.) Esta é uma q uestão q ue permanece em aberto e q ue futuramente será tra balhada .
LUIZ A CO RTESÃO é professora associada da Faculdad e de Psicologia e de Ciências da Ed ucação da Universidad e do Porto (Portugal) e coordenad ora da linha d e investigação “ Cultura(s) e comunicação” do C entro de Investigação e Intervenção Educativas. É a utora de numerosos livros e artigos incluindo a obra Escola-sociedade: que rela- ção? (agora na terceira edição) e L evantand o a pedra: da pedagogia in ter/ mu lt icul tu ral à s pol íti cas educati vas numa é poca d e tr ansnaci onal ização , em co-autoria com Stephen
R. Stoer, a ser publicado em 1999 por Edições Afrontamento, Porto. STEPHEN R. STOER é professor catedrático da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da U niversidade do Port o (Portuga l) e diretor do Centro de Investigação e Intervenção Educativas. É também diretor da revista Ed ucação, Sociedade & Cu lt ur as .
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